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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE MESTRADO E DOUTORADO EM EDUCAÇÃO LÍGIA CRISTINA FERREIRA MACHADO EU SÓ QUERIA SABER POR QUE O ÓVULO TEM QUE SER DA OUTRA OVELHA? Situando o processo de construção de significados na sala de aula de Biologia NITERÓI – RJ 2007 LÍGIA CRISTINA FERREIRA MACHADO

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE MESTRADO E DOUTORADO EM EDUCAÇÃO

LÍGIA CRISTINA FERREIRA MACHADO

EU SÓ QUERIA SABER POR QUE O ÓVULO TEM QUE SER DA OUTRA OVELHA?

Situando o processo de construção de significados na sala de aula de Biologia

NITERÓI – RJ 2007

LÍGIA CRISTINA FERREIRA MACHADO

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EU SÓ QUERIA SABER POR QUE O ÓVULO TEM QUE SER DA OUTRA OVELHA?

Situando o processo de construção de significados na sala de aula de Biologia

Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor. Área de concentração: Ciência, Sociedade e Educação.

Orientador: Profª Drª Dominique Colinvaux

Niterói – RJ 2007

LÍGIA CRISTINA FERREIRA MACHADO

EU SÓ QUERIA SABER POR QUE O ÓVULO TEM QUE SER DA OUTRA OVELHA?

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Situando o processo de construção de significados na sala de aula de Biologia

Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor. Área de concentração: Ciência, Sociedade e Educação.

Aprovada em dezembro de 2007.

BANCA EXAMINADORA

Profª Drª Dominique Colinvaux – Orientador Universidade Federal Fluminense

_________________________________________________________________________

____ Profª Drª Cecília Goulart

Universidade Federal Fluminense

______________________________________________________________________________

Profº Dr Eduardo Fleury Mortimer Universidade Federal de Minas Gerais

_________________________________________________________________________

_____ Profª Drª Isabel Martins

Universidade Federal do Rio de Janeiro

______________________________________________________________________________

Prof Drª Lana Claudia de Souza Fonseca Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

_________________________________________________________________________

_____ Profª Drª Sandra Escovedo Selles Universidade Federal Fluminense

Niterói – RJ

2007

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A meus pais Gilson e Marlene Uma ausência hoje chamada saudade.

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AGRADECIMENTOS

Ao Programa de Pós-Graduação em

Educação da UFF, um espaço privilegiado

de reflexão.

À Profª Dominique Colinvaux, minha

orientadora, com quem continuo a

aprender.

A todos os professores do Programa de

Pós-Graduação em Educação com quem

convivi e, em especial, às Profª Carmem

Perez e Sandra Selles que me acolheram

em seus espaços de discussão e me

permitiram compartilhar e ampliar leituras

e idéias.

À direção do CEFET-NI, em especial ao

Profº Almir, ex-gerente acadêmico desta

unidade de ensino, sempre solidário à

realização dessa pesquisa.

Aos meus queridos alunos do CEFET-NI,

em especial as turmas 1AInfo1 e 1BTEl1

(hoje 2AInfo1 e 2BTel1), protagonistas

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desse estudo e que me resgataram o prazer

de estar em sala de aula.

A minha irmã Lúcia, companheira na dor e

na saudade, apoio constante neste

processo, por vezes solitário, de

construção traduzido em telefonemas

quase diários apenas para saber se “estava

tudo bem”.

Aos meus amigos especiais Lana e

Barzano, com quem vivenciei e

compartilhei alegrias, conquistas,

angústias e incertezas.

A Eleazar, pela revisão de texto e pelas

incansáveis discussões que me ajudaram

organizar este trabalho.

A minha amiga e sempre coordenadora,

Sandra Xisto pelo incentivo e por acreditar

no meu trabalho.

Aos companheiros de trabalho do CEFET-

NI que torceram pela realização desse

trabalho.

Aos professores Sérgio Fonseca e Helles

pelo apoio técnico na realização desse

estudo.

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[...] Condillac começa por conferir um único sentido à

estátua: o olfativo, talvez o menos complexo de todos. Um cheiro de

jasmim é o princípio da biografia da estátua; por um instante, não

haverá senão esse aroma no universo, ou melhor, esse aroma será

o universo, que, um instante depois, será cheiro de rosa e, depois

de cravo. Se houver na consciência da estátua um único perfume, já

teremos a atenção; se perdurar um perfume quando houver cessado

o estímulo, teremos a memória; se uma impressão atual e uma do

passado ocuparem a atenção da estátua, teremos a comparação; se

a estátua perceber analogias e diferenças, teremos o juízo; se a

comparação e o juízo voltarem a ocorrer, teremos a reflexão; se

uma lembrança agradável for mais vívida que uma impressão

desagradável, teremos a imaginação. Engendradas as faculdades

do entendimento, as da vontade surgirão depois: amor e ódio

(atração e aversão), esperança e medo. A consciência de ter

atravessado muitos estados dará à estátua a noção abstrata de

número; a de ser perfume de cravo e ter sido perfume de jasmim, a

noção de eu.

O autor conferirá depois a seu homem hipotético a audição,

a gustação, a visão e por fim o tato. Este último sentido lhe

revelará que existe o espaço e que, no espaço, ele existe em um

corpo [....].

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(BORGES, Jorge Luis; Guerrero, Marguerita. O Livro dos Seres Imaginários, 2006, p. 26

e 27).

RESUMO

MACHADO, Lígia Cristina Ferreira. Eu só queria saber por que o óvulo tem que ser da outra ovelha? Situando o processo de construção de significados na sala de aula de Biologia. Orientadora: Dominique Colinvaux. Niterói-RJ/UFF. Tese (Doutorado em Educação), 321 páginas. Campo de Confluência: Ciência, Sociedade e Educação; Linha de Pesquisa: Didáticas das ciências; Projeto de Pesquisa: Aprender Ciências II. Esta tese do campo de confluência Ciência, Sociedade e Educação tem como proposta investigar as práticas epistêmicas realizadas pelos alunos na construção/produção de significados no interior de uma sala de aula de Biologia a fim de caracterizá-la como uma comunidade de prática. Este estudo apóia-se teoricamente em dois eixos principais de discussão: um primeiro focalizando a noção de aprendizagem e aprendizagem situada a partir de uma perspectiva sociocultural (WERTSCH; DEL RIO; ALVAREZ, 1998; WERTSCH,1998 e 1999; LAVE; WENGER, 1995 e ENGLE; CONANT, 2002) e um segundo realizando uma aproximação entre os estudos da Sociologia da Ciência (LATOUR, 2000 e KNORR-CETINA, 1981 e 1992) e os estudos produzidos pela pesquisa na Educação em Ciências que situam, respectivamente, suas análises nos laboratórios e nas salas de aulas de ciências evidenciando particularmente o processo de construção do conhecimento científico. A partir do delineamento dessa matriz teórica, foi organizada e realizada uma unidade de ensino com o tema “Desvendando os segredos da vida: a reprodução no nível molecular” desenvolvida e vídeo-gravada ao longo de um bimestre letivo em uma turma de primeira série do curso de Telecomunicações do Ensino Médio-Técnico do CEFET unidade descentralizada de Nova Iguaçu, RJ. Além disso, obteve-se dessa mesma turma um questionário aplicado antes do inicio da unidade de ensino para levantamento das concepções desses alunos sobre o tema em questão. Para a análise do registro em vídeo-gravação adotou-se um percurso metodológico proposto por MORTIMER e SCOTT (2002) e MORTIMER et al. (2007) que permitiu a caracterização dessa sala de aula e a seleção de seqüências interativas onde se evidenciam práticas epistêmicas relativas ao processo de construção/produção de significados biológicos pelos alunos quando realizam movimentos de inter-relações entre diferentes níveis de conhecimento (estrutural, processual e relacional) bem como entre diferentes dimensões (observável, teórico explicativa e representacional) que revelam uma certa forma biológica de pensar, falar e se relacionar com o mundo. Estes aspectos situam a sala de aula de Biologia como um espaço-tempo de práticas sociais e epistêmicas, caracterizando-se como uma comunidade de prática, já que nela os alunos se engajam em processos de in-tensas negociações de significados que são re-elaborados e re-descritos na relação que mantêm com outros objetos e processos em uma perspectiva biológica. Palavras-Chave: Educação em Ciências, Ensino-aprendizagem em Biologia, Processo de significação e práticas epistêmicas.

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ABSTRACT

MACHADO, Lígia Cristina Ferreira. What I would like to know is why does the egg have to be of another ewe? Placing the process of construction of meanings in the Biology class. Supervisor: Dominique Colinvaux. Niterói-RJ/ UFF. Thesis (Doctorate in Education), 321 pages. This thesis in the field of Science, Society and Education seeks to investigate the epistemic practices which take place in the Biology classroom in order to characterize it as a community of practice. This study is based theoretically in two main points: the first deals with the notion of learning and situated learning from a socio-cultural point of view (WERTSCH; DEL RIO; ALVAREZ, 1998; WERTSCH, 1998 and 1999; LAVE; WENGER, 1995 and ENGLE; CONANT, 2002) and the second joining works in Sociology of Science (LATOUR, 2000 and KNORR-CETINA, 1981 and 1992) and works produced by the research in Science Education which deals with laboratory analyses and Science classrooms, respectively, eliciting, particularly, the process of construction of scientific meaning. From this theoretical matrix, a teaching unit, Unveiling the secrets of life: reproduction in the molecular level, was developed and video-recorded during two months in a first grade Telecomunicações of Ensino Médio at CEFET, Nova Iguaçu, Rio de Janeiro. This group also answered a questionnaire applied before the beginning of the teaching unit to know the students conceptions about the subject. The analysis of the recordings was based on the methodology proposed by MORTMER and SCOTT (2002) and MORTIMER et al (2007) which permitted the selection of interactional sequences where epistemic practices emerged related to the process of construction/production of biological meaning when students interrelated different levels of meaning (structural procedural and representational) which display a certain biological form of thinking, speaking and interacting with the world. This aspects places the Biology classroom as a time-space of epistemic and social practices characterizing it as a community of practice owing to the fact that the students engate in processes of in-tense negotiation of meanings which are re-elaborated and re-described in the relationship with other objects and processes from a biological perspective. Key-words: Science Education, Teaching and learning in Biology, Process of meaning and epistemic practices

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LISTA DE QUADROS E TABELAS

LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 - Organização das turmas do CEFET-NI em 2006, p. 99

QUADRO 2 - Síntese das atividades “Desvendando o segredo da vida: a reprodução no

nível molecular”, p. 107

QUADRO 3 - Sumário das atividades – uma primeira aproximação aos dados, p. 149

QUADRO 4 - Seqüências analisadas no capítulo 7, p. 171

QUADRO 5 – Seqüências analisadas no capitulo 8, p. 205

QUADRO 6 - Práticas envolvidas na atividade de laboratório, p. 212

LISTA DE TABELAS TABELA 1A - O que acontece com as partes da célula seccionada?, p. 127

TABELA 1B - Como você explicaria os resultados obtidos?, p. 128

TABELA 2 - Os efeitos da radiação nas células, p. 132

TABELA 3A - O que são clones?, p. 134

TABELA 3B - A clonagem e uma forma de reprodução natural?, p. 135

TABELA 3C - Clonagem e reprodução humana, p. 137

TABELA 4 - Explicando a síndrome de Down, p. 140

TABELA 5 - Os organismos geneticamente modificados, p. 143

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO: UMA PRIMEIRA APROXIMAÇÃO AO ESTUDO, p. 14

1.1 Gênese do Problema, p. 14

1.2 Os objetivos do Estudo, p. 23

1.3 Justificativa do Estudo, p. 24

1.4 Organização do Estudo, p. 31

2. UMA DISCUSSÃO EM TORNO DA NOÇÃO DE APRENDIZAGEM, p. 34

2.1 De uma perspectiva comportamental a uma perspectiva cognitivista: elementos

gerais para situar a noção de aprendizagem, p. 35

2.2 Situando a pesquisa sociocultural e a noção de ação mediada, p. 45

2.3 A aprendizagem na pesquisa sociocultural: ou de quando a aprendizagem se torna

situada, p. 55

3. UMA APROXIMAÇÃO ENTRE A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

CIENTÍFICO E A PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS: REVELANDO

PRÁTICAS CIENTÍFICAS E PRÁTICAS CIENTÍFICAS ESCOLARES, p. 67

3.1 Knorr-Cetina vai ao laboratório e resgata a contextualidade da Ciência, p. 68

3.2 Latour vai ao laboratório e encontra incertezas, concorrência e controvérsias, p. 73

3.3 A pesquisa em Educação em Ciências vai à sala de aula e encontra um espaço social

complexo e multifacetado, p. 81

3.4 Sistematizando a discussão, p. 92

4. SALA DE AULA DE BIOLOGIA: COMO E O QUÊ INVESTIGAR?, p. 94

4.1 Definindo o referencial teórico-metodológico do estudo, p. 94

4.2 Situando o lugar de investigação: o CEFET – Nova Iguaçu, p. 95

4.3 A turma estudada: apresentando os sujeitos da pesquisa, p. 100

4.4 Sobre as atividades: princípios de organização e justificativa, p. 102

4.5 Detalhamento das atividades de ensino-aprendizagem, p. 108

4.6 Sobre o processo de coleta de dados, p. 113

4.7 Sobre o processo de análise de dados, p. 118

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Em relação ao registros videogravados, p. 118

Em relação aos questionários, p. 122

4.8 A articulação entre teoria e empiria, p. 123

5. O QUE SABEM E COMO SABEM OS ALUNOS QUANDO O TEMA ENVOLVE

O DNA, p. 125

5.1 A relação núcleo e função, p. 126

5.2 A relação radiação e atividade celular, p. 128

5.3 Clones: O que são? Como são produzidos?, p. 132

5.4 Síndrome de Down: elaborando possíveis explicações, p. 139

5.5 Sobre os organismos geneticamente modificados, p. 143

5.6 Sistematizando a análise dos questionários, p. 145

6. SALA DE AULA DE BIOLOGIA: ESPAÇO DE INTERLOCUÇÃO E

DINÂMICA PEDAGÓGICA, p. 148

6.1 A primeira aula: o núcleo celular e sua estrutura e funções, p. 150

6.2 A segunda aula: a molécula do DNA - onde a vida começa?. P. 155

6.3 A terceira aula: resgatando a estrutura do DNA e seu processo de autoduplicação, p.

158

6.4 A quarta aula: trabalhando com o cariótipo humano – o aconselhamento genético, p.

162

6.5 A quinta aula: ácidos nucléicos e o código da vida – a síntese de proteínas, p. 164

6.6 A sexta aula: clonagem, células-tronco e organismos transgênicos – aprofundando a

discussão, p. 167

6.7 Sistematizando a análise, p. 168

7. SALA DE AULA DE BIOLOGIA: SITUANDO O PROCESSO DE

CONSTRUÇÃO DE SIGNIFICADOS PELOS ALUNOS, p. 170

7.1 Evidenciando relações entre estrutura e classificação dos seres vivos e estrutura e

função nuclear, p. 172

7.2 O que seria de uma árvore sem folhas: reconhecendo inter-relações estruturais e

funcionais na/da célula, p. 176

7.3 E o que acontece com as hemácias que não têm núcleo? , p. 180

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7.4 Camila tem uma hipótese: explicando o papel do DNA-lixo, p. 184

7.5 Por que o óvulo tem de ser da outra ovelha? Dando visibilidade à instabilidade

conceitual dos alunos, p. 190

7.6 Ainda sobre clones e clonagem: evidenciando a reelaboração de significados, p. 195

7.7 Uma articulação entre o observável e o microscópico: significando o conceito de transgênico, p. 199

7.8 Sistematizando nossa análise, p. 202

8. SALA DE AULA DE BIOLOGIA: DOS FATOS ÀS COISAS E DAS COISAS

AOS FATOS, p. 204

8.1 Uma breve discussão acerca do papel das atividades práticas no processo de ensino-

aprendizagem em ciências, p. 206

8.2 Uma caracterização da atividade de laboratório: extraindo DNA da cebola, p. 209

8.2.1 Sobre os objetivos da atividade, p. 210

8.2.2 Sobre as características da atividade, p. 210

8.3 Cenas de uma atividade de laboratório escolar, p. 213

8.4 Dos fatos aos textos: ou de quando os alunos produzem relatórios, p. 221

9. SALA DE AULA DE BIOLOGIA: SISTEMATIZANDO E APROFUNDANDO O

TEMA DE ESTUDO, p. 230

9.1 Estrutura geral e formas de abordagem da apresentação dos trabalhos dos alunos, p.

231

9.2 Tecendo relações para situar as temáticas, p. 233

9.3 Fazendo uso de conceitos anteriormente construídos para explicar novas situações,

p. 238

9.4 Evidenciando a superação de possíveis instabilidades conceituais, p. 241

9.5 Evidenciando as dimensões éticas que envolvem a produção científica, p. 244

10. CONSIDERAÇÕES FINAIS, p. 248

10.1 O que ganha visibilidade na sala de aula de Biologia: uma primeira aproximação a

partir das concepções dos alunos acerca de DNA e da dinâmica pedagógica, p. 249

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10.2 Encaminhando uma forma biológica de pensar, olhar e se relacionar com o

mundo, p. 254

10.3 Implicações pedagógicas: problematizações e diversidade de atividades, p. 267

10.4 Limitações do estudo e perspectivas para novas investigações, p. 271

11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, p. 275

12. ANEXOS

Anexo I: Grade Curricular do Ensino Médio – CEFET-NI, p. 284

Anexo II: Atividade: Dolly, o núcleo e os clones, p. 286

Anexo III: Atividade: Construindo Idiograma, p. 289

Anexo IV: Atividade: Modelo para síntese de proteínas, p. 299

Anexo V: Mapa geral: primeira leitura das videogravações, p. 304

Anexo VI: Mapa geral: segunda leitura das videogravações, p. 307

Anexo VII: Mapa geral: terceira leitura das videogravações, p. 311

Anexo VIII: Autorização dos pais e do CEFET, p. 316

Anexo XIX: Atividade de laboratório – relatórios produzidos pelos alunos, p. 318

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1. INTRODUÇÃO: UMA PRIMEIRA APROXIMAÇÃO AO ESTUDO

O problema da educação científica é, em definitivo, essencialmente análogo ao da colonização de um território, em que o aspecto mais importante não é tanto de saber entrar pelo caminho correto e percorrê-lo até certo ponto, mas o de encontrar critérios com que proceder, organizando o território, dominando as próprias reservas e as próprias possibilidades, e tratando de aumentá-lo. (Arcà, Guidoni; Mazzoli, 1990, p.23)

Neste estudo, que passamos a apresentar, focalizamos uma sala de aula de Biologia do

ensino médio-técnico de uma instituição pública na qual atuamos como professora com o

propósito de evidenciar o processo de aprendizagem situando, particularmente, a construção de

significados biológicos pelos alunos no curso das interações que se estabelecem neste espaço.

1.1 A gênese do problema:

Questões relacionadas aos processos de ensino-aprendizagem em ciências nos

acompanham há algum tempo uma vez que vimos atuando como professora de Biologia no

Ensino Médio da rede pública de ensino por mais de dez anos. Ao longo desse processo de

constituição do “ser” professora, dois aspectos parecem gerar algumas inquietações que exigem

reflexões e discussões mais aprofundadas: de um lado, as características e peculiaridades

inerentes ao próprio conhecimento científico; de outro, mas diretamente relacionado ao primeiro,

como oportunizar/viabilizar o processo escolar de construção desse conhecimento científico pelos

alunos. Estes dois aspectos sinalizam, respectivamente, preocupações com “o que” se deve

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ensinar e aprender e “como” se deve ensinar/promover a aprendizagem em uma sala de aula de

Biologia.

Em relação ao conhecimento científico, temos aprendido, juntamente com a filosofia

contemporânea, particularmente com os estudos de Kuhn (1992), que a produção do

conhecimento científico envolve processos de crises paradigmáticas, rupturas, descontinuidades e

parece menos linear e cumulativo do que pensado pelo paradigma positivista. Nas palavras de

Kuhn (1992, p. 116):

A transição de um paradigma em crise para um novo, do qual pode surgir uma nova tradição de ciência normal, está longe de ser um processo cumulativo obtido através de uma articulação do velho paradigma. É antes uma reconstrução na área de estudos a partir de novos princípios, reconstrução que altera algumas generalizações teóricas mais elementares do paradigma, bem como de seus métodos de aplicação.

No interior dessa perspectiva filosófica e epistemológica, a ciência e o conhecimento

científico são marcados pela provisoriedade, temporalidade e historicidade, enfim, como uma

construção social e cultural onde entram em jogo conflitos, diversidades de interpretações,

intuição e criatividade humanos.

Desse ponto de vista, como então pensar o processo de ensino-aprendizagem em ciências,

uma vez que a filosofia encaminha concepções de ciência e, por inferência, concepções de

ensinar ciência? Como aprender e ensinar ciências num mundo em que o conhecimento científico

parece fervilhar: mundo virtual, biotecnologia, neurociência e que envolve, de forma cada vez

mais crescente, discussões de ordem ética e a tomada de posição pelo cidadão comum? Como

articular e promover o diálogo entre o mundo real que cerca o aluno, carregado de significados e

sentidos, e o conteúdo/conceito que nos propomos a ensinar e como veremos neste estudo com as

práticas epistêmicas relativas a um conhecimento que é histórico e socialmente construído?

Ausubel1 (1976 apud SCHNETZLER, 1992) nos fala da aprendizagem significativa que

se realiza quando o aluno integra novos conceitos àqueles já existentes, encaminhando re-

elaborações conceituais que possibilitam ampliar sua compreensão, isto é, suas leituras e

interpretações dos fenômenos que se realizam no mundo em que vive.

1 AUSUBEL, D. Psicologia educativa: um punto de vista cognoscitivo. México:Trillas, 1976.

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significativa que Mortimer (1995, p. 57) assinala que o termo “mudança conceitual se tornou

sinônimo de aprender ciência [...] o que não significa que haja um consenso acerca de seu

significado [tornando-se] um rótulo a cobrir um grande número de visões diferentes e até

inconsistentes”.

Em linhas gerais, a partir da teoria da mudança conceitual, os modelos de ensino-

aprendizagem em ciências valorizam as estratégias de ensino que promovem os chamados

conflitos cognitivos3, capazes de gerar a insatisfação nos alunos em relação às suas concepções

prévias de forma a possibilitar a construção de novas concepções mais próximas dos sistemas

científicos. Esta perspectiva traz de forma subjacente a idéia de transformação/substituição do

conhecimento já existente e, conseqüentemente, a impossibilidade da coexistência de diferentes

esquemas conceituais relacionados a diferentes contextos (HORTA MACHADO, 1999).

Posteriormente, estudos incorporando novas abordagens epistemológicas modificam a noção de

substituição por “evolução progressiva” como o faz Schnetzler (1992), por “processo de

enculturação” de acordo com Mortimer e Horta Machado (1997) ou ainda por “perfil conceitual”

segundo Mortimer (2000).

Independente das diferentes posições assumidas pelos autores, vale destacar a re-

orientação teórico-metodológica que se verifica no campo da Educação em Ciências neste

momento, quando a investigação encontra uma nova porta de entrada para a sala de aula. Como

uma caixa preta que vai sendo reaberta, esta sala de aula, habitada por diferentes sujeitos, aos

poucos revela toda a sua complexidade e multidimensionalidade. Talvez esta seja uma das razões

para que novos estudos (MORTIMER; HORTA MACHADO 1997; SOLOMON, 1987)

destaquem o esvaziamento social que acompanha a perspectiva construtivista em termos de

mudança conceitual. Solomon (1987), por exemplo, adverte o quanto as pesquisas realizadas

nesta ótica negligenciam as influências sociais necessárias à organização de um contexto que

permita a construção e legitimação das idéias e concepções pelos alunos.

Já no início da década de 1990, a pesquisa em Educação em Ciências se aproxima cada

vez mais de uma abordagem sociocultural, destacando, particularmente, o movimento discursivo

que se realiza na sala de aula enquanto acontecimento enunciativo em determinadas condições de

produção (ORLANDI, 1987) como objeto de investigação a fim de compreender o processo de 3 Segundo Driver e Easley (1978) a maior parte desses estudos se sustenta na noção de conflito cognitivo numa vertente piagetiana.

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Na tentativa de compreender a natureza e o significado desses processos de re-elaborações

conceituais, vemos surgir, ao final da década de 1970 e início da década de 1980, um conjunto

significativo de estudos que procuram revelar o conteúdo das idéias dos alunos acerca de

determinados conceitos e princípios científicos que são ensinados na escola. Realizados no

interior do Alternative Conceptions Movement, esses estudos são um desdobramento de trabalhos,

entre eles, o apresentado por Driver e Easley (1978) que sinalizam a importância de se conhecer

as explicações que os alunos desenvolvem em suas experiências cotidianas, dando sentido aos

fenômenos com os quais se deparam no mundo físico. Para esses autores, as concepções que os

alunos constroem e trazem podem influenciar de modo significativo o processo de ensino-

aprendizagem na sala de aula chegando inclusive a inviabilizar a re-elaboração dessas mesmas

concepções. Em Driver e Erickson (1983), encontramos que tais concepções são estáveis,

resistentes à mudança e, sem dúvida alguma, coerentes e com um forte poder explicativo.

É neste contexto que vemos emergir um movimento construtivista na Educação em

Ciências e que, apesar da diversidade de abordagens, é orientado por pelo menos três

pressupostos básicos como apontado, entre outros, por Carvalho (1992): 1. o aluno é o construtor

do seu próprio conhecimento; 2. o conhecimento é contínuo e 3. o conhecimento a ser ensinado

deve partir do conhecimento que o aluno traz para a sala de aula.

Esses pressupostos, por serem muito gerais, parecem encaminhar um relativo consenso

entre os pesquisadores e, diríamos, entre os professores que passam a considerar o construtivismo

“como uma grande teoria, aplicável a todas as instâncias e não simplesmente como uma visão de

aprendizagem que possui valor parcial” (OSBORNE2, 1996 apud HORTA MACHADO, 1999,

p.19). De qualquer forma, vale assinalar que a perspectiva construtivista re-situa o aluno como

sujeito pensante comprometido com o processo de construção de seu conhecimento. Um

conhecimento que deve estar integrado a uma rede que se torna cada vez mais abrangente e

complexa.

No início dessas investigações, Posner et al. (1982) propõem a Teoria da Mudança

Conceitual como modelo explicativo para os processos desencadeados pelos indivíduos quando

mudam suas concepções iniciais para outras mais próximas da perspectiva científica e, muitas

vezes, incompatíveis com as primeiras. A repercussão dessa proposta foi tão intensa e

2 OSBORNE, J.F. Beyond cosntrutivism. Science Education, [s.l.], v.80. n. 1, p.53-82, 1996.

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construção do conhecimento científico pelo aluno. A linguagem é entendida como inter(ação),

como “constitutiva dos processos cognitivos e do próprio conhecimento, uma vez que a

apropriação social da linguagem é a condição fundamental do desenvolvimento mental”

(SMOLKA, 2000, P. 51). A maioria desses estudos encontra-se fundamentada nas idéias de

Vygotsky e Bakhtin talvez, e sobretudo, pela centralidade que a linguagem assume em seus

sistemas teóricos pois como ressalta Freitas (1997, p. 318):

[...] a mediação semiótica da vida mental é colocada como um ponto de partida em seus estudos [de Vygotsky e Bakhtin], do qual decorrem outros aspectos comuns: a constituição semiótica da consciência pela interiorização da linguagem, a linguagem interior como trama semiótica da consciência, o papel do outro e do diálogo nesse processo de interiorização, a intervenção crucial do contexto.

Buscando uma articulação entre nossa própria prática pedagógica enquanto professora de

Biologia no Ensino Médio e a re-orientação teórico-metodológica apresentada pela pesquisa em

Educação em Ciências, decidimos, no estudo realizado para a dissertação de Mestrado em

Educação realizada na Universidade Federal Fluminense, investigar a existência de relações entre

as interações discursivas e o processo de construção do conhecimento científico pelos alunos em

duas salas de aulas, sendo uma de Ciências do segundo segmento do Ensino Fundamental e outra

de Biologia do Ensino Médio. Realizando um diálogo teórico principalmente com Vygotsky,

Bakhtin e Werstch, analisamos cinco episódios de ensino de Biologia evidenciando a sala de aula

como espaço de interlocução onde se estabelecem processos intensos de negociação e fixação de

significados que expressam não apenas a riqueza do pensamento discente mas também o

movimento polissêmico e polifônico que vai sendo tecido, a partir de palavras e contra-palavras,

em torno da ciência e do conhecimento científico (MACHADO, 1999).

Entretanto, posteriormente, consideramos que aspectos mais específicos relacionados ao

processo de aprendizagem em ciências em um contexto sociocultural permaneceram lacunares

neste estudo exigindo, portanto, novas investigações. Neste momento, voltávamo-nos para o

processo de elaboração de conceitos biológicos pelos alunos ao mesmo tempo em que

entendíamos ser necessário um alargamento da nossa própria noção de aprendizagem e de

aprendizagem em Biologia.

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Neste caminho, aproximamo-nos de três estudos que nos dão pistas para esta ampliação

da noção de aprendizagem. O primeiro refere-se ao trabalho de Perkins e Simmons (1988), que,

realizando um estudo para estabelecer os padrões de “misunderstanding” relativos a

aprendizagem em Física, Matemática e Programação de Computadores, aponta que a

compreensão mais profunda em cada uma dessas áreas envolve a articulação e integração de

quatro níveis de conhecimento: nível conceitual, de resolução de problemas, epistêmico e

investigativo, que são ativados e inter-relacionados na realização de diversas atividades

cognitivas. Os autores nos dizem que, no interior de cada um desses níveis, existem mecanismos

cognitivos específicos descritos como metacognitivos ou estratégicos e que são mobilizados no

processo de compreensão e, diríamos, significação de um dado conhecimento.

O segundo é o trabalho de Eylon e Linn (1988) que também sinaliza que a aprendizagem

em ciências envolve a aprendizagem de uma série de habilidades tais como a de integrar e

relacionar conhecimentos e a de mobilizar um dado conceito à resolução de novos problemas e

situações, o que permitiria a construção de “lifelong learning skills”.

Finalmente, o terceiro estudo de Leander e Brown (1999), assumindo uma matriz

muldimensional para analisar aulas de Física, descreve a aprendizagem como uma dança de

instabilidades e estabilidades a fim de caracterizar os movimentos de alternância entre processos

de negociação de um lado, e de fixação e alinhamentos de outro. Nesta dança, os alunos não estão

simplesmente respondendo às questões e aos problemas propostos pelo professor do ponto de

vista conceitual mas também organizando e assumindo suas próprias posições como participantes

no curso da interação em relação ao objeto da aprendizagem.

Relacionando estes estudos à perspectiva sociocultural anunciada anteriormente, podemos

supor que a noção de aprendizagem deve envolver um processo de significação, de construção e

mobilização de significados que se realiza em movimentos. Neste caso, é procedente nos

perguntarmos: esse processo de significação em Ciências/Biologia adquire contornos específicos?

Em outras palavras, tais movimentos são específicos para se atingir a compreensão e integração

dos conceitos biológicos? Ou ainda, aprender Biologia é o mesmo que aprender História,

Geografia, Matemática?

Uma resposta imediata nos é dada por Astolfi e Develay (1995) ao considerarem que os

conceitos científicos como respiração, ecossistema, genes não são da mesma natureza que os

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conceitos lingüísticos e matemáticos, por exemplo. Segundo os autores, os conceitos científicos

apresentam duas características inseparáveis: permitem explicar e prever. Entretanto, consideram

que os conceitos científicos só são explicativos e preditivos no interior de certos limites que

marcam o seu campo de legitimidade.

Se, como sinalizam Astolfi e Develay (1995), existe uma especificidade em torno do

conceito científico que é explicar e prever determinadas situações e fenômenos no interior de seu

campo de validade é próprio pensar que os movimentos que entram em jogo no processo de

construção/significação no interior desses campos também sejam específicos, ou ainda, adquiram

uma especificidade no contexto em que se situam.

Reconhecendo essa especificidade do conceito científico e do processo de construção do

seu significado é preciso considerar ainda o que efetivamente se constitui em objeto da

aprendizagem em uma sala de aula de Biologia. Arcà, Guidoni e Mazzoli (1990, p. 24 e 25)

dizem que a “educação científica significa desenvolver modos de observar a realidade, e modos

de relacionar-se com a realidade; e isto implica e supõe modos de pensar, modos de falar, modos

de fazer, mas sobretudo a capacidade de juntar todas essas coisas” (grifos dos autores). Se assim

o é, podemos considerar que o processo de ensino-aprendizagem em ciências/Biologia parece

transcender os limites da apropriação de conceitos, muitas vezes apenas memorizados, repetidos

e sem qualquer significado para os alunos. Por isso mesmo é preciso assumir que:

[...] o problema educativo é muito mais amplo do que assinalar caminhos seguros, ou dar conteúdos técnicos específicos e não obstantes necessários; é, sobretudo, o de ajudar a crianças, jovens e adultos a encontrar umas estratégias de colonização cognitiva. Por estratégias de colonização se pode entender um modo de conquista progressiva e gradual [...] mas também a um retrocesso contínuo; a um voltar a por em questão aquilo que se tem feito para organizá-lo de novo; a um estar em condições de servir-se também daquilo que já se possui, adaptando-o para responder a novas exigências; a um desejo contínuo de melhorar a ordenação de todo o “território”. (ARCÀ; GUIDONI; MAZZOLI, 1990, p.24).

A aprendizagem em Biologia vai se configurando, portanto, como um processo dinâmico

caracterizado por um objeto específico que não se reduz a conceitos mas inclui igualmente

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“modos de pensar”, “modos de falar” e “modos de fazer” e que ganham visibilidade quando se

focaliza as interações sociais mediadas pelo outro e pela linguagem.

Essa perspectiva pode ser ampliada a partir da noção de aprendizagem situada proposta

por Lave e Wenger (1995), que enfatizam a estreita relação entre aprendizagem e a situação

social na qual ela ocorre. Assim, a aprendizagem é vista como uma prática social uma vez que é

no engajamento dos indivíduos em comunidades caracterizadas por práticas culturais específicas

que decorre a apropriação não apenas de um corpo de conhecimentos abstratos mas também de

habilidades que os conduzem a uma maior participação no interior dessas mesmas comunidades.

A leitura que realizamos do trabalho de Lave e Wenger (1995) sugere uma articulação

intrínseca entre as dimensões teórica e prática e encaminha igualmente uma articulação entre

“saber como” e “saber fazer”. O “saber fazer” parece estar vinculado a uma idéia de

procedimentos e práticas que capacitam o indivíduo a se tornar proficiente/especialista em uma

determinada atividade profissional. Vale ressaltar que não é proposta do ensino de Biologia

formar especialistas ou biólogos mas encaminhar um processo no qual os alunos desenvolvam

habilidades e estratégias para enfrentar determinadas questões e situações que exijam um “olhar

mais científico”. Em nosso caso, o “saber fazer” encontra-se relacionado às práticas relativas aos

movimentos e as formas de se lidar com o conhecimento biológico e que a nosso ver constituem-

se em objetos de aprendizagem a serem contemplados na sala de aula de Biologia. Poderíamos

dizer então, como o faz Pozo (2005), que a aprendizagem envolve a apropriação de um “kit de

ferramentas” relacionado a determinados sistemas culturais.

De forma bem semelhante, Engle e Conant (2002) conceituam a aprendizagem como

“engajamento disciplinar produtivo”, pressupondo-a como um processo que favorece a

participação dos alunos em práticas escolares no seu sentido mais amplo e também em práticas

disciplinares específicas já que estão relacionadas a uma área de conhecimento. Este engajamento

do aluno pode ser evidenciado pelo seu nível de participação, pelas suas falas que se tornam mais

elaboradas e pela sua produção ao longo das aulas. No entanto, este engajamento do aluno

depende de uma certa organização pedagógica da sala de aula que inclui a realização de

atividades que tenham um caráter investigativo.

Podemos então considerar que situar o processo de aprendizagem exige, portanto,

considerar a especificidade do contexto social em que ocorre, seja por conta dos elementos

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sociais que o constituem, seja pela forma de conhecimento que nele circula e que se materializa a

partir das atividades que são compartilhadas pelos sujeitos participantes do processo.

Consideramos, portanto, que existem processos gerais mas também processos específicos

que encaminham a construção de modos de falar, pensar e fazer o conhecimento científico e que

se realizam pela imersão desses alunos em um contexto em que se vivencia o que podemos

chamar de uma “cultura científica escolarizada”4. Dessa forma, propomos que tais processos

específicos relativos aos movimentos e aos modos de se lidar com o conhecimento,

desenvolvidos pelos alunos no processo de construção de significados biológicos, sejam

denominados de práticas epistêmicas. Assim, além de conceitos, as práticas epistêmicas devem

ser assumidas como objetos da aprendizagem em Biologia e, por isso mesmo, precisam ser

focalizadas no campo investigativo de forma a contribuir para a construção do pensamento

biológico que orienta e organiza o processo de significação na sala de aula de Biologia. A partir

dessa assunção, a questão de partida que orienta este estudo é assim formulada:

Lave e Wenger (1995) argumentam que a aprendizagem ocorre no interior de uma

comunidade de prática. Para os autores, uma comunidade de prática corresponde a um grupo de

indivíduos que desenvolve e compartilha objetivos, idéias e estratégias na realização de

determinadas atividades e tarefas o que pressupõe a construção de significados e modos de falar

específicos.

Neste estudo, assumimos a noção de que uma comunidade de práticas se constitui em um

espaço-tempo social e cultural que deve favorecer a participação dos indivíduos em atividades

compartilhadas desenvolvidas no seu interior como condição intrínseca para que a aprendizagem,

4 Aleixandre (2004) se refere à necessidade de imersão dos alunos na cultura científica para que a aprendizagem seja situada. Neste estudo preferimos adotar a expressão “cultura científica escolarizada” uma vez que reconhecemos a existência de uma especificidade de objetivos, objetos e significados da ciência que se ensina nas escolas.

Que práticas epistêmicas se realizam no interior de uma sala de aula de Biologia, e

como contribuem para a produção/construção de significados pelo aluno?

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enquanto construção/produção de significados, se realize. Entendemos ainda que as condições de

produção são decisivas para que determinados significados sejam produzidos enquanto outros são

restringidos encaminhando assim uma certa forma de olhar, falar e se relacionar com o mundo.

Assim, a partir de nossa questão inicial, podemos formular outras a ela relacionadas:

Para enfrentar estas questões, tomamos a dinâmica da sala de aula de Biologia povoada

por diferentes sujeitos como lócus privilegiado de investigação e, neste sentido, parece-nos

adequado adotar a noção de ação mediada, uma vez que “a ação fornece um contexto dentro do

qual o indivíduo e a sociedade (bem como o funcionamento mental e o contexto sociocultural)

são entendidos como momentos inter-relacionados” (WERTSCH, 1998, p. 60).

1.2 Os objetivos do estudo:

Considerando nossa questão de partida, apresentada anteriormente, definimos como

objetivo geral desse estudo:

• Focalizar, particularmente, a organização e dinâmica de uma sala de Biologia a

fim de identificar e caracterizar as práticas epistêmicas realizadas pelos alunos na

produção de significados biológicos.

Como objetivos específicos, propomo-nos a:

• Empreender uma discussão teórica a fim de elaborar a noção de aprendizagem

situada enquanto processo de significação realizado a partir de práticas

epistêmicas específicas a uma área de conhecimento.

Em que consiste a especificidade de tais práticas epistêmicas considerando o contexto

da sala de aula de Biologia? Neste caso, podemos caracterizar a sala de aula de Biologia

como uma comunidade de práticas?

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• Realizar uma articulação entre a produção do conhecimento científico a partir da

Sociologia da Ciência e a produção do conhecimento científico pelo aluno a fim

de identificar especificidades nos modos de se enfrentar

problemas/questões/situações em uma perspectiva biológica.

• Ampliar a discussão relativa à caracterização do discurso que se realiza no interior

da sala de aula de Biologia.

• Identificar, no curso das interações sociais que se organizam na sala de aula de

Biologia, as condições que parecem favorecer essas práticas epistêmicas

entendidas como os movimentos envolvidos na produção de significados.

A escola e, particularmente, a sala de aula, é o lugar social onde os sujeitos entram em

contato com os sistemas organizados de conhecimento e suas formas de funcionamento

intelectual (OLIVEIRA, 2000). Reconhecendo a especificidade da natureza do conhecimento

biológico, consideramos que a análise e aprofundamento da discussão relativa à aprendizagem

em uma perspectiva situada nos permite vislumbrar a possibilidade de intervenções pedagógicas

mais concretas na sala de aula.

1.3 Justificativa do estudo

Encaminhar uma proposta para o ensino exige pensar a princípio acerca do(s) processo(s)

de aprendizagem e, por certo, esta se constitui (ainda) em uma questão crucial, tanto no domínio

da psicologia quanto no domínio da educação, apesar de uma longa tradição histórica de

pesquisas sistemáticas inaugurada a partir do clássico trabalho de Ebbinghaus sobre memória

publicado pela primeira vez em 1885 (SHUELL, 1986). Não é por acaso, portanto, que

encontramos uma ampla literatura que se propõe discutir a questão da aprendizagem a partir de

diferentes enfoques e abordagens. Isto, sem dúvida, por um lado faz ampliar a noção de

aprendizagem, mas por outro torna seu conceito, por vezes, fluido e movediço. Assim,

dependendo da orientação adotada, surgem variações tanto no papel desempenhado pelos sujeitos

que aprendem como nos próprios mecanismos e processos envolvidos no ato de aprender.

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Cabe então nos perguntarmos como a aprendizagem tem sido assumida nos meios

educacionais, particularmente na escola, considerada institucionalmente o espaço/tempo

privilegiado para que a relação ensinar-aprender tome lugar?

Tentando enfrentar essa questão, Colinvaux (2003) considera que a aprendizagem que faz

parte do ideário educacional pode ser sintetizada em princípios que se sustentam no ideal da

racionalidade abstrata: “1. a aprendizagem deve ir do mais concreto ao mais abstrato; 2. a

aprendizagem deve ir do mais simples ao mais complexo; 3. a aprendizagem deve ir do particular

ao geral.” Estes princípios são facilmente reconhecidos nas formas de organização dos currículos,

programas e livros didáticos que se constituem em instrumentos que orientam o processo de

ensino-aprendizagem nas escolas e refletem o conhecimento e o processo de sua aquisição como

algo linear, cumulativo, progressivo.

Deste ponto de vista, o que percebemos é que a aprendizagem em contextos escolares é

assumida, via de regra, de forma pouco problemática. Do lugar que ocupamos como professora

de Biologia, é comum ouvirmos que, após a apresentação de um determinado conteúdo, pode-se

assumir, sem muitas dúvidas, que o aluno aprendeu “satisfatoriamente” porque foi capaz de

realizar os exercícios propostos durante as aulas, ou ainda, porque teve um bom desempenho nas

provas e testes que constituem os instrumentos de avaliação bimestral. Entendemos que estas

formas de avaliar o aluno podem se constituir em dados significativos para indicar ou dar pistas

sobre a aprendizagem em um domínio exclusivamente conceitual. Entretanto, se tomamos a

aprendizagem em uma perspectiva mais ampla, essas mesmas formas parecem não ser

suficientes. Estas situações que emergem a partir de nossas experiências e reflexões levam a

questionar a aprendizagem escolar que se situa como um processo de “tudo ou nada”, ou melhor,

como a passagem de um estado de “não saber” para um estado de “saber” (COLINVAUX, 2007).

Nesta perspectiva, as experiências relativas à aprendizagem vivenciadas nas escolas pelos

alunos trazem, por vezes, marcas de um processo que rotula, pune e exclui. Ainda que

focalizando a situação extrema de constituição de identidades delinqüentes, Adorno (1993) nos

ajuda a problematizar a aprendizagem, ou melhor, a ausência de aprendizagem nas escolas. Para

o autor, a evasão escolar é um dos fatores que entram em jogo no mecanismo que denomina

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“desterritorialização”5 e que acompanham as trajetórias de muitas crianças e adolescentes. Na

memória desses sujeitos, a escola é resgatada como um lugar monótono, vazio de sentido e

aprendizagem, como um processo e uma experiência nada estimulantes. A memória da escola e

também da própria aprendizagem é, portanto, a “memória de sua ausência” (ADORNO, 1993, p.

198). Talvez, a partir de nossa experiência como professora de escolas da rede pública, possamos

assumir que essa ausência de memórias relativas à aprendizagem de objetos específicos seja uma

constante. Ao tentarmos resgatar conceitos supostamente construídos em contextos anteriores é

comum percebermos, não sem uma certa perplexidade, que os alunos os desconhecem ou quando

muito já “ouviram falar sobre o assunto”. Suas lembranças são fragmentos que não se articulam

conceitualmente, o que impede a apropriação de forma mais ampla e crítica de determinadas

questões de natureza científica. Por isso, é urgente a necessidade de se re-pensar a escola e os

processos de aprendizagem que ali tomam lugar.

Colinvaux (2003), tomando como referência a noção de “transposição didática”

proposta por Chevallard, nos diz que a aprendizagem precisa ser entendida como um processo

que se refere a um objeto a ser apreendido por um sujeito e que, em contextos escolares, tem o

professor como elemento mediador. Nestes termos, a relação aprendizagem e ensino pressupõe

ação/interação entre os sujeitos nela envolvidos e entre estes e os objetos que se apreende. Este

processo de apropriação que se faz num movimento dialético e dialógico pode ser acompanhado

por rupturas, retrocessos, idas e vindas, saltos qualitativos, circularidade, que envolvem

mudanças epistemológicas e por isso mesmo novas formas de pensar e olhar um determinado

objeto.

A nosso ver, a aprendizagem deve se constituir em uma preocupação primeira e legítima

para aqueles que se propõem a ensinar. Enquanto educadores, é preciso nos perguntarmos: Como

os sujeitos aprendem? Como constroem seus conhecimentos? É certo que o enfrentamento dessas

questões envolve, de início, uma ruptura com visões simplistas e reducionistas sobre o ato de

ensinar.

Na perspectiva vygotskyana, há que se considerar que o desenvolvimento humano se

realiza a partir da apropriação e internalização de experiências históricas e culturais, ou seja, de

5 Em Adorno (1993), a desterritorialização se refere ao afastamento progressivo dos indivíduos de espaços institucionais como a escola e a família e a sua inscrição em outros microterritórios nos quais constroem o essencial de sua existência.

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sistemas simbolicamente organizados. É na relação dialética que estabelece com o mundo físico e

social que o sujeito se constitui e se humaniza. Assim, os indivíduos, em seu processo de

constituição dependem das mediações que vão se realizando. Por isso mesmo, a aprendizagem é

um processo que antecede o desenvolvimento e viabiliza o desenvolvimento mental, “um aspecto

necessário e universal do processo das funções psicológicas e culturalmente organizadas e

especificamente humanas”. (VYGOTSKY, 1998, p. 118).

Relacionando a lei de dupla formação das funções mentais superiores e a noção de zona

do desenvolvimento proximal (ZDP), Vygotsky enfatiza a importância das interações mediadas,

particularmente pelo outro e pela linguagem. Em suas palavras:

[...] o aprendizado desperta vários processos internos de desenvolvimento, que são capazes de operar somente quando a criança6 interage em seu ambiente e quando em cooperação com seus companheiros. Uma vez internalizados, esses processos tornam-se parte das aquisições do desenvolvimento independente da criança. (VYGOTSKY, 1998, ps. 117 e 118).

Torna-se relevante trazer essa dimensão para esta discussão que se ocupa em tomar a

aprendizagem como objeto de estudo porque nos permite, primeiro, superar uma visão de

desenvolvimento do sujeito e mesmo da própria aprendizagem como processos previsíveis,

universais, lineares e ainda graduais; segundo, porque complexifica a escola, que para além do

aprender e ensinar se constitui em espaço/tempo de construção de subjetividades.

A escola, portanto, é um espaço social privilegiado e concorre para o desenvolvimento do

sujeito em sua singularidade; por isso mesmo é preciso pensar que uma prática pedagógica

baseada nestes pressupostos há de considerar o aluno como um sujeito único, ativo e interativo no

seu processo de construção de conhecimento. Assim, a escola e, mais precisamente, a sala de

aula, é o lugar de convivência da diversidade, da pluralidade, da heterogeneidade e lidar com

estes aspectos não é tarefa das mais fáceis quando temos em mente a construção de um

conhecimento histórica e culturalmente organizado e compartilhado.

6 Ainda que o trabalho de Vygotsky seja relativo ao desenvolvimento e aprendizagem em crianças, consideramos que suas idéias são válidas também para os adolescentes.

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Entretanto, apesar de um discurso pedagógico que parece reconhecer e acolher esta

diversidade, o que vivenciamos nas instituições de ensino ainda é uma prática que trabalha com a

homogeneidade, com a normatividade, enfim, com o silenciamento/apagamento desses sujeitos-

alunos o que tem, de certa forma, contribuído para experiências não muito bem sucedidas dos

processos de aprendizagem e ensino. Como conseqüência, percebemos uma tendência à

naturalização dessas experiências de “não aprendizagem” que em casos mais extremos são

enquadradas como desvios de comportamento, de inteligência, de capacidade. Daí a

multiplicação de estudos que se ocupam em discutir os distúrbios e dificuldades da

aprendizagem. Institucionaliza-se a “patologização” da aprendizagem quando na verdade

deveríamos problematizar a própria noção de aprendizagem.

Discutindo sobre o sujeito da educação, Schäffer (1999) se pergunta se esse “não

aprender” seria realmente um problema de aprendizagem ou estaria concorrendo aí o fato de

vivermos em uma sociedade que só permite e aceita uma forma singular de reprodução do saber.

Neste caso, podemos pensar que na escola a aprendizagem só é considerada a partir dos “inputs”

- aquilo que é oferecido para os alunos na forma de conteúdos - e “outputs” - o que esperamos

que os alunos respondam ou sejam capazes de responder também na forma de conteúdos. Dessa

forma, resgatamos aquela idéia inicial de mudanças de um estado de “não saber” para um estado

de “saber” que poderiam ser medidas e controladas. Olhando a aprendizagem dessa perspectiva,

“a subjetividade do aluno torna-se um ‘isso’, um ‘nisso’, uma ‘coisa’ com a qual não sabemos

lidar. A distância que existe entre tratar o sujeito como um ‘isso’ e seu processo de exclusão é

muito pequena”.(SCHÄFFER, 1999, p. 32).

Parece que a discussão atinge uma questão recorrente no cenário educacional: inclusão x

exclusão. É preciso incluir e isto implica em distribuir de forma eqüitativa um conhecimento

produzido e necessário à formação de um cidadão crítico capaz de viver em uma sociedade

multifacetada que o convida insistentemente à tomada de ações e decisões acerca de questões

diversificadas. Já não basta apenas o aprendizado das letras e dos números. Há uma crescente

demanda de se letrar científica, tecnológica, artística e economicamente. O letramento pressupõe

ir além da mera apropriação de conceitos e códigos para serem repetidos mecanicamente.

Pressupõe que esses conceitos e códigos sejam significados para que possam ser usados de forma

articulada e crítica em uma realidade complexa e multifacetada. Para que os sujeitos desvelem

uma realidade e que esta, ao ser desvelada, possa ser transformada, como nos ensina Paulo Freire:

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Os homens, pelo contrário, ao terem consciência de sua atividade e do mundo em que estão, ao atuarem em função de finalidades que propõem e se propõem, ao terem o ponto de decisão de sua busca de si e em suas relações com mundo, e com os outros, ao impregnarem o mundo de sua presença criadora e transformadora através das transformações que realizam nele, na medida em que dele podem separar-se e, separando-se, podem com ele ficar, os homens, [...] não somente vivem, mas existem, e sua existência é histórica. (FREIRE, 1985, p. 105).

Esta demanda em se letrar cientificamente os indivíduos se torna mais urgente quando

reconhecemos a existência de uma crise, talvez sem precedentes na história da humanidade que

atinge de diferentes formas os diferentes setores da sociedade. Como assinala Capra (1982, p.19):

As duas últimas décadas de nosso século [século XX] vêm registrando um estado de profunda crise mundial. É uma crise complexa, multidimensional, cujas facetas afetam todos os aspectos de nossa vida – a saúde e o modo de vida, a qualidade do meio ambiente e das relações sociais, da economia, tecnologia e política. É uma crise de dimensões intelectuais, morais e espirituais; uma crise de escala e premência sem precedentes em toda a história da humanidade. Pela primeira vez, temos que nos defrontar com a real ameaça de extinção da raça humana e de toda a vida no planeta.

Vivemos em uma sociedade marcada pelos riscos e pelas incertezas. Vemos, não sem

certa perplexidade, a ambigüidade refletida na imagem da ciência já que temos que conviver com

a deterioração galopante do ambiente físico e social ao lado de um mundo estonteante e que apela

cada vez mais para uma ética consumista desfrutada por um número cada vez mais reduzido de

pessoas. As conquistas científico-tecnológicas nos campos da comunicação, transportes,

alimentação, moradia, saúde e lazer convivem paralelamente com o desequilíbrio ecológico, a

miséria, a fome, os sem-empregos, os sem-terras, os sem-tetos, enfim com toda sorte de violência

que destrói, desumaniza e exclui o homem. Estes contrastes parecem minar, de uma vez por

todas, as crenças no progresso e no bem estar da humanidade como destino inexorável do

desenvolvimento científico e tecnológico.

Evidenciar as influências recíprocas e dialéticas entre ciência, tecnologia e sociedade deve

ser uma preocupação a ser incorporada, não apenas pelas propostas curriculares para o ensino de

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ciências tal como já acontece, mas pelas práticas que efetivamente se realizam nas salas de aulas

de ciências. É preciso que se evidencie uma ciência como construção histórica e social, pois:

A ciência é um conhecimento que se expande, que se aprofunda e se revê, se corrige, continuamente. Ela também é histórica, não pode pretender situar-se acima da história, não pode escapar às marcas que o fluxo da história, a cada momento, imprime nas suas construções. Por isso, não é razoável tentar promover uma contraposição rígida entre ciência e ideologia. (KONDER, 2002, p. 105).

Este contexto impõe desafios à escola e, particularmente, ao ensino de ciências.

Entretanto, na contramão desse movimento, reconhecemos que a escola e o ensino de ciências

ainda se encontram mergulhados em uma perspectiva tradicional privilegiando o conhecimento

científico em sua dimensão estritamente conceitual. A ciência é ainda apresentada como um

corpo de conhecimentos neutro, objetivo e absoluto a serviço do bem estar da humanidade que se

traduz na escola como conteúdos a serem memorizados e repetidos sem qualquer articulação com

a materialidade concreta em que os alunos se encontram inseridos. Nesta perspectiva, a ciência

ensinada na escola tem pouca ou nenhuma permanência além da etapa escolar. Como dito

anteriormente, a memória dessa aprendizagem é a memória de sua ausência.

Jenkins (1999a) argumenta que deveria ser construída uma “ciência para a cidadania”. E a

nosso ver, isto inclui:

[...] ter o conhecimento necessário para entender debates públicos sobre

questões de ciência e tecnologia. Misto de fatos, vocabulário, conceitos, história e filosofia. Não se trata do discurso de especialistas, mas do conhecimento mais genérico e menos formal. Entender notícias de teor científico (buraco na camada de ozônio ou código genético), lidar com informações do campo científico da mesma forma como lida com outro assunto qualquer. (HAZEN; TREFIL7, 1995 apud BARROS, 1998, p.70).

A ciência representa, portanto, um sistema cultural simbólico com características

específicas que demanda formas específicas de apropriação e de uso. Se tomarmos este sistema

cultural como instrumento mediador tal qual definido por Vygotsky, devemos considerar que esta

7 HAZEN, R.M.; TRIFIL, J. Saber Ciência. São Paulo:Editores Associados, 1995.

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apropriação e uso implicam na construção de novas formas de pensar o mundo e com ele se

relacionar. Implica na construção/produção de novos significados. Neste sentido, o mundo não

será mais o mesmo mas também não o será o sujeito. A assunção desses aspectos nos faz

acreditar na relevância de um estudo que se propõe entrar em uma sala de aula de Biologia para

revelar as práticas epistêmicas adotadas pelos alunos no processo de construção desses novos

significados justamente por, talvez, ser esse o caminho para que objetivos, objetos e mesmo

metodologias do ensino-aprendizagem sejam revistos de forma mais segura e consciente por

todos aqueles envolvidos nesse processo.

1.4 Organização do estudo

O estudo está organizado como se segue:

No capítulo 1 e que corresponde à Introdução desse estudo, definimos a gênese de nossa

questão que revela uma articulação intrínseca entre nossa própria prática pedagógica enquanto

professora de Biologia no Ensino Médio e o delineamento de um referencial teórico que vai

sendo construído ao longo de nossa formação. Nesse percurso apresentamos, ainda, os objetivos

do estudo bem como justificamos a relevância de um trabalho que se propõe problematizar

inicialmente a aprendizagem escolar e, particularmente, a aprendizagem em ciências em face de

um contexto marcadamente contraditório no qual vivemos e que exige, por certo, redimensionar

objetivos e objetos do processo de ensino-aprendizagem em ciência e, por decorrência, a própria

noção de aprendizagem.

No Capítulo 2, Uma discussão em torno da noção de aprendizagem, iniciamos uma

discussão orientada, principalmente, por POZO (2005 e 2002), que problematiza a aprendizagem

como mudança comportamental e como processamento de informações a fim de ascendermos a

uma mente cultural cuja aprendizagem envolve modificações das representações que são

construídas nas relações que o sujeito estabelece com seu mundo físico, social e cultural.

Posteriormente, nos ocupamos em trazer as contribuições da pesquisa sociocultural (WERTSCH;

DEL RIO; ALVAREZ, 1998; WERTSCH, 1998 e WERTSCH, 1999) a fim de definirmos a ação

mediada como uma unidade de análise que permita a compreensão mais ampla e profunda da

aprendizagem. Esta incursão teórica nos leva à noção de aprendizagem situada nos termos de

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LAVE e WENGER (1995) e de aprendizagem como engajamento disciplinar produtivo (ENGLE;

CONANT, 2002), que oferecem elementos para se pensar as práticas epistêmicas relativas ao

processo de produção de significados.

No Capítulo 3, Uma aproximação entre a sociologia do conhecimento científico e a

pesquisa em educação em ciências: revelando práticas científicas e práticas científicas

escolares, resgatamos, inicialmente, alguns elementos teóricos dos trabalhos de KNORR-

CETINA (1981 e 1992) e de LATOUR (2000), uma vez que realizam estudos de natureza

etnográfica a fim de analisar o processo de produção do conhecimento científico no interior dos

laboratórios e, por isso mesmo, podem nos fornecer pistas para pensar as práticas relativas ao

processo de produção de significados na sala de aula de Biologia. Essa discussão é

posteriormente ampliada por uma revisão de literatura acerca de estudos que, filiando-se a uma

perspectiva sociocultural, têm enfrentado a sala de aula de ciência e contribuído

significativamente para evidenciar elementos que caracterizam esse espaço/tempo de construção

de conhecimento.

No Capítulo 4, Sala de aula de Biologia: Como e o quê investigar?, delimitamos nosso

percurso metodológico situando o referencial teórico-metodológico que orienta o estudo bem

como o local e os sujeitos da pesquisa. Ocupamo-nos ainda em apresentar os princípios e

justificativas com um detalhamento do conjunto de atividades desenvolvidas ao longo da unidade

de ensino que se constitui em objeto de investigação desse estudo. Ao final, trazemos os

instrumentos de coleta de dados e os processos de análise encaminhados procurando justificar a

organização dos capítulos de resultados que são apresentados na seqüência.

No Capítulo 5, O que sabem e como sabem os alunos quando o tema envolve o DNA,

apresentamos os resultados referentes ao levantamento das concepções dos alunos antes do início

da unidade de ensino, obtidas a partir da aplicação de um questionário contendo questões abertas

que envolviam, em certa medida, a mobilização dos seus conhecimentos acerca de estruturas

moleculares e microscópicas como DNA e núcleo celular.

No Capítulo 6, Sala de aula de Biologia: espaço de interlocução e dinâmica

pedagógica, apresentamos uma primeira aproximação ao contexto da turma analisada, definindo

os conteúdos abordados a cada aula, bem como os objetivos e atividades desenvolvidas o que nos

permite delimitar aspectos relativos à dinâmica pedagógica e interativa tomando como referência

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algumas categorias de análise propostas por MORTIMER E SCOTT (2002) e MORTIMER et al.

(2007).

No Capítulo 7, Sala de aula de Biologia: situando o processo de construção de

significados pelos alunos, selecionamos sete seqüências interativas que, ancoradas às nossas

referências teórico-metodológicas, evidenciam de alguma forma as práticas epistêmicas

desenvolvidas pelos alunos no processo de construção de significados biológicos.

No Capítulo 8, Dos fatos às coisas: ou de quando os alunos realizam atividades de

laboratório, tomando como referência, MILLAR, MARÉCHAL e TIBERGHIEN (1999);

WOONOULGH e ALLSOP (1985) e IZQUIERDO; SANMARTÍ; MARIONA (1999)

realizamos uma breve discussão teórica que nos permite situar os sentidos das atividades de

laboratório no processo de ensino-aprendizagem em ciências. Posteriormente, delimitamos os

objetivos e as características da atividade desenvolvida com os alunos relativa à extração do

DNA. Essa visão geral associada a um olhar teórico possibilita a seleção de algumas cenas da

atividade de laboratório que evidenciam um processo de significação não apenas relacionado aos

conceitos mas também aos próprios procedimentos metodológicos da produção em ciências.

Finalmente, orientados particularmente por MORTIMER; CHAGAS; ALVARENGA (1998),

analisamos os relatórios produzidos pelos alunos buscando indícios de apropriação conceitual e

de uma linguagem específica que é própria da ciência.

No Capítulo 9, A sala de aula de Biologia: evidenciando a produção dos alunos,

apresentamos em linhas gerais, os trabalhos produzidos pelos alunos, ao final da unidade de

ensino, destacando novos e recorrentes aspectos relativos ao processo de significação. Trazemos

algumas situações em que os alunos resgatam os conceitos trabalhados ao longo da unidade de

ensino e os aplicam a novas situações bem como aspectos que apontam para a incorporação de

um discussão relativa à ética na ciência.

No capítulo 10, relativo às Considerações Finais, procuramos sistematizar os resultados

e encaminhar uma discussão que nos permita caracterizar especificidades do/no processo de

significação na sala de aula de Biologia.

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2. UMA DISCUSSÃO EM TORNO DA NOÇÃO DE APRENDIZAGEM

A cultura humana construiu novos nichos cognitivos [...] que se afastam bastante da monótona savana, na qual podia detectar bem longe o perigo ou o alimento potencial. Muitos dos problemas para os quais está planejada nossa mente, literalmente, já não existem [...]. Hoje em dia, a comida não é vista no horizonte, mas nas prateleiras de um supermercado [...] O perigo não costuma ser o ataque de um predador ou o tombo de uma árvore, mas alguém que desrespeita um semáforo ou alguma cobrança da Receita Federal. (POZO, 2005, p.76).

Neste capítulo, realizamos uma discussão geral relativa à aprendizagem a partir de um

resgate deste conceito nas principais correntes psicológicas: o behaviorismo e o cognitivismo em

sua vertente dominante, o processamento de informações. Esta incursão é um caminho necessário

para ascendermos à perspectiva de uma mente humana que se realiza na articulação intrínseca

com os sistemas culturais de conhecimento dotando-a de flexibilidade, autonomia e

independência relativamente às variações constantes a que está sujeita em nichos cognitivos cada

vez mais complexos. O reconhecimento desta mente cultural permite situar, posteriormente,

nosso estudo em uma perspectiva sociocultural, tomando a ação mediada como unidade de

análise a ser assumida quando se pretende superar antigas antinomias que estão postas entre

sujeito e contexto. Tentando avançar nesta discussão, apresentamos a aprendizagem como um

processo situado em comunidades de prática, o que possibilita um novo olhar a fim de mapear e

caracterizar as práticas que acompanham os alunos em situação escolar na aquisição de

conhecimentos pertinentes a um sistema cultural específico como a ciência biológica.

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2.1 De uma perspectiva comportamental a uma perspectiva cognitivista: elementos gerais

para situar a noção de aprendizagem

Durante longo tempo o Behaviorismo apresentou-se como o paradigma dominante na

psicologia para explicar a aprendizagem humana. Sua emergência deve-se entre outros aspectos a

uma necessidade de estabelecer princípios metodológicos que possam resgatar o objetivismo na

Psicologia. Dessa forma, o behaviorismo organiza-se como um programa antimentalista que toma

como objeto de análise a conduta observável dos indivíduos.

Para Pozo (2002), o programa behaviorista carece de um marco conceitual organizador e

este aspecto parece decisivo para uma dispersão teórica que marca o aparecimento de diferentes

classes e subclasses teóricas que podem ser agrupadas em duas correntes principais: o

behaviorismo radical ou extremo que nega a existência da consciência e o behaviorismo

metodológico que, mesmo não negando a existência da consciência, considera a impossibilidade

de estudá-la a partir de métodos objetivos.

Apesar dessas divergências, o núcleo central do behaviorismo apóia-se em uma

concepção fortemente associacionista da aprendizagem cujas bases filosóficas encontram-se em

uma filosofia empirista que pressupõe que o conhecimento emerge a partir de impressões

capturadas pelos sentidos. O princípio associacionista, tal como formulado na filosofia

aristotélica, entende o indivíduo que aprende como uma “tábula rasa”, o que implica em situar

toda e qualquer manifestação desse indivíduo como uma cópia isomórfica das contingências ou

variações simultâneas do ambiente. Por isso, o encaminhamento experimental no interior do

programa behaviorista envolvia a observação de tarefas sempre descontextualizadas, realizadas

por organismos, geralmente ratos e pombos, cujos resultados eram estendidos à espécie humana.

Dessa relação associacionista deriva-se o princípio da correspondência que considera o

indivíduo em sua conduta como uma cópia isomórfica do ambiente em que se encontra. A mente,

mesmo não sendo negada em sua existência por alguns teóricos dessa corrente, é considerada

apenas como uma cópia da realidade ou um reflexo dela. O ambiente é, portanto, decisivo, uma

vez que representa a mola propulsora de toda e qualquer mudança que possa ser manifestada pelo

indivíduo. Isto parece enfatizar seu caráter passivo cujo papel limita-se a responder a essas

contingências e variações ambientais de forma explicitamente mecânica.

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Outro aspecto a ser ressaltado no programa behaviorista é a relação estímulo-resposta

enquanto uma teoria que explica a aprendizagem e, supostamente, o desenvolvimento do

organismo. Apesar de existirem variações nos procedimentos experimentais quanto aos esquemas

E-R, o que se procura enfatizar é o caráter atomista que esta relação evidencia, qual seja, que

todo comportamento por mais complexo que possa ser, sempre será explicado a partir da

associação de estímulos simples disparados via de regra pelo ambiente.

Finalmente, é preciso considerar o princípio da eqüipotencialidade que se traduz na idéia

de que “as leis da aprendizagem são igualmente aplicáveis a todos os ambientes, espécies e

indivíduos” (POZO, 2002, p. 27). Isto significa dizer que existe uma única forma de se aprender

traduzida no associacionismo, o que torna explicável as generalizações que se fazem da

aprendizagem em ratos para a aprendizagem humana.

Em linhas gerais pode-se dizer que, no associacionismo, as mudanças percebidas na

conduta do indivíduo são sempre de origem externa e de natureza quantitativa. Nas palavras de

Pozo (2005, p.20):

[...] os modelos de aprendizagem associativa, [...] num enfoque

elementista, analítico, decompõem qualquer ambiente num conjunto de elementos associados entre si com distinta probabilidade, de modo que aprender é detectar, com maior precisão possível, as relações de contingência entre esses elementos ou fatos, de forma que os processos de aprendizagem consistem essencialmente em mecanismos de cômputo dessas contingências.

Se, por um lado, o behaviorismo parece ter dificuldades diante de sua própria organização

interna que não consegue elaborar uma teoria unitária, de outro, o aparecimento de anomalias

empíricas como aquelas evidenciadas pelo trabalho de Garcia e Koelling8 (1966) ferem de forma

decisiva o núcleo central do associacionismo.

Entretanto, como adverte Pozo (2002), apesar da crise do behaviorismo, há uma tentativa

de reconfiguração em torno de alguns de seus elementos centrais. Contudo, isto é feito sem abrir

mão do associacionismo como mecanismo exclusivo de aprendizagem. Assim, pode-se dizer

8 Segundo Pozo (2005) o trabalho de Garcia e Koelling mostram uma preferência seletiva por certas associações em detrimento de outras, evidenciando que os estímulos não eram tão neutros e as associações não eram tão arbitrárias como até então se pressupunha, o que faz minar o princípio da equivalência dos estímulos.

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como o faz Pozo (2005), que a aprendizagem continua sendo sinônimo de comportamento em

muitos âmbitos da psicologia, senão acadêmica pelo menos profissional.

Após este longo e frio inverno de objetivismo, a Psicologia ousou resgatar os processos

mentais como objeto de análise (BRUNER, 1997). Estabelecer um marco temporal para o

surgimento da Psicologia Cognitiva não é tarefa das mais fáceis mas, de qualquer forma, Pozo

(2002) o faz situando-o no ano de 1956 justamente por corresponder a publicação de trabalhos

inéditos como os de Miller (1956)9; Chomsky (1957)10 e Bruner, Goodnow e Austin (1956)11

que, de certa forma, incorporam as demandas tecnológicas do mundo pós-guerra e também das

ciências do artificial.

Em um primeiro momento, ancorada em uma filosofia racionalista, esta nova Psicologia

Cognitivista se apresenta como uma possibilidade de ruptura com o behaviorismo, acenando com

a construção de um novo paradigma que pudesse explicar a aprendizagem e que incorporava

dessa vez os estados mentais. Entretanto, uma análise mais cuidadosa, como o fazem Pozo

(2002) e Bruner (1997), logo evidencia que existe, na verdade, uma continuidade entre essas duas

tendências e mesmo um esvaziamento da abordagem cognitivista em sua proposta inicial. Nas

palavras de Bruner (1997, p.19), muito cedo se percebeu que:

[...] não era necessário lidar com processos mentais ou com significados. Em lugar de estímulos e respostas, havia input e output, com a noção de “reforço” lavada de sua mancha afetiva ao ser convertida em um elemento de controle que alimentava informações sobre o resultado de uma operação de retorno ao sistema. Contanto que houvesse um programa, havia “mente”.

Podemos dizer que duas grandes correntes se organizam no interior da psicologia

cognitivista: uma americana e que explora, particularmente, a metáfora da mente como

computador; e uma européia que, apesar de reunir posições teóricas heterogêneas, se preocupa

em resgatar elementos esquecidos pelo processamento de informações tais como os “significados

9 MILLER, G.A. (1956) The magical number seven, plus o minus two: some limits on our capacity for processing information. Psychological Review, 63, 81-87. Trad. Cast. Em M.V. Sebastián (Ed.) Lecturas de psicologia de la memoria. Madrid: Alianza, 1983. 10 CHOMSKY, N. (1957) Syntactic structures. La Haya: Mouton. Trad. Cast. Las estructuras sintácticas. Madrid: Aguiar, 1970. 11 BRUNER, J.S.; GOODNOW, J.; AUSTIN, G.A. (1956) A study of thinking. New York: Wiley. Trad. Cast. De J. Vegas: El processo mental em el aprendizage. Madrid: Narcea, 1978.

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que os seres humanos criavam a partir de seus encontros com o mundo”. (BRUNER, 1997, p.

16).

Para a corrente norte-americana, o ser humano é um processador de informações,

tomando como base a analogia estrutural e funcional entre a mente e o computador. Como diz

Pozo (2005, p.49), a psicologia cognitiva acabou por reduzir conhecimento à informação,

definindo a aprendizagem não como um processo de mudança comportamental, mas sim como a

aquisição de informação, o que “permite reduzir a incerteza ou entropia do mundo e o caráter

aleatório ou imprevisível dos sucessos” (p.49).

Assim, os sistemas cognitivos, integrando diferentes unidades informativas, seriam

capazes de construir representações utilizadas para reduzir a incerteza e imprevisibilidade do

ambiente em que se situam. Alguns aspectos derivam desta consideração: o primeiro, relacionado

ao fato de informações serem termos matemáticos e assim esvaziados de conteúdos e de

significados. Isto implica em dizer que o processamento cognitivo é constituído de regras formais

e sintáticas, que são indiferentes ao conteúdo semântico. Em outras palavras, “tanto o ser humano

quanto o computador são concebidos como sistemas lógicos ou matemáticos de informação,

constituídos exclusivamente por procedimentos formais” (POZO, 2002, p. 44). Na perspectiva da

aquisição de informações, desconsideram-se, portanto, as histórias tanto pessoais, sociais e

filogenéticas quanto qualquer referência ao mundo daquele que aprende, uma vez que os sinais só

ganham sentido no interior do sistema que o gerou e não em um contexto de interação e de trocas.

Na verdade, algumas operações básicas propostas por Anderson12 (1982, 1983 apud

SHUELL, 1986) em sua teoria ACT (Adaptative Control of Thought), tais como codificar, atuar,

emparelhar, executar, parecem dar conta de explicar a capacidade humana para construir

conhecimentos. Assim, um princípio fundamental do processamento de informação é a

composição recursiva que considera que qualquer tarefa ou atividade cognitiva pode ser

decomposta nas unidades menores que a compõem. A memória parece ganhar destaque no

processamento de informações e pouca ou nenhuma atenção é dada aos processos de aquisição e

modificações dessas informações. Ao tentar reduzir a mente a um processador de informações, a

visão computacional:

12 ANDERSON, J.R. (1982) Acqusition of cognitive skill. Psychological Review, 89, 36. _______________ (1983) The architecture of cognition. Cambridge, Ma.:Harvard University Press.

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[...] toma as informações como [...] dadas, como algo já estabelecido em relação a um código preexistente, de regras que mapeiam estados do mundo. Esta boa forma é ao mesmo tempo sua força e sua fraqueza [...] pois o processo do saber é muitas vezes confuso, mais repleto de ambigüidades do que permite tal visão (BRUNER, 2001, p.15).

As delimitações teóricas que se expressam no processamento de informações parecem

aprisioná-la ao comportamentalismo. O associacionismo permanece como o mecanismo que

explica a aprendizagem.

Já a corrente européia, que inclui nomes como Piaget e Vygotsky13, organiza-se a partir de

orientações epistemológicas que a distancia significativamente do processamento de informações,

ainda que ambas sejam qualificadas como cognitivistas.

