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Universidade Federal Fluminense Instituto de Artes e Comunicação Social Departamento de Cinema e Vídeo Bacharelado em Cinema e Audiovisual Fabricio Barros Rodrigues Capoeira e Cinema: Memória e Imagens de Arquivo Monografia Niterói 2016

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Universidade Federal Fluminense

Instituto de Artes e Comunicação Social

Departamento de Cinema e Vídeo

Bacharelado em Cinema e Audiovisual

Fabricio Barros Rodrigues Capoeira e Cinema: Memória e Imagens de Arquivo

Monografia Niterói 2016

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Fabricio Barros Rodrigues

Capoeira e Cinema: Memória e Imagens de Arquivo

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de Bacharel em Cinema e Audiovisual, como requisito parcial para conclusão do curso.Orientadora: Eliany Salvatierra

Niterói 2016

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AGRADECIMENTOS

Realizar este TCC não foi das tarefas mais fáceis para mim. Encontrar um

tema que realmente me instigasse talvez tenha sido a maior dificuldade. Havia me

afastado muito da academia nos últimos anos, tendo inclusive trancado o curso por

mais de dois períodos. Após varias tentativas frustradas de realizar o TCC, a

professora Eliany Salvatierra – durante uma viagem que fizemos para acompanhar o

Cachoeira.DOC – me sugeriu que eu fizesse o TCC sobre capoeira, observando

essa minha paixão durante a viagem.

Sou eternamente grato a Eliany por esse conselho e por ter me ajudado a

elaborar a pesquisa, fazendo a ponte com o Cinema. Não imaginei a principio que

este seria um trabalho acolhido pela academia e agradeço a professora por ter

comprado essa ideia.

Agradeço também aos meus mestres e camaradas na capoeira. Ao

professor Ricardo, por toda a orientação e ensinamentos passados nos últimos

anos. Ao Mestre Formiga pela sua dedicação e esforço frente ao grupo Ilê de

Angola. Ao meu amigo e camaradinha Guilherme Staine que me apresentou todo

esse universo, sem sua amizade eu talvez não tivesse conhecido a capoeira de

angola.

Não poderia deixar de mencionar os grandes amigos que fiz ao longo da

UFF que sempre foram uma família para mim. Luquinhas, Petrus, Pedro Lessa,

Felix, Caio, Helena, Catu, Gabi, Brenda, Rober, João, Tomazinho, Gibi, Gusta,

Renato, Guilhermera, Bruninho, Thiaguinho, Ricardera, Marina, Isaac, Jorge, Lívia,

Vanessa, Luisa, Floriza, Glaucus, Clara, Nara, Patrícia, Machuca, Bruno Reis, Erico,

Dalila e Fernanda. Amo muito todos vocês. Se eu me esquecer de alguém peço

desculpas.

A minha mãe que sempre me apoiou em todas as minhas loucuras.

Desculpe as dores de cabeça causadas, mãezinha. Te muito amo também.

E em especial a minha companheira, Dora. Muito obrigado pelo amor, carinho,

companheirismo e incentivo que você me dá. Sou muito feliz de ter te conhecido e

ter você ao meu lado. Te amo demais!

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RESUMO

Esta pesquisa pretende traçar uma filmografia da capoeira, analisando sua

representação ao longo da história do cinema. Para aproximar o leitor e servir como

parâmetro de referencial, o trabalho apresenta uma narrativa da história da capoeira,

investigando suas matrizes africanas e seu desenvolvimento como prática de

resistência das populações negras. Pretende-se também iniciar um estudo de

imagens de arquivo do Mestre Gato Preto de Santo Amaro, para fins de pesquisa

para a realização de um documentário sobre o mestre.

Palavras-chave: capoeira; resistência; cinema; imagens; arquivo; memória.

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ABSTRACT

Thisresearchintendsto trace a filmographyofthe capoeira, byanalysing its

representationalongthecinema'shistory.

Togetthereaderacquaintedtothethemeandtobeused as a parameterto future

researches, thisworkpresents a narrationofcapoeira'shistory, aninvestigationof its

Africanoriginsand its development as a formofresistancebyblackpeople.

Thisworkalsomeansto start animagestudyfromthearchivesofthe capoeira master Gato

Preto, for therealizationof a documentary in thenear future.

Key-words: capoeira; resistance; cinema; images; archives; memory;

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Lista de Ilustrações

Figura 1 - Anúncio oferecendo recompensa pela captura de um escravo fugido

publicado no AlmanakLaemmert, 1854. Fundação Biblioteca Nacional. (pg.13)

Figura 2 - Datada em 1834, encontramos a descrição "Jogar Capüera ou dance de

laguerre" - do do artista alemão Rugendas e Deroy como gravador. (pg14)

Figura 3 - Negros capoeiristas presos pela prática da capoeira. Museu Imperial de

Petrópolis. (pg. 15)

Figura 4 - Um negro do batalhão dos Zuavos em meio a outros integrantes do

Exército Brasileiro na Guerra do Paraguai. (pg. 17)

Figura 5 - Cada malta apoiava um partido político e recebia proteção dos

respectivos parlamentares. Acima, Nagoas carregam nos ombros o deputado

conservador Duque-Estrada Teixeira, que criticou a polícia em plena assembléia.

(pg. 19)

Figura 6 - Detentos correcionais durante o trabalho em Fernando de Noronha.

Fonte: Revista O Cruzeiro, 2 ago. 1930. (pg. 20)

Figura 7 - Frevo Pernambucano, desenho de Manuel Bandeira, extraído de Anuário

de Pernambuco, 1934, Recife. (pg. 22)

Figura 8 - Louis (Mark Dacascos) aceita um berimbau de Mestre Amém, no filme

Only The Strong. (pg. 36)

Figura 9 - Roda de capoeira na cidade de Santo Amaro no filme Besouro. (pg. 38)

Figura 10 - Roda de capoeira no Centro Esportivo de Capoeira Angola nos anos 50 -

em cena estão Pastinha e seus alunos no curta de Maynard. (pg. 39)

Figura 11 - Cena de Vadiação onde jogam dois estereótipos da capoeiragem, o

malandro, associado ao meio urbano, e um escravo descalço - típico do ambiente

rural. (pg. 41)

Figura 12 - Cenas da roda de capoeira em meio a manifestação de apoio ao

protagonista em O Pagador de Promessas (pg. 43)

Figura 13 - Aruã e Firmino disputam na roda de capoeira em Barravento. (pg. 44)

Figura 14 - João Grande e João Pequeno jogam na beira do cais em Dança de

Guerra. (pg. 46)

Figura 15 - Jorge (Nestor Capoeira) aplicando um martelo em Cordão de Ouro (pg.

48)

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................5

1 CAPOEIRA E SUAS ORIGENS......................................................................11

1.1 GUERRA DO PARAGUAI...............................................................................16

1.2 AS MALTAS CARIOCAS.................................................................................17

1.3 A CAPOEIRA EM OUTROS ESTADOS..........................................................21

1.4 CAPOEIRAGEM BAIANA................................................................................23

1.4.1 BESOURO MANGANGÁ.................................................................................26

1.4.2 COBRINHA VERDE........................................................................................28

1.4.3. FORMAÇÃO DAS ACADEMIAS.....................................................................30

2 CAPOEIRA NO CINEMA................................................................................33

2.1 CAPOEIRA NO CINEMA DE AÇÃO................................................................34

2.1.1 BESOURO.......................................................................................................37

2.2 OS PRIMEIROS DOCUMENTÁRIOS.............................................................39

2.3 CAPOEIRA E O CINEMA NOVO....................................................................41

2.4 DANÇA DE GUERRA......................................................................................45

2.5 CORDÃO DE OURO.......................................................................................47

2.6 DOCUMENTÁRIOS DE PASTINHA E BIMBA................................................49

2.7 OUTRAS APARIÇÕES....................................................................................49

2.8 PROLIFERAÇÃO NO CINEMA DIGITAL........................................................50

3 MESTRE GATO, O GUARDIÃO DA TRADIÇÃO...........................................52

CONCLUSÃO..................................................................................................63

REFERÊNCIAS...............................................................................................65

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INTRODUÇÃO

A capoeira é hoje uma importante manifestação cultural brasileira. O ritual da

roda de capoeira e o ofício dos Mestres de capoeira foram reconhecidos como

patrimônio imaterial pelo IPHAN em 2008, e estão inscritos no Livro de Registro das

Formas de Expressão e no Livro de Registro dos Saberes, respectivamente.

Seu valor enquanto expressão artística é exaltado por sua complexidade e

riqueza. A beleza dos movimentos, da musicalidade, o conjunto de valores e sua

própria ética são elementos singulares que fazem da capoeira uma manifestação

cultural única. Não à toa é hoje praticada em todo o Brasil e também no mundo.

Ultrapassou as barreiras do idioma e é desenvolvida em países como Israel,

Indonésia, Japão, Estados Unidos e toda Europa e América Latina. Não à toa é hoje

a maior expressão propagadora da língua portuguesa no mundo.

No entanto, nem sempre foi assim. A capoeira – como todas as demais

expressões culturais dos negros no Brasil – foi reprimida e criminalizada ao longo

dos séculos. Esteve presente no Código Penal Brasileiro de 1890 até 1930 e por

muito tempo ainda se manteve sob o estigma do preconceito por parte das elites

como coisa de vagabundos e marginais.

A história da capoeira é, em certa medida, a história do negro no Brasil. Foi

usada como arma e defesa pelos escravos no período colonial e durante o Brasil

Império e a República Velha também, os capoeiristas se fizeram presentes em

diversas revoltas populares e foram protagonistas no surgimento das maltas na

cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX. A história da capoeira foi marcada

pela marginalidade e como prática de resistência das populações negras.

A diáspora africana privou as populações negras das Américas de sua própria

história, de sua ancestralidade. A própria história da escravidão nas colônias é uma

história que sobreviveu nas brechas, uma história não contada – que tentou ser

apagada pelo Estado, a exemplo da queima dos arquivos da escravidão pelo então

ministro Rui Barbosa em 1890.

Contar a história da capoeira é, portanto, um problema arqueológico. Existem

poucos vestígios materiais para compor essa narrativa. Os únicos documentos

oficiais que servem em alguma medida como fonte de pesquisa são boletins de

ocorrência policiais, ordens de prisão e atestados de óbito. Mais tarde umas poucas

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notícias de jornal nos ajudam nessa investigação e somente a partir do final do

século XIX que passamos a encontrar relatos impressos mais precisos – muitos

deles escritos por folcloristas no início do século XX – e também vemos surgir as

primeiras representações da capoeiragem na literatura e pintura.

Tal paradigma se estende conseqüentemente aos registros audiovisuais da

capoeira. Filmagens documentais da capoeiragem são escassas até a segunda

metade do século XX e o mesmo vale para representações ficcionais da capoeira

em obras audiovisuais. Ainda que algumas filmagens tenham sido feitas da capoeira

nas primeiras décadas do século XX – em sua maioria por visitantes estrangeiros –

poucas sobreviveram ao tempo e permanecem conservadas. Ao que tudo indica os

primeiros filmes de ficção a colocarem a capoeira em cena também surgem a partir

da década de 1950.

Ainda que de lá para cá uma quantidade considerável de obras que abordem

a capoeira tenham sido produzidas, é possível dizer que ela ainda permanece com

um problema de representação no cinema. Muitas dessas obras a abordam através

de um olhar exótico e superficial – deslocada de seus contextos históricos e

culturais. Mesmo no cinema brasileiro, poucas vezes a capoeira foi representada

sem um olhar estrangeiro.

Dessa forma, em diferentes âmbitos, ainda persiste como um universo a ser

explorado e investigado mais a fundo. Ainda que nos últimos anos o cinema digital

possibilitou a realização de muitos documentários independentes que abordem a

capoeira, no campo da ficção, especialmente, uma vasto horizonte de possibilidades

de representação permanece a ser desbravado – visto que desde a década de 50

poucos foram os filmes se aventuraram nesse tema.

Fontes bibliográficas foram importantes para a construção da narrativa da

capoeiragem ao longo séculos, visto que essa literatura hoje já se encontra mais

desenvolvida, e ajudarão a situar e aproximar o leitor a este tema. O levantamento

de uma filmografia da capoeira ainda permanece um trabalho a ser feito e tão pouco

foi a pretensão deste TCC. O site IMDB foi de grande valia para a pesquisa dos

filmes hollywoodianos que abordam ou tangenciam o tema. Na pesquisa da

filmografia do cinema brasileiro, alguns poucos artigos acadêmicos ajudaram a

enriquecer a pesquisa, somados também a uma já familiaridade minha com o tema,

por minha vivência e conhecimentos adquiridos dentro da cultura.

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No último capítulo desenvolvo uma pesquisa mais pessoal, focada na figura

do Mestre Gato Preto de Santo, já falecido. Mestre Gato tem uma importante

presença dentro da minha trajetória na capoeira angola, uma vez que o Grupo Ilê de

Angola de Mestre Formiga – do qual eu faço parte – é descendente de sua

genealogia, sendo fundamentado por seus ensinamentos e tradições através do

Mestre Zé Baiano – do Grupo de Capoeira Angola Rei Zumbi – que foi discípulo de

Mestre Gato.

Tal pesquisa tem por objetivo se desdobrar em um documentário audiovisual

sobre Mestre Gato. Como recorte para esse TCC, decidi por me focar apenas em

uma pesquisa de imagens e materiais de arquivo do Mestre, como ponto de partida

para uma pesquisa mais aprofundada, na qual caberá também a realização de

entrevistas com seus discípulos e demais pessoas que com ele conviveram. Para

isso, uma série de entrevistas realizada pelo Mestre Dorado com Mestre Gato entre

os anos de 1998 e 2002, foram de grande valia, compondo a maior parte do material

investigado nessa pesquisa.

Convido o leitor a se aproximar desse tema – muitas vezes pouco

compreendido pelo senso comum – e compartilhar talvez de ao menos uma parcela

do encantamento que eu desenvolvi pela arte da capoeira.

Axé!

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1 A CAPOEIRA E SUAS ORIGENS

O surgimento da capoeira ainda hoje é um mistério. Como grande parte da

história das culturas afro descendentes de todo mundo, a carência de fontes escritas

é um entrave e os pouco registros históricos que chegaram nos dias de hoje, foram

em sua maioria escritos por homens brancos. Para além dessa questão, como uma

manifestação cultural viva, em movimento, entendemos hoje que precisar uma única

raiz para o surgimento dessa dança-luta não só seria impossível como também

equivocado.

Importante compreender que a capoeira esteve em constante transformação

ao longo dos séculos, em diálogo direto com os processos político-sociais de seu

tempo, muitas vezes inserida em disputa no centro desses acontecimentos.

Para traçarmos algum tipo de panorama histórico da capoeira, precisamos

distinguir de alguma forma o que hoje é o ritual da capoeira, da capoeira escrava

praticada nos tempos do Brasil Colônia/Império. A capoeira ritual é essa

manifestação cultural que vemos nos dias de hoje, que ainda que se encontre

expressa em diferentes estilos e linhagens, compartilha elementos rituais bem

delimitados, tais como a roda, as cantorias, o acompanhamento musical e a

performance de dois jogadores dentro do círculo. Essa organização ritual da

capoeira pode ser mais precisamente localizada em um período histórico mais

recente, ao que tudo indica em Salvador no início do séc. XX.

O que podemos chamar capoeira escrava, que se desdobrou na capoeira

ritual, ainda permanece um problema historiográfico. A origem do próprio termo

capoeira ainda é motivo de controvérsias. Existem duas hipóteses mais difundidas

entre pesquisadores do assunto. A primeira aponta que teria se originado do termo

tupi kapu'era, que significa “o que foi mata.” Seria uma junção de ka'a (“mata”) e

pûera (“que foi”). Esse termo se refere às áreas de vegetação rasteira onde era

praticada a agricultura indígena. A partir dessa suposição, os antigos escravos se

escondiam sobre esse mato rasteiro para praticar movimentos atléticos longes da

vigia dos feitores e capitães do mato. A segunda hipótese já aponta para um

contexto mais urbano, associando o termo a uma espécie de cesto homônimo que

os escravos usavam para transportar aves capadas até os mercados, onde seriam

comercializadas para seus senhores. Nesse meio tempo, os escravos se distraíram

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com a prática de movimentos atléticos, originando-se assim a denominação de

“capoeiras”.

