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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Psicologia COLETIVOS DE TRABALHO COMO UM DISPOSITIVO DE SAÚDE DOS OFÍCIOS Alda Karoline Lima da Silva Natal-RN 2017

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

COLETIVOS DE TRABALHO COMO UM DISPOSITIVO DE SAÚDE DOS

OFÍCIOS

Alda Karoline Lima da Silva

Natal-RN

2017

ii

Alda Karoline Lima da Silva

COLETIVOS DE TRABALHO COMO UM DISPOSITIVO DE SAÚDE DOS

OFÍCIOS

Tese elaborada sob orientação do Prof. Dr.

Pedro Fernando Bendassolli e apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Psicologia da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

como requisito à obtenção do título de Doutora

em Psicologia.

Natal-RN

2017

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências

Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Silva, Alda Karoline Lima da.

Coletivos de trabalho como um dispositivo

de saúde dos ofícios / Alda Karoline Lima da

Silva. - Natal, 2017.

131f.: il.

Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e

Artes, Programa de Pós-Graduação em

Psicologia.

Orientador: Prof. Dr. Pedro F.

Bendassolli.

1. Coletivos de trabalho - Tese. 2.

Clínicas do trabalho - Tese. 3. Saúde do

trabalhador - Tese. I. Bendassolli, Pedro F.

II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA

CDU 159.9:331

Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva -

CRB-15/710

iii

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

A tese COLETIVOS DE TRABALHO COMO UM DISPOSITIVO DE SAÚDE DOS

OFÍCIOS, elaborada por Alda Karoline Lima da Silva, foi considerada aprovada por

todos os membros da Banca Examinadora, e aceita pelo Programa de Pós-Graduação em

Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à

obtenção do título de DOUTORA EM PSICOLOGIA.

Natal, RN ____de_________de____

BANCA EXAMINADORA

Pedro Fernando Bendassolli (UFRN) ____________________________________

Jorge Tarcísio da Rocha Falcão (UFRN) ____________________________________

Isabel Maria F. Fernandes de Oliveira (UFRN) ____________________________________

Claudia Osório da Silva (UFF) ____________________________________

José Newton Garcia de Araújo (PUC-MINAS) ____________________________________

iv

Agradecimentos

A Deus, mais uma vez pelos sinais, não mais sutis (como antes sentia), presentes

em minha história de vida, e por reafirmar que as invisibilidades (amor, sabedoria,

paciência...) ainda constroem os verdadeiros significados do real da atividade de viver.

Aos meus anjos da guarda disfarçados de: pai, mãe, padrinho, madrinha, tio, tia,

irmão, amigo, aluno, mentores/guias/cuidadores da terra e do céu, amor! Gratidão pela

proteção e luz de vida! Amo todos!

Ao Pedro Bendassolli, por aceitar o “desafio” de minha orientação, pelas ideias

compartilhadas, pelas dúvidas e inquietações.

Aos professores que aceitaram o convite para fazer parte da minha banca.

À equipe do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST) regional

de Natal pela acolhida e acesso ao campo de pesquisa.

Aos participantes-trabalhadores do estudo, que me fazem a cada encontro

reafirmar meu lugar na vida!

Aos meus alunos, que me ensinam o caminho da docência, gratidão por

(re)revitalizar meu gênero profissional.

Ao Universo, que me possibilitou novos encontros de vida! A todos deixo um

presente escrito como forma de gratidão:

Não era um bonsai

“Tudo começou no dia em que recebi em minha casa um lindo bonsai. Desde

então, nunca mais fui a mesma. Recebi sob as cláusulas de contrato temporário, mas,

quando a gente cria vínculo afetivo, de que valem os papeis, não é mesmo?

A plantinha, mesmo com o batismo que ofereci, a água que reguei e a melhor

posição sob o sol que a coloquei, retornou para seu lar. Como jabuticaba que é, gostava

v

de enxergar as coisas do alto. E se, por causa daquele vaso, não iria mais crescer, teve que

dar seu jeito...

Guardou seu lugar na janela de um alto andar e, apesar de suas pequenas raízes

não a abandonarem, elas não foram suficientes para a manterem de pé depois de um louco

vento.

O bonsai caiu lá de cima, quebrou o vaso, feriu o caule, perdeu folhas, virou um

montinho de galhos e terra que, fosse um bonsai comum, qualquer pequeno grupo de

formigas poderia fazer dele alimento de uma estação. A pequena jabuticabeira chorou,

chorou, que nem água de mar: para banhar e para salgar. Essa água regou tudo que estava

morrendo.

O chão que aparou a queda da jabuticabeira relembrou que não era um

desconhecido, a firmeza que causou dor no primeiro impacto deu abertura para suas raízes

lembrarem que ainda estavam vivas, e cresceram. Cresceram para baixo, para dentro, para

o profundo. Cresceram. Cresceram tanto que a deixaram de pé novamente.

E aí veio chuva, veio mais vento, vieram galhos arrancados, sementes roubadas,

espalhadas. Nem entendia mais como continuava de pé. Foi aí que olhou para os lados e

viu que, ao seu redor, nasceu um pomar de jabuticabeiras, crescidas a partir de tudo que

lhe fora arrancado. Que doido? Como pode? – Questionou-se.

Não sei se ela sabe, mas ela não é bonsai, ela é árvore ‘está associada à: vida,

respiração, proteção e (re)oxigenação...’.

E se um dia sua madeira for derrubada, tenho certeza que virará ‘lápis de cor’,

para que com elas eu possa desenhar um mar, um sol, um arco-íris e um coração”.

(Jéssica Luana F. Queiroz, 2017)

vi

Hoje vamos desejar o bem

Sem olhar a quem

[...]

Peça tudo que você quiser

Acredite na sua fé

[...]

Tenha dentro do seu coração

Pureza e verdade

[...]

Quando não souber o que pedir

Peça felicidade

Quando não souber o que doar

Doe sua metade.

[...]

Vou fazer de um papel um avião

[...]

Quero presentear

Com flores Iemanjá

[...]

(Grupo Melim)

vii

Aos nossos coletivos de trabalha(dores) desmantelados ↔ empoderados na produção de

vida e saúde!

Cheios de paixão na ação, nos demais casos, o sofrer a ação dessa paixão.

(Spinoza, 2003)

viii

Sumário

Lista de figuras ix

Lista de tabelas x

Resumo xi

Abstract xiii

Introdução 14

Artigo um: O processo saúde-doença em diferentes ofícios segundo a

perspectiva de trabalhadores usuários de um CEREST no Nordeste brasileiro

36

Artigo dois: Uma síntese do conceito de coletivos de trabalho nas clínicas do

trabalho

60

Artigo três: Coletivos de trabalho e a produção de saúde dos ofícios 83

Considerações gerais 110

Apêndices

124

ix

Lista de figuras

Figura Página

1 As inter-relações dos elementos constituintes dos coletivos de

trabalho

90

x

Lista de tabelas

Tabela Página

1 Características da psicodinâmica do

trabalho

63

2 Características da clínica da atividade 65

3 Características da psicossociologia do

trabalho

69

4 Conceituação de coletivos de trabalho

pelas clínicas do trabalho

72

xi

Resumo

Este estudo apresenta os resultados de uma pesquisa-intervenção realizada em um Centro

de Referência em Saúde do Trabalhador, localizado no município de Natal-RN, com

trabalhadores-usuários do serviço. Objetivei analisar o papel dos coletivos de trabalho

como dispositivo de saúde em trabalhadores em situação de adoecimento profissional. As

clínicas do trabalho apropriam-se da categoria coletivos de trabalho como operador

fundamental na relação saúde-trabalho-desenvolvimento. Essas têm estudado e advogado

os coletivos de trabalho como dispositivo-chave para a compreensão, manutenção e

afirmação da saúde dos ofícios. Após apresentar brevemente o modo como cada uma

dessas clínicas define coletivo, ofereço uma síntese provisória que emerge a partir da

observação de pontos gerais de convergência entre elas no tocante ao sentido dos

coletivos. A partir dessa análise, via clínicas do trabalho, apresento um modelo como via

de entendimento dos elementos-base de constituição dos coletivos (relações com o ofício,

afeto, reconhecimento e dialogicidade). Conduzi as atividades em duas etapas: uma de

aproximação do campo com as atividades em grupo na sala de espera do serviço e

entrevistas semiestruturadas; e outra com entrevistas clínicas. Na primeira etapa do estudo

identifiquei três dispositivos: o coletivo provisório, a relação do sujeito com sua atividade,

e o assédio ao ofício. Também ilustrei o modelo por meio de casos clínicos reais, que

permitem destacar de que modo o funcionamento dos coletivos pode os fazer mantenedor

ou não da sobrevivência do trabalhador e fazê-lo desenvolver um ofício sadio. Por fim,

alerto para a necessidade de os indivíduos estarem como organizadores do seu próprio

trabalho, para que o coletivo de trabalho possa dar seus sinais de expressividade,

colocando em ação ele mesmo (o coletivo de trabalho) e o ofício no processo de produção

de saúde, sinalizando, mais uma vez, a necessidade de cuidar dos ofícios tanto quanto

xii

cuidar do trabalhador, numa perspectiva de reparação do bem-estar pelos próprios

coletivos de trabalho, sobre os critérios e as tensões da atividade de trabalho.

Palavras-chave: coletivos de trabalho; clínicas do trabalho; pesquisa-intervenção; saúde

e trabalho.

xiii

Abstract

This study represents the results of a research-intervention realized in a Center of

Reference in Worker Health, located in the city of Natal-RN, with workers users of the

service. The aim was to analyze how the collective work appears as health workers in

professional device sickening situation. The work clinics appropriate of the work

collective category as fundamental operator in the health-work-development relationship,

which traditionally have studied and advocated the work collective as a key device for

understanding, maintaining and affirming the crafts health. After a brief presentation of

the how as each one of these clinics defines collective, we offered a provisory synthesis

that emerges from observation of general points of convergence between them regarding

to the collective meaning. The activities were conducted in the fases: approach of the field

with the group activity in the waiting room of the service and semi-structured interviews

and clinical interviews. It was possible to identify three devices in the first fase: the

provisional collective; the relation of the subject with his activity and the harassment to

the job. The model was illustrated trough real clinical cases what allow us to highlight

that the way of collective operation can make it maintainer or not of the survivor and

develop a health craft. Finally, it alerts to the individuals need to be as organizers of their

own work so the collective work Cn give its signs of expressiveness, putting in action

itself (work collective) and craft in the process of health production. It is alerted to the

need of care with the job with equal level of importance of the care offered to the worker,

in a repairing perspective of the well-being by the collective about the criteria and the

tensions of the work activity.

Keywords: Work collective; work clinics; research-intervention; health and work.

14

Introdução

A presente tese de doutorado é fruto de uma pesquisa-intervenção que desenvolvi

em um Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST) da cidade de Natal-

RN. Este espaço já era um campo de práticas de estágio e extensão das minhas ações

acadêmicas – sem vínculo como servidora, e sim como docente-pesquisadora. Entrei no

serviço um ano e meio antes do próprio ingresso no doutorado. Essa familiaridade com o

campo fez com que meu acesso e permanência durante o período de quatro anos de

doutoramento fosse facilitada pela acessibilidade ao local e, por conseguinte, aos

participantes da pesquisa. Isso me possibilitou uma aproximação ao campo, aos

profissionais do serviço, ao seu funcionamento, bem como aos usuários que ali

frequentavam. Aliado a isso, também me aproximei a diversos temas no campo da Saúde

do Trabalhador (ST).

No tempo dedicado ao campo, compreendi, na práxis, a complexidade da relação

saúde-doença e suas conexões com o trabalho, reafirmei a necessidade de destacar a

atividade de trabalho como elemento central para a compreensão↔transformação da

condição de adoecimento laboral. Alinhado a isto, ao final do meu mestrado, algumas

inquietações surgiram em relação ao papel dos coletivos de trabalho como elemento

fundamental na relação de produção de saúde pela atividade de trabalho.

Percebi que, apesar de os coletivos de trabalho serem citados nos estudos das

clínicas do trabalho, escassas são as sistematizações sobre seus elementos conceituais,

constitutivos e de funcionalidade interativa com a saúde no trabalho. A produção

acadêmica restringia-se ao olhar específico de cada clínica do trabalho quanto ao papel

desses coletivos.

Mesmo os coletivos de trabalho sendo considerados essenciais por uma linhagem

das ciências do trabalho – parte das quais nesta pesquisa estão articuladas às clínicas do

15

trabalho (Athayde, 1996; Clot, 2006a; Dejours, 1993; Guérin, Laville, Daniellon,

Duraffour, & Kerguellen, 2001; Leplat, 1994), as quais arrolam o coletivo como

fundamental para o desenvolvimento das competências de quem trabalha, assim como

para a construção de saúde e identidade –, os estudos das clínicas do trabalho não se

dedicavam ampla e profundamente a uma discussão conceitual mais sistêmica e

integrativa desse constructo, um dos aspectos que justifica meu interesse neste estudo.

As clínicas do trabalho compõem um rol de abordagens da Psicologia do Trabalho

(Psicodinâmica, Clínica da Atividade, Psicossociologia e Ergologia), que apresentam

convergências relativas às temáticas da relação trabalho-subjetividade frente aos

processos emancipatórios dos trabalhadores. Nessas, a noção de trabalho amplia-se para

além da relação contratual (emprego), concebendo-o como uma atividade pela qual o

indivíduo se afirma na sua relação consigo mesmo, com seus parceiros de trabalho e, por

conseguinte, contribui para a dinâmica e perpetuação de seu coletivo profissional

(Bendassolli & Soboll, 2011).

Mesmo com suas diferenças de bases epistemológicas e teórico-metodológicas, o

compartilhamento do conceito de coletivos de trabalho pelas clínicas é observado ao

longo dos estudos – que abordarei posteriormente. Bendassolli e Soboll (2011) destacam

que as clínicas do trabalho não constituem uma escola de pensamento, tampouco as

abordagens mencionadas são homogêneas. No entanto, os autores apresentam alguns

pontos comuns.

Um deles é o interesse pela ação no trabalho como poder de agir dos sujeitos e dos

coletivos – o termo poder refere-se não às classes sociais, à posse de recursos escassos, à

capacidade de influência ou à autoridade, mas àquele encontrado no nível do ato, como o

poder sobre si mesmo (no sentido do poder do uso de si), o poder sobre a atividade (a

maestria sobre meios e fins), o poder sobre a atividade de outros, e o poder sobre as

16

resistências (na forma de enfrentamento a restrições e frustrações do real). Desse modo,

ao ocupar um lugar central nessas clínicas, os coletivos funcionam como um mobilizador

de potência política para a mobilização subjetiva.

A noção de coletivo designa-se como um processo de construção de acordos

normativos, técnicos e éticos entre os trabalhadores, sendo o coletivo de trabalho

construído em torno das regras de trabalho comuns, derivadas do próprio coletivo. Na

ausência disso, segundo Gernet e Dejours (2011), há apenas um grupo ou reunião de

pessoas que podem compartilhar interesses. Destaco o modo como Clot (2006a) apresenta

o conceito de coletivo de trabalho. Para esse autor, o coletivo tem uma função primordial

na manutenção e no desenvolvimento de um ofício, sendo condição para realizar bem seu

trabalho e aperfeiçoar seu estilo pessoal, incorporando e sendo incorporado pelo coletivo.

Assim, ao se iniciar em um ofício, o novato procura realizar o trabalho a partir dos

conhecimentos adquiridos durante os treinamentos formais, mesmo que insuficientes.

Nesse momento, o ingressante circula em esferas mais externas do coletivo de trabalho.

Ao perceber aquela insuficiência, procura nortes em direção ao núcleo do seu coletivo

profissional, por exemplo, ao observar os trabalhadores mais experientes para copiar o

que fazem, mas o iniciante percebe que tal estratégia é ainda insuficiente. Nesse processo,

ele começa a incorporar o coletivo, mas este ainda lhe é externo, é algo que ele precisa,

portanto, tentar copiar. Então, o iniciante parte para as trocas mais efetivas com os outros

trabalhadores, para compreender as regras próprias daquele meio profissional e

incorporá-las a seu modo. Assim, pode trabalhar da sua própria maneira, com seu próprio

estilo pessoal no interior de um gênero profissional (Clot, 2006a), seguindo e

eventualmente modificando as regras daquele coletivo. Dessa maneira, o coletivo de

trabalho oferece instrumentos para que cada um supere as dificuldades encontradas no

seu meio, servindo de zona de desenvolvimento potencial (Clot, 2006a).

17

Neste estudo, o coletivo não se limita ao grupo, mas como recurso para o

desenvolvimento da subjetividade individual, sendo considerada a premissa do coletivo

no indivíduo. Nesse sentido, o coletivo é entendido como recurso para o desenvolvimento

individual. Os autores das clínicas (Clot, Dejours e Lhuilhier) retomam Cru (1987), no

que se refere ao conceito de coletivo de trabalho, quando apontam a exigência de uma

obra e linguagem comuns a vários trabalhadores, que constituem e são constituídas pelas

regras do ofício.

Outro ponto que destaco é o conceito de gênero profissional. A clínica da atividade

relaciona intimamente gênero profissional e coletivos de trabalho. O gênero profissional

da atividade é um conceito usado por Clot (2006a) a partir do conceito de gênero usado

por Bakhtine (Bakhtine, 1984). Para Clot, o gênero consiste em um sistema social aberto

de regras impessoais não escritas de um ofício. Esse conjunto de regras (explícitas ou

implícitas) é construído pelos próprios trabalhadores. Regulador das relações entre os

profissionais de um mesmo ofício, o gênero marca o pertencimento a um grupo, orienta

a ação, e constitui as atividades reconhecidas ou interditas em um meio profissional. O

coletivo de trabalho carrega as características do gênero profissional, sendo o gênero o

instrumento coletivo da ação, com o qual o sujeito, por meio de suas criações estilísticas,

ultrapassa o prescrito, ampliando seu poder de agir.

O poder de agir – relacionado à amplitude de ação sobre a atividade –, proposto

por Clot (2006a, 2010), relaciona-se à perspectiva de Canguilhem (2009) para a

diferenciação entre o normal e o patológico. A saúde, em Canguilhem (2009), refere-se

ao empobrecimento dos meios de que o organismo dispõe para seu funcionamento, do

que resulta uma diminuição da capacidade (da amplitude de ação) desse organismo, no

sentido de se adaptar e, no limite, manter-se vivo.

18

Para Clot (2010), há uma equivalência entre atividade e saúde. A clínica da

atividade adota a definição filosófica de saúde trazida por Canguilhem; logo, se se define

saúde segundo a leitura dele, no mundo do trabalho atual, a saúde está gravemente em

perigo. As pessoas usam seus recursos pessoais para preservar a saúde. A atividade não é

operação (gesto visível, detalhe, etc.), mas sim o que é feito e o que ainda não foi feito. É

assim que se desenvolve a produção subjetiva da experiência, por meio da atividade, que

é sinônimo de saúde (Pacheco & Silva, 2014). Para Canguilhem (1966/2011, citado por

Athayde & Rezende, 2015), a atividade é uma disposição do vivente para lidar com o

meio e reorganizá-lo; refere-se à afirmação da vida em seu caráter enigmático, conflituoso

e recriador, não se limitando ao já dado, ao prescrito. Já atividade de trabalho é tudo que

o trabalhador faz para dar conta de uma tarefa previamente definida, incluindo todas as

contradições e conflitos que emergem em sua realização, existindo, assim, um campo da

atividade de trabalho que não se reduz ao comportamento, como a mobilização cognitiva,

afetiva e corporal para cumprir a tarefa (Athayde & Rezende, 2015).

A atividade de trabalho é uma estratégia de adaptação à situação real de trabalho;

significa o trabalho real efetivamente realizado pelo indivíduo, a forma pela qual ele

consegue desempenhar suas tarefas. A distância entre o prescrito e o real é a manifestação

concreta da contradição presente no ato de trabalho (Guérin et al., 2001). Montmollin

(1990) defende que a atividade é um processo complexo, em evolução, destinado a

adaptar-se a tarefa, mas também com a função de transformá-la. Guérin el al. (2001)

fazem uma distinção conceitual entre tarefa e atividade de trabalho. A tarefa não é o

trabalho, mas o que é prescrito pela organização ao trabalhador; a tarefa é exterior ao

trabalhador, apresentando-se como um conjunto de prescrições impostas a ele.

Ao fazer uma distinção entre o prescrito e o real, Guérin el al. (2001) apontam que

as condições reais de trabalho são diferentes daquelas condições determinadas; os

19

resultados efetivos são, ao menos parcialmente, diferentes dos resultados antecipados.

Logo, nesse espaço que vai do prescrito ao real, inúmeras renormalizações acontecem na

atividade desenvolvida pelo sujeito, sendo essa atividade rica em alternativas e engajada

em escolhas.

Clot (2006a) acrescenta o conceito de real da atividade, que se refere à atividade

do indivíduo sobre si mesmo, como uma espécie de filtro subjetivo que concede um

sentido para a vida do sujeito. O real da atividade consiste naquilo que pode ser feito, mas

se escolhe, em determinadas circunstâncias – que podem mudar – não o fazer.

Distinguindo a atividade realizada do real da atividade, o autor menciona que a primeira

é o que se faz, enquanto a segunda consiste no que não se pode fazer, mas gostaria de tê-

lo feito, e até mesmo no que se faz para não fazer aquilo que deve ser feito.

Canguilhem (1947/2001) aponta que toda atividade de trabalho tenta encontrar

um núcleo de renormalização, ou seja, que há uma tentativa de a pessoa ajustar o meio às

suas próprias normas, mesmo que no ínfimo, mesmo que, parcialmente, recentrando o

meio. O trabalho, além de ser um meio de produção de sentidos, é uma forma de a pessoa

se sentir útil e ativa, e afirmar sua própria saúde. Contudo, os efeitos das atuais

configurações do trabalho intensificaram alguns elementos nocivos às relações de

trabalho, como o individualismo e a competitividade – apontado por Sennett (1999) como

uma corrosão de caráter nas relações de trabalho; por Antunes (2013) como o

desmantelamento da classe trabalhadora; e, nos termos das clínicas do trabalho, como

uma desestabilização/enfraquecimento dos coletivos de trabalho (Dejours, 2004); ou um

enfraquecimento/amputação do poder de ação desses coletivos (Clot, 2010).

Estudos que se propõem a fazer uma análise do trabalho, independente de qual

clínica se filiem, tocam na questão dos coletivos de trabalho como um meio de reafirmar

a relação com a saúde e a segurança do trabalhador em realizar sua atividade, ou mesmo

20

para evidenciar sinais de fragilidade, perda de vitalidade ou adoecimento pelo trabalho

(Moraes & Athayde, 2014; Silva & Ramminger, 2014; Silveira & Merlo, 2014). Com a

fragilização dos coletivos de trabalho, o indivíduo perde a possibilidade de participar de

espaços de debate e discussão (Clot, 2010). Bendassolli (2011) aponta que coletivos só

são verdadeiros operadores de saúde quando permitem a livre fluência do conflito sobre

critérios, quando estimula disputas e heterogeneidade. Portanto, o bloqueio do poder dos

coletivos em articular estratégias compartilhadas de ação também consiste em um meio

de impedimento da ação, o que pode ocasionar sofrimento/adoecimento.

Na presente pesquisa, parto da premissa de que os coletivos de trabalho são um

meio para a potência de agir (aumentada ou diminuída) do trabalhador no processo de

produção de saúde dos ofícios. Ao adotar essa posição, alguns questionamentos são

elencados como norteadores:

Qual é a função exercida pelos coletivos de trabalho no processo saúde-

doença, em trabalhadores adoecidos em virtude do trabalho?

