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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE ARTES CURSO DE LICENCIATURA EM TEATRO TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO MEMORIAL LUIZ EDUARDO SILVA COSTA EXISTIR: A FORMAÇÃO INTEGRAL DO ATOR COMO AÇÃO POLÍTICA DE RESISTÊNCIA COLETIVA NO SURGIMENTO DO ESPAÇO TEATRAL NATAL 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES

CURSO DE LICENCIATURA EM TEATRO

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO – MEMORIAL

LUIZ EDUARDO SILVA COSTA

EXISTIR: A FORMAÇÃO INTEGRAL DO ATOR COMO AÇÃO POLÍTICA DE

RESISTÊNCIA COLETIVA NO SURGIMENTO DO ESPAÇO TEATRAL

NATAL

2019

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · 2019. 12. 15. · FIGURA 7 – Cena das putas na adaptação de A opera dos três vinténs. FIGURA 8 – Turma de Atuação

LUIZ EDUARDO SILVA COSTA

EXISTIR: A FORMAÇÃO INTEGRAL DO ATOR COMO AÇÃO POLÍTICA DE

RESISTÊNCIA COLETIVA NO SURGIMENTO DO ESPAÇO TEATRAL

Memorial apresentado à Universidade Federal

do Rio Grande do Norte – UFRN, como

Trabalho de Conclusão de Curso – TCC, do

Curso de Licenciatura em Teatro, enquanto

requisito obrigatório para obtenção do título de

licenciado em Teatro.

Orientadora: Prof.ª Mª. Mayra Montenegro.

NATAL

2019

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART

Costa, Luiz Eduardo Silva.

Existir : a formação integral do ator como ação política de

resistência coletiva no surgimento do espaço teatral / Luiz Eduardo Silva Costa. - 2019.

70 f.: il.

Memorial (licenciatura) - Universidade Federal do Rio Grande

do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Licenciatura em Teatro, Natal, 2019.

Orientadora: Prof.ª M.ª Mayra Montenegro de Souza.

1. Coletivo. 2. Teatro de grupo. 3. Formação de professor-

ator. I. Souza, Mayra Montenegro de. II. Título.

RN/UF/BS-DEART CDU 792

Elaborado por Luiz Eduardo Silva Costa - CRB-X

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LUIZ EDUARDO SILVA COSTA

EXISTIR: A FORMAÇÃO INTEGRAL DO ATOR COMO AÇÃO POLÍTICA DE

RESISTÊNCIA COLETIVA NO SURGIMENTO DO ESPAÇO TEATRAL

Memorial apresentado a Universidade Federal

do Rio Grande do Norte – UFRN, como

Trabalho de Conclusão de Curso – TCC, do

Curso de Licenciatura em Teatro, enquanto

requisito final para obtenção do título de

licenciado em Teatro.

Aprovado em: 26/11/2019.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________

Prof.ª M.ª Mayra Montenegro de Souza

Orientadora – Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN

______________________________________________________

Prof. Me. Leandro Augusto e Silva Miranda Cavalcante

Examinador – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte –

IFRN

______________________________________________________

Me. Diogo de Oliveira Spinelli

Examinador externo – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho especialmente a minha amada mãe, Maria Das Graças Silva Costa,

mulher, esposa, mãe, avó, sonhadora, guerreira. Sem ela nada seria possível. Dedico cada

segundo, cada minuto, cada hora, cada dia, cada noite, cada ano, cada tempo, cada luta, cada

sonho, cada conquista a você. Mãe, você sempre será a minha melhor professora!

Dedico também a todos os jovens pobres, gays e negros! Que assim como eu, em meio

a todas as dificuldades e falta de oportunidades, nunca desistam dos seus sonhos.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço em especial aos meus pais Maria das Graças Silva Costa e Luiz Domingos

Costa pelo dom da vida. E por se fazerem presentes durante minha caminhada. Agradeço

também a toda minha família, a minha eterna e adorada avó, Serafina Maria Machado, a quem

eu devo um muito obrigado por tudo o que fez pela nossa família, por toda sua sabedoria e pelo

lindo coração que a senhora carregou. Agradeço aos meus irmãos, especialmente minhas

Marias: Maria Celma, Maria da Conceição, Maria Juliana e Maria Mércia. Vocês são partes

importantes de tudo o que eu sou, e todo amor que carrego. Aos meus irmãos Marcelo e Samuel.

E aos meus lindos sobrinhos, Wellen Grazielly, Anne Heloyse e Jadson Vicente, vocês me

inspiram alegria.

Agradeço a todos os meus professores, que contribuíram para minha formação e na

minha jornada até aqui, nas pessoas de Maria Auxiliadora, Marcelo Soares, Josélio Nicácio,

Socorro Félix, Goreth Orrico, Daliana Samarat, Luiz Carlos, Biana Duarte, Alissandra Teixeira,

Jaky Ricardo, Paulo Josenilton, Tia Dedé, Gustavo Brito e Junior Teixeira.

Aos meus amigos de infância, por terem feito dessa fase tão importante da vida uma

linda e alegre recordação.

A minha turma do 3º ano “C” vespertino, formandos 2013, da Escola Estadual Filomena

de Azevedo, Santo Antônio - RN. Foi sem dúvidas a melhor turma de todas. Ever.

A todos os meus Metres do teatro, em especial aos Professores Sávio Araújo, Laura

Figueiredo, Yuri Magalhães, Carla Martins, Alex Beigui, Robson Haderchpeck, Mayra

Montenegro, Melissa Lopes, Monize Moura, Ana Caldas, André Carrico, Makarios Maia,

Jefferson Fernandes, Karyne Coutinho, Naira Ciotti, Heloísa Sousa, Diogo Spinelli e Mauricio

Motta.

A minha turma do curso de licenciatura em teatro 2015.1, com a qual aprendi muito,

vivi momentos inesquecíveis e fiz amizades para a vida toda.

Ao Avante Grupo de Teatro, nas pessoas de Allyerly Dantas, Taize Tertulino, Rubinho

Rodrigues, Arthur Araújo e Clau Medeiros.

A todos os demais amigos por quem eu tenho profunda admiração.

Aos Mestres que compõe a banca examinadora desse trabalho. Mayra Montenegro,

Leandro Cavalcante e Diogo Spinelli, muito obrigado por aceitarem enfrentar junto comigo

essa etapa tão importante da minha vida. Gratidão.

