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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE ADMINISTRAÇÃO, CIÊNCIAS CONTÁBEIS E TURISMO CURSO DE TURISMO EDNEZ GOMES DA GLÓRIA O PATRIMÔNIO HISTÓRICO-CULTURAL DO ARQUIPÉLAGO DO MARAJÓ, PARÁ: DIÁLOGO E DISPUTA ENTRE SUAS REPRESENTAÇÕES NITERÓI 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE ADMINISTRAÇÃO, CIÊNCIAS CONTÁBEIS E TURISMO

CURSO DE TURISMO

EDNEZ GOMES DA GLÓRIA

O PATRIMÔNIO HISTÓRICO-CULTURAL DO ARQUIPÉLAGO DO MARAJÓ,

PARÁ: DIÁLOGO E DISPUTA ENTRE SUAS REPRESENTAÇÕES

NITERÓI

2013

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EDNEZ GOMES DA GLÓRIA

O PATRIMÔNIO HISTÓRICO-CULTURAL DO ARQUIPÉLAGO DO MARAJÓ

PARÁ: DIÁLOGO E DISPUTA ENTRE SUAS REPRESENTAÇÕES

Trabalho de Conclusão de Curso

apresentado ao Curso de Graduação em

Turismo da Faculdade de Administração.

Ciências Contábeis e Turismo, da

Universidade Federal Fluminense, como

requisito parcial para obtenção do título

de bacharel em turismo.

Orientadora: Prof. Dra. Helena Catão Henriques Ferreira.

NITERÓI

2013

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O PATRIMÔNIO HISTÓRICO-CULTURAL DO ARQUIPÉLAGO DO MARAJÓ,

PARÁ: DIÁLOGO E DISPUTA ENTRE SUAS REPRESENTAÇÕES

POR

EDNEZ GOMES DA GLÓRIA

Trabalho de Conclusão de Curso

apresentado ao Curso de Graduação em

Turismo da Faculdade de Administração.

Ciências Contábeis e Turismo, da

Universidade Federal Fluminense, como

requisito parcial para obtenção do título

de bacharel em turismo.

___________________________________________________________________

Prof. Dra. Helena Catão H. Ferreira

Orientadora.

___________________________________________________________________

Prof. Dr. Sérgio Hamilton Da Silva Barra Convidado PUC-RJ

___________________________________________________________________ Prof. Me. Manoela Carrillo Valduga Departamento de Turismo - UFF

Niterói, Fevereiro de 2013

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Dedico este trabalho ao povo do Marajó,

filhos da cobra-grande, povo das águas,

povo que espera...

À princesa mais linda do mundo, minha

mãe Maria Bragança por me ensinar a

força e a coragem, essenciais a toda

mulher.

Aos meus filhos Ludianne, Edson,

Lucianne e Luciana que, requeridos à

inversão de papéis, me deram suporte

para terminar o curso de turismo. A estes

dedico também meu amor infinito.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos os bons professores que tive na vida, pois conseguiram me motivar ao

aprendizado formal. Entre estes, um agradecimento especial a minha primeira professora, e

prima, Rosária Serra.

À minha orientadora, Helena Catão, por sua paciência, incentivo, amizade, serenidade,

comprometimento e por tantos outros belos adjetivos. A Sérgio Barra – um ser maravilhoso

que, embora não me conhecesse, dedicou seu tempo ao meu trabalho. Sérgio e prof.

Helena, vocês são pessoas confiáveis, preenchidas com o teor da frase que, acredito, foi

pensada por Sócrates, porém dita por meu amigo Giamma: “confiáveis são aqueles que

fazem teu cérebro trabalhar”. Agradeço também aos professores do curso de turismo da

UFF, em especial, àqueles de convívio mais próximo através do desenvolvimento de

projetos, como a professora Manoela Valduga e o professor Eduardo Vilela. Também

merece agradecimento especial o professor Aguinaldo César Fratucci, que incentivou minha

pesquisa. Cabe lembrar, ainda, a, então, estudante de matemática da UFF Silvia Maria,

professora de matemática, dos tempos de pré-vestibular.

Ao antropólogo Raimundo Heraldo Maués, que solicitamente me enviou um de seus

valiosos artigos.

A minha família, a começar pela minha mãezinha, por suas orações tão valorosas. Aos

meus filhos queridos, pelo amor e auxílio. À minha tia Sebastiana Serra, um belo exemplo

de mulher. Aos meus irmãos, tios, sobrinhos, primos, enfim, a toda a minha família

gigantesca.

Aos amigos do Marajó, que tão solicitamente auxiliaram na pesquisa deste trabalho, em

especial à Zezé e ao tio Tacica. Sra. Maria José e Sr. Otacir Gemaque, oficialmente. Ao

diretor do Museu do Marajó, Sr. José Euzerbeto e sua esposa Sandra. Aos meus amigos de

infância que em tempos de pesquisa me receberam com todo o amor e carinho do Marajó, o

nosso mundo.

Aos meus amigos da UFF: os de sempre, os de ontem e os de amanhã. Especialmente a

Daniele de Assis, a Izadora Montez e o Raphael Giammatey.

Por fim, agradeço a AMAM-Marajó, em especial ao Rui, que me auxiliou prontamente o

contato.

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Marajó ia se esbatendo, se afundando na

noite, morno, misterioso, escuro como

jacaré encalhado num balcedo. Do outro

lado, subindo nas águas em que a

curicaca se embalava, a terra geral, a

terra grande, ressonando na lonjura, país

de ouro enterrado.

Dalcídio Jurandir.

Chove nos campos de Cachoeira E Dalcídio Jurandir já morreu [...] Carlos Drummond Andrade

E o Gallo também morreu...

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Localização do Arquipélago e Ilha do Marajó.

Figura 2 - Cachoeira do Arari – Localização, área e planta.

Figura 3 - Igreja da Matriz e Praça da Independência.

Figura 4 - Fazenda às margens do rio Arari.

Figura 5 - Paisagens marajoaras.

Figura 6 - Fachada e parte interna do edifício Moreira, RJ e IB, em São Paulo.

Figura 7 - Igaçaba arqueológica sendo usada pela população local.

Figura 8 - Marajoaras fazendo panelas de barro.

Figura 9 - Ex-voto no Túmulo de Giovanni Gallo.

Figura 10 - Fachada d'O Museu do Marajó.

Figura 11 - Recepção do Museu do Marajó.

Figura 12 - Seção Arqueológica do Museu do Marajó.

Figura 13 - Tangas e caretas marajoaras.

Figura 14 - Computador "Pescaria da Saúde".

Figura 15 - Imagem antiga pertencente ao acervo do Museu do Marajó.

Figura 16 - Desenhos marajoaras.

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RESUMO

Este trabalho tem por objetivo analisar as representações sociais e as disputas em

torno da cerâmica marajoara, considerada como um dos maiores patrimônios

histórico-culturais do arquipélago do Marajó-PA. Neste sentido, coube avaliar como

tem se construído a cerâmica arqueológica no debate científico, no qual sua

importância remonta a origem do homem amazônida e, também, guarda uma

linguagem iconográfica. Por outro lado, seu valor artístico tem determinado outros

tipos de abordagem, que vão desde sua valorização pela beleza dos traçados e pela

representação de uma cultura, aos interesses mercadológicos e turísticos,

configurando-a como um artefato cobiçado nacional e internacionalmente. Para a

população do Marajó, de onde a cerâmica se origina e se atualiza, esta representa

um forte elemento identitário que, articulado com a crescente visibilidade turística da

região, aponta para a possibilidade de projetos de desenvolvimento sociocultural

local.

Palavras-Chave: Marajó, cerâmica marajoara, Museu do Marajó, população

marajoara, patrimônio cultural.

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RESÚMEN

Este estudio tiene como objetivo analizar las representaciones sociales y los conflictos alrededor de la cerámica marajoara, que es uno de los mayores patrimonios histórico-culturales del archipiélago de Marajó-PA. En este sentido, fue evaluado cómo se ha construido la cerámica arqueológica en el debate científico, en lo cual su importancia remonta a la origen del hombre amazónico y, también, guarda un lenguaje iconográfico. Por otro lado, su valor artístico se le ha dado otros enfoques, es decir, desde su valoración por la belleza de los trazos y por la representación de la cultura, hasta los intereses comerciales y turisticos, que la configura como un artefacto codiciado a nivel nacional e internacional. Para la población de Marajó, donde la cerámica se originó y se actualiza, esta representa un fuerte elemento de identidad que, junto con la creciente visibilidad turística de la región, apunta a la posibilidad de proyectos de desarrollo sociocultural local.

Palabras Clave: Marajó, cerámica marajoara, Museu do Marajó, población

marajoara, património cultural.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11

1 O MARAJÓ E A ILHA DO MARAJÓ ..................................................................... 20

1.1 CACHOEIRA DO ARARI: DADOS GEOGRÁFICOS E CONTEXTO SOCIOPOLÍTICO .................................................................................................. 22

1.1.1 Estrutura Urbana e Diversidade Sócio-espacial ...................................... 24

1.2 TUDO É ÁGUA ................................................................................................ 31

2 A (DES) CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO MARAJOARA ................................. 34

2.1 UM ARQUIPÉLAGO DE HISTÓRIAS E PATRIMÔNIOS ................................. 36

2.1.1 A Função Estética da Cerâmica Marajoara ........................................... 37

2.1.2 Breve Etnohistória sobre os Marajoaras e sua Cerâmica ................... 40

2.1.2.1 A Pesquisa de João Barbosa Rodrigues (1842-1909) ........................... 42

2.1.3 O Caboco e o Caboclo Marajoara .......................................................... 50

3 A (RE) CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO MARAJOARA ................................... 65

3.1 A NOVA MUSEOLOGIA PARAENSE: GALLO E O MUSEU DO MARAJÓ ..... 66

3.1.1 Os Novos Jesuítas Na Amazônia ........................................................... 68

3.1.1.1 O Homem que Implodiu ....................................................................... 70

3.2 PARA QUEM TEM OLHOS NA PONTA DOS DEDOS .................................... 73

3.2.1 Visitando o Museu ................................................................................... 77

3.3 O MUSEU DO MARAJÓ E CERÂMICA MARAJORA: PATRIMÔNIOS (I) MATERIAIS DO MARAJÓ ................................................................................. 86

4 SOBRE O TURISMO NO MARAJÓ E NO MUSEU DO MARAJÓ ........................ 94

4.1 O TURISMO NO MARAJÓ E NO MUSEU DO MARAJÓ ................................ 96

4.2 MARAJÓ: PATRIMÔNIO DE UM TURISMO INSUSTENTÁVEL ................... 101

4.3 CERÂMICA, MUSEU E TURISMO: ALGUMAS PROPOSTAS ..................... 104

4.4 SOBRE O TURISMO E O TURISMO NO MARAJÓ ...................................... 110

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 112

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 118

APENDICE – AUTORIZAÇÃO DE USO DAS INFORMAÇÕES PRESTADAS ..... 126

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INTRODUÇÃO O objetivo deste estudo é analisar a cerâmica arqueológica do Marajó – a

cerâmica “marajoara” – com sua influência na vida da população deste arquipélago,

bem como suas representações enquanto “patrimônio cultural” em instâncias como

sua preservação, a organização de museus, o turismo e sua importância histórica

para a própria população do Marajó e do Brasil.

É importante destacar que não só a cerâmica marajoara representa a cultura

atual povo do Marajó. Contudo, acredito que ela seja um de seus elementos mais

representativos, já que carrega elementos, como o nome “marajoara”, pelo qual, e

com o qual, a população nativa se identifica. Este argumento considera a

similaridade que há entre os outros elementos da cultura marajoara e da cultura da

região amazônica em geral.

O foco deste trabalho se volta para o “Museu do Marajó”, instituição que

possui um acervo representativo da cultura material das populações nativas do

Marajó, assim como resquícios do legado deixado por seus ancestrais indígenas. A

estes considerarei como elemento primeiro e, portanto, principal responsável pela

atual construção cultural daquele espaço.

Um fator determinante de motivação deste estudo é a crença no efeito

abrangente da participação da população nativa e dos ceramistas no processo de

organização e preservação do museu local, para o que pode contribuir um maior

conhecimento sobre as pesquisas arqueológicas atuais. Nesse sentido, a produção

cerâmica poderia ser convertida em instrumento de educação e cidadania e, enfim, o

patrimônio cultural do Marajó seria um dos provedores da tão sonhada melhoria na

qualidade de vida de seus habitantes. Reconheço as dificuldades em atingir o

objetivo proposto, porém, minha ambição maior é propiciar oportunidade aos

possíveis leitores deste trabalho uma sensibilização sobre os assuntos aqui tratados.

Acredito que o referido patrimônio possui magnitude nacional e, por isto, deve ser

preservado por todos os brasileiros como possibilidade de conhecimento sobre uma

importante parte de sua história. Entretanto, deve ser reconhecido

fundamentalmente como um patrimônio cultural gerado por um povo, em um

território – o Marajó. A cerâmica marajoara, hoje reconhecida e internacionalmente

cobiçada, é também um elemento gerador de divisas ao estado do Pará, sendo

amplamente utilizada em sua promoção turística. Entretanto, como outros

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patrimônios culturais, é submetida ao descuido e, por isto, sofre pilhagens

constantes.

É notório que o patrimônio cultural tem sido tomado como relevante no estudo

das identidades e do senso cultural de pertencimento. Portanto, buscarei oferecer a

compreensão do patrimônio cultural marajoara como um dos tantos patrimônios

existentes nas Amazônias brasileiras, porém, destacando o domínio que ele possui

no que se refere a seu valor histórico e arqueológico. A pluralização do substantivo

“Amazônia” revela minha anuência ao julgamento de estudiosos que, como Maúes

(2011), recomendam o uso deste artifício quando se pretenda enfatizar a variedade

física, biológica, cultural, étnica e social do espaço amazônico. Em reverência ao

mesmo argumento, decidi pluralizar também o substantivo “Marajó” ao referenciar as

mesmas e múltiplas características existentes na Amazônia marajoara, ainda mais

especificamente, àquelas existentes na Ilha do Marajó/PA – espaço geográfico onde

permanece grande parte do patrimônio sobre o qual versa o presente estudo. Esta

tomada de partido deveu-se, parcialmente, aos muitos equívocos que encontrei em

produções acadêmicas sobre temas diversos, porém, referentes ao território do

Marajó, durante as pesquisas para a elaboração do presente trabalho.

Dos equívocos mais comuns, que acima aludi, descrevo a não distinção entre

o arquipélago do Marajó e a Ilha do Marajó, conflitos quanto a geografia –

agravados, talvez, pelo emprego (local) de um substantivo a lugares e ambientes

distintos (Marajó, como exemplo) – além de muitos discursos embasados em

interpretações que, a meu ver, nem sempre concordam com a semântica nativa,

mas servem para inflamar discursos de movimentos e projetos que tem como foco a

formação de identidades. Neste último, apresento a interpretação que se dá à fala

local no que tange à palavra “caboco” tendo por base o sentido do termo “caboclo”,

oficialmente registrado. Penso que tal interpretação tem sido frequentemente

equivocada, pois existe uma distinção local entre essa e a outra, de significado

nacional e com l. Na região do Marajó, a expressão “caboco”, quase nunca, está

relacionada à miscigenação, mas unicamente à origem e ao modo de vida nativo.

Isto é corroborado por outros regionalismos, derivados da palavra, para designar

comportamentos e ações típicas do caboco: caboquice, acabocado e caboquiar,

dentre outros. A palavra pode, ainda, ser tomada como sinônimo de rapaz, moleque,

sujeito etc. Lembro, contudo, que, embora não tenha encontrado essa minha

apreciação em outros relatos, a noção do termo caboco não deve ser considerado

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novo, dado que, encontrei em minhas investigações sobre o tema a proposta do

Dicionário do Folclore Brasileiro (1954), onde o autor defende que ela é tradução

das palavras caa-boc ou kari’boca, em Tupi, “o que vem da floresta” e “filho do

homem branco”, respectivamente e que o caboclo, com l, teria origem em uma grafia

equivocada da primeira. Teoria que faz sentido, tendo em conta o significado de

caboco, no Marajó.

Ainda sobre os equívocos que, suponho, se originem no desconhecimento da

dinâmica regional marajoara, afirmo que são errôneas as alusões feitas ao Marajó

através de referências à criação de búfalos, pois, embora seja fato que o contingente

deste animal no arquipélago ultrapasse em quantidade o da população humana,

esta cultura não se estende a todo o território, ou seja, não se encontra em todas as

partes da “ilha dos búfalos”.

A aproximação com a literatura referente ao meu objeto de estudo me levou a

muitas reflexões, principalmente em relação à objetividade científica, bastante

enfatizada por meus professores durante o curso. Esta questão, por algum tempo

me causou desconforto, tendo em vista minha intenção em desenvolver um tema

muito relacionado com minha própria experiência de vida e, portanto, de minha

familiaridade. No entanto, ao entrar em contato com as questões colocadas pelo

antropólogo Gilberto Velho (2008) em seu texto “Observando o familiar” percebi que

isto não era um impedimento. Assim, me baseio em sua argumentação de que há

um envolvimento inevitável entre pesquisador e objeto investigado – o que, segundo

ele, não constitui defeito ou imperfeição que inviabilize a validade científica do

estudo, pois o que nos é familiar não necessariamente nos é conhecido. Velho

ressalta, contudo, que deve ser feito um exercício de estranhamento permanente,

por parte do pesquisador, diante daquilo que lhe é íntimo e que, por isto, a

observação do familiar é um dos mais difíceis desafios da antropologia social.

Ainda em relação à base teórica da presente pesquisa, cito Da Matta (1992

p.2). O autor defende que todas as formas de conhecimento devem ser vistas como

“leituras” do mundo social “que visam aprofundar o conhecimento do homem pelo

homem; e nunca como certezas ou axiomas indiscutíveis e definitivamente

assentados”. Da Matta esclarece, ainda, que, tomada por este prisma, uma autêntica

Antropologia Social só pode ocorrer quando o pesquisador está plenamente

convencido de sua ignorância em relação à sociedade estudada. Ainda neste

raciocínio, o autor argumenta, que:

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O conhecimento do homem sobre si mesmo é variado, moral e socialmente equivalente e, por tudo isso, infinito na sua profundidade e sua grandeza. Pois o homem é tudo o que se manifesta na sociedade e na sociabilidade, seu retrato completo sendo altamente problemático e deficiente (DAMATTA, 1993, p.3).

A decisão por um objeto de minha esfera familiar deveu-se, em primeiro lugar,

à necessidade que sinto em unir minha fala à daqueles que defendem melhorias

para sociedades do arquipélago do Marajó, meu lugar de origem. Para isto, escolhi

abordar o patrimônio arqueológico do arquipélago, legado histórico-cultural que

sempre percebi como um dos elementos centrais de nossa identidade marajoara.

Levando em conta que as comunidades dos Marajós são separadas por limites

geográficos – políticos e naturais – e que estes contribuem para que seja extrema a

diversidade social dali, penso ser possível fazer uma correspondência entre a

identidade marajoara e o significado do Batin, em Geertz (1997):

Consiste no fluxo impreciso e mutante dos sentimentos subjetivos, percebido diretamente em toda sua proximidade fenomenológica, mas, pelo menos em suas raízes, considerado idêntico para todos os indivíduos cuja individualidade ele faz desaparecer (GEERTZ, 1997, p.92).

A identidade marajoara é gerada e regida pela interação homem-ambiente e

correlacionada às particularidades geográficas, históricas e naturais do Marajó.

Sendo assim, o sentimento de pertencimento ao lugar deve ser entendido como um

sentimento simbiótico e transcendental que confere às relações interpessoais e a

todo indivíduo dali a identificação e o reconhecimento mútuo, representados pelos

chamamentos “parente”, “sumano”, “maninho”, “mano” e outros nomes que encerram

o laço fraternal que une os marajoaras.

Ao dar partida à escrita deste relatório encontrei muitas dificuldades, entre

elas, a necessidade de utilizar o trabalho científico de outros autores para validar

minhas explicações sobre informações que sempre tive como corretas. Juntou-se a

isto a limitação que senti em dar fluidez ao meu relato, por impessoalizar meu

universo familiar, conforme o costume da escrita acadêmica. Acudiu-me o

argumento, dado pela orientadora deste trabalho, de que é permitido usar a primeira

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pessoa do singular para, nas palavras dela, “falar mais antropologicamente”.

Proposta que, então, adotei.

Em relação ao procedimento metodológico, optei por me aproximar dos

estudos antropológicos, com inspiração etnográfica, por entendê-los como a forma

de abordagem mais adequada às discussões pretendidas. Realizei meu trabalho

entre dezembro de 2011 e março de 2012 baseando-o em entrevistas em

profundidade semiestruturadas, já que, minha intenção era abarcar as mesmas

questões em diferentes pontos-de-vista.

No município de Cachoeira do Arari, onde está o Museu do Marajó – MdM,

foram entrevistados os principais membros da diretoria desta instituição, pessoas

diretamente envolvidas na produção de cerâmica e o prefeito da cidade. Entrevistei,

ainda, sete pessoas que compunham distintos grupos de visitantes do MdM. Estas

pessoas eram oriundas de regiões próximas e turistas nacionais, trazidos por

agentes de turismo que atuam em municípios vizinhos. Não houve dificuldade para

abordar os visitantes, já que me foi permitido o artifício de “puxar conversa” com eles

e, por vezes, acompanhá-los como guia. Realizei, também, observação participante,

já que faço parte da cena investigada. Conversei, também, em caráter informal, com

16 moradores de Cachoeira do Arari, residentes na zona rural e urbana. Estes eram,

a maioria, pessoas adultas, a partir de 50 anos e idosos. Ainda neste município,

conversei com 09 pessoas conhecidas, residentes na sede do município e em áreas

distantes desta, porém pertencentes ao mesmo.

Em Belém, entrevistei um dos representantes da Associação dos Municípios

do Arquipélago do Marajó (AMAM), instituição com sede na capital paraense e que,

então, representava treze dos municípios dos dezesseis municípios do arquipélago.

Todos os entrevistados, acima, foram informados sobre o caráter da pesquisa

e tiveram suas entrevistas gravadas, autorizando, por escrito, o uso das informações

prestadas. Quanto às conversas informais, minha pretensão era confirmar dados

existentes em publicações acadêmicas e oficiais, bem como anotar elementos

referentes ao cotidiano e às compreensões locais sobre o tema abordado. Sendo

assim, utilizei meu diário de campo para anotar alguns julgamentos e preferi não

gravar entrevistas, pois temi possíveis constrangimentos por parte dos personagens

envolvidos.

Durante minha estada em Belém, fiz diversas tentativas de contato (telefônico

e presencial) com o Museu Paraense Emílio Goeldi – MPEG, contudo, não obtive

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resposta. Contatar esta instituição me pareceu importante, já que a mesma

desenvolve pesquisas arqueológicas, no Marajó, desde o século XIX. Além disto, é

reconhecida como a maior guardiã da cerâmica arqueológica marajoara, possuindo,

segundo Amorim (2010) uma coleção de duas mil cento e sessenta e sete peças.

Vale, também, ressaltar que a gestão passada do MPEG e uma das atuais

coordenações de pesquisa é a mesma que administrou o MdM após a morte de

Giovanni Gallo, criador do nosso museu, e que este órgão tem apoiado a produção

da cerâmica marajoara (em Belém) para fins turísticos, bem como a utilização de

seus traçados em artigos de moda e design.

Enquanto permaneci em meu campo de estudo e, posteriormente, durante a

análise dos dados coletados, busquei considerar as ideias de Demo (2001) quanto à

pesquisa e às informações qualitativas. Este autor defende que os “fenômenos

qualitativos precisam ser captados qualitativamente, sem perder de vista sua

formalização implícita no método do campo científico” (p.10). Demo entende a

pesquisa como “diálogo inteligente e crítico com a realidade, tomando como

referência que o sujeito nunca dá conta da realidade e que o objeto é sempre

também um objeto-sujeito” (p.10). Assim, os dados não são apenas colhidos, mas

também contextualizados pelo pesquisador, o que lhe permite reconstruí-los,

interpretá-los e compreender a realidade inserida neles, tendo-se como parte

integrante dela e “não como instância que se lhe sobrepõe” (p.10).

Demo (2001) reflete que a pesquisa é estritamente relacionada à

aprendizagem, uma vez que a construção do conhecimento ocorre a partir da

reformulação de teorias e conhecimentos existentes. Assim, pesquisar e aprender

são eventos simultâneos, visto que o pesquisador pode atingir níveis de intensidade

específicos do fenômeno avaliado – o que será percebido, entre outros, em seu

“questionamento reconstrutivo”. O autor considera ser este o diferencial da pesquisa,

uma vez que envolve noções teóricas e práticas. Segundo Demo, o questionamento

reconstrutivo consiste na reconstrução do conhecimento e no aprender a aprender

por meio do desenvolvimento da consciência e habilidade autocrítica, para além da

crítica.

Em relação a algumas dificuldades que encontrei em minha pesquisa, tanto

em âmbito prático quanto teórico, coube fazer, aqui, uma observação que acredito

ser válida para o presente contexto de ensino/aprendizagem:

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É amplamente aceito o argumento de que, ao longo da história, a percepção

holística do objeto investigado tem sido a base evolutiva do pensamento humano e

da filosofia. Importantes pesquisas de que temos notícia têm como fator comum a

abordagem integral dos objetos investigados. Oposto disto, a fragmentação do

conhecimento gerou um alto nível de especialização, porém, impôs limites ao

avanço da ciência. As consequências desastrosas deste evento causaram

discussões na academia, a partir das quais se chegou a conceitos, como o da

interdisciplinaridade. Contraditoriamente, o ensino/aprendizagem da iniciação

cientifica segue ocorrendo a partir do desmembramento e tomada de uma única

parte do objeto de estudo inicial. Este método ordena o desenvolvimento acadêmico

do restrito ao amplo, enquanto que, pela lógica holística, abarcar o existente para,

posteriormente, esmiuçá-lo seria um exercício mais proveitoso.

Embora tenha havido um esforço para trabalhar com os limites do que permite

a atual metodologia de pesquisa e relatório acadêmico, meu trabalho tendeu a ser

interdisciplinar. Em muitos aspectos isto se deve a minha formação, porém, deve-se

também à necessidade em abordar a cerâmica marajoara a partir de seu território de

origem – o Marajó – e, por se tratar de um “patrimônio cultural”, portanto,

pertencente a uma população.

Tendo em vista as incorreções que relatei, procurei fazer uso do maior

número possível de fontes oficialmente creditadas para apresentar informações e

dados confiáveis. Aventurei-me, então, em pesquisas históricas e através das quais

encontrei uma coleção de obras raras, disponibilizadas, entre outros, na biblioteca

virtual do senado brasileiro. Procurei fundamentar nelas algumas de minhas análises

e, por vezes, transcrever alguns de seus trechos. A comparação entre a literatura

atual sobre a origem do homem na Amazônia e alguns ensaios científicos datados

do século XIX parece indicar de que muitas das teorias arqueológicas tidas como

atuais já haviam sido pensadas. E, sendo este o caso, estaríamos vivenciando o

atraso da ciência no Brasil, bem como o desperdício de recursos públicos. Somado

a outros fatores, a causa disto, poderia ser o costume brasileiro em dar preferencia à

‘produtos’ importados, que, como sabemos, têm gerado perdas históricas em todos

os âmbitos de nossa sociedade. Une-se a todo o resto, o desconhecimento que

muitos de nossos pesquisadores têm sobre o Brasil, a tal ponto de incorrerem em

equívocos naquilo que deveria estar em sua formação básica: nossa geografia.

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Atentar para estes pontos me pareceu ser, mais que uma agudeza de pesquisador,

um exercício de cidadania.

Em relação à estrutura, este trabalho está dividido em três capítulos. O

primeiro concentra o esforço de contextualização histórica e geográfica da cidade de

Cachoeira do Arari, onde está o MdM. Para isto, procurei ter em conta a dificuldade

gerada tanto pela complexidade da geografia, auxiliada pela descontinuidade

terrestre, quanto pelas nomenclaturas dos locais e interpretação da população nativa

sobre seu território. Assim, busquei estabelecer um percurso que destaca, em

sequência, o arquipélago do Marajó, a Ilha do Marajó e o município de Cachoeira do

Arari com sua sede, de mesmo nome. São abordadas, ainda, algumas das

características históricas e socioculturais, não só dos habitantes de Cachoeira, mas

de todos os outros Marajós. Isto se deve a que estes aspectos são extremamente

influenciados pelas condições climáticas e geográficas, sendo similares e, na

maioria das vezes, comuns a todo o arquipélago – afetando diretamente o turismo

dali.

O segundo capítulo aborda os bens culturais marajoaras representados pela

cerâmica e pelo nome “marajoara” em uma perspectiva de desconstrução, em

relação à população do Marajó e reconstrução em âmbito acadêmico/científico. Para

tanto, procurei fazer uma abordagem etnohistórica apoiada na pesquisa de João

Barbosa Rodrigues, cientista brasileiro que realizou importantes estudos na

Amazônia. São trazidos também relatos da população nativa, registrados em

trabalhos acadêmicos, onde estão presentes os mesmos elementos etnográficos.

Estes confirmam a perpetuação de referenciais culturais que podem servir, entre

outros, para legitimar o direito que a população do Marajó tem em relação à

propriedade dos bens culturais que formam seu patrimônio.

O terceiro capítulo apresenta uma tentativa de reconstrução e “devolução” do

patrimônio marajoara à população do Marajó, assim de reconhecimento deste pela

academia e por outros âmbitos de poder. Deste modo, surge o personagem que

primeiro se empenhou nisto: Pe. Giovanni Gallo, o criador do Museu do Marajó. A

correlação entre autor e obra tornou necessário apresentar um pouco da história do

padre e o contexto ao qual chegou ao Brasil e ao Marajó, onde viveu até sua morte.

Procuro, então, descrever o MdM, como forma de demonstrar sua importância e, do

mesmo modo que com a cerâmica, apresentar seu aspecto imaterial. Assim, procuro

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defender a necessidade de reconhecimento desses dois bens como patrimônios

culturais pertencentes, sobretudo, à população do Marajó.

O quarto e último capítulo traz um panorama do turismo no arquipélago do

Marajó, nos municípios que deveriam ser indutores do turismo na região. Assim,

procuro situar Cachoeira do Arari e o Museu do Marajó neste contexto,

apresentando propostas para que o turismo venha a ser um instrumento de

sustentabilidade da população nativa.

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1 O MARAJÓ E A ILHA DO MARAJÓ1 “O que é o Marajó? É uma coisa linda, é uma parada! A gente pode colecionar todos os termos que indicam maravilha, entusiasmo, encanto, admiração mais um pingo de mistério; depois mistura-os num liquidificador para conseguir algo que não pode ser definido, simplesmente por que é fora de série. A peculiaridade do Marajó está mesmo neste fato de ser algo diferente, único. O raro turista que chega aqui, sempre repete isso: Nunca vi uma coisa dessas!” (GALLO, 1996, p.25).

Ao morar e conhecer várias regiões do Brasil – inclusive do Pará – percebi (e

percebo) o desconhecimento das pessoas sobre o Marajó, independente de classe

social. É recorrente que muitas daquelas que conhecem um pouco o lugar

acrescentem: “Ah! Da ilha dos búfalos!” e, logo, encontrem um bom tema de

conversa. No inicio não dava importância a isto, mas, com o tempo, me encorajei a

explicar algumas questões – inclusive que o Marajó é um arquipélago.

