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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ
DEPARTAMENTO DE DIREITO
CAMPUS DE CAICÓ
JOSEANE MAGNA AZEVÊDO
TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO DE FAMÍLIA CONTEMPORÂNEO
À LUZ DA MODERNIDADE LÍQUIDA
CAICÓ/RN
2015
2
JOSEANE MAGNA AZEVÊDO
TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO DE FAMÍLIA CONTEMPORÂNEO
À LUZ DA MODERNIDADE LÍQUIDA
Artigo apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso
referente à Graduação em Direito do Centro de Ensino Superior
do Seridó -CERES, Universidade Federal do Rio Grande do
Norte – UFRN.
Orienteador: Prof. Msc. Dimitre Soares Braga de Carvalho
CAICÓ/RN
2015
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TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO DE FAMÍLIA CONTEMPORÂNEO
À LUZ DA MODERNIDADE LÍQUIDA1
Autora: Joseane Magna Azevêdo2
Orientador: Prof. Me. Dimitre Braga Soares de Carvalho3
RESUMO
Esse artigo trata do direito de família brasileiro no cenário da modernidade líquida, tema
tratado pelo sociólogo Zygmunt Bauman. Usando a pesquisa bibliográfica, será feita a análise
das mudanças históricas, sociais e culturais pelas quais o conceito de família passou no
decorrer das décadas e pelas quais continua sendo afetado. No direito de família é onde se
podem perceber mais claramente as consequências da sociedade líquido-moderna. O
casamento e a paternidade, enfim, as entidades familiares estão em contínua e veloz
transformação que nem sempre são acompanhadas pelo direito e vem sendo regidas pelo
princípio da afetividade.
Palavras Chave: direito de família; modernidade líquida; afetividade.
ABSTRACT
This article treat of the brazilian family law in the scenery of liquid modernity, subject
covered by the sociologist Zygmunt Bauman. Using bibliographic search, will be the analysis
of the historical, social and cultural changes that the concept of family has over the decades
and for which is still affected. In family law it is where you can see more clearly the
consequences of liquid-modern society. Marriage and fatherhood, finally, the family entities
1Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Direito do CERES/UFRN como requisito parcial para
a obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob a orientação do Professor Mestre Dimitre Braga Soares de
Carvalho. 2 Graduanda do curso de Direito bacharelado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail:
[email protected] 3 Mestre em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de
Direito de Família, Seccional - PB (IBDFAM/PB) e professor efetivo de Direito Civil pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN).
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are in continuous and rapid transformation that are not always accompanied by the right and
they are being governed by the principle of affectivity.
Keywords: family law; liquid modernity; affectivity.
I. INTRODUÇÃO
Inicialmente, propõe-se um exercício de reflexão para que se compreenda a
transformação histórica e social que se deu no mundo ocidental e especificamente no Brasil
nas últimas décadas. Como se comportava um indivíduo em seu âmbito familiar na década de
1940, quando havia muito mais rigidez nas organizações familiares? E como comporta-se na
atualidade? É importante entender as mudanças que se sucederam nesse período de tempo
para que enfim se possa compreender a ideia de modernidade líquida, um dos focos desse
trabalho.
A principal tese defendida por Bauman analisa as mudanças sociais que culminaram
na vivência atual e tem como polos opostos a modernidade sólida e a líquida, o pesado e o
leve, sendo a liquidez e a leveza as características da sociedade contemporânea. A ideia de
modernidade sólida já tem uma designação bastante clara. O sólido tem como características a
rigidez, a estabilidade e a dificuldade de se moldar sua forma.
Baseado nessa ideia não é difícil perceber que a modernidade sólida era comandada
por valores profundamente enraizados que não eram facilmente modificados. Pode-se dizer
que dentre seus princípios a estabilidade é um dos mais significativos, andando sempre em
conjunto com a imutabilidade e a permanência. Pensar a longo prazo era bastante comum na
modernidade sólida: o casamento era para toda a vida, assim como o trabalho, posto que
algumas pessoas podiam passar de 20 a 30 anos ou praticamente a vida toda trabalhando na
mesma empresa. Para pensar a longo prazo dessa maneira é necessário grande estabilidade, ou
seja, a garantia de imutabilidade, ou senão, de que não haveriam grandes mudanças durante
um longo período de tempo, talvez durante toda a vida. Com a garantia da estabilidade a vida
tornava-se previsível e, consequentemente, segura. Assim era bastante fácil solidificar-se, ou
seja, formar laços fortes, que prendiam o sujeito a um determinado local ou a uma
determinada pessoa.
Ocorre que a situação foi se modificando, pouco a pouco, para o que agora Bauman
nomeia como modernidade líquida, cujas características são quase que totalmente opostas à
6
solida. 4
As características como estabilidade, permanência e rigidez foram substituídos por
conceitos relativos à fluidez. Instabilidade, insegurança, flexibilidade e brevidade constituem
a modernidade líquida. Para o sociólogo, o grande fator que alterou a solidez foi a
transformação nas relações de trabalho. A sociedade moderna é totalmente voltada para o
consumo, buscando sempre algo novo, mais satisfatório que o produto anterior que tende a ser
descartado ao mínimo indício de obsolescência. Isso teve grande influência no modo de vida
da população, pois a mentalidade dos indivíduos está sendo moldada para perceber somente o
“curto prazo”5. Assim, não se cultiva aquilo que é duradouro, sólido.
Essa realidade está inegavelmente impregnada na vida do homem contemporâneo,
tendo grandes repercussões no seu trabalho, na convivência familiar e também com os
desconhecidos. Destituído de estabilidade, cheio de incertezas, ele não consegue ter uma ideia
clara de como será seu futuro, assim, é tomado de medos e preocupações. Não há garantias no
trabalho e tampouco nos relacionamentos. Desse modo, é mais difícil construir laços afetivos
sólidos e permanentes. Os laços leves e frágeis são mais fáceis de manter e de desfazer, pois
não implicam numa grande dependência pela outra parte, nem num compromisso seriamente
vinculante.