Esse dilema se reflete num panorama mais geral em relação ao surgimento

da capoeira. Ainda que tenha se desenvolvido em um meio urbano, como a seguir

poderemos verificar através de documentos oficiais, a capoeira provavelmente teve

seu embrião formado no ambiente rural. Vários autores apontam o período

quilombista, que teve início do no século XVI, como um possível ambiente fértil ao

surgimento de determinadas práticas que mais tarde se desdobrariam na capoeira. A

organização militar, as práticas marciais e rituais dessas comunidades somadasà

diversidade étnica de suas populações, são elementos que podem ter contribuído

para o surgimento da capoeira. VIEIRA (97), afirma “... que dificilmente terá existido,

em toda história do Brasil, um ambiente mais propício para o surgimento de uma

modalidade de luta como a capoeira" (p.11). De acordo com GOMES (2010),

soldados portugueses relataram ser necessário mais de um dragão1 para capturar

um quilombola, porque se defendiam com uma estranha técnica de ginga e luta.

A dificuldade em se precisar essas datas e acontecimentos, muito se deve a

carência de fontes para investigação por parte de historiadores. Um dos principais

motivos para a ausência de documentos deste período se deve a atitudes como a do

Ministro de finanças da república, Rui Barbosa, que ordenou a queima de uma vasta

documentação sobre a escravidão no Brasil, sob o pretexto de apagar essa “parcela

negra” que maculava a história do Brasil. Ao apagar os vestígios da barbárie

escravista, apagava-se também a memória de resistência e luta do povo

escravizado.

Fato é que o termo capoeira começa a aparecer em documentos a partir do

século XVI, no entanto enquanto prática corporal começa a ser documentado no Rio

de Janeiro no início do século XIX, não só para se referir à atividade como também

ao seu praticante, “o capoeirista” ou simplesmente “o capoeira”. Esses documentos

evidenciam uma generalização do vocábulo, associando-o também a malfeitores,

ladrões e bandidos de toda ordem (ARAÚJO, 2005).

1 Originalmente, um dragão era um tipo de soldado que se caracterizava por se deslocar a cavalo mas combater a pé. Inicialmente e até meados do século XVIII, as unidades de dragões constituíam, assim, uma espécie de infantaria montada. Contudo, posteriormente, os dragões transformaram-se, passando de infantaria montada a tropas de genuína cavalaria. Hoje em dia, a designação "dragões" é mantida como título honorífico de algumas unidades cerimoniais ou blindadas de diversos exércitos.

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Figura 1 - Anúncio oferecendo recompensa pela captura de um escravo fugido

publicado no AlmanakLaemmert, 1854. Fundação Biblioteca Nacional.

Uma maior ocorrência do registro da prática da capoeira em documentos

oficiais e de polícia se iniciaa partir de 1808, com a chegada da corte portuguesa ao

Brasil. Nesse período, D. João VI cria a Intendência Geral de Polícia da Corte do

Estado do Brasil, iniciando grandes modificações no sistema policial (SOARES,

2002). Além desses documentos oficiais, outra importante fonte de registro desse

período histórico vem de viajantes estrangeiros, que em suas expedições e viagens

pelo Brasil, registravam os costumes e práticas sociais do povo brasileiro. Um

célebre registro textual e imagético dessa ordem, é a pintura “Jogar capoera ou

danse de laguerre” do pintor Rugendas2.

2 Johann Moritz Rugendas (1802 —1858) foi um pintor alemão nascido em Augsburgo que viajou por todo o Brasil durante o período de 1822 a 1825, pintando os povos e costumes que de fato ele pode encontrar. Rugendas era o nome que usava para assinar suas obras.

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Figura 2 - Datada em 1834, encontramos a descrição "Jogar Capüera ou dance de

laguerre" - do do artista alemão Rugendas e Deroy como gravador.

A partir desse período, a capoeira começa a proliferar no meio urbano. Nas

primeiras décadas do século XIX, nota-se que a capoeira ainda se restringia a

parcela negra da população, em sua grande maioria escravos e uns poucos libertos.

Desde a criação da intendência em 1908, não só a capoeira como todas as outras

manifestações de matriz africana, foram fortemente reprimidas pelas autoridades

brasileiras. Existia uma política de estado para conter “A Barbárie Negra”. Esses

fatos se verificam em inúmeros documentos oficiais, tais como algumas prisões

ocorridas no Rio de Janeiro no ano de 1820, que evidenciam esse cenário de

perseguição e os motivos pelas quais elas eram cumpridas:

“15 de março…

João Benguela, escravo de Joaquim de Souza, preso por capoeira,

com umanavalha de ponta mão, 300 açoites e três meses na Tijuca.

10 de novembro…

Francisco Cabinada, escravo de João Gomes Barros, preso por estar

tocando batuque com grande ajuntamento de negros e se apreendeu

o tambor. 300 açoite.” (HOLLOWAY, 97. p.54).

Enquanto nas primeiras décadas do século, estava restrita a negros -

escravos e libertos - no decorrer da primeira metade do séc. XIX esse cenário vai se

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transformando, e passamos a constatar a presença cada vez maior de mestiços,

criolos3 e até mesmo imigrantes como praticantes da capoeira. Embora estivesse

inserida no meio das classes mais subalternas, e frequentemente associada ao ócio,

a vadiagem, SOARES (1999) afirma que grande parte dos capoeiristas desse

período exerciam algum tipo de atividade produtiva, em sua maioria ligados à

prestação de serviços. Esse fato é verificado também nos registros de prisão de

capoeiristas em meados do século XIX, onde a maioria dos detidos eram

trabalhadores.

Figura 3 - Negros capoeiristas presos pela prática da capoeira. Museu Imperial de

Petrópolis.

Mesmo com a constante perseguição e repressão por parte das autoridades,

essa adesão de outros personagens ao universo da capoeira fez com que ela

ganhasse maior penetração na sociedade. Um importante fenômeno desse período,

foi o aparecimento da navalha no jogo da capoeira, uma influência da figura do

fadista lusitano4, que adentrava na capoeiragem. Aos poucos, a capoeira começava

a sair dos guetos escravos e tomar outros espaços urbanos, fazendo sua presença

motivo de medo e insegurança. A capoeira passa a ser considerada “o flagelo da

polícia e o terror das classes brancas superiores” (HOLLOWAY, 1997, p.52).

3 No Brasil do século XIX e anterior, chamava-se de crioulos os escravos não-mestiços que tinham

nascido na terra, diferenciando-os daqueles nascidos na África. 4 A figura do fadista estava associada aos portugueses e demais imigrantes europeus que se envolviam com a boemia e atividades ilegais. Teriam sido os responsáveis por introduzir o uso da navalha no universo da marginalidade brasileira.

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1.1 Guerra do Paraguai

Iêtava em casa Sem pensá nem imaginá

Quando bateram na porta, ô meu bem Salomão mandô chamar

Para ajudar a vencê, ô meu bem A guerra com Paraguá

Gente de Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará (D.P.)

Em 1965, o Brasil junto com Argentina e Uruguai, declara guerra ao

Paraguai. Muitos capoeiras foram recrutados para servirem as forças armadas.

Alguns agarrados à força nas ruas do Rio de Janeiro e outras províncias, outros de

dentro das prisões e aos escravos foi feita a promessa de “liberdade” após o fim do

conflito. O envio dos capoeiras à guerra foi uma manobra estratégica das

autoridades para se livrar de sua indesejável presença nas cidades brasileiras, em

especial do Rio de Janeiro.

Os capoeiristas estiveram presentes até mesmo na Marinha Brasileira

durante a guerra, considerada o ramo mais aristocrático das forças armadas.

Obviamente não figuravam entre os oficiais, mas como marujos “buchas de canhão”.

“Marcílio Dias (o herói da Batalha do Riachuelo, embarcado no "Parnahyba") era rio-grandense e foi recrutado quando capoeirava à frente de uma banda de música. Sua mãe, uma velhinha alquebrada, rogou que não levassem seu filho; foi embalde, Marcílio partiu para a guerra e morreu legando um exemplo e seu nome. (Correio Paulistano, 17/6/1890)” (CAPOEIRA, 2007, pag. 7)

O batalhão de Zuavos ficou renomado como especialista na invasão de

trincheiras e no manejo de armas brancas.

“Manuel Querino descreve-nos "o brilhante feito d'armas" levado a efeito pelas companhias de "Zuavos Baianos" no assalto ao forte Curuzu, quando os paraguaios foram debandados. Destacam-se dois capoeiras nos combates corpo-a-corpo: o alferes Cezario Alves da Costa - posteriormente condecorado com o hábito da Ordem do Cruzeiro pelo marechal Conde d'Eu -, e o alferes Antonio Francisco de Melo, também tripulante da já citada corveta "Parnahyba" que, entretanto, teve sua promoção retardada devido ao seu comportamento, observado pelo comandante de corpos: "O cadete Melo usava calça fofa, boné ou chapéu à banda pimpão e não dispensava o jeito arrevesado dos entendidos em mandinga". (REIS, 1997, p.55)

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Figura 4 - Um negro do batalhão dos Zuavos em meio a outros integrantes do Exército

Brasileiro na Guerra do Paraguai.

A desenvoltura dos capoeiras durante a guerra, contribuíram para a

propagação do mito do capoeira como um genuíno guerreiro brasileiro, inclusive

dentro das próprias forças armadas. Se antes da guerra a capoeira estava ainda

restrita às camadas populares e muito associada à vadiagem e marginalidade, cinco

anos depois, com o fim da guerra, os capoeiras retornam as capitais como heróis

nacionais e começam a exercer grande influência nas ruas do Rio de Janeiro.

1.2 AS MALTAS CARIOCAS

Vamos jogar capoeira enquanto a polícia não vem

Mas quando a polícia chegar quebra a polícia também

(D.P.)

Nesse contexto se prolifera o fenômeno das maltas cariocas, que embora já

existissem antes de 1965, ganham muita força e poder após a guerra. As maltas

eram grupos organizados de capoeiras e valentões que disputavam o domínio de

diferentes regiões da capital carioca e exerciam diversas atividades ligadas a

contravenção e a marginalidade. As maltas em um primeiro momento, assim como a

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capoeira de um modo de geral, eram formadas apenas por escravos africanos

ladinos (aqueles que já se encontravam adaptados ao Brasil, se diferenciavam do

escravo “boçal”, aquele recentemente chegado da áfrica, uma vez que já estavam

inseridos no contexto urbano da metrópole carioca). A partir da metade do século

XIX, no entanto, as maltas já haviam incorporado os crioulos (negros nascidos no

Brasil), libertos e mulatos, ao passo que nos anos de 1870, já participavam também

diferentes tipos sociais como militares, marujos estrangeiros, e os chamados

margaridas ou cordões5. Nesse período, um a cada três presos por capoeiragem era

estrangeiro e sendo estes a maioria portugueses.

As maltas nessa nova organização, que envolvia desde tipos marginais até

membros da alta sociedade carioca, eram responsáveis pelo controle de diversas

atividades e regiões da cidade. A disputa por territórios e áreas de influência

evidentemente se desdobravam em ações violentas de uma malta em relação a

outra. Cada malta controlava um determinado bairro da capital, ou uma freguesia,

como se dizia na época. Podemos destacar as da “Cadeira da Senhora”, em

Sant'ana, “Três Cachos” e “Flor de Uva” em Santa Rita, “Franciscanos” em São

Francisco de Paula, “Flor de Gente” na Glória, “Espada” na Lapa, “Ossos” em Bom

Jesus do Calvário, “Carpinteiros” de São José e muitas outras. Até mesmo a

Princesa Isabel tinha sua própria malta, a “Guarda Negra”, financiada com verbas

secretas da polícia e que atuava de maneira sistemática contra o movimento

abolicionista.

No período de transição do Império para a República, as maltas ocuparam

um papel central na disputa pelo poder, representadas principalmente pelos grupos

“Goiamuns”, ligados ao partido liberal e o “Nagoas, ligado ao partido conservador.

Essas maltas tiveram uma atividade muito intensa na vida política da cidade,

causavam tumultos em comícios de facções rivais, fraudavam eleições com coerção

de votos, além de fazerem a segurança pessoal de muitos políticos da época.

5 Eram os filhos da aristocracia do Rio de Janeiro, espécie de playboys do séc. XIX – Juca Reis foi

um famoso representante desse tipo social.

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Figura 5 - Cada malta apoiava um partido político e recebia proteção dos respectivos parlamentares. Acima, Nagoas carregam nos ombros o deputado conservador Duque-Estrada Teixeira, que criticou a polícia em plena assembléia.

Com a instauração do governo republicano provisório, uma das principais

medidas adotadas foi a criação do Decreto n 847, intitulado “Dos Vadios e

Capoeiras”, na revisão do Código Penal em 1890.

Decreto no 847 Capítulo XIII -- Dos vadios e capoeiras Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem; andar em carreiras, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal; Pena - de prisão celular por dois a seis meses. A penalidade é a do art. 96. Parágrafo único. É considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes ou cabeças, se imporá a pena em dobro. Art. 403. No caso de reincidência será aplicada ao capoeira, no grau máximo, a pena do art. 400. Parágrafo único. Se for estrangeiro, será deportado depois de cumprida a pena. Art. 404. Se nesses exercícios de capoeiragem perpetrar homicídio, praticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor público e particular, perturbar a ordem, a tranquilidade ou segurança pública ou for encontrado com armas, incorrerá cumulativamente nas penas cominadas para tais crimes.

A criminalização da capoeira a partir de sua entrada no código penal foi um

ponto de virada na história da capoeiragem, em especial na cidade do Rio de

Janeiro. A perseguição as maltas foi sistemática e cerco em torno dos capoeiras foi

se fechando. Sampaio Ferraz, O Cavanhaque de Aço, chefe de polícia do então

distrito federal, recebeu ordens diretas do Marechal Deodoro para tal campanha, e

uma das penas a que eram impostas aos capoeiras condenados era a deportação

para o presídio de Fernando de Noronha. Um caso que geral grave crise institucional

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no início da república, foi a prisão e deportação do capoeirista Juca Reis, filho do

Conde de Matosinho, milionário dono do jornal O Paiz.

“(Juca Reis era uma) bela figura de rapaz forte, estroína e maneiroso, trajando sempre com apurada elegância. José Elísio dos Reis - o Juca Reis como era conhecido -, tinha-se tornado famoso nas vielas do crime, por seus constantes conflitos e violências, frequentes espancamentos em mulheres decaídas e pela autoria ou cumplicidade de um assassinato ocorrido em meados de 1888, na rua dos Andradas, junto ao largo de São Francisco de Paula... era um cordão elegante... cuja especialidade era promover conflitos e desordens nos teatros e casas de jogos, e demais lugares frequentados pela alta roda da Corte (SOARES, 1994, p.173-175).”

Figura 6 - Detentos correcionais durante o trabalho em Fernando de Noronha. Fonte:

Revista O Cruzeiro, 2 ago. 1930.

Ao final do século XIX, a capoeiragem carioca não havia sido completamente

erradicada, mas as maltas de capoeira foram desarticuladas e praticamente

desapareceram. As escusas relações entre o estado, a polícia e as maltas já não

perduravam. O Brasil republicano como um todo passava por grandes

transformações e distrito federal estava no centro de todo esse processo. A

república implementava mudanças profundas no espaço urbano e no

comportamento social. A capoeiragem não seria mais a mesma dos tempos do

império na cidade carioca e os capoeiras foram obrigados a encontrar novas formas

de existir. No entanto, nomes como de Manduca da Praia, Ciríaco, Plácido de Abreu,

deixariam seu legado à cidade do Rio de Janeiro na futura figura do Bamba, muito

presente no universo do samba carioca.

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1.3 A CAPOEIRA EM OUTROS ESTADOS

Canarinho da alemanha que matou meu curió

eu jogo capoeira da Bahia a Maceió

(D.P)

Paralelamente, em outras regiões do Brasil, a capoeiragem se desenvolvia

de diversas formas, especialmente nas cidades de grandes portos. Após a Guerra

do Paraguai muitos capoeiras endossaram as fileiras da marinha e a grande

circulação de pessoas nessas cidades portuárias fez com que a capoeira se

proliferasse no território brasileiro. A exemplo do que acontecia no Rio de Janeiro, a

capoeira foi alvo de perseguição nessas diversas regiões do país. Em Belém do

Pará, com o grande crescimento econômico devido ao ciclo da borracha, muitos

capoeiristas chegaram a cidade em busca de trabalho e sofreram com a repressão

das autoridades. Nesse período Belém era uma cidade muito próspera e seguia os

mesmos modelos desenvolvimentistas da capital federal. A presença dos capoeiras,

que nessa região foram apelidados de “cariocas” (o que não leva a crer que muitos

vieram do Rio de Janeiro) não cabiam nesse ideal de país que tentavam construir.

Muitos foram detidos e cumpriram pena sendo deportados para o Amapá (LEAL,

2005).