Como os elementos constitutivos dos coletivos de trabalho se articulam

como bases de manutenção e evolução desses, e, por conseguinte, para

produção de um ofício sadio?

Quais são os possíveis caminhos que os coletivos de trabalho podem

construir para restaurar ou ampliar o poder de agir dos trabalhadores

adoecidos, e, assim, atuar como dispositivo de saúde?

Para compreender a ideia de coletivo como dispositivo, é essencial elucidar o que

é dispositivo. Para Agambem (2005), trata-se de qualquer coisa que de algum modo tenha

a capacidade de orientar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas

e os discursos dos seres viventes, não sendo somente aquelas com conexões mais

evidentes (manicômios, prisões, escolas), mas outros objetos/instrumentos (telefones

21

celulares, computadores, canetas), e até a própria linguagem (o mais antigo dos

dispositivos). Isto posto, considerar os coletivos como um dispositivo de saúde significa

que esses asseguram os gestos, isto é, as orientações genéricas e os modos de fazer de um

ofício.

A ST no Brasil tem recebido diferentes contribuições teóricas das relações saúde,

trabalho e subjetividade. No entanto, de uma forma geral, há uma centralização na noção

de sofrimento psíquico, frente aos constrangimentos impostos pelas organizações e pelas

condições de trabalho. Aqui, destaco também uma iniciativa mais recente: a contribuição

de autores (Brito & Athayde, 2003; Clot, 2006a, 2010; Silva & Ramminger, 2014) que

sublinham a importância de produzir caminhos para a ampliação do poder de agir dos

trabalhadores diante das condições de produção desse sofrimento.

O adoecimento pelo trabalho ainda é uma pandemia oculta. Cerca de 2,34 milhões

de pessoas morrem todos os anos em virtude de acidentes e doenças relacionados ao

trabalho (Organização Internacional do Trabalho – OIT, 2013). Neste estudo, escolhi o

trabalhador adoecido pelo trabalho como representante desses coletivos de trabalho.

Quando o trabalhador desenvolve alguma doença profissional, ele sofre um corte do

convívio com seus pares, não simplesmente por seu afastamento laboral, mas pelas

consequências desse adoecimento. Ao ser acometido por uma doença/sofrimento laboral,

inicia-se uma luta do trabalhador, geralmente solitária, contra os sentimentos de

impotência diante daquela situação, às vezes, expressa pela negação inicial da sua

comorbidade e pela chamada fraqueza de ter adoecido.

Contraditoriamente, pode-se caracterizar essa era contemporânea do mundo do

trabalho como a que mais avançou nas questões tecnológicas e nas formas de gestão dos

processos de trabalho, mas a que mais produziu sequelas significativas de desintegração

da classe trabalhadora. Esse descompasso entre as transformações laborais e as ações em

22

ST produz problemáticas de diversas ordens na relação trabalho-saúde, dentre essas, o

adoecimento do trabalhador e o desmantelamento/enfraquecimento dos coletivos de

trabalho.

A ST propõe colocar o processo de trabalho (e não apenas o indivíduo-

trabalhador) no centro da análise dessa relação, defendendo mudanças em processos de

trabalho potencialmente produtores de adoecimento, ao mesmo tempo em que valorizam

a experiência do trabalhador sobre o seu trabalho, entendendo-o como sujeito ativo do

processo saúde-doença (Minayo-Gomez & Thedim-Costa, 1997).

Outro aspecto de relevância deste estudo é não reforçar o entendimento errôneo

de que os processos de trabalho só são interessantes para saúde coletiva quando se vincula

a uma patologização nítida – um enfoque já superado da saúde ocupacional (Brito, 2005).

Esta proposta ultrapassa a concepção trabalho-saúde de viés negativo e patológico, na

qual trabalho produz apenas adoecimento e alienação; ao contrário, proponho pensar

como o trabalho também pode produzir saúde (Silva & Ramminger, 2014).

Deste modo, objetivei analisar como os recursos dos coletivos de trabalho foram

mobilizados como dispositivos de mobilização de saúde de trabalhadores em situação de

adoecimento profissional. Para isso, especificamente, foi fundamental: a) investigar a

dinâmica do processo saúde-doença sob a ótica do ofício, para além do nível do

sofrimento capturado pela dimensão subjetiva individual; b) analisar as apropriações

conceituais sobre os coletivos de trabalho na perspectiva das clínicas do trabalho; e c)

apresentar um modelo compreensivo dos elementos-base de constituição dos coletivos,

por meio de casos clínicos reais, que ilustrem analiticamente o funcionamento dos

coletivos como dispositivo de um ofício sadio.

23

Pressupostos teórico-metodológicos

Para um melhor acompanhamento dos resultados – que apresento no formato de

três artigos –, é pertinente assinalar o tipo de pesquisa que desenvolvi e os pressupostos

que adotei: uma pesquisa-ação/intervenção, cuja base teórico-metodológica propõe

prover aos sujeitos vida e voz.

A pesquisa-intervenção rompe os enfoques tradicionais de pesquisa e amplia as

bases teórico-metodológicas para pesquisas participativas, propondo uma intervenção

micropolítica na experiência social. Assim, esta é uma atitude de pesquisa que desarticula

as práticas já instituídas, adotando certa concepção de sujeito e grupo, de autonomia e

práticas de liberdade e de ação transformadora (Rocha & Aguiar, 2003). Nesse sentido,

pesquisar é ação, construção e transformação coletiva, sendo a intervenção articulada à

pesquisa, com o intuito de produzir outra relação entre teoria e prática, sujeito e objeto,

não tendo, portanto, algo a ser revelado, descoberto ou interpretado, mas criado e

construído.

Para Lhuilier (2011) a pesquisa-ação é uma prática usual nas clínicas do trabalho,

cujo propósito central é o empoderamento dos sujeitos nas situações de trabalho

(considero que, mesmo afastado do trabalho, o sujeito sempre é um trabalhador em

potencial para transformação do seu trabalho, não necessariamente atrelada à relação com

o espaço físico, mas com o sentimento de pertença ao ofício).

Na ST, o trabalhador assume um papel essencial no saber acerca do seu próprio

trabalho, premissa que está alinhada aos pressupostos metodológicos do Modelo Operário

Italiano – MOI (Oddone et al., 1986) –, no qual a experiência do trabalhador é colocada

como elemento constitutivo capaz de produzir interferências nas suas condições de

trabalho e saúde (Pessanha, Silva, & Rotenberg, 2013).

24

Destaco, aqui, o princípio basilar da análise da atividade realizada pelos

trabalhadores, utilizando os métodos de coanálise do trabalho, adotando uma metodologia

de caráter clínico-qualitativo, que permita ao sujeito refletir sobre suas práticas

profissionais. Houve, então, um processo de reflexividade, que se manteve presente em

todo o percurso metodológico desta pesquisa-intervenção, que ao longo do tempo teve

suas técnicas construídas com seus participantes, em um processo de co-construção –

característica comum às clínicas do trabalho.

A pesquisa-intervenção tem essa característica: teoria e intervenção se constroem

simultaneamente; nesse caso, é aberta a possibilidade de construir, de uma abertura da

relação participantes-pesquisador para que novas relações sejam engendradas, tornando

possível um novo modo de estar com os outros. Estabelece-se uma relação responsiva,

um diálogo que, segundo Bakthin (2008), é inconcluso, e conecta-nos inexoravelmente a

muitos outros, para quem nossas respostas se dirigem, com quem estamos dialogando

todo o tempo, com várias vozes sociais – compreendidas por Bakhtin como pontos de

vista acerca do mundo –que compõem o universo do qual somos partícipes. Nossa própria

presença no mundo é já uma resposta, um modo de nos posicionarmos em relação às

vozes sociais com as quais concordamos, discordamos, aderimos parcial ou totalmente,

refutamos (Brito & Zanella, 2017).

Posicionar o trabalhador-participante nesse lugar de analisador, como um

representante vivo do mundo do trabalho e de seus coletivos, alinha-se à premissa adotada

em seu pressuposto basilar na ST, fundada e fortemente disseminada por Oddone et al.

(1986) – que, com sua equipe de trabalho, exercitaram concretamente uma abordagem

clínica do trabalho que serviu de instrumento para a ampliação da potência e do poder de

ação de coletivos de trabalho sobre o seu trabalho e sobre cada um de seus protagonistas

(Clot, 2010). Nesse desenho de pesquisa, os trabalhadores interessados em compreender

25

↔ transformar suas situações de trabalho são convidados a participar da análise do seu

trabalho, considerando que a discussão da sua experiência pode ser um meio de sua

transformação. Assim, estudos que se propunham a colocar o trabalho como o centro da

análise, tendo o trabalhador como seu analista principal, apresentam ricas contribuições

baseadas nos relatos e impedimentos vivenciados pelos próprios trabalhadores – iniciativa

realizada por Oddone et al. (1986) e fortemente alinhada às clínicas do trabalho.

No presente estudo, tomo como figura a questão dos coletivos de trabalho nos

processos de saúde, o que não torna secundária a atividade de trabalho como elemento de

análise essencial para compreensão dos coletivos e sua interação na própria atividade de

trabalho. Espero que este tipo de intervenção que coloca a atividade como foco de análise

permita a emergência, segundo Lacomblez, Araújo, Zambroni-de-Souza e Máximo

(2016), de: (a) ligações entre trabalho e saúde, por vezes não aparentes, mas insuspeitas

e impensáveis espontaneamente, que adquirem outra visibilidade e tornam-se “dizíveis”

e compartilháveis pelos coletivos; (b) conceitos explicativos que, advindos das

verbalizações dos trabalhadores sobre suas próprias práticas de trabalho e sobre suas

repercussões, são desenvolvidos em função do avanço da reflexão coletiva, e não segundo

um programa que eu predefino como pesquisadora; (c) uma co-construção de

conhecimentos novos sobre a situação de trabalho e adoecimento do trabalhador e sobre

si mesmo, em virtude do próprio exercício de reflexão e de expressão.

Desse modo, objetivo prioritariamente a descoberta e a apropriação de um

percurso pelos participantes, em benefício deles, e não unicamente o de uma contribuição

ao progresso da pesquisa científica – mesmo que a riqueza desta experiência abra portas

a projetos inéditos. Os conceitos e métodos de análise do trabalho que ora adoto passam,

assim, a ser considerados como ferramentas cognitivas capazes de facilitar a iniciativa e

a conduta da ação, ou, pelo menos, a intenção da ação dos trabalhadores. Essa ferramenta

26

assume uma função mais ampla, de tipo desenvolvimental, permitindo adquirir um

melhor domínio geral de um ofício ou de uma função, o que pode transformar igualmente

a relação com o trabalho e favorecer a saúde, na ótica dinâmica da sua construção

(Lacomblez et al., 2016).

Nesta pesquisa, adoto um método clínico – cuja operacionalização explicitarei

posteriormente. Para Amador, Rocha, Brito e Barros (2016), as metodologias clínicas são

uma forma de tratar a produção de conhecimento atrelada às tomadas de posição por parte

do trabalhador. Passos e Barros (2012), citados por Amador et al. (2016), apontam que é

nos encontros gerados pelo trabalho que estão presentes as imbricações políticas, posições

que fazem análise, intervenção e transformação – tríade significativa na produção de vida

no trabalho. Portanto, a prática de pesquisa com trabalhadores encontra, no plano clínico,

um mote metodológico para produzir nuanças inventivas do trabalho, reinvenções da

atividade, e outros diálogos do gênero. Desse modo, ao fazer pesquisa‐intervenção,

aposto: (a) no compartilhamento da produção de conhecimento; (b) na transformação do

vivido no trabalho, o que significa reconhecer o trabalhador engajado na atividade de

análise; (c) e na possibilidade de libertá-lo de modos habituais de pensar, gerando outros

modos de ver, relacionar e conduzir-se junto aos demais trabalhadores, e diante do seu

ofício (Amador et al., 2016).

Contexto e etapas da pesquisa

Realizei este estudo no Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST)

regional de Natal, via inicial de acesso aos trabalhadores, que, ao serem encaminhados ao

Centro, geralmente, estão adoecidos, seja por algum tipo de comorbidade profissional ou

por acidente de trabalho. O acesso aos serviços de saúde pelos trabalhadores ocorre pela

Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST), na qual o

27

CEREST apresenta-se como um dos dispositivos de relevância e notoriedade em ST. Para

Leão e Castro (2013), esses dispositivos de ST refletem o saber técnico-científico e a

correlação de forças sociais em certos momentos históricos, como apontou Minayo-

Gomez e Lacaz (2005).

A articulação à rede de atenção à ST, via CEREST, é um meio de aproximação e

integração do âmbito acadêmico com a rede. A ST convoca essas interlocuções a fim de

contemplar diversos saberes e abordagens (Dias & Hoefel, 2005; Machado & Santana,

2011; Minayo-Gomez & Lacaz, 2005; Minayo-Gomez & Thedim-Costa, 1997). Há a

necessidade de iniciativas que acompanhem as mutações do mundo do trabalho e que

possam contribuir para a construção de uma Política Nacional de Saúde do Trabalhador

e da Trabalhadora – PNSTT (Portaria n. 1.823, de 23 de agosto de 2012).

As ações na rede de ST ainda ocorrem de forma muito fragmentada, e mesmo

considerando os avanços obtidos desde a concepção da política de ST até os dias atuais,

ainda há muitos desafios, devido às dificuldades de implementação das políticas públicas

e sociais, da desintegração dos setores público e privado (Lacaz, 2007; Minayo-Gomez,

2013), e pela própria dificuldade de organizar coletivamente os trabalhadores.

São duas as etapas deste estudo. A primeira inclui atividades em grupo na sala de

espera do CEREST, seguidas de entrevistas semiestruturadas (Apêndice A). A segunda

se trata de entrevistas clínicas (Apêndices B e C). Na primeira etapa, criei o dispositivo

sala de espera, com rodas de debates, conduzidas por mim e voluntários da pesquisa1.

Nessas, abordamos temas relacionados à história do sofrimento/adoecimento relativa ao

trabalho. Ao total, realizamos dez salas de espera, registradas em diário de campo. As

salas de espera objetivaram a ruptura do silêncio do trabalhador, seus modos de

1 Em função de eu ter realizado este estudo com contribuições de voluntários para a pesquisa-intervenção,

os artigos e as considerações gerais estão redigidas na primeira pessoa do plural. Embora eu tenha feito esta

escolha para o relato da pesquisa, são de minha responsabilidade as inflexões teórico-metodológicas que

assinalo neste texto.

28

sofrimento e dialogicidade sobre o processo saúde-doença, e a ampliação do acolhimento

estritamente clínico-especializado para uma ótica de análise do trabalho – ação não

substitutiva dos grupos terapêuticos, mas um modo a ampliar a rede de apoio ofertada ao

trabalhador (Da Silva, Queiroz, Caraballo, Torres, & Bendassolli, no prelo).

Ainda na primeira etapa, realizei entrevistas individuais semiestruturadas com

trabalhadores, de modo acidental e por conveniência, a fim de compreender globalmente

o perfil de adoecimento dos trabalhadores usuários do CEREST. Nesse procedimento, os

trabalhadores expressavam sua história de vida no trabalho, suas relações atuais com o

trabalho (jornada, tipo da atividade, vínculo contratual, exigências físicas e psíquicas do

trabalho), as atividades desenvolvidas, o processo de adoecimento e sua relação com o

processo de trabalho, e seus modos de enfrentamento. Conduzi as 20 entrevistas nas salas

de atendimento do próprio serviço; todas foram gravadas e duraram em torno de uma

hora. O cargo ocupado pelo público-alvo desta etapa foi diverso: motoristas, cobradores,

vigilantes, costureiras, bancários, professores, vendedores, sendo a categoria motorista de

ônibus a mais recorrente nesta pesquisa. Ao fim da entrevista, convidei os trabalhadores

para participar da segunda etapa deste estudo.

Na segunda etapa, apenas cinco trabalhadores se disponibilizaram a participar das

entrevistas clínicas (Apêndices B e C): bancários, motorista, vigilante e professor; todos

estavam afastados do trabalho. Com cada trabalhador, realizei de cinco a seis encontros,

no próprio CEREST, com duração de uma hora, em um período de até três meses, sendo

todos os momentos registrados em áudio. Durante essa atividade, adotei muitas

estratégias de adesão para que o trabalhador pudesse continuar na pesquisa, de modo que

os encontros não se limitassem a um momento terapêutico – cuja importância é válida,

mas não apropriada ao campo de análise do trabalho. Destaco, aqui, a criação de um

caderno, que nomeei de caderno de memórias, compartilhado com os participantes, que

29

o utilizava para registrar o conteúdo da conversa e/ou outros aspectos relevantes para

expressão do seu fazer profissional.

A conotação clínica das entrevistas ultrapassa a perspectiva de uma “Psicologia

Clínica do Trabalho”; abarca uma “Clínica do Trabalho”, que visa a ação sobre o campo

profissional e busca desenvolver a capacidade de agir dos trabalhadores sobre eles

mesmos e sobre o campo profissional, atuando como um dispositivo de transformação da

situação em que o trabalhador se encontra e de restauração de sua saúde. É por isso que é

clínica, por buscar transformar a situação e a saúde; a clínica é a ação para restituir o

poder do sujeito sobre a situação. Desse modo, a finalidade não é desenvolver diferentes

modelos de interpretação do real, mas desenvolver a interpretação dos trabalhadores, para

que estes reinterpretem a sua posição e desenvolvam a sua interpretação sobre o trabalho

que fazem (Clot, 2006b).

Clínicas do Trabalho foi uma terminologia recentemente proposta (Bendassolli &

Soboll, 2011; Lhuilier, 2006) para caracterizar abordagens que, mesmo sem focar a

questão psicoterapêutica, partilham características do paradigma clínico (Bendassolli,

Borges-Andrade & Malvezzi, 2010), com o foco em uma metodologia qualitativa, o

recurso à interpretação e a ênfase na profundidade da compreensão de casos específicos

em detrimento de descrições ou descobertas de leis gerais. Essa perspectiva tem caráter

emancipador, pois visa ao empoderamento do trabalhador, seja em situações de

sofrimento ou vulnerabilidade, seja diante de bloqueios ou suspensões de seu poder de

agir (Clot, 2006a).

A fim de usar uma ferramenta que possibilitasse o movimento dialógico

interpretar-reinterpretar do trabalhador, usamos um caderno ao longo dos encontros

clínicos. O caderno foi uma ferramenta pensada por um dos trabalhadores da pesquisa,

que, devido ao desgaste causado pelo sofrimento psíquico relacionado ao trabalho, estava

30

com sua memória afetada, sofrendo com lapsos de esquecimentos. A sugestão do

trabalhador (anotar para lembrar) foi tomada como sugestão para os demais participantes,

que a adotaram como ferramenta de mediação para a etapa clínica deste estudo.

A articulação entre as duas etapas da pesquisa me possibilitou organizar os

resultados em três artigos: (a) O processo saúde-doença em diferentes ofícios segundo a

perspectiva de trabalhadores usuários de um CEREST no Nordeste brasileiro; (b) Uma

síntese do conceito de coletivos de trabalho nas clínicas do trabalho; (c) Coletivos de

trabalho e a produção de saúde dos ofícios. As revistas selecionadas para submissão dos

artigos são, respectivamente: Revista Espacios (Qualis B2); Revista Psico (Qualis A2);

Psicologia em Estudo (Qualis A1). Cabe ressaltar que a lógica de construção dos artigos

baseou-se nas diretrizes das revistas escolhidas (por exemplo, no estilo APA), exceto

quanto ao tamanho dos textos, para que mantenham a distinção e a originalidade

solicitadas na tese de doutorado. Em virtude da similitude das temáticas tratadas nos

artigos, do estilo de redação e da estruturação lógica da argumentação, o leitor pode se

deparar com alguns aspectos com certa vocação repetitiva. Isto se deve às escolhas que

fiz e a alguns limites de apresentação do conteúdo deste documento. Por fim, há uma

seção de considerações gerais, nos quais retomo os principais analisadores do estudo,

debatendo seu alcance e desafios.

31

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36

ARTIGO UM

O processo saúde-doença em diferentes ofícios segundo a perspectiva de

trabalhadores usuários de um CEREST no Nordeste brasileiro

RESUMO

Este estudo apresenta os resultados de uma pesquisa-intervenção que realizamos em um

Centro de Referência em Saúde do Trabalhador, localizado no município de Natal-RN,

com trabalhadores-usuários. Nosso objetivo foi analisar o processo saúde-doença em

diferentes ofícios, sob a ótica das clínicas do trabalho, notadamente por meio da análise

do trabalho. Conduzimos as atividades em duas etapas: uma de aproximação do campo

com as atividades em grupo na sala de espera do serviço e entrevistas semiestruturadas;

e outra de entrevistas clínicas. Identificamos três dispositivos: o coletivo provisório, a

relação do sujeito com sua atividade e o assédio ao ofício. Alertamos para a necessidade

de cuidado com os ofícios, com igual nível de importância do cuidado ofertado ao

trabalhador, numa perspectiva de reparação do bem-estar pelos coletivos, sobre os

critérios e as tensões da atividade de trabalho. Assim, a busca pela manutenção de um

ofício sadio apresentou-se como uma estratégia de promoção↔recuperação no campo da

saúde do trabalhador.

Palavras-chave: Saúde do Trabalhador; Ofício assediado; Clínicas do trabalho.

The health-disease process in different jobs according to workers users' perspective

of a CEREST in Northeast Brazil

This study represents the results of a research-intervention realized in a Center of

Reference in Worker Health, located in the city of Natal-RN, with workers users of the

37

service. The aim was to analyze the dynamic of the health-disease process taking into

account the level of the job, based of the work clinics. The activities were conducted in

the fases: approach of the field with the group activity in the waiting room of the service

and semi-structured interviews and clinical interviews. It was possible to identify three

devices: the provisional collective; the relation of the subject with his activity and the

harassment to the job. It is alerted to the need of care with the job with equal level of

importance of the care offered to the worker, in a repairing perspective of the well-being

by the collective about the criteria and the tensions of the work activity. Therefore, the

search for the maintenance of a "healthy" office was presented as a strategy of promotion

<-> recovery in the field of worker health.

Keywords: Worker heath; harassed job; work clinics.

Neste estudo, apresentamos os resultados de uma pesquisa-intervenção realizada

em um Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST), localizado no

município de Natal, com trabalhadores-usuários do serviço. A pesquisa ocorreu com

aqueles afastados em virtude de sofrimento e adoecimento psíquico ocasionado pelo

trabalho. Por meio de diferentes dispositivos metodológicos, objetivamos investigar a

dinâmica do processo saúde-doença que também leve em conta o nível do ofício, e não

apenas o nível do sofrimento capturado pela ótica subjetiva individual.

Antes de apresentar o método e os resultados, empreendemos uma circunscrição

teórica de seu objeto, iniciando pela contextualização do campo da Saúde do Trabalhador

(ST), tendo em vista que as características de sua institucionalização ajudam a

compreender o ponto de partida deste artigo, centrado nos usuários do CEREST. Em

seguida, detalhamos o conceito de saúde-doença adotado no estudo, que privilegia a

38

discussão da atividade e dos ofícios, e sumarizamos algumas das principais abordagens

teóricas sobre o tema.