A sociedade de consumidores desse mundo contemporâneo é feita de uma constante
busca pela liberdade individual. Esse conceito de liberdade está muito atrelada à liberdade
para consumir. É preciso que o consumidor esteja sempre livre para apreciar e escolher entre
milhares de opções que lhe são apresentadas diariamente6. Entretanto, essa liberdade está
4 “O que todas essas características dos fluidos mostram, e linguagem simples, é que os fluídos, diferentemente
dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade. Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem
prendem o tempo. Enquanto os sólidos têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto,
diminuem a significação do tempo (resistem efetivamente ao seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos não
se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la; assim, para eles, o que
conta é o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem apenas ‘por um
momento’.” (BAUMAN, Modernidade líquida, 2001, pg. 8.) 5 “[...]o ingrediente principal da mudança múltipla é a nova mentalidade de “curto prazo”, que substituiu a de
“longo prazo”. Casamento “até que a morte nos separe” estão decididamente fora de moda e se tornam uma
raridade: os parceiros não esperam viver por muito tempo juntos. De acordo com o último cálculo, um jovem
americano com um nível médio de educação espera mudar de emprego 11 vezes durante sua vida de trabalho – e
o ritmo e frequência da mudança deverão continuar crescendo antes que a vida de trabalho dessa geração cabe.”
(BAUMAN, op. cit., 2001, pg. 169.) 6 “O mundo cheio de possibilidades é como uma mesa de bufê com tantos pratos deliciosos que nem o mais
dedicado comensal poderia esperar provar de todos. Os comensais são consumidores, e a mais custosa e irritante
das tarefas que se pode pôr diante de um consumidor é a necessidade de estabelecer prioridades: a necessidade
de dispensar algumas opções inexploradas e abandoná-las. A infelicidade dos consumidores deriva do excesso e
não da falta de escolha. “Será que utilizei os meios à minha disposição da melhor maneira possível?” É a
pergunta que mais assombra e causa insônia ao consumidor.” (Ibidem, 2001, pg. 75.)
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cheia de vícios, pois, estar livre na sociedade líquida significa não ter vínculos nem
comprometimento profundos, as amarras da modernidade sólida. Nessa nova realidade o ser
humano deve evitar compromissos que lhe tolham a liberdade de escolha.
De outro lado, tem-se a inevitável necessidade de fazer parte de algo, de pertencer,
pois mesmo numa sociedade de consumo extremamente individualista, o homem ainda sente a
necessidade de ter segurança7. E isso é algo que o consumidor não pode obter ficando
sozinho, mas tão somente se formar algum vínculo que lhe dê estabilidade, como a família,
por exemplo.
A dicotomia liberdade-segurança é o mais profundo dilema do homem
contemporâneo. Por um lado, liberdade (leveza) demais leva à perda total dos vínculos,
transformando o indivíduo num ser solitário que não pertence a lugar algum. De outro, a
segurança (peso) que os vínculos profundos trazem leva o indivíduo a ficar engessado,
amarrado a determinadas pessoas ou lugares. No mundo voltado ao consumo, ficar parado é
uma impossibilidade8. Dessa maneira, a única opção que restou ao indivíduo-consumidor foi
manter os liames extremamente frágeis. Ele sente que necessita dos vínculos afetivos, do
trabalho, entre outros, mas receia que esses laços se tornem pesados em demasia, ou seja, que
o prendam e o impeçam de desfrutar de todas as outras opções que a sociedade de consumo
oferece. Com a fragilidade dos laços, o indivíduo não tem muito trabalho em desfazer-se
deles, nem sentirá muito a sua perda, posto que não lhe afetavam profundamente. Também é
extremamente fácil conseguir formar novos laços, pois a característica da fragilidade estará
sempre presente nos mesmos. Para Bauman, a ambição maior do homem na atualidade é
manter uma relativa sensação de segurança, ao tempo que mantém toda a sua liberdade.
A velocidade das mudanças e o número quase que ilimitado de possibilidades é outra
grande característica da modernidade líquida. Essa velocidade é justamente aquilo que traz à
tona as demais características, especialmente a instabilidade e a incerteza pela rapidez com
que se concretizam as transformações do mundo líquido. Historicamente esse aumento da
velocidade está atrelado às conquistas tecnológicas, posto que as mesmas possibilitaram, por
7 “[...] aproximar-se e afastar-se para longe torna possível seguir simultaneamente o impulso de liberdade e a
ânsia por pertencimento” (BAUMAN, Amor líquido, 2004, pg. 51.) 8 “[...] Ser moderno passou a significar, como significa hoje em dia, ser incapaz de parar e ainda menos de ficar
parado. Movemo-nos e continuaremos a nos mover não tanto pelo “adiamento da satisfação”, como sugeriu Max
Weber, mas por causa da impossibilidade de atingir a satisfação: o horizonte da satisfação, a linha de chegada do
esforço e o momento da auto-congratulação tranquila movem-se rápido demais. [...]” (Idem, op. cit., 2001,
pg.37.)
8
exemplo, comunicação e transportes mais rápidos, numa busca incessante pela ideia de
instantaneidade.9
Importante ressaltar o seguinte: a mudança de sólido para líquido que a sociedade
sofreu não foi uma mudança súbita nem ocorreu do nada. Houve um vasto processo de
mudanças históricas, culturais e sociais – como o as inovações tecnologias, as mudanças no
mercado de trabalho e a inserção da mulher no mesmo, o abandono do patriarcalismo, entre
outros –, que ocorreram gradualmente e fizeram com que essa transformação fosse um
processo bastante natural. 10
É nesse contexto líquido-moderno que se localiza o presente trabalho. Como a
organização familiar reagiu diante da transição da solidez para a liquidez? E como a família se
comporta diante desses novos conceitos? Assim, propõe-se a análise do direito de família
contemporâneo sob a ótica da modernidade líquida.
II. MODIFICAÇÕES HISTÓRICAS NO DIREITO DE FAMÍLIA BRASILEIRO SOB
AS INFLUÊNCIAS DA MODERNIDADE LÍQUIDA
As modificações no modo de vida humano são uma constante no curso da história. O
direito, como um dos reguladores da sociedade, sempre está a acompanhar as transformações
sociais. Talvez seja melhor dizer que não está precisamente a acompanhar, mas a tentá-lo. O
direito positivado sempre surge como uma consequência jurídica de determinada situação
fática e, consequentemente, está sempre “atrasado” em relação à realidade.