A capoeira pernambucana foi um espelho do que se passava no Rio de

Janeiro. Durante o século XIX esteve diretamente associada a marginalidade, a

vadiação e estabeleceu relações com o poder institucional muito parecidas com as

maltas cariocas. Mario Sette cita em seu livro Maxambombas e Maracatus:

“Os capoeiras, em regra, pertenciam a este ou aquele figurão dos

tempos. Nos dias de eleição retribuíam com serviços valiosos a

proteção e a impunidade.” (SETTE, 81. p.87)

Os capoeiras se organizavam em grupos, tendo sua origem nos clubes de

rua, que foram os precursores do carnaval de rua recifense. Não à toa, os capoeiras

deixaram um legado de sua destreza no passo do frevo que perdura até hoje.

Gilberto Freyre em Sobrados e Mucambos nos traz a luz uma imagem do capoeira

na capital Pernambucana:

“Às vezes havia negro navalhado; moleque com os intestinos de fora que uma rede branca vinha buscar (as redes vermelhas eram para os feridos; as brancas para os mortos). Porque as procissões com banda de música tornaram-se o ponto de encontro dos capoeiras, curioso

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tipo de negro ou mulato da cidade, correspondendo ao dos capangas e cabras dos engenhos. O forte do capoeira era a navalha, ou a faca de ponta; sua gabolice, a do pixaim penteado em trunfa, a da sandália na ponta do pé quase de dançarino e a do modo desengonçado de andar. A capoeiragem incluía, além disso, uma série de passos difíceis e de agilidades quase incríveis de corpo, nas quais o malandro de rua se iniciava como que maçonicamente” (FREYRE, 2005. p.150-151)

À essa imagem do capoeira desfilando nos folguedos urbanos, Mario Sette

acrescenta que se “saísse uma música para uma parada ou uma festa e lá estavam

infalíveis os capoeiras à frente, gingando, piruetando, manobrando cacetes e

exibindo navalhas.” (SETTE,1981: p.87)

Figura 7 - Frevo Pernambucano, desenho de Manuel Bandeira, extraído de Anuário de Pernambuco, 1934, Recife.

Desses bravos e valentes, como eram conhecidos, nomes como de

Nascimento Grande, Adama, Chico Cândido, Amaro Preto, Antônio Florentino, Sabe

Tudo, José Siri, entre outros, se tornaram lendários. Da mesma forma, o

desembargador Santos Moreira ficou lembrado como um desses perseguidores da

capoeira, tendo sido responsável por inúmeras deportações e extermínio de

capoeiristas:

“Havia de chegar a vez de todos eles. O Chefe da Polícia do governo Sigismundo Gonçalves, o desembargador Santos Moreira, segue o exemplo

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de Sampaio Ferraz: manda alguns para o cemitério ('por terem reagido à prisão'), outros para a Detenção, os mais temíveis para Fernando (de Noronha). Das ruas cada vez mais bem iluminadas do Recife (até isso teria concorrido para o progressivo extermínio dos desordeiros), foram desaparecendo, pouco a pouco, os brabos.” (OLIVEIRA, 1985. p.89)

Em outras capitais como São Paulo e São Luís também encontramos

registros semelhantes da prática da capoeira, tendo suas primeiras evidências ao

longo do séc. XIX e seu declínio e desaparecimento no início do séc. XX, com a

consequente criminalização e perseguição sistemática à capoeiragem a partir de sua

entrada no código penal. Por conta disso, em todos esses lugares, a capoeira

escrava deixou poucos ou nenhum legados.

1.4 CAPOEIRAGEM BAIANA

Vou me embora pra Bahia Vou ver se dinheiro corre

se dinheiro não correr ô mas de fome

ninguém não morre camaradinha…

(D.P.)

Não fosse o caso da cidade de Salvador e da capoeiragem do recôncavo

baiano, talvez a capoeira não tivesse chegado aos dias de hoje. Diferente do Rio de

Janeiro, os registros sobre a capoeira baiana no século XIX são poucos, tendo sido

mais amplamente documentada a partir da República Velha, em especial do início

do séc. XX em diante. As poucas referências que temos são alguns poucos

documentos, notícias de jornal e relatos posteriores de memorialistas e folcloristas

que viveram esse período. Os escritos de Manuel Querino são fonte de grande valia

para reconstruirmos a memórias desses tempos, além é claro dos depoimentos dos

velhos mestres, alguns relatados em livro, como os casos de Pastinha, Noronha e

Cobrinha Verde.

Querino pode ser considerado um dos precursores no estudo do tema, em

seu livro “Bahia de Outrora – vultos e factos populares”, de 1915, documenta golpes,

instrumentos, cantigas, locais, e nos oferece um panorama da capoeiragem baiana

nos tempos da escravidão. Já nesse momento, Querino relata a capoeira num meio

termo de dança e luta, brincadeira e conflito, divertida e perigosa. De acordo com o

escritor, o introdutor da capoeiragem na Bahia teria sido o “Angola”, um tipo

“completo e acabado do capadócio”. Esse testemunho vai de encontro ao relato de

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Mestre de Pastinha de como teria se iniciado seu aprendizado na capoeira. Segundo

o mestre, um velho africano de nome Benedito teria sido o responsável por lhe

passar os primeiros ensinamentos:

“Quando eu tinha uns dez anos – eu era franzininho – e um outro menino mais taludo do que eu tornou-se meu rival. Era só eu sair para a rua – ir na venda fazer compra, por exemplo – e a gente se pegava em briga. Só sei que acabava apanhando dele, sempre. Então eu ia chorar escondido de vergonha e de tristeza. Um dia, da janela de sua casa, um velho africano assistiu a uma briga da gente. Vem cá, meu filho, ele me disse, vendo que eu chorava de raiva depois de apanhar. Você não pode com ele, sabe, porque ele é maior e tem mais idade. O tempo que você perde empinando raia vem aqui no meu cazuá que vou lhe ensinar coisa de muita valia. Foi isso que o velho me disse e eu fui. Ele costumava dizer: não provoque, menino, vai botando devagarinho ele sabedor do que você sabe (...). Na última vez que o menino me atacou fiz ele sabedor com um só golpe do que eu era capaz. E acabou-se meu rival, o menino ficou até meu amigo de admiração e respeito. O velho africano chamava-se Benedito, era um grande capoeirista e quando me ensinou o jogo tinha mais idade do que eu hoje.” (PASTINHA, 1964, pg. 12)

A capoeiragem baiana da mesma forma que no restante do país, proliferou

em um universo de valentes, nas camadas populares. Ainda que sob o estigma de

vadios e vagabundos, grande parte dos capoeiristas baianos eram trabalhadores.

Em geral exerciam atividades esporádicas ou trabalhavam na rua. O trabalho na

estiva era muito comum entre capoeiristas e as regiões portuárias foram importantes

centros de encontro e desenvolvimento da capoeira. Antonio Vianna cita a região do

Cais Dourado como o centro da capoeiragem baiana no final do séc. XIX e início do

séc. XX.

Na Bahia o fenômeno da oitiva torna-se fundamental no aprendizado coletivo

da capoeira. Aprendia-se através da observação. Não havia uma transmissão de

conhecimento formal, sistematizada. No geral os capoeiristas se iniciavam

frequentando as rodas, observação os movimentos daqueles já praticavam, tendo

captar através do olhar como se fazer.

Esse termo oitiva também estava muito associado ao trabalho nas docas.

Como muitos capoeiras não possuíam um emprego fixo, muitos ficavam à espera de

trabalho no cais. Quando algum capataz aparecia se repente oferecendo algum

serviço, aquele que estivesse atento, na escuta, na oitiva, se antecipava e saia na

frente. Essa atitude de estar sempre em alerta, atento, era um diferencial entre

capoeiristas, segundo os antigos mestres.

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Nos escritos de Querino, que correspondem a este período, observamos

também outros elementos da capoeira, em especial a musicalidade e a teatralidade,

até então pouco vistos em outros relatos ou muitas vezes relegados a um segundo

plano. O destaque que Querino dá à essas características da capoeiragem baiana,

nos revela talvez uma importância que tinham naquele contexto.

“Previamente, parlamentavam, por intermédio de gazetas manuscritas. Duas circunstâncias atuavam, poderosamente, no espírito da mocidade, para se entregar aos exercícios da capoeiragem: a leitura da história de Carlos Magno ou os doze pares da França, e bem assim, as narrações guerreiras da vida de Napoleão Bonaparte. Era a mania de ser valente como, modernamente a de cavador. Nesses exercícios que a gíria do capadócio (chamava) de brinquedo, dançavam a capoeira sob o ritmo do berimbau.” (QUERINO, 1916. p.195)

As tais gazetas manuscritas e o elemento musical, destacando inclusive o

Berimbau, apontam uma capoeira com traços já muito semelhantes ao que vemos

no dias de hoje. Mais próximas a uma ideia ritual da capoeiragem. As bravatas de

desafio, aí descritas por Querino, se assemelham de alguma forma com as

Ladainhas as quais hoje os capoeiras cantam antes de um jogo. Antônio Vianna

também discorreu sobre essa dimensão brincante que já havia naqueles tempos:

“Outras ocasiões, culminava a alegria das festas de arraial e os parceiros apuravam-se na distribuição de gentilezas mútuas, em plena luta. Este apuro abrangia também a indumentária. [...]. Formada a roda, ampla e curiosa, de gente de todas as classes e castas, os compassos musicais do pandeiro e da viola, do canzá e do berimbau, instrumentos esses indispensáveis ao ritmo dos exercícios.” (VIANNA, 1984. p.8-9)

Essa presença da capoeira nas datas e manifestações festivas era uma

marca da capoeiragem na Bahia. Talvez tenha sido um dos principais motivos para

sua penetração na sociedade soteropolitana. Mestre Noronha também lembra em

seus registros que nessas ocasiões de festa, os mestres em geral tinham o costume

de realizar uma “grande roda de capoeira”. Algumas festas que ficariam lembradas

por abrigar grandes rodas de capoeira seriam as de Nossa Senhora de Conceição

da Praia, a de Santa Bárbara, de Santana no Rio Vermelho, a de Nossa Senhora

dos Navegantes, as do ciclo do Bonfim e também a de presentes a Iemanjá.

O caráter lúdico e popular da capoeiragem baiana, não impediu que sofresse

com a repressão das autoridades e com o preconceito da aristocracia baiana. Assim

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como as demais manifestações afrodescendentes a capoeira baiana foi

estigmatizada como coisa de vadios, arruaceiros e os confrontos com a polícia eram

constantes. Nesse período inclusive se desenvolveu um toque específico de

berimbau, chamado Toque de Cavalaria, que era usado pelos capoeirista para

alertar os que estavam presente sobre algum perigo que se aproximava, para que

assim se dispersassem. A capoeira esteve em laços estreitos com o Candomblé,

onde os terreiros serviam como local seguro para a prática da capoeiragem e muitas

vezes capoeiristas faziam a segurança e a proteção desses locais em dias de festa.

Acabe com este Santo que Pedrito vem aí

Lá vem cantando ca ô cabieci Lá vem cantando ca ô cabieci

O chefe de polícia Álvaro Cova e o delegado Pedro Gordilho, conhecido

como Pedrito, foram os algozes da capoeiragem baiana na República Velha. Muito

influenciados pelos ideais evolucionistas e a ideologia das raças, essas figuras

classificavam a cultura negra da Bahia como bárbara e um verdadeiro atraso ao

desenvolvimento da sociedade brasileira. Nesse período, tal pensamento era tão

difundido, que o embranquecimento da nação foi um projeto de Estado e a abertura

do país a imigrantes europeus foi uma das políticas adotadas. Salvador que foi um

dos maiores portos de entrada de africanos escravizados, levados para o trabalho

forçado nas fazendas do recôncavo, sofreu as consequências desse período como

outras capitais brasileiras.

1.4.1 BESOURO MANGANGÁ

Quando eu morrer não quero grito nem mistério quero um berimbau tocando

na porta da cemiterio e uma fita amarela

gravada com o nome dela e ainda depois de morto

Besouro Cordão de Ouro (D.P)

No recôncavo baiano, principalmente nas cidades de Santo Amaro,

Cachoeira e São Félix, surgia a lenda do famoso Besouro Mangangá. Um verdadeiro

mito da capoeiragem, a figura de Besouro ainda hoje é envolta de mistérios e pouco

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se sabe de fato sobre vida. Manoel Henrique Pereira foi apelidado Besouro

Mangangá, porque supostamente, em situação de grande perigo, onde sua destreza

na capoeira não podia fazer frente a um grande número de adversários, Besouro

seria capaz de se transformar no animal homônimo e sair voando.

Conta-se que teria aprendido capoeira com um antigo escravo africano,

chamado Mestre Alípio, no trapiche de baixo. As lendas que envolvem o nome de

Besouro são muitas, celebradas por capoeiristas até hoje através de inúmeras

cantigas. Cercado por aspectos sobrenaturais e fantasiosos, conta-se também que

teria “corpo fechado” e por isso não podia ser ferido por cortes de faca e até mesmo

furos de bala.

Besouro teria sido uma figura rebelde, que confrontava as autoridades e

contestava os lugares sociais de seu tempo. Importante destacar, que segundo

PIRES (2007, p.47), “suas práticas não podem ser associadas ao banditismo, pois

Besouro sempre se caracterizou como um trabalhador por toda sua vida, nunca

sendo preso por roubo, furto ou atividade criminal comum. Suas prisões foram

relacionadas às ações contra a polícia”. Alguns desses casos possuem

documentação histórica através de registros policiais e notícias de jornais da época.

Um desses confrontos teria ocorrido em 1918, quando Besouro teria se dirigido a

delegacia do distrito de São Caetano, em Salvador, para recuperar um berimbau que

teria sido apreendido pela polícia. Tal episódio teria terminado em conflito, quando

as autoridades em encarregadas se recusaram a fazer a devolução e Besouro com a

ajuda de alguns companheiros iniciou um ataque. Os policiais receberam a ajuda de

alguns moradores da região e foram capazes de conter Besouro e seus camaradas

(PIRES, 2007).

“Aos dez dias de setembro de mil novecentos e dezoito, nesta capital do estado da Bahia (…) Argeu Cláudio de Souza, com vinte e três anos de idade, solteiro, natural deste estado, praça do primeiro batalhão da brigada policial (…) foi interrogado pelo doutor delegado que lhe perguntou o seguinte: como foi feita a agressão de que foi vítima no posto policial de São Caetano? (…) Ali apareceu um indivíduo mal trajado, e encostando-se a janela central do referido posto, durante uns cinco minutos, em atitude de quem observava alguma coisa, que decorrido este tempo, o dito indivíduo interpelando o respondente, pediu-lhe um berimbau que se achava exposto juntamente com armas apreendidas….”(PIRES, 2002. p.27)

Sua morte ainda é motivo de contradições. Alguns dizem que ele teria sido

morto em um confronto com policiais, outros dizem que foi alvo de uma traição.

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Nesse caso conta-se que Besouro teria entrado em conflito com um rapaz de nome

Memeu, que seria filho de um Coronel, chamado Dr. Zeca. Como retaliação, o

coronel teria armado uma emboscada para Besouro. O plano foi enviar o próprio

Besouro para entregar uma carta ao administrador da usina de Maracangalha, de

nome Balthazar. Como Besouro era analfabeto, não sabia que o conteúdo da carta

era sua própria sentença de morte. O coronel pediu ao amigo Balthazar que desse

um fim a Besouro, pois este lhe devia um favor. O administrador ordenou que

Besouro esperasse até o outro dia, quando ele teria uma resposta sobre o assunto.

Na manhã seguinte Besouro retornou a usina onde foi emboscado por 40 homens

que tinham a ordem para lhe matar. Já cientes da fama de que Besouro era imune a

cortes e furos de bala, um deles estava em punho de uma faca de ticum, a única

maneira de ferir um homem com o corpo fechado. E assim teria sido morto, ferido a

traição.Seu atestado de óbito foi breve e continha as seguintes informações:

“Manoel Henrique, mulato escuro, solteiro, 24 anos, natural de Urupy, residente na Usina Maracangalha, profissão vaqueiro, entrou no dia 8 de julho de 1924 às 10 e meia horas do dia, falecendo às sete horas da noite, de um ferimento perfuro-inciso do abdômen.”(PIRES, 2002. p.32)

Hoje Besouro se mantém vivo como o Cordão de Ouro, Exu das Sete

Encruzilhadas6. Está presente nos terreiros de Umbanda é recebido por médiuns.

Quando chega aos terreiros, Cordão de Ouro senta-se no chão na posição de lótus.

Não é de muita conversa e geralmente gira com seus protegidos em silêncio.