Tais teorias entendem que o foco de análise se situa nas globalidades, não podendo ser as

mesmas decompostas em seus componentes elementares. Nas palavras de Vygotsky (2001, ps. 5

e 6) esta decomposição das totalidades psicológicas complexas:

[...] poderia ser comparada à análise química da água, que a decompõe em hidrogênio e oxigênio. Um traço essencial dessa análise é propiciar a obtenção de produtos heterogêneos ao todo analisado, que não contém as propriedades inerentes ao todo como tal e possuem uma variedade de propriedades que nunca poderiam ser encontradas nesse todo [...] ao pesquisador não restaria senão procurar uma interação mecânica externa entre os elementos para, através dela, reconstruir por via puramente especulativa aquelas propriedades que desapareceram no processo de análise mas que são suscetíveis de explicação.

Ao sujeito é atribuída uma organização interna que lhe permite, a partir da interação com

o mundo físico e social, construir significados para interpretar este mesmo mundo. Para isto, este

sujeito deve mobilizar aquelas estruturas cognitivas e conceituais que ele construiu previamente.

A aprendizagem se faz, portanto, por um processo de reestruturação que considera:

13 Nesta corrente podemos ainda destacar os nomes de dois norte-americanos: Bruner que participa da Revolução Cognitiva na década de 1950 e também Ausubel cujo trabalho em torno da aprendizagem significativa surge na década de 1970.

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[...] o caráter deliberado ou intencional dos processos de construção de novas representações ou conhecimentos para a solução de novos problemas e tarefas, algo que [...] implica a capacidade de representar as próprias metas e processos de aprendizagem, isto é transformar a aprendizagem numa ação teleológica [...] (POZO, 2005, p. 24).

A dialeticidade dessa perspectiva expressa-se, particularmente, quando se dá vida ao

sujeito, no sentido que ele agora modifica a realidade e, ao modificá-la, modifica a si próprio.

Sujeito e objeto constroem-se mutuamente. A aprendizagem na perspectiva construtivista, longe

de ser movimento ou configuração energética que permite capturar a ordem externa, é uma

qualidade intrínseca ao organismo para gerar novas formas de organização cognitiva, ou seja,

novos significados que se realizam mediante processos de reestruturação. O mundo é então um

reflexo do conhecimento construído pelo sujeito.

Nesta perspectiva, a aprendizagem vai se complexificando, posto que o ambiente humano

não é apenas físico, mas cultural e social, por isso mesmo, cambiante e complexo. Precisamos,

portanto, desenvolver, no curso de nossa história evolutiva, mecanismos específicos para nos

adaptarmos a ele.

Pino (1995), por exemplo, considera que a capacidade de conhecer é uma característica

adquirida pelos homens ao longo de sua história social e cultural e, neste sentido, é de origem

filogenética. Seguindo esta direção, Oliveira (1995) sinaliza que Vygotsky propunha a existência

de três estágios no desenvolvimento do comportamento animal que antecedem a passagem para

um funcionamento psicológico exclusivamente humano. O primeiro deles está relacionado às

reações hereditárias com a função biológica de auto-preservação e reprodução da espécie; o

segundo de reflexos condicionados que surgem da experiência animal como mecanismo de

adaptação às mudanças ambientais; e o último estágio corresponde à emergência de operações

voltadas para a solução de problemas que se manifestam em primatas superiores como o homem

e o chimpanzé.

Essa capacidade de resolver problemas, que não se restringe à espécie humana, exige o

aparecimento de sistemas cognitivos com uma função representacional, ou seja, capazes de gerar

representações a partir de informações. Para Pozo (2005, p. 63), as representações se referem

necessariamente a um mundo material ou não, são sobre algo, e esse conteúdo das representações

é tão importante como sua forma (ou sua informação).

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Para Pino, o conceito de representação, apesar de estar longe de um consenso, é tomado

na teoria do conhecimento como significando uma função ou um objeto mental.

Como função, a representação é a propriedade que têm as coisas – atribuída a elas pelos homens - de substituir e evocar outras coisas. Como objeto mental, a representação é o desdobramento do real no seu equivalente simbólico, o que implica a função semiótica. (PINO, 1995, p.35).

De qualquer forma, podemos dizer que as representações emergem da/na interação que os

organismos estabelecem em contextos particulares e isto implica em situar a especificidade dos

domínios aos quais estas representações estão relacionadas pois, como considera Pozo (2005, p.

70):

A mente humana trabalha com representações, e essas representações,

por sua vez, tratam daquelas partes do mundo com as quais essa mente interage. A mente e o ambiente se constroem mutuamente. Analisar a aprendizagem como um processo de [aquisição e] mudança de representações [...] implica estudar sua aquisição em domínios específicos.

Um organismo, portanto, não será capaz de representar toda e qualquer variação que se

processa no ambiente, mas somente aquelas que lhe são relevantes em sua história evolutiva de

tal forma que cada espécie elabora o seu próprio “nicho cognitivo”. Por isso, essas representações

não são totais ou exaustivas mas sempre parciais e podem até mesmo funcionar como restrições

construtivistas no processo de aquisição de novas representações ou de modificações daquelas já

existentes. Estes aspectos sugerem a relação intrínseca entre mente e corpo no curso evolutivo,

pois como diz Damásio (2005, p. 260 e 261):

Se o cérebro evoluiu, antes de mais nada, para garantir a sobrevivência do corpo, quando surgiram os cérebros “mentalizados”, eles começaram por ocupar-se do corpo. E, para garantir a sobrevivência do corpo da forma mais eficaz possível, a natureza [...] encontrou uma solução altamente eficiente: representar o mundo exterior em termos das modificações que produz no corpo propriamente dito, ou seja, representar o meio ambiente por meio da modificação que tiver lugar numa interação entre o organismo e o meio ambiente.

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Considerando ainda este curso evolutivo dos sistemas cognitivos, Mithen (2002) sugere

que as representações que compartilham dos mesmos processos de aprendizagem podem ser

agrupadas em quatro domínios: o domínio técnico, o domínio natural, o domínio social e o

domínio lingüístico. Destes domínios, aqueles que marcam a natureza especificamente humana

situam-se no social e lingüístico, justamente porque conferem ao organismo a capacidade de

tomar as representações como objetos de pensamentos, ou seja, de meta-representar envolvendo

controle e consciência das ações e finalidades. Na visão de Pozo (2005, p. 105):

[...] em algum momento de nossa evolução como espécie cognitiva, desenvolvemos a capacidade de explicitar nossas representações, a capacidade de meta-representar ou, melhor ainda, de conhecer nossas próprias representações, que seria o traço cognitivo mais específico do Homo sapiens.

Vale esclarecer que o domínio lingüístico, ainda que essencialmente humano porque

qualificado como sistema simbólico que permite a vida social, não teria surgido antes que

houvesse essa necessidade de se comunicar e de se ter acesso consciente às próprias

representações. Como diz Olson (1998, p.90) “a função representacional, que era baseada na

habilidade de manter objetos na mente em sua ausência é que tornou o aprendizado da língua

possível”. Assim, a linguagem, enquanto sistema simbólico e cultural, cumpre uma dupla função;

de um lado é um instrumento que permite comunicar representações, de outro se constitui num

“amplificador cognitivo”, uma vez que possibilita gerar novas representações e re-descrever

aquelas já existentes de forma explícita e intencional. Este aspecto acabaria por alterar a cognição

e a consciência.

A linguagem se transforma, assim, num sistema de representação

privilegiado que permite já não somente fazer referência explícita aos objetos presentes, mas também re-presentar sucessos não-presentes, assim como as atitudes ou perspectivas próprias em relação a eles (POZO, 2005, p. 145).

Em sendo assim, quando as representações se transformam em objetos de representação,

em meta-representações, podemos dizer que “a cultura material já não é somente uma memória

externa do mundo, mas uma nova forma de pensar e representar o mundo, porque os novos

artefatos produzidos por essa cultura material [...] são sistemas para representar idéias,

tecnologias simbólicas” (POZO 2005, p.145).

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O que parece claro para nós é que mente e cultura evoluíram conjuntamente, inicialmente

orientadas e dirigidas por processos de seleção natural que, posteriormente, foram substituídos

quase que exclusivamente por processos que governam o funcionamento social. É preciso

considerar que não existe mente sem cultura, mas também não existe cultura sem mente. Se é

certo afirmar que os sistemas culturais acabam por gerar novas reconfigurações em nosso

funcionamento mental, também é certo afirmar que a mente, por vezes, também restringe e até

mesmo transforma os sistemas culturais.

Embora a mente humana tenha se tornado capaz de meta-representar, não abdicou de

alguns sistemas de representação que compartilhamos filogeneticamente com outras espécies.

Estes sistemas podem inclusive impor restrições à apropriação de conhecimentos situados em

determinadas esferas culturais. Um bom exemplo para ilustrar esta situação é a nossa visão do

corpo: respiramos, alimentamo-nos, excretamos, enfim, realizamos uma série de atividades

percebidas macroscopicamente. Entretanto, a biologia molecular tem evidenciado que este corpo

é, na verdade, uma entidade autopoética que se perpetua através da atividade química, da

movimentação das diversas moléculas que a constituem e que garantem a manutenção da vida

(MARGULIS; SAGAN, 2002). Neste caso, parece existir uma certa dificuldade entre esses

sistemas culturais e a mente daqueles que devem aprender. É como se nossa mente funcionasse

como um sistema “imunológico cognitivo”. Isto não significa que a aquisição de tais

conhecimentos ou representações seja impossível mas sim que este processo de reconstrução

mental da cultura vai exigir novos processos de aprendizagem ou mudança conceitual e novas

formas de intervenção, particularmente quando relacionados a contextos formais de educação.

Bruner também considera que há restrições inerentes à natureza do próprio funcionamento

mental pois, no processo evolutivo, especializamo-nos em determinadas maneiras características

de saber, sentir e perceber. Tais restrições

limitam nossos modos de conceber questões presumivelmente impessoais, “objetivas” como tempo, espaço e causalidade. Vemos o “tempo” como se tivesse uma continuidade homogênea – como se fluísse uniformemente, seja medido por relógios, fases da lua, mudanças climáticas ou qualquer outra forma de recorrência. As concepções descontínuas ou quânticas do tempo vão contra o bom senso a tal ponto que passamos a acreditar que o tempo contínuo é o estado de natureza que experimentamos diretamente. (BRUNER, 2001, p.26).

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2.2 Situando a Pesquisa Sociocultural e a noção de ação mediada

Vivemos cercados de novos conhecimentos. Entretanto, segundo Pozo (2005), a

distribuição deste conhecimento ainda se dá de forma muito desigual, uma vez que aqueles que

não têm acesso aos diferentes sistemas culturais de representação simbólica encontram-se na

verdade mergulhados em um mar de informações que não se traduzem em verdadeiro

conhecimento. Daí a necessidade sempre crescente de campanhas que visem a universalização

desses sistemas culturais. A apropriação de tais sistemas envolve não apenas uma dimensão

conceitual, mas igualmente os processos e mecanismos que entram em jogo na sua aquisição e

uso e que Pozo (2005) denomina de “kits ou ferramentas cognitivas” necessárias para aprender

novos conhecimentos em domínios específicos.

É próprio da natureza humana a competência para adquirir novos conhecimentos dada a

complexidade e variabilidade dos ambientes culturais em que nos encontramos. Imersos nestes

contextos culturais, somos desafiados a buscar soluções adaptativas bem como a compartilhá-las

com nossos pares. Assim, o que caracteriza efetivamente os humanos como uma espécie

cognitiva é a capacidade de:

Acumular essas soluções culturalmente em forma de conhecimento, transmitindo-as de geração em geração, porque [os humanos] dispõem de sistemas de aprendizagem e representação que os diferenciam dos demais organismos e sistemas que aprendem. (POZO, 2005, p.13).

Portanto, pensar e entender o homem enquanto um ser que conhece exige situá-lo em seu

contexto cultural, evidenciando particularmente a sua participação em atividades que se realizam

no interior desses sistemas simbólicos e culturalmente organizados.

Na perspectiva de Bruner (1997), a cultura é constitutiva da mente humana e este aspecto

possibilita até mesmo transcender determinados limites de ordem biológica. Para o autor, “é a

cultura, e não a biologia, que molda a vida e a mente humanas, que dá significado à ação,

situando seus estados intencionais subjacentes em um sistema interpretativo”. (BRUNER, 1997,

p. 40).

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Ainda que tais restrições sejam tomadas, algumas vezes, como universais justamente

porque fruto de nossa evolução enquanto espécie, Bruner (2001) não as considera como um “dote

inato fixo” do homem e, portanto, imutáveis. Ao contrário, supõe que a exposição do homem a

sistemas simbólicos compartilhados por uma comunidade possa de fato contribuir para a

superação destas restrições. É nesse sentido que o autor encontra na Zona de Desenvolvimento

Proximal de Vygotsky um caminho possível para se disponibilizar um conjunto de “ferramentas

culturais” que permita ao sujeito avançar no seu processo de produção de significados e, portanto,

de visão de mundo.

Os sistemas culturais, como os sistemas científicos, cumprem uma dupla função que se

articulam dialeticamente: constituem-se em instrumentos mediadores das/nas interações que o

sujeito estabelece com o mundo mas cuja apropriação/utilização possibilita a aquisição de novos

conhecimentos/representações, capacidades e habilidades. Transformam-se mundo e sujeito.

Talvez seja oportuno dizer que, em contextos formais de educação como a escola, que se

propõem a disponibilizar uma seleção de conhecimentos culturalmente produzidos no interior dos

sistemas culturais, há uma necessidade de se evidenciar esta dupla função justamente porque, na

sua articulação, é possível superar-se algumas restrições impostas pela natureza cognitiva da

mente humana, chegando mesmo a transcendê-la. Desta forma, é possível alcançar-se uma ampla

distribuição social do conhecimento produzido no interior do que tem sido chamado por Burke14

(2000 apud POZO, 2005) de “comunidades epistemológicas”.

Na perspectiva cognitivista, a aprendizagem humana revela-se como um processo que

envolve aquisição e modificação de representações. Mais ainda, tais representações podem ser

elas próprias tomadas como objetos de representações, ou seja, podem ser meta-representadas, o

que viabiliza a construção de sistemas simbólicos que funcionam dialeticamente como

mediadores dos processos de novas aprendizagens e também das novas formas de funcionamento

mental. É neste movimento dialético que a aprendizagem pode ser vista como uma prática

sociocultural.

14 BURKE, P. A social history of knowledge. Cambridge: Polity Press, 2000.

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Na verdade, na visão de Bruner (1997), tais limitações biológicas traduzem-se em

possibilidades para a ação humana, uma vez que mobilizam e desafiam o homem à criação e

utilização de instrumentos e mecanismos que marcam a sua inventividade cultural. Este kit de

ferramentas disponível em qualquer cultura representa “um conjunto de dispositivos protéticos

com os quais os seres humanos podem exceder ou até mesmo redefinir os ‘limites naturais’ do

funcionamento humano”. (BRUNER, 1997, p. 28).

Vale destacar que a apropriação e uso desse kit-ferramenta, que marca a participação do

homem na cultura, diferentemente de uma concepção mecanicista, exige a produção/construção

de significados. Isto porque são os significados e os processos envolvidos na sua produção que

conectam o homem à sua cultura. No dizer de Bruner:

Por mais ambíguo ou polissêmico que o nosso discurso possa ser, nós

ainda somos capazes de levar nossos significados ao domínio público. Ou seja, nós vivemos publicamente através de significados públicos, compartilhados por procedimentos públicos de interpretação e negociação. A interpretação, por mais ‘espessa’ que possa se tornar, deve ser publicamente acessível ou a cultura entrará em desordem e, com ela, seus membros individuais (1997, p. 23).

Também Rogoff (1993, p. 55) nos diz que “Biologia e cultura não são influências

alternativas, mas sim aspectos inseparáveis de um sistema dentro do qual se desenvolvem os

indivíduos”. Sujeito e mundo social se constituem mutuamente; por isso mesmo, não podem ser

tratados como esferas independentes uma da outra. Filiando-se a um enfoque contextualista para

a compreensão do desenvolvimento humano, Rogoff (1993) considera a atividade humana como

a unidade de análise que preserva o sentido de totalidade pois evidencia os movimentos

interativos entre indivíduo e meio. Este aspecto é relevante uma vez que a totalidade não é igual à

soma de todas as partes que a compõem. O todo manifesta propriedades específicas, diferentes

das propriedades das partes, que precisam ser mais bem exploradas.

Situar o homem culturalmente não é uma tendência recente. Wertsch, Del Rio e Alvarez

(1998) realizam um resgate histórico da pesquisa sociocultural, evidenciando a multiplicidade de

perspectivas e abordagens que vêm sendo construídas desde, talvez, o trabalho pioneiro de Wundt

que assim escrevia:

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No ano de 1860 tive a idéia de adicionar um tipo de superestrutura à psicologia experimental, a qual pela natureza dos seus objetivos e métodos tem que se restringir aos fatos da vida mental do indivíduo. Embora essa superestrutura seja destinada a se apoiar nas origens desses fatos, ela deve ultrapassá-los e ter como ponto de partida os fenômenos da vida social humana. Logo, isso me pareceu como a maior tarefa da psicologia, e de fato a sua própria conclusão (WUNDT, 1920 apud WERTSCH; DEL RIO; ALVAREZ, 1998, p. 14).

Na trajetória que percorrem, Wertsch, Del Rio e Alvarez (1998) enfatizam que, apesar da

pesquisa sociocultural encontrar no legado vygotskyano uma de suas principais fontes teórica,

não se limita a ela. Por isso mesmo, consideram ainda que as expressões histórico-cultural,

histórico-social e sociocultural não podem ser tratadas como equivalentes. Os autores entendem

que os termos histórico-cultural e histórico-social são mais apropriados quando se referem aos

trabalhos de Vygotsky e os de seus seguidores como Luria e Lent’ev, isto porque trazem em seu

bojo a crença de alguma forma de progresso e racionalidade humana universais. Já a expressão

sociocultural parece, em certa medida, abrigar um leque de trabalhos que não se ancoram

exclusivamente na tradição vygotskyana, ou ainda, que realizam re-leituras e re-apropriações

desse legado num cenário contemporâneo.

Independente das trajetórias intelectuais assumidas, vale afirmar que o objeto de

investigação da pesquisa sociocultural situa-se na ação humana conduzida por indivíduos ou por

grupos de indivíduos.

É preciso ter em conta que a psicologia e, particularmente o behaviorismo na sua vertente

mais radical, assumiu como foco de estudo o comportamento numa relação sempre unilateral que

vai do ambiente para o indivíduo. Na perspectiva sociocultural, este comportamento, entretanto, é

sempre dinâmico e não determinado unilateralmente pois:

[...] o organismo humano se comporta (tem uma conduta), ou em outras

palavras ele interage ativamente no seu contexto ou além dele no mundo. [...] o comportamento ativo envolve uma transformação simultânea do mundo e do próprio organismo; uma forma de transformação do organismo é a compreensão. (BRONCKART, 1998, p. 72).

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Nesse sentido, a compreensão humana nasce e se alimenta na/da atividade que se realiza

através de ações. No dizer de Bronckart (1998, p. 73) “as ações formam as modalidades sócio-

práticas através das quais as atividades são realizadas”.

Wertsch (1999) e Zinchenko (1998) nos dizem que a ação mediada tem sido focalizada a

partir de duas grandes linhas de pesquisa: a teoria histórico-cultural de Vygotsky e a teoria da

atividade formulada por Leont’ev.

Segundo Zinchenko (1998), a teoria histórico-cultural de Vygotsky tem como objeto de

investigação a mediação da mente e da consciência situando esta mediação no contexto cultural.

Há neste caso uma ênfase no papel dos mediadores, particularmente de natureza semiótica, que

permitem a formação dos processos psicológicos superiores. Os significados que vão sendo

construídos neste processo constituem-se na unidade para se analisar a mente humana. Já a teoria

da atividade focaliza, particularmente, a atividade orientada ao objeto. A unidade para se analisar

todos os processos mentais, inclusive a personalidade, desloca-se, neste caso, do significado para

a ação.

Entretanto, vale destacar que, apesar das grandes diferenças que marcam essas duas

teorias, existem pontos de contatos entre elas. Wertsch, Del Rio e Alvarez (1998), por exemplo,

argumentam que a análise vigotskyana acerca da mediação semiótica acaba por revelar processos

que seriam, posteriormente, definidos por Leont’ev como ação. Este é o caso da linguagem

considerada por Vygotsky como meio semiótico através do qual se realiza o discurso. Neste caso,

o discurso é entendido, ainda que implicitamente, como uma forma de ação.

Avançando nesta aproximação, Zinchenko (1998) considera que a teoria da atividade não

nasce de um vazio intelectual e, por isso, se apropria de muitos elementos da teoria histórico-

cultural. O autor chega inclusive a afirmar que a teoria histórico-cultural deu origem à teoria da

atividade. Aceitando essa relação, Zinchenko (1998, p. 46) considera que, apesar do esquema da

teoria da atividade não fazer nenhuma especificação direta ao significado e ao sentido, tais

elementos não deixam de atravessar o corpo de sua proposta:

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Isso corresponde à lógica de Bernshtein, de acordo com a qual, o movimento ao nível do objeto leva a uma imagem semântica [...]. Também é importante lembrar a posição muito similar de Shpet, que escreveu que o sentido está arraigado ao ser, ou à existência. Tudo isso atesta a afirmação de que o sentido constitui não só a consciência, mas também a atividade orientada para um objeto.

Assumindo estas duas teorias como duas linhas de pesquisa, mas não duas escolas

distintas, Zinchenko (1998) propõe a necessidade de se “ir além dos limites de ambas, olhá-las de

um ponto de vista mais amplo e entender seus lugares e seus papéis na psicologia em geral”

(p.52). Mais do que isso, é preciso ir além delas para se entender melhor o sentido de ação

mediada relevante à pesquisa sociocultural.

É esta ampliação da noção de ação mediada que Wertsch (1999) busca alcançar. Para isto,

ressalta inicialmente alguns elementos da teoria de Vygotsky que permitem justificar e mesmo

distinguir estudos socioculturais que se ancoram em seu legado.

Entre os elementos apontados por Wertsch (1999), chama a atenção o fato de Vygotsky

ter se preocupado, particularmente, com as formas específicas de funcionamento mental que

reproduzem e refletem um contexto social, histórico e culturalmente situado. Voltando-se para o

estudo das ferramentas culturais empregadas na ação humana, procura situar o papel dessas

ferramentas, em especial a linguagem e a fala, no funcionamento intermental e intramental dos

indivíduos.

Na perspectiva de Vygotsky, o papel mediador exercido pelos signos é de fundamental

importância: os signos permitem que uma operação realizada, a princípio externamente, seja,

posteriormente, reconfigurada em um nível intramental. Nas palavras de Vygotsky (1998, p.75),

“todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, no nível social,

e, depois, no nível individual; primeiro, entre pessoas (interpsicológica), e, depois, no interior da

criança (intrapsicológica)”.

Nessa relação entre o funcionamento intermental e o funcionamento intramental,

Vigotsky salienta a importância do discurso enquanto instrumento mediador e organizador desse

contexto social e define a noção de zona do desenvolvimento proximal como:

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[...] a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes (VYGOTSKY, 1998, p.112).

Esse desenvolvimento potencial, como apontado por Vygotsky, se relaciona, portanto, a

funções que estão em processo de maturação, correspondendo às “flores” ou “brotos” do

desenvolvimento. Sua visão de desenvolvimento é sempre prospectiva o que traz implicações

para o contexto educacional que sempre se organizou e se realizou considerando aquilo que o

aluno sabe, mas não aquilo que poderia saber ou fazer com a ajuda do outro. Talvez, por isso

mesmo, tenha sido um elemento teórico muito discutido no cenário pedagógico.

Como assinalado anteriormente, o trabalho de Vygotsky, ao enfatizar suas análises em

torno do funcionamento mental e o papel da medição semiótica para a formação dos processos

psicológicos superiores acabou por revelar processos que, posteriormente, foram assumidos como

ação por Leont’ev e outros seguidores da Teoria da Atividade. Contudo, o que se percebe, tanto

em Leont’ev quanto em Vygotsky, é que a noção de ação assume uma natureza

predominantemente teleológica, ou seja, orientada e planejada para finalidades específicas

(WERTSCH; DEL RIO; ALVAREZ, 1998).

Procurando ampliar essa noção de ação e, mais precisamente, de ação mediada para a

pesquisa sociocultural, Wertsch, Del Rio e Alvarez (1998) e Wertsch (1998) sugerem o resgate

dos estudos de Burke acerca da ação simbólica.

Em Burke (1966)15, a “ação é um termo que se refere ao tipo de comportamento possível

para um animal tipicamente usuário de símbolos (como o homem), ao contrário das operações de

natureza extra-simbólica ou não-simbólica” (apud WERTSCH; DEL RIO; ALVAREZ , 1998,

p.21). Do ponto de vista de Burke, a ação simbólica implica necessariamente a manipulação de

um sistema de símbolos ultrapassando, portanto, os ideais fisicalistas de movimento relacionado

a comportamento, tal como vem sendo proposto pelas leituras e releituras do behaviorismo. A

ação simbólica se revela e se realiza na interação e esta interação pressupõe transformação tanto

dos sujeitos nela envolvidos quanto dos objetos que mediam esta interação.

15 BURKE, K. Language as symbolic action: Essays on life, literature, and method. Berkeley:University of California Press.

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A esta dimensão dinâmica da ação simbólica, Burke incorpora o conceito de drama,

justamente porque envolve o conflito, o propósito, a reflexão e a escolha (WERTSCH; DEL RIO;

ALVAREZ, 1998). Esta dimensão dramatística ganha vida no que é definido como o “quinteto

dramatístico” de Burke cujos elementos constituintes encontram-se sempre em uma tensão

dinâmica:

O dramatismo engloba observações deste tipo: para haver um ato, deve

haver um agente. Paralelamente, deve haver uma cena na qual o agente age. Para agir em uma cena, o agente deve empregar alguns meios, ou instrumentos, e pode ser chamado de um ato no sentido amplo do termo somente se envolver um propósito (isto é, se um apoio acontece para dar caminho e se cai, tal movimento da parte do agente não é um ato, mas um acidente). (BURKE, 1969 apud WERTSCH; DEL RIO; ALVAREZ, 1998, p. 22).

Estes cinco elementos (ato, cena, agente, propósito, instrumento), que estão em jogo e

marcados por relações dialéticas, permitem considerar diferentes formas de ação, não apenas

aquelas de natureza exclusivamente teleológica, abrindo assim possibilidades de interpretações e

significados diferenciados à ação humana.

Encontramos em Wertsch (1998, 1999) a preocupação em reunir elementos, tanto teóricos

quanto empíricos, que permitam à pesquisa sociocultural superar a antinomia entre indivíduo e

sociedade. Nesse seu esforço, define ação mediada e delineia três propriedades:

(1) meios mediacionais e portanto ação mediada são/estão socioculturalmente situadas; (2) meios mediacionais estão associados com limitações tanto quanto com possibilidades; e (3) a relação entre agentes e meios mediacionais pode ser caracterizada em termos de apropriação tanto quanto knowing how (WERTSCH, 1999, p.521, tradução da autora).

Em relação ao primeiro aspecto apontado por Wertsch (1999), pode-se considerar o

caráter específico das ferramentas culturais, ou seja, um conjunto de ferramentas não tem um uso

ou apropriação universal mas está restrito a determinados contextos culturais. Isto implica em

assumir o conceito de privilegiação definido por Wertsch (1993) que se refere “ao fato de que um

instrumento mediador [ferramenta cultural], tal como a linguagem social [ou gênero de discurso]

se concebe como mais apropriado ou eficaz que outros em um determinado cenário sociocultural”

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(p.146). Neste caso, as ferramentas culturais expressam uma luta de forças institucionais,

históricas e culturais, e resultam, portanto, de uma relação de poder e autoridade em um contexto

específico.

Além disso, é preciso pensar que muitas ferramentas empregadas em uma ação mediada

não foram necessariamente designadas para o papel que passam a ocupar. É o que Wertsch

(1998) chama de subproduto. Isto significa que as ferramentas culturais que medeiam as ações

humanas muitas vezes correspondem a formas selecionadas, ou mesmo impostas por forças

socioculturais, e não a uma necessidade específica do funcionamento mental. Este aspecto é

discutido por Olson (1998, p.105) em relação à língua escrita:

[...] a invenção de um sistema escrito desempenha dois papéis ao mesmo tempo. A invenção fornece um recurso gráfico de comunicação, mas, como ela é então verbalizada (i.é., lida) vem a ser um modelo da mesma verbalização. À medida que as escritas se tornaram mais elaboradas, elas forneceram modelos de discurso cada vez mais precisos, do que era dito.

Isto significa que, originalmente, a escrita emerge como uma ferramenta para atender

necessidades comunicativas, mas acaba por afetar o funcionamento mental ao se constituir em

um modelo que permite pensar sobre o discurso, caracterizando um efeito acidental ou não

previsto no curso de sua evolução (WERTSCH, 1998). Podemos considerar, portanto, que:

[...] a grande parte das ferramentas culturais que medeiam a ação humana não se desenvolveu para muito dos propósitos que elas vieram desafiar, e em muitos casos as ferramentas culturais que utilizamos são tomadas de contextos distintos16. De um modo, então, muitas vezes utilizamos as ferramentas de maneira errada, e isso pode ter a conseqüência de nossa ação ser moldada de forma que não sejam úteis ou até mesmo sejam antíteses a nossas intenções [...] (WERTSCH 1998, p. 33).

O segundo ponto apresentado por Wertsch (1999) acerca das possibilidades, mas também

restrições, apresentadas pelo uso de um nova ferramenta cultural de certa forma problematiza o

ideal de racionalidade abstrata encontrado nos trabalhos de Vygotsky. Não se pode negar que o

16 Esta dimensão é evidenciada por Olson (1998) ao afirmar que em alguns momentos uma comunidade lingüística toma emprestado o sistema gráfico de outra.

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aparecimento de uma ferramenta cultural transforma ou mesmo faz surgir um novo tipo de ação

mediada.

Para ilustrar essa dimensão, podemos nos valer de Wertsch (1998) ao analisar a evolução

histórica dos recordes obtidos no salto com vara. O autor considera que a produção de novos

tipos de vara mais flexíveis e capazes de conferir maior impulso ao atleta conduziram a novos

estilos de saltos. A princípio, pode-se pensar que a melhora verificada na performance dos atletas

está restrita ao instrumento que medeia esta ação, no caso a vara, que a partir de novas

tecnologias e artefatos se tornou qualitativamente superior às existentes e utilizadas

anteriormente. Entretanto, a vara por si só não impulsiona o atleta; é preciso que este a empregue

habilidosamente. “Um indivíduo usando o novo meio mediacional também teve de mudar, uma

vez que exigia novas técnicas e habilidades” (WERTSCH, 1998, p. 65). A ação mediada,

portanto, pressupõe tanto a transformação dos sujeitos como dos instrumentos nela envolvidos.

Vale ressaltar que a assunção deste aspecto parece encaminhar uma visão sempre otimista

e positiva dos impactos provocados por essas novas ferramentas culturais. Entretanto, é preciso

considerar que uma nova ferramenta cultural, ao ser introduzida nas mediações, liberta-as de

certas limitações existentes, mas igualmente introduz novas formas de limitações.

A terceira propriedade da ação mediada refere-se a uma necessidade de aproximação entre

agentes que realizam a ação e as ferramentas culturais que são utilizadas nesta ação. Para isto

Wertsch (1999) distingue knowing how de apropriação; o primeiro estando relacionado às

habilidades necessárias para a utilização de uma determinada ferramenta cultural. Isto provoca

um deslocamento do foco de análise dos mecanismos de internalização como proposto por

Vygotsky (a transferência de uma operação de um plano intermental para um plano intramental)

para a emergência dos processos envolvidos e exigidos no uso dessas ferramentas culturais.

O segundo, apropriação, relaciona-se com o desejo do indivíduo de usar uma ferramenta e

seu senso de propriedade dessa ferramenta. A noção de apropriação pode ser mais bem entendida

a partir dos estudos de Bakhtin (1992, 1997) que tratam da monologização da palavra, ou seja, do

processo de apropriação da palavra alheia tornando-a palavra própria. As palavras e os

significados que carregam são, em parte, minhas mas também do outro, representando, portanto,

construções coletivas. Em algumas situações o encontro dessas vozes é relativamente harmônico;

em outras, contudo, pode haver tensões e mesmo resistência por parte dos sujeitos envolvidos em

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se apropriar ou utilizar os instrumentos mediadores que estão em jogo, neste caso,

particularmente, a linguagem ou gênero de discurso.

Ainda que não enfocando as ações mediadas, Smolka et al. (1998) ilustram com precisão

estes movimentos de resistência no processo de constituição dos sujeitos. Analisando um

episódio que tem como atores crianças de quatro anos de idade em contexto pré-escolar, os

autores focalizam o estabelecimento da intersubjetividade entre os participantes para que a

interação se realize. A intersubjetividade é tomada como entendimento ou compartilhamento

mútuo, seguindo Rogoff (2005, 1998 e 1993). Entretanto, Smolka et al. (1998) vão mostrar que

esta dinâmica, situada em um nível intermental, não é necessariamente construída em termos

simétricos e harmoniosos, mas envolve conflitos e tensões, evidenciando que a interação e o

processo de constituição dos indivíduos são marcados também por “perspectivas divergentes,

oposição de idéias, resistência à comunicação” (p.148). Esta perspectiva está associada a um

modelo de sociogênese proposto por Valsiner (1994)17 que se baseia na noção de contágio social:

[...] na metáfora de doenças contagiosas, permitindo uma concepção de

sócio-gênese como um processo pelo qual a interação social afeta (infecta) o sujeito através de mecanismos semióticos (vírus). E, o que é mais importante difere dos outros modelos [do aprendizado harmônico, da fusão] ao possibilitar a idéia de que o indivíduo pode neutralizar ou resistir à infecção através de formas de imunidade que impeçam o contágio. (apud SMOLKA et al., 1998, p.144).

Os autores expressam, portanto, uma concepção de intersubjetividade que não se ajusta à

de “envolvimento mútuo dos indivíduos e seus companheiros sociais, comunicando e

coordenando seus envolvimentos à medida que participam na atividade coletiva e

socioculturalmente estruturada” (ROGOFF, 1998, p.129).

Ainda se na textura das relações humanas nem sempre podemos

encontrar a “simetria” e a “harmonia” ideal ou desejada, podemos certamente identificar processos simultâneos ou até recíprocos pelos quais os sujeitos são constituídos em relação a algumas posições sociais definidas ou assumidas. Porém, essa reciprocidade não possui o mesmo significado harmônico como “mutualidade”, que perpassa a noção de intersubjetividade. Aqui, “recíproco” é

17 VALSINER, J. (1994). Bi-directional cultural transmission and constructive sociogenesis. In W. de Graaf & R. Maier (Eds.), Sociogenesis re-examined (pp. 101 – 134). New York: Springer-Verlag.

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usado no sentido de ser inversamente relacionado, como o fortalecimento de um sujeito enfraquece o outro. Mas ainda, em um sentido mais profundo, podemos dizer que recíproco significa “constitutivamente relacionados”. O processo de formação individual da consciência ou da constituição do sujeito acontece não só “intersubjetivamente” mas também dialeticamente no funcionamento interpsicológico. (SMOLKA et al., 1998, p. 153).

Ao enfatizar este movimento dialético nas relações humanas, os autores revelam o seu

caráter dramático, justamente porque “o sujeito habitado por múltiplas vozes fala de sua ‘própria’

voz no ‘coral’: um concerto polifônico desarmônico e caracterizado por movimentos sincrônicos,

bem como por vozes distintas, conflitantes e dissonantes” (p.157). Esta dramaticidade parece

coincidir com aquela proposta por Burke (apud WERTSCH; DEL RIO; ALVAREZ; 1998).

A discussão realizada até o momento nos permite assumir a ação mediada como unidade

de análise que garante uma compreensão mais ampla e profunda acerca dos processos de

aprendizagem, já que, como dito por Wertsch (1998, 1999), fornece um caminho para se explorar

a relação entre o funcionamento da mente e o contexto social e cultural em que o sujeito se

encontra situado.

2.3 A aprendizagem na perspectiva sociocultural: ou de quando a aprendizagem se torna

situada

É possível afirmar que, tanto em contextos formais quanto não formais de educação, a

aprendizagem tende a significar a aquisição de um corpo de conhecimentos, muitas vezes,

independente das situações nas quais esta aprendizagem se realiza. Particularmente em relação às

escolas, pode-se dizer que sua preocupação principal situa-se na “transferência desta substância

que se constitui de conceitos abstratos, formais e descontextualizados” (BROWN; COLLINS;

DUGUID, 1989). De um modo geral, esta visão abstrai a cultura, o contexto e também as

atividades que envolvem o processo de aprendizagem. No entanto, na perspectiva de Lave e

Wenger (1995, ps. 33 e 34), é preciso considerar que:

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Generalizações são freqüentemente associadas com representações abstratas, com descontextualizações. No entanto, representações abstratas não têm significado a menos que possam estar relacionadas a uma situação específica. Mais ainda, a formação ou aquisição de um princípio abstrato é por si próprio um evento específico em circunstâncias específicas [...] Neste sentido, qualquer poder de abstração está inteiramente situado, na vida das pessoas e na cultura que torna esta abstração possível. (Tradução da autora).

Brown, Collins e Duguid (1989) entendem que a aprendizagem e, conseqüentemente, o

ensino acabaram centrados em dois domínios distintos: o “saber que”, relacionado a um

conhecimento descritivo envolvendo generalizações e abstrações; e o “saber fazer”, de ordem

prática e técnica.

Buscando superar a dicotomia que está posta entre estes dois domínios do conhecimento,

a perspectiva sociocultural propõe a noção de aprendizagem situada, considerando que a

aprendizagem é resultado da interação da atividade, do conceito e da cultura, ou em outras

palavras, a aprendizagem efetivamente se realiza quando há envolvimento e participação do

sujeito que aprende em atividades que estão social e culturalmente situadas. Como dizem Brown,

Collins e Duguid (1989, p. 33):

[...] a atividade na qual o conhecimento é desenvolvido e desdobrado é

agora visto como inseparável ou indispensável à aprendizagem e cognição. Também não é neutra. Melhor: é uma parte integrante do que é aprendido. As situações devem co-produzir conhecimento através de atividades. Aprendizagem e cognição, é possível afirmar, são agora fundamentalmente situadas. (Tradução da autora).

Lave e Wenger (1995) alertam para uma confusão existente em relação ao significado da

expressão “aprendizagem situada” uma vez que pode gerar diferentes interpretações e mesmo

uma apropriação equivocada e/ou parcial do conceito.

[...] Em algumas ocasiões, “situado” parecia significar apenas que

alguns pensamentos e ações das pessoas estavam localizados no espaço e no tempo. Em outras ocasiões, parecia que o pensamento e a ação eram sociais, em um sentido que envolvia outras pessoas ou que eram imediatamente dependentes para o significado no ambiente social que os ocasionavam. Estes tipos de interpretações próximas de visões ingênuas de indexação, usualmente consideram algumas atividades como sendo situadas e outras não (p. 32 e 33, tradução da autora).

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Para os autores, a aprendizagem situada é inerente a qualquer atividade do dia a dia que

tenha ou não intenções formais de ensinar, isto porque está relacionada ao envolvimento

completo das pessoas nas atividades mais do que à transmissão de um corpo de conhecimento

factual acerca do mundo. Nesta perspectiva, o sujeito, a atividade e o mundo constituem-se

mutuamente, o que pressupõe que qualquer forma de conhecimento se realiza e se materializa no

domínio da re-negociação de seu significado em circunstâncias presentes e específicas (LAVE;

WENGER, 1995).

Em Lave e Wegner (1995), encontramos que a aprendizagem situada é orientada a partir

de um processo denominado participação periférica legítima (legitimate peripheral participation),

que implica na participação efetiva dos indivíduos nas práticas socioculturais de uma

comunidade. Assim é que este conceito de participação periférica legítima permite descrever o

engajamento nas práticas sociais, articulando aprendizagem como um elemento constitutivo

destas mesmas práticas.

Ao procurar conceituar a noção de participação periférica legítima, os autores evitam

antinomias como legítimo-ilegítimo, periférico-central, participação-não participação.

Consideram que a legitimidade da participação está posta no sentimento de pertencimento, no

nível de envolvimento contínuo e dinâmico nas atividades que se realizam e que sustentam uma

comunidade. A idéia de periférico não se traduz em uma localização marginal na organização da

comunidade, mas implica a existência de “múltiplas e variadas maneiras de estar situado no

campo de participação definido por uma comunidade” (LAVE; WENGER, 1995, p. 36).

Mudanças de localização, entendidas em termos sociais e de perspectivas, referem-se, na

verdade, a um movimento natural que faz parte da trajetória da aprendizagem e da construção de

identidades dos sujeitos. É neste sentido que Lave e Wenger (1995, p. 56) propõem o seu foco de

análise:

[...] Desta forma, nós começamos a analisar mudanças nas formas de

participação e de identidade das pessoas que se engajam em participações sustentadas em uma comunidade de prática: entrando como um novato e tornando-se experiente em relação a novos novatos até a ponto em que esses novatos se tornem experientes. (Tradução da autora).

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Neste sentido, a participação periférica legítima evidencia as relações que estão em jogo

em uma comunidade de prática, bem como a própria atividade que se realiza e os meios

mediacionais nela envolvidos. Portanto, esta dimensão periférica sugere uma abertura, uma

maneira de ter acesso a fontes de entendimento através de uma participação que pode ser cada

vez mais crescente a partir da apropriação dos conhecimentos e habilidades relativos a esta

comunidade. Esta perspectiva sugere a superação de tendências racionalistas e empiristas uma

vez que:

[...] aprendizagem, pensamento e conhecimento são relações entre

pessoas em ação que emergem de um mundo estruturado social e culturalmente. Este mundo é socialmente constituído; sistemas e formas objetivos de um lado, e entendimentos subjetivos e intersubjetivos do outro lado, constituem mutuamente tanto o mundo como suas formas experienciadas. (LAVE; WENGER, 1995, p. 51, tradução da autora).

Neste contexto de participação periférica legítima, os significados são negociados e

renegociados de forma a garantir não apenas a reprodução, mas a própria transformação da

comunidade e dos indivíduos que nela atuam. Nesta perspectiva, o conceito de comunidade de

prática é fundamental para a caracterização da participação periférica legítima, isto porque

pressupõe um conjunto de relações entre pessoas, atividades e mundo, bem como entre diferentes

comunidades. Wenger (1998) considera que as comunidades de práticas estão em todo lugar:

como seres humanos, estamos vinculados a diferentes comunidades – no trabalho, na escola, em

casa e no lazer. Algumas têm nome, outras não. O nível de engajamento pode ser maior ou

menor. Em algumas, ocupamos um papel mais central, em outras estamos situados mais

perifericamente. Além disso, estas comunidades podem se sobrepor ou entrar em conflito umas

com as outras. Lave e Wenger (1995) enfatizam que o termo comunidade de prática não implica

necessariamente um recorte bem definido de um grupo com fronteiras sociais visíveis e

delimitadas, mas sim a participação em um sistema de atividades no qual os participantes

compartilham entendimentos e negociam o que estão fazendo e o significado dessas ações.

Esta posição é compartilhada por Rogoff (2005) ao problematizar a tendência de se

identificar os indivíduos como pertencentes a uma comunidade cultural a partir de uma única

categoria como, por exemplo, a característica étnica. Neste caso, pressupõe-se uma certa

homogeneidade no interior de cada categoria. A autora sugere então que os processos culturais

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podem ser pensados como “práticas e tradições de comunidades dinamicamente relacionadas, nas

quais os indivíduos participam e para os quais contribuem com o passar das gerações”

(ROGOFF, 2005, p.72). As comunidades seriam então definidas:

[...] como um grupo de pessoas que têm alguma organização, valores, visões, histórias e práticas comuns e continuadas [...] pessoas tentando chegar a algo juntas, com alguma estabilidade no envolvimento e na atenção às formas como se relacionam umas com as outras. Ser uma comunidade exige comunicação estruturada, que se espera que dure por algum tempo, com um grau de compromisso e significado compartilhados, embora muitas vezes contestado [...] (ROGOFF, 2005, p. 74).

Percebemos, portanto, que a comunidade de prática é uma condição intrínseca para a

existência e materialização do conhecimento tanto em termos de reprodução como de renovação.

É, no dizer de Lave e Wenger (1995), um princípio epistemológico para a aprendizagem já que a

estrutura social, as relações e as condições de legitimação que organizam e definem as práticas

culturais abrem um leque de possibilidades para que a aprendizagem tome lugar como

participação legítima periférica.

A idéia de comunidades como espaço/tempo de (re)produção de práticas e, portanto, de

conhecimento, deve ser cuidadosamente analisada. Situando esta discussão na relação entre as

práticas escolares e as práticas de uma comunidade científica, parece muitas vezes estar

subentendido que as disciplinas escolares, particularmente as de caráter científico, como

Biologia, Física e Química, tendem a reproduzir, no contexto da sala de aula, aquelas práticas

científicas realizadas por especialistas. É preciso enfatizar que as práticas escolares desenvolvidas

no interior destas disciplinas não coincidem com as práticas científicas propriamente ditas. Na

verdade, existe uma larga diferença e distância entre elas. A noção de transposição didática,

proposta por Chevallard18 (1985 apud IZQUIERDO; SANMARTÍ; MARIONA, 1999) sinaliza as

transformações que determinados conceitos vão sofrendo para sua introdução em espaços

escolares. Neste sentido, considera-se que há um saber de referência, produzido por especialistas

com objetivos, metodologias e sentidos específicos e há uma saber científico escolar. Neste

18 CHEVALLARD, YVES. La Transposition didactique. Grenoble: La Pensée Sauvage, 1985.

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movimento, o autor sugere a existência de uma epistemologia escolar que se distingue da

epistemologia que orienta os processos de produção do saber de referência.

Estes aspectos contribuem para supor que a escola se organiza como uma comunidade de

práticas com especificidades próprias uma vez que o conhecimento e as práticas que ali são

construídas correspondem a uma versão escolarizada dos conhecimentos e práticas efetivamente

realizados pelos cientistas. Esta idéia de versão escolarizada não pressupõe uma dimensão

depreciativa mas apenas a assunção de que a escola é um espaço social e cultural onde

conhecimento e prática, em sendo recontextualizados, ganham novos contornos e matizes, via de

regra relacionados aos objetivos e intenções das escolas enquanto instituições formais de

educação. Num movimento oposto, temos ainda que considerar que não apenas os saberes de

referência determinam ou orientam aquilo que será parte do currículo escolar. A escola, enquanto

uma instituição situada histórica e socialmente, também vai sinalizando novos elementos a serem

incorporados às propostas curriculares. Com isto, é possível pensar como Brown, Collins e

Duguid (1989): quando as práticas científicas são transferidas para a sala de aula, seu contexto é

inevitavelmente transmutado tornando-se práticas de sala de aula e parte de uma cultura da

escola. Por isso, os autores consideram que a atividade escolar tende a ser híbrida, implicitamente

formada por um cultura (escolar) mas explicitamente atribuída a outra (científica).

As atividades de sala de aula muito freqüentemente tomam lugar no interior de uma cultura escolar, embora sejam atribuídas à cultura de especialistas como leitores, escritores, matemáticos, historiadores, economistas, geógrafos, cientistas... Muitas dessas atividades que os alunos realizam não correspondem às atividades dos especialistas e não fariam sentido ou seriam endossadas pelas práticas culturais a que são atribuídas. (BROWN; COLLINS; DUGUID, 1989, p. 34, tradução da autora).

Este hibridismo, que marca a prática escolar, acaba por limitar, e mesmo negar, o acesso

dos alunos a uma participação mais intensa justamente porque elimina do processo de ensino e

aprendizagem o contexto e a cultura nos quais estas práticas se realizam e produzem o seu

conhecimento. No dizer de Brown, Collins e Duguid (1989), atividade, conceitos e cultura são

elementos interdependentes e necessários para a aprendizagem. Desta forma, os autores tomam a

aprendizagem como um processo de enculturação: consciente ou inconscientemente as pessoas

estão sempre se filiando a um sistema de crenças pertencente a um determinado grupo social.

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Em contextos escolares, tais idéias não sugerem que os estudantes tenham que ser vistos

como pequenos cientistas, matemáticos ou historiadores, mas sim que se desenvolvam atividades

nas quais os alunos possam mobilizar conceitos e práticas, enquanto instrumentos culturais

relativos a uma área de conhecimento. Em outras palavras, é preciso que a aprendizagem se

torne situada isto porque os significados são negociados e construídos com a participação e

engajamento dos alunos em práticas socioculturais próprias de uma comunidade. Estes

instrumentos culturais e os significados que carregam são, portanto, dependentes das atividades e

situações nas quais são produzidos e, sobretudo, dos contextos institucionais aos quais se

relacionam.

A noção de pertencimento a uma comunidade de prática envolve um domínio crescente

dos instrumentos que medeiam a produção/realização das atividades no seu interior. Este é um

aspecto decisivo para o entendimento e controle, entendido como autoregulação dos sujeitos, e,

portanto, para a participação cada vez mais ativa e consciente nas atividades. A noção de

instrumentos é ampliada uma vez que não se refere exclusivamente a objetos e procedimentos

práticos, mas também a um sistema conceitual de natureza simbólica que atravessa a organização

e construção das práticas culturais. Como dizem Lave e Wenger (1995), a apropriação e o uso de

ferramentas relacionadas a uma prática está conectada com a própria história da prática e,

portanto, diretamente relacionada com sua existência cultural de produção. O significado desses

instrumentos no processo de aprendizagem pode ser mais ou menos transparente. O termo

transparência, empregado por Lave e Wenger (1995), refere-se à possibilidade de uso e

entendimento de um instrumento no processo de aprendizagem. A transparência combina duas

características que se encontram dialeticamente inter-relacionadas: a visibilidade e a

invisibilidade. A invisibilidade está relacionada à forma de integração do instrumento na

atividade, permitindo que um mundo, para além dele, se torne visível, ao mesmo tempo em que

esta visibilidade constrói o entendimento do significado daquele instrumento.

Esta questão está implícita em Brown, Collins e Duguid (1989), para quem os conceitos

correspondem a um conjunto de ferramentas e só podem ser completamente entendidos através

do seu uso no curso de uma atividade sociocultural. Para os autores:

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As pessoas que usam ferramentas em atividades, ao contrário daquelas que apenas as adquirem, constroem implicitamente não apenas uma compreensão maior e mais rica do mundo no qual esta ferramenta está envolvida, mas também do significado da própria ferramenta. O entendimento, tanto do mundo quanto da ferramenta, continuamente sofre modificações como resultado das interações que se processam entre eles. Aprendizagem e ação [interação] são inseparáveis, sendo aquela um longo e contínuo processo que emerge da ação em contextos específicos. (BROWN; COLLINS; DUGUID, 1989, p. 34).

Este maior ou menor nível de transparência, conferido aos instrumentos envolvidos na

ação, pode promover ou inibir a participação periférica legítima. Este aspecto acaba por resgatar

a antiga tendência epistemológica da dicotomia – conhecimento abstrato e conhecimento

concreto. Temos que reconhecer que a escola e, particularmente, o ensino das disciplinas

científicas, tal como se organizam, têm privilegiado esta dimensão abstrata do conhecimento

deixando de lado o processo de construção do conhecimento. Como nos diz Bruner (1998):

[...] A história da ciência está repleta delas [de metáforas selvagens]. Elas são muletas que nos ajudam a subir a montanha abstrata. Uma vez lá em cima, as jogamos fora (até as escondemos) em favor de uma teoria formal e logicamente consistente que (com sorte) pode ser descrita em termos matemáticos ou quase matemáticos. Os modelos que surgem são partilhados, cuidadosamente protegidos contra ataques e prescrevem maneiras de vida para seus usuários. As metáforas que auxiliaram nesta conquista são normalmente esquecidas ou, se a subida acabar sendo importante, tornam-se não parte da ciência, mas parte da história da ciência (p. 51 e 52).

Esta dicotomia entre processo e produto, entre concreto e abstrato, não reside no mundo

nem reflete formas hierárquicas de conhecimento, mas deriva-se de práticas institucionais que

acabam por privilegiar um desses pólos. Brown, Collins e Duguid (1989), analisando as

atividades desenvolvidas pelo cidadão comum, pelos especialistas e pelos estudantes, evidenciam

uma maior aproximação entre as duas primeiras categorias, isto porque suas atividades estão

mergulhadas na cultura em que trabalham e no interior da qual negociam e constroem

entendimentos. De um modo geral, estes indivíduos atuam em situações contextualizadas,

buscando soluções para problemas que emergem de contextos específicos. No caso dos

estudantes, suas atividades envolvem teorias e símbolos para enfrentar problemas que, muitas

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vezes, estão descontextualizados, o que implica dizer que os significados com que lidam são, em

sua maioria, fixos e os conceitos, conseqüentemente, imutáveis.

A nosso ver, essas reflexões sugerem um caminho para se pensar a aprendizagem em uma

perspectiva ampliada pois aproximam dialeticamente o aprender fazendo do aprender por

abstração. Esta possibilidade está relacionada justamente à transparência dos instrumentos que

medeiam a ação, permitindo o entendimento da construção histórica das práticas que fazem parte

da comunidade e, portanto, uma participação mais ativa neste contexto cultural.

Este nível de entendimento mais amplo e que garantirá a participação mais intensa dos

indivíduos passa, obviamente, pela linguagem, entendida também como um meio mediacional,

que se realiza nestas comunidades de prática. Como nos diz Bakhtin (1997), cada esfera da

atividade humana acaba por gerar “tipos relativamente estáveis” de enunciados que se constituem

em gêneros do discurso e que se caracterizam não apenas “por seu conteúdo semântico (temático)

e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais,

fraseológicos e gramaticais - mas também, e sobretudo, por sua construção composicional”

(p.279). Falamos por meio de diferentes gêneros do discurso, aprendemos a adequar nossa fala a

determinados gêneros dependendo das circunstâncias em que nos encontramos.

As comunidades de prática, enquanto entidades situadas histórica e culturalmente,

apresentam especificidades discursivas que emergem como produto das interações sociais

realizadas em um terreno marcado por encontros e desencontros de diferentes concepções,

valores, ideologias. Neste terreno, os significados são aproximados, ampliados, resignificados,

recontextualizados, resituados justamente porque envolvem um intenso processo de negociação

quando algumas formas se tornam mais estáveis que outras.

No interior das comunidades de prática, o discurso está menos relacionado a um

instrumento de transmissão de conhecimentos do que ao acesso à participação periférica legítima.

O discurso autoritário, caracterizado por Bakhtin como aquele em que os enunciados e seus

significados são fixos, não modificáveis pelo contato com novas vozes (WERTSCH, 1993, p. 98)

e que em contextos escolares estão relacionados a padrões discursivos do tipo I – R- A (Iniciação

do professor, Resposta do aluno e Avaliação do professor), parece perder força dando lugar a um

padrão de discurso mais internamente persuasivo que viabiliza maior grau de interanimação

dialógica entre os sujeitos.

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Estas duas formas de discurso parecem estar relacionadas à distinção que Lave e Wenger

(1995) fazem entre “falar sobre” e “falar do interior”. A primeira pressupõe um distanciamento

do sujeito em relação às práticas culturais enquanto a segunda, incorporando também o ‘falar

sobre’, cumpre funções específicas: “[...] engajar-se, focalizar e mudar o foco de atenção

promovendo a coordenação das atividades por um lado; dando suporte a formas de memória e

reflexão da comunidade bem como assinalando a participação a essas mesmas comunidades por

outro lado”. (LAVE; WENGER, 1995, p.109, tradução da autora).

Todos os aspectos apresentados até aqui são decisivos para a construção da identidade

tanto de uma comunidade como dos sujeitos que dela participam. Este processo de construção de

identidade emerge do verdadeiro sentido da aprendizagem como participação periférica legítima

que é a de intensificar a participação dos indivíduos nas práticas da comunidade. Enfim, a

expectativa de mudanças pressupostas no processo de aprendizagem ganha visibilidade, neste

caso, pelo envolvimento permanente do indivíduo nessas práticas, motivado pelo desejo, pela

identidade, pelo entendimento mais amplo. Obviamente, esta trajetória é marcada por conflitos e

tensões, continuidades e rupturas mas é justamente este o caminho para que os indivíduos se

desloquem em uma direção mais centrípeta no interior da comunidade. Isto implica em dizer que

o conhecimento é inerente ao processo de desenvolvimento e construção de identidades e está

localizado nas relações entre os participantes e suas práticas, nas ferramentas que medeiam estas

práticas, e na organização social, política e econômica que envolve essas comunidades (LAVE ;

WENGER, 1995).

Bruner (2001) entende que, em uma sociedade marcada por constantes modificações, a

escola precisa renovar-se em sua função o que inclui o desenvolvimento de culturas escolares que

operem como comunidades de aprendizes, envolvidos mutuamente na resolução de problemas. A

escola, portanto, deve se constituir não apenas em um espaço para instrução mas também e,

principalmente, em um espaço de formação de identidade e trabalho mútuo. Para ilustrar esta

possibilidade de renovação, o autor apresenta o trabalho realizado por Ann Brown (1989) que,

tomando a escola como uma comunidade cooperativa, promove a participação de seus membros

na produção de um produto conjunto, de uma “obra” 19. Esta participação garante a aprendizagem

19 Na visão de Bruner (2001) as obras “dão orgulho, identidade e uma sensação de continuidade àqueles que participam, mesmo que indiretamente, de sua produção [...] criam formas compartilhadas e negociáveis de pensar em grupo (p.31)”.

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e evidencia uma cultura que se realiza na prática e que se torna relevante para a vida do aluno.

Este aspecto é decisivo quando falamos agora da necessidade de formar lifelong learners, ou seja,

indivíduos que continuem a aprender para além de sua vida escolar.

Nesta mesma direção, encontramos o trabalho de Engle e Conant (2002) que descreve a

aprendizagem como um processo de “engajamento disciplinar produtivo” visualizado a partir da

participação dos alunos em questões e práticas disciplinares específicas e ainda por indícios de

“progressos intelectuais” que se manifestam no curso das aulas. Assim, o engajamento disciplinar

dos alunos pode ser sinalizado pela construção de argumentos mais elaborados e sofisticados ao

longo do tempo, pelo levantamento de novas questões e problemas, pelo reconhecimento de

conflitos, pelo estabelecimento de novas conexões entre idéias, ou ainda, pelo planejamento de

alguma coisa para atingir ou satisfazer objetivos que tenham sido estabelecidos (ENGLE;

CONANT, 2002). Os autores acreditam que a aprendizagem como engajamento disciplinar

produtivo “fornece uma perspectiva complementar para visões de aprendizagem que se apóiam

em comparações estatísticas do entendimento dos alunos baseados em pré e pós testes” (p.403)

justamente porque incorpora conteúdo e interação assumindo a aprendizagem como um processo

simultaneamente cognitivo e social.

De acordo com Engle e Conant (2002), para promover este engajamento disciplinar

produtivo os contextos de aprendizagem devem se revestir de alguns elementos que se encontram

inter-relacionados, tais como: a) problematização do conteúdo formulada tanto pelo professor

quanto pelos alunos; b) dar autoridade para os alunos encaminharem de forma responsável

soluções para os problemas que foram delineados a fim de se fazerem autores e produtores de seu

próprio conhecimento; c) manter os alunos responsáveis pelo outro e também por normas

disciplinares de forma a garantir que o trabalho intelectual que realizam seja correspondente a

conteúdos e práticas disciplinares estabelecidas por intelectuais que se situam no interior ou

mesmo fora do contexto da aprendizagem e d) proporcionar diferentes e relevantes recursos para

manter e sustentar o engajamento disciplinar produtivo e que possibilitem aos alunos desenvolver

e utilizar habilidades, conhecimentos, representações, materiais e tecnologias para enfrentar

questões de uma disciplina específica.

A partir dos elementos formulados por Engle e Conant (2002), é possível supor, tal como

proposto por Arcà, Guidoni e Mazzoli (1990), que a aprendizagem em Ciências deve envolver

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modos de falar, modos de pensar e modos de fazer. Por isso mesmo, a aprendizagem deve

envolver movimentos/práticas específicos no curso do processo de significação. Neste sentido,

podemos considerar que aprender Biologia é aprender não apenas conceitos como “célula”,

“fotossíntese” ou “proteínas”, mas também determinadas práticas que viabilizam a construção/

produção desses modos de falar, modos de pensar e modos de fazer. São esses movimentos dos

alunos na construção de significados em uma sala de aula de Biologia, que esperamos visualizar

em nossas análises. Mais do que isso, buscamos perceber as especificidades desses movimentos a

fim de assumir essa sala de aula como uma comunidade de prática.

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3. UMA APROXIMAÇÃO ENTRE A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO E A PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS: REVELANDO PRÁTICAS CIENTÍFICAS E PRÁTICAS CIENTÍFICAS ESCOLARES

[...] devemos continuar a considerar a ciência como uma atividade de investigação e de pesquisa. Investigação e pesquisa da verdade, da realidade etc. Porém a ciência está longe de ser só isso [...] A ciência não é só isso e, constantemente, ela é submergida, inibida, embebida, bloqueada e abafada por efeito de manipulações, de prática, de poder, por interesses sociais etc. Contudo, repito, a despeito de todos os interesses, de todas as pressões, de todas as infiltrações, a ciência continua sendo uma atividade cognitiva.[...] (Morin, 1996, p.57).

Neste capítulo, resgatamos inicialmente alguns dos principais elementos dos trabalhos de

Knorr-Cetina (1981 e 1992) e Latour (2000) que, a partir de uma matriz antropológica, procuram

explorar o processo de produção do conhecimento científico olhando especificamente para os

locais dessa produção. Posteriormente, apresentamos uma visão panorâmica de estudos que,

assumindo uma perspectiva sociocultural, tomam como objeto de investigação a sala de aula de

ciências dando visibilidade ao discurso e interações que ali se evidenciam. Nesta trajetória, é

possível identificar práticas científicas e práticas científicas escolares que se aproximam de

práticas cultural e socialmente organizadas, quando objetivos, objetos, interesses, significados

vão sendo re-definidos, re-ajustados e re-adaptados segundo processos de negociação entre os

sujeitos e as condições materiais de produção. A princípio a aproximação entre duas áreas

distintas como a Sociologia do Conhecimento Científico e a Educação em Ciências pode parecer

pouco prudente uma vez que tomam como objetos de investigação espaços de produção do

conhecimento científico com fronteiras bem delimitadas. Especificamente, em relação à

Educação em Ciências, reconhecemos que seu objetivo não é formar pequenos cientistas mas sim

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formar culturalmente um cidadão que possa viver e enfrentar questões em um mundo dominado

pela ciência e pela tecnologia. Entretanto, acreditamos ser possível considerar que esses espaços-

tempos de produção são habitados por seres humanos que compartilham práticas epistêmicas que

os aproximam nos modos de organizar e enfrentar situações que demandam conhecimentos de

natureza científica.

3.1 Knorr-Cetina vai ao laboratório e resgata a contextualidade da ciência

A década de 1970 testemunha a emergência da Sociologia do Conhecimento Científico,

uma área de estudos que assume a ciência e o conhecimento por ela produzido como produtos de

práticas sociais. A este grupo estão vinculados os trabalhos de Knorr-Cetina (1981, 1992)

argumentando que a ciência deve ser vista e analisada em uma perspectiva construtivista. Para a

autora, os objetos de investigação da ciência, tais como a natureza ou a realidade, são pré-

construídos nos laboratórios e, por isso, “internamente estruturados”. A seu ver, os objetos são

dotados de maleabilidade, uma vez que, nos laboratórios, raramente se trabalha com os objetos

tais como são encontrados na natureza. Na verdade, são utilizadas imagens, versões purificadas,

extratos, componentes. Para Knorr-Cetina (1992), existem pelo menos três características do

“objeto natural” que o laboratório científico não precisa acomodar: a) o objeto como ele é

realmente já que se pode substituí-lo por versões parciais ou mesmo por simulações; b) o objeto

onde ele está, pois se pode trazê-lo para “casa” e manipulá-lo e c) um evento ou fenômeno

quando ele ocorre, já que é possível fazê-lo acontecer com certa freqüência através de situações

experimentais à medida que a investigação avança. Assim, os objetos não são apenas

tecnicamente fabricados em um laboratório mas são simbólica e politicamente construídos

através de técnicas literárias de persuasão como encontradas em trabalhos científicos, de

estratégias políticas para formar alianças e mobilizar recursos e ainda de operações seletivas que

vão sendo realizadas no curso de uma investigação (KNORR-CETINA, 1992).

Neste sentido, a visão de laboratório de Knorr-Cetina transcende aquela que faz parte do

senso comum pois, em sua perspectiva, todo aquele aparato instrumental que povoa este espaço

de produção e todos os processos que ali se realizam são igualmente uma construção, produtos do

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esforço humano, que envolve negociação e interação. Por isso, a ciência não pode ser

compreendida sem se considerar as práticas que a constituem.

Para sustentar esta perspectiva construtivista, a autora considera que o princípio que

organiza e alimenta o processo de produção do conhecimento científico é a busca pelo sucesso e

pelo reconhecimento, ou seja, “making things work”. Nas palavras de Knorr-Cetina (1981, p. 04):

“é o sucesso em fazer as coisas funcionarem que é reforçado como objetivo concreto e viável na

ação científica e não o ideal distante da verdade que nem sempre é alcançado.”

Com o objetivo de ser bem sucedido (making things work), o cientista, em seu espaço de

produção, realiza seleções e tomadas de decisão de caráter local e eventual que, ao se

cristalizarem, acabam por influenciar futuras seleções e decisões. Desta forma, a produção

científica envolve um re-investimento constante de produções anteriores em um ciclo permanente

no qual novas seleções são geradas. A ciência é, portanto, sempre contingente e contextual.

Esta localização contextual revela que os produtos da pesquisa científica são fabricados e negociados por agentes particulares em um espaço e tempo particulares; que estes produtos estão/são carregados pelos interesses particulares desses agentes, e por interpretações locais mais do que interpretações universalmente válidas; e que os atores científicos funcionam nos limites reais do local de suas ações. (KNORR-CETINA, 1981, p. 33, tradução da autora).

Para Knorr-Cetina (1981), são essas operações seletivas, situadas em contextos

específicos e realizadas pelos cientistas, que caracterizam o processo de produção do

conhecimento científico. Nessas operações seletivas, entra em jogo o que Knorr-Cetina chama de

“lógica oportunista” pois, a seu ver, a definição ou ajustes de projetos, bem como seus objetivos e

métodos, vão sendo configurados segundo os recursos instrumentais e financeiros

disponibilizados no interior dos laboratórios.

Além dessa “lógica oportunista” influenciando o processo seletivo de produção, há ainda

o que a autora denomina de “idiossincrasias locais” e que se refere à construção de uma

interpretação própria das regras metodológicas. Isto parece estruturar um “know-how” local e

contextual que procura, de certa forma, garantir e controlar significados a fim de fazer as coisas

funcionarem no processo investigativo. Cabe dizer que a construção dessas regras metodológicas

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depende da distribuição de poder dentro do laboratório, que também é contingencial, e pode ser

rapidamente alterada pelas dinâmicas do conflito, cujas próprias regras são utilizadas como

recurso e negociadas constantemente (HOCHMAN, 1994, p. 222).

Assim é que os cientistas atuam ajustando-se ao ambiente tanto físico quanto social no

qual se encontram mergulhados, sendo por isso mesmo não somente os objetos, mas também os

próprios cientistas, maleáveis em relação a uma série de possibilidades comportamentais

(KNORR-CETINA, 1992).

Todos esses aspectos, que dependem de negociações e interações entre os sujeitos que ali

atuam, revelam certo grau de indeterminação contextual onde estaria situado o sopro criativo da

produção científica. Nas palavras de Knorr-Cetina (1981, p.33):

[...] a contingência e a contextualidade da ação científica demonstram que os produtos científicos são híbridos, que carregam as marcas de uma lógica indexical que caracteriza a sua produção, não sendo resultados de algum tipo especial de racionalidade científica que possa ser contrastada com a racionalidade que orienta as práticas sociais. (Tradução da autora).

Ao entrar nos laboratórios, Knorr-Cetina não encontra paradigmas universais mas uma

lógica contextual e contingente que organiza a prática científica. Ao resgatar essa dimensão

contextual da ciência, a autora aproxima a prática científica de outras práticas da vida social. A

descontextualização da ciência vai se dar quando as seleções contextualmente contingentes são

transformadas em descobertas, informações e inovações publicadas nos artigos científicos. Para

Knorr-Cetina (1981, p.130):

Na transição do trabalho de laboratório ao artigo científico, a realidade do laboratório mudou. Temos visto a lógica oportunista e contingente substituída por um contexto generalizado de um mundo presente e possível e as negociações de interesse de agentes particulares transformadas em uma fusão de interesses da tecnologia, indústria, o meio ambiente e a população humana precisando de proteínas. [...] Temos visto a seletividade racional do trabalho de laboratório dominada por fórmulas prontas dos feitos que emergem dessa seletividade, e os resultados medidos de tais trabalhos depurados de todos os traços de interdependência com sua criação construtiva. (Tradução da autora).

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É por essa razão que Knorr-Cetina (1981 e 1992) sustenta que, para compreender os

processos de construção e reconstrução do conhecimento científico, é preciso adentrar os

laboratórios e acompanhar os cientistas em inter-ação. Só desta forma pode-se capturar e dar

visibilidade a uma faceta mais “selvagem” tanto da ciência quanto dos próprios cientistas.

Neste percurso que realiza, Knorr-Cetina (1981) ilustra o raciocínio analógico como um

mecanismo que, ao orientar tanto a “lógica oportunista” quanto a circulação de idéias, viabiliza,

em parte, o processo de recontextualização da atividade científica no interior dos laboratórios.

Na discussão que realiza acerca do uso de metáforas na produção do conhecimento

científico, Knorr-Cetina (1981) afirma que as metáforas não são o único mecanismo para a

inovação e concepção de idéias utilizado pelos cientistas. Em sua perspectiva, também as

analogias se constituem em um pré-requisito para processos de interação conceitual e, portanto,

para aprofundamento e reinvestimentos de conhecimentos previamente produzidos que acabam

por orientar o processo seletivo operado no curso de uma nova investigação. Nas palavras da

autora: “a interação conceitual emerge a partir de dois universos diferentes de conhecimento ou

crença que são associadas por uma similaridade que é suposta” (KNORR-CETINA, 1981, p. 52).

Tais analogias, muitas vezes, estão relacionadas à transferência ou aproximação de métodos ou

procedimentos situados em diferentes contextos. A construção de analogias funciona como um

veículo que promove a circulação e transformações de seleções (e mesmo idéias) no processo de

fabricação do conhecimento.

No contexto científico, a mobilização da metáfora e também da analogia cria uma

expectativa de sucesso, uma vez que, “[...] o conhecimento mobilizado pela analogia e pela

metáfora tem funcionado em um contexto similar, e provavelmente pode funcionar, com as

devidas modificações, em uma nova situação” (KNORR-CETINA, 1981, 57). Nesta perspectiva,

as metáforas tanto quanto as analogias funcionam como soluções para questões ainda não bem

delimitadas. Mas quais as implicações desse aspecto para a produção do conhecimento científico?

Para Knorr-Cetina (1981), isso significa que os cientistas devem se engajar na construção dos

resultados cuja solução é antecipada através da mobilização ou uso de uma analogia. Essas

soluções antecipadas não eliminam os problemas ou tornam a pesquisa menos sujeita ao fracasso,

mas são decisivas para delimitar fronteiras em um projeto ou programa de pesquisa que até então

se encontrava muito aberto.

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Assim, uma solução antecipada é importante para os cientistas à medida que funciona

como um princípio organizador que orienta ações e seleções subseqüentes. Desta forma, as idéias

que emergem nas relações analógicas são tomadas como soluções não realizadas e que sustentam

a possibilidade de sucesso, ou seja, “making things work”.

Além disso, as analogias retêm um caráter conservador na produção do conhecimento,

uma vez que controlam, ou mesmo reduzem, os riscos aos quais os cientistas estão expostos.

Como já assinalado anteriormente, as analogias possibilitam certo grau de clareza àquilo que até

então se tinha como desconhecido ou pouco familiar. Com isto, os cientistas parecem caminhar

por um terreno mais seguro. De acordo com Knorr-Cetina (1981, p. 60):

[…] o interesse de uma “idéia nova” não é a sua novidade mas sim que ela é antiga – no sentido de que ela usa o conhecimento disponível como fonte de produção do conhecimento. Neste processo, seleções anteriores são movidas para novas áreas em vez de serem inventadas e, desta forma, reproduzidas e transformadas. Assim, à medida que a descoberta baseada na analogia representa a expansão espacial de seleções anteriores para novos territórios, ela é parte de formação de consenso e da consolidação do conhecimento […] (Tradução da autora).

Ao considerar que o cientista estabelece relações entre dois sistemas aparentemente

independentes que, muitas vezes, fazem parte de áreas de conhecimentos diferentes, Knorr-

Cetina (1981) sinaliza que a atividade científica é perpassada e sustentada por relações sociais

que transcendem as fronteiras do laboratório. O cientista vê-se envolvido em campos de ação que

não exclusivamente os de natureza científica e que são definidos como campos transcientíficos20.

Isto porque estão em jogo negociação e interação com agentes financiadores, editores, diretores

de instituições, o que vai exigir que o cientista ocupe outras posições que não aquelas puramente

científicas. Considerando que estas relações sociais mais amplas têm implicações igualmente nas

seleções e decisões realizadas na produção do conhecimento científico, Knorr-Cetina (1981)

acaba por rejeitar a noção de comunidade científica como a unidade organizadora da produção

científica. Os campos transcientíficos, ou arenas transepistêmicas, emprestariam um caráter mais

movediço e fluido às atividades científicas pois segundo Hochman (1994, p. 226):

20 Hochman (1994) sinaliza que a expressão campos transcientíficos será posteriormente reelaborada por Knorr-Cetina passando a ser definida como arenas transepistêmicas.

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As arenas transepistêmicas são constituídas, dissolvidas e reconstituídas cotidianamente na atividade científica contextualizada, implicando jogos interativos entre os vários agentes que dela participam. E o que está em questão não é o que se compartilha ou o que se possui, mas o que pode ser transmitido pelos agentes para ser utilizado pelos outros para se converter em outras coisas.