O campo da ST: definição, influências e institucionalização

A ST compreende um corpo de práticas teóricas interdisciplinares e

interinstitucionais desenvolvidas por diversos atores situados em lugares e papéis sociais

distintos (trabalhadores, empregadores, Estado, universidades, sindicatos). Constitui-se

em um patrimônio acumulado da Saúde Coletiva, com raízes no movimento da Medicina

Social Latino-Americana e influenciado pela experiência italiana – como se detalhará na

próxima subseção, tendo em vista sua importância até os dias atuais. Em suma, trata-se

de um campo cuja construção ocorre pelo alinhamento de diversos interesses,

determinado fortemente pela influência do momento histórico e pelas lutas políticas de

cada contexto (Lacaz, 2016; Mendes & Dias, 1991; Minayo-Gomez & Thedim-Costa,

1997).

A identidade desse campo tinha como referência inicial a abordagem da Saúde

Ocupacional, por meio da qual os trabalhadores eram vistos como pacientes ou objetos

da intervenção profissional. Na ST, eles constituem-se em sujeitos políticos coletivos,

depositários de um saber emanado da experiência e agentes essenciais de ações

transformadoras. O trabalho é entendido como uma arena composta por coletivos

desiguais (articulados na díade capital-trabalho), estruturalmente determinada por

conflitos e embates de concepções e práticas, que também são condicionados pelos

recursos que agentes e instituições possuem (Bourdieu, 1996), e que mudam ao longo do

tempo. A dinâmica do trabalho leva, pois, à necessidade de contínua reinvenção do campo

(Minayo-Gomez, 2011).

39

A experiência italiana

O campo da ST sofreu – e sofre até os dias atuais – influência de diversos

movimentos e atores sociais. Como dissemos na seção anterior, uma dessas influências

em particular merece destaque. Trata-se da experiência proveniente da Itália na década

de 1970, culminando no que foi então proposto como Modelo Operário Italiano (MOI).

O MOI surge em Turim, promovido por um grupo composto de médicos, sociólogos,

psicólogos, estudantes, trabalhadores e sindicalistas, articulados em torno de

“comunidades científicas ampliadas”, que se desenvolveram em todo o território italiano

(Brito, 2011). Uma figura central do movimento foi o médico e psicólogo Ivar Oddone,

considerado um símbolo do caráter multiprofissional e inter/transdisciplinar do campo da

ST (Athayde & Souza, 2015; Muniz, Brito, Souza, Athayde, & Lacomblez, 2013).

As referidas comunidades ampliadas foram responsáveis pela criação de um novo

modelo de conhecimento e de estratégia sindical a respeito das condições de vida e de

trabalho. Elas recuperaram o valor científico da experiência dos trabalhadores,

desenvolvendo uma forma original de pesquisa-ação, na qual todos os atores se tornariam

coautores das iniciativas propostas (Oddone, 2007; Oddone et al., 1986). A herança

deixada por Oddone é uma clínica do trabalho fundada na observação de fatos singulares,

focalizando sua atenção na relação dialética entre a experiência e a aprendizagem na

compreensão do comportamento, ambas mediadas pela consciência.

Embora marcada pelo seu tempo e contexto, a herança de Oddone e de sua equipe

possibilitou ao campo da ST no Brasil uma prioridade crescente dos coletivos de

trabalhadores, que têm autonomia e saberes próprios para alargar o seu poder de ação

sobre o meio de trabalho real e sobre si mesmos.

40

A rede de apoio ao trabalhador

Até este ponto, destacamos algumas definições gerais sobre o campo da ST e a

influência recebida do modelo italiano, centrado em torno das comunidades ampliadas e

na recuperação do protagonismo do trabalhador. Porém, a dimensão conceitual que

norteou e ainda norteia os atores do referido campo foi se materializando

progressivamente, a partir de dispositivos institucionais variados. Em específico, detemo-

nos brevemente à descrição da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do

Trabalhador (RENAST), haja vista ser nesse contexto que os sujeitos da presente pesquisa

foram inquiridos.

A RENAST foi criada em 2002, por meio da Portaria n. 1.679/GM, objetivando

disseminar ações de ST articuladas às demais redes do Sistema Único de Saúde (SUS).

Para Dias e Hoefel (2005), a RENAST é uma estratégia bem-sucedida, embora com

limites, entre eles as discrepâncias na área de cobertura dos CEREST; a frágil articulação

intrasetorial; a falta de clareza na definição das instâncias de coordenação das ações e de

direcionamentos para a pactuação entre os diferentes níveis de governo no planejamento

regional, estadual e municipal.

O CEREST foi desenhado para funcionar como unidade especializada de

retaguarda para as ações de ST no SUS. As unidades mais consolidadas tornaram-se porta

de entrada para trabalhadores com doenças ocupacionais ou acidentes do trabalho.

Considerando o amplo escopo conceitual e mesmo político do campo da ST, esse tipo de

atenção se torna assistencialista; portanto, romper com tal lógica é um desafio para a

própria estruturação da rede. Tendo situado o campo da ST, a seguir, voltamo-nos à

demarcação de um conceito central não só para o referido campo, mas também para a

presente pesquisa: o conceito de saúde e sua interface com os ofícios e coletivos de

trabalho.

41

Saúde e trabalho: um olhar pela Clínica do Trabalho

O conceito de saúde foi, ao longo de muitos anos, pautado pelas diretrizes da

Organização Mundial da Saúde (OMS), de acordo com a qual, saúde é um estado de

completo bem-estar físico, mental e social, não sendo caracterizado apenas como a

ausência de doenças ou enfermidades (OMS, 1946). Contudo, para além desse marco

legal, definir saúde não é uma tarefa fácil, e diversas são suas conceituações em outros

terrenos teóricos.

Globalmente, há pelo menos três correntes de pensamento nesse domínio: as

enraizadas na teoria do estresse, as psicopatologias fortemente influenciadas pelo

referencial psicanalítico e as fundamentadas no materialismo histórico, centradas em

torno do operador desgaste no trabalho (e.g., Bernardo 2014; Franco, Druck, &

Seligmann-Silva, 2010; Paparelli, Sato, & Oliveira, 2011; Seligmann-Silva, 2011, 2015).

Uma quarta corrente, mais recente, sustenta nossa perspectiva neste estudo; refere-se às

Clínicas do Trabalho (Bendassolli & Soboll, 2011). Na sequência, debruçamo-nos sobre

o conceito de saúde desenvolvido nessas clínicas, particularmente o que toma, em alguma

medida, a compreensão do processo saúde-doença baseado na obra de Canguilhem

(2009).

Para Canguilhem (2009), saúde está relacionada à capacidade do ser vivo em

estabelecer novas normas, tolerar e enfrentar as infidelidades e as agressões do meio –

algo além de um mero processo de adaptação. Essa perspectiva está baseada no

entendimento de que uma das características-chave do ser humano é a vitalidade, que se

manifesta na tentativa permanente de adequar o meio às suas necessidades e anseios, ou,

como coloca Canguilhem, às suas normas. Portanto, saúde está relacionada à atividade,

ao poder de agir, à capacidade de transgredir o meio e suas normas vigentes, tendo em

vista a criação de novos espaços de vida.

42

Ao mencionar que os indivíduos buscam modificar seu meio de acordo com suas

próprias normas, Canguilhem corrobora com um dos caminhos propostos pela ergonomia

da atividade, que inverte a lógica (taylorista) predominante de adequar as pessoas ao

trabalho. Em vez disso, é o inverso que se persegue: adaptar o trabalho ao homem. Esse

também foi o caminho escolhido pelo MOI, que visou compreender↔transformar as

situações de trabalho, de modo que essas não gerassem danos à saúde e permitissem aos

trabalhadores expressarem ao máximo sua capacidade produtiva como sujeitos pensantes

(Oddone, 2007).

Portanto, saúde corresponde, de um lado, a uma margem de tolerância que os seres

humanos têm em relação às infidelidades do meio e, de outro, à capacidade de as pessoas

(individual e coletivamente) criarem novas normas, ou seja, de agirem sobre o meio e o

transformar (incluindo o trabalho). Sentir-se com saúde é, pois, ser capaz de criar novas

normas de vida; é ser capaz de detectar, interpretar e reagir, mas também de renormalizar,

inventar novas normas. Essa caracterização de saúde foi reapropriada e desenvolvida no

interior das várias das Clínicas do Trabalho, como no caso de Clot (2006, 2010), Dejours

(1986, 2004) e Lhuilier (2006, 2014).

Lhuilier (2014) destaca que o ato de trabalhar implica a mobilização de recursos

pessoais já desenvolvidos, mas também a criação de novos recursos. O que está dado, o

que já existe, as normas antecedentes, sejam elas produzidas por quem prescreve a tarefa,

pela profissão ou pelo coletivo de trabalho, são colocados à prova do real na atividade.

Os imprevistos, os obstáculos encontrados, constituem as muitas solicitações à invenção

e à transgressão. Só assim o trabalho se torna um operador de saúde, pois permite que, ao

engajar-se na atividade (na ação), o sujeito transforme os obstáculos.

Similarmente, para Clot (2013), saúde está ligada ao poder de agir, à potência

transformadora por meio da atividade. Para Clot, a atividade realizada não possui o

43

monopólio sobre o real; é apenas uma versão provisória, um arranjo momentâneo criado

pelos coletivos e informado por um gênero profissional. O real da atividade, por sua vez,

consiste em tudo aquilo que, por alguma razão (impedimento), não foi ou não pôde ser

realizado. Para nossos propósitos neste texto, é importante destacarmos que o coletivo,

os ofícios, podem agir como operadores de saúde quando auxiliam na mobilização dos

recursos do gênero profissional e permitem a contínua reconstrução dos jeitos de ser e

fazer no trabalho. A doença emerge quando, em um ofício, a atividade é impedida, o

poder de criar novos mundos pelo trabalho é cerceado, e quando a mobilização psíquica,

no interior dos coletivos, não é mais fonte de criação de novas regras, de novos saberes,

novas práticas e novos padrões para um trabalho benfeito.

Por mais díspares que sejam as abordagens em Clínica do Trabalho, um ponto,

todavia, parece se destacar entre elas: o fato de que os contextos de trabalho precisam ser

cuidados, por estar relacionado às inúmeras formas de violência que contaminam,

envenenam, os coletivos em seu esforço e luta constante pela afirmação da saúde pela

atividade. Silva e Ramminger (2014) lembram-nos que o trabalho só é um operador de

saúde quando cede espaço para a criação coletiva e pessoal. A manutenção da saúde no

trabalho passa pela vitalidade do ofício, pelo seu movimento de restauração contínua

contra as violências sofridas. Na continuidade, após descrevermos o método deste estudo,

apresentamos o modo como alguns trabalhadores assistidos pelo CEREST respondem a

seu próprio adoecimento, ao enfraquecimento de seu poder de agir, ao poder de instituir

e criar novas normas para a realização de sua atividade.

44

Método

Fundamentos gerais

Trata-se de um desenho de pesquisa-intervenção, notadamente com ênfase na

coanálise do trabalho, tomando o trabalhador como detentor do saber sobre sua própria

atividade, cabendo a nós, pesquisadores, o papel de mediador, tal como historicamente

proposto pelo MOI. Ademais, como já aludido anteriormente, a análise da atividade

profissional parte da identificação da discrepância entre a atividade real (que incorpora a

tarefa) e o real da atividade – entre o que deveria ser feito, de um lado, e o que

efetivamente foi feito e também as possibilidades que não conseguiram se manifestar

nessa atividade, de outro. Portanto, saúde está relacionada à atividade, ao poder de agir,

à capacidade de transgredir o meio e suas normas vigentes, tendo em vista a criação de

novos espaços de vida.

Coligimos informações sobre momentos críticos ou significativos, da perspectiva

do participante, em relação à atividade e, no presente caso, aos aspectos nela inseridos,

que sinalizam para o fortalecimento ou enfraquecimento dos coletivos e, como resultado,

os processos de adoecimento. Também buscamos, ao mergulhar na história do sujeito em

sua relação com a atividade, captar os fatores de impedimento, de cerceamento, de

estrangulamento da capacidade ou do poder de agir do trabalhador naqueles coletivos, e,

por conseguinte, na relação trabalho-saúde-doença. Assim, visamos à análise da relação

do desenvolvimento da atividade profissional e das expressões do processo saúde-doença.

Contexto e etapas

Realizamos esta pesquisa no CEREST localizado no município de Natal, no

estado do Rio Grande do Norte. Conduzimos as atividades em duas etapas: uma de

45

aproximação do campo com as atividades em grupo na sala de espera do serviço e

entrevistas semiestruturadas; e outra centrada em entrevistas clínicas.

Na primeira etapa, objetivamos observar a organização do campo de pesquisa. Ao

mesmo tempo em que coletamos as informações, também criamos um dispositivo

interventivo – neste caso, denominado sala de espera. Trata-se de um serviço no qual, o

trabalhador é convidado a participar de rodas de conversas na recepção, enquanto aguarda

o atendimento. Essas rodas, conduzidas pelos pesquisadores e informalmente

estruturadas, abordavam temas como a percepção do trabalhador sobre o serviço, a

história do adoecimento, os acidentes de trabalho que por ventura tenham sido vítimas,

as questões relacionadas à violência e ao assédio moral no trabalho, e a percepção do

sofrimento/adoecimento relativo ao trabalho. Realizamos dez salas de espera em um

período de, aproximadamente, três meses, semanalmente, com duração média de duas

horas, sendo as atividades registradas em diário de campo.

Ainda nessa primeira etapa, realizamos 20 entrevistas individuais

semiestruturadas com os participantes, cuja amostra foi acidental e por conveniência. Os

trabalhadores eram convidados para essa entrevista após as atividades da sala de espera.

Agendávamos outro momento para realizar as entrevistas, em uma sala de atendimento

do próprio CEREST, com duração de aproximadamente uma hora. Abordamos aspectos

como a história profissional, as condições de trabalho, o processo de adoecimento e sua

relação com o trabalho, o suporte frente ao adoecimento, e a participação dos coletivos

de trabalho.

Essa primeira etapa foi essencial tanto para nos aproximar e nos fazer

compreender o cenário local quanto para traçar o perfil geral de adoecimento dos

trabalhadores usuários do CEREST – informações importantes para subsidiar a segunda

etapa deste estudo, caracterizado por entrevistas clínicas.

46

Dos 20 participantes da primeira etapa, cinco se disponibilizaram a participar da

segunda. Baseando-nos nos fundamentos supracitados, foram incluídos e abordados

tópicos em três eixos, a saber: (a) relações com a atividade (implicação afetiva com a

atividade; impedimentos; recursos; processos de organização da atividade;

reconhecimento pelo trabalho benfeito e seus critérios); (b) a vivência do adoecimento (o

histórico que levou ao adoecimento; os recursos percebidos para a ação; as redes de

apoio); e (c) a relação com os coletivos de trabalho (relações de confiança e cooperação,

engajamento afetivo, espaços de debates e suporte dos coletivos).

Nessa etapa clínica, também realizada na sala de atendimento do CEREST,

participaram bancários, motorista, vigilante e professor. Com cada um foram realizados

de cinco a seis encontros, com duração de, aproximadamente, uma hora cada, em um

período de até três meses. A faixa etária foi de 25 a 60 anos, com experiência de trabalho

entre 8 e 25 anos na função. Todos os trabalhadores que participaram do estudo estavam

afastados em virtude de sofrimento e adoecimento psíquico ocasionado pelo trabalho,

com variação de três a seis meses de afastamento.

Procedimentos de análise

O material que sustenta nossa análise proveio de duas fontes: dos registros que

fizemos durante as intervenções, contendo os incidentes mais importantes, tendo em vista

o contexto do trabalho realizado; e da transcrição das entrevistas individuais e das

entrevistas clínicas – já descritas. Orientamo-nos por um processo de categorização que

privilegiou a identificação de dispositivos formados em torno da nossa relação com os

participantes. Entendemos por dispositivo um dado concreto, sinalizador de sentidos

teorético e vivencialmente relevantes, de acordo com nossa interpretação (ancorada no

47

referencial teórico e nas anotações das experiências em seus momentos qualitativamente

mais significativos).

A partir da análise do material, identificamos três grandes dispositivos, não por

acaso, refletindo o propósito de cada intervenção que propusemos. O primeiro dispositivo

refere-se à própria sala de espera. O principal resultado desse momento – como se verá

na seção seguinte – foi a formação do que denominamos coletivo provisório. O eixo

significativo refere-se, pois, ao papel que a constituição de um grupo provisório, acidental

(formado pelas pessoas que estavam à espera de atendimento), desempenhou nos relatos

sobre saúde, sofrimento, atividade e trabalho.

No segundo momento, quando o dispositivo (entrevista) passa a enfatizar a

subjetividade (a experiência pessoal na linha biográfica de cada participante), desvelam-

se aspectos nucleares da relação desses trabalhadores com sua atividade – novamente,

contra o fio condutor da saúde-sofrimento-trabalho. Por fim, o terceiro dispositivo se

forma em torno da atividade propriamente dita, visto que este era o fio condutor do

terceiro momento, também de entrevistas, desta vez, focadas essencialmente no fazer

concreto, em seus impedimentos, nos aspectos que, ao final das contas, esvaziaram o

sujeito (quando, teoricamente, seria o inverso: a energização pela atividade, pela

potencialidade de instituir novas normas de vida). Estruturamos a seção seguinte em

função desses três grandes dispositivos.

Resultados e discussão

Norteamos esta seção pelos três dispositivos elucidados no processo de análise do

material: (a) o coletivo provisório (referente à sala de espera); (b) a relação do sujeito

com sua atividade, na linha biográfica; e, por fim, (c) o assédio a que vemos estar sujeito

não apenas os trabalhadores, sobretudo, o ofício em si.

48

O coletivo provisório

O dispositivo coletivo provisório apresentou-se como produto da construção de

um espaço advindo da implantação da sala de espera no serviço. A sala de espera do

CEREST era um espaço silencioso, para o atendimento das especialidades médicas que o

serviço oferta. Com a criação desse dispositivo, transformamos esse não lugar (ou espaço

vazio de espera) em um lugar a ser investido e vivenciado por esses trabalhadores, em

conformidade aos pressupostos interventivos iniciados por Oddone el al. (1986) e Oddone

(2007). Sem a sala, a rotina é o silêncio. Nessa intervenção, questionamo-nos: como

romper um silêncio que era tradutor tanto do sofrimento quanto de uma estratégia de

proteção pessoal frente ao seu processo de adoecimento?

Inspirados pela ideia inicial de comunidade ampliada (Brito, 2011; Oddone,

2007), decidimos transformar as condições que estimulavam o silêncio. Iniciamos a

incipiente construção da comunidade ampliada (pesquisadores, trabalhadores, familiares

e estudantes), permitindo uma ressignificação da voz do trabalhador. Esse processo

passou pela construção de um espaço em que o trabalhador percebe que é ele o detentor

do saber sobre seu próprio adoecimento. Então, progressivamente, criamos um espaço

dialógico – no qual ele não só se ouvia falar, como também se endereçava a outros com

destinos laborais similares – no que diz respeito à rota do adoecimento no e pelo trabalho.

Ainda que breve, esse dispositivo permitiu a emergência da história de sofrimento

de cada trabalhador, suas afetações e, por conseguinte, a reelaboração da sua experiência

de saúde-doença no trabalho. Ademais, o que, implicitamente, vimos ganhando corpo foi

a presença, ainda que frágil, instável, de um coletivo2, aqui entendido como um espaço

compartilhado em torno de uma problemática comum; senão a constatação, quando

2 Não se trata de um coletivo de trabalho único, pois estamos falando de profissionais de atividades distintas,

logo, teríamos vários coletivos de trabalho reunidos, na perspectiva de que o coletivo está no indivíduo,

conforme aponta Clot (2010) em seus estudos sobre o constructo.

49

comparamos todas as salas de espera, de que o sofrimento era o que os unia, como em um

uníssono. O fato de o sofrimento ter uma faceta compartilhada não significa, obviamente,

a inexistência de matizes singulares – o que captamos nas entrevistas individuais no

momento seguinte. Contudo, o principal resultado dessa etapa parece ter sido, a julgar

pelas reações da maioria dos envolvidos, a tomada de consciência de um

compartilhamento oculto, velado, de um sofrimento comum. Ademais, a sala também se

revelou, ao cabo da intervenção, um espaço no qual o trabalhador poderia reconhecer-se

no outro, com possíveis impactos (embora não tenhamos como os avaliar) na

transformação da culpa pelo adoecimento, sentimento reforçado nos espaços

institucionalizados (empresa, perícia).

Um conteúdo que se destaca no relato dos trabalhadores, em todas as salas de

espera, é a existência de violência no trabalho, mais especialmente o assédio moral. Um

dos trabalhadores mencionou ser traumático o fato de sofrer vários assaltos em seu

ambiente de trabalho. Contudo, em seu relato, ele reconhecia que o sofrimento de ser

assaltado, de ter a vida em risco, era subjetivamente menos custoso do que a ausência de

suporte na empresa – e pior: sofria acusações veladas, com comentários no limite entre o

descaso e a culpabilização mais rasteira. Por consequência, o trabalhador relata ter

desenvolvido sintomas patológicos, que incluíam pesadelos, ansiedade e pânico ao se

aproximar do local onde trabalhava.

Nessa mesma direção, em uma das salas de espera, uma trabalhadora propôs que

o assédio moral, de aspecto nem sempre positivamente palpável, deveria ser colocado na

mesma categoria de acidente; ainda que invisível ou de difícil comprovação, real e com

efeitos subjetivamente danosos. Essa releitura feita pela trabalhadora apresenta-se como

um meio de recuperar o debate sobre saúde no trabalho, por meio da capacidade de

50

detectar e instruir novas regras, de diálogos entre os coletivos e um meio de mobilizar a

atividade em si.

Por fim, outro conteúdo que emergiu no espaço do coletivo provisório refere-se

aos acidentes de trabalho. Nesse caso, a presença de um advogado entre os integrantes do

grupo foi essencial para elucidar o modo como a troca entre os trabalhadores poderia

fortalecer um coletivo presente e atuante. Ao explicar a necessidade de emissão do

Comunicado de Acidente de Trabalho (CAT) para o grupo de trabalhadores (que

desconhecia completamente o tópico), o advogado explicitou o modo como os espaços

de diálogo podem promover a interlocução dos saberes entre os coletivos de trabalho.

O sujeito e sua relação com atividade de trabalho

A atividade de trabalho pode ou não ser fonte de vitalidade para o sujeito. Na

prática, o adoecimento pelo trabalho ocorre quando a atividade perde sua conexão afetiva

com a pessoa, seu potencial de transformação, quando o sujeito já não se sente mais na

origem da qualidade do que faz (Clot, 2010). O dispositivo das entrevistas

semiestruturadas revela o esvaziamento pela atividade, a incapacidade ou impossibilidade

de o sujeito falar de outra coisa que não os aspectos negativos de seu métier. Observamos

uma fala centrada nos impedimentos, o que, à primeira vista, era compreensível, uma vez

que o espaço institucional no qual os trabalhadores foram abordados coloca a doença no

centro da atenção. Contudo, essa “monologia” só agrava o estado de sofrimento.

O dispositivo das entrevistas diferencia-se da sala de espera por nos permitir

entender algumas características relacionadas à atividade na perspectiva biográfica do

trabalhador e o seu enveredamento para o adoecimento. Ao mesmo tempo em que tal

momento de entrevista nos permitiu contribuir para a ressignificação do sofrimento em

questão (ao dar voz, o sujeito era, enfim, autorizado a elaborar sobre sua dor), ele também

51

nos permitiu conhecer melhor o público da pesquisa nos termos de sua história de vida

pelo trabalho e os sinais, mesmo que pontuais, de desenvolvimento/impedimentos da

atividade pela via do adoecimento.