ô zum zumzum Besouro morreu com a faca de ticum

ô zum zumzum Besouro morreu com a faca de ticum

(D.P)

1.4.2 COBRINHA VERDE

Eu sonhei com uma cobra verde mas cobra verde é um bom sinal é um bom sinal, é um bom sinal

cobra verde é um bom sinal (D.P)

Muitos mestres antigos reivindicam alguma ligação ou grau de parentesco

com o lendário capoeirista, mas um único alegava ser um genuíno discípulo. Rafael

6 Não confundir com orixá Exu. Neste caso trata-se de uma entidade da rua da Umbanda, um tipo de

específico de egum - algum espírito que conheceu a experiência da morte.

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Alves França, o Cobrinha Verde, dizia ser seu primo carnaval e teria tido o próprio

Besouro como Mestre e começado seu aprendizado aos quatro anos de idade.

Cobrinha Verde também tem sua figura envolta de lendas e histórias

fantasiosas. Nasceu em 1917 e morreu em 1983, na época o mais antigo capoeirista

em atividade. Em seu livro de memórias “Capoeiras e Mandingas”, redigido por seu

discípulo Mestre Mau (Marcelino dos Santos), uma vez que Cobrinha também era

analfabeto, ele conta seus inúmeros causos. Desde seus primeiros passos na

capoeiragem do recôncavo, com outros capoeiras como Canário Pardo, Siri de

Mangue e Espinho Remoso, até suas andanças pelo Brasil, quando teve de fugir de

sua terra natal após um confronto com a polícia – onde supostamente teria

sobrevivido a 18 tiros, graças aos poderes de seu patuá - e ingressou no bando de

Horácio de Mattos pelo sertão baiano. Três anos depois teria abandonado o bando

de jagunços, um pedido que seu pai o teria feito através de um sonho, e andando

pelo norte do Brasil, quando constitui família com a índia Mansa, em Manaus.

Ingressou ainda na revolução de 30, ao lado dos revoltosos sob o comando de

Getúlio Vargas.

“Abandonei minha família e fui ao sul, associando-me aos revolucionários. Oswaldo Aranha, Juarez Távora e Juracy Magalhães acompanharam o comandante: Getúlio Vargas. Partimos do Ceará com 60 homens e seguimos a pé a Alagoinhas. Eu tinha só 22 anos de idade. Quando chegamos em Alagoinhas nós temos 3,000 homens. Trocamos fogo por uma hora e trinta minutos, fogo pesado. Dizem que até hoje pode achar caveiras nessa área.” (SANTOS, 1991, pg. 8)

Cobrinha Verde retorna a Salvador em 1930 e finalmente se assenta na

cidade. Alguns anos depois, em 1936 começa a ensinar capoeira e trabalhar como

pedreiro. Cobrinha Verde não cobrava pelo ensino da capoeira, e dizia que teria sido

um pedido de seu primo, Besouro Mangangá. Verdade ou não, Cobrinha se manteve

fiel a seu pensamento, e assim o fez por toda sua vida, mesmo quando a capoeira

anos depois já se encontrava organizada em academias e ele próprio mantinha o

seu Centro Esportivo de Capoeira Angola Dois de Julho.

Pelos idos da década de 30, a capoeira em Salvador passava por um

momento crucial de sua trajetória. A capoeira continuava presente no código penal,

sofrendo com a perseguição, sobrevivendo na marginalidade, em redutos como

ladeira do Tabuão, a Baixinha, a Baixa dos Sapateiros, o Terreiro de Jesus, o

Cruzeiro de São Francisco, a rua do Saldanha e o Cais Dourado. Nessa época as

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presenças de Onça Preta, Aberrê, Barbosa, Samuel Querido de Deus, Livino Diogo,

Maré, Noronha, o já citado Cobrinha Verde, e também Mestre Bimba, já faziam parte

da capoeiragem de Salvador.

1.4.3 FORMAÇÃO DAS ACADEMIAS

A década de 30 é considerada pelos historiadores como o período divisor de

águas da capoeiragem, por conta da criação oficial da Capoeira Regional de Mestre

Bimba em 1928 e sua consequente expansão e consolidação nos anos 30. A Luta

Regional Baiana, como era chamada à época, sem alusão ao termo capoeira, foi a

primeira tentativa oficial de promover uma sistematização do ensino da capoeira e

uma aposta de Mestre Bimba para tirar a capoeiragem de um lugar de repressão,

dando-a um caráter mais desportivo e organizado. Além de exímio capoeirista,

Bimba era um pugilista renomado em Salvador e usou de seus conhecimentos sobre

outras artes marciais para a criação da Regional. Baseado em um método de ensino

por sequências, onde dois alunos treinavam em pares, com movimentos

sincronizados de ataque/esquiva/contra-ataque, Bimba eliminou o caráter mais

lúdico e teatral da capoeira de Salvador naquele momento, focando no aspecto mais

marcial da luta. Adicionando golpes provenientes de outras artes marciais, Bimba

excluiu também as chamadas e simplificou as orquestração tradicional da capoeira –

composta de três Berimbaus, dois pandeiros, reco-reco e agogô – para apenas um

Berimbau e dois pandeiros.

Bimba começou a se apresentar como um educador, levando sua Luta

Regional Baiana para camadas mais abastadas da sociedade soteropolitana. Iniciou

seu trabalho lecionando para estudantes da Faculdade de Medicina de Salvador, de

onde saíram futuros mestres como Decânio. Com isso, começou a galgar prestígio

com as elites, quebrando com alguns estigmas que a capoeira sofria nesse tempo.

É importante ressaltar também, que esse foi um momento de organização

popular de um modo geral, com o fortalecimento dos movimentos sindicais em

Salvador e também dos candomblés. Essa resistência das classes populares e das

manifestações afro descendentes receberam o apoio de importantes intelectuais da

época tais como Gilberto Freyre, Jorge Amado, Édison Carneiro. Esse último foi um

dos principais organizadores do II Congresso Afro-brasileiro, de 1937. Além de

promover o desenvolvimento de pesquisas de matrizes africanas, um dos objetivos

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do congresso era criar a União dos Capoeiras Baianos. Tal propósito não foi

alcançado, mas o evento contou com uma apresentação de já célebres capoeiristas

de Salvador, como Samuel Querido de Deus, Maré, Aberrê e Bugalho. Nenhum

nome da Regional esteve presente, o que reflete as tensões e conflitos que existiam

entre as duas correntes na época.

Nesse mesmo ano, foi implementado o Estado Novo de Getúlio Vargas e se

iniciou o processo de descriminalização da capoeira. Bimba recebeu a autorização

para manter o seu já existente Centro de Cultura Física e Capoeira Regional e isso

reflete no prestígio que a Regional tinha com as autoridades. Mais tarde, o próprio

Bimba faria uma apresentação de Capoeira Regional para o então presidente

Getúlio Vargas, uma ocasião na qual Getulio se referiria a capoeira como o único

esporte autêntico do Brasil.

A medida que a Regional de Bimba se consolidava perante o governo e

ganhava outros espaços como universidades, palácios, quartéis e clubes esportivos,

a capoeiragem de rua, até então praticada por trabalhadores e vadios, uma

população de maioria negra e pobre, permanecia estigmatizada. Em 1941, os

capoeiristas Maré, Noronha, Amorzinho, Livino Diogo, Onça Preta, Zeir, Olampio,

Ricardo dos Santos, Vitor HD, Alemão, Pinião, José Chibata, Domingo do Milha,

Beraldo e Aberrê, resgatam o antigo Mestre Pastinha, que havia se distanciado da

capoeira em 1912, para que ele tomasse a frente de um trabalho de academia,

numa tentativa de unir e estruturar a capoeira que de agora em diante eles

batizariam “de angola”.

“em 23 de fevereiro de 1941. Fui a esse locar como prometera a Aberrê, e com surpresa o Sr.Amorsinho dono daquela capoeira, apertando-me a mão disse-me: Há muito que o esperava para lhe entregar esta capoeira para o senhor mestrar. Eu ainda tentei me esquivar desculpando, porém, toumando a palavra o Snr. Antônio Maré: Disse-me: não há jeito, não Pastinha, é você mesmo quem vai mestrar isto aqui. Como os camaradas dero-me o seu apoio, aceito.” (PASTINHA, 64, pg. 20)

A criação do CECA (Centro Esportivo de Capoeira Angola) e o retorno de

Mestre Pastinha a capoeira, foram decisivos para os rumos que capoeiragem

seguiria a partir de então. A consolidação do espaço das academias, que se

multiplicariam desse período em diante, como o Centro Esportivo de Capoeira

Angola Dois de Julho, do Mestre Cobrinha Verde e o Barracão do Mestre Waldemar

da Liberdade, configurou uma nova forma de organização da capoeira,

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estabelecendo contratos mais estabelecidos entre alunos e mestres e

consequentemente uma maior formalização do ritual da capoeiragem e

sistematização de seu ensino.

É a partir desse momento que surgem os uniformes – a característica

vestimenta preta e amarela da academia de Mestre Pastinha foi uma homenagem as

cores do Esporte Clube Ypiranga, seu time do coração. O sistema de graduação,

que criou novas hierarquias dentro da capoeiragem, também é uma herança desse

momento.

A passagem das ruas para as academias, colocou a capoeiragem em um

novo paradigma e foi o pontapé inicial para que a capoeira alcançasse novos

patamares. A criação dos grupos folclóricos teve seu berço nas academias, que

serviam como locais para práticas e ensaios de apresentações. A consequente

expansão da capoeiragem para as diversas regiões do país e sua posterior

internacionalização, sem dúvidas, teve como consequência os trabalhos de Bimba e

Pastinha, no período dos anos 30 e 40.

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2 CAPOEIRA NO CINEMA

Eu aprendi a capoeira La na rampa e no cais da Bahia

O gringo filmava e me fotografava Eu pouco ligava e também não sabia

Que essa foto ia sair no jornal Na França, na Rússia

Ou ate na Hungria (Mestre Ezequiel)

A capoeira, como vimos, esteve presente em importantes acontecimentos e

episódios da história do Brasil. Como arte de defesa e luta no período quilombista,

nas disputas do negro pelo espaço urbano no Brasil Imperial e posteriormente como

uma manifestação insurgente na república velha, onde capoeiristas atuaram como

agentes políticos nas maltas e como rebeldes em revoltas populares (como a revolta

da vacina), etc. No entanto, sua representação no cinema nem sempre obteve algum

protagonismo. Ainda hoje existem poucas produções relevantes no audiovisual que

tematizem a capoeiras ou a coloquem como pano de fundo de alguma trama.

Até os anos 2000, antes do advento do cinema digital, existiam inclusive

poucos documentários sobre o assunto. De lá pra cá muitas produções

independentes surgiram, muito devido ao barateamento dos meios de produção

através das câmeras digitais e das ilhas de edição de computadores pessoais,

somado também a uma retomada de popularidade da capoeira, em especial a

capoeira de angola. A maioria destas produções é composta por documentários

sobre importantes mestres ou sobre aspectos gerais da capoeira, investigando a

malícia, a mandinga, potenciais sócio-educativos da capoeira ou algum tipo de

pesquisa mais historiográfica e antropológica.

No âmbito da ficção, no entanto, ainda permanece um fértil horizonte de

possibilidades não exploradas. É possível dizer que existe um problema de

representação da capoeira no cinema, uma vez que pouquíssimos filmes coloquem

em cena a capoeira sem uma abordagem carregada de exotismo. Em algumas

outras ocasiões a capoeira aparece como elemento de figuração, sendo muitas

vezes representada fora de contexto para cumprir algum papel específico a trama.

Esse trabalho não tem por objetivo fazer uma historiografia da capoeira no

cinema. Tal pesquisa evidentemente extrapola as pretensões de um TCC. Faremos

um breve levantamento sobre a representação da capoeira no tela grande, nos

detendo com maior atenção em algumas produções de maior relevância.

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2.1 CAPOEIRA NO CINEMA DE AÇÃO

Ai aiai de Joga bonito que eu quero ver

Ai aiai de Capoeira não é karatê

(D.P)

Na década de 1970, a crescente popularidade dos filmes orientais de Kung Fu

e artes marciais chamaram a atenção dos produtores de Hollywood como um novo

mercado a ser explorado. O grande sucesso de Bruce Lee nas telas americanas,

influenciou uma nova leva de produções nos Estados Unidos que traziam para o

primeiro plano as artes marciais.

O Kickboxing, o karatê, o full-contact, foram ganhando as telas de cinema e

novas estrelas foram alçadas ao protagonismo. Durante os anos setenta e oitenta,

uma série de atores com experiência nas artes marciais protagonizaram filmes em

hollywood. Jean-Claude Van Damme, Steven Seagal, Chuck Norris, David

Carradine, foram alguns dos nomes dessa leva.

Tais produções, que muitas vezes tematizavam campeonatos de artes

marciais, colocavam diferentes estilos de luta em disputa. Esse fenômeno

impulsionou inclusive os antigos campeonatos de vale-tudo, hoje repaginados no

sucesso do UFC e outros campeonatos de MMA (mixedmartialarts, ou artes marciais

mistas).

A capoeira obviamente figurou em inúmeras dessas produções. Muitas das

vezes o capoeirista exercia o papel secundário de um lutador exótico que figurava

como um breve aliado ou adversário do protagonista da trama.

Possivelmente a primeira aparição da capoeira em uma produção audiovisual

norte-americana, foi em 1972 na série de TV Kung Fu, protagonizada por David

Carradine. No enredo, o ator interpreta o personagem Kwai Chang Caine, uma

espécie de monge shaolin chino-americano que se aventura no oeste americano. No

episódio “The Stone” temos a aparição de um personagem capoeirista interpretado

pelo ator MosesGunn, o exotismo da luta brasileira teve um grande apelo com o

público e o episódio acabou sendo um sucesso.

No filme Máquina Mortífera (LethalWeapon, Richard Donner, 1987), a

capoeira não é tematizada na narrativa, no entanto o ator Mel Gibson teve de

aprender Jailhouse Rock para atuar no filme – trata-se de uma espécie de luta dos

negros americanos no período da escravidão. Como complemento, o ator também

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recebeu treinamentos em jiu-jitsu brasileiro na academia dos Gracie e aulas de

capoeira com um instrutor americano. Mesmo não sendo um elemento da narrativa,

a capoeira voltou a pauta de discussões em revistas especializadas por compor a

coreografia de ação nas cenas de luta.

O Jailhouse Rock aparece em diálogo com a capoeira em outro filme dois

anos depois. Trata-se de Rooftops (Nos Telhados de Nova York), de 1989, do

celebrado diretor Robert Wise. Na trama, o protagonista é um jovem de Nova York

praticante do UpRockin, que seria também uma dança com elementos de luta

derivada do Jailhouse Rock. Em meio a um ambiente de pobreza e decadência

social, o protagonista busca dos ensinamentos de um mestre de capoeira, Jelon

Vieira – que no filme interpreta a si mesmo – para confrontar um traficante que inicia

um ponto de venda de drogas na sua vizinhança. Jelon Vieira também passa a

ensinar capoeira nos EUA, em especial para atores de filmes de ação. Um de seus

mais conhecidos alunos é o ator Wesleys Snipes que aplica alguns golpes de

capoeira na série de filmes sobre o caçador de vampiros Blade.

Uma pesquisa mais aprofundada e comparativa entre o Jailhouse Rock e a

capoeira é um tema que ainda carece de estudos e também merece maiores

atenções.

Em 1993, chega às telas Only de The Strong (traduzido no Brasil como

Esporte Sangrento) do diretor Sheldon Lettich. Pela primeira vez na indústria

americana, a capoeira toma o protagonismo em uma película, servindo como pano

de fundo para toda a trama. O enredo, de maneira geral, nos apresenta uma história

comum a realidade brasileira, da capoeira servindo como uma atividade de

transformação social em uma periférica.

O protagonista da trama é um ex-fuzileiro americano que aprendeu capoeira

no Brasil. Ao retornar aos Estados Unidos, encontra sua antiga vizinhança envolta

de criminalidade. Como forma de agir dentro da comunidade, ele cria um projeto de

ensino de capoeira em sua antiga escola, com o objetivo de recuperar os alunos

mais problemáticos. Acontece que o líder de uma gangue local se coloca no seu

caminho. Coincidentemente este vilão é também um capoeirista.

O filme foi coreografado pelo lutador Frank Dux, que serviu de inspiração para

o personagem de Jean-Claude Van Damme no filme O Grande Dragão Branco

(Bloodsport). A questão é infelizmente o Frank Dux é um especialista em artes

marciais orientais, praticante de uma espécie de ninjutsu moderno e nada entende

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de capoeira. Os raros momentos do filme em que vemos uma digna exibição de

capoeira são as cenas em que Mestre Amém aparece e entra em confronto com

outros capoeiristas brasileiros. Ainda como ponto negativo, tais performances são

embaladas pelo clássico cântico de “paranauê” sob bases eletrônicas, tudo muito

deslocado da realidade da capoeira.