Conforme já aludi, a expressão “ilha do Marajó” é utilizada para fazer menção

tanto ao arquipélago do Marajó quanto à ilha de mesmo nome que pertence a ele.

Situado no estado do Pará, o arquipélago do Marajó é composto por,

aproximadamente, 3.000 ilhas e ilhotas sendo a ilha do Marajó a principal (Figura 1).

Por sua extensão, 104.000 km², e por sua posição geográfica privilegiada, é

considerado o maior arquipélago fluviomarítimo do mundo. Sua população é de

cerca de 500.000 habitantes (IBGE, 2010) e os 16 municípios que fazem parte deste

arquipélago formam uma mesorregião geográfica que, por sua vez, é composta por

três microrregiões: Arari, Furo de Breves e Portel. O clima predominante é o

equatorial quente e úmido com pequenas variações mensais e anuais (25º a 29º). A

umidade relativa do ar é constante durante todo o ano e apresenta valores sempre

maiores que 80%.

Quanto à ilha do Marajó, está localizada no delta do rio Amazonas e possui

uma população de 350.000 habitantes (IBGE, 2010), aproximadamente. É formada

por 12 municípios nucleares e possui uma extensão territorial de 49. 606 Km².

Limita-se ao Norte com o oceano Atlântico, ao Sul com o rio Pará, a Oeste com o rio

Amazonas e a Leste com a baía do Marajó. A foz do rio Camará, principal porto de

entrada da ilha, dista cerca de 70 km de Belém, em linha reta. O trajeto fluvial até ela

1 As fontes dos dados utilizados na construção deste texto estão devidamente referenciadas ao final

deste trabalho.

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se dá em cerca de três horas e o aéreo, em média, vinte minutos. À época da

colonização, a Ilha Grande de Joanes, antigo nome da ilha, foi constituída capitania

hereditária – para os donatários da qual foi criado o título de Barão de Joanes,

sendo Antônio de Souza de Macedo o primeiro a recebê-lo, em 1665.

A distinção entre os Marajós (arquipélago e ilha) é de meu campo familiar,

contudo, encontrei referência histórica que a corrobora na obra intitulada “Ensaio

Chorográphico Sobre a Província do Pará”, onde autor descreve a, então, Comarca

de Marajó e explica o equívoco, que já desde a época existia.

Esta comarca compreende toda a Ilha Grande de Joannes; a qual nos tempos mais remotos chamava-se geralmente Ilha dos Nheengaibas por serem de línguas diferentes e dificultosas as muitas cabildas gentílicas que nela tinham habitáculo. Esta denominação caiu logo em desuso, e passou para a de Ilha Grande de Joannes, nome apelativo de uma dessas cabildas, e tem permanecido simultaneamente com o nome de Marajó, o qual sendo privativo da parte austral da ilha o vulgo o faz transcendente a toda ela sempre que a anuncia. (BAENA, 1833

2).

A distinção que descrevi acima pode parecer irrelevante, já que nós,

marajoaras, sempre nos referimos ao Marajó como um todo: “o Marajó”, “Ilha do

Marajó”, “aqui no Marajó”, “Lá no Marajó” etc., ficando a compreensão do espaço a

que se refere à fala inserida no cerne da conversa. Porém, me parece ser uma

informação importante para aqueles que desenvolvem pesquisas acadêmicas sobre

a região. Quanto à escrita deste texto, tem sido um incômodo ter que escrever

“arquipélago” sempre que me refiro ao mesmo e, por isso, tenho pesquisado sobre o

uso correto entre: “de Marajó” ou “do Marajó”, a fim de fazer mais facilmente, na

escrita, a distinção. Contudo, como até agora não encontrei argumento convincente,

para simplificar o tema, adotarei meu uso nativo. Sendo assim, proponho que o leitor

assim o compreenda e, caso necessite, também use meu raciocínio: ao escrever

somente “Marajó”, deverá ser entendido como “originário do arquipélago Marajó” ou

que estou me referindo ao arquipélago como um todo. Quando for necessário

restringir o espaço à ilha, escreverei o designativo “ilha do Marajó”.

Considerando a complexidade geográfica, mencionada na introdução deste

relato, é importante destacar que ela contribui, também, para a subdivisão do Marajó

2 Esta obra data de 1833, contudo, a edição a que tivemos acesso foi publicada, em 2004, pelo

Senado Federal, por seu “valor histórico e cultural e de importância relevante para a compreensão da história política, econômica e social do Brasil e reflexão sobre os destinos do país”.

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em duas paisagens distintas: Marajó das matas – ou das florestas – e Marajó dos

campos. Neste, situa-se o espaço central do presente estudo – a microrregião do

Arari. Mais especificamente, a cidade de Cachoeira do Arari, onde está o Museu do

Marajó.

Figura 1 Localização do Arquipélago e Ilha do Marajó. Fonte: EMATER/PA, 2012 (Adaptado). 1.1 CACHOEIRA DO ARARI: DADOS GEOGRÁFICOS E CONTEXTO

SOCIOPOLÍTICO3

Situado na Ilha do Marajó, o município de Cachoeira do Arari é composto por

diversas fazendas e vilas que, em geral, margeiam seus rios e lagos navegáveis.

Sua extensão territorial tem início na Foz do rio Camará e se estende pelos 118 km

do principal rio da região – o rio Arari – ocupando boa parte do lago de mesmo nome

e nascente deste. A maior parte de seus 3.101,743 Km² está localizada no chamado

Marajó dos Campos e sua população residente é da ordem de 20.443 (IBGE, 2010).

Assim como no contexto geral da Amazônia brasileira, a maioria desta população é

mestiça e mais da metade reside em área rural.

3 Os dados populacionais e econômicos utilizados na construção deste texto pertencem ao senso

IBGE (2010), já a descrição da cidade e das populações existentes no município, bem como as informações de como chegar são aspectos observados em campo.

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Tomando-se a capital paraense como ponto de partida, a sede municipal está

à margem direita do rio Arari. Pode-se chegar até ela através da conexão Belém/Foz

do rio Camará/Cachoeira ou em barco, direto da capital. A primeira opção é

possível duas vezes ao dia em navio que parte da Estação das Docas, no centro da

cidade (às 7h 30min e 13h 30min) ou por ferry boat a partir do bairro de Icoaraci. Do

ponto de chegada destes – a Foz do rio Camará – é necessário utilizar outro meio

de transporte, geralmente ônibus ou van.

O local de partida da segunda opção é o porto Vasconcelos, no bairro Cidade

Velha, que, entretanto, ocorre somente duas vezes por semana (segundas e

quintas-feiras). As viagens duram, respectivamente, cerca de quatro e seis horas.

Do ponto de vista estrutural, a cidade é carente em seus elementos básicos.

Esta situação é agravada pelo rigor do inverno, quando o trajeto a partir da foz do rio

Camará, se torna difícil e, às vezes, impossível.

Em âmbito municipal, o IBGE (2010) aponta como principais atividades

econômicas a pecuária bovina e bubalina e a pesca, respectivamente. Uma pequena

produção agrícola também é classificada como fator relevante, sendo a produção de

mandioca e abacaxi as mais expressivas. O setor de serviços encontra-se em fase

embrionária.

Para fazer referência às fazendas e vilas do município, a população nativa

emprega seus respectivos nomes (Tuiuiú, Caracará, Retiro-Grande etc.) abreviando

para “Cachoeira” a denominação municipal e restringindo, a mesma, à sua sede. Isto

ocorre também em relação às suas adjacências dos outros municípios4.

O processo de formação do município de Cachoeira deu-se a partir da

incursão das ordens religiosas à região do Arari. Madaleno (2011) registra a

presença dessas missões – no arquipélago de Marajó – desde o início do século

XVII, destacando as ordens de Nossa Senhora das Mercês e Companhia de Jesus.

A colonização do território marajoara e os engenhos e fazendas de gado ali

existentes, provavelmente tiveram a mesma origem.

Baena (1833) relata que a então Freguesia de Cachoeira, fora fundada pelo

sesmeiro e Capitão-Mor André Fernandes Gavinho, em 1747, sendo seu nome uma

alusão à cachoeira que havia nos arredores de onde hoje se encontra a sede

municipal. Da categoria de Freguesia até chegar a atual formação político-

4 Esta informação parece ser importante, sobretudo, aos trabalhos de inspiração etnográfica, já que

pode prejudicar as interpretações das falas nativas.

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administrativa, o município de Cachoeira passou por um sem-número de categorias,

divisões e anexações territoriais, conforme descrito em seu histórico municipal, no

IBGE (2012). A obra de Baena ilustra, ainda, o início da mistura cultural e da

esparsa ocupação do município de Cachoeira, característica da qual trato mais

adiante: “Formam o número dos moradores 130 brancos, 2.802 indianos e mestiços

e 518 escravos; os habitáculos desta gente estão dispersos por diferentes lugares

do distrito paroquial.” (1833 p. 276).

1.1.1 Estrutura Urbana e Diversidade Sócio-espacial

Só vivendo aqui, em contato com a realidade do dia-a-dia, é possível descobrir o que de fato é novo e exclusivo. Não somente a natureza (bichos e flores que se encontram em toda parte), é o relacionamento, uma dimensão nova, uma espécie de trama de conexões misteriosas que associam homens e coisas, formando um mundo à parte, fora dos padrões, das categorias gastas e habituais. (GALLO, 1996, p.25).

A rua principal da sede de Cachoeira do Arari (Figura 2) margeia um trecho

do rio Arari, acompanhando sua sinuosidade. A organização do espaço urbano

corresponde à racionalidade estrutural, proposta por Andrade (2002) como

característica do urbanismo colonial brasileiro. Assim, o traçado das ruas possui

relativa disposição em xadrez e seu conjunto arquitetônico central é formado pela

igreja matriz, o convento e a praça que os abriga. Nesta mesma praça estão

localizados o único hospital municipal e também seu único Fórum.

Figura 2 Cachoeira do Arari – Localização, área e planta. Fonte: IBGE, 2010 e Plano Diretor Municipal (adaptado).

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O centro oficial da cidade de Cachoeira não é o mesmo que a população

utiliza para realizar suas atividades comerciais e de lazer. A exceção a isto ocorre

durante duas das principais festividades do município: o festejo de São Sebastião de

Cachoeira e o Círio de Nossa Senhora da Conceição, padroeira municipal. Os dois

eventos são importantes sob os pontos de vista cultural, religioso e econômico, já

que atraem uma grande demanda de visitantes5, sobretudo regionais. Entretanto, a

maior frequência de visitas ocorre durante a festa de São Sebastião, uma vez que o

evento constitui uma coexistência entre o sagrado e o profano perpetrado nos

moldes do Entrudo6, descrito em Germano (1999), congregando atividades

comemorativas do costume regional, como a corrida de cavalo e a luta marajoara. A

importância deste evento vem ganhado notoriedade em estudos referentes à

identificação das potencialidades turísticas do município em questão e já foi

reconhecido como patrimônio cultural do Pará. Contudo, a festa há muito tempo

também gera conflitos entre a população cachoeirense e a igreja católica, que tenta

modificar e até mesmo eliminar o festejo. Quando estive em trabalho de campo

presenciei a insatisfação de alguns moradores com o padre do local, que, em seu

sermão, teria feito analogia entre os romeiros-foliões e porcos.

O espaço público normalmente utilizado para a maioria das atividades da

população é o espaço frontal à direita, a partir da Igreja Matriz (Figura 3) e até o

mercado municipal, localmente chamado de “rua da frente”. Neste perímetro está a

Praça da Independência e, ao seu redor, também a Prefeitura e o trapiche municipal,

no qual ancoram as embarcações regionais de maior porte. Por abrigar grande parte

dos estabelecimentos comerciais da cidade, a “rua da frente” é também o principal

ponto de lazer noturno e de finais de tarde, já que a maioria das possibilidades de

lazer, tanto para a população quanto para os visitantes, é desenvolvida em ambiente

natural e durante o dia. Ainda na Praça da Independência, há uma das construções

mais “curiosas” da cidade: o “Arco do Triunfo”7 (Figura 3) marajoara, marco do

sesquicentenário do município e, certamente, da presença europeia na região.

Segundo informações contidas no plano diretor municipal, a edificação data de 1983

(PLANO DIRETOR, 2009).

5 A referida demanda é amplamente divulgada em meios virtuais oficiais e informativos, regionais e

estaduais. 6 Percepção e comparação minhas, pois não encontrei tal analogia em outros relatos.

7 Denominação pessoal, já que nunca percebi a referência entre a construção e o Arco do Triunfo

parisiense, por parte da população local.

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Figura 3 Igreja da Matriz e Praça da Independência. Fonte: Márcio Gemaque.

Entendo que seja importante ressaltar que, assim como nos outros Marajós,

não é possível homogeneizar os aspectos socioeconômicos da população, dado que

muitos de seus moradores vivem em regiões urbanizadas e dispõem dos recursos

ofertados pelo avanço tecnológico. É possível, entretanto fazer uma descrição, ainda

que superficial, de algumas das características das habitações comuns a maioria

das existentes, tanto na região urbana quanto naquela considerada rural do

município de Cachoeira. Fundamento a importância da descrição que farei no fato

de que, sendo o município situado em região amazônica, seu espaço social foi – e é

– influenciado por ocorrências históricas e naturais que contribuem igualitariamente

para a existência de três populações nativas: a urbana (da sede municipal) e

aquelas classificadas como rurais, representadas pelo lendário vaqueiro marajoara

de gado e pelos chamados ribeirinhos. Penso também que a descontinuidade

terrestre, característica do território marajoara, ao mesmo tempo em que torna sua

geografia complexa, também pode auxiliar o entendimento da diversidade

populacional dali.

A população da sede é formada pela mescla dos grupos sociais existentes no

município, que, em geral, ocupam núcleos urbanos distintos. Outra das diferenças

mais perceptíveis entre estes e os residentes na zona rural diz respeito às atividades

exercidas, uma vez que a empregabilidade concerne, sobretudo, ao comércio e ao

setor público. Entretanto, são intensas também as tarefas de pescadores,

carpinteiros, e outros trabalhadores responsáveis pela manutenção da cidade. Entre

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os núcleos de maior destaque está o bairro do Choque, onde a pesca é a função

majoritária dos residentes. O Choque está no ponto mais baixo da cidade, portanto,

mais submetido às enchentes e com mais construções adaptadas ao período

chuvoso. Muitos dos moradores da área rural possuem, também, residências na

sede – para onde se deslocam durante as festividades, períodos de recebimento de

soldos ou mesmo para tratamentos médicos. O resultado desta coexistência é

perceptível na mescla de estilos formados pelas construções residenciais, pois

apesar das usuais substituições de madeira por alvenaria, especialmente, nas áreas

que não sofrem inundação no período chuvoso, a adaptação às demandas e às

estéticas regionais é marcante.

Quanto ao “vaqueiro marajoara”, trata-se de parte da população

cachoeirense, majoritariamente negra, residente nas fazendas de gado formada,

sobretudo, por descendentes dos quilombos formados na região. O vaqueiro

geralmente é habilidoso e dotado de traços culturais que, de tão marcantes,

terminaram por arraiga-lo como elemento do folclore regional. É, ainda, o principal

responsável pela extensa pecuária bubalina (marca da “ilha de Marajó”) da qual

raramente é proprietário. A sustentabilidade econômica desses trabalhadores se dá

por meio de pequenas áreas a eles destinadas, pelos proprietários das fazendas,

para o cultivo agrícola e pecuário, normalmente, pelo sistema de meia8 e pelo

escambo feito com comerciantes de animais da região, outros viajantes e com a

população ribeirinha, nas quais são trocados produtos de fabricação e/ou cultivo

próprio (leite, queijo, carne salgada, galinhas, porcos etc.) por farinha ou produtos

trazidos da cidade. O pagamento recebido dos patrões, normalmente, tem sua maior

parte poupada, pois lhes é permitido explorar a produção de leite de gado e lhes são

designados alguns animais para alimento. Atualmente, a maioria dos moradores das

fazendas é do sexo masculino, fato que me foi informalmente explicado por um dos

moradores como decorrente da proibição dos fazendeiros com relação à presença

de crianças nas propriedades, devido às leis de proteção às mesmas. Por isso,

crianças e adolescentes vão estudar em Cachoeira, acompanhados de suas mães

ou enviados à casa de parentes e conhecidos. Em se tratando de meninas há,

ainda, a possibilidade de residência no convento da cidade.

8 A “meia” é um acordo no qual o proprietário da fazenda “cede” sua pastagem para o vaqueiro e, em

troca, e recebe uma parte da produção, que pode variar entre uma porcentagem e a metade do cultivo.

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São muito extensas as áreas ocupadas pelas fazendas de gado na região do

rio Arari (Figura 4), porém, a sede das mesmas, frequentemente, está às margens

deste. As construções localizadas na “beira do rio” são palafitas caneludas9 e

interligadas por pontes de madeira que as abrigam das enchentes nos períodos

chuvosos. Essas fazendas possuem traços que caracterizam tanto a “casa grande”,

quanto a capela e as casas dos vaqueiros, como edificações de estrutura escravista

do período colonial. Unem-se a tais traços, a posição estratégica da “casa grande” e

a intitulação dos responsáveis pela supervisão das propriedades e aos seus donos –

“feitores” e “brancos”, respectivamente.

O desmazelo aparente das construções das fazendas oculta relíquias do

período pré-histórico e colonial da região do Arari, entre outros, coleções de

cerâmica marajoara, altares jesuíticos nas capelas, porcelanas antigas e, sobretudo,

resquícios do passado brasileiro que possui grande potencial de pesquisa para

cientistas sociais e historiadores.

Durante minha pesquisa de campo conversei com empregados das fazendas

que visitei e obtive a informação de que são comuns as visitações turísticas de

brasileiros e, algumas vezes, também de estrangeiros, levados pelos proprietários

das fazendas. Esta informação pode ser confirmada em propagandas turísticas e

relatos de viagens em meio virtual e, ainda, por notícias de movimentos que tentam

organizar o turismo rural no arquipélago – incentivados por organismos como o

Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE/PA.

Figura 4 Fazenda às margens do rio Arari (Tuiuiú). Fonte: Acervo próprio.

9 Denominação regional para as casas de madeira suspensas por pilares com altura que varia de

acordo com a necessidade. Algumas, durante o verão, parecem casas de dois andares cuja construção se iniciou pelo segundo piso.

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O terceiro grupo representante da população cachoeirense – o ribeirinho – vive

em casas relativamente isoladas ou vilas, que podem tornar-se inalcançáveis

durante o inverno. Assim como o vaqueiro, o ribeirinho pratica um pequeno cultivo

agrícola e pecuário, complementado pelo extrativismo vegetal e animal, embora a

caça não seja uma prática corriqueira, sendo mais comum recorrer a ela durante os

períodos em que não há potencialidade para pesca.

As residências, comumente palafitas, estão localizadas em áreas de várzeas

e quase sempre circundadas por açaizais, porém, o território familiar não se

restringe a área das casas, já que o cultivo de elementos básicos, como a mandioca,

é feito mais acima, em terra firme. O caráter individual de alguns espaços, quase

sempre, se associa ao aspecto comunitário de outros e, quando há demanda pelo

uso comum, não há separação entre estes e aqueles. Os recursos para a aquisição

de outros produtos são gerados pela coleta e venda do açaí, de outros frutos nativos

e, muitas vezes, do pescado. O fabrico artesanal de artigos utilitários, de adorno e

de lazer designados ao consumo turístico também serve para complementar a

renda.

As características espaciais do Marajó contribuem para que haja uma maior

coesão social no arquipélago, já que dispor de recursos financeiros não serve para

suprir as necessidades geradas pelos elementos que regem a vida na região. Sendo

assim, torna-se mais interessante o investimento em relações interpessoais que no

ganho financeiro, por exemplo. “Então o Marajó é o último recanto do Éden, um

recanto esquecido onde a felicidade ficou incontaminada, junto com a lembrança das

pré-históricas palafitas?” (GALLO, 1997, p. 28).

O Marajó, felizmente ou não, eu não sei, está entrando numa nova fase. Nenhum homem é uma ilha e nenhuma ilha pode ficar isolada do resto do mundo. O equilíbrio dos seus valores não é mais estável; só um baquezinho e aquele castelo encantado, onde estava hospedado um outro homem, um outro tipo de vida, pode desmoronar. (GALLO, 1997, p. 28).

Para afastar uma possível visão romântica, minha e do leitor, é importante

ressaltar que a população do Marajó possui questões internas de difícil resolução. O

estimulo à convivência marital entre meninas e homens adultos “[...] não está nas

estatísticas, mas faz parte do relato frequente dos moradores” (NOBREGA, 2011).

Esta prática é comum em algumas regiões do Marajó – entre elas, a do Arari – fato

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que, contudo, nunca ocorreu sem conhecimento das autoridades. A exploração

sexual de crianças e adolescentes é outra dessas ocorrências nocivas, “mas o

problema está ganhando visibilidade, e espaço nas discussões locais” (NOBREGA,

2011). Estes problemas muito servem ao sensacionalismo midiático ou à justificação

da permanência de ONGs. que, se abrigam no discurso de estarem defendendo

interesses sociais e, muitas vezes, que têm como objetivo central a exploração de

conhecimentos e bens da população.

Outro problema social que se apresenta é que os conflitos agrários entre os

proprietários das fazendas e a população local são históricos no Marajó. Os mais

comuns, dentre estes, são as disputas territoriais e os embates pelo uso dos

recursos naturais. Ambos ocorrem tanto por via judicial quanto através da violência

dos fazendeiros que, muitas vezes, justificam tais ações no roubo de gado que

ocorre na região. Sobre isto Gallo (1997, p. 57) denunciou: “o roubo organizado não

é manifestação de pobreza, é uma típica forma de exploração da pobreza, realizada

por quem pobre não é”.

O absenteísmo é uma característica dos fazendeiros da região do Arari e,

neste, é comum que recrutem administradores e vigias – os chamados “pistoleiros” –

em outras regiões e estados. Os confrontos causados por invasões de terras são

agravados pelo julgamento de propriedade dos fazendeiros em relação aos recursos

naturais, conforme descrito em denúncia do Ministério Público Federal do Pará,

sobre um dos casos de conflito mais antigos da região do Arari. Tal pretexto, na

verdade, serve apenas para justificar o “direito” à exploração do pescado abundante

nos lagos, especialmente no período imediatamente posterior às chuvas.

Uma das queixas mil vezes repetidas, é que até a legislação brasileira está defasada e omissa. O nosso ambiente marajoara é completamente diferente da situação do Brasil em geral. Aqui é difícil, senão impossível aplicar regras comuns, porque ninguém sabe dizer onde termina o rio e começa a terra firme. A água está sempre em movimento. Uma área que no verão é só terroada, no inverno vira uma imensa lagoa. Então é propriedade da Marinha ou da fazenda? Quem será o dono de um lago no meio de uma propriedade ou de um açude cavado com os tratores do dono do terreno e que, a cada inverno, se enche de peixes? Daí a eterna disputa entre as duas partes interessadas, os pescadores e os fazendeiros, todos com a certeza de serem donos da verdade. (GALLO, 1996, p.181).

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1.2 TUDO É ÁGUA10 As estações do ano, aqui, tem um nome definido: água, lama e seca. Em última análise é sempre a água que, com sua presença ou ausência, denomina e caracteriza. (GALLO, 1997, p. 53).

Apenas inverno e verão são estações bem marcadas na região amazônica,

não coincidindo, porém, com as estações oficiais, pois o período de chuvas é

denominado inverno e o de seca, ou verão. Este aspecto é comum, portanto, ao

arquipélago do Marajó, onde, por sua influência sobre as condições de vida dos

habitantes, são denominados inverno e verão marajoaras. O inverno dura os seis

primeiros meses do ano e possui índices pluviométricos entre 2000 e 4000 mm,

excesso que provoca a interligação dos canais hidrográficos e alagam os campos do

Marajó. Na região do rio Arari, onde está o município de Cachoeira, esta ocorrência

é agravada pela impermeabilidade específica de seu solo argiloso e tem como

consequência o fenômeno que traz abundância e conflito à região. Imediatamente à

interrupção das chuvas, as águas baixam em ritmo acelerado impedindo o escape

de toneladas de peixes e outros animais aquáticos, que permanecem presos em

lagos perenes e/ou igarapés, tornando-se presas fáceis. Schaan (2005) descreve

este fenômeno e relaciona a fartura de alimentos, trazida por ele, ao povoamento

indígena pré-colombiano no arquipélago marajoara. Em hipótese complementar a

esta, a autora pondera que essas populações teriam começado a manejar os

recursos hídricos através da construção de barragens, podendo, assim preservar

alimento durante o verão. Com a terra retirada das escavações teriam erguido

barreiras artificiais onde construíram suas casas e sepultaram seus mortos,

localmente chamados de “tesos”.

A chuva na região do Arari é um fenômeno cuja influência perpassa diversos

períodos históricos e se perpetua com tal importância que é a partir dela que se

estuda, como vimos, o contexto arqueológico da região, bem como sua formação

social e sua contemporaneidade. É a água quem determina a relação entre os

habitantes do Marajó e o ambiente ou, conforme Gallo enfatizou, é ela quem a dita:

10

Frase atribuída a Tales de Mileto.

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Quem manda aqui não é o presidente da república, não é o governador, não é o prefeito. Aqui domina uma ditadura absoluta e incontestável, não baseada na Constituição das Forças Armadas. É um dado de fato, quem manda é a água. É a água quem dá o sustento e cria as dificuldades, consola e leva ao desespero, condiciona a saúde, o trabalho, a vida da gente. Sem levantar a voz, sem violência, mas implacável e total (GALLO, 1997, p. 53).

A presença concreta e semântica da água e sua conexão com vida no Marajó

foram retratadas em obras literárias como “Chove nos Campos de Cachoeira” e

“Marajó” de Dalcídio Jurandir (1909 – 1979). Dalcídio foi um romancista marajoara

que viveu e foi reconhecido como tal à mesma época que seus amigos e escritores

Jorge Amado, Drummond de Andrade e outros de igual mérito. Foi, também, um

dos primeiros autores a arrazoar a exploração dos recursos naturais e simbólicos do

povo marajoara.

Dalcídio soube, de maneira muito acurada, retratar as características

psicológicas dos marajoaras e seus sentimentos, quase sempre, submersos em

águas naturais e sobrenaturais. Penso que essa presença – vital e mística –

determina o recolhimento interior e (inter) coletivo que, por sua vez, produz o silêncio

individual e contemplativo, gerador do conhecimento sobre o meio natural e social e

de uma engenhosidade peculiar no Marajó. É, também, nas águas que habitam

alguns dos Caruanas – energias naturais responsáveis pelo equilíbrio ambiental e

pela magia das coisas, fenômenos e lugares dali, bem como a função mágica de

rituais como a “pajelança cabocla amazônica” (feita no Marajó)11 e a pajelança

marajoara12. Os Caruanas dão aos marajoaras uma noção inversa sobre o caminho

evolutivo (ou involutivo) do espírito, já que, ao evoluir, “os Caruanas descem por

uma Escadinha de Coral encantada, onde gradativamente são submetidos a uma

transformação decrescente” (Caruanas, 2012) que, em nível máximo, transforma o

espírito em água – o elemento primeiro, fundamento da vida nos Marajós.

A estação seca ou verão marajoara compreende o período entre julho e

dezembro – assinalado pela diminuição das chuvas e seca de lagos e rios

intermitentes. A paisagem natural do Marajó se modifica completamente de acordo

11

Para Maués (2002) uma forma de pajelança distinta da indígena e próxima do xamanismo, contudo, sem identidade própria. 12

Ritual onde os únicos seres recorridos são os Encantados ou Caruanas, que incorporam o curandeiro(a) para receitar as ervas a serem consumidas em firmas de chãs, garrafadas (infusões de ervas mistas), banhos etc. para a cura de males físicos e espirituais.

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com as estações climáticas (seca e chuvosa) – sendo o período de maior fluxo de

visitantes ao arquipélago.

As peculiaridades geográficas, históricas e culturais do Marajó dificultam a

caracterização do local. Contudo, entendo que é o desconhecimento sobre a região

que mais causa interferência na correlação destes elementos para a compreensão

da atual formação das sociedades dali. A partir deste ponto de vista, procurei, neste

capítulo, sintetizar algumas das particularidades regionais e enfatizar a influência,

por vezes coercitiva, que a água possui na vida dos habitantes dos Marajó(Figura 5).

Figura 5 Paisagens marajoaras. Fontes: Paraturismo (imagem à esquerda) e acervo próprio.

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2 A (DES) CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO MARAJOARA

O banqueiro Edemar Cid Ferreira vai perder a coleção de 765 peças arqueológicas que mantém no Instituto Cultural Banco Santos. O Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) decidiu cassar a licença que concedeu ao instituto em 4 de dezembro de 2002, nos últimos dias do governo de Fernando Henrique Cardoso. É o único acervo do gênero no país sob a guarda de instituição privada. [...] A legalização da coleção permitiu também, de acordo com Neves, a criação de um corpo de especialistas em cerâmica marajoara no país. Nem o museu Goeldi, de Belém, nem o Museu Nacional, no Rio, têm uma equipe de seis restauradores, como o instituto do banqueiro mantinha. [...] "O Edemar deu um tratamento fantástico para a coleção que comprou dos fazendeiros. É um trabalho único no país em restauro. Nem o Goeldi faz isso", elogia Denise [Schaan]. A contraface, diz ela, é que o comércio estimula o saque e a instituição que o banqueiro criou não estava preocupada com pesquisa --assemelha-se mais a um gabinete de curiosidades. [...] Há outras particularidades na coleção. As peças de cerâmica marajoara, que representam 80% da coleção, formam um acervo único no país, segundo Denise Schaan: "A coleção tem uma importância fantástica porque foi formada por peças de uma só região da Ilha de Marajó" (Folha de São Paulo, fev. 2005. On-line).

Como pode ser visto no texto acima, a cerâmica marajoara é conhecida e

valorizada, servindo ao colecionismo de personagens conhecidos, ao contrário do

Marajó e sua população. Esta reportagem também serve para levantarmos diversas

questões, e entre elas, a de como é possível que 750 peças de cerâmica marajoara

tenham chegado às mãos de Edemar Cid? Teria o banqueiro visitado o Arari? Por

que uma região com tão relevante patrimônio é tão pobre?

A concepção de patrimônio aplicada ao campo cultural aparece, quase

sempre, em expressões desprovidas de reflexão sobre seu significado - ou seja, da

relação entre o sujeito e sua cultura. Nesse sentido, merece destaque a “educação

patrimonial” e seus contrapontos, uma vez que, pela ótica da ‘autenticidade’13, não

seria possível educar alguém quanto ao valor do que lhe é precioso. Sendo assim, o

objetivo deste capítulo é discutir os contrastes entre a concepção deste patrimônio a

partir de concepções acadêmico/científicas e o relacionamento que seus

“detentores” mantêm com os bens que expressam sua criação humana, social e

simbólica – seu patrimônio, aqui, o patrimônio histórico-cultural marajoara.

13

Benjamin (1987 p. 188) considera que “a autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo o que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até o seu testemunho histórico”.