O primeiro aspecto a destacar neste momento consiste no cenário de descrédito e

insensibilidade da organização do trabalho em relação ao adoecimento iminente. Trata-

se de uma invisibilidade associada, paradoxalmente, a um presenteísmo (ir trabalhar

mesmo doente), no qual o ritmo de desempenho do trabalhador deveria ser mantido. De

fato, para Seligmann-Silva (2015), o presenteísmo tende a agravar os sintomas, podendo

chegar ao limite do esgotamento. Uma trabalhadora (Bancária, 28 anos, 7 anos na

profissão), ao ser questionada sobre o momento quando percebeu seu adoecimento,

relatou:

Comecei a chorar na frente do cliente. Não consegui me controlar. Comecei a

chorar, fui pro banheiro. Quando eu voltei, tava [ar de riso] o segurança da agência

na minha frente [...]. E, quando eu olhei o segurança de costas, quando eu olhei

pra arma dele, eu tive vontade de pegar a arma dele. Foi aí que eu vi [...]. Algumas

vezes, eu ficava tão nervosa, que eu batia [reprodução de socos na mesa para

exemplificar sua ação].

A insensibilidade diante da fragilização da saúde pode levar a reações extremas,

desde o embotamento à explosão afetiva – como no caso aludido. Em geral, o próprio

sujeito tende a traduzir seus sentimentos, percepções e avaliação da situação para a esfera

interna, na qual, não raras vezes, acaba ficando preso. Do lado externo, na situação de

fragilidade e esgarçamento de coletivos capazes de suportar o peso do trabalhar (Clot &

Gollac, 2014), por vezes, impera a indiferença, o descrédito ou o estigma (loucura,

preguiça ou frescura). O resultado, no plano individual, é o desinvestimento da atividade;

no plano da tarefa, a ameaça ao desempenho, mesmo, por vezes, em funções corriqueiras.

52

As entrevistas ecoaram aspectos relativamente consolidados, a exemplo da forte

culpabilização do trabalhador pela sua condição; situações de questionamento da própria

identidade (“O que estou fazendo aqui, e por quê?”); lapsos de esquecimento, afetando o

desenvolvimento da atividade, além das falhas/erros na atividade de trabalho; bem como

irritação e agressividade com colegas e/ou público que fazia uso do seu serviço. O

desgaste mental impedia o transformar do real pelo investimento de si – que, conforme

destaca Lhuilier (2014), implica na mobilização de recursos pessoais já desenvolvidos,

mas também na criação de novos recursos.

À medida que as entrevistas mergulhavam na tentativa de compreensão dos laços

do sujeito com sua história de trabalho, fomos constando, como resultado da escuta neste

momento, problemas ligados à gestão do trabalho, ligados ao descaso, com a própria

atividade, seus motivos, finalidades e resultados. A forma pela qual isso reverbera na

prática, e pode ser visualizado, é na inexistência, nas falas dos entrevistados, de um cuidar

do trabalho, da discussão e da preocupação com um trabalho benfeito (Clot, 2010).

Quando isso ocorre, a atividade perde seu potencial de instituição de novas regras de vida,

e o sujeito volta-se, então, à única coisa que lhe resta: seu mundo interior, suas

lamentações. De modo mais enfático, dois métiers parecem fortemente a risco: o bancário

e o trabalhador de transportes.

No caso particular dos motoristas de ônibus, a procura pelo CEREST revela dados

assustadores: eles são vítimas reincidentes de assaltos (média de nove a dez por mês).

Conforme sinalizamos na seção anterior, esses trabalhadores apontam que, mais duro que

o assalto em si é o descaso da organização, a ausência de envolvimento com os

trabalhadores no sentido de se discutir medidas de enfrentamento. Ademais, as exigências

dessa profissão são complexas, desde a atenção ao trânsito e às condições urbanas,

passando pelo acúmulo da dupla função (motorista/cobrador), a violência social, e a

53

gestão pelo medo. A nosso ver, esse é um caso de ofício doente, pois suas condições de

execução beiram ao insuportável, havendo pouca ou ineficaz ação coletiva para a

construção de recursos psicossociais de enfrentamento. Aprofundaremos este ponto a

seguir.

O ofício assediado na atividade de trabalho

O terceiro bloco de resultados refere-se às entrevistas clínicas. Estas diferenciam-

se das anteriores (semiestruturadas) por seu acento nas questões ligadas à atividade

propriamente dita, ao ofício, cujo foco é o desenvolvimento de sua atividade de trabalho

para a análise desse mesmo eixo.

Assim, o que estaria acontecendo na atividade de trabalho desses trabalhadores,

ao ponto de propormos a metáfora de um ofício assediado? Vamos responder a esta

pergunta baseando-nos na distinção dos níveis de ofício proposta por Clot (2006, 2010):

pessoal e impessoal (âmbito da tarefa e das condições materiais e procedimentais para

sua realização), e interpessoal e transpessoal (nível do gênero, isto é, da memória de um

determinado ofício, dos saberes passados de geração para geração; cultura do ofício).

Quanto à perspectiva pessoal, de um modo geral, os trabalhadores se

identificavam/gostavam da atividade de trabalho, tendo relativo domínio de seu nível

impessoal (regras, procedimentos e conhecimentos). No entanto, nos âmbitos interpessoal

e transpessoal, foi comum identificarmos um conflito de critérios ou de demandas: de um

lado, a organização (relações de competitividade, condições de trabalho, gestão pelo

medo, pressão e violência psicológica); do outro, o próprio coletivo de trabalho, no

sentido de um orientar-se por um fazer com qualidade. A visão que esses trabalhadores

tinham sobre como, idealmente, o ofício (e, neste, a atividade) deveria ser realizado se

chocava tanto com imperativos do real, como com os da organização. Haver esse choque

54

de critérios não é, por si só, um aspecto grave, em si mesmo adoecedor. O problema é

quando tais conflitos não são colocados a serviço do debate, da controvérsia (Clot, 2006,

2010). Foi o que sugerimos – na seção anterior – ao mencionar o desinvestimento, a

desafetação da atividade pelos trabalhadores.

Para Clot (2010, 2013), é no confronto e encontro das possibilidades que os

coletivos de trabalho devem perseverar. Quando o trabalhador não tem qualquer margem

de manobra sobre a ação, seu poder de agir, isto é, sua capacidade de mobilizar recursos

psicossociais no confronto com o real, fica esvaziado, diminuído, propiciando a

emergência de condições para o adoecimento. Um exemplo dessa ausência de poder de

agir no confronto de critérios pode ser depreendido do seguinte relato: “Nos meses agora,

a gente tá sendo pressionado para vender produtos que os clientes não precisam e para

captar de quem não tem. Você tem que fazer, porque, se não fazer, tem quem faça”

(Bancário, 42 anos, 10 anos na profissão).

Quando a discordância, e, pior, a indiferença, não podem ser questionadas no

coletivo, enfrentadas, a saúde entra em risco. Quando o trabalhador perde sua autonomia

para responder pelo trabalho, pelo que nele acontece (sentindo-se muito mais um objeto

das circunstâncias, e não um sujeito – como no caso relatado sobre os motoristas de

ônibus), o trabalhador perde a própria noção do motivo de seu fazer. Nesse contexto, a

recuperação dos coletivos é um dispositivo fundamental de enfrentamento. Primeiro –

como já adiantamos na seção sobre as salas de espera –, pois o trabalhador sai da órbita

do cuidar de si, passando a ver outros na mesma situação. Segundo, ao assim se colocar,

pode articular-se a esses outros, cujo destino os aproxima, e passar para um nível de

afirmação da saúde que implica, necessariamente, o cuidado do outro, notadamente o

outro representado pelo ofício:

55

Eu fui tentar ver o que estava acontecendo. É só comigo? O problema está dentro

de mim? [...] Aí, eles [Sindicato] vieram e conversaram comigo: “Olha, não é não;

o negócio tá acontecendo. Você tá no miolo do furacão. Não é só você, outros

colegas seus que você nem sabe, mas esse já está afastado [...], demitido e

reintegrado”. (Bancário, 42 anos, 10 anos na profissão)

Portanto, para além de uma clínica do sofrimento do sujeito, o que se coloca é a

urgência em se sensibilizar e conscientizar os trabalhadores por dispositivos que os

implique e os afirme em seu próprio saber, para o destino comum a que todos estão

colocados, incluindo a própria organização – afinal, esta última é também constituída pela

atividade de outras pessoas – e, mais amplamente, a sociedade. Há necessidade de

consciência sobre o nível de cerceamento a que a própria atividade está sendo subjugada.

Considerações finais

Neste artigo, reforçamos a necessidade do cuidado com os ofícios, em

complemento, porém, com igual grau de importância, ao cuidado ofertado às pessoas

(trabalhadores), em uma perspectiva de reparação do bem-estar. Para isso, os coletivos de

trabalho podem centrar a discussão sobre o benfazer, os critérios e as tensões da atividade.

Conforme argumentamos anteriormente, quando se perde as margens de manobra sobre

a ação (autonomia sobre a atividade, a discussão e a controvérsia), amputa-se o poder de

agir do trabalhador, mas também o seu grau de manobra sobre o ofício, sobre sua sensação

de estar vinculado à realização de um trabalho benfeito. Um ofício adoecido não

potencializará saúde.

Priorizar a saúde ligada à raiz dos ofícios implica a escolha de perspectivas que

analisem o trabalho – o que, uma vez mais, não significa desconsiderar o sofrimento

individual do trabalhador, que, afastado de sua atividade de trabalho, enfrenta o

56

isolamento e uma luta solitária e impotente para garantir voz e veracidade ao seu

adoecimento.

O ofício precisa ser entendido como um operador de saúde – e, nele, os coletivos

de trabalho: dos provisórios (a exemplo da situação artificial da sala de espera) aos mais

extensos ou permanentes. Destacamos, também, a necessidade real de incorporar as

questões de saúde mental dos trabalhadores nas discussões e nas pautas das lutas sindicais

– sendo estes os coletivos organizados e instituídos, cuja missão é realizar esse tipo de

mediação. Esses coletivos organizados devem se colocar como um caminho para o

cuidado com o trabalhador, e necessariamente, com o trabalho, em uma conjuntura

contraditória e desafiadora, composta por modelos organizativos e relações de poder

desiguais e opressores.

Por fim, a disposição para dar voz e vida ao trabalho é um meio de proporcionar

ao trabalhador reviver sua experiência, reelaborar e renovar o desenvolvimento do ofício,

e, por conseguinte, contribuir para a restauração de sua saúde, quando efetivamente ocorre

a mobilização dos recursos do gênero profissional (nível transpessoal do ofício). A

manutenção de um ofício sadio é uma estratégia de promoção↔recuperação no campo

da ST, pois suas renormalizações e recriações permitem transformações nos processos de

trabalho em si, afetando o desenrolar da atividade desse trabalhador.

57

Referências

Athayde, M. & Souza, W. F. (2015). Saúde do Trabalhador. Dicionário de Psicologia do

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60

ARTIGO DOIS

Uma síntese do conceito de coletivos de trabalho nas clínicas do trabalho

RESUMO

As clínicas do trabalho apropriam-se da categoria coletivos de trabalho como operador

fundamental na relação saúde-trabalho-desenvolvimento. O artigo debruça-se sobre três

clínicas do trabalho: a psicodinâmica, a clínica da atividade e a psicossociologia do

trabalho – que, tradicionalmente, têm estudado e advogado os coletivos de trabalho como

dispositivo-chave para a compreensão, manutenção e afirmação da saúde dos ofícios.

Após uma breve apresentação do modo como cada uma dessas clínicas define coletivo,

oferecemos uma síntese provisória que emerge a partir da observação de pontos gerais de

convergência entre elas no tocante ao sentido dos coletivos. Nesta síntese, destacamos o

papel desses coletivos como fiadores da atividade (ao fornecer os recursos e os critérios

para a ação benfeita), como base para o estabelecimento da confiança, da cooperação e

do sentimento de pertencimento a um mesmo destino comum, que é captado pela ideia de

ofício.

Palavras-chave: coletivos de trabalho; clínicas do trabalho; ofício.

A synthesis of the concept of collective work at work clinics

ABSTRACT

The work clinics appropriate of the work collective category as fundamental operator in

the health-work-development relationship. The paper looks over three work clinics: a

psychodynamic, an activity clinic and a work psychosociology – which traditionally have

studied and advocated the work collective as a key device for understanding, maintaining

61

and affirming the crafts health. After a brief presentation of the how as each one of these

clinics defines collective, we offered a provisory synthesis that emerges from observation

of general points of convergence between them regarding to the collective meaning. In

this synthesis, it is noteworthy the role of these collective as guarantors of the activity (by

promoting resources and criteria for well-done actions) as a basis for establishing trust,

cooperation and the sense of belonging to the same common destiny, which is captured

by the craft idea.

Keywords: work collective; work clinics; craft.

Há muito se discute as dimensões sociais do trabalho. Dentre os aspectos dessa

sociabilidade, um em particular tem sido desenvolvido em torno do conceito de coletivos

de trabalho. Em diversas perspectivas teóricas em Psicologia do Trabalho, tais coletivos

têm sido apresentados como dispositivo-chave para o desenvolvimento de competências,

assim como de saúde (e.g., Athayde, 1996; Clot, 2006; Dejours, 1993; Guérin, Laville,

Daniellon, Duraffour, & Kerguellen, 2001; Leplat, 1994).

Contudo, coletivos de trabalho é um termo sujeito a sobreposições conceituais

que tornam sua definição desafiadora. Por exemplo, pode-se tomá-lo como algo associado

a uma reunião de pessoas que compartilham o mesmo espaço ou meio profissional,

quando então se pode falar de grupo ou equipe. Também pode ser tomado como

relacionado a um grupo organizado de trabalhadores visando à conquista de objetivos

comuns, no que seria definido como uma associação ou agrupamento institucionalizado.

Em contrapartida, no contexto das clínicas do trabalho (Bendassolli & Soboll, 2011), o

termo assume um lugar central nas elaborações teóricas propostas, a despeito de essas

clínicas não deverem ser tomadas como um todo homogêneo.

62

Neste artigo, discutimos as apropriações conceituais dos coletivos de trabalho na

perspectiva das clínicas do trabalho. Para isso, nossa análise começa pelo interior de três

clínicas em específico – conforme se verá na próxima seção –, e então prosseguimos com

uma perspectiva transversal, pela qual buscamos alguns pontos de convergência entre

elas. Na construção dessa análise transversal, levamos em conta mais diretamente o papel

dos ofícios (ou dos métiers, na nomenclatura francesa), operador teórico que pode

contribuir para uma interlocução entre as clínicas sobre coletivos de trabalho. Como

resultado final deste caminho lógico, finalizamos o texto com uma proposta de síntese

dos elementos centrais definidores dos coletivos com base nas três clínicas consideradas.

Os coletivos no interior das clínicas do trabalho

Nesta seção, propomos uma breve descrição dos sentidos atribuídos aos coletivos

de trabalho no interior de três clínicas: na psicodinâmica do trabalho, na clínica da

atividade, e na psicossociologia do trabalho.

Psicodinâmica do trabalho

A psicodinâmica do trabalho foi desenvolvida na França, a partir de 1990,

fortemente influenciada pela psicanálise e pela psicopatologia do trabalho, ao menos se

se leva em conta a perspectiva de Dejours (1993, 2004). Baseada em uma orientação

clínica, visa compreender e intervir nas diversas mediações que ocorrem entre o sujeito e

o real do trabalho. A Tabela 1 sintetiza algumas características-chave dessa abordagem.

63

Tabela 1

Características da Psicodinâmica do Trabalho

Características da Psicodinâmica do Trabalho

Objeto de estudo Estuda as relações dinâmicas entre a organização do trabalho e os

processos subjetivos, que se manifestam nas vivências de prazer e

sofrimento, e nas estratégias de ação para mediar as contradições

da organização do trabalho. Propõe uma análise sociopsíquica do

trabalho – e não, como se poderia pensar erroneamente, do

indivíduo (como em uma terapia). Parte da análise da organização

do trabalho para entender os processos de subjetivação – e,

reciprocamente, destes à transformação daquela.

Objetivos da

abordagem

Mobilizar os sujeitos para uma mudança na sua posição subjetiva,

implicando o repensar dos modelos de organização do trabalho

adotados. Seu alvo é a emancipação do trabalhador e a mobilização

política dos coletivos de trabalho.

Afiliações

epistemológicas

Influenciada pela Filosofia, Ergonomia, Sociologia e, notadamente,

Psicanálise. Para uma emancipação do sujeito do trabalho, faz uma

crítica ao trabalho prescrito (estudos recentes de psicodinâmica têm

enfatizado o papel da “transgressão” como estratégia de saúde).

Parte de um modelo de homem marcado pelo poder de resistência,

engajamento e mudança diante da dominação simbólica, social,

política e econômica presente nos contextos de trabalho.

Via metodológica Privilegia analisar as patologias e o adoecimento articulados ao

sofrimento no trabalho, bem como adensar a compreensão dos

processos que mobilizam o prazer. Para isso, usa como recurso

64

metodológico a enquete, a análise dos núcleos de sentido, e os

espaços coletivos de discussão. Princípios metodológicos básicos

incluem a escuta e a interpretação da fala, uma vez que se assume

que é pela palavra que o trabalhador torna visível o invisível. A fala

é interpretada em um espaço público, um meio de clarificar a rede

de relações que sustentam o trabalhador.

Principais

categorias

conceituais

Mobilização subjetiva: processo em que o trabalhador se engaja

pelo trabalho, recorrendo à subjetividade, à inteligência prática e ao

coletivo.

Sofrimento: pode ser patogênico ou criativo, dependendo da

mobilização psíquica gerada pela organização do trabalho. Quando

esta oferece espaço para uso da engenhosidade do trabalhador, e

essa contribuição é reconhecida pelos outros, o sofrimento

transforma-se em prazer, e fortalece a ST.

Organização do trabalho: forma pela qual as tarefas são definidas

e distribuídas pelos trabalhadores, a direção das prescrição, o

controle e a hierarquia.

Estratégias defensivas: regras de conduta, construídas pelo

conjunto dos trabalhadores, tendo como alvo suportar o sofrimento

sem adoecer.

Reconhecimento: modo específico de retribuição simbólica dada ao

sujeito como forma de compensação por sua contribuição aos

processos da organização de trabalho.

Nota. Adaptado de Dejours (2004), Mendes (2007), Mendes e Vieira (2014).

65

Clínica da atividade

Trata-se de uma perspectiva inspirada na Psicologia de orientação sociocultural, bem

como na psicopatologia do trabalho francesa. Tem como um de seus principais

formuladores Yves Clot (e.g., 2006, 2010a, 2010b). Entre outras expectativas, visa criar

subsídios para a transformação da atividade de trabalho com vistas ao desenvolvimento

tanto do trabalhador como do ofício (ou do gênero profissional). A Tabela 2 destaca

outros aspectos-chave da clínica da atividade.

Tabela 2

Características da clínica da atividade

Características da clínica da atividade

Objeto de estudo Estuda o trabalho como uma atividade dirigida, desempenhando

uma função psicológica específica na vida do sujeito. Parte do

princípio de que o trabalho “só preenche sua função psicológica

para o sujeito se lhe permite entrar num mundo social cujas regras

sejam tais que ele possa ater-se a elas” (Clot, 2006, p. 18).

Objetivos da

abordagem

Busca uma análise do trabalho embasada em uma perspectiva

dialógica do funcionamento psicológico e do desenvolvimento

humano. Considera o trabalho como uma atividade permanente de

recriação de novas formas de viver, não apenas como prescrições

da tarefa, mas como uma concepção desenvolvimental de fazer

parte de história de um ofício. Seu objetivo é ampliar a margem de

análise e escolha do sujeito sobre sua própria atividade, ampliando,

dessa maneira, seu poder de agir.

Afiliações

epistemológicas

Uma vertente que se filia à perspectiva Histórico-Cultural, fundada

por Vigotski e colaboradores, bem como à análise da linguagem

66

proposta pelo Círculo de Bakhtin. Influenciada por Ivar Oddone,

suas contribuições reportam-se à função psicológica do coletivo de

trabalho, buscando conhecer a maneira pela qual os operários

desenvolveram uma experiência e estruturaram seu

comportamento, compreendendo que a atividade individual

encontra seus recursos em uma história coletiva que retém,

capitaliza, valida ou invalida as estratégias de comportamento.

Via metodológica A análise psicológica do trabalho é sempre análise do sujeito, de

um grupo de trabalhadores, referente às atividades efetivamente

realizadas ou impedidas. O pesquisador/clínico é um coanalista

junto ao trabalhador. Busca-se tornar real e explícito um universo

de elementos implícitos por meio da desnaturalização da atividade

junto ao trabalhador. Para isso, faz uso das técnicas de instrução ao

sósia e autoconfrontação simples e cruzada (Clot, 2010a), métodos

que levem o sujeito a refletir sobre suas práticas profissionais. O

acesso ao real é sempre indireto-mediado, na medida em que ele

ocorre pela linguagem, via imagens registradas (videografadas)

sobre a realização da atividade.

Principais categorias

conceituais

A atividade é entendida como um tensionamento entre várias

atividades possíveis. Clot (2006) distingue a atividade realizada do

real da atividade. A atividade realizada é o que se faz, enquanto o

real da atividade consiste também no que não se pode fazer, mas

gostaria de fazer, e até mesmo no que se faz para não fazer aquilo

que deveria ser feito.

67

Contextos de desenvolvimento da atividade: a dimensão pessoal

refere-se à singularidade do sujeito na atividade, ao seu agir

individual; a interpessoal diz respeito à existência do outro, um

destinatário a quem seu agir se direciona; a transpessoal reporta-se

à atividade sendo atravessada pela história de um coletivo, das

circunstâncias socioculturais em que se ela insere; por fim, a

dimensão impessoal refere-se às normatizações planejadas para a

tarefa, e dizem respeito ao esforço de manutenção de um eixo de

prescrição para além das outras três dimensões.

O poder de agir refere-se ao raio de ação que os trabalhadores

dispõem no desenvolvimento da atividade; ao raio de ação efetivo

do sujeito em sua esfera profissional.

Nota. Adaptado de Clot (1999, 2006, 2010a).

Nessa perspectiva (e.g., Clot, 2010a), o coletivo de trabalho tem uma função

primordial na manutenção e no desenvolvimento do ofício. Ele dispõe ao trabalhador, na

forma de recursos para a ação, ferramentas para que ele possa realizar um trabalho

benfeito. Aqui, também o coletivo não é pensado, necessariamente, como um grupo

(espacial e temporalmente presente), mas como um outro transpessoal ao qual cada

membro do ofício recorre, para o qual contribui, pelo qual se orienta (internalização) e

graças ao qual se desenvolve. Clot (2010a) observa, por exemplo, que esse outro pode

estar dentro do indivíduo – daí sua ideia, inspirada em Vigotski, do coletivo no indivíduo.

A dimensão transpessoal abarcada pelo coletivo implica em um sistema dinâmico

que sedimenta saberes profissionais acumulados e guardados (cuidados) ao longo da

história do ofício. Clot (1999, 2010a) teoriza sobre a transpessoalidade do ofício ao propor

68

e destacar o conceito de gênero profissional – uma instância que é, ao mesmo tempo,

pessoal (localizada e disponível a um indivíduo), mas também, obviamente, coletiva –

tanto em um sentido proximal (um coletivo histórico e localmente situado) como distal

(o coletivo anônimo contido na história do gênero/ofício). O coletivo, contextualizado no

âmbito de um gênero, precisa, pois, ser aprendido, conservado e transmitido. Pelo

exposto, nota-se que o conceito de coletivo de trabalho e gênero profissional na clínica

da atividade estão intimamente relacionados.