Figura 8 - Louis (Mark Dacascos) aceita um berimbau de Mestre Amém.

Mestre Amém é um brasileiro natural do estado da Bahia que dá aulas de

capoeira nos Estados Unidos. Ele também aparece interpretando um capoeirista no

filme "Kickboxer4: O Agressor" (Albert Pyun, 1994) e "Bloodsport 2: The Next

Kumite" (Alan Mehrez, 1995).

No filme Desafio Mortal (The Quest, 1996), onde Jean-Claude Van Damme

além de ter escrito e dirigido, atua no papel principal, temos a clássica presença de

um capoeirista – interpretado pelo Mestre César Carneiro – em um torneio de artes

marciais. Ainda que obtenha algum destaque em sua performance, o capoeira

cumpre uma função secundária e é derrotado em sua segunda luta.

Mais recentemente, a capoeira figurou em outras produções hollywoodianas

de qualidade duvidosa. No filme Bem-vindo à Selva (2003), estrelado pelo astro da

luta-livre, The Rock, um personagem confronta o protagonista com uma luta que é

uma espécie de mistura de capoeira e wu-shu chinês, uma exibição mais uma vez

descontextualizada e secundária. Já no filme “Doze Homens E Outro Segredo"

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(Steven Soderbergh, 2004) o ator Vincent Cassel faz o papel de ladrão furtivo que

para realizar um roubo de uma jóia em um museu, ele desenvolve uma série de

movimentos baseados em golpes de capoeira para se movimentar em meio a uma

malha de alarmes a laser. O ator VincetCassel é um capoeirista e ele próprio teria

desenvolvido sua performance para a cena. Halle Berry, protagonista do filme

Mulher-Gato (CatWoman, 2004) também recebeu treinamento em capoeira para

desenvolver as habilidades de luta de sua personagem. Ela recebeu treinamentos

com o brasileiro Beto Simas, conhecido no mundo da capoeira como Mestre Boneco.

Também temos a presença de um vilão capoeirista no filme “Elektra” (2004), dessa

vez interpretado pelo ator e mestre de capoeira brasileiro Edison Ribeiro. Milla

Jovoviche e Charlize Theron também receberam treinamentos em capoeira para

desempenhar o papel de suas personagens nos filmes "ResidentEvil - Apocalipse"

(Alexander Witt, 2004) e "Aeon Flux" (KarynKusama, 2005), respectivamente.

2.1.1 BESOURO

No cenário nacional, o caso mais célebre de um filme de ação que tematize a

capoeira é “Besouro” (2009). Pegando carona no sucesso de filmes como “O Tigre

Voador”, “O Clã das Adagas Voadoras” e “Kill Bill”, o filme também conta com a

presença do coreógrafo de ação HuenChiuKu, que trabalhou em todas essas

películas. Contando com um orçamento de R$ 10 milhões, um alto valor para os

padrões do cinema brasileiro, o filme é a estréia do diretor João Daniel Tikhomiroff

nos cinemas, que já possuía uma vasta experiência com a publicidade.

A película pretendia retratar o célebre capoeirista baiano Manoel Henrique

Pereira, o famoso Besouro Mangangá. Ambientado no recôncavo baiano dos anos

20, mais precisamente na cidade de Santo Amaro Da Purificação, a trama

acompanha Besouro em seus aprendizados com seu mestre Alípio. Figura de

referência para as populações negras do recôncavo, Alípio não era bem visto pelos

coronéis da região, pois era considerado um tipo subversivo, uma espécie de

liderança das camadas populares.

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Figura 9 - Uma roda de capoeira na cidade de Santo Amaro.

Após a morte de seu mestre a mandos de um coronel, Besouro busca

vingança. Em determinado momento da trama o herói recebeu a proteção dos orixás

e tendo seu “corpo fechado” através de rituais de candomblé. Torna-se uma figura

de oposição a aristocracia do recôncavo, se tornando um herói popular. Vítima da

traição de antigo amigo que havia se aproximado de um coronel da região, Besouro

morre vítima de um golpe com uma faca de ticum.

A narrativa do filme apresenta muitos elementos fantásticos que compõem a

mitologia do herói baiano, sem se apegar a veracidade dos fatos. O filme

infelizmente se perde em meio a esses modismos. Com evidentes pretensões

comerciais, a obra mais parece um pastiche dos filmes de ação norte americano. Os

diversos elementos culturais que são apresentados ao longo da trama se esvaziam

por falta de fundamentação e um trabalho de pesquisa mais rigoroso por parte da

produção. O papel que Canjiquinha desempenhou em filmes como Barravento e O

Pagador de Promessas, como veremos mais adiante, servindo como um verdadeiro

consultor sobre a cultura popular, faz falta ao filme Besouro. Uma ambição de

bilheteria, querendo tornar o filme mais acessível, cria problemas de representação

onde aquilo que é narrado não condiz com seu referencial na realidade.

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2.2 OS PRIMEIROS DOCUMENTÁRIOS

Os primeiros registros audiovisuais da capoeira foram em regime documental.

Ao longo da primeira metade do século XX, a capoeira atraiu a atenção de muitas

reportagens estrangeiras a respeito de seu caráter exótico.

Talvez o registro mais antigo que se tenha preservado ainda hoje, seja o de

uma exibição do lendário capoeirista Samuel Querido de Deus jogando capoeira no

Segundo Congresso Brasileiro de Folclore na Bahia, datado de 1937. A película

carece de restauração, mas uma parcela desta está disponível em vídeo na internet.

A partir da segunda metade do século XX temos um aumento desses filmes

documentários, passando a configurar uma produção mais bem catalogada. Em

1952, o folclorista Alceu Maynard Araújo produz uma peça audiovisual de 5 minutos,

intitulada Capoeira Angola, para o programa Veja o Brasil da TV Tupi.

Figura 10 - Roda de capoeira no Centro Esportivo de Capoeira Angola nos anos 50 - em cena estão Pastinha e seus alunos.

A película apresenta em linhas gerais a capoeira da Bahia para o público

leigo. Temos um grave erro informação nessa produção, uma vez que são exibidas

imagens de Mestre Pastinha ao longo de toda sua duração e a narração faz

referência ao Mestre Bimba, criador da capoeira regional, que à época ainda era

chamada de Luta Regional Baiana. Além desse erro grosseiro, temos uma descrição

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precária a respeito dos golpes da capoeira – onde o aú (a popular “estrelinha”) é

chamado de “salto mortal”, o que revela uma falta de propriedade a respeito do

assunto.

Um estranho aspecto técnico da película é o fato de que ela descreve a

capoeira como uma luta desenvolvida através do acompanhamento de instrumentos

percussivos - berimbau, pandeiro, reco-reco, agogô e atabaque - mas tampouco

apresenta como camada sonora a musicalidade da capoeira, tendo como trilha de

fundo uma música orquestral que não contribui em nada para o entendimento do

espectador.

Cerca de dois anos depois, em 1954, o filme Vadiação é produzido por

Alexandre Robatto Filho7, um dos homens pioneiros do cinema baiano. A película é

considerada uma preciosidade na história da capoeira, uma vez que apresenta

alguns dos grandes mestres em atividade nos anos 50 na cidade de Salvador. Estão

presentes nas imagens os mestres Bimba, Caiçara, Waldemar da Liberdade, Curió,

Traíra, Nagé , Crispim (filho do de Bimba) e Bugalho, além de outros capoeiristas da

época.

Em uma das cenas mais marcantes, Mestre Traíra aparece fazendo virtuosas

demonstrações de movimentos da capoeira angola. Isso deve ao fato de que mesmo

sabendo-se de sua notoriedade dentro da capoeiragem baiana nos meados do séc

XX, muito pouco sabe-se sobre Traíra. Até mesmo sua morte esta envolta de

incertezas na historiografia da capoeira e um dos poucos relatos escritos que

existem sobre esse mestre, são de ninguém menos que do escrito Jorge Amado,

que assim o descreve:

“(...) um caboclo seco e de pouco falar, feito de músculos, grande

mestre de capoeira. Vê-lo brincar é um verdadeiro prazer estético.

Parece bailarino e só mesmo Pastinha pode competir com ele na

beleza dos movimentos, na agilidade, na rigidez dos golpes. Quando

Traíra não se encontra na Escola de Waldemar, está ali por perto, na

Escola de Sete Molas, também na Liberdade”. (AMADO, 1945, pg.

148)

7“Alexandre Robatto Filho, nasceu em 1908 em Salvador. No ano de 1938, Robatto inicia suas atividades no cinema, influenciado pela escola dos documentaristas ingleses, e registra situações extraordinárias e do cotidiano da capital baiana. Robatto é considerado o pioneiro do cinema baiano e deixou 25 títulos, entre eles “Vadiação”, “Desfile dos Quatro Séculos” e “Entre o Mar e o Tendal”. Antes de Alexandre Robatto, Diomedes Gramacho e José Dias da Costa já faziam cinema na Bahia, mas seus registros foram destruídos em incêndios”. Fonte: http://filmow.com/alexandre-robatto-filho-a293821/

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Qualidades que sem dúvidas podem ser aprovadas através de sua

performance diante da câmera em Vadiação.

Figura 11 - Cena de vadiação onde jogam dois estereótipos da capoeiragem, o malandro, associado ao meio urbano, e um escravo descalço - típico do ambiente rural.

Outro ponto importante da película é a trilha sonora que apresenta pela

primeira vez a musicalidade da capoeira em uma peça audiovisual, ainda que fora

de sincronia com as imagens apresentadas. Ao longo do curta podemos ouvir

diferentes toques de berimbau e cantigas da capoeira, todas gravadas por Mestre

Bimba. Pelo seu pioneirismo, apuro técnico (o filme foi gravado em estúdio) e valor

histórico em reunir grandes nomes da capoeiragem baiana, Vadiação é um dos mais

instigantes obras audiovisuais sobre a capoeira, apesar de sua simplicidade

narrativa.

2.3 CAPOEIRA E O CINEMA NOVO

Na transição do final da década de 1950 para o início da década de1960, o

Cinema Novo começava a despontar no Brasil. Uma nova geração de cineastas

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surgia inspirados pelo neo-realismo italiano, a nouvelle vague francesa e pelo

movimento modernista brasileiro. O Cinema Novo trazia novas inquietações,

propondo um cinema que rompesse com o artificialismo dos cinemas de estúdio,

como da Vera Cruz, buscando olhar para a realidade brasileira como matéria-prima

de suas produções. No Brasil, o Cinema Novo é uma questão de verdade e não de

fotografismo. A câmera é um olho sobre o mundo, o travelling é um instrumento de

conhecimento, a montagem não é demagogia mas a pontuação do nosso ambicioso

discurso sobre a realidade humana e social do Brasil.

A cultura popular foi fonte de inspiração para muitas obras dos

cinemanovistas e a capoeira não deixou de figurar em algumas dessas

películas.Dois importantes filmes do cinema brasileiro colocam a capoeira em cena,

são eles “O Pagador de Promessas” (Anselmo Duarte) e “Barravento” (Glauber

Rocha), ambos lançados em 1962. Um detalhe relevante a esse respeito é que

ambos contam com a participação de Washington Bruno da Silva (1925-1994), mais

conhecidos nas rodas de capoeira como Mestre Canjiquinha. Importante nome na

história da capoeira, sua presença é figura certa no hall de grandes mestres da

capoeiragem. Canjiquinha foi fundador do Conjunto Aberrê Bahia, um grupo

folclórico muito importante na divulgação da capoeira e outras manifestações

populares. Além da capoeira, o grupo se apresentava com Samba de Roda,

Maculelê e Puxada de Rede.

O Pagador de Promessas é uma adaptação cinematográfica da peça de teatro

homônima de Dias Gomes. Ocupa um importante papel na filmografia brasileira uma

vez que foi o único filme brasileiro a ganhar o Prêmio da Palma de Ouro do Festival

de Cannes. Apesar de na época ter sido menosprezado pela crítica nacional, o filme

foi muito elogiado no exterior, tendo também conquistado o Prêmio Especial do Júri

do Festival de Cartagena e sido indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em

1963.

A película narra a trajetória de um homem que resolve pagar uma promessa

feita a Santa Bárbara em um terreiro de Candomblé. Na ocasião, o protagonista

pede para que a santa salve seu burro de estimação que estava muito doente. Seu

burro se recupera e o protagonista parte em uma peregrinação de sua região rural

até a cidade de Salvador carregando uma enorme cruz de madeira. Canjiquinha e

outros capoeiristas aparece comandando uma roda de capoeira em frente a Igreja

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de Santa Bárbara em meio a uma manifestação popular em apoio ao protagonista da

trama, Zé do Burro.

Figura 12 - Cenas da roda de capoeira em meio a manifestação de apoio ao protagonista.

Diferente do curta-metragem Vadiação, que foi gravado em estúdio, em O

Pagador de Promessas a roda de capoeira aparece na rua, em meio ao povo numa

manifestação popular, explorando essa relação da capoeira com com as festas e

ruas de Salvador. Ainda que o filme seja uma ficção, nesse sentido possui esta

dimensão documental.

Glauber Rocha, que havia trabalhado em O Pagador de Promessas como

assistente de direção, conhece Mestre Canjiquinha na produção e o convida a

participar também de seu filme que estava em processo de produção. Barravento é a

estreia de Glauber Rocha na direção de um longa-metragem e se passa em uma vila

de pescadores no litoral baiano. O filme também explora elementos populares da

Bahia, como o candomblé, a capoeira, o samba de roda e a puxada de rede. Por

essa razão, Glauber convidou Canjiquinha para ser uma espécie de consultor

dessas manifestações culturais presentes no filme e aparece atuando em algumas

cenas da película comandando o samba de roda.

A película é ambientada em uma vila pesqueira do litoral baiano e narra o

retorno de Firmino, um rapaz que parte para viver em Salvador em busca de

melhores condições de vida. Em sua volta ele confronta os antigos moradores a

respeito de suas crenças e misticismos. Firmino se vê enciumado por Naína que

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está apaixonada por um rapaz chamado Aruã, protegido de Iemanjá. Firmino se

indigna com a exploração da força de trabalho do pescadores e incita uma revolta

contra o dono da rede. Suas ações desencadeiam uma série de acontecimentos que

terminam por paralisar a pesca. Os demais moradores da aldeia buscam a ajuda de

Aruã, pois ele é o único que poderia pescar sem a rede, devido a sua condição de

protegido de Iemanjá. Os pescadores são bem sucedidos e a condição de Aruã é

exaltada por todos na vila. Firmino como vingança convence Cota a seduzir Aruã,

que ao perder sua virgindade perderia também o encantamento de proteção de

Iemanjá. Este momento do filme é o prenúncio do Barravento8. Os pescadores saem

para o mar e dois deles morrem afogados. Firmino revela o fim do encantamento de

Aruã e tudo culmina em uma disputa de capoeira entre os dois na areia da praia.

Figura 13 - Aruã e Firmino disputam na roda de capoeira.

Para além de todas suas inovações estéticas no uso da linguagem

cinematográfica e seu conteúdo social, Barravento se destaca como um importante

filme na representação da cultura popular, colocando em cena essas manifestações

de maneira precisa, com a intimidade de alguém que conhece-as de perto. A

presença de Canjiquinha é sem dúvidas muito importante para o desenvolvimento

dessa camada do filme.

8 De acordo com o filme, o barravento é um momento de turbulência, quando as coisas de terra e mar se transformam, quando no amor, na vida e no meio social ocorrem súbitas mudanças.

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2.4 DANÇA DE GUERRA

Datado de 1968, o filme Dança de Guerra, apresenta novamente a capoeira

sob uma abordagem documental. A película foi realizada pelo cineasta, pesquisador

e também capoeirista Jair Moura. Um importante aspecto técnico deste

documentário é que ele foi fotografado a cores. Todos os antigos registros da

capoeira haviam sido fotografados em Preto e Branco.

Jair Moura era aluno de mestre Bimba, criador da capoeira Regional e tinha

como objetivo nesse filme retratar a capoeira em sua relação com ancestralidade

africana. Nesta época a capoeira regional estava amplamente difundida na Bahia e

começava a tomar lugar de destaque no âmbito nacional como prática desportiva.

O regime militar foi muito incisivo na desportivização da capoeira,

implementando uma série de normas a prática da capoeiragem. Foram criadas

federações, campeonatos oficiais, sistemas padrões de graduação e práticas

regulamentadoras para o exercício da atividade de capoeirista e mestre de capoeira.

A capoeira angola, mais ligada a sua ancestralidade afro descendente

permanecia em um processo de resistência a essas normas do estado e continuava

sendo praticada dentro de uma lógica de militância dos angoleiros.