Ao longo das últimas décadas esse “atraso” do direito, especialmente no que toca à
legislação, está cada vez mais perceptível. Isso é ainda mais claro no que diz respeito ao ramo
do direito de família. As transformações que as relações sociais e familiares estão sofrendo
nas últimas décadas estão cada vez mais rápidas, o que é perfeitamente normal no contexto da
modernidade líquida. O direito positivado, por sua própria natureza é sólido, cheio de
procedimentos e burocracia, ou seja, não se adapta muito bem à liquidez. O que lhe falta é a
9 “O “longo prazo”, ainda que continue a ser mencionado, por hábito, é uma concha vazia sem significado; se o
infinito, como o tempo, é instantâneo, para ser usado no ato e descartado imediatamente, então “mais tempo”
adiciona pouco ao que o momento já ofereceu. Não se ganha muito com considerações de “longo prazo”. Se a
modernidade sólida punha a duração eterna como principal motivo e princípio da ação, a modernidade “fluida”
não tem função para a duração eterna. O “curto prazo” substituiu o “longo prazo” e fez da instantaneidade seu
ideal último. [...]” (Ibidem, 2001, pg. 145.) 10 “[...] Mas a modernidade não foi um processo de “liquefação” desde o começo? Não foi o “derretimento dos
sólidos” seu maior passatempo e principal realização? Em outras palavras, a modernidade não foi “fluída” desde
sua concepção?” (BAUMAN, op. cit., 2001, pg.9)
9
capacidade de se moldar às dezenas de novas situações que surgem em pouquíssimo tempo,
especialmente no que tange às relações familiares.
A velocidade é uma das principais características da modernidade líquida11
. Nessa
sociedade, nada é feito para ter grande durabilidade, o que se aplica também às leis. É
inegável que atualmente as leis podem se tornar obseletas muito mais rapidamente do que há
vinte ou trinta anos atrás. Nesse contexto, a formação de jurisprudências nos tribunais
brasileiros foi bastante prática, uma vez que a aplicação da lei pode ser modificada e
interpretada de acordo com o momento vivido.
É imprescindível considerar os inúmeros fatores históricos e sociais como construtores
da modernidade líquida. A inclusão da mulher no mercado de trabalho, o controle de
natalidade e o divórcio são exemplos claros. O direito de família brasileiro passou pelo que
poderia ser chamado de reforma, diante das alterações que sofreu.12
Em 1962, através da Lei
nº 4.121, o Estatuto da Mulher Casada, a mulher em tal condição passou a ter um pouco mais
de igualdade com reação ao marido na sociedade conjugal, deixando de ser relativamente
incapaz. Em 1977, diante da Lei nº 6.615, os casos de divórcio começaram a serem regulados
no país. Nesse ano o direito finalmente reconheceu aquilo que já era socialmente aceito e
passou a regular esse instituto. Num país com profundas influências religiosas, o casamento
deixou de ser uma instituição de solidez absoluta.
A possibilidade do divórcio causou um profundo abalo na sociedade sólida, posto que
um dos seus pilares, o casamento, perdeu aquele caráter engessado e pesado. O matrimônio
não tem mais que durar a vida inteira. A consequente liberdade que o divórcio trouxe deu
fôlego à liquidez moderna.
11 “ “Indivíduos frágeis”, destinados a conduzir suas vidas numa “realidade porosa”, sentem-se como que
patinando sobre gelo fino; e “a patinar sobre gelo fino”, observou Raloh Waldo Emerson em seu ensaio
“Prudence”, “nossa segurança está em nossa velocidade”. Indivíduos, frágeis ou não, precisam de segurança,
anseiam por segurança, buscam a segurança e assim tentam, ao máximo, fazer o que fazem com a máxima
velocidade. Estando entre corredores rápidos, diminuir a velocidade significa ser deixado para trás; ao patinar em
gelo fino, diminuir a velocidade também significa a ameaça real de afogar-se. Portanto, a velocidade sobe para o
topo da lista dos valores de sobrevivência”. (BAUMAN, op. cit., 2001, pg. 239.) 12 “O Brasil participou das grandes mudanças que ocorreram no direito de família na década de 70 do século
passado, no mundo ocidental, havendo notáveis convergências nas soluções adotadas, principalmente na
realização do princípio da igualdade entre os cônjuges e entre os filhos de qualquer origem. O direito de família
que surgiu desse processo transformador, de acordo com a imensa evolução das relações familiares, pouco tem
de comum com o que se conheceu nas décadas e séculos anteriores. Nenhum ramo do direito privado renovou-se
tanto quanto o direito de família, que antes se caracterizava como o mais estável e conservador de todos.”
(LOBO, Direito civil: famílias, 2011, Pg. 43.)
10
A família brasileira, a partir da década de 1960, teve uma espécie de reconstrução se
formos compará-la àquela do início do século. A palavra chave, nesse caso é a igualdade. A
mulher, de dona de casa, provedora do conforto do lar, passou a incluir-se no mercado de
trabalho. Os filhos, ilegítimos e adotados, também alcançaram a condição de igualdade aos
filhos legítimos, mas apenas em 1988, através da Constituição da República.
A Carta Magna é, definitivamente, um marco no direito de família brasileiro. O artigo
226 da Constituição dispõe acerca de várias cláusulas fundamentais a essa nova fase. Entre
elas está o reconhecimento da união estável como entidade familiar, a igualdade de direitos e
deveres de ambos os cônjuges e o reconhecimento do divórcio como forma de dissolução do
casamento.
A Constituição Federal trouxe a proteção constitucional à família, mas é preciso deixar
claro que esta não se encontra nos moldes da tradicional família patriarcal das décadas
passadas. Não se enfatiza somente a família nuclear, formada pelo casamento, mas também a
união estável e a família monoparental. É claro que as entidades familiares não se limitam a
essas três, apesar de que somente elas estão expressas na Constituição, não sendo possível
criar um rol taxativo dessas organizações devido à constante mudança. Aliás, definir
taxativamente o que é uma família na modernidade líquida é imprudente, posto que essa
realidade não comporta conceitos rígidos.
II.i. Família sólida/pesada x família líquida/leve
Para compreender as diferenças entre a família sólida e a líquida é necessário
perguntar-se o seguinte: como seria a vida de uma família brasileira nas décadas de 1930 a
1940, por exemplo? E nesta década?
Pode-se dizer que nos meados de 1940 existia um “padrão” a ser seguido: a família era
nuclear, composta de pai, mãe e filhos, sendo que a mulher cuidava do lar enquanto o marido
provia o sustento financeiro; filhos ilegítimos eram mantidos à margem da família legítima e
não havia igualdade entre os descendentes; o divórcio era impopular e condenado pela
sociedade e, portanto, família monoparental só era plenamente reconhecida a de viúvo (a)
com seus filhos. Obviamente o “pilar” daquela sociedade era o casamento sacramentado pela
Igreja “até que a morte os separe”.