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O conceito de patrimônio cultural difundido pela Organização das Nações

Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, apud IPHAN, 2012), o

divide em imaterial e material. O patrimônio imaterial é composto pelas “práticas,

representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos,

objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades,

os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de

seu patrimônio cultural”. Já o patrimônio material é subdividido em bens móveis e

imóveis. Dos bens imóveis fazem parte os núcleos urbanos, sítios arqueológicos e

paisagísticos e bens individuais, enquanto que os bens móveis possuem como

elementos integrantes as coleções arqueológicas, acervos museológicos,

documentais, bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos e

cinematográficos.

Trazendo o conceito de patrimônio cultural à esfera nacional, encontramos no

artigo 216, da Constituição de 1988, que “constituem patrimônio cultural brasileiro os

bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,

portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos

formadores da sociedade brasileira” (BRASIL, 1988, p. 85). Entretanto, no decreto-

lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que organiza a proteção do patrimônio

histórico e artístico nacional, consta que para que os bens acima referidos sejam

considerados resguardados pelo IPHAN, faz-se necessário que estejam

devidamente registrados em um dos quatro livros do tombo. A saber: arqueológico,

paisagístico e etnográfico; histórico; belas artes; e das artes aplicadas.

A institucionalização do patrimônio cultural, descrita nas referidas leis, remete-

nos ao entendimento de que, muito embora seja feito um recorte do termo

patrimônio ao campo cultural, o sentido coletivo agregado à palavra como requisito à

sua preservação, requer que sejam interpretadas questões sobre o ‘para quem’ e ‘o

que’ pode ser categorizado como um patrimônio cultural. Rodrigues (1994), afirma

que a concepção de patrimônio enquanto representação coletiva resultou do

momento histórico em que se buscava sustentar a construção dos Estados-nação.

Em outro trabalho (1996) a mesma autora argumenta que, embora esta noção tenha

se deslocado do nível de nação ao de sociedade, ela permanece como um traço

marcante de práticas preservacionistas e “disfarce” das diferenças sociais e

culturais.

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As discussões sobre patrimônio, tomadas a partir o ponto de vista nativo,

alcançam um nível mais abstrato. Gonçalves (2002, p.24) argumenta que “ainda que

possamos usar a categoria patrimônio em contextos muito diversos, é necessário

adotar certas precauções. É preciso contrastar cuidadosamente as concepções do

observador e as concepções nativas”. Porém, as políticas e discussões sobre o

tema evidenciam que grande parte do que se considera como ponto de vista local é,

na verdade, um constructo de reinterpretações. Embora seja claro que qualquer

tentativa de apreensão das visões nativas sempre serão interpretações das

interpretações nativas (Gertz, 1978) a questão é recolocada como uma orientação à

busca em direção aos diversos significados que podem adquirir os patrimônios,

principalmente para a população local.

2.1 UM ARQUIPÉLAGO DE HISTÓRIAS E PATRIMÔNIOS

Penso que ‘arquipélago de histórias e patrimônios’ seja uma metáfora

adequada para aludir à uma realidade marajoara constituída por instâncias que

possuem formas diferenciadas de raciocínio lógico e/ou reflexão.

As pesquisas sobre o patrimônio arqueológico marajoara se dividem,

principalmente, em duas abordagens: a estética e a arqueológica. Embora as

discussões desses estudos sejam feitas (em geral) a partir do ponto de vista

acadêmico/científico, a fala nativa, utilizada como base para defender os

argumentos tecidos, traz implicitamente, a percepção local, que entendo como

importantes e, por isso, trouxe às considerações deste trabalho. Assim, optei por me

aproximar sequencialmente do significado que a cerâmica marajoara possui para a

estética, a arqueologia e para o nativo. Entretanto, procurei deter-me na concepção

deste último elemento, pois, não obstante esteja em vias de extinção devido ao

processo de “desenvolvimento” que tem se dado no local, constitui o eixo da

problemática aqui exposta.

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2.1.1 A Função Estética da Cerâmica Marajoara

Não é possível precisar o momento em que os traçados da arte marajoara

capturaram a atenção de seus admiradores. Porém, as considerações que aqui

apresento parecem evidenciar de que o fenômeno é tão antigo quanto as

investigações sobre a origem humana na Amazônia.

O trabalho de Couto de Magalhães (1874) dá conta do colecionismo de

cerâmica marajoara que existia na época de sua pesquisa. O mesmo relatório

parece indicar, ainda, a admiração de seu autor – embora velada – por esses

objetos, quando o cientista escreve:

Eu tenho aqui uma cabeça de uma estatueta de argilla, encontrada pelo Dr. Tocantins dentro de uma ygaçaba

14 dos antigos aterros de Marajó, onde o

primitivo estatuario, fazendo uma obra tosca e grosseira, reproduziu contudo com admiravel fidelidade os caracteres da raça [...] vê-se o plano pyramidal da estructura da cabeça, a obliquidade das sobrancelhas, a horisontalidade dos olhos, o recto do angulo do maxillar inferior, e até a bracocephalia (COUTO DE MAGALHÃES, 1874, p. 52 e 92).

Já no século XX, o movimento artístico moderno – nacional e internacional –

presenciou a admiração pela cerâmica do Marajó. Roiter (2010) fala da influência

marajoara no Art Déco brasileiro mostrando que, desde 1901, seus traços aparecem

na produção de Eliseu Visconti, quando o pintor chega ao Brasil, recém-formado em

artes, na França. Porém, o autor afirma que, oficialmente, o marajoara chegou à arte

moderna através de um manifesto que exortava os brasileiros ao abandono dos

parâmetros europeus e à busca de suas raízes – “O Nacionalismo na Arte” (1914).

Rotier dá ênfase à nacionalidade europeia do autor do artigo e, após sua

declaração, Brasil e Europa viram grafismos marajoaras estampados nas obras de

artistas proeminentes. Além disso, “na decoração das casas acontece uma

verdadeira febre de objetos, móveis, luminárias, tapetes, enfim, tudo em que se

possa imprimir labirintos, ziguezagues, gregas e tramas geométricas derivadas dos

desenhos marajoaras” (p.1). Os elementos marajoaras foram agregados também à

arquitetura, tendo destaque o edifício que abriga o Instituto Biológico (Figura 6), em

14

Barbosa Rodrigues (1874; 1876) classifica (a partir da língua indígena de então) esses potes em diversas categorias, algumas têm mesmo nome, porém usos distintos: Igaçaua; Igaçava; Igassáuas; Igasáus; Iukaçauas e outros. Muitos trabalhos arqueológicos parecem classificar qualquer pote como “igaçaba”.

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São Paulo15, e o Ribeiro-Moreira (Figura 6), no Rio de Janeiro, além de outros como

o Itahy e a “Casa Marajoara”, também no RJ. Os estes três prédios foram

construídos em 1928, 1932 e 1937, respectivamente.

Figura 6 Fachada e parte interna do edifício Moreira, RJ e IB, em São Paulo. Fonte: Instituto Art Déco Brasil.

Como podemos ver, quando se buscou afirmar o nacionalismo brasileiro –

também – no movimento artístico, a estética marajoara transpôs o colecionismo de

suas peças e chegou à Europa – onde recebeu o status de arte. Entretanto, esse

estilo se ateve àquela época, como podemos verificar nos seguintes trechos de

reportagens:

"Identidade Marajoara" é o nome da coleção da grife Celeste Heitmann, de bolsas e jóias. A riqueza da cerâmica marajoara, com seus traços harmoniosos e simétricos, foi o ponto de partida para a coleção [...]. (FASHION RIO, jan. 2008);

A designer Marcela Costa lançou nesta quarta-feira a coleção ‘Marajoara Déco’, em Copacabana. [...] Muitas formas geométricas, concretismo e narrativas Marajoaras estão presentes em seus colares, pulseiras, braceletes e brincos, que pela primeira vez ganham cor e material diferentes (SANTOS, 2012).

15

Segundo informação do site oficial do Instituto Biológico, a construção do prédio iniciou-se em 1928 e durou até 1945.

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A influência da arte marajoara está presente na atualidade. Porém, entre

todas as formas artísticas que ainda podem ser encontradas na região amazônica,

há uma enorme diversidade étnica marcada por técnicas, formas, traçados e

diferentes combinações entre esses elementos em cores muito variadas. Pensando

sobre isto, durante a viagem que realizei ao campo desta pesquisa, ao Marajó, me

propus a estranhar meu âmbito familiar, como sugere Velho (2008). Acredito que

este exercício, também, me remeteu às lembranças de quando vivia ali, sobretudo,

às conversas que tinha com meus amigos de infância, sobre as novidades mais

intrigantes desses lugares: a presença de pessoas, normalmente de outros países.

Na chegada à foz do rio Camará, vi os traçados marajoaras (gregas) estampados

em muros, prédios públicos, estabelecimentos comerciais16. Como os ônibus que

partem da foz do rio17 levando os passageiros a outros lugares também costumam

percorrer as vilas que há no entorno dali, pude observar os traçados pintados

também nas adjacências de Salvaterra, para onde me dirigi primeiro. Assim, me dei

conta de que este fenômeno não tinha como único motivo o apelo turístico, já que,

no Marajó, somente durante o mês de Julho existe um fluxo de visitantes

considerável. Juntei a isto a lembrança de que, quando criança, gostava de

acompanhar com o olhar as curvas dos traços marajoaras, que me provocavam a

imaginação. A atração do olhar, provocado pelos traçados marajoaras são descritos

por muitos autores, entre eles, Frade (2003) e Schaan (2009). A meu ver, uma

descrição bastante aproximada tanto do que se pode interpretar da representação

como da sensação que há em um grupo18 de desenhos (em particular) – que está

presente, talvez na maioria, da cerâmica arqueológica do Marajó – seria a infinitude

absoluta, como em “Carta Sobre o Infinito”, de Spinoza (1983)19. Frade descreve o

efeito provocado pelos desenhos marajoaras em tom menos poético-filosófico:

A visualidade marajoara exibe um movimento que oscila entre esses planos bi e tridimensionais. [...] a intensidade dos movimentos lineares provoca uma sensação vertiginosa. O efeito é obtido pelos circuitos sinuosos e estreitos que compõem uma espécie de labirinto. Os desenhos levam o olhar a descrever o percurso ondulante que segue desde os desenhos mais

16

Entre os “estabelecimentos comerciais” incluo as casas comuns que vendem produtos anunciados em pequenos letreiros e, muitas vezes, expostos nas janelas. 17

Localmente, a população se refere à foz do rio Camará somente por “foz do rio”. 18

Este agrupamento uma compreensão intuitiva. 19

Para Spinoza há dois infinitos: um que não é constituído por partes e, portanto, não pode ser dividido e outro que é constituído por partes. Um só pode ser compreendido a partir do intelecto e o outro – também – pode ser imaginado.

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amplos até os menores volteios. [...] O marajoara se fez como uma “op-art”, pela saturação ótica e intensa movimentação (FRADE, 2003, p. 115 e 116).

Refletindo sobre a continuidade do emprego desses desenhos tanto no

Marajó quanto fora dali, pareceu-me surpreendente que ainda hoje os estilistas e

outros artífices adotem os traçados marajoaras em suas produções, ou seja,

concepções artísticas de populações há muito extintas, atribuindo-lhes valor e

atenção que, nem mesmo a arte produzida por grande parte dos povos extintos,

assim como a de outros ainda existentes, conseguem alcançar.

2.1.2 Breve Etnohistória sobre os Marajoaras e sua Cerâmica

Diferente do sugerido pela reportagem da Folha de São Paulo, por ocasião da

morte de Betty Meggers20, as pesquisas arqueológicas – pré-históricas e pré-

colombianas – na Amazônia, bem como, outras referentes à organização social de

seus povos são de longa data. São muitos os autores que, como Ferreira (2009),

Neves (2000) e, citados por este, Barreto (1992); Prous (1992) e Mendonça de

Souza (1991), defendem que a arqueologia brasileira teria nascido, praticamente,

em contexto amazônico e à época da instalação do império português no Brasil.

Porém, sobre esses estudos, Barreto (2000, p.33)21 adverte: “Há 500 anos que estes

restos materiais têm sido encontrados, estudados e interpretados. Há 500 anos que

estes restos têm sido a matéria-prima para a construção de um passado pré-colonial

brasileiro”. Contudo, a mesma autora também ressalta que “a perspectiva colonial,

do europeu branco explorando um passado exótico e distante, predominou até a

institucionalização da arqueologia dentro de museus e centros de pesquisa

científica, a partir do século XIX” (idem). Disto se pode perceber a influência das

visões de mundo de grande parte dos pesquisadores, bem como o contexto social e

a influência política sob as quais estavam submentidos.

Os relatos de historiadores e outros cientistas, como Baena (1838), Couto de

Magalhães (1874) e, citados por estes: Alexandre de Humboldt (de 1799 a 1804),

Ferreira Penna (1871), Frederick Hartt (1871), entre outros, também, revelam que

20

“Betty Meggers (1921-2012): “Mãe” da Arqueologia Amazônica”. Folha de São Paulo (06 jun. 2012 – on-line). 21

Esta autora não é a mesma citada por Neves.

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mesmo antes que aqui se instalasse a corte portuguesa, já eram feitas escavações e

outros estudos sobre a organização social e política dos povos pré-coloniais da

Amazônia brasileira. As mesmas pesquisas contrariam a visão de Neves (2000) de

que o sucesso da arqueologia brasileira na bacia amazônica “deve-se ao fato de que

há, na Amazônia, uma tradição de meio século de pesquisas orientadas a partir de

questões antropológicas gerais que demandam tratamentos arqueológicos e

etnográficos” (NEVES, 2000, p.87). Penso que a divergência entre a visão de Neves

e as obras anteriormente citadas pode ser fundamentada no argumento de que,

embora a Antropologia e o método etnográfico ainda não fossem consolidados

naquele momento, as pesquisas arqueológicas já consideravam sua importância

para na explicação daqueles achados. A pesquisa de João Barbosa Rodrigues, que

apresento mais adiante, é um exemplo disto.

Sobre a reflexão colocada ao final da apresentação da função estética da

cerâmica marajoara, nem entre as referências publicadas pelo Museu de

Arqueologia e Etnografia (MAE) e Emílio Goeldi, achei bases para esclarecê-las. Ao

ler as obras citadas, ao contrario de respostas, me vieram mais interrogações, pois o

Marajó fora campo de pesquisa em todas elas. Vi que, na história recente,

importantes arqueólogos estrangeiros também pesquisaram sobre os tesos

marajoaras, entre outros, a já referida Betty Meggers, filha de um renomado físico

norte-americano e Anna Rosevelt, cujo avô, Theodore, também fizera pesquisas na

Amazônia. Notei também que nos “avanços atuais”, dos estudos arqueológicos

amazônicos, Meggers e Roosevelt são as principais referências e que o campo de

trabalho de ambas se concentrou no Marajó. Além disto, estas duas personalidades

entraram em disputas que, de tão ferrenhas, chegaram à imprensa e, em âmbito

acadêmico, serviram de objeto de estudo.

Quando o arqueólogo e historiador Julio Steglish (2003) fala sobre o domínio

norte-americano na arqueologia da Amazônia, diz que o mesmo teve sua versão

mais acabada nas pesquisas do Smithsonian Institut - SI. O autor relata que, após a

publicação da obra22 que deu a Meggers reconhecimento a ponto de, como expus,

ser anunciada como a “mãe” da arqueologia amazônica, ela teria recebido, do S.I, a

verba para realizar o Programa Nacional de Pesquisas na Amazônia – PRONAPA

22

Archeological Investigations at the Mouth of the Amazon. Nesta obra Meggers faz a seriação da cerâmica marajoara, um enorme ‘avanço’ nas pesquisas da Amazônia brasileira, contudo, Steglish aponta, na mesma, evidências de manipulação de dados.

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(1965). Steglish lembra que, no início de seus estudos no Brasil, Meggers teria tido o

apoio de Peter Paul Hilbert, ex-oficial do Reich nazista e de von Putckamer,

fotógrafo pessoal de Hittler e, após a criação do PRONAPA, também de acadêmicos

do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Pará. Steglish dá, ainda,

ênfase a que a segunda versão (1970) do referido programa custara milhões de

dólares e que, oficialmente, Meggers nunca fora funcionária do S.I. Além disso, o

autor conta que em 1999 sua rival, Anna Roosevelt, a denunciara como agente da

Central de Inteligência Americana.

Como coloquei no início deste trabalho, durante as viagens que fiz pelo Brasil,

observei que o Marajó é um território extremamente desconhecido pelos brasileiros.

Sendo assim – o que – nas terras de tão irrelevantes cabocos faria com que

cidadãos ilustres partissem da maior potência mundial para se sujar no barro de

seus tesos?

2.1.2.1 A Pesquisa de João Barbosa Rodrigues (1842-1909) João Barbosa Rodrigues é um nome que figura entre os grandes cientistas

brasileiros. Formado em engenharia, atuou em diversas áreas da ciência, entre elas,

antropologia, arqueologia, paleontologia, linguística, botânica, química e farmácia,

obtendo reconhecimento nacional e internacional. Foi o fundador do, então, Museu

Botânico da Amazônia, o qual dirigiu por sete anos. Entres seus grandes feitos, além

do que relato, consta a primeira denuncia sobre a diminuição de água potável no

Brasil, em congresso científico na França, fato inacreditável na época. Também

criou a etnolinguistica e a etnobotânica, métodos utilizados para classificar artefatos

arqueológicos, que permanecem atuais. Durante os últimos dezenove anos de sua

vida esteve na direção do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (Globo Ciência, 2009);

Sá (2001).

A pesquisa de João Barbosa Rodrigues vem contribuir significativamente para

a exposição da razão do interesse científico nos tesos e na cerâmica encontrada no

Marajó. Seus registros em “Armas e Instrumentos de Pedra”, “Atterros

Sepulchuraes” e “Arte Cerâmica”, do ensaio intitulado “Antiguidades do Amazonas”

são o relatório de algumas das investigações que o cientista fez no vale Amazônico,

onde encontrou cemitérios indígenas, dentre outros, tesos e sambaquis. Nestas

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obras, Barbosa Rodrigues compara seus achados com os que outros pesquisadores

haviam feito, sobretudo, em quatro “atterros” no Marajó, localizados no lago Guajará,

nos campos da fazenda fortaleza; na Ilha de Camutins, no rio Anajás; e o Pacoval,

no lago Arari.

Sá (2001) assinala que era característica das investigações de João Barbosa

Rodrigues o aprofundamento nas teorias e descobertas feitas sobre a região onde

pretendia desenvolver suas pesquisas. Os estudos apontados acima corroboram a

percepção da autora, pois, neles, o cientista traz apontamentos fundamentados em

registros históricos e obras de diversos outros estudiosos em âmbito nacional e

internacional. Ao falar sobre contradições históricas e abordagens insuficientes a

respeito das populações Amazônicas, sobretudo, aquelas que habitavam a

Amazônia marajoara o autor registra:

Para mostrar os usos e costumes de uma geração extincta, fazer vêr o seu adiantamento, proponho-me dar uma relação das antiguidades Amazonicas assignalando a sua existencia, para mostrar que não é tão pobre, como o laconismo ou mesmo o silencio dos nossos historiadores, parece indicar (BARBODA RODRIGUES, 1876ª,

23 p.103).

Barbosa Rodrigues observa que quando fez suas pesquisas, os “atteros” já

haviam sido explorados por importantes cientistas da época, entre esses Frederick

Hartt24 e Couto de Magalhães. O cientista diz que as evidências que encontrara o

faziam abandonar a teoria – já existente – de que o povoamento da Amazônia se

dera por povos vindos da região do Andes. Quanto aos poucos objetos de metal que

encontrou, supunha que alguns andinos chegaram até ali, mas que já existiam

povos habitando a região, quando isto ocorreu. Além disto, Barbosa Rodrigues

informa que, tampouco achara evidências de que os amazônidas brasileiros

conhecessem a fusão de metais, portanto, se fossem os andinos os seus

precursores, teriam passado este conhecimento aos mesmos. O autor presume,

então, que a origem do homem na Amazônia teria se dado com a chegada de povos

23

As obras de Barbosa Rodrigues foram publicadas entre 1876 e 1879. Contudo, não há data específica para cada uma delas, apenas a sequência, assim, decidi classifica-las em a, b e c. 24

Segundo Kern (2010), este autor publicou, em 1885, “The Ancient Indian Pottery of Marajó” o primeiro a projetar a cerâmica marajoara internacionalmente.

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nórdicos à região25 e que os mesmos haviam se estabelecido no Marajó. Baseia isto,

na semelhança entre o material arqueológico que encontrara e para os quais supôs

datação igual a que os nórdicos utilizavam. Além disso, havia o fato de que não

achou nos desenhos das urnas funerárias do Marajó qualquer similaridade com os

traçados dos povos andinos.

Como embasamento de sua teoria, Barbosa Rodrigues (1976) aponta

diversas pesquisas, então publicadas, que segundo o autor, haviam comprovado

que algumas regiões dos Estados Unidos teriam abrigado povoamentos nórdicos,

que teriam se dispersado, por volta do ano 1000, migrando para o México e para as

regiões andinas. O referido autor traça percursos geográficos que possibilitariam a

chegada desses povos ao Marajó, embasando-os em artes rupestres que ele

mesmo encontrara na região do Rio Negro e em outras encontradas por Charles B.

Brow na região da Guiana. Contudo, encontra fatos que, aparentemente o fizeram

duvidar de sua teoria:

Se por um lado temos a correlação nos desenhos, por outro temos o encontro de uma tribu, habitando a ilha de Marajó com usos, costumes e linguagem, tudo differente das demais nações do Brasil. Tão difficil era o seu dialecto, que os Tupinambás deram-lhe o nome de Nhengaibas. (*)

26

Tão numerosa era elIa, que occupava toda a ilha e tão poderosa, forte e guerreira que todos a temiam, até os portuguezes. [...] D'onde veio esta nação, com uma linguagem desconhecida em todo o Brazil? E' opinião geraI, que a civilisação extincta do Amazonas é andina, mas pela comparaçao que temos feito, não só dos costumes como das antiguidades vê-se que é differente. Além d'isso a civilisação andina e mexicana estavam mais adiantada, do que a dos normandos. (BARBOSA RODRIGUES p.125b).

Podemos perceber, no trecho acima, que o autor contrapõe sua teoria ao fato

de que, à época da invasão portuguesa, a população que habitava o Marajó possuía

linguagem e características distintas daquelas que habitavam as demais regiões do

Brasil. Ao discorrer sobre os tesos em “Aterros Sepulchuraes” o autor diz:

25 Os trabalhos que li sobre arqueologia amazônica apontam bastante vagamente esta teoria, como em Schann (1996): “O método comparativo levou os estudiosos a buscar essa origem em lugares tão distantes como o Egito (Lisle du Dreneuc 1889) ou a Escandinávia (Barbosa Rodrigues, 1876)...” 26

Neeng, falar, aíb, mal. Esta nota é a mesma do autor.

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Desde o anno de 1616, estavam os Portuguezes senhores do Pará; tinham já sulcado as aguas do Amazonas até o Perú, porém, não conheciam ainda a ilha dos Nhangaybas, (*)

27 porque uma barreira de ferro se antepunha aos

seus desejos, a valentia dos seus habitantes. [...] Diz o padre Antonio Vieira na sua carta de 11 de Fevereiro de 1660: « Por militas vezes quizeram os governadores passados e ultimamente André Vidal de Negreiros, tirar este embaraço tão custoso do Estado, empregando na empreza todas as forças delle, assim de índios como de portuguezes, com os cabos mais experimentados; mas nunca desta guerra se tirou outro efeito mais que o repelido desengano de que as nações Nhangaybas eram inconquistaveis, pela ousadia, pela cautella, pela astucia e pela constancia da gente, etc. » (BARBOSA RODRIGUES 1876b).

A partir da leitura deste trecho, encontrei a carta28 de Antônio Vieira, que

Barbosa Rodrigues cita. Nela, o padre informa ao rei de Portugal sobre as

conquistas da Companhia de Jesus. Vieira esclarece que a nação a que chama

Nheengaíbas, na verdade, não era um só grupo étnico e, tampouco, falavam o

mesmo idioma – mas que se comunicavam entre si. Vieira destaca, ainda, as

relações comerciais entre esses povos e os holandeses, bem como a ameaça disto

à posse portuguesa do Pará. Fala também que, quando os Nheengaíbas aceitaram

a proposta de paz da coroa portuguesa, só na festa que marcou a data, estavam

presentes 40.000 marajoaras, que junto com tribos dos arredores formavam mais de

cem mil “almas”.

Em “História da Companhia de Jesus na Exctinta Provincia do Maranhão e

Grão-Pará”, o Pe José de Moraes (1860) narra o naufrágio da nau que trazia o Pe

jesuíta Pedro Teixeira nas proximidades da então “Ilha Grande dos Joannes”.

Moraes relata que os sobreviventes deste naufrágio teriam sido comidos pelos

Aroães (também Nheengaíbas) “o mais bárbaro e carniceiro daquella costa, mais

deshumanos agora que o mesmo mar” (p.215). Porém – ao contrário dessa versão

do Pe Morais – Vieira escreveu:

Ao principio recebèraõ eftas naçoens aos noffos Conquiftadores em boa amizade; mas defpois que a larga experiência lhes foy moftrándo que o nome de falfa paz com que entravaõ, fe convertia em declarado cativeiro, tomàraõ as armas em defenfa da liberdade, e começarão a fazer guerra aos Portuguezes em toda a parte. VIEIRA (1660, p.22).

27

“Hoje de Marajó”. Esta nota é a mesma do autor citado. 28

Me parece que Shaan se refere à mesma em seu livro “cultura marajoara” sobre a qual falo adiante.

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Barbosa Rodrigues (1876) também cita o que teria dito um pajé, quando

Antônio Vieira o fez jurar fidelidade: “sempre foram os indios amigos é servidores

dos portuguezes, mas se esta amizade e a obediencia se quebrou, foi por parte

delIes, por isso, isto que nos dizes, vai dizei-o aos portuguezes, pois são elIes e não

nós quem tem falIa do a fé e a amizade” (p.12).

Além desta carta, Barbosa Rodrigues se refere a diversos relatos históricos

antes de concluir que “o contacto primitivo foi com um povo industrioso, que

emigrado, fugitivo, ou aqui chegado, por um acaso, como chegaram os

descobridores deste sólo, tratou como amigo o povo encontrado, porque assim era

mister e não como senhores e conquistadores”( BARBOSA RODRIGUES, 1876b,

p.95 ).

Barbosa Rodrigues teoriza que os “atterros sepulchraes” investigados

possuíam data anterior às primeiras vitórias portuguesas sobre os Nheengaíbas, em

1658. E, sobre isto, o autor discorre: “foram seus antepassados que fizeram. E quem

seriam eles? De quem descenderia esse povo fallando outra lingua, bravo, como

nenhum do Amazonas, ousado, intelligente e tão inimigo da escravidão?”

(BARBOSA RODRIGUES, 1976b, p. 14). O cientista argumenta que Emílio Goeldi, já

havia encontrado evidências de que, ao contrário do que divulgaram os portugueses,

não encontraram selvagens no Marajó. Segundo Barbosa Rodrigues, esta pesquisa

de Goeldi estaria registrada na constituição de 1874 e que o então diretor do Museu

Histórico Nacional29, se aproveitara dessas informações e publicado no Jornal do

Comércio “suas” conclusões de pesquisa:

Naquella ilha quer me parecer, que se fixou por largos annos a tribu mais industriosa e mais culta de quantas povoavam ao principio o Brazil e, tenho que alli é que por mais tempo se hão conservado os vestigios e as pallidas tradições da civilisação Andina transferida para essa porção da America, etc. (BARBOSA RODRIGUES, 1976b, p. 13).

A partir das análises expostas, Barbosa Rodrigues passa a comparar as

evidências encontradas com os costumes dos ‘selvagens’ ainda existentes na região

do amazonas. A razão para tal comparação com a finalidade de descobrir eventos e

29

Ladslau Netto. Encontrei diversas referências, nos trabalhos de arqueologia que li, a que Netto teria plagiado algumas das descobertas de Goeldi.

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costumes passados é corroborada na ideia que o autor traz em “Armas e

Instrumentos de Pedra”:

Como distinguirem-se uns dos outros se, á avaliarmos pelos costumes modernos, que só nos guiam, os gentios não dão um passo sem ser imitativo? O progresso não existe entre eles, por conseguinte a alteração da fórma não apparece senão quando ha um modelo, A fórma de seus intrumentos é sempre a mesma; não tendo elles senão a deixada pelos seus antepassados não podiam modifical-a, visto ser índole d'esse povo não fazer mais do que imitar, como que respeitando a herança de seus avoengos. Como na geologia, na ethnographia, os factos modernos nos explicam os antigos. (BARBOSA ROGRIGUES, 1876c, p.102).

Quando estive na região indígena Trombetas-Mapuera, desenvolvendo

pesquisas do projeto “Análises e Perspectivas para o Turismo no Município de

Oriximiná e Adjacências”, tive a oportunidade de permanecer entre os membros das

etnias que habitam aquela região, sobretudo os Wai-Wai. As mudanças que o

“desenvolvimento” traz para a cultura desses povos é uma das maiores

preocupações das lideranças, com as quais conversei sobre o tema. Seus

argumentos sobre a questão corroboram o apontamento de Barbosa Rodrigues,

colocado acima. Os líderes veem como um profundo desrespeito aos seus

antepassados as mudanças adotadas, sobretudo, por sua população jovem.

Apesar das análises feitas e das diferenças dos primitivos habitantes do

Marajó, em relação ao restante do Brasil, ao menos nas obras lidas, Barbosa

Rodrigues não conseguiu desenvolver outra teoria que não a de que foram os povos

nórdicos que iniciaram o povoamento. Entre outras falas, o mencionado autor diz

que, em sua opinião, o dialeto era a única chave que poderia revelar a verdade, mas

que este desaparecera. Barbosa Rodrigues, então, aprofundou suas análises sobre

a cerâmica marajoara, sobre a qual supunha existir algo mais a ser interpretado,

pois “a mão que gravou a rocha a ser contemporânea da que cinzelou a argilla,

affastou-se do estylo para representar uma idéa” (BARBOSA RODRIGUES, 1976b,

p.39).

Desde o século XIX até nossos dias, as pesquisas arqueológicas sobre a

cerâmica marajoara vêm tentando interpretar uma suposta linguagem iconográfica

para seus desenhos. A teoria de que estes representavam uma forma de

comunicação social, também fora ponderada por Barbosa Rodrigues e autores

mencionados por ele, como Ladislau Netto. Além de outros pontos (comumente

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apresentados como análises recentes) o autor também pensou aspectos como a

considerada falsa noção de simetria dos desenhos, as contradições sobre as teorias

de status social30, a relação que as “inscrições” teriam com os mitos amazônicos.

Dentre os trabalhos que avançam neste sentido cito Schaan (a partir de 1996),

Roosevelt31 (2001), Alves (2011) e diversos outros autores.