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · 2019. 12. 15. · FIGURA 7 – Cena das putas na adaptação de A opera dos três vinténs. FIGURA 8 – Turma de Atuação

“No meio do caminho tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho

Tinha uma pedra

No meio do caminho tinha uma pedra

Nunca me esquecerei desse acontecimento

Na vida de minhas retinas tão fatigadas

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

Tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra. ”

Carlos Drummond de Andrade

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RESUMO

O presente trabalho é um memorial acadêmico que tem como objetivo central promover uma

reflexão acerca da importância da ação coletiva de resistência a partir de experiências formativas

de um graduando em licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(UFRN). Enquanto busca sua identidade em meio a afirmações de sua ancestralidade e

orientação sexual também vivencia o seu primeiro processo coletivo de criação, conhecendo

todos os aspectos que envolvem o fazer teatral em um grupo de teatro. A preparação para

atuação, os laboratórios de criação, a elaboração de personagens, a produção de um espetáculo,

a luta pela sobrevivência do grupo, contextualizam a discussão acerca dessas vivências. A

apresentação e discussão desses elementos têm como base autores como Augusto Boal, Peter

Brook, Jerzy Grotowski, André Carreira, dentre outros. Trata também da dissolução do primeiro

grupo de teatro que participou e o surgimento de um novo coletivo, em busca de resistir para

existir. Aprender com os erros e reinventar-se, em coletivo. Relata a experiência pedagógica de

participar da montagem de um espetáculo de Bertolt Brecht, dentro de um componente

curricular da Licenciatura em Teatro. Por fim, traz uma reflexão de suas experiências levando

a prática teatral para a escola, através do Circuito de Teatro Escolar e também no lugar da

docência, através do Programa de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID Teatro UFRN).

Refletindo principalmente a partir das obras de Ricardo Japiassu e Joana Lopes, percebe a

relevância do diálogo entre a universidade e as escolas, compreende a prática teatral como

coletiva e pedagógica em sua essência, e como primordial para uma formação humana e

integral.

Palavras-chave: Coletivo. Teatro de Grupo. Formação de Professor-ator.

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ABSTRACT

The present work is an academic memorial whose main objective is to promote a reflection on

the importance of collective action of resistance from formative experiences of an

undergraduate student in Theater at the Federal University of Rio Grande do Norte (UFRN).

While seeking your identity amidst statements of your ancestry and sexual orientation also

experiences its first collective process of creation, knowing all aspects that involve theatrical

performance in a theater group. The preparation for acting, the creative labs, the elaboration of

characters, the production of a show, the struggle for group survival, contextualize the

discussion about these experiences. The presentation and discussion of these elements are based

on authors such as Augusto Boal, Peter Brook, Jerzy Grotowski, André Carreira, among others.

It also deals with the dissolution of the first theater group that participated and the emergence

of a new collective, seeking to resist to exist. Learn from mistakes and reinvent yourself,

collectively. Reports the pedagogical experience of participate in the assembly of a show by

Bertolt Brecht, within a component curriculum of the Degree in Theater. Finally, it brings a

reflection of their experiences leading the theatrical practice for the school, through the School

Theater Circuit and also in place of through the Teaching Initiation Scholarship Program

(PIBID Teatro UFRN). Reflecting mainly from the works of Ricardo Japiassu and Joana Lopes,

he perceives the relevance of the dialogue between the university and the schools, understands

the theatrical practice as collective and pedagogical in its essence, and as primordial for a human

formation and integral.

Keywords: Collective. Theater Group. Teacher-Actor Formation.

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LISTA DE IMAGENS

FIGURA 1 – Espetáculo Debaixo da pele do Grupo de teatro Eureka, na sua 1ª temporada de

estreia no TECESol, novembro de 2016.

FIGURA 2 – Esquete Debaixo da pele, apresentado na Cientec 2015, na Escola de Música da

UFRN.

FIGURA 3 – Pré-estreia do espetáculo Debaixo da pele no festival O mundo inteiro é um

palco.

FIGURA 4 – Cenário do espetáculo Debaixo da pele antes de uma apresentação no teatro da

Rede CUCA, em Fortaleza – CE.

FIGURA 5 – Personagem O Barqueiro do espetáculo Sem choro, nem vela do Avante grupo

de teatro.

FIGURA 6 – Espetáculo Sem choro, nem vela no Tudo Amostra 2019.1.

FIGURA 7 – Cena das putas na adaptação de A opera dos três vinténs.

FIGURA 8 – Turma de Atuação IV, no Tudo Amostra 2017.1.

FIGURA 9 – III Circuito de teatro escolar. G - Companhia teatral profanos IFRN – Campus

central – Natal/RN O casamento mais que suspeitoso. P -Escola Estadual Myrian Coeli -

Natal/RN.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12

1. DA BUSCA INCESSANTE DO EU À UMA HERANÇA CULTURAL ................... 15

1.1. REDESCOBRINDO O MEU CORPO: DO CORPO SILENCIADO AO CORPO QUE

GRITA .................................................................................................................................. 18

1.2. UM MERGULHO DE VOLTA ÀS ORIGENS: QUANDO O ATOR ENCENA A SUA

HISTÓRIA ............................................................................................................................ 20

1.2.1 Teatro de grupo e resistência: processo de criação e circulação do espetáculo

“Debaixo da pele” ........................................................................................................... 25

2. POR UM TEATRO QUE RESISTA ............................................................................. 30

2.1. A RESISTÊNCIA LEVA À UNIÃO: A FORMAÇÃO DE UM NOVO GRUPO DE

TEATRO ............................................................................................................................... 33

2.1.1 A re-existência como fonte de criação: uma experiência de grupo com o espetáculo

“Sem choro, nem vela” ................................................................................................... 37

2.2. CONTEXTUALIZANDO A FORMAÇÃO TEATRAL NA UNIVERSIDADE ........ 42

2.2.1 Pedagogias da montagem de um espetáculo teatral: adaptando “A ópera de 3

Vinténs” de Bertold Brecht ............................................................................................. 45

3. EM BUSCA DE UMA REALIDADE TEATRAL ....................................................... 51

3.1. TEATRO ESCOLAR E RESISTÊNCIA: REAFIRMANDO A IMPORTÂNCIA DO

ENSINO DE TEATRO NAS ESCOLAS ............................................................................. 58

3.1.1. PIBID Teatro UFRN: uma experiência de iniciação à docência ........................ 61

3.1.2. Circuito de teatro escolar: uma experiência de intercâmbio teatral .................... 64

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 69

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 71

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INTRODUÇÃO

O presente estudo é um memorial acadêmico que tem como ideia central levantar uma

reflexão acerca da prática teatral como arte coletiva. Imagine diferentes atores e atrizes em um

mesmo espaço físico, realizando exercícios em coletivo, pensando e criando juntos. Imagine

toda essa turma junto com diretores, cenógrafos, produtores, discutindo sobre esse processo de

criação. Cada grupo de teatro, ou cada coletivo que se reúne, ainda que seja para uma só

montagem, ainda que decisões sejam tomadas individualmente, essa aproximação reflete a

essência do teatro.