Pensar numa família contemporânea é pensar em pluralidade, ou seja, no lugar de
família, famílias. Nos últimos anos essa pluralidade familiar tem sido cada vez mais
11
reconhecida e protegida pela legislação e pela jurisprudência. O casamento deixou ter a força
absoluta das décadas passadas, abrindo espaço para a união estável (inclusive entre casais
homoafetivos), para famílias monoparentais e inúmeras outras formas de organização
familiar, o que caracteriza, mais do que nunca, a liberdade na construção dessas entidades
familiares13
.
Diante de tantas modalidades e tipos de organização familiar, o legislador corre o risco
de ficar para trás e não conseguir acompanhar as rápidas mudanças. Isso se evidencia
claramente na necessidade de vasta produção jurisprudencial, em detrimento da produção
legislativa. O Código Civil de 2002, apesar de não ter nem 20 anos de publicação já se
encontra um pouco defasado, especialmente no tocante ao direito de família. De outro lado, a
produção jurisprudencial tem dominado esta área, o que indica que o direito positivado,
advindo da legislação e burocrático, quase que não consegue mais acompanhar a velocidade
da modernidade líquida.
II.ii. Afetividade como princípio norteador das famílias pós-modernas
A família pós-moderna não é concebida para basear-se exclusivamente nos laços
sanguíneos, mas no afeto. Desconstruídos os laços sólidos das relações de parentesco da
modernidade sólida, resta agora a busca da conexão afetiva como verdadeiro construtor das
organizações familiares.
Isso não quer dizer que os laços sanguíneos, tecnicamente sólidos, devam ser
desprezados. O que ocorreu foi a desconstrução da solidez, das amarras familiares, mas não
dos próprios conceitos como casamento e filiação. Na perspectiva líquido-moderna, sem a
segurança dada automaticamente pela modernidade sólida, há um novo pilar fundamental,
sobre o qual se apoiam as famílias: o princípio da afetividade.
Não é exagero dizer que “todo o moderno Direito de Família gira em torno do
princípio da afetividade”.14
A Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, o Código Civil
de 2002 converteram o ser humano em protagonista objeto da proteção estatal.15
Se antes esse
protagonista era o patrimônio, ao longo das últimas décadas houve uma mudança gradual e
13 “Pode-se dizer que a evolução da família expressa a passagem do fato natural da consanguinidade para o fato
cultural da afetividade, principalmente no mundo ocidental contemporâneo.” (LOBO, op. cit., 2011, pg. 29.) 14 STOLZE; PAMPLONA, Novo curso de Direito Civil: direito de família – As famílias em perspectiva
constitucional, 2014, pg. 87. 15 LOBO, op. cit., 2011, pg. 25.
12
significativa, passando ser o homem a principal preocupação do legislador. Os princípios
constitucionais, em especial a dignidade da pessoa humana, foram uma parte de grande
importância nessa transformação, pois põem o ser humano e seus interesses, sua felicidade,
como prioridades.
Por óbvio, o princípio da afetividade cresce em solo fértil no ramo do direito de
família e das sucessões. Não há outro ramo do direito onde o amor tenha maior valor jurídico
que neste. Nos últimos anos, a afetividade tem crescido bastante e a tendência é que seja
usada como princípio norteador para o direito de família. Entretanto, esse princípio ainda
sofre alguma resistência em alguns tribunais brasileiros. Veja-se, por exemplo, o caso da
paternidade biológica versus paternidade socioafetiva. Aquela, critério puramente biológico, é
um resquício dos laços rígidos da modernidade sólida que ainda não se dissolveu. Já a
paternidade socioafetiva é uma legítima representante dos laços formados na modernidade
líquida. Ao refletir sobre essa questão, o que se deve ter em conta é que nem todos os
resquícios da modernidade sólida foram substituídos pelos líquidos. A questão da
paternidade/filiação biológica é um dos laços mais sólidos de que se tem notícia e não é
surpresa que o mesmo ainda subsista.
Entretanto, o que não pode ser negado é que a família atualmente é um espaço que visa
a realização pessoal e afetiva de seus membros16
, deixando de lado a preocupação com o
patrimônio, num processo que Lobo chama de repersonalização do direito de família17
.
Pelo já exposto, é possível se ter uma ideia do significado do princípio da afetividade,
que nada mais é do que “o princípio que fundamenta o direito de família na estabilidade das
relações socioafetivas e ma comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de
caráter patrimonial ou biológico18
”. Sua aplicação no direito de família não se restringe
somente à questão da paternidade, mas está implícita em todos os tipos de entidade familiar,
além de criar deveres bastante singulares, como o dever de dar afeto, questão a ser tratada
posteriormente.
16 LOBO, op. cit., 2011, pg. 25. 17 “A família tradicional aparecia através do direito patrimonial e, após as codificações liberais, pela
multiplicidade de laços individuais, como sujeitos de direito atomizados. Agora, é fundada na solidariedade, na
cooperação, no reseio á dignidade de cada um de seus membros, que se obrigam mutuamente em uma
comunidade de vida. A família atual é apenas compreensível como espaço de realização pessoal afetiva, no qual
os interesses patrimoniais perderam seu papel de principal protagonista. A repersonalização de suas relações
revitaliza as entidades familiares, em seus variados tipos e arranjos”. (Ibidem, 2011, pg. 27.) 18 Ibidem, 2011, pg. 70.
13
III. MODALIDADES DE FAMÍLIA
Ao fazer uma leitura do artigo 226 da Constituição Federal19
, pode-se perceber a
menção expressa a três tipos de entidades familiares: o casamento, a união estável e a
monoparentalidade. A partir daí, poderia ter-se a equivocada ideia de que somente essas
entidades familiares merecem a proteção constitucional, ou de que haveria uma priorização de
uma em detrimento de outras. Não é esse o caso.
A Carta Magna não trouxe um rol taxativo do que é considerado ou não como entidade
familiar, o que é compreensível, em virtude da pluralidade nesta área. Ademais, o direito
procura tratar igualitariamente todas as organizações familiares, sem hierarquia ou grau de
importância. A união estável, o casamento e a família monoparental são, simplesmente, as
entidades mais comuns no Brasil, daí sua menção na Constituição Federal.