3.2 Latour vai ao laboratório e encontra incertezas, concorrências e controvérsias.

Latour (2000) considera que existem duas formas de se olhar a ciência; uma, que focaliza

sua forma acabada, pronta, enfatizando os métodos e o ideal da racionalidade científica; e outra,

que examina seu processo de construção, revelando uma face mais caótica, povoada por

incertezas, controvérsias e tomadas de decisões. Em sua trajetória, Latour opta pela ciência em

construção e decide acompanhar cientistas em ação a fim de evidenciar os movimentos que

levam um fato científico a ser encerrado em uma caixa-preta que perde contato com o seu local e

condições de produção. Nas palavras de Latour (2000, p. 39), “vamos dos produtos finais à

produção, de objetos estáveis e ‘frios’ a objetos instáveis e mais ‘quentes’”.

Neste percurso, sinaliza que o destino final de uma descoberta/invenção/afirmação

realizada por um cientista depende das apropriações e usos posteriores que são feitos por outros

cientistas. Dito de outra maneira, a construção de um fato científico é um processo coletivo que

mobiliza recursos, aliados e discordantes que, ao retomarem tais

descobertas/invenções/afirmações, as fortalecem elevando-as a uma condição de caixa-preta ou

então as rejeitam, arregimentando evidências contraditórias que as empurram em direção à

ficção. Desta forma, “a construção do fato é um processo tão coletivo que uma pessoa sozinha só

constrói sonhos, alegações e sentimentos, mas não fatos” (LATOUR, 2000, p. 70).

Para Latour (2000, p. 72), um fato é algo que é retirado do centro das controvérsias e

coletivamente estabilizado quando a atividade dos textos ulteriores não consiste apenas em crítica

ou deformação, mas também em ratificação.

Em Latour (2000), um aspecto a ser analisado no processo de construção de um fato

científico diz respeito às controvérsias que acompanham uma afirmação feita por um cientista

acerca de um determinado fenômeno no curso da produção de textos científicos. Na visão do

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autor, o status de uma afirmação dependerá das afirmações ulteriores, ou seja, o maior ou menor

grau de certeza de uma afirmação dependerá do tipo da sentença seguinte que a retomar. Uma

afirmação, via de regra, é enxertada em novas sentenças que são chamadas de “modalidades”

porque a modificam ou a qualificam. Latour considera que modalidades positivas afastam a

afirmação ou enunciado feito pelo autor de suas condições de produção, fortalecendo-as de modo

a permitir derivar possíveis conseqüências a partir de seu uso. Ao contrário, as modalidades

negativas conduzem uma afirmação ou enunciado em direção ao seu contexto de produção

deixando marcas de autoria e possibilidades de interpretações divergentes aproximando-a mais de

uma ficção do que de um fato.

Assim é que uma afirmação pode ser “[...] inserida em uma premissa fechada, óbvia,

consistente e amarrada, que leve a alguma outra conseqüência menos fechada, menos óbvia,

menos consistente e menos unificada” ou ainda ser inserida em um contexto que a leve “de volta

para o lugar de onde partiu, para a boca e as mãos de quem quer que as tenha construído”

(LATOUR, 2000, p.45).

Dependendo das modalidades, positiva ou negativa, que envolvem as afirmações iniciais

no curso de um debate, é possível trilhar-se caminhos diferentes: um, em direção ao fato e outro,

em direção à ficção. No primeiro caso estão aqueles que desejam elevar sua afirmação à

condição de uma caixa-preta, no segundo encontram-se os discordantes dispostos a minar a

afirmação a fim de impedir sua disseminação e evidenciar que erros foram cometidos.

Independente da posição assumida, de defesa ou de ataque, os sujeitos envolvidos em uma

controvérsia mobilizam diferentes recursos a fim de fazer valer a sua posição. Um desses

recursos diz respeito ao uso de referências a outros documentos de caráter científico como forma

de apoio, validação e legitimação das afirmações ou contra-afirmações. Como dito por Latour

(2000), uma asserção não se sustenta por si própria. Entretanto, não basta apenas empilhar uma

série de referências para que uma posição seja fortalecida. É preciso que essas referências

também sejam modalizadas, ou seja, tomadas como fatos ou como ficção a fim de que possam

fortalecer ou enfraquecer a asserção feita pelo autor. Mais do que isso, as referências devem ser

organizadas em camadas que se sustentam mutuamente a fim de oferecer aos leitores uma

impressão de “profundidade de visão”. Neste caso, “cada afirmação é interrompida por

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referências que estão fora do texto ou dentro dele, em outras partes, as figuras, colunas, tabelas,

legendas, gráficos” (LATOUR, 2000, p. 81).

Nesta forma de organização textual, Latour (2000) reconhece que não há uma relação

entre autoridade e Natureza mas sim entre autoridade e mais autoridade. O autor /cientista

mobiliza tantas outras caixas-pretas para sustentá-lo que discordar de sua afirmação implica o

enfrentamento dessas mesmas caixas-pretas bem como de todas as inscrições (tabelas, gráficos,

fotos) que carregam e que foram produzidas por instrumentos ao longo de um processo de

investigação científica ainda nos laboratórios. Nas palavras do autor:

Convencer não é jogar palavras ao vento. É uma corrida entre autor e leitor pelo controle dos movimentos um do outro (...) Em qualquer ponto do texto em que se encontre, o leitor deparará com instrumentos mais difíceis de discutir, com figuras mais difíceis de duvidar, com referências mais difíceis de desacreditar, com um verdadeiro arsenal de caixas-pretas empilhadas. E o leitor vai deslizando da introdução à conclusão como um rio a deslizar entre barreiras artificiais (LATOUR, 2000, p. 97 e 98).

Fazendo uma leitura bakhtiniana, as controvérsias parecem envolver um movimento

discursivo cujo objetivo principal é fixar significados. Ao tentar transformar uma

afirmação/asserção em fato, o autor/cientista busca a adesão, o compartilhamento, o alinhamento.

Se é bem sucedido, esta afirmação vai sendo abstraída, sintetizada e estilizada, transformando-se

em conhecimento tácito. Supostamente, o nome do autor, as marcas da contextualidade vão sendo

apagadas e a caixa é finalmente encerrada.

Acompanhar o movimento que leva à produção de um fato exige a entrada nos

laboratórios, um espaço onde os elementos semióticos que povoam os artigos, por exemplo,

ganham vida, materialidade e concretude. De acordo com Latour (2000), somos então

transportados do mundo do texto, do papel, ao mundo das coisas. Neste contexto, as habilidades

retóricas mobilizadas na construção de um texto já não são suficientes. É preciso também

habilidades manuais para manobrar instrumentos, preparar substâncias, focalizar adequadamente,

corrigir, ajustar, ensaiar, interpretar resultados. Nas palavras do autor, “sair de um artigo e ir para

um laboratório é sair de um arsenal de recursos retóricos e ir para um conjunto de novos recursos

planejados com o objetivo de oferecer à literatura o seu mais poderoso instrumento: a exposição

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visual” (LATOUR, 2000, p. 112). Os elementos visuais (gráficos, colunas, tabelas) são decisivos

na construção de um texto e obtidos a partir do uso de instrumentos nos laboratórios. Na

perspectiva de Latour, não é a natureza que está por trás de um texto científico mas sim

inscrições produzidas por instrumentos em laboratórios. Assim, no laboratório encontramos uma

exposição visual de inscrições que são comentadas e interpretadas pelo cientista. Neste caso, o

cientista atua como um porta-voz do que está inscrito, do que vai sendo registrado pelos

instrumentos. Fala por aquele ou por aquilo que não pode ou não sabe falar. Resta saber se a voz

que se expressa corresponde exatamente àquilo que seu representado gostaria de dizer ou se, na

verdade, influenciado por suas crenças e desejos, o cientista acaba por “ler” aquilo que ele

próprio gostaria de dizer. Por isso mesmo, na ciência, para se chegar a um fato é preciso que se

trabalhe com evidências que se constituam em “provas de força”. As provas de força parecem

reduzir uma tensão que está posta entre objetividade e subjetividade na ciência pois:

Dependendo das provas de força, os porta-vozes se convertem em indivíduos subjetivos ou em representantes objetivos. Ser objetivo significa que, sejam quais forem os esforços dos discordantes para romper os elos entre o representante e aquilo em nome do que ele fala, os elos resistirão. Ser subjetivos significa que, quando alguém fala em nome de pessoas ou coisas, quem ouve entende que esse alguém representa apenas a si mesmo. “Objetividade” e “subjetividade” são relativos às provas de força e podem deslocar-se gradualmente, pendendo para um ou outro, de forma muito semelhante ao equilíbrio de forças entre dois exércitos. (LATOUR, 2000, ps. 129 e 130).

As provas de força avaliam a resistência dos elos que unem os representantes/porta-vozes

àquilo em cujo nome eles falam. Desta forma, novos objetos vão sendo configurados segundo sua

resistência às provas de força. Para vencer essas provas de força e ter sua afirmação transformada

em fato, um cientista, via de regra, mobiliza muitas outras caixas-pretas em termos de fatos e

máquinas. Assim, discordar da afirmação inicial do cientista implicaria em discordar dessas

muitas caixas-pretas que a sustentam. Neste caso, estamos falando de uma controvérsia que

precisa ser solucionada e cujos objetos e porta-vozes já estavam presentes e organizados.

Entretanto, o processo de construção científica parece envolver um outro movimento relativo à

procura ou aparecimento de novos objetos, ou de “actantes”, expressão utilizada por Latour

(2000) para se referir a qualquer pessoa ou coisa que seja representada, uma vez que não é capaz

de se expressar por si própria. A emergência de um novo objeto se caracteriza inicialmente pela

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imprecisão de sua definição. Este novo objeto vai sendo configurado pelas propriedades que o

constituem, pela forma em que responde aos testes no laboratório. Para ilustrar esta situação,

Latour recorre às “enzimas”, atualmente substâncias bem conhecidas, mas que no momento de

sua emergência era definida como “uma substância sólida, branca, amorfa, neutra e mais ou

menos insípida que é insolúvel em álcool, solúvel em água e álcool fresco [...]” (DUCLAUX21

apud LATOUR, 2000, p. 145). O objetivo então é transformar esse novo objeto, que se encontra

definido por aquilo que faz, em um velho objeto de forma a retroalimentar o trabalho no interior

dos laboratórios. É preciso transformar esse novo objeto em coisa que tem vida própria e isto

envolve um processo de rotinização. O uso rotineiro de um novo objeto permite sua reificação, ou

seja, é isolado das suas condições de produção, enfim, vai sendo descontextualizado.

O que parece interessante nesse processo de emergência e de transformação de objetos é

a rede factual que o alimenta, posto que um novo objeto é enquadrado e definido na relação que

estabelece com caixas-pretas já estabilizadas mas que um dia já estiveram abertas. Desta forma,

Latour (2000) sinaliza um círculo que sustenta a prática científica, uma vez que a entrada de

novos objetos, que são reificados, permite a expansão e complexificação desse processo que

começa a se distanciar das práticas comuns.

Como já assinalado anteriormente, Latour entende a ciência como um processo coletivo

pois a elevação de uma afirmação a fato depende da ação de outros sujeitos sobre os quais o

autor/cientista tem pouco ou nenhum controle. Assim é que as pessoas envolvidas na transmissão

ou consolidação de uma caixa-preta podem agir de diferentes maneiras: abandoná-las, aceitá-las,

modificá-las, incorporar novos elementos ou mesmo ajustá-la a um novo contexto. O

cientista/autor precisa agora lidar com a imprevisibilidade e incerteza que estão postas no curso

da produção científica. Para resolver este dilema, Latour (2000) considera que duas coisas devem

ser feitas: alistar outras pessoas para que participem da construção do fato e controlar o

comportamento dessas mesmas pessoas a fim de tornar previsíveis suas ações. Como esta é uma

solução contraditória à medida que o envolvimento de um maior número de pessoas pode

dificultar o controle delas, Latour formula a noção de “translação” que, em linhas gerais, envolve

mecanismos de ajuste em torno de objetivos e interesses de diferentes grupos e pessoas.

21 DUCLAUX, E. Pasteur: Histoire d’ um Espirit. Sceaux: Harvester Press, 1980.

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Uma forma de operacionalizar essas translações é quando o autor da alegação procura

atender aos interesses explícitos dos seus possíveis aliados. Isto não significa o abandono dos

próprios interesses; ao contrário, é uma estratégia oportunista22. Diríamos tratar-se de uma

aproximação desses interesses explícitos pois, à medida que se promove o interesse do(s)

outro(s), também se favorece o próprio interesse.

Uma segunda estratégia é convencer as pessoas a simplesmente seguirem os interesses do

autor da afirmação, que deseja transformá-la em fato. Para isto, é preciso que o caminho que

essas pessoas percorreriam para atingir/atender seus próprios interesses esteja bloqueado. Assim,

quando as pessoas trocam de interesse, assumem o do cientista/autor.

A translação apresentada anteriormente é bastante rara no universo científico. Talvez uma

estratégia mais coerente seria a de oferecer um desvio ou atalho às pessoas que se deseja alistar.

Nesta translação, o cientista/autor não tenta afastar ou deslocar os objetivos dos outros mas

simplesmente se posiciona como “guia” por um atalho que os farão atingir mais rapidamente os

seus próprios interesses. Neste caso, algumas condições precisam ser atendidas: o caminho

principal dessas pessoas deve estar bloqueado; o novo desvio deve estar bem sinalizado e deve

parecer pequeno. Esta translação envolve um processo de intensa negociação entre os

participantes e pode mesmo ser desfeita no curso da produção científica.

Nas translações apresentadas anteriormente, existe um obstáculo que talvez dificulte, e

mesmo impeça, as negociações: todas essas pessoas têm maior ou menor grau de clareza do que

querem, por isso mesmo seus objetivos e interesses são/estão explícitos. Desta forma, os

construtores de fatos deverão realizar uma grande manobra que envolve novas interpretações para

os interesses explícitos dessas pessoas a fim de que sejam canalizadas para direções diferentes.

Com isto, processa-se a invenção de novos objetivos, de novos grupos que, se de um lado

fortalece a produção científica, de outro dilui a autoria da proposta. Desta forma, o autor/cientista

da idéia original deverá vencer provas de atribuição de responsabilidade, que permitirá que seu

nome seja identificado como autor/inventor de um fato ao longo da história da ciência.

No entanto, não basta apenas mobilizar aliados para que um programa de pesquisa

caminhe em direção à produção de fatos. É preciso “atar o destino da alegação com tantos

elementos congregados que ela resista a todas as tentativas de desagregação”. (LATOUR, 2000,

22 O termo aqui empregado não se relaciona com aquele usado por Knorr-Cetina.

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p.202). Por isso, no curso da produção científica, será necessário o alistamento de novos aliados

humanos e não humanos de modo a aumentar a margem de negociação e manter o interesse do

grupo. Desta forma, evidencia-se um processo pouco linear ao longo da construção de um fato

pois o cientista deverá avaliar e decidir o que é relevante e irrelevante, construir elos cada vez

mais fortes, aumentar a complexidade a fim de manter o controle e a unicidade de seu programa.

As translações revelam, portanto, as incertezas, incoerências, ambivalências e mesmo os

conflitos da ciência. Assim, “interessar, construir alianças, produzir provas, mobilizar o maior

número de aliados e endurecer as provas são estratégias usadas para volver uma ficção em fato”.

(TEIXEIRA, 2001, p. 268). Vale destacar que essas estratégias não estão circunscritas ao

laboratório; ao contrário, transcendem as suas fronteiras permitindo uma análise “sóciotécnica”.

É neste ponto que Latour (2001) apresenta a ciência, ou mais precisamente a tecnociência, como

uma rede onde os “recursos estão concentrados em poucos locais – nas laçadas e nos nós –

interligados – fios e malhas” (p.294) e é preciso pensar sobre o cidadão comum que, por assim

dizer, situa-se entre as malhas dessa rede.

De início, Latour problematiza a perspectiva que polariza universos científicos e não

científicos julgando improcedente defini-los respectivamente a partir do princípio de

racionalidade e irracionalidade. Nesta situação, traz a irracionalidade ao “banco dos réus” e,

através de vários exemplos e contra-exemplos, considera que ninguém na face da terra é racional

ou irracional o tempo todo. Ao romper com a assimetria que separa crença/opinião e

conhecimento científico, Latour parece aproximar-se de certo relativismo reconhecendo

diferentes formas de racionalidades que, por óbvio, são/estão orientadas por fatores sociais e

culturais. Nas palavras do autor, “os relativistas ajudam-nos a entender o que cai por entre as

malhas da rede científica e permitem-nos retomar nossa viagem sem sermos arrastados para os

julgamentos da irracionalidade”. (LATOUR, 2000, p. 320). Na sua visão, não existiria uma

forma lógica que orienta a ciência e uma forma ilógica que orienta a não ciência. Existiria sim o

que denomina de uma “sócio-lógica”, que desloca a discussão das formas de raciocínio para o seu

conteúdo. Desta forma, Latour afasta-se do relativismo ao considerar que esta vertente filosófica

acaba por não dar conta de explicar a existência de diferentes crenças e conhecimentos que são

utilizados para explicar um mesmo fenômeno. Julga que a sócio-lógica é um caminho que

permite evidenciar as cadeias associativas que são construídas pelos indivíduos em determinados

contextos e que, via de regra, são imprevisíveis e heterogêneas. É preciso, portanto, olhar para

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essas associações, para o que está atado às afirmações que são conduzidas. Segundo Latour

(2000, p. 330):

Se não nos interessa mais aumentar alguns pequenos choques entre crenças, criar alguma dicotomia grandiosa (...) então o que nos resta para explicar as muitas pequenas diferenças entre cadeias de associações? Só isto: o número de pontos ligados, a força e a extensão da ligação, a natureza dos obstáculos. Cada uma dessas cadeias é lógica, ou seja, vai de um ponto ao outro, mas algumas cadeias não associam tantos elementos ou não conduzem aos mesmos deslocamentos. Na verdade, fomos da lógica (esse caminho é reto ou torto?) para a sócio-lógica (esta associação é mais forte ou mais fraca?).

As associações permitem-nos visualizar como as afirmações/alegações que se desejam

fatos circulam fora da rede científica. Essas associações, por vezes, revelam rupturas e conflitos

em relação àquelas que estão dentro da rede científica. O cientista vê-se diante de um grande

paradoxo: para construir um fato, é preciso, simultaneamente, aumentar o número de

participantes na ação para que sua alegação se dissemine e diminuir o número de participantes

para que ela se dissemine como está. Se no interior das redes científicas as translações se

mostram como o caminho para integração de objetivos e interesses, esse mesmo mecanismo

parece ser pouco viável quando se está nas suas malhas. Latour propõe duas alternativas para

enfrentar este paradoxo: uma primeira é ampliar as margens de negociação para que os diferentes

atores ajustem e adaptem as alegações às suas circunstâncias locais, ainda que correndo-se o risco

de ter apenas fatos mais “moles”, incapazes de romper os habituais modos de comportamento; ou

aumentar o controle e diminuir a margem de negociação, forçando as pessoas a adotar as

alegações tais quais elas são, tornando os fatos cada vez mais “duros”, o que implica em reduzir o

número de interessados e aumentar os recursos. Para Latour, a escolha por uma dessas soluções

não implica na retomada de um grande divisor entre mentes e métodos nem na assunção de que

fatos “duros” são melhores que os fatos “moles”; apenas que os fatos “duros” são a única solução

quando se quer que os outros acreditem em alguma coisa que seja incomum. No dizer de Latour

(2000, p. 343), “os fatos duros não são regra, porém exceção, visto serem necessários apenas nos

poucos casos em que é preciso alijar grande número de outras pessoas [que estão fora da rede]

dos seus caminhos habituais”.

Assim é que, no processo de construção do conhecimento científico, para expandir as

redes científicas e fortalecer as alegações que estão em jogo numa controvérsia, alguns cientistas

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precisam se afastar de seus caminhos a fim de reunir elementos (dados?), por vezes em pontos

bem distantes daqueles que opera, para que no interior dos centros de pesquisa (laboratórios)

possam ser manipulados, combinados e interpretados. Este movimento dos cientistas caracteriza

o que Latour (2000) denomina de “ciclos de acumulação” da ciência. Os ciclos de acumulação

evidenciam processos não lineares onde são mobilizados recursos que retroalimentam a

investigação científica: “a história da ciência é em grande parte a história da mobilização de

qualquer coisa que possa ser levada a mover-se e embarcar numa viagem para casa, entrando no

censo universal” (LATOUR, 2000, ps. 364 e 365). O que efetivamente delimita o início e o fim

de um ciclo de acumulação são os objetos cuja acuidade na manipulação, conservação e

mobilização vai depender sempre do aperfeiçoamento de instrumentos. O crescimento dos

centros implica a multiplicação de instrumentos que produzam inscrições de modo que

conservem, simultaneamente, o mínimo e o máximo através do aumento da mobilidade, da

estabilidade ou da permutabilidade desses objetos. Ao final o que temos? Representações do

mundo. Por isso mesmo, a aproximação ao universo científico implica aproximação a um mundo

simbolicamente construído e que por certo exige a mobilização de práticas epistêmicas

específicas. Através de Latour, re-conhecemos algumas dessas práticas que caracterizam modos

de fazer, usar e interpretar o conhecimento científico.

3.3 A pesquisa em Educação em Ciências vai à sala de aula e encontra um espaço social

complexo e multifacetado

A partir da década de 1990, a pesquisa em Educação em Ciências re-orienta suas bases

teórico-metodológicas deslocando os estudos acerca dos processos de aprendizagem em ciências

de uma dimensão individual para uma dimensão social. Neste redirecionamento, a sala de aula de

ciências, tal como uma caixa-preta, é aberta dando visibilidade a um universo complexo e

multifacetado e a aprendizagem é assumida como processo de aquisição/construção de

significados.

Este movimento na pesquisa em educação em ciências deve-se, em grande parte, a

influência da psicologia sócio-histórica, principalmente das formulações advindas de Vygotsky

(2001, 1998). Desta perspectiva, o processo de construção do conhecimento é entendido como

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“produção simbólica e material que tem lugar na dinâmica interativa” (SMOLKA; GÓES, 1997,

p.9). Isto implica em considerar a aprendizagem como prática social (KUMPULAINEN;

MUTANEN, 1999; ENGLE; CONANT, 2002) envolvendo a linguagem e o funcionamento

interpessoal.

Cabe assinalar que, em Vygotsky, a linguagem adquire novos contornos uma vez que o

autor entende que sua função não é única e exclusivamente a comunicação mas está também

orientada, tanto para os outros com os quais um sujeito interage como também para o próprio

sujeito no desenvolvimento dos seus processos psicológicos superiores e, acrescentaríamos, da

própria aprendizagem. Desta forma, Vygotsky (2001, 1998) expressa a natureza

predominantemente social dos sujeitos em sua lei psico-genética geral de desenvolvimento.

Numa relação de dialeticidade, a constituição dos sujeitos envolve a apropriação de instrumentos

culturais e operações psicológicas, inicialmente em um contexto social e que serão

posteriormente internalizados em um processo que envolve re-construções, re-organizações da

atividade psicológica dos indivíduos. Por isso, no curso de seu desenvolvimento, os sujeitos vão

“aprendendo a organizar os próprios processos mentais e suas ações por meio de palavras e

outros recursos semióticos” (SMOLKA; GÓES, 1997, p. 10).

Em Vygotsky (2001), a palavra e, mais precisamente, o seu significado constitui o elo de

ligação da relação que ele estabelece entre pensamento e linguagem. Assim, “não há

possibilidades integrais de conteúdos cognitivos ou domínios do pensamento fora da linguagem,

nem possibilidades integrais de linguagem fora de processos interativos” (MORATO, 1996, p. 9).

Nas palavras de Vygotsky (2001 p. 398):

[...] o significado da palavra é, ao mesmo tempo, um fenômeno de discurso e intelectual, mas isto não significa a sua filiação puramente externa a dois diferentes campos da vida psíquica. O significado da palavra só é um fenômeno de pensamente na medida em que o pensamento está relacionado à palavra e nela materializado, e vice-versa: é um fenômeno de discurso apenas na medida em que o discurso está vinculado ao pensamento e focalizado por sua luz. É um fenômeno do pensamento discursivo ou da palavra consciente, é a unidade da palavra com o pensamento.

A palavra, signo por excelência, configura-se como mediadora dos processos de formação

dos conceitos bem como dos processos de abstração e generalização que os acompanham. No

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estudo que realiza acerca da formação de conceitos, Vygotsky (2001) distingue os conceitos

cotidianos dos conceitos científicos a partir de sua gênese.

Os conceitos cotidianos se formam na relação com a experiência concreta, vivida e

percebida pelos sujeitos, e implicam uma relação das palavras com os objetos a que se referem:

são/estão contextualizados. Já os conceitos científicos são adquiridos mediante um processo de

instrução formal e envolvem relação de palavras com outras palavras, constituindo-se num

sistema hierárquico de inter-relações conceituais. Situando esta noção no ensino de Biologia,

podemos considerar, por exemplo, que trabalhar os mecanismos de transmissão dos caracteres de

uma espécie (genética) nos remete a outros conceitos como cromossomos, genes, DNA, síntese

de proteínas, divisão celular. Não há como compreender cada um desses conceitos sem relacioná-

los a outros, ou melhor, “o significado da palavra que expressa cada um só se realiza na mediada

em que se associa ao significado de outras palavras que expressam os demais” (TUNES, 2000, p.

45).

Na pesquisa em Educação em ciências, essa perspectiva vygotskyana é articulada ao

princípio de dialogia de Bakhtin, que permite o aprofundamento dos estudos que tomam como

objeto de investigação a sala de aula de ciências.

Bakhtin (1992, p. 38) sinaliza que a palavra é um signo ideológico e acompanha toda a

criação ideológica pois “está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de

interpretação”. Na perspectiva bakhtiniana, os sentidos da palavra não existem em si mesmos,

prontos e acabados. Ao contrário, são elaborados e orientados nas/pelas enunciações concretas

produzidas pelos sujeitos. Por isso mesmo, o contexto social, ou seja, as condições sociais de

produção são decisivas na constituição/significação desses mesmos enunciados.

Os enunciados representam, em Bakhtin (1992), a unidade da comunicação verbal, os elos

que alimentam a cadeia contínua e ininterrupta de interação entre os sujeitos. Nas palavras de

Bakhtin (1997, p. 316):

Os enunciados não são indiferentes uns aos outros nem são auto-suficientes; conhecem-se uns aos outros, refletem-se mutuamente [...] O enunciado está repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados, nos quais está vinculado no interior de uma esfera comum da comunicação verbal.

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A dialogia em Bakhtin implica sempre em multiplicidade de vozes: nasce e se alimenta no

encontro/confronto dessas vozes em um cenário social. Daí o caráter polifônico da palavra. A

enunciação e os significados que carregam, enquanto produtos da interação social, não são parte

exclusiva do sujeito falante mas fazem parte de “um território comum do locutor e do

interlocutor” (BAKHTIN, 1992, p. 113): é, então nossa e dos outros. Nesse processo constante de

interanimação de vozes, revela-se a multiplicidade de sentidos atribuídos à palavra. A palavra é,

portanto, polifônica e também polissêmica.

Neste movimento polifônico e polissêmico, estabelece-se um jogo onde concepções,

valores e interesses são confrontados ou aproximados. Entretanto, esta relação só é possível

quando circunscrita nos limites de uma mesma comunidade semiótica. Os significados emergem

a partir de um processo necessário de negociação entre sujeitos, quando a palavra do falante

provoca sempre uma contra-palavra do ouvinte. Isto porque, em Bakhtin, o ouvinte apresenta

sempre uma atitude “responsiva” pois “ele concorda ou discorda (total ou parcialmente),

completa, adapta, apronta-se para executar [...]” (BAKHTIN, 1997, p. 290). Enfim, os sujeitos,

enquanto interlocutores, apreendem a enunciação do outro que se realiza no quadro de seu

discurso interior. As “palavras alheias” são incorporadas e confrontadas com as “próprias

palavras”. A internalização do discurso do outro evidencia um processo de transformação das

palavras alheias em palavras próprias caracterizado por um “esquecimento progressivo” dos

autores (SMOLKA, 1997).

A partir do principio de dialogia formulado por Bakhtin, é possível entender que “certos

sentidos vão se tornando mais estáveis nas diversas situações sociais, marcados historicamente, e

vão se estabilizando gêneros do discurso, tanto ligados às situações da vida cotidiana, quanto às

diferentes esferas simples e complexas da vida social” (GOULART, 2000, p.8). Os gêneros do

discurso refletem as condições específicas de produção de enunciados que caracterizam uma dada

esfera da atividade humana não apenas “por seu conteúdo semântico (temático) e por seu estilo

verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua [...] mas também e, sobretudo, por

sua construção composicional” (BAKHTIN, 1997, p. 279).

Para Bakhtin (1997), os gêneros do discurso podem ser distinguidos em gêneros do

discurso primário e gêneros do discurso secundário onde esses últimos, em seu processo de

formação, absorvem e transmutam os primeiros e, ao serem transformados, perdem sua relação

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imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios. Isto significa que,

em cada gênero, variam as fronteiras, o acabamento do enunciado, a relação do enunciado com o

próprio locutor e com os outros parceiros da interação.

Desta forma, podemos considerar que a mediação pelo outro e pela linguagem, como nos

diz Vygotsky, é indispensável para que ocorra o processo de construção do conhecimento pelo

aluno e a constituição de sua subjetividade. Essa perspectiva vai ao encontro de Bakhtin com

quem aprendemos que “o centro organizador de toda a enunciação, de toda a expressão, não é

interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo” (BAKHTIN, 1992, p.

121).

A apropriação desses elementos teóricos faz surgir um corpo significativo de estudos

dando ênfase às interações e ao discurso que se realiza na sala de aula de ciências. Esses estudos,

a partir de diferentes enfoques e abordagens, permitem, por um lado, caracterizar o discurso e as

interações discursivas que se realizam na sala de aula de ciências (MORTIMER; SCOTT, 2002;

GUIMARÃES, 2000; SCOTT, 1997; MORTIMER; HORTA MACHADO, 1997) e por outro,

estabelecer relações com o processo de aprendizagem (MACHADO; GOULART, 2001;

MORTIMER, 2000; HORTA MACHADO, 1999; MACHADO, 1999; CANDELA, 1998).

Tais estudos, em linhas gerais, acompanhando especificamente os movimentos

discursivos tais como ocorrem na sala de aula, assumem a natureza predominantemente dialógica

do processo de aprendizagem. A complexidade da sala de aula e da aprendizagem vai sendo

evidenciada, à luz dos conceitos de Bakhtin, pela multiplicidade de significados e vozes que

interagem neste contexto, contrapondo-se à busca pela univocidade e pelo sentido literal que são

peculiares ao conhecimento científico. Revelam-se, portanto, processos não lineares de rupturas e

conflitos, de um lado, e aproximação e co-incidências de outro, caracterizando um movimento

que se desloca na tensão-continuidade entre abordagens comunicativas de natureza dialógica e de

autoridade (MORTIMER; SCOTT, 2002).

A abordagem comunicativa é uma categoria central para análise das interações

discursivas “fornecendo a perspectiva sobre como o professor trabalha as intenções e o conteúdo

do ensino por meio de diferentes intervenções pedagógicas que resultam em diferentes padrões

interativos” (MORTIMER; SCOTT, 2002, p. 287). Tais padrões discursivos identificados

também por Mortimer e Horta Machado (1997), revelam-se como cadeias triádicas (I-R-A)

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quando a iniciação do professor é seguida pela resposta do aluno e se encerra com a avaliação do

professor, ou ainda, como cadeias não triádicas fechadas ou abertas onde o feedback dado pelo

professor incentiva o aluno a elicitar ou mesmo a re-elaborar suas idéias. As cadeias triádicas, de

modo geral, relacionam-se a uma abordagem comunicativa de autoridade onde o objetivo central

é fixar e transmitir certos significados em detrimento de outros, ao passo que as cadeias não

triádicas cumprem uma função discursiva dialógica que se propõe a negociar e gerar novos

significados.

A distinção entre abordagens comunicativas dialógica e de autoridade emerge a partir dos

estudos de Wertsch (1993) que realiza uma aproximação teórica entre a noção de dualismo

funcional do texto proposta por Lotman e a distinção que Bakhtin formula entre discurso

autoritário e discurso internamente persuasivo. Desta aproximação, Wertsch (1993) define as

funções dialógica e unívoca de um texto; a primeira, para gerar, construir e alimentar o processo

de significação e a segunda, para transmitir, fixar, reforçar e consolidar significados

supostamente já construídos. De acordo com o autor, um texto sempre comporta uma tensão entre

essas duas funções e este parece ser um aspecto fundamental que caracteriza o processo de

significação na sala de aula de ciências (MORTIMER; HORTA MACHADO, 1997;

MACHADO, 1999, MORTIMER; SOTT, 2002).

Mais recentemente, Mortimer e Scott (2002) relacionaram essa abordagem comunicativa a

uma segunda dimensão analítica, que se refere à alternância de participantes no curso da

dinâmica discursiva. Assim, o discurso interativo é caracterizado pela participação de mais de

uma pessoa enquanto o não interativo ocorre com a participação de apenas uma pessoa. A

articulação entre essas duas dimensões gera quatro classes de abordagens: interativo-dialógico,

não interativo – dialógico, interativo – de autoridade e não interativo – de autoridade, que são

identificadas na sala de aula de ciências.

A partir dessas análises, a sala de aula de ciências se revela como um espaço social que,

dada à especificidade do seu objeto de aprendizagem, alterna processos de negociação quando

circulam diferentes pontos de vista e concepções e processos de fixação, quando se considera

apenas a perspectiva científica escolar.

Essa alternância de abordagens comunicativas na sala de aula de ciências permite o

reconhecimento do que temos chamado de “tráfico de significados” (MACHADO;

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COLINVAUX, 2000) evidenciado a partir das diferentes vozes, em termos bakhtinianos, que se

expressam neste espaço: a voz científica, a voz científica escolarizada e a voz do conhecimento

cotidiano. Estas vozes entram em contato, se interanimam e se infiltram mutuamente em maior

ou menor grau (WERTSCH, 1993) de forma a encaminhar o processo de significação.

Considerando o contexto em que se realizam, algumas vozes parecem ganhar mais força, serem

mais aceitáveis do que outras apontando para a noção de “privilegiação” proposta por Wertsch

(1993, p. 146), que se refere ao fato de que um instrumento mediador, tal como uma linguagem

social [ou gênero de discurso], se concebe como mais apropriado ou eficaz que outros em um

determinado contexto sócio-cultural. Este processo torna-se mais visível na sala de aula de

ciências dada a univocidade do conhecimento científico escolar quando, no encontro/confronto

dessas diferentes vozes, é possível fazer emergir determinados significados ao mesmo tempo em

que outros vão sendo silenciados (MACHADO, 1999). Cabe destacar que o silenciamento de

algumas vozes não implica necessariamente no seu apagamento ou substituição, como sugerido

pelo modelo de mudança conceitual. Solomon (1987), por exemplo, argumenta que é possível a

coexistência de diferentes concepções relativas a um dado fenômeno, que são atividas/utilizadas

dependendo do contexto.

Também Machado (1999) evidencia que as concepções dos alunos acerca da evolução dos

seres vivos transitam entre o lamarquismo, darwinismo, neodarwinismo e criacionismo sugerindo

a coexistência de perspectivas, por vezes, contraditórias. Desta forma, poderíamos considerar

que, a partir das interações discursivas, vão se produzindo/configurando o que Orlandi (1987, p.

144) denomina de “efeitos de sentido” pois “não há um centro, que é o sentido literal, e suas

margens, que são os efeitos de sentido. Só há margens. Por definição todos os sentidos são

possíveis e, em certas condições de produção, há dominância de um deles”.

Mortimer (2000) considera que a construção do conhecimento na sala de aula de ciências

deve ser entendida como a tentativa de produzir significados que sejam o mais unívoco possível,

sendo difícil falar de um conhecimento plenamente compartilhado, à medida que “todo processo

de significação comporta essa dialética das forças opostas entre o sentido literal e a polissemia”

(MORTIMER, 2000, p. 334). De forma semelhante, Candela (1998) ressalta o quanto as

interações discursivas em torno de um determinado conteúdo possibilitam a construção de um

contexto argumentativo que, dialeticamente, se abre para a elaboração de novas e diferentes

aproximações ao significado uma vez que “o pensamento humano caracteriza-se pela sua

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variedade, e a diversidade de argumentos sempre será mais rica do que a uniformidade de

opiniões” (p.162).

De qualquer forma, o processo de significação na sala de aula de ciências, numa ótica

bakhtiniana (1992), comporta a apropriação do discurso do outro, particularmente o discurso do

professor, que, neste contexto, representa a voz da ciência escolar. Aprender ciências pode ser

entendido como um processo de “enculturação”, a entrada numa nova cultura, diferente da

cultura de senso comum, possibilitando a reflexão do aluno sobre as interações entre essas duas

culturas (MORTIMER; HORTA MACHADO, 1997) e isto pressupõe novas formas de observar

e falar sobre um determinado fenômeno (SUTTON, 1996). Aprender ciências é aprender falar

ciências (LEMKE23 apud MORTIMER; SCOTT, 2002).

Desta perspectiva, Horta Machado (1999), analisando aulas de Química, ressalta que a

apropriação do discurso do outro no processo de significação escolar envolve um movimento de

dialogização, tal como proposto por Bakhtin, quando as palavras alheias vão se tornando palavras

alheias próprias e, finalmente, palavras próprias. Neste movimento, a autora sugere que os alunos

parecem alcançar um nível de elaboração mais refinado, evidenciado pelos termos que usam e

pelas relações que estabelecem.

De forma semelhante, Machado e Goulart (2001), ao analisarem as interações discursivas

realizadas entre dois alunos durante uma aula de ciências, evidenciam que esses alunos fazem uso

de construções metafóricas na tentativa de significar o conceito em jogo na atividade, mas

também realizam produções parafrásticas – quando repetem o livro didático ou a professora com

outras palavras ou mudando a sua ordem. Para as autoras, este movimento dos alunos sugere que

a apropriação da palavra alheia é um caminho para se tornar palavra própria, criando, como diz

Bakhtin, matizes e contornos dialógicos aos enunciados individuais.

Dir-se-ia que um enunciado é sulcado pela ressonância longínqua e quase inaudível da alternância dos sujeitos falantes e pelos matizes dialógicos, pelas fronteiras extremamente tênues entre os enunciados e totalmente permeáveis à expressividade do autor. (BAKHTIN, 1997, p. 318).

23 LEMKE, J.L. Language, Learning and Values. Norwood, New Jersey:Ablex Publishing Corporation, 1990.

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Como assinalado anteriormente, a aprendizagem é entendida como processo de

significação quando o discurso do outro vai sendo incorporado ao próprio discurso no sentido de

encaminhar a compreensão/ampliação/re-elaboração de um conceito ou de uma rede conceitual.

Sistematizando essa natureza dialógica do processo de aprendizagem, Mortimer e Scott

(2002) consideram que existe uma “transformação progressiva” na maneira de falar dos alunos,

partindo das suas idéias cotidianas até o desenvolvimento de uma “generalização empírica”.

Nesse movimento, os autores reconhecem um certo padrão no uso das abordagens comunicativas,

que se repete a cada ciclo: interativa-dialógica, interativa-de autoridade e não interativa, que estão

relacionadas respectivamente a ações pedagógicas de “discutir” idéias, “trabalhar” aspectos do

conteúdo e “rever” os pontos chaves para sistematização. Com isto, sugerem uma organização do

ensino em espiral que “emerge da diversidade das idéias iniciais dos estudantes, fortemente

ligadas à contextos cotidianos [...] e espiraliza-se em direção ao ponto científico, geral e

independente de contexto” (MORTIMER; SCOTT, 2002, p. 303).

Tal como evidenciado por Latour (2000), parece existir dois movimentos que favorecem a

construção do conhecimento: um, que se abre aos significados permitindo ajustes, adaptações e

negociação e outro, que se fecha, reduzindo as margens de negociações e re-apropriações pelo

sujeito. Se, na prática científica, esses movimentos parecem definir o destino de uma afirmação

em direção à ficção ou em direção ao fato, tudo indica que na sala de aula de ciências os mesmos

movimentos são complementares e necessários ao processo de significação.

Vale ressaltar que, os estudos situados em uma matriz sociocultural contribuíram de

forma decisiva para revelar práticas, particularmente práticas discursivas, relativas ao processo de

construção de significados pelos alunos. Isto significa que o foco predominantemente conceitual

é superado uma vez que se encontra inserido em outras dimensões a serem contempladas no

processo de aprendizagem. Assim, alguns autores (LEANDER; BROWN, 1999; PERKINS;

SIMONS, 1988; EYLON; LINN, 1988) consideram necessário pensar a aprendizagem a partir de

perspectivas múltiplas viabilizando uma análise heurística desse processo.

Leander e Brown (1999), por exemplo, evidenciam que as interações em uma sala de aula

de física têm sido analisadas a partir de uma única perspectiva e propõem uma estrutura analítica

multidimensional constituída por seis categorias: focal, conceitual, institucional, discursiva-

simbólica e afetiva. Filiando-se a escola soviética da Teoria da Atividade, os autores assumem a

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escola e, mais precisamente, a sala de aula como um sistema de atividades envolvendo uma rede

de relações co-construídas na dinâmica interativa. A emergência dessa rede, analisada a partir das

categorias anteriormente apontadas, faz revelar uma “dança” de estabilidades e instabilidades que

caracteriza movimentos de negociação, de um lado, e fixação ou alinhamento, de outro. Leander

e Brown (1999) consideram que a predominância da estabilidade institucional é garantida pelo

discurso “matemático” do professor identificado como um discurso de autoridade em termos

bakhtinianos mas também, talvez de forma contraditória, por um discurso simbólico dos alunos

que se abre a diferentes significados subsidiando suportes de natureza focal, social e afetiva aos

esforços do professor. Desta forma, os autores argumentam que as respostas conceituais

formuladas pelos alunos em torno de um problema apresentado pelo professor devem ser situadas

em sua interseção com significados de ordem social, afetiva e institucional, uma vez que refletem

suas posições enquanto participantes no fluxo da interação.

Eylon e Linn (1988), realizando uma revisão de literatura, sinalizam que a pesquisa em

Educação em Ciências tem analisado a aprendizagem a partir de quatro perspectivas principais,

quais sejam: conceitual, desenvolvimental, diferencial ou resolução de problemas que focalizam,

respectivamente, os conceitos dos estudantes para explicar determinados fenômenos; as

mudanças qualitativas operadas durante os anos escolares; as diferenças individuais relativas às

habilidades (cristalizadas ou fluidas incluindo auto-regulação e metacognição) mobilizadas na

construção do conhecimento científico e os processos e procedimentos empregados pelos alunos

para solucionarem questões científicas. Os autores argumentam que a integração dessas quatro

perspectivas tratadas até então de forma isolada pode gerar uma estrutura analítica que permita

identificar os mecanismos que orientam os processos de mudança não apenas conceitual mas

também nas formas de pensar, necessários à construção do conhecimento científico. Isto significa

que maior ênfase deveria ser dada:

ao conteúdo e representação do conhecimento, incluindo as concepções daquele que raciocina e os procedimentos usados; a organização do conhecimento ou ligações entre idéias; a epistemologia do aprendiz e a habilidade geral daquele que raciocina, nível de desenvolvimento e capacidade de processar informações. (EYLON; LINN, 1988, p. 286, tradução da autora).

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Dessa forma, é possível argumentar que a noção de aprendizagem em ciências se amplia,

uma vez que se pressupõe a apropriação não apenas de conceitos mas também de movimentos

aqui entendidos como práticas epistêmicas necessárias à formação de “lifelong learners”, ou seja,

de sujeitos que continuam a aprender para além da vida escolar.

Perkins e Simmons (1988) também apontam para uma perspectiva mais ampla de

aprendizagem ao considerarem que o entendimento mais profundo em um domínio envolve

quatro níveis de conhecimento inter-relacionados: nível conceitual, envolvendo o conhecimento

factual e metacognitivo; nível de resolução de problemas que inclui estratégias e mecanismos de

auto-regulação para manter-se organizado durante a atividade; nível epistêmico, incorporando

normas e estratégias para validação de afirmações, tais como aquelas relativas ao tratamento de

evidências e a explicitação de raciocínio; e nível de investigação, relativo às estratégias e crenças

mobilizadas para desafiar/problematizar o conhecimento no interior de uma área em particular.

Na visão dos autores, cada nível contém uma variedade de tipos de conhecimento que se

estendem de um domínio particular a um domínio mais geral. Por isso, “a compreensão real

consiste em uma rede de relações que se ligam não só ao conhecimento do conteúdo mas também

ao conhecimento de resolução de problemas, epistêmica e/ou estrutura de perguntas.”

(PERKINS; SIMMONS, 1988, p. 323).

No interior da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OECD)

e do seu Programme for International Student Assessment (PISA), a formação científica tem sido

assumida como um processo de letramento científico definido como: “a capacidade de uso do

conhecimento científico, de identificar questões e tirar conclusões baseadas em provas a fim de

entender e ajudar na tomada de decisões relacionadas ao mundo natural e mudanças através da

atividade humana” (OECD/PISA, 1999, p. 60). Assim é que se focaliza de maneira mais explícita

o “conhecimento, entendimento e habilidades requeridas para a atuação efetiva na vida cotidiana

em função da importância do papel da ciência, da matemática e da tecnologia na vida moderna”

(CAZELLI; FRANCO, 2000). Nesta perspectiva, a OECD/PISA inclui três aspectos a serem

contemplados e avaliados no domínio científico: “processos científicos” relativos aos processos

mentais usados nas abordagens de questões científicas tais como percepção, obtenção e

interpretação de evidências e conclusões; “conceitos e conteúdos científicos” mobilizados no

entendimento de novas experiências; e “situações científicas” que se referem aos contextos nos

quais processos e conceitos científicos devem ser aplicados (OECD/PISA, 1999).

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A ampliação da noção de aprendizagem sugerida pelos estudos encaminha uma nova

configuração dos conteúdos curriculares a serem contemplados no ensino de ciências que

incluem dimensões diversas, desde as mais tradicionais como conceitos, sistemas conceituais,

teorias, resolução de problemas e procedimentos, até aquelas apontadas pelo mundo

contemporâneo como conhecimento e ação, tomada de decisões e avaliação de riscos (JENKINS,

1999a). Em outras palavras, incluiria a apropriação de instrumentos culturais, inclusive conceitos

e práticas epistêmicas, que permitiriam ao aluno entender o mundo e nele se situar de maneira

mais crítica e participativa.

3.4 Sistematizando a discussão

Talvez neste momento possamos nos perguntar o que aproxima a sociologia do

conhecimento científico e a pesquisa em educação em ciência? A resposta mais imediata é que

ambas situam em bases sociais a produção do conhecimento científico e a produção do

conhecimento cientifico escolar pelo aluno. São processos que se caracterizam como práticas

sociais justamente porque, realizados por indivíduos em contextos específicos e que obviamente

apresentam suas peculiaridades.

Knorr-Cetina, por exemplo, enxerga uma certa “maleabilidade” dos objetos em

laboratórios e também dos próprios cientistas que devem fazer as coisas funcionar. Para isto,

entra em jogo uma “lógica oportunista” que se sustenta em processos seletivos e tomadas de

decisões que são sempre contingentes e locais. Com estes movimentos, que se situam na base da

produção científica, entendemos que objetivos, objetos e metodologias são reajustadas,

redefinidas e readaptadas em processos de negociação. Controle e produção de significados

(fatos) parecem se articular dialeticamente fazendo revelar o lado mais “selvagem” da ciência.

Knorr-Cetina faculta especial atenção ao papel das analogias, da aproximação entre sistemas

aparentemente distantes, como um movimento que permite reduzir as incertezas pois pressupõe a

emergência de soluções para problemas e questões que talvez possam mesmo ainda não existir.

Latour vai ao laboratório e enxerga as controvérsias que se constituem no seu interior para

que afirmações sejam transformadas em fatos ou ficção. No cerne dessas controvérsias são

tecidas redes conceituais, já que os cientistas precisam amarrar suas afirmações a outros fatos no

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sentido de legitimá-las elevando-as à condição de uma nova caixa-preta. Mas não é só isso: a

atividade no laboratório demanda do cientista uma série de habilidades específicas relacionadas a

modos de fazer, olhar e interpretar os objetos e as inscrições produzidos pelos instrumentos com

os quais deve lidar. O cientista age como um porta-voz que, em seu contexto de produção, fala

por objetos e instrumentos e precisa vencer provas de resistências para que sua afirmação se eleve

à condição de fato, isto é, de uma caixa-preta. No movimento dessas controvérsias e disputas,

estratégias são armadas no sentido de ajustar objetivos, objetos e interesses e arregimentar novos

aliados. Os riscos são muitos pois o sucesso depende dos diferentes modos de apropriação das

afirmações que estão em jogo. Por isto, Latour recorre a uma forma de raciocínio que denomina

sócio-lógica relativa às associações que vão sendo construídas em torno de uma afirmação. Estas

associações podem ser mais fortes ou mais fracas e estão social e culturalmente situadas podendo

elevar a afirmação a alçar o lugar de fato e, portanto, de uma caixa-preta que perde os vínculos

com o seu contexto de produção, ou ainda uma dessas ficções de vida curta que aparecem nos

trabalhos de laboratórios.

A pesquisa em Educação em ciências, ancorada em uma perspectiva sociocultural,

particularmente nos estudos de Vygostky e Bakhtin, tem evidenciado, a partir das análises das

interações discursivas que se estabelecem na sala de aula de ciências, processos de negociação e

fixação em torno de significados que se desejam compartilhados. Tais estudos têm contribuindo

significativamente para a caracterização de um gênero de discurso que parece ser próprio desses

espaços de aprendizagem.

Este quadro teórico, que foi progressivamente sendo delimitado ao longo de nossas

investigações, fornece pistas para identificar e analisar as práticas epistêmicas realizadas pelos

alunos no processo de construção de significados, práticas essas evidenciadas a partir das

interações que constroem com o outro e com o próprio objeto de conhecimento na sala de aula de

Biologia.

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4 SALA DE AULA DE BIOLOGIA: COMO E O QUÊ INVESTIGAR?

Neste capítulo, apresentamos os percursos metodológicos realizados em nosso processo

de investigação. Em um primeiro momento, situamos a perspectiva teórico-metodológica adotada

face aos objetivos e à natureza da pesquisa. Em seguida, caracterizamos a instituição de ensino

onde foi realizado o trabalho de campo deste estudo bem como definimos o perfil dos sujeitos

que nele estiveram envolvidos. Procuramos, ainda, tecer considerações sobre a seleção e

organização das atividades desenvolvidas, uma vez que o estudo se realizou em nossa própria

sala de aula. Por último, discutimos o processo de coleta e análise de dados.

4.1 Definindo o referencial teórico-metodológico do estudo

Considerando nossa questão de partida, que trata de identificar e analisar as práticas

epistêmicas aqui assumidas como os movimentos e as formas de lidar com o conhecimento e que

são desenvolvidas pelos alunos em seu processo de construção de significados biológicos no

curso das atividades realizadas em uma sala de aula de Biologia a fim de caracterizá-la como uma

comunidade de práticas, situamos nosso estudo em um referencial teórico-metodológico

qualitativo. Ainda que, como advertido por Hopkins, Bollington e Hewett (1989), a pesquisa

qualitativa permaneça obscura devemos reconhecer que sua apropriação por este campo de

estudo deve-se, principalmente, à incorporação de uma dimensão interpretativa e que permite

maior entendimento e ampliação de um dado fenômeno em sua totalidade.

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Na visão de Bogdan e Biklen (1994), a pesquisa de natureza qualitativa reúne

características que favorecem uma abordagem naturalística uma vez que envolve a obtenção de

dados de caráter descritivo obtidos a partir de uma relação mais próxima entre pesquisador e

fenômeno estudado. Nesta perspectiva, é no contexto “natural”, tal como se organiza

habitualmente, que se situa o lócus da investigação. Em nosso caso, particularmente,

privilegiamos as ações realizadas pelos sujeitos no interior de uma sala de aula de Biologia, que

caracterizamos como uma comunidade de prática justamente porque supomos que nela sejam

desenvolvidas práticas epistêmicas específicas à natureza do conhecimento científico que ali

circula. A realização de um estudo naturalístico, portanto, encaminha uma preocupação maior

com um processo mais do que com um produto já que entram em jogo a realização de

determinadas atividades, as ações mediadas que se constituem ao longo dessas atividades, as

perspectivas dos sujeitos que dela fazem parte a fim de estabelecer níveis de intersubjetividade,

as interações cotidianas que, de certa forma, vão definindo o nível de participação dos indivíduos

na construção da sala de aula como espaço/tempo de aprendizagem.

Estes aspectos se tornam relevantes quando se toma como objeto de estudo salas de aula,

justamente porque se caracterizam pela complexidade humana e exigem, por certo, análises

situadas em uma perspectiva multidimensional. Como bem diz Alves (2001, p. 25):

Admitir que os fatos a serem analisados e as questões a serem respondidas são complexas, neste mundo simples que é o cotidiano, vai colocar a necessidade de inverter todo o processo aprendido: ao invés de dividir, para analisar, será preciso multiplicar – as teorias, os conceitos, os fatos, os métodos etc. Mais que isso, será necessário entre eles estabelecer redes de múltiplas e também complexas relações.

4.2 Situando o lugar de investigação: o CEFET – Nova Iguaçu

Buscando enfrentar o desafio proposto pela pesquisa qualitativa, tomamos o Centro

Federal de Ensino Tecnológico Celso Suckow (CEFET), unidade descentralizada de Nova

Iguaçu, como lugar de investigação. Esta escolha deve-se ao fato de atuarmos como professora de

Biologia nesta instituição de ensino desde o ano de 2005, o que nos permite um trânsito e

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controle maiores do processo de coleta de dados bem como um acesso àquilo que chamamos

“mercado negro” de informações, isto é, conhecimentos não sistematizados daquela realidade.

Esta unidade de ensino, inaugurada em 22 de agosto de 2003, portanto com poucos anos

de funcionamento, ainda encontra-se em processo de construção de sua identidade pedagógica e

reconhecimento junto à comunidade que a abriga.

Os CEFET(s), unidades de ensino que compõem a Rede Federal de Escolas Técnicas

tradicionalmente voltadas para a formação profissional, procuram articular educação e mundo do

trabalho, atendendo ao parágrafo único do artigo 39 da Lei de Diretrizes e Bases 9.394 de 20 de

dezembro de 1996 que estabelece:

O aluno matriculado ou egresso do ensino fundamental, médio e superior, bem como o trabalhador em geral, jovem ou adulto, contará com a possibilidade de acesso à educação profissional.

O decreto nº 5154/2004 que regulamenta o § 2º do artigo 36 e artigos 39 a 41 da L.D.B.

9.394/96, define que este acesso à educação profissional poderá se realizar em três níveis:

I - Formação inicial e continuada de trabalhadores;

II- Educação profissional técnica de nível médio; e

III - Educação profissional tecnológica de graduação e de pós-graduação.

Particularmente para a educação profissional técnica de nível médio, o mesmo decreto

define três formas organizativas:

a. Integrada, para os alunos que concluíram o ensino fundamental, devendo,

portanto, articular a formação do ensino médio à formação técnica sob a

condição de a matrícula ser na mesma escola;

b. Concomitante, oferecida para aqueles que já concluíram o ensino fundamental

ou estejam cursando o ensino médio quando deverá então haver

complementaridade entre formação técnica e ensino médio. Esta

complementaridade exige duas matrículas distintas para cada curso podendo ser

na mesma instituição de ensino ou em instituições distintas. Neste último caso,

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há necessidade de convênios de intercomplementaridade visando o

planejamento e o desenvolvimento de projetos que compartilhem princípios

pedagógicos;

c. Subseqüente, para os alunos que já concluíram o ensino médio.

Neste contexto normativo, o CEFET, unidade descentralizada de Nova Iguaçu, oferece o

curso de ensino médio-técnico de forma concomitante interna e externamente. No primeiro caso,

os alunos são selecionados e realizam o curso médio e técnico internamente na instituição mas

com duas matrículas distintas, o que acaba por possibilitar trajetórias independentes entre o curso

médio e o técnico. Em outras palavras, o aluno pode ficar retido no ensino médio mas prosseguir

sua vida acadêmica no curso técnico (ou vice-versa); mais ainda, o aluno pode decidir abandonar

um deles, por exemplo, o técnico e se manter vinculado apenas ao ensino médio24. Em relação ao

ensino técnico, que na instituição é denominado de externo, o aluno do CEFET-NI também

deverá estar matriculado em uma outra instituição cursando o ensino médio ou ainda comprovar a

conclusão deste segmento de ensino.

Nesta forma organizativa, são oferecidos os cursos de ensino médio - técnico e técnico nas

áreas de Informática, Telecomunicações, Eletromecânica e Enfermagem e ainda os cursos de

graduação em Engenharia de Produção e Engenharia Industrial de Controle e Automação.

Segundo documento que define o perfil de cada curso profissionalizante, a oferta desses cursos

procura atender as mudanças sociais e tecnológicas vivenciadas pela sociedade no contexto atual

que refletem novas configurações e tendências no mercado do trabalho. Procurou-se, portanto,

considerar as características socioeconômicas da região incluindo um levantamento dos setores

produtivos e em expansão e, conseqüentemente, das oportunidades de trabalho para os alunos

egressos da instituição.

Considerando a articulação do ensino médio a uma formação tecnológica, são observadas

algumas diferenças na grade curricular em relação àquela desenvolvida nos cursos de ensino

médio de formação geral (No anexo I, ver grade curricular do CEFET-NI). Isto se percebe

particularmente nos componentes relativos às áreas de conhecimentos científicos: a disciplina de

24 Este aspecto tem gerado inúmeras polêmicas uma vez que o número de evasões e retenções no ensino técnico é alto, o que contribui por descaracterizar o perfil da instituição enquanto entidade de caráter tecnológico.

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Física é composta de 4 horas-aula na primeira e segunda séries e 2 horas-aula na terceira série; a

disciplina de Química se realiza com 4 horas-aula na primeira e terceira séries e 2 horas-aula na

segunda série, enquanto que a Biologia se mantém com apenas 2 horas-aula ao longo das três

séries. Vale destacar que o aluno conclui o ensino médio, a exemplo de outras instituições

regulares, em três anos letivos e o curso técnico em quatro anos, permanecendo o aluno, portanto,

um ano a mais cursando apenas disciplinas específicas relativas à sua formação tecnológica.

Localizado no bairro de Santa Rita, região periférica do município que apresenta ainda

matizes de uma paisagem rural que se mistura a elementos urbanos, o CEFET – NI recebe alunos

oriundos de diferentes bairros da região metropolitana do Rio de Janeiro mas muito poucos da

própria área em que se encontra situado. A entrada desses alunos para o ensino médio-técnico se

faz via processo seletivo rigoroso e concorrido, realizado em duas fases; uma primeira,

eliminatória, através de prova objetiva relativa às áreas de conhecimentos que integram o núcleo

comum do Ensino Fundamental: Português, Matemática, Ciências, História e Geografia; e uma

segunda fase, classificatória, com prova discursiva de Português e Matemática. No período de

inscrição, o aluno opta pelo curso médio-técnico que deseja realizar sem poder, posteriormente,

solicitar transferência. Isto, certamente, tem implicações na vida desses alunos, uma vez que

fazem essa opção sem muitos esclarecimentos acerca das profissões e de seus espaços de atuação

no mercado de trabalho.

O espaço físico do CEFET-NI representa uma área construída de 7.367 m em um terreno

de 68.700 m, correspondente a vinte salas de aula; dezenove laboratórios equipados e que

atendem aos cursos técnicos, sendo um deles reservado para aulas de Biologia e Química; uma

biblioteca; três auditórios utilizados para reuniões e eventos desenvolvidos pela própria

instituição; duas quadras descobertas (o que é motivo de reclamação por conta da exposição ao

sol dos alunos durante as aulas de Educação Física) e um campo de futebol.

Atualmente o CEFET- NI atende a 493 alunos no curso médio-técnico e ainda a 277 no

curso técnico. Em relação ao curso médio-técnico, a instituição conta com 04 turmas de 1ª e de 2ª

séries e 06 turmas de 3ª série. Já no curso técnico são 04 turmas de 1ª e de 2ª séries e 3 turmas de

3ª série. Estas turmas encontram-se distribuídas nos turnos da manhã e da tarde. À noite a

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unidade de ensino funciona com os cursos de graduação. O quadro25 abaixo apresenta o número

de alunos por séries e cursos que freqüentam no ano de 2006.

Médio-Técnico Técnico

Turmas Nº de alunos Turmas Nº de alunos

1AElme126 34 1BElme2 30

1ª série 1AInfo1 35 1BInfo2 32

1BEnf1 32 1AEnf2 31

1BTel1 34 1ATel2 33

2AElme1 43 2ATel2 17

2AInfo1 38 2AInfo2 32

2BEnf1 40 2BInfo2 23

2ª série

2BTel1 32 2BElme2 23

3AElme1 45 3AEnf2 10

3AEnf1 32 3BElme2 21

3AInfo1 38 3BEnf2 25

3ATel1 51

3BEnf1 17

3ª série

3BInfo1 22

Total 14 493 11 277

Quadro 01 – Organização das turmas do CEFET-NI em 2006.

Os elementos apresentados nos permitem caracterizar o CEFET-NI como uma instituição

de ensino em processo de expansão, que busca ganhar credibilidade junto à comunidade que

atende e em que se encontra situada. Além disso, procura re-afirmar sua identidade enquanto uma

instituição de formação técnica articulada a uma formação geral, uma vez que a primeira parece

não exercer grande atrativo junto aos alunos.

25 Esse quadro apresenta dados estatísticos relativos ao início do ano letivo de 2006, não sendo consideradas ainda as evasões que acontecem ao longo do curso. 26 No código da instituição, 1 se refere à série; A/B ao turno, respectivamente manhã e tarde; Info/Tel/Elme/Enf ao curso (Informática, Telecomunicação, Eletromecânica e Enfermagem, respectivamente) e 1 ao curso médio-técnico e 2 ao curso técnico.

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4.3 A turma estudada: apresentando os sujeitos da pesquisa

Para a realização deste estudo, selecionamos uma turma de primeira série do ensino

médio-técnico, 1BTel1, na qual atuamos como professora de Biologia. Trata-se, portanto, de um

estudo de caso que procura descrever e interpretar a realidade de maneira complexa e

contextualizadora. Lüdke & André (1986) apontam características básicas relacionadas aos

estudos de caso e consideramos pertinentes destacar aquelas relevantes à nossa investigação,

justificando assim nossa opção por essa forma de pesquisa qualitativa. Os estudos de caso: a)

enfatizam a “interpretação em contexto”; b) buscam retratar a realidade de forma complexa e

profunda; c) utilizam uma variedade de fontes de informação; d) revelam experiência vicária e

permitem generalizações naturalísticas; e) procuram representar os diferentes e, às vezes,

conflitantes pontos de vista presentes numa situação social; f) utilizam uma linguagem e uma

forma mais acessível aos dados do que outros relatórios de pesquisa.

Os estudos de caso revelam-se, portanto, vantajosos, uma vez que os elementos que

constituem o foco de pesquisa (eventos, sujeitos, ações, lugares) são tratados como unidade em

uma estreita relação que é social, histórica e cultural.

Como dito anteriormente, os alunos têm duas horas semanais da disciplina de Biologia,

que correspondem a cinqüenta minutos cada uma e, nesta turma Tel, constituída de 34 alunos,

acontecem às quintas-feiras de 16:20 h às 18:00 h.

A opção por realizar nosso estudo nesta turma justifica-se particularmente pelo perfil

apresentado: a turma Tel é intensa em sua participação, os alunos apresentam muitas questões e,

diga-se, pertinentes, no curso das aulas, o que contribui para um trabalho mais dinâmico e

dialogado, mas que alternam momentos de concentração com dispersão. Além disso, manifestam

uma predisposição para realização de atividades diversificadas e em grupo.

A organização dos conteúdos a serem trabalhados nesta turma de primeiro ano segue a

tendência geral apresentada pela maioria dos livros didáticos: Química da célula; Estrutura e

Funcionamento celular; Reprodução e Embriologia Humanas e Histologia Humana. Em nosso

trabalho, procuramos ajustar o desenvolvimento dessas grandes unidades aos quatro bimestres

letivos.

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Para termos uma noção, ainda que geral, sobre quem são os alunos que se constituem

como sujeitos dessa pesquisa, aplicamos um questionário composto de dois eixos: um primeiro

procura especificar a faixa etária, o sexo e a instituição cursada na 8ª série do Ensino

Fundamental; o segundo, de caráter mais subjetivo, busca identificar os motivos que levaram

esses alunos a optar pelo CEFET-NI e pela área técnica em questão: Telecomunicação. Este

questionário foi respondido por 28 alunos da turma Tel.

Quanto à organização da turma em relação à idade, a faixa etária situa-se entre 14 e 17

anos, havendo um número mais expressivo de alunos com 15 anos, o que parece atender às

expectativas para a relação série-idade previstas na organização do nosso sistema de ensino.

Em relação ao gênero, a turma Tel apresenta uma predominância do sexo feminino. Esta

diferença talvez sinalize questões relativas à relação entre gênero e profissão, que vem sendo

explorada por alguns estudos. Entretanto, conhecendo a turma e a partir dos próprios

questionários respondidos pelos alunos, percebemos que a formação profissional não foi um fator

decisivo na escolha pelo curso técnico.

Considerando a instituição de ensino onde foi cursada a 8ª série do Ensino Fundamental,

evidenciamos que a maioria dos alunos da turma freqüentou a rede particular. Assim, na turma

Tel a relação é de 22 alunos oriundos de escolas particulares e apenas 06 alunos de escolas

públicas. Esses dados podem sugerir, num primeiro momento, que os alunos da rede particular

estariam mais bem preparados para enfrentar os processos seletivos de ingresso na instituição.

Entretanto, avançando na análise do questionário, encontramos que 18 alunos realizaram cursos

preparatórios para o concurso do CEFET-NI. Este aspecto confirma a grande concorrência de

candidatos nesse processo seletivo27, já sinalizada anteriormente, e contribui para construir um

perfil dos alunos da instituição de ensino.

Sobre os motivos da escolha do CEFET-NI para cursar o ensino médio-técnico, 21 alunos

da Tel consideraram a qualidade do ensino oferecida pela instituição. Esta qualidade, algumas

vezes, é associada às expressões como “ensino gratuito”, “instituição pública” e “federal”. Outros

04 alunos da Tel fazem referência à formação profissionalizante e possibilidades de entrada no

27 Segundo informações da Secretaria do CEFET-NI, o concurso realizado para o ano letivo 2006 teve uma relação de 10 candidatos para uma vaga.

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mercado de trabalho; e apenas 02 alunos apontam outros motivos, como a localização da

instituição.

Em relação à opção pelo curso profissionalizante, encontramos alguns aspectos

significativos. Na turma Tel, 21 alunos assumiram que a opção se deu por processo eliminatório

quando contou, e muito, a menor concorrência ao curso de Telecomunicação. Neste caso, o que

vislumbram é efetivamente uma boa formação no nível médio a fim de que possam se preparar

para os vestibulares das universidades públicas. Apenas 04 alunos consideraram a possibilidade

de atuação no mercado de trabalho e apenas 03 alunos timidamente evidenciaram aspectos como

interesse. O que nos parece é que, nesta turma, os alunos têm pouca clareza e, conseqüentemente,

pouca afinidade em relação ao curso profissionalizante que escolheram; alguns assumem que

pensavam tratar-se de algo próximo ao “telemarketing”. A nosso ver, este não se constitui em um

impedimento para que, durante o curso, o aluno possa ir descobrindo possibilidades de atuação e

construindo uma identidade em sua formação técnica. Entretanto, como enfrentam muitas

dificuldades conceituais em relação às matérias do curso técnico, esta aproximação e construção

de identidades vai sendo minada e evidenciada pelos altos índices de reprovação e evasão dos

alunos na formação profissional.

4.4 Sobre as atividades: princípios de organização e justificativa

A organização das atividades para a realização desta unidade de ensino envolveu um

processo de tomada de decisões e seleção que, como considerado por Tardif e Lessard (2005), é

próprio da profissão docente e marcam justamente a tensão que está posta entre uma dimensão

prescritiva, que corresponde aos objetivos de ensino mais amplos e previamente definidos pela

instituição, e uma dimensão pessoal relativa a crenças e saberes docentes, tais como concepções

de ciência, de ensinar, de aprender, construídas ao longo da formação e experiência profissional.

Nas palavras dos autores:

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A relação dos professores com os objetivos e programas escolares é fundamentalmente uma relação de trabalho, de cujo quadro eles se apropriam e cujos instrumentos eles modificam. Enquanto instrumento de trabalho, os programas são “trabalhados” pelos professores; eles os modelam e ajeitam conforme a necessidade dos alunos, da situação pedagógica, bem como de sua experiência. (TARDIF; LESSARD, 2005, p.222).

Por isso mesmo, não se pode negar que a elaboração de uma proposta de trabalho e sua

realização em sala de aula envolvem transformações, adaptações, re-significações, isto porque o

trabalho docente se materializa em meio a interações variadas que contribuem para definir a sua

dimensão criativa e imprevisível.

Dito isto, talvez seja oportuno sinalizar alguns elementos que entram em jogo quando da

definição e orientação do tema e das atividades a serem realizadas na turma que elegemos como

lugar privilegiado para investigação. O primeiro e talvez decisivo fator foi um incômodo gerado

quando de nossa entrada no CEFET-NI, ao constatarmos que o ensino de Biologia estava

marcado por uma concepção fortemente conteudista. As aulas eram organizadas segundo

conteúdos definidos e limitados a partir do livro didático adotado, de volume único, que

evidenciava pouca ou nenhuma articulação dos conceitos apresentados com questões mais amplas

e atuais, ou ainda com outras dimensões que, acreditamos, devam ser exploradas no processo de

ensino e de aprendizagem em Biologia. Neste cenário, ganhava visibilidade uma certa resistência

dos alunos em relação ao ensino de Biologia, considerado difícil, monótono e carregado de

termos técnicos que deveriam ser memorizados, justamente porque esvaziados de significados.

Esta situação traduz-se em um percentual expressivo de alunos com notas abaixo da média e,

conseqüentemente, lançados em recuperação bimestral.

Articulado intrinsecamente a este incômodo, encontramo-nos com uma literatura que

oferece justamente elementos para se repensar o ensino de Biologia para além de suas marcas

conceituais, pois considera que a aprendizagem deve justamente promover a apropriação pelos

alunos das ferramentas culturais envolvidas nesta área de conhecimento e, por isso, deve

encontrar-se situada. O termo ferramenta, como já discutido anteriormente, refere-se não apenas a

um conjunto de objetos próprios da prática científica que são manipulados e manejados, mas

igualmente à mobilização de conceitos, métodos de trabalho e formas específicas de lidar com

evidências, que permitem ao aluno interpretar fenômenos naturais; compreender mensagens,

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informações, textos de conteúdo científico e mesmo produzi-los; avaliar enunciados e conclusões

de acordo com dados ou justificativas que os apóiam (ALEIXANDRE, 2004).

Deste ponto de vista, consideramos que a sala de aula de Biologia pode ser entendida

como uma comunidade de práticas, já que agrega formas específicas de falar, pensar e se

relacionar com o mundo, e o processo de ensino e aprendizagem, como sendo situado. Isto

implica na construção de uma proposta pedagógica que favoreça a imersão dos alunos na cultura

científica escolar nos seus diferentes domínios – tanto conceituais quanto intelectuais, relativos a

modos de falar, pensar, analisar e olhar um fenômeno. Isto significa que os conceitos, que

constituem a base que organiza as disciplinas escolares, não podem ser abstraídos das situações

concretas em que são aprendidos e utilizados. Para Aleixandre (2004, p. 2):

A cultura científica, como a de um ofício, é um conjunto de conhecimento teórico e prático, tendo em conta que neste contexto o termo prático não se refere unicamente a manipulações ou manejo de instrumentos, mas também a mobilização de conceitos e modelos, a familiarizar-se, por exemplo, com os métodos que tem a ciência para eleger entre várias hipóteses alternativas a que se corresponde melhor com os dados ou justificativas disponíveis.

Em nosso processo de elaboração e realização das atividades, acabamos por relacionar

esta perspectiva da sala de aula de Biologia enquanto uma comunidade de prática a uma

abordagem temática tal como proposta por Delizoicov et al. (2003). Estes autores, partindo das

análises de Paulo Freire e George Snyders, sugerem que a estruturação das atividades educativas,

bem como a seleção e abordagem dos conteúdos, se realizam a partir de temas geradores,

rompendo assim de forma radical com o tradicional paradigma curricular que toma como base a

dimensão exclusivamente conceitual. Segundo os autores:

[...] se os alunos têm algo para dizer sobre racionamento de energia elétrica, poluição do ar e aids, é pouco provável que possam se pronunciar com igual desempenho, respectivamente sobre: radiação solar, mudanças de estado da matéria, indução eletromagnética; mistura de substâncias, reações químicas; célula e processo imunológico que constituem, por pressuposto, conhecimentos do domínio dos professores de Ciências. (DELIZOICOV et al., 2003, p. 193).

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Na concepção de Delizoicov et al. (2003), a organização temática articulada a dimensões

éticas e sociais permite a inserção de um corpo de conhecimentos sistematizados do qual fazem

parte “os conceitos, modelos e teorias produzidos pelas ciências” (p.190) e, no nosso entender, de

suas práticas num sentido ampliado. Esta abordagem favorece, portanto, o diálogo entre o

conhecimento que o aluno possui acerca da temática ou de uma situação significativa envolvida

no ato educativo e os conceitos científicos necessários para sua melhor compreensão e, por fim, a

construção de uma nova forma de olhar o fenômeno estudado.

Todos esses elementos, que vão evidenciando uma articulação entre os domínios teórico e

prático que marcam a prática docente, tornam-se decisivos para a elaboração e realização de um

conjunto de atividades organizadas a partir de uma temática geral denominada “Desvendando os

segredos da vida: a reprodução no nível molecular”. A definição por esta temática está

relacionada tanto ao interesse dos alunos no que diz respeito à reprodução dos seres vivos,

particularmente dos humanos, e a questões mais amplas largamente apresentadas pela mídia

como clonagem, organismos geneticamente modificados e células-tronco, quanto a uma

necessidade posta pela própria organização curricular que prevê para o terceiro bimestre o estudo

do núcleo celular de organismos eucariontes28, enfatizando aspectos relativos à molécula de DNA

(ácido desoxirribonucléico) e de RNA (ácido ribonucléico), tais como os processos de duplicação

e síntese de proteínas.

Considerando os aspectos teórico-práticos assinalados anteriormente, não nos interessava

simplesmente apresentar tais conteúdos, mas sim abordá-los em situações concretas para que, a

partir delas, os alunos estabelecessem um diálogo entre seus próprios conhecimentos e o

conhecimento científico escolar, a fim de que os primeiros fossem ampliados, revistos ou

transformados, aproximando-se do segundo. Por isso mesmo, foi previsto um leque de atividades

que favorecesse a expressão de opiniões, elaboração de explicações e justificativas para sustentar

um determinado resultado, enfim, que incentivasse o aluno à participação em práticas que se

aproximassem daquelas de caráter científico, mas que adaptadas ao contexto escolar.