Neste trabalho trago algumas experiências trabalhando essencialmente com esse aspecto

coletivo do teatro e faço reflexões acerca desse tema, mostrando como essas vivências foram

de vital importância para a minha formação como um professor-artista. Essa investigação teve

como ponto norteador duas palavras, que no geral, representam a maior parte das experiências

que adquiri ao longo da minha formação enquanto ator e professor, levando em consideração

questões políticas e sociais que se atrelam às diferentes realidades do fazer teatral. A primeira

delas é a palavra existir. Enquanto me encontro como indivíduo, descobrindo como posso

existir sendo quem sou, penso na existência em coletivo, a existência de um coletivo de teatro

e a existência da própria arte teatral. É nesse emaranhado que a discussão passa a ganhar uma

conotação filosófica sobre a realidade. Entrando nesta problemática surge a segunda palavra:

resistir, como continuidade a essa questão existencial. Resistir significa nesse trabalho

reconhecer a dificuldade de existirmos enquanto artistas, atores, atrizes, grupos teatrais,

espetáculos, assim como a própria arte teatral em si. Posteriormente, proponho um breve debate

de cunho político-social. Sob quais condições existimos? Que teatro produzimos? Como

conciliamos nossas existências? E como resistimos para nos mantermos vivos? Em outras

palavras, o trabalho aborda, sob uma contextualização político-social, as relações inerentes à

prática teatral em aulas ou oficinas de teatro, e/ou processos de montagem de espetáculo de

grupo, analisando como se estabelecem e como podem ser entendidas como práticas

pedagógicas.

O teatro é considerado em muitas ocasiões como uma arte coletiva, onde as relações

entre os artistas que constroem a cena são de extrema importância para sua consolidação,

princípio esse caracterizado também como essência dessa arte. Essência é tudo aquilo que é

essencial, inseparável, que caracteriza algo ou alguém. Uma vez observando essa questão,

partimos então para as especificações desse trabalho. A investigação se dá, portanto, de

experiências pessoais e coletivas, vividas entre os anos de 2014 e 2019, durante a minha

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formação no curso de Licenciatura em teatro, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(UFRN) e paralelamente a participação em grupos de teatro como Grupo de teatro Eureka e

Avante grupo de teatro, e também em montagens de espetáculos, como o Debaixo da pele,

Ópera dos 3 Vinténs e Sem choro, nem vela. Todos realizados na cidade de Natal, estado do

Rio Grande do Norte (RN).

O principal público-alvo para este trabalho são alunos, professores e artistas de teatro.

Trata-se de um levantamento acerca do contexto por trás da produção cênica, buscando aspectos

relevantes sobre o fazer teatral, do exercício, da colaboração criativa e formativa. A escolha

desse tema se deu ao problematizar a realidade do fazer teatral, pois são muitas as diferentes

realidades de trabalho com o teatro. Assim, ao identificar os principais pontos da nossa

realidade local foi possível observar que existe uma grande desvalorização no fomento da

educação artística nas escolas públicas, falta de lugares próprios para apresentações teatrais,

como também ausência de incentivo por parte da iniciativa pública e privada para grupos

profissionais de teatro, ou grupos de teatro iniciantes. Com base neste levantamento foi possível

notar que muitos grupos não se sustentam, acabam depois da montagem e circulação de um

espetáculo, outros nem mesmo chegam a estreitar na cena teatral. No entanto, existem grupos

que montam suas peças à base de resistência, para que assim continuem a existir. Ou seja, em

muitos casos os grupos acabam optando por realizar trabalhos com estéticas alternativas, que

possam ser apresentados em diferentes lugares, e não somente em espaços convencionais, como

os edifícios teatrais. Além disso, existem muitas limitações financeiras no que diz respeito a

produção da cenografia do espetáculo, o que faz com que muitos artistas iniciantes (cenógrafos,

iluminadores, sonoplastias, maquiadores e figurinistas), acabem não encontrando espaço no

mercado de trabalho.

Em meio a esse cenário de caos é possível identificar alguns pontos positivos, como o

desenvolvimento de uma formação mais integral para os atores de um coletivo teatral, por

exemplo. Embora as reivindicações sejam de melhores condições de trabalho, esses fatores

inegáveis da presente realidade, junto a vontade de produzir um espetáculo, fazem com que

enxerguemos, diante do caos, uma saída para a existência do teatro, em busca de uma formação

profissional adequada. Com base nessa percepção da realidade local, a escrita desse trabalho

tem como intenção criar uma reflexão acerca desses potenciais do coletivo teatral. Em

contrapartida, analisar também a formação profissional de atores, que em muitos casos, também

vão acabar produzindo, por falta de recursos, sua própria cenografia.

O objetivo desse estudo, portanto, é dialogar com minhas experiências pessoais, em

práticas coletivas do teatro, relacionando com o referencial teórico existente acerca do tema,

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promovendo, assim, uma reflexão crítica a respeito das questões levantadas, a fim de contribuir

com a produção acadêmica no âmbito teatral, bem como para difundir novas visões a respeito

do processo de criação de cenas e formação do ator. Nesse caso, o objetivo desse trabalho não

se trata necessariamente de obter resultados imediatos ou de criar um produto final, mas sim de

elaborar uma proposta de leitura crítica e reflexiva, podendo despertar no leitor endereçado,

seja aluno, professor ou artista de teatro, um desejo de repensar as práticas teatrais.