Sendo o direito de família um regulador na esfera privada das relações pessoais, que
tem seus liames baseados principalmente na vontade subjetiva dos partícipes, é incabível que
as normas reguladoras sejam estanques ou que limitem a liberdade dos sujeitos. O direito deve
ser includente, procurando sempre medidas de proteção às entidades familiares já formadas e
em formação. A exclusão de alguma entidade familiar acaba violando a liberdade de escolha
dos indivíduos e ferindo a dignidade da pessoa humana.
III.i. Casamento
O casamento sofreu, inegavelmente, uma grande mudança de perspectiva nessas
décadas de transformação de modernidade sólida para líquida. Com a pluralidade de entidades
familiares e a enorme liberdade na formação das mesmas, essa organização familiar perdeu
seu posto de exclusividade e de importância.
O casamento é a instituição mais formal e mais reconhecida no país. Nas décadas
passadas, esta era a entidade familiar que legitimava a união e os filhos nascidos dela, mas
também era excludente daqueles nascidos fora do matrimônio. Em 1977, com a
19 “ Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1.º O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2.º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
3.º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4.º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes.
[...]” ( BRASIL, Constituição Federal, 1988.)
14
regulamentação do divórcio, sofreu um grande abalo na sua importância, pois passou a ser
mais facilmente dissolvido, perdendo o caráter perpétuo.
Sendo um evento cheio de formalidades e burocracia, acabou perdendo espaço para
outras entidades familiares, como a união estável, que carece de tais características. Na
sociedade consumista, a facilidade de conectar-se e desconectar-se é um atrativo sem igual
quando se fala em laços afetivos – facilidade essa que o casamento não comporta.
Ao longo da história, o casamento era reconhecidamente “o único mecanismo legítimo
de criação da família”20
, em virtude da forte influência religiosa na sociedade. Entretanto, a
religiosidade também foi afetada pelo derretimento dos sólidos, como nomeou Bauman, tendo
sido afastada do Estado. Assim, fragilizada a religião, consequentemente o foi o casamento.
Na perspectiva contemporânea, as entidades familiares visam o bem maior de permitir
a satisfação pessoal de seus membros. Dessa forma, o casamento não tem mais apenas as
funções de guardar o patrimônio ou de legitimar os filhos, mas de fornecer o suporte
necessário à realização pessoal dos cônjuges.
Bauman afirma que houve uma transformação de quase todas as coisas em bens de
consumo. Isso engloba até mesmo as relações pessoais, como o casamento, que agora são
descartadas muito facilmente se não satisfazem o “consumidor”. “De forma gradual, mas
incansável”, a síndrome do consumo “toma conta das relações e dos vínculos entre os seres
humanos”21
.
Essa transformação em objeto de consumo é muito perceptível na questão do
casamento e, em geral, nas ligações amorosas22
. Como bens de consumo, essas relações tem
uma vida útil que, segundo a prática moderna, não deve ser muito longa. Muitas vezes falta
paciência para tratar com o casamento, pois o mesmo demanda muito esforço e tempo do
consumidor, que está acostumado à rapidez e a troca constante de produtos. Desse modo, a
vida útil do casamento está diminuindo cada vez mais enquanto que os consumidores buscam
20 STOLZE; PAMPLONA, op. cit., 2014, pg. 112. 21 BAUMAN, Vida líquida, 2007, pg. 115. 22 “ [...] Por que os relacionamentos seriam uma exceção ao restante das regras da vida? Para funcionar
propriamente e fornecer a satisfação prometida e esperada, os relacionamentos precisam de manutenção
constante e manutenção dedicada. Quanto mais tempo duram, mais difícil torna-se manter a atenção e o serviço
de manutenção necessário ao dia-a-dia. Consumidores acostumados com produtos de consumo que envelhecem
com rapidez e são prontamente substituídos acharão incômodo, além de um desperdício de tempo, preocupar-se
comm uma coisa dessas, e se apesar disso resolverem prosseguir, carecerão dos hábitos e habilidades
necessários. [...]” (Ibidem, 2007, pg. 115.)
15
relações (produtos) de menor durabilidade e de satisfação imediata que não demandem tanto
esforço de sua parte nem sejam laços tão pesados23
.
Mesmo vendo o casamento como bem de consumo, ainda subsiste a necessidade que o
indivíduo sente de buscar a segurança nos laços afetivos. Pode-se dizer que o casamento, sem
perder sua característica de objeto, supre a necessidade de segurança, entretanto, como objeto,
tem prazo de validade24
.
Essa perspectiva é um tanto sombria. Entretanto, não se deve olvidar que, estando a
sociedade em permanente mudança (ou permanente liquefação), o matrimônio não está
totalmente fora do páreo. Como a mais tradicional entidade familiar, ele ainda angaria muitos
adeptos.
III.ii. União estável
A união estável, sendo um processo bem menos formal que o casamento, é uma das
formas de entidades familiares mais populares no Brasil. A informalidade e a facilidade na
formação e dissolução da união é bastante atrativa aos consumidores da sociedade líquida.
Morar junto, prescindindo das formalidades do casamento permite bastante liberdade em fazer
e desfazer essas uniões. Ademais, nos últimos anos vem sendo amplamente reconhecidas as
uniões homoafetivas, num grande avanço rumo à igualdade também para essas pessoas,
anteriormente marginalizadas.
Historicamente, quando o casamento era a única forma “legítima” de constituir
família, a união estável era bastante confundida com o concubinato, tendo uma carga muito
negativa de discriminação25
. Viver junto sem estar casado não era moralmente aceitável, pois
23 “O casamento é ato jurídico negocial solene, público e complexo, mediante o qual um homem e uma mulher
constituem família, pela livre manifestação de vontade e pelo reconhecimento do Estado. [...]” (LOBO, op. cit.,
2011, pg. 99). A burocracia, a solenidade e a complexidade do ato podem tornar o casamento excessivamente
pesado, fazendo-o um pouco indesejável ao indivíduo-consumidor. 24 “ [...] Pressionados, a maioria de nós poderia enumerar momentos em que nos sentimos apaixonados e de fato
estávamos. Pode-se supor (mas será uma suposição fundamentada) que em nossa época cresce rapidamente o
número de pessoas que tendem a chamar de amor mais de uma de suas experiências de vida, que não garantiriam
que o amor que atualmente vivenciam é o último e que têm a expectativa de viver outras experiências como essa
no futuro. Não devemos nos surpreender se essa suposição se mostrar correta. Afinal, a definição romântica de
amor como “até” que a morte nos separe”está decididamente fora de moda, tendo deixado para trás seu tempo de
vida útil em função da radical alteração das estruturas de parentesco às quais costumava servir e de onde extraía
seu vigor e sua valorização. [...]” (Bauman, op. cit., 2004, pg. 19)
25 “A união estável, inserida na Constituição de 1988, é o epílogo de lenta e tormentosa trajetória de
discriminação legal, com as situações existenciais enquadradas sob o conceito depreciativo de concubinato,
16
afrontava a religiosidade que dominava a constituição da família. Somente em 1988, com a
inclusão dela como entidade familiar na Constituição Federal, foi reconhecido o seu status de
família.