Os estudos sobre a pré-história amazônica, a partir da cerâmica marajoara,

versam sobre estabelecimentos cronológicos baseados na sofisticação das técnicas

aplicadas à decoração, a estética e os componentes utilizados na produção das

mesmas. As escavações nos tesos do Marajó, reiniciadas no período pós-guerra

com Meggers e Evans (1957), trouxeram a classificação de nossa cerâmica em

cinco estilos, supostamente cronológicos. Estes estariam relacionados a cinco

supostas fases da ocupação primitiva no arquipélago: Ananatuba, Mangueiras,

Formiga, Marajoara e Aruã e, destas, a penúltima seria a de maior duração (entre

400 e 1300 D.C. segundo Roosevelt, 2001). Entretanto, “apesar das tentativas de

agrupar estilos em termos de horizontes, na medida em que o conhecimento tem se

avolumado, também tem crescido a variedade e complexidade dos estilos,

rompendo os agrupamentos estilísticos anteriormente definidos” (ROOSEVELT,

2001, p.66).

A hipótese de que, durante a história pré-colombiana, o Marajó teria abrigado

etnias sucessivas e desvinculadas umas das outras, proposta por Meggers e Evans

(1957), é dada como ultrapassada por correlações e novas classificações. Contudo,

a proposta parece ter gerado um preconceito contra os nativos, que agora são

acusados de não saberem o que seria a “verdadeira” cerâmica marajoara, já que

apenas uma das fases é considerada pelos cientistas como cerâmica marajoara32.

Acusação que me parece sem validade, já que quando Meggers deu sua

classificação à cerâmica do Marajó, o marajoara já existia como tal.

Quanto às descobertas e redescobertas a partir da cerâmica arqueológica

marajoara, os registros, datações e interpretações do material cerâmico têm

30

Barbosa Rodrigues se opõe a esta ideia. O autor argumenta: “A admittir-se que só ahi se sepultavam os que tinham honras e distinções havemos de admittir ou que toda a tribu ahi existente era illustre, porque não só os homens o eram, como as mulheres e as crianças, ou então era uma especie de exercito de generaes commandados por alguns soldados, como indica os milhares de individuas ahi enterrados” p.62. 31

As pesquisas desta autora iniciaram nos anos 1980. Ignoro de quando datam as relativas à iconografia. 32

Para a população do Marajó, toda a cerâmica lá existente e produzida é marajoara.

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avançado no sentido de comprovar a existência de uma sociedade complexa no

Marajó – a “marajoara”. Os dados de alguns desses estudos supõem um sistema

político organizado em “cacicados” comandado por um cacique principal e articulado

pela liderança de outros caciques. Além disso:

Novos resultados de testes radiocarbônicos mostram que as terras baixas tiveram prioridade cronológica sobre as áreas montanhosas no desenvolvimento da cerâmica e das ocupações sedentárias. Existe um consenso em torno das evidências recentes que confirmam a hipótese de que a influência proveniente das terras baixas tropicais contribuiu para o desenvolvimento da agricultura e da complexidade cultural dos Andes (Burguer 1894, 1989; Sauer 1952; Lathrap 1970, 1971, 1974, 1977; Towle, 1961; Lanning 1967; Stone, ed.,1984). [...] As mais antigas culturas complexas da América do Sul ainda parecem ter se desenvolvido na área andina, no período cerâmio tardio, cerca de 2500-1000 a.C. [...] Entretanto, apesar de as sociedades complexas da Amazônia aparecerem mais tarde que as andinas, não é mais possível tratá-las como proveniente dos Andes. (ROOSEVELT, 1992, p. 54).

Tendo em conta a estrutura e o emprego deste trabalho, não coube discorrer

amplamente sobre questões a respeito das particularidades da cerâmica

arqueológica marajoara. Porém, foi possível trazer alguns apontamentos, como base

para a discussão sobre o olhar do caboco marajoara, inserido em meio aos registros

acadêmicos. A predileção por um cientista, em particular, João Barbosa Rodrigues,

deveu-se ao fato de haver sido uma grata surpresa encontrar em uma obra tão

antiga argumentos e teorias que, ao que parece, só recentemente voltaram a ser

supostos. Contudo, a partir do relato deste autor foi possível encontrar e confrontar

informações igualmente validadas como fontes históricas, entre elas, a visão dos

padres Antônio Vieira e José de Moraes sobre os Aroães. Também foi possível

concluir sobre a existência de diversas versões de nossa história, sobretudo, a

história da Amazônia, e, ainda, sobre as controvérsias da arqueologia.

Quanto a presença de vestígios da pré-história amazônica no Marajó, o

trabalho de Schaan (2010) registrou 169 sítios e 30 “ocorrências arqueológicas na

região. A identificação destas ocorrências estão relacionadas ao processo de

preservação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. A

região do Arari abriga grande parte dos sítios identificados e, por isso, continua a ser

campo de pesquisas. Mas, embora a ciência esteja presente na região – há séculos

– seus habitantes ainda não usufruem os benefícios trazidos pelas descobertas

sobre e a partir de seu mundo.

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2.1.3 O Caboco e o Caboclo Marajoara

No Marajó há dois fatos absolutamente ligados à produção cerâmica e ao

patrimônio histórico-cultural local: a produção artesanal sempre esteve presente na

cultura do povo marajoara, uma vez que ainda hoje existe a necessidade de

produção de seus próprios utensílios; e o respeito33 que os nativos mantêm em

relação aos cemitérios indígenas onde, segundo a crença nativa, habitam muitos de

seus caruanas.

O sobrenatural ainda é a maneira com que se explicam muitos fatos da vida

no Marajó, especialmente para a população mais antiga. O “respeito” marajoara é

um valor cultural que tem sido passado às gerações a partir de atitudes práticas e

orais, como a contação de histórias. Ao contrário das noções urbanas, não são os

perigos naturais (cobras, baratas etc.) que assustam o caboco, para ele “perigosos

mesmo são os inimigos não-naturais, o olho-grande, a inveja, a espinhela caída, a

matinta perera...” (GALLO, 1996, p.263).

O caboco criou a sua cosmologia, que acredita no involucionismo (o macaco já foi gente), na geração espontânea (a mosca nasce do lixo, os peixes morrem estorricados nos poções secos para depois nascer do limo, a caturra é gerada pelo caroço de tucumã), o transformismo (o boto vira gente, o jandiá vira sapo e a caba é filha de aranha), o raio é uma pedra que cai do céu

34, enterra-se sete metros (número mágico) e aos poucos à

superfície, para depois voltar ao céu. (GALLO, 1996, p. 262).

O aprendizado do fantástico que há na natureza e nas relações interpessoais

e entre as pessoas e seu meio ambiente é uma das bases do ensino (in) formal do

Marajó. As narrativas sobre assombros como flechadas-de-bicho, visagens,

mundiações têm a função de compelir à prudência indicada – independente de

religiosidade. Na compreensão marajoara o mundo não está posto ao acaso, já que

tudo tem seu dono ou sua mãe35: a mãe-do-fogo, mãe-do-mato, mãe-d’água, mãe-

do-rio, mãe-dos-bichos e até mesmo a mãe-do-corpo. Isto se estende a tudo o que é

33

Ao que a academia interpreta como medo, o povo marajoara chama respeito. Nesta noção há algo que a difere da concepção usual, uma vez que, ali, é algo mais próximo de um sentimento-base, logo, com as mesmas funções que outros, tais como o medo, a ira e a tristeza. 34

Localmente chamamos pedra-de-raio. 35

A meu ver, mãe, no Marajó significa o mesmo que origem, princípio e/ou principal. A arqueologia aponta para uma importância feminina nas sociedades primitivas do arquipélago. Talvez daí o fato de que grande parte ou, quem sabe, a maioria das famílias marajoaras serem matriarcais – como bem pode ser observado.

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tido como sagrado ou ao que intuitivamente e/ou inconscientemente precisa-se

preservar, como os cemitérios de índio. Sendo assim, a vida atinge um sentido

supernatural e tudo o que é considerado vivo precisa ter seu uso assentido, como

me contou um dos vaqueiros que conversei:

[...] Onde ta essa casa, era um cemitério. Tinha muito osso de gente aqui. O dono mandou aterrar tudo, por que era aqui era o lugar mais alto pra construir a casa. Mas, quando é de noite a louça mexe sozinha, a gente ouve risada de criança e a rede dos cabocos é desatada. Tem uma visagem forte, que desarma a rede e joga no chão com caboco e tudo. [...] A gente tem que pedir licença antes de atar a rede. [...] Eles (os espíritos) não querem ninguém morando aqui. Mas aqui é o único local que não alaga, nessa área. O resto tudo vai no fundo. S.E. (entrevista concedida em 27 jan. 2012).

Schaan (2010 p.141), ao narrar sua visita a diversos tesos na região do Arari

e às imediações destes, discorre: “[...] ao conversarmos com um senhor idoso

pedindo indicações de lugares de antigas aldeias, este nos disse: ‘cuidado, esses

lugares antigos com cacos velhos fazem visagens’” e continua:

Assim como este senhor, muitas pessoas crêem que os lugares ocupados por povos que não existem mais são visagentos, onde aparecem espíritos e mexendo no material que está por lá pode sofrer alguma mazela espiritual. Desta forma, entre uma conversa e outra, os moradores nos alertavam quanto ao perigo de estarmos mexendo com “coisa de índio” (SHAAN, 2010, p.141).

Schaan (2010) relata, ainda, diversas estórias de assombro, contadas por

fazendeiros e outros moradores que tiveram contato com materiais como restos

mortais e artefatos cerâmicos. Essas narrativas têm em comum o fato de que seus

personagens se sentiram obrigados a devolver o material colhido ao local de origem.

Isto porque “de acordo com esse imaginário sobre os sítios e os vestígios

arqueológicos, pode-se dizer que o material indígena desperta um sentimento de

receio sobre seus efeitos negativos” (SCHAAN, p.142).

O respeito marajoara ao seu material arqueológico é algo que, certamente, foi

perpetuado entre as gerações amazônicas. Exemplo disto são as pedras de raio

relatadas, anteriormente, por Gallo (1996) e por Schaan (2010, p.142), que diz: “[...]

ouvimos muitos relatos de que nas terras da comunidade e em suas roças sempre

encontraram muita cerâmica e material lítico (que chamam de pedra de raio), mas

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que por não saberem da importância iam jogando no rio e tirando de seus

caminhos”. Barbosa Rodrigues corrobora minha afirmação:

“Os naturaes acreditam que as cunhas e machados de pedra são outros tantos raios que se encontram soterrados, que annualmente sobem uma braça para a superficie da terra e que no fim de sete annos um novo raio vem buscar aquelle que se acha á flor da terra, pelo que, quando os encontram tratam logo ou de inutilizaI-os ou de lançal-os ao rio, para evitar a aproximação das faiscas electricas. (BARBOSA RODRIGUES, 1876, p.76).

Como pode ser observado, a população do Marajó, sobretudo a mais antiga,

possui algo que pode ser interpretado como medo da cerâmica arqueológica, já que

o respeito coloca os sítios arqueológicos no campo do sagrado. É possível

considerar também que este respeito contribuiu – e contribui – para que os

cemitérios sejam preservados, já que a população costuma devolver ao lugar de

origem, ou supostamente de origem, os artefatos encontrados. Mas, se há respeito

por parte do povo marajoara por seu legado, como explicar, então, que há poucos

anos atrás a população usasse “igaçabas” arqueológicas para depositar

mantimentos e água, como demonstram publicações acadêmicas nacionais e

internacionais (Figura 7)?

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Figura 7 “Igaçaba” arqueológica sendo usada pela população local36.

Talvez uma boa resposta a este fato esteja, mais uma vez, em Barbosa

Rodrigues. Contudo, antes de dar voz ao autor, achei interessante transcrever aqui

um trecho da publicação trilíngue “Cultura Marajoara” de Schaan (2009), onde a

autora traduz a narrativa do jornalista Algot Lange, que explorou o estado do Pará

na segunda metade do século XVIII:

Ao passar por uma casa no alto Arari, pouco antes de chegar à sede da fazenda,

37 Lange encontrou um caboclo que lhe falou sobre os cacos de

cerâmica e igaçabas que encontrava, todos com pinturas de macacos, onças, jacarés e tartarugas, além de “caras de gente”. Lange esperava que ele tivesse guardado alguns, mas, em sua simplicidade, o pobre homem lhe responde: Não, todos aqueles santinhos eu dei para as crianças brincarem, já que não tinham uso pra mim, e elas perderam ou quebraram. Uma igaçaba grande, que eu achei enterrada embaixo das raízes de uma árvore em uma das ilhas do campo, que tinha muitas figuras e desenhos pintados por dentro e

36

Fonte: http://www.ppga-ufpa.com.br/evento/detalhe/ID/40 37

A autora se refere à fazenda Tuiuiú, pertencente ao município de Cachoeira.

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por fora, eu dei pra minha mulher guardar o pirarucu salgado, mas um dia um senhor do Pará veio visitar e estava tão desesperado por ela que acabei dando. (SCHAAN, 2009, p. 80, 82).

Esta e outras narrativas similares têm povoado escritos acadêmicos e sido

utilizadas para destituir o “marajoara” – e tudo o que remete à cultura e ao

patrimônio – herdado pelo povo do Marajó. A utilização das “igaçabas” como

recipiente para armazenamento é comum, eu mesma ganhei da minha mãe o

“potão”, uma “igaçaba” tradicionalmente usada na nossa família para armazenar

farinha d’água e que minha mãe, por sua vez, ganhou da “mãe-velha”, sua mãe. Os

trabalhos de Barbosa Rodrigues servem para confirmar que este costume é antigo,

pois em suas análises sobre a cerâmica arqueológica classificou o material cerâmico

em diversas categorias funcionais, entre elas, armazenais, decorativas e funerárias

e conferiu-lhes, ainda, subdivisões. Sobre potes e “ídolos” e fragmentos

arqueológicos encontrados nas “terras pretas”, onde supunha funcionar uma fábrica

de cerâmica, o autor comenta:

Estes fragmentos, estudados com atenção, apresentam diversas fórmas de panellas, de alguidares, e de potes (camotys) com fórmas muito correctas. Entre esta louça encontram-se também muitas figuras, quer humanas quer de animaes, que serviam para os brincos das crianças e não representam ídolos como alguns querem. Para provar que serviam de brinquedo, basta dizer que achei entre estas figuras, também diversas panelinhas, que tinham o mesmo fim. Ainda hoje os tapuyos, quando fabricam sua louça sempre fazem algumas figuras, com que presenteam seus curumins

38, que

a rodeiam. (BARBOSA ROGRIGUES, 1876c, p. 10).

As pesquisas de Barbosa Rodrigues, se consideradas por nossos

arqueólogos e historiadores, muito serviriam para a desmistificação do caboclo

relatado em alguns estudos acadêmicos. À época de suas pesquisas, conviveu com

os povos amazônicos e interessou-se pelo trabalho dos ceramistas da época sobre

os quais efetuou registros etnográficos e observou técnicas de elaboração e usos da

cerâmica, que registrou em inúmeros relatórios. Contudo, não só a obra deste autor,

como também um maior esforço em compreender a visão do nativo marajoara

parecem ser relegados. Os relatos sobre a produção da cerâmica marajoara do

século XIX é igualmente posto à parte, já que são muitos os trabalhos atuais que

dizem que à época da invasão portuguesa já não eram fabricados mais itens com

38

Meninos. Esta nota é a mesma do autor.

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tamanho empenho artístico. Em “A Arte Cerâmica” Barbosa Rodrigues, descrevendo

a cerâmica arqueológica de então diz: “todos estes processos que encontrei

representados na louça antiga, tive occasião de ve-los empregados pelos tapuyos,

que os aprenderam de seus antepassados” (1876c, p.18). Para o Marajó, temos

também a “extinção” das populações indígenas em datas divergentes, como a

informação trazida por Schaan et al (2011)39 que dava conta deste fato já em 1746,

ao que se contrapõe o recenseamento de Baena, que ainda em 1832 informava a

presença desses povos na região do Arari. Temos, ainda, a desconsideração quanto

ao fabrico e uso tradicional de objetos cerâmicos pela população paraense (Figura

8), sobretudo a que vive no interior do estado. Alguns trabalhos parecem

desconhecer que, ainda hoje, existe esta produção para fins domésticos – o que

uma simples visita ao Ver-o-Peso, onde é possível encontrar potes, filtros,

alguidares, tigelas e muitos outros objetos comprovaria40. Estas e outras (des)

informações são causa de muitos os relatos, no Marajó, sobre abordagens sem

embasamento por parte de funcionários do IPHAN, que frequentemente acusam os

moradores locais de cometerem “crime federal” ao empregar vasilhames

arqueológicos no uso doméstico. Sobre isto, conta o Sr. Ivan Coutinho, através de

postagem em seu blog:

O que relato aqui está sendo vivido por minha esposa, Oliva, tendo como protagonista principal uma instituição que nós, até então, considerávamos séria e comprometida com o interesse maior da preservação da memória, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan. Em agosto passado, E.C.S., a senhora que se cuida da nossa casa e pousada na vila de Joanes, Marajó, recebeu um comunicado assinado pela superintendente do Iphan no Pará [...] Citando "a legislação maior pertinente à proteção do patrimônio arqueológico, Lei Federal n° 3.924/1961 e a Constituição Federal arts. 23, 215 e 216, cujas cópias seguem em anexo", a superintende aponta que, durante vistoria realizada pelo Iphan nas ruínas da Vila de Joanes, identificou na pousada "o uso de vasilhames cerâmicos arqueológicos como utilitários no local". Em seguida, a superintendente do Iphan avisa que, "para coibir tal procedimento", solicita "a retirada deste material de locais de constante circulação de pessoas para não sujeitá-lo a quebras ou aplicações indevidas de uso". E ainda alerta: "a compra e venda de objetos arqueológicos é crime federal e não deve ser praticada ou estimulada. Portanto, orientamos para que ofertas nesse sentido sejam direcionadas ao Iphan, ou que os objetos sejam doados à centros de pesquisas ou museus, onde serão tratados e identificados, bem como ficarão acessíveis a uma

39

Esta publicação é livro didático, elaborado com o apoio do IPHAN e destinado ao segundo ciclo do ensino fundamental, no Marajó. 40

Estes objetos, contudo, diferem daqueles feitos para o consumo turístico em características como resistência e maior simplicidade, no que se aproximam dos artefatos arqueológicos em geral e de objetos arqueológicos simples, das últimas “fases” arqueológicas.

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maior quantidade de pessoas". Bem, se doarmos esses três vasilhames para uma instituição de pesquisa científica, a conclusão será: artefatos cerâmicos, datados de 2001 AD, da fase belgo-argentina-marajoara iniciada pela presença de O.V.E.C., belga de origem flamenga, e da argentina M.B., na ilha do Marajó

41.

O relato ilustra a visão que pode ser adquirida, entre outros, em trabalhos

acadêmicos, sobre o cotidiano e outros aspectos da vida na região marajoara. Este

desconhecimento, muitas vezes, têm consequências realmente graves, como a

expulsão de técnicos do IPHAN “botados de lá à bala”, como me relatou o assessor

de cultura da AMAM-Marajó, Valdemir Bandeira (entrevista em 03 de fevereiro de

2012).

Figura 8 Marajoaras fazendo panelas de barro. 42

O artigo de Schaan (2006) “Arqueologia, Público e Comodificação da Herança

Cultural: O Caso Da Cultura Marajoara” – que também é um dos capítulos do livro

“Cultura Marajoara” (2009) – é um exemplo de que o modo de ser caboclo pode ser

usado para legitimar a usurpação de bens culturais do caboco marajoara. Nele, a

autora fala da “participação do poder público e da comunidade de intelectuais na

recriação da cultura marajoara” (SCHAAN, p.20) dizendo que fora o trabalho de

Raimundo Saraiva Cardoso, “um ícone da produção cerâmica no Estado do Pará”

(p.24), iniciado no bairro de Icoaraci (Belém), na década de 1970, que “permitiu a

divulgação da ‘cultura marajoara’ [...] ainda que a maior parte das peças produzidas

– mais de 90% - não sejam réplicas das peças arqueológicas, mas obras de livre

inspiração nos grafismos, formas e decoração arqueológicos” (p.24). Mestre

41

Fonte: http://blogflanar.blogspot.com.br/2012/09/o-surrealismo-do-iphan.html 42

Ibidem.

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57

Cardoso, como era chamado, teria se inspirado nas peças arqueológicas que

observara “valendo-se de um parente que trabalhava no Museu Goeldi” (p.24) e que

“ao fazer reviver a cerâmica arqueológica, Mestre Cardoso acabou inventando uma

tradição” (p.24). Entre outros argumentos usados para defender esta hipótese,

Schaan utiliza o relato de um turista que teria comprado um objeto de cerâmica

sobre o qual o vendedor teria inventado uma história que, posteriormente, ela

desmentira ao ter contato com o sujeito. A partir disto, Schaan constata que “ao

produzir artesanato de inspiração arqueológica, o produtor/vendedor se vale da

relação com o bem cultural resgatado do passado para agregar um valor cultural,

simbólico ao seu objeto, o que vem a elevar seu valor como mercadoria” (2006,

p.24).

Sobre o interesse local pela cerâmica arqueológica, Schaan diz que a

literatura produzida na primeira metade do século XX teria aumentado a visitação

internacional aos tesos do Marajó e que “este afluxo de estrangeiros despertou o

interesse local sobre a riqueza arqueológica” (p. 22). A autora enfatiza que “a partir

da metade do século XX, então, estabeleceu-se de forma informal e esporádica um

comércio de peças arqueológicas que acabou levando, ironicamente, tanto à

destruição de vários dos sítios assim como à projeção internacional da cerâmica e

cultura marajoaras” (p.22).

Quanto ao que chama de “tradição inventada”, Schaan parece isentar os

cientistas de quaisquer responsabilidades e culpa a apropriação deturpada do

conhecimento arqueológico (que chega à população através da interação entre

estes e os cientistas) como uma das causas. A autora aponta os traçados

modificados, porém, inspirados na cerâmica arqueológica como evidência de que já

não se trata da “tradição” e argumenta que “na medida em que a cultura descrita

pelos cientistas é considerada como o passado regional, o público apodera-se da

reconstituição deste passado agregando-lhe sua própria interpretação” (p.23). A

partir disto, Schaan conclui que “a cultura marajoara enquanto ’tradição inventada’

possui muito pouco da referência original ao passado e há uma tendência crescente

de diferenciação das duas coisas (passado e presente) sem que essa diferenciação

seja explícita” (p.27). Handler e Linnekin apresentam uma visão oposta à de Schaan,

quando dizem que:

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58

A oposição entre uma tradição simplesmente herdada e aquela que é conscientemente moldada é uma falsa dicotomia... [...] O estudioso pode objetar que tais costumes não são genuinamente tradicionais, mas eles têm tanta força e tanto significado para seus praticantes modernos quanto outros artefatos culturais que podem ser traçados diretamente do passado. A origem das práticas culturais é amplamente irrelevante para a experiência da tradição; autenticidade é sempre definida no presente (HANDLER; LINNEKIN, 1984, apud GRÜNEWALD, 2001).

Sobre a utilização dos traçados da cerâmica marajoara e a retomada do

fabrico das “réplicas perfeitas de peças arqueológicas” (SCHAAN, 2006, p. 24),

parece-me interessante observar o desprezo da autora pelo fato de que Mestre

Cardoso, ao ver a cerâmica no MPEG, “de imediato associou aquela com a cerâmica

que sua mãe fazia de maneira artesanal, à moda indígena, quando ele ainda era

criança” (SCHAAN, p.23). Igual desinteresse parece atingir o trabalho de Frederick

Hartt (1840-1878) – autor que “publicara, no American Naturalist, o primeiro artigo a

divulgar a cerâmica marajoara no exterior, The Ancient Indian Pottery of Marajó”

[1885] (Kern, 2010, p.121), e outros tantos, apontados por Kern (2008 e 2010). Que

dizer, então, da influência marajoara no Art Déco brasileiro?

Penso que estas evidências, bem como outras, os costumes que perduram

entre as populações do povo do Marajó, desde épocas bastante remotas, servem

como base para ponderar as análises de Schaan como equivocadas. Entre outros, a

autora desconsidera que “provavelmente não há lugar nem tempo investigado pelos

historiadores onde não haja ocorrido uma ‘invenção’ de tradições” (HOBSBAWN,

1983, p.12). Quanto à população marajoara, contudo, é possível considerar que esta

“tradição” não foi ‘inventada’ recentemente, uma vez que há muito elementos como

crenças e costumes, estão incorporados à identidade cultural do Marajó e de sua

população – ao que corrobora os trabalhos aqui trazidos, inclusive os de Schaan, se

relativizadas as percepções nativas. Especificamente sobre os traçados da cerâmica

arqueológica, acredito ser uma importante questão a analisar a improbabilidade de

que tamanha beleza, encontrada em artefatos que existem em grande quantidade

no Marajó, sobretudo na região do Arari, nunca tenha sido percebida – e

imitada/usada – pela população local. Atualmente, em um passado recente e,

provavelmente, em um passado bastante longínquo, a população local utiliza os

traços de sua cerâmica para enfeitar diversos elementos de seu cotidiano, sem

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interferência/incentivo de instâncias do poder público43. A partir dessas observações

é possível ter que este patrimônio figura como algo residual, que se formou no

passado, mas que se encontra em atividade dentro dos processos culturais, como

coloca Canclini (1999). Outro ponto a ser observado é a recusa de Schaan em

admitir que os pesquisadores que interagem com as populações locais efetuam com

estas trocas a partir das quais também apropriam-se de seus conhecimentos.

Evidência disto é o colecionamento de elementos representativos de culturas

indígenas amazônicas como mitos e símbolos para corroborar a existência de uma

possível linguagem iconográfica marajoara, feito em Schaan (1996). Acredito que

também a hipótese de que a manutenção das populações primitivas do Marajó ter-

se-ia dado a partir no manuseio dos recursos hídricos do arquipélago, defendida por

Schaan (a partir de 1996), por exemplo, pode ser considerada como uma

observação empírica da autora sobre o que, ainda hoje, fazem os trabalhadores das

fazendas marajoaras – bem como em diversas outras regiões da Amazônia.

É interessante analisar, também, o envolvimento do MPEG quanto ao apoio

ao que parece considerar verdadeiros artistas, como a designer Celeste Heitmann e

a consultora de Moda e Estilo Cristina Franco, cuja exposição é anunciada no

clipping (27 abr. 2012) do museu. Ao falar do trabalho de Mestre Cardoso, Frade

(2003) enfatiza que:

A preservação da arte marajoara vai além das coleções museológicas. O contato com as formas originais na comunicação com o público leigo é incentivada pela equipe de arqueólogos do Museu Emílio Goeldi. Eles promovem encontros com artesãos de Icoaraci, e encomendas de réplicas dos trabalhos originais. Os trabalhos do Mestre Raimundo Cardoso recebem certificados de autenticidade como representações legítimas. Seu valor estético, somado ao valor histórico que as referendam, transformam as réplicas fiéis em obras-de-arte. Integram coleções em museus ou particulares no circuito internacional (FRADE 2003 p. 122 e 123).

O “certificado de autenticidade como representações legitimas” dado pelo

MPEG, que Frade descreve, não é recebido por artistas como “Cabeludo” –

personagem de uma produção massificadora, usado pela autora para comparações

“entre as formas extremas das réplicas refinadas [de Cardoso] e potes de R$1,99”

(p.124). Haveria, neste evento, alguma relação com o fato de que “Cardoso procurou

43

Isto foi confirmado nas entrevistas de Jaime da Silva Barbosa, então prefeito de Cachoeira do Arari; Valdemir Bandeira, assessor de cultura da AMAM - Marajó, além de comerciantes e outros moradores locais dos Municípios de Soure e Salvaterra.

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construir seu percurso através do contato com o universo acadêmico e científico” 44

em oposição a “Cabeludo”? Ou seria mera coincidência, já que “a maior parte dos

ceramistas não teve a oportunidade - diferentemente de Mestre Cardoso e outros -

de produzir réplicas dentro do Museu Goeldi a partir de peças originais”?45

A “autenticidade” das criações tanto de mestre Cardoso quanto de Cabeludo

possui o mesmo teor, quando consideramos que:

Mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que se encontra. É nessa existência única, e somente nela, que se desdobra a história da obra. Essa história compreende não somente as transformações que ela sofreu, com a passagem do tempo, em sua estrutura física, como as relações de propriedade em que ela ingressou. Os vestígios das primeiras só podem ser investigados por análises químicas ou físicas, irrealizáveis na reprodução; os vestígios das segundas são o objeto de uma tradição, cuja reconstituição precisa partir do lugar em que se achava o original. (BENJAMIN, 1987 p.167).

Assim, considerando que “a autenticidade de uma coisa é a quintessência de

tudo o que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração

material até o seu testemunho histórico” (BENJAMIN, p. 188), um certificado de

“representações legítimas” não possui o poder de valorar a cerâmica marajoara e

menos ainda fora de seu contexto – o Marajó. Devemos considerar, portanto, que “a

esfera da autenticidade, como um todo, escapa à reprodutividade técnica, e

naturalmente não apenas à técnica” (BENJAMIN, 1987, p.186).

O artigo de Gabbay e Paiva (2008) que fala sobre exotização da cultura

marajoara para o direcionamento ao turismo é outro de tantos outros exemplos de

supressão do caboco marajoara em favor do caboclo. Os autores tomam o fator

“autenticidade” de nossa cultura como souvenir turístico elaborado a partir da

construção de um imaginário no qual se cria a ilusão de purificação étnica. Gabbay e

Paiva expõem o uso do jargão “marajoara” como medida a “suavizar” o

entendimento do público-alvo sobre a miscigenação dos atuais habitantes do

arquipélago. Assim, separam a cultura marajoara da cultura atualmente existente no

Marajó. Para eles, a cultura marajoara seria a cultura descontextualizada, (re)

produzida e embalada para o consumo turístico enquanto que a cultura do Marajó

designaria as práticas culturais, em seus mais diversos âmbitos, presentes na

44

Frade (2003 p. 124). 45

Schaan (2006 p.24 e 2009 p. 292).

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história atual da região. Os autores apontam cinco dos fatores que dão início ao

processo de engessamento do elemento “marajoara” da cultura local: a

industrialização e tradicionalização dos símbolos sem a participação efetiva da

população; o descompromisso com a condição social do homem conduzido pela

naturalização do discurso alienante e erotizante de produtos culturais massivos; a

tendência de desvinculação entre cultura e patrimônio, cultura e entretenimento e

cultura e manifestação política; o afastamento simbólico entre o cotidiano do sujeito

marajoara e a narrativa cultural sobre o mesmo, promovido pelo discurso

patrimonialista das políticas públicas voltadas à tradicionalização e museificação da

chamada cultura marajoara; e, por fim, o controle midiático e simbólico gerido por

aqueles que detém o poder político-econômico da região (GABBAY; PAIVA, 2008).

Os fatores apontados como por Gabbay e Paiva descrevem logicamente o

que eles chamam de “engessamento” do elemento “marajoara”. Assim, a

diferenciação entre a cultura marajoara e cultura do Marajó, em princípio, parece

uma saída plausível para a explicação do fenômeno descrito. Entretanto, penso que

esses e outros autores aqui referenciados tomam o elemento “marajoara” como uma

amostra a ser isolada e analisada através da hipótese coeteris paribus46. Assim o

processo de análise dos “dados” colhidos, acaba por gerar informações

equivocadas, visto que este recurso termina por arrebatar do Marajó e de seu povo –

o povo marajoara – o gentílico com e pelo qual se identifica e identifica os elementos

que pertencem ao seu território. Sendo assim, penso que isto não deva ser admitido,

uma vez que simplificar a cultura do atual povo marajoara, tornando-a meramente a

cultura de um povo “marajoense”, não condiz com o sentimento de pertencimento

que o caboco possui com sua região, seus ritos, mitos e todos os outros fenômenos

culturais dali. A meu ver, isto põe total sentido ao (des) tratamento dos dados no

molde coeteris paribus, de que falei anteriormente, uma vez que, tomando-se o

saber científico como o único válido, qualquer outro passa a ser negligenciado. Em

linhas gerais, como falar sobre o outro não é o mesmo que falar como o outro, em

nome de uma única verdade exclui-se diversas outras.