Para a escrita desse estudo foi preciso selecionar algumas das minhas maiores

experiências pessoais no teatro, relacionadas a este tema, sendo no total cinco selecionadas. A

partir da escolha descrevi como se deu a realização de tais experiências, analisando criticamente

suas relações entre si e refletindo acerca da pedagogia dessas práticas. Por se tratar de uma

análise de experiências pessoais, os três capítulos desse estudo trazem a escrita, em sua maior

parte, em primeira pessoa, pois enfatiza as impressões e sensações das vivências relatadas.

O primeiro capítulo do estudo traz, em sua primeira parte, uma abordagem sobre o ser

enquanto indivíduo, seus conflitos internos, a busca por sua identidade e o autoconhecimento

enquanto libertação criativa e reflete como o corpo do indivíduo se afeta em meio às relações

coletivas nas práticas corporais. Em seguida, trata a herança cultural do ser como elemento rico

em expressões e potenciais artísticos. Finalizo o capítulo com uma discussão acerca da

resistência do teatro de grupo, a partir da montagem e circulação do espetáculo Debaixo da

Pele. No decorrer do segundo capítulo a abordagem se dá à procura de um teatro que resista,

mostrando as maiores dificuldades que os artistas locais de teatro enfrentam, fazendo um

paralelo com a formação artística na universidade, bem como com as pedagogias da montagem

de um espetáculo teatral, tendo como base a experiência de adaptação da peça Opera de 3

vinténs de Bertold Brecht. Posteriormente, o capítulo aborda a criação de um novo grupo teatral,

o Avante Grupo de Teatro, e finaliza com a experiência de montagem do espetáculo Sem choro,

nem vela, com as questões existenciais como fonte de criação da cena. O terceiro e último

capítulo faz uma relação entre a formação do ator e o ensino de teatro na escola, buscando

entender a realidade escolar e reafirmando a importância do ensino do teatro. Também traz uma

reflexão acerca da importância do diálogo entre a universidade e as escolas, citando

experiências como o PIBID Teatro (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência)

e o Circuito de Teatro Escolar.

Podemos assim entender o presente estudo através dessas três divisões, primeiro com as

contribuições da prática teatral coletiva para o autoconhecimento do ser. Segundo, com a

essência pedagógica, criativa e formativa por trás da montagem de um espetáculo teatral. E por

fim, a importância da prática teatral nas escolas para a formação de novos atores.

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15

1. DA BUSCA INCESSANTE DO EU À UMA HERANÇA CULTURAL

Quem sou? De onde vim? Para onde vou? São questões que não se sabe ao certo quem

primeiro formulou, mas que percorrem milênios e que se tornaram praticamente responsáveis

pela reflexão da busca do conhecimento. Essas perguntas instigadoras despertam nossa

curiosidade e, ao mesmo tempo, podem também nos provocar um certo desconforto. No

entanto, elas são apenas um exemplo de infinitas outras perguntas que podemos nos fazer, e

para as quais nem sempre encontraremos todas as respostas.

Para além de todo conhecimento que possamos adquirir através de muita dedicação e

estudo, há também um tipo de conhecimento ainda tão complexo e imediato quanto, que é o

conhecimento de si. O autoconhecimento, como também é chamado, é uma reflexão profunda

sobre o seu ser, que diferente da consciência corporal, que envolve o desenvolvimento físico e

mental do corpo, esse por sua vez abrange todo o espectro social, não só por fatores que

emergem de dentro para fora, mas também por fatores externos que interfere no seu corpo

cotidiano. A busca pelo autoconhecimento é uma jornada árdua e requer amadurecimento, o

que podemos ir adquirindo com estudos ou naturalmente, de acordo com nossas experiências

de vida.

Ainda que jovem, a minha chegada na universidade foi movida por um sonho, sonho de

mudar de vida, de ter reconhecimento, de ser um bom professor e um grande artista. Esse

período foi uma fase muito significativa na minha busca por me conhecer melhor. Com o início

da minha jornada acadêmica tive também as minhas primeiras atividades artísticas. Esses

momentos foram muito gratificantes, eram momentos de doação e de troca. Cada ser, cada

corpo que eu encontrava e estabelecia uma relação nos laboratórios de cena era um novo

aprendizado. “A conexão atenta consigo mesmo, com o outro e com o meio, transforma o que

seria uma sucessão linear de eventos em ações-reações imediatas”, como bem afirma Fabião

(2010). Esse estar juntos, desenvolvendo as habilidades do seu corpo, traz consigo a essência

do ator. Esses momentos de troca não deixam de ser momentos também de olhar para si e saber

o que se tem de experiência a doar. Para Copeliovitch (2016), o caminho do ator é também um

caminho no si mesmo, na vida inteira, aponta

O acontecimento do teatro propõe um olhar sobre a linguagem, um olhar sem

medida e sem juízo, sem preconceito. O caminho do ator se faz de um abrir-

se à escuta para seguir o percurso das questões, e trazê-las para o âmbito da

Physys, torná-las ações físicas. Essa pesquisa se dá na vida inteira, todos os

dias, no si mesmo que sai do próprio umbigo e adentra esse mundo

desconhecido de linguagem, questões, mistério e silêncio.

(COPELIOVITCH, 2016, p. 87).

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De certa forma, quando eu entrei, em 2015, no Curso de Licenciatura em Teatro da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), ainda era um ator muito inexperiente e

não tinha nenhuma formação específica na área teatral. Minhas únicas técnicas de ator eram o

“se” e a “fé cênica”, que usava de forma quase instintiva, e que só mais tarde descobri se tratar

de um dos métodos desenvolvidos por Stanislavski. Foram nesses primeiros contatos que tive

a oportunidade de estudar e conviver com os artistas do meu estado, pessoas que, assim como

eu, também tinham vindo, em grande parte, do interior para estudar teatro na capital.

Nas aulas e nas oficinas que fazia pude experimentar a cultura popular, as manifestações

artísticas de tradição e também as de matrizes africanas. Todo esse contato foi de grande

influência na busca do autoconhecimento. A cada contanto que fazia com as matrizes popular

sentia-me mais conectado comigo mesmo e com minha ancestralidade. Nesse período me sentia

por muitas vezes confuso, mas o sentimento era de pertencimento. Foi preciso um tempo para

meu corpo entender a dança, a gestualidade e gradualmente toda a herança cultural que me era

passada com a arte negra, em especial.