O trabalho realizado ao longo de seis semanas teve como objetivos:

28 Organismos eucariontes são definidos como aqueles que possuem um núcleo individualizado formado por uma membrana nuclear denominada de carioteca ou cariomembrana, que encerra todo o material nuclear.

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§ Investir na compreensão de conceitos e processos biológicos que

permitissem maior entendimento de questões relativas à reprodução dos

seres vivos no nível molecular.

§ Desenvolver atividades que favorecessem um processo de construção de

modos biológicos de falar, pensar e analisar os fenômenos em questão.

§ Incentivar a participação no que diz respeito à tomada de posicionamento

em relação a questões que envolvem o domínio ético, tais como clonagem

e organismos geneticamente modificados.

§ Enfatizar a constituição do homem a partir de uma articulação entre as

dimensões biológica, social e cultural.

Os conceitos científicos que sustentam esta proposta de trabalho envolvem: núcleo

celular; relações estruturais e funcionais entre cromossomo, DNA e gene; cariótipo; processos de

duplicação do DNA e RNA e síntese de proteínas. A abordagem desses conceitos científicos é

mediada a partir da articulação com questões mais amplas tais como Projeto Genoma e Proteoma

Humano; Clonagem e Organismos Transgênicos, Células-tronco e Mutações Gênicas.

No processo de planejamento das atividades, uma questão formulada por Aleixandre

(2004) se tornou crucial: É possível converter as classes de ciências em lugares onde o alunado

experimente uma imersão na cultura científica? Do nosso ponto de vista seria necessário a

seleção de atividades que solicitassem continuamente a participação dos alunos. Aleixandre

(2004) chama essas atividades de autênticas justamente pelas características que as delimitam,

tais como contextualização, abertura e processos de resolução quando os alunos a partir de dados

disponíveis devem eleger uma possível solução para um problema acompanhado de justificativa

bem articulada.

Desta forma, fomos elaborando e selecionando algumas atividades que pareciam atender a

estas características e que se articulavam seqüencialmente a fim de promover uma compreensão

mais ampla do tema definido para a unidade de ensino. A seguir apresentamos um quadro com a

organização geral das atividades desenvolvidas. Tal quadro, entretanto, não evidencia as

variações e ajustes realizados por conta das interações que tomaram lugar em cada contexto

específico de sua produção.

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107

Data Atividades 17-08-2006 Início da unidade de ensino: A reprodução no nível molecular

Atividade 1. Levantamento das concepções dos alunos: aplicação de questionários

Atividade 2. Núcleo: estrutura e função

• Situação inicial: Experimentação com a Acetabulária • Formulação de hipóteses pelos alunos • Definição de funções do núcleo • Simulação de uma nova situação experimental: a relação estrutura e

função • Os Componentes nucleares: diversidade de questões

24-08-2006 Molécula de DNA: onde a vida começa

Atividade 1. As relações entre DNA, Núcleo e processos de reprodução

• Leitura e discussão do texto: “Dolly, o núcleo e os clones” • Discussão em grupo • Registro escrito

Atividade 2. Extração do DNA: entrando no laboratório

• Aproximação ao material • Preparação da mistura – primeira etapa • Observações – discussão e registro escrito • Filtração – segunda etapa • Visualização do DNA • Orientações sobre elaboração de relatórios

31-08-2006 Resgatando a estrutura do DNA e seu processo de autoduplicação

Atividade 1. Revisão de conceitos e leitura de relatórios Atividade 2. A autoduplicação do DNA

§ Questão inicial: Por que o núcleo de todas as células contém todas as

informações do organismo? § Formulação de hipóteses pelos alunos § Simulando o processo de autoduplicação do DNA § O mecanismo semi-conservativo § Mutações gênicas

14-09-2006 Trabalhando com o cariótipo Humano: o aconselhamento genético

Atividade 1. A construção de idiogramas – atividade em grupo

• Definindo idiogramas – cariótipo –cromossomos homólogos

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• Reconhecendo os pares de cromossomos homólogos • Percebendo anomalias • Definindo a anomalia • Produzindo diagnósticos

Atividade 2. Apresentação coletiva dos idiogramas

• Caracterizando as diferentes síndromes cromossomiais • Relação meiose e síndromes cromossomiais

21-09-2006 Ácidos Nucléicos e o código da vida: a síntese de proteínas Atividade 1. A relação DNA-Gene- característica hereditária

§ Questão inicial: Como o gene se expressa? § Formulação de hipótese pelos alunos § Simulando a síntese de proteínas § Transcrição e tradução gênicas § Mutações gênicas e proteínas não funcionais

Atividade 2. Elaboração de um modelo para a síntese de proteínas

§ Aproximação ao material § Iniciando a decodificação § Simulando a síntese de proteínas

05-10-2006 Clonagem, Células-tronco e Organismos Transgênicos: aprofundando a discussão

• Apresentação de trabalhos em grupo

Quadro 02 – Síntese das atividades “Desvendando os segredos da vida: a reprodução no nível molecular”.

4.5 Detalhamento das atividades de ensino-aprendizagem

Em relação ao levantamento das concepções prévias dos alunos, podemos considerar que

se trata de uma prática relativamente comum após a entrada em cena de estudos no campo da

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109

Educação em Ciências29, particularmente aqueles relativos à perspectiva construtivista de ensino

e de aprendizagem, que evidenciam a importância de se conhecer aquilo que os alunos trazem

para a sala de aula e que termina por influenciar significativamente o que os professores

pretendem ensinar. O mapeamento das concepções prévias acerca de uma temática é valioso ao

permitir dar visibilidade aos mitos que, por vezes, os alunos constroem em torno da própria

ciência e, em nosso estudo, particularmente, em relação aos organismos produzidos a partir da

manipulação gênica. Além disso, revelam dúvidas e incertezas bem como certezas relativas a

conceitos científicos que devem ser mobilizados pelos alunos na explicação de determinadas

situações que lhes são propostas.

Para organização do questionário, elaboramos cinco questões abertas que, em linhas

gerais, propunham aos alunos situações experimentais e contextualizadas envolvendo a

mobilização de conceitos científicos relativos à temática que pretendíamos abordar: núcleo

celular em sua estrutura e função, relação entre DNA, gene e cromossomo. As análises das

concepções prévias dos alunos são apresentadas no capítulo 5. De posse dos questionários,

realizamos uma primeira leitura dos mesmos a fim de tomar algumas decisões e definir a direção

do trabalho que seria realizado.

Iniciamos o trabalho com uma discussão que tinha como objetivo estabelecer uma relação

entre estrutura e função do núcleo. Para isto, resgatamos uma das questões formuladas no

questionário para levantamento das concepções prévias dos alunos. Esta questão se referia a uma

situação experimental e solicitava aos alunos prever e justificar os resultados obtidos. A partir das

contribuições dos alunos, pudemos mapear estas funções e, posteriormente, relacionar com a

estrutura nuclear. Durante a aula, os alunos realizavam consultas ao livro didático a fim de

responderem, adequadamente, às perguntas que iam sendo propostas pela professora ou para

manifestarem dúvidas e solicitar esclarecimentos.

Em um segundo encontro, incluímos em um primeiro momento uma prática de laboratório

quando os alunos realizaram a extração do DNA de materiais simples como a cebola e o

morango. A opção pela prática de laboratório vai ao encontro dos próprios referenciais teóricos

que tomamos como base de nosso estudo uma vez que assumindo, ou procurando assumir a sala

29 Neste caso nos referimos particularmente aos trabalhos realizados no interior do movimento das concepções alternativas e que emergem a partir da década de 1980 a partir da publicização do trabalho pioneiro de Rosalind Driver (1978).

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de Biologia como uma comunidade de práticas, é preciso viabilizar a realização de atividades que

se aproximem daquelas realizadas pelas comunidades científicas. Particularmente, a atividade de

laboratório gera um interesse expressivo dos alunos que, ao mesmo tempo em que vão

construindo conceitos biológicos, em nosso caso relativos à molécula de DNA, vão

desenvolvendo práticas tanto metodológicas quanto epistêmicas relacionadas ao modo de fazer

ciência. Assim, os alunos realizaram inicialmente um reconhecimento do material a ser

manipulado, leram o roteiro da atividade, fizeram observações do material produzido a cada

etapa, registraram informações que pareciam relevantes. Nesta atividade, solicitamos aos alunos

que preparassem um relatório. Para isto, oferecemos como modelo alguns resumos de trabalhos

científicos apresentados na Reunião Anual da SBPC a fim de que percebessem os elementos que

compõem a estrutura de um texto de caráter científico – introdução, objetivo, material e métodos,

resultados e discussões – bem como a linguagem própria destes textos.

Neste segundo encontro, privilegiamos ainda a leitura de um texto com caráter de

divulgação científica como “Dolly, o núcleo e os clones”, extraído de César e Sezar (2006),

acompanhado de questões que eram inicialmente debatidas em grupos formados por pelo menos

cinco alunos e, posteriormente, socializadas no espaço coletivo (No Anexo II apresentamos o

texto). A dinâmica de trabalho funcionava como uma estratégia que promovia, por um caminho

de mão dupla, tanto a problematização quanto a sistematização de conceitos e processos

científicos. Além disso, consideramos que a prática científica envolve leituras e discussões que

apontam, por vezes, para perspectivas divergentes ou mesmo não muito definidas que precisam

ser solucionadas. Para Knorr-Cetina (1992, 1981), a produção do conhecimento é sempre

contextual e contingente, sendo negociada por atores específicos, em um tempo e espaço

particulares. Em laboratórios, por exemplo, os objetos e fenômenos não são apenas tecnicamente

manufaturados mas também simbolicamente construídos, uma vez que se encontram sustentados

por práticas culturais próprias que circunscrevem a produção científica.

Visto desse ângulo, promover atividades na sala de aula de Biologia que possam disparar

conflitos e tensões, sustentação de pontos de vista, tentativas de persuasão ou mesmo

acomodação de idéias a princípio incompatíveis, acabam por favorecer a construção de processos

de negociação entre os participantes que parece ser um movimento necessário para a

aprendizagem da cultura científica.

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No terceiro encontro, tínhamos como objetivo construir com as turmas o processo de

autoduplicação do DNA e, para isso, partimos de uma questão já trabalhada pelos alunos na

atividade anterior: “Por quê todas as células de um organismo contém as mesmas informações

genéticas?”. A apresentação de uma questão desta natureza, de certa forma, inaugura um espaço

dialógico que viabiliza a participação dos alunos quando evidenciam suas concepções acerca da

temática e das possíveis articulações que realizam com outros conceitos já trabalhados ou com

situações reais vivenciadas no cotidiano. Realizando o seu papel de mediador neste espaço, o

professor encaminha o conceito científico em questão, valendo-se, inclusive, de esquemas que

vão sendo elaborados e re-elaborados neste contexto interativo e articulados a aspectos mais

amplos como as mutações gênicas.

Após a realização desta apresentação relativa ao processo de DNA, propusemos algumas

questões para serem trabalhadas em grupo. Tais questões assumiam a forma de situações ou

simulações e exigiam dos alunos a mobilização dos conceitos já trabalhados e a construção de

justificativas.

Optamos por incluir, respectivamente no 4º e 5º encontros, atividades que envolvessem

simulações tais como a construção de idiogramas30 e a síntese de proteínas propostas por Amabis

e Martho (2002) e apresentadas respectivamente nos anexos III e IV. Como considerado por

Knorr-Cetina (1992, 1981), as práticas de laboratório necessariamente não manipulam objetos e

fenômenos tais como ocorrem na natureza. Na verdade, o trabalho em laboratório envolve,

muitas vezes, a substituição desses objetos e fenômenos por versões parciais ou totais baseadas

no uso de imagens, fotografias, marcas, elementos que os compõem, suas extrações... Enfim, os

objetos e fenômenos são trazidos e acomodados à ordem do laboratório, o que permite sua

manipulação repetida e contínua. Um olhar na história da ciência (FRIEDMAN; FRIEDLAND,

2000) evidencia, por exemplo, que James Watson e Francis Crick, em seu processo de elaboração

do modelo da molécula de DNA, valeram-se especificamente de materiais como bolas de

plástico, arames e placas de metal conjugadas, com informações obtidas a partir dos trabalhos de

outros pesquisadores, principalmente aqueles sobre difração por raios X que vinham sendo

realizado por Rosalind Franklin. Estes aspectos sinalizam a importância de se trazer para a sala

de aula atividades que, de certa forma, aproximem o aluno das práticas culturais científicas

30 A construção de idiogramas corresponde a uma prática de identificação dos cromossomos humanos para diagnóstico e prevenção de doenças hereditárias.

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favorecendo a apropriação de conceitos e movimentos que envolvem a produção do

conhecimento científico.

A construção de idiogramas é uma atividade interessante porque exige do aluno

observação e paciência para pareamento e ordenamento dos cromossomos homólogos, tomando

como critérios aspectos como tamanho, padrão de bandagem, posição do centrômero. Além

disso, ao final do processo, o aluno deverá identificar o cromossomo que está faltando ou em

excesso a fim de definir o tipo, bem como as características biológicas dos indivíduos portadores

da anomalia em questão.

Na atividade de síntese de proteínas, interessava-nos, particularmente, que os alunos

manipulassem as etapas (transcrição e tradução gênicas) que compõem este processo, justamente

porque são conceitos básicos para a compreensão não só dos mecanismos de hereditariedade, de

funcionamento e manutenção do próprio organismo, mas também de estudos que vêm sendo

largamente realizados pela engenharia genética e que envolvem a manipulação de DNA. Tais

estudos, de certa forma, realizaram um feito pois acabaram por abandonar os laboratórios e

ganharem espaço na mídia, uma vez que seus avanços estão diretamente ligados a interesses

econômicos e éticos. Por isso mesmo, termos como DNA, clone, transgênicos estão cada vez

mais popularizados apesar de esta popularização não implicar necessariamente um entendimento

adequado dos mesmos. Cabe ressaltar ainda que tanto a construção do idiograma, uma técnica

amplamente realizada por citogeneticistas, quanto a simulação da síntese de proteínas,

correspondem a versões simplificadas e escolarizadas de tais práticas e processos.

Todas as atividades foram acompanhadas por espaços coletivos de sistematização e

encaminhamentos marcados por uma alternância no movimento discursivo que ora se mostrava

mais autoritário, quando da transmissão de um dado conceito, ora mais dialógico visando à

construção de um determinado significado a partir de problematizações e provocações. Tais

espaços se revelaram, também, adequados para a construção e ampliação de debates quando os

alunos expressavam suas dúvidas, formulavam hipóteses explicativas e se posicionavam frente a

determinadas questões, particularmente àquelas de ordem ética.

Como culminância do trabalhado desenvolvido ao longo do bimestre, propusemos aos

alunos a elaboração de painéis focalizando temas como: clonagem, células-tronco, organismos

geneticamente modificados. Consideramos que, através do exercício da pesquisa, pudessem

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ampliar suas leituras, apresentando argumentos contra e a favor dessas técnicas de manipulação

genética, que estão postas na literatura, para que pudessem, talvez de forma mais esclarecida, se

posicionar diante delas.

4.6 Sobre o processo de coleta dos dados

A decisão de entrar em uma sala de aula e investigar as práticas epistêmicas que ali se

realizam, visando caracterizar este espaço/tempo como uma comunidade de práticas, configura

uma série de implicações quanto às formas de se coletar os dados. Uma questão que precisa ser

considerada está diretamente relacionada aos referenciais teóricos que orientam nosso estudo,

uma vez que assumimos a aprendizagem como um processo situado, envolvendo uma

participação, que desejamos e esperamos seja cada vez mais crescente no sentido de poder

caracterizar e visualizar um engajamento disciplinar produtivo como propõem Engle e Conant

(2002). Desta forma, a aprendizagem em nosso estudo não se situa exclusivamente no domínio da

apropriação conceitual, e a pesquisa empírica deseja capturar e revelar modos de pensar, falar,

organizar e olhar objetos e fenômenos biológicos que são revelados a partir da participação dos

alunos em um contexto mediado.

Este modo de conceber a aprendizagem implica, necessariamente, o registro não apenas

das interações verbais que vão se constituindo neste processo de participação mas também outros

movimentos que as acompanham, tais como gestos, silêncios, estratégias selecionadas para

enfrentar uma determinada situação, expressões faciais que indicam angústias, dúvidas,

hesitações, confirmações, certezas, que contribuem para a compreensão do fenômeno de maneira

mais ampla.

Neste sentido, a opção metodológica que nos pareceu mais pertinente para registrar estes

movimentos foi a utilização de vídeogravações durante nossas aulas, pois representa uma recurso

técnico que “permite a exposição repetida do observador à mesma ocorrência do observado [e

este aspecto] aumenta a possibilidade de o observador repensar o observado, ou seja, amplifica

sua análise”. (ALMEIDA CARVALHO, 1996, p. 262).

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No dizer de Horta Machado (1999), a utilização da vídeogravação permite tanto um certo

distanciamento quanto um mergulho mais profundo e intenso nos processos registrados. Nas

palavras da autora:

Registramos o ocorrido e temos a possibilidade de retornar a ele depois. Acessamos a um tempo que já foi. Esse distanciamento propicia um certo espaço de segurança [...] por outro lado o vídeo possibilita uma profunda imersão no que ocorreu. O vídeo registra “quase tudo” [...] (HORTA MACHADO, 1999, p.57).

Este distanciamento e aprofundamento possibilitados pelas vídeogravações tem para nós

significados mais amplos: remetem a uma análise que não é exclusivamente dos dados relativos à

questão de estudo, mas também de nossa própria prática pedagógica já que o lugar de professora

era também ocupado pela pesquisadora (ou vice-versa). Tivemos, portanto, que enfrentar o

desafio de nos olhar e tomar consciência de alguns aspectos que pareciam até então apenas

impressões relativas a este processo de nos fazer professora: os movimentos, às vezes intensos,

com as mãos, as formas de encaminhar uma determinada questão ou de lidar com as

imprevisibilidades que marcam a sala de aula, entonações, engasgos, vícios, deslocamentos no

espaço, maneiras de se dirigir a turma ou a alguns alunos especificamente... Enfim, o vídeo nos

permitiu ter um alcance de nossa prática de sala de aula como um processo em constante re-

elaboração.

O registro em vídeo-gravação na turma investigada ocorreu ao longo do terceiro bimestre

do ano letivo de 2006 e totaliza aproximadamente 10 horas de gravação. Neste processo,

reconhecemos que a presença de uma câmera e de dois operadores provoca modificações no

contexto observado. Inicialmente, alguns alunos se intimidam, as vozes são sussurradas, pois

como dizem “não queremos falar bobagens”, outros se distraem olhando para a câmera. Mas,

posteriormente, estes elementos estranhos vão sendo naturalizados e as aulas seguem seu curso,

já não nos lembramos que estamos sendo filmados.

Candela (1998, p. 147) considera que tais “mudanças que o docente e alunos possam fazer

refletem [apenas] o que eles sabem e podem fazer”. Isto significa que tanto professor como

alunos procuram contribuir para a realização desse processo de videogravações. Particularmente

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os alunos percebem que precisam falar mais alto, acenam com as mãos para solicitar a palavra, o

que permite que a câmera seja deslocada para focalizá-los, ou começam a se sentar nas carteiras

da fileira da frente para estarem melhor posicionados para serem filmados.

Em nossa proposta de trabalho, privilegiamos tanto as atividades em grupo quanto as

discussões coletivas e como dispúnhamos de uma única câmera, decidimos filmar um único e

mesmo grupo ao longo do processo de coleta dos dados. A organização dos grupos e a escolha

daquele que seria filmado foi feita pelos próprios alunos pois alguns se sentiam mais à vontade

para enfrentar os “closes” das gravações. É preciso dizer que algumas vezes esses grupos eram

rearranjados, seja por conta da falta de alguns alunos, seja pela manifestação de outros que

queriam participar num determinado dia daquela filmagem mais intimista. Esta opção por gravar

um único grupo tem suas implicações, já que, como professora e mediadora das atividades,

presenciávamos situações ricas que acabavam por escapar ao registro da câmera. Por isso, sempre

que possível deslocávamos a câmera no sentido de poder capturar o movimento desses outros

grupos.

Vale dizer, como bem destacado por Mortimer (2000), que estas turmas não estão em sua

situação natural: são classes observadas e, em nosso caso, não apenas observadas mas também

organizadas em sua proposta de trabalho segundo os pressupostos teóricos e metodológicos que

orientam o estudo. Por isso, nossa forma de encaminhar e olhar este trabalho na sala de aula não é

pura nem neutra mas carregada de teorias que vimos construindo ao longo desses anos de

formação.

O registro videogravado foi complementado com algumas notas de campo. Tratava-se de

um exercício realizado ao final de cada aula, quando anotávamos detalhadamente aspectos

relativos ao trabalho desenvolvido naquele dia. São notas de campo que envolvem a descrição de

algumas atividades, acontecimentos, sujeitos e também idéias, reflexões, primeiras impressões e

possibilidades de novas estratégias para o encontro seguinte pois como dizem Bogdan e Biklen

(1994, p. 151):

[...] as notas de campo podem originar em cada estudo um diário pessoal

que ajuda o investigador a acompanhar o desenvolvimento do projeto, a visualizar como é que o plano de investigação foi afetado pelos dados recolhidos, e a tornar-se consciente de como ele ou ela foram influenciados pelos dados.

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Estas notas de campo são dados valiosos pois permitem ampliar e/ou complementar os

registros em vídeo uma vez que o vídeo registra “quase” tudo, mas não tudo. Como dispúnhamos

de uma câmera amadora, estávamos sujeitos a toda sorte de ruídos, lacunas e falas

incompreensíveis, e as notas de campo, juntamente com as videogravações compuseram um

corpo de dados que nos permitiu ter mais clareza e segurança para inferir acerca de determinadas

situações no processo de análise de dados.

Em nosso estudo, um segundo corpo de dados é formado pelos questionários respondidos

pelos alunos antes do início da proposta de trabalho. Como já sinalizado na sessão anterior, na

pesquisa em Educação em Ciências, a aplicação de questionários visa oferecer uma visão geral

em torno das idéias que os alunos sustentam acerca de um determinado fenômeno científico.

Solicitamos aos alunos que respondessem às perguntas tal como as entendiam. Como no senso

comum escolar, um questionário xerocopiado é sempre associado a testes ou provas, fizemos

questão de destacar que tal atividade não se configurava em uma avaliação formal e, por isso

mesmo, o anonimato seria respeitado para aqueles que assim o desejassem.

A primeira questão apresentava, de forma adaptada, uma situação experimental realizada

na década de 1930 com uma alga unicelular a fim de evidenciar a importância do núcleo para o

funcionamento celular. A partir da situação, os alunos deveriam prever inicialmente os resultados

da experiência e, em seguida, justificar a ocorrência de tais resultados. Nossa intenção com a

questão era perceber se os alunos articulavam, ou como articulavam, a relação entre estrutura e

função do núcleo celular.

A segunda questão trazia um fragmento de texto extraído do trabalho de Dobzansky31

(1969 apud CÉSAR; SEZAR, 2006), que discute aspectos relativos às mutações gênicas

disparadas a partir da exposição à radiação. Interessava-nos saber as idéias dos alunos com

relação a mutações induzidas que se realizam no material genético presente na célula,

especificamente na molécula de DNA, e que, sendo duplicadas no processo de divisão celular,

acaba por transmitir às linhagens obtidas a partir dela a mesma alteração gênica. Além disso,

queríamos perceber se os alunos faziam distinção entre mutações ocorridas em células somáticas

31 Theodosius Dobzhansky é um famoso geneticista que há quarenta anos já manifestava preocupações com fatores ambientais como as radiações, que aumentam significativamente as chances de dispararem mutações gênicas nos organismos.

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e células germinativas32 pois, sendo as últimas vítimas de mutação gênica, as conseqüências não

estariam circunscritas apenas àqueles que a sofreram mas poderiam ser transmitidas aos seus

descendentes.

A terceira questão girava em torno da clonagem. Solicitava aos alunos que, além de

definirem o termo clone, evidenciassem se a clonagem é uma forma de reprodução naturalmente

observada na natureza e, ainda, que a comparassem com o processo de reprodução humana. Neste

caso, era nosso desejo perceber as informações que os alunos trazem em torno de uma questão

largamente abordada pela mídia e que parece já estar bastante popularizada.

A quarta questão trazia um pequeno texto relativo a um diagnóstico de uma criança

portadora de síndrome de Down, uma questão também amplamente debatida, particularmente em

tempos de prática escolar inclusiva. Aos alunos, era solicitado que formulassem uma explicação a

ser dada aos pais da criança para o aparecimento da síndrome. Esta questão nos permite

vislumbrar as relações que os alunos estabelecem entre cromossomo, genes e DNA.

Finalmente, na quinta questão, apresentamos um resultado experimental bem sucedido

relativo à produção de um mamífero transgênico, solicitando aos alunos uma possível definição

para tais organismos. Tal como a questão da clonagem, o debate em torno de organismos

geneticamente modificados ganha espaço na mídia não apenas do ponto de vista da publicização

da produção científica mas também e, talvez principalmente, por conta dos desdobramentos

éticos e legais envolvidos.

O terceiro corpo de dados é constituído pela produção escrita dos alunos. Inclui as

questões respondidas pelos alunos acerca da leitura e discussão de pequenos textos e da resolução

de situações-problema e simulações de atividades experimentais, bem como os relatórios

elaborados após as atividades de laboratório. Esta produção escrita permite visualizar elementos

relativos à apropriação e articulação de conceitos biológicos, bem como a organização e as

formas de linguagem utilizadas para construir justificativas e sustentação de pontos de vistas.

32 Células somáticas correspondem a células do corpo não relacionadas à reprodução e que possuem dois conjuntos (n) de cromossomos, no caso da espécie humana 23 pares. As células germinativas ou reprodutoras possuem apenas um conjunto de cromossomos resultado do processo de divisão celular.

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Consideramos que estes três corpos de dados nos oferecem elementos suficientes para

pensar e analisar a aprendizagem em uma perspectiva situada e contribuem para caracterizar a

sala de aula como uma comunidade de práticas.

4.7 Sobre o processo de análise dos dados

Sobre o processo de análise de dados, Hopkins, Bollington e Hewett (1989) definem a

partir dos estudos de Becker (1958) e Glaser & Strauss (1967) quatro estágios subseqüentes: 1.

imersão nos dados visando uma aproximação inicial e o estabelecimento de categorias de análise

que vão sendo progressivamente melhor delimitadas e aprofundadas; 2. validação dos sistemas de

categorias construídas, sustentada por algumas técnicas; 3. organização e interpretação desses

sistemas de categorias e 4. ação, que se refere a apresentação dos resultados obtidos.

Em relação aos registros videogravados:

Seguindo estas etapas, iniciamos nosso processo de análise realizando sucessivas

“leituras”33 relativas aos dados obtidos através de vídeogravação. Este processo de “re-leituras”,

associado à imersão apontada pelos autores, tem por objetivo delinear, de início, um quadro geral

e impressionista que deve ser aprofundado e melhor especificado, tanto do ponto de vista teórico

quanto empírico, nas etapas posteriores.

A primeira leitura envolve a construção de um mapa geral de cada aula vídeo-gravada.

Estes mapas apresentam aspectos como data e local, atividades realizadas e seus objetivos, os

participantes, as ações e tarefas que tomam lugar no interior de cada atividade. Vale dizer que

esse mapeamento inicial é uma primeira aproximação aos dados após um certo período de

distanciamento. Assim, vamos re-conhecendo/re-vendo os conteúdos que estão sendo abordados

e como vão sendo abordados, formas de intervenção/participação tanto do professor quanto dos

alunos no curso das atividades, e reorientações de eixos de discussões ao longo das aulas. Ao

mesmo tempo, esta primeira leitura já possibilita o delineamento de algumas impressões e

33Neste caso utilizamos a expressão “leitura” dos dados para nos referirmos às etapas em que assistimos aos vídeos de cada aula gravada a fim de codificarmos um conjunto de categorias descritivas e analíticas.

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significados mais gerais do contexto observado. A importância dessa etapa é destacada por

Cordero et al. (2002) que se referem à possibilidade de re-construção das aulas referentes à

unidade de ensino em questão e cujo processo vai sendo complementado pelos registros escritos.

No anexo V apresentamos um mapa geral correspondente a uma aula videogravada da turma.

Uma segunda leitura, já iluminada por nossa perspectiva teórica e, em particular, pela

noção de ação mediada proposta pelos estudos de natureza sociocultural, permite-nos ajustar a

nossa “lente” no sentido de começar a identificar e mesmo caracterizar algumas ações envolvidas

que se realizam em cada aula e que parecem relevantes para o nosso processo de análise. Nessas

ações, interessa-nos situar, ainda que em um plano geral, os sujeitos que dela participam, os

instrumentos que medeiam essas ações bem como o seu propósito. A especificação do processo

de análise envolve uma necessária e constante articulação entre noções teóricas e dados empíricos

que se realiza através de um movimento de idas e vindas e, conseqüentemente, ajustes entre estes

dois pólos. A manipulação e apropriação desses dados, acompanhadas dos ajustes anteriormente

apontados, são fundamentais para a elaboração de critérios que possibilitam a delimitação e

seleção de episódios de ensino e que encaminham uma análise mais aprofundada dos dados. A

noção de episódios de ensino se torna relevante para o encaminhamento de nosso processo de

análise, uma vez que, como descrito por Carvalho (1995), referem-se àqueles momentos em que

ficam evidentes as situações e noções teóricas que queremos investigar. Neste sentido, os

episódios de ensino são/estão delimitados por algum tipo de ação específica marcada pela

interação entre os sujeitos que constituem/organizam o espaço/tempo da sala de aula. Neste

momento tivemos acesso ao trabalho de Mortimer et al. (2007) que descrevem uma metodologia

para análise de dados de salas de aula registrados em vídeo. Os autores propõem que,

inicialmente, na leitura dos dados, sejam definidas categorias superficiais como a posição do

professor na sala de aula (frontal, deslocamento), o tipo de seu discurso (conteúdo, gestão,

procedimental, de experiência, de conteúdo escrito) e já os próprios episódios de ensino.

Seguindo as orientações propostas pelos autores, redefinimos nossos mapas gerais a partir dessas

categorias e começamos a “enxergar” de forma ainda nebulosa os episódios de ensino para cada

aula videogravada. O anexo VI apresenta um mapa de uma aula analisada para ilustrar essa

segunda leitura.

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No entanto, neste processo, é necessário não apenas retomarmos os dados mas igualmente

termos uma definição mais clara da noção de episódios de ensino. Para Mortimer et al. (2007, p.

6) o episódio se constitui como:

[...] um conjunto coerente de ações e significados produzidos pelos participantes em interação, que tem início e fim claros e que pode ser facilmente discernido dos episódios precedentes e subseqüentes [...] o episódio mesmo [é definido] por um conjunto de características que incluem seu tema, a fase da atividade na qual ele tem lugar, as ações dos participantes, as formas como os participantes se posicionam no espaço físico no qual ocorrem as interações, as formas pelas quais eles interagem entre si e com os recursos materiais que eles usam.

A partir dos episódios de ensino, pode-se derivar unidades menores de análise que

correspondem às seqüências de interação consideradas “como os enunciados que caracterizam os

gêneros de discurso da sala de aula de ciências” (MORTIMER et al., 2007, p. 6). As seqüências

de interação são definidas a partir das categorias “locutor” e “padrão de interação”, sendo a

última definida pela alternância de turnos entre os participantes da dinâmica discursiva. Neste

caso, podem ser geradas cadeias do tipo fechada (I-R-A), quando a iniciação do professor é

seguida por uma resposta do aluno e esta pela avaliação do professor; ou ainda, por cadeias não

triádicas de interação fechada (I-R-P-R-P-R-A), onde I é a iniciação do professor, R a resposta do

aluno, P a intervenção do professor para sustentar o discurso do aluno ou encaminhar

reelaborações pelo mesmo e A uma avaliação final feita pelo professor. As cadeias não triádicas

podem também ser do tipo abertas quando o professor não realiza a avaliação final.

De posse de todos esses elementos, partimos para uma terceira leitura com o objetivo de

definirmos de maneira mais precisa os episódios de ensino e as seqüências interativas tomando

como referência as interações discursivas e alguns elementos contextuais, como por exemplo, as

etapas das atividades desenvolvidas durante a aula. Elaboramos um mapa para cada aula que

incluía o tema, a fase da atividade, a ação e posição dos participantes, os recursos mobilizados e

os padrões de interação (No anexo VII apresentamos o mapa de uma aula analisada

correspondente a esta terceira leitura). Essa caracterização fazia emergir de forma mais clara

tanto os episódios de ensino quanto as seqüências que os constituíam. A construção desse mapa

permitiu a organização de um capítulo de resultados (Capítulo 6) que caracteriza a dinâmica

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pedagógica da sala de aula estudada, incluindo objetivos, formas de participação, padrões de

interação e abordagem comunicativa.

Isto permitiu a entrada em nossa segunda etapa de análise, que se refere à construção de

um sistema de categorias. Partimos, portanto, em busca das regularidades bem como das

especificidades e singularidades presentes no interior de cada episódio e seqüência interativa

delimitados na etapa anterior. Neste momento, é preciso ressaltar como o fazem Cordero et al.

(2002) que,

se por um lado as categorias “emergiram” progressivamente a partir das repetidas leituras dos dados, este “emergir” não se deu ao acaso mas orientado e conduzido pelas perguntas que se pretendia responder e, em última análise, pelos pressupostos teóricos que estavam na origem e na base das investigações (p.10).

Nesse caso, não podíamos perder de vista nossa questão de partida que se refere a uma

delimitação das práticas epistêmicas que acompanham a construção de conceitos científicos pelos

alunos. Dessa forma, as noções teóricas norteadoras para definição deste sistema de categorias

referem-se, basicamente, a “ação mediada”, “kit de ferramentas”, “aprendizagem situada”,

“práticas”, o que deve nos permitir caracterizar a sala de aula de Biologia como uma comunidade

de prática. Tendo, portanto, como referência estas noções teóricas apropriamo-nos ainda de

algumas famílias de codificação, propostas por Bogdan e Biklen (1994), que contribuem para o

desenvolvimento dessas categorias e que se referem a: códigos de contexto; códigos de

processos; códigos de atividade/ação; códigos de estratégias. Com este movimento foi possível

selecionar as seqüências a serem transcritas e analisadas e que são apresentadas no capítulo 7.

Entretanto, para a análise das aulas relativas à atividade de laboratório e à apresentação

dos trabalhos dos alunos, tivemos que realizar alguns ajustes metodológicos pois não era

possível, face à organização do trabalho pedagógico e à forma com que fora feita a captura das

imagens pela videogravação, delimitar com precisão episódios e seqüências interativas. Por isso,

ainda que tomando como referência as mesmas categorias apontadas anteriormente – fase da

atividade, objetivos, ações dos participantes - decidimos selecionar cenas/situações, em alguns

casos acompanhadas pelas falas dos participantes, que, ao nosso ver, evidenciam e ampliam os

movimentos dos alunos na construção de seus conhecimentos relativos a um tema específico.

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Esses resultados, acompanhados de alguns elementos analíticos, são apresentados

respectivamente nos capítulos 8 e 9 desse estudo.

Dada a natureza qualitativa de nosso estudo, a validação do sistema de categorias

elaborado no processo de análise constitui-se em uma etapa relevante pois permite a produção do

que Glaser & Strauss (apud HOPKINS; BOLLINGTON; HEWETT, 1989) denominam de

“grounded theory” (teoria enraizada), uma vez que o conhecimento construído está fundamentado

em dados que permitem inferências teóricas acerca de uma situação social específica.

No processo de validação, aproximamo-nos da técnica de triangulação dos dados quando

as categorias interpretativas elaboradas são cruzadas com as outras bases de dados de que

dispúnhamos, tais como os registros de campo realizados após cada videogravação e as

produções textuais escritas pelos alunos de cada atividade realizada. Além dessa articulação entre

dados obtidos a partir de diferentes instrumentos, a triangulação sugere o confronto entre

percepções de diferentes sujeitos acerca das análises produzidas no curso da investigação

buscando um relativo consenso das categorias estabelecidas. Atendendo a esta exigência, valemo-

nos, tanto no processo de coleta quanto de análise dos dados, de um observador crítico34 que

imprime um olhar diferente e talvez menos impregnado pela teoria que nos acompanha. A

comparação e mesmo negociação entre estas perspectivas diferenciadas é uma oportunidade para

testar e mesmo revisar/ajustar as categorias formuladas no processo de análise garantindo maior

segurança quanto a sua validade e legitimidade.

Em relação aos questionários:

A análise relativa ao questionário para levantamento das concepções dos alunos também é

acompanhada por um processo sucessivo de leituras que permitem uma apropriação progressiva

desses dados e subseqüentemente sua organização em um sistema de categorias.

Realizamos, inicialmente, uma primeira leitura que nos permite uma apreensão geral do

conteúdo das respostas dadas pelos alunos para cada questão. Uma segunda leitura é feita no

34 O observador crítico a quem nos referimos é um professor de Língua Estrangeira e que acompanhou todo o processo de coleta de dados relativo à videogravação e ainda as diferentes etapas do processo de leitura desse material.

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sentido de “codificar” o material. Neste momento, utilizamos as próprias palavras dos alunos e

aproveitamos para compreender a natureza das respostas dadas, ou seja, ir além do que está

explícito no escrito. Numa terceira leitura, definimos um sistema de categorias interpretativas

para cada pergunta, no qual as respostas dos alunos eram enquadradas. Portanto, tal como na

análise de dados videogravados, tais categorias emergem a partir da manipulação que vamos

realizando com o material empírico, ainda que sejam aqui norteadas não apenas pelos referenciais

teóricos que nos acompanham, mas igualmente pelo conhecimento que temos da turma, já que

ocupamos o lugar de professora, e durante a realização do projeto de ensino tivemos a

oportunidade de explorar mais cuidadosamente estas concepções que os alunos sustentam. Uma

terceira leitura, acompanhada de nosso observador crítico, é realizada a fim de validar este

sistema de categorias. Nesta etapa, algumas categorias são confirmadas enquanto outras

refutadas, uma vez que se mostravam irrelevantes quando situadas no quadro mais amplo da

investigação. Ao final, foi possível identificar quantitativamente a freqüência dessas categorias,

apresentadas junto com uma discussão desses resultados no capítulo 6.

4.8 A articulação entre teoria e empiria

Como assinalado por Lüdke e André (1986), a etapa de categorização não esgota o

processo de análise. É preciso transcender os dados buscando estabelecer articulações com outros

estudos a fim de que novas interpretações acerca do fenômeno estudado possam emergir.

Hopkins, Bollington e Hewett (1989) consideram que esta etapa envolve a construção de

significados relativos a um contexto específico, que conduzem os pesquisadores à última etapa do

processo de análise e que se refere à ação, justamente porque comprometida com a práxis. Isto

significa que, a partir desse conhecimento produzido, podem ser elaboradas sugestões ou planos

de intervenções futuras. Como dizem Lüdke e André (1986, p.49):

É preciso dar o “salto” , como se diz vulgarmente, acrescentar algo ao já conhecido. Esse acréscimo pode significar desde um conjunto de proposições bem concatenadas e relacionadas que configuram uma nova perspectiva teórica até o simples levantamento de novas questões e questionamentos que precisarão ser mais sistematicamente explorados em estudos futuros.

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Esta articulação progressiva entre teoria e empiria vai sendo delimitada no interior de cada

capítulo que apresenta os resultados desse estudo (capítulos 5, 6, 7, 8 e 9). Neste sentido,

realizamos uma opção por uma apresentação “em mosaico” dos resultados, isto é, focos

diferenciados de análise dos dados que, juntos, possibilitam uma visão dos processos de ensino-

aprendizagem de Biologia. Consideramos que esta forma de apresentar os resultados não é

simplista nem reducionista. Ao contrário, esta estratégia de análise e apresentação dos resultados

permite evidenciar facetas diversas e complementares, todas relevantes, do processo escolar. Esta

abordagem “multifocal” dos resultados é melhor sistematizada no capítulo de considerações

finais quando procuramos realizar o “salto” proposto por Lüdke e André (1986). Este salto

pretender evidenciar especificidades sobre a sala de aula de Biologia e também sobre processos

de construção de significados biológicos pelos alunos.

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5. O QUE SABEM E COMO SABEM OS ALUNOS QUANDO O TEMA ENVOLVE O DNA

Mas essa não era uma molécula qualquer: O DNA [...] contém a chave da natureza das coisas vivas, armazenando as informações hereditárias, que são passadas de uma geração a outra e orquestrando o mundo inacreditavelmente complexo da célula. Se decifrássemos sua estrutura tridimensional, a arquitetura da molécula, teríamos um vislumbre do que Crick [...] chamava de ‘o segredo da vida’.(WATSON, 2005, p. 11).

Neste capítulo, apresentamos os resultados obtidos a partir da análise do questionário

aplicado na turma estudada. Este questionário, como já mencionado anteriormente, objetivava

realizar um levantamento das concepções dos alunos em relação ao tema que seria abordado na

unidade de ensino. Considerando a perspectiva proposta por Delizoicov et al. (2003), decidimos

elaborar o questionário a partir de situações contextualizadas, significativas e atuais envolvendo

de maneira direta ou indireta as propriedades e funções da molécula de DNA para os seres vivos.

Organizamos estas análises a partir de cada questão formulada e procuramos, quando

possível, estabelecer relações entre as respostas dadas pelos alunos a fim de evidenciar possíveis

contradições ou coerências na forma de enfrentar cada situação.

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5.1 A relação núcleo e função

Em nossa primeira questão, adaptamos uma situação experimental realizada na década de

1930 a fim de evidenciarmos a relação que os alunos estabeleciam entre o núcleo celular e sua

função. O núcleo é a estrutura que contém todas as informações sobre o funcionamento e a

estrutura celular, isto porque comporta o DNA – material genético. Neste caso, o núcleo é

responsável não apenas pelo processo de reprodução da célula, mas igualmente pelo controle e

manutenção das atividades vitais celulares.

Em relação ao primeiro item, que solicita aos alunos prever um possível resultado para o

experimento, um percentual significativo, cerca de 75% das respostas na turma , considera que a

parte nucleada é capaz de sobreviver enquanto a parte anucleada acaba por degenerar. Apenas 1

aluno (que corresponde a 3%) da turma faz referência a um processo de formação de novas algas,

sem, no entanto, especificar qual dessas partes é responsável por tal fenômeno. Ainda 22% da

turma da turma não respondem a questão, mas não podemos afirmar se por questões conceituais

ou por não entenderem o enunciado proposto. A tabela 1a resume estes resultados:

Na década de 1930, um pesquisador alemão realizou um experimento com uma alga unicelular visível a olho nu chamada Acetabularia. Num primeiro momento, o cientista seccionou a célula da alga obtendo duas partes; uma que permaneceu com o núcleo da célula e outra que ficou anucleada. O esquema abaixo ilustra o experimento:

a. O que você espera que tenha acontecido com cada uma dessas partes da célula? b. Como você explicaria este resultado?

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Categorias Nº respostas Respostas (%) Nucleada sobrevive e anucleada degenera

24 75

Formam novas algas 01 03

Não respondeu 07 22

Total 32 100

Tabela 1a: O que acontece com as partes da célula seccionada?

A seguir pedimos aos alunos que elaborassem uma possível explicação para a ocorrência

do resultado por eles esperado. A maioria dos alunos da turma, aproximadamente 60%,

reconhece o núcleo como sendo uma estrutura vital para as células justamente porque comanda

suas atividades metabólicas. Vale destacar que as respostas formuladas por esses alunos são

bastante gerais e não identificam o elemento presente no núcleo que o torna uma estrutura

fundamental para o funcionamento celular. Algumas respostas abaixo ilustram essa categoria35:

“A parte anucleada morre, pois o núcleo é que comanda todas as

funções da célula. A parte nucleada se reconstitui”. (Suzane)36

“Porque o núcleo comanda todas as funções vitais da célula”. (Alex)

“Porque o núcleo é o comando da célula. Ele é responsável por tudo

que acontece na célula”. (Manuela)

Nossas análises evidenciam ainda que 3 respostas dadas pelos alunos da turma

consideram a existência do material genético – DNA - no núcleo para justificar sua importância

para a atividade celular. Além disso, alguns desses alunos fazem referência aos processos

35 Apresentamos as respostas dos alunos tais como aparecem nos questionários, sem revisão ortográfica. 36 Recebemos autorização dos pais dos alunos e da Coordenação do Ensino Médio do CEFET para publicar os nomes dos alunos neste trabalho. A autorização é apresentada no anexo VIII.

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relacionados com a reprodução/divisão celular decorrentes do controle nuclear como mostram as

respostas abaixo:

“O núcleo é a parte vital de uma célula, é nele que se concentra toda

sua parte genética”. (Camila Dias)

“Pois não tem núcleo, aí não haverá genes e reprodução”.37 (João)

“Através das informações genéticas, podem ocorrer novas divisões

celulares”. (Rafaela)

Aproximadamente 31% da turma não responderam a este item. Da mesma forma que

fizemos anteriormente, não podemos inferir se esse percentual, que consideramos expressivo,

justifica-se por ausência de elementos conceituais dos alunos relativos ao tema ou por

dificuldades no entendimento dos enunciados propostos. A tabela 1b resume os resultados

obtidos:

Categorias Nº respostas Respostas (%)

Núcleo/comando da atividade celular

19 60

Núcleo/material genético 03 09

Não respondeu 10 31 Total 32 100

Tabela 1b: Como você explicaria os resultados obtidos?

5.2 A relação radiação e atividade celular

Em nossa segunda questão apresentamos aos alunos um extrato de texto escrito por

Dobzansky ainda na década de 1960 quando já apontava para os problemas decorrentes da

37 Vale ressaltar que estamos nos referindo nesta atividade, particularmente, aos organismos eucariontes e, portanto, portadores de núcleo que encerra o material genético. Em relação aos procariontes ainda que não tenham um núcleo delimitado, são portadores de genes e de processos específicos para sua reprodução.

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radiação. Interessava-nos, particularmente, perceber se e como os alunos relacionavam possíveis

alterações na atividade celular ao efeito radioativo.

No texto, o autor considera os efeitos radioativos na linhagem de células somáticas e

germinativas em humanos. No primeiro caso, refere-se a problemas que qualifica como de

natureza fisiológica e que podem ser superficiais, como queimaduras, ou ainda mais maléficos

quando a radiação danifica o material genético da célula que perde o controle sobre o processo de

divisão celular passando a se dividir continuamente até a formação de tumores. De qualquer

forma, como a célula atingida é somática, a alteração celular encerra-se no indivíduo. No segundo

caso apontado, as células atingidas são as germinativas ou gaméticas cujas alterações genéticas e

possíveis mutações que delas decorrem podem ser transmitidas aos descendentes.

A análise das respostas formuladas pelos alunos revela que cerca de 62% estabelece uma

relação linear entre radiação e o surgimento de mutações gênicas. Esses alunos não especificam

que, para haver transmissão aos descendentes, a célula afetada deve pertencer a uma linhagem

germinativa uma vez que mutações gênicas decorrentes da radiação podem ocorrer em células

somáticas podendo levar inclusive ao aparecimento do câncer mas não são transmitidas aos

descendentes. Algumas respostas ajudam a evidenciar estes aspectos:

A seguir é apresentado o fragmento de um texto escrito por um cientista famoso há cerca de 40 anos:

“(...) As radiações de alta energia causam dois tipos de danos à matéria viva, um deles fisiológico e o outro genético. O primeiro se manifesta por queimaduras, um estado patológico e em seguida a morte logo depois da irradiação, ou ainda reações de longo prazo, do tipo de tumores malignos. O segundo dano consiste em mutações induzidas nos tecidos reprodutores e transmitidas à descendência. Qualquer que seja a gravidade do primeiro tipo de dano, ele se limita à geração atingida e desaparece com ela. O dano genético, por sua vez, pode continuar a causar prejuízos durante muitas gerações de indivíduos (...)”.

(Dobzansky, 1969 apud César & Sezar, 2006, p. 247).

a. Por que no segundo caso apontado pelo cientista os danos causados pela radiação podem se perpetuar por sucessivas gerações enquanto no primeiro se limita aos indivíduos que foram por ela atingidos?

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“Porque no 2º caso pertuba e distorce a genética do indivíduo e que

por conseqüência disso os descendentes desse indivíduo teram esse

mesmo dano genético, ao contrário do 1º que morre com o próprio

indivíduo”.(Gabriela)

“Porque no segundo caso, mexe com os genes, o DNA, que causa

mutações aos descendentes desse indivíduo. Enquanto no primeiro, o

dano causado é esterno, diretamente ao indivíduo que sofreu a ação

radiativa”. (Tatiane)

“Porque no segundo caso, as radiações modificaram a genética do

indivíduo; assim ele passará isso para seus descendentes (...)”.(Juliana)

“Porque neste caso acontece alterações genéticas que provocam mais

tarde danos a outros indivíduos pela hereditariedade.” (João)

Entretanto, cerca de 22% das respostas dos alunos da turma consideram que esta mutação

genética, para ser transmitida aos descendentes, deve necessariamente ter ocorrido em células

reprodutoras evidenciando concepções relativas ao mecanismo de reprodução sexuada nos

organismos multicelulares. As respostas abaixo ilustram esta categoria:

“Porque o primeiro tipo diferentemente do segundo não modifica o

DNA das células reprodutoras. Com o DNA das células reprodutoras

modificado isso irá passar para os descendentes do portador esse

tipo de mutação”. (Rafael)

“No segundo caso, a radiação atinge a parte genética causando dano.

Quando essa pessoa tem um filho, esse filho possui parte do código

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genético dessa pessoa que sofreu radiação. Isso porque os tecidos

reprodutores foram atingidos”.(Luige)

“Porque o segundo dano consiste em mutações no tecido reprodutor

do indivíduo”.(Maiara)

“Porque se uma célula reprodutora (óvulo, por exemplo) se ‘unir’ com

outra (espermatozóide), aquela vai começar a se dividir. Só que vai se

dividir uma célula mutante (não normal), formando um indivíduo com

erros...”. (Ronnie)

Apenas 1 aluna da turma faz referência a uma tendência da radiação em permanecer no

ambiente. Talvez, a aluna esteja se referindo aos efeitos de longo prazo em contrapartida àqueles

de curto prazo, já que estamos expostos à radiação constante emitida tanto por fontes naturais

quanto artificiais. Os danos causados dependem do tempo de exposição a que estamos sujeitos,

da intensidade dessa radiação e ainda da extensão do corpo que foi atingido. Particularmente em

relação à resposta da aluna, podemos supor que se refira ao efeito cumulativo da radiação, uma

vez que cada nova exposição acumula-se às exposições anteriores aumentando a probabilidade de

efeitos em longo prazo. Vejamos a resposta da aluna:

“Por que no primeiro caso a radiação atinge de uma vez só e na

segunda se prolonga passando de geração em geração porque a

radiação demora anos para ir embora”. (Letícia - Tel)

Apenas 04 alunos, o que corresponde a um percentual de 13%, não responderam a

questão. Também neste caso não podemos inferir com certeza se existem problemas conceituais

ou problemas relacionados à compreensão do enunciado da questão. A tabela 2 sintetiza os

resultados dessa questão:

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Categorias Nº respostas

Respostas (%)

Mutação gênica não transmitida 20 62

Afeta tecidos reprodutores e descendentes

07

22

Permanência da radiação no ambiente

01 03

Não respondeu 04 13

Total 32 100 Tabela 2: Os efeitos da radiação nas células

5.3 Clones: O que são? Como são produzidos?

A terceira questão procurava evidenciar as concepções dos alunos acerca de clones e

processos de clonagem, um tema que vem sendo significativamente veiculado pelos meios de

comunicação.

Neste caso, os alunos deveriam mobilizar conceitos em torno da reprodução sexuada e

assexuada que ocorre nos seres vivos, bem como do papel do DNA nesse processo. Os clones (do

grego klón=broto, ramo) são cópias genéticas idênticas de um indivíduo e podem ser produzidos

naturalmente a partir de mecanismos de reprodução assexuada. Um exemplo neste caso é o de

bactérias que ao se reproduzirem por divisão celular simples dão origem a uma população

formada por indivíduos geneticamente idênticos entre si. Podemos considerar ainda como

exemplo de clones os gêmeos idênticos (monozigóticos), originados de um único embrião que,

num certo momento do processo de desenvolvimento, separou-se em duas partes.

Entretanto, os clones que vêm despertando tanta atenção nos últimos tempos referem-se

aos de animais, principalmente de mamíferos. Neste processo laboratorial, é extraído o núcleo de

um óvulo de um organismo para que este seja fusionado a uma célula somática nucleada de um

segundo organismo que é, portanto, portadora de todo seu material genético. Em seguida, esta

célula proveniente da fusão sofre divisões, em meio de cultura, e resulta em um pequeno

embrião, que é implantado em um terceiro indivíduo que funciona como “mãe de aluguel”.

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Quanto à pergunta sobre o que são clones, um percentual expressivo de cerca de 84% das

respostas indicam tratar-se de organismos com material genético idêntico, como mostram os

exemplos a seguir:

“É copiado o DNA da pessoa e é passado para o óvulo”. (Thaiane)

“São seres que possuem o mesmo DNA de um ser já existente”.

(Larissa)

“Acho que é como se fosse ‘duplicar’ um DNA. Criar outro igual a um

que já existe”. (Luise)

1. A seguir é reproduzida uma charge do “The Times-Picayune” que satiriza os experimentos com clones de embriões humanos.

a. O que são clones? b. A clonagem é uma forma de reprodução que ocorre naturalmente em algum tipo de ser vivo?

Justifique. c. Como esse processo de clonagem se diferencia daquele naturalmente observado na reprodução

humana?

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“São seres criados geneticamente em laboratório a partir do DNA de

outro ser já existente”. (Isamar)

É preciso ressaltar que a expressão de um organismo é dada pela interação de seus genes

com o ambiente. Por isso mesmo, a visão mitificada e, por vezes, caricaturada dos clones como

uma legião de indivíduos não apenas geneticamente, mas fenotipicamente idênticos, como a

apresentada na charge que ilustra a questão, não se sustenta em uma perspectiva científica.

Entretanto, percebemos nas respostas acima que os alunos, ainda que reconheçam os clones como

cópias genéticas, parecem se referir a organismos obtidos exclusivamente a partir das pesquisas

que envolvem a manipulação genética. A tabela 3a sintetiza os resultados obtidos nessa questão.

TEL Categorias Nº

respostas Respostas (%)

Cópias de material genético de um ser

27 84

Cópias de seres 05 16 Total 32 100

Tabela 3a: O que são clones?

Apenas 16% da turma, o que corresponde às respostas de 05 alunos, consideram que

clones são cópias de outros seres vivos. Neste caso, não podemos afirmar se sustentam uma visão

mitificada como anteriormente apontada ou se apenas usam uma expressão geral e cotidiana –

cópias de outro organismo - para responderem a questão. Assim, não sabemos se esses alunos

reconhecem que a base para esse processo é a replicação de um mesmo material genético.

“São seres que possuem características idênticas a outros seres já

existentes.” (Suzane )

“São cópias humanas idênticas”. (Letícia)

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“São seres que tem características iguais”. (Douglas)

No entanto, vale destacar, como já apontado anteriormente, que, na análise dessa questão,

suspeitamos que os alunos estejam se referindo particularmente a clones humanos e a um

processo realizado exclusivamente em laboratório. Essas suspeitas parecem se confirmar

quando da análise do item seguinte que perguntava aos alunos se a clonagem ocorria

naturalmente em algum tipo de ser vivo. A tabela 3b apresenta os resultados desse item da

terceira questão.

Categorias Nº respostas Respostas (%)

Não Especificidade do DNA Técnica de laboratório Não justificado Ausência de fecundação

23 06 10 06 01

72 19 31 19 03

Sim Reprodução assexuada Não justificado

07 06 01

22 19 03 -

Não respondeu 02 06

Total 32 100 Tabela 3b: A clonagem é uma forma de reprodução natural?

A maioria das respostas apresentadas pelos alunos – cerca de 72% - indica que a

clonagem é um processo que não ocorre naturalmente entre os seres vivos. Em suas

justificativas, consideram a especificidade do DNA de cada indivíduo (19%); reafirmam a

clonagem como uma técnica de laboratório (31%); referem-se à ausência da fecundação (3%)

ou apenas não justificam suas respostas (19%).

Alguns aspectos podem ser destacados a partir desses resultados. Primeiro, que esses

alunos parecem focalizar em suas respostas a reprodução sexuada e, mais especificamente, a

reprodução sexuada em humanos que exige o encontro de duas células (fecundação) para que

esse processo ocorra. E ainda que a reprodução sexuada, além de promover maior variabilidade

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genética, confere aos indivíduos uma identidade genética que não se repete, com a exceção dos

gêmeos monozigóticos. Neste caso, considerando que os alunos estejam se referindo à

reprodução de seres humanos e não de seres vivos em geral, incluindo aqueles que realizam

reprodução assexuada, é possível entender a expressão significativa desta categoria que

considera que a clonagem não ocorre naturalmente. As respostas abaixo ajudam a ilustrar esta

categoria:

“Não. Os clones são produzidos em laboratório. (Thaiane)

“Não. Sendo a clonagem indivíduos com as mesmas informações

genéticas, nenhum ser vivo é capaz de reproduzir outro com as

mesmas informações genéticas”. (Rafaela)

“Não. Não existe a clonagem em nenhum animal pois nenhum se

produz igual ao outro.” (Catherine)

“Não, pois esta só pode ser feita em laboratórios especializados”.

(Maiara)

“Não, por não haver fecundação”. (Letícia)

Entretanto, aproximadamente 22% das respostas dadas pelos alunos da turma afirmam

que a clonagem é uma forma de reprodução que naturalmente ocorre entre os seres vivos. Neste

grupo estão incluídos aqueles alunos que se referem aos processos de reprodução assexuada que

ocorre em organismos unicelulares e de divisão celular por mitose quando, em ambos os casos,

são formadas duas células geneticamente idênticas à célula-mãe (19%). Entretanto, nenhum aluno

cita o caso dos gêmeos monozigóticos que são considerados clones, uma vez que possuem o

mesmo material genético em suas células. Os dados sugerem uma visão ampliada desses alunos

em torno do processo de clonagem pois, como já assinalado anteriormente, esta é uma forma de

reprodução assexuada que se realiza em alguns seres vivos sendo os descendentes geneticamente

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idênticos entre si, um aspecto que lhes confere pouca variabilidade genética. Vejamos algumas

respostas:

“Algo semelhante acontece com as amebas, pois duas amebas podem

ter o mesmo material genético”. (Luisa)

“Ocorre nas células. Elas se duplicam contendo o mesmo material

genético”. (Larissa)

“Sim, pois há microorganismos que, ao se reproduzirem

assexuadamente, criam organismos com DNA igual, o que é um tipo de

clone”. (Lenon)

“Sim. As células do corpo se multiplicam como se fossem clones”.

(Renata)

Apenas 1 aluno, apesar de ter considerado que a clonagem é uma forma de reprodução

que acontece entre alguns seres vivos, não justificou a sua resposta. Ainda dois alunos da turma

não responderam a este item.

Para finalizar a discussão em torno da clonagem, perguntamos aos alunos de que forma

esse processo se diferenciava daquele observado na espécie humana. Interessava-nos perceber se

os alunos mobilizariam conceitos de reprodução assexuada e sexuada e suas possíveis

implicações para as espécies. A tabela 3c sintetiza os resultados obtidos.

Categorias Nº respostas Respostas (%)

Variabilidade Genética 18 56

Natural x Artificial 02 06 Não respondeu 12 38 Total 32 100

Tabela 3c: Clonagem e a reprodução humana

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A análise desse item sugere que cerca de 56% das respostas apresentadas pelos alunos da

turma procuram diferenciar clonagem e reprodução humana a partir da maior ou menor

variabilidade genética que decorrem desses processos. A clonagem, sendo uma forma de

reprodução assexuada, inicia-se a partir de uma única célula conferindo aos indivíduos

produzidos uma mesma identidade genética. Já a reprodução humana, por ser sexuada, envolve o

encontro de duas células gaméticas produzindo maior variabilidade genética entre os organismos

o que, do ponto de vista adaptativo, é importante para a espécie.

“De forma que na reprodução natural humana há uma junção do gene

masculino com o gene feminino, diferente da clonagem que tem a

cópia, ou seja, o gene idêntico ao do outro ser”. (Camila Guimarães)

“Porque na reprodução humana, o ser que irá nascer, receberá os

genes do pai e da mãe, enquanto na reprodução por clonagem é uma

cópia”. (Gabriela)

“Na reprodução humana 1 ser é formado atravéis de 2 seres, já na

clonagem o ser é formado por 1 outro ser”. (Maiara)

Pois no processo de reprodução humana o DNA da mulher e do

homem, são ‘misturados’. Já a clonagem o DNA é copiado “. (Nathan)

Apenas duas respostas dadas pelos alunos, consideram que a clonagem é uma forma de

reprodução que se realiza exclusivamente em laboratórios sendo, portanto, qualificada como

“artificial” contrapondo-se à reprodução humana considerada “natural”. Esquecem esses alunos

que não apenas a clonagem é igualmente uma forma de reprodução que ocorre em algumas

espécies de seres vivos, tais como protozoários, como a reprodução humana que pressupõe o

encontro de gametas tem sido largamente realizada em laboratórios via processos de inseminação

artificial e fertilização in vitro.

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139

Entretanto, se a exemplo de outras questões, tomamos como referência que estes alunos

estão analisando especificamente a clonagem humana, poderíamos considerar que esta seria um

processo artificial de reprodução que só é possível a partir da manipulação de células somáticas

do indivíduo a ser clonado. Algumas respostas ajudam a ilustrar esta categoria.

“O processo é feito de maneira científica”. (João)

“A clonagem é feita em laboratório, com especialistas no assunto, que

fazem a cópia. Já no ser vivo ocorre a duplicação de todo o

organismo; o ser vivo formado sai de dentro de seu próprio corpo”.

(Luisa)

Talvez pela própria dificuldade do tema, um percentual significativo de alunos –

38% da turma – não respondeu a este item. Este percentual parece ser indicio do

desconhecimento dos alunos sobre o processo de clonagem.

5. 4 Síndrome de Down: elaborando possíveis explicações

Na quarta questão, apresentamos uma situação em que se confirma um diagnóstico de

síndrome de Down para que os alunos propusessem uma possível explicação a ser apresentada

aos pais da criança portadora de tal anomalia. A seguir apresentamos a questão.

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140

Ao propormos uma questão relativa à Síndrome de Down, procurávamos evidenciar os

conceitos de genes e cromossomos. Um gene refere-se a um trecho de DNA que codifica uma

determinada proteína e, portanto, uma característica do indivíduo, enquanto o cromossomo

corresponde a uma molécula de DNA associada a um tipo especial de proteínas chamadas

histonas. A partir dessa definição, é possível considerar a existência de pelo menos dois tipos de

mutação que afetam o material genético; as mutações denominadas de pontuais que ocorrem em

genes únicos e as mutações cromossômicas que podem atingir uma grande extensão do

cromossomo ou mesmo o cromossomo inteiro. Estas alterações cromossômicas podem ser

estruturais, quando modificam a seqüência de genes de um cromossomo, ou numéricas, quando

alteram o número de cromossomos. Os indivíduos portadores da Síndrome de Down possuem um

cromossomo a mais no par 21 denominada de trissomia do 21 decorrente de erros no processo de

disjunção dos cromossomos homólogos para formação dos gametas. A tabela 4 resume os

resultados apresentados para esta questão.

Categorias Nº respostas Respostas (%)

Alteração número de cromossomos

21 66

Anomalia genética 07 22 Problemas na gestação 01 03 Não respondeu 03 09 Total 32 100

Tabela 04: Explicando a Síndrome de Down

“Um casal tem um bebê que nasceu com características anômalas (...) a família é encaminhada a um centro de genética médica. Nesse centro, a criança é novamente examinada e os sinais encontrados (hipotonia muscular, face achatada, fissuras palpebrais oblíquas com ângulos externos elevados, pele abundante no pescoço, prega palmar transversa única e orelha de baixa implantação) sugerem como diagnóstico a síndrome de Down (...). Novos exames são realizados e é confirmado o diagnóstico da síndrome de Down.

(In: Krasilchik, 2004, p. 114)

a. Como você explicaria ao casal a manifestação da síndrome de Down?

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A síndrome de Down é um tema que vem sendo amplamente abordado pelos veículos de

comunicação, particularmente em tempos de práticas inclusivas. Talvez por isso mesmo, a

maioria das respostas dos alunos – cerca de 66% – reconhece a sua manifestação como uma

alteração do número de cromossomos próprio da espécie humana. Entretanto, esses alunos não

fazem referência aos processos envolvidos nesta alteração. Isto ao nosso ver é compreensível pois

trata-se de um aspecto a ser discutido, posteriormente, na unidade de ensino relativa à divisão

celular . As respostas dos alunos ilustram esses aspectos:

“É um erro na divisão do cromossomo 22, ao invés dele ser dividido em

dois, se torna 3. Isso acarreta alterações no material genético”.

(Letícia)

“A Síndrome de Down é feita de um erro genético na reprodução.

Uma pessoa normal recebe 23 cromossomos do pai e 23 cromossomos

da mãe e por alguma razão a pessoa recebe um cromossomo a mais,

tendo então 47 cromossomos causando a síndome de Down”. (Rafael)

“Cada ser humano tem 23 pares de cromossomos no DNA. Os seres

que nascem com síndrome de Down também tem 23 pares, só que um

desses 23 não é um par e sim um trio”. (Catherine)

“Acontece quando há uma duplicação no cromossomo 21, e

sucessivamente, uma série de alterações na estrutura física do

indivíduo”. (Alex)

Cerca de 22% das respostas dadas pelos alunos consideram que a síndrome de Down é

uma anomalia genética não especificando de que natureza. Como este é um termo geral, que se

refere tanto às alterações apenas em genes quanto em cromossomos, não podemos afirmar se e

como o aluno percebe a distinção entre mutações genéticas e alterações cromossomiais.

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“Trata-se de um acidente genético que pode ocorrer com qualquer ser

humano independentemente das características genéticas peculiares

apresentadas pelo mesmo”. (Lorena)

“Houve uma modificação genética no bebê que eu não sei como nem

porque”. (Camila Dias)

Neste grupo, vale destacar a resposta de uma aluna que, manifestando dúvidas na

explicação que deveria apresentar sobre a Síndrome de Down, considera ser mais oportuno dispor

de uma argumentação mais religiosa pois a considera mais aceitável e compreensível do que a

médica:

“Não sei, acho que falaria de falha genética, incompatibilidade de

genes dos pais, sei lá, mas sinceramente como não saberia como

explicar diria que era o que Deus queria e pronto (afinal ninguém vai

poder reclamar, quem sabe é Deus) O jeito mais fácil de explicar uma

coisa que você não sabe é culpar Deus (...)” (Débora)

Ainda uma aluna da turma faz referência a problemas na gestação. De fato algumas

substâncias químicas, radiações e patógenos podem provocar alterações no material genético do

embrião que está em desenvolvimento, não sendo este o caso da Síndrome de Down, pois a

alteração no número de cromossomos é decorrente de uma não disjunção do par de cromossomos

homológos ainda na divisão celular – meiose - para formação dos gametas.

Apenas 3 alunos da turma (cerca de 9%) não responderam à questão e este percentual

baixo talvez possa ser explicado a partir da publicização das discussões que vem sendo realizadas

em torno dos portadores da síndrome de Down.

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143

5. 5 Sobre os organismos geneticamente modificados

Nos últimos tempos, temos assistido a debates e discussões que envolvem a liberação ou

não do cultivo e consumo de alimentos transgênicos. Por essa razão, considerávamos oportuno

formular uma questão que se propusesse sondar qual o entendimento dos alunos acerca de

organismos transgênicos ou geneticamente manipulados (OGM). Para isto contextualizamos a

temática a partir de uma notícia relativa a produção de um organismo transgênico.

Atualmente, algumas técnicas de engenharia genética já permitem que genes sejam

transferidos de uma espécie para outra. Um exemplo seria a introdução de um gene da espécie

humana em uma bactéria que, ao se multiplicar, originaria uma população de bactérias portadoras

do gene humano. Desta forma, organismos que recebem e incorporam genes de outra espécie,

podendo transmiti-los aos seus descendentes, são chamados transgênicos. A tabela 5 apresenta

esses resultados.

Categorias Nº respostas Respostas (%)

Organismos com material genético modificado em laboratório

17 54

Organismos com material genético modificado

09 28

Organismos com DNA de outra espécie

03 09

Não respondeu 03 09

Total 32 100 Tabela 05: Os organismos geneticamente modificados

“Em 11 de janeiro de 2001, cientistas norte-americanos do Centro Regional de Pesquisa sobre Primatas de Oregon, nos Estados Unidos, anunciaram ao mundo a produção do primeiro primata transgênico, um robusto e brincalhão filhote de macaco Rhesus, que recebeu o nome de ANDI (...)”. (In: Paulino, 2004, p. 104)

a. Hoje em dia é comum ouvirmos falar de seres transgênicos, como é o caso da

soja e que ganha espaço na mídia quanto à sua comercialização e consumo pelos humanos. O que são organismos transgênicos? Como são obtidos?

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144

A análise da questão revelou uma certa fragilidade nas concepções dos alunos ainda que,

de um modo geral, todas as respostas tenham evidenciado de alguma forma a manipulação no

material genético dos organismos transgênicos.

Percebemos que a maioria das respostas dos alunos – cerca de 54% da turma – considera

que os organismos transgênicos são aqueles que têm, de alguma forma, seu material genético – a

molécula de DNA - alterado através de técnicas específicas realizadas em laboratórios no sentido

de se produzir melhoramentos na espécie. Entretanto, essas respostas não especificam que forma

de alteração é processada. Neste caso, podemos tecer dois comentários: o primeiro é que esses

alunos talvez reconheçam a impossibilidade de cruzamento e, portanto, mistura de genes entre

espécies diferentes na natureza e, por isso, a obtenção de organismos transgênicos deva ocorrer

exclusivamente em laboratórios; o segundo é que consideram que qualquer organismo que tenha

sofrido alguma forma de intervenção no seu material genético através de técnicas laboratoriais

seja qualificado como transgênico. Vale destacar que as respostas dos alunos ressaltam a

possibilidade de melhoramento das espécies. As respostas a seguir evidenciam este aspecto:

“Organismos transgênicos são aqueles que tem seu DNA alterado a

fim de apresentar melhor desempenho.” (Nathan)

“São organismos onde são mudados a genética do DNA desses

organismos para eles nascerem diferentes. São criados em

laboratórios e depois enviados a lavoura.” (Catherine)

“São organismos geneticamente modificados. Os cientistas pegam, no

caso dos vegetais, a semente, e fazem variações no DNA das células

que a compõe”. (Ronnie)

Cerca de 28% das respostas apresentadas fazem referência exclusivamente a uma

alteração no material genético. Como comentado anteriormente, não podemos inferir com

segurança se esses alunos assumem que qualquer forma de mutação qualifique um organismo

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como geneticamente modificado ou ainda que o surgimento desse organismo possa acontecer

como um processo evolutivo natural. Vejamos alguns exemplos deste segundo grupo de

respostas:

“São organismos acostumados com um determinado ambiente e sofre

uma ‘mutação’ em seu gene.” (Suzane)

“Que são modificados geneticamente. Modificando diretamente no

DNA.” (Thaiane)

Somente três alunos da turma (cerca de 9%) sugerem em suas respostas que os

organismos transgênicos são aqueles que têm incorporados em seu material genético DNA ou

mais especificamente trechos de DNA de uma outra espécie, como mostram as respostas:

“São obtidos através da adição de DNA de outras espécies”. (Débora)

“São organismos mudados geneticamente. São obtidos através de

trocas no DNA”. (Suzane)

Apenas três alunos da turma não responderam a questão.

5.6 Sistematizando a análise dos questionários:

Desta análise das concepções dos alunos, alguns aspectos podem ser considerados. O

primeiro refere-se à coerência do conhecimento biológico dos alunos, especialmente à noção

adequada dos alunos sobre a relação que estabelecem entre núcleo e sua função. Para a maioria

dos alunos, o núcleo possui todas as informações sobre o funcionamento e a manutenção da

célula e, eventualmente, do próprio organismo no caso dos unicelulares. Relacionam, ainda, a

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146

estrutura nuclear à capacidade da célula de se dividir garantindo, por isso mesmo, a

existência/sobrevivência da espécie ou do organismo. Alguns alunos reconhecem que é no núcleo

celular que se concentra o material genético (DNA), molécula responsável pelo armazenamento

de todas as informações para a manutenção e funcionamento celular. Alterações neste material

genético acabam por afetar as gerações futuras já que, no processo reprodutivo, este material é

transmitido aos descendentes e este é um entendimento que aparece nas respostas apresentadas

pelos alunos na segunda questão.

Sobre a clonagem, a maioria entende tratar-se de cópias de material genético e não de

indivíduos. Esta concepção dos alunos é importante tendo em vista que a expressão de um

organismo é dada pela interação de seus genes com o ambiente o que rompe, de certa forma, com

uma visão mitificada e caricaturada de clones como uma legião de indivíduos não apenas

geneticamente, mas fenotipicamente idênticos. Entretanto, um número expressivo de alunos não

reconhece a clonagem como sendo um processo de reprodução que ocorre naturalmente em certas

espécies. Para justificar suas respostas, argumentam que o DNA é uma molécula específica para

cada indivíduo, que a clonagem é um evento artificial realizado em laboratório, ou ainda, que a

reprodução envolve necessariamente a fecundação. Em todos os casos, a leitura que os alunos

realizam parece se referir à clonagem na espécie humana e, portanto, à reprodução sexuada. Esta

nossa interpretação é confirmada quando encontramos que, para os alunos, a clonagem se

diferencia da reprodução humana justamente porque envolve a manipulação de material genético

de uma única célula quando a ordem natural é o encontro de duas células, o que garante

variabilidade e especificidade deste material genético. Outro grupo significativo de alunos

considera a clonagem e a reprodução humana respectivamente como processo artificial e natural.

Esta visão dos alunos sugere, de inicio, uma tentativa de integrar aqueles conceitos que possuem

e que estão mais próximos dos sistemas científicos a informações e formas de dizer, que são

veiculadas por diferentes meios de divulgação e não têm um caráter científico.