As uniões estáveis são muito interessantes para o consumidor líquido-moderno, uma
vez que não exige formalismos em sua criação. Desse modo, a constituição e a
desconstituição da união são muito mais fáceis de serem feitas. Esta aí a ideia vigente na
modernidade líquida de conectar-se e desconectar-se à vontade, sem grandes dificuldades.
Está claro que a união estável vem sendo alçada, desde 1988, ao cargo de protagonista
no direito de família contemporâneo. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatistica, as uniões estáveis representam cerca de 1/3 do total de uniões afetivas do país.26
Há poucos anos, foi jurisprudencialmente reconhecida a possibilidade da existência da
união homoafetiva, ou seja, entre pessoas do mesmo sexo27
. Tal inovação causou grande
polêmica na época, posto que o lado mais conservador pôs bastante oposição àquela decisão.
De modo geral, os juristas reconheceram judicialmente uma situação fática já bastante
comum. A união estável não necessita de formalismo posto que é uma situação fática,
portanto, se for analisada dessa perspectiva, a união homoafetiva já era algo comum, mas
distante do mundo jurídico. Ao reconhecer essa realidade fática, o direito estendeu a proteção
constitucional à essa modalidade de família.
definido como relações imorais e ilícitas, que desafiavam a sacralidade atribuída ao casamento. [...]” (LOBO, op.
cit., 2011, pg. 169.)
26 Disponível em:
http://censo2010.ibge.gov.br/noticiascenso.html?view=noticia&id=3&idnoticia=2240&busca=1&t=censo-2010-
unioes-consensuais-ja-representam-mais-13-casamentos-sao-frequentes-classes. 27 “Tratou-se de uma decisão de vanguarda, que já encontrava precedentes até mesmo em decisões de natureza
administrativa33, mas que, naquele momento, constituiu-se um verdadeiro norte para outros casos, já que
emanado do
Superior Tribunal de Justiça.
Finalmente, a matéria chegou para apreciação do Supremo Tribunal Federal, por meio da Ação Direta
de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132,
ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e pelo governo do Rio de Janeiro, em que se discutiu
especificamente se seria possível equiparar a união entre pessoas do mesmo sexo à entidade familiar, prevista no
art. 1.723 do Código Civil brasileiro.
Na histórica sessão do dia 5 de março de 2011, os ministros do STF reconheceram, definitivamente, a
união homoafetiva como uma entidade familiar.
O julgamento, relatado pelo ministro Ayres Britto, foi no sentido de dar ao art. 1.723 do referido
Código interpretação conforme a Constituição Federal, e para dele excluir “qualquer significado que impeça o
reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como ‘entidade familiar’,
entendida esta como sinônimo perfeito de ‘família’” ” (STOLZE; PAMPLONA, op. cit., 2014, pg. 489).
17
Ainda mais controversa é a possibilidade da conversão de união homoafetiva em
casamento. Devido, principalmente, à grande influência religiosa na sociedade brasileira, há
muitos setores que se mostram contrários à conversão. Infelizmente a jurisprudência
acompanhou essa posição, não sendo possível, ainda, o casamento homoafetivo.
O que se pode perceber quanto ao tema é que essas decisões jurisprudenciais estão
tomando o espaço que deveria ser do legislador. Não existem leis em vigor que tratem da
união homoafetiva, deixando claro que o direito positivado, extremamente burocrata, não
consegue acompanhar a velocidade das mudanças realizadas. A tarefa de decidir acerca do
tema caiu nas mãos dos tribunais, que podem dar uma resposta muito mais rápida e objetiva.
Assim, é provável que o direito de família se volte cada vez mais para a produção
jurisprudencial em detrimento dos Códigos.
III. iii. Concubinato
Tendo sido confundido por muito tempo com a união estável, atualmente o
concubinato é definido pelo artigo 1727 do Código Civil como: “As relações não eventuais
entre o homem e a mulher, impedidos de casar [...]”28
. Na atualidade, o concubinato é mais
comum quando se refere às relações adulterinas, quando uma das partes já é casada, mas
mantém uma ligação amorosa com outra pessoa. É importante frisar que o concubinato é
caracterizado pela não eventualidade, ou seja, a relação deve ser duradoura para que
caracterizá-lo, um critério bastante similar aos requisitos da união estável. Ocorre que, mesmo
com similaridades, o concubinato e a união estável não são a mesma coisa. Tanto é que o
concubinato não é considerado como entidade familiar.
A doutrina e a jurisprudência se dividem ao tratar do tema, especialmente quanto aos
direitos que o(a) concubino(a) teria advindos dessa relação. Quanto aos filhos do casal, estes
teriam os mesmo direitos que qualquer outro, pois não existe mais distinção entre tipos de
filhos. A concubina, entretanto, não tem o mesmo tratamento que a companheira da união
estável, isto porque, como já dito, o concubinato não é tratado ainda como entidade familiar.
Desse modo, as reparações a que a concubina teria direito são tratadas pelo direito das
obrigações.
Cabe frisar que a questão dos direitos da concubina está ainda em debate, não havendo
uma direção definitiva para o caso. Um exemplo disso é a decisão do recurso extraordinário
28 BRASIL, Código Civil, 2002.
18
RE 3977628/BA, onde se discutia se a concubina que viveu 37 anos com um homem casado
poderia dividir a pensão com a viúva29
. Apesar de ter sido negada a pensão à concubina, foi
discutido se aquela união havia ou não constituído um núcleo familiar.
Há muitos anos o adultério deixou de ser considerado fato tipicamente criminoso.
Agora há essa discussão no âmbito do direito de família acerca da possibilidade da
coexistência do concubinato com o casamento, no que parece uma grande flexibilização
daquilo que é moralmente aceitável ou não.