A cultura de matriz africana transpira a liberdade, mesmo que na realidade ela pouco

exista, talvez por isso transpareça tanto. Fala muito da resistência, da tradição, da luta pela

sobrevivência, era como se tudo por um momento fizesse sentido na minha vida, me sentia

acolhido. No curso de teatro estudamos muito essas matrizes como forma de expressão vocal e

corporal, e, por isso, acabamos também reproduzindo alguns desses costumes, como cantar

ciranda, jogar capoeira e dançar coco de roda. Toda essa aproximação me levou a um lugar de

acolhimento e identificação, despertando a vontade de conhecer melhor minha ancestralidade e

vivenciar mais essa cultura.

Inserido, assim, no meio artístico, passei a vivenciar cada vez mais a rotina do artista e

sentir na pele todos os ofícios da profissão que eu escolhi. Junto com toda a herança cultural

tinha também uma herança de preconceitos, evidentemente, pois estamos falando de cultura

negra e geralmente debater esse tema ainda pode ser um tabu na sociedade e às vezes até mesmo

na universidade, ou no teatro. Historicamente o teatro brasileiro foi em sua maior parte

creditado aos atores brancos, e também frequentado por brancos, a elite. Embora já existisse

por meados do século XVIII atores negros, já reconhecidos, houve uma inversão de valores

ligadas ao fazer teatral como bem mostra Rocha (2017):

Mendes nos informa que entre a segunda metade do século XVIII e os

primeiros anos do século XIX existiam companhias teatrais profissionalizadas

com elencos predominantemente formados por negros e mestiços, escravos ou

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · 2019. 12. 15. · FIGURA 7 – Cena das putas na adaptação de A opera dos três vinténs. FIGURA 8 – Turma de Atuação

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libertos que interpretavam personagens brancas com as mãos e os rostos

pintados de branco.

‘Alguns desses negros chegariam a ser famosos atores, como Vitoriano, ex-

escravo, que em 1790 maravilhou o público presente aos festejos promovidos

por um Toledo Rendon, de Cuiabá, com seu desempenho na peça Tamerlão

na Pérsia. Dois outros escravos, o par Caetano Lopes dos Santos e Maria

Joaquina, também se notabilizaram nos papéis de Rei e Rainha de Congada,

espetáculo apresentado no Rio de Janeiro, em 1811, com enorme sucesso’.

Esta presença de negros e mestiços no teatro é explicada pelo fato de a

profissão de ator neste período ser considerada desprezível e infame. Porém,

em meados do século XIX, quando o teatro tornou-se um espaço de requinte

para as classes dominantes, os negros e mestiços foram tirados de cena. A

partir de então as personagens negras, quando apareceram, passaram a ser

interpretadas por atores brancos pintados de preto. (ROCHA, 2017, p.43)

Assim, a maior parte das primeiras peças brasileiras, conhecidas também como comédia

de costumes, passa a abordar o negro em situações de estereótipos, tornando praticamente

indissociáveis a relação de negro e escravo. Apenas em 1926 estreou a primeira companhia

formada apenas por atores e atrizes negros/as, com produções afro-brasileira, a Companhia

Negra de Revista (CNR), que durou apenas um ano. E somente anos depois, em 1944, o Teatro

Experimental Negro (TEN) é fundado no Rio de Janeiro, tendo como um dos principais nomes

Abdias Nascimento. Pelo mundo, temos como precursor de uma poética teatral, com vertente

política, o alemão Bertold Brecht (1898 – 1956) e mais tarde Augusto Boal (1931-2009), no

Brasil, que ganhou reconhecimento pelo mundo por suas poéticas políticas, especialmente a do

teatro do oprimido, as quais possibilitam abordar amplamente em cena as discussões raciais.

Como explica Boal (1991):

Os que pretendem separar o teatro da política, pretendem conduzir-nos ao erro

– e esta é uma atitude política... O teatro é uma arma. Uma arma muito

eficiente. Por isso, é necessário lutar por ele. Por isso as classes dominantes

permanentemente tentam apropriar-se do teatro e utilizá-lo como instrumento

de dominação. Ao fazê-lo, modificam o próprio conceito do que seja o

‘teatro’. Mas o teatro pode igualmente ser uma arma de liberação. (BOAL,

1991, p.13)

Nesse percurso me deparei com a ideia de que queria fazer um teatro que levasse o

público a questionar-se, e que ser artista para mim também era um ato político. Neste momento

ansiava muito por montar um espetáculo onde eu pudesse dar voz a tudo o que eu sentia, usar

meu redescobrimento como fonte de criação.

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1.1. REDESCOBRINDO O MEU CORPO: DO CORPO SILENCIADO AO CORPO QUE

GRITA

Enquanto me aprofundava mais na história do teatro ia também experimentando novas

práticas teatrais, tinha objetivos, queria desenvolver o meu alongamento corporal e treinar o

foco e o equilíbrio. Tinha também vontade de melhorar minhas técnicas vocais, como a

articulação e a projeção. Estava morando há apenas um ano em Natal, Rio Grande do Norte, e,

por isso, meu corpo ainda estava em um ritmo de adaptação e reconhecimento. Nesse período

também estava publicamente assumindo minha orientação sexual homoafetiva. Tudo era

novidade e todo o preconceito que antes enfrentava de uma forma mascarada, estava agora

sendo escrachado. Com os recém feitos 18 anos eu me sentia mais dono de mim, queria fazer

coisas que sempre tive vontade e não fiz por motivos, como a proibição da família, por exemplo,

ou motivos religiosos cristãos. Lembro que quando criança tinha os cabelos curtos, mas na

medida que fui crescendo sempre tinha que cortar o cabelo baixinho. Com essa sensação de

independência deixei meus cabelos crescerem. Embora estivesse no momento tendo um maior

contanto com a cultura afro, minha decisão tinha sido pura irracionalidade, mas com o passar

de seu crescimento as coisas foram ganhando sentido.