Após os registros deste tópico, creio já não ser consternador dizer que

algumas das “descobertas” arqueológicas – e outras – não seriam vistas como tal,

46

A expressão significa “tudo o mais constante”. A hipótese é utilizada para analisar elementos que influenciam e são influenciados por diversos outros, através da desconsideração dos demais elementos.

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62

se percebêssemos que (muitas delas) são apenas descrições do saber-fazer local.

Todavia, esclareço que – de forma alguma – subestimo o valor do trabalho científico.

Prova de tal acuidade é a obra de Barbosa Rodrigues que ainda no século XVIII, tal

qual as pesquisas de Schaan, teorizou (à época da invasão europeia) um continuum

da civilização dita complexa do Marajó. Os dois autores, contudo, diferem em que:

enquanto o primeiro baseia-se na etnoclassificação (desenvolvida por seu autor a

partir da interpretação das populações de então), em análises do material

arqueológico e em relatórios históricos e científicos o outro “propôs hipótese sobre a

continuidade da cultura marajoara47 durante o período histórico com base em

pesquisa realizada em sítios contemporâneos ao contato” (SCHAAN, 2006, p. 23).

Sobre as descobertas arqueológicas, citadas neste capítulo, resta-nos,

contudo, saber os porquês de tamanho descompasso entre seu conhecimento e a

chegada destas informações ao conhecimento oficial do povo brasileiro, feito através

do sistema educacional. A meu ver, isto tem permitido que se afaste, cada vez mais,

quaisquer resquícios de pertencimento e/ou traços culturais herdados pelas

populações remanescentes. Creio que essa mesma ocorrência colabora com os

projetos e movimentos que têm como aspiração as tentativas de “resgate” de uma

identidade – que já sofrera modificações. A procedência disto, outra vez, remeteria

ao descuido de nosso núcleo científico, haja vista que é ele que constrói os

discursos que nossas politicas públicas procuram atender. Entre os itens dessas

formulações que interessam a este trabalho estão a criação de reservas naturais,

cujos contrapontos começam a aparecer, os discursos preservacionistas e o

chamado preconceito positivo – que têm incentivado, cada vez mais, o abrigo na

égide racial.

Como foi apontado por Rodrigues (1994), os patrimônios nacionais foram

tomados como marco referencial identitário na formação dos Estados-nação. Deste

então, as discussões sobre o patrimônio e suas divisas conceituais têm

movimentado o meio político-acadêmico em nível mundial. Os debates surgidos são

a base para a formação das políticas de salvaguarda dos bens tomados como de

interesse coletivo. Contudo, tal interesse só parece se considerado verídico quando

abrigado na égide dos heróis e mitos que são criados nos âmbitos de poder do que

é classificado como ciência. Por sua vez, estes têm regido o sistema valorativo

47

A autora toma cultura marajoara, aqui, como a cultura restrita à fase cerâmica classificada por Betty Meggers como marajoara, como comentado.

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patrimonial – que versa sobre quem e o que pode ser considerado digno de ser

contemplado como sendo de interesse coletivo. Assim, embora haja movimentos

renovadores, como a defesa do patrimônio cultural imaterial, evidencia-se a

permanência de uma elite detentora do poder de selecionar e institucionalizar o que,

em sua concepção, seria patrimônio. Evidência disto é o fato de que exatamente a

mesma cerâmica arqueológica que está sob a guarda do MPEG é resguardada pelo

IPHAN e, ao contrário, aquela existente no Museu do Marajó sequer consta entre os

bens em processo de tombamento – apesar de que pesquisadores renomados,

como Schaan, trabalharam e trabalham ali desde sua criação.

A institucionalidade sistemática do patrimônio assenhora-se de elementos

como o saber, e a cultura, desconsiderando as evidências que não estejam em

concordância com o que é validado pelas regras vigentes nesse sistema. Isto, a meu

ver, afeta diretamente a população marajoara e sua cerâmica. É possível comprovar

esta afirmação nas duas circunstâncias aqui ponderadas: como peça de elementar

relevância histórico-científica para a incógnita origem do homem amazônida; e

quando foi abarcado como unidade identitária, quando se buscou afirmar a

brasilidade a partir de um membro distintivo. Entretanto, em todos estes universos, o

marajoara vem sendo apropriado como um item totalmente distanciado da

população e/ou território-base de seu nascimento. Dá-se assim, a desconstrução de

do patrimônio do Marajó e sua construção em contextos deslocados de sua

significância. Igualmente ocorre a formação do caboclo como um sujeito distanciado

do caboco marajoara. Neste sentido, a atual noção de patrimônio poderia

representar uma nova “pilhagem” só que, agora, aos fragmentos de memória e

herança do passado. Felizmente, já é grande o coro dos que defendem que não há

como distanciar o nativo para compreender seu patrimônio.

Quanto aos estudos arqueológicos, penso que não é um exercício difícil

perceber que muitas das interpretações descritas em autores como Meggers e

Evans (1957) sobre a origem humana na Amazônia foram as mesmas feitas em

épocas bastante remotas. Temos, então, entre diversos outros fatores, a omissão do

governo brasileiro, tendo em vista que grande parte das mesmas podem ter sido

formuladas nos estudos feitos por nossos pesquisadores. O mesmo evento parece

ter ocorrido com a obra de Barbosa Rodrigues, este importante cientista brasileiro

que tem suas metodologias, como a etnoclassificação e a etnobotânica, ainda

vigentes no âmbito científico internacional. É consternador para o país que “A

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opinião do brazileiro rarissimas vezes em sciencias, é admittida na Europa,

emquanto nós, tendo os homens illustres no paiz sempre procuramos escudar

nossas opiniões sobre cousas do paiz na de estrangeiros, que por aqui passaram a

vol d’oiseau48” (BARBOSA RODRIGUES, 1876b, p. 70 e 71). É que em ciência,

assim como na arte, ainda necessitamos de reconhecimento internacional para

darmos atenção à nossa capacidade criativa. No entanto, é reconfortante saber que

o mundo não é constituído unicamente por um circuito fechado e imbricado de

sistemas predatórios. É necessário percebermos que esses sistemas são formados

por pessoas e, assim, dar-nos conta de nosso poder modificador. Haja vista que

ainda existem personagens humanos, independente de raça ou credo, dispostos a

sacrificar um mínimo que pode representar um máximo, em prol de deixar um legado

para a coletividade. Giovanni Gallo, “o marajoara que veio de longe”, é um caso à

parte, pois doou sua subjetividade pelo todo, tornando-se um importante

personagem para o Marajó e para a cerâmica marajoara.

48

“Vôo de pássaro”. É o mesmo que traçar um quadro panorâmico, superficial, sem entrar em detalhes.

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3 A (RE) CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO MARAJOARA

A idéia básica é apresentar, não o objeto e sim o homem que está atrás do objeto: daqui se explica a declaração de que o homem é nossa peça mais importante (GALLO, 1996 p.260).

O trecho acima ilustra o pensamento de Gallo em tornar o homem marajoara

o principal elemento a ser representado pelo Museu do Marajó que, assim como um

pouco da vida deste personagem, será descrito adiante. Também representa minha

intenção (re) colocar este mesmo homem – o caboco marajoara – como agente

formador de sua cultura.

A evidenciação de correntes de pensamento que tinham como intento

(re)colocar o homem como principal agente de seu contexto social ganhou força

durante o século XX. Tais movimentos tomaram por base as concepções

antropológicas como instrumento valioso na compreensão do homem em sua

totalidade. A correlação entre cultura e patrimônio foi um dos domínios abordados,

uma vez que é a produção cultural humana que dá origem ao que é denominado

como patrimônio que, cedo ou tarde, será requisitado como legado representativo da

população que o gerou. Nessa conjuntura, a Museologia Comunitária e o conceito

de patrimônio imaterial surgem como tentativa de evidenciar o homem como

principal elemento da cultura que gera o patrimônio e abarcar o entendimento deste

a partir da concepção dos agentes culturais que o produzem. Geertz define cultura

como:

Um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens se comunicam, perpetuam e

desenvolvem seu conhecimento em relação a vida (GEERTZ, 1989, p. 103).

A cultura, tal como entendida por Geertz, alinha-se ao conceito de patrimônio

imaterial proposto pela UNESCO, uma vez que ela considera que o Patrimônio

Cultural Imaterial se transmite de geração em geração e “é constantemente recriado

pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a

natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade”

(UNESCO apud CAVALCANTI; FONSECA, 2008, p.12). Acredito ser necessário

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observar que, contudo, a concepção de patrimônio, tal qual a de cultura, não deve

ser adotada a partir de um significado universal, tendo em vista que “somos animais

incompletos e inacabados que nos completamos e acabamos através da cultura –

não através da cultura em geral, mas através de formas altamente particulares de

cultura: dobuana e javanesa, Hopi e italiana, de classe alta e de classe baixa,

acadêmica e comercial” (GEERTZ, 1978, p.61).

A partir da compreensão de que cultura e patrimônio devem ser considerados

em íntima conexão, o objetivo deste capítulo é (re) inserir o homem marajoara como

agente da cultura que produziu o patrimônio que mantém. Desta forma, procurarei

defender que a cerâmica arqueológica do Marajó figura como um patrimônio

arqueológico que deve ser considerado patrimônio imaterial do arquipélago do

Marajó. Na mesma conjuntura, apresentarei o Museu do Marajó, por considerá-lo um

dos elementos de grande representatividade da cultura marajoara e que, assim

como a cerâmica arqueológica, possui elementos que o integram tanto ao conceito

de patrimônio material quanto de imaterial, da atual legislação brasileira.

3.1 A NOVA MUSEOLOGIA PARAENSE: GALLO E O MUSEU DO MARAJÓ

Barreto (2002) ressalta que durante séculos os museus funcionaram como

“sala de curiosidades” com acesso restrito às elites sociais para as quais serviam ao

sentido estético e como simbologia do poder ou, ainda, aos interesses do clero.

Assim, não havia qualquer preocupação com o caráter educativo ou com a

comunicação entre as exposições e seu público, visto que se partia do princípio de

que os visitantes eram conhecedores dos temas expostos. Ainda segundo Barreto, o

marco na relação entre o museu e a comunidade foi a inauguração do museu do

Louvre, no final do século XVIII, quando se permitiu o acesso gratuito ao grande

público, com o intuito de divulgar os valores da burguesia dominante na pós-

revolução. Com a “democratização” dos museus, sugiram também as discussões

sobre seu lugar neste novo contexto. O valor didático das exposições passou, então,

a ser observado como recurso à correlação entre os sujeitos e o objeto museológico,

que originou a Nova Museologia.

De acordo com a Declaração de Québec (1984), a primeira expressão

internacional da chamada Museologia Comunitária ou Nova Museologia foi a “Mesa-

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Redonda de Santiago do Chile”, em 1972. Este evento foi organizado pelo Conselho

Internacional de Museus – ICOM e teve como produto final a Declaração de

Santiago do Chile. O conteúdo deste relatório versa sobre o estabelecimento de um

museu integral e a função do museu na América-Latina.

Os principais movimentos após a Mesa-redonda de Santiago do Chile,

ocorridos no continente americano e voltados às discussões sobre a Nova

Museologia tiveram como resultado a elaboração de documentos-base, a saber: a

Declaração de Québec (1984); e a Declaração de Caracas (1992).

A ideia central da Nova Museologia – e principal destaque em relação à

museologia tradicional – é a defesa de que os museus, além de servirem ao

resguardo da memória através da formação, conservação e exposições, devem ter

uma função social. A Museologia Comunitária defende, ainda, que a identificação

cultural dos sujeitos e sua memória social consistem em instrumentos de

transformação de sua realidade. Portanto, o museu deve estar integrado ao

cotidiano da sociedade onde se insere, sendo ambiente de expressão de sua

realidade e tendo em vista sua educação cívica e seu desenvolvimento social. Além

disto, deve se mantido como suporte à reflexão sobre a construção da memória

desta comunidade Declaração de Santiago do Chile (1972); Declaração de Québec

(1984); Declaração de Québec (2008).

A partir do fato de que dois dos principais marcos da Nova Museologia

ocorreram em solo Latino-Americano, acredito que as discussões imersas em nosso

contexto social contribuíram para a rápida adoção da nova visão museológica no

Brasil. O surgimento do Museu do Marajó na longínqua Santa Cruz do Arari, no

Marajó, menos de dez anos depois da Mesa-Redonda de Santiago parece

corroborar esse meu argumento. Penso que o MdM figura como uma unificação de

todos os conceitos de museu, surgidos com a Nova Museologia. O padre italiano

Giovanni Gallo, seu fundador, implementou ali as novas ideias museológicas,

ligando definitivamente sua imagem à imagem deste museu. Sendo assim, para

discorrer sobre o MdM tornou-se necessário falar sobre o contexto através do qual o

jesuíta chegou ao Brasil, bem como sua trajetória no Marajó.

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3.1.1 Os Novos Jesuítas na Amazônia

A atuação das ordens religiosas na história brasileira é permeada pela

ambiguidade em suas ações. Isto pode ser comprovado pelo fato de que,

dependendo do momento histórico e/ou do objeto investigado, esses agentes

aparecem ora aliados aos interesses políticos do Estado, ora ocupados das

demandas sociais da região onde atuam. É usual que, por este último motivo, muitos

religiosos sejam apontados como mártires. Santos (2009) aponta que, na região

amazônica, a fixação dos missionários se deu a partir do interesse da coroa

portuguesa em manter o controle político-administrativo do então Estado do

Maranhão e Grão-Pará, sendo, a estes, dada a missão de fazer aliança com as

populações indígenas dali.

Sobre a ordem mais atuante na Amazônia brasileira – a jesuítica – Dias (apud

BRASIL, 2006) relata que a mesma foi expulsa durante a reforma pombalina, em

meados do século XVIII. O mesmo autor argumenta que a concentração de poder

político-econômico da ordem, aliada às questões estratégicas do Estado brasileiro

da época, teriam sido as causas de sua expulsão. Brasil (2006) fala sobre a

supressão mundial da ordem, sua restauração no Congresso de Viena (1814) e de

seu retorno para o Brasil, no inicio do século XX, e, para a região amazônica, em

meados do mesmo século.

Quando foi restabelecida na Amazônia, a companhia de Jesus trouxe as

demandas sociais como preocupação central. Acredito que este ponto em muito

contribui para explicar as atuais relações entre a igreja e a população amazônica

nativa. Zachariadhes (2009) argumenta que, embora a Companhia de Jesus já se

houvesse anteriormente envolvido em litígios sociais, foi apenas na Congregação

Geral XXIX, de 1946, que a questão social passou a ter um peso elevado em seu

sistema doutrinal, quando “pela primeira vez na história, uma Congregação se

ocupou do apostolado social como tema dum decreto” (Jesuítas, apud

ZACHARIADHES, 2009, p.35). O autor também ressalva que a atenção ao campo

social foi intensificada em todo o mundo, sendo os jesuítas educados em “Centros

de Estudos e Ações Sociais” para melhor desenvolverem seu apostolado e que

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houve, neste sentido, uma atenção especial ao continente latino-americano, que na

época sofria com as ditaduras.

A inclusão das demandas sociais como cerne da educação religiosa dos

missionários, não só da Companhia de Jesus como também de outras instâncias da

igreja católica, parece ter surtido efeitos não esperados por ela. Isto porque, é a

partir da reafirmação do social como justificativa às obras religiosas, que

observamos notórios casos de conflitos entre as concepções religiosas dos

sacerdotes e as práticas da igreja. O surgimento de correntes religiosas, como a

Teologia da Libertação ilustra este fato.

No contexto amazônico, Maués (1991) aponta uma relação ambígua entre o

catolicismo oficial e aquele praticado por muitos dos sacerdotes que convivem com

as populações locais. O autor destaca que, mesmo sendo formados na Europa,

muitos clérigos acabam entrando em conflito com as leis eclesiásticas por

encontrarem-se “divididos entre suas lealdades” (p.77). Maués (2002) intitula como

“Catolicismo Popular Amazônico” a admissão – por parte dos missionários – de uma

religiosidade que compreende o contexto histórico-social da região. O autor entende

por catolicismo popular a prática da religião católica ajustada às especificidades

culturais de onde se manifesta sendo, esta, adotada pela maioria dos fiéis católicos

e diferente, contudo, daquela preconizada pelas autoridades eclesiásticas. Sobre a

diferença entre o catolicismo popular e o catolicismo popular amazônico, Maués

(2011) não aponta aspectos que os diferenciem, porém, sugere que eles existam (ao

tempo em que se interroga sobre quais seriam) dado que suas especificidades são

representadas e oficialmente aceitas na maior festividade religiosa da região e uma

das maiores do mundo – o Círio de Nazaré.

Acredito que as questões acima apontadas foram as principais influências

sobre a vida de Giovanni Gallo. Este jesuíta viveu por mais de trinta anos entre a

população marajoara e tentou modificar a realidade local, entrando em choque com

a prelazia do Marajó e terminando por desligar-se da Ordem por conta das pressões

sofridas.

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3.1.1.1 O Homem que Implodiu49

Deixando pra lá toda forma de inútil modéstia, posso dizer que conheço este recanto do Marajó como poucos. Não fiz minha aprendizagem engolindo monografias eruditas, mas através de uma caminhada na água, na lama, na terroada. Todo mundo me conhece aqui: eu sou Giovanni, Galo, Galinho, Galinho de ouro, Padre, Mestre, Galo da campina, Garnizé. Para as crianças simplesmente Lalá: A benção Lalá. (GALLO 1997, p. 12).

Sacerdote da Companhia de Jesus nascido em Turim, na Itália, o padre

Giovanni chegou ao Brasil no ano de 1970, estabelecendo-se na vila de Jenipapo,

município de Santa Cruz do Arari, três anos após sua chegada a país. Antes de

escolher o Marajó, o padre participou de missões na Ilha da Sardenha, Itália, na

Espanha e na Suíça, onde foi capelão dos italianos que emigraram para aquele país

em decorrência da era Mussolini. O padre Gallo foi etnógrafo, museólogo autodidata

e fotógrafo, recebendo diversas premiações por seus ofícios. O reconhecimento de

sua importância para a sociedade paraense, sobretudo a marajoara, lhe trouxe o

título de “Cidadão do Pará”.

Durante sua vivência na vila de Jenipapo e, após, em Cachoeira do Arari, o

padre Giovanni envolveu-se com questões de cunho político e social da região,

desenvolvendo diversos projetos assistenciais. Seus protestos à desassistência

governamental à população do Marajó eram feitos através de artigos, muitos deles

publicados nos principais jornais da capital paraense. Tais publicações eram

verdadeiros manifestos pelo socorro da gente marajoara, como no artigo que dizia:

“o povo fica calado, o povo aguenta. Não é fatalista, é gente nobre, e gente nobre

não chora, enfrenta as dificuldades de cabeça erguida, calado. Mas eu não fico

calado, não, porque eu não suporto essa situação absurda” Gallo (1997, p.54). A

popularidade do padre entre os nativos, bem como seu posicionamento em relação

às condições de vida destes, o levou a uma relação conflituosa com os políticos

locais e com a prelazia do Marajó. Em sua autobiografia, Giovanni evidencia ter sido

a acusação de desobediência aos votos eclesiásticos, feita por esta entidade, que o

impelira a pedir desligamento da Ordem Jesuítica, em 1984.

O padre “Galo”, como era chamado, viveu durante trinta anos nos municípios

de Santa Cruz e Cachoeira do Arari, sendo um dos maiores defensores da gente

49

Este texto foi baseado no livro “Marajó: a Ditadura da Água” Gallo (1997), uma coletânea de artigos publicados nos jornais “O Liberal” e “O Estado do Pará”, além de entrevistas e observações de campo.

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marajoara e divulgadores de sua cultura e sua herança cultural. Recebeu apoio da

população local para criar o MdM, instituição da qual foi o idealizador, criador e

mantenedor. O MdM surgiu com a visão de que “resolver o problema de comida, em

outras palavras, de sobrevivência não é tudo. Para conseguir um verdadeiro

desenvolvimento é necessário que o homem também cresça, daí a necessidade de

dar impulso à cultura” (Gallo, 1996, p.255). As pretensões do padre eram

ambiciosas, embora ele tivesse a consciência de que não seria fácil conseguir que o

museu atingisse seu objetivo:

O nosso museu em Cachoeira do Arari quer ser um pólo de desenvolvimento através da cultura. Um projeto corajoso que vai na contramão escolhendo como sede uma comunidade particularmente carente de infraestruturas básicas que seriam essenciais para a vida de um Museu, com o intuito de ser o elemento catalisador que vai provocar a realização dessas infra-estruturas” (GALLO, 2005, p.12).

Giovanni Gallo deixou ao povo marajoara o presente que demorou uma vida

de dedicação e sacrifícios para ser construído. Morreu em 2003, após mais de trinta

anos de vivência com a comunidade marajoara. Seu corpo foi sepultado no terreno

do museu, passando a integrar o acervo deste. – Não por um pedido dele! Afirma o

atual vice-diretor do museu – mas para atender a um pedido nosso (Associação dos

Amigos do Museu) e segue o relato:

(...) quando ele chegava comigo e dizia assim: ah meu filho, o Galo ta ficando velho, ta pra morrer – porque ele pensava muito nesse museu, porque a vida dele era esse museu. – O galo ta ficando velho, ele ta pra morrer. Aí eu dizia pra ele: Galo o senhor ainda não vai morrer! Ele disse: - O Galo vai morrer. - Vai morrer, mais ainda não vai ser agora. Então eu dizia pra ele: o dia que o senhor morrer, galo, nós vamos lhe enterrar aqui no museu. Ele então dizia: depois do Galo morto, faz do Galo o que quiser! Se quiser ficar olhando pro Galo: põe na vitrine, se não quiser, enterra o galo. (OTACIR GUEMAQUE, entrevista em 12 jan. 2012).

O padre Gallo foi enterrado com suas vestes sacerdotais, como desejou, já

que entendia nunca ter-se afastado de suas concepções religiosas, informa O.G.

Seu túmulo hoje é uma espécie de santuário, cercado por réplicas de igaçabas

marajoaras e velas permanentemente acesas. No quadro pendurado com sua foto

há a inscrição “Giovanni Vive” além de diversos ex-votos (Figura 9) em forma de

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mensagens, atitudes que demonstram um reconhecimento devotado por todo

empenho do padre em amenizar os problemas locais.

Figura 9 Ex-voto no Túmulo de Giovanni Gallo. Fonte: acervo próprio.

Em diversas passagens de sua autobiografia, Giovanni intui que seu nome

seria tornado importante, como quando diz que cometera “o grande pecado de me

revoltar contra a estrutura, o sistema, e quem não aceita o sistema nunca tem vez, é

condenado ao sucateamento progressivo, com a esperança de uma hipotética

reabilitação post mortem. Será que compensa?” (GALLO, 1996, p.257).

Como intuído pelo jesuita, Gallo hoje é reconhecido como “o marajoara que

veio de longe”, sendo importante personagem para o Marajó e o Pará. Seu nome e

trabalho são frequentemente utilizados na produção de obras como documentários,

reportagens, filmes e propagandas turísticas. As fotografias que fez enquanto viveu

no Marajó, muitas das quais ilustram as paredes do MdM, também são

constantemente utilizadas em exposições sobre o arquipélago, a cerâmica

marajoara e a vida na região. Entretanto, a precariedade da existência do MdM e as

dificuldades para sua manutenção denunciam a exploração perversa de uma

instituição cuja finalidade principal era representar o homem nativo – “que não é

nada mais que o elo entre o visitante e a realidade marajoara” (GALLO, 1996,

p.261).

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3.2 PARA QUEM TEM OLHOS NA PONTA DOS DEDOS50

O AFOGADO Uma cuia com uma vela acesa, descendo de bubuia no rio, o que será?! Esta pergunta é para o visitante que encontra uma cuia boiando não no rio e sim numa bacia do plástico (problemas técnicos desencorajaram o projeto de desviar o Rio Arari para fazer uma demonstração mais realística). Para facilitar, são apontadas umas opções: feitiço, adivinhação, brincadeira de crianças. O visitante, gringo ou simplesmente morador de cidade grande, só pode chutar sem muita convicção, mas o filho do Marajó certamente dirá: é para encontrar o corpo do afogado. É até provável que acrescente: no nosso rio deu certo! Mais uma confirmação do ditado: "O povo aumenta, mas não inventa!" E como funciona a truque da cuia? Só visitando o museu!

51

Percebendo que a inanição socioeconômica do Marajó é histórica e, portanto,

não poderia ser resolvida em curto prazo, Giovanni passou a buscar a projeção dos

marajoaras, junto ao poder público, com a finalidade de suas necessidades

recebessem a atenção dos governantes. Contudo, era vigente a dificuldade em

conseguir tal projeção, já que, ainda hoje, as visitas dos governantes à região do

Arari ocorrem somente em épocas estratégicas, relacionadas às articulações do

poder. Gallo (1996) conta que as condições surgiram como presente ao seu gosto,

tido como sem sentido, por objetos comuns no cotidiano da população do Arari:

Um dia seu Vadico, grande amigo e colaborador, chegou em casa com um embrulho. Sem falar, depositou-o em cima da mesa. – O que é? – Aqui estão uns negócios que não prestam, como o senhor gosta. Gostei do cumprimento, por que era o reconhecimento do meu interesse para tudo o que é do Marajó. Intrigado, apalpei com certa cautela aquele conjunto de negócios, desenrolei o papelão e descobri uma série de “cacos” de cerâmica. “Caco”, na linguagem marajoara é exatamente o termo científico das peças arqueológicas. [...] fiquei contemplando, extasiado, aquelas amostras que pareciam fruto da coleta de um abençoado arqueólogo. Uma careta caprichada, uma série de risquinhos ingênuos como de criança que brinca com um espinho, uns fragmentos de decoração incisa e excisa, um jogo simétrico, a tentativa duma figura estilizada, um peixinho, um jaburu em vôo. De tudo um pouco, só coisa fina (GALLO, 2005 - 3 ed. p. 08).

50

Este título é o mesmo que Giovanni Gallo deu ao capítulo onde descreve o MdM, em sua autobiografia “O Homem que Implodiu. As informações obtidas através da pesquisa de campo e leituras deste livro e de “Marajó a Ditadura da Água”, também de sua autoria. 51

Fonte: www.omuseudomarajo.com.br

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É com este relato que Gallo alude a ideia de criação do MdM, alojado

inicialmente no município de Santa Cruz do Arari, o último e de mais difícil acesso às

margens do rio Arari. Sua construção e constituição se deu com a participação

efetiva da Associação de Amigos do Museu, associação comunitária formada por

Gallo e que, juntamente com ele, passou a coletar as peças arqueológicas e outros

materiais etnográficos que hoje compõem o acervo do MdM. A viabilidade financeira

veio através de doação de amigos europeus do padre Giovanni e do “Projeto

Piranha”, cujos recursos adquiridos também viabilizaram outras obras assistenciais e

estruturais na comunidade de Santa Cruz. O “Projeto Piranha” consistia no

embalsamamento e exportação deste peixe à Europa, aproveitando-se sua

abundância na região do Arari. De acordo com depoimento de moradores de

Cachoeira e de Santa Cruz do Arari, o “Projeto Piranha” agravou a intriga política, já

comentada, e forçou a mudança do MdM para Cachoeira, em 1983.

Gallo (1996) conta que o padre aproveitou o convite e apoio político que

recebera em Cachoeira para fazer a transferência do MdM para a sede do

município. O museu foi alocado no galpão de uma antiga fábrica de óleo vegetal,

fruto da ideologia desenvolvimentista do período da ditadura militar “– que já nasceu

morta, como ele costumava dizer, né? Porque a fábrica era aqui e onde iam buscar

matéria-prima ficava a seis dias de viagem pra chegar” Sr. Otacir (entrevista em 12

jan. 2012).

A elaboração e disposição do acervo – com exceção da coleção de cerâmica

marajoara – foram pensadas priorizando sua total interação com o público, tendo em

vista o costume imediatamente observado por Giovanni:

A técnica de comunicação parte da idéia de que o brasileiro tem os olhos na ponta dos dedos: sempre deve mexer nas coisas que observa. Em lugar de coibi-lo, achei mais interessante incentivá-lo a seguir esse estilo nacional. Em miúdos, o Museu é um grande brinquedo. Quanto mais o visitante mexe com os painéis, mais novidades ele descobre, e isso através dos recursos de nós, numa forma não pretensiosa e sim brincalhona, definimos como computadores de marca caipira (GALLO, 1996, p. 260).

O museu do Marajó acumula características comuns às conceituações de

ecomuseu, museu hands-on, museu etnográfico, museu arqueológico e museu

histórico, atingindo o conceito de museu integral. Isto se baseia no argumento de

Santos (2000) de que este conceito de museu reúne três elementos básicos

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constituintes: um patrimônio, um território e uma população, tendo como ênfase o

homem enquanto sujeito do ato de conhecer e transformar o conhecimento e o

mundo. Acredito que o MdM cumpre todos estes requisitos, já que, “as ideias sobre

o museu, no começo, eram bastante nebulosas, mas desde então já tinha a

preocupação de dar evidência ao homem, considerando-o a peça mais importante.

Agora, aquele sonho é uma realidade para satisfazer o interesse do caboclo e do

cientista” (GALLO, 1996, p.180).

Conforme informações prestadas pelo vice-diretor do MdM, a administração

do mesmo é eleita pela Associação dos Amigos do Museu – AAM. Atualmente, este

grupo tem suas atividades fomentadas por moradores de Cachoeira do Arari sendo

aberta, contudo, a qualquer pessoa que deseje fazer parte dela. A concordância da

AAM sobre a vigência das eleições é de que elas durem quatro anos e que a

escolha dos candidatos se dê através da formação de chapas das quais, para estar

apto a participar, é necessário possuir cinco anos de vínculo associativo, além de

estar com as mensalidades em dia. O vice-diretor informou, ainda, que na época em

que o padre Gallo era vivo não havia concorrência, já que sempre houve uma única

chapa, da qual o padre era o líder. A gestão vigente é a primeira eleita através da

forma de concorrência atual, pois após a morte do padre Giovanni a administração

do museu foi assumida por pessoas que trabalhavam com ele – que também faziam

parte da AAM, e que, em sua maioria, não eram da comunidade de Cachoeira.

Esses administradores aparentemente aproveitaram-se da proximidade com o padre

para tirar proveito do árduo trabalho desenvolvido pelo mesmo, em parceria com a

população. Pessoas diretamente envolvidas na direção atual do MdM contam que só

através da intervenção do Ministério Público, a direção do MdM foi devolvida aos

atuais membros da AAM. Porém, esta devolução só ocorreu após anos de disputas

judiciais – período no qual o MdM sofreu abandono e negligência em relação ao

prédio e ao acervo, de onde foram extraviados documentos e material arqueológico.