Psicossociologia do trabalho

A psicossociologia, conforme elucidam Carreteiro e Barros (2011), consiste de

uma perspectiva interdisciplinar, cujo trabalho é fundamentalmente espaço de troca com

os outros, permitindo, como já havia discutido Clot (2006) a partir de Meyerson, “sair de

si”, construir e manter engajamentos, possibilitando ao sujeito inscrever-se em uma

história coletiva. Tanto a psicossociologia quanto a psicodinâmica do trabalho

pressupõem um indivíduo vinculado ao coletivo, ao afetivo e institucional, e aos

processos inconscientes e sociais para a compreensão das relações de trabalho nas

organizações. A Tabela 3 arrola características-chave dessa perspectiva.

69

Tabela 3

Características da psicossociologia do trabalho

Características da psicossociologia do trabalho

Objeto de estudo Investe na investigação das instâncias mediadoras entre o social e

o psíquico, notadamente grupos, organizações e instituições. O

objeto da análise são as relações entre o individual e o coletivo, o

psíquico e o social, o particular e o geral.

Objetivos Pretende ajudar os trabalhadores a analisar melhor as estratégias de

ação que podem desenvolver, assim como compreender as

consequências de suas tomadas de decisão. Para essa abordagem, é

na vida cotidiana que as transformações ocorrem (e.g., Carreteiro,

2001).

Afiliações

epistemológicas

Baseia-se em recursos teórico-metodológicos constituídos, ao

mesmo tempo, pela Psicologia Social Clínica e pelas Ciências do

Trabalho, especialmente a Psicopatologia, a Sociologia do

Trabalho e a Ergonomia da Atividade. No caso da influência da

Psicopatologia, destacam-se as de Sivadon e Amiel (1969), que

trabalha com uma clínica de distúrbios individuais; de Louis Le

Guillant (2006), que privilegia o peso das condições concretas de

existência e as incidências psicopatológicas das condições de

trabalho; e de Claude Veil (2012), que considera a história do

sujeito nos momentos em que ele adoece e, ao mesmo tempo, as

normas de trabalho em determinado ambiente – os teóricos acima

foram citados por Lhuilier (2014). Trata-se de manter juntos o

70

sujeito, em sua dinâmica psíquica, e suas inscrições sociais

contextualizadas e normatizadas (Lhuilier, 2014).

Via metodológica A intervenção psicossociológica tem como uma de suas posturas

metodológicas fundamentais a escuta dos sujeitos, dos grupos, e

dos coletivos. São eles que vão diagnosticar os conflitos, as crises

organizacionais e/ou institucionais. O processo interventivo é

cooperativo, voltado à intervenção in situ – algo herdado de Lewin

e sua proposta de pesquisa-ação que, por extensão, também é

intervenção-ação, intervenção-participante (Araújo, 2012).

Principais categorias

conceituais

Segundo Lhuilier (2014), a psicossociologia do trabalho implica

uma reavaliação do quadro teórico e metodológico da

psicossociologia sob o prisma dos conceitos de atividade, de ação

e de práxis. No caso da intervenção, os conceitos centrais incluem:

a demanda (solicitação endereçada ao psicossociólogo) e sua

distinção de encomenda (feita por quem ocupa uma posição de

poder), e a implicação (equilíbrio entre a simpatia-interesse e a

distância do objeto a ser pesquisado). Recentemente, toma o ponto

de vista da atividade para mediação das relações no mundo do

trabalho.

A concepção do trabalho não é somente como uma atividade, mas

também como uma instituição com dupla funcionalidade: social e

psíquica. O trabalho como instituição é uma formação da sociedade

e da cultura, mas também psíquica: mobiliza investimentos,

representações e valores que garantem as bases da identificação do

sujeito com as finalidades por ele definidas.

71

Nota. Adaptado de Araújo (2012), Carreteiro e Barros (2011) e Lhuilier (2014).

Não obstante o termo coletivos de trabalho não ser diretamente empregado pelos

autores da psicossociologia, podemos observar outros recursos teóricos em que a

dimensão coletiva é apreendida pela ação dos mediadores entre indivíduo e sociedade,

essencialmente o grupo, a organização e a instituição. Tomemos, em particular, a questão

dos grupos, especificamente na interface da psicossociologia com o trabalho.

Um trabalho produzido por Lhuilier e Litim (2010) merece destaque. Isso porque

as autoras fazem uma crítica pertinente, endereçada à própria tradição psicossociológica,

do que elas denominam de grupo sem trabalho, isto é, grupos para os quais o elemento

central seria as interações e, graças à influência da Psicanálise, observável na tradição da

psicossociologia, das forças reprimidas que impediam o funcionamento autônomo dos

grupos. Propõem, em vez disso, uma psicossociologia do trabalho que, ao abarcar uma

compreensão sobre os fundamentos da organização coletiva, coloca a atividade no centro

da atenção psicossociológica. Assim, os coletivos centram-se em torno tanto de processos

psicossociais inerentes ao campo das relações (inclusive pela mediação

institucional/organizacional), como, sobretudo, da realização (e do engajamento e da

mobilização) de uma atividade real.

Em linha similar, Amado (1999) já havia apontado que faltava aos dispositivos do

grupo centrado no grupo a questão da ação coletiva e dos processos psíquicos específicos

que são solicitados pela tarefa, pela atividade, pela organização produtiva, enfim, pela

realidade que se quer transformar. Embora reconhecendo que um coletivo se serve de

elemento definidor da vida grupal (Anzieu & Martin, 2003) – por exemplo, trocas,

afetividades, laços de solidariedade, diferenciações de papéis, normas comuns –, Lhuilier

e Litim (2010) observam que um grupo não é, necessariamente, um coletivo. O elemento

72

central para a constituição deste último é a existência de um trabalho coletivo – ou de

uma atividade deontológica. As autoras observam que tal atividade depende da formação

de compromissos instáveis com respeito às regras e ao como fazer, embora possam ser

modificadas e subvertidas a cada instante pelos membros do coletivo.

Elementos-chave: uma síntese provisória

Resguardadas as múltiplas diferenças internas às clínicas do trabalho (e.g.,

Bendassolli & Falcão, 2015), podemos, não obstante, identificar alguns elementos de

convergência e compartilhamento em torno do tópico dos coletivos de trabalho, tendo,

como base, uma revisão de trabalhos recentes produzidos por autores filiados a tais

clínicas (e.g., Clot, 2010a; Dejours, 2004; Lhuilier & Litim, 2010; Mendes, 2007; Mendes

&Vieira, 2014). Na Tabela 4, comparamos as três clínicas previamente discutidas vis-à-

vis sua definição de coletivos de trabalho.

Tabela 4

Conceituação de coletivos de trabalho pelas clínicas do trabalho

Clínicas do trabalho Definição de coletivos de trabalho

Psicodinâmica do

trabalho

Para essa abordagem, o coletivo de trabalho funcionaria como

um regulador do sofrimento derivado da relação do sujeito com

o real. O coletivo refere-se à prática de construção comum de

regras de trabalho, de acordos normativos, técnicos e éticos

entre os trabalhadores sobre os seus modos de trabalhar e sobre

suas formas de enfrentar as resistências do real do trabalho.

Dejours retoma Cru (1987) ao apontar que coletivo é entendido

não como um ente, um ser, mas com um evento, um

acontecimento que ocorre quando “vários trabalhadores

73

concorrem a uma obra comum, no respeito a regras”. Assim,

um trabalhador, mesmo isolado, jamais está só, face ao seu

trabalho; ele está sempre frente a regras e leis

(fundamentalmente não escritas) que transcendem a esfera da

hierarquia. O papel do coletivo consiste no fornecimento de

ferramentas que permitam aos trabalhadores exercer suas

atividades com mais segurança – o que Dejours, retomando

Cru (1987), denomina saberes de prudência.

Clínica da atividade Para essa abordagem, o coletivo é o ofício como história

comum, do gesto partilhado a ser transmitido por herança como

história coletiva do pensar sobre o trabalho. Clot (2010a), ao

tratar do conceito, se inspira em Oddone, na medida em que

anuncia a importância do coletivo não somente como um meio

de experiências compartilhadas entre seus membros, mas,

sobretudo, como um processo que foi transmitido ao longo da

história profissional desse coletivo.

Assim, para a clínica da atividade, o coletivo de trabalho

carrega as características do gênero profissional, sendo este o

instrumento coletivo da ação, quando o sujeito, por meio de

suas criações pessoais, ultrapassa o prescrito, podendo, assim,

contribuir para o gênero. É compreensível, pois, que o

enfraquecimento dos coletivos de trabalho se apresente como

indicador de saúde/sofrimento no trabalho, pois o indivíduo

perde a possibilidade de participar de espaços de debate sobre

os critérios de um trabalho benfeito (Clot, 2010a), e perde o

74

acesso ao saber coletivo que o orienta e suporta. Sem tais

critérios coletivamente compartilhados, o trabalhador entra no

dilema de como deveria realizar seu próprio trabalho.

Psicossociologia do

trabalho

Nessa abordagem, os coletivos de trabalho podem adquirir

modos de funcionamento variados, sem a necessidade da

presença física de todos que o compõem, não se limitando,

pois, à operação presencial e conjunta na realização de uma

tarefa. Lhuilier (2006) afirma que não é determinante a

copresença ou o pertencimento formal, mas a cooperação

manifestada e o sentimento de pertencimento que liga cada um

dos trabalhadores em uma unidade de trabalho. O coletivo faz

a mediação do sujeito com a organização, mas não se limita à

ação instituída, como, por exemplo, na representação sindical.

O coletivo está em cada indivíduo trabalhador, mas, para

continuar vivo, precisa da alteridade dos pares (Lhuilier &

Litim, 2010).

Nota. Adaptado de Clot (2010a), Cru (1987), Lhuilier (2006), Lhuilier e Litim (2010).

Podemos identificar o trabalho coletivo, a confiança, a cooperação, a visibilidade,

a construção de um espaço de discussão, e o pertencimento a um ofício (e gênero) como

os principais demarcadores conceituais de um coletivo na convergência das três clínicas

em questão. A seguir, detalhamos cada um desses elementos teóricos.

O trabalho coletivo reflete, de um lado, a própria natureza da atividade de

trabalho, uma vez que esta é direcionada não só para a atividade própria de cada

trabalhador, mas, especialmente, à atividade do outro. Não é incomum que o trabalho só

75

seja possível (ou se torne bloqueado, impedido) devido ao compartilhamento de

atividades – por exemplo, na assertiva “dependo da atividade do outro para executar a

minha”. Por outro lado, mais uma vez, é preciso destacar que o trabalho coletivo não

deveria ser tomado apenas pelo seu valor de face, isto é, pela existência de trabalhadores

agindo juntos (como em um grupo ou equipe, no linguajar organizacional). O aspecto

decisivo, na perspectiva das clínicas aqui inventariadas, é de que os próprios membros do

coletivo se sintam ou se vejam como os efetivos organizadores de seu próprio trabalho, e

invistam no espaço coletivo como seu espaço.

A cooperação está relacionada à capacidade de construção de laços pelos atores,

centrados em torno de uma atividade comum. A cooperação não é algo que se possa

prescrever: ao contrário, ela é parte constituinte dos coletivos desde seu nascimento

(Figueiredo & Athayde, 2005). O agir cooperativo está baseado na construção de

identificações mútuas (Caroly, Loriol, & Boussard, 2006), na solidariedade derivada de

um destino comum diante do processo de enfrentamento do real (Dejours, 2004). Para

Mendes e Vieira (2014), a cooperação não equivale ao coleguismo, mas sim à construção

de acordos para melhorar as prescrições da organização do trabalho, e para permitir e

lastrear o reconhecimento pelos pares. A construção dos laços de cooperação depende de

um compartilhamento mínimo de modos de trabalhar, o que implica relações de

confiança e espaços para confrontação de opiniões sobre a organização do trabalho

(Nascimento, Vieira, & Araujo, 2012). Da confiança nascem as condições para a

controvérsia, elemento-chave na construção conjunta de um sentido de trabalho benfeito

(Clot, 2010a).

A visibilidade, por sua vez, implica tornar inteligível o trabalho para o outro. Essa

ação não segue, porém, sem risco. O risco consiste em expor informações ao outro que

podem ser sensitivas, que demandam confiança. A visibilidade desoculta o trabalho real,

76

seus dilemas e paradoxos, e limites do prescrito (Cruz-Lima, 2013; Lhuilier, 2006). A

confiança não remete às competências técnicas e psicológicas, mas, sobretudo às

competências éticas, à promessa de equidade dos julgamentos das informações

pronunciadas pelo outro.

Sobre os espaços públicos de discussão, Dejours (1993) alude à possibilidade de

trabalhadores e hierarquias criarem uma arena na qual possam discutir e questionar as

insuficiências da organização do trabalho. Mais uma vez, um pré-requisito para que esses

espaços cumpram efetivamente o seu papel é que existam relações de confiança,

possibilitando a comunicação intersubjetiva, a demonstração dos modos de fazer e de

proceder de cada um e, por fim, a elaboração de um referencial comum que paute as

escolhas individuais.

Por fim, embora a existência dos coletivos não dependa, como condição inexorável,

da presença física de seus membros, eles dependem de um sentimento de pertença a um

ofício (Clot, 2006; Lhuilier, 2006). É justamente esse sentimento que permite ao gênero

operar como fiador do desenvolvimento dos trabalhadores, tanto em termos de

competências, como em termos de afirmação de seu poder de agir, de sua saúde (Clot,

1999, 2010a). O gênero, esse coletivo transpessoal internalizado, age como uma voz

interior (ou conjunto de vozes), que dá o tom e auxilia no desenvolvimento da atividade.

Porém, não se trata de pertencer a uma profissão, no sentido de um corpo regulado

institucionalmente, mas de um ofício, de um gênero de ação e de vinculação com o real a

ser transformado por meio do trabalho. Aqui, o ofício é pensado como a base de

manutenção dos coletivos, de seus modos de existir e de se conservar.

77

Implicações e perspectivas

As apropriações pelas clínicas sobre os coletivos de trabalho, independentemente

de suas raízes epistemológicas, compartilham o fato de que esse constructo exerce um

papel-chave na compreensão do trabalho, especialmente no tocante à afirmação da

potência de ação e de saúde. Neste artigo, objetivamos apresentar uma síntese, baseada

em pontos de convergência entre três das referidas clínicas, de modo a servir de subsídio

para processos de intervenção nos contextos de trabalho. De fato, pesquisas em clínica do

trabalho têm, reincidentemente, apontado para os desafios que os coletivos de trabalho

têm enfrentado na atualidade (para uma síntese, ver Clot, 2010b). Se é para o psicólogo

do trabalho intervir em situações em que a atividade de trabalho esteja impedida, levando

ao adoecimento e à desmobilização psíquica, então, os coletivos deveriam comparecer

como dispositivo de interesse nesse intento. Recuperar a dimensão coletiva do trabalho e

o desejo de trabalhar com é um desafio inescapável para o clínico do trabalho nas atuais

condições do mundo do trabalho, com sua tendência à fragmentação das relações e

isolamento dos trabalhadores.

Chamamos igualmente a atenção, repetidas vezes, sobre a necessidade de não se

sobreporem – como amiúde ocorre na Psicologia das Organizações – os conceitos de

grupo/equipe ao de coletivo. Embora possam lidar com facetas similares do mesmo

fenômeno, tais conceitos referem-se, no plano mais óbvio, a bases teóricas e históricas

diferentes, como também, no plano prático, a distintas formas de intervenção. Enquanto

autores de grupos e equipes tratam de temas como team building, por exemplo (e.g.,

Clevenger, 2007), quando se consideram as clínicas que aqui realçamos, a intervenção

implica construir um processo de coanálise do próprio trabalho e inserção em um gênero

(clínica da atividade), ou então a construção de um espaço de fala e escuta que tenha,

como mote central, os dilemas compartilhados acionados pelo confronto dos

78

trabalhadores com o real e que levam ao sofrimento ou ao potencial desmobilizador

(psicodinâmica do trabalho).

Uma implicação adicional das ideias que discutimos neste artigo refere-se à

dimensão afetiva dos coletivos. O desejo, a vontade ou a disposição para investir em um

trabalho compartilhado não depende de percepções sobre ganhos instrumentais

relacionados à força da maioria, mas a ganhos – se assim se pode dizer – no campo do

pertencimento subjetivo a um destino comum circunscrito pelo ofício. Ora, não à toa,

talvez uma das mais violentas ameaças à saúde nos contextos de trabalho hoje seja a

fragilização dos ofícios. O que isso significa, na prática?

Primeiro, que a ideia (ou seria ideologia?) de que a atividade de trabalho se resuma

à carreira individual, e à aquisição de habilidades e competências individuais para se

enfrentar, novamente de modo pretensamente individual, o “mercado de trabalho”.

Segundo, que na linguagem individualizante que vivemos hoje, a dimensão do ofício, do

gênero, seria, na melhor das hipóteses, traduzida como profissão ou ocupação – ou, o que

é pior, como algo relativo a movimentos organizados, tais como sindicatos. Tampouco o

espírito de grupo ou de equipe seriam equivalentes ou poderiam suplantar, em termos de

suas funções psicológicas, o papel exercido pelos ofícios. Mais que versões transmutadas

e atualizadas das antigas corporações de ofício, ofícios referem-se a um construir que é,

em sua essência, coletivo, social. Em última instância, o ofício seria o fiador dos coletivos.

Se não há esse fiador representado pelo ofício, resta, então – para dizer como Clot

(2010a) –, a dúvida e incerteza sobre os critérios de um trabalho benfeito. A mentalidade

gerencial tenta suplantar essa ideia central de qualidade por métricas tipicamente

organizacionais, mas essa faceta da qualidade não captura o poder do ofício e dos

coletivos na consubstanciação de regras, normas e procedimentos avaliativos e que sejam

capazes de honrar a memória do gênero em questão. Assim, finalizamos com o alerta de

79

que, sob a fragilização ou mesmo destruição dos coletivos, o que vemos é o trabalhador

ingressando em um dilema profundo sobre os critérios (estéticos, práticos, etc.) de como

realizar seu trabalho. Restar-lhe-á, nesse caso, a via do reconhecimento interpessoal, ou,

ainda mais restritivamente, do reconhecimento de seus grupos primários de

pertencimento (família, por exemplo). Sem a recuperação da função mediadora dos

coletivos, dentro do ofício e do seu gênero, veremos não só a manutenção do sofrimento

no trabalho (solitário e frio), mas a vaporização dos critérios sobre o que significa

trabalhar, seu propósito, direção e estética (trabalho benfeito).

80

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83

ARTIGO TRÊS

Coletivos de trabalho e a produção de saúde dos ofícios

Coletivos de trabalho e saúde

Work Collective and the production of crafts health

Work Collective and health

Colectivos de trabajo y la producción de salud de los oficios

Colectivos de trabajo y salud

RESUMO

Neste artigo, propomos, inicialmente, uma releitura conceitual dos coletivos de trabalho

baseado nos sistemas de identificação, partilha de valores e debates de normas. A partir

dessa análise, inspirada nas clínicas do trabalho, apresentamos um modelo que visa

identificar os elementos-base de constituição dos coletivos (relações com o ofício,

mobilizações afetivas, reconhecimento e dialogicidade). Realizamos a pesquisa em duas

etapas: uma de aproximação do campo com as atividades em grupo na sala de espera do

serviço e entrevistas semiestruturadas; e entrevistas clínicas, transformadas em casos

clínicos – foco deste estudo. Esse modelo foi ilustrado por meio de casos clínicos reais,

que permitem destacar o modo de funcionamento dos coletivos como mantenedor, ou

não, da sobrevivência e do desenvolvimento de um ofício sadio. Por fim, alertamos para

a necessidade de os trabalhadores serem organizadores de seu próprio trabalho, acionando

os coletivos em seus elementos potencializadores de desenvolvimento e saúde.

Palavras-chave: coletivos de trabalho; clínicas do trabalho; saúde e trabalho.

84

ABSTRACT

This paper initially proposes a conceptual re-reading of the work collective based on the

systems of identification, value sharing and standards debates. From this analysis through

work clinics, a model is presented as a way of understanding the basic elements of the

collective constitution (relationships with craft, affective mobilizations, recognition and

dialogicity). The activities were conducted in the fases: approach of the field with the

group activity in the waiting room of the service and semi-structured interviews and

clinical interviews, that are the focus of this study. Such model was illustrated trough real

clinical cases what allow us to highlight that the way of collective operation can make it

maintainer or not of the survivor and develop a health craft. Finally, it alerts to the

individuals need to be as organizers of their own work so the collective work give its

signs of expressiveness, putting in action itself (work collective) and craft in the process

of health production.

Keywords: Work collective, work clinics, health and work.

RESUMEN

Inicialmente, este artículo propone una relectura conceptual de los colectivos de trabajo

basándose en los sistemas de identificación, en el compartir valores y en debates de

normas. A partir de ese análisis, inspirado en las clínicas del trabajo, se presenta un

modelo que pretende identificar los elementos básicos que constituyen a los colectivos

(relaciones con el oficio, movilizaciones afectivas, reconocimiento y dialogicidad). La

investigación fue realizada en dos etapas: una de aproximación al campo con actividades

en grupo en la sala de espera del servicio y entrevistas semidirectivas, y entrevistas

clínicas, transformadas en casos clínicos, foco de este estudio. Tal modelo fue ilustrado a

través de casos clínicos reales que nos permiten destacar que el modo de funcionamiento

85

de los colectivos puede convertirlos en mantenedores, o no, de la sobrevivencia y del

desarrollo de un oficio sano. Finalmente, se alerta sobre la necesidad de que sean los

trabajadores quienes organicen su propio trabajo, accionando a los colectivos en sus

elementos potenciadores de desarrollo y salud.

Palabras-clave: colectivos de trabajo; clínicas del trabajo; salud y trabajo.

Neste artigo, propomos um modelo teórico sobre coletivos de trabalho,

contemplando sua definição e seus componentes, tomando como base inicial os pontos

de convergência das clínicas do trabalho; então, consideramos seus desdobramentos, a

partir da sistematização já existente sobre tais coletivos – proposta por Moraes e Athayde

(2014). Inicialmente, apresentamos a interconexão entre os coletivos e os processos de

saúde-adoecimento no trabalho. Em seguida, introduzimos o modelo expandido de

coletivo (Moraes & Athayde, 2014), no qual se destaca o papel dos ofícios (ou dos

métiers, alusão francesa). Por fim, após apresentarmos esse modelo expandido,

aprofundamo-nos no papel dos coletivos frente aos processos de saúde-adoecimento no

trabalho. Para desenvolver este último tópico, apresentamos estudos de caso conduzidos

com trabalhadores afastados por adoecimento no trabalho e que, no momento da pesquisa

que deu origem a este artigo, estavam em acompanhamento em uma das unidades de

referência em ST (CEREST) em uma capital do nordeste brasileiro.

Coletivos de trabalho e saúde

Atualmente, a intensificação do trabalho é um aspecto importante para se

compreender o desmantelamento dos coletivos de trabalho. Para Pina e Stotz (2014), essa

intensificação ocorre em contexto de forte orientação para a individualização do

trabalhador (metas e desempenho sendo avaliados individualmente, contra um cenário de

86

intensa cobrança por resultados), que pressiona e dificulta a capacidade coletiva de

enfrentamento dos trabalhadores diante da organização do trabalho. Destaca-se que, na

esteira do enfraquecimento dos coletivos, derivam-se problemas de saúde, tais como as

patologias relacionadas à solidão e à falta ou às fragilidades dos processos de

reconhecimento e suporte mútuo (Lhuilier, 2006).