Deixar meu cabelo crescer foi crucial para entender minhas origens, por mais que tudo

fosse visível, esse assunto ainda representava um bloqueio para mim. Foi também nessa

experiência que eu passei a entender que todo corpo é um corpo político, e que traz consigo as

afetações de algum sistema de opressão. Durante minha infância vivi em um ambiente de muita

repressão, onde tinha que sempre estar atento ao meu jeito de falar, andar ou gestualizar as

mãos, pois qualquer movimento não pensado ou uma fala em um tom mais afeminado seria um

motivo para chamarem minha atenção. Gostaria muito de ter tido quando criança a oportunidade

de conhecer melhor o teatro. Acredito que teria me ajudado muito a ter um maior controle sobre

minhas expressões, e sobre meus posicionamentos.

Durante minha infância minha irmã mais velha era saxofonista e acredito que esse tenha

sido meu primeiro contato como apreciador da arte. Sempre ficava encantado ao vê-la ensaiar,

às vezes acordava pela manhã com o toque do instrumento musical e isso me trazia uma

sensação de conforto. Naquele momento já sentia um desejo pulsante em mim e começava a

pensar em ser quando crescer um grande artista. Lembro que nos meus primeiros anos da

alfabetização era uma criança muito comunicativa, gostava muito das brincadeiras e sempre

queria estar com as demais crianças brincando, e que com o passar dos anos as afetações

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internas e externas fizeram meu corpo ser um corpo expressivamente silenciado. Isso foi

totalmente possível na fase da adolescência, meu corpo passava por transformações nunca antes

sentidas e eu me encontrava mais do que nunca em um estado de questionamentos. Nesse

período introspectivo passei a viver numa rotina cada vez menos social, meus desejos e

vontades eram limitadas e nesse período fiz apenas uma apresentação de teatro na escola, onde

encenávamos a ressurreição de Cristo.

Mais tarde, já no curso de teatro, tive a sensação de estar numa corrida contra o tempo

para adquirir o maior número de experiências possíveis com o teatro. Nesse período, ano de

2015, estava fazendo todas as oficinas de teatro que eu tomava conhecimento. Em uma delas

acabei sendo selecionado para participar, enquanto ator, do processo criativo e de montagem

do espetáculo Debaixo da pele, do Grupo de Teatro Eureka, grupo que tinha surgido no curso

de teatro e que no momento pesquisava as possibilidades de fazer um grande trabalho, teatral e

politizado, que abordasse em cena desde a chegada do negro no Brasil até os dias atuais,

trazendo amplamente a discussão sobre o preconceito racial e a desigualdade social. Foi durante

essa pesquisa que pude me ver por inteiro como negro. Para todo esse processo de autoaceitação

foi crucial minha entrada nessa pesquisa política teatral, mas também um outro fator visível foi

toda a reflexão acerca do racismo e como ele está impregnado no dia a dia da nossa sociedade.

O fato de antes não me assumir enquanto negro, não me fazia menos negro, mas

demonstrava até onde o ser humano pode ir em busca da aceitação social. Mais tarde, na

pesquisa do espetáculo com outros casos, entendi que eu não era o único negro que não se via

enquanto negro. Um dos momentos marcantes do início dessa montagem foi numa atividade

em que respondíamos um questionário sobre o que conhecíamos da história afro-brasileira, no

qual tinha também uma pergunta: qual a sua cor? Lembro que respondi "moreno". Dias depois,

estava conversando com o diretor do espetáculo e ele me perguntou se eu não me via negro.

Nesse momento eu já sabia a resposta, era um sim.

Meu cabelo havia crescido e agora eu ostentava um black power. Foi nesse momento

que eu pude ver de uma outra perspectiva todo preconceito que a comunidade negra enfrenta

no seu dia a dia. O que havia mudado em mim era apenas o cabelo, mas a reação das pessoas

foi realmente o que mais me surpreendeu. Em todos os lugares que ia notava o ar de julgamento

das pessoas. Os comentários também eram comuns, sempre tinha aquela pessoa que não sabia

elogiar um cabelo crespo, ou que até mesmo te insultava gratuitamente ao caminhar pela rua.

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FIGURA 1: Espetáculo Debaixo da pele do Grupo de teatro Eureka, na

sua 1ª temporada de estreia no TECESol, novembro de 2016.

Fato é que nesse momento eu passei a buscar entender o empoderamento1 negro, e sem

sobra de dúvidas esse foi um movimento de grande importância para que eu pudesse superar a

questão da aceitação social. Esse foi um dos pontos norteadores para o meu processo de ator no

espetáculo Debaixo da pele. Junto a essa transformação visual, meu corpo mergulhava nas

danças de matriz afro, notadamente a capoeira, o maculelê, o samba, o coco de roda, o maracatu,

o cavalo marinho e o hip-hop. Entrava também a voz e improvisávamos uma sonorização para

a cena, com barulhos do mar, assobio do vento, o canto dos pássaros, o estalar dos chicotes e o

grito pela liberdade. Meu corpo silenciado agora estava pulsante novamente, estava cheio de

"dor", e durante esse processo pude ir dando voz ao corpo e corpo à voz, meu corpo político

gritava, queria agora contar sua história.

1.2. UM MERGULHO DE VOLTA ÀS ORIGENS: QUANDO O ATOR ENCENA A SUA

HISTÓRIA

Montar um espetáculo que abordasse em cena a história do negro no Brasil era como

fazer um mergulho na minha própria história. Agora, me entendendo enquanto negro, cada

detalhe da história era uma nova redescoberta e corporalmente fazia bem mais sentido. Para a

montagem do espetáculo Debaixo da pele, que teve início no ano de 2015, foi preciso convidar

inicialmente uma historiadora e ativista negra para nos dar uma consultoria acerca da história

1 ação social coletiva de participar de debates que visam potencializar a conscientização civil sobre os

direitos sociais e civis. Esta consciência possibilita a aquisição da emancipação individual e também da consciência coletiva necessária para a superação da dependência social e dominação política. (https://www.significados.com.br/empoderamento/)

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afro-brasileira e do tráfico negreiro. Após esse período de estudo foi também preciso buscar de

onde vinha alguns dos costumes da nossa sociedade, que por sua vez trazia consigo a

reprodução dos estereótipos e do preconceito racial, como por exemplo, alisar o cabelo como

tentativa de embranquecimento2 para se enquadrar em um padrão de beleza, e

consequentemente ser aceito na sociedade. Além disso, muitas palavras da nossa tradição

popular também reproduzem, ao fazer uma analisar histórica, uma reflexão sobre a cultura do

racismo, como os termos mulata, mercado negro, denegrir, criado mudo etc.