Em relação à síndrome de Down, a maioria dos alunos da turma reconhece a manifestação

dessa síndrome como uma alteração do número de cromossomos próprio da espécie humana

(aneuplodia). Entretanto, não explicam como esta alteração numérica se processa. Isto é

compreensível pois os processos de divisão celular – mitose e meiose – são tratados em uma

unidade posterior. Outros alunos falam da síndrome de Down como uma anomalia genética, o

que pode significar que se referem à alterações em apenas trechos do DNA da criança.

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Sobre os organismos transgênicos, um número expressivo de alunos considera que se trata

daqueles que sofreram algum tipo de alteração em seu material genético. Neste caso, parecem

sugerir que qualquer mutação genética, inclusive aquelas decorrentes de radiação e substâncias

químicas, induzem à produção de organismos transgênicos. Organismos geneticamente

modificados são aqueles que recebem e incorporam genes (trechos de DNA que codificam uma

proteína e, portanto, uma característica) de outra espécie, podendo transmiti-lo a seus

descendentes, mas apenas 03 alunos se aproximam desta definição. Outros referem-se ao

processo de produção desses organismos como sendo artificial, o que é correto pois trata-se de

uma técnica desenvolvida pela engenharia genética, que permite selecionar e transferir genes de

interesse de uma espécie para outra.

Este mapeamento, que se situa em um plano de análise conceitual, sugere a necessidade

de intervenções e orientações seguras no curso do desenvolvimento das atividades a fim de

encaminhar ampliações e re-elaborações das concepções pelos alunos. É preciso reconhecer que

estas concepções se entrecruzam com aspectos de ordem ética, social e cultural que precisam ser

consideradas. Vivenciamos uma larga produção do conhecimento científico na área da

Engenharia Genética que encontra rápida, fácil e, às vezes, distorcida, divulgação pelos meios de

comunicação. Por isso mesmo, é papel da escola promover a construção de um conhecimento

mais seguro, que permita aos alunos o posicionamento e a tomada de decisões frente a essas

novas questões que vão surgindo. É neste sentido que consideramos a organização de nossa

proposta de trabalho dentro de uma perspectiva situada, justamente porque permite trazer estas

temáticas para a sala de aula enfrentando-as não apenas no seu domínio conceitual mas também

em suas implicações éticas e sociais.

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6 SALA DE AULA DE BIOLOGIA: ESPAÇO DE INTERLOCUÇÃO E DINÂMICA

PEDAGÓGICA

Quando entro em uma sala de aula devo estar sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos [...] (Paulo Freire, 1997, p.52).

Neste capítulo, oferecemos ao leitor uma visão panorâmica do contexto da sala de aula

investigada e procuramos definir objetivos, temáticas e a dinâmica geral das interações que ali se

estabelecem. Para esta contextualização, valemo-nos especificamente de categorias apresentadas

por Mortimer et al. (2007) e Mortimer e Scott (2002) como posição e ação dos sujeitos –

professora e alunos - na sala de aula, o conteúdo do discurso do professor, os padrões interativos

e a abordagem comunicativa. Optamos por apresentar cada uma das aulas que organizam esta

unidade de ensino.

Vale dizer que o uso dessas categorias para a etapa inicial do processo de análise nos

possibilita uma re-construção, ainda que parcial, da dinâmica da unidade de ensino, conferindo

sentido aos eventos que ali se estabelecem. Esta primeira aproximação aos dados nos permite

situar, posteriormente, as seqüências interativas selecionadas para análise, que são apresentadas

no capítulo 7. O quadro abaixo oferece ao leitor uma visão panorâmica que o ajuda a se situar na

discussão apresentando os conteúdos, o número de episódios bem como o número de seqüências

interativas identificadas no interior de cada episódio de ensino.

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DATA AULA CONTEÚDO/ATIVIDADE EPISÓDIOS TOTAL DE SEQÜÊNCIAS INTERATIVAS

Episódio 1: Simulando uma situação experimental.

05

Episódio 2: Os componentes do núcleo –tecendo relações entre estrutura e função.

13

17/8/06 01 Reprodução no nível molecular: o núcleo sua estrutura e funções.

Episódio 3: A estrutura do DNA.

10

Episódio 1: Organização das atividades. 01

Episódio 2: Dolly: clone e clonagem. 09

24/8/06 02 Molécula de DNA: onde a vida começa.

Episódio 3: Extraindo DNA. 19 Episódio 1: Leitura dos relatórios. 01

Episódio 2: Por que todas as células de um organismo contém todas as informações sobre esse organismo?

02

Episódio 3: O processo de autoduplicação é semi-conservativo.

03

Episódio 4: Diversidade de questões. 05

31/8/06 03 Resgatando a estrutura de DNA e seu processo de autoduplicação.

Episódio 5: Relacionando a auto-duplicação do DNA e o processo de clonagem.

02

Episódio 1: Revendo conceitos. 01

Episódio 2: Sobre a construção de idiogramas: cariótipo e cromossomos homólogos.

05

Episódio 3: Construindo idiogramas e diagnosticando síndromes.

10

14/9/06 04 Trabalhando com o cariótipo humano: o aconselhamento genético

Episódio 4: Socializando os diagnósticos: anomalias cromossomiais.

06

Episódio 1: Revisão de conceitos. 01

Episódio 2: Como o gene se expressa? 06

21/09/06 05 Ácidos Nucléicos e o código da vida: a síntese de proteínas

Episódio 3: Simulando a síntese de proteínas – construção de modelo.

07

05/10/06 05 Clonagem, células-tronco e organismos transgênicos: aprofundando a discussão.

No processo analítico não foram mapeados episódios para esta aula

_

Quadro 3: Sumário das atividades – uma primeira aproximação aos dados.

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150

Nesta primeira aproximação ao contexto investigado, podemos dizer que vários elementos

entram em jogo na organização da dinâmica pedagógica observada nesta sala de aula: as

determinações curriculares; a concepção da professora do que seja ciência e, conseqüentemente,

de ensinar e aprender ciência; as estratégias, recursos e tempo disponíveis disponibilizados; o

perfil da turma; o tema que está sendo tratado, bem como o fato de ser um espaço-tempo de aulas

de Biologia. Todos esses aspectos são, portanto, condições de produção do discurso.

Especificamente, os condicionantes pedagógicos orientam mas não determinam o “que vai ser

dito” e, principalmente, “como vai ser dito” pois é no contexto das interações e a partir da cadeia

contínua de enunciados que, como nos diz Bakhtin (1992), de certa forma se delimita e ou

possibilita o fluxo/construção de determinados significados e conceitos.

6.1 A primeira aula: o núcleo celular sua estrutura e funções

A primeira aula desta unidade de ensino é organizada em dois momentos distintos: um

primeiro relativo ao levantamento das concepções prévias, que durou aproximadamente

cinqüenta minutos; e um segundo momento, quando se iniciou a aula propriamente dita.

Este segundo momento teve como objetivo introduzir conceitos acerca do núcleo celular e

suas funções. Para encaminhar seu objetivo, a professora procurou, inicialmente, mapear as

principais funções da célula para depois relacioná-las com os componentes que constituem a

estrutura nuclear. Por isso, a professora38 resgata uma situação experimental apresentada no

questionário das concepções prévias e que, a seu ver, encaminha uma forma biológica de pensar e

falar dos fenômenos à medida que os alunos precisam prever e explicar resultados.

Ainda que os conceitos a serem abordados estejam bem definidos, é no curso das

interações, quando se alternam movimentos de negociação e fixação, que significados vão sendo

construídos, relações vão sendo estabelecidas, dúvidas vão sendo incorporadas, novas

problematizações vão sendo formuladas. Essas são evidências que sugerem processos de

aprendizagem, de incorporação e elaboração de novos significados.

38 O leitor vai perceber que ao longo dos capítulos de análise nos referimos sempre à “professora” ainda que tenhamos ocupado simultâneamente este lugar de professora e também de pesquisadora. Decidimos preservar esta referência, pois acreditamos ter sido este um efeito do distanciamento realizado no processo de análise dos dados.

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151

Esta parte da aula é organizada em três episódios definidos a partir de algumas marcas

textuais e contextuais relacionadas à orientação entre os participantes, a mudanças de temáticas e

de entonação que, por vezes, coincidem com as diferentes etapas da atividade planejada. Estes

episódios geram vinte e oito seqüências interativas. Nessas seqüências, a posição da professora se

alterna entre frontal e de deslocamento. Particularmente na posição frontal, a professora se dirige

a todo o grupo e freqüentemente realiza registros no quadro de giz. Desta forma, constrói com os

alunos uma memória coletiva e, ao mesmo tempo, seleciona e controla significados que se

desejam compartilhados ao mesmo tempo em que outros parecem ser silenciados no curso das

interações (MACHADO, 1999). Talvez conscientes dessa prática escolar conduzida pela

professora, os alunos fazem registros e copiam em seus cadernos o que é disponibilizado no

quadro. Quando em posição de deslocamento, a professora procura se aproximar de alunos que se

situam espacialmente mais distantes na organização da sala de aula, procurando incorporá-los à

dinâmica da aula.

Em relação ao conteúdo do discurso da professora, observamos que na maior parte das

seqüências delimitadas há predomínio de um discurso de natureza conceitual. Assim ocupa-se,

principalmente, em introduzir novos conceitos e também resgatar outros previamente construídos

com os alunos. Há, no entanto, momentos em que o discurso da professora está relacionado à

gestão da sala de aula. Como se trata de uma turma participativa, muitos alunos falam ao mesmo

tempo, por isso mesmo há que se solicitar certa organização para realização do trabalho. Neste

caso, não se trata de silenciar os alunos mas sim de criar uma atmosfera onde todos possam se

expressar como membros de uma comunidade e, assim, posicionando-se como colaboradores da

construção de um projeto coletivo onde cada um é responsável por si próprio mas também pelo

outro (ENGLE; CONANT, 2002).

Ainda que a turma seja participativa, há aqueles alunos que se destacam em suas falas.

Perguntam, estabelecem articulações, apresentam contra exemplos, elaboram explicações,

movimentos que fazem revelar em um plano interpessoal tentativas explícitas de um processo de

significação. Esses alunos, como interlocutores privilegiados, têm uma participação decisiva nas

interações que vão sendo tecidas e contribuem para a construção de um texto coletivo. Nesta aula,

sete alunos se manifestam e suas falas representam enunciados completos e elaborados. Engle e

Conant (2002) consideram que este nível de participação está diretamente relacionado à temática

e também a dinâmica da atividade proposta para a turma.

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A alternância entre as falas dos alunos e a fala do professor pode ser caracterizada em

termos de padrões de interação. Esses padrões revelam, de certa forma, as intenções do professor

de avaliar o que é dito pelo(s) aluno(s) e, portanto, fixar significados ou ainda em alimentar um

fluxo de discussão da qual possa emergir a construção de novos significados. Neste sentido a

caracterização desses padrões interativos possibilitam uma caracterização do gênero de discurso,

em termos bakhtinianos, da sala de aula de ciências (MORTIMER et al., 2007)

Sobre esses padrões de interação, consideramos que, por se tratar de uma aula expositiva,

cuja finalidade principal é a de fixar alguns conceitos, há uma predominância dos tipos triádicos

(I – R – A) quando a uma iniciação da professora, segue-se uma resposta do aluno e enfim a

avaliação da professora. Observamos também cadeias longas e fechadas (I – A – P – A- A – P).

Neste tipo de interação, a professora inicia uma seqüência que é seguida por uma alternância de

turnos entre professora e alunos quando se procura ampliar, aprofundar, redefinir significados.

Neste momento, a professora geralmente dá suporte aos alunos para que possam explicar melhor

suas idéias, resgatar conceitos anteriormente construídos e relacioná-los com aqueles que estão

em jogo no contexto atual, caracterizando, via de regra, um discurso que busca gerar novos

significados. Há maior interanimação de vozes caracterizando o discurso internamente persuasivo

em termos bakhtinianos onde:

[...] sua criatividade e produtividade consistem precisamente em que tais

palavras despertam palavras novas e independentes, organizam o conjunto de nossas palavras interiores, e não permanecem em condição estática e isolada [...] A estrutura semântica de um discurso internamente persuasivo não é finita, é aberta; em cada um dos contextos que dialogiza, este discurso pode revelar novas formas de significar. (BAKHTIN, 198139 apud WERTSCH, 1993, p. 99).

No entanto, como estamos em uma sala de aula de Biologia e há significados que se

precisa privilegiar, observamos que ao final dessas cadeias interativas, existe uma preocupação

da professora em retomar as falas dos alunos, reorganizando-as e devolvendo-as com o objetivo

de fixar significados.

Entretanto, em alguns poucos momentos, percebemos que estas cadeias não são

encerradas com a síntese da professora; ao contrário, permanecem em suspenso como se não

fosse possível chegar a uma conclusão definitiva. Essas cadeias geralmente se organizam quando

39 BAKHTIN, M.M. (1981). The dialogical imagination (M. Holquist, Ed.). Austin: University of Texas Press.

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uma questão que ainda não está totalmente elucidada pela ciência é abordada, como é o caso do

DNA-lixo e da comparação dos genomas humanos com os de outros animais menos complexos,

como encontramos nas seqüências 7 e 8 do episódio 4. Ou ainda, quando os alunos se posicionam

frente a algumas questões de natureza ética. Quando as cadeias se caracterizam como abertas,

percebemos um maior engajamento dos alunos, evidenciado pelo número de participantes e pela

complexidade dos enunciados que são elaborados.

A iniciação usada na construção e definição desses padrões interativos também pode ser

categorizada segundo as finalidades que assumem no curso da interação. Assim, Mortimer et al.

(2007) identificam pelo menos quatro tipos de iniciação: a) de escolha que demanda um

posicionamento entre duas alternativas possíveis; b) de produto que solicita uma resposta factual;

c) de processo que requer alguma forma de explicação ou interpretação para uma determinada

situação e d) de metaprocesso que mobiliza processos reflexivos sobre as relações que se

estabelecem.

Em relação ao tipo de iniciação, observamos que há uma predominância de iniciação de

produto e de processo. De forma recorrente, tanto professor quanto alunos utilizam a iniciação de

produto quando há uma intenção de resgatar conceitos. Por exemplo, na seqüência 4 do episódio

2, a professora pergunta: “O que falta ao núcleo para que ele seja um núcleo?”, desejando ter

como resposta dos alunos apenas o nome de uma estrutura, que se refere aos “ácidos nucléicos”.

Já a iniciação de processo envolve articulação de conceitos, problematizações e explicações de

fatos e fenômenos. Isto ocorre na seqüência 3 do episódio 1 quando os alunos são questionados

pela professora sobre a importância do DNA: “Por que o DNA é tão importante?”. Nestes casos,

percebemos que a interação está voltada para processos de negociação de significados e elicitação

de idéias dos alunos. Apenas uma vez, em toda a aula, observamos uma única iniciação que pode

ser qualificada como de metaprocesso e ocorre quando os sujeitos realizam uma reflexão acerca

da linguagem científica, mais precisamente biológica, que tem se popularizado a partir da sua

apropriação e recontextualização na área da informática.

Neste contexto, assistimos aos alunos buscarem seus espaços de participação levantando

insistentemente as mãos para pedir a palavra. Não são meros espectadores. Por isso mesmo,

verificamos que algumas seqüências se organizam a partir dos alunos, quando formulam

enunciados que geralmente se iniciam com a seguinte expressão: “Mas professora, por que

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então...?”. Aparentemente procuram, de certa forma, “subverter” uma ordem pressuposta e

encaminhar a aula para questões que lhes pareçam mais interessantes. Nestes casos parecem

querer se filiar a uma construção na qual atuem como co-autores, o que a nosso ver revela

movimentos que procuram produzir novos significados à medida que evidenciam relações entre

conceitos, ou entre conceitos e uma situação vivida e percebida em seu cotidiano. Talvez como

Morato (1996, p. 100), possamos assumir que:

[...] é da fala para o outro que emerge a fala para si, é da

organização/regulação interpessoal que emerge a organização intrapessoal. A mediação é, portanto, condição e interpretação da vida mental dos indivíduos, desde que, para Vygotsky, a linguagem natural é polissêmica, sendo o contexto e as relações intersubjetivas condições absolutamente indispensáveis para que os processos cognitivos sejam relacionados aos fatos da linguagem.

Analisando seqüências discursivas, Mortimer et al. (2007) consideram que estas possam

ser produzidas com a participação de vários sujeitos sendo, portanto, interativas ou ainda com a

participação de uma única pessoa, sendo então não-interativas. Dessas vinte e oito seqüências,

dezenove são totalmente interativas, três não interativas e seis podem ser qualificadas como de

natureza híbrida pois alternam momentos que envolvem a participação de várias pessoas com

momentos em que apenas uma pessoa participa. Percebemos que, nesta última, há uma

predominância da fala da professora, quando procura situar elementos conceituais para, em

seguida, promover uma abertura que solicita a participação dos alunos quando pretende

gerar/negociar significados; ou ainda, quando realiza sínteses mais longas ao final de uma

seqüência com o intuito de fixar novos significados que foram sendo produzidos ao longo da

seqüência. Um exemplo para ilustrar este aspecto é encontrado na seqüência 2 do terceiro

episódio quando a professora, e somente ela, apresenta inicialmente as definições de

“heterocromatina” e “eucromatina”40. Como percebe que para os alunos não está clara a

distinção, tanto estrutural como funcional, destes elementos, solicita aos alunos que consultem o

40 A heterocromatina corresponde a regiões em que a cromatina se apresenta mais densa e a eucromatina a regiões em que a cromatina se apresenta menos densa. Esta organização promove o menor ou maior contato dos genes que se localizam nestas regiões com o material necessário à síntese de proteínas. Assim se supõe que os genes localizados na heterocromatina não sejam ativados enquanto os localizados na eucromatina possam se manifestar. As regiões de heterocromatina e eucromatina não coincidem em todas as células, o que parece explicar a existência de células com características e funções diversas que constituem os diferentes tecidos e órgãos.

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livro e que proponham possíveis explicações para esta diferença na forma de organização da

cromatina.

Esta noção de seqüência interativa e não-interativa é integrada por Mortimer et al. (2007)

e Mortimer e Scott (2002) à noção de abordagem comunicativa, por sua vez, relacionada aos

discursos de autoridade e internamente persuasivo, ou dialógico, propostos por Bakhtin. Os

discursos de autoridade, como já dito no capítulo 2, referem-se àqueles que se valem de uma

única perspectiva ou ponto de vista, em nosso caso o científico enquanto o dialógico acolhe e faz

transitar um fluxo de diferentes significados revelando a natureza polissêmica da palavra. A

alternância entre essas duas formas de discurso – de autoridade e dialógico - parece organizar um

contexto onde os significados já construídos pelos alunos se põem em contato com aqueles que se

pretende ensinar ou construir.

Na dinâmica desta aula, em que se alternam momentos de maior e menor nível de

participação dos sujeitos, a abordagem comunicativa parece situar-se em um contínuo entre

discurso de autoridade e dialógico, como sinalizado por Mortimer e Scott (2002). No entanto,

considerando os objetivos da aula, bem como seus conteúdos temáticos e a posição que os

sujeitos vão assumindo no curso da interlocução, a abordagem parece assumir uma tendência

predominantemente de autoridade. Esta é uma sala de aula de Biologia e fala-se, ou pelo menos

procura-se falar, a partir de uma perspectiva única que é a científica pois, como sinalizado por

Bakhtin (1992), as condições de produção do discurso determinam a estrutura da enunciação. De

qualquer forma, notamos que os sujeitos, particularmente os alunos, transitam entre a perspectiva

científica e suas próprias perspectivas, confrontando-as, problematizando-as, retomando-as e re-

significando-as. Estes são movimentos que ganham visibilidade a partir das diferentes vozes que

se expressam nesta sala de aula, caracterizando-a como uma comunidade cujos membros tendem

a assumir objetivos compartilhados, garantindo um percurso que parece favorecer a construção de

processos de significação e, portanto, de aprendizagem em um domínio específico que é a

Biologia.

6.2 A segunda aula: a molécula de DNA - onde a vida começa?

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Duas atividades em grupo foram planejadas para está aula: a discussão de um texto sobre

clones e clonagem e a realização de atividade prática para extração do DNA. Cada atividade dura

em média cinqüenta minutos e se realiza em espaços distintos: a discussão do texto na sala de

aula e a atividade prática no laboratório.

O objetivo da primeira atividade é situar a temática desta unidade de ensino em discussões

mais amplas e recorrentes no contexto atual sobre clones e técnicas de clonagem. O texto aborda

elementos conceituais significativos tais como: definição e exemplos de clones, processo de

diferenciação celular na ontogênese, técnica de clonagem e resgate histórico das técnicas de

clonagem, e é acompanhado de três questões que orientam a leitura e a discussão. Na

atividade de laboratório41, os alunos deveriam extrair o DNA de células da cebola ou do morango

a fim de tornarem visíveis os filamentos de DNA. Desta forma, a atividade se propunha integrar

as dimensões conceitual e processual inerentes à ciência, mas também ao ensinar e aprender

ciência.

No mapeamento da discussão do texto, consideramos apenas as interações que se

organizam no interior do grupo que está sendo filmado. Já na atividade laboratorial,

acompanhamos vários grupos na realização das etapas do processo de extração do DNA. Por isso

mesmo, os episódios e as seqüências são definidos não apenas por marcas textuais e contextuais

mas também pelos movimentos da câmera e dos registros que vão conseguindo fazer. Vale

destacar que, como são atividades em grupo, muitas seqüências interativas acontecem

simultaneamente sendo, portanto, este mapeamento apenas uma fração de toda a dinâmica que

acontece na sala de aula.

Desta forma, a aula é formada por três grandes episódios que coincidem com os limites

dos três principais momentos que se realizam: um primeiro, quando a professora encaminha a

proposta de trabalho do dia, a organização dos grupos, a distribuição do material de apoio; um

segundo, na atividade de leitura do texto e um terceiro, na atividade de laboratório.

Nesta forma de organização do trabalho escolar, verificamos que a posição assumida pela

professora é de bancada, quando atende e orienta as atividades junto a cada grupo de alunos. Por

certo, esta orientação/intervenção é modulada segundo as necessidades específicas evidenciadas

por cada grupo em seu processo de construção. Da mesma forma, o discurso da professora é

41 A atividade de laboratório é mais bem discutida no capítulo 8.

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predominantemente procedimental, orientando os alunos na atividade, particularmente do

laboratório. Também encontramos discurso de conteúdos e de gestão. Este último está mais

presente nesta aula do que na anterior, justamente porque o trabalho de grupo gera discussões

simultâneas que exigem maior controle para que haja produção dos alunos.

No segundo episódio, que se constrói a partir da discussão encaminhada pelo grupo acerca

da leitura do texto “Dolly, o núcleo e os clones”, são identificadas nove seqüências interativas.

Três dessas seqüências ocorrem com a presença da professora, sendo duas delas (seqüências 6 e

8) de natureza procedimental, especificamente sobre o trabalho que cada grupo deve apresentar

ao final da unidade de ensino. Em seis delas, os alunos trabalham sem a presença da professora e

estabelecem um padrão que é chamado por Mortimer et al. (2007) de trocas verbais, justamente

porque não têm marcas bem definidas de iniciação e resposta. Neste movimento dialógico,

particularmente nas seqüências 1, 2, 3, os alunos manifestam dúvidas, desalinham-se

conceitualmente mas não afetivamente (LEANDER; BROWN, 1999), posto que essas dúvidas

são compartilhadas pelos integrantes do grupo. Tentam enfrentar seus conflitos mobilizando

conceitos já existentes. O discurso assume uma abordagem dialógica pois os alunos falam a partir

de suas concepções, de seus pontos de vista e estes, necessariamente, não coincidem com aquele

que está sendo exposto no texto e que se aproxima da perspectiva científica.

Nas seqüências 5, 7 e 9, verificamos que os alunos, após terem solicitado a intervenção da

professora, elaboram as respostas às questões propostas evidenciando apropriação das idéias e

conceitos que circularam na discussão pelo menos em um nível interpessoal. A seqüência 4 é a

que efetivamente registra uma interação dos alunos com a professora com conteúdo de discurso

conceitual. As cadeias que se estabelecem são longas, com iniciações de processo e produto e se

encerram com sínteses realizadas pela professora. As iniciações formuladas pelos alunos estão

relacionadas às dúvidas que os acompanham ou a movimentos discursivos que procuram

confirmar suas idéias e construções acerca do tema. A abordagem comunicativa tende para um

discurso de autoridade quando a professora e alunos procuram fixar e confirmar significados.

Na atividade de laboratório, definimos 19 seqüências, caracterizadas por padrões de

interação qualificados como de trocas verbais e por cadeias fechadas. As iniciações, com poucas

exceções, são feitas pelos alunos e se referem aos processos relacionados às observações que são

encaminhadas e procedimentos a serem realizados para a construção do trabalho de extração do

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DNA. Consideramos que as trocas verbais predominam neste contexto e são acompanhadas por

gestos e olhares que se fixam nos materiais produzidos, monitoramento do tempo e manipulação

de objetos. Revelam, portanto, práticas implícitas à investigação científica. Quando as interações

discursivas tomam curso, a abordagem é geralmente dialógica, os alunos falam, observam,

contextualizam a partir de suas concepções, integrando conceitos de diferentes áreas de

conhecimento, particularmente os advindos da Química. Dessa forma, há indícios de uma

tentativa de aproximação entre o mundo das idéias e o mundo dos materiais observáveis. Assim,

podemos considerar que:

O conteúdo científico é apenas uma faceta do entendimento científico. Algum entendimento metodológico também está envolvido, incluindo aspectos como o reconhecimento de estratégias pelas quais investigações são empreendidas dentro de disciplinas científicas específicas e o conhecimento de rotinas procedimentais usadas para realizar a investigação. (LEACH, 1999, p. 135, tradução da autora).

6.3 A terceira aula: resgatando a estrutura do DNA e seu processo de autoduplicação.

Para esta terceira aula, estavam previstos dois momentos: um primeiro, coletivo, para se

discutir o processo de autoduplicação do DNA e um segundo, quando os alunos em grupo

deveriam mobilizar os conceitos relativos a este processo para explicar resultados experimentais

e situações com as quais se deparam em seu cotidiano, como os efeitos da radiação em mulheres

no início da gestação quando submetidas a radiografias de abdômen. Entretanto, como a primeira

parte da aula contou com uma participação decisiva dos alunos na definição de questões

pertinentes ao aprofundamento do tema principal, consideramos oportuno não realizar a segunda

atividade. Entretanto, tais questões previstas no roteiro de atividades não deixaram de ser

contempladas nesta discussão mais ampla que foi realizada.

Esta terceira aula organiza-se em cinco episódios definidos a partir das temáticas e marcas

textuais e contextuais de acabamento que vão se configurando no contexto da interlocução. A

partir desses episódios, identificamos treze seqüências interativas nas quais a posição adotada

pela professora é exclusivamente frontal, o que parece favorecer tanto a interação com os alunos

quanto o uso do quadro de giz para registro de aspectos que considera relevantes ou esquemas

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necessários para o encaminhamento do trabalho. Coerente com a proposta e organização da aula,

o discurso da professora é predominantemente conceitual com poucas intervenções disciplinares.

O primeiro episódio, constituído de uma única seqüência, refere-se à leitura dos relatórios

produzidos pelos alunos ao final da atividade de laboratório, realizada na semana anterior. A

partir da apresentação dos relatórios, a professora tece comentários gerais sobre a estrutura dos

textos e os aspectos ressaltados por cada grupo tais como aqueles relativos às observações.

O segundo episódio inclui duas seqüências interativas: a primeira, de natureza

predominantemente dialógica e interativa, inicia-se a partir de uma questão formulada e

registrada no quadro pela professora: “Por que todas as células de um organismo contêm todas

as informações sobre esse organismo?”. Aliás, esta parece ser uma rotina comum nestas aulas,

que geralmente são iniciadas a partir da formulação de alguma questão que revela sempre um

problema ou situação a ser enfrentado pelos alunos. A importância da organização das aulas a

partir de problematizações é ressaltada por autores como Engle e Conant (2002), que consideram

este um caminho para oportunizar o engajamento disciplinar produtivo dos alunos. De forma

semelhante Meirieu (1998, p. 63) ressalta que:

A situação-problema, simplesmente, põe o sujeito em ação, coloca-o em uma interação ativa entre a realidade e seus projetos, interação que desestabiliza e reestabiliza, graças às variações introduzidas pelo educador, suas representações sucessivas; e é nessa interação que se constrói, muitas vezes, irracionalmente, a racionalidade.

Diante das questões, os alunos se posicionam, estabelecem relações com o

desenvolvimento embrionário, sinalizam um suposto processo de duplicação do DNA. Os alunos

expressam seus pontos de vista e suas concepções as quais não estão muito distantes daquelas que

a professora quer ensinar. Realizado este levantamento de idéias, a professora inicia uma nova

seqüência construindo no quadro de giz um modelo esquemático da molécula de DNA no qual

está representado apenas o pareamento das bases nitrogenadas. Este é um modelo com o qual os

alunos já estão familiarizados uma vez que a estrutura do DNA é trabalhada ainda no primeiro

bimestre do ano letivo. A partir do esquema, a professora simula o processo de autoduplicação do

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DNA. À medida que a professora fala, novas moléculas de DNA vão sendo “criadas” no quadro

de giz, caracterizando uma seqüência de autoridade e com um nível reduzido de interatividade.

O episódio três gera três seqüências interativas que revelam um fluxo contínuo entre o

discurso de autoridade e o dialógico. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que os alunos se

situam a partir de seus olhares, a professora busca a univocidade que é própria da perspectiva

científica. Na seqüência 1, por exemplo, a professora incentiva os alunos a tecerem considerações

sobre as moléculas de DNA-filhas. Os alunos reconhecem que as novas moléculas são

exatamente iguais à molécula mãe, o que responde a pergunta inicialmente proposta. Mas não é

só isto, a professora quer evidenciar o processo semiconservativo de duplicação do DNA, ou seja,

que as moléculas filhas sempre apresentam um filamento novo e um filamento do DNA que lhes

deu origem. Utilizando o esquema, a professora vai plantando pistas enquanto os alunos, por sua

vez, tentam decifrar o “enigma” pois uma forma de construir um caminho didático que promova

o engajamento dos alunos “é criar o enigma ou, mais exatamente, fazer do saber um enigma:

comentá-lo ou mostrá-lo suficientemente para que se entreveja seu interesse e sua riqueza, mas

calar-se a tempo para suscitar a vontade de desvendá-lo” (MEIRIEU, 1998, p. 92).

Diante do “enigma”, os alunos elaboram suas falas a partir da fala do outro, gerando uma

cadeia longa, mas fechada, pois, ao final, a professora sistematiza a discussão. Neste percurso

interativo, um aluno parece aproximar-se do significado que a professora pretende construir.

Percebe ele, talvez pela variação de cores do giz, que a nova molécula de DNA mantém o mesmo

filamento da molécula mãe. A segunda seqüência é bem curta, sem interação e de autoridade

quando a professora resgata um pouco da história da ciência e dos experimentos realizados para

se chegar à conclusão de que a autoduplicação do DNA é um processo semiconservativo. Já a

seqüência três é predominantemente interativa mas também de autoridade. A professora, valendo-

se ainda do esquema que está no quadro, altera alguns pareamentos para introduzir os conceitos

de mutações gênicas e de mecanismos de reparo do DNA. No curso das interações, são abordadas

questões como o efeito das radiações, câncer de pele e anemia falciforme42. Neste caso são

produzidas cadeias fechadas com iniciações de processo geralmente realizadas pelos alunos.

O episódio quatro é organizado em cinco seqüências interativas situadas em uma

abordagem dialógica e interativa. Nestas seqüências, observa-se um trânsito de diferentes 42 A anemia falciforme é uma doença hereditária decorrente de uma mutação gênica e que causa a alteração das hemácias.

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questões que vão sendo introduzidas pelos alunos no curso de sua participação e pertinentes ao

contexto tais como: organismos transgênicos, terapia gênica, Projeto Genoma e Proteoma,

seleção natural e seleção artificial, aspectos éticos decorrentes do uso das novas biotecnologias.

Os alunos se manifestam e, em alguns casos, simulam eventos que indicam a apropriação do

conceito que está em jogo. Este é o caso, por exemplo, de Nathan que, tentando construir o

significado de organismos transgênicos, supõe uma espécie de planta com flores brancas na qual

são introduzidos genes para produção de flores azuis. Há, dessa vez, um maior número de

participantes, cerca de dez interlocutores privilegiados e muitas mãos levantadas indicando que

os tópicos em discussão exercem uma certa sedução e fascínio nos alunos. Por isso mesmo, o

discurso de gestão é utilizado com certa freqüência pela professora.

Nesta seqüência, de um modo geral, configuram-se longas cadeias iniciadas, em sua

maioria, pelos alunos. Entretanto, há uma preocupação da professora em orientar e sistematizar as

diferentes perspectivas que circulam na sala de aula. Observamos, também, algumas cadeias

abertas, particularmente quando questões éticas são enfrentadas, como é o caso da polêmica que

envolve a igreja e a ciência em torno da pesquisa sobre manipulação gênica.

Após este longo debate, a professora decide reorientar a aula para seu eixo principal e

inicial: o processo de duplicação do DNA. Com esta mudança, a professora marca o quinto e

último episódio desta aula que gera duas seqüências híbridas onde se alternam momentos

interativos com alunos e momentos não interativos. Em ambas, o discurso é de autoridade pois os

significados são controlados e fixados. Na seqüência 1, a professora traz à cena a clonagem, uma

questão já abordada pelos alunos na primeira atividade da aula anterior. A professora

esquematiza no quadro de giz o processo de clonagem e propõe analisar as técnicas utilizadas e

os clones produzidos por essas técnicas a partir do DNA mitocondrial43, que pode conter genes

responsáveis por algumas doenças. Já a seqüência dois inicia-se com a intervenção de uma aluna

que, resgatando o filme O Óleo de Lorenzo, introduz uma discussão relativa às anomalias

relacionadas aos cromossomos sexuais e que se encontram no núcleo da célula. Neste ponto, a

professora realiza uma longa explicação sobre herança genética a fim de evidenciar diferenças

entre o DNA mitocondrial e o DNA nuclear44.

43 As mitocôndrias são organelas responsáveis pelo processo de respiração aeróbica do qual se obtém a energia necessária ao metabolismo celular 44 O DNA mitocondrial que recebemos é sempre materno.

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Nesta aula, portanto, percebemos o quanto a mudança realizada nas estratégias da

professora e a diversidade de temáticas modulam, de certa forma, o nível de engajamento dos

alunos na dinâmica da aula. Este engajamento torna-se visível a partir dos enunciados mais

completos, das articulações entre diferentes conceitos e entre estes e situações concretas que os

alunos elaboram no curso da interlocução. Consideramos que estes sejam elementos, ou mais

exatamente, práticas mobilizadas pelos alunos que sinalizam um processo de significação.

6.4 A quarta aula: trabalhando com o cariótipo humano – o aconselhamento genético

A quarta aula desta unidade de ensino tem como objetivo a construção de idiogramas a

fim de se reconhecer indivíduos portadores de anomalias cromossomiais numéricas. Com esta

atividade, são trabalhados os conceitos de cariótipos, classificação dos cromossomos segundo a

localização dos centrômeros, cromossomos homólogos e ainda a caracterização dos indivíduos

portadores dessas anomalias.

Na análise desta aula, identificamos quatro episódios de ensino que produzem 22

seqüências interativas. No primeiro episódio, constituído de uma única seqüência, a professora

sintetiza os conceitos trabalhados nas aulas anteriores. Desta forma, fixa alguns significados e

procura evidenciar para os alunos uma lógica conceitual que organiza a unidade de ensino. O

segundo episódio produz cinco seqüências interativas; em duas delas (seqüências 1 e 2), o

discurso é de conteúdo e a abordagem é dialógica e interativa. Já nas outras três, o discurso é de

ordem procedimental, quando a professora define a atividade e distribui o material para sua

realização, formula algumas orientações gerais e organiza os grupos.

O episódio três registra dez seqüências interativas marcadas pelas etapas que organizam o

trabalho dos alunos no grupo. Em seis delas (2, 3, 4, 6, 7, 9), os alunos trabalham sem a presença

da professora e nestes casos o diálogo que resulta das interações dos alunos segue um padrão que

não se encaixa naqueles de iniciação e resposta. Nas outras quatro (1, 5, 8 e 10), há interação com

a professora cujo discurso articula uma dimensão procedimental e conceitual formando-se longas

cadeias fechadas que se abrem a uma perspectiva mais dialógica. Observamos que os alunos

desenvolvem a atividade da seguinte maneira: primeiro, familiarizam-se com o material

(seqüência 2), depois, distribuem tarefas (seqüência 3) e, finalmente, iniciam o trabalho de

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identificação dos pares de cromossomos. No processo de identificação dos cromossomos

(seqüências 4 e 6), as falas dos alunos são acompanhadas por muitos gestos pois manuseiam o

material, lêem as instruções e comparam os cromossomos com os do cariótipo usado como

referência. À medida que avançam na atividade, os alunos evidenciam uma forma particular de

ver e falar sobre os conceitos necessários ao reconhecimento e pareamento dos cromossomos. Na

forma de ver e entender dos alunos, os centrômeros45 correspondem ao “x do cromossomo” e

quando o “x está no meio, o cromossomo é metacêntrico”. Tais mecanismos utilizados pelos

alunos revelam-se úteis no seu processo de significação pois evidenciam uma certa clareza sobre

o que é o centrômero no cromossomo e ainda sobre a classificação dos cromossomos baseada na

posição dos centrômeros. Na seqüência 7, os alunos percebem que há uma alteração numérica,

que um cromossomo está “sobrando”. A princípio, pensam ter cometido algum erro, perdido o

par deste cromossomo. Logo depois, começam a considerar que este cromossomo a mais pode ser

o que determina o problema. Entretanto, trata-se do cromossomo X e com isso descartam a

possibilidade de ser a Síndrome de Down. Consultando os livros disponíveis e também a

professora, os alunos, na seqüência 8, identificam a Síndrome de Klinefelter (44 A + XXY). A

seqüência 9 revela uma tensão entre os alunos quanto ao diagnóstico que devem elaborar. Alguns

falam do lugar do especialista, outros do cidadão comum e ainda há aqueles que se posicionam

como alunos que devem cumprir uma tarefa segundo as expectativas da professora. Estas

diferentes posições ocupadas pelos alunos no curso da interação revelam a polissemia que está

posta em relação aos significados e mais ainda que é tendo como referência um determinado

contexto que alguns significados serão privilegiados em detrimento de outros. A intervenção da

professora na seqüência 10 parece ajudar a resolver o dilema do grupo que decide incluir o

cariótipo e o nome anomalia.

O quarto episódio é organizado em seis seqüências interativas, onde predominam cadeias

longas e fechadas com iniciações de produto feitas geralmente pelo professor. O discurso é

aparentemente dialógico pois os alunos apresentam seus diagnósticos, suas impressões acerca das

síndromes, ensaiam uma discussão relativa à inclusão desses indivíduos tanto do ponto de vista

social quanto biológico. Dizemos aparentemente porque a professora realiza intervenções para

45 Os centrômeros correspondem a um estrangulamento no cromossomo que fica dividido em dois braços. Dependendo da posição dos centrômeros, os cromossomos são classificados em metacêntricos, submetacêntrico, acrocêntricos e telocêntricos. Como os cromossomos estão duplicados e presos ao centrômero a imagem que se tem é efetivamente de um x.

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selecionar, privilegiar e marcar alguns significados. Para isto, parafraseia a fala de alguns alunos,

registra no quadro-de-giz e encaminha a leitura do livro didático, fazendo valer um discurso de

autoridade. Desta forma, constroem um quadro que incluem as diferentes síndromes

diagnosticadas, bem como os cariótipos e as características correspondentes a cada uma delas.

6.5 A quinta aula: ácidos nucléicos e o código da vida - a síntese de proteínas

A quinta aula tem como tema o processo de síntese de proteínas e está organizada em três

episódios de ensino delimitados a partir das seguintes ações: sistematização de conceitos,

explicação do processo de síntese de proteínas e organização de uma atividade em grupo para a

construção de um modelo que simula os eventos principais desse processo.

No primeiro episódio, com uma única seqüência interativa, a professora resgata

juntamente com os alunos os conceitos trabalhados anteriormente. A nosso ver, com este

movimento, a professora quer situar estes conceitos em uma rede que permite aprofundamento e

articulação pelos alunos. Tenta, dessa forma, escapar da fragmentação conceitual que caracteriza

o ensino de Ciências e Biologia.

O segundo episódio produz seis seqüências discursivas e acompanhamos um trânsito entre

uma abordagem dialógica e de autoridade. Na primeira seqüência, por exemplo, a professora, a

partir de uma iniciação de processo (Como é que o gene se expressa?), realiza um levantamento

das idéias e concepções dos alunos acerca do tema. Nas cadeias fechadas que se formam, a

professora problematiza as respostas dos alunos ou repete a pergunta inicial como estratégias

lingüísticas para que re-elaborações sejam encaminhadas.

Já nas seqüências 2, 3, 4, 5 e 6, o discurso é de autoridade pois a professora explica o

processo de síntese de proteínas. Para isto, simula trechos de moléculas de DNA no quadro,

incentiva os alunos a consultarem a tabela do código genético que está no livro e resgata noções

necessárias ao entendimento da síntese de proteínas. Os alunos, por sua vez, observam

atentamente, fazem registros em seus cadernos, consultam os livros, atendendo à solicitação da

professora. Assim, em um contexto que é de autoridade mas interativo, “sintetizam” uma proteína

no quadro. Os padrões interativos alternam cadeias longas fechadas e cadeias triádicas. Estas

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últimas acontecem quando a professora deixa lacunas em seu enunciado e que são completadas

pelos alunos. No curso dessas seqüências, os alunos são responsáveis por iniciações de processo

que refletem as dúvidas que apresentam. João, por exemplo, na seqüência 4, pergunta:

“Professora, e onde estão os genes?” O enunciado do aluno revela que conceitos, que

efetivamente se espera compartilhados, ainda são lacunares. Vale lembrar que, em aulas

anteriores, já havia sido discutida a relação entre DNA, gene e cromossomo. A assunção desse

aspecto permite-nos considerar que a construção e articulação de significados não é um processo

tão linear e cumulativo como pensado a partir do empirismo mas envolve idas e vindas para que

conceitos sejam integrados a uma rede que possibilite uma visão holística da estrutura e

funcionamento dos seres vivos. Mas é também João quem vai dizer: “Sabe por que eu gosto de

Biologia? É saber que essas ‘paradinhas’ [a síntese de proteínas] estão acontecendo no meu

corpo agora”. Dessa forma, o aluno expressa uma relação entre as dimensões macroscópica e

molecular responsáveis pelo funcionamento do seu organismo. Na última seqüência desse

episódio, a professora simula alterações na seqüência de bases do DNA que está no quadro a fim

de fundamentar os mecanismos de mutações gênicas discutidos em aula anterior. Esses

movimentos da professora permitem, de um lado, que conceitos sejam revisitados, de outro, que

articulações conceituais e, consequentemente, aprofundamentos sejam construídos pelos alunos.

O terceiro episódio é constituído por uma única seqüência em que a professora orienta os

alunos sobre a atividade que será realizada. Seu discurso é exclusivamente procedimental e não

há interações.

O quarto episódio é organizado em sete seqüências interativas delimitadas pelas fases do

trabalho desenvolvido pelos alunos para a construção do modelo de síntese de proteínas. A

construção de modelos se constitui em uma modalidade didática onde se espera que os alunos

reproduzam, em um plano concreto, estruturas e processos que lhes permitam compreender

melhor um determinado fenômeno que neste caso se refere à síntese de proteínas.

Assim, na seqüência um, os alunos lêem as instruções e identificam as peças que serão

utilizadas no modelo – RNA mensageiro, RNA transportador e aminoácidos. Na seqüência 2 e 4,

com a presença da professora, são geradas cadeias fechadas cuja iniciação é sempre dos alunos.

Nota-se que, nestas seqüências, o conteúdo do discurso da professora circula entre conceitos e

procedimentos pois, como se trata da construção de um modelo que simula a síntese de proteínas,

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há a necessidade de uma articulação entre estes dois domínios. Na seqüência três, os alunos

iniciam a construção do modelo. Camila assume o lugar de professora e controla o trabalho dos

colegas. A síntese de uma proteína envolve, de início, um mecanismo denominado de transcrição

genética e que corresponde à produção do RNA mensageiro a partir do DNA. Esta transcrição

exige o pareamento de bases nitrogenadas que se dá na seguinte relação: Adenina – Timina e

Citosina – Guanina. Como no RNA não encontramos a timina e sim a uracila, uma seqüência de

bases ATA no DNA formaria uma seqüência UAU no RNA. Uma vez produzido o RNA

mensageiro no núcleo da célula, este migra para o citoplasma ligando-se ao ribossomo quando

então é conduzido o mecanismo de tradução gênica, ou seja, aquele RNA mensageiro será

codificado para que sejam encaixados os aminoácidos adequados para formar a proteína. Neste

mecanismo, os aminoácidos são trazidos por RNA transportadores específicos. No nosso

exemplo, o RNA transportador AUA é que se “encaixa” no RNA mensageiro UAU trazendo

especificamente o aminoácido tirosina. 46No modelo dos alunos a etapa de transcrição gênica não

é realizada pois já recebem o RNA mensageiro pronto. O que devem fazer então? Primeiro, ligar

os RNA transportadores aos aminoácidos específicos que carregam. Para isto, devem consultar a

tabela com o código genético. Entretanto, a tabela está codificada para o DNA. Com isto, na

seqüência 3, os alunos cometem o primeiro equivoco: convertem os RNAs transportadores em

DNA. Se observarmos com atenção, a seqüência de bases do RNA transportador equivale à

seqüência de bases do DNA apenas com a substituição da timina por uracila, quando for o caso.

Convertendo respectivamente DNA em RNA mensageiro e finalmente em RNA transportador,

teremos as seguintes seqüências de bases: ATA – UAU – AUA ou CGC – GCG – CGC. Como o

modelo disponibiliza apenas os aminoácidos que serão utilizados, os alunos percebem que há

algo errado: “Não tem valina! E agora?”. A seqüência 4 tem inicio com a chegada da professora

que, percebendo a confusão feita pelos alunos, dirige-se ao quadro e, com uma entonação mais

assertiva, realiza as conversões de uma seqüência de bases. Neste momento, os alunos percebem

onde erraram e, já na seqüência 5, retomam a construção do modelo, agora relacionando

corretamente os RNAs transportadores aos seus respectivos aminoácidos. Entretanto, ainda nesta

seqüência, observamos um desalinhamento afetivo no grupo. Como, no modelo, os alunos devem

46 A síntese de proteínas é um processo bem mais complexo do que descrevemos aqui. Na verdade, a partir do DNA é transcrito um RNA chamado de pré-RNA e que corresponde a uma versão ainda não acabada do RNA mensageiro. Este pré- RNA sofre um processo de “edição”quando deles são retirados trechos que não têm significado. Somente então o RNA mensageiro migraria para o citoplasma.

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manipular um número diverso e pequeno de peças é preciso paciência e organização. Tentam

então, cuidadosamente, distribuir tarefas de forma que cada aluno fique responsável por uma

etapa do processo de síntese de proteínas. Assim, há aqueles que consultam a tabela, outros

relacionam o RNA transportador ao aminoácido e ainda outros encaixam este RNA transportador

ao RNA mensageiro a fim de que a proteína seja sintetizada. Entretanto, estas etapas acabam

sobrepostas gerando confusão. Na seqüência 6, os alunos criam estratégias que facilitem o

manuseio das peças a fim de que a simulação possa ser “encenada” para a professora, o que

fazem, ainda que com dificuldades, na seqüência 7 deste episódio.

Alguns aspectos podem ser considerados nestas seqüências. O primeiro diz respeito a uma

dificuldade procedimental dos alunos que revela uma dificuldade que é conceitual. Para nós, a

visualização dessa dificuldade é relevante à medida que o processo de síntese de proteínas não é

um conteúdo fácil de ser ensinado e conseqüentemente de ser aprendido pelo aluno, uma vez que

envolve uma sucessão de eventos conceituais. A síntese de proteínas é um processo dinâmico,

mas que é congelado quando transposto para os esquemas do quadro de giz e dos livros didáticos.

A proposta do modelo é justamente garantir que um pouco desse dinamismo seja visualizado e

isto encaminha o segundo aspecto a ser considerado que é relativo ao próprio material didático

utilizado. Como dito anteriormente, são peças pequenas e frágeis e, por isso mesmo, difíceis de

serem manipuladas. Talvez a ampliação dessas peças em outro tipo de material fosse mais

adequada e garantisse maior compreensão por parte dos alunos. De qualquer forma, vale ressaltar

que os alunos reconhecem os equívocos, refazem todo o percurso e, finalmente, simulam a

síntese da proteína.

6.6 Sexta aula: clonagem, células-tronco e organismos transgênicos - aprofundando a discussão

Os alunos, em grupo, produziram, ao longo do bimestre, trabalhos sobre organismos

geneticamente modificados (transgênicos), clonagem e células-tronco que deveriam ser

apresentados ao final da unidade de ensino. Estes trabalhos serão analisados no capítulo 9 mas

em linhas gerais podemos adiantar que revelam um intenso exercício de pesquisa a diferentes

fontes como livros, revistas e Internet. Nestes trabalhos, os alunos evidenciam articulações entre

os conceitos que foram trabalhados ao longo da unidade e perspectivas mais amplas num esforço

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para significar e explicar situações, algumas delas já clássicas, como o caso do envelhecimento

precoce dos clones, ou ainda as razões de atualmente se fazer uso do congelamento de células-

tronco extraídas do cordão umbilical de crianças recém-nascidas. Ao mesmo tempo posicionam-

se contra ou favor da realização e uso dessas pesquisas valendo-se de argumentos que transitam

entre o bem estar do homem e melhoria de sua qualidade de vida até aspectos religiosos que

situam a vida como um bem divino e que, por isso mesmo, não pode ser manipulada. Algumas

questões que atravessam a apresentação dos trabalhos geram discussões acirradas e por vezes

tensas mas que, ao mesmo tempo, contribuem para que os alunos se posicionem enquanto

sujeitos construtores de conhecimentos acerca de questões sócio-científicas que hoje fazem parte

do mundo no qual vivemos.

6.7 Sistematizando a análise

Observamos que, nesta sala de aula, alternam-se momentos dialógicos e de autoridade, o

que parece caracterizar a sala de aula de Biologia posto que há um conhecimento histórico e

social que deve ser compartilhado. Ao mesmo tempo, a apropriação desse conhecimento exige a

construção de novas formas de pensar e olhar um determinado fenômeno em um movimento que

se realiza dialeticamente. Assim, a aprendizagem é assumida como prática social contemplando e

integrando diferentes dimensões que se referem a um “saber como” mas também a um “saber

fazer”. Para isto, a professora diversifica as atividades e, por isso mesmo, o conteúdo de seu

discurso transita entre o conceitual, procedimental e de gestão, este último sendo utilizado

quando as atividades são em grupo ou quando os espaços coletivos se abrem a uma dimensão

mais dialógica. Neste contexto, o nível de participação dos alunos também se alterna dependendo

particularmente dos temas que estão sendo abordados mas que, de qualquer forma, é decisiva

para definir e (re) orientar a dinâmica da aula. Fazem isso questionando, problematizando,

expressando suas concepções, articulando idéias, apresentando contra-exemplos, formulando

hipóteses, posicionando-se em relação à fala do outro. A nosso ver, movimentos que revelam

práticas de natureza epistêmica relativas a uma disciplina escolar específica – a Biologia - que

dão visibilidade a um processo de construção de conceitos e que serão mais bem analisadas no

capítulo 7. Assim, a sala de aula paradoxalmente se revela como um lugar de rotinas, orientadas

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por objetivos e atividades previamente estabelecidos, mas também o lugar do imprevisível, da

criação, do produtivo.

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7. SALA DE AULA DE BIOLOGIA: SITUANDO O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE

SIGNIFICADOS PELOS ALUNOS

O que ele sabia era que a ciência não é algo que existe na natureza, mas que é uma ferramenta da mente daquele que sabe – seja professor ou aluno. Passar a saber algo é um desafio de tentar explicar um grande número de coisas que você encontra de forma mais simples e perspicaz possível. Há muitas formas diferentes de se chegar a este ponto, e você na verdade nunca chega lá se não o fizer, como aprendiz, em seus próprios termos. Tudo que se pode fazer por um aprendiz que está formando uma visão de si mesmo é ajudá-lo em sua própria viagem. (BRUNER, 2001, p. 115).

Ao iniciarmos este estudo, assumimos a aprendizagem como um processo de construção

de significados que emerge da participação e do engajamento dos sujeitos em atividades social e

culturalmente organizadas, mediadas pelo outro e pela linguagem. Consideramos ainda que este

processo de significação pressupõe uma certa especificidade relativa às formas de apropriação e

de uso desses significados uma vez que reconhecemos que as condições de sua produção

orientam o que “vai ser dito” e como “vai ser dito”. Assim, a significação se organiza em torno

de práticas de natureza epistêmica, relativas aos movimentos de re-elaboração ou re-descrição das

idéias e concepções já existentes em termos de novas relações conceituais.

Neste capítulo, selecionamos e analisamos sete seqüências interativas extraídas da sala de

aula estudada que, em função da natureza das interações que ali se realizam e do conhecimento

que nela circula, de alguma forma dão visibilidade às práticas desenvolvidas pelos alunos para

produção/construção de novos significados biológicos. O quadro a seguir apresenta em destaque

as seqüências analisadas neste capítulo.

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DATA AULA EPISÓDIOS Nº DE SEQÜÊNCIAS INTERATIVAS

SEQUÊNCIAS ANALISADAS NO CAPÍTULO

NOME DA SEQÜÊNCIA NO CAPÍTULO

Seq. 1 Ela é uma eucarionte? Seq. 2 O experimento: quem morre quem vive? Seq. 3 Por que esse resultado

Evidenciando relações entre estrutura e classificação dos seres vivos e estrutura e função nuclear.

Episódio 1 05

Seq. 6 Uma nova situação experimental

O que seria de uma árvore sem folhas: reconhecendo inter-relações estruturais e funcionais na/da célula.

Episódio 2 13

Seq. 6 DNA/Genes/ DNA-lixo Camila tem uma hipótese: explicando o papel do DNA-lixo

17/8/06 01

Episódio 3 10

Seq. 10 O caso das hemácias E o que acontece com as hemácias que não têm núcleo?

Episódio 1 01

Seq. 1 Por que o óvulo não pode ser da mesma ovelha?

Por que o óvulo tem que ser da outra ovelha?...

Episódio 2 09

Seq. 4 Me explica uma coisa: como pode ser...?

Ainda sobre clones e clonagem: evidenciando a reelaboração de significados.

Seq. 1Familiarizando-se com material e procedimentos

Quando os alunos se familiarizam com o ambiente iniciam os procedimentos.

Seq. 5 Observação e imprevistos no laboratório

Quando os alunos observam e enfrentam imprevistos.

Seq. 12 Agregando moléculas de DNA

Quando os alunos procuram explicar o que aconteceu com a molécula de DNA.

24/8/06 02

Episódio 3 19

Seq. 16 Visualizando o DNA Quando os aluno observam além do observável.

Episódio 1 01

Episódio 2 02

Episódio 3 03

Seq. 4 Professora, duas perguntas. Uma articulação entre observável e o microscópico...

Episódio 4 05

31/8/06 03

Episódio 5 02

Episódio 1 01

Episódio 2 05 Episódio 3 10

14/9/06 04

Episódio 4 06

Episódio 1 01

Episódio 2 06

21/9/06 05

Episódio 3. 07 5/10/06 05 Não foram

mapeados episódios

Não foram mapeadas seqüências

Quadro 4: Seqüências analisadas no capítulo 7

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7.1 Evidenciando relações entre estrutura e classificação dos seres vivos e estrutura e

função nuclear

A seqüência47 que apresentamos a seguir faz parte do primeiro episódio da primeira aula

desta unidade de ensino. O objetivo da professora é introduzir a temática que trata da relação

entre estrutura e função do núcleo celular. Para isto, apresenta de forma adaptada uma situação

experimental realizada na década de 1930 com uma alga unicelular macroscópica chamada

Acetabularia48. Com esta proposta, dois aspectos estão em jogo na dinâmica pedagógica: um

primeiro diz respeito à inauguração de um espaço de interlocução pois, a partir desse momento,

ainda que ocupem posições assimétricas neste contexto específico, alunos e professores serão

alternadamente locutores e interlocutores, garantindo a construção de uma seqüência de natureza

interativa mas de autoridade posto que a perspectiva científica parece organizar e controlar os

modos de dizer e pensar acerca do fenômeno em questão. O segundo aspecto revela uma relação

estreita com uma característica que é intrínseca à própria ciência enquanto saber de referência, a

sua possibilidade de prever e explicar determinados fenômenos. Vejamos a seqüência:

1. P: (...) uma alga chamada Acetabulária. E o interessante é que quando o pesquisador fez isto é... foi este exercício mesmo... 2. Nathan: Ela é uma alga azul? 3. P: Não, ela é uma alga verde. 4. Nathan: Uma alga verde (repete com voz mais baixa) Então ela é uma eucarionte? 5. P: É uma eucarionte, exatamente. Então ele pega essa alga secciona, quer dizer, ele corta ao meio essa alga e deixa uma parte sem núcleo e uma parte com núcleo da célula. (Esquematiza no quadro o experimento). Vamos pensar então. O que vocês avaliaram? O que acontece com uma parte e o que acontece com a outra parte? 6. Alunos: Uma morre e outra vive. 7. P: Quem morre? 8. Alunos: A anucleada morre e a nucleada vive. (Muitas vozes) 9. P: Então a nucleada vive e a anucleada morre (Registra no quadro). 10. P: Esta parte que não tem núcleo vive até um tempinho, algumas horas, mas depois ela realmente morre.... Isto é uma experiência antiga chamada merotomia quando se faz esse

47 Esta seqüência transcrita e analisada reúne as seqüências 1, 2 e 3 do primeiro episódio dessa aula. 48 Este estudo serviu para evidenciar que substâncias presentes no núcleo celular das algas eram responsáveis pelo aparecimento de características que hoje sabemos tratar-se do RNA mensageiro.

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tipo de corte e deixa uma única parte com núcleo ou quando se retira o núcleo da célula pra ver o que acontece chamamos de enucleação. Mas o que é preciso pensar é: por que esta parte que tem núcleo continua vivendo e porque esta parte que não tem núcleo vai morrer? 11. Alunos: Porque... (inaudível – muitas vozes). 12. P: Ronnie. 13. Ronnie: Porque com o DNA do núcleo ela vai se duplicando, formando novas células. 14. P: Então eu devo supor que no núcleo tem um material que é o que, Ronnie? 15. Ronnie: O DNA. 16. P: O DNA. E o que o DNA tem a ver com essa situação? 17. Nathan: Tudo né. 18. P: Ronie você falou mais coisas. 19. Ronnie: É eu falei... Porque é ele que comanda... deixa eu ver... 20. Nathan: inaudível 21. Ronnie: É (concordando) é ele que comanda a célula. 22. P: Tá, então o núcleo contendo esse DNA comanda a própria atividade da célula.

Nesta seqüência, a professora, logo no turno 1, procura situar a experiência para os

alunos. Começa por fazer referência ao organismo que foi utilizado no estudo, uma alga chamada

Acetabularia. Nathan rapidamente intercepta a professora, no turno 2, para perguntar se a

Acetabulária é uma alga azul. Dessa forma, parece reconhecer que existem diferentes tipos de

algas. De posse da informação fornecida pela professora de que se trata de uma alga verde,

Nathan, no turno 4, pode então classificá-la como sendo uma alga eucarionte, o que é confirmado

pela professora no turno 5. Com este movimento, o aluno introduz, logo no inicio da discussão,

um conceito que fora construído em contextos anteriores e que será resgatado oportunamente pela

professora em uma seqüência posterior e também implicitamente por outro aluno no turno 13.

Mas não é só isto, revela também uma forma específica de pensar e falar acerca dos objetos e

fenômenos (Então ela é uma eucarionte.) já que classificar os organismos é uma tarefa que ocupa

os biólogos desde longa data e que atualmente se organiza a partir de critérios que procuram

evidenciar relações de parentesco evolutivas a fim de se re-construir a filogenia ou filogênese dos

diferentes grupos de seres vivos. A classificação biológica envolve o agrupamento de organismos

de acordo com semelhanças e diferenças mas para isso é preciso selecionar características

biológicas efetivamente importantes para não se cair na armadilha de um sistema artificial de

classificação. Na situação em questão, o critério específico diz respeito à ausência ou presença de

um núcleo individualizado que encerra o material genético da célula, o que permite classificar o

organismo, respectivamente, em procarionte ou eucarionte. As algas azuis, atualmente chamadas

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de cianobactérias, são organismos procariontes, característica que as distinguem de todas as

outras algas. Nathan parece usar essa lógica que orienta os processos de classificação

evidenciando um certo conhecimento sobre o que e quais são os organismos procariontes (É uma

alga verde [então] é uma eucarionte).

Ao mesmo tempo, a interferência de Nathan nos permite considerar um outro aspecto da

prática pedagógica que se refere a uma tentativa de alinhamento focal (LEANDER; BROWN,

1999), ou seja, o desejo de fixar e delimitar o objeto a ser explorado do ponto de vista conceitual.

Isto, talvez, permita ao aluno se situar no contexto da discussão que vai sendo delineada.

Após esta intervenção do aluno, a professora, no turno 5, retoma a apresentação da

situação experimental que se constitui efetivamente no objeto de discussão que irá orientar o

curso da aula, mas o faz verbalmente e esquematicamente no quadro, talvez como uma estratégia

didática que permita aos alunos visualizarem, ainda que de forma simplificada, o experimento

sobre o qual deverão prever e explicar possíveis resultados. A professora, dando continuidade a

sua enunciação, propõe aos alunos um primeiro questionamento: “O que acontece com uma parte

e o que acontece com a outra parte?”. Os alunos rapidamente se posicionam (Uma morre e outra

vive.), mas é preciso especificar melhor as respostas como adverte a professora no turno 7 (Quem

morre?). Com este modo de dizer, talvez a professora sinalize um aspecto elementar que envolve

a prática científica e a prática científica escolar, que diz respeito ao rigor das previsões.

Atendendo à solicitação, os alunos, no turno 8, afirmam com certa segurança que “A [parte]

anucleada morre e a nucleada vive.” Dessa forma, evidenciam que o núcleo é uma estrutura

vital para o funcionamento celular, um conhecimento anteriormente construído que lhes permite

prever os resultados da experimentação.

No curso da interação, a professora parafraseia a resposta dos alunos registrando-as no

quadro, talvez com a intenção de avaliá-la positivamente. Em seguida, formula um longo

enunciado que serve para: confirmar os resultados previstos, desenvolver a história científica,

introduzir novos elementos relativos a este tipo de experimentação e ainda solicitar aos alunos

que expliquem os resultados previstos inicialmente. Dessa forma, dá oportunidade aos alunos de

explorarem suas visões e entendimentos sobre o fenômeno em questão, ao mesmo tempo em que

vai encaminhando a aula para o conteúdo que fora previamente planejado qual seja a estrutura e

função nuclear.

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Com este movimento, vários alunos se manifestam, mas é no turno 9, a partir da fala de

Ronnie, que elementos significativos vão sendo postos em circulação. Para Ronnie “[...] com o

DNA do núcleo ela vai se duplicando, formando novas células”. Portanto, sua enunciação revela

que é no núcleo celular que se encontra o DNA, reconduzindo de forma implícita para o contexto

da discussão a noção de célula eucarionte já apresentada por Nathan logo no início da seqüência.

Ao reconhecer que é no núcleo que se encontra o DNA da célula, Ronnie aponta para um

componente essencial da estrutura nuclear. Mais que isso, o aluno relaciona a presença do DNA à

capacidade da célula de se dividir formando duas novas células. Dessa forma, sua resposta, ao

mesmo tempo em que incorpora conceitos anteriormente construídos e que não estavam até então

explicitados no curso da discussão (DNA e divisão celular), revela que estabelece uma relação

estreita entre estrutura e função nuclear. Reconhecendo a riqueza da resposta do aluno, a

professora, nos turnos 10 e 12, procura marcar alguns significados. Assim, pede a Ronnie que

repita qual o material que está presente no núcleo e, em seguida, o relacione aos resultados

obtidos na experimentação. Ronnie, no turno 19, parece encontrar dificuldades em recuperar as

idéias formuladas em seu enunciado; entretanto, ao fazê-lo, acaba por introduzir uma nova função

nuclear diretamente relacionada à existência do DNA no seu interior e que diz respeito ao

“comando” ou controle de toda atividade celular. Neste movimento, a professora vai construindo,

juntamente com os alunos, as funções do núcleo celular, que permitem explicar o porque da parte

nucleada ser capaz de continuar vivendo. Essas funções do núcleo celular vão sendo registradas

no quadro e anotadas pelos alunos em seus cadernos servindo como uma memória coletiva. Neste

momento, poderíamos pensar como Smolka (2004, p. 43) que:

As palavras usadas vão provocando imagens. Elas têm história. E o trabalho com palavras e imagens cria cenas, desenvolve narrativas. As palavras vão mobilizando, constituindo a imaginação, vão configurando conceitos. Denso e intenso trabalho simbólico. Podemos conceber e imaginar movimentos e processos... Nesse trabalho imaginativo e conceitual vão se formando universos discursivos coletivamente partilhados e orientados.

A seqüência que acabamos de apresentar indica um percurso de significação caracterizado

por modos específicos de falar, fazer e pensar sobre um determinado fenômeno (ARCÀ,

GUIDONI; MAZZOLI, 1990). Mas por que dizemos específicos? Porque revelam uma estreita

relação com as formas de pensar e organizar o conhecimento biológico. Não é apenas um

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processo de significação de conceitos que está em jogo mas também movimentos ou, como temos

assumido, práticas específicas para significar. Nathan, por exemplo, estabelece uma estreita

relação entre estrutura (presença ou ausência de núcleo individualizado) e classificação dos seres

vivos (organismos eucariontes ou procariontes). A construção de sistemas de classificação

encontra-se na base do conhecimento biológico. Saber que a Acetabularia é uma alga verde e não

uma alga azul permite-lhe classificá-la como um organismo eucarionte. Ronnie reconhece a

existência de uma molécula de DNA e que a mesma se encontra situada no núcleo já que se trata

de um organismo eucarionte. Dessa forma, estabelece uma primeira relação entre um componente

estrutural presente no núcleo – o DNA - e uma função nuclear que é a de garantir a própria

existência da célula já que é responsável pelo controle de sua atividade metabólica, o que lhe

permite prever e explicar um determinado fenômeno a partir de uma perspectiva biológica.

De um plano mais geral sobre o processo de construção do conhecimento científico pelo

aluno, podemos situar os movimentos de articulação que acabam por gerar/produzir novos

significados. Para Meirieu (1998), essas articulações podem ser pensadas a partir da noção de

ancoragem formulada por Ausubel, que considera que o fator mais importante no processo de

aprendizagem é a quantidade, a organização e a clareza dos conhecimentos de que o aluno já

dispõe pois é a partir deles que vai se agregar a novidade. Aprender, portanto, é uma operação

curiosa em que a mobilização das aquisições anteriores permite o seu enriquecimento e a sua re-

elaboração.

7.2 O que seria de uma árvore sem folhas: reconhecendo inter-relações estruturais e

funcionais na/da célula

A seqüência interativa que apresentamos a seguir faz parte do terceiro episódio de ensino

ainda da primeira aula quando a professora tinha como grande tema a estrutura e função do

núcleo. Logo após evidenciar a importância funcional do núcleo para a célula, a professora tem

como objetivo estabelecer a estreita inter-relação entre o núcleo e a célula, ou seja, da mesma

forma que a célula desprovida do seu núcleo não é capaz de sobreviver, o núcleo isolado do

citoplasma também morre uma vez que deixa de receber energia da respiração celular e também

substâncias provenientes de outras organelas.

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1. P: Agora, se eu fizesse uma experiência diferente. Retirasse e isolasse o NÚCLEO da célula. Sozinho. Ele vive? 2. Als: Não 3. P: Por que? 4. Manuela: Vive. (muitas vozes) 5. P: Um de cada vez (solicita organização) 6. Letícia: Mas ele [núcleo] precisa de um “corpo”, né? 7. P: Ah precisa de um meio para ele viver. 8. Nathan: O que seria de uma árvore sem folhas. 9. P: Exatamente. 10. Letícia: Professora, ele [núcleo] seria o tronco. 11. Thais: Professora, o núcleo é então igual ao vírus sozinho. Tinha que entrar em uma célula. 12. P: Não necessariamente. Um vírus não é mesmo uma célula. 13. Al: Um vírus é um vírus. 14. P: Um vírus tem DNA ou RNA. O vírus depende da célula. É um parasita intracelular obrigatório. Mas a célula não depende do vírus para sobreviver. Uma coisa para a gente entender um sistema vivo como o nosso é que as coisas têm relação. 15. Nathan: Existe uma troca. 16. P: Isso mesmo. Uma troca. Uma inter-relação entre estruturas e suas funções.

A professora, no turno 1, simula uma nova situação experimental a exemplo do que fizera

no início da aula. Supõe agora o núcleo isolado da célula e pergunta aos alunos se ele seria capaz

de sobreviver. Os alunos prontamente respondem que o núcleo isolado não seria capaz de

sobreviver fora da célula sugerindo uma visão integrada da dinâmica celular, que será mais bem

especificada no curso da interação. A professora, por sua vez, não avalia a resposta dos alunos

mas solicita que apresentem explicações para este fenômeno específico. Manuela, no turno 4,

parece discordar dos colegas mas sua resposta fica perdida em meio a tantas vozes e não é

considerada pela professora. Letícia, no turno 6, começa a elaborar uma possível explicação para

o fato do núcleo, apesar de conferir tanta autonomia à célula, não ser capaz, ele próprio, de viver

isolado. Para isto, a aluna estabelece uma primeira relação (Mas ele [núcleo] precisa de um corpo

né?). Nesta sua fala, Letícia parece considerar que o núcleo, enquanto uma estrutura celular

específica, só adquire funcionalidade quando integrado a um sistema (corpo). A professora,

apesar de concordar com a aluna, procura, no turno 6, dar forma ao significado por ela proposto.

Faz isto substituindo a expressão “corpo”, usada por Letícia, pela expressão “meio” (Ah, precisa

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de um meio para viver), talvez como uma estratégia para marcar a noção, que começa a surgir, de

interdependência do funcionamento celular.

Esta visão do funcionamento celular, onde as partes (estruturas) estão estreitamente inter-

relacionadas e só adquirem funcionalidade quando integradas em um todo, é também sinalizada

por Nathan no turno 8. O aluno, para explicitar esta perspectiva, recorre a uma analogia que

ilustra em uma dimensão macroscópica o que se processa em uma dimensão molecular: “O que

seria de uma árvore sem as folhas”. Seu movimento é usar uma noção que lhe parece familiar

para interpretar ou significar uma outra. Dessa forma, sugere que a árvore, enquanto um todo,

depende de suas diferentes partes (as folhas). Mas não podemos inferir se Nathan considera a

árvore como sendo a célula e as folhas como sendo as diferentes estruturas celulares em

funcionamento integrado. Talvez este aspecto seja mais bem especificado quando Letícia,

apropriando-se da ilustração de Nathan no turno 10, vai dizer que o núcleo corresponderia ao

tronco da árvore. Assim, a partir do enunciado de Letícia, podemos supor que, para os alunos, o

núcleo representa uma parte de um sistema maior e que se relaciona com a capacidade de

sustentação.

Neste movimento realizado pelos alunos, vai se configurando a idéia de que a célula é

uma unidade cujo funcionamento como um todo depende de atividades coordenadas que

integrem suas diferentes estruturas e suas respectivas funções. Não basta saber apenas que existe

um núcleo que comanda a atividade celular; é preciso reconhecer que a funcionalidade desse

núcleo só se expressa quando integrada ao funcionamento de outras estruturas. Ao reconhecerem

esta interdependência entre estruturas e funções celulares, os alunos parecem romper com uma

perspectiva reducionista que orienta tanto o pensamento biológico quanto o próprio ensino de

Biologia.

Procurando engajar-se nesta discussão, Thais, no turno 11, introduz um elemento novo ao

comparar essa interdependência entre núcleo e célula à reprodução dos vírus. Neste movimento, a

aluna relaciona o núcleo celular ao vírus (Professora, o núcleo é então igual ao vírus sozinho.

Tinha que entrar em uma célula). Vírus são parasitas intracelulares obrigatórios e só manifestam

vida quando em seu interior. Isolados da célula hospedeira encontram-se inertes, cristalizados. Se

considerarmos o núcleo isolado, não podemos caracterizá-lo como o fazemos quando integrado à

célula. Desprovido de seu meio celular, não manifesta suas funções e acaba por degenerar. A

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nosso ver, existe uma certa coerência na aproximação que a aluna realiza. Entretanto, a

professora considera inapropriada a comparação da aluna já que esta relação de dependência não

se faz em uma via de mão dupla, ou seja, o vírus depende da célula mas a célula,

necessariamente, não depende do vírus para sobreviver. De qualquer forma, vale ressaltar dois

aspectos importantes: primeiro, a mobilização de um conhecimento previamente construído

relativo à reprodução dos vírus; segundo, o percurso realizado para significar, envolvendo a

aproximação entre dois sistemas explicativos distintos para fazer emergir um novo significado,

que diz respeito à noção de inter-relação estrutural e funcional. Faz uso, portanto, de uma

analogia.

Como apresentamos no capítulo 3, Knorr-Cetina (1981) destaca que a construção de

analogias é uma prática recorrente no processo de produção do conhecimento científico. Para a

autora, as analogias viabilizam a circulação, transformação e seleção de idéias. Assim, o uso de

uma analogia torna mais familiar aquilo que até então se mostrava desconhecido ao mesmo

tempo que retém um caráter conservador, justamente porque controla e restringe a produção de

determinados significados uma vez que orienta a forma de pensar e olhar um determinado

fenômeno. Assim, as analogias, tanto quanto as metáforas, se constituem em instrumentos do

pensamento que, ao serem mobilizadas, viabilizam a resolução de problemas específicos e a

compreensão de idéias, enfim, a construção de novos significados. “Algumas [analogias e

metáforas] podem ser desenvolvidas recorrendo-se a um domínio apenas mas as mais poderosas

ultrapassam os limites entre os domínios, como na associação entre uma entidade viva com algo

inerte ou a geração de uma idéia sobre algo que é tangível”. (MITHEN, 2002, p. 344).