Jair Moura, mesmo sendo aluno de Mestre Bimba, gravou com antigos

angoleiros em Dança de Guerra. Estão presentes no filme os notórios mestres

Noronha, Totonho e Tiburcinho, figuras que já atuavam na capoeiragem baiana

desde a década de 20. A abordagem que o filme faz de Mestre Bimba também é

muito interessante, pois busca aproximá-lo de todo esse universo da cultura negra. É

importante destacar que apesar de seu papel no desenvolvimento da capoeira

regional, Bimba era um angoleiro dos velhos tempos. Conhecia de samba de roda,

maculelê. Sua esposa era mãe de santo, ele possuía de fato toda uma proximidade

também com aquele universo.

Uns dos momentos mais preciosos do filme são as cenas protagonizadas por

João Grande e João Pequeno, que na época despontavam como grandes

angoleiros. Em duas ocasiões o filme exibe os dois jogando um com o outro a beira

do cais da cidade de Salvador. As cenas são um deleite para capoeiras de hoje, pois

mostram ambos jogando capoeira no auge de suas formas, demonstrando muita

habilidade no jogo de angola. Em uma delas, há inclusive um jogo com facas, uma

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modalidade rara nos dias de hoje. Sobre essas cenas, o historiador da capoeira Fred

Abreu comenta:

“Quando eu olhei, a primeira coisa que me veio na cabeça, que parecia como um parto, um paria o outro, tem uma coisa de atração, um sai o outro entra, um entra e outro sai. (…) a outra coisa é a disputa pelo espaço, disputa um centro, ele quer um centro, o João Grande é um pouco mais periférico, ele sai mas ele sai voltando para tirar o cara do centro, o João Pequeno ele tem o negócio do braço, ele vai tirando com o braço. O grau de articulação é tão bem feito, tem a impressão que ela liga, que tem anos e anos para chegar a esse negócio...” (ABREU, 2004)

Figura 14 - João Grande e João Pequeno jogam na beira do cais.

Outro ponto a ser destacado a respeito da preciosidade de suas cenas, a

relevância desses registros, é que o filme como um todo serviu como matéria prima

para muitos outros documentários posteriores, como “Pastinha, uma Vida pela

Capoeira” e “Mestre Bimba – Capoeira Iluminada”. Tendo inclusive suas imagens

reapropriadas por essas obras.

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2.5 Cordão de Ouro

O primeiro filme de ficção brasileiro a contar com vários mestres em seu

elenco e um enredo que abordasse a capoeira como um elemento central da trama,

foi Cordão de Ouro de 1977. O filme foi desenvolvido com o apoio da EMBRAFILME,

a partir das reformulações que a empresa sofreu em 1975, quando o incentivo do

Estado passou a ser maior nas produções audiovisuais brasileiras.

O filme narra a trajetória de um capoeirista chamado Jorge, interpretado

Nestor Sezefredo dos Passos Neto, mais conhecido no universo da capoeira como

Nestor Capoeira. Na trama, Jorge trabalho como escravo em uma mina de selênio

em um país fictício chamado Eldorado.

A mina está sob o controle da Companhia Progresso de Eldorado,

propriedade de Pedro Cem9(Jofre Soares). No início do filme, Jorge interrompe seu

trabalho para ajudar um velho escravo que estava esgotado de tanto trabalhar.

Quando um soldado capataz tenta agredi-lo, Jorge revida e se mostra mais rápido e

iniciando uma fuga.

Jorge sofre uma perseguição dos outros capangas quando entra em uma

mata para se esconder e encontra o Caboclo Cachoeira (AntônioCarnera), que atua

como um emissário das terras de Aruanda e diz que Ogum quer se encontrar com

ele, sabendo de sua fama como capoeirista. O próprio Caboclo Cachoeira conduz

Jorge à mítica terra de Aruanda, morada dos orixás. Chegando lá, Jorge se encontra

o próprio Ogum, interpretado pelo famoso Mestre Camisa. Após um jogo de

capoeira, Ogum concede proteção a Jorge e ordena que ele volte a Eldorado para

libertar o povo da opressão de Pedro Cem.

9 Pedro Cem é um personagem famoso do folclore português. Nesta tradição é representado como o homem mais mesquinho que já existiu. No Brasil se popularizou nos folhetos de cordel e também acabou como tema de muitas ladainhas de capoeira.

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Figura 15 - Jorge (Nestor Capoeira) aplicando um martelo.

O filme possui muitas controvérsias, num aspecto narrativo o enredo se passa

em um país fictício e mistura elementos contemporâneos (motocicletas, armas de

fogo) com um contexto histórico de escravidão, não sendo bem recebido pelo

público em geral e também pela crítica. Antônio Carlos de Fontoura afirmaria que

teria sonhado com essa narrativa.

Além disso, o filme gerou polêmicas por não só ter sido protagonizado por um

ator branco, como também por pintar Mestre Camisa de preto para que interpretasse

o orixá Ogum. Na ocasião em que foram gravar a cena que Jorge jogava capoeira

com o orixá, Antônio Carlos Fontoura sofreu uma misteriosa perda de voz e diversos

outros contratempos atingiram a produção, incluindo falta de verbas, o que fez com

que as gravações fossem provisoriamente interrompidas. A produção recorreu a um

terreiro de candomblé e somente após uma formal autorização por parte dos orixás

as gravações puderam retornar.

Além do próprio Nestor e do Mestre Camisa, o antigo Mestre Leopoldina

também faz uma breve participação no filme, tocando berimbau ao final da película.

Ainda que não tenha obtido sucesso comercial na época de seu lançamento, mesmo

tendo sido distribuído pela EMBRAFILME, Cordão de Ouro se tornou uma espécie

de cult no cinema brasileiro a partir de seu posterior relançamento em VHS.

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2.6 DOCUMENTÁRIOS DE PASTINHA E BIMA

Na passagem do final dos anos 90 para o início do século XX, foram

produzidos dois importantes documentários sobre mestres de capoeira, “Pastinha!

Uma Vida Pela Capoeira” (Antônio Carlos Muricy, 1998) e “Mestre Bimba, a

Capoeira Iluminada” (Luiz Fernando Goulart, 2005).

Figuras centrais na história da capoeira, Pastinha e Bimba ocupam lugares de

destaque no panteão dos antigos mestres, capoeiristas de todo o mundo buscam em

suas figuras algum tipo de descendência, um desejo de pertencimento em suas

genealogias. Não surpreendentemente os documentários corroboram com a criação

desse imaginário, construindo imagens míticas de ambos os Mestres.

Ambos possuem abordagens bastante parecidas, recorrendo a imagens de

arquivo e depoimentos de terceiros sobre os dois mestres. Ainda que cumpram bem

esse papel de restituição histórica a esses personagens em esquecimento, os dois

filmes são contaminados por uma atmosfera de celebração que acaba por distanciá-

los de suas figuras de interesse, não abordando temas mais polêmicos das

trajetórias dos mestres com a devida profundidade e se esquivando de possíveis

vozes dissidentes.

Todos os dois documentários se apropriam das imagens de “Dança de

Guerra” para compor parte de sua narrativa, o que destaca mais uma vez a

importância histórica do filme de Jair Moura.

2.7 OUTRAS APARIÇÕES

Ainda que sem o mesmo protagonismo, a capoeira também figura em outras

obras da filmografia brasileira, seja com recortes e cenas de um jogo, como um

elemento compondo a ambientação da narrativa ou breves participações.

Na adaptação cinematográfica de Tenda dos Milagres (do escritor Jorge

Amado), dirigida por Nelson Pereira dos Santos em 1977, Mestre Pastinha faz uma

ilustre participação interagindo com o personagem principal da trama, o bedel Pedro

Archanjo, interpretado por JardsMacalé. Na posterior adaptação televisiva (1985),

em uma minissérie da Rede Globo, Mestre Moraes aparece em uma cena

conduzindo uma roda de capoeira, onde Mestre Cobra Mansa demonstra um rabo

de arraia.

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O rei Pelé também teve seus aprendizados com a capoeira para atuar em dois

filmes. Em A Marcha (1972), Pelé interpreta Chico Bondade, um escravo capoeirista

determinado a liderar uma marcha de protesto de escravos fugidos contra a situação

de seus companheiros. Para se preparar para o papel, ele recebeu instruções de

outro bamba, o Mestre Caiçara, famoso angoleiro da geração de Waldemar,

Canjiquinha e Gato. Em 1985, o rei teve de treinar capoeira mais uma vez, desta vez

com o Mestre Zé de Freitas para interpretar o malandro Pedro Mico, no longa-

metragem de mesmo nome.

Outros filmes que apresentam cenas ou partes de um jogo de capoeira são os

filmes "Orfeu do Carnaval" (Marcel Camus, 1957), "Os Bandeirantes" (Marcel

Camus, 1960); "Briga de Galos" (Lázaro Tôrres, 1965) e "Senhor dos Navegantes"

(Aloísio T. de Carvalho, 1961). Outros filmes que podemos destacar por suas

ambientações que se associam ao contexto da capoeiragem são "O Cortiço"

(Francisco Ramalho Jr, 1977), "Quilombo" (Cacá Diegues, 1984) e "Ópera do

Malandro" (Ruy Guerra, 1985).

O filme Madame Satã (2002) de KarimAinouz, retrata o submundo da

marginalidade carioca do inicio do século XX. A película narra a história do malandro

João Francisco dos Santos, um homem negro, pobre e homossexual assumido.

Criado no bairro da Lapa, em meio a violência, ao samba, a boemia e a

criminalidade, João aprende a vida das ruas – demonstrando habilidade na navalha

e na capoeira.

O filme de Karim não foi o primeiro a contar a história de Madame Satã. Em

1971, Antônio Carlos Fontoura – o mesmo de Cordão de Ouro – dirigiu o longa-

metragem “Rainha Diaba” também inspirado da história de João Francisco dos

Santos. Nesse filme, Milton Gonçalves interpreta o personagem principal.

2.8 PROLIFERAÇÃO NO CINEMA DIGITAL

A proliferação do cinema digital criou um novo panorama na produção do

audiovisual brasileiro de um modo geral. O barateamento dos meios de produção,

com as câmeras e ilhas de edição caseiras faz com que muitos filmes independentes

fossem possíveis e nesse contexto muitos documentários sobre capoeira foram

feitos. O levantamento detalhado dessa filmografia permanece um trabalho a ser

feito, no entanto podemos destacar brevemente os filmes Capoeiragem na Bahia

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(2000), produzido pela TV Escola em parceria com o Instituto de Radiodifusão

Educativa da Bahia; Capoeira: Auetu! A Capoeira Angola No Fio Da Navalha (André

Silvério, 2014), abordando os aspectos da capoeira angola em Santo André-SP;

Mestre Leopoldina: O Último Bom Malandro (Nestor Capoeira e Vitor Lins, 2011),

cinebiografia do Mestre Leopoldina; João Grande: Mestre de Capoeira Angola (Mari

Travassos, 2011); João Pequeno de Pastinha (Guimes Rodrigues Filho, Pedro Braga

e Beto Silva, 2015); Nego Bom de Pulo – Mestre Nô e a Capoeira da Ilha (Kiko

Knabben, 2015); Capoeira Angola – Mito ou Magia (Eduardo Joly, 2011); Memórias

do Recôncavo: Besouro e Outros Capoeiras (Pedro Abib, 2008); Paz No Mundo

Camará (Carem Abreu, 2012).

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3 MESTRE GATO, O GUARDIÃO DA TRADIÇÃO

Gato Preto de Santo Amaro Era um fino tocador de berimbau

Segura o ritmo Na Angola Tradicional

(Mestre Zé Baiano)

Um antigo ditado africano diz que quando um sacerdote Griot morre, é como

se uma biblioteca inteira fosse queimada. Na África os Griots são homens de grande

sabedoria, guardiões de muitos conhecimentos, transmitidos através da oralidade

dos mais antigos para os mais novos. Quando esse ciclo é interrompido através da

morte, sem que o mais velho tenha devidamente preparado um sucessor, seu

conhecimento se perde junto com seu corpo. Não deixam escritos, a tradição oral é

a cultura dos griots.

Essa tradição da oralidade, do culto a ancestralidade, deixou suas raízes em

muitas manifestações afro descendentes no Brasil. Os Candomblés assim

sobreviveram, tendo a figura das Mães e Pais de Santo como os seus guardiões. Na

capoeira não foi diferente e toda uma genealogia se criou através das linhagens de

capoeiristas que se perpetuaram através do papel dos mestres.

Dentro da minha experiência com a capoeira angola, essa tradição sempre

esteve muito presente na figura de Mestre Gato Preto de Santo Amaro. A partir

dessa genealogia, costumamos dizer Mestre Gato seria meu bisavô na capoeira.

Não tive a felicidade e a sorte de conhecê-lo, o mestre fez passagem para o Orum

em 2002 aos 72 anos de idade. No entanto, ele sempre esteve vivo nas memórias e

ensinamentos dos Mestres Formiga, Zé Baiano e também do Contramestre Ricardo.

Essa ausência e presença sempre exerceu um grande fascínio em mim, um

estranho sentimento de proximidade e mistério. Diferente de outros mestres de seu

tempo, Mestre Gato não deixou manuscritos e como contam aqueles que o

conheceram, era avesso a entrevistas. Quando estava passando seus ensinamentos

em publico e o evento estava sendo gravado, costumava pedir para interromperem a

gravação em alguns momentos. Tinha uma desconfiança intuitiva e dizia que “a

capoeira tem um segredo, que você não revela a qualquer um”.

No entanto Mestre Gato formou muitos mestres que ainda hoje dão

continuidade ao seu trabalho, como os mestres Meinha, Pedro Feitosa, Hugo Goés

(seu filho), Miltinho e também o Mestre Zé Baiano, do Grupo de Capoeira Angola Rei

Zumbi, que é o mestre de Mestre Formiga, do grupo Ilê de Angola, do qual eu faço

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parte. Todos desenvolvem seus trabalhos a partir da filosofia e ensinamentos de

Mestre Gato, no que diz respeito aos preceitos de formação do ritual da roda de

capoeira, toques de berimbau, além é claro do ensino dos movimentos de ataque e

defesa que compõem a capoeira.

Esse sentimento de curiosidade que eu cultivava, alimentado pela maneira

sempre apaixonada que as pessoas que conheceram Mestre Gato se referiam a ele,

me despertou um desejo de coletar essas memórias e trabalhar através do

audiovisual um registro sobre Mestre Gato. Essa pesquisa evidentemente

necessitaria de um trabalho de entrevistas com seus formados e outras pessoas que

conviveram com Mestre Gato, mas, no entanto, não creio que haveria espaço nem

tempo para essa investigação nessa monografia. E como toda pesquisa necessita

de um ponto de partida, as imagens de arquivo me parecem um caminho possível

para esse trabalho. A ideia de coletar esse material e partir de alguns dos próprios

registros que existem de Mestre Gato permite buscar informações, falas e

depoimentos do próprio mestre enquanto este ainda estava vivo.

Mestre Gato nasceu em Santo Amaro da Purificação em 1930. A região do

recôncavo baiano na primeira metade do sec. XX era ainda essencialmente rural.

Uma grande maioria de população negra, que ainda hoje prevalece, sob o então

recente manto da escravidão, mantinha diversas manifestações culturais e religiosas

de tradição afro descendentes, tais como o samba de chula, a capoeira, o maculelê

e também o candomblé.

Essa memória da escravidão ainda era muita viva pela presença de antigos

escravos libertos. Desses alguns traços identitários eram mantidos. Em uma

entrevista Gato diz ao Mestre Dorado “eu vivia em São Braz, do outro lado tem

Santa Catarina, esse lugar existe, eu te levo lá. Tem São Braz e do outro lado Santa

Catarina, onde morava um monte de negros dos nagôs… eu fui criado nesse meio”.

Em depoimento ao Mestre Dorado, ao relembrando sua infância em Santo

Amaro, Mestre Gato compõem um panorama desse cenário ao lembrar também de

sua tia Augustinha. “(ela) morava na ilha do dendê – ela era mãe de santo, então a

gente ia pra casa dela bater candomblé, pra aprender a tocar atabaque, cantar (...) e

ela era minha madrinha, ficou comigo um bocado de tempo.”

A capoeira desde muito cedo também se fez presente na infância de Gato.

Filho de pais separados, dizia ter sempre vivido com seu irmão e sua mãe. Seu pai,

segundo conta, era “novo, boêmio” e não “tomava conta deles”. Aparecia às vezes

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pra lhe “ensinar a capoeira”. Ensinava-lhe dentro de uma pequena casa de taipa, em

um cômodo estreito com uma única porta e sem janelas. Conta que seu pai, Eutíquio

Góes, começou a lhe ensinar quando tinha apenas oito anos e essa era

basicamente a única relação deles.