Para falar sobre o racismo era essencial entender que ele se trata de um processo de

construção histórica, social e política, onde os negros foram colocados num lugar de exploração

e submissão a outras raças, como no caso da escravidão, e que perpetua numa cultura regada de

preconceito acerca de suas características físicas e de sua história. Segundo Rocha (2017), o

racismo produz a sociedade

Compreender o racismo em relação às estruturas sociais é entendê-lo enquanto

fato histórico, tão histórico quanto a própria formação da sociedade, as

relações de produção, o sistema político e a cultura. O racismo produz a

sociedade, ao mesmo tempo em que é por ela produzido. No sistema

capitalista, a opressão racial se relaciona com a opressão de classe; se expressa

na distribuição desigual dos meios de aquisição de bens materiais, e na

negação de determinados direitos. (ROCHA, 2017, p.41)

Nesse processo de aprendizagem buscava entender o que fazia do meu corpo um corpo

político e como eu iria transformar essas informações em sentimentos e posteriormente em ação

física e vocal. O fato é que eu estava agora no lugar onde queria, sendo ator, e nesse momento

procurava também entender o teatro político, como criar uma cena onde o espectador pudesse

questionar-se. Apesar de usar muito do teatro dialético de Brecht, o teatro documental 3também

era uma vertente da nossa pesquisa, queríamos um espetáculo que pudesse ser apresentado nos

palcos, na rua e também nas escolas.

Queríamos além de um espetáculo teatral, um documento histórico com todas as

informações relevantes acerca desse período, quem seria os personagens dessa história e quais

personalidades negras foram mais importantes na luta pelo fim da escravidão, bem como os

principais momentos dessa resistência negra e o avanço das leis até a abolição dos escravos.

Para abordar todas essas informações só um teatro com vertente aristotélica talvez não fosse

2 Termo usado por movimentos sociais para se referir a uma cultura de branqueamento da cultura negra. 3 Numa proposta de teatro documentário, questões específicas são apresentadas para o espectador. O acervo da

memória social, por exemplo, trazido à baila pelos documentos de ordem sonora, imagética ou escrita é matéria

do gesto artístico. (SOLER, 2013. p.142)

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suficiente, queríamos mais, buscávamos quebrar a quarta parede, emancipar o espectador,

brancos e negros, e também ouvir da plateia a sua opinião sobre o assunto. Assim como nos

ensina Bretch:

Brecht não busca atingir o aspecto afetivo do espectador para que este não

comprometa a lucidez de seu raciocínio e de sua razão. Nessa linha, busca

uma plateia pensante, que ao final do espetáculo, sem passar por uma descarga

emotiva, possa levar questões a serem analisadas (FERRACINI, 2003, p.69).

A ideia do espetáculo Debaixo da pele surgiu durante a disciplina de encenação II, onde

a proposta visava a montagem de um extrato cênico tendo como base o teatro épico. Nesse

período, no ano de 2014, foi apresentada no encerramento da disciplina a esquete com cerca de

20 minutos. Naquele momento eu ainda não era aluno do curso de teatro e pude assistir à

apresentação enquanto espectador. Somente no início de 2015, quando estava no primeiro

período do curso, que a ideia de montar o espetáculo criou forma e então pude participar do

processo seletivo e entrar tanto para o espetáculo quanto para o Grupo de Teatro Eureka.

Durante todo o decorrer da montagem do espetáculo pude perceber em meu trabalho de ator,

na construção de personagens, que a cada cena era como se eu desse um mergulho de volta às

origens.

Para a preparação corporal muitas vezes tínhamos como ponto de partida o balançar do

navio negreiro. Esse balançar se reverberava no corpo e o corpo no espaço. Por um momento

dava para acessar as sensações de estar sendo levado para longe de casa, uma sensação de

caminho que não teria mais volta. A emoção é um ponto-chave para o trabalho do ator, segundo

Vidor (2002) “o fenômeno básico do teatro é a metamorfose do ator em personagem”, e que “a

emoção do ator no palco, representando um personagem, não deve ser semelhante à de uma

pessoa no dia-a-dia”.

Apesar de nesse processo haver, de minha parte, uma identificação com a personagem,

algo que não é muito recomendado por Stanislasvki, ou até mesmo por Brecht, não se tratava

de uma emoção que tinha vivenciado, mas que apenas sentia os seus impactos, assim como toda

sociedade. Não tinha passado pela escravidão, mas sentia suas consequências, no caso o racismo

ainda inerente na nossa cultura, o que acabava fazendo com que essas “emoções” se

reconectarem. Para isso tive que deixar de lado essa identificação e procurar explorar as

potencialidades corporais, de representação, para não perder a máscara da personagem

No teatro de Stanislavski e de Brecht, o que ocorre é o encontro da pessoa do

ator com um personagem de ficção. O ator acredita nas palavras do seu papel

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e na sua imagem. Porém, por maior que seja a atração que a imagem desse

outro lhe provoque, o ator continua ciente da sua própria identidade, não se

perdendo na máscara que assume (VIDOR, 2002, p. 33-34).

Enquanto ator percebia as sensações e inquietações que a cena me propunha, trabalhar

seguindo a linearidade histórica dos fatos foi muito importante para esse entendimento. Saber

que sim, na África já existia escravidão, mas de uma forma diferente. As tribos guerreavam

entre si e os guerreiros capturados eram feitos de escravos, eram prisioneiros de guerra que

possuíam dívidas ou que haviam cometido algum crime. Mas somente com a chegada dos

brancos no continente africano que a escravidão passou a ser tratada com um viés étnico,

cultural, socioeconômico, mercadológico e de exploração. As duas formas de escravidão eram

totalmente diferentes, apesar de ambas serem inviáveis. A viagem nos navios negreiros, ou

tumbeiros, eram desumanas e muitos morriam no caminho e tinham seus corpos jogados dentro

do mar, muitos também adoeciam. Outro fator importante é que muitos reis e rainhas, príncipes

e princesas das tribos também foram trazidos como escravos.