Ao tentar explicitar a inter-relação entre núcleo e célula, Thais recorre aos vírus, uma

entidade já conhecida, o que, de certa forma, pode reduzir suas incertezas e dúvidas em relação

ao significado que está sendo construído. Seu movimento “não é apenas uma procura passiva de

algo que está lá, mas é o processo de impor um significado, ou construir outros, ou escolher um

entre alguns significados alternativos” (SUTTON, 1996, p. 24). Ainda que a professora tenha

considerado inadequada a aproximação que Thais estabelece, vale dizer que serviu para que ela

pensasse e olhasse para um fenômeno de uma forma específica.

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7.3 E o que acontece com as hemácias que não têm núcleo?

A seguir, apresentamos a última seqüência interativa do último episódio de ensino da

primeira aula. A discussão, por certo, ainda gira em torno do núcleo e de suas funções nos

organismos eucariontes, o que permite ampliação e aprofundamento de conceitos. Nesta

seqüência específica, alunos e a professora procuram compreender como as hemácias, células do

nosso sangue, são capazes de viver sem a presença do núcleo. A nosso ver, é uma seqüência

predominantemente interativa e de autoridade porque alunos e professores se alinham a uma

perspectiva científica para construir um novo significado. Vejamos a seqüência:

1. Ronnie: Professora, você tá falando das células que têm núcleo. E o que acontece com células como a hemácia que não tem núcleo? 2. P: Boa pergunta. Nem toda célula humana tem núcleo, Como a nossa.... 3. Als: Hemácia 4. P: E aí... 5. Camila Guimarães: Mas ela possui substâncias... 6. P: Primeiro, se não tem núcleo como resolve, desempenha essas funções relacionadas ao núcleo? Muitas vozes 7. Al: O DNA está disperso no citoplasma. 8. Al: Não tem a membrana. 9. P: Ela não tem núcleo. Tirou isso (referindo-se ao núcleo da célula no esquema) 10. Camila Dias: Ele tem que ter DNA. 11. Als: Inaudível. 12. Letícia: O DNA está disperso no citoplasma. Muitas vozes 13. P: Qual o tempo de vida da hemácia? 14. Renato: 150 dias. 15. P: Quanto Renato? 16. Renato: 150. 17. P: 150, 120, quatro meses. Quem falou aqui, foi o João que falou que o DNA comanda a reprodução da célula. Se a hemácia não tem núcleo como se reproduz... produz novas hemácias? 17. Camila Dias: Ah, lá na me... medula óssea. 18. P: Então tá. Não é como no caso das outras células que a própria célula se divide em duas. No caso das hemácias, esgotado seu tempo de vida, ela morre. Para se ter novas hemácias é preciso que quem produza? 19. Als: A medula óssea. 20. P: Quando a célula é jovem ela tem núcleo. Ela perde o núcleo no curso da sua formação. Por que ela perde o núcleo? Qual a função da hemácia?

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21. João: Inaudível. 22. P: Não. Por que dessa ausência do núcleo na hemácia? 23. Als: Inaudível. 24. P: Qual a função da hemácia? 25. Als: Transporte de oxigênio. 26. P: Ela transporta o oxigênio de que forma? 27. Nathan: Eu já vi num desenho que ela carrega nas costas. Risos 28. P: Thais, fala. 29. Renato: Hemoglobina. 30. P: Renato ela tem uma molécula que é a HEMOGLOBINA, uma proteína que se combina com o oxigênio. O formato da hemácia é justamente para comportar essa molécula de hemoglobina. 31. Nathan: Mas ela já teve DNA. 32. Ronnie: Ah então ela deve formar um estoque... reserva de substâncias para sobreviver nesse tempo. 33. Camila Guimarães: É isso professora? 34. P: Semana que vem a gente retoma a discussão.

A seqüência se inaugura com uma questão formulada por Ronnie. O aluno parece

perceber uma lacuna já que, ao longo da aula, se evidenciou a estreita relação entre núcleo e

funcionamento celular. Como então explicar o fato de as hemácias serem células anucleadas?

Podemos supor que é a partir da dinâmica da atividade, das relações que vão sendo tecidas

entre conceitos, que Ronnie faz emergir um novo problema que precisa ser resolvido não só por

ele mas por toda a turma. A problematização é uma condição intrínseca para o engajamento

disciplinar produtivo uma vez que cria oportunidade para que os alunos participem ativamente da

resolução de problemas que sejam substantivos (ENGLE; CONANT, 2002).

A questão de Ronnie é acolhida pela professora que a socializa nos turnos 2, 3 e 6. Assim,

ao invés de dar uma resposta imediata para o aluno, transfere o problema para ser resolvido pelo

grupo. Camila Guimarães, já no turno 5, ensaia uma explicação (Mas ela possui substâncias...).

Podemos supor que a aluna se refere a substâncias que serão capazes de manter a célula viva.

Entretanto, sua resposta é pouco específica. Talvez por isso, a professora, no turno 6, prefira

reformular a questão de Ronnie para que os alunos continuem elaborando melhor suas respostas.

A partir daí, dois alunos, nos turnos 7, 8 e 12, consideram que as hemácias são como células

procariontes, ou seja, não têm um núcleo delimitado e, portanto, seu DNA encontra-se disperso

no citoplasma. Dessa forma, os alunos mobilizam um conhecimento previamente construído para

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tornar familiar aquilo que lhes parece estranho. Entretanto, ao fazerem esta relação, acabam se

contradizendo, uma vez que os humanos são seres eucariontes, isto é, apresentam células com

núcleo individualizado e, por isso mesmo, não podem dispor de algumas células classificadas

como procariontes. Ao mesmo tempo, entendemos que esses alunos lançam mão desta explicação

justamente porque reconhecem a importância do DNA para as células, como evidencia Camila

Dias no turno 10 (Ele tem que ter DNA.). Assim, os alunos conseguem sustentar que as hemácias,

apesar de não terem núcleo, têm DNA.

Percebendo essas contradições, a professora realiza três movimentos que se propõem a:

primeiro, resgatar o tempo de vida das hemácias no turno 13; segundo, evidenciar o local de

produção das hemácias no turno 17; e terceiro, caracterizar a função das hemácias no turno 23.

Com este movimento, a professora espera que os alunos, de um lado mobilizem conceitos e, de

outro, estabeleçam novas relações que permitam explicar a existência das hemácias como células

anucleadas. Os três pontos marcados pela professora estão relacionados ao fato de as hemácias

terem perdido seu núcleo no seu processo de formação e sendo assim: seu tempo de vida é

relativamente curto; não são capazes de se dividir, dependendo dos processos de divisão e

diferenciação celular que ocorrem na medula óssea; e a perda do núcleo é uma adaptação

evolutiva para comportar a molécula de hemoglobina, tornando mais eficiente o processo de

transporte de oxigênio.

Assim, começam a transitar, no contexto de interação, várias informações introduzidas

pelos alunos: 150 dias é o tempo de vida das hemácias, medula óssea é o lugar de sua produção,

transporte de oxigênio é a sua função e hemoglobina é a molécula que, no interior do núcleo,

transporta o oxigênio. A cada resposta apresentada pelos alunos, a professora introduz um novo

elemento, como por exemplo, no turno 20, quando enuncia: “Quando a célula é jovem ela tem

núcleo. Ela perde o núcleo no curso de sua formação...”. Dessa forma, mantém uma narrativa

que procura sustentar o desenvolvimento da estória cientifica (MORTIMER; SCOTT, 2002) a

partir das interações que vão sendo construídas com os alunos. Ao mesmo tempo, parece

construir uma cadeia de associações que oriente os alunos no processo de significação.

Após este longo percurso, Nathan, no turno 31, parece capturar um elemento importante

ao enunciar: “Mas ela [a hemácia] já teve DNA”, sendo seguido, prontamente, por Ronnie que

estabelece a seguinte relação “[...] então ela [a hemácia] deve formar um estoque... reserva de

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substâncias para sobreviver nesse tempo”. Supomos que Ronnie esteja se referindo ao fato de

que, a partir do DNA que a célula possuía (pois perdeu o núcleo no processo de maturação), ela

tenha formado as substâncias necessárias para realizar suas funções. Se assim é, os alunos, e

situamos no plural por considerarmos esta uma construção coletiva que emerge em um contexto

interativo, solucionam um problema gerado logo ao início da seqüência e que mantém e orienta o

curso da discussão.

Dessa forma, vemos emergir um novo significado coerente com a perspectiva biológica

pois, antes de “perderem” o seu núcleo, as hemácias sintetizam moléculas de RNA (ácido

ribonucléico), um outro tipo de ácido nucléico. Os RNAs são cópias dos genes de DNA. E irão,

posteriormente, comandar a produção de proteínas responsáveis pela manutenção das hemácias.

Esta perspectiva será sistematizada pela professora na aula seguinte já que, por conta do avançar

da hora, deixou em aberto esta discussão.

Alguns aspectos acerca do processo de significação desenvolvido pelos alunos podem ser

sinalizados a partir dessa seqüência. O primeiro diz respeito ao movimento de Ronnie que

introduz no contexto um novo e significativo problema. Mais que isto, este problema surge como

uma lacuna na rede conceitual que o aluno aparentemente vem construindo. A discussão inicial

da aula fez emergir um significado relativo às funções decisivas que o núcleo desempenha no

funcionamento celular; entretanto, o aluno sabe que existem células humanas, especificamente as

hemácias, que são anucleadas. Temos, portanto, um fenômeno específico que não pode ser

explicado diretamente pela relação núcleo/DNA e célula. Ronnie não coloca em “xeque” a

relação anteriormente construída (núcleo-célula) mas considera que as hemácias devem ter um

processo “diferenciado” de funcionamento (E o que acontece com células como a hemácia que

não tem núcleo?). Sua enunciação faz refletir não apenas um modo específico de falar mas

também de pensar um fenômeno biológico, uma vez que consideramos a linguagem e o discurso

que a mobiliza em contextos específicos, neste caso uma sala de aula de Biologia, como

constitutiva de nossas formas de pensar e, portanto, do próprio processo de significação. A fala

de Ronnie revela uma forma de pensar que envolve relações processuais, o que lhe permite

formular um problema. Neste movimento podemos assumir que “a formação dos [novos]

conceitos surge sempre no processo de solução de algum problema que se coloca para o

pensamento [...]” (VYGOTSKY, 2001, p. 237).

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Mas Ronnie não busca a solução desse problema sozinho. O processo de significação

envolve diferentes vozes que mobilizam conceitos já existentes e é mediado por uma professora

que procura controlar, marcar, selecionar alguns significados, enfim, encaminhar uma maneira

específica de olhar, pensar e interpretar o problema, uma vez que o foco da atenção vai

destacando um processo de adaptação funcional que envolve a perda do núcleo no processo de

formação das hemácias. Dessa forma, podemos considerar que:

[...] o conceito surge no processo de operação intelectual; não é o jogo de associações que leva à obstrução dos conceitos: em sua formação participam todas as funções intelectuais elementares em uma original combinação sendo que o momento central de toda essa operação é o uso funcional da palavra como meio de orientação arbitrária da atenção, da abstração, da discriminação de atributos particulares e de sua síntese e simbolização com o auxílio do signo. (VYGOTSKY, 2001, p. 236).

7.4 Camila tem uma hipótese: explicando o papel do DNA-lixo

Como professores, planejamos nossas aulas tentando construir um possível roteiro a ser

seguido, selecionando os conceitos a serem destacados, exemplos a serem apresentados.

Entretanto, a sala de aula – felizmente - é espaço do imprevisível pois tudo depende das

interações que nela se realizam e, algumas vezes, seguimos por caminhos inesperados mas que se

revelam produtivos.

A seqüência interativa que apresentamos agora revela esse percurso não planejado,

justamente porque os alunos acabam por se engajar em uma questão que ainda se encontra em

aberto até mesmo para a comunidade científica: o papel do DNA-lixo nos organismos complexos

(eucariontes).

De um modo geral, na maioria dos livros didáticos de Biologia, tendemos a conceituar

gene como uma seqüência do DNA que informa a síntese de uma determinada proteína. A parte

que parece ser irrelevante para a produção dessas moléculas, mas que hoje se sabe ser bastante

extensa, foi durante muitos anos qualificada pelos biólogos moleculares como “lixo” evolutivo.

Atualmente, novos dados têm apontado que esse DNA, aparentemente inútil, pode codificar

moléculas de RNA que realizam funções reguladoras e ainda explicar a complexidade estrutural e

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evolutiva dos organismos (MATTICK, 2004) e, em alguns casos, está relacionado à produção dos

centrômeros dos cromossomos (AMABIS; MARTHO, 2002). Vejamos a seqüência:

1. P: DNA É Gene? O que é um e o que é outro? Vamos lá. 2. Thaiane: DNA é tudo, gene é um trecho (Gestos acompanham a definição da aluna). 3. P: Muito bom. DNA é o filamento inteiro (esquematiza no quadro). Vamos supor que nesse trecho tem uma informação, determina a síntese de uma proteína. Esse trecho corresponde a um gene. Esse DNA não codifica nada. Esse trecho codifica, é outro gene (esquematiza no quadro). 4. Camila Guimarães: Professora, você não acha que aquele trecho [não codificante] pode servir para alguma coisa? 5. Letícia: É, ele deve servir pra alguma coisa. 6. P: Pois é, este DNA tem sido chamado de DNA-lixo. 7. Camila Guimarães: Mas ele não pode ter ... 8. Nathan: Pode dar choque entre os dois (refere-se aos trechos codificantes e que estão separados pelo não codificante). 9. João: Inaudível. 10. Letícia: Ele pode servir (inaudível) uma estrutura. 11. P: Pensa aí. 12. Letícia: Pra ter estrutura. 13. Thais: Professora, se os genes estivessem muito perto ia ter interferência. 14. Nathan: É como se fosse os elétrons, nêutrons e prótons. Os nêutrons servem (inaudível) 15. P: E pra conferir massa. 16. Camila Guimarães: Inaudível 17. P: Qual a função? Ele deve servir ... querem ver um dado... 18. Nathan: Quantos por cento é lixo. 19. P: 97% 20. Als: Nossa! 21. P: Só 3% do nosso DNA informa... 22. Nathan: Ah, ele serve pra alguma coisa. 23. Letícia: Professora (inaudível) 24. P: A gente depois pode ler alguma coisa sobre esta questão. 25. Camila Guimarães: Enfim, eles têm uma resposta pra isso. 26. P: Eles ainda não têm uma resposta definitiva. Eles têm uma hipótese. 27. Nathan: Ah, o método científico. 28. P: Eles supõem que este DNA pode ter uma função reguladora... (Camila e Nathan conversam) 29. Nathan: Professora, a Camila tem uma HIPÓTESE. 30. P: Camila você tem uma hipótese. 31. Camila Guimarães: Ah, eu viajei. Eu pensei que esses genes, que essa parte que é nada, lixo, que eles pudessem, por exemplo, o ser humano no decorrer de sua vida pudesse acrescentar novas informações, novos genes. 32. P: Em algum momento da evolução? 33. Nathan: Mandou muito bem.

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34. P: A gente pode voltar a conversar sobre isso..

Esta seqüência, que faz parte do terceiro episódio da primeira aula, se inicia com uma

formulação da professora cuja intenção é resgatar com os alunos os conceitos de DNA e gene,

tais como propostos na versão escolarizada da ciência, a fim de elucidar a diferença estrutural e

funcional da heterocromatina e eucromatina, que vinha construindo anteriormente. Thaiana, logo

no turno 2, apresenta uma resposta que corresponde às expectativas da professora já que, no turno

3, para marcar e controlar estes significados, ela parafraseia a aluna e esquematiza no quadro um

filamento de DNA, tracejando com giz colorido partes que representariam DNA codificante e

DNA não-codificante.

A intervenção da professora introduz no contexto uma nova informação relativa à

existência de trechos de DNA que não estão diretamente relacionados à síntese de proteínas e,

portanto, à definição de características hereditárias. Este novo elemento vai reorientar o eixo da

discussão da heterocromatina e eucromatina para o papel desse DNA-lixo nos organismos.

Enfim, a seqüência que se inicia como uma abordagem comunicativa de autoridade, pois é

intenção da professora fixar significados relativos a DNA e genes, acaba encaminhando uma

interação de natureza predominantemente dialógica, com alternância de turnos, caracterizando

uma cadeia aberta pois ao seu final não observamos uma síntese da discussão ou alguma forma

de avaliação.

Camila Guimarães, já no turno 4, reconhece essa informação como um novo problema

que precisa ser enfrentado e questiona: “Professora, você não acha que aquele trecho [não

codificante] pode servir para alguma coisa?”. Assumimos que esta fala expressa uma forma de

engajamento disciplinar já que no curso da interação, a partir das informações que são postas em

circulação e dos seus conhecimentos previamente construídos, a aluna identifica um novo

problema que é de natureza biológica pois o DNA-lixo tem sido objeto de estudo e vem

mobilizando os biólogos moleculares no sentido de compreender a sua função

A intervenção de Camila Guimarães acaba por envolver outros alunos que passam a

formular possíveis explicações para a existência desse DNA não-codificante. Letícia, nos turnos

10 e 12, considera um possível papel estrutural desses trechos de DNA. Já Thais, no turno 13,

sinaliza que deve ser um material necessário para isolar genes que se situam na mesma molécula

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de DNA, pois “se esses genes estivessem muito perto ia ter interferência”, aproximando-se da

idéia apresentada por Nathan no turno 12 (Pode dar choque entre os dois).

Na verdade, Thais parece intuir um aspecto importante: os genes possuem marcadores

iniciais e finais que os delimitam nos longos filamentos de DNA. Tais marcadores são seqüências

de bases nitrogenadas específicas permitindo a transcrição exata da molécula de RNA

mensageiro correspondente àquele gene. Mas estes marcadores não são considerados DNA-lixo

já que desempenham uma função específica. Vale destacar que esta “intuição” de Thais deve

apoiar-se em uma base que se situaria num entendimento ou visão geral da organização do

pensamento biológico. Entretanto, a professora não incentiva uma maior elaboração da idéia da

aluna; apenas a parafraseia com uma entonação reticente aceitando-a como mais uma possível

explicação para o tema. Talvez percebendo que este movimento da professora indique que ainda

não foi elaborada uma resposta adequada, Nathan, no turno 14, arrisca comparar o DNA-lixo aos

nêutrons, partículas nucleares do átomo sem carga elétrica mas que, juntamente com os prótons,

definem a massa atômica dessa entidade. Aproxima dois sistemas explicativos bastante distintos

no sentido de fazer emergir um novo significado relativo ao papel do DNA-lixo.

A professora resolve então alimentar a discussão pois percebe a mobilização e interesse

dos alunos. Assim, no turno 17, pretende apresentar um dado mas é interrompida por Nathan que,

no turno 18, antecipando-se, pergunta pelo percentual de DNA-lixo na espécie humana. Ao serem

informados de que aproximadamente 97% do DNA humano corresponde a DNA não-codificante,

os alunos manifestam uma certa surpresa e ao mesmo tempo tomam este dado como uma

evidência que confirma suas suspeitas de uma possível função para este material nos processos

celulares, como expressa Nathan no turno 22 ao afirmar: Ah, ele serve pra alguma coisa!

No turno 24, a professora pretende encerrar a discussão sugerindo a leitura posterior de

artigos sobre o tema. Sinaliza, portanto, que o aprofundamento no tópico em questão é importante

e exige o apoio de uma literatura adequada aos alunos. Entretanto, perde a oportunidade de fazê-

lo e de promover um trabalho que inclua a organização de um espaço público de debate. De

qualquer forma, Camila Guimarães, no turno 26, parece não estar disposta a abandonar a

discussão; quer saber se existe uma resposta para este problema. A professora, no turno 24, havia

advertido sobre a existência de hipóteses num indicativo de que a questão do DNA-lixo ainda

encontra-se em aberto, o que significa que não há respostas definitivas para explicar o seu papel

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no genoma humano. A expressão “hipótese” usada pela professora é rapidamente relacionada ao

método científico por Nathan, no turno 27, o que sugere uma certa restrição de significados que é

dada pelo contexto em que se realiza a aula orientando uma certa forma de pensar e falar sobre o

fenômeno em questão. No turno 28, a professora ensaia apresentar a explicação que vem sendo

elaborada pelos cientistas, que se refere ao papel regulador do DNA-lixo. Mas Camila Guimarães

e Nathan não estão prestando atenção à professora. Supomos que, neste momento, Camila

Guimarães estivesse compartilhando com Nathan suas idéias e procurando, de alguma forma,

avaliá-las a fim de torná-la pública. Assim, Nathan, no turno 29, interrompe a professora e

anuncia que Camila tem uma “hipótese”, ou seja, que Camila tem uma possível resposta para

explicar o papel do DNA-lixo. A palavra hipótese é usada em um tom bastante assertivo pelo

aluno indicando que o que vai ser dito e como vai ser dito de certa forma, alinha-se a uma das

etapas do método científico. Isto parece apontar para a restrição de alguns significados, inclusive

daqueles que já se fizeram circular no curso da interação, uma vez que a perspectiva biológica

deve orientar a possível explicação formulada pela aluna. A nosso ver, este movimento sinaliza

que Camila Guimarães se propõe a ocupar um lugar de especialista, falar de um lugar de

autoridade e tem segurança para fazê-lo. Procura estabelecer conexões entre vários elementos

para construir sua “hipótese”. Esta atitude está diretamente relacionada com o contexto interativo

de produção em que se organiza esta sala de aula quando, aos alunos, é dado espaço para se

posicionarem, para problematizarem e apresentarem soluções para novas questões. Esta

organização parece favorecer o engajamento disciplinar produtivo dos alunos evidenciado pelo

nível de participação, pela construção de argumentos mais elaborados e sofisticados e pelas novas

conexões de idéias que vão sendo estabelecidas.

Camila, no turno 31, formula sua hipótese: “[...] Eu pensei que esses genes, que essa parte

que é nada, lixo, que eles pudessem, por exemplo, o ser humano no decorrer de sua vida pudesse

acrescentar novas informações, novos genes”. A professora, aparentemente, parece concordar

com a aluna mas não oferece nenhuma sistematização acerca de sua produção, seguindo a

questão em aberto.

Alguns aspectos se revelam na enunciação de Camila Guimarães: primeiro, a apropriação

coerente acerca do significado de gene para formulação de sua hipótese; segundo, sua posição

marcadamente evolucionista pois reconhece que, no curso da evolução humana, ocorrem

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modificações nesse equipamento genético que resultam no aparecimento de novas informações e

portanto de novas características.

A idéia de Camila Guimarães encaminha não apenas uma forma biológica de dizer mas

uma forma biológica de pensar o fenômeno. As relações estruturais e funcionais entre DNA

codificante e não codificante, genes e síntese de proteínas para explicar a trajetória evolutiva dos

organismos, orientam a perspectiva da aluna e encontram-se na base do pensamento

evolucionista. Dessa forma, considera que esse DNA-lixo possa ser responsável por transmitir

informações ou novas informações para o desenvolvimento e a evolução das espécies. É a partir

do conceito de gene como trecho de DNA que codifica uma proteína, apresentado logo ao início

da seqüência, que o processo de construção de Camila Guimarães foi orientado. Esse conceito é

então relacionado à evidência de que o DNA-lixo é bastante significativo no genoma humano e

por isso mesmo deve cumprir um papel ainda que não elucidado. Esses elementos mobilizados

pela aluna são integrados a uma concepção evolucionista, quando reconhece que mudanças

estruturais e funcionais nos seres vivos operam-se no nível genético. Nesta perspectiva, considera

que trechos de DNA que hoje não codifica informações poderão um dia tornar-se codificantes.

Com este percurso, Camila Guimarães constrói uma ‘hipótese’ que, do ponto de vista da

Biologia, é bastante coerente. Pesquisadores têm considerado que este material genético

aparentemente sem significado, presente inclusive nos trechos que correspondem aos genes49,

poderia originar novas combinações e, conseqüentemente, codificar informações para a produção

de novas proteínas. Assim, um mesmo gene poderia ser “editado” de diferentes maneiras,

permitindo que um universo pequeno de genes, como é o caso de organismos complexos como o

homem, origine uma variedade protéica significativamente maior (AST, 2005).

Assistimos nesta seqüência que as interações realizadas entre professor/alunos e

alunos/alunos em torno de um conteúdo a ser ensinado abrem a possibilidade de um contexto

argumentativo que, dialeticamente, propicia a elaboração de novas aproximações ao significado.

Ou como diz Candela (1998, p.144):

49 Este material genético sem significado é chamado de íntron. No processo de síntese de uma proteína, estes íntrons são copiados formando um RNA mensageiro primário. Posteriormente, esses íntrons são cortados ficando apenas os trechos codificantes (éxons). Atualmente existem indícios de que em alguns casos esses íntrons podem agir como éxons originando um novo tipo de RNA mensageiro que resulta em uma nova proteína.

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No contexto discursivo, os indivíduos constroem versões diversas sobre um conteúdo, dependendo das situações de interação, mas também das diversas histórias e características individuais. Estas versões são confrontadas, negociadas, reconstruídas no próprio processo de interação, e é nesse processo interativo que vão sendo definidos diversos significados.

Não era intenção da professora discutir DNA-lixo mas Camila Guimarães reconhece isso

como uma questão, como um problema a ser enfrentado. Define a temática da seqüência

discursiva que é acolhida pela professora e pelos demais alunos que se filiam à discussão. Neste

contexto, os alunos vão revelando concepções, articulando idéias, elaborando hipóteses.

Apropriando-se de alguns instrumentos mediacionais pertinentes a um sistema cultural, no dizer

de Werstch (1998) – problematizar, relacionar, mobilizar, aproximar – os alunos vão construindo

uma forma específica de olhar um fenômeno. Em outras palavras, o uso dessas ferramentas

cognitivas em um contexto específico de produção viabiliza, em um movimento dialético e

dialógico, a apropriação/construção de novos conceitos relativos a um domínio específico de

conhecimento.

7.5 Por que o óvulo tem que ser da outra ovelha? Dando visibilidade à instabilidade

conceitual dos alunos

A seqüência discursiva que apresentamos a seguir faz parte do segundo episódio da

segunda aula quando a professora propõe algumas questões para serem discutidas e registradas

por escrito em pequenos grupos a partir da leitura do texto “Dolly, o núcleo e os clones”. Nesta

atividade, o objetivo da professora é destacar o papel do DNA na construção de uma identidade

biológica dos indivíduos além de sinalizar acerca da capacidade de autoduplicação desta

molécula, o que vai garantir que todas as células de um mesmo organismo apresentem o mesmo

material genético. No grupo videofilmado, estão cinco alunos: Nathan, Thais, Thaiane, Manuela e

Camila Guimarães. A leitura do texto, feita por Thais, é acompanhada atenciosamente pelos

demais participantes do grupo. Observamos que esta leitura é constantemente interrompida para

que os alunos resgatem informações, manifestem dúvidas, conflitos e surpresas e expressem suas

idéias sobre clones e processo de clonagem. Com estes movimentos discursivos, os alunos

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constroem um espaço dialógico sem a mediação da professora, o que, de certa forma, favorece o

enfrentamento dessas mesmas dúvidas e contradições entre os seus conhecimentos e as

informações disponibilizadas no texto.

Thais manipula os textos recebidos. 1. Nathan: Ah!!! A ovelhinha. É a Dolly (depois de consultar o material recebido). Thais inicia a leitura do texto enquanto os outros alunos ouvem atentamente. 2. Camila Guimarães: Lê aqui o que são clones. Thais Lê o iconográfico que define clones e apresenta alguns exemplos inclusive o de gêmeos idênticos. 3. Nathan: Gêmeos idênticos, clones? Não sabia. Sabia? (Dirigindo-se a Thaiane). 4. Thaiane: Não. 5. Nathan: Lógico que não sabia. (Risos). Thais continua a leitura. 6. Thaiane: Que legal! (Diante das informações lidas). 7. Camila Guimarães: Nossa! Mais coisa. (Refere-se à extensão do texto). 8. Nathan: Mais coisa. Thais continua a leitura. 9. Nathan: Glândulas mamárias? 10. Thais: É. (Continua a leitura). 11. Camila Guimarães: Calma aí, rapidinho. Ele tira dessa [da ovelha doadora da célula da glândula mamária e que será clonada] (apontando para o esquema de clonagem que acompanha o texto). 12. Thais: Das glândulas mamárias. 13. Camila Guimarães: E de outra ovelha... 14. Thais: ...o óvulo. 15. Nathan: Por que não pode ser da mesma? 16. Camila Guimarães: É, por que? 17. Thaiane: Provavelmente (inaudível) Risos 18. Camila Guimarães: Não, é sério. Eu não entendi! 19. Nathan: Eu também não entendi. Chamam a professora que neste momento atende a um outro grupo. Thais continua a leitura. 20. Camila Guimarães: Meu Deus! (manifestando espanto diante das informações). 21. Nathan: Pra mim seria a que doasse o óvulo. 22. Camila Guimarães: É. Calma aí. Pra mim seria... 23. Manuela: Seria igual a primeira, a segunda ou a que gerou? 24. Camila Guimarães: Igual a primeira. Então esse óvulo é só pra englobar (inaudível). 25. Nathan: Pra mim já pegava o embrião pronto e implantava. Sei lá. 26. Camila Guimarães: É na barriga da outra pessoa, é da outra ovelha. É, eu só queria saber por que o óvulo tem que ser da outra pessoa, da outra ovelha. (Retoma o esquema e analisa). Muitas vozes (...)

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Nesta seqüência, os alunos começam por manipular o texto recebido, o que permite uma

primeira aproximação ao tema que será abordado como expressa Nathan logo no turno 1 (Ah! A

ovelhinha. É a Dolly.). Seu enunciado revela uma certa familiaridade acerca do nascimento de

Dolly, o primeiro mamífero a ser clonado com sucesso que foi amplamente divulgado pela mídia

e hoje é referência em todos os livros didáticos quando tratam da manipulação genética. Talvez

esta primeira aproximação ao texto se constitua, de um lado, em uma necessária limitação de

significados mas, de outro, como uma abertura para que novos sejam construídos. Consideramos

que esta tensão entre restrições e possibilidades se caracteriza com mais clareza nesta seqüência

já que o texto didático, que representa a voz científica escolar, introduz novos elementos ou

significados ao mesmo tempo que restringe aqueles que os alunos fazem circular e sustentam no

curso da interação.

Neste movimento, Thais inicia a primeira parte da leitura que traz informações sobre

formação da célula-ovo que comporta em seu núcleo todo o material genético necessário para a

definição das características de um indivíduo. A partir daí, o texto ressalta os processos

sucessivos de divisão celular que essa célula-ovo sofre e que são acompanhados de processos de

duplicação de material genético para garantir que todos os núcleos de todas as células contenham

as mesmas informações. Este percurso conceitual feito pelo autor (CÉZAR; SEZAR, 2006) serve

para mostrar que, a partir do núcleo de qualquer célula somática de um indivíduo, é possível

formar outro idêntico a ele, ou seja, produzir um clone.

Camila Guimarães, no turno 2, orienta Thais para que leia o texto do iconográfico que

conceitua clones e apresenta alguns exemplos de clones produzidos naturalmente. Estes exemplos

incluem os gêmeos idênticos ou monozigóticos, o que parece ser uma novidade para Nathan e

Thaiane, como expressam nos turnos 3, 4 e 5. Talvez este caráter de novidade possa ser explicado

pelas concepções que esse grupo de alunos possui acerca de clones pois, revendo o questionário

respondido por eles ao início da unidade, todos sinalizam que clones são organismos produzidos

artificialmente em laboratórios. Entretanto, a assunção desse novo elemento introduzido no

contexto da discussão não gera nenhuma polêmica e será mobilizado pelos alunos em outras

seqüências interativas.

Após os alunos de certa forma reclamarem da extensão do texto, Thais inicia a leitura da

segunda parte que se refere à técnica da clonagem. O texto é bastante didático e apresenta

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sucintamente as etapas para se produzir um clone, além de estar acompanhado de um esquema

que ajuda a esclarecer e visualizar essas etapas. Thais então começa: “Em 1, células da glândula

mamária de uma ovelha doadora são retiradas e colocadas num meio de cultura (...)” Neste

momento é interrompida por Nathan que deseja confirmar se são células da glândula mamária

(turno 9) o que é confirmado por Thais que segue lendo o texto: “Em 2, extrai-se de outra ovelha

doadora um óvulo, do qual o núcleo é retirado. Em 3, é feita a fusão entre o óvulo – sem núcleo

– e uma célula de glândula mamária, nucleada (...)”. As informações trazidas pelo texto parecem

gerar uma certa dúvida que é reconhecida pelos alunos, principalmente por Nathan e Camila

Guimarães, como vemos nos turnos 11, 13, 15, 16 e 18, quando expressam não entender os

motivos de serem usadas células de duas ovelhas diferentes no processo de clonagem. Essa

dúvida parece apontar para lacunas nas bases conceituais desses alunos.

Consideramos que esses alunos sabem que clones correspondem às cópias genéticas

idênticas de um organismo, como revelam os questionários respondidos por eles para

levantamento das concepções prévias. Mais ainda, sustentam que, como são cópias genéticas,

dispensam a necessidade de outro(s) organismo(s) no seu processo de produção. Ou mais

especificamente, que este material genético do organismo a ser clonado é “introduzido” em um

óvulo desse mesmo organismo. O embrião produzido é implantado no útero de um outro

indivíduo. Essas suspeitas são confirmadas nos turnos 24 e 25 respectivamente por Nathan e

Camila Guimarães. Assim, supomos que os alunos se vêem diante de informações que não são

apenas novas mas totalmente diferentes daquelas que possuem acerca de clones e clonagem. Por

isso mesmo, percebemos a instalação de uma instabilidade conceitual e que, na perspectiva

construtivista, é uma condição necessária à elaboração de novos significados. Este conflito é

visualizado especificamente a partir das falas de Nathan no turno 15 (Por que não pode ser da

mesma?) e de Camila Guimarães no turno 18 (Não, é sério. Eu não E-N-T-E-N-D-I).

Na ausência da professora que estava atendendo a um outro grupo, os alunos resolvem

seguir com a leitura. Thais reinicia: “No estágio 4, a célula proveniente dessa fusão sofre

divisões, em meio de cultura, e resulta num pequeno embrião, que é implantado no útero de uma

terceira ovelha, que poderíamos chamar de ‘mãe de aluguel’ (...)”. A entrada em cena de uma

terceira ovelha parece aumentar a confusão dos alunos em torno da técnica para clonagem de

animais, como indica Camila Guimarães no turno 20. Para Nathan, no turno 21, a ovelha que

doasse o óvulo funcionaria como “mãe de aluguel”, uma suspeita que é compartilhada com

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Camila Guimarães. Já Manuela, no turno 22, expressa uma outra dúvida relativa ao organismo

que foi efetivamente clonado (Seria igual a primeira, a segunda ou a que gerou?). Para Camila

Guimarães, este não é o problema, à medida que rapidamente responde, no turno 23, que seria

igual à primeira. Dessa forma, parece reconhecer que a célula que permaneceu com o núcleo e,

portanto, com o material genético é proveniente da primeira ovelha doadora da célula da glândula

mamária. Entretanto, sua questão é outra: compreender o papel dessas diferentes ovelhas no

processo de clonagem. Neste momento, podemos supor que os alunos, especificamente Camila

Guimarães, mobilizando as informações oferecidas pelo texto, “sabem que”, para a clonagem,

são necessários três organismos diferentes: um doador da célula com núcleo e que será clonado;

um doador de um óvulo que terá seu núcleo removido e um terceiro que funciona como mãe de

aluguel. Entretanto, querem ir além, precisam “saber o porquê” do uso desses três animais

diferentes ou, como diz Camila Guimarães no turno 26: “[...] eu só queria saber por que o óvulo

tem que ser da outra pessoa, da outra ovelha”. Sua fala é acompanhada por uma nova análise do

esquema que acompanha o texto, evidenciando um esforço em elucidar o problema. Talvez uma

resposta coerente tenha começado a ser ensaiada na segunda parte do enunciado que Camila

Guimarães elabora ainda no turno 23: “Então esse núcleo é só para englobar (...)”.

Alguns aspectos acerca do processo de significação desses alunos chamam a atenção nesta

seqüência interativa. O primeiro é o estabelecimento de um conflito, ou melhor, de uma certa

instabilidade conceitual entre aquilo que os alunos sabiam sobre a clonagem e as novas

informações que vão sendo apresentadas pelo texto. Esta instabilidade, expressa em um nível

interpessoal nas/pelas interações discursivas que são construídas, contribuem para uma

estabilidade social e afetiva entre os componentes do grupo, particularmente Nathan e Camila

Guimarães. Assistimos a uma “dança” de instabilidade e estabilidade (LEANDER; BROWN,

1999) que se organiza a partir dos diferentes significados que são reconhecidos e confrontados

pelos alunos, refletindo uma “atitude responsiva” (BAKHTIN, 1992) necessária ao processo de

re-elaboração de novos significados. Em outras palavras, os alunos não ignoram aquilo que é

“dito” pelo texto; ao contrário, se apropriam das informações disponibilizadas considerando-as

relevantes para ampliação dos seus próprios entendimentos.

Neste movimento de intensa negociação, percebemos que a proposta inicial da professora

– a saber, centralizar a discussão no processo de autoduplicação do DNA como mecanismo capaz

de garantir que o núcleo de qualquer célula do corpo de um organismo contenha todas as

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informações genéticas sobre esse organismo - é deslocada, redefinida e transformada em uma

questão específica estabelecida pelos alunos no curso da interação.

Estes aspectos nos fazem crer que

[...] o que mobiliza um aluno, o que o introduz em uma aprendizagem, o que lhe permite assumir as dificuldades da mesma [...] é o desejo de saber e a vontade de conhecer. Sem esse desejo nele, só a mecânica pode responder (...) e o desejo nasce assim do reconhecimento de um espaço para investir de um lugar e de um tempo para estar, crescer, aprender. (MEIRIEU, 1998, p. 86 e 92).

7. 6 Ainda sobre clones e clonagem: evidenciando a reelaboração de significados

A seqüência anterior se desdobra ainda em uma longa discussão (que não será transcrita

aqui) onde os alunos mobilizam diferentes conceitos na tentativa de encontrar uma resposta

coerente capaz de explicar o problema formulado logo ao início da leitura. No curso dessa

discussão, solicitam a presença da professora iniciando uma nova seqüência que revela ao mesmo

tempo as dúvidas que ainda persistem e indícios de apropriações de novos significados.

1. Nathan: Professora, surgiu uma dúvida. 2. Camila Guimarães: Me explica uma coisa, COMO PODE SER. Nós temos duas fêmeas, certo? Por que você tira as células da glândula mamária de uma e o óvulo de outra? Por que não pode ser tudo da mesma. 3. P: Faz parte da técnica da clonagem para ao final você garantir que produziu um clone. 4. Camila Guimarães demonstra espanto 5. Nathan: Inaudível 6. P: Prá você garantir que houve manipulação. Se você usa o óvulo dela mesma e o material genético da glândula mamária... 7. Al: Ia ficar ela mesma... 8. Thais: É... 9. Al: Agora eu entendi. 10. Manuela: ... Você precisa usar uma de cada uma [uma célula de cada animal] pra garantir que você está produzindo um clone. 11. P: Isso. Você usa duas para garantir que você está conseguindo manter esse material genético intacto ainda que o óvulo seja de outra ovelha.

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12. Nathan: Ah, então a intenção é esta? Que esse clone vai conseguir ter esse mesmo DNA, mesmo que o óvulo venha de outra ovelha... 13. P: Tanto é que essas ovelhas são de raças diferentes. 14. Camila Guimarães: Então o DNA da segunda ovelha não vai interferir na criação do DNA da primeira? 15. P: O DNA do núcleo do óvulo é Re-TI-RA- DO(aponta para o esquema), este óvulo não tem núcleo. Só que existe um outro DNA que está fora do núcleo que é o DNA mitocondrial e que continua aqui [no citoplasma do óvulo] (aponta novamente para o esquema). 16. Camila Guimarães: O clone é a cópia perfeita da primeira ovelha? 17. P: Do DNA nuclear é, mas como aqui, como não foi removido o DNA mitocondrial o embrião tem DNA mitocondrial dela (se refere ao óvulo). 18. Camila Guimarães: Dessa aqui não (se refere a ovelha doadora do óvulo). 19. P: Dessa aqui TAMBÉM. 20. Camila Guimarães: Ai meu Deus (leva as mãos à cabeça). 21. Nathan: Inaudível. 22. P: ... Este clone ainda que considerado perfeito tem DNA mitocondrial das duas ovelhas. (...) 23. Nathan: Professora, poderia ser retirado então as mitocôndrias dessa segunda, desse óvulo aqui ou seria impossível? 24. P: Não sei. Porque senão você deixa a célula sem energia. 25. Camila Guimarães: É, sem energia. É, então olha aqui, nós podemos responder que é igual a primeira ovelha, porque é a doadora da célula com núcleo mas há controvérsias porque é o caso... 26. Nathan: Do DNA mitocondrial. Inclusive da ovelha que doou o óvulo. 27. Camila Guimarães: Do DNA mitocondrial (registra na folha de respostas).

Nesta seqüência, consideramos que tanto professor quanto alunos procuram alinhar-se a

uma perspectiva científica acerca da técnica da clonagem e do próprio conceito de clone,

caracterizando uma abordagem de autoridade mais interativa. Camila Guimarães é a porta-voz do

grupo e é em torno principalmente de sua considerações que as questões vão sendo organizadas e

orientadas. Assim, no turno 2, Camila Guimarães socializa a dúvida do grupo. Seu enunciado

reflete a incorporação da idéia trazida pelo texto, ou seja, a de que, na clonagem, são usadas duas

ovelhas onde uma delas funciona como doadora de óvulo. Ao mesmo tempo, reflete sua própria

concepção do que seja um clone (Por que não pode ser tudo da mesma?). Em outras palavras, se

clones são cópias genéticas idênticas de um mesmo organismo, por inferência, apenas um

organismo deve ser necessário neste processo de reprodução. Veja que o uso de uma terceira

ovelha, que funciona como “mãe de aluguel”, não se constitui em um problema, talvez porque

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sua questão se situe em um nível celular, especificamente na utilização de um óvulo que é doado

por uma segunda ovelha.

Nos turnos 3 e 6, a professora procura explicar o problema a partir dos procedimentos

metodológicos que envolvem a produção de um clone. São usados três organismos de raças

diferentes o que vai permitir, ao final do processo, comparar, por contraste, o material genético de

cada um deles ao do organismo gerado artificialmente. Com isto, é possível confirmar-se que um

clone foi produzido, à medida que ele deve apresentar apenas o material genético da ovelha

doadora da célula da glândula mamária nucleada, já que o núcleo do óvulo havia sido retirado.

Camila Guimarães tinha certa razão ao supor que este óvulo funcionasse como uma “célula

receptora” do núcleo que contém o material genético a ser usado. Entretanto, é preciso destacar

que o óvulo é também a célula que, por conta de sua especificidade bioquímica, é capaz de se

dividir dando inicio ao desenvolvimento embrionário.

Após esta intervenção, os alunos evidenciam movimentos que indicam um processo de re-

significação, à medida que parafraseiam a professora confirmando que entenderam a questão.

Este é o caso de Manuela que, no turno 10, enuncia: “[...] Você precisa usar uma de cada uma

[uma célula de cada animal] pra garantir que você está produzindo um clone”. E de Nathan, no

turno 12, que diz: “Ah, então a intenção é esta? Que esse clone vai conseguir ter esse mesmo

DNA, mesmo que o óvulo venha de outra ovelha...”. Percebemos que a fala da professora, nos

turnos 11 e 13, têm um caráter avaliativo, ou seja, de confirmar os significados produzidos pelos

alunos. Visto desse ângulo, podemos assumir, a partir de uma perspectiva bakhtiniana, que a

“palavra alheia” vai se tornando palavra “alheia própria” e, finalmente, palavra “própria” num

percurso que parece fazer emergir um novo significado delimitado pelas próprias condições

contextuais em que se realiza.

Entretanto, a pergunta formulada por Camila Guimarães, no turno 15, sugere que ainda

não está claro para ela, e talvez para os outros alunos, que o núcleo do óvulo foi extraído e,

portanto, encontra-se destituído de DNA nuclear. Assim, no turno 16, a professora procura

inicialmente marcar esta informação valendo-se inclusive de uma entonação mais assertiva e

pausada para, em seguida, introduzir um novo elemento referente ao DNA mitocondrial50.

50 As mitocôndrias são organelas celulares responsáveis pelo processo de respiração celular. São constituídas de um DNA próprio que hoje se sabe contém genes responsáveis por algumas doenças como a doença de Leber, uma atrofia óptica que causa a cegueira nos humanos.

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Algumas particularidades podem ser mapeadas a partir dessa estratégia da professora. Primeiro,

que considera resolvido o problema inicialmente identificado pelos alunos uma vez que

aparentemente reconhecem que o óvulo é apenas uma célula receptora no processo de clonagem;

segundo, que leva em conta o nível de engajamento dos alunos no contexto de aprendizagem

como uma condição favorável à ampliação e aprofundamento de significados.

Camila Guimarães, no turno 15, tomando como referência apenas a relação DNA –

núcleo, procura confirmar sua idéia de que o clone é uma cópia perfeita da ovelha doadora da

célula nucleada pois reconhece que é nele que se concentra o material genético responsável pelas

características do organismo. Com o uso da palavra “perfeita” pela aluna, a professora insiste em

analisar a clonagem considerando o DNA mitocondrial. Sua fala, nos turnos 16, 19 e 22,

evidencia que mitocôndrias, portadoras de um DNA específico, tanto da célula da glândula

mamária quanto do óvulo, serão encontradas no clone. Enquanto Camila Guimarães, não sem

razão, manifesta uma certa confusão, Nathan, no turno 23, propõe que sejam extraídas as

mitocôndrias do óvulo para que o problema seja resolvido. Se, do ponto de vista conceitual, a

proposta de Nathan revela uma certa fragilidade, já que as mitocôndrias são organelas que numa

relação interfuncional fornecem energia para as células, do ponto de vista metodológico

consideramos que há uma certa lógica científica na sua forma de pensar. Como bem assinalado

por Knorr-Cetina (1992 e 1981), nos laboratórios, os objetos são transformados e manipulados,

correspondendo sempre a versões parciais de um fenômeno. O aluno parece reconhecer esta

dimensão da produção científica, o que lhe permite posicionar-se como um “especialista” a fim

de propor uma alternativa para uma questão que ainda não se encontra resolvida na técnica de

clonagem.

Ao final da seqüência, os alunos, ao elaborarem a resposta para uma das questões

propostas pelo texto, parecem sistematizar a discussão realizada incorporando e articulando os

significados que fizeram circular neste contexto. E assim, registram: “nos podemos responder

que é igual à primeira ovelha, porque é a doadora da célula com núcleo, mas há controvérsia

porque existe o DNA mitocondrial. Inclusive da ovelha que doou o óvulo”.

Dessa forma, podemos considerar que os alunos realizam uma articulação entre estruturas

(núcleo – DNA e mitocôndrias – DNA) para construírem uma interpretação específica para o

fenômeno em questão. Essas relações serão novamente exploradas por estes alunos quando

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apresentam ao final da unidade de ensino o trabalho sobre clonagem, que discutimos no capítulo

9.

7.7 Uma articulação entre o observável e o microscópico: significando o conceito de

transgênico

A manipulação genética é um tema que tem sido amplamente explorado, tanto pela

literatura quanto pelo cinema, e contribui de forma decisiva para povoar o imaginário das

pessoas. Um exemplo é o livro de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo, que, já em 1816,

anunciava uma sociedade totalitária onde crianças eram concebidas e gestadas em laboratórios

constituindo castas com finalidades específicas. Também neste período, a inglesa Mary Shelley

dá vida a Frankenstein, talvez o primeiro ser híbrido criado na ficção. Numa época em que reina a

biotecnologia, os filmes que têm como foco a produção de humanos transgênicos e clonados,

como A Mosca e Allien, ganham cada vez mais espaço e público contribuindo para o que Fourez

(1995) tem chamado de “vulgarização da ciência”.

Talvez influenciado por esta “fantaciência”, João dá início a uma seqüência que faz

parte do quarto episódio da terceira aula dessa unidade de ensino.

1. João: Professora duas perguntas. 2. P: Vamos lá, João. 3. João: Primeiro, por exemplo, pode alterar o gene da árvore, assim, pra ela crescer altona... grandona? 4. P: Mais alta, pra dar mais frutos. 5. Manuela: Ela acabou de falar isso. 6. P: É uma técnica chamada de melhoramento genético. Uma forma de seleção de genes que, por assim dizer, melhora a qualidade da espécie. 7. Al: Inaudível. 8. P: A transgenia é uma técnica que permite a transferência de genes de uma espécie em outra espécie. Como o Rafael falou. Gene, por exemplo, que confere resistência a determinados herbicidas, pra matar ervas daninhas, sem afetar as plantas que deseja cultivar. Genes de bactérias podem ser introduzidos. A questão é saber como isso vai se comportar no nosso organismo. A gente já come transgênico? 9. Als: Já. 10. P: Bem... 11. João: Mas professora eu disse que eram duas. 12. P: É verdade.

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200

13. João: Tem um molequinho pra nascer. Aí botam o gene da coruja nele. Aí ele vai nascer com o olhão grandão (gesticula para indicar os olhos da coruja). Risos – Muitas vozes. 14. P: João, uma estrutura tão sofisticada como os olhos você necessita de muitos genes em jogo. 15. João: Mas se botar vários genes. 16. P: Não. A técnica da transgenia ainda não está completamente dominada. Ronnie...

Nesta aula, a professora tem como objetivo discutir o processo de autoduplicação de

DNA. No curso da atividade, a professora simula algumas alterações na seqüência de bases do

DNA que está esquematizado no quadro a fim de introduzir noções relativas às mutações gênicas.

Esta simulação parece ser a senha para autorizar uma participação dos alunos que começam, de

certa forma, a gerenciar as temáticas de interesse que desejam trabalhar. Entre estas temáticas

está a de organismos geneticamente modificados (transgênicos) que, segundo o levantamento das

concepções dos alunos, analisado no capítulo 5, ainda é uma questão não muito bem esclarecida

para os alunos. Em seqüência anterior, Rafael havia apresentado uma definição bastante

adequada para organismos transgênicos, valendo-se particularmente de um exemplo relacionado

à dimensão terapêutica. A discussão avança quando a intervenção de João marca o início de uma

seqüência interativa que revela a tensão contínua entre o discurso de autoridade e o discurso

dialógico. João fala do lugar do senso comum, do seu ponto de vista, enquanto a professora dá

voz a uma perspectiva científica. A professora recorre a conceitos científicos: melhoramento

genético, seleção de genes e caminha em direção à abstração. João, na contra-mão, segue em

direção à ficção. Apresenta situações, deseja contextualizar. Talvez um percurso que lhe permita

significar o conceito de transgênico. Vejamos este percurso.

João, no turno 3, quer saber sobre a possibilidade de se alterar genes para se interferir na

estrutura de uma planta, como por exemplo para fazê-la “crescer altona... grandona”. A resposta

da professora tem caráter avaliativo e procura confirmar a idéia de João. A intervenção de

Manuela, no turno 5, sugere que este é um conhecimento compartilhado pela turma, ou pelo

menos por alguns alunos da turma, já que se trata de uma questão anteriormente abordada no

curso da discussão. De qualquer forma, vale dizer que o processo de significação em uma sala de

aula é bastante complexo e mesmo desigual. Não temos como garantir que significados sejam

efetivamente construídos e compartilhados por todos os integrantes do grupo. Ainda que haja um

esforço por privilegiar alguns significados em detrimento de outros, significados alternativos são

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201

construídos ao mesmo tempo em que lacunas também permanecem, podendo ser reintroduzidas

no curso do processo interativo. Talvez por considerar esses mecanismos como próprios do

processo de aprendizagem é que a professora, nos turnos 6 e 8, resgata noções de melhoramento

vegetal e de organismos geneticamente modificados. Para isso, toma como referência a voz de

Rafael que já se fizera circular neste contexto. Procura marcar significados chave, como por

exemplo genes, mas, ao mesmo tempo, deseja ampliar ou exemplificar a discussão em torno do

consumo de alimentos transgênicos. Entretanto, a intervenção de João, no turno 13, interrompe

essa possível trajetória de trabalho. A questão proposta pelo aluno revela um movimento que

procura significar o conceito de organismo transgênico a partir de uma perspectiva

contextualizada. Diferentemente das outras seqüências em que os alunos parecem transitar numa

relação entre conceitos, entre estruturas e funções, João procura relacionar um conceito a uma

situação concreta ainda que bastante fictícia (Tem um molequinho pra nascer. Aí botam o gene da

coruja nele. Aí ele vai nascer com o olhão grandão? gesticula para indicar os olhos da coruja).

Procura situar o conceito de transgênico por meio de sua aplicação direta a uma dimensão

empírica e portanto observável, o que talvez possa sanar lacunas ou modificar concepções em

relação às suas concepções. Visto desse ângulo, podemos supor que este seja um caminho para

que João crie, transforme e combine elementos situados em uma perspectiva científica, que

contemplam a relação entre genes e características hereditárias com aqueles situados em uma

perspectiva empírica que podem ser capturados pelos olhos e descritos pois têm por base aspectos

observáveis do fenômeno em questão (Ele vai nascer com o olho grandão?).

Ainda que a professora, no turno 16, encerre a discussão passando a palavra para Ronnie e

para um outro foco de discussão, vale situar que o movimento de João revela uma apropriação do

significado de genes, e mesmo de como ocorre a manipulação desses genes, que lhe permite

propor uma situação descritiva e observável do fenômeno. Na sala de aula de Biologia, é

importante que os alunos percebam essa possibilidade de articular a perspectiva empírica e

descritiva à perspectiva teórica e explicativa do conhecimento biológico. Dessa forma, seguem

em direção a uma visão mais ampla e integrada dos fenômenos biológicos à medida que as

dimensões macroscópicas, microscópicas e mesmo moleculares vão sendo articuladas.

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202

7.8 Sistematizando nossa análise

Alguns aspectos gerais podem ser analisados a partir das seqüências interativas

apresentadas neste capítulo. O primeiro diz respeito a um movimento dos alunos em estabelecer

algum tipo de relação. Nathan, por exemplo, estabelece uma relação entre presença ou ausência

de núcleo individualizado para classificar a alga Acetabularia, objeto de uma experimentação,

como um organismo eucarionte. A classificação dos seres vivos constitui-se em uma dimensão

fundamental que organiza o pensamento biológico posto que revela graus de parentesco e,

portanto, relações evolutivas nos sistemas mais atuais de classificação. A presença ou ausência de

núcleo, que categoriza os organismos em eucariontes e procariontes, é hoje um dos critérios

utilizados para se organizar tais sistemas. Também Ronnie, ao reconhecer o DNA como

componente estrutural do núcleo, segue em um movimento que lhe permite explicar os resultados

obtidos no trabalho experimental proposto na atividade. As inter-relações entre estruturas e suas

respectivas funções são percebidas por Letícia e Nathan e contribuem para uma concepção mais

organicista dos organismos. Em outra situação, é no confronto entre aquilo que sabem sobre

clonagem e as informações que são disponibilizadas por um texto que lêem que alguns alunos

mergulham em uma instabilidade conceitual que é enfrentada. Nesse enfrentamento, novos

elementos conceituais são adicionados o que viabiliza a elaboração ou re-elaboração das

concepções pelos alunos acerca do tema que está sendo focalizado.

As relações parecem então se constituir em um movimento necessário para a construção

de novos significados. Entretanto, um olhar mais atento faz revelar que este movimento de

aproximação entre conceitos ou entre sistemas explicativos distintos, como realiza Thais,

emergem de uma questão ou problema que pode ser apresentado tanto pela professora quanto

pelo aluno. A problematização favorece o engajamento dos alunos que procuram então respostas

para elucidá-la. Neste movimento, mobilizam seus conhecimentos prévios, percebem pistas que

vão sendo plantadas pela professora e talvez reconheçam que alguns significados vão sendo

restringidos enquanto se abre a possibilidade de que novos sejam construídos. Percebem que há

um modo específico de falar, de olhar e de pensar os fenômenos evidenciados a partir dessas

novas relações que se estabelecem entre os diferentes níveis do conhecimento biológico: das

estruturas celulares e moleculares, dos processos envolvidos e viabilizados por estas estruturas,

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dos sistemas de classificação e ainda das representações, já que a seqüência de letras ATCG deve

ser reconhecida como uma seqüência de bases nitrogenadas que se constituem no código da vida.

Dessa forma, podemos supor que, em um contexto específico, onde se situa um

conhecimento igualmente específico, novos instrumentos culturais vão sendo apropriados e

incorporados pelos alunos. Passam, então, a perceber novas questões, a abordar os fenômenos

não apenas de uma perspectiva descritiva mas também teórica. Isso pressupõe mudanças

epistemológicas à medida que transitam entre diferentes níveis e dimensões do conhecimento

biológico. Neste sentido, integram conceitos viabilizando a construção de novos significados.

Com isso, os organismos passam a ser reconhecidos não apenas como uma estrutura

macroscópica mas também microscópica e molecular cuja atividade metabólica confere sentido

àquilo que pode ser percebido e descrito.

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8 SALA DE AULA DE BIOLOGIA: DOS FATOS ÀS COISAS E DAS COISAS AOS

FATOS

Depois de horas de espera pela retomada da experiência, pela

obtenção de novas cobaias, pela purificação de mais endorfina, percebemos que a oferta do autor (“Deixe-me mostrar-lhe”) não é tão simples quanto parecia. É uma encenação lenta, demorada e complicada, de minúsculas imagens diante de um público. “Mostrar” e “ver” não são simples flashes de intuição. (LATOUR, 2000, p.111).

As atividades práticas se constituem em objeto específico de investigação no campo da

Educação em Ciências. Por isso, situamos, inicialmente, neste capítulo, elementos teóricos desta

produção que, articulados a uma discussão mais ampla relativa à aprendizagem, nos permitem

caracterizar os objetivos, as intenções e o significado da atividade de laboratório no corpo da

unidade de ensino desenvolvida, que tinha como proposta realizar a extração do DNA do

morango ou da cebola. Considerando que a atividade de laboratório envolve a articulação entre as

dimensões observável e conceitual, selecionamos algumas cenas que são descritas e interpretadas

a partir do olhar teórico que orienta este estudo, evidenciando pistas para tecer considerações

sobre o processo de aprendizagem dos alunos. Apresentamos, ainda, os relatórios produzidos

pelos alunos como sistematização da atividade realizada. Na análise desses relatórios,

procuramos marcas lingüísticas e contextuais que caracterizem a produção escrita dos alunos e

que indiquem a apropriação de conceitos e procedimentos da investigação científica que no

espaço escolar ganha contornos e matizes específicos posto que a atividade científica escolar e a

atividade científica têm metas diferentes e, portanto, valoram coisas também diferentes

(IZQUIERDO; SANMARTÍ; MARIONA, 1999). O quadro a seguir apresenta em destaque as

seqüências analisadas neste capítulo.

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205

DATA AULA EPISÓDIOS Nº DE SEQÜÊNCIAS INTERATIVAS

SEQUÊNCIAS ANALISADAS NO CAPÍTULO

NOME DA SEQÜÊNCIA NO CAPÍTULO

Seq. 1 Ela é uma eucarionte? Seq. 2 O experimento: quem morre quem vive? Seq. 3 Por que esse resultado

Evidenciando relações entre estrutura e classificação dos seres vivos e estrutura e função nuclear.

Episódio 1 05

Seq. 6 Uma nova situação experimental

O que seria de uma árvore sem folhas: reconhecendo inter-relações estruturais e funcionais na/da célula.

Episódio 2 13

Seq. 6 DNA/Genes/ DNA-lixo Camila tem uma hipótese: explicando o papel do DNA-lixo

17/8/06 01

Episódio 3 10

Seq. 10 O caso das hemácias E o que acontece com as hemácias que não têm núcleo?

Episódio 1 01

Seq. 1 Por que o óvulo não pode ser da mesma ovelha?

Por que o óvulo tem que ser da outra ovelha?...

Episódio 2 09

Seq. 4 Me explica uma coisa: como pode ser...?

Ainda sobre clones e clonagem: evidenciando a reelaboração de significados.

Seq. 1Familiarizando-se com material e procedimentos

Quando os alunos se familiarizam com o ambiente iniciam os procedimentos.

Seq. 5 Observação e imprevistos no laboratório

Quando os alunos observam e enfrentam imprevistos.

Seq. 12 Agregando moléculas de DNA

Quando os alunos procuram explicar o que aconteceu com a molécula de DNA.

24/8/06 02

Episódio 3 19

Seq. 16 Visualizando o DNA Quando os aluno observam além do observável.

Episódio 1 01

Episódio 2 02

Episódio 3 03

Seq. 4 Professora, duas perguntas. Uma articulação entre observável e o microscópico...

Episódio 4 05

31/8/06 03

Episódio 5 02

Episódio 1 01

Episódio 2 05 Episódio 3 10

14/9/06 04

Episódio 4 06

Episódio 1 01

Episódio 2 06

21/9/06 05

Episódio 3. 07 5/10/06 05 Não foram

mapeados episódios

Não foram mapeadas seqüências

Quadro 5: Seqüências analisadas no capítulo 8

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206

8.1 Uma breve discussão acerca do papel das atividades práticas no processo de ensino-

aprendizagem em ciências

Parece existir um relativo consenso entre professores das áreas científicas acerca da

importância das atividades de laboratório no ensino de ciências. De um modo geral, consideram

as atividades de caráter prático como motivadoras e, talvez por isso mesmo, um componente

decisivo para superar dificuldades no processo de aprendizagem das disciplinas científicas.

Se, de um lado, os professores atribuem valor às atividades práticas, de outro, e de forma

contraditória, não as realizam com freqüência ou mesmo não as realizam. As razões para esta

situação são inúmeras, como por exemplo, a carga horária reduzida da grade curricular reservada

ao ensino de ciências e de Biologia. No segundo segmento do ensino fundamental esta carga

horária representa três tempos semanais de cinqüenta minutos cada e no ensino médio,

particularmente em relação ao ensino de Biologia, dois tempos semanais também de cinqüenta

minutos cada. Além disso, muitos professores apontam que não existe laboratório em suas

unidades escolares e, mesmo quando existe, não é suficientemente bem equipado e planejado

para abrigar turmas geralmente compostas por um número significativo de alunos.

Embora reconheçamos a legitimidade dessas razões no cotidiano escolar, consideramos

que, na verdade, elas refletem uma tendência em dicotomizar o ensino de ciências em dois

domínios: o ensino teórico e o ensino prático, dando-se maior ênfase ao primeiro (IZQUIERDO;

SANMARTÍ; MARIONA, 1999). Neste caso, quando as atividades práticas são realizadas,

mostram-se pouco eficazes para a aprendizagem de conceitos teóricos (IZQUIERDO;

SANMARTÍ; MARIONA, 1999; WOOLNOUGH; ALLSOP, 1985) não se negando, entretanto, a

sua utilidade para a aprendizagem dos procedimentos metodológicos relativos à ciência.

Para entender estar situação, Izquierdo, Sanmartí e Mariona (1999) consideram que as

atividades experimentais, seguindo uma tradição filosófica empirista ou racionalista,

estruturaram-se tendo como referência o que ‘fazem os cientistas’ quando, na verdade, deveriam

ser um guia elaborado especialmente para aprender determinados aspectos da ciência levando em

conta as especificidades do contexto escolar em seus objetivos, finalidades e mecanismos de

convencimento. Enfim, como uma ciência escolar que se fundamenta em uma epistemologia

também escolar:

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207

Devemos desenhar uma nova epistemologia escolar, que aceita a normatividade de alguns conhecimentos como ponto de partida para a compreensão do mundo mas que impulsiona também a criatividade na elaboração de argumentos e de aplicações para que os conhecimentos normativos adquiram sentido e proporcionem autonomia (IZQUIERDO; SANMARTÍ; MARIONA, 1999, p. 49).

Woolnough e Allsop (1985) reconhecem esse contínuo entre conceitos e processos que

marcam o ensino de ciências, mas consideram que a inter-relação entre estes dois domínios deve

acontecer em níveis mais avançados do desenvolvimento da criança e do próprio processo de

ensinar e aprender ciências. Para os autores, a formalização abstrata prematura de conceitos

científicos pode representar um impedimento para uma aprendizagem posterior em ciências,

quando os alunos estão em uma fase intelectualmente mais madura. Woolnough e Allsop (1985)

sugerem que, inicialmente, o ensino de ciências deve centrar-se em atividades práticas

relacionadas ao próprio ambiente da criança e movimentadas pela mobilização de um

conhecimento tácito para, somente depois, introduzir-se mais intensa e sistematicamente os

conceitos e conhecimentos científicos a fim de que a articulação entre os dois domínios possa

garantir uma aprendizagem mais ampla e profunda. Apesar da proposta dos autores sugerir uma

linearidade entre prática e teoria, não é isto o que realmente pretendem pois sinalizam para um

movimento cíclico e, diríamos, intrínseco entre esses dois pólos quando afirmam que “a

experiência e os insights obtidos ao fim de um primeiro momento retroalimentarão o

conhecimento implícito à investigação e práticas cognitivas a serem aplicadas e desenvolvidas

em atividades posteriores” (p. 76).

Vamos delineando, a partir desses autores, que a introdução de uma atividade prática em

ciências não deve funcionar apenas como um elemento motivacional para despertar o interesse

para o ensino ou ainda para ilustrar/comprovar teorias apresentadas pelo professor. É preciso

considerar, como fazem Millar, Maréchal e Tiberghien (1999, p. 35), que “o propósito central das

atividades práticas no ensino de ciências é ajudar o estudante a fazer conexões entre o domínio

dos objetos e coisas observáveis e o domínio das idéias” por isso mesmo as atividades práticas

são “todas aquelas atividades que no ensino de ciências envolvem os alunos de alguma forma no

manuseio ou na observação de objetos ou materiais - ou representações diretas destes objetos e

materiais, em uma situação ou vídeo-gravação” (p. 36).

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Avançando nesta discussão, Jenkins (1999b) também sinaliza que a tentativa de

reproduzir os métodos científicos no ensino de ciências tem se revelado pouco produtiva, isto

porque a ciência, a partir de uma filosofia pós-khuniana, é assumida como uma atividade social e

cultural, o que significa que:

A ciência é vista hoje como enfrentando o mundo material com base em práticas materiais e intelectuais diversas e pouco articuladas, e a ocorrência destas práticas é inescapavelmente situada dos pontos de vista social e institucional. (JENKINS, 1999b, p.24, tradução da autora)51.

Na tentativa de não reduzir as atividades práticas à “um conjunto de técnicas ou de

distintas habilidades que tem como conseqüência um esvaziamento do seu potencial educacional”

(JENKINS, 1999, p. 26), muitos autores têm destacado a importância de se ter clareza dos

objetivos dessas atividades no momento de seu planejamento(BORGES ET AL, 2001;

WOOLNOUGH; ALLSOP, 1985; JENKINS, 1999b; MILLAR; MARECHAL; TIBERGHIEN,

1999; NTOMBELA, 1999; IZQUIERDO; SANMARTÍ; MARIONA, 1999).

Woolnough e Allsop (1985), por exemplo, consideram que as atividades práticas podem

investir em três aspectos relacionados a uma formação mais ampla e profunda na educação em

ciências: a) a construção de habilidades e técnicas; b) a solução de problemas e c) a percepção do

fenômeno. Millar, Maréchal e Tiberghien (1999) polarizam os objetivos das atividades práticas

em duas principais categorias, conteúdo científico e processo de investigação científica, que são

desdobradas em subcategorias a fim de se delimitar com maior clareza aquilo que é esperado que

os alunos façam e aprendam. A articulação entre aquilo que os alunos devem realizar e o que

realmente realizam encaminha uma segunda articulação relativa ao que é esperado que os alunos

aprendam e o que realmente aprendem. Estas relações indicam o nível de eficácia da atividade

uma vez que evidenciam elementos relativos ao processo de aprendizagem dos alunos no curso

da atividade.

51 “Science is now seen to address the material world through diverse, loosely-coupled material and intellectual practices, and the working of these practices is seen to be inescapably socially and institutionally situated”. (JENKINS, 1999b, p.24).

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209

8.2 Uma caracterização da atividade de laboratório: extraindo DNA da cebola

A atividade prática proposta é relativamente simples e consiste na extração do DNA do

bulbo da cebola ou de morango, permitindo aos alunos visualizar macroscopicamente o aspecto

dessa molécula responsável pela hereditariedade nos seres vivos.

O processo de extração do DNA de células eucarióticas envolve basicamente três etapas

que se sucedem: a) ruptura das células para liberação dos núcleos; b) desmembramento dos

cromossomos em seus componentes básicos – DNA e proteínas e c) separação do DNA dos

demais componentes a fim de que possam ser visualizados.

O material necessário para a realização desta prática é: cebolas ou morangos; dois

béqueres; banho-maria; água filtrada; sal de cozinha; detergente; álcool etílico a 95% e gelado a

cerca de – 10º C; bastão fino; filtro e gelo moído.

Sobre os procedimentos das atividades, os alunos inicialmente picaram a cebola ou o

morango em pedaços de aproximadamente 0,5 cm. Em um béquer, dissolveram quatro colheres

de sopa de detergente e uma colher de chá de sal em meio a meio copo d’água (aproximadamente

90 ml) e acrescentaram a cebola ou morango. Esta mistura foi levada ao banho-maria por cerca

de quinze minutos. Após esse período, a mistura foi retirada do banho-maria e resfriada durante

cinco minutos. A seguir, os alunos realizaram a filtração da mistura, recolhendo o filtrado em um

segundo béquer. Ao filtrado, adicionaram 90 ml de álcool gelado formando-se duas fases

distintas: uma superior, alcoólica e uma inferior, aquosa. Finalmente, mergulhando o bastão,

homogeneizou-se o filtrado e puderam ser observados filamentos esbranquiçados

correspondentes a aglomerados de moléculas de DNA.

De acordo com Amabis e Martho (2002), os procedimentos empregados nesta técnica são

muito parecidos aos dos laboratórios bioquímicos. Cabe, no entanto, ressaltar mais uma vez que,

ainda que se reconheçam aproximações entre os procedimentos metodológicos desenvolvidos no

laboratório escolar e no laboratório científico, as fronteiras que delimitam esses dois

espaços/tempos de produção de conhecimento são muito bem definidas em relação às suas

intenções, objetivos e significados. Para caracterização da atividade em relação a esses

elementos, apropriamo-nos de um mapa de categorização proposto por Millar, Maréchal e

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Tiberghien (1999), que contempla duas grandes dimensões: uma primeira, que se refere aos

objetivos e intenções da atividade no que diz respeito aos conteúdos e processos científicos, e

uma segunda relacionada a aspectos da atividade propriamente dita. Este mapeamento permite

definir com maior clareza as possibilidades que a atividade apresenta quando de seu

planejamento, realização e avaliação relativa ao processo de aprendizagem dos alunos.

8.2.1 Sobre os objetivos da atividade

Em relação aos conteúdos, nosso objetivo era que os alunos identificassem e

reconhecessem o DNA como uma longa molécula constituída basicamente de ácido fosfórico,

pentose (desoxirribose) e bases nitrogenadas (adenina, guanina, citosina e timina), presentes em

todas as células de todos os seres vivos. Além disso, queríamos reafirmar algumas inter-relações

já discutidas anteriormente: o DNA situa-se no núcleo celular associado a proteínas em um

arranjo espacial que resulta na formação de estruturas denominadas cromossomos. Assim, para se

isolar esse DNA, seria preciso romper as células bem como os núcleos e ainda desmembrar os

cromossomos.

Sobre os processos envolvidos, a atividade deveria contribuir para que os alunos

aprendessem a utilizar um conjunto de instrumentos próprios de laboratórios e, ainda, a

encaminhar procedimentos técnicos adequados tais como medição, filtração, controle do tempo,

para que, ao final, fosse possível visualizar as moléculas de DNA. Ampliando este domínio, os

alunos deveriam produzir um relatório sobre a atividade realizada que incorporasse objetivo,

material e métodos, procedimentos e resultados.

8.2.2 Sobre as características da atividade

Seguindo as orientações de Millar, Maréchal e Tiberghien (1999), é preciso considerar,

inicialmente, o que esperamos que os alunos façam com os objetos ou materiais observáveis. Em

nossa atividade, a intenção era que os alunos se valessem de observações cuidadosas no curso de

um procedimento laboratorial. O uso correto desses procedimentos garantiria a ocorrência de uma

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série de fenômenos pois o detergente, além de desintegrar os núcleos e os cromossomos da

célula, liberando o DNA, possui um componente específico, o dodecil (lauril) sulfato de sódio,

que desnatura as proteínas, separando-as do DNA cromossômico; já o álcool gelado em ambiente

salino provoca a aglutinação das moléculas de DNA fazendo com que se forme uma massa

filamentosa e esbranquiçada visível a olho nu. Todas as etapas procedimentais – adicionar, filtrar,

medir – deveriam permitir aos alunos observar qualitativamente um objeto (o DNA) e também as

misturas e filtrados obtidos ao longo do processo.

As atividades práticas não envolvem exclusivamente observação e manipulação de

objetos, mas também a mobilização, uso e ampliação de idéias. A atividade realizada exigia dos

alunos observações sistemáticas a fim de que algumas relações fossem estabelecidas (núcleo –

DNA – desnaturação de proteínas – isolamento do DNA). Tais relações deveriam ser

evidenciadas na produção de um relatório que deveria ser apresentado na aula seguinte. Como

essas eram relações já trabalhadas durante as aulas anteriores, supomos que a dimensão

procedimental encontrava-se apoiada na emergência dessas concepções, que seriam mais bem

sistematizadas no curso da atividade. Portanto, as idéias deveriam orientar a compreensão dos

procedimentos encaminhados ao longo do processo.

Um aspecto a ser contemplado nesta caracterização diz respeito ao grau de abertura da

atividade prática. Um sistema desenvolvido por Herron (apud BORGES et al. 2001) estabelece

quatro categorias, tendo como referência o nível de controle do aluno sobre o experimento52.

Consideramos que a atividade proposta era bastante fechada, estando situada em um nível 1 uma

vez que, como professora, tínhamos o controle da definição dos objetivos, do material

disponibilizado, dos procedimentos a serem seguidos. Entretanto, era responsabilidade do aluno a

construção de uma possível explicação para o resultado obtido na experiência, isolamento e

vizualização de filamentos de DNA. Para isso, deveriam estabelecer relações ente idéias e objetos

e eventos que fossem observados. Além disso, vale dizer que a atividade propunha o trabalho em

pequenos grupos, o que promoveu interações discursivas onde se evidenciava a tensão entre um

discurso dialógico e de autoridade. Nosso papel era apenas orientar os alunos e acolher as

questões e problematizações que formulavam seja sobre um procedimento não muito bem

52 Nas atividades de nível 0, o objetivo, procedimento e até mesmo a conclusão estão sob controle do professor; nas de nível 1 apenas a conclusão é de responsabilidade do aluno; nas de nível 2 somente o problema é proposto ao aluno e nas de nível 3 o aluno é responsável por todo o processo investigativo inclusive a formulação de um problema a ser investigado.