A última observação poderia nos levar a indagar, como o fez Clot (2013), se então

deveríamos nos “voltar ao coletivo”, isto é, tentar reconstruí-lo, ou investir mais em seu

desenvolvimento, ainda que em condições potencialmente adversas nos contextos de

trabalho contemporâneos, com sua lógica de gestão individualizante. Paradoxalmente,

para Clot, a resposta não parece ser direta, considerando que há “coletivos e coletivos”.

De um lado, prossegue o autor, a idade “mítica” do que ainda hoje temos como um ideal

de coletivos está localizado no passado remoto das corporações de ofício. Porém, por

outro lado, sequer tais corporações poderiam (ou deveriam) ser tomadas como oásis para

a ST. O autor observa que elas tinham, ao contrário, efeitos deletérios, como a rigidez e

a imutabilidade, e uma coesão que dificilmente permitiria a instalação da controvérsia ou

do debate sobre as normas do trabalho, entre outros aspectos.

Se a resposta não é direta, não significa que devamos pôr o papel dos coletivos de

lado em relação ao debate sobre saúde no trabalho. Primeiramente, temos – talvez como

representação social – a imagem de que saúde é algo que só podemos viver ou possuir no

âmbito privado: “minha saúde”, “sua saúde”. A conjugação da saúde no plural (“nossa

saúde”) é, talvez, mais sutil e, por isso, difícil de observarmos. Em segundo lugar, há a

tarefa de se explicitar qual noção de coletivo reside de trás de nossas teorizações sobre o

tema. Por exemplo, seria o coletivo um agregado de pessoas, relativamente

interdependentes, como se capta em termos como grupo ou equipe? Um grupo de

trabalhadores deve, pois, não só se coordenar mutuamente, como elaborar e articular o

87

processo coletivo implicado em sua atividade, ela também, em graus variados, coletiva.

Seria, pois, os coletivos um proxy ou representante de grupos ou equipes?

Inspirando-nos em abordagens das clínicas do trabalho (Bendassolli & Soboll,

2011; Lhuilier, 2006), podemos pensar à concepção de saúde e sua relação com o coletivo,

que a coparticipação no trabalho, pela qual o trabalhador pode vivenciar conjuntamente

os desafios, as rupturas ou as “traições” do real da atividade (Bendassolli & Gondim,

2016), decerto é um elemento ou um dispositivo de afirmação de saúde – aqui entendida

como vinculada não a um projeto solitário de construção de mundo, mas a uma ação

concatenada, compartilhada, inscrita em um mesmo gênero profissional (Clot, 2006,

2010a, 2010b).

No último tópico, remetemo-nos a uma característica-chave dos coletivos em sua

relação com a saúde: o fato de o coletivo, tanto o internalizado como o organizado no

aqui e agora, servirem como um fiador, um orientador, um garantidor, por assim dizer, da

atividade individual (Clot, 2010a, 2013). A saúde, como a doença, quando pensada contra

o pano de fundo do trabalho, não é, jamais, uma aventura solitária, se partirmos do

princípio de que a atividade é o que a sustenta. Clot (2010a, 2010b) observa que atividade

é saúde, é a ação de produzir um contexto para viver. É nesse cenário de íntima ligação

entre saúde e trabalho, como exercício de engajamento de si em uma atividade que é, em

sua essência, coletiva, que, na sequência, dedicamo-nos a um esforço de sistematização e

definição conceitual dos coletivos de trabalho.

Coletivos de trabalho: um esforço de síntese

Recentemente, Moraes e Athayde (2014) avançaram na sistematização dos

elementos que compõem um coletivo de trabalho. O coletivo é ali também relacionado às

atividades de trabalho no interior do ofício, atravessado por sistemas de identificação,

88

partilha de valores e debates de normas. Fazendo uma síntese, aqueles autores propõem

sete elementos centrais do que poderíamos aqui tomar como um modelo teórico sobre

coletivos de trabalho:

1. A existência de vários trabalhadores em presença, trabalhando em uma obra em

comum, partilhando regras de ofício (que não são sinônimo de regulamentos

prescritos, ou normas – Cru,1987). Aqui é importante enfatizarmos a dimensão

do aqui e agora como definidora de um coletivo, ao contrário do que

complementamos no item seguinte, relativo à “presença internalizada”, por assim

dizer, dos coletivos;

2. A ocorrência de princípios de gênero da atividade profissional, o que remete a

um substrato transpessoal de conhecimentos, valores, discursos e uma memória

impessoal que sedimenta, organiza e configura o meio do qual o trabalhador irá

se apropriar para executar as suas tarefas, permitindo o intercâmbio entre si e os

demais companheiros (Clot, 2006). Como dissemos anteriormente, esse aspecto

do coletivo reenvia à dimensão não propriamente presente, derivada da

convivência no aqui e agora, mas resgata os aspectos mediadores, transmitidos na

cultura de ofício, de outros distantes que, ao terem se engajado com a atividade

no passado, contribuíram com seu estoque de procedimentos, normas, etc.;

3. Uma determinada linguagem de ofício, partilhada pelos trabalhadores e eliciada

em discursos mais ou menos comuns (Boutet, 1993, 1998, citados por Moraes &

Athayde, 2014). Este item faz menção à dimensão linguageira dos ofícios. A

linguagem é, de fato, um mediador privilegiado da atividade, e não se refere

apenas a um “discurso sobre”, mas à dimensão demiúrgica, operativa, da palavra;

89

4. A existência de uma psicodinâmica do reconhecimento (Dejours, 2002, 2004,

2012), referindo-se ao julgamento, especialmente o estético, empreendido pelos

pares;

5. Existência de um espaço público interno de discussão, de confiança e cooperação

entre pares. Esse espaço é o que permite o debate e a introdução da controvérsia.

Sem esta última, diria Clot (2006), não há espaço para a renovação do gênero, em

outras palavras, para a criação de novas formas de lidar com o real da atividade

ou com a atividade real;

6. Um determinado período de tempo, e certa constância nos contatos transcorridos

entre os que permanecem em uma profissão (Clot, 2006; Dejours, 2004);

7. Proximidade dos modos que enfrentam os desafios da vida; a existência de

engajamentos subjetivos e a explicitação de prazeres, sobretudo perante aquilo

que Cru (1987) denomina “arte de viver”.

Ampliando a sistematização

Os elementos elaborados por Moraes e Athayde (2014), sem dúvida, ajudam-nos

a sistematizar um aporte teórico sobre os coletivos, no cruzamento das várias clínicas do

trabalho. Contudo, nesta seção, propomos uma ligeira ampliação do leque de tais

elementos. Mais especificamente, sugerimos a inclusão de uma nova característica,

baseada no tangenciamento dos coletivos pela dimensão do ofício (métier). Isto porque

assumimos a premissa de que o trabalhador faz parte de um coletivo na medida em que

se sente pertencer a um ofício. Situação diferente ocorre em seu acesso a grupos ou

mesmo equipes de trabalho, estes mais localizados – por vezes delimitados pelas

fronteiras de uma organização em específico.

90

O coletivo, como dissemos anteriormente, se estabelece como o fiador do gênero,

da memória transpessoal de cada ofício. E o gênero, por sua vez, informa os coletivos

sobre os critérios de um trabalho benfeito – única forma de honrar o gênero, de o preservar

e expandir. Donde nossa proposta:

8. A possibilidade de realizar um trabalho benfeito (Clot, 2006, 2010). Consiste na

possibilidade de se promover um debate sobre os critérios definidores dessa

qualidade, que são operados no e pelos coletivos de trabalho.

Afora o acréscimo desse novo elemento, também propomos um esquema

ilustrativo (Figura 1) buscando as possíveis inter-relações das bases dos coletivos de

trabalho, as quais propomos a seguir e em torno das quais igualmente propomos a

aglutinação de seus oito elementos constituintes. As bases são das relações com o ofício,

das mobilizações afetivas, do reconhecimento e da dialogicidade.

Figura 1. As inter-relações dos elementos constituintes dos coletivos de trabalho.

Dialogicidade

(IV)

Reconhecimento (III)

(II) Mobilizações

afetivas

Relações com o Ofício (I)

91

A base das relações com o ofício

A base I, das relações com o ofício, do sentimento de pertencimento, congrega

elementos de compartilhamento das regras do ofício (item 1 da lista apresentada na seção

anterior), os princípios do gênero profissional (item 2), a linguagem particular de cada

ofício (item 3), o tempo de atuação no meio profissional (item 6), e a noção de trabalho

benfeito (item 8).

O ofício se define tanto em um nível sociológico quanto psicológico.

Sociologicamente, Clot (2010a) embasado em Osty (2003), aponta três instâncias do

ofício: o profissionalismo; a socialização dos saberes; e a estabilização de regras na

elaboração de competências específicas, que permitem acesso à identificação profissional

e à edificação das regras sociais da profissão. Psicologicamente, o ofício faz parte do

indivíduo quando ele assume a responsabilidade por um ato (Bakhtine, 1984), embora

este ato seja atravessado por outros. Envolve um apropriar-se do ato, sem jamais ser seu

proprietário, pois se trata de um ato coletivo, compartilhado por outros profissionais do

mesmo ofício.

A base das mobilizações afetivas

A segunda base, denominada de mobilizações afetivas (II), refere-se,

essencialmente, aos laços de confiança e cooperação, aglutinando os elementos:

existência de um espaço público de discussão, condicionado à existência de cooperação

e confiança entre os pares (item 5), o engajamento subjetivo e expressão de prazeres (item

7), e a noção de trabalho benfeito (item 8). Em nosso cotidiano, somos mobilizados pelo

fato de nos relacionarmos com outros. Somos afetados porque temos um corpo; também

afetamos os outros pela mesma razão. Podemos agir passiva ou ativamente. No caso dos

coletivos, os afetos têm papel de mobilização, de fazer com que o já vivido se torne objeto

92

de outra vivência (Clot, 2010a). É nesse espaço moldado pela confiança e cooperação que

a atividade é afetada, no sentido de ações ativas da parte dos sujeitos, mobilizadoras.

Algo similar, embora por outras entradas teóricas, foi intuído por Dejours (2004)

quando ele afirma que o trabalho não é só produzir, mas viver junto, donde a importância

da cooperação. Adicionalmente, esse viver compartilhado não é algo evidente, que surge

por si: ele supõe a mobilização da vontade dos trabalhadores visando a conjurar a

violência nos litígios ou os conflitos que podem nascer de desacordos entre as partes sobre

as maneiras de trabalhar, sobre os critérios de um trabalho benfeito.

A partir de Spinoza3, Clot (2010a) também discorre sobre o papel do afeto. Para

ele: “(...) o esforço para desenvolver o poder de agir não está separado de um esforço para

elevar, ao grau mais elevado, o poder de ser afetado” (p. 31). Assim, para Clot (2010a) o

afeto é um elemento vital da construção dos coletivos, na medida em que a presença dos

afetos positivos (que aumentam a potência do agir) dão consistência ao vínculo. Por sua

vez, esses afetos relacionados aos vínculos dos coletivos alimentam as relações de

confiança e cooperação.

A base do reconhecimento

A base do Reconhecimento (III) aglutina os elementos da psicodinâmica do

reconhecimento (item 4), a noção do trabalho benfeito (item 8), e o gênero profissional

(item 2). Em que consiste o reconhecimento? Na psicodinâmica do trabalho, esse depende

dos julgamentos sobre a qualidade do trabalho, recaindo sobre o fazer, e não sobre a

pessoa (Dejours, 2009). Esse julgamento assume duas formas: a de utilidade, que é

realizada pela hierarquia; e a de beleza ou estética, que é conduzida pelos pares. Enquanto

3 Neste estudo, fazemos uma leitura a partir de Clot, de modo pontual e circunscrito aos esforços cabíveis

para relação proposta (poder de agir-afeto). Reiteramos que o estudo em profundidade das obras

Spinozanas, aqui não contempladas, podem ser abordadas em estudos posteriores para a real amplitude que

as interações conceituais sobre afeto merecem.

93

o primeiro atende ao desejo de ser útil, o segundo gera um sentimento de pertencimento

a um coletivo de trabalho.

O reconhecimento, tanto pela mediação do outro como pela inscrição do sujeito

em uma história coletiva, permite a passagem do sofrimento, inerente ao confronto com

o real pelo e no trabalho, ao prazer, uma vez que dá sentido a esse confronto. É por isso

que Dejours (2009) vincula o reconhecimento à sublimação, e esta, ao que ele denomina

de deôntica do fazer: a implicação do sujeito na elaboração e na discussão das regras de

cooperação no trabalho, sobre as quais se baseiam os critérios de julgamento da qualidade

do fazer.

Importante realçarmos que, quando comparadas, a psicodinâmica do trabalho e a

clínica da atividade têm posturas distintas sobre a questão do reconhecimento e sobre as

consequências de sua ausência (Bendassolli, 2012). Para a clínica da atividade, o

reconhecimento não ocorre apenas no nível interpessoal (relação sujeito-trabalho

mediada pelo outro – como na psicodinâmica), mas especialmente no nível transpessoal,

isto é, na relação gênero/ofício. Essa diferença carrega um posicionamento teórico

segundo o qual o ofício não se resume, apenas, a uma comunidade de cooperação e

pertencimento, mas engloba a história do coletivo em cada trabalhador, ou seja, ele é um

interlocutor coletivo interno, um recurso de que dispõe o sujeito para agir (Clot, 2006,

2010a). Para Clot, o reconhecimento refere-se à possibilidade de o sujeito reconhecer-se

naquilo que faz, no contexto de um determinado gênero profissional. Assim, na

perspectiva da clínica da atividade, como o ofício está dentro do indivíduo, não haveria

necessidade vital de um reconhecimento somente pelos pares, já que o próprio sujeito

estaria posicionado de modo a julgar se o que está fazendo atenderia aos critérios de um

trabalho benfeito. Não se trata de um julgamento individualista, porém Clot (2010a)

observa que, na ausência desse interlocutor interno, resta ao pseudocoletivo recorrer às

94

estratégias interpessoais de reconhecimento, muitas vezes baseadas em julgamentos de

indivíduos que convivem entre si em uma equipe – sem, necessariamente, constituírem

um coletivo de trabalho. Clot (2006) vai além ao sugerir que o sujeito busca o

reconhecimento do outro no nível interpessoal (pares ou superiores) quando já não pode

se reconhecer no ambiente do ofício – e tal reconhecimento torna-se, assim, um

reconhecimento sem raízes.

A base da dialogicidade

Por fim, na base da dialogicidade (IV) temos a aglutinação dos elementos do

espaço público interno de discussão (item 6). Aqui, o dialogismo aparece como elemento

central. Essa base está, como se nota pela Figura 1, em íntima conexão com o sentimento

de pertencimento ao ofício, conectando-se, pois, com os elementos que se relacionam ao

ofício em si: o compartilhamento das regras (item 1), o gênero profissional (item 2) e a

linguagem (item 3). A dialogicidade refere-se à criação de espaços de discuss-ação sobre

as possibilidades e os impedimentos da ação diante das mobiliz-ações do fazer

profissional.

Bakhtin (1997) contrasta a noção de diálogo com a de monólogo. Ele ainda

distingue o monólogo do diálogo a partir do conceito de vozes. O primeiro é constituído

de apenas uma voz, enquanto o diálogo é composto por duas ou mais vozes. O monólogo

é um discurso que reconhece somente a si mesmo e o seu objeto, não considerando a

palavra do outro, ao passo que o diálogo leva em conta a palavra do(s) interlocutor(es) e

as condições concretas da comunicação verbal.

Nessa mesma linha, Brait (1996) sintetiza de maneira elucidativa a dupla função

do dialogismo bakhtiniano: o dialogismo diz respeito ao permanente diálogo, nem sempre

simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos que configuram uma

95

comunidade. É nesse sentido que podemos apontar a necessidade do dialogismo como

um dos elementos centrais nos coletivos de trabalho, que podem compartilhar de uma

linguagem de ofício comum, mas divergirem sobre os modos de fazer do ofício, na

medida em que, ao trabalhar no contexto de um coletivo, os trabalhadores são,

paradoxalmente, ao mesmo tempo atores de seus próprios atos (estilizando, como diz

Clot, 2010a, suas ações), mas coagentes de um ato coletivo (a atividade propriamente

dita).

Em suma, o dialogismo refere-se às características interacionais e contextuais do

discurso humano, da ação e do pensamento. Podemos definir esse discurso como uma teia

constituída de muitas vozes ou de outros discursos, que se entrecruzam, se completam,

respondem uns aos outros, e discordam entre si. Nos discursos, falam diferentes vozes

com posicionamentos ideológicos semelhantes ou contraditórios. Nesse sentido, os

coletivos de trabalho se constituem nas relações dialógicas, pelas quais os sentidos do

ofício vão emergindo. Para Bakhtin (1997), a pessoa só se tornaria consciente de si mesma

na medida em que se revela ao outro, por meio do outro e com a ajuda do outro. Logo, o

dialogismo refere-se ao princípio da alteridade que norteia as atividades discursivas, isto

é, a influência contínua da palavra do outro na construção dos enunciados.

Método

Pressupostos teórico-metodológicos

Este artigo é resultado de uma pesquisa empírica que realizamos com

trabalhadores afastados do trabalho por motivos de saúde, que estavam em atendimento

em um CEREST municipal de uma capital do nordeste brasileiro. O projeto mais amplo

desdobrou-se em duas grandes etapas: na primeira, conduzimos atividades em grupo na

sala de espera do serviço, seguidas de entrevistas individuais semiestruturadas com

96

trabalhadores em atendimento; na segunda etapa, realizamos entrevistas clínicas com

cinco participantes da primeira etapa que se dispuseram a seguir no processo. Neste

artigo, relataremos três casos extraídos e sistematizados a partir deste momento

interventivo (estudos clínicos).

Nas análises clínicas elaboradas com base nos três casos, pressupomos que falar

sobre a experiência funciona como um disparador para a elaboração de outras vivências

(Clot, 2010a). A análise do trabalho funciona, pois, como um instrumento de

transformação da experiência, sendo a verbalização, em si, uma atividade, e não apenas

um meio de acessar outra atividade que o trabalhador realizava “enquanto estava no

trabalho”. Clot (2006) também assinala o fato de os próprios trabalhadores serem

considerados coanalistas do processo de construção dos dados de pesquisa sobre seu agir

no trabalho. Aqui, entendemos o conhecimento como uma construção dialógica entre

sujeito-pesquisado e sujeito-pesquisador. Logo, ao descrever-nos sua situação de

trabalho, o sujeito faz mais do que recontar a ação desenvolvida no passado.

Participantes e procedimentos

Os trabalhadores que participaram foram bancários, motorista, vigilante e

professor. Ao todo, cinco trabalhadores estiveram envolvidos nas etapas que descrevemos

acima, mas, para os objetivos deste artigo, selecionamos apenas três. O critério de

inclusão que usamos na pesquisa baseou-se na conveniência e na disponibilidade de cada

trabalhador. A etapa da entrevista clínica consistiu em encontros com os trabalhadores

orientado por um roteiro centrado em torno da compreensão do processo de adoecimento

e na escuta de elementos que pudessem apontar para o comparecimento, na fala dos

trabalhadores, dos coletivos de trabalho

97

Mais especificamente, organizamos os encontros de modo a permitir ao

trabalhador expressar os marcadores do desenvolvimento de sua atividade de trabalho,

mais particularmente: (1) sua experiência de vida pelo trabalho, até chegar ao momento

das relações com o trabalho atual (desenvolvimento da atividade; sentimento de pertença;

rotina de trabalho; etc.); (2) sua vivência do adoecimento (relação adoecimento/trabalho;

o agir frente à doença e as redes de apoio); e (3) as relações do coletivo de trabalho (laços

de confiança, cooperação, engajamento afetivo, suporte e espaços de debates).

Para cada participante, realizamos seis encontros, em um período de três meses,

nas dependências do CEREST, com duração de, aproximadamente, uma hora cada.

Registramos seu conteúdo em áudio para posterior transcrição. Ademais, entregamos a

cada trabalhador um caderno de memórias, no qual ele registrava o conteúdo da conversa

ou outros aspectos, tais como fotos e outros recursos simbólicos que pudessem ajudá-lo

na expressão do seu fazer profissional. Essa estratégia facilitou não apenas nossa

condução das entrevistas como a posterior sistematização.

Procedimentos de análise

Após os encontros de cunho clínico-interventivo com cada trabalhador,

organizamos o corpus derivado das entrevistas clínicas, seja a partir do caderno de

memórias seja das transcrições das entrevistas, no formato de estudos de caso, em função

de três eixos: (1) história de vida e trabalho; (2) bases do coletivo (conforme seção

anterior); e (3) coletivos e produção de saúde. Sistematizamos os estudos de caso por

meio da análise clínica das entrevistas, arrolada notadamente na centralidade dos

coletivos na relação saúde↔trabalho. Em termos metodológicos, as informações que

apresentamos na sequência revelam os princípios gerais das técnicas de classificação e

categorização qualitativas que utilizamos (Turato, 2003), sendo as informações

98

categorizadas tanto pelo discurso verbalizado quanto pelos pressupostos teóricos de

análise do trabalho, com foco especial nos coletivos de trabalho.

Resultados e discussão

Estudo de caso 1

História de vida pelo trabalho e na profissão

Motorista, 25 anos de profissão, afastado do trabalho há um ano e três meses. Teve de se

afastar do trabalho após ser vítima de reincidentes assaltos e violência no seu “ambiente

de trabalho”: o ônibus. O “ser assaltado” funcionou como um fato disparador, tendo-o

mobilizado a tal ponto, que chegou mesmo a considerar medidas extremas (suicídio)

como forma de lidar com a dor de não poder realizar seu trabalho. No entanto, apresentava

sua história profissional com muito orgulho, sendo a profissão um desejo realizado, um

sonho alcançado na sua trajetória profissional.

Bases do coletivo de trabalho

Relações com o ofício. Um profissional reconhecido no desenvolvimento da função, e

também intensamente identificado com ela. Mencionou várias vezes que gostava e se

reconhecia como motorista, que era um “bom motorista” (“Os pais das crianças

confiavam em mim”; “Os idosos gostavam do meu cuidado”; “Eu dava cursos para os

motoristas novatos”). Preservava seu sentimento de pertencimento à profissão, aspecto

essencial ao julgamento da atividade (e.g., Clot, 2010a, 2010b), mesmo estando

dilacerado quanto aos seus afetos e pelas impossibilidades de continuar exercendo-a

devido a seu adoecimento.

Mobilizações afetivas. Após o “evento do assalto”, no qual o motorista prende o

assaltante, o que se passa é uma ausência de apoio e suporte da organização. O trabalhador

menciona como “(...) era doído escutar, primeiro: “Quanto levaram?”; e não: “Como você

99

está?”. Essa postura é um traço de um coletivo frágil, pois o trabalhador é deixado sozinho

no processo de elaboração de um evento traumático, e generalizadamente banalizado.