“às vezes que eu via meu pai era bem poucas vezes que ele passava em casa, ele era novo… boêmio né... era ele e o Tite, o Valeta que era um cara muito importante, muito bom de bola mesmo, o apelido era Valeta, o nome dele era Antônio, tinha Marcelino e tio Marcos”.

Toda a família de Gato estava envolvida nesse contexto da capoeiragem,

seus avôs e tios, maternos e paternos – lembrando que nessa época a capoeira era

uma pratica masculina, poucas mulheres se arriscavam a praticar capoeira.

“Tinha uma cama dura chamada tarimba. Tarimba são quatro pau enfincado, em cima duas pontas, uma prum lado, outra pronto, chama forquilha, e aquela forquilha em direção uma da outra, botava dois pau chamado travessa, e ali botava aqueles pau no meio, atravessado, a cumprido, de cabeceira a cabeceira, fazia a tarimba. Dentro daqueles pau pegava capim, aquele capim de mato. O que hoje usa colchão, a gente pegava aquilo no mato, aquele sequinho, bonitinho, botava um saco de alinhagem em baixo, e em cima botava aquele capim, depois daquele capim, a gente deitava, não precisava botar outro saco porque era muito macio, tipo uma seda. Então a cama era essa, e na hora de jogar capoeira, era naquele quarto que jogava, então desmontava essa coisa, mas os pau ficavam em pé. Eu jogava capoeira daquele jeito com meu pai, era dentro de um quarto, uma portinha muito estreita e não tinha janela, tinha que entrar por ali e sair por ali mesmo.”

Nesse quarto onde começou seu aprendizado na capoeiragem, Gato ficou

marcado também pelas primeiras cicatrizes. Ao final de sua vida o mestre ainda

carregava as marcas na munheca onde seu pai lhe acertava com o espadim. “(…) O

velho entrava, 'vamboramoleque!' ele vinha com aquele jogo de dentro pra cima de

mim, me dando cotovelada, boca de siri, toma queixada... e eu me virava pra lá, me

virava pra cá.” Remédio também não tinha e pra curar os machucados do treino, o

mestre conta que usava erva de passarinho, uma folha que ajudava a anestesiar e

cicatrizar as feridas. Nessas circunstancias Gato treinou com seu pai durante anos.

O causo que o mestre memorava com satisfação desses tempos foi precisamente o

ultimo treino que seu pai lhe deu, ao qual depois decidiu por não mais lhe ensinar.

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“Eu não gostava de apanhar. Apanhava mas dizia, 'poxa sera que vou ficar apanhando todo dia? Um dia eu tenho que parar de apanhar. (…) um dia vou pegar esse velho'. (…) Quando eu fiquei assim com meus onze anos pra doze, a gente armou a capoeira. Ele foi lá quando ele subiu, saiu do chão um pouco, eu muito rápido fui peguei dei uma cabeçada. Ele foi, bateu as costas na forquilha da cama, da tarimba, e levantou pra me pegar. Eu subi na parede de taipa, na parede em cima, onde tinha o telhado, segurei ali e fiquei lá em cima. Ele disse 'venha cá moleque, venha cá moleque!' e eu 'que nada!' pulei pra sala, e cai na rua. Aí ele com raiva disse 'eu não lhe ensino mais, moleque.' depois desse dia não me ensinou mais.”

Por esse acontecimento ou não, fato é que nesse meio tempo sua mãe

decidiu se mudar pra São Braz, um arraiá perto de Santo Amaro e com ela foram ele

e seu irmão Carlos, apelidado de Gasosa. Depois da mudança Gato praticamente

perdeu o contato com seu pai. Nesse período em São Braz o mestre iniciou seu

aprendizado na profissão de pescador. “Eu aprendi pescar, fui ser pescador. Isso

com treze anos. Minha mãe me deixou com doze anos. Ficamos dois filhos (…)

ficamos juntos em São Braz, tínhamos uma casinha, tipo choupana né, de taipe,

ficamos ali nessa casa depois que minha mãe morreu.” Gato muito se orgulhava de

seus aprendizados e conhecimentos adquiridos na sua profissão, na época uma

característica marcante dos capoeiristas, praticamente todos tinha um oficio. Nesse

mesmo período o Gato iniciou seu aprendizado com Leó, que havia sido aluno de

João Catarino, seu tio por parte de mãe, que por sua vez havia sido aluno de

Besouro.

“(…) em São Braz tinha pescaria, aprendi a pescar. Pescava no mar aberto. Pegava peixe. Ganhei muito dinheiro, aprendi tudo de rede. A rede eu sei pegar rede de arrasto, sei três malhas, sei tarrafa, sirguzeira, sei catoeira, jereré, redinha, rede grande, calão, tudo isso passou por mim. Sei fazer tudo isso. Sei cozir rede, sei fazer bitola, sei fazer agulha pra cozirrede, sei tudo disso aí. Foi uma escola pra mim. (...) Eu gostava, passei a trabalhar na proa. Passei a ser mestre de remo, significa o primeiro da canoa, é aquele que puxa forte, puxa fraco, sabe, aquele que para, aquele que vê primeiro tudo que tá frente, passei a ser isso. Passei a ser mestre de proa. A gente ia de canoa, são duas canoa. Uma canoa grande levando a rede e outra pequena - com duas pessoas, chama socorro - onde coloca o peixe. Aí eu comecei nessa que é uma folga enorme, ia pescar saia de madrugada, chegava dez, onze hora em casa, ia fazer mais nada. Então o que acontece, ia jogar bola, comia, tomava banho, pegava o peixe, cozinhava, Dona Maria cozinhava, fazia moqueca, a gente comia, depois ia dormir. Quando era 4 horas a gente levantava, ia jogar bola, entendeu, de noite pescar. E sábado e domingo, armava a capoeira, embaixo do vará, idêntico a tarimba, que eu comecei a

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aprender, que meu pai me bateu, no vará pra estender a rede. Ali aprendi a capoeira com Leó. E esse Leó foi meu segundo mestre, que me ensinou muitas coisas, me deu cabeçada, ralei com rosto no capim, saiu tudo ralado mesmo. Ele falava grosso pra caramba, dizia assim grave 'oh Gabriel capoeira é assim, capoeira se você quiser aprender cê tem que perder um pouquinho de sangue e ter coragem.' Nessa época eu tinha uma turma, era eu, Messias, Zinho, Genésio, Lao, Tomazinho, Jaime, Chumbinho (...) então tinha aquele grupo, sabe, de meninos tudo na idade de quinze, dezesseis anos, que a gente juntava dia de sábado pra fazer a capoeira, e Leó era o mestre.”

Gato contava que seu pai teria aprendido a capoeira com seu avô que havia

sido escravo. Importante perceber o quanto o manto da escravidão ainda cobria o

recôncavo baiano nessas primeiras décadas do séc. XX, com muitos ex-escravos

ainda vivos e muitos desses envolvidos direta ou indiretamente com a capoeira.

Ainda assim, as fontes sobre essa ancestralidade são misteriosas, indicando uma

certa reserva por partes desses indivíduos – muito por conta do estado de

ilegalidade em que encontrava a capoeira e também a marginalização que havia em

relação a cultura negra.

"Meu pai não me falava não, meu pai era filho de africano, e meu avô treinava naquilo que ele tava aprendendo. Era um segredo que ele tinha que saber, não de onde veio. Não tinha aquela coisa, hoje que quero ser mestre, vou falar pra todo mundo que to ensinando. Naquele tempo não, ele ensinava pro cara ter a defesa, não pra mostrar com quem aprendeu. Quem aprendeu, aprendeu dentro da triba, aprendeu junto, na aldeia, no grupo. Que se cortava muita cana, a gente trabalhava com um animal chamado condutor, tinha carro pra carregar cana, carro de boi, trabalhava muito com esses bicho brabo, com cobra, as vezes tava no trabalho e a cobra passava na sua frente, tinha que saber meter a mão no facão pra matar aquela cobra que se não ela pulava fora. Então ele aprendeu toda essa vida, e meu avô ensinou isso a meu pai. Mas não explicou com quem ele aprendeu, nós sabemos que ele aprendeu ali dentro. Ali dentro era um grupo de sabidos, não existia mestre, tinha cara que tinha conhecimento."

Esse fértil ambiente não produziu apenas a capoeira. O maculelê também se

desenvolvia nesse período na região de Santo Amaro. Mestre Popó, que ficou

conhecido por difundir essa arte africana de esgrimas por todo o Brasil, era também

tio de Gato. Seu mestre teria sido um africano conhecido como Tio Ojô, responsável

por lhe ensinar a capoeira e o maculelê, “(…) era um africano que fazia as coisa mas

ficava quieto, então parou e ficou quieto. (...) tio Ojô entregou maculelê a Popó. Aí

pronto Popó desenvolveu como cê vê aí hoje.”

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O recôncavo proporcionava um importante núcleo de convivência e troca para

as populações negras, que construíam essas diversas manifestações culturais. A

questão financeira, no entanto, é o que muitas vezes provocava o êxodo dos mais

jovens para as cidades grandes, em especial a cidade de Salvador. Com Gato não

foi diferente e pouco antes de completar a maioridade, partiu para a capital em

busca de melhores oportunidades de trabalho. Sobre os aspectos da cultura, no

entanto, o mestre dizia “(…) era tanta coisa em Santo Amaro pra aprender que não

precisava ir pra outra cidadezinha, que ali era o centro… como é ainda hoje, meio

abandonado (pelos governantes), mas o cara inteligente chega lá e aprende muita

coisa.” Ainda no recôncavo, no entanto, antes de partir para Salvador, Gato teve

como mestre de berimbau Antônio de Traripe, “(…) era um cara alto, portava facão,

valente pra caramba. Ele começou a me ensinar berimbau”.

O princípio na capital baiana não foi fácil e como muitos jovens que vinham do

interior para a cidade grande, Gato passou dificuldades e começou a trabalhar com

atividades informais. “(…) cheguei em Salvador de carona. Minhas primeiras casas

na capital foram as palmeiras de Itaguá, Itapoã e Amaralina. Depois fui para favela e

me apoiei como engraxate no mercado, mas era muito longe, resolvi largar.” Um dos

primeiros encontros que o mestre viria a ter também na cidade seria com os ilustres

Jorge Amado e Dorival Caymmi, os quais o teriam incentivado a montar academia e

começar a ensinar. “(…) eu não queria fazer isso porque eu não tinha condições. Eu

queria aprender muita coisa, mas disseram que eu sabia, que tinha que fazer

academia. Aí coloquei academia, na rua Marques de Leão, na barra 54.”

E tão logo se estabeleceu na cidade, mestre Gato começou a frequentar os

mais diversos redutos da capoeiragem na capital baiana, que pelo final dos anos 40

e início dos anos 50 vivia uma consolidação das academias de capoeira, com muitos

mestres desenvolvendo diferentes trabalhos nas várias regiões da cidade. “Aí eu ia

pra Pastinha, ia pra Mestre Waldemar. Ia aprender. Achava que eu sabia muito

pouco. (…) E comecei meu xirê. Comecei a ir pra Liberdade, pra ficar lá com mestre

Waldemar, aí conheci Traíra, Coutinho, Bom Cabelo, Zacarias e essa turma lá.”

Ainda que já demonstrasse muita habilidade com a capoeira e desenvoltura

nos toques de berimbau, Gato contava como havia na época um respeito em relação

aos mais antigos, onde ele próprio chegava com cautela e discrição nas rodas dos

mestres.

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“(...) fui lá no Pero Vaz ver a roda da capoeira. Aí cheguei lá encontrei todo mundo. (...) Eles nem me conheciam, que liberdade iam me dar com 17 anos? Pra ser um cara famoso na roda de capoeira que tavatava Traíra, Cobrinha Verde, Zacarias, Bom Cabelo, Avanildo, Gulhão, Mestre Waldemar, uns capoeira tudo bom, famosos, que só colocava capoeira na praça, na rua, assim. Desse jeito. (…) Era muito forte dia de domingo, iam pra lá todo mundo, ficavam brincando e quando era depois de seis horas, já escurecia, não tinha luz, a luz só era dentro de casa, da rua era distante, aí ficavam tomando a cerveja deles.”

Nesse período o Gato se aproximou muito do antigo Mestre Cobrinha Verde,

que desenvolvia um trabalho de capoeira no Chame-Chame, fazendo sua academia

na sede de um grêmio recreativo. Cobrinha seria em Salvador uma de suas

principais referências na capoeira. Mesmo após ter montado sua própria academia,

continuou acompanhando o mestre por muitos anos. Segundo Gato, Cobrinha foi

responsável por lhe ensinar muitas coisas do aspecto ritual da capoeira, dos

preceitos que o capoeirista deveria seguir e como se portar perante os demais.

“Cobrinha falava muita coisa. Falava como é que se vestia, tinha que ser de branco. O crivo do sapato que cê tinha que calçar, como é que se dava o nó no cadarço. Falava como é que cê entrava na roda. Que cê tinha que olhar todo mundo, ver, salvar. Aparecer menos pra você ter a oportunidade de ser chamado pelos mestres sentindo que cê era um cara educado. (Quando fosse) passar num lugar que tivessem brigando, você passar e nem olhar, a briga não era sua, não ficar olhando, participando, dando sugestão. Não mostrar que era capoeirista. Procurar ver quem tinha alguma coisa diferente dele, que era muito bom pro aluno aprender, que era mais um capitulo pra vida do aluno. (…) Cobrinha Verde era um cara que tinha varias atividades dentro da cultura. E era um cara que sabia de candomblé, que tinha orixá, que sabia rezar, tinha umas orações muito fortes, se cuidava bem, não tinha medo de jogar, no lugar que chegasse ele tinha aquele respeito. (…) Ele fazia aquela roda e você olhava assim e falava 'não da pra ninguém entrar', não precisava nem falar, porque não dava mesmo. Mas ele deixava, todo mundo com o corpo polido, rezado certo, todo mundo na filosofia, pra não perder o que era bom. (…) Ele ensinava essa filosofia. Aliás todos os mestres da época tinham sua sabedoria, tinham seu corpo fechado.”

Essa filosofia da capoeira angola, a chamada mandinga do capoeirista, talvez

tenha sido o mais importante legado que os antigos mestres tenham deixado, mas

que está em vias de desaparecer. Um lado mágico da capoeira, que tem se perdido

com o passar das gerações. A desportivização da capoeira, que ocorreu

principalmente durante o Regime Militar, com a implementação de um sistema de

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graduação e formatura, o surgimento dos campeonatos, elevou o nível competitivo

da luta e colocou esse aspecto místico em um segundo plano.

“(…) Na época tinha que aprender todo mundo (a rezar). Todo mundo tinha que ter sua defesa. Através das orações, das concentrações. Por isso que a capoeira angola ficou difícil. Um menino tava me falando 'por isso que capoeira angola é difícil, que é tanta coisa que tem, o senhor ta mostrando aos poucos, que a gente nunca tinha ouvido falar. Por isso ninguém queria aprender capoeira angola, porque é uma faculdade da vida mesmo'. Pois é, exatamente, todo mundo tinha por obrigação de saber se defender através das orações. E não tinha como o cara não aprender. Assim que entrava um, o mestre se confiava ia lá e dava pra ele escrito, ia escrevendo qualquer coisa assim, ele ia aprendendo.”

A expansão dos grupos, buscando o desenvolvimento comercial da capoeira,

enfraqueceu essas estreitas relações dos mestres com os alunos. Outra

característica importante da capoeiragem daqueles tempos, ressaltada na memória

de muitos antigos mestres, é a união e amizade que existia entre os capoeiristas de

diferentes grupos e o respeito e admiração recíproco entre os mestres.

“Na academia de Pastinha não tinha só mestre bom, tinha capoeirista muito bom. Tinha Diodato, tinha o Valdomiro, tinha o Raimundo que é o Natividade, tinha o Moreno, o Abestino, muita gente boa pra jogar capoeira, não era só os mestres. (…) Aí em Cobrinha Verde era Tibúrcio, Didi Cabeludo, Guardino, era João Grande, era eu, Inácio, Nelson que era de Pastinha mas não saia de lá com a gente. (…) Waldemar também tinha seu grupo. Era Vanir, Bom cabelo, Zacarias, Angoleiro, Gulhão, Secretario, Davi, Dadá, era uma dupla, muito boa, um acabamento - um grandão negão, o outro pequenininho, eram dois cão jogando. Todos tinham uma turma conhecida, famosa, sem briga, unida, e recebendo a ordem do mestre. E todos se reuniam na academia de Pastinha. Ali era o lugar que fazia capoeira.”