Durante as entrevistas que realizei com a diretoria52 do MdM, fui informada de

que a manutenção do prédio e do acervo é conseguida a partir de doações feitas por

visitantes e pela comunidade de Cachoeira do Arari. Os entrevistados da diretoria,

assim como o então prefeito municipal, Jaime da Silva Barbosa (PMDB), informaram

que a instituição também recebe, ainda, um repasse mensal de R$ 600,00 da

52

A diretoria do Museu é composta por Elzeberto Rabelo (diretor), Otaci Gemaque (vice-diretor), Sandra Souza (secretária), Maria José Gama (tesoureira).

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prefeitura do município e que a mesma cede três de seus funcionários para

auxiliarem nas tarefas cotidianas do prédio. Tive ciência, ainda, de que o MdM não

possui nenhum funcionário próprio e de que, assim como no início, a população

local, incluindo os funcionários que ali trabalham, se voluntariam para a execução de

diversas tarefas.

De acordo com informações colhidas tanto na diretoria quando na Associação

dos Municípios do Arquipélago do Marajó – AMAM, nenhuma das prefeituras dos

outros municípios do Arquipélago fornece qualquer auxílio à manutenção do MdM.

O MdM e seu acervo são bastante utilizados por pesquisadores dos mais

diversos lugares do Brasil, sobretudo do estado do Pará. Na maioria das vezes, não

há retorno em forma de auxílio à sua manutenção ou ao menos através do envio do

trabalho desenvolvido, quase sempre, com a colaboração dos cabocos. O paliativo

disto é o auxílio restrito a etapa da pesquisa, quando o pesquisador chega com a

proposta de ajudar o museu e, quase sempre, constrói seu próprio reconhecimento,

dentre outros, acadêmico e midiático. Este fato não foi apontado, mas sim

observado a partir da narrativa do vice-diretor: “Na época em que o Gallo morreu,

veio. Foi a Denise Schann que trouxe, pra fazer um mutirão aqui. Veio aquele João

Ramiro (Ramid)? – que, por sinal, fez até um livro aqui... com as peças daqui, mas...

depois disso não veio mais ninguém” (entrevista em 12 de jan.). A empreitada para a

construção de uma reserva técnica para o museu, outro dos desejos de Giovanni

Gallo, sofreu a mesma ação. A construção da reserva foi alardeada na imprensa

paraense como medida extraordinária para a manutenção do museu, porém, as

medidas tomadas fazem com que o prédio não apresente a eficácia ou condição

esperada e nem, ao menos, o material catalográfico foi produzido ou não fornecido à

atual gestão.

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3.2.1 Visitando o Museu

Figura 10 Fachada do Museu do Marajó. Fonte: acervo próprio.

O Museu do Marajó está localizado na Avenida do Museu, nº 1983 (ano de

sua instalação na cidade). É devidamente registrado no Conselho Nacional de

Pessoas Jurídicas (CNPJ), Conselho Nacional de Museus (CNM) e, entre outros,

possui Título de Utilidade Pública em âmbito municipal e estadual – o que confere à

instituição reconhecimento pela prestação de serviços, sem fins lucrativos, à

sociedade. O prédio que abriga o MdM está em uma área de várzea, que encontra o

rio Arari e que sofre alagamento durante o inverno. Durante o verão, esta área é

recoberta pela vegetação fina, característica da região dos campos marajoaras. A

fachada do museu preserva a mesma moldagem da antiga fábrica oleica, onde foi

instalado, e é ornada com traçados da cerâmica marajoara.

A administração do MdM está estrategicamente situada em frente à entrada,

facilitando a vigília das visitações, já que os dirigentes acumulam as funções de

recepcionistas e zeladores, entre outras. A casa/escritório é também responsável

pela manutenção do terreno onde está um prédio, em madeira de lei e formato

circular, chamado de “a maloca achei”, “maloca do padre” ou “fazendola” – primeira

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moradia de Giovanni Gallo em Cachoeira. Tanto a casa da administração quanto a

“maloca” são palafitas “caneludas”, sendo que a maloca possui uma “perna” maior,

por se encontrar mais exposta à inundação causada pelo transbordamento do rio

Arari e pelas águas da chuva.

Adentrando-se o prédio do MdM, a visita ao acervo inicia-se logo na sala onde

está a recepção, que também possui saída para o terreno do mesmo. É sobre esta

saída que encontramos a primeira referência de criação do museu – a imagem de

Giovanni Gallo estampada.

A recepção (Figura 11), situada do lado esquerdo de quem entra, é uma

construção artesanal de bambu, ou taboca, como se costuma chamar localmente

este vegetal. Quando visitei o MdM, o material informativo se resumia a um folder

emoldurado na parede onde está a porta que dá acesso ao salão principal.

Continha algumas informações sobre o acervo interativo.

Figura 11 Recepção do Museu do Marajó. Fonte: acervo próprio.

Ali mesmo no salão de entrada havia uma das engenhocas responsáveis pela

tão famosa interatividade do museu – que Gallo chamava de “computadores

caipiras”. Essas engenhocas possuem modelos diferentes e são verdadeiros bancos

de dados constituídos de diversos painéis giratórios, pêndulos, engrenagens e

portinholas. “Com o recurso de barbantes, tabuinhas, placas móveis, tudo é

inspirado nalgum artefato de estilo popular que, quando manipulado, desvenda os

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seus segredos, exatamente como um computador de verdade” (GALLO, 1996,

p.260). Os computadores cabocos53 guardam muitos dos mistérios da vida no

Marajó e possibilitam que os mesmos sejam descobertos por elementos como a

linguagem, a história, as crenças e os métodos curativos. A descrição desses

aspectos surge em um simples levantamento/giro das manivelas, plaquinhas ou

abertura das janelinhas que compõem os “computadores”. Entretanto, o

conhecimento do mundo marajoara está ali como um presente escondido em um

jogo de labirintos, no qual o aspecto lúdico está tanto na procura quanto nas

respostas a serem encontradas. O grande inventor destes brinquedos é o Sr. Otacir

Gemaque – a quem Giovanni Gallo chamava de “professor pardal”.

Em frente à pequena área de recepção e ao lado da porta que dá acesso ao

primeiro pavilhão encontra-se a famosa caixinha de surpresas retratada em muitos

relatos de visitantes do museu, alguns deles em meio virtual. Este objeto é uma

espécie mesa de madeira cujo tampo é uma caixa onde, na lateral, lê-se na gravura:

“O museu começa aqui”. Com a aproximação é possível perceber que a caixa é

dividida em duas partes e que cada uma delas possui suas respectivas coberturas

com perguntas grafadas:

Quantos anos tem a peça mais antiga do museu?” Surpresa, incerteza e respostas absurdas. Levantando uma tampa, encontra-se a escala geológica da terra, mais em baixo, uma peça da era mesozoica, período jurássico: um fóssil, o tataravô da nossa traíra com a certidão de nascimento que espanta, 190 milhões de anos! Bem ao lado, outra pergunta intrigante: “Qual é a peça mais nova?” Embaixo, está um espelho com a escrita: “É você!”, porque cada um descobre o seu museu, seguindo os seus interesses, dirigido pela sua própria formação específica, o que estimula à procura, oferecendo a oportunidade de dar seus palpites e sua contribuição. (GALLO, 1996 p. 260).

Cruzando-se a portinhola vaivém, que leva ao primeiro pavilhão, concentra-se

o acervo arqueológico composto pela de cerâmica marajoara. Este material está

disposto em fileiras formadas por grandes vitrines individualizadas, que abrigam os

objetos maiores, e outras de menor proporção onde estão peças agrupadas

segundo sua categoria ou similaridade (tangas, inaladores, caretas etc.) (Figura 12).

53

Esses “computadores” são chamados de “computadores caboclos”, em muitos dos trabalhos e reportagens atuais sobre o MdM. Contudo, chamo de “computadores cabocos”, por achar que traz mais identificação com o povo marajoara.

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Ambos os mostruários possuem sobre suporte e arestas em madeira, como é

possível verificar na figura a seguir.

Figura 12 Seção Arqueológica d'O Museu do Marajó. Fonte: acervo próprio.

O acervo arqueológico é composto por elementos decorativos, utilitários e

rituais representados, dentre outros, por pratos, vasos, tangas, vasilhames e

igaçabas. A maioria desses objetos possui engobo ornado por traçados geométrico

de aparência simétrica e figuras antropomorfas e zoomorfas, porém, há também

alguns não estilizados. Os desenhos que não são recobertos pela cor natural, são

tingidos nas cores preta, branca e vermelha e, em alguns casos, combinam técnicas

de moldagem, entalhe e incisões, formando desenhos em alto e baixo relevo.

O estado de deterioração/preservação dos artefatos alude a distintas

datações arqueológicas e condições de aquisição, visto que, é possível encontrar

desde cacos de material cerâmico a peças inteiriças com sua estrutura e decoração

em condições perfeitas (Figura 13). Algumas dessas peças estão bastante

desbotadas, e outras têm suas representações e/ou identificação, a partir do

formato, comprometidos devido ao avançado processo de decomposição.

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Figura 13 Tangas e caretas marajoaras. Fonte: Museu do Marajó

54 e acervo próprio.

Quando visitei o MdM, não havia placas ou textos informativos sobre o

material arqueológico. Entretanto, o senhor Otacir informou-me de que as peças

foram trazidas de diversos tesos da região – o que é possível confirmar em Gallo

(1996). Tive ciência, ainda, de que as informações catalográficas sobre o material,

bem como o daqueles guardados na reserva técnica, se perderam durante o período

nebuloso, já comentado, pelo qual o museu passou. Outros documentos que contêm

estas informações encontram-se sob custódia do Museu Paraense Emílio Goeldi, de

pesquisadores que realizaram estudos MdM e da antiga gestão, segundo a mesma

fonte.

O salão onde está a seção arqueológica subdivide-se, ao final, em dois

corredores amplos que dão passagem ao próximo salão e à escada que dá acesso a

um segundo piso. Este é constituído por um tablado que forma uma espécie de

camarote de madeira, do qual é possível observar a exposição e as engenhocas das

seções baixas, dependuradas por fios presos ao teto. O acervo, tanto nos

corredores quanto na seção superior e nas inferiores, é formado por computadores

cabocos, objetos e representações dos personagens formadores da atual população

marajoara e do Brasil.

O corredor direito representa o universo da cultura negra com elementos

afirmativos de sua herança cultural, bem como “uma denúncia inteligente para gente

inteligente55, apresentada por tabuinhas penduradas numa grande taboca: o racismo

bem brasileiro revelado pela gíria de hoje. Gíria referrada ‘Eu não gosto de duas

54

Fotografia adquirida na página do Museu do Marajó em rede social. 55

O Sr. Otacir Gemaque conta que algumas pessoas entenderam como preconceito de Gallo as frases e piadas ilustrativas da discriminação contra os negros, criticando-o duramente.

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coisas: do racismo e dos pretos’” (GALLO, 1996, p.264) e muitas outras frases e

piadas preconceituosas. Entre os objetos referentes à cultura negra o acevo possui,

ainda, instrumentos de tortura e documentos históricos como uma carta de alforria

datada de 1847, na qual João Manoel da Cunha Mello “doa a liberdade à cafusa

Maria de Nazaré com a “condição, porém, dela não poder se retirar da minha

companhia em quanto eu for vivo’” (GALLO, 1996, p.264)”. Possuem, igualmente,

espaço neste setor o indígena e o nordestino e figuras como o vaqueiro e o pajé que

“naturalmente merece papel de destaque: uma série de computadores nos ensina

como funciona um trabalho, quais são os atores, os convidados, [...] o diagnóstico,

as causas e os remédios de cada doença não-natural” (p.263).

Quando o assunto é o cotidiano marajoara, a representação é feita através de

maquetes das fazendas, enfeitadas com carcaças de várias espécies de búfalo e

placas de madeira, onde estão entalhadas as ferraduras utilizadas pelos fazendeiros

da região. Há, ainda, cabines de alguns dos barcos que sofreram os naufrágios

históricos do arquipélago, animais da fauna regional e outros que instigam a

curiosidade dos visitantes, como o bezerro de duas cabeças e um enorme couro de

sucuri que ocupa um corredor e se estende ao último salão (todos embalsamados).

No painel “Marajó Ontem e Hoje” há alguidares, peneiras e outros utensílios de barro

e de fibra vegetal, utilitários do passado e presente marajoaras e, quase sempre,

acompanhados de respectivos modelos mais modernos.

O painel sobre as lendas e superstições amazônicas serve para demonstrar a

forma pela qual “o Museu prevê várias categorias de visitantes: o apressado que se

contenta em ler o nome e uma figura estilizada (vitória-régia), o mais curioso que

levanta a tampa e contempla a apresentação plástica e, por fim, o pesquisador que

lê a estória” (GALLO, 1996, p.263).

Muitas das palavras usadas pelo caboco e diversas outras de origem

indígena, bem como sua etimologia estão registradas no painel “Você Fala Tupi?”.

As tabuinhas da engenhoca trazem os termos na frente e suas respectivas

explicações no verso. “O igarapé é o riacho ou o caminho da senhora da água (a

canoa), iguaçú é a água grande (a cachoeira), ipanema (pedindo desculpas aos

cariocas) é a água que é panema, quer dizer, que não presta, dá azar ao pescador,

por que não tem peixe” (GALLO, 1996, p. 261).

Os computadores cabocos referentes às práticas curativas da região, como o

da “Pescaria da Saúde” (Figura 14) “inspirado naquela brincadeira de arraial”

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(GALLO, 1996, p.264) trazem um composto de misticismo e conhecimentos

fitoterápicos, homeopáticos e até métodos curativos polêmicos, como a

excretoterapia. Esses engendres possuem indicações de cura, tanto de males

físicos quanto espirituais, apresentados em receitas como de banhos, garrafadas e

defumações. “Na beira do computador está a relação das doenças. Puxando a

cordinha, sobre o remédio (esta é pesquisa, não prontuário!)”(GALLO, p.264).

Figura 14 Computador "Pescaria da Saúde". Fonte: Revista Pará Zero Zero

56.

Para demonstrar a integralidade do MdM à realidade de sua comunidade, cito

outras engenhocas, entre elas, o painel “Marajó de Ontem e de Hoje”57, “com uma

série de objetos que é preciso identificar e acoplar: qual era a pasta de dentes da

avó? (o pó de carvão), a bacia? (o croata de palmeira), o espanador? (a espiga de

milho) [...]” (p.265). Destaco, ainda, “A Cidade do Já Teve” e “A Cidade do Agora-já-

tem” e outros, que trazem as coisas que se perderam no tempo, os avanços e as

56

N° 11. Ano IV. 57

É também Marajó de hoje porque muitos, talvez a maioria, dos objetos descritas nesse painel seguem presentes na realidade marajoara.

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carências do Marajó e de Cachoeira. A exposição contempla, ainda, temas

contemporâneos mundiais e regionais, entre eles, questões políticas, aquecimento

global e outros temas ambientais.

A descrição feita neste trabalho, ainda que com auxílio do relato de Gallo

(1996) não consegue dar conta da diversidade de temas tratados e da importância

com do acervo do MdM para os marajoaras e para o conhecimento de sua cultura.

Mas também, “não dá para contar mais, senão quem chegar até aqui já sabe tudo,

mas, com certeza, também se dará conta de que esta descrição não consegue dar a

idéia do que está guardado nos 900 m² da Exposição Permanente” (p.264).

Contudo, “antes de sair, uma sabatina para realizar o proveito da visita, a pergunta

com a resposta oculta: tinga quer dizer pequeno, mergulhador ou branco? O que é

caiçara para o índio, o marajoara e o paulista? Piracuí é bicho, planta ou comida?”

(p.265).

O terreno do MdM representa uma miniatura da paisagem natural marajoara,

que também constitui o acervo do MdM – como informado por inscrição em uma das

janelas do prédio. Através desta, é possível avistar o arvoredo com espécies

frutíferas e outras típicas da mata nativa do Marajó. Também é possível avistar

animais domesticados e pássaros marajoaras, além das estivas de madeira que

levam ao teso, túmulo de Giovanni Gallo, e à casa onde ele passou seus últimos

anos de vida – o “cantinho do Gallo”. Esta é hoje um pequeno museu/biblioteca onde

permanecem alguns dos objetos pessoais, documentos que pertenciam ao padre,

livros didáticos e outras publicações, sendo algumas de autores marajoaras e/ou

sobre o Marajó. O terreno abriga, também, diversas construções pequenas, entre

elas, a reserva técnica do museu e a “casa do caboclo” – uma construção de bambu

cuja placa de identificação expõe “Assim Morava o Caboclo Marajoara”. A frase, com

verbo no passado, conta, porém, uma das realidades dos Marajós. É permitido

visitar o arvoredo, bem como descansar nos diversos bancos de madeira dos quais,

a maioria, está em volta das árvores, como é costume nos terrenos das casas

marajoaras.

Meu intuito ao fazer a descrição acima foi passar a percepção de que a

exposição do MdM consegue intrigar o visitante e incitá-lo às descobertas que se

fazem com “a ponta dos dedos”. Acredito que a exposição do MdM não se restringe

à apresentação/representação de fatos e contextos sociais marajoaras, mas

potencializa o diálogo e a reflexão sobre a construção histórica do lugar e seus

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desdobramentos. Isto porque o acervo comporta os mais variados aspectos a cerca

da vida cotidiana, natural, religiosa e política da região. Assim, qualquer um que

busque o conhecer da vida no Marajó tem no MdM o início mais acertado.

O MdM se configura como um patrimônio do Marajó, por ser um lugar com o

qual a população marajoara se identifica, podendo vir a se constituir num centro de

desenvolvimento socioeconômico. Contudo, a falta de recursos técnicos e de

profissionais capacitados para o manuseio, sobretudo, do material arqueológico e da

documentação – tanto dos que se encontram expostos como dos que estão sob a

guarda da administração – é uma pequena parte dos graves problemas pelos quais

o MdM passa, desde sua fundação. A carência de recursos para a manutenção do

prédio, e para o pagamento de funcionários com a função de monitoramento da

visitação é outra das questões que ameaçam seu funcionamento

Durante o trabalho de campo desta pesquisa, em que visitei o MdM,

identifiquei um razoável fluxo de visitação, apesar da limitação de acesso até o

município de Cachoeira do Arari. Em entrevistas com sete58 visitantes do museu

observei que a maioria obteve informações sobre ele em meios de hospedagem de

municípios vizinhos. Os visitantes entrevistados eram oriundos não apenas do

estado do Pará, mas também de diversos outros estados brasileiros. Pude então

conhecer a opinião destas pessoas sobre o museu durante a visitação, já que me foi

permitido acompanha-las, como comentei na introdução deste relato. “Eu soube da

existência do museu em Soure, é uma coisa extraordinária”59, contou o Dirceu

Maciel, que visitava o MdM acompanhado pelo guia da pousada onde estava

instalado em Soure. Diante de minhas perguntas sobre o que consideravam como

mais interessante no museu, estes visitantes responderam que: “O museu é pra ser

visitado, não rapidamente, tinha que ser por uns três dias [...] A piada da entrada,

achei mais interessante que todas elas”60 ; “Tudo, né! Até as crenças do povo...(...)

achei muito interessante!”61; “Os ‘cacos’ indígenas! Eu acho que eles têm um

significado muito grande, apesar de que tudo eu acho muito importante, porque, na

verdade isso é o resgate da nossa história!”.62 .

58

Estes eram componentes de grupos e, assim, entrevistei um representante de cada. 59

Dirceu Maciel. Mineiro. Entrevista em 13 fev. de 2012. 60

Idem. 61

Gilberto Perinazzi. Paranaense. Entrevista em 13 jan. de 2012. 62

Camila Amaral. Cachoeirense, moradora de Belém. Entrevista em 14 jan. 2012.

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As frases deixadas no livro de registros do MdM também servem como fonte

de informação sobre a origem dos visitantes, bem como de suas impressões sobre

a visita. Gallo (1996) registra muitas delas, deixadas por italianos, alemães, norte-

americanos, povos de língua espanhola, franceses e brasileiros. Entretanto, apesar

de sua grandiosidade, as dificuldades para a manutenção do MdM provocou o

desalento do padre, que registrou:

Os nossos recursos são raros, imprevisíveis e sempre insuficientes, o sonhado patrocinador ainda não apareceu. Será que sou um idealista ou simplesmente um visionário com a obsessão de uma façanha irrealizável? Neste momento me sinto como aquela mulher sertaneja, com o filhinho no colo que está morrendo por definhamento e, no desespero, diz ao gringo: “Você quer meu filho?

Eu lhe dou! Só quero que ele viva!” (GALLO, 1996, p. 266). 3.3 O MUSEU DO MARAJÓ E CERÂMICA MARAJORA: PATRIMÔNIOS

(I) MATERIAIS DO MARAJÓ

Os relatos históricos apresentados no capítulo anterior, assim como a

descrição de alguns dos costumes da atual população do Marajó, tiveram como

intuito demonstrar a permanência de elementos culturais herdados dos povos

primitivos do arquipélago. Na descrição do Museu do Marajó houve esforço em

destacar a importância da instituição enquanto representante das culturas dos

Marajós (do passado e presente). Minha intenção em tomar esses dois elementos a

partir de sua representatividade foi expor a característica dual desses dois

patrimônios do Marajó, uma (i) materialidade.

Gonçalves (2002) argumenta que o patrimônio é uma categoria de

pensamento que possui caráter milenar e pertence a distintas formas de

entendimento entre as sociedades humanas. Por isto, existe a necessidade de

analisá-la em referência aos diversos mundos sociais e culturais existentes.

Gonçalves também diz que, no pensamento moderno, a noção de patrimônio tende

a ser delimitada em categorias como: econômico, genético, cultural etc. Contudo, o

autor avalia essas divisões como construções históricas e que, nos permitem

“transitar de uma a outra cultura com a categoria patrimônio, desde que possamos

perceber as diversas dimensões semânticas que ela assume e não naturalizemos as

nossas representações a seu respeito” (GONÇALVES, 2002, p.23).

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Ao problematizar as distinções de patrimônio nos âmbitos acadêmico e legal

no Brasil, Simão (2003, p. 63) reflete que “em termos analíticos, a noção de

patrimônio cultural vem sendo debatida com base nos dispositivos legais que

ordenam os discursos e as ações governamentais. Em geral, adotam-se as

categorias consagradas internacionalmente”. A autora analisa, ainda, que:

Não obstante o patrimônio ser um campo de estudo atravessado por tensões entre grupos de intelectuais que disputam a legitimidade de seu próprio discurso, formulando conceitos, criando políticas, aperfeiçoando instrumentos para proteção e salvaguarda, as narrativas construídas por mais de seis décadas de política preservacionista são constantemente marcadas por discursos predominantemente ideológicos e políticos, que enfatizam a iminência da “perda” e da “descaracterização” para justificar a intervenção do Estado (SIMÃO, 2003, p.60).

Ao considerarmos as questões relativas ao Patrimônio Cultural Imaterial, a

carência de relativização, bem como da não inflição de parâmetros próprios ao que

se quer interpretar como patrimônio do “outro”, defendida por Gonçalves (2003),

contrapõe-se aos discursos que influenciam as políticas públicas brasileiras que

regem a questão, dos quais fala Simão (2003). Esses contrapontos podem tornar-se

ainda mais evidentes ao ponderarmos os atuais instrumentos de registro do

patrimônio cultural imaterial brasileiro, tendo em vista a subjetividade de quem elege

o que é importante registrar como bem cultural e, ainda, a metodologia de registro a

ser utilizada.

As atuais políticas relativas ao Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro têm

como principais instrumentos o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial (PNPI),

os Planos de Salvaguarda, o Registro e o Inventário Nacional de Referências

Culturais (INRC).

O PNPI é um programa de fomento que busca parcerias com o setor público e

privado com vistas à captação de recursos para a implantação de políticas de

salvaguarda. Estas, por sua vez, são ações que visam contribuir com “a melhoria

das condições socioambientais de produção, reprodução e transmissão de bens

culturais imateriais” (CAVALCANTI; FONSECA, 2008, p.24).

O registro “corresponde à identificação e à produção de conhecimento sobre

o bem cultural” (IPHAN apud CAVALCANTI; FONSECA, 2008, p.18), que “significa

documentar, pelos meios técnicos mais adequados, o passado e o presente da

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manifestação e suas diferentes versões, tornando essas informações amplamente

acessíveis ao público” (idem). Após a identificação e documentação, o PCI é inscrito

em um dos quatro “livros de registro”, que alocam: saberes; formas de expressão;

celebrações; e lugares. Estes elementos encerram, respectivamente: conhecimentos

e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; manifestações

literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; rituais e festas que marcam a

vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras

práticas da vida social; e mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços

onde se concentram e se reproduzem práticas culturais coletivas. Ainda segundo

Cavalcanti; Fonseca (2008, p.19) “o conhecimento produzido nesse processo é parte

fundamental para a orientação das próprias políticas públicas de salvaguarda”.

Tendo em vista a complexidade das práticas e bens associados, as autoras alinham

seu pensamento à concepção do IPHAN de que “é necessário estabelecer um

“recorte” e identificar os elementos que de fato estruturam a manifestação que se

quer registrar e que são fundamentais para sua etnografia e compreensão” (idem

p.20). Também Cavalcanti e Fonseca (2008) defendem que é o registro dos bens

culturais que indica as ações de apoio mais adequadas e viabilizam sua

salvaguarda.

Quanto ao INRC, “trata-se de uma metodologia de pesquisa adotada pelo

IPHAN, que tem como objetivo produzir conhecimento sobre os domínios da vida

social aos quais são atribuídos sentidos e valores” (CAVALCANTI; FONSECA, 2008,

p. 21) e que, além dos elementos do registro, contempla edificações relacionadas a

usos específicos, significações históricas e imagens urbanas - independentemente

de suas características arquitetônicas ou artísticas. O INRC requer três etapas, a

saber: levantamento preliminar, identificação e documentação.

Gonçalves (2003) acredita que, especialmente no Brasil, a noção de

patrimônio imaterial representa uma flexibilização nos usos da categoria

“patrimônio”, uma vez que, assim como a concepção antropológica de cultura, ela

tem sua ênfase nas relações sociais e/ou simbólicas e não em objetos e técnicas.

Contudo, o autor ressalva que é preciso identificar as bases do entendimento nativo

para não naturalizar a categoria, atribuindo-lhe um significado peculiar, portanto,

estranho ao conceito originário. Do mesmo modo, Simão (2003, p.68) defende que

“operar com as categorias nativas, como referências culturais locais, significa

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respeitar os processos internos do grupo, suas tensões, suas noções de tempo e

espaço, que em muito se diferenciam das noções de quem registra”.

Expandindo o conceito do “imaterial”, Sant’anna (2001) pensa os patrimônios

material e imaterial como faces da mesma moeda tendo como errônea, portanto, a

dicotomia material/imaterial. No mesmo raciocínio, Fonseca (2001) defende que a

noção de patrimônio imaterial não deve ser entendida como uma abstração

antônima ao concretismo do patrimônio material. A autora se baseia nas ideias de

Saussure (1969) para ponderar que toda comunicação exige um suporte físico.

Sendo assim, todo símbolo (cultural ou não) possui sua dimensão material (que

seria o canal da comunicação) e simbólica (que seria o sentido ou os sentidos).

Fonseca entende que a materialidade é relativa sendo, portanto, necessário

diferenciar manifestações culturais que possuem autonomia em relação ao seu

processo produtivo daquelas que não o têm e são constantemente atualizadas

através de seus recursos físicos (instrumentos, indumentária etc).

Esta reflexão torna possível percebermos que a cerâmica arqueológica do

Marajó também possui sua face intangível. Isto porque, se por um lado existe uma

materialidade, que pode categorizá-la como “patrimônio material”, também há a

identificação que a atual população nativa do arquipélago tem com os traçados

primitivos da mesma (e com os “tesos” onde permanece grande parte do material)

traduzida em sua aplicação. Acredito que tomar o desconhecimento de uma possível

linguagem iconográfica para considerar este pertencimento meramente como

“reinvenção da tradição”, como faz Schaan (2009), é uma concepção equivocada.

Tomando como exemplo o significado da pintura corporal indígena, é sabido que o

mesmo não é conhecido por todos os indígenas que, no entanto, se identificam com

ela e identificam traços específicos como parte de sua cultura. Portanto, tal qual a

arte dos povos indígenas atuais, a identificação cultural que o povo marajoara tem

com sua cerâmica (e com a arte de sua cerâmica) dispensa o conhecimento de

significados. Atentar para isto possibilita entender que, no atual contexto social do

Marajó, os traçados marajoaras afastam-se da possível função de comunicação

social de outrora e, todavia, aproximam-se da sensibilidade artística que é

“essencialmente uma formação coletiva” (GEERTZ, 1989, p.149) cujas bases “são

tão amplas e tão profundas como a própria vida social” (idem). A compreensão disto,

por sua vez, torna possível concordar com a concepção de Geertz de que a conexão

central entre a arte e a vida coletiva não está num plano funcional, mas sim no

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semiótico. Sendo assim, é possível conceber que também os traçados marajoaras,

utilizados no Marajó, “não celebram uma estrutura social nem pregam doutrinas

úteis. Apenas materializam uma forma de viver, e trazem um modelo específico de

pensar para o mundo dos objetos, tornando-o visível” (Geertz, 1989, p.150).

O processo de construção coletiva que possibilitou a criação do MdM, assim

como sua representatividade sobre os “conhecimentos e modos de fazer enraizados

no cotidiano das comunidades” (IPHAN apud CAVALCANTI; FONSECA, 2008, p.18)

do Marajó faz com que a instituição seja um patrimônio que igualmente ultrapassa

sua característica material. Este simbolismo está presente, não só para as

populações de Cachoeira, uma vez que também nos outros municípios a população

coletou elementos referenciais de sua comunidade, que hoje formam o acervo do

museu e, assim, construiu o sentimento de que “este museu não é de Cachoeira do

Arari, é do Marajó” (Otacir Gemaque, entrevistado em 12 fev. 2012). Além do lugar

em si, onde se traduzem os saberes das comunidades do Marajó, a face (i) material

do MdM é representada por objetos como os painéis, tabuinhas e demais artifícios.

Estas mesmas peças agregam não só uma forma específica de adaptabilidade ao

meio, já que todos são inspirados em artefatos locais, como também encerram os

mais diversos e valiosos conhecimentos sobre a região.

A necessidade de que os bens que formam o patrimônio marajoara sejam

protegidos pelos órgãos governamentais e utilizados em favor das comunidades

marajoaras é notória. Neste sentido, o registro é uma ação de grande importância no

desenvolvimento das políticas públicas que deverão “administrar” este patrimônio

convertendo-o em recurso para a sustentabilidade das comunidades do Marajó.

Entre as ações referentes a preservação de bens culturais do arquipélago,

informadas pelo portal do IPHAN, constam a realização do INRC63 e a festa de São

Sebastião de Cachoeira do Arari, que está em processo de registro. Contudo,

nenhum dos dois elementos, constam entre os trâmites de registro de patrimônio

divulgados no site oficial do IPHAN. O trabalho de Santos e Ferreira (2010) informa

que os pesquisadores que efetuaram INRC no Marajó não conheciam a região e que

era seu primeiro contato com esta metodologia. Entretanto, os autores dizem que

lhes chamou a atenção “o fato dos atores culturais contatados pela equipe de

pesquisa não reconhecerem a importância de suas práticas culturais” (SANTOS;

63

Inventário Nacional de Referências Culturais. A primeira fase ocorreu entre 2004 e 2006 e a segunda ocorreu em 2009 sendo um dos relatórios finais o trabalho de Schaan (2009).