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compreendido, seja sobre um equipamento que não conheciam, ou mesmo sobre conceitos

propriamente ditos.

A atividade propriamente dita durou em média 80 minutos, quando foram entregues aos

grupos um roteiro contendo os materiais a serem utilizados bem como os procedimentos a serem

seguidos. No curso da atividade, os alunos eram orientados oralmente sobre a execução desses

procedimentos e sobre os registros que deveriam ser realizados para que pudessem elaborar um

relatório com formato científico que seria, posteriormente, apresentado na aula como

sistematização da atividade. Vale dizer ainda que disponibilizamos alguns resumos de trabalhos

apresentados na SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) para que fossem

utilizados pelos alunos no processo de construção de seus relatórios.

Tal como assinalado por Jenkins (1999b), a atividade experimental não pode se reduzir a

uma reprodução de métodos científicos na escola, o que seria bastante infrutífero. É verdade que

a atividade de laboratório exige práticas procedimentais e técnicas que devem ser vistas como

uma dimensão a ser contemplada no processo de ensino-aprendizagem em ciências. Mas isto não

é suficiente pois, para que a atividade seja eficiente, é preciso também desenvolver práticas

intelectuais/cognitivas bem como práticas implícitas ao processo de investigação, que emergem

das articulações que vão sendo construídas entre o mundo das idéias e o mundo dos objetos. É

dessa forma que se encaminha uma nova forma de pensar, ver e falar sobre um objeto.

O quadro a seguir sintetiza as práticas envolvidas no curso da atividade e foi adaptada de

Millar (1991 apud NTOMBEL, 1999):

Práticas cognitivas Práticas técnicas Práticas implícitas ao processo de investigação

• Observar • Articular idéias e

objetos • Registrar aspectos

relevantes • Elaborar explicações • Mobilizar conceitos

para classificar misturas

• Medir • Filtrar • Controlar

tempo • Misturar • Dissolver

• Repetir e rever procedimentos

• Realizar registros • Produzir relatórios a partir

dos procedimentos e resultados obtidos

Quadro 06: Práticas envolvidas na atividade de laboratório

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Como se pode perceber, há uma série de ações/interações desenvolvidas pelos alunos que

desejamos sejam articuladas a fim de encaminhar o processo de construção de significados e

conceitos de forma mais ampla e profunda. Alguns aspectos serão mais bem explorados nas

seções que se seguem.

8.3 Cenas de uma atividade de laboratório escolar

Passamos agora a apresentar algumas cenas obtidas a partir da videogravação da atividade

de laboratório realizada na segunda aula desta unidade de ensino.

Cena 01: Quando os alunos se familiarizam com o ambiente iniciam os procedimentos

O grupo, formado por Thais, Thaiane, Camila Guimarães, Manuela e Nathan, confere o

material que já se encontra disposto sobre a bancada valendo-se da leitura do roteiro que

acompanha a atividade. Os alunos percebem que faltam alguns itens e os solicitam. Com o

material completo e organizado, iniciam a primeira etapa da atividade. De forma espontânea, há

uma distribuição de tarefas entre os alunos: Manuela e Thaiane picam os morangos; Thais realiza

a leitura do roteiro e também o registro escrito dos processos que vão sendo encaminhados;

Nathan e Camila se encarregam de medir e misturar os outros componentes (sal, detergente e

água). Percebemos uma preocupação, que é do grupo, quanto ao rigor das medidas que devem ser

usadas. A medida da quantidade de água gera dúvidas:

Thais: Coloque 4 colheres de sopa de detergente e uma colher de chá de sal em meio copo de água (...) Viu? Em MEIO COPO de água. (Repete enfaticamente) Camila Guimarães: Mas depende de que copo. Tem dois tamanhos de copo (Referindo-se aos béqueres). Nathan: Copo americano. De 200 ml. Camila: Mas aquele ali não é... Silêncio Camila: Cadê a Lígia?

Com dúvidas em relação à medida de água, Camila confere a quantidade de detergente

que deve ser adicionada. Thaiane interrompe sua tarefa para checar esta informação no roteiro (É,

são quatro colheres de sopa de detergente e uma colher de chá de sal). Os componentes são

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misturados, mas falta acrescentar a água. Camila começa a medir a água em um béquer separado

e novamente se preocupa com a precisão:

Camila Guimarães: Meio copo de água vai dar isso tudo aqui? (Se refere ao volume completo do béquer). Nathan: Um copo americano não é... Então meio copo é 100 ml.

A entrada em um laboratório exige muitas outras habilidades para além daquelas de

natureza intelectual. No laboratório é preciso reconhecer os instrumentos e substâncias, preparar

soluções misturando adequadamente, observar e interpretar eventos. O objeto de estudo continua

o mesmo – DNA – mas inserido em uma nova ordem, em um novo contexto. Já não basta ler e

falar sobre o DNA, é preciso desintegrar células, desnaturar proteínas, isolar o DNA e torná-lo

visível em meio a uma série de procedimentos e rituais que devem ser bem executados a fim de

que nada dê errado. Como diz Latour (2000, p. 111/112):

De repente, estamos muito mais distantes do mundo de papel do artigo [...]. Sair de um artigo e ir para um laboratório é sair de um arsenal de recursos retóricos e ir para um conjunto de novos recursos planejados com o objetivo de oferecer à literatura o seu mais poderoso instrumento: a exposição visual. Ir dos artigos para os laboratórios é ir da literatura para os tortuosos caminhos da obtenção dessa literatura.

Esse mundo não é de todo conhecido. Muitos alunos chegam ao Ensino Médio sem ter

tido atividades práticas, por isso mesmo o laboratório exerce fascínio, sedução. Os alunos agem

como especialistas, têm atitudes que se aproximam em muito daquelas esperadas por aqueles que

têm o laboratório como lugar de produção. Quando Thaiane, Thais, Camila Guimarães, Manuela

e Nathan assumem seus lugares na bancada do laboratório, consideram que primeiro é necessário

familiarizar-se com os materiais e os métodos que vão ser utilizados. Para isso, conferem a

relação dos materiais e solicitam aqueles que estão faltando. Isto parece trazer uma certa

segurança para o grupo e é um sinal de que podem começar a trabalhar. Esses alunos reconhecem

que a precisão é um fator decisivo para o sucesso no processo científico. Então procuram seguir

rigorosamente as medidas previamente estabelecidas. Entretanto, há conversões a serem feitas.

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No roteiro, consta que é preciso diluir 4 colheres de sopa de detergente e 1 colher de chá de sal

em meio copo de água. Mas o que significa meio copo de água nesta atividade? Camila considera

que há dois “tamanhos de copos”, referindo-se, na verdade, aos diferentes volumes dos béqueres

que foram disponibilizados. Este é um problema de natureza técnica que precisa ser resolvido

mas que envolve um movimento intelectual de conversão: se um copo americano é de

aproximadamente 200 ml então 100 ml é a metade. É este o volume que deve ser usado. É

Nathan quem estabelece essa relação e resolve o problema enfrentado pelo grupo.

A atividade prática deve envolver situações que possibilitam aos alunos investirem na

solução de problemas. Isso os mobiliza a encontrar saídas, geralmente estabelecendo articulações,

revendo procedimentos, já que devem lidar com o material que ali está disponível. Knorr-Cetina

(1981) discute sobre o senso de “oportunismo” que envolve o processo de produção do

conhecimento científico. Este oportunismo, que caracteriza não indivíduos mas o processo, está

relacionado à influência circunstancial que os cientistas sofrem no curso de seu trabalho. Assim,

por exemplo, devem ajustar objetos, métodos e procedimentos de acordo com o aparato

instrumental disponível53 no laboratório em que atuam. Consideramos, portanto, que o

enfrentamento dessas situações pode contribuir para que os alunos tenham uma visão mais ampla

do conhecimento científico incorporando os domínios conceitual e processual. É como se aquela

ciência “higienizada”, cuja trajetória costuma ser evidenciada de forma linear e cumulativa, fosse

mostrando aos poucos a sua face mais ruidosa e interativa. Os alunos, tal como cientistas, não

trabalham sozinhos, as interações que se realizam no curso da atividade favorecem a resolução

dos problemas que vão surgindo, bem como o direcionamento dos procedimentos propriamente

ditos. A atmosfera é cooperativa.

Cena 2: Quando os alunos observam e enfrentam imprevistos

Fazem parte do grupo Renata, Luise, Thaiana, Alex, Camila Dias e Thalita. Sentados em

sua bancada, controlam o tempo de resfriamento e tentam especificar mais cuidadosamente as

características da mistura obtida na primeira etapa da atividade. Recorrem a conceitos como

53 Este é um dos aspectos abordados pela autora quando discute a relação entre ação científica e contingência situacional.

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densidade e solubilidade. Há uma divergência no grupo; Thaiana acha que o detergente se diluiu

(dissolveu) na água enquanto Camila Dias acredita que “ele [o detergente] desceu e ficou

embaixo com a água enquanto a cebola subiu porque é menos densa”. Thalita participa da

discussão ao mesmo tempo em que vai fazendo registros escritos para, posteriormente, preparar o

relatório. Finalmente é hora de retirar a mistura do resfriamento. É Renata quem inicia um novo

processo de observação:

Renata: Que cor ficou gente? Ficou normal? Olha só, (Todos os componentes do grupo se concentram na observação do material) aqui tá mais branco ... (Aponta para a região inferior do béquer) a solução com detergente e sal desceu e a cebola ficou em cima... Luise: ... heterogêneo. Renata: Tudo bem, tá heterogêneo, mas você tem que falar que o sal e o detergente desceram e a cebola... Camila Dias: ... porque é menos denso do que a solução... (Thalita registra).

Nesse ponto relêem o roteiro e iniciam o processo de filtragem. Considerando que o

processo é muito lento, testam mecanismos que possam acelerá-lo (mexem com o bastão,

suspendem o filtro do funil). Thalita assume esta tarefa e Camila Dias, agora, passa a fazer os

registros. O processo segue mas um imprevisto acontece. O filtro se rompe e os alunos fazem

manobras para não perder o material. Resolvido isto, conseguem terminar a filtração.

A observação é uma prática inerente à atividade de laboratório. Consideramos que essa

observação pode se realizar em vários níveis: um primeiro, de natureza exclusivamente descritiva

e que apenas relata o que está sendo visto, sentido ou ouvido; um segundo, quando a essa

descrição são articulados conceitos a fim de se caracterizar melhor o que está sendo visto, sentido

ou ouvido, parece ser um movimento em direção a uma interpretação do fenômeno; e, finalmente,

um terceiro quando, a partir da articulação entre o observável e o conceitual, procura-se inferir

sobre a ocorrência de um fenômeno possibilitando a elaboração de hipóteses que o expliquem ou

o relacionem a outros fenômenos.

Na atividade realizada, a observação foi uma prática comum entre os estudantes nas

diferentes etapas que se sucederam. A observação era sempre acompanhada de registros escritos

que eram feitos e refeitos à medida que a discussão entre os alunos acontecia. Como apontado por

Millar (1991 apud NTOMBEL, 1999), a observação é uma prática cognitiva que efetivamente

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vai sendo especificada de forma a se tornar cada vez mais orientada, direcionada e sistematizada

em relação ao objeto de estudo e ao contexto de uma sala de aula de Biologia, adquirindo um

significado diferente daquele das observações realizadas no cotidiano. Millar, Maréchal e

Tiberghien (1999) sinalizam ainda que essas observações não são puras ou imunes a influências.

Ao contrário, podem ser influenciadas pelo professor ou pelas próprias idéias que os alunos

carregam.

Nas observações realizadas não apenas por esse grupo, percebemos que os alunos tentam

transcender a dimensão exclusivamente descritiva. É verdade que os alunos avaliam a cor, o

cheiro, mas buscam mobilizar conceitos que ajudem na interpretação do que está sendo visto e

como está sendo visto. Vale a pena dizer que a única orientação da professora era para que as

observações fossem feitas com bastante cuidado. O grupo então procura explicar o porque da

disposição dos componentes da mistura. Começam por considerar a solubilidade do detergente e

do sal (diluiu, não diluiu). Posteriormente, Renata em particular alerta para a diferente coloração

que aparece na mistura. É possível observar duas fases distintas e Renata e Luise classificam a

mistura como sendo heterogênea. Não deixam de estar certas pois há uma fase composta pela

cebola e outra, formada pelo detergente, sal e água. Estes três últimos componentes formariam

uma mistura homogênea entre eles podendo também ser chamada de solução. Camila parece

intuir esta posição ao advertir que a “cebola seria menos densa que a solução”. Desta forma,

introduz o conceito de densidade para explicar o fato da cebola ter flutuado em meio àquela

solução. Tudo indica que há um consenso sobre os aspectos observados, uma vez que Thalita faz

o registro e o grupo dá prosseguimento à etapa subseqüente relativa à filtração da mistura.

A filtração é uma etapa bastante simples, mas também aquela que exige mais paciência

dos alunos. Por conta do detergente, a solução é bem concentrada e o processo de filtração pode

ser demorado. Percebendo este aspecto, os alunos passam a investir em técnicas que apressem

este processo: em alguns momentos utilizam o bastão de vidro para mexer a solução que está no

filtro, em outros retiram o filtro com a solução do funil deixando-o suspenso. Nestas tentativas

acabam por ter o filtro rompido. Este fato poderia ter comprometido o trabalho produzido mas o

grupo encontra alternativas para não perder o material que já está filtrado e continuar avançando

com a filtração do que falta. Muitas mãos agem, “cabeças” também pois, no processo de

investigação científica, há lugar para o imprevisto que deve ser solucionado. Neste contexto, o

que se impõe é saber lidar com esta imprevisibilidade fazendo (re)ajustes, (re)adaptando,

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corrigindo, desviando. Como diz Latour (2000, p. 111 ), num laboratório “não somos postos logo

de cara com o objeto que queremos ver, somos postos diante de outro mundo no qual é necessário

preparar, focalizar, corrigir, reestruturar, ensaiar”. E supomos que estas não são práticas que

possam ser ensinadas como quem ensina que o DNA é uma molécula de dupla hélice,

responsável pela hereditariedade. São práticas implícitas ao processo de investigação. Assim, nas

atividades de laboratório, incorporam-se práticas que vão sendo apreendidas, possibilitando aos

alunos não apenas ter diante dos olhos um objeto que até então era apenas imagem no livro

didático, mas também os (des) caminhos que tornam possível a materialização desse objeto.

Cena 3: Quando os alunos procuram explicar o que aconteceu com a molécula de DNA

Lorena, Thales, João e Camila Assunção estão na última etapa da atividade. Adicionaram

o álcool e com o bastão fazem movimentos circulares para misturar a solução. Lorena observa

enquanto realiza a tarefa. João e Camila Assunção também observam enquanto Thales é

responsável pelos registros:

João: Olha, o DNA é o ponto branco. Camila Assunção: Vira. Finos... João: Tá vendo uma coisinha branca bonitinha? É o DNA... Camila Assunção: Você tá vendo a cebola. (Solicita a Lorena que misture mais a solução e continua observando atentamente). Os pedaços grandes são pele de cebola, os filamentos... finos são o DNA (Aponta para o material). Professora... Professora: ... agregados de moléculas de DNA... Thales: O DNA da cebola ele... Professora: ... ele é um filamento... Thales: ele quebrou? João: Nós agregamos o DNA, né, professora? Thales: Aí botou o álcool... Professora:(Inaudível) Thales: Botou o álcool e aí juntou? Professora: É, agregou. Thales volta a fazer registros.

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É a última etapa da atividade. Os alunos devem agora adicionar o álcool a fim de agregar

as moléculas de DNA tornando-as visíveis. Feito isso e com o olhar fixado na solução, os alunos

procuram reconhecer o DNA. João supõe já tê-lo encontrado. Enxerga o DNA como “pontos

brancos e bonitinhos” que se destacam na solução. Camila Assunção, no entanto, é mais

cuidadosa, vai além da observação pura e simples e resgata suas lembranças sobre o conceito de

DNA. Esse conceito orienta o seu olhar o que lhe permite diferenciar os resíduos ainda presentes

na solução das moléculas de DNA pois, como diz, são “filamentos... finos”. Talvez, nesse

momento, integre dois mundos distintos com os quais teve contato: aquele do livro didático e

agora o dos instrumentos. Ou, como diriam Millar, Maréchal e Tiberghien (1999), Camila

articula o domínio das idéias e o domínio dos objetos observáveis. Talvez o filamento que veja

não corresponda àquelas imagens do livro didático, mas como não reconhecê-lo como sendo o

DNA? De acordo com Latour (2000), na interface entre o mundo do papel e o mundo do

laboratório, é produzido um híbrido; uma imagem bruta que está emergindo de um processo em

que houve manipulação e controle e que, a nosso ver, vai sendo adaptada, ajustada aos conceitos

de que a aluna dispõe.

Identificado o DNA e reafirmada sua natureza filamentosa, Thales, na qualidade de relator

do grupo, quer saber qual é a função do álcool no processo. Talvez porque reconheça que o DNA

é uma longa cadeia filamentosa, Thales supõe que o álcool tenha “quebrado” o DNA. Neste

contexto de produção, consideramos que esta expressão se refira, na verdade, a uma

fragmentação da molécula de DNA. De fato, a molécula de DNA precisa ser fragmentada54 para

que, aglutinada pelo álcool, se torne visível. João, antecipando-se à professora, afirma: Nós

agregamos o DNA, né, professora? Essa forma de dizer de João evidencia que se assume como

sujeito e autor do trabalho. Não foram as propriedades químicas do álcool que permitiram a

agregação do DNA, mas a ação/intervenção realizada por alunos concretos em um contexto de

produção. O mundo dos instrumentos, do qual emergem novos objetos, é um mundo habitado por

sujeitos que interferem, criam, isolam, desnaturam e agregam substâncias.

54 Vale dizer que se esticássemos uma única molécula de DNA de um cromossomo teríamos aproximadamente um filamento de 2 metros.

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Cena 04: Quando os alunos observam além do observável

Rafael, Maiara, Catherine, encerram os procedimentos. Têm diante de si uma solução que

deve ser misturada para que os filamentos de DNAs possam, enfim, ser visualizados. Diante dos

filamentos que desfilam em sua frente. Rafael anuncia: Olha a adenina, olha a timina, a

citosina...

Dissemos anteriormente que as observações não se dão no vazio. São acompanhadas e

orientadas por conceitos e idéias. O que vemos e como vemos depende dessas idéias e conceitos

que sustentamos.

E o que Rafael vê? Não apenas um agregado de filamentos que poderiam se confundir

com outros resíduos ainda presentes na solução. Rafael enxerga um filamento constituído por

adenina, timina, citosina... as bases nitrogenadas cuja seqüência no DNA encerra o código da

vida. Na verdade, a linguagem da vida é uma série linear de As, Ts, Cs e Gs. São essas bases que

conferem à molécula de DNA o seu caráter de hereditariedade. Rafael enxerga o DNA em sua

dimensão molecular. Para isso, resgata o aprendido e vivido em aulas anteriores, assim como o

faz Camila Assunção na cena anterior. Mas Rafael vai além do observável, justapondo a imagem

filamentosa que seus olhos testemunham à imagem molecular apresentada pelos livros didáticos.

Vale também destacar que, quando trabalhamos o DNA, os aspectos mais ressaltados se referem

justamente às bases de DNA e as ligações que se estabelecem entre elas (A-T e C-G), explicando

a configuração da molécula como uma dupla hélice. Aliás, nos esquemas didáticos, o DNA é

representado como uma longa cadeia de As, Ts, Cs e Gs.

Neste estudo, assumimos que a aprendizagem em Biologia envolve a apropriação de um

conjunto de ferramentas que permitem aos alunos encaminhar novas formas de pensar e falar

sobre um objeto ou fenômeno. A atividade de laboratório permite ao aluno não apenas a

apropriação dessas ferramentas, incluem procedimentos metodológicos e, talvez, principalmente,

permite que conexões sejam estabelecidas. Assim é que o uso de atividades experimentais pode

dar visibilidade a um mundo que, até então, se mantinha invisível. É como se uma caixa preta

fosse aberta permitindo aos alunos estabelecer relações entre conceitos e processos, garantindo

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um entendimento mais amplo já que estas relações estão vinculadas a um sistema cultural

específico e também relacionadas com o próprio movimento da prática científica. Na visão de

Arcá; Guidoni; Mazzoli (1990), a educação científica requer a construção de modos específicos

de observar e de relacionar-se com a realidade, o que envolve a articulação intrínseca entre

modos de pensar, falar e fazer igualmente específicos. Entendemos que, quando Rafael anuncia

sua observação, evidencia a articulação entre esses modos específicos de pensar, falar e fazer.

8.4 Dos fatos aos textos: ou de quando os alunos produzem relatórios

Ao final da atividade de laboratório, os alunos deveriam produzir um relatório. Para

orientação deste relatório, apresentamos alguns resumos publicados nos Anais da SBPC. Nossa

intenção era oferecer-lhes algumas referências que os aproximassem da estrutura dos textos

científicos – objetivo, material e métodos e resultados – bem como dos elementos sintáticos que

os organizam pois, como já assinalado por vários autores (SUTON, 1996; MORTIMER;

CHAGAS; ALVARENGA, 1998), a aprendizagem em ciência exige a aprendizagem de uma

linguagem que é também de natureza científica.

Este aspecto nos parece relevante pois, como considerado por Bakhtin (1997), cada

esfera da atividade humana gera “tipos relativamente estáveis” de enunciados constituindo

“gêneros do discurso”. Na perspectiva bakhtiniana, não aprendemos apenas as formas prescritivas

da língua, seus componentes estruturais e gramaticais, mas também gêneros discursivos. Os

gêneros discursivos refletem as condições específicas de produção de enunciados bem como a

própria esfera da atividade “por seu conteúdo semântico (temático) e por seu estilo verbal, ou

seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais,

mas também e, sobretudo, por sua construção composicional”. (Bakhtin, 1997, p. 279).

O texto científico, portanto, representa um gênero de discurso e como tal apresenta suas

especificidades. Knorr-Cetina (1981) ressalta que os relatórios científicos, deliberadamente,

apagam muito do que acontece no laboratório, ainda que seu propósito seja apresentar um

“relato” da pesquisa. Nesta passagem do laboratório para o texto escrito, algumas habilidades

literárias devem ser mobilizadas a fim de garantir a neutralidade e objetividade científicas. As

estratégias retóricas mais comuns reveladas pelo texto científico incluem o uso de uma linguagem

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direta e técnica, que separa “informação” de “interpretação”, o uso da voz passiva indicando um

apagamento dos sujeitos e a rejeição a qualquer sentença que revele juízo de valor. Os relatórios

científicos tendem a ser retoricamente padronizados em uma estrutura bastante conhecida:

abstract, introdução, material e métodos, resultados e discussões. Nesta perspectiva, sugere-se

que uma pesquisa, enquanto construção/produção de um laboratório, é perfeitamente similar à

construção/produção de outros laboratórios (KNORR-CETINA, 1981). A ênfase recai, portanto,

numa linearidade das etapas da metodologia científica.

Bruner (1998), analisando o pensamento paradigmático, nos diz que:

[...] muitas hipóteses científicas ou matemáticas têm início como pequenas histórias ou metáforas, mas elas atingem sua maturidade científica através de um processo de conversão em verificabilidade, formal ou empírica, e seu poder na maturidade não repousa sobre suas origens dramáticas (p.13).

Nesta conversão, muitos processos de negociação, ajuste, seleção e desvio que se realizam

na produção do conhecimento científico são deixados de fora. Procura-se transcender o

particular, o local. Em outras palavras, as dimensões social e cultural próprias da produção

científica não são contempladas/incorporadas nos textos científicos. Para Latour, o conhecimento

científico está encerrado em verdadeiras caixas-pretas e “por mais controvertida que seja sua

história, por mais complexo que seja seu funcionamento interno, por maior que seja a rede

comercial ou acadêmica para a sua implementação, a única coisa que conta é o que se põe nela e

o que dela se tira” (LATOUR, 2000, p.14).

Contrapondo o pensamento paradigmático ao pensamento narrativo, Bruner (1998)

destaca, entre outros aspectos, que este último “trata de ações e intenções humanas ou similares

às humanas e das vicissitudes e conseqüências que marcam seu curso” (p.14). A narrativa,

enquanto forma de discurso e de organização da experiência, “é composta por uma seqüência

singular de eventos, estados mentais, ocorrências envolvendo seres humanos como personagens

ou atores” (BRUNER, 1997, p. 46). Na narrativa, diferentemente do pensamento e da linguagem

científica, há uma ênfase em se situar a experiência no tempo e no espaço enquanto referências

necessárias à produção de significados.

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Mortimer, Chagas e Alvarenga (1998), realizando uma análise das respostas de

vestibulandos em uma questão aberta de Química, evidenciam o quanto a linguagem usada pelos

alunos se situa “em algum ponto de um contínuo que vai da linguagem científica à linguagem

comum” (p. 8). Em outras palavras, a linguagem utilizada pelos alunos agrega elementos da

linguagem científica e da linguagem cotidiana apresentando-se como um híbrido.

Feitas essas considerações gerais sobre linguagem científica e linguagem cotidiana,

retomemos as análises dos relatórios produzidos pelos alunos. Nessas análises, evidenciamos

aspectos relativos à estrutura do texto produzido, à formulação dos objetivos e à elaboração da

seção materiais e métodos e dos resultados.55

De um modo geral, todos os relatórios contemplam, de forma explícita, uma organização

padronizada que identifica: objetivo, materiais e métodos e resultados, supostamente seguindo as

orientações estabelecidas pelos resumos que serviram como referências. (No anexo XIX, alguns

relatórios produzidos pelos alunos).

Em relação aos objetivos, percebemos que nos relatórios A e B, são formulados já na

própria introdução do relatório. Já nos relatórios C, D e E há uma preocupação em se fazer uma

pequena apresentação, geralmente relativa à molécula de DNA, antes de definir o objetivo como

ilustramos abaixo:

“O DNA é muito importante. Esse determina todas as nossas

características”. (Relatório D).56

“Conseguir visualizar o DNA a olho nu não é impossível [...]” (Relatório

E).

A definição do objetivo da atividade propriamente dita segue algumas variações. Nos

relatórios A e C são utilizados verbos no infinitivo e no relatório E um substantivo indicando uma

tendência a processos de nominalização:

55 Organizamos aleatoriamente os relatórios produzidos pelos grupos a partir das letras A, B, C, D e E a fim de facilitar a apresentação da análise dos mesmos. 56 Tal como na análise das concepções dos alunos apresentada no capítulo 5, preservamos a escrita original dos alunos sem realizar correção ortográfica.

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“Observar os filamentos de DNA desenrolados”. (Relatório A – grifos

da autora)

”[...] descobrir o DNA da cebola”. (Relatório C – grifos da autora)

“O objetivo deste trabalho foi a extração do DNA de células

eucariontes [...]”. (Relatório E – grifos da autora)

Nestes casos, os grupos se aproximam da linguagem científica quando observamos um

apagamento dos sujeitos enquanto autores/narradores das ações e um movimento de substituição

dessas ações por eventos ou processos nominais tais como observação, descoberta e extração.

Vale dizer que, no relatório E, este objetivo principal (extração do DNA) é desdobrado

em uma seqüência de grupos nominais para expressar processos que, no contexto da atividade,

correspondem a objetivos específicos: a) ruptura das células; b) desmembramento dos

cromossomos e c) separação do DNA.

Já nos relatórios B e D, os objetivos são apresentados na voz ativa identificando-se

claramente a presença de um sujeito que deve exercer uma determinada ação. A identificação

desse sujeito é dada pela construção do enunciado na primeira pessoa do plural. Neste caso os

grupos fazem uso de elementos pertinentes a uma linguagem cotidiana.

“O objetivo deste experimento foi que conseguíssemos observar os filamentos de DNA contidos no bulbo de uma cebola”. (Relatório B – grifos da autora)

“Esse trabalho tem por objetivo vermos e entendermos os filamentos de DNA”. (Relatório D – grifos da autora)

Consideramos que a seção “materiais e métodos” é a que mobiliza maior investimento dos

alunos pois procuram descrever com certa riqueza de detalhes os procedimentos encaminhados

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no curso da atividade. Entretanto, como assinalado por Knorr-Cetina (1981), em um relatório

científico, a apresentação dos métodos não evidencia a estrutura dinâmica que caracteriza o

processo de fabricação do conhecimento científico. Geralmente, os métodos são definidos como

um catálogo de manipulações seqüenciais, isolado de seu contexto de produção e de justificativas

que fundamentem sua realização. Na visão da autora, a elaboração de um relatório científico é um

verdadeiro exercício de despersonalização.

Quando analisamos os relatórios produzidos pelos alunos, percebemos que a escrita

transita entre uma linguagem científica e uma linguagem cotidiana. Talvez neste momento seja

oportuno tecer considerações a respeito de cada um dos relatórios.

No relatório A, por exemplo, os alunos fazem uma apresentação mais esquemática

indicando uma seqüência de eventos e ações que se sucedem temporalmente. O narrador está

presente e é indicado pela primeira pessoa do plural dos verbos utilizados:

- Primeiro começamos cortando o morango. - Misturamos em um pote: água destilada, sal, detergente - Colocamos o pote em banho-maria e o colocamos no gelo para resfriá-lo - Depois retiramos o pote do gelo e coamos a mistura - Depois de coar, fomos jogando o álcool no pote pela borda e mexemos. (Relatório A)

No texto produzido, observamos que, além do uso da voz ativa que caracteriza a

linguagem cotidiana, os alunos empregam termos que pertencem a um contexto que lhes é

bastante familiar tais como: pote, coar, jogar que poderiam ser substituídos respectivamente por:

béquer, filtrar, adicionar.

No relatório B, o narrador também está marcadamente presente através do uso da primeira

pessoa do plural. Os processos relativos aos procedimentos realizados na atividade aparecem

como uma seqüência linear de eventos. Entretanto, o grupo faz uso da voz passiva em dois

momentos distintos; quando iniciam a descrição: “[...] foi selecionada uma cebola inteira para a

experiência [...]” e ao seu final: “[...] foi adicionado, meio copo de água [...]”. Além disso,

notamos que neste relatório, os alunos se apropriam de expressões técnicas como: “béquer”,

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“composto”, “adicionado”... Estes aspectos podem sugerir a influência das características do

texto cientifico utilizado como referência.

Neste relatório evidenciamos dois aspectos que nos parecem relevante comentar. Um

primeiro diz respeito ao movimento dos alunos em apresentar descrições mais detalhadas e

explicações para observações realizadas e discutidas durante a atividade que, geralmente, não são

incluídas em textos científicos. Os trechos a seguir ilustram este movimento:

“[...] até que ela resultasse num composto homogêneo de cor esbranquiçada e relativamente encorpado”. “[...] a cebola sofreu desidratação devido ao sal, e apresentou menor densidade, se depositando na parte superior do Becker”. “[...] o detergente e o sal devido à maior densidade, se depositando na parte superior do Becker [....]”.

O segundo aspecto é relativo à referência que os alunos fazem a possíveis entraves no

processo de extração do DNA. Assim o grupo escreve: “Ao coarmos o composto, com auxílio de

um funil e de um filtro de papel, houve certa dificuldade no escoamento do material”. Do ponto

de vista da escrita científica atual, “ruídos” desta natureza não devem ser incorporados na

apresentação de um trabalho científico. A entrada desses elementos na produção dos alunos acaba

imprimindo marcas contextuais e personalizadas que evidenciam um tensão/continuidade entre a

linguagem científica e a linguagem cotidiana.

No relatório C, encontramos, de forma mais acentuada, um movimento entre

personalização e despersonalização do texto. Os alunos iniciam a produção fazendo uso da voz

ativa. O sujeito está presente no uso que fazem da primeira pessoa do plural, particularmente

quando descrevem os processos relativos à adição dos ingredientes: “Picamos a cebola em

pedaços de aproximadamente de 0,5 cm e misturamos com quatro colheres de detergente e uma

colher de sal em um recipiente com 90 ml de água”. A partir deste ponto, a linguagem dos alunos

assume características que a aproximam mais da científica já que manifesta uma tendência à

nominalização através do uso que fazem do verbo na voz reflexiva: “A mistura tornou-se grossa,

esbranquiçada sendo uma mistura heterogênea”, posteriormente transformada em voz passiva:

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“A mistura foi colocada em banho-maria”. Este movimento dos alunos também aparece na

apresentação dos resultados quando usam a voz da passiva: “O álcool ao ser adicionado, foi

observado o aparecimento de filamentos [...]”, que poderia ser substituída por grupos nominais:

“Foi observado que com a adição do álcool [...]”. Esses recursos sintáticos utilizados pelos

alunos situam seus textos escritos em um continuum que sugere uma transição gradual e talvez

inconsciente da linguagem coloquial ou do senso comum para a linguagem científica.

Já o relatório D apresenta-se com uma estrutura marcadamente vinculada à da linguagem

cotidiana. Os alunos narram em toda a extensão do texto os processos como uma seqüência linear

de eventos. Fragmentos extraídos do texto ajudam a ilustrar esta característica:

“Para isso utilizamos uma fruta fácil de manuzear... o morango! [...] Separadamente adicionamos quatro colheres de sopa de detergente [...] Adicionamos o morango [....] tiramos rapidamente do banho-maria e o colocamos diretamente no gelo [....] Mergulhamos o bastão no copo [...]”. (Relatório D)

Os processos não estão congelados mas se constituem em um conjunto de ações

realizadas por um sujeito que está personificado pois, em todas as frases, fazem uso da primeira

pessoa do plural, a exceção da apresentação dos resultados quando recorrem à indeterminação do

sujeito (Assim, afinal, pode-se ver, o filamento de DNA do morango).

O relatório E talvez seja aquele que se apresenta mais detalhado, indicando um

movimento de pesquisa do grupo para a sua elaboração. Desta forma, transcende ao caráter

exclusivamente descritivo do relatório, introduzindo elementos explicativos, desdobrando as

substâncias em suas fórmulas e sinalizando suas possíveis funções ao longo do corpo do texto.

Vejamos alguns exemplos:

“Primeiro foi picado a cebola (composição: fósforo, ferro, cálcio, vitaminas C, e do complexo B)”.

“Um dos componentes do detergente, o dodecil (ou lauril) sulfato de sódio, desnatura as proteínas, separando-as do DNA cromossômico [...]”.

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“[...] após esse tempo foi resfriado num copo com gelo durante 5 minutos para retornar à temperatura ambiente e sofrer um choque térmico [...]”. (Relatório E)

Do ponto de vista sintático, o grupo faz uso predominantemente da voz passiva (... foi

picado a cebola... O bulbo da cebola foi usado por apresentar células grandes...) passando

posteriormente para a voz passiva pronominal (Ao se misturar as soluções.... adicionou-se

aproximadamente uma cebola picada...). Isto sugere que o texto do grupo está ancorado em

características que o aproximam mais de uma linguagem científica. Entretanto, ao longo da

produção, os alunos recorrem a voz ativa (um dos componentes... desnatura .... separando-as ...)

indicando uma tendência à personificar substâncias químicas, o que é uma característica da

linguagem cotidiana.

Em relação à apresentação dos resultados da atividade, os relatórios A, B, C e D limitam-

se a evidenciar se os filamentos puderam ou não ser visualizados. O relatório D ainda faz

menção, de forma bem sutil, ao papel do álcool nesse processo (... observamos que o álcool uniu

os filamentos de DNA, possibilitando a sua visualização). Apenas o relatório E realiza uma

discussão mais elaborada sobre a relação entre álcool gelado e ambiente salino e as noções de

solubilidade e insolubilidade para explicar a visualização do DNA a olho nu. Vejamos a produção

deste grupo:

“O álcool gelado, em ambiente salino, faz com que as moléculas de DNA se aglutinem, formando uma massa filamentosa e esbranquiçada. Quando as moléculas são solúveis em um dado solvente, elas se dispersam neste solvente e não são, portanto visíveis [...] quando as moléculas são insolúveis em um dado solvente, elas se agrupam tornando-se visíveis [...]”. (Relatório E)

Tal como considerado por Mortimer, Chagas e Alvarenga (1998), a linguagem escrita dos

alunos agrega elementos sintáticos e semânticos tanto da linguagem cotidiana quanto da

linguagem científica. Na análise desses relatórios, os alunos transitam entre a voz passiva, a voz

ativa e formação de grupos nominais. Este trânsito sugere, de um lado, uma não-consciência dos

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alunos em relação aos processos de despersonalização e descontextualização que são próprios da

ciência; de outro lado, podemos pensar em uma conversão gradual para o uso da linguagem e

estrutura do trabalho científico, já que encontramos marcas dos textos utilizados como referência.

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9. SALA DE AULA DE BIOLOGIA: SISTEMATIZANDO E APROFUNDANDO O

TEMA DE ESTUDO

Assim a aprendizagem põe frente a frente, em uma interação que nunca é uma simples circulação de informações, um sujeito e o mundo, um aprendiz que já sabe sempre alguma coisa e um saber que só existe porque é reconstruído. (MEIRIEU, 1998, p. 79).

Neste capítulo, apresentamos a análise relativa aos trabalhos produzidos pelos alunos ao

final da unidade de ensino. Como já mencionado no capítulo 4, solicitamos, logo ao inicio das

atividades, que os alunos, organizados em grupo, selecionassem um dos temas propostos –

clonagem, células-tronco e organismos transgênicos - a fim de aprofundar e sistematizar o estudo

em torno de questões que envolvem o DNA, mobilizando conceitos trabalhados relacionando-os

a novas situações. Consideramos que o caminho investigativo é uma alternativa didático-

pedagógica que abre a possibilidade para o envolvimento dos alunos em atividades situadas e

significativas e, por isso mesmo, para a construção de significados mais próximos daqueles que

queremos compartilhar.

Cabe ressaltar que, na produção desses trabalhos pelos alunos, não estavam em jogo

apenas os conceitos que sustentam essas discussões, mas também as práticas realizadas pelos

alunos que, de alguma forma, evidenciam um processo de re-descrição ou re-elaboração dos seus

conceitos iniciais em novos níveis e dimensões do conhecimento biológico. Para nós, este aspecto

é decisivo quando nos propomos a pensar a aprendizagem em uma perspectiva mais ampla.

Assim, consideramos que o exercício da pesquisa que envolve a consulta a diferentes fontes de

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informação que, devem ser confiáveis, a sistematização de leituras, a seleção dos aspectos a

serem abordados já que se tratavam de temáticas abrangentes, incluindo questões de ordem ética,

e, finalmente, a organização do material em formato de apresentação pública, contribui de forma

decisiva para que ocorra a integração desses diferentes níveis e dimensões do conhecimento

biológico. Tomando como referência a noção de engajamento disciplinar produtivo proposto por

Engle e Conant (2002), podemos considerar que a realização desse trabalho viabiliza a

aproximação desses alunos com práticas escolares relativas a uma disciplina específica: a

Biologia. Além disso, aos alunos foi dada autoridade no que se refere à definição e organização

do trabalho. Isto significa que os alunos são posicionados como “membros de uma comunidade

que podem mudar a forma de projetos conjuntamente [...] e mesmo se tornarem especialistas na

sala de aula, a quem outros possam recorrer [...] (ENGLE; CONANT, 2002, p.404).

Nessa análise, trazemos, de inicio, uma visão geral dos trabalhos apresentados. Em

seguida, selecionamos algumas seqüências que evidenciam uma certa forma de organizar e usar

os conceitos elaborados ao longo da unidade de ensino. Por isso mesmo privilegiamos as relações

estabelecidas pelos alunos para introdução dos temas a serem abordados, a aplicação de conceitos

a novas situações, a retomada de conceitos e idéias que anteriormente se mostravam conflituosos.

Finalmente, trazemos a posição que os alunos assumem frente a estas questões, que não se

limitam à sala de aula. Isto contribui para situar o conhecimento biológico como um sistema

cultural que atravessa o mundo social e até mesmo influencia na construção de novas formas de

relações sociais posto que a apropriação de novos conhecimentos pode reconfigurar

dialeticamente sujeitos e mundo.

9.1 Estrutura geral e formas de abordagem da apresentação dos trabalhos dos alunos

Em linhas gerais, podemos considerar que os trabalhos seguem uma estrutura padrão de

apresentação que se inicia com uma breve introdução, seguida do desenvolvimento e da

conclusão, quando os alunos se posicionam contra ou a favor da questão tratada. Todos os grupos

fazem uso de slides apresentados em data show. Tais slides sistematizam conceitos, perspectivas

históricas e também esquemas relativos às técnicas para produção de organismos transgênicos,

células tronco e clones e se revelam bastantes didáticos pois apóiam os alunos em suas

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explicações ao mesmo tempo que se constituem em uma memória que pode ser compartilhada

pela turma, favorecendo a construção de debates e discussões. Talvez por conta da necessidade

de preparação e organização dos materiais obtidos acerca dos temas em questão, os alunos

tenham podido esclarecer e ampliar alguns aspectos que porventura tenham ficado obscuros ao

longo das atividades desenvolvidas ou mesmo outros que não tenham sido contemplados.

Uma variação dessa apresentação é a realizada pelo grupo de Lorena, Camila Assunção,

João e Thales que se valem de uma dramatização alternada com uma discussão mais sistemática

dos conceitos. Assim, o grupo começa por simular uma relação entre um casal de namorados que

culmina em uma gravidez não planejada. Ao buscarem o atendimento médico, representado pelo

Dr. Thales, o casal solicita informações sobre células-tronco, já que tem “ouvido falar do

congelamento de células do cordão umbilical quando do nascimento de bebês”. Esse é o sinal

para que a discussão sobre células-tronco aconteça, inclusive com a entrada de uma das alunas,

Letícia, caracterizada de célula-tronco. Na representação que realizam, as células-tronco

constituem um conjunto indiferenciado de células. A apresentação segue seu curso e, ao final,

após uma passagem de tempo – nove meses – as células-tronco dão lugar à mesma aluna agora

caracterizada como um bebê em um indicativo da ocorrência de processos de diferenciação

celular que culminam com a formação dos diferentes tecidos e órgãos humanos.

Um outro grupo, formado por Nathan, Manuela, Thaiane, Thais, Luise e Camila

Guimarães, discute a clonagem, exibindo ao final da apresentação um pequeno documentário

extraído da Discovery que reúne imagens e uma entrevista com um especialista em clonagem

terapêutica. Isto sugere a preocupação do grupo quanto ao aprofundamento da pesquisa e também

a mobilização de referências específicas que se situam para além da sala de aula e podem

sustentar a discussão encaminhada na apresentação dos trabalhos. Aliás, o mesmo comentário

pode ser estendido a todos os grupos uma vez que, ao longo das apresentações, os alunos fazem

referências a pesquisadores da área e institutos reconhecidos como locais de produção dessas

pesquisas. Este é o caso de Isamar que, ao discutir a pesquisa sobre células-tronco, faz referência

a uma especialista em genética da Universidade de São Paulo, talvez com o intuito de legitimar e

validar as informações que o grupo apresenta.

Na perspectiva de Engle e Conant (2002) sobre aprendizagem enquanto engajamento

disciplinar produtivo, deve-se construir uma atmosfera em que os alunos se sintam responsáveis

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por outros e por normas disciplinares e isto significa que “o professor e outros membros da

comunidade de aprendizagem devem encorajar a responsabilidade do aluno para garantir que o

trabalho intelectual seja correspondente a conteúdos e práticas estabelecidas por ‘acionistas

intelectuais’, sejam eles pertencentes ou não ao espaço imediato de aprendizagem [...] ” (ENGLE;

CONANT, 2002, p. 405). No engajamento disciplinar produtivo, os alunos devem reconhecer a

importância de se consultar outras fontes e pessoas como parte do processo de compreensão e

apropriação em um determinado domínio. Neste movimento, os alunos não necessariamente

precisam aceitar ou se alinhar às posições daqueles que lhes servem de referência, mas agir em

relação a eles de uma maneira receptiva. Este aspecto enfatizado pelos autores refere-se à

dimensão coletiva que envolve a construção do conhecimento científico na sala de aula uma vez

que “cada membro de uma comunidade de aprendizagem não é por si mesmo uma autoridade

mas um ‘acionista intelectual’ entre muitos outros na sala de aula e além dela”. (ENGLE;

CONANT, 2002, p. 405).

9.2 Tecendo relações para situar as temáticas

Durante a apresentação dos trabalhos, percebemos que a maioria dos grupos estabelece

algum tipo de relação para introduzir e situar o tema abordado. Tais relações integram conceitos e

definições, ou ainda, conceitos e situações contextuais mais amplas contribuindo para a inserção

e articulação do conhecimento biológico a esferas sociais, econômicas e mesmo políticas. Assim,

a apresentação dos trabalhos, de certa forma, evidencia a ciência como uma construção histórica,

social e culturalmente situada, que envolve versões, modelos explicativos sobre o mundo. O uso

de relações pelos alunos, logo no inicio da apresentação dos trabalhos, sugere uma tentativa de

contextualizar a temática e também o reconhecimento de que o entendimento mais profundo da

ciência pressupõe a construção de uma rede que demanda mecanismos e estratégias específicas

para a construção de significados. Alguns exemplos que passamos a apresentar ilustram estes

movimentos.

O primeiro grupo a se apresentar é formado pelos alunos Lorena, Camila Assunção, João

e Thales e trata da clonagem. Logo em sua introdução, resgatam a organização geral dos seres

vivos mais complexos como os humanos dizendo:

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“O organismo completo é formado por vários tipos de células, tecidos e órgãos”.

Este é um conceito tido como supostamente construído e compartilhado pela turma à

medida que Thales logo em seguida enuncia: “Mas isto todos sabem!” Com isto parece

estabelecer-se um certo estado de inrtersujetividade que irá garantir e sustentar a seqüência da

apresentação do trabalho com a introdução do conceito chave relativo a “células-tronco”:

“Além de células maduras, que realizam funções, o organismo tem um pequeno número de células que não tem função específica, a não ser repor aquelas que, por vários motivos, vão morrendo ao longo do tempo – as células-tronco”.

Com este movimento, os alunos estabelecem uma primeira relação conceitual

reconhecendo a existência de um processo de diferenciação celular que ocorre marcadamente

ainda no estágio inicial do desenvolvimento embrionário mas também ao longo da vida do ser

vivo e, através de mecanismos bioquímicos ainda não bem esclarecidos, promoverá a ativação e

inativação de genes nas células promovendo a variedade de tipos celulares. Este é um conceito

decisivo para se compreender o sentido da pesquisa com células-tronco e, mais especificamente,

a diferença entre células-tronco adultas e embrionárias que será abordada por todos os grupos que

tratam desse tema.

Um outro grupo, formado por Isamar, Tatiana, Júlia, Larissa, Thaiana e Luigi, realiza um

movimento diferenciado para a introdução dessa mesma temática. Isamar inicia situando o que se

tem “ouvido dizer” acerca de células-tronco, enumerando alguns aspectos positivos que

justificam o investimento em pesquisas dessa natureza. Neste momento, a aluna, aparentemente,

assume uma certa visão “utilitária” da ciência ao depositar uma crença nos benefícios que a

mesma possa trazer para a humanidade em geral. Assim Isamar enuncia:

“Bom gente, nosso trabalho é sobre células-tronco... é... muito se tem ouvido dizer sobre isso. Células-tronco podem servir para o tratamento de certas doenças que hoje não têm cura. É... além disso, tem várias discussões entre políticos, cientistas, religião para (inaudível) essa tecnologia ir fundo para poder melhorar a vida de várias pessoas. Tem vários prós e contras e toda essa introdução que eu falei vai ser desenvolvida em nosso trabalho”.

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Dessa forma, a aluna sinaliza para um debate que está posto acerca dos estudos com

células-tronco e que atinge diferentes segmentos da sociedade – políticos, científicos e religiosos.

Isto sugere que o grupo reconhece a dimensão social e ética que envolve a pesquisa com células-

tronco e de um modo geral a pesquisa científica, o que será confirmado ao longo da apresentação

que o grupo realiza.

O único grupo que trata de organismos transgênicos é formado por Alex, Thalita, Luisa,

Renata, Suzane e Camila Dias e inicia a apresentação com uma definição geral de engenharia

genética. No movimento que realizam, os alunos acabam por resgatar um pouco da história da

ciência trazendo exemplos que ilustram o início dos estudos que envolvem a manipulação

genética. Isto ajuda a situar a produção científica como um processo em construção. Alex inicia

dizendo:

“Bom gente, olha só... prá gente entender o que é transgênico, primeiro temos que ter algumas noções do que é engenharia genética. Ela consiste, principalmente, em manipular os genes e... criar combinações desses genes em organismos diferentes. É... os primeiros experimentos que envolveram a manipulação desse material genético em animais e plantas foi a transferência desses genes para leveduras e bactérias que crescem normalmente em grandes quantidades.”

A fala de Alex evidencia uma preocupação do grupo em estabelecer uma relação

conceitual – engenharia genética e transgênico – como mecanismo necessário para o

entendimento mais amplo de uma determinada questão. Tendo estabelecido esse primeiro vínculo

conceitual, o grupo, através de Renata, passa a mapear os supostos benefícios trazidos pelos

avanços nesta área de pesquisa particularmente no que se refere aos de ordem econômica. As

palavras de Alex:

“Bom gente através da Engenharia Genética, eu posso... quer

dizer os cientistas podem ver a fragilidade que um organismo apresenta e, a partir daí, os cientistas poderiam criar uma vacina que pudesse suprir essa necessidade que o organismo apresentou. É... através da engenharia genética os cientistas podem criar antibióticos, fazerem remédios e até mesmo criar substâncias que o organismo não produz. É claro, através da engenharia genética poder criar as plantas... plantas mais resistentes a doenças [...] com maior qualidade nutricional”.

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Com este percurso o grupo, tal como o anterior, parece filiar-se, em princípio, a um

“cientificismo” onde a ciência é vista como necessária ao progresso e bem estar da humanidade.

A partir desse ponto, formulam então um conceito geral para organismos transgênicos que irá

sustentar o desenvolvimento do trabalho. É Talita quem define:

“Transgênicos resultam de experimentos da engenharia genética nos quais o material genético de um ser vivo é removido para outro ser vivo visando (inaudível) características específicas entre ambos os seres [...]”.

A apresentação desses grupos sugere uma aproximação ao principio vygotskyano de que

os conceitos científicos devem ser incorporados e integrados a uma rede conceitual. Nas palavras

de Vygotsky:

[...] Ademais, sem nenhuma relação definida com outros conceitos, seria impossível até mesmo a coexistência de cada conceito em particular, uma vez que a própria essência do conceito e da generalização pressupõe, a despeito da doutrina da lógica formal, não o empobrecimento mas o enriquecimento da realidade representada no conceito [...] é evidente que isto não pode ocorrer por outra via psicológica a não ser pela via de estabelecimento de vínculos complexos, de dependências e relações entre objetos representados no conceito e na realidade existente. Deste modo, a própria natureza de cada conceito particular já pressupõe a existência de um determinado sistema de conceitos, fora do qual ele não pode existir. (VYGOTSKY, 2001, p. 359).

Já o grupo formado por Nathan, Manuela, Thaiane, Thais, Luise e Camila Guimarães, ao

abordarem a clonagem humana, toma como referência inicial o texto “Dessacralização da vida”57.

Manuela começa por definir o significado da expressão “dessacralização” dizendo: “A palavra

‘sacra’ significa santo e o prefixo ‘des’ significa assim... deixar de ser”, para logo em seguida

relacionar esta expressão ao contexto da discussão que se anuncia:

“Então, tipo assim... a dessacralização da vida quer dizer tirar o que tem de magnífico na vida... é pegar uma pessoa e vai lá tipo e interfere...”

57 Disponível em http://www.comciencia.br

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A fala de Manuela é interrompida por Camila Guimarães que chama a atenção para o

seguinte aspecto:

“[..]. porque todo mundo tem a vida como algo de divino. A vida não deixa de ser algo divino. Então o que acontece? A clonagem tira essa ideologia de vida que a gente tem.”

Ao fazer esta intervenção, Camila Guimarães parece definir que a dimensão ética em

torno da clonagem marcará o tom da apresentação do grupo, o que parece ser confirmado quando

vemos surgir algumas controvérsias entre os integrantes do grupo com os alunos da turma.

Assim, para além de conceitos, os alunos, enquanto sujeitos históricos, vão assumindo suas

posições frente às temáticas apelando, por vezes, a justificativas que revelam um sentimento

religioso que não coincide com os ideais da produção científica. Por outro lado, a fala das alunas

nos permite outra consideração no que diz respeito aos processos de re-significações que alguns

conceitos sofrem à medida que vivenciamos o avanço do conhecimento científico. Astolfi e

Develay (1995), por exemplo, evidenciam as mudanças de sentido que se produzem na história

de dois conceitos: os de fecundação e de calor. Supomos que as alunas desejam evidenciar este

aspecto pois, até há algum tempo, a concepção de um novo ser humano dependia exclusivamente

do encontro de gametas femininos e masculinos e, numa perspectiva mais biológica, das

combinações aleatórias dos genes transmitidos por essas células. Hoje, já se fala em clonagem

humana, um processo de reprodução que envolve manipulação e dispensa a figura do pai ou da

mãe, ou como diz Camila Guimarães, “A clonagem tira essa ideologia de vida que a gente tem”.

Neste sentido, as alunas parecem apontar para dois aspectos relativos à produção científica: a

manipulação e o controle.

Seguindo-se a Camila Guimarães, Thais enfatiza a diferença entre clonagem artificial e

natural, o que, para nós, é importante pois, como sinalizado nas análises dos questionários para

levantamento das concepções prévias, a clonagem é entendida predominantemente como um

processo artificial realizado no interior dos laboratórios. Ao mesmo tempo esse grupo, a exemplo

de outros, mobiliza os conceitos de reprodução sexuada e assexuada, ressaltando o primeiro como

um mecanismo que garante maior variabilidade genética dos organismos enquanto o segundo

produz cópias genéticas. Neste sentido, evidenciam a clonagem como um mecanismo de

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reprodução que se processa naturalmente entre algumas espécies. Realizadas estas articulações

conceituais, os alunos apresentam um primeiro questionamento: “Quais são os limites da

clonagem em humanos?” Com esta questão o grupo parece reconhecer os riscos e incertezas que

acompanham as pesquisas que envolvam a manipulação gênica.

9.3 Fazendo uso de conceitos anteriormente construídos para explicar novas situações

Durante o desenvolvimento do trabalho, percebemos que os alunos fizeram circular

antigos significados que emergiram ao longo da realização da unidade de ensino e são então

mobilizados para explicar novas situações que vão surgindo. Para explicar este movimento que

foi recorrente ao longo da apresentação dos trabalhos, selecionamos uma situação para ilustrá-lo.

A seqüência que transcrevemos a seguir faz parte da apresentação do trabalho do grupo

que trata de organismos transgênicos. Neste momento da apresentação, os alunos desse grupo

falam acerca de plantas transgênicas:

1. Suzane: As plantas em certos lugares..... Alterações de sabor, tamanho, textura....

2. João: Você tem uma plantação de laranjas transgênicas, por exemplo, tem como ter ... dar laranja transgênica e também laranja normal?

3. Camila Dias: Se você modifica o organismo primeiramente você vai gerar o organismo, você não vai pegar o organismo e injetar nele assim. Você vai criar ele, botar o DNA ... o transgene nele, no DNA dele. Então o que é transgênico vai ser transgênico. A reprodução passa a ser assexuada. Então a célula duplica o filamento de DNA... e também o transgene... passa de pai para filho e também todos os descendentes vão ser transgênicos.

4. Júlio: Camila, a gente aprendeu na aula de Geografia que a soja (inaudível) ela foi adaptada pra ser desenvolvida aqui. Então é uma planta transgênica?

5. Camila Dias: É. Muitos casos são. Porque muitas sojas (inaudível) tem pragas, bichos que atacam, ela tem que ser modificada, ela tem que ter alguma coisa nela que faça evitar esse ataque de insetos, doenças. Então é preciso que se modifique o gene dela para que ela se adapte e produza bem pois nem todo lugar é suscetível a essas plantas.

6. Isamar: (inaudível) podem fazer mal pra nós que estamos nos alimentando dela?

7. Camila Dias: Olha tem uma pesquisa ... muitas são contra dizem que não. Em alguns casos pode fazer porque ninguém prova, não tem ciência que prove isso por enquanto. Eu acho que tem que investir neste setor pra você saber, pra você ter

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certeza ... Antes que você ofereça um produto pro consumidor você tem que ter certeza de que ele vale a pena.

Suzane inicia sua apresentação situando os efeitos percebidos em uma planta transgênica

como, por exemplo, o sabor, o tamanho e a textura. Dessa forma, evidencia uma relação entre

uma dimensão visível e observável e uma dimensão estrutural relativa à manipulação no material

genético de um organismo. João apresenta uma questão ao grupo que parece acompanhar o

movimento de Suzane articulando o observável – uma plantação que produz laranjas – ao

estrutural – laranjas transgênicas e normais, ou seja, organismos que tiveram ou não seu material

genético manipulado. Camila Dias poderia ter respondido apenas sim ou não mas, valendo-se dos

conceitos de genes e transgenes e ainda de reprodução assexuada, procura construir uma resposta

coerente para dar conta da questão proposta ao grupo. Camila Dias, inicialmente, procura

evidenciar a manipulação gênica que se processa para se obter um transgênico: “Você vai criar

ele, botar o DNA... o transgene nele, no DNA dele”. Em seguida, recorre ao mecanismo de

autoduplicação do DNA dizendo: “Então a célula duplica o filamento de DNA... e também o

transgene”. Ou seja, uma vez transferido um gene para uma molécula de DNA, à medida que

esse DNA se duplica, há igualmente duplicação desse gene que será transmitido às gerações

seguintes já que a reprodução assexuada reduz as chances de variabilidade genética “então o que

é transgênico vai ser transgênico”. A aluna recupera, portanto, um conceito trabalhado durante

as aulas para elaborar sua resposta. Podemos pensar, a exemplo de outras situações, que o

significado relativo à duplicação do DNA é incorporado pela aluna e se constitui em um

instrumento que lhe permite pensar sobre uma nova situação – a de uma plantação de

transgênicos – a partir de uma perspectiva biológica. A nosso ver, esses diferentes conceitos que

acabam por integrar sua explicação lhe permitem uma visão mais ampla e profunda da temática

em questão. Neste caso, a aluna elabora uma explicação já que importa um modelo teórico para

se referir a um fenômeno específico (MORTIMER; SCOTT, 2002).

No curso da discussão, Julio formula uma questão especificamente para Camila. O aluno

introduz no contexto de discussão uma informação trazida das aulas de Geografia pressupondo-a

como uma construção coletiva e compartilhada (a gente aprendeu na aula de Geografia...).

Dando visibilidade ao caráter polifônico da palavra, tão discutido por Bakhtin, o aluno recupera a

voz de discussões anteriores e de outro contexto para trazer um novo elemento que possa ampliar

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e aprofundar a discussão. Do ponto de vista conceitual, Julio parece reconhecer que a adaptação

de algumas plantas a determinadas condições ambientais decorre de modificações gênicas, o que

situa seu pensamento em uma perspectiva evolucionista neodarwinista, ainda que esses conceitos

não tenham sido explicitados no curso da discussão. Mais que isso, o aluno traz o exemplo do

cultivo de soja transgênica, o que tem sido motivo de grande polêmica em diversos paises,

incluindo o Brasil. Camila Dias é cuidadosa e evita a generalização (É. Muitos casos são). Seu

enunciado evidencia que a produção de plantas transgênicas está diretamente relacionada a

interesses econômicos que buscam reduzir a competição entre as espécies (muitas sojas

(inaudível) tem pragas, bichos que atacam, ela tem que ser modificada, ela tem que ter alguma

coisa nela que faça evitar esse ataque de insetos, doenças) o que viabiliza o aumento da

produtividade (Então é preciso que se modifique o gene dela para que ela se adapte e produza

bem). Neste momento da discussão, Isamar intervém problematizando os efeitos do consumo de

alimentos transgênicos pelo homem (... podem fazer mal pra nós que estamos nos alimentando

dela?). A dimensão social da ciência vai sendo então delineada, à medida que há um

reconhecimento por parte dos alunos que o uso de plantas transgênicas é objeto de intensos

debates por parte de especialistas pois ainda existem questionamentos sobre se ele faz ou não mal

à saúde ou mesmo ao ambiente. O conhecimento biológico vai sendo integrado a uma dimensão

contextual mais ampla que ultrapassa os limites da sala de aula de Biologia. A resposta elaborada

por Camila Dias revela as incertezas e paradoxos que acompanham o próprio desenvolvimento da

ciência (Olha tem uma pesquisa ... muitas são contra dizem que não. Em alguns casos pode fazer

porque ninguém prova, não tem ciência que prove isso por enquanto).. Ou seja, a ciência é capaz

de produzir soluções para muitas questões sociais mas, ao mesmo tempo, oferece riscos para a

sobrevivência da humanidade já que nem sempre é capaz de produzir diagnósticos seguros acerca

da utilização de seus produtos.

Nesta seqüência, dois aspectos podem ser considerados. Primeiro, a evidência de uma

apropriação conceitual (duplicação de DNA e organismos transgênicos) que é então mobilizada

para analisar e interpretar novas situações. Neste momento, o que parece estar em jogo é a

manipulação de um certo suporte teórico fornecido pela ciência e construído durante as aulas para

melhor entender situações significativas e relacionadas ao tema em estudo. Segundo, a assunção

pelos alunos da ciência como um processo em construção que decorre da atividade humana. A

visão de uma ciência que tem sempre uma resposta concebida como uma verdade absoluta vai

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241

cedendo lugar a uma ciência capitaneada por interesses que necessariamente não caminha por um

terreno de grandes certezas.

9.4 Evidenciando a superação de possíveis instabilidades conceituais

A seqüência que transcrevemos faz parte do trabalho de Nathan, Manuela, Thaiane, Thais

e Camila Guimarães cujo tema era a clonagem humana. A seqüência inicia-se com a fala de

Nathan que pretende apresentar as duas técnicas para a produção de clones: a clonagem por

substituição nuclear e a clonagem por fusão celular. No primeiro caso, ocorre a transferência do

núcleo de uma célula somática, por exemplo, da glândula mamária de uma ovelha para um óvulo

desprovido de núcleo doado por uma segunda ovelha. Obtido por esta técnica, o clone será

considerado incompleto pois o DNA mitocondrial será do óvulo. No segundo caso, ocorre a fusão

entre a célula somática de uma ovelha e o óvulo desprovido de DNA nuclear de uma outra

ovelha, havendo a produção de um clone completo já que terá DNA mitocondrial de ambas as

células. Vale ressaltar que, dos três grupos que discutiram a clonagem, apenas este faz referência

ao DNA mitocondrial no processo de clonagem. Talvez porque tenha sido esse o grupo que

enfrentou mais intensamente o conflito relativo ao uso de três organismos no processo de

clonagem quando na verdade acreditavam que apenas um organismo fosse necessário justamente

por se tratar de uma forma de reprodução assexuada. Vejamos a seqüência:

1. Nathan: Bom, agora eu vou explicar como funciona a clonagem. Bem, a clonagem funciona da seguinte maneira; a que utiliza toda a célula e a que utiliza somente o núcleo. Bem, eu vou explicar primeiro a que utiliza o núcleo. Bom, você vai pegar uma doadora, certo? Vai tirar uma célula dela e retirar o núcleo que tem o material genético. Aí, você vai pegar o óvulo de uma outra doadora, aí vai retirar o núcleo, o material genético e vai implantar aquele núcleo nesse óvulo. E através de choques elétricos ele vai unificar...é, fecundar. Ele vai começar a se reproduzir. E tem o outro caso que foi o caso da Dolly que foi pegar toda a célula, no caso da Dolly a célula mamária, e implantar no óvulo sem núcleo e conseguir fazer com que ele fecundasse. Pode ser através de choques elétricos essa fusão e... ou pode ser através desse vírus aqui... Aqui tem todo o processo (aponta para o esquema).

2. João: Qual é o mais eficiente?

3. Nathan: Olha, eu tenho uma idéia. Quando você implanta o núcleo no óvulo ele vai continuar com as mitocôndrias que também contém material genético. Aí tipo o que

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acontece? Não é aquela coisa 100% idêntica. E aí quando você usa toda a célula mamária você vai ter material genético da mitocôndria do ser que está sendo clonado também.

4. Camila Guimarães: Ou seja, todos os genes do mesmo ser.

5. Nathan: Exatamente. Porque se você usa só o núcleo, vai ficar o núcleo dali [da célula da glândula mamária a ser clonada] mas com o DNA mitocondrial do óvulo (aponta no esquema). O interessante é que você a partir do momento que faz essa fusão não pode implantar em nenhuma das outras doadoras. Vai ter que implantar numa terceira ... a mãe de aluguel, ela vai gerar o filho. E esse filho como era de se esperar não vai ter as características dessa mãe de aluguel e sim da pessoa que doou o núcleo, no caso essa aqui (aponta no esquema).

6. Professora: Vocês conseguiram descobrir alguma coisa a mais sobre a... o uso dessas três ovelhas diferentes?

7. Nathan: Não. Só mesmo para confirmar a clonagem.

8. Manuela: Pra dizer que a clonagem é bem sucedida.

9. Camila Guimarães: É, por exemplo, pra dizer que ela é 100% a cópia da que doou a célula com núcleo e você passou por três organismos e só tem as características de uma. Ou seja, a clonagem é 100% idêntica.

10. Renata: Mas professora, não poderia usar o óvulo da doadora da célula? No caso porque foi ela que doou [inaudível].

11. Camila Guimarães: Mas isso que é legal. Você tem três pessoas com diferentes genes...

12. Renata: Mas no caso a terceira...

13. Camila Guimarães: Exatamente. O clone vai ter a genética apenas da doadora do óvulo.

14. Nathan: Não, da doadora...

15. Camila Guimarães: É da célula mamária.

Percebemos que Nathan faz uso de um discurso marcadamente narrativo para apresentar

as técnicas da clonagem. As etapas do procedimento metodológico correspondem a uma

seqüência singular de eventos (Você vai pegar uma célula doadora, certo? Vai tirar uma célula

dela e retirar o núcleo que tem o material genético...). Há um movimento do aluno em situar a

experiência no tempo e no espaço como uma estratégia para que significados sejam produzidos

(BRUNER,1998). Ao mesmo tempo, o aluno deixa entrever em seu enunciado que realiza uma

re-significação para o termo fecundação, considerando-o como o processo de estimulação que

promove o início do desenvolvimento embrionário e não como o encontro de gametas como

biologicamente é definido.

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Concluída essa longa narrativa em torno das técnicas de clonagem, João quer saber qual

delas seria mais eficiente. A resposta formulada por Nathan é bastante interessante, uma vez que

parece expressar a incorporação de vozes com as quais havia dialogado em aulas anteriores

tornando-as sua própria voz (Olha, eu tenho uma teoria). Com este modo de dizer, recorre

novamente a um discurso narrativo para introduzir as diferenças relativas aos clones produzidos

em cada uma das técnicas tendo como referência o DNA mitocondrial, objeto de discussão

introduzido pela professora quando da realização do trabalho com o texto “Dolly, o núcleo e os

clones”. Camila Guimarães complementa a explicação de Nathan que, na seqüência de turnos,

elabora um novo enunciado procurando inicialmente reforçar “sua” idéia (Porque se você usa só

o núcleo, vai ficar o núcleo dali [da célula da glândula mamária a ser clonada] mas com o DNA

mitocondrial do óvulo) para, em seguida, introduzir mais um elemento relativo à terceira ovelha

que funciona como “mãe de aluguel”. Assim, Nathan revela a natureza predominantemente social

dos enunciados e, diríamos, da construção de significados, à medida que neles ecoam as vozes de

uma discussão realizada em outra atividade que analisamos no capítulo 7. Nas palavras de

Bakhtin: “uma palavra, uma vez que é nossa, mas nascida de outrem, ou dialogicamente

estimulada por ele, mais cedo ou mais tarde começará a se libertar do domínio da palavra do

outro”. (BAKHTIN, 1993, p.148).

Essa apropriação da palavra alheia no processo de construção de significados ganha

novamente visibilidade a partir da intervenção da professora no turno 6, quando pergunta aos

alunos se haviam obtido alguma informação complementar que justificasse o uso dos três

organismos na clonagem. O enunciado da professora deixa entrever que algo já fora dito sobre

essa questão e é resgatado pelos alunos nos turnos 7, 8 e 9. Particularmente, Manuela e Camila

Guimarães parafraseiam o enunciado de Nathan valendo-se de outras palavras ou acrescentando

novos elementos num indicativo de querer marcar ou confirmar um determinado significado que

fora construído. Com esse movimento, abordam tanto aspectos relativos aos procedimentos

metodológicos da pesquisa científica enfatizando a necessidade de se validar um resultado obtido

em uma experimentação quanto aspectos conceituais, já que reconhecem que o organismo

produzido é clone daquele que doou a célula com núcleo e é nele que se encontra o material

genético. Supomos que esses alunos tenham solucionado os conflitos que manifestaram em

discussões anteriores. Essa suposição parece ser confirmada nos turnos seguintes, quando Renata,

no turno 12, expressa a mesma dúvida que esses alunos tiveram anteriormente (Mas professora,

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não poderia usar o óvulo da doadora da célula?). Ainda que a pergunta tenha sido dirigida à

professora, Camila Guimarães assume a situação e, mais uma vez, recupera o “já dito”

evidenciando uma apropriação tanto conceitual quanto metodológica acerca da clonagem (Mas

isso que é legal. Você tem três “pessoas” com diferentes genes...). Os alunos revelam uma certa

reorganização de idéias iniciada em uma fase anterior. Assim, o que antes era uma perturbação,

um problema para o grupo passa agora a ser mais uma possibilidade para explicar e entender

situações específicas que é compartilhada com toda a turma.

Nesta seqüência, vale tecer algumas considerações sobre a intervenção de Renata que

somente agora questiona o uso de células de organismos diferentes na clonagem. A aluna havia

participado de um outro grupo para a realização da atividade que discutia o texto “Dolly, o núcleo

e os clones” e, naquele momento, esta questão não aparecera como uma perturbação ou

incômodo para ela ou para o grupo do qual fazia parte. Esse aspecto indica que a construção de

determinados significados em detrimento de outros depende também dos elementos que vão

sendo focalizados e problematizados no curso das interações que se estabelecem entre alunos e

professores. Inferimos que o grupo de Renata privilegiara em suas discussões outros elementos,

como a distribuição eqüitativa do material genético em todas as células do corpo, como

evidenciam as respostas elaboradas e registradas pelo grupo para as questões propostas naquela

atividade.

9.5 Evidenciando as dimensões éticas que envolvem a produção científica

No percurso que realizam durante a apresentação dos trabalhos, os grupos procuram

posicionar-se contra ou favor das pesquisas relativas à clonagem, células-tronco e organismos

geneticamente modificados. De um modo geral, o posicionamento dos alunos é orientado pelos

supostos benefícios e pelas incertezas que acompanham os resultados e usos que essas pesquisas

possam trazer para o cidadão e para a humanidade. É como se os alunos colocassem numa

balança os pontos positivos e negativos dessas produções e tentassem estabelecer uma relação de

custo-benefício. Este é o caso do grupo que discute organismos transgênicos e que, ao longo da

apresentação, enfatiza os efeitos econômicos desse tipo de manipulação gênica que tem

viabilizado, por exemplo, o aumento da produtividade de grãos e a possibilidade de se conferir

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maior resistência às plantas cultivadas ao ataque de insetos58. Entretanto, esses alunos, como já

destacamos anteriormente, reconhecem a ciência como um processo em construção que, por

vezes, não é capaz de dar respostas seguras para os possíveis efeitos decorrentes do uso dessas

biotecnologias pois, como diz Camila Dias: “Em alguns casos pode fazer porque ninguém prova,

não tem ciência que prove isso por enquanto”. Ao final do trabalho, o grupo ressalta o caráter

manipulativo da ciência e, particularmente, das pesquisas que envolvem a manipulação genética:

“[...] Primeiro você não pode prever o que vai acontecer realmente quando o organismo é modificado. Você não sabe... o ser humano, às vezes, quer se passar por Deus. Não é uma coisa contra nem a favor mas você não pode prever aquilo [...]”

Essa ciência que manipula e controla é problematizada, principalmente, pelos grupos que

tratam da clonagem. Ainda que façam referências à clonagem terapêutica, que procura clonar

genes de interesse como aqueles responsáveis pela produção da insulina, a clonagem humana

ocupa um lugar central nas discussões que são encaminhadas pelos alunos e funcionam como

parâmetro para o posicionamento que assumem. Uma questão que parece perturbadora para esses

alunos diz respeito ao efeito psicológico causado nos indivíduos originados a partir da clonagem.

Douglas, por exemplo, aborda essa questão trazendo para o contexto o exemplo tratado na novela

“O Clone”, exibida em 2001, época de efervescente polêmica em torno da possibilidade da

clonagem humana, uma vez que o anúncio da produção de um primeiro clone de mamífero obtido

a partir de uma célula somática adulta, a famosa Dolly, se fizera em 1996. Ao mesmo tempo, essa

preocupação dos alunos sugere que suas concepções sobre clones humanos se banham em um

certo determinismo biológico esquecendo, portanto, que os indivíduos resultam de uma interação

estreita entre genes e ambiente.

Entretanto, esses alunos reconhecem que a manipulação genética, de alguma forma,

confere aos cientistas a capacidade de realizar em laboratório um processo seletivo que até então

era pensado como uma função própria do ambiente tal como proposto pelo conceito de “seleção

natural” de Darwin e melhor desenvolvido a partir da perspectiva neodarwinista. Como enuncia

58 Uma variedade de milho transgênico teve incorporado em seu genoma um gene de bactéria que produz uma substância tóxica aos insetos mas inofensiva aos mamíferos.

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Luise: “Eles [cientistas] querem atingir a perfeição, produzir seres com características cada vez

melhores”.

Considerando esse nível de manipulação e ainda a própria concepção de vida, alguns

alunos se posicionam contra as pesquisas que envolvem a clonagem tanto reprodutiva quanto

terapêutica. Camila Guimarães, por exemplo, adverte que essas pesquisas “[...] transformam o

sentido da vida [...] e a vida é um dom”. Mais ainda, a aluna também sinaliza para as incertezas

da ciência dizendo: “Você não pode produzir sem pensar no futuro”.