Essa camaradagem existente entre os capoeiristas e também o respeito entre

os mestres, permitia uma rodagem por parte dos alunos, que ao invés de passar

toda sua formação sob os ensinamentos de um único mestre, tinham uma maior

possibilidade de aprender sob diferentes perspectivas, buscando a orientação de

outros mestres além do seu. Gato contava que mesmo após já ter sua academia,

seguia treinando com Cobrinha Verde, mas também já frequentava a academia de

Pastinha (onde mais tarde viria a ser mestre de bateria) e procurava Mestre

Waldemar para lhe aperfeiçoar na arte do berimbau.

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“Aprendi muito berimbau com ele. Quando cheguei lá eu já tocava berimbau como tô falando, mas eu queria mais. E ali era onde eu ia. Peguei Mestre Waldemar, peguei Traíra. Muito bom, bom demais. E pra eu tocar ali eu tinha que ter um berimbau que falasse alto, então por isso que eu tinha uma boa viola e um bom gunga, exigindo essa coisa, pro cara saber o que tá você tá fazendo naquela coisa pra saber se vale a pena ou não.”

Gato faria sua fama como exímio tocador de berimbau, mais tarde lhe sendo

concedido o titulo de “Berimbau de Ouro” em virtude de suas habilidades. No inicio

dos anos 60, Gato já se encontrava em Salvador a mais de uma década e já havia

se tornado figura conhecida na capoeiragem da capital baiana. Já era um notório

tocador de berimbau, conhecedor dos diferentes toques e Pastinha lhe concedeu o

titulo de mestre de bateria de sua academia. Gato ficou responsável pelo

desenvolvimento da musicalidade na academia de Mestre Pastinha, lhe cabendo a

função de ensinar os diferentes instrumentos aos alunos e comandar a bateria

durante as rodas de capoeira. “O mestre de bateria é um cara responsável pelo

conjunto, quando o mestre da academia não quer se responsabilizar por isso. Como

Pastinha mesmo não queria. Ele tinha ouvido, então queria ouvir tudo certo e queria

uma pessoa que tivesse condições de colocar aquilo pra frente dentro daquele

ritual.”

Sobre a formação da bateria naqueles tempos, Gato relata que ao contrário

de hoje em dia, normalmente não se fazia uso do atabaque. Sendo a bateria

formada geralmente por três berimbaus – um grave, um médio e um agudo,

chamados Berra-boi, Gunga e Viola – dois pandeiros, um fazendo a marcação e

outro os repiques para acompanhar o berimbau viola, seguidos de um reco-reco e

um agogô. A questão do atabaque é uma polêmica que perdura até hoje, sentido

motivo de controvérsias em relação ao seu uso ou não na roda de capoeira.

“Atabaque não tinha. Tinha um rumpi que Pastinha não gostava de tocar nada, quando ele vinha pegava aquele tamborzinho de um palmo e meio, botava no meio e ficava tocando. Matava aquela vontade dele, saia e pronto. Aí os caras vem com foto, pega uma foto e pergunta 'e Pastinha aqui tocando atabaque?', é ruim você explicar pra esses cabeça dura, você fala mil vezes a verdade e ainda falam assim. Esse pessoal tá nascendo tudo desinteligente.”

Dentro desse ritual que foi desenvolvido, cada berimbau também fazia uma

função dentro do ritmo que estava sendo tocado. O Berra-boi comandava e a partir

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do seu toque os outros deveriam acompanhar de determinada maneira. Cada mestre

ou grupo possuía sua própria musicalidade e diferentes combinações de toques de

berimbau. A Combinação mais comum observada hoje em dia nas rodas de capoeira

angola é Angola sendo tocada no berimbau grave, São Bento Pequeno no berimbau

médio e São Bento Grande no berimbau agudo. Gato, no entanto, dizia que havia

muitos outros toques nas rodas de capoeira e cada qual para uma ocasião, sobre

isso o mestre dizia “Estão empobrecendo a capoeira. O cara acha que já sabe tudo

e não quer sentar pra aprender com os mais antigos. Quem perde com isso é a

capoeira.”

No livro Capoeira Angola: Ensaiosócio-etnográfico, Waldeloir Rego (1968) faz

um levantamento de toques de berimbau empregados por diferentes mestres.

Segundo consta na publicação, Mestre Gato utilizava um total de dezenove toques

de berimbau, sendo eles Angola, São Bento Grande de Angola, Jogo de Dentro, São

Bento Pequeno, São Bento Grande de Compasso, São Bento de Dentro, Angolinha,

Iúna, Cavalaria, Benguela, Santa Maria, Santa Maria Dobrada, Samba de Angola,

Ijexá, Apanha a laranja no chão Tico-tico, Samongo, Salva (ou Hino), Benguela

Sustenida e 61. Gato dizia que era importante conhecer os toques, pois havia a

tradição do jogador pedir o toque de sua preferência para jogar. “(…) O Cara

sentava perto do berimbau e dizia 'toca uma Angola aí pra mim, menino', aí você

tocava e outro dizia 'eu quero um São Bento Grande'. Os mestre pediam o queriam e

tinha uma bateria pra satisfazer, que o pessoal da bateria conhecia os toques.”

No ano de 1966 ocorreu o primeiro Festival Internacional de Artes Negras em

Dakar, no Senegal. O Brasil enviou uma grande comitiva de artistas como

Clementina de Jesus, Paulinho da Viola, Heitor dos Prazeres, Elizete Cardoso,

acompanhados também de um grupo de capoeiristas formados por Mestre Pastinha,

João Grande, Gildo Alfinete, Roberto Satanás, Camafeu de Oxóssi e também Mestre

Gato. Nessa viagem o mestre confirmou suas notórias habilidades como tocador de

Berimbau e venceu uma disputada do Festival, disputando com outros tocadores da

África e do mundo inteiro. Esse feito somado a conquista de uma competição de

toques de berimbau na Bahia, uma ocasião que venceu os também mestres

Canjiquinha e Vermelho 27 na final, lhe renderam o titulo de Berimbau de Ouro –

uma consagração que o mestre muito se orgulhava.

Gato seguiu desenvolvendo seu trabalho com sua academia em Salvador e a

partir dos anos 70 começou a ministrar aulas em Brasília, São Paulo e já nos últimos

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anos de sua vida, no Rio de Janeiro. Atuou por todos esses anos como um guardião

da cultura, preservando as tradições e a ancestralidade da capoeira angola. Em um

de seus últimos depoimentos, Mestre Gato disse sobre o futuro da capoeira.

“O negócio evoluiu. Evoluir é muito bom, mas é preciso ter uma raiz, um início para a coisa não andar para um lado contrário, pois esta arte é rica demais! A capoeira é sua vida, minha e de muitos outros. Não se tem como controlar isso. Daí é preciso ter um domínio de educação para que ela não perca essa coisa linda que possui.”

Que assim continuemos!

Mandei cair meu sobrado Mandei, mandei, mandei Mandei cair de amarelo

Caiei, caiei, caiei (Mestre Gato Preto)

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CONCLUSÃO

Um trabalho de conclusão de um curso de graduação não deve ter a

pretensão de esgotar um tema, mas apenas ser um indicador de possíveis caminhos

para o desdobramento dessa pesquisa. Ao longo dessa monografia pude me

introduzir em algumas questões, que ainda que tenham se tangenciado em alguma

medida, apontam possibilidades diversas de prosseguimento, em diferentes campos

da pesquisa acadêmica.

A questão da memória me parece de certa forma ser um elemento comum as

diferentes discussões e narrativas apresentadas ao longo do trabalho. Como prática

marginalizada, a reconstrução da narrativa histórica da capoeira – desde sua

participação em diversos acontecimentos e seu papel político na trajetória do negro

– se faz necessário como gesto de afirmação de seu processo de resistência. É

preciso registrar essa história, passá-la adiante e não deixar que a história do

colonizador sobreponha as micro-narrativas de resistência e relegue-as ao

esquecimento.

No âmbito do audiovisual, a questão a da preservação e restauração de

antigas filmagens da capoeira é um desafio para que esses poucos fragmentos

ainda existentes permaneçam para as futuras gerações. A catalogação precisa

desses mesmos fragmentos também resta como um trabalho a ser realizado. Muitas

reportagens estrangeiras documentaram a capoeira na primeira metade do século

XX e é possível que ainda existam trechos ou filmes que não são de conhecimento

público e podem vir a ser encontrados.

Ainda dentro do cinema, mais particularmente na chave da ficção, poucas

obras relevantes colocaram a cena a capoeira como elemento central de suas

narrativas. Um vasto território ainda permanece a ser explorado pelo cinema de

ficção em relação a história da capoeiragem. Podemos pensar em diferentes

cenários abordados ao longo deste trabalho, que poderiam ser representados pela

narrativa cinematográfica.

Desde personagens como Horácio José da Silva, o Prata Preta, negro,

estivador e capoeirista carioca que se tornou célebre por seus confrontos com a

polícia durante a Revolta da Vacina, sendo um dos líderes da cidadela construída

pelo povo na região portuária.

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Outro fenômeno que permanece pouco explorado e longe do conhecimento

popular são as maltas cariocas do final do séc. XIX. Os confrontos entre Nagoas e

Goiamuns, suas atuações na política no período de transição do Império para a

República Velha são narrativas ricas a serem exploradas pela ficção. Ainda nesse

mesmo contexto personagens como Juca Reis, Manduca da Praia, A Guarda Negra

da Princesa Isabel, Ciríaco também poderiam ser fontes de inspiração para diversas

obras cinematográficas que retratassem este período histórico.

Isso é claro para não citar os recentes mestres da capoeiragem baiana que

cada por sua história poderia ser tema de uma obra inteira – haja vista o pouco que

foi relato aqui a respeito da vida de Cobrinha Verde e Gato Preto.

Em relação a este último, a pesquisa aqui iniciada evidentemente não se dá

por concluída. Evitei abordar aspectos essencialmente pessoais da vida do mestre,

tal como sua relação com seus filhos, familiares, me focando em questões que

tratassem da capoeira. Não tive como objetivo iniciar uma biografia de Mestre Gato,

mas sim a partir de vestígios audiovisuais nos quais o mestre estivesse presente, me

aprofundar em seus ensinamentos e no entendimento de sua visão e filosofia a

respeito da capoeira.

Tendo em visto as diferentes transformações que a capoeiragem sofreu e

continua sofrendo, creio ser um importante papel dar prosseguimento aos

ensinamentos deste Mestre que atuou como um verdadeiro guardião de

determinadas tradições da capoeiragem, preservando sua riqueza e ancestralidade

africana. Respeitando, é claro, as divergentes filosofias e linhagens que cada uma a

sua maneira contribuem para o enriquecimento e diversidade da capoeira.

A este respeito, penso ser oportuna a citação de um trecho do Livro da Roda

de Saberes do Cais do Valongo, do capítulo escrito pelo historiador Luiz Antônio

Simas:

“É por isso que a gente vive, é a cadeia, é o elo, é a tradição no sentido mais dinâmico que ela tem. Porque a tradição jamais é estática, sobretudo na visão Iorubá. A gente tem uma visão da tradição, um senso comum ocidental que é de uma bobagem impressionante. A tradição é vista como uma coisa parada, como um objeto de museu, no pior sentido. A tradição é o elo. A tradição é aquilo que você acrescenta à corrente. A tradição é uma corrente em que outro elo vai ser colocado depois e você não sabe, a princípio, que elo é esse, mas é o elo que joga para frente, é o elo que joga lá para frente, é o elo que pensa lá na frente...” (SIMAS, 2015, pg. 71)

Espero que este trabalho seja um desses elos e amplie a corrente!

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FILMOGRAFIA

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NOSSA música. Direção: Jean-Luc Godard. Fotografia JulienHirsch. [S.l.]: Imovision,

2005. 1 DVD (80 min), NTSC, color. Título original: Notre musique.

MÁQUINAMortífera.Direção: Richard Donner. Warner Bros., EUA, 1987. Título

original: LethalWeapon.

NOS Telhados de Nova York. Direção: Robert Wise.Koch Company, EUA, 1989.

Título Original: Rooftops.

ESPORTE Sangrento. Direção:Sheldon Lettich. Davis-Films, Freestone Pictures,

EUA / França, 1993. Título Original: Only de The Strong.

O GRANDE Dragão Branco. Direção:Jean-Claude Van Damme.Cannon

International, EUA, 1988. Título Original: Bloodsport.

KICKBOXER4: O Agressor. Direção: Albert Pyun. Kings Road Entertainment, EUA,

1994. Título Original: Kickboxer4.

O GRANDE Dragão Branco II. Direção: Alan Mehrez. FM EntertainmentInternational,

EUA, 1995. Título Original:Bloodsport2: The Next Kumite.

DESAFIO Mortal. Direção: Jean-Claude Van Damme.MDP Worldwide /SelimaFilms

AVV, EUA / Canadá, 1996. Título Original:The Quest.

BEM-VINDO à Selva. Direção: Peter Berg. Columbia Pictures Corporation / Universal

Pictures / WWE Studios, EUA, 2003. Título Original: The Rundown.

DOZE Homens E Outro Segredo. Direção: Steven Soderbergh. Warner Bros. /

Village Roadshow Pictures / Jerry WeintraubProductions, EUA, 2004. Título

Original:Ocean'sTwelve.

MULHER Gato. Direção: Pitof. Warner Bros. / Village Roadshow Pictures. EUA,

2004. Título Original: Catwoman.

ELEKTRA. Direção: Rob Bowman. TwentiethCentury Fox Film Corporation / Marvel

Enterprises, EUA / Canadá, 2005. Título Original: Elektra.

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RESIDENTEvil: Apocalipse. Direção: Alexander Witt. ConstantinFilmLtd. /Impact

Pictures, EUA, 2004.Título Original: ResidentEvil: Apocalypse

BESOURO. Direção: João Daniel Tikhomiroff. Globo Filmes, Brasil, 2009.

CAPOEIRA Angola. Direção:Alceu Maynard Araújo.Brasil, 1952.

VADIAÇÃO. Direção:Alexandre Robatto Filho. Brasil, 1954.

PAGADOR de Promessas. Direção:Anselmo Duarte. Cinidistri, EMBRAFILME,

Brasil, 1962.

BARRAVENTO. Direção:Glauber Rocha. Iglu Filmes, Brasil, 1962.

DANÇA de Guerra. Direção:Jair Moura. Brasil, EMBRAFILME, 1968.

CORDÃO de Ouro. Direção:Antonio Carlos Fontoura. EMBRAFILME, Brasil, 1977.

PASTINHA! Uma Vida Pela Capoeira. Direção:Antônio Carlos Muricy. RACCORD

Produções, Brasil, 1998.

MESTRE Bimba, a Capoeira Iluminada. Direção:Luiz Fernando Goulart. Lúmen

Produções, Brasil,2005.

TENDA dos Milagres. Direção:Nelson Pereira dos Santos. Regina Filmes, Brasil,

1977.

A MARCHA. Direção:Oswaldo Sampaio. EMBRAFILME, Brasil, 1972.

PEDRO Mico. Direção: Ipojuca Pontes. Ipojuca Pontes Produção, Brasil, 1985.

ORFEU do Carnaval. Direção:Marcel Camus. Dispat/ Tupã Filmes, Brasil, 1960.

O Cortiço. Direção:Francisco Ramalho Jr. EMBRAFILME, Brasil, 1977.

QUILOMBO. Direção:Cacá Diegues. Gaumont do Brasil / EMBRAFILME,

Brasil,1984.

ÓPERA do Malandro. Direção:Ruy Guerra. MK2 Productions, Brasil, 1985.

MADAME Satã. Direção:KarimAinouz. VideoFilmes, Brasil, 2002.

RAINHA diaba. Direção:Antônio Carlos Fontoura. EMBRAFILME, Brasil, 1971.

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CAPOEIRA:Auetu! A Capoeira Angola No Fio Da Navalha. Direção:André Silvério.

Cadência Filmes, Brasil, 2014.

MESTRE Leopoldina: O Último Bom Malandro. Direção:Nestor Capoeira e Vitor Lins,

A beira mar, Brasil, 2011.

JOÃO Grande: Mestre de Capoeira Angola. Direção:Mari Travassos. Travas Filmes

2011.

JOÃO Pequeno de Pastinha. Direção:Guimes Rodrigues Filho, Pedro Braga e Beto

Silva. Malta Nagoa, Brasil, 2015.

NEGO Bom de Pulo: Mestre Nô e a Capoeira da Ilha. Direção:Kiko Knabben. Caldo

Filmes, Brasil, 2015.

MEMÓRIAS do Recôncavo: Besouro e Outros Capoeiras. Direção:Pedro Abib. Doc

Doma Filmes, Brasil, 2008.

PAZ No Mundo Camará. Direção:Carem Abreu. Atos Imagens, Brasil, 2012.