Modernamente, com os laços que compõem as relações afetivas tão fragilizados, já é
possível vislumbrar a coexistência de mais de um vínculo afetivo ao mesmo tempo. E por que
não, já que os indivíduos têm plena liberdade para conduzirem suas vidas?
Uma expressão que surgiu há poucos anos é o poliamorismo, ou poliafetividade, que
“admite a possibilidade de coexistirem duas ou mais relações afetivas paralelas, em que seus
partícipes conhecem-se e aceitam-se uns aos outros, em uma relação múltipla e aberta30
”.
Depreende-se desse conceito que o poliamorismo não é o mesmo que existirem duas ou mais
relações simultâneas, mas que estas não devem ser “escondidas”, ou seja, para que seja
caracterizado, é necessário o conhecimento e a aceitação de todos os partícipes.
Em um mundo onde até as relações afetivas tornaram-se produtos, o poliamor está
enquadrado no vasto “cardápio” de possibilidades onde o homem da modernidade líquida vai
buscar sua satisfação pessoal. Se um vínculo afetivo não supre sua necessidade e lhe satisfaz,
quem sabe a resposta não esteja na quantidade?
III.iv. Outras modalidades
Como já dito, o direito de família tem uma ampla gama de possibilidades na
construção de novos tipos de entidades familiares. Essas possibilidades dependem tão
somente da liberdade individual e do afeto.
As famílias recompostas com a presença de padrastos e enteados, a monoparental com
um dos genitores e seus descendentes, netos que moram com avós e irmãos que vivem juntos
são um pequeno exemplo da amplitude quando se trata desse assunto. Em suma, o direito na
29 STOLZE; PAMPLONA, op. cit., 2014, pg. 489. 30 STOLZE; PAMPLONA, op. cit., 2014, pg. 465.
19
pode excluir esses arranjos da sua esfera de atuação, mas também não pode tratá-los de modo
diferenciado da família nuclear.
Algumas organizações familiares, como a família recomposta e a monoparental tem
ligação direta com a fragilização do casamento. Essas pessoas, oriundas de uma união
decomposta, procuram constituir novas famílias, numa busca incessante pela felicidade e pelo
sentimento de pertencimento. Ademais, as novas tecnologias permitem à mãe ter seus filhos
através do procedimento da inseminação artificial, sendo que esta família não precisará ser
constituída por um pai.
As relações afetivas moldam essas organizações familiares, posto que elas são feitas
através da escolha, do querer de seus participantes, respeitando a liberdade individual tão
aclamada nos tempos líquidos. Ademais, a busca por uma família demonstra que esses
indivíduos estão em busca de um pouco de segurança e de pertencimento, escapando da
solidão tão comum aos indivíduos-consumidores.
IV. FILIAÇÃO
Até agora foi demonstrado que os vínculos afetivos estão muito frágeis, que são fáceis
de se desintegrarem e que têm como principal função a satisfação das pessoas neles
envolvidos. É fácil identificar essas características nos casais, mas e os filhos? Quando se
trata dos filhos será que os laços afetivos são frágeis? São eles um produto de consumo para
seus pais?
Essas questões são muito difíceis de responder. O liame da paternidade/maternidade é
indissolúvel, eterno e, voltando ao tema da liberdade do consumidor, pode fazer com que o
pai ou mãe se sinta um pouco sufocado pelo peso desse vínculo. Na realidade, a figura dos
filhos é um limitador à liberdade individual, mas também é um vínculo que traz segurança aos
pais, como é comum nos laços afetivos.
Bauman afirma que “esta é uma época em que um filho é, acima de tudo, um objeto de
consumo emocional”31
. Essa afirmação é significativa na medida que, no mundo
contemporâneo, especialmente nas grandes metrópoles, a solidão dos indivíduos-
consumidores é um dos maiores bichos-papões da modernidade líquida. Estar sozinho no
meio da multidão de consumidores é bastante comum, mas a necessidade de ter algum laço
31 BAUMAN, op. cit., 2004, pg. 59.
20
afetivo é inerente ao ser humano. Assim, ter um filho muitas vezes é um meio para acabar
com a solidão e nessa situação ocorre a “objetificação” da criança, pois ela será um produto
suprindo a carência emocional dos pais.
Não se deve interpretar genericamente essa situação, pois ela realmente não o é. Não
podemos dizer que todos os pais têm filhos para suprir sua própria carência emocional, pois
isso não corresponde à realidade. Filhos exigem bastante dedicação e não “bens” duráveis,
portanto, é necessária muita paciência e muitos recursos do “consumidor” para mantê-los. Na
modernidade líquida, sendo a facilidade, a praticidade e a curta duração tão importantes, os
filhos podem se tornar uma carga extremamente pesada e limitante32
.
A filiação tem sido bastante discutida na doutrina e na jurisprudência atual,
principalmente devido á aplicação do princípio da afetividade nessa área. Sem dúvidas é aqui
que vemos a importância do afeto como norteador do direito de família brasileiro.
IV.i. Paternidade socioafetiva versus biológica
A paternidade socioafetiva é um tema que vem sendo constantemente mencionado nos
tribunais brasileiros. A discussão gira do torno dos critérios que devem prevalecer para
determinar a condição.
O critério biológico era aquele comumente utilizado para decidir se havia ou não o
vínculo da filiação. A investigação de paternidade, por exemplo, usa esse critério. Ocorre que
existem críticas muito válidas na sua utilização. O critério biológico nem sempre é o mais
acertado, posto que nem sempre o pai biológico é também o pai afetivo. Os filhos podem
crescer sem a presença daquele(a) que lhes gerou, não tendo nenhum laço afetivo com ele(a).
Em suma, esse critério, ao mostrar a verdade biológica nem sempre mostrará a realidade
fática.
Já o critério socioafetividade dá primazia à realidade fática em detrimento da
biológica. Transportando o conceito para a linguagem popular, pode-se dizer que “pai é quem
32 “Com a nova fragilidade das estruturas familiares, com a expectativa de vida de muitas famílias sendo mais
curta do que a de seus membros, com a participação em determinada linhagem familiar, tornando-se rapidamente
um dos elementos “indetermináveis” da líquida era moderna e com a adesão a uma das diversas redes de
parentesco disponíveis transformando-se, para um crescente número de indivíduos, numa questão de escolha, até
segunda ordem, revogável –, um filho pode ser ainda “uma ponte” para algo mais duradouro. Mas a margem a
que essa ponte conduz está coberta por uma neblina que ninguém espera que venha a se dissipar, e portanto é
improvável que provoque muita emoção, menos ainda que provoque o desejo inspirador da ação. [...]”