Já os grupos que discutem células-tronco assumem de maneira mais positiva o

investimento nessa área de pesquisa. Para isto, consideram os benefícios que podem ser

desfrutados pelos indivíduos portadores de algumas doenças tais como aquelas degenerativas do

sistema nervoso, ou ainda, de alguma seqüela decorrente de acidentes que comprometam o

funcionamento neuro-motor e cardíaco. Entretanto, esta adesão não se faz irrestritamente. Lorena

e Thales, por exemplo, simulam um curto diálogo durante a apresentação do trabalho a fim de

evidenciar a polêmica que está posta entre igreja e ciência quanto à manipulação de embriões na

pesquisa com células-tronco. Ao final do trabalho, reconhecem que a pesquisa com células tronco

se relaciona com a de clonagem terapêutica e formulam a seguinte conclusão: “Nós entendemos

que não devemos avançar nessas questões com seres humanos enquanto não houver um avanço

significativo nas questões de clonagem animal, devendo ser discutidas nas próximas gerações”.

De forma semelhante, Luigi problematiza o descarte de embriões na pesquisa com células-tronco

mas também introduz informações sobre novas técnicas desenvolvidas que permitem extrair as

células do embrião sem danificá-lo59. Assim, posicionam-se “a favor pois pode ajudar várias

pessoas com doenças que hoje não têm cura [...] e acrescentam, que “[...] a pesquisa com

células-tronco é o grande avanço da medicina no século XXI”.

Em relação a esses trabalhos produzidos pelos alunos, vale destacar uma organização

coerente que articula diferentes conceitos biológicos bem como conceitos biológicos a situações

concretas e, por vezes, vivida. Assim, assistimos a apresentações que fazem circular vários

conceitos tais como reprodução sexuada e assexuada, células somáticas e células reprodutivas,

fases do desenvolvimento embrionário, mas agora situados em novos contextos e situações. Isto

permite, por um lado, evidenciar a apropriação de conceitos anteriormente construídos através de 59 Neste caso, as células-tronco são extraídas em uma fase do desenvolvimento embrionário chamada mórula quando não causa danos ao embrião e são qualificadas como células-tronco embrionárias precoces.

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seus usos e aplicações a novas situações. Por outro, insere o conhecimento biológico em

dimensões mais amplas como a social, cultural e ambiental posto que questões relativas aos

efeitos decorrentes da produção científica que envolve a manipulação gênica são problematizadas

pelos alunos ao longo das apresentações. Dessa forma, os alunos, por vezes, realizam

movimentos que parecem romper com uma visão cientificista reconhecendo, por exemplo, os

interesses econômicos bem como o caráter manipulativo que acompanham o processo de

produção do conhecimento científico. Nesse sentido, percebemos que os alunos mobilizam

conceitos de natureza biológica a fim de interpretar situações e este talvez seja o caminho para se

enfrentar de modo mais crítico e seguro questões sociocientíficas que demandam a tomada de

decisões e ações.

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10. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Somos uma espécie intersubjetiva por excelência. Isso é o que nos permite ‘negociar’ os significados quando as palavras perdem o mundo [...](Bruner, 1997).

Neste estudo, focalizamos a organização e a dinâmica interativa de uma sala de aula de

Biologia a fim de identificar e analisar as práticas epistêmicas aqui definidas como os

movimentos que acompanham o processo de significação dos alunos. Este estudo enfrenta,

portanto, o desafio de buscar as especificidades que marcam essas práticas a fim de poder

caracterizar e assumir a sala de Biologia como uma comunidade de práticas. Para isto, nos

apoiamos teoricamente em dois eixos principais de discussão; um primeiro, que nos permite uma

apropriação mais consistente da noção de aprendizagem que se inscreve em uma perspectiva

sociocultural (WERTSCH; DEL RIO; ALVAREZ, 1998; WERTSCH, 1998 e WERTSCH,

1999); e um segundo, que se refere a uma articulação entre estudos de natureza etnográfica

relativos às práticas sociais e culturais que acompanham e marcam o processo de produção do

conhecimento científico (LATOUR, 2000 e KNORR-CETINA, 1981 e 1992) e as pesquisas no

campo da Educação em Ciências que, tomando como objeto de investigação a sala de aula, têm

evidenciado as dinâmicas interativas que organizam e constituem esse espaço-tempo de

aprendizagem.

Nesse sentido, acompanhamos uma tendência na pesquisa em Educação em Ciências que

desloca os estudos sobre o entendimento individual dos estudantes sobre fenômenos específicos

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para a construção/produção de significados em contextos interativos como a sala de aula

(MORTIMER; SCOTT, 2002). Assim, a aprendizagem é assumida como uma prática social e

decorre de processos de intensas negociações pelos sujeitos que, no curso de interações situadas

em contextos específicos de produção, revelam a natureza polissêmica e polifônica dos

significados e uma tendência a privilegiar aqueles relativos a uma área de conhecimento que é a

Biologia. Podemos dizer então que a aprendizagem, enquanto processo de produção de

significados em contextos específicos, envolve tensão e, às vezes, conflitos mas também

alinhamentos e compartilhamentos. Neste movimento, predominantemente social, a emergência

de novos significados se constituem como co-construções, como produções coletivas, que

garantem um certo nível de entendimento orientado por uma certa maneira de falar, fazer e

pensar acerca de questões e fenômenos biológicos.

Vale dizer que, neste estudo, optamos por uma abordagem “multifocal” de análise que

ressalta, muito claramente, o sucesso dos alunos ao se apropriarem dessas formas de falar e

pensar em Biologia e a desenvoltura com a qual as mobilizam para enfrentar tanto questões da

vida cotidiana como do contexto escolar/biológico. Consideramos que a possibilidade de

“enxergar” esse sucesso dos alunos se deva, particularmente, à escolha dessa abordagem

multifocal (focalizando tanto o texto dos alunos como as suas falas em situações variadas, de

resolução de problemas e outras) que acompanha os processos discentes por um período de dois

meses, correspondente à unidade de ensino estudada.

Assim, estas reflexões finais propõem-se inicialmente a sintetizar os resultados

alcançados e, para isso, procuram orientar-se a partir da estruturação dos capítulos que focalizam

as concepções dos alunos, a dinâmica e os processos de significação na sala de aula de Biologia.

Tendo como base está síntese, é possível assinalar algumas implicações pedagógicas, os limites

desta investigação e apontar perspectivas futuras decorrentes de questões que permanecem em

aberto requerendo novas investigações.

10.1 O que ganha visibilidade na sala de aula de Biologia: uma primeira aproximação a

partir das concepções dos alunos acerca de DNA e da dinâmica pedagógica

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Tomar a sala de aula como objeto de investigação, por certo, não é uma tarefa fácil.

Situada em espaço social complexo e multifacetado, vamos assistindo, do lugar de professora e

pesquisadora que ocupamos, um entrelaçamento de vozes que fazem revelar diferentes histórias,

perspectivas de mundo e concepções que se põem em contato com um conhecimento histórico e

socialmente construído que desejamos que seja compartilhado. O encontro/desencontro entre o

que os alunos sabem e como sabem e o conhecimento a ser ensinado parece marcar a construção

de uma dinâmica própria às interações que se constituem na sala de aula de Biologia.

Tomamos neste estudo, como ponto de partida, as concepções que os alunos sustentam

acerca de temáticas relacionadas ao DNA (ácido desoxirribonucléico), apresentadas no capítulo

5. Em nosso questionário, realizamos um esforço para propor questões que pudessem revelar a

articulação que os alunos realizam entre um mundo percebido e um mundo molecular. Para isto,

apresentamos algumas situações que têm circulado com certa freqüência em contextos para além

dos escolares, tais como: radiação, síndrome de Down, clones e transgênicos, cuja base

explicativa, direta ou indiretamente, se encontra na estrutura e funcionamento molecular dos

organismos. A análise desses questionários revela a riqueza do pensamento discente que, de um

modo geral, expressa concepções que estão bem próximas daquelas que pretendemos ensinar na

unidade de ensino. Assim, esses alunos reconhecem e se valem de um conhecimento situado no

nível molecular e microscópico, como DNA e núcleo, para orientar as respostas que elaboram

como, por exemplo, nas previsões e explicações para a situação experimental proposta com a alga

Acetabularia e os efeitos das radiações. Este movimento de ir além da dimensão descritiva

também pode ser percebido nas respostas sobre organismos transgênicos e clones quando

apontam para a manipulação que se opera geneticamente nesses organismos. Entretanto, em

ambos os casos, esta manipulação genética é sempre situada em um mundo laboratorial

esquecendo, portanto, que cópias e alterações genéticas, como ocorrem respectivamente nos

clones e organismos transgênicos, podem decorrer de processos naturais relativos aos modos de

reprodução e mesmo das inter-relações que se estabelecem entre os seres na natureza.

As concepções dos alunos se constituem, do ponto de vista pedagógico, em uma base de

dados que orientam o planejamento das atividades a serem realizadas na unidade de ensino à

medida que sinalizam alguns pontos a serem mais bem explorados e que possam viabilizar re-

elaborações e aprofundamentos acerca da temática em curso. Além disso, essas concepções são

postas novamente em circulação pelos próprios alunos ao longo das interações, que vão sendo

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tecidas durante as aulas, o que favorece a organização de um contexto que, ao mesmo tempo em

que restringe e silencia alguns significados, abre-se à construção de outros mais especificamente

relacionados a um modo biológico de pensar, olhar e se relacionar com os fenômenos.

Este movimento paradoxal de silenciamento e abertura de significados que caracteriza

essa sala de aula de Biologia ganha visibilidade quando focalizamos especificamente a dinâmica

pedagógica que nela se estabelece. Organizada em um contexto dialógico e participativo e ainda

pela natureza e diversidade dos temas e das atividades que se constroem, essas concepções dos

alunos e seus processos de significação vão sendo evidenciados através das relações que os

alunos estabelecem, das problematizações que são encaminhadas, dos conflitos que são

reconhecidos, dos enunciados mais elaborados que formulam, indicando o engajamento

disciplinar produtivo tal como proposto por Engle e Conant (2002).

Com um olhar mais atento voltado para essas concepções dos alunos e as formas como se

põem em contato com os conceitos a serem ensinados, entramos nesta sala de aula de Biologia

orientados por categorias analíticas que propõem caracterizar as interações discursivas que se

estabelecem nas aulas de ciências (MORTIMER; SCOTT, 2002 e MORTIMER et al. 2007).

Assim, no capítulo 6, evidenciamos uma alternância de abordagens comunicativas dialógica e de

autoridade que se situam em um contínuo, que procura ora transmitir ora gerar significados. A

mudança nessas diferentes formas de abordagens pode ser relacionada aos diferentes padrões de

interação que vão sendo tecidos nas trocas de turnos entre professora e alunos, revelando

intenções de marcar, selecionar, re-elaborar e aprofundar significados e idéias que se aproximem

da estória científica. Nesta sala de aula, percebemos que há uma recorrência de padrões triádicos

(I-R-A) mas também cadeias longas fechadas e abertas onde ganha visibilidade um processo de

negociação que parece fazer emergir novos significados a partir das relações estabelecidas entre

elementos que são introduzidos ou mesmo problematizados no curso das interações. Essa

alternância é reconhecida pelos alunos e orienta, de uma certa forma, a posição que vão

assumindo e os níveis de participação no curso das interações. Neste movimento, os alunos

subvertem a ordem prevista em torno daquilo que será ensinado e de como será ensinado. A

iniciação dos alunos, realizada em algumas seqüências, aponta para temas específicos que

deslocam a discussão para questões de seu interesse e sobre as quais têm dúvidas. De um modo

geral, a professora acolhe essa participação dos alunos e talvez possamos ler esses movimentos a

partir da noção de “translação” proposta por Latour (2000): constituem-se em mecanismos e

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estratégias, próprias de uma sala de aula enquanto espaço/tempo social, que buscam adaptar o

trabalho ali realizado a fim de atender e manter o “inter-esse” desse grupo de alunos e da

professora. Há, assim, uma “lógica oportunista” (Knorr-Cetina, 1981) que viabiliza ajustes e

redefinições no curso da interação permitindo que os sujeitos se agreguem em torno de um

objetivo comum, ao mesmo tempo em que a professora se mantém em uma posição de controle e

gerenciamento das associações e relações que vão sendo estabelecidas pelos alunos para que

determinados significados sejam construídos.

Alguns autores (SCOTT, 1997; MORTIMER; HORTA MACHADO, 1997;

MORTIMER; SCOTT, 2002 e MORTIMER et al. 2007) reconhecem essa alternância como a

construção de um gênero discursivo específico, em termos bakhtinianos, à medida que revela que

o discurso e a mediação que se realizam na sala de aula de Ciências/Biologia não seguem um

padrão homogêneo e unívoco, como supostamente pensado, como característicos do discurso

científico escolar. Mais ainda, esta alternância na abordagem comunicativa sinaliza mudanças de

perspectivas epistemológicas pois evidencia um trânsito entre o mundo observável e o mundo das

teorias, ou seja, entre as evidências empíricas e descritivas e os modelos explicativos produzidos

pela ciência que nos permitem ir além do que os nossos olhos podem alcançar. Talvez esta seja

uma primeira pista que nos permita caracterizar a sala de aula de Biologia em sua especificidade.

Esses movimentos interativos relacionados ao conteúdo que se deseja ensinar e aprender

encaminha uma certa forma de organizar, pensar, produzir e olhar o conhecimento biológico nas

relações de ensino. Neste sentido, cabe-nos perguntar: quais são os conteúdos/conceitos

biológicos abordados na sala de aula de Ensino Médio? Pelo que está posto nas propostas

curriculares e livros didáticos que seguem essas orientações curriculares: na primeira série,

focaliza-se uma dimensão microscópica relacionada à estrutura e funcionamento do nível celular

e molecular dos organismos; na segunda série, enfatiza-se a classificação dos seres vivos e

aspectos relativos a sua anatomia e fisiologia; e, na terceira série, abordam-se elementos básicos

de genética, ecologia e evolução.

Assim, há uma lógica conceitual que organiza os tópicos a serem ensinados e, portanto,

aprendidos ao longo do Ensino Médio. Mas, a nosso ver, existe um aspecto negligenciado nessa

forma de organização, que se relaciona à ausência quase total de uma inter-relação entre esses

diferentes conteúdos/conceitos. Assim, o organismo trabalhado no nível microscópico ou

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molecular durante a primeira série do ensino médio parece guardar poucas relações, por exemplo,

com aquele trabalhado no nível anatômico e fisiológico na segunda série. A visão é fragmentada

revelando o mecanicismo que está posto na base da organização do conhecimento biológico e,

por inferência, na forma como é transposto para os contextos de ensino. Como adverte Trivelato

(2005, p. 127):

[...] as práticas curriculares que vemos se repetirem nas escolas parecem bastante comprometidas com uma abordagem reducionista, particularmente com relação ao estudo do corpo humano. Esse corpo, que é dividido e compartimentado para que possa caber no ensino, vai se apresentando em aspectos funcionais, celulares e moleculares, por uma forte tradição curricular que se expressa em organização de tópicos, em ilustrações, esquemas, equações etc.

Desta perspectiva, a construção de uma visão integrada e holística do mundo e dos seres

vivos que nele habitam fica comprometida. A sensação é que a aula de Biologia traz um

conhecimento que não se articula ou tem muito pouco a ver com o que se vivencia no dia a dia.

Talvez, uma das grandes dificuldades no ensino de Biologia seja o distanciamento que marca as

dimensões conceitual e contextual. Podemos ilustrar esta afirmação a partir do conceito de

respiração que é trabalhado com diferentes abordagens respectivamente nas 1ª e 2ª séries do

Ensino Médio. Na primeira séries, é apresentada a respiração celular, um processo fisiológico que

demanda oxigênio para a oxidação da molécula de glicose e conseqüente liberação de energia

necessária às atividades metabólicas dos organismos, realizado por organelas celulares

específicas, as mitocôndrias. Já na segunda série, a respiração é evidenciada como o processo de

trocas gasosas entre esses organismos e o meio ambiente quando os conceitos de inspiração e

expiração são bastante explorados. A integração dessas duas abordagens da respiração, quando

ocorre, é bastante superficial e, por isso mesmo, os alunos têm dificuldade, por exemplo, em

explicar o aumento da freqüência respiratória quando em uma situação que demanda maior

esforço físico.

Essa apresentação de conceitos de forma descontextualizada é um aspecto bastante

problematizado a partir da noção de aprendizagem situada que assumimos em nosso referencial

teórico. Nesta perspectiva, a aprendizagem se realiza quando há envolvimento do sujeito

cognoscente em atividades social e culturalmente situadas. Isto implica em considerar a sala de

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aula como espaço de reprodução mas também de produção de práticas relativas a uma disciplina

específica. Neste caso, o sentido de práticas não se reduz exclusivamente a atividades como as de

natureza experimental mas inclui movimentos e articulações entre os diferentes

conteúdos/conceitos que são abordados na sala de aula de Biologia, viabilizando a construção de

significados mais amplos e profundos que representam uma visão integrada dos organismos

vivos.

Na tentativa de superar esta sensação de esvaziamento que acompanha o ensino de

Biologia, é preciso pensar sobre como o conhecimento biológico pode se tornar visível neste

mundo em que o aluno se encontra situado. É preciso pensar sobre possibilidades de construção

de um ensino de Biologia que, sem abrir mão da dimensão conceitual que o caracteriza, viabilize

o desenvolvimento de um pensar, olhar e relacionar biológico que atenda às demandas de um

mundo dinâmico e, em estreita inter-relação, que se organiza e se re-organiza em face das

mudanças naturais mas também da produção de novas biotecnologias. Mais que isto, é preciso

que o aluno se perceba como um ser biológico dotado das estruturas, processos e relações que são

apresentados nas aulas de Biologia, como o faz João que reconhece que a síntese de proteínas é

um evento que está acontecendo com ele e foi apresentado no capítulo 6. Neste sentido:

Para um menino, “conhecer a natureza”, falar de animais e de plantas, reconhecer-se como indivíduo vivo e reconhecer nos demais as mesmas características próprias de um ser vivo, sentir-se parte de um sistema do qual também outros fazem parte, pode responder a uma necessidade muito mais profunda do que a de adquirir umas simples noções de Biologia. É importante que na educação escolar estas exigências, nem sempre experimentadas em um nível consciente, possam sair à luz e encontrar uma série formal de palavras mediante as quais possam se expressar até constituir a base de um modo de pensar biológico que represente um guia com o fim de formar o próprio sistema geral de conhecimento. (ARCÀ; GUIDONI; MAZZOLI, 1990, p.75).

10.2 Encaminhando uma forma biológica de pensar, olhar e se relacionar com o mundo

Encaminhar uma forma biológica de pensar, olhar e se relacionar com o mundo exige um

movimento que inclui re-significar o próprio objeto de aprendizagem em Biologia que, por uma

tradição fortemente ancorada em uma perspectiva cartesiana, tende a se situar em uma dimensão

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exclusivamente conceitual e ainda mecanicista. Olhar uma sala de aula de Biologia e observar os

movimentos, ou melhor, as práticas que entram em jogo no processo de construção de

significados nos fazem pensar algumas especificidades do conhecimento biológico, relativas aos

“níveis de conhecimento” a serem considerados e abordados nas relações de ensino (HORTA

MACHADO, 1999). A figura abaixo procura sintetizar essas especificidades evidenciando as

possíveis inter-relações entre esses níveis como um aspecto fundamental quando se pretende que

os alunos tenham uma compreensão mais ampla da Biologia.

Classificação

Evolução

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Figura 01: Níveis de conhecimento no ensino de Biologia

Nossa figura toma como objeto central do ensino de Biologia o estudo dos seres vivos e,

para isso, é importante uma abordagem dos aspectos estruturais relativos às unidades que os

constituem tanto do ponto de vista microscópico e molecular, que inclui citologia, histologia,

anatomia e genética, quanto do ponto de vista da composição bioquímica dessas estruturas. No

sentido de se compreender a finalidade desse nível estrutural, é fundamental a articulação com

um outro nível de conhecimento que envolve os mecanismos fisiológicos relativos aos diferentes

sistemas que integram os organismos a fim de garantir seu equilíbrio interno e conseqüente

sobrevivência. Este nível de conhecimento deve abranger igualmente processos bioquímicos

relacionados ao metabolismo celular como, por exemplo, síntese de proteínas, respiração celular

e fotossíntese. Além disso, deve existir um nível de conhecimento relativo às relações entre os

seres vivos que evidenciam a dinâmica de interdependência a qual todos estão sujeitos. Esta

interdependência entre os seres vivos deve ser revelada tanto no nível estrutural quanto funcional.

Assim, o estudo das cadeias e teias alimentares deve envolver as trocas de matéria e energia que

se realizam entre os organismos e isto inclui considerar as reações que absorvem e liberam

energia e que se referem, respectivamente, aos processos de fotossíntese e respiração celular.

Essa abordagem integrada dos seres vivos, contemplando aspectos estruturais, funcionais

e relacionais, permite contemplar de forma transversal dois temas fundamentais que organizam o

conhecimento biológico e encontram-se inter-relacionados: a evolução e a classificação. A

evolução refere-se às modificações estruturais e funcionais incluindo inclusive aquelas de

natureza molecular ocorridas com as espécies ao longo do tempo. Os sistemas atuais de

classificação tendem a considerar um conjunto de caracteres relevantes (estruturais, funcionais,

moleculares) para classificar os seres vivos de modo a evidenciar as relações de parentesco

evolutivo e desse modo construir a filogênese dos diferentes grupos de seres vivos.

Do lugar de professora que ocupamos na sala de aula de Biologia, a integração desses

diferentes níveis de conhecimento se constitui em um instrumento conceitual necessário à

aprendizagem de um pensamento biológico escolar. A análise, apresentada no capítulo 6,

evidencia que alguns alunos já caminham em direção a essa integração conceitual. Assim,

Nathan, na primeira seqüência analisada no capítulo 7, vale-se de um nível estrutural e

microscópico como o núcleo celular para classificar a alga como um organismo eucarionte. De

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257

forma semelhante, Camila Guimarães, na quarta seqüência apresentada neste mesmo capítulo 7,

estabelece uma relação entre estrutura e evolução dos seres vivos. A articulação que a aluna

realiza entre diferentes níveis de conhecimento revela o reconhecimento de que modificações nas

características dos seres vivos dependem de alterações processadas em um nível molecular. Isto

lhe permite elaborar uma “hipótese” para explicar a existência de um DNA não - codificante nos

seres vivos.

A construção do conhecimento biológico na escola exige transformar as coisas e os

objetos em processos, ou seja, re-descrever as concepções iniciais dos alunos, às vezes bastante

fragmentadas, em relações conceituais que integrem diferentes níveis de conhecimento, que é o

que lhes permite a construção efetiva de determinados significados.

Ao mesmo tempo, esses diferentes níveis de conhecimento (estrutural, funcional e

relacional) podem ser privilegiados em diferentes dimensões. Seguindo um movimento realizado

por Horta Machado (1999), que se propõe a encaminhar a construção de um pensamento

químico, podemos considerar que três dimensões, que também se articulam, podem ser

contempladas dependendo do recorte realizado pelo professor no planejamento de suas aulas. A

figura a seguir, inspirada no trabalho de Horta Machado (1999), procura evidenciar essas

dimensões:

Figura 02: Dimensões a serem abordadas no ensino de Biologia

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O que essas três dimensões expressam? O que será privilegiado em cada uma delas? A

dimensão observável do conhecimento biológico inclui todas as estruturas e eventos que sejam

passíveis de observações pelo aluno. Revelam suas experiências mais imediatas com o mundo

biológico. Assim, é possível observar e mesmo mensurar o aumento da freqüência respiratória

independentemente de se estar numa aula de Biologia, ou ainda, qualificar os seres vivos como

sendo aqueles dotados de movimento. Algumas características dos seres vivos também podem ser

capturadas pelos nossos sentidos, sendo possível inclusive perceber quais aquelas que são

herdadas do pai ou da mãe. Contemplar esta dimensão observável talvez seja um primeiro

caminho para nos aproximarmos dos modos com os quais os alunos se relacionam e falam acerca

de determinados fenômenos biológicos à medida que revelam as experiências vividas, capturadas

e percebidas na interação com a realidade cotidiana e com outros espaços formais de

aprendizagem.

A partir do nível da experiência, através de uma linguagem feita de palavras e de representações (e sem linguagem isso não seria possível), se pode, portanto, construir e controlar algo (e que chamamos de conhecimento) desprendido tanto da experiência quanto da linguagem; que não se identifica nem com o fato individual nem com as palavras que o descrevem; que é comunicável a outras pessoas, que se pode estender a outros fatos, modificar como conseqüência de outras experiências, que pode por-se de novo sempre em jogo. (ARCÀ; GUIDONI; MAZZOLI, 1990, p. 28).

No capítulo 8, ao analisarmos algumas cenas, relativas às extrações de DNA das células

da cebola e do morango, demos visibilidade a essa dimensão da experiência quando os alunos

encaminham uma certa forma de “observar” e “registrar” os fenômenos. Essas observações e

registros não se dão num vazio conceitual mas orientados e dirigidos por uma forma específica de

olhar. Assim, durante as etapas de mistura e filtração, alguns alunos dão destaque a aspectos

como cor, cheiro e posição ocupada pelas substâncias na mistura, mas também relacionam esses

aspectos “empíricos” a modelos explicativos e construídos em outros contextos, envolvendo

noções como densidade, mistura homogênea e heterogênea. A observação do produto final obtido

nesta experimentação leva os alunos a observarem não apenas uma massa esbranquiçada, mas

filamentos de DNA como o faz Camila Assunção na cena 3. Afinal, já havíamos estudado que

esta é uma molécula constituída por duas cadeias que se ligam pelas bases nitrogenadas (adenina,

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guanina, citosina e timina). Certamente, por reconhecer esta dimensão molecular do DNA,

Rafael, em uma das cenas analisadas, faça referência a estas bases nitrogenadas.

O que estes aspectos evidenciam? Que a construção de um olhar biológico pressupõe a

incorporação de uma dimensão relativa às teorias e modelos explicativos que nos auxiliam a ir

além do observável e permitem fazer previsões e elaborar explicações para determinados

fenômenos tanto microscópicos quanto macroscópicos. Parafraseando Horta Machado (1999),

passar da observação sensível às “causas escondidas” é fundamental se estamos pretendendo

formar o pensamento biológico.

Entretanto, vale destacar que este é um movimento que se realiza em uma via de mão

dupla. Vamos dos objetos às causas escondidas, mas também das causas escondidas aos objetos.

Afinal, este movimento dialético é que fundamenta a aprendizagem em uma perspectiva

sociocultural. A apropriação de instrumentos relativos a um sistema cultural como a ciência

permite-nos olhar o mundo a partir de novos ângulos.

Este aspecto é bem evidenciado na primeira seqüência que analisamos no capítulo 7,

quando os alunos, Ronnie mais explicitamente, evidenciam a relação estreita entre núcleo e

célula. Dessa forma, mobilizam um conhecimento relativo às funções do núcleo para explicar um

resultado: a parte nucleada vive e a parte anucleada morre. Avançando nesta explicação, Ronnie

dá visibilidade a uma nova relação que envolve um componente estrutural específico do núcleo, o

DNA, à função por ele desempenhada, qual seja, a de controlar toda a atividade metabólica da

célula. A articulação entre estas dimensões viabiliza a emergência de determinados significados

ou mesmo a tentativa de significar determinados conceitos. Este talvez seja o caso de João que

procura integrar um aspecto observável (molequinho com olhos de coruja) a uma explicação

relativa à manipulação genética para significar o conceito de organismos transgênicos e que

analisamos na seqüência que denominamos “Uma articulação entre o observável e o

microscópico: significando o conceito de transgênico”, também no capítulo 7,

Consideramos, ainda no capítulo 9, que algumas situações ajudam a ilustrar este

movimento de integração entre o observável e o teórico. Uma delas é a explicação que Camila

Dias elabora fazendo uso do processo de autoduplicação do DNA articulado à reprodução

assexuada. Esta articulação lhe permite posicionar-se acerca da possibilidade de uma plantação

de laranjas constituída de laranjas transgênicas e laranjas “normais”. Outra situação é quando

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essa mesma aluna vale-se do conceito específico de transgenes para pensar acerca da adaptação

da soja para o cultivo no Brasil. A apropriação conceitual é evidenciada a partir das relações que

a aluna constrói no curso da interlocução, o que parece revelar uma certa forma biológica de

olhar, pensar e se relacionar com o mundo.

Entretanto, vale destacar que os alunos também integram diferentes conceitos situados em

uma dimensão exclusivamente teórica dando visibilidade a um movimento que procura construir

explicações para determinados fenômenos. Este é o caso de Ronnie, na segunda seqüência

analisada no capítulo 7, quando problematiza o fato de as hemácias serem destituídas de núcleo.

Reconhece, portanto, que os humanos possuem células anucleadas, mas também que o núcleo é

uma estrutura fundamental à célula como ele próprio havia evidenciado. No enfrentamento desse

problema, os alunos parecem buscar uma explicação a partir da mobilização de um outro conceito

já construído, o de células procariontes, que circulara anteriormente neste mesmo contexto. Dessa

forma, procuram dar conta de uma situação sem abrir mão de um elemento molecular

fundamental, o DNA, cuja função parece bem definida. Assim, para os alunos, as hemácias, tal

como células procarióticas, têm o DNA disperso no citoplasma. Do ponto de vista conceitual,

esta aproximação dos alunos sugere uma certa contradição ou incompatibilidade uma vez que os

seres humanos são classificados como organismos eucariontes. Com a intervenção da professora,

são resgatadas várias informações que, no curso da interação, têm o objetivo de orientar a

construção de um significado específico, neste caso, que as hemácias antes de perderem o núcleo,

sintetizam substâncias (RNA mensageiro) capazes de garantir sua sobrevivência e, portanto, a

realização de seu papel no organismo humano que é a de transportar o oxigênio. Articulando

essas várias informações, os alunos, particularmente Ronnie e Nathan, se aproximam ao final da

seqüência de uma explicação coerente, que será sistematizada pela professora em um outro

momento já que existe a intenção de marcar ou fixar este significado enquanto outros foram

sendo silenciados na dinâmica interativa.

A nosso ver, neste percurso, a professora, juntamente com os alunos, vai tecendo uma

rede de associações, biologicamente situada, viabilizando a emergência de um novo significado.

Em outras palavras, a professora, ao resgatar conceitos supostamente já construídos, vai

“empilhando” antigas “caixas-pretas” (medula óssea, hemoglobina, transporte de oxigênio) e

caminhando na direção de um fato “novo”, pelo menos para os alunos. As cadeias de associações

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revelam a “sócio-lógica” que reside na base do pensamento para que uma alegação se torne mais

crível, o que nas palavras de Latour (2000, p. 336):

[...] é muito semelhante aos mapas rodoviários; todos os caminhos levam a algum lugar, sejam eles trilhas, estradas vicinais, rodovias ou autopistas, mas nem todos vão para o mesmo lugar, suportam o mesmo tráfego, custam o mesmo preço de abertura e manutenção [...] As únicas coisas que queremos saber sobre essas vias sócio-lógicas é onde elas nos levam, quantas pessoas as percorrem com que tipo de veículo, e que facilidades oferecem para a viagem e não se estão certas ou erradas.

Neste caso, percebemos que a professora percorre uma via específica para “aumentar o

controle e diminuir a margem de negociação [...] o que transforma a alegação num fato mais duro

que parece destroçar as maneiras mais moles de comportar-se e acreditar”. (LATOUR, 2000, p.

342). Ou seja, neste percurso, procura construir novas relações a fim de fazer emergir um novo

significado biológico.

Estas relações conceituais, mobilizadas pelos alunos no processo de significação, também

são evidenciadas na apresentação dos trabalhos relativos à clonagem de organismos transgênicos,

analisados no capítulo 8. Para introduzir as temáticas escolhidas, a maioria dos grupos reconhece

as relações como um recurso necessário para que novos conceitos sejam colocados em

circulação. Este aspecto é bem ilustrado por Alex, que faz parte do grupo que trata de organismos

transgênicos, quando enuncia que “Bom gente, olha só... prá gente entender o que é transgênico

primeiro temos que ter algumas noções do que é engenharia genética”. Além disso, assistimos a

um tráfego de diferentes conceitos tais como reprodução sexuada e assexuada, células somáticas

e células gaméticas que permitem definir, problematizar e mesmo justificar os significados e a

natureza das pesquisas que envolvem a manipulação genética.

Consideramos ainda que um tipo especial de cadeia de associações se forma quando os

alunos fazem uso de analogias. Como evidenciamos na segunda seqüência analisada, denominada

“O que seria de uma árvore sem folhas: reconhecendo inter-relações estruturais e funcionais

na/da célula”, Thais estabelece um elo de ligação entre as inter-relações que se processam entre

núcleo e célula e o mecanismo reprodutivo dos vírus. De forma semelhante, Nathan e Letícia, na

mesma seqüência, valem-se das partes da planta para ilustrar esta interdependência que se

processa em um domínio microscópico. Neste caso, é preciso considerar que a aproximação entre

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sistemas explicativos distintos, tal como na analogia, encontra-se na base do pensamento

científico. É o que afirmam Knorr-Cetina (1992) e Mithen (2002), pois:

[...] a ciência, assim como a arte e a religião, é um produto da fluidez cognitiva. [...] A fluidez cognitiva permitiu o desenvolvimento da tecnologia, capaz de resolver problemas e estocar informações, e gerou a possibilidade de usar metáforas e analogias – talvez sua conseqüência mais significativa e sem a qual a ciência não existiria. (MITHEN, 2002, p. 345).

Apropriando-nos das idéias de Latour para pensar a sala de aula de Biologia, podemos

dizer que nesse momento não nos cabe julgar se essas associações construídas pelos alunos estão

“certas” ou “erradas”, mas sim evidenciar um processo em que a mobilização de um instrumento

familiar permite a elaboração de uma nova idéia.

O que queremos ressaltar em todos esses casos são as práticas epistêmicas que se

organizam no sentido de sustentar a elaboração de determinados significados biológicos posto

que, nessas práticas, os alunos estabelecem formas específicas de lidar com o conhecimento

estabelecendo relações entre conceitos e entre conceitos e situações. Ou seja, a função epistêmica

se cumpre quando determinados objetos e processos são explicados e re-descritos na relação que

mantêm com outros objetos e processos em uma perspectiva biológica.

Mas o conhecimento biológico não se constitui apenas de modelos explicativos e

observações. Há ainda um conteúdo que pode e é simbolicamente representado. Como dito por

Pino (1995), e apontado em nosso referencial teórico, as representações referem-se ao mundo,

têm um conteúdo e, por isso mesmo, cumprem o papel de substituir ou evocar objetos e

significados. Entretanto, tais significados são específicos e se constituem na interação que

realizam no interior de determinados sistemas culturais.

A Biologia está repleta de situações em que representações são utilizadas. Assim, no

ensino de Genética, os genes (trechos de DNA que codificam uma determinada proteína) são

representados por letras. As letras maiúsculas representam os genes dominantes enquanto as

minúsculas os genes recessivos. Ao se deparar com um problema de genética que tem em seu

enunciado a informação de que um indivíduo é Aa, o aluno deve reconhecer que não se trata de

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um erro de digitação mas sim que este individuo é heterozigoto, ou seja, possui genes que

qualificam de forma diferenciada uma mesma característica.

Avançando na ilustração dessa dimensão representacional, podemos nos valer da própria

molécula de DNA, objeto principal da unidade de ensino analisada neste estudo. Uma molécula

de DNA é uma cadeia dupla constituída por unidades menores denominadas nucleotídeos. Cada

nucleotídeo é sempre composto por três partes: um grupo fosfato, um açúcar do grupo das

pentoses – a desoxirribose – e uma base nitrogenada que pode ser a adenina, a timina, a guanina e

a citosina. O DNA é uma longa molécula que, quando aglutinada, pode ser vista a olho nu, como

na atividade experimental realizada pelos alunos. Nesta longa cadeia, o grupo fosfato e o açúcar

se repetem havendo variação apenas na seqüência das bases. Dessa forma, a molécula de DNA é

representada, para fins didáticos, apenas como uma seqüência dupla das letras que iniciam os

nomes das bases nitrogenadas, como vemos ilustrado abaixo:

Diante dessa representação, o aluno deverá saber que não se trata de uma palavra escrita

em outro idioma e, portanto, sem significado para ele, mas sim de um trecho de uma molécula de

DNA. É possível reconhecê-la e mesmo distingui-la de uma molécula de RNA (ácido

ribonucléico) por ser dupla já que existem dois filamentos unidos por traços que representam as

pontes de hidrogênio, e ainda, por apresentar timina que é uma base específica do DNA. A partir

dessa representação carregada de um significado biológico, é possível representar igualmente os

processos de transcrição e tradução gênicas que correspondem, respectivamente, à síntese de

RNA mensageiro e de proteínas necessárias à expressão das características de um individuo.

Olhar para essa seqüência de letras é ler um código genético que expressa uma informação para

sintetizar, por exemplo, a insulina e não termos problemas com o controle da taxa de glicídios em

nosso sangue. Isto implica em assumir que estão em jogo modos de olhar, pensar e falar

biológicos, posto que carregam significados situados em uma área específica de conhecimento

A T C G G A T T A | | | | | | | | | T A G C C T A A T

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que é a Biologia. Sobre a representação desse conteúdo biológico, talvez seja importante trazer as

palavras de Arcà, Guidoni e Mazzoli (1990, p. 39) que assim dizem:

[...] para expressar e para comunicar um modelo de funcionamento e de estrutura se tem começado a dizer código genético; e se tem começado a dizer mensagem genética; e, portanto tem sido reconhecidas palavras, frases, referindo-se a diversas estruturas moleculares. Ao se ouvir falar de biologia molecular, parece que se está ouvindo lingüistas falarem: existe um código e existem mensagens, mas existem também significados, processos de tradução, sinais de início e fim da leitura, etc. O biólogo fala assim, através de uma metáfora lingüística, de coisas que de outro modo não saberia organizar entre si; da metáfora lingüística passa ao funcionamento social: por que se existe uma mensagem existe também um mensageiro, e se a mensagem é decodificada existe também um decodificador, etc. Assim vemos que uma estrutura metafórica se utiliza sempre para organizar cognitivamente um fragmento de realidade nova; e que por sua vez, qualquer novo fragmento de realidade dá lugar a uma expressão lingüística própria, que pode se utilizar por sua vez para organizar outros contextos, segundo um jogo de contínuos e complicados reenvios. (grifos dos autores).

O movimento, em uma via de mão dupla, entre as dimensões teórica e representacional é

um exercício do pensamento que favorece a construção de determinados significados e foi

explorado nesta sala de aula, particularmente quando se tratou da duplicação do DNA e da síntese

de proteínas. Além disso, alterações na seqüência de bases esquematizadas eram feitas pela

professora para que uma discussão em torno das mutações gênicas pudesse ser encaminhada. No

caso da síntese de proteínas, foi proposta inclusive uma atividade para a construção de um

modelo em que os alunos pudessem “manipular” o código e a mensagem genéticos a fim de que

os mecanismos de transcrição e tradução gênicas pudessem ser evidenciados e melhor

compreendidos. Ainda que a atividade não tenha se mostrado didaticamente tão eficiente, serviu

para que os alunos consultassem a tabela referente ao código genético, identificando a seqüência

de aminoácidos da proteína que estava sendo sintetizada. Com este movimento, foram capazes de

reconhecer o equívoco que estavam cometendo, encaminhando de forma cuidadosa as conversões

entre DNA e RNA mensageiro e entre RNA mensageiro e RNA transportador, mecanismos

bioquímicos diretamente envolvidos com a leitura e síntese da proteína.

Neste caso, em particular, podemos considerar que as representações tornam observável

um fenômeno que se situa em uma dimensão molecular. Dessa forma, a representação registra o

fenômeno tornando-o simplificado e, esperamos, mais compreensível para o aluno. Mas ao

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mesmo tempo, o registro desse “fenômeno vai configurar os limites e as possibilidades de um

certo lugar de observação deste fenômeno” (HORTA MACHADO, 1999). Assim, na seqüência

de letras (A T C G) está inscrito um código. Não um código lingüístico mas o código da vida. As

transcrições e traduções processadas não são de natureza lingüística e sim bioquímica e ocorrem

no nível molecular dos organismos. Em alguns casos, a expressão desse código pode ser

observada facilmente pelos cidadãos quando, por exemplo, se refere a uma característica como a

cor do cabelo. Esses elementos nos ajudam a pensar sobre a necessidade da articulação entre as

dimensões observável e representacional do conhecimento biológico a fim de que significados

sejam efetivamente construídos.

A partir dessas considerações, podemos afirmar que a construção do conhecimento

biológico pelo aluno, com suas formas de olhar, falar e pensar o fenômeno, depende do

entrelaçamento entre os níveis de conhecimento (estrutural, funcional e relacional) e entre as

diferentes dimensões (observável, teórica e representacional) apontados anteriormente. Este

entrelaçamento é viabilizado a partir de movimentos, ou mais especificamente, de algumas

práticas que são realizadas pelos alunos no curso das interações mediadas pelo outro e pela

linguagem e consistem em relacionar, selecionar, mobilizar conceitos e gerar novas questões de

forma a lidar com os conteúdos biológicos. Nas palavras de Vygostky (2001, p. 409 e 410):

[...] Todo pensamento procura unificar alguma coisa, estabelecer uma relação entre coisas. Todo pensamento tem um movimento, um fluxo, um desdobramento, em suma, o pensamento cumpre alguma função, executa algum trabalho, resolve alguma tarefa. Esse fluxo de pensamento se realiza como movimento interno, através de uma série de planos, como uma transição do pensamento para a palavra e da palavra para o pensamento.

De uma perspectiva sociocultural, a apropriação e o uso de práticas epistêmicas em

contextos situados envolve dialeticamente a transformação tanto do sujeito quanto do mundo no

qual se encontra mergulhado.

Talvez neste momento seja oportuno resgatar a noção de “transparência dos instrumentos”

proposta por Lave e Wenger (1995). Para os autores, no uso de determinados instrumentos, abre-

se a possibilidade de tornar visíveis aspectos de um mundo que até então eram imperceptíveis

para o sujeito, ao mesmo tempo em que esta visibilidade permite uma compreensão mais ampla e

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profunda do próprio instrumento. Imersos em práticas culturais, justamente porque relacionadas a

um determinado sistema cultural, é que os alunos se apropriam e se utilizam desses instrumentos.

Tal como diz Rogoff (2005), as formas de ensinar e aprender se constituem em práticas culturais

e são centrais para o funcionamento tanto do indivíduo quanto de uma comunidade.

Reconhecendo algumas especificidades que marcam o processo de significação nas aulas de

Biologia diretamente relacionadas com os objetos de conhecimento desta área, e considerando

ainda uma organização interativa que se revela na tensão entre conhecimento científico e

conhecimento cotidiano, é possível pensar-se esta sala de aula de Biologia como uma

comunidade de prática, e para isto retomamos a definição de comunidade formulada por Rogoff

(2005) e já citada no capítulo 2:

Uma comunidade envolve pessoas tentando chegar a algo juntas, com alguma estabilidade no envolvimento e na atenção às formas como se relacionam umas com as outras. Ser uma comunidade exige comunicação estruturada, que se espera que dure por algum tempo, com um grau de compromisso e significado compartilhado, embora muitas vezes contestado [...] (ROGOFF, 2005, p. 74).

O que se espera é que, no exercício dessas práticas que viabilizam o movimento de

significação, vá se constituindo uma certa “bio-lógica”, ou seja, cadeias de associações sejam

construídas de forma a integrar mundo – linguagem – pensamento em uma perspectiva biológica.

E isto implica em mudanças epistêmicas. Como professora, pensamos que esta seja uma inter-

relação necessária se pretendemos resgatar do ensino de Biologia a sua dimensão social e

histórica. Não podemos nos esquecer que vivemos em um mundo cada vez mais cercado pela

ciência e pela (bio)tecnologia. Um mundo que convida insistentemente este aluno-cidadão a se

posicionar frente a questões que demandam um certo conhecimento científico. Como decidir

sobre o consumo de alimentos transgênicos? Como analisar as relações de parentesco que se

reconfiguram a partir das possibilidades que a reprodução in vitro tem viabilizado? Por isso

mesmo, é possível supor que os objetos de aprendizagem em Biologia não mais se resumem a

conceitos fragmentados e descontextualizados. Para além dos conceitos, situam-se igualmente as

ações/interações necessárias à apropriação e uso desses mesmos conceitos em atividades

culturalmente situadas, que também incluam a avaliação de riscos e tomada de decisões e ações

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frente a questões sociocientíficas. Nas palavras de Jenkins (1999a, p. 707) “a educação científica

nas escolas necessita responder às mudanças nos contextos sociais e ajudar a preparar os jovens a

contribuir como cidadãos para construir e reconstruir o mundo no qual eles vivem”.

Consideramos que estes objetos da aprendizagem são evidenciados nos resultados que

apresentamos. Especificamente a tomada de posições e avaliação de riscos frente a algumas

questões são reveladas no capítulo 9, quando discutimos, entre outros aspectos, um movimento

dos alunos em reconhecerem a ciência como uma construção que nem sempre é capaz de

apresentar respostas seguras a todos os problemas que emergem da produção e uso de

determinadas biotecnologias. Este é o caso de Camila Dias que, ao refletir sobre os possíveis

efeitos decorrentes do consumo de alimentos transgênicos, sinaliza a necessidade de mais

pesquisas antes que tais produtos sejam comercializados. De forma semelhante, os alunos que

discutem células-tronco consideram os aspectos positivos dessa pesquisa para o tratamento de

algumas doenças. Entretanto, admitem que esta é uma investigação ainda em curso e circunscrita

a um contexto bastante polêmico, que mobiliza políticos, cientistas e religiosos, já que envolve a

manipulação de embriões. Em outros casos, é a partir do significado, que assumem, da palavra

vida que alguns alunos vão se posicionar radicalmente contra as pesquisas que manipulam

geneticamente os organismos, mesmo que estejam voltadas exclusivamente para finalidades

terapêuticas. Neste movimento dos alunos, vai se evidenciando a dimensão ética que deve

acompanhar a produção científica pois, como dito por Camila Guimarães, “não se pode produzir

sem pensar no futuro... sem pensar nas conseqüências para a humanidade”.

10. 3 Implicações pedagógicas: problematizações e diversidade de atividades

Assumir a sala de aula como uma comunidade de práticas exige um esforço para

evidenciar uma relação entre o conhecimento que nela circula e os processos de significação dos

alunos. Procurando avançar nesta relação, ressaltamos um aspecto que parece ser significativo do

ponto de vista pedagógico e se refere às problematizações geradas no curso das interações.

Como bem assinalado por Engle e Conant (2002), uma condição necessária para o

engajamento disciplinar produtivo dos alunos é a emergência de problemas e questões que, de

certa forma e em certa medida, garantam maior nível de envolvimento e participação dos alunos

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nas atividades propostas. Com isto, revela-se a construção de um contexto interativo necessário

ao processo de significação.

Na análise apresentada no capítulo 7, percebemos que todas as seqüências se originam e

se alimentam de questões introduzidas no contexto interativo. Tais problemas são formulados

pelo professor mas, em muitos casos, pelos próprios alunos. No caso do professor, há uma

tentativa explícita de envolver os alunos em uma nova temática e também elicitar e explorar suas

idéias sobre um determinado fenômeno. Representa um ponto de partida para que se viabilize a

construção de conceitos e idéias mais próximos dos sistemas científicos que se pretende sejam

ensinados e aprendidos. Nas seqüências 1 e 2, por exemplo, a professora apresenta algumas

situações experimentais para que os alunos realizem previsões possíveis sobre os resultados. Com

este movimento, a professora inaugura um espaço de interlocução dando oportunidade para os

alunos falarem e pensarem a partir dos seus próprios pontos de vista. Neste contexto que se revela

bastante interativo, à medida que diferentes vozes são postas em circulação, a professora vai

selecionando e marcando significados, inclusive fazendo registros no quadro de giz.

Em outras seqüências, a problematização é formulada pelos alunos. De um modo geral,

isto ocorre quando relacionam o que está sendo ensinado com alguma informação obtida em

outros contextos de aprendizagem. Este é o caso de Ronnie, na segunda seqüência analisada,

quando reconhece uma lacuna. Ao longo da aula, evidenciou-se a importância do núcleo para o

funcionamento celular e, no entanto, hemácias são células anucleadas. Existe, portanto, uma

lacuna para o aluno, que se configura como um problema que precisa ser enfrentado. Com esta

intervenção de Ronnie, a aula é encaminhada para uma discussão não prevista pela professora,

mas completamente pertinente e adequada ao contexto. Ao mesmo tempo, percebe-se que a

formulação do aluno cria uma atmosfera que favorece um maior nível de participação dos alunos

e também uma tentativa em se acomodar a “anomalia” percebida por Ronnie a partir dos

conhecimentos já existentes, que se referem à noção de células procariontes. Mais que isso, o

enfrentamento desse problema faz resgatar, através de padrões de interação, predominantemente

triádicos, uma série de informações que ajudam os alunos a construírem uma resposta que se

aproxima em muito daquela que explica este fato específico. Um elo de associações vai sendo

construído.

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Em nossa análise, apresentamos ainda na seqüência que denominamos “Por que o óvulo

tem de ser de outra ovelha? Dando visibilidade à instabilidade conceitual dos alunos”, uma

situação em que os alunos, especificamente, Camila Guimarães e Nathan, reconhecem uma

contradição entre as idéias que carregam sobre a técnica de clonagem e aquelas que são

veiculadas pelo texto. O uso de três ovelhas de raças diferentes no processo de clonagem parece

ir de encontro ao conceito de clones como cópias genéticas idênticas de um único organismo.

Estabelecida esta instabilidade conceitual, os alunos realizam movimentos diversos como re-

leituras do texto e dos esquemas que o acompanham para confirmar as informações e encontrar

pistas que, porventura, possam elucidar o problema. Já na seqüência “Ainda sobre clones e

clonagem: evidenciando a reelaboração de significados”, evidenciamos o quanto a intervenção da

professora contribui para esclarecer o problema reconhecido pelos alunos. Entretanto, talvez por

perceber o nível de envolvimento dos alunos, a professora acaba por introduzir um novo

elemento à discussão dos alunos, que se refere ao DNA mitocondrial. Nesta seqüência, os alunos

parecem evidenciar uma apropriação conceitual quando realizam construções parafrásticas, ou

seja, repetem os enunciados da professora em ordem diferente ou com outras palavras. Dessa

forma, parecem re-descrever suas concepções iniciais a partir das novas informações. Esta re-

descrição é bem mais evidenciada na apresentação dos trabalhos que discutimos no capítulo 9,

quando os alunos mobilizam essas mesmas idéias sobre as técnicas de clonagem e enfrentam de

forma segura as questões formuladas pelos colegas no curso da discussão.

Consideramos, portanto, que a problematização é um caminho viável para se por em

contato e estabelecer um diálogo entre as concepções dos alunos e o conhecimento científico que

se pretende compartilhar. Nas palavras de Delizoicov et al. (2003, p. 197):

O caráter dialógico, com a qualidade de tradutor60, deve ser uma das características fundamentais do modelo didático-pedagógico, cujo eixo estruturante é a problematização dos conhecimentos. Problematiza-se, de um lado, o conhecimento sobre as situações significativas que vai sendo explicitado pelos alunos. De outro, identificam-se e formulam-se adequadamente os problemas que levam à consciência e necessidade de introduzir, abordar e apropriar conhecimentos científicos. Daí decorre o diálogo entre conhecimentos, com conseqüente possibilidade de estabelecer uma dialogicidade tradutora no processo de ensino-aprendizagem das ciências.

60 Para os autores a “dialogicidade tradutora” implica a necessidade do professor compreender a fala do aluno e o contexto em que ela se situa. Isto significa reconhecê-la como situada em uma “cultura primeira” e que corresponde ao conhecimento cotidiano ou em uma “cultura científica”.

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Entretanto, não é apenas o conhecimento do aluno que deve ser problematizado. Em

algumas situações, o aluno reconhece a possibilidade de problematizar o próprio conteúdo que

está sendo ensinado. Talvez possamos ilustrar este aspecto a partir da análise da seqüência que

denominamos “Camila tem uma hipótese: o papel do DNA-lixo”, quando os alunos parecem

reconhecer uma função para o DNA não codificante baseados principalmente na informação de

que representam um percentual significativo do genoma humano. Ainda que não tenha sido o

objetivo da professora discutir esta questão, ela é incorporada ao contexto através da

problematização gerada pelos alunos (Ele deve servir para alguma coisa). A partir daí, os alunos

passam a propor algumas “hipóteses” para explicar o papel desse DNA-lixo. Mas é Camila

Guimarães quem mais se aproxima de uma construção adequada e coerente. Ainda que o papel

do DNA-lixo não esteja bem elucidado pelos cientistas, a aluna reconhece uma relação entre

estrutura (o trecho de DNA não codificante) e mecanismos evolutivos (possibilidade de

produzirem novas informações). Evidencia-se, portanto, um certo pensar biológico posto que a

aluna articula diferentes níveis de conhecimento (estrutural e evolutivo) situados em diferentes

dimensões (teórica e observável) já que esta nova característica pode conferir uma adaptação à

espécie que seja percebida.

É preciso ressaltar que, nesta sala de aula de Biologia, é possível reconhecer este

“tráfego” de vozes e significados a partir da alternância entre o “discurso de autoridade” e o

“discurso internamente persuasivo”. Mais ainda, é no curso das interações que alguns

significados parecem ganhar mais força, especificamente através de ações/interações

desenvolvidas pelos alunos tais como relacionar, selecionar, comparar, mobilizar, problematizar,

ações que procuram, em certa medida, integrar os diferentes níveis do conhecimento biológico

(estrutural, funcional e relacional) em suas diferentes dimensões (observável, teórico-explicativo

e representacional). Tais práticas são favorecidas pelas diferentes formas de intervenção que a

professora realiza ao longo das aulas, mas também pela organização de um trabalho didático-

pedagógico que privilegia a realização de trabalhos em grupo e uma maior diversidade na

natureza das atividades propostas. Além disso, consideramos que tais atividades, inclusive

aquelas relativas às exposições orais, encontravam-se social e culturalmente situadas. Inspirado

em uma perspectiva bakhtiniana, Mortimer (1998, p. 117) diz que:

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Implementar uma perspectiva dialógica em sala de aula não significa apenas dar “voz” ao aluno e à aluna. Significa também, contemplar as vozes da linguagem cotidiana e dos contextos sociais e tecnológicos onde a ciência se materializa, na construção do discurso científico escolar de sala de aula. Uma aula expositiva ou um texto também podem ser profundamente dialógicos, desde que explicitamente contemplem essas outras vozes que não apenas as da linguagem científica. Essa perspectiva também se aplica à atividade experimental, que pode, dessa maneira, ser caracterizada como um diálogo entre teoria e prática.

O trabalho realizado com esta turma não rompe radicalmente com as propostas

tradicionais que vêm orientando o ensino de Biologia. Mas nele se reconhece que outros objetos

da aprendizagem podem ser contemplados, particularmente aqueles relativos ao encaminhamento

de algumas práticas mediadas por novos instrumentos, de forma a permitir que os alunos

compreendam, de maneira mais articulada e dinâmica, o funcionamento biológico do mundo.

Como bem assinalado por Bruner (2001, p. 28):

A construção da realidade é o produto da produção de significado

moldada pelas tradições e pelo conjunto de ferramentas de formas de pensamento de uma cultura. Neste sentido, a educação deve ser concebida como algo que auxilie o ser humano a aprender a utilizar as ferramentas de produção de significado e de construção da realidade, a adaptar-se melhor ao mundo em que ele se encontra, ajudando no processo de modificá-lo quando necessário.

Neste sentido, uma proposta que contemplasse projetos que incluíssem atividades com

caráter investigativo poderia oferecer um caminho alternativo para se pensar o ensino de Biologia

já que o enfrentamento de situações-problema, como evidenciado nesse estudo, parece ser uma

condição necessária e eficiente para que os alunos estabeleçam relações entre conceitos e

contextos, que os tornam responsáveis não apenas pela sua própria aprendizagem mas também

pela aprendizagem do outro.

10.4 Limitações do estudo e perspectivas para novas investigações

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Por certo, este estudo apresenta limitações. A primeira delas diz respeito à opção

metodológica em realizar um estudo de caso. Neste sentido, trata-se de uma investigação de

natureza predominantemente descritiva e interpretativa que focaliza uma única sala de aula de

Biologia. Ainda que, no estudo de caso, o objeto seja tratado como uma representação singular de

uma realidade que é multidimensional e historicamente situada e, por isso mesmo, tem valor por

si mesmo, reconhecemos que o estudo realizado corresponde a um contexto específico e

localizado, não nos permitindo estabelecer relações generalizáveis. Além disso, por atuarmos

como professora da turma, obviamente encaminhamos a construção de uma proposta pedagógica

orientados por esse olhar teórico que nos acompanha. Os recortes que realizamos, as atividades

que selecionamos, o nível de relacionamento que estabelecemos com os alunos são de fato

elementos que entram em jogo nas condições de produção das interações que se realizam neste

contexto e, de certa forma, orientam o que vai ser dito e como vai ser dito. Em outras palavras, se

trabalhamos com a noção de aprendizagem como processo de significação, deste lugar de

professora que ocupamos, já privilegiamos alguns limites e possibilidades de significados que

devem ser construídos nesta sala de aula.

Por outro lado, é preciso pensar ainda sobre os tempos da aprendizagem. Ao longo do

nosso estudo, problematizamos a idéia de aprendizagem como um processo de “tudo” ou “nada”

que se realiza em uma linha contínua e cumulativa. Em uma perspectiva sociocultural, a noção de

aprendizagem é re-significada, passando a ser assumida como um processo que decorre das

relações do sujeito com o seu mundo físico e social. Neste sentido, a aprendizagem não se situa

exclusivamente nas escolas ou, mais especificamente, nas salas de aulas. A pesquisa em

Educação em Ciências muito contribuiu para evidenciar esse aspecto quando reconheceu que os

alunos possuem concepções aprendidas em outros contextos de aprendizagem, inclusive

informais, e que, muitas vezes, são diferentes daquelas que queremos ensinar. Na sala de aula

investigada, evidenciamos o quanto os alunos recuperam essas concepções para significar novos

conceitos. O que isso indica do ponto de vista teórico-metodológico? Nosso estudo acompanha os

alunos, de forma sistematizada, ao longo de uma unidade de ensino que corresponde a um

bimestre letivo. Se tomarmos a aprendizagem como um processo que se faz entre idas e vindas,

com avanços e retrocessos, devemos reconhecer que o recorte temporal que realizamos ajuda a

evidenciar alguns momentos específicos desse processo que, queremos crer, continua ainda em

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curso. Assim, o que temos são “flashes” que nos fornecem pistas sobre o processo de

aprendizagem em um contexto complexo como é a sala de aula, quando os alunos entram em

contato com formas sistematizadas do conhecimento biológico. Neste caso, a mediação do

professor induz o aluno a “utilizar-se de (e nesse processo a também elaborar) operações

intelectuais, habilidades, estratégias e possibilidades sígnicas que são novas para ele.”

(FONTANA, 1997, p.128). Assim, as relações de ensino se constituem em um espaço/tempo em

que é possível capturar indícios de como os alunos lidam com esses conhecimentos e de como as

ações pedagógicas ajudam a configurar esse processo. Entretanto, são sempre visões parciais que

necessitam ser ampliadas.

Assim, ao mesmo tempo em que esses aspectos marcam limitações do estudo, também

representam possibilidades de novas investigações que delineamos a seguir:

a. Avançar nos estudos referentes à caracterização das práticas que marcam o

processo escolar de significação contribuindo para a construção de um

pensamento biológico que organize e oriente a sala de aula de Biologia. Isto

significa que precisamos explorar outras salas de aula bem como outras

unidades de ensino. Para isto é necessário desenvolver ferramentas

metodológicas mais criteriosas que nos permitam estabelecer categorias mais

precisas e específicas para esta caracterização.

b. Decorrente da questão anterior, investir na caracterização da sala de aula de

Biologia como uma comunidade de práticas.

c. Como problematizamos a questão dos tempos de aprendizagem, particularmente

em contextos formais de aprendizagem, talvez seja oportuno um estudo de

caráter longitudinal, acompanhando o processo de significação ao longo de um

período letivo mais largo. Esta proposta vai ao encontro do que discutimos

anteriormente sobre a organização e integração do conhecimento biológico em

níveis e dimensões de conhecimento, que representa uma tentativa de superação

de propostas fragmentadas.

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Por fim, gostaríamos de finalizar estas reflexões ressaltando que a construção escolar do

conhecimento biológico se constitui em uma forma de olhar, pensar e se relacionar com o mundo,

porém não a única. Nossa intenção como professora não é formar jovens especialistas nesta área

de conhecimento, mas sim encaminhar a apropriação de alguns instrumentos, e aqui incluímos

conceitos bem como práticas epistêmicas para lidar com estes conceitos, que permitam a esses

alunos a apropriação de uma certa maneira de ler o mundo e de nele viver. Mas isso só será

possível se rompermos com um ensino que fragmenta e descontextualiza e caminharmos em

direção a um ensino que reconheça a aprendizagem como sendo situada, decorrendo de processos

de in-tensas negociações, traduzidos como práticas específicas de lidar com significados e

conceitos da Biologia. Quando destacamos a importância da articulação entre três diferentes

dimensões: observável, teórica e representacional, nossa intenção era justamente contribuir para

mapear as especificidades relativas ao conhecimento biológico que irão constituir uma certa

forma de pensar, falar e olhar os fenômenos biológicos. Nesse sentido, é possível assumir a sala

de aula como uma comunidade de prática, já que se revela no curso das aulas como um espaço-

tempo de natureza predominantemente social onde os sujeitos, ainda que ocupando posições

assimétricas, se engajam em uma dinâmica que favorece, em maior ou menor nível, a co-

construção de objetivos, finalidades e significados.

De uma perspectiva sociocultural, a aprendizagem em Biologia revela-se como uma

prática social posto que a relação do aluno com o objeto de aprendizagem é mediada pelo outro e

pela linguagem. Neste contexto, estes alunos problematizam, respondem, perguntam, relacionam,

reconhecem conflitos e lacunas, copiam, escutam, dispersam-se, apresentam exemplos,

conversam paralelamente... São sujeitos ativos de um processo em construção que não se encerra

na escola e nem na sala de aula de Biologia. Uma construção que lhes permita ter acesso a outros

mundos possíveis, inclusive um mundo biológico.

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ANEXO I:

GRADE CURRICULAR ENSINO MÉDIO – CEFET-NI

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ANEXO II:

ATIVIDADE: DOLLY, O NÚCLEO E OS CLONES

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ANEXO III

ATIVIDADE: CONSTRUÇÃO DE IDIOGRAMA

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ANEXO IV:

ATIVIDADE: MODELO PARA SÍNTESE DE PROTEÍNAS

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ANEXO V:

MAPA GERAL: PRIMEIRA LEITURA DAS VIDEOGRAVAÇÕES

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Data/Local Atividade Participantes Objetivos Temas/Ações Impressões Atividade: Questionários

Todos os alunos presentes

Levantamento das concepções prévias dos alunos

Profª apresenta a proposta. Alunos lêem as questões, manifestam algumas dúvidas mas realizam a atividade.

17/08/06 1BTel1 Sala de Aula

Atividade: Aula expositiva

Ron., Joa., Tha., Cam., Let, Nat, Isa, Cam.

Estabelecer relações entre estrutura e função do núcleo celular

Profª inaugura o trabalho propondo uma situação experimental – esquematiza no quadro. Profª apresenta questão: “Por que a parte nucleada vive enquanto a anucleada degenera?” A questão é encaminhada acompanhada dos conceitos de merotomia e enucleação. Os alunos trazem contribuições e referem-se, particularmente à molécula de DNA para justificar os resultados experimentais. A profª registra no quadro as respostas dos alunos. A partir das respostas dos alunos relativas à função do núcleo, a profª procura estabelecer as relações com a estrutura do núcleo (componentes). Os alunos utilizam voluntariamente o livro didático como referência. Profª e alunos juntamente vão estabelecendo os componentes nucleares. Profª resgata a definição de célula eucariótica e a diferencia de célula procariótica. Profª resgata as explicações propostas pelos alunos e estabelece relações com novas pesquisas sobre estrutura nuclear ressaltando o movimento contínuo da pesquisa científica. Profª solicita leitura e observação de esquemas presentes no livro didático.

De modo geral a professora apresenta questões ou situações para introduzir novos conceitos ou estabelecer relações entre conceitos. A participação dos alunos é garantida. Algumas vezes atendem a solicitação da professora e respondem questões que pretendem resgatar conceitos anteriormente construídos ou ainda trazem situações problematizadoras e formulam possíveis explicações assumindo que estão construindo uma teoria.

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Data/Local Atividade Participantes Objetivos Temas/Ações Impressões

Profª estabelece relação entre a estrutura e a função do núcleo. Aluna (Isa.) formula uma hipótese. Aluno (Nat.) elabora uma questão que evidencia articulação com conceitos anteriormente trabalhados. Profª focaliza os ácidos nucléicos. A discussão é reorientada para a estrutura dos vírus. Profª propõe nova questão a partir de algumas informações (tamanho da molécula de DNA): “Como a molécula de DNA cabe no núcleo da célula?” Participação dos alunos. Profª esquematiza no quadro e traz um modelo para explicar a organização da molécula de DNA. Profª questiona sobre a relação DNA/Gene. Alunos estabelecem relações com o sistema atômico. Surge a questão do “DNA-lixo”, os alunos levantam possíveis hipóteses evolutivas para explicar a relação genes e complexidade dos organismos. A questão central da aula é núcleo e material genético (DNA) – Ron. problematiza sobre a existência de células anucleadas como as hemácias. Profª provoca os alunos a apresentarem uma possível explicação para a sobrevivência da hemácia.

Esta participação não é total, alguns alunos são mais discretos. Aproveitam para fazer registros no caderno ou mesmo para conversarem, supostamente, sobre outros assuntos. Geralmente a interferência dos alunos é sempre feita com bom humor

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ANEXO VI:

MAPA GERAL: SEGUNDA LEITURA DAS VIDEOGRAVAÇÕES

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Aula: 17/08/2006 Episódio Tema do

episódio Conteúdo/Situação Recursos Ações dos

participantes Fase da atividade

Posição do professor

Discurso do professor

Elementos contextuais

Situação experimental: a Acetabulária

Esquemas no quadro de giz

Ouvem Solicitam informações adicionais sobre a Acetabularia

Introdução ao estudo do núcleo

Frontal Conteúdo

A professora esquematiza no quadro a situação experimental.

Explicações para os resultados propostos

Propõem possíveis resultados para o experimento. Elaboram explicações. Registram no caderno.

Desenvolvendo o estudo do núcleo

Frontal Deslocamento

Conteúdo Conteúdo escrito

A professora registra no quadro as explicações elaboradas pelos alunos. As funções do núcleo começam a ser mapeadas.

01 Núcleo de células eucariontes

Nova situação experimental – inter-relações entre núcleo e célula.

Evidenciando inter-relações valendo-se de outros sistemas. Thais toma como exemplo a relação entre vírus e célula.

Desenvolvendo o estudo do núcleo

Frontal Deslocamento

Conteúdo Gestão

Episódio Tema do episódio

Conteúdo/Situação Recursos Ações dos participantes

Fase da atividade

Posição do professor

Discurso do

Elementos contextuais

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professor De que célula estamos falando?

Resgatam conceitos de eucariontes e procariontes

Desenvolvendo o estudo do núcleo

Frontal Deslocamento

Conteúdo

O que tem no núcleo? A membrana nuclear

Consultam o livro. Respondem a questão.

Desenvolvendo o estudo do núcleo

Frontal

Conteúdo

A professora incentiva a participação dos alunos

E o que mais tem no núcleo? Os nucléolos

Desenvolvendo o estudo do núcleo

Frontal Deslocamento

Conteúdo Conteúdo escrito

02 Componentes nucleares

Evidenciando os ácidos nucléicos

Desenvolvendo o estudo do núcleo

Frontal Deslocamento

Conteúdo Conteúdo escrito

03 DNA e núcleo celular

A configuração da molécula de DNA: cromatina e cromossomos

Esquema no quadro de giz Modelo do colar de contas

Consultam o livro

Desenvolvendo o estudo do núcleo

Frontal Deslocamento

Conteúdo Conteúdo escrito

Eucromatina e heterocromatina Relação gene-DNA e a existência de DNA-lixo.

Livro didático

Manifestam dúvidas Resgatam o conceito de genes

Desenvolvendo o estudo do núcleo Desenvolvendo o estudo do núcleo

Frontal

Conteúdo Conteúdo escrito Conteúdo Conteúdo escrito

Participação intensa dos alunos

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Problematizam a existência do DNA-lixo Solicitam informações adicionais Elaboram uma hipótese para a existência do DNA-lixo Evidenciam relações.

Retomando as relações entre eucromatina e heterocromatina e expressão gênica

Começando a sistematizar a aula

Frontal Conteúdo Os alunos manifestam surpresa. Camila exclama: Então isso é uma esterteza da célula!

A ausência de núcleo nas hemácias

Problematizam o conteúdo evidenciando uma lacuna

Iniciando uma nova problematização

Frontal Deslocamento

Conteúdo Participação intensa dos alunos

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ANEXO VII:

MAPA GERAL: TERCEIRA LEITURA DAS VIDEOGRAVAÇÕES

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Aula: 17/08/06 Episódio / Seqüência Conteúdo temático Padrão de Interação Aspectos contextuais Episódio 1 Seq. 1 Ela é uma eucarionte?

Organismos eucariontes e procariontes

Ial – P – A - P

Começa a situar uma experiência

Seq.2 O experimento: quem morre e quem vive?

Reconhecendo a importância do núcleo para a sobrevivência da célula

Ipd – Rpd - P Simula no quadro esquematicamente a experiência

Seq. 3 Por que este resultado no experimento?

Funções do núcleo Ipr – A – P – A – P - A – A – P Ipr – A – P Ipr – A - P

Retoma a fala dos alunos Registra no quadro

Seq. 4 A importância do DNA

Relação entre DNA e funções do núcleo

Ipd – A – P – A – P Prof registra no quadro e alunos no caderno

Seq 5 Uma nova situação experimental

Inter-relação núcleo e citoplasma

Ipd – A – A – P – A - P Ial pr – P – A Sem interação

Alunos apresentam exemplos para ilustrar esta inter-relação Pedidos de silêncio

Episódio 2 Seq. 1 De que célula estamos falando?

Resgatando o conceito de células eucariontes

Ipd – A – P Ipd – A - P

Prof. Registra no quadro Alunos anotam e consultam livros

Seq. 2. Componentes do núcleo

Buscando relações entre estrutura e função

Ipr – A – P

Seq. 3 A membrana nuclear

Definindo nome e origem da membrana nuclear

Ipr – A – P Ipd – A – A – A – P Ipd – A – P – A – P

Alunos consultam livros Alunos disparam uma série de nomes e termos para identificar a membrana nuclear

Seq. 4 Mas no que ela [a membrana] é diferente?

Estrutura da membrana nuclear Sem interação A professora fala e registra no quadro termos chaves

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Seq. 5 A estrutura da membrana nuclear

Estrutura da membrana nuclear Ipr – A – P – A – P – A – P Ial pr - Ppr

A professora corrige a aluna com uma interrogação.

Seq. 6 Quem está com o livro?

Relação Núcleo e retículo endoplasmático

Ies – A – P Ies – A – P Ipr – A – P Ial - P

Os alunos consultam os esquemas do livro

Seq. 7 Vamos voltar? O papel do nucléolo Ipd – A – P Sem interação Ies – A – P – A – P Irl – A – P Ial pd - P

Seq. 8 Professora as substâncias vem do núcleo?

Relação entre processo e produto celular

Ial pr – P – A - P Isamar tenta estabelecer uma generalização

Seq. 9 Querem ver uma situação?

A apoptose celular Sem interação A professora introduz nova situação

Seq. 10 Professora, os lisossomos podem digerir a célula

Lisossomo e digestão – processos autofágicos

Ial es – P – A – P pr Ipr – A - P

Aluno introduz uma nova situação

Seq. 11 O que falta para termos o núcleo?

Os ácidos nucléicos: DNA e RNA

Ipd – A – P – Apd – P Ial rl – P Sem interação

Alunos questionam que o vírus não é uma célula por isso não é um bom exemplo

Seq. 12 Os vírus são amaldiçoados?

Parasitismo obrigatório Ial pr – P – A – P – A - P

Seq.13 O vírus de computador é vivo?

Linguagem biológica e linguagem tecnológica

Ial mt – P – A – A – P - A

Episódio 3 Seq. 1 Como o DNA está organizado no núcleo?

Estrutura da cromatina

Sem interação Ipr – Apr – P Ipr – Apr – P Sem interação

Esquematiza no quadro molécula de DNA e proteínas

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Seq. 2 O cordão de contas

Estrutura da cromatina Demonstração sem interação Usa um colar para ilustrar a organização da cromatina

Seq. 3 Mas como é que cabe?

A organização do DNA no interior do núcleo

Ial metc – P – A – A - P Camila e Nathan expressam sua dificuldade em imaginar essa estrutura no interior de células microscópicas

Seq.4 Heterocromatina e eucromatina

Evidenciar diferenças entre heterocromatina e eucromatina

Ipd – Apd – P Ipd – A – P – L – P Ipr – A - P

Pedidos de silêncio Alunos consultam o livro

Seq. 5 Será que tem diferença funcional?

Relação entre diferenças estruturais e funcionais da heterocromatina e da eucromatina

Ipr – A – P Ial pr - P

Silêncio entre os alunos Camila parece se aproximar de uma possível explicação

Seq. 6 DNA e Genes e DNA-lixo

Relacionar o funcionamento dos genes com a estrutura da hetero e eucromatina

Ipr – A – P Ial – A – A – P – A - ....

Prof. Esquematiza no quadro de giz Alunos desviam a discussão para o DNA-lixo Abordagem predominantemente dialógica

Seq. 7 Genomas Comparar a complexidade dos seres vivos ao genoma que os organizam

Trocas verbais

Seq. 8 Voltando a heterocromatina e eucromatina

Atividade e inatividade dos genes nas células

Sem interação Ial pr – P – A – P – A – P Ipr – A - P

Seq. 9 Distribuição eqüitativa do DNA nas células

A organização da hetero e eucromatina como esperteza celular

Sem interação Ial - P

Camila vê a organização da cromatina como uma esperteza da célula Nathan parece não entender esta relação A professora retoma a

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explicação Seq. 10 O caso das hemácias

Evidenciar o funcionamento das hemácias como células anucleadas

Ial pr – P Ip – A - P

Abordagem entre dialógica e de autoridade

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ANEXO VIII

AUTORIZAÇÃO DOS PAIS E DO CEFET

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ANEXO XIX:

ATIVIDADE DE LABORATÓRIO: RELATÓRIO PRODUZIDO PELOS ALUNOS

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