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FERREIRA p.14) e que isto seria uma justificativa da importância do INRC Marajó

como elemento de valorização da cultura marajoara. Todos esses elementos fazem

ressurgir a questão, levantada por Simão (2003, p. 69), sobre “quem atribui valor a

quê” ou, em linhas gerais, quem julga o que deve ser considerado uma “referência

cultural” e quem decide o que não o é?

Para que a cultura (no sentido de Geertz) seja tomada como “patrimônio” (na

concepção de Patrimônio Imaterial da UNESCO) é necessário levar em conta todo o

contexto cultural onde foi gerado, considerando também o modo como ele é

pensado pela própria população. Além disso, é preciso observar que a população

marajoara não categoriza os traçados existentes na cerâmica arqueológica em

fases, como o fazem os arqueólogos, e tem como marajoara toda a cerâmica do

arquipélago (no passado e presente).

Partindo de uma concepção de patrimônio que leva em conta o ponto de vista

nativo é possível perceber um movimento que vai do particular ao geral sendo,

portanto, contrário ao que ocorreu na formação dos “patrimônios nacionais”. Desta

forma a diversidade cultural humana seria valorizada, na medida em que os bens

patrimoniais fossem considerados primeiramente em seu contexto local, para só

então alcançarem esferas mais amplas, como patrimônio nacional ou patrimônio da

humanidade. Mostra-se, então, como necessário, que as políticas públicas de

proteção e preservação sejam pensadas a partir das especificidades culturais.

Neste sentido, a Museologia Comunitária pode ser tomada como um bom

exemplo de conceito e política pública, visto que, pensada em um contexto mais

próximo da realidade brasileira, teve efeitos positivos na reafirmação de nossos

espaços e manifestações culturais. O MdM aparece como um representante de

grande relevância disto, pois foi fundado quase ao mesmo tempo que a Nova

Museologia.

Acredito que seja importante observar as discussões que ocorrem em

contexto mundial, contudo, a adoção de conceitos e metodologias importadas, ao

contrário do que foi considerado acima, tem originado consequências desastrosas.

Isto porque as politicas públicas, bem como as metodologias, incluem forçosamente

os aspectos regionais, desconsiderando particularidades culturais. Assim, a

necessidade de alinhamento com as políticas nacionais, como medida para

promover a oficialização das manifestações culturais, termina por impedir que os

bons discursos acerca do tema sejam considerados.

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Embora o INRC seja uma metodologia deficiente, como argumentado por

Belas (2005), tem sido a mais utilizada na pesquisa e documentação dos bens

patrimoniais, como afirma a mesma autora. Assim, é preciso que existam modos de

converter seus registros em benefícios às comunidades pesquisadas, como as do

Marajó. Isto poderá permitir que os saberes dessas sociedades não constem nos

arquivos oficiais unicamente como explicação/descrição de “referências culturais” ou

mesmo que sirvam a interesses escusos, ao serem utilizados comercialmente – sem

trazer benefícios à população que os originou. Os conhecimentos expostos no MdM,

por exemplo, demandam que sejam pensadas medidas de proteção urgentes. Penso

que a proposta original da instituição de contribuir para a sustentabilidade da

população local pode ser um elemento-chave de proteção dos bens que ele abriga.

Para isto, contudo, é preciso considerar que “implicada no registro de Patrimônio

Imaterial está a garantia dos direitos do autor” (Simão, 2003, p.69). Sendo assim, e

“principalmente em se tratando de conhecimentos tão difusos” (Belas, 2005, p.11)

uma possibilidade a considerar “seria o estabelecimento de um fundo no qual os

recursos seriam revertidos para o desenvolvimento de projetos com comunidades

em geral” (idem).

Schaan (2009) apresenta uma relação de instituições e outros colecionadores

de cerâmica arqueológica marajoara, aderindo ao discurso em voga sobre a

repatriação de bens culturais a seus lugares de origem. No entanto, entendo que se

faz mais urgente reterritorializar esta referência cultural, em todas as suas faces, ao

lugar de origem – o Marajó. O INRC - Marajó representa um grande passo no

sentido de reconhecer o “direito à memória” (FONSECA, 2003, p.60) das populações

que atualmente habitam o arquipélago. Mas, é preciso considerar que os

conhecimentos “tradicionais” da região marajoara são bastante comuns à região

amazônica como um todo e, a partir disto, que a cerâmica marajoara é um dos

elementos essenciais na distinção das “referencias culturais” da atual população

desse arquipélago. A necessidade desta reintegração de posse é corroborada pelo

fato de que ali, “tais bens são, simultaneamente, de natureza econômica, moral,

religiosa, mágica, política, jurídica estética e fisiológica” (GONÇALVES, 2003, p.23)

– além de territorial. Portanto, urge também o direito da população nativa em

compartilhar os benefícios gerados com o uso de seu patrimônio. É preciso

esclarecer, aqui, que não se trata de tirar o sustento de quem produz a cerâmica

marajoara como sustento às suas famílias, como os parentes do Ver-o-Peso, mas,

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como já foi dito de reterritorializar esta referência cultural ao lugar de origem.

Considerando nosso poder de interferência no contexto brasileiro, esta possibilidade

se faz mais real. Além disto, esta “repatriação” destaca-se em relação ao movimento

de repatriação dos patrimônios nacionais, pois tem inicio com o reconhecimento da

apropriação e exploração nacional de um patrimônio regional.

Resguardados os devidos argumentos ideológicos, conceituais e os valores

simbólicos dos bens culturais marajoaras, acredito que sua patrimonialização pode

ser usada como instrumento à sustentabilidade socioeconômica da população local.

Neste aspecto, seu uso turístico planejado pode vir a ser um recurso instrumental. O

MdM, como atrativo turístico e agregador máximo das referencias culturais do

arquipélago pode vir a ser um importante fomentador da valorização da cultura

marajoara.

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94

4 SOBRE O TURISMO NO MARAJÓ E NO MUSEU DO MARAJÓ

Resolver o problema da comida, em outras palavras, da sobrevivência, não é tudo. Para conseguir um verdadeiro desenvolvimento é necessário que o homem também cresça, daí a necessidade de dar impulso à cultura (GALLO, 1996, P.255).

Figura 15 Imagem antiga pertencente ao acervo do Museu do Marajó. Fonte: Revista Pará Zero Zero (PZZ)

64.

Como ilustra a citação e a fotografia (Figura 15), do mesmo autor, o Museu do

Marajó foi idealizado com o intuito de que as particularidades culturais da Amazônia

marajoara servissem à resolução dos problemas socioeconômicos da população

nativa, sendo a atividade turística pensada como um dos possíveis instrumentos.

Cabe, porém, uma ressalva ao que pode ser compreendido através da citação feita

por Gallo, posto que o “problema da comida” esteja mais próximo de uma metáfora,

tendo em vista que a interação com o meio natural no Marajó possibilita a

subsistência à população por meio de atividades como a agricultura e o extrativismo.

Entretanto, acredito ser urgente a reflexão sobre a contradição entre o baixíssimo

IDH da população marajoara e o fato de ela ser “detentora” de bens culturais e

64

N°11. Ano IV.

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naturais comprovadamente relevantes, e da histórica visibilidade internacional de

seu patrimônio.

É sabido que o turismo enquanto atividade socioeconômica é um importante

gerador de renda, e um potencial fator de sustentabilidade econômica e social. Do

mesmo modo, é conhecida sua abrangência, já que propicia o contato direto entre

diferentes grupos sociais possibilitando o (re) conhecimento e compreensão da

diversidade cultural humana. Neste aspecto, acredito que o turismo cultural favoreça

a interação entre as pessoas, fazendo com que o “saber mais” sobre o “ser” e “fazer”

do “outro” se torne uma prática habitual.

Considerando a busca de (re) conexão entre natureza e cultura, bastante em

voga, adapto o conceito de Barreto (2000) para entender o turismo cultural como um

tipo de turismo em que os principais atrativos sejam as relações sociais e a vida em

sociedade, incluindo também as relações entre sociedade e natureza.

A partir das ideias de Boff (2007), a noção de sustentabilidade pode ser

entendida como a capacidade que determinada sociedade possui em superar seus

níveis agudos de pobreza ou ter condições crescentes de diminuí-la.

Como apresentado no capítulo anterior, o Museu do Marajó é um espaço que

possui um vasto acervo sobre a vida e os costumes da população marajoara. Por

isso, embora o município de Cachoeira do Arari não possua uma infraestrutura que

possa ser considerada adequada à visitação turística, a instituição tem sido bastante

procurada por turistas que visitam o Marajó, oriundos de distintas localidades. Desta

forma, o turismo cultural apresenta-se como uma possibilidade de desenvolvimento

da sustentabilidade econômica local, bem como de sua comunidade. Para que isto

ocorra, porém, é necessário o apoio dos órgãos públicos no suprimento das

carências básicas de manutenção do prédio e acervo do MdM, bem como na

realização de ações que auxiliem para que ele possa se constituir em um mediador

dos problemas sociais da região. Neste aspecto, penso que o reconhecimento dos

bens patrimoniais do povo marajoara por parte dos órgãos públicos pertinentes e a

proteção, inclusive de seus direitos autorais, poderiam representar uma reparação

em relação a apropriação indevida desses bens culturais e de seu comércio, sem

benefício à cultura originária. O atual processo de patrimonialização cultural torna

isto possível.

A partir das ideias de Canclini (1999), entendo como “atual processo de

patrimonialização cultural” a institucionalização do patrimônio cultural material e

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imaterial através de estruturas de proteção e preservação. Penso que esta medida

pode ser um recurso à valorização, inclusive turística, do povo marajoara e do

Marajó.

O objetivo deste capítulo é apresentar um panorama do turismo no Marajó,

sobretudo da Ilha do Marajó. É também refletir sobre a visão do padre Giovanni

Gallo, de que o Museu do Marajó é um elemento-chave para a sustentabilidade

econômico-cultural da região do Arari e, talvez, de todo o arquipélago marajoara,

tendo no seu uso turístico um instrumento de modificação da realidade

socioeconômica da população nativa.

4.1 O TURISMO NO MARAJÓ E NO MUSEU DO MARAJÓ

O arquipélago do Marajó constitui um dos seis polos turísticos do estado do

Pará, no qual os municípios de Soure e Salvaterra, vizinhos à Cachoeira do Arari,

são contemplados como áreas prioritárias aos projetos de desenvolvimento do setor.

O polo está inserido apenas nos roteiros turísticos organizados pelo órgão oficial de

turismo do Pará – a Paraturismo. Entre estes roteiros encontra-se o “Amazônia

Quilombola” e o “Amazônia do Marajó”, nos quais são incluídos somente três

municípios: Ponta de Pedras, Soure e Salvaterra.

Em conformidade com as alterações relativas ao inverno e verão marajoara, a

paisagem natural do Marajó se apresenta completamente diferente se compararmos

os períodos secos e chuvosos. Isto influencia diretamente o fluxo turístico, posto

que, durante o inverno, o isolamento da parte interior da ilha principal se faz mais

acentuado, podendo ser total em algumas localidades. Assim, o turismo no

arquipélago segue a característica da sazonalidade brasileira, concentrando seu

maior fluxo durante o período do verão.

Diversos estudos apontam que o potencial turístico marajoara, é voltado,

sobretudo, para o turismo de natureza65. Isto por que o arquipélago forma um

verdadeiro labirinto de rios, lagos, paranás, furos, igarapés e outras formações

aquáticas que contrastam com os campos e florestas do entorno, apresentando uma

paisagem exuberante, que atrai os turistas que procuram este segmento. Durante o

65

Baseio-me no conceito de Fenell (2002, p. 46) de que “o turismo na natureza é a viagem com o objetivo de apreciar as áreas naturais não desenvolvidas ou a vida selvagem” para chamar de turismo de natureza todo o turismo praticado na natureza, predatório ou não.

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período chuvoso, é possível navegar entre as árvores de muitas das florestas do

Marajó – o que, contudo, só é possível utilizando as canoas da região, chamadas

cascos. As praias com suas águas cálidas, juntamente com a baixíssima salinidade

e a paisagem atlântica também formam um panorama peculiar do Marajó. Seus

terrenos planos permitem que se adentre o mar por grandes extensões, na maioria

delas. A coloração das águas dessas praias se modifica de acordo com a

proximidade com o Atlântico, uma vez que os fluídos em suspensão, que compõem

a característica “barrenta”, variam conforme encontro do Rio Amazonas com o mar.

Em relação aos aspectos culturais, as danças do Marajó possuem a

teatralidade como característica – o que lhes confere grande atratividade.

Representações como as danças do boto, da cobra-grande e do vaqueiro mostram

um pouco do cotidiano e das lendas da Amazônia. O carimbó e o lundu (ou lundum)

marajoara, com seus respectivos tocadores, mesclam os ritmos indígena e africano

em um ritmo sensual e poético.

O Marajó tem também sua “luta marajoara”, presente nas “porfias” (disputas)

dos meninos e, com menos frequência, das meninas. Como todas as modalidades,

essa luta também possui suas regras. A principal delas é fazer com que o oponente

encoste suas costas no chão. Porém, isso, para o povo marajoara representa mais

que uma simples disputa esportiva. Esta disputa está perpassada por questões

psicológicas, como a necessidade de provar a resistência física, pois o vencedor

frequente e/ou participante dos campeonatos regionais torna-se bastante respeitado.

Penso que a origem da luta marajoara é comum a outros mistérios do Marajó.

Recentemente a modalidade foi “descoberta”, passando a ser divulgada

nacionalmente. Acredito que a resistência física dos lutadores marajoaras sejam a

causa desta evidência, já que alguns deles, como o campeão de Artes Marciais

Mistas – MMA – “Yuri Marajó”, têm sido contratados também para disputar outras

modalidades.

É importante lembrar que a paisagem marajoara não é composta apenas de

elementos naturais e de representações culturais isoladas, mas também pelo modo

encontrado pelos nativos de resolver as complexidades naturais do arquipélago,

conforme as demandas da estação. Assim, o visitante atento pode observar a

reciprocidade entre o homem e seu meio e também a adaptabilidade do homem

marajoara e sua capacidade em desenvolver e operar as tecnologias necessárias à

sua sobrevivência. Da mesma forma, vale lembrar que o Marajó é um arquipélago

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amazônico e, portanto, possui as características de sua natureza “selvagem”. Sendo

assim, não é um ambiente a ser visitado sem o conhecimento mínimo da região –

especialmente sobre a fauna e sobre o período chuvoso. A partir de minha vivência

no Marajó, acredito que maioria dos acidentes que ocorrem no arquipélago (com

animais peçonhentos, afogamentos etc.) ocorra com visitantes desavisados e/ou

aventureiros que desconsideram as particularidades dos ambientes de floresta, bem

como o saber nativo.

O Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável do Arquipélago do

Marajó, elaborado pelo governo federal, em 2007, apresentou o turismo como uma

das principais alternativas ao desenvolvimento da região marajoara. A proposta

ocorreu a partir da mobilização de diversos agentes envolvidos com as questões

político-sociais do arquipélago. Contudo, somente uma pequena parcela das ações

previstas foi executada e a execução das demais é, ainda hoje, reivindicada por

diversas lideranças dos Marajós. Dentre as ações previstas nesse plano que mais

interessam a este trabalho e nas quais o município de Cachoeira do Arari é

contemplado, estão a promoção e divulgação da cultura marajoara – através de

exposições nos Marajós, em Belém e no Museu do Folclore, no Rio de Janeiro; a

inventariação e ações de proteção aos sítios arqueológicos do arquipélago; a

reestruturação do prédio do MdM e oficinas de guiamento e obras de restauro,

dentre outras.

Acredito que a ausência de um Plano Nacional de Turismo, a partir de 2010,

tenha gerado a necessidade de que os estados que pretendiam direcionar seu

desenvolvimento turístico elaborassem seu próprio documento norteador. Isto deve

ter contribuído para que o governo paraense criasse, em 2011, seu plano estratégico

de desenvolvimento – o “Ver-o-Pará” – com horizonte temporal 2012-2020. Os

dados do plano apontam o Polo Marajó como o terceiro mais vendido (da região

amazônica) no mercado internacional e na mesma posição quanto à oferta de

produtos turísticos no trade paraense. Os grafismos marajoaras foram contemplados

na criação da nova identidade turística visual do Pará e a cerâmica marajoara consta

entre os “valores do destino Pará”, da categoria “originalidade”. O lundu marajoara é

citado entre os elementos “autênticos”. Os búfalos marajoaras, bem como a

paisagem e outros elementos do arquipélago adornam o documento. Um projeto de

acessibilidade e logística do transporte de acesso à Salvaterra e Soure, bem como a

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99

construção de uma ponte sobre o rio Paracauari66 aparece como uma medida

consideradamente relevante para o setor turístico do Marajó. Entretanto, as ações

de promoção – que têm a sustentabilidade como lema – não apresentam qualquer

referência (ao menos não direta) a ações ou projetos com vistas à integração do

povo marajoara às benesses de sua promoção turística.

Embora eu não tenha me aprofundado no estudo do “Ver-o-Pará”, observei

que a elaboração do plano deu-se através da contratação de uma empresa de

marketing espanhola. Questão esta que, a meu ver, é bastante delicada, tendo em

vista todos os pontos colocados sobre a complexidade geográfica e cultural do local.

Soma-se a isto o conhecido argumento das discussões em turismo sobre que a não

preparação de uma equipe técnica local para a execução das obras, após o final do

contrato com consultorias, possa acarretar em consequências desastrosas, já

bastante conhecidas no setor. Outro ponto importante é a possibilidade de que a

melhoria do acesso ao arquipélago, sem observar as devidas necessidades da

população nativa, traga malefícios como o encarecimento do transporte à população

local e a aceleração do turismo predatório.

Em sua pesquisa “O Ecoturismo na Ilha do Marajó”, Campos (2010) relata

que o desenvolvimento turístico observado na região do Arari pode ser considerado

em estágio embrionário e de fluxo turístico espontâneo, já que é durante o verão,

mais especificamente durante o mês de julho, que se nota um aumento considerável

deste fluxo. O autor também enfatiza que grande parte deste aumento se dá devido

ao retorno, à ilha, de filhos do Marajó. Estes visitantes residem, sobretudo, em

Belém e arredores e durante o mês de férias retornam para rever parentes e amigos.

É comum levarem consigo outras pessoas, às quais usualmente dão abrigo.

Campos (2010) ressalta, ainda, a presença de um fluxo turístico, a partir de 2001,

motivado por programas televisivos. É possível verificar que, nos últimos tempos,

estes programas têm sido mais frequentes, como diversos reality shows e

documentários recentes e, ainda, a novela “Amor Eterno Amor”. É de meu

conhecimento (e também de muitos marajoaras), porém, que uma das causas desta

evidência é a propriedade de algumas das fazendas por pessoas relacionadas com

a grande mídia, entre eles, grandes atores. Da mesma forma é (ou deveria ser) de

conhecimento nacional a forte presença de políticos no arquipélago. Entre estes,

66

Este rio separa os municípios de Soure e Salvaterra. Atualmente, sua travessia ocorre em balsa em embarcações regionais – o que representa sustento aos barqueiros.

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100

Paulo César Quartiero que, após ter sido expulso das terras indígenas da Raposa

Serra do Sol, comprou uma extensa área de campo e implantou a rizicultura próximo

(cerca de quinze minutos à pé) das terras da cidade de Cachoeira. Este político tem

sido alvo de muitas críticas e acusações, entre elas, de desmatamento, poluição do

Rio Arari e seus afluentes e, inclusive, da possibilidade de estar destruindo sítios

arqueológicos.

A partir de minhas próprias observações e também de relatos de pessoas

próximas verifiquei um aumento representativo do fluxo turístico, nacional e

internacional, no Marajó. Durante a pesquisa tive a oportunidade de conversar com

diversos turistas e procurar saber sobre suas motivações. A maioria deles estava em

férias e/ou a trabalho em Belém e em regiões próximas. Dentre as que estavam a

trabalho, a maioria tinha origem estrangeira e trabalhava em navios, mineradoras e

outros setores ligados às multinacionais que atuam na região Norte. Observei, ainda,

um aumento do numero de pousadas na Ilha do Marajó, sobretudo em Cachoeira do

Arari, em que passou de um para cinco o número desses estabelecimentos67 (dos

que contei). Neste município, as pousadas têm relação com a rizicultura, uma vez

que, segundo informações de locais, a maioria dos empregados na atividade é

trazida de fora do Marajó e até mesmo do Pará. Entretanto, oferecem visitas às

fazendas de gado e a outros locais do entorno.

Embora os municípios de Soure e Salvaterra tenham sido eleitos municípios

indutores do Polo Marajó, por disporem da infraestrutura turística básica, não tem

sido “áreas prioritárias” de investimento, mas sim as únicas a receberem algum

investimento do setor público, na parte litorânea da ilha do Marajó. Entretanto, os

empreendimentos se utilizam dos atrativos das vilas e cidades do entorno,

caracterizando a prática de excursionismo. Os turistas que visitavam o MdM durante

os dias em que estive realizando minha pesquisa chegaram ali dessa maneira.

Como colocado por Campos (2010, p.13), o turismo no Marajó ainda ocorre

de maneira incipiente, já que a carência de estrutura satisfatória e a adequada

intervenção do governo do Pará soma-se à dificuldade de “agregar velhos inimigos

em torno de um objetivo comum”68. Todavia, penso que, mais que uma dificuldade,

esta fase embrionária do turismo no arquipélago é uma grande oportunidade a que

67

A estatística apresentada no “Ver-o-Pará” sobre os 38 meios de hospedagem contabilizados no Polo Marajó corroboram isto. 68

Campos refere-se aos fazendeiros da região.

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se intervenha de modo a planejar seu desenvolvimento. A inserção da população no

processo produtivo é necessária para que isto ocorra nos moldes sustentáveis

sugeridos pelo “Ver-o-Pará”. De igual modo, é evidente o cuidado para que a

progresso do setor não termine por distanciar o caboclo amazônico das suas

atividades habituais – o que é uma das ocorrências negativas observadas em

turismo, quando existe mobilização não-ponderada de determinada população, com

vistas ao desenvolvimento econômico através deste setor.

4.2 MARAJÓ: PATRIMÔNIO DE UM TURISMO INSUSTENTÁVEL

Como apresentado, os aspectos naturais e culturais do Marajó são usados na

promoção turística do estado do Pará. Contudo, apesar da sustentabilidade ser

adotada no discurso dos documentos oficiais, as políticas públicas de promoção da

atividade no estado pouco têm se preocupado em reverter aos marajoaras os

recursos financeiros adquiridos. O MdM e, sobretudo, a cerâmica marajoara fazem

parte desses elementos, uma vez que, aparecem na promoção do turismo paraense

sem, contudo, receber a devida atenção quando se trata de seu uso como

instrumento de desenvolvimento econômico e social da população marajoara ou da

proteção e/ou preservação do patrimônio e da cultura que representam.

Tavares (2009) diz que apesar de algumas ações no sentido de dinamizar a

atratividade turística, o Pará não contribui efetivamente com o desenvolvimento

socioeconômico local e que, além disto, tem dimensionado a exclusão social, entre

outros, ao reduzir a atratividade turística a aspectos naturais sem dar oportunidade

às populações nativas para a participação com seus saberes. A autora explica que

“trata-se de processos que têm assumido no espaço amazônico formas de

territorialidades múltiplas, diferenciadas e contraditórias, acompanhadas de uma

degradação dos meios, de conflitos de uso e de novas desigualdades sociais”

(TAVARES, p. 258). A autora faz as mesmas observações em relação ao Polo

Marajó, ressaltando as políticas de desenvolvimento turístico têm sido pontuais e

direcionadas a um só tipo de turismo. Assim, Tavares conclui que “o

desenvolvimento não se caracteriza pela inserção social e econômica que busque a

justiça social, equidade e a participação da sociedade local” (TAVARES, p.259).

Além das questões observadas por Tavares, é comum que ocorra a venda e

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execução de pacotes turísticos por parte do órgão onde se promovem visitações nas

quais os prejuízos causados parecem ultrapassar em muito os saldos positivos que

deveriam existir. A depredação de sítios arqueológicos, sobretudo, nas ruínas

jesuíticas da vila de Joanes, e o lixo deixado pelos turistas são alguns exemplos.

Penso que a busca de alinhamento com o marketing turístico do Pará tem acirrado

as disputas entre os agentes do turismo local (em grande parte são políticos) na

intensão de promover suas cidades como as mais paradisíacas da região. Dentre

outras, que desviam o olhar de questões mais importantes, as disputas por slogans

como e títulos como o de “capital do Marajó”.

Ao referir-se ao uso turístico do patrimônio arqueológico, Morais (2005) avalia

que este deve considerar as expectativas da comunidade que detém o patrimônio e

as normas que regulam a relação patrimônio/turismo. Assim, deve haver

precedência na elaboração de leis de preservação – o que, acredito, se estenda a

todos os outros tipos de patrimônio. Morais também enfatiza que o envolvimento da

população disponibiliza, ao turista, informações que vão além daquelas dispostas

nos roteiros e em manuais técnicos. Ao discorrer sobre o patrimônio histórico e

arquitetônico, Rodrigues (2005) observa que embora haja alguns projetos bem

sucedidos, esses elementos ainda não foram assumidos como objeto de políticas

públicas em favor do desenvolvimento social e, raramente, atende ao

desenvolvimento turístico. Muitos dos relatórios do IPHAN, resultantes de Fóruns

sobre patrimônio, também destacam a negligência do poder público em relação ao

patrimônio cultural brasileiro.

Entre outras discussões acadêmicas sobre os patrimônios brasileiros consta,

ainda, a visão amplamente aceita de que a transmissão de valores culturais, assim

como a preservação de bens patrimoniais e o fortalecimento identitário, ocorre

somente a partir da apropriação que a comunidade faz de seu patrimônio. Penso

que este discurso tem servido como base para justificar a existência de projetos

preservacionistas que, muitas vezes, servem apenas a interesses particulares. O

caso marajoara, por exemplo, assinala que essas discussões devam ter também

sentido contrário, pois, o que ocorre ali parece ser uma apropriação da apropriação

que o povo do Marajó faz de seus bens culturais, do passado e presente. A ampla

utilização da cultura marajoara na promoção turística do Pará (nacional e

internacionalmente) sem considerar que a população do Marajó tem os menores

IDHs do estado pode ser vista como um exemplo deste processo. Deste modo, é

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feita uma seleção de elementos culturais representativos de um discurso

determinado através da criação de uma realidade fictícia, com vistas a “reproduzir

uma localidade descolada do real e de estimular o fluxo de pessoas que veem a

população local como mais um elemento da paisagem” (Catão, 2006, p.258). Nela,

“o patrimônio cultural do Marajó remonta aos seus habitantes originais, os

marajoaras, considerados os grupos humanos mais antigos da Amazônia, [...]

reconhecidos pela extraordinária produção cerâmica”69 e a população atual é um

componente paisagístico de menor importância: “observe a singularidade do lugar:

búfalos caminham tranquilamente pela cidade, servem de meio de transporte e até

como montaria para garantir o policiamento dos municípios”70.

Apesar ser inegável que as discussões acadêmicas fomentem a reflexão

sobre o patrimônio, bem como sobre a relação deste com o turismo, considero que

exista pouca efetividade neste campo junto aos órgãos administrativos de interesse

público – nacionais e paraenses. Nesse sentido, o turismo estabelece suas próprias

patrimonializações, voltadas para interesses do mercado. Temos, assim, os

“patrimônios do turismo” em contraposição ao uso turístico dos bens culturais em

benefício de suas culturas geradoras. Nessa visão, o turismo torna-se insustentável

e “ávido” a “apropriar-se” das culturas locais de maneira estereotipada, terminando

por destituí-las dos direitos aos frutos gerados pela sua utilização pelo marketing

turístico e, ao mesmo tempo, da possibilidade de interferir nesta construção.

No campo acadêmico, algumas das referências ao uso turístico da cultura

marajoara, como o artigo de Gabbay e Paiva (2008) são exemplos, já que têm

distanciado a população nativa do “marajoara” enquanto seu referencial cultural. Em

âmbito prático, o uso turístico do MdM exemplifica o mesmo fenômeno, uma vez que

sua visitação turística ocorre de maneira espontânea em relação à comunidade de

Cachoeira do Arari, porém, induzida, em relação aos pacotes vendidos que tem

como destino os municípios “indutores” do Polo Marajó. Em contrapartida, é o

esforço físico e ideológico da população local que – cultiva – o MdM, desde sua

criação. Da publicidade e de tudo o mais que se faz ali resta, quase sempre, sobras

que nem sequer são suficientes à manutenção do prédio. Para isto, é necessário

pedir e esperar: “eu espero que você também ajude a gente. Toda pessoa que eu

69

Fonte: “O Pará convida: venha conhecer a obra-prima da Amazônia”, roteiro oficial da Paraturismo no qual são comercializados os municípios “indutores” do Polo Marajó: as cidades de Soure e Salvaterra. 70

Idem.

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converso eu choro um pouco, né? Choro num modo de dizer, assim, pedindo as

coisas. Eu falo pro pessoal: olha, se lá na sua casa tem um ventilador que ta te

sobrando, lá num canto, mande pra cá, por que aqui é quente demais [...] então é

assim que a gente faz” (Otacir Gemaque, entrevista em 12 fev. 2013).

4.3 CERÂMICA, MUSEU E TURISMO: ALGUMAS PROPOSTAS

Ao decidir apontar algumas alternativas para que a cerâmica marajoara,

arqueológica e atual, cumprissem a função social que, acredito, possuem em

relação ao povo do Marajó, optei por não fundamentá-las teoricamente. A motivação

disto foi a constatação que seria enfadonho discutir aqui conceitos e metodologias

como de planejamento e da chamada educação patrimonial. Isto, por sua vez, surgiu

com as pesquisas relativas aos dois temas, pois é comum que os trabalhos

acadêmicos tragam e discutam uma avalanche de conceitos para abordar o que foi

feito ou o que se pretende propor em poucas linhas. Além disto, penso que minhas

sugestões precisam ser fundamentadas em conceitos como de educação e

pesquisa, que devem ser adaptadas ao contexto cultural do Marajó. Contudo,

procurei apresentar opções para um futuro projeto, que pretendo desenvolver, mas

que também pode ser desenvolvido por outros marajoaras – aos quais me

disponibilizo a auxiliar. Assim, me baseio na concepção de Barreto (2000) quando

diz que:

Cabe ao planejador de turismo a intervenção consciente e profissional para que o patrimônio, as tradições – o legado cultural todo – possam ser transformados séria e conscientemente num produto turístico de qualidade, bom para ser usufruído também pela população local. [...] Basta pensar que o produto está dirigido não apenas a uma plateia de curiosos e forasteiros (estrangeiros ou não), mas também aos próprios cidadãos locais, que seu objetivo é mostrar às gerações jovens qual foi o processo pelo qual sua sociedade passou para chegar ao ponto onde se encontra

(BARRETO, 2000 p.75, 76).