(BAUMAN, op. cit.,, 2004, pg. 59.)
21
cria”. Isso faz todo o sentido, posto que, na prática, o laço afetivo se forma com a convivência
e o vínculo biológico perde sua importância diante disso33
.
O critério biológico entra em cena no momento em que é necessária uma investigação
de paternidade, por exemplo, mas quase sempre envolve interesses econômicos. Há interesse
no reconhecimento da paternidade biológica principalmente quando estão em jogo verbas
alimentares ou herança. Muitas vezes, o reconhecimento do vínculo de parentesco afasta a
realidade fática, consistente na paternidade socioafetiva, num retrocesso evidente.
Está claro que o afeto, tendo primazia na formação da família, deve também ter
primazia sobre os outros critérios para determinar a condição de filho. Negar isso seria negar
a realidade vivida no país.
IV.ii. Multiparentalidade
A possibilidade do reconhecimento de mais de um vínculo de paternidade ou, melhor
dizendo, de mais de um vínculo afetivo, é o que comumente se chama de multiparentalidade.
É possível ter mais de um pai e de uma mãe, desde que se comprove que existe realmente esse
tipo de vínculo afetivo.
O afeto, na modernidade líquida, pode ser direcionado a mais de um pai e de uma mãe,
pois essas funções não têm mais o caráter rígido da modernidade sólida. A perda da rigidez
das organizações familiares agora deixa os laços afetivos sem limitações de a quem são
dirigidos e, nesse momento, impera a liberdade para fazer e desfazer os laços.
IV.iii. Abandono afetivo
O afeto, como já visto, tem valor jurídico e é a base formadora da família. Dar amos
aos filhos é um dever que não se encontra escrito em nenhuma lei brasileira, mas é ainda um
dever? A falta de afeto pode ensejar o dever de reparação?
É certo que, na modernidade líquida o afeto também tem valor monetário, como
qualquer “produto” essencial à vida humana. Stolze diz que “os partidários da tese defendem
a ideia de uma paternidade/maternidade responsável, em que a negativa de afeto, gerando
33 “As relações de consanguinidade, na prática social, são menos importantes que as oriundas de laços de
afetividade e da convivência familiar, constituintes do estado de filiação, que deve prevalecer quando houver
conflito com o dado biológico, salvo se o princípio do melhor interesse da criança ou o princípio da dignidade da
pessoa humana indicarem outra orientação [...]” (LOBO, op. cit., 2011, pg. 27.)
22
diversas sequelas psicológicas, caracterizaria um ato contrário ao ordenamento jurídico e, por
isso, sancionável no campo da responsabilidade civil34
”.
Por outro lado, há aqueles que afirmam que o afeto não é um dever jurídico e o Estado
não pode obrigar ninguém a amar ninguém35
.
Há grande controvérsia acerca desse assunto não é sem razão. Se as decisões deferindo
reparação indenizatória se tornarem populares, os tribunais estarão colocando uma etiqueta de
valor no amor, que se caracterizará tão somente como um bem de consumo e perderá sua
espontaneidade. Existe um dever intrínseco de amor dentro da família, mas o Estado não tem
condições de regular a falta de amor, já que essa é uma questão muito pessoal e não se deve
admitir tal invasão da privacidade.
V. CONCLUSÃO
O presente momento, onde se vive plenamente os efeitos da modernidade líquida, é
fruto de uma longa mudança cultural e social, onde a sociedade sólida teve grande parte de
seus princípios e instituições “derretidos” para darem lugar aos novos conceitos líquidos.
Várias instituições sofreram um “derretimento”, tais como a religião e o casamento,
entre vários outros, que fizeram com que o conceito de família fosse gradualmente
modificado. Se antes a instituição era nuclear e patrimonial, atualmente é voltada para a
satisfação e a felicidade de seus membros.
Liquidez na contemporaneidade é sinônimo de leveza, de velocidade, insegurança e de
curto prazo. A sociedade líquida cultua a rapidez na transformação das coisas, sendo que nada
é feito para durar. A modernidade líquida é uma sociedade de consumo, onde tudo (ou quase
tudo) é transformado em “objeto”, ou seja, tudo é valorado monetariamente. Desse modo, o
indivíduo é apresentado a uma infinidade de possibilidades e tem de escolher aqueles “bens”
que melhor satisfaçam seus anseios. Em meio a essa infinita gama de possibilidades e à
liberdade total de escolha, eles ainda necessitam de algo que lhes dê segurança, que lhes dê
34 STOLZE; PAMPLONA, op. cit., 2014, pg. 740. 35 “Já aqueles que se contrapõem à tese sustentam, em síntese, que a sua adoção importaria em uma indevida
monetarização do afeto, com o desvirtuamento da sua essência, bem como a impossibilidade de se aferir
quantidade e qualidade do amor dedicado por alguém a outrem, que deve ser sempre algo natural e espontâneo, e
não uma obrigação jurídica, sob controle estatal.” (Ibidem, 2014, pg. 740).
23
um sentimento de pertencer, de estar ligado a algum lugar ou a alguém. Conciliar a liberdade
e a segurança é uma das tarefas mais difíceis do consumidor no mundo de hoje.
A segurança está totalmente atrelada com os laços afetivos, logo, esta advém da
organização familiar. Entretanto, é necessário que os laços permaneçam frouxos, ou seja, que
não limitem demais a liberdade de cada indivíduo, sob pena de se tornarem excessivamente
onerosos.
A família pós-moderna, cujos valores substituíram os da família sólida, tem como
principal pilar a afetividade. Naturalmente esta se fixa melhor no cenário da modernidade
líquida posto que o afeto está intimamente ligado à liberdade individual. O afeto é dado
livremente e não está atrelado a nenhuma instituição ou a formalismo, assim, é o melhor
ingrediente possível para a construção da família liquida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução de
Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
________. Modernidade líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
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BRASIL. Código Civil. Brasília. 2002. Disponível em: <
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em:
< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 05. Nov.
2015.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil:
direito de família – As famílias em perspectiva constitucional. Volume 06, 4ª ed. rev. e atual.
São Paulo: Saraiva, 2014.
IBGE. Censo 2010: Uniões consensuais já representam mais de 1/3 dos casamentos e são
mais frequentes nas classes de menor rendimento. Disponível em:
<http://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo.html?view=noticia&id=3&idnoticia=2240&