Mesmo internamente, para o próprio trabalhador, esse coletivo parece não estar presente,

tamanha a sensação de desamparo e solidão. Ademais, os pares, neste caso, não

comparecem como elementos fiadores. Os afetos tristes que nascem dessa constatação de

solidão levam, paradoxalmente, à intoxicação da própria atividade, que, então, deixa de

cumprir seu papel de mobilizadora afetiva (e.g, Lhuilier, 2006). A “des-afetação” da

atividade bloqueia, como ato contínuo, a capacidade de ação – mesmo que, no contexto

do assalto, o motorista tenha se lançado em uma transgressão do que lhe é prescrito: de

fato, não cabe ao trabalhador lidar e conter atos de violência como o de um roubo.

Reconhecimento. Por ter uma relação estreita com o julgamento fundado nos critérios de

qualidade do fazer, quando o trabalhador faz a transgressão (prender o ladrão no ônibus),

estabelece-se um paradoxo: ao mesmo tempo em que exerce o zelo e a virilidade de que

essa atividade é revestida, não é compreendido pelo outro, pela organização – emergindo

um sentimento de impotência para lidar com a organização e os pares. Para ele, há um

não reconhecimento de um ato (controverso) que carrega as características do seu gênero

profissional.

Dialogicidade. A consequência de um coletivo frágil é a experiência do monologismo,

oposto à dialogicidade (Clot, 2010a). Isto ocorre porque, não tendo destinatários a quem

recorrer, o trabalhador se lança em uma espécie de murmúrio anônimo consigo mesmo.

Como nos disse o trabalhador: “Não temos mais momentos com todos juntos, falar sobre

o que está acontecendo; não nos preparam a como agir diante um assalto”. A emergência

dos sentidos sobre os acontecimentos no trabalho, mesmo o de casos como este, de

violência, ocorre justamente na dialogicidade, no circular de vozes (e.g, Brait, 1996) e dos

dilemas nessa contidos. Ao não serem ouvidas, ou ao serem “caladas”, ou ainda

100

direcionadas a pseudo-interlocutores (como, por vezes, ocorre com o sindicalismo

institucionalizado), não só ocorre o monologismo, como o trabalhador enfrenta uma

versão sua que é paralisante em termos do poder de ação.

Coletivo e produção de saúde

Os motoristas, não só este do caso (e.g., Assunção & Medeiros, 2015), estão submetidos

a uma organização de trabalho precária que os lançam em um estado de vulnerabilidade.

Realizar um trabalho benfeito é uma façanha a cada dia. A tentativa de manter a qualidade

do trabalho paradoxalmente coloca a saúde desses profissionais em risco. Como continuar

a dirigir após uma tentativa de assalto? Como retornar no outro dia para atividade de

trabalho, após ter de arcar com o prejuízo emocional e material de um assalto? É aqui que

a necessidade (vital e do ofício) de continuar trabalhando impõe-se com força, estando na

origem do dilema que é esse tipo de trabalho nas grandes metrópoles brasileiras.

Em síntese, se, por um lado, nosso entrevistado nos dá mostras de uma forte

identificação com a história da sua profissão, da sua utilidade social e do seu “gosto”, por

outro, há um descaso com as condições de desenvolvimento da atividade, seja no que

tange à própria execução do ato de dirigir (condições de trabalho precárias, insalubres e

vulneráveis), como também no que diz respeito à manutenção dos critérios de qualidade

do trabalho – que, neste caso, parece-nos ter sido sufocada pela maximização produtiva.

No contexto da atividade do motorista, a alteridade comparece na forma de representantes

vivos do ofício, incluindo, em primeiro nível, os pares, mas também a organização do

trabalho, os usuários, a sociedade mais amplamente.

101

Estudo de caso 2

História de vida pelo trabalho e na profissão

Assistente comercial (bancária), sete anos de profissão, afastada há, aproximadamente,

11 meses. Reconhece-se como bancária (no real de sua atividade), inclusive pela

similitude das atividades que desenvolvia, não obstante ser registrada como assistente

comercial. Inicialmente, apresentou problemas relacionados às Doenças Ostomusculares

Relacionadas ao Trabalho – DORTs (calcificação, tendinite e túnel do carpo), seguidos

de quadro depressivo relacionado ao trabalho. No seu relato, destacou o gosto pelo

trabalho no comércio/serviços.

Bases do coletivo de Trabalho

Relações com o ofício. Assumia uma atividade que se caracterizava como desvio de

função (tarefa real versus tarefa prescrita): desenvolvia tarefas relativas ao cargo de

bancária e de gerente, mas não as assumia legalmente. Era uma trabalhadora “exemplo

de resultados” (“Fazia bem – o trabalho, porque... assim..., na época eu mudei de agência,

eu consegui alavancar os números da outra agência, eu sempre fui muito bem falada,

muito elogiada por todos os gestores”). Seu sentimento de pertencer ao ofício de bancário,

contraditoriamente, a fragilizava, pois há aí um pseudocoletivo estabelecido; afinal, a qual

coletivo de trabalho pertencia?

Mobilizações afetivas. Tinha uma atitude cooperativa em relação a sua equipe de trabalho,

os ajudava com suas metas, se considerava colaborativa. Durante seu afastamento,

recebeu reclamações do seu gestor por ter buscado assistência no sindicato e no serviço

especializado em ST. Essa falta de apoio generalizada despotencializa a atividade, o “ser

boa no que faz” transforma-se em mobilização de medo e de desgaste mental (“não

consigo entrar dentro de uma agência porque eu me tremo todinha”). Há uma ruptura dos

102

laços de confiança que, nesse cenário de metas, é colocado à prova. Os pares são

impedidos de comparecer pela ameaça constante da perda do emprego.

Reconhecimento. Sofria humilhação em público por não “alcançar as metas” (“Você tá

passeando”, “Tá sem fazer nada”, “Tá olhando pro tempo, aí”, “Você tá vindo trabalhar

pra fazer o que?” – lembra-se da fala do seu gestor). Mesmo não sendo formalmente

bancária, reconhecia-se (sentimento de pertencimento) como tal, e seus superiores

exigiam que ela agisse de acordo com aquela função. Essa distorção produzia ganhos para

a organização, que, intencionalmente, estimula o trabalhador a realizar tarefas desse

pseudocoletivo, mas não o ampara frente às exigências do seu fazer, além de pôr em ação

uma dinâmica do reconhecimento que é fantasiosa, quando a estimulava a recorrer às

orientações genéricas da atividade de bancária.

Dialogicidade. O medo constante entre os pares, pelo formato precário de trabalho,

dificulta a presença de interlocutores na atividade. Há um discurso de trabalho em equipe

que estimula, contraditoriamente, a competição e a individualidade, atrelados às

exigências de orientações de um gênero profissional que inexiste formalmente, mas que

é necessário – não ser bancária formalmente, mas, para fazer seu trabalho benfeito, deve

recorrer ao gênero profissional de bancário. Esse sentimento de pertencimento não

reconhecido reflete-se de dois modos opostos: em um, tem-se o estímulo ao dialogismo

com os pares devido ao compartilhamento das regras, do gênero e da linguagem desse

ofício; no outro, tem-se um monologismo: ser bancária apenas para si mesma, no âmbito

interno, não ecoando nos demais âmbitos de desenvolvimento da sua atividade de

trabalho, podendo gerar falsos passos na ação (Clot, 2010a, 2013), principalmente no

âmbito do prescrito.

103

Coletivo e produção de saúde

A atividade bancária comporta, em si, muitos riscos – fato que o demonstra a farta

literatura a respeito (e.g., Marques & Giongo, 2016; Paparelli, 2011; Petarli, Salaroli,

Bissoli, & Zandonade, 2015). Não obstante, é uma atividade que, no imaginário social,

parece despertar interesse – em parte, por seu status social. Contudo, aqueles riscos, como

o de estar exposto a metas continuamente ambiciosas (Paparelli, 2011), têm minado a

base afetiva desses coletivos, a julgar, ao menos, pelo caso relatado. Há uma discrepância

entre o trabalho benfeito e seu reconhecimento. Adicionalmente, a dimensão ética desses

coletivos vem sendo, progressivamente, atacada, esgotando sua vitalidade. Na atividade

bancária no Brasil atual, parece que resta apenas aos sindicatos, com todas as dificuldades

e problemas envolvidos, agir como instância formal de regulação, ajudando a orientar

esse coletivo desmantelado.

Estudo de caso 3

História de vida pelo trabalho e na profissão

Vigilante, oito anos de profissão, afastado há, aproximadamente, um ano e dez meses. Foi

militar no início de sua carreira e, em seguida, ingressou no campo da segurança privada.

Mencionou ter vocação para essa área, que foi seu campo exclusivo de trabalho.

Apresentou sintomas psicopatológicos de perseguição e pânico diante de sua atividade de

trabalho, chegando a ter sonhos de perseguição e confrontos, com frequência, após

episódios de “apagões no trabalho”.

Bases do coletivo de trabalho

Relações com ofício. Conseguiu evoluções na carreira de vigilante, indo para o transporte

de valores, função que só foi possível depois de certo tempo (Vieira, Lima, & Lima,

2010). Considerava exercer muito bem a função. Em seu discurso, havia uma linguagem

104

usual e típica da categoria, com jargões e ações do gênero profissional do campo da

segurança – por exemplo: estar vigilante e atento o tempo todo, mesmo fora do ambiente

de trabalho. Sentia pertencer ao ofício de vigilante, e sentiu esse pertencimento ameaçado

quando começou a ter “apagões” (confundidos, incialmente, com labirintite) no seu

trabalho, evento esse que não poderia ser partilhado, pois colocava em risco sua atividade.

Sentiu-se inútil e pouco esperançoso para retornar à atividade quando percebeu que a

medicação afetava suas habilidades (agilidade, reflexo) – para ele, fundamentais ao seu

ofício.

Mobilizações afetivas. Tinha uma forte relação afetiva com a profissão (“Eu gosto, não;

eu amo!”). Teve sua confiança rompida a partir de um evento considerado por ele como

“injusto”: assinar uma advertência de suspensão por ter apresentado um atestado de

acompanhamento médico da esposa. Ele se negou a assinar e, desde então, essa ruptura

de confiança refletiu em sua potência de ação (Clot, 2010a, 2010b). O trabalhador

orgulhava-se por não ter falta no trabalho, sendo essa advertência uma incoerência, diante

de seu histórico de engajamento afetivo e subjetivo com a profissão.

Reconhecimento. Sentia-se frágil e considerava não ter mais a mesma habilidade que a

profissão exigia. Tinha noção de que a psicopatologia atingiu os critérios de qualidade do

seu trabalho. Sabia o que era ser um bom vigilante; sentia o ofício dentro de si (Clot,

2013) e, por isso mesmo, fazia julgamentos quanto às perdas de habilidades do seu fazer.

Nessa dinâmica de reconhecimento, relatou desvalorização por parte da organização

(“Não imaginaria nunca que uma empresa, ao invés de te dar um plano de saúde para

você procurar se tratar, te dava, ao invés, um auxílio funeral”).

Dialogicidade. O ofício de vigilante carrega heranças do gênero profissional do campo

da segurança. Talvez por isso, ainda seja um coletivo próprio em vias de solidificação.

Contém regras que levam os trabalhadores a sentir forte receio em questionar, incluindo

105

as próprias políticas organizacionais (“Muitas documentações a assinar, sem ter

conhecimento jurídico, de algum representante que pudesse orientar a gente do que era,

pra que seria, aí eles ‘não, tem que assinar e vocês não pode levar’”). Características do

gênero como discrição e obediência são utilizados rigidamente em um processo de

desproteção do trabalhador.

Coletivo e produção de saúde

As condições adversas de desenvolvimento da atividade (turnos, escalas de trabalho e

condições de alimentação e repouso desgastantes) têm levado a categoria a uma

segmentação, inclusive na organização sindical – não existe apenas um sindicato de

vigilantes na região pesquisada. Pode-se questionar se seria esse um caminho de proteção

ao coletivo (a segmentação em torno de interesses e visões de mundo específicos), ou se,

ao assim proceder, esses trabalhadores não estariam se afastando cada vez mais de um

trabalho coletivo e dialógico, base de saúde e desenvolvimento.

Considerações finais

Compreendermos as bases de funcionamento de um coletivo de trabalho nos

permite apreender os elementos que, quando em baixa ou alta potência, afetam o poder

de agir desse ofício. Também nos possibilita esboçar mais detalhadamente a relação dos

coletivos com a produção de saúde, a ponto de analisar o que acontece com um ofício

quando as bases que os compõem são postas em risco.

No que diz respeito a coletivo ser sinônimo de grupo, a resposta pode ser,

novamente, ambígua, pois, de um lado, embora o coletivo dependa de sua inscrição físico-

espacial (compartilhar um mesmo aqui e agora no trabalho, por exemplo); de outro, o

coletivo está no indivíduo, quer na forma de um interlocutor interno, um destinatário para

106

a atividade individual, quer na forma de um grupo internalizado, que se transmite na e

pela cultura do ofício, ou seu gênero profissional.

Nessa relação dos coletivos com a saúde, o coletivo, tanto o internalizado como o

organizado no aqui e agora, serve como um fiador, um orientador, um garantidor, por

assim dizer, da atividade individual. Tome-se, por exemplo, a questão de como os

trabalhadores conseguem elaborar ou formular sua visão sobre a qualidade de seu

trabalho. Essa qualidade depende mais do que da opinião individual acerca do fazer;

depende, sobretudo, de critérios de julgamento e valor, e de um projeto coletivo sobre

como desenvolver o gênero de uma atividade. Esse gênero não ocorre isoladamente, mas

no seio dos coletivos; por meio do sentimento de fazer algo para a posteridade, para a

memória desse mesmo ofício e gênero. Quer dizer, o coletivo, para além de colegas e

chefes, age como um terceiro referencial que baliza as ações e lhes dá um

encaminhamento no terreno da qualidade e no do sentido.

A saúde, como a doença, quando pensada contra o pano de fundo do trabalho, não

será, jamais, uma aventura solitária se partirmos do princípio de que a atividade é o que

a sustenta. Clot (2010a, 2010b) observa, nesse sentido, que atividade é saúde, é a ação de

produzir um contexto para viver. Na fragilização dos coletivos, seja no plano do

observável (o isolamento físico e funcional dos trabalhadores na organização, ou mesmo

sua submissão a um contexto de trabalho que prioriza o eu em detrimento do nós), como

no plano mental (o desinvestimento do indivíduo de suas próprias conexões intrínsecas

com seu interlocutor interno), resta ao sujeito a tarefa de cuidar de si, privadamente, de

um processo de adoecimento que não foi necessariamente gerado dentro de si, mas na

própria atividade, no próprio espaço público do coletivo.

Os casos apresentados sob a ótica de um modelo expandido de coletivos ilustram

a necessidade destes últimos serem cuidados, fomentados, mesmo nos casos individuais

107

que poderiam, à primeira vista, sugerir solidão e abandono. Mesmo ali, nos conflitos

internos, esse coletivo é colocado à prova. Contudo, se esse conflito não transcender a

órbita individual, fatalmente haverá o risco, como parece nos casos analisados, de a

dialogicidade ceder lugar ao monologismo, ao sofrimento sem destinatário. O coletivo

como operador de saúde é justamente a instância que articula a saúde individual à ideia

de saúde como potência de ação em um cenário coletivo, como é, intrinsecamente, o

cenário do trabalho.

Na falência ou fragilidade dos coletivos, resta ao trabalhador a responsabilidade

de cuidar de um adoecimento cuja origem pode não estar apenas dentro de si, mas dentro

da atividade, no espaço do coletivo. Como observou Clot (2010a), uma amostra da

fragilidade dos coletivos é a tendência de o trabalhador adoecer pelo social (no contexto

do trabalho) e curar-se pelo individual, no leito solitário da clínica, ou, infelizmente, no

isolamento das instituições que, supostamente, deveriam ampará-lo.

Além de ter de cuidar e de tratar a si próprio fora do contexto vital que esvaziou

suas energias e potência, o trabalhador também fica desamparado quanto aos critérios de

valor de seu próprio fazer. Como vimos anteriormente, além de fator de saúde, ao oferecer

o prumo sobre a qualidade do trabalho, os coletivos agem também como fatores de

desenvolvimento da ação. Portanto, o cuidado dispensado aos coletivos ajudará a evitar

um atrofiamento do ofício dele próprio, evitando que ele e seus coletivos percam a mão

sobre o quê, como e com quem fazer.

108

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110

Considerações gerais

Ao retomarmos o ponto de partida desta pesquisa – como os coletivos de trabalho

comparecem como dispositivo de saúde, caminho que nos permitiu a realização de uma

análise do trabalho sobre a ótica dos ofícios –, enfatizamos um posicionamento no campo

das relações saúde-trabalho que não se limita a um viés individualizante das

psicopatologias relacionadas ao trabalho. Percebemos que o trabalhador adoecido passa

por um processo intenso e insensível de desgaste mental (e.g. Seligmann-Silva, 2011,

2015), seja relacionado aos próprios sintomas que a patologia carrega, seja ao descrédito

dado a esta por parte das instâncias reguladoras do seu fazer.

Ao falarmos de coletivos como dispositivo, destacamos que essa ideia foi

transversal durante todo o processo de análise dos elementos discursivos dos

trabalhadores nesta pesquisa-intervenção – retomando o conceito exposto por Agambem

(2005), como algo capaz de orientar, controlar e assegurar os gestos, as condutas e os

discursos dos indivíduos. Destacamos, para este estudo, o assegurar gestos como

característica essencial dos coletivos de trabalho: estes asseguram os gestos dos

trabalhadores de um ofício, sendo essa função de dispositivo contemplada na medida em

que asseguram/dão o tom da ação do ofício, e essa qualidade protege o ofício de “atos

inseguros”, que, por vezes, podem colocar em risco a saúde. Eis que, quando o coletivo

se torna um “muro de proteção” dos ofícios, está exercendo seu papel de operador de

saúde destes.

As formas contemporâneas de gerenciamento (enxugamento dos quadros,

intensificação dos processos de terceirização, flexibilização e precarização das relações

de trabalho) colocam os trabalhadores como vítimas daquilo que Clot (2006) chama de

“amputação de sua história coletiva”. Os coletivos estão se desfazendo e não estão sendo

111

recompostos, o que representa um risco considerável, visto que, dentre suas funções, há

aquela de auxiliar os indivíduos na tomada de decisões.

No primeiro artigo desta tese, analisamos o processo saúde-doença em diferentes

ofícios, sob a ótica das clínicas do trabalho. Para isso, desenvolvemos a análise do

trabalho por meio de três dispositivos, construídos na relação pesquisador-trabalhadores.

Eles se apresentaram como sinalizadores do percurso metodológico adotado na pesquisa,

exercendo o papel de orientadores dos modos de intervenção criados na pesquisa-

intervenção. O primeiro dispositivo foi a sala de espera, que se concretizou em um grupo

provisório acidental para partilhar experiências sobre saúde, sofrimento e trabalho. O

segundo dispositivo (representado pela entrevista sobre a biografia do trabalhador) focou

na subjetividade, apresentando aspectos da relação desses trabalhadores com sua

atividade. Por fim, o terceiro dispositivo (entrevistas clínicas) destacou a relação do

sujeito com a atividade de modo mais profundo, elucidando o esvaziamento e o

adoecimento da atividade de trabalho.

Nesta análise, destacamos alguns aspectos dessa tríade trabalho-

saúde/adoecimento-coletivos. Por meio desses dispositivos, exploramos a intimidade

entre o dizer e o fazer do trabalhador, que, para as clínicas do trabalho, pudesse conter a

análise processual do vivido por meio da transmissibilidade de uma experiência

anunciada pelos trabalhadores (Amador, Rocha, Brito, & Barros, 2016). A

transmissibilidade em dizer o trabalho é tensionar-se nele; dizer não é representar um

vivido inerte (Amador et al., 2016). A experiência com a atividade de trabalho foi ali

posta. A figura do adoecimento, presente nas falas iniciadas pelo desgaste mental “da

prova” de estar ou não adoecido pelo trabalho, colocava em risco aspectos da saúde

psíquica, que afetam diretamente o desenvolvimento da atividade de trabalho. Esta

atividade aparecia pela via da inatividade, impedida pela recriação, dados os empecilhos

112

dos recursos subjetivos mobilizados para criar novos modos de desenvolver a atividade

em um processo de fazer que era nitidamente vulnerável a um ofício sadio.

O que seria um ofício sadio? Um ofício que reluta em manter sua qualidade de

trabalho está processualmente tentando manter-se vivo, e essa manutenção, como

podemos perceber no dizer sobre o trabalho dos nossos trabalhadores, envolvia esse

cuidado e o gosto pelo fazer, característica que se alinha à manutenção da saúde. Para

Canguilhem (2009), dispor de saúde é desenvolver a potência de ação sobre o mundo,

como capacidade normativa de inventar novas normas que questionem o que está posto,

principalmente diante do contexto de constante negação de suas singularidades,

necessidades e potencialidades no qual o trabalhador se insere, o que homogeneiza,

vulnerabiliza e exclui grande parcela da população do trabalho como meio de realização

e reconhecimento.

Nos trabalhadores destacados – notadamente no terceiro artigo deste escrito, quais

sejam, motorista, bancário e vigilante –, o adoecimento não os fazia “perder à mão” sobre

o trabalho; era justamente essa tentativa de fazer o trabalho com qualidade que os fazia

adoecer. Assim, nestes casos, a doença era uma reposta saudável para o ofício, ela

aparecia como uma forma protetiva para manutenção do benfazer, sendo o coletivo um

meio de reafirmar essa condição.

Na conjuntura atual de precarização e flexibilização das relações de trabalho,

retirar do trabalhador a autonomia de responder pelo seu trabalho – uma condição sine

qua non para a qualidade do fazer – não se conjuga apenas como um modo de violentá-

lo, mas de violentar também o próprio trabalho. Os diversos modos de violentar o

trabalhador foram postos; assim, o assédio apresentou-se como pano de fundo

desencadeador dos diversos sofrimentos/patologias relacionadas ao trabalho. Um assédio

que assedia (moralmente) não somente esse trabalhador, mas, necessariamente, seu ofício

113

(ofício assediado). Nesse caso, os coletivos de trabalho aparecerem como um dispositivo

central de enfrentamento, sinalizando, mais uma vez, a necessidade do cuidado com os

ofícios tanto quanto o cuidado ofertado ao trabalhador.

Retomamos a uma questão posta na introdução desta tese: “Qual seria a função

exercida pelos coletivos de trabalho no processo saúde-doença, em trabalhadores

adoecidos em virtude do trabalho?”. Replicamos com outro questionamento: “Como, nas

contradições atuais do mundo do trabalho, os coletivos podem manter sua função de

ativação/protetiva da saúde do(s) trabalhador(es)?”. Aqui, sinalizamos alguns pontos: o

primeiro desses diz respeito à dimensão política de articulação dos coletivos como um

meio de enfrentamento, que constantemente vem sendo fragilizada nessas condições,

logo, a revitalização dessa dimensão seria um caminho. O segundo diz respeito ao

enraizamento sobre o fazer, a capacidade de não perder a noção dos critérios de qualidade

do ofício; aqui, os coletivos de trabalho são uma espécie de “guardiões dos segredos dos

métiers”; recorremos a eles/Outros (não em uma instância concreta) sobre o que tem de

ser feito (eles nos ajudam na tomada de decisão), o que não se pode deixar de fazer (...)

para ser um bom motorista, bancário, vigilante (...), e ser reconhecido como tal.