A correlação do senso comum entre legitimidade/autenticidade unicamente à

continuidade ancestral (Grünewald, 2001), bem como do alinhamento entre os bens

culturais marajoaras com uma classificação arqueológica, vem desapropriando a

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105

população do Marajó de seus bens culturais. Em contraposição, o uso desses bens

tem privilegiado classes dominantes política, ideológica e economicamente. Este

fenômeno não é raro, uma vez que aqui mesmo em nosso continente pode ser visto

em relação aos povos descendentes de ancestrais como os Astecas, Mayas e Incas.

Em relação a todos estes e, também aos marajoaras71, somos obrigados a aceitar a

conclusão mitológica, mas também “científica”, de que “desapareceram de forma

inexplicável”. Isto, além de afastar outras possibilidades, como extermínios e

evasões motivadas por de guerras, como propôs Barbosa Rodrigues nos trabalhos

aqui citados, serve para justificar a inclusão de seus bens inteiramente como

“patrimônios da humanidade” podendo ser apropriados sem benefícios às

empobrecidas populações remanescentes72. A estas, tem bastado o reconhecer a

beleza de seu caprichoso artesanato, absolutamente desvalorizado por não ter o

glamour do nome de algum designer célebre.

O reconhecimento dos bens patrimoniais das sociedades menos privilegiadas

aparece como um avanço do pensamento social que, mais que um ato

preservacionista, pode vir a ser utilizada em benefício imediato destas sociedades.

Fonseca (2003) diz que o reconhecimento dos direitos culturais encerra também o

direito à memória como parte dos direitos sociais. Assim, a questão da preservação

se entrelaça aos direitos de propriedade (SIMÃO, 2003; FONSECA, 2003; BELAS,

2005). Tendo isto em conta, pode-se entender a patrimolialização como um fator

positivo, podendo reservar-se as criticas em relação às suas consequências a um

momento no qual os detentores do patrimônio já estejam sendo beneficiados. A

função social do direito a propriedade é incluída entre os princípios observados no

Artigo 170 da constituição federal que diz que “a ordem econômica, fundada na

valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos

existência digna, conforme os ditames da justiça social” (Brasil, 1988). É possível

entender que o uso do patrimônio cultural deveria ter como função social contribuir

com a sustentabilidade daqueles que a ele estão intrinsecamente relacionados,

como neste caso, o povo marajoara.

São muitas as possibilidades para que seja remetido aos referenciados

culturais os recursos do uso de seu patrimônio. Dentre outros, a criação de

71

Aqui me refiro ao marajoara arqueológico. 72

É importante esclarecer que, ao citar os povos indígenas descendentes, não quis dizer que a população marajoara atual possui a mesma homogeneidade étnica, mas sim que tem direito aos bens culturais produzidos por suas culturas ancestrais.

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mecanismos como a criação de um fundo “visando a repartição de benefícios nos

casos de conhecimentos de origem difusa” (BELAS, 2003, p. 42) que, segundo a

autora, já vem sendo pensado pelo Conselho de Gestão do Patrimônio Genético.

Com boa vontade, certamente não haverá dificuldade em pensar outras medidas

para a geração de recursos ao fomento de elementos básicos como a educação.

Esta é considerada como um elemento fundamental para a sustentabilidade e o

desenvolvimento humano. Sendo assim, resta sonharmos que chegue a todas as

comunidades marajoaras acompanhada das reflexões construídas no pensamento

educacional brasileiro, como a necessidade de contextualizá-la e adequá-la à

realidade local.

Considerando as possibilidades atuais para fazer o patrimônio marajoara

cumprir sua função social, temos a produção cerâmica, que tem sido usada como

forma de profissionalização e geração de renda, em Cachoeira e em outros

municípios. Este processo pode ser aproveitado como forma de educação através

da pesquisa, como propõem os trabalhos de Paulo Freire, Demo (1997) e Sofiste

(2007). Acredito que pesquisar a cerâmica, bem como aliar a aprendizagem do

saber-fazer cerâmica à pesquisa é uma proposta de grande valor social, uma vez

que, mais que a apreensão de técnicas para o consumo cultural73 é também uma

possibilidade de descoberta e, aos mais jovens, a (re) internalização deste

patrimônio como seu. Para isto, o envolvimento de nossos professores, de todas as

áreas, é imprescindível já que nossa cerâmica possui elementos suficientes para ser

explorada a partir de todas as áreas do conhecimento. Para exemplificar, temos sua

importância histórica, abordada neste trabalho, mas que deve ser continuada com a

finalidade de enriquecimento sobre nosso território. Sobre a formação do nosso

idioma, pode ser explorada a partir dos nomes. “Igaçaba” é um dos que necessita de

pesquisas aprofundadas, uma vez que hora significa uma coisa ora outra, compondo

um emaranhado de significados. Em matemática/física podemos aproveitar o jogo

entre a simetria e a falsa simetria dos traçados cerâmicos para compreendermos

como o como e o porquê deles. Que elementos químicos compõem a pintura da

cerâmica marajoara? De que é feito seu engobo? E o barro? Qual a química do

73 Consumo cultural, aqui, é entendido na perspectiva de CANCLINI (2006 p. 89): “El conjunto de

processos de apropriación y uso de productos en los que el valor simbólico prevalece sobre lós valores de uso y de câmbio, o donde al menos estos últimos se configuran subordinados a la dimensión simbólica”.

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barro? Elemento que os marajoaras manipulam na convivência com e sobre ele

deste sempre. Em ciências, podemos descobrir nossa fauna e flora representadas

nos desenhos. Em antropologia nossos mitos. Quais mitos estão representados em

nossa cerâmica? Qual a relação entre os anagramas com o nome de nossos entes

queridos em homenagem a eles e a lenda do açaí? Coincidência ou mito

explicativo? Por que no Marajó o enterro tem um quê de festança? Certamente

nenhum INRC seria capaz de registrar essas nuances. Podemos, ainda, aproveitar o

privilégio de, ainda hoje, darmos importância aos nossos os nossos idosos para

reinterpretarmos nossa sociedade a partir de nosso próprio olhar e só então

compararmos com as opiniões e teorias externas. Por que a grande maioria das

famílias marajoaras, ainda hoje, tem o elemento materno em ressaltada

importância? A arte é um belo capítulo à parte! Para incitar ainda mais a curiosidade

da pesquisa digo que se há uma linguagem iconográfica a ser lida na cerâmica

marajoara, o povo do Marajó merece interpretá-la. Estudar nossa cerâmica é um ato

de cidadania e resistência à apreensão da verdade a partir da visão alheia, pois “o

poder simbólico das representações dominantes é de alguma forma aceito e

legitimado pelos grupos dominados, que naturalizam estas representações, sem as

questionar, não percebendo também a relação de forças a qual estão sujeitos”

(CATÃO, 2004, p. 84).

Feitas as considerações a respeito da importância da cerâmica marajoara

para o povo do Marajó, é possível incluir a produção da cerâmica para o turismo,

tendo como certo que o envolvimento da população disponibiliza, ao turista,

informações que vão além daquelas dispostas nos roteiros e em manuais técnicos,

como coloca Morais (2005). Contudo, é preciso deixar fluir também a criatividade

dos nossos artistas vendo como válidas as suas inspirações na cerâmica

arqueológica, tanto quanto a reprodução desta.

O Museu do Marajó figura como um elemento fundamental na proposta de

obtenção da função social do patrimônio marajoara, pois encerra mais de trinta anos

de pesquisa e registro. Vale destacar, neste ponto, o esforço da direção do MdM em

desenvolver ações junto à população local, ainda que com dificuldades. A “vitória do

Gallo”, grupo de dança folclórica e os projetos de música são alguns dos exemplos.

Fazendo uma analogia à pirâmide das necessidades de (Maslow apud COOPER at

al), penso que, embora se tratando de uma instituição, é grande a dificuldade em

planejar ações enquanto não forem superadas suas necessidades básicas.

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Entretanto, para que não haja concentração no problema em si, é preciso pensar

medidas que, além de possibilidades de superação das tais necessidades, sejam

capazes de fazer com que o MdM finalmente chegue a ser o polo de

desenvolvimento social, sonhado por Gallo.

Para começar com a comunidade local, é preciso dar prosseguimento às

pesquisas sobre plantas e ervas medicinais, conforme pensadas por Gallo (1996).

Neste processo, é possível envolver a população a partir dos estudantes com

pesquisas feitas em seu âmbito familiar, sobretudo, através da aquisição de receitas

com os mais velhos. Penso que esta proposta encerra muito além de uma mera

conversa, a interação e o respeito familiar através do (re) conhecimento e (re)

apropriação da sabedoria dos mais velhos. Além de receitas e plantas, podem

também ser incluídos elementos, como lendas, contos, músicas, histórias, poemas

etc. É possível incitar os alunos às pesquisas bibliográficas e à elaboração própria

através da necessidade de conceituar esses elementos. Estes devem ser

catalogados para seleção e possível inclusão posterior no acervo do MdM e é válido

considerar alguma forma de registro das informações colhidas. Uma proposta para

conseguir o envolvimento dos estudantes é elaborar exposições temáticas (mitos,

ervas, lendas etc.) ao ar livre com estes trabalhos, chamando a comunidade à

participação. O terreno do MdM pode ser aproveitado para isto. É possível também

criar premiações para os trabalhos mais caprichados e/ou completos.

É importante incrementar a biblioteca do MdM através da cobrança e inclusão

de todas as pesquisas a respeito de assuntos como a Amazônia, o Marajó,

Cachoeira e, sobretudo, das pesquisas feitas no MdM. A assinatura de um termo

pelos pesquisadores que desenvolvem trabalhos no MdM poderia garantir esta

remessa. Esta ação pode trazer à comunidade a consciência sobre as questões

políticas que envolvem seu meio, bem como sobre sua visibilidade (ou ocultamento)

nacional e internacional. Uma lembrança indispensável ao incremento desta

biblioteca é o acervo Dalcídio Jurandir, nosso mais célebre escritor, que vem sendo

designado “o romancista da Amazônia” e que sua obra retrata nossos costumes e o

contexto político de nossa região.

Em relação ao acervo, além da atualização e incremento das pesquisas de

“computadores”74 como o “A cidade do agora-já-tem” e até mesmo do “A cidade do

74

Descritos no capítulo anterior.

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já-teve”, que já começavam a ser feitas quando visitei o MdM, proponho a criação do

“computador” “Tá, cheiroso!”, um espaço onde a população possa discordar de

assuntos diversos, sobretudo os pertinentes à comunidade. Podem ser criados

também outros “computadores”. Algumas ideias são o “Pior!” ou “De rocha”, para

apoiar os mesmos temas/projetos, o computador “Potoca”, para cobrar dos políticos

as promessas não cumpridas. Estas engenhocas podem ser “alimentadas”

periodicamente pela própria população e permanecer no salão da recepção, para ter

maior visibilidade.

Quanto ao turismo, é preciso inserir oficialmente o MdM nos roteiros vendidos

pelos municípios “indutores”, cobrando pela venda do atrativo – que já é feita pelos

meios de hospedagem da região, bem como por alguns roteiros externos. Neste

sentido, é preciso um trabalho de conscientização tanto por parte dos agentes do

turismo marajoara quanto do turista sobre as dificuldades e a necessidade de

manutenção do acervo e do prédio da instituição. Uma boa medida é aumentar o

ingresso para os visitantes e manter o preço/gratuidade para a população local,

como é feito na maioria dos atrativos turísticos brasileiros. A venda de lanches para

os visitantes (que, até minha ultima visita ainda não tinha sido implementada), pode

ser uma possibilidade de arrecadação de fundos para sua manutenção.

É possível também a criação de uma feira com o artesanato feito no

município. Entretanto, é preciso propor a formação de associações nas vilas e

fazendas. Como diferencial, tanto para a comunidade quanto para o turista, é

possível agregar-lhe práticas como o chamado comércio justo, onde, entre outros, o

comprador tem a possibilidade de conferir a alocação do lucro da venda – cuja maior

parte fica com o produtor. Um bom exemplo são os ditos “Negócios Sociais” –

modelos de negócios desenvolvidos a partir de soluções de mercado75 com o

objetivo de contribuir com a superação de diversos problemas sociais e ambientais

(NAIGEBORIN, 2012).76

Penso que a viabilidade das propostas acima podem vir através do apoio de

comerciantes, como já é feito para a manutenção do MdM. Mas, para a inclusão da

comunidade no turismo do Polo Marajó, assim como Tavares (2009 p. 250), acredito

75

Segundo Naigeborin (on-line), significa dizer que os Negócios Sociais possuem as mesmas regras comerciais de qualquer outro negócio e, portanto, devem ser planejados para, após um período de tempo, gerar recursos suficientes crescer. Assim, podem receber doações no início de suas atividades, mas não podem ficar dependentes disso para manter sua viabilidade econômica. 76 Artigo sem data. Fonte: http://www.artemisia.org.br

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na “necessidade de uma participação efetiva das universidades em projetos

coletivos interinstitucionais, que possibilitem a inserção dessas comunidades,

viabilizando não só o acesso, mas também sua participação nas tomadas de

decisão”.

Embora algumas destas propostas sejam ainda superficiais e/ou estejam no

campo da utopia, como a reintegração de posse da cerâmica, entendo que muitas

delas podem ser pensadas para a Universidade Federal do Marajó – projeto também

utópico, porém mais próximo de materialização. Quem sabe através da UnM não

conseguiremos fazer do Museu do Marajó um instituto de pesquisa, nos moldes que

sonhou Giovanni Gallo?

Quanto a pretensão de estatizar o MdM, como vem sendo pensado por

alguns marajoaras, paraenses e paraenses-marajoaras, penso que este recurso não

atende às necessidades do Museu do Marajó, já que ele é do Marajó e deve

permanecer sob a guarda da comunidade que o cultiva.

4.4 SOBRE O TURISMO E O TURISMO NO MARAJÓ É usual o discurso de que planejar o turismo em lugares onde existem muitas

disparidades socioeconômicas, como no Marajó, significa ter urgência em criar

mecanismos capazes de beneficiar o maior número de pessoas possível.

Observando a reciprocidade que deve haver no encontro entre anfitriões e

hóspedes, este pensamento também inclui o turista. Para que haja reciprocidade, é

necessário que a hospitalidade como base das relações em turismo – e em todas as

outras relações – seja considerada. Para Baptista (2002, p. 157), “a hospitalidade é

um modo privilegiado de encontro interpessoal marcado pela atitude de acolhimento

em relação ao outro”. Portanto, é preciso meditar também que “antes de mais nada,

o outro representa sempre um desafio, seja pela estranheza que provoca, seja pelo

fato de não ser alguém do nosso mundo, um desafio de compreensão e de

deciframento” (BOFF, 2006, p27). É importante, ainda, termos consciência de que

somos o “outro” para o “outro” e, assim, pensarmos sobre que tipo de outro estamos

sendo. É preciso, então, considerar que a relação de troca em turismo é mediada

por dinheiro – o que reduz a reciprocidade entre visitados e visitantes, como coloca

(Lashley, 2004). Assim, é necessário pensar medidas de potencial resolução deste

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conflito, entre as quais, o sentido de justiça na interação entre estes dois agentes.

Portanto, integrar o turismo em qualquer sociedade requer cuidado para que o

acolhimento e a abertura, necessários ao intercâmbio cultural positivo não sejam

apenas utopia.

No Marajó e em qualquer lugar onde se pretenda a sustentabilidade através

do turismo, é preciso que os planejadores considerem que a implantação do turismo

traz mudanças significativas à comunidade receptora. Lá, especificamente, é preciso

considerar a condição econômica da maioria da população e, assim, ter urgência em

(re) pensar o turismo de maneira sustentável. Neste sentido, comungo com Tavares

(2009), quando diz que não basta apenas identificar as potencialidades turísticas do

arquipélago medindo-as unicamente por sua rentabilidade econômica, é preciso

torná-las dinâmicas e concretas ao nível local. Entendo que a beleza, a importância

histórica e a unicidade do Marajó dispensam sua espetacularização. É preciso,

entretanto, incluir o homem como elemento principal de seu ambiente e como

principal beneficiado pela atividade. É preciso também ter o MdM como o “anfitrião”

da cultura marajoara e, assim, suprir-lhe a carência de recursos financeiros que o

mantem à margem do consumo e do turismo cultural, que pode representar a

sustentação econômica parcial ou até mesmo integral.

Embora a face mercadológica do turismo seja evidente e necessária, a

contemplação de questões como a ecologia, o fator humano e a convivência

sustentável entre estes e os demais aspectos da vida em sociedade, precisam ser

pensados. Sendo assim, não podemos permitir que ocorrências como a competição

entre os destinos turísticos nos faça negligenciar nosso código mundial de ética, que

diz que “o turismo representa uma força viva ao serviço da paz, bem como um fator

de amizade e compreensão entre os povos do mundo” (OMT p.1).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Marajó é um arquipélago localizado no estado do Pará cuja diversidade

populacional, assim, como no restante do Brasil, é intimamente relacionada a fatores

históricos. Entretanto, sua complexidade geográfica natural interferiu – e interfere –

diretamente nos mesmos. A união destes dois fatores torna-o um território

diferenciado em âmbitos como o espacial e o econômico, porém, tem reflexos mais

ressaltados na cultura de sua população. A reunião de todos estes eventos, por sua

vez, forma um emaranhado de elementos e situações que carecem do investimento

de tempo e empenho prolongados para serem descritos e/ou compreendidos.

A realidade do caboco amazônico, assim como do caboco amazônico

marajoara é constituída a partir de sua vivência com e na natureza, da qual sofre

interferência e na qual interfere na mesma proporção. Esta relação forma uma rede

que é ao mesmo tempo real e mítica e, por isto, complexa em significâncias e

significados que o unificam como homem, em relação ambiente de onde é

intrínseco. Assim, independente de questões étnicas, as diferenças econômico-

culturais que existem em relação ao restante do Brasil e em relação ao próprio

ambiente interno são mediadas pela noção de pertencimento que o povo mantém

entre si e o seu território. Por isto, devemos considerar que existem inter-relações

entre estes que rompem, até mesmo, fronteiras político-administrativas nacionais

internacionais. Esta consideração torna relativa a ideia de isolamento que se tem

sobre os Marajós e sobre todas as outras comunidades amazônicas. A interatividade

dessas populações preserva subjetividades coletivas delimitadas por noções de

pertencimento e individualizações expressas em designativos como os de origem e

território que, igualmente precisam ser relativizados. A partir desta noção procurei

expor elementos que precisam ser comtemplados sob esta perspectiva. A palavra

“caboco” e alguns de seus outros sentidos foram trazidos, como exemplo do que se

pode mal interpretar sobre o Marajó e outros contextos sociais. Ressaltei também

que, embora a região marajoara pertença ao território brasileiro, sua conjuntura

cultural diferencia-se de outras mais comumente abordadas em trabalhos

acadêmicos nacionais. Assim, conhecer/descrever as especificidades culturais da

população dali torna-se uma tarefa difícil e até mesmo inviável, quando o

pesquisador não se prolonga na convivência com a população nativa.

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O superficialismo com o qual, muitas vezes, se olha o modo de ser e ver o

mundo amazônico tem tornado a região apenas um lugar cheio de aspectos

naturais, como águas, plantas e bichos que precisam de proteção. Nesta visão, as

comunidades que ali habitam são tidas apenas como banco de dados de

conhecimentos que podem auxiliar a explicação e apropriação das riquezas deste

mundo. Assim, são comumente abordadas apenas com o intuito de que seus

saberes tácitos e implícitos sejam coletados. Entretanto, é preciso considerar que,

também elas ocupam essas áreas e que delas retiram seu alimento e outros

elementos básicos a sua manutenção – e que ali mantêm e produzem cultura.

Portanto, é necessário reconhecermos que estas populações são humanas, logo,

têm plena consciência de sua vida e do meio onde nasceram e onde, muitas vezes,

também pensam morrer. Diferentemente das populações que habitam cidades e

áreas mais “civilizadas”, as populações amazônicas (e outras) não foram alcançadas

por muitas das transformações que ocorreram na “modernização” do restante do

mundo, como o cartesianismo. Isto por que a chamada “visão holística” é

fundamental para a vida nessas regiões. Assim, embora a organização social

desses povos esteja disposta de modo a que cada indivíduo/família possua sua

especificação, de modo a suprir as necessidades da coletividade, como o fabrico de

barcos, casas, o plantio etc., seu conhecimento, embora tácito e implícito, é amplo e

variado em campos como de botânica, geografia, política etc., o que os torna

autossustentáveis em seu mundo. Entretanto, seu pouco ou inexistente poder de

influência política faz com que suas percepções, reinvindicações, e até mesmo sua

existência deixem de ser consideradas em diversos âmbitos do poder, inclusive

daquele que se costuma classificar como ciência.

Entendendo que o Marajó e sua população têm sido historicamente afetados

por todas as questões descritas acima, tentei trazer outras possibilidades de

compreensão deste mundo. No âmbito do patrimônio, a cerâmica marajoara foi

trazida como exemplo. Através desta, tentei descrever as tensões geradas, entre

outros, por um “marajoara” acadêmico produzido através da classificação da

cerâmica arqueológica do Marajó em “fases” de produção relacionadas a possíveis

grupamentos étnicos. Também busquei demonstrar que, em muitos aspectos, o

caboclo marajoara, assim como o marajoara arqueológico, têm sido “usados” para

dissolver o direito que o caboco marajoara, tem sobre seus bens culturais.

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Com o objetivo de fundamentar a existência imaterial da arte cerâmica

marajoara, bem como chamar a atenção para esta face, apresentei sua

permanência no âmbito artístico brasileiro e internacional. Esta presença teve seu

apogeu na formação do Art Déco brasileiro e é um evento que, como instiga o doutor

em História, Sérgio Barra, encerra “uma discussão interessante sobre a História da

Arte no Brasil, porque a ‘arte legitimamente nacional’ se afirma no Modernismo como

sendo o Barroco. O Art Decó, que surge uns 10 anos depois, era já um estilo

arquitetônico importado. Porém, absorve o grafismo marajoara” 77. A presença do

grafismo marajoara na história da arte brasileira também serviu de base para

corroborar que o estilo há séculos é conhecido e admirado nacional e

internacionalmente. A partir disto, também foi levantado um questionamento sobre a

improbabilidade de que tamanha beleza nunca tenha chamado a atenção, também

das populações nativas, que convivem com a vasta cerâmica arqueológica existente

no Marajó. Assim, foram colocadas questões como o apoio do Museu Paraense

Emílio Goeldi à personagens específicos da utilização dos traços marajoaras, em

detrimento de outros tantos.

No aspecto arqueológico da cerâmica marajoara, arrisquei relativizar diversas

questões a respeito da visão nativa chamando a atenção para elementos que,

embora existentes nos trabalhos acadêmicos, nem sempre são contemplados pelos

pesquisadores. Foram também apresentados trabalhos com o intuito de informar a

existência de outras visões sobre a história da região amazônica oficialmente

creditada. Entre estes, um trecho do levantamento demográfico de Baena que, ainda

em 1832, dava conta da presença indígena entre a população de Cachoeira do Arari

e, ainda, visões contrapostas, como as dos padres Antônio Vieira e José de Moraes.

A partir desses trabalhos também se pode (re) considerar temas como as

declarações de extinção das populações primitivas do arquipélago (e outras), feitas

quase um século antes, podem ter servido, e ainda servir, a interesses políticos e

ideológicos específicos. Especialmente quanto à produção cerâmica, a pesquisa de

João Barbosa foi trazida com diversas discussões sobre a arqueologia na região

amazônica. A partir de todas essas considerações, concluí que a negligência do

governo brasileiro tem permitido a abdução da cerâmica marajoara, enquanto

patrimônio do povo do Marajó, e sua apropriação em contextos distanciados do

77

Apontamento feito como em texto revisado pelo mesmo.

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território e do povo a quem se referencia culturalmente. Em relação a esta parte do

trabalho, contemplei também a possibilidade de trazer um olhar além da forma e do

método, evidenciando da necessidade de que nosso olhar de pesquisadores

contemple também questões distanciadas do universo acadêmico.

Como medida para (re) estabelecer o patrimônio marajoara em relação ao

povo do Marajó e o reconhecimento disto no olhar acadêmico, descrevi o Museu do

arquipélago. Esta instituição foi escolhida por que, além de ser um lugar de grande

representatividade da cultura marajoara representa também o movimento inicial,

feito por Giovanni Gallo, de defender a legitimidade da cultura do atual povo

marajoara, bem como a importância disto ao seu desenvolvimento socioeconômico.

A partir disto procurei, então, unir minhas ideias às de Gallo, entre outros, a partir da

visão de que a (i) materialidade da cerâmica arqueológica marajoara é um dos

elementos que mais representa esta cultura, posta a similaridade que há entre as

práticas culturais do Marajó e da Amazônia como um todo. Assim, também procurei

apresentar que tanto o MdM quanto a referida cerâmica possuem uma face imaterial

que precisa ser reconhecida, defendendo que os bens apresentados pertencem,

primeiramente, à população marajoara.

Em relação ao turismo, procurei tecer um panorama de sua existência no

Marajó. A partir da visão de que este setor se encontra em fase embrionária no

arquipélago, procurei unir minha fala a de outros autores para ressaltar a

necessidade de que esta seja aproveitada para repensar as práticas de turismo

naquela região. Além disto, busquei apresentar propostas para o aproveitamento do

fluxo turístico regional à sustentação do Museu do Marajó, assim como a

participação da população de Cachoeira do Arari neste processo.

Quanto à produção deste relatório, é importante ressaltar que foi construído

buscando considerar a opinião dos personagens entrevistados. No entanto, não foi

possível trazer aqui todas as nuances de cada fala, dada a extensão das entrevistas.

Porém, deixo registrada a desilusão comum a maioria delas quanto ao valor das

pesquisas acadêmicas e seus reflexos (ou a ausência deles) na vida dos

pesquisados. Esta pode ser traduzida na fala da senhora Cândida, residente em

uma comunidade marajoara identificada como quilombola: “no fim das contas tudo

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não passa de lári-lári”78. Em caráter pessoal, considero que foi um exercício bastante

proveitoso relativizar aspectos como leituras e opiniões, o que, em grande parte,

credito à minha orientadora. Também pude partilhar e compartilhar a

responsabilidade de elaborar um trabalho científico, com seus possíveis reflexos

sobre os personagens reais dos quais falamos.

Sobre tudo o que foi pesquisado, entendo que a relativização de questões

como a evolução humana e histórica no mundo é importante, uma vez que a partir

dela existe a compreensão de que os fenômenos não ocorrem da mesma maneira

ou ao mesmo tempo e, tampouco, de forma homogênea nas diversas regiões do

planeta. Entretanto, temas como a disparidade social brasileira mostram que ainda

há muito a ser pensado. Acredito ser uma observação interessante o fato de que as

discussões sobre o tema, quase ou sempre saltam do nível internacional ao

regional, sem percorrer outras extremidades. E, da mesma forma, considero a

necessidade de ponderarmos estes outros extremos, já que sabemos que o

desenvolvimento de nossa essência humana envolve questões sociais, econômicas

e culturais intimamente relacionadas com o tempo de suprimento de necessidades

fisiológicas básicas, como alimentação. Igualmente, sabemos que a aquisição de

recursos para suprir essas necessidades, em nossa atual estrutura social, vem com

a geração de renda e que, por sua vez, esta só é possível a partir da aquisição de

recursos capazes de nos inserir no contexto econômico. Assim, é preciso ponderar

que, apesar de ser exaltada por sua múltipla diversidade, a discrepância econômica

de nossa região amazônica em relação ao contexto nacional tem se perpetuado em

seu processo histórico. Isto não seria absurdo se não houvesse consciência do fato

por nossos gestores públicos. Tampouco seria bárbaro se muitos desses não

fossem amazônidas. A partir disto podemos notar o afunilamento de nossa espiral

exploratória que, infelizmente chega até os níveis de menor poder e segue até o

nível extremo da (in)capacidade humana, tendo seus malefícios devolvidos através

do mesmo processo. Em contrapartida, também notamos que a busca de resolução

desses problemas iniciam-se no extremo do círculo vicioso, tornando ilusórios os

discursos sobre sua erradicação. Entretanto, é inegável que este fluxo gere algum

saldo positivo, no qual é preciso apoiar-se como tentativa de saída. Considero que o

78

“Conversa furada”. Esta senhora reclamava de ter tido sua comunidade exaustivamente pesquisada sob a promessa, entre outras, de demarcação de uma propriedade que perdera. Entrevista em 20 de fevereiro de 2012.

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reconhecimento de que as “classes populares” também tem direito à memória, um

desses resultados.

É inegável que a possibilidade de acompanhar notícias felizes, como os

burburinhos sobre os novos avanços científicos e tecnológicos, bem como

presenciar a obtenção dessas inovações no cotidiano das populações “carentes”,

distancia nossa percepção de que ainda existe quem não dispõe das descobertas

feitas no século XIX, como a energia elétrica. Desta forma, setores como o

econômico e o de serviços têm desenvolvido pesquisas com base na veracidade e

continuidade de um evolucionismo social homogêneo. Acredito que o turismo,

especialmente no Brasil, tem sido um dos mais afetados por esta convicção. O fato

de que muitos dos pesquisadores do setor continuam preferindo estudar questões

como o turismo social em regiões desenvolvidas da Europa, para, então, estabelecer

parâmetros comparativos com aquele feito em nossas comunidades é, a meu ver,

uma das mais severas incongruências.

Sobre a visibilidade das consequências nocivas advindas do distanciamento

entre as questões sociais e o avanço científico e tecnológico, vale reconhecer o

valor dos pensadores que andam em sentido contrário ao “desenvolvimento”,

lançando seu olhar sobre temas tidos como antiquados que, contudo, não tiveram

possibilidade de ser compreendidos pela sociedade. As preocupações sobre o

presente e futuro da humanidade tem mostrado que a incompreensão de assuntos

abandonados sem compreensão são as causas de muitos dos males. Resta-nos,

portanto, reconhecer que é improvável que logremos voltar ao passado e consertar

os erros dali, e que, entretanto, é possível termos consciência de que na medida em

que vivenciamos o presente e que agimos sobre ele com vistas à “construção” do

futuro, estamos também construindo nosso passado. A meu ver, esta é a única

realidade temporal que realmente temos possibilidade de influenciar, já que o

presente e o futuro tornam-se passado e, no entanto, este passado é permanente.

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118

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APENDICE – AUTORIZAÇÃO DE USO DAS INFORMAÇÕES PRESTADAS

AUTORIZAÇÃO DE USO DE INFORMAÇÕES PRESTADAS

Eu,______________________________________________________________ por

meio desta, autorizo Ednez Gomes da Glória, acadêmica de Turismo pela

Universidade Federal Fluminense, a utilizar as informações por mim concedidas em

seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).

Cidade X, ------------------ de ---------------------------------- de 2012.

___________________________________________________________________

Entrevistado

ANEXO – CERÂMICA MARAJOARA

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Figura 17 – Cerâmica Marajoara Fonte: http://www.itaucultural.org.br/arqueologia/pt/tempo/marajoara/index.html

Figura 18: Vasos Marajoaras Fonte: http://www.itaucultural.org.br/arqueologia/pt/tempo/marajoara/index.html