Destacamos, aqui, esse papel dialógico, processual, imbricado no funcionamento

dos coletivos de trabalho. O trabalhador reconhece no coletivo os modos de fazer, e por

ele se faz trabalhador de um ofício. Nessa relação constitutiva Eu-Outro, acontece o

conhecimento do eu e do outro, porém, o autoconhecimento (ser um bom motorista por

exemplo) implica, primeiramente, o reconhecimento do outro (nos demais trabalhadores

motoristas, nas regras do ofício, na história partilhada), isto é, temos consciência de nós

porque temos dos demais, porque nós somos para nós o mesmo que os demais são para

nós. Reconhecemo-nos quando somos outros para nós mesmos; então, o reconhecimento

do outro leva ao conhecimento do eu. Vigotski (1991) considera que no sujeito ocorre o

114

desdobramento do mim e do eu, essa duplicidade proporciona o contato consigo. O eu

não é sujeito, é constituído sujeito na relação Eu-outro (Brito & Zanella, 2017).

Sobre o segundo questionamento que lançamos na tese – “Como os elementos

constitutivos dos coletivos de trabalho se articulam como bases de manutenção e evolução

destes coletivos, e, por conseguinte, para produção de um ofício sadio?” –, apontamos a

necessidade de compreender a dinâmica de funcionamento dos coletivos de trabalho sob

as perspectivas das Clínicas do Trabalho. Mesmo considerando suas divergências

teóricas, propusemos uma análise de suas convergências quanto à característica notória

dos coletivos atuarem como algo que transita entre o individual (no trabalhador) e o

coletivo (na história profissional). Portanto, para as Clínicas do Trabalho, os coletivos

atuam como o transportador (não visível, mas real) dos meios de realização de um

trabalho benfeito (sendo esta a instância notadamente especializada para tal fim). Desse

modo, o ofício fia (aposta/confia) no coletivo como uma garantia de seu funcionamento

e manutenção, e espera que esse honre a confiança a ele dada. No entanto, podemos

realizar outra reflexão: o que está em risco nessa relação de fiadores (ofício ↔ coletivos)?

O papel que os coletivos de trabalho vêm conseguindo desenvolver aponta a existência

de manobras, por vezes sutis e de pouca visibilidade, do cenário laboral que os impedem

de engendrar seu funcionamento. Em alguns momentos, há uma atuação

institucionalizada, ou formalmente obrigada a agir, aspecto que empobrece e

descaracteriza sua dimensão psicológica de atuação; em outros, há a formação de

pseudocoletivos, na tentativa de justificar para o trabalhador a existência de uma instância

grupal, que os mobiliza e une, mas que, ao mesmo tempo, estimula aspectos

contraditórios/incoerentes com a sua própria constituição (individualidade,

competitividade, falta de autonomia diante seu fazer, dentre outros).

115

Assim, o papel dos coletivos de trabalho no processo saúde-doença nos faz

apontar que a legitimação da doença como algo do indivíduo vem corroborando para um

afastamento distal da ação do coletivo. Há uma necessidade premente de o trabalhador

sair de si, da redoma/ostracismo diante de seu sofrimento – que é legítimo – para ocupar

um papel nesse transporte, e não ser um excesso, um peso a ser eliminado. Não podemos

agir em uma reciprocidade de urgência, apenas quando o caos já está instaurado nos

modos de desenvolver a atividade de trabalho.

O coletivo, nos termos de Clot (2006, 2010a, 2010b), deve funcionar como um

“muro de proteção”. Para nós, uma espécie de carro-forte transportador e

protetor/guardião, ao mesmo tempo, dos valores do ofício, carregando sua história, sua

estética e seus meios orientativos de ação, e, por conseguinte, da qualidade de um trabalho

benfeito. Então, precisamos questionar o funcionamento desses coletivos. A energia de

vida dos coletivos precisa ser revitalizada, reoxigenada por meio da ativação da potência

de agir dos elementos que o constituem (aqui representados pelas relações com o ofício,

as mobilizações afetivas, o reconhecimento e a dialogicidade). Precisamos olhar para a

dinâmica interna de funcionamento desses coletivos, para, então, sair de si e identificar

os impedimentos postos em sua amplitude de ação, ampliar o poder de agir dos coletivos

de trabalho.

Destacamos o papel dos afetos, assinalado por Clot (2010a), nessa dimensão da

relação trabalho-saúde. Lamentavelmente, neste estudo, não nos foi possível uma análise

aprofundada da temática; assim, citamos, de modo transversal, sua relação ao fenômeno

foco de análise, os coletivos de trabalho. A intenção não foi secundarizar o tema,

afirmamos este limite de aprofundamento teórico diante da temática, apontando a

necessidade de desenvolvimento de pesquisas que se proponham a analisar com mais

robustez o papel dos afetos no desenvolvimento e impedimento da atividade de trabalho.

116

Aqueles estudos nos possibilitarão repensar sobre o que fazer quando a atividade está

esvaziada e/ou desafetada.

São múltiplos os caminhos teóricos traçados pelas Clínicas do Trabalho, que,

mesmo com as divergências advindas de tradições filosóficas distintas, possuem uma

similitude de propósitos quanto à análise da relação trabalho-saúde. Neste estudo, ao

enfatizamos a dimensão coletiva do trabalho, estamos elegendo a centralidade ocupada

por esses no rol dessas clínicas. Optamos por uma lente de análise do fenômeno que nos

apontasse caminhos para a restauração da saúde dos ofícios. O ofício sadio nos remete

àquilo que é favorável à produção de saúde. Assim, defendemos que, ao recorrer ao

coletivo de trabalho, como gênero profissional – que nos leva às orientações genéricas do

nosso fazer no trabalho –, insurgem caminhos de luta diante da formação de coletivos

falaciosos (pseudocoletivos), tão estimulados hoje no cenário laboral, pela sua facilidade

de dissolução.

No segundo artigo, ao adensarmos o olhar das Clínicas do Trabalho quanto as

apropriações conceituais do constructo coletivos de trabalho, destacamos a necessidade

de reaver a dimensão coletiva do trabalho, desafio posto para as atuais condições do

mundo do trabalho. Mais uma vez, apontamos como caminho a retomada do papel do

ofício como fiador dos coletivos. O fiador funciona como um ente que concede garantias

do cumprimento de um contrato, apostando nos coletivos como uma instância de

zelo/qualidade para realização do trabalho benfeito. No entanto, se não há esse fiador,

restam as incertezas sobre os critérios de um trabalho benfeito, e o que vemos é o

trabalhador ingressando em um dilema sobre que critérios (estéticos, práticos, políticos,

etc.) para realizar seu trabalho. Nesse caso, restar-lhe-á a via do reconhecimento

interpessoal. Sem a recuperação da função mediadora dos coletivos no ofício e seu

gênero, veremos não só a manutenção do sofrimento no trabalho (solitário), mas a

117

liquidez dos critérios sobre o que significa trabalhar, seus propósitos, direção e estética

(trabalho benfeito).

Podemos nos questionar: o que acontece com um ofício quando as bases que os

compõem são postas em risco? A fragilização dos coletivos se configura em um risco de

alta potência ao ofício (os coletivos em risco fragilizam a função maior de

proteção/guardião do ofício). Assim, mais uma vez, retornamos à questão de como os

trabalhadores concebem a qualidade de seu trabalho, para apontarmos um dos caminhos

defendidos ao longo desta tese: a qualidade do trabalho (não nos termos da filosofia

administrativa da qualidade total) é, certamente, um indicador de que o coletivo pode ser

acionado para seu papel de ativação da saúde. Desse modo, essa qualidade depende mais

do que da opinião individual do fazer; depende de um projeto coletivo sobre como

desenvolver o gênero de uma atividade, um coletivo, para além de colegas e superiores,

mas uma entidade que age como um terceiro referencial que baliza as ações e lhes dá um

encaminhamento no terreno da qualidade e do sentido do trabalho.

Logo, a fragilização dos coletivos nesse cenário, seja no plano do concreto seja no

do imaterial, reafirma no sujeito a tarefa de cuidar de si (de modo isolado), de um processo

de adoecimento que não foi necessariamente gerado dentro de si, mas na própria

atividade. Para a o coletivo, operar saúde é justamente a instância que articula a saúde

individual à ideia de saúde como potência de ação em um cenário coletivo, como é,

intrinsecamente, o cenário do trabalho. Além de ter de cuidar e de tratar a si próprio, o

trabalhador fica largado diante de critérios de valor de seu próprio fazer. Os coletivos

também agem como orientadores do desenvolvimento da ação. Portanto, o cuidado

dispensado aos coletivos evitará um atrofiamento do ofício e dele próprio, evitando que

ele e seus coletivos percam-se nos critérios exigidos pelas organizações de trabalho, que

podem estar em dissonância com a manutenção do ofício.

118

No primeiro artigo, fizemos uso da terminologia coletivos provisórios, utilizada

para expressar a dimensão coletiva grupal de acolhida e troca afetiva que o espaço

interventivo da sala de espera poderia exercer, não tendo sido nosso propósito estimular

uma característica de transitoriedade, que, para nós, é passível de mudanças, transições,

mas que sempre se reporta a um “núcleo duro” (Lakatos, 1974) para continuar a ser o

transportador de confiança do ofício. Nossa ideia não foi estimular um processo

transitório de formação de coletivos de trabalho, mas sim a troca coletiva em que o

trabalhador pode reviver sua experiência em momentos coletivos (grupais) de vários

coletivos de trabalho, funcionando como um coletivo de apoio.

Também destacamos a necessidade real de incorporar as questões de saúde,

principalmente as relacionadas à saúde mental e trabalho, nas discussões e nas pautas das

lutas sindicais – sendo estes os coletivos organizados e instituídos, cuja missão é realizar

esse tipo de mediação. Ademais, é importante priorizarmos uma discussão que verse

sobre a saúde e a raiz dos ofícios, o que, inevitavelmente, traz implicações na escolha de

perspectivas e métodos que usem a análise do trabalho como caminho interventivo das

práticas do campo da ST, com a adoção de dispositivos metodológicos que estimulem a

análise do trabalho como prática operativa de saúde.

Essa postura não significa desconsiderar o sofrimento individual do trabalhador,

que, afastado de sua atividade de trabalho, enfrenta as problemáticas do isolamento e de

uma luta solitária e impotente para dar voz e veracidade ao seu adoecimento. A disposição

para dar voz e vida ao trabalho é um meio de proporcionarmos ao trabalhador reviver sua

experiência, reelaborar e renovar o desenvolvimento do ofício, e, por conseguinte,

contribuirmos para a restauração de sua saúde, quando efetivamente ocorre a mobilização

dos recursos do gênero profissional (nível transpessoal do ofício). A busca pela

manutenção de um ofício sadio apresenta-se, portanto, como uma estratégia de

119

promoção↔recuperação no campo da ST, pois suas renormalizações e recriações podem

permitir transformações nos processos de trabalho em si, afetando o desenrolar da

atividade desse trabalhador. A ótica transversal do ofício ao longo da pesquisa e dos

artigos que produzimos nos fez assinalar e reafirmar o uso de metodologias que façam do

ato da fala uma atividade em si, de transformação para compreensão – nos termos de Clot

(2006). Ademais, o espaço para falar da atividade diante de sua condição de adoecimento

não favoreceu o uso de técnicas usuais de análise da atividade de trabalho – inicialmente,

pensamos em usar a técnica de instrução ao sósia, por exemplo, mas, ao longo do processo

da pesquisa, por ser uma do tipo pesquisa-intervenção, percebemos as dificuldades no uso

de algumas técnicas. Dentre essas, destacamos o cuidado quanto ao modo como

desenvolveríamos as entrevistas clínicas, notadamente no uso do caderno de memórias,

que adotamos como ferramenta de mediação desses encontros, e se apresentou como um

bom caminho para retomada/continuidade de cada encontro.

Como o trabalhador podia levar o caderno consigo, o instrumental permitiu um

acompanhamento para além do espaço agendado/programado dos encontros. O

trabalhador poderia, ao logo da semana, recorrer ao caderno para registrar suas sensações,

sejam a partir da pergunta/questionamento que deixávamos ao final de cada encontro,

relacionada ao que foi dialogado no dia (por exemplo, “Como percebeu que não estava

fazendo seu trabalho como gostaria de fazê-lo? O que mudou na atividade? O que não faz

mais como antes?”), sejam em forma de registro livre (desenhos, frases ou imagens) de

outras sensações diante da relação trabalho-saúde/doença (por exemplo, idas à perícia,

sonhos com algo relacionado ao trabalho, idas ao trabalho, encontros com colegas, dentre

outros). Deste modo, retomávamos cada encontro a partir de como havia sido a semana

do trabalhador, o que tinha sido armazenado no caderno, o que tinha “vindo em sua

memória naqueles dias”, diante da questão disparadora lançada no encontro anterior. A

120

abertura para o trabalhador usar qualquer tipo de registro, não se limitando à linguagem

escrita, foi importante para contemplar a diversidade (escolaridade, facilidade com leitura

e escrita) dos trabalhadores que estavam conosco.

Ao logo do desenvolvimento dos nossos encontros com os trabalhadores,

necessitamos realinhar as técnicas que focassem na atividade, mas também que

acolhessem a demanda premente diante do trabalhador falar e reelaborar o seu

adoecimento – o que pode ser apontado como um limite deste estudo, pois a tentativa

inicial de manter um purismo teórico-metodológico de uma abordagem das clínicas,

inicialmente a Clínica da Atividade, foi impedida pelas necessidades reais que os

trabalhadores apresentavam naquele espaço de reviver a experiência do trabalho frente à

sua doença. Então, fizemos com que o movimento de “transmissibilidade em dizer o

trabalho” (Amador et al., 2016) contemplasse a representação de um vivido, imbuído

notadamente dos sofrimentos advindos do adoecimento relacionado ao trabalho.

Tentamos respeitar essa condição do trabalhador, ao mesmo tempo em que fizemos um

ir-vir para a sua atividade de trabalho, o seu fazer, o modo como esse fazer foi afetado

pela condição de sofrimento posta.

Outro limite do nosso estudo foi trabalhar com diferentes profissões, não sendo

possível uma análise aprofundada em uma categoria de trabalho específica.

Sintomaticamente, algumas delas se destacaram, como os motoristas de ônibus e

bancários; um pelo cenário avassalador de precarização laboral atual (dupla-função),

outro, pela tradição histórica de adoecimento da categoria. Se a tentativa do grupo

terapêutico tivesse avançado para além da sala de espera, seria provável ampliarmos as

intervenções quanto às questões de mobilizações coletivas mais consistentes e articuladas

ao campo da ST.

121

Uma dificuldade típica da ST é a adesão às atividades mais prolongadas, como a

etapa das entrevistas clínicas, que levaram em torno de três meses. Dos trabalhadores que

aderiram às entrevistas, apenas um desistiu, aspecto essencial para termos avançado na

pesquisa. Nesse momento, a atividade de trabalho pode emergir, bem como sugerir seu

papel clínico, de caráter terapêutico, característica primordialmente respeitada e

extremamente contributiva para adesão dos trabalhadores a essa etapa da pesquisa.

O comparecimento das relações com os coletivos de trabalho por meio das

memórias da sua profissão, isto é, da dimensão transpessoal do ofício, foi, muitas vezes,

motivo de orgulho para o trabalhador, sendo esse movimento contributivo para

consciência do ser trabalhador, do seu reconhecimento em uma atividade útil, com

sentidos e significados partilhados socialmente, mas impedido por uma gestão das

condições de trabalho que não reconhece e/ou amputa essa história do gênero profissional.

Logo, uma luta solitária desse coletivo no indivíduo aparece como uma memória de como

não se perder na ação, sendo preciso uma retomada do trabalho coletivo frente às

problemáticas atuais desses cenários, para que a dimensão do coletivo no coletivo possa

ser posta em exercício.

Ao final, analogamente, se pensarmos em uma atividade de trabalho para os

coletivos, é preciso um movimento de reciprocidade, em que o trabalhador precisaria ir

para ele (coletivo), e usufruir da sua característica de proteção à sua saúde (co-

construção). O risco é o trabalhador se perder nesse caminho. Para isso, ele precisa ter

clareza do seu benfazer, dos meios que tem para realizar um trabalho benfeito, e esse

aspecto funcionar como um mapa/localizador das rotas que ele deve seguir para

restabelecer sua saúde; e, mais do que isso, de como criar modos de transformar sua

atividade de trabalho, ao ponto de renormalizá-la, de sentir-se ativo, de saber que é

122

detentor de um poder de ação, e não apenas um objeto a ser conduzido pelos receios e

angústias que a atual gestão da organização do trabalho pode suscitar.

123

Referências

Agambem, G. (2005). O que é um dispositivo? Outra Travessia, 5, 9-16.

Amador, F. S., Rocha, C. T. M., Brito, J. M., & Barros, M. E. B. (2016). A narrativa como

dispositivo metodológico em Clínicas do Trabalho. In 5o Congresso Ibero-Americano

em Investigação Qualitativa (Org.), Atas CIAIQ2016 (v. 2, pp. 420-428). Recuperado

de http://proceedings.ciaiq.org/index.php/ciaiq2016/article/view/779/766

Brito, R. V. A., & Zanella, A. V. (2017). Formação ética, estética e política em oficinas

com jovens: tensões, transgressões inquietações na pesquisa-intervenção. Bakhtiniana,

12(1), 42-64. Recuperado de http://dx.doi.org/10.1590/2176-457326093

Clot, Y. (2006). A função psicológica do trabalho. Petrópolis: Vozes.

Clot, Y. (2010a). Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum.

Clot, Y. (2010b). Le travail à coeur. Paris: La Découverte.

Lakatos, I. (1974). Criticism and the growth of knowledge. Cambridge: Cambridge

University Press.

Seligmann-Silva, E. (2011). Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si

mesmo. São Paulo: UFRJ/Cortez.

Seligmann-Silva, E. (2015). Desemprego e desgaste mental: desafio às políticas públicas

e aos sindicatos. Revistas Ciências do Trabalho, 4, 89-109.

Vigotski, L. S. (1991). A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos

psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes.

124

APÊNDICES

125

APÊNDICE A

Roteiro de entrevista individual semiestruturado

Roteiro para entrevista individual com o trabalhador adoecido – Analisar como os

condicionantes do processo de trabalho e as condições de desenvolvimento da atividade

influenciam o processo saúde-doença. Aqui, começa a tentativa de compreender o

cotidiano dos trabalhadores por meio do acesso à sua história de vida pelo e no trabalho.

Profissão:

Idade:

Escolaridade:

Renda:

Estado civil:

Filhos:

Tempo na Profissão:

Tipo de organização que trabalha:

1. História profissional

2. Relações atuais com o trabalho – jornada, tipo de atividade, vínculo contratual,

exigências físicas e psíquicas do trabalho

3. Atividades que desenvolve no trabalho

4. Início do processo de adoecimento

5. Estratégia(s) de enfretamento frente ao adoecimento

6. Como relaciona seu adoecimento com seu processo de trabalho?

7. Suporte recebido pela organização, pelos colegas de trabalho, pela família e

pelos amigos durante o período de adoecimento

126

8. Relação com o sindicato – como é o papel do sindicato diante dos trabalhadores

adoecidos?

9. Receio/angústia frente ao adoecimento

10. Percebe se os demais colegas de trabalho estão adoecendo? Do quê?

127

APÊNDICE B

História de vida pelo trabalho

Primeiro contexto/momento – Relações com a atividade de trabalho

Relação com o

trabalho

Ingresso no mundo do trabalho?

Como chegou à profissão atual?

Sentimento de

pertença à

atividade que

desenvolve

Noção de

trabalho

benfeito

Como se sente desenvolvendo a

profissão?

Considera que desenvolve bem a

atividade?

Rotina de

trabalho

(jornada, turnos,

atribuições)

Como avalia a rotina de trabalho?

Impedimentos

da atividade de

trabalho

O que gosta de fazer e faz?

O que faz, mas não gosta?

O que não gosta de fazer, mas faz?

O que não gosta de fazer, e não faz de

modo algum?

Reconhecimento Relação de reconhecimento da função

social do trabalho pelos pares – como a

128

família, os amigos, o social atribuem

importância ao seu trabalho?

Segundo contexto/momento – A vivência do adoecimento

O processo de

adoecimento

Como percebeu o adoecimento?

Relação do

adoecimento

com o trabalho

Como percebeu que o adoecimento tinha

relação com o trabalho?

Agir frente ao

adoecimento

Como agiu quando percebeu seu

adoecimento? Quem buscou?

E como está reagindo hoje?

Se pudesse mudar algo do trabalho, o que

mudaria?

Redes de apoio

diante do

adoecimento

Como foi o apoio, o papel da organização,

dos colegas, da família, dos sindicatos,

dos serviços de saúde diante do

adoecimento?

Terceiro contexto/momento – Relação com os coletivos de trabalho

Relações de

confiança e

cooperação

Considera que existe confiança entre seus

colegas de profissão e trabalho? Em que

momentos, por exemplo?

Em que momentos considera que existe

cooperação entre seus colegas de

profissão?

129

Engajamento

afetivo e

subjetivo

Considera que seus colegas de profissão,

de modo geral, gostam do seu trabalho, se

envolvem, se comprometem?

Constância nos

contatos entre os

trabalhadores

Como é o contato com seus colegas de

profissão no dia a dia de trabalho? –

finalidade.

Espaços de

debate sobre o

trabalho

Existem momentos de diálogo/conversa

entre seus colegas de profissão sobre o

trabalho? Com que frequência?

Geralmente, quando ocorre?

Suporte do

coletivo de

trabalho

Em que momentos considera que seus

colegas de profissão dão apoio um ao

outro?

Relação com

a(s) entidade(s)

de representação

coletiva –

sindicatos,

associações,

conselhos

Como é a sua relação com essas entidades

de representação coletiva?

130

APÊNDICE C

Caderno de memórias

Primeiro momento – Situação atual: o adoecimento na sua vida

Presente Como estou hoje?

Passado Como me via antes?

Futuro Como me vejo no futuro?

Segundo momento – Adoecimento e sua relação com o trabalho

O trabalho e

o processo

de

adoecimento

Como estou hoje com o meu trabalho?

O que considero que no meu trabalho me

faz sentir bem e com saúde?

O que considero que no meu trabalho me

faz sentir mal?

O que considero que no meu trabalho

leva ao adoecimento?

Como deveria ser meu trabalho para que

ele pudesse produzir saúde?

Agir frente

ao

adoecimento

O que mudou na minha vida depois que

adoeci?

Como estou enfrentando minha situação

atual de vida?

Redes de

apoio

Quem e como foi o apoio dado nessa

situação atual?

Terceiro contexto/momento – Papel dos coletivos de trabalho

131

Concepção

de coletivos

de trabalho

Quando penso em coletivos de trabalho,

a que me remete?

Relações de

confiança e

cooperação

Escolha um momento/situação em que

sentiu confiança e cooperação do seu

coletivo de trabalho. Como foi?

Engajamento

afetivo e

subjetivo

Escolha um momento/situação em que

seu coletivo de trabalho demonstrou

envolvimento com o trabalho. Como foi?

Escolha um momento em que seu

coletivo de trabalho não teve

envolvimento com o trabalho. Como foi?

Agir do

coletivo de

trabalho

Escolha um momento em que seu

coletivo de trabalho demonstrou

sucesso/êxito no trabalho. Como foi?

Escolha um momento em que seu

coletivo de trabalho não teve êxito no

trabalho. Como foi?

Espaços de

debate sobre

o trabalho

Em momentos de conflito, como o meu

coletivo de trabalho tem reagido? Como

foi?

Suporte do

coletivo de

trabalho

Como meu coletivo de trabalho me

ajudou nesse momento de adoecimento?

132

Considero que meu coletivo de trabalho

poderia fazer algo para evitar o

adoecimento da profissão? Como?