Com a chegada do navio negreiro havia primeiramente o momento da "purificação",

onde os sacerdotes jogavam água benta nos escravos para que eles pudessem então ser vendidos

sem a preocupação dos senhores estarem adquirindo escravos com algum espírito do mal. Além

disso, no momento da venda também tinham que mostrar os dentes como forma de observar se

eles estavam saudáveis. Então eles eram vendidos de acordo com os interesses, algumas

escravas ficavam responsáveis pelo trabalho doméstico ou como ama de leite. Os escravos

homens geralmente iam para o trabalho nas plantações, então eram marcados com um ferro

quente para identificar de quem eles eram propriedades e em seguida levados para senzalas.

Para a construção da dramaturgia do espetáculo, o modelo que mais se adequava era a teoria

brechtiana

A teoria e a prática brechtianas, de fundo marxista e dialético, visavam

despertar no público a consciência da luta de classes por meio da tensão entre

valores conflitantes, entre as estruturas contraditórias da sociedade capitalista

(JI, 2017, p. 04)

Essa trajetória inicial dos escravos foi muito importante para acessar o sentimento de

dor, e durante muitos ensaios íamos trabalhado esse corpo escravizado para levá-lo para a cena.

Segundo Vidor (2002), o ator deve buscar um estado de dualidade com a personagem para

assim conseguir jogar com o espectador

O ator, por lidar com a ficção, adquire a capacidade de desdobramento,

necessária à reprodução dos diversos caracteres e seus respectivos

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comportamentos emocionais. Esse fingimento ou estado de dualidade deve

convencer o espectador, sendo, não verdadeiro, mas verossímil, crível. Por

isso, a força da convicção do intérprete fica na dependência da sua capacidade

de acreditar no jogo fictício que, por sua vez, nasce da necessidade de

convencer (VIDOR, 2002, p. 41-41).

Tínhamos então uma matriz corporal em construção, mas a história do negro também

não é só sofrimento, então fomos para um lugar de pesquisar mais afundo a cultura negra, as

músicas, as danças, a poesia, a religiosidade, as comidas, as vestimentas, os instrumentos

musicais, o corpo negro também era rico em expressividade cultural e artística. Muitas vezes

sua cultura e sua arte foram uma importante ferramenta de resistência contra a escravidão. Com

toda a resistência negra e o passar dos anos, com a intensificação dos movimentos

abolicionistas, algumas leis foram sendo aprovadas e a "liberdade" se caminhava para algo mais

concreto. Mesmo assim o negro ainda sofria todo o sistema de opressão, que permaneceu

mesmo após a princesa Isabel assinar a lei áurea em 13 de maio de 1888.

O conhecimento da história foi de grande importância para a construção das matrizes

corporais das personagens, levando em conta as expressividades ao longo de uma história que

durou mais 300 anos. Em outras palavras o corpo do início do espetáculo não era o mesmo do

final, apesar de terem, enquanto essência, os mesmos sentimentos. Diversos fatores, como a

liberdade e a dificuldade do negro de poder refazer a sua vida, e as lutas contra a desigualdade

fazem essa destinação. Sobre este aspecto Ferracine (2003) comenta as ideias de Brecht

O ator, segundo Brecht, jamais chega a metamorfosear-se integralmente em

cena. Ele não é Lear nem Harpagon, mas apresenta-os. Para evitar essa

metamorfose, os atores podem utilizar-se de alguns recursos técnicos como

recorrer à terceira pessoa e ao passado, assim como a intromissão de

indicações e comentários sobre a encenação e sobre a personagem

(FERRACINE, 2003, p. 70,).

E complementa

O ator tem a função de mostrar alguém, mostrar um gestus social, mostrar uma

situação. Com a função de mostrar alguém, nesse caso, o ator priva-se da

possibilidade de se mostrar, ou ainda de desnudar-se, como coloca Grotowski

e mesmo Stanislavski. Para instrumentalizar-se, o ator não necessita realizar

uma busca interna dentro de sua pessoa, mas fora, dentro do contexto e das

relações sociais. Com a função de mostrar a personagem, o ator coloca-se

entre a personagem e a plateia, transformando-se, assim, em um intérprete da

personagem (FERRACINI, 2003, p.71,).

O espetáculo terminava com uma cena que trazia à tona o genocídio negro nas periferias,

encerrando assim uma história que ainda não tem o final esperado, mesmo após avanços

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consecutivos. Podemos viver em um sistema de opressão sem nem ao menos nos darmos conta.

Após ou durante cada apresentação sempre acontecia de ver alguém chorando, que vinha nos

abraçar depois da apresentação ou até mesmo mandar uma mensagem nas redes sociais, falando

de situações parecidas que sofreu durante a vida ou porque se identificou com alguma situação

abordada, fala ou cena em específico. Outras relatavam situações de incômodo, desconforto ou

de invasão e citavam o momento em que apontávamos uma lanterna para o público fazendo

perguntas sobre as desigualdades raciais. Esses momentos de retorno por parte dos espectadores

eram muito gratificantes para nós, pois sabíamos que a mensagem estava chegando nas pessoas.

Para Ji (2017), o fator político por trás de uma obra ocasiona uma recepção imprevisível

Não se trata, claro, de uma operação simples: falar de intenção e efeitos na

obra de arte tende a criar complicações para o exercício crítico. Afinal, a

percepção, por exemplo, de uma suposta intencionalidade política não seria a

rigor produto de uma transparência da obra. Antes, o contrário: o artista não

necessariamente precisa dar conta — com justificativas, fundamentações e

comunicabilidade — daquilo que cria. O que o artista coloca de fato em jogo

é uma linguagem ou uma forma, independentemente dos reais motivos por

trás de sua construção, sendo quase sempre o possível fator político de uma

obra decorrente da recepção sempre instável e imprevisível do estético (JI,

2017, p. 02).

1.2.1 Teatro de grupo e resistência: processo de criação e circulação do espetáculo “Debaixo da

pele”

Desde minha adolescência tinha muita vontade de participar de um grupo de teatro. No

entanto, nas escolas que frequentei no município onde residia (Santo Antônio do Salto da Onça

- RN) não havia grupos em nenhuma delas e talvez também faltasse de minha parte a autonomia

de criar um. Sempre quando tinha alguma apresentação teatral eram de grupos de outras cidades

que acabavam sendo convidados pelas escolas. Minhas únicas experiências cênicas eram

quando apresentava algum trabalho em forma de cena. Lembro que uma única vez fui

convidado para criar uma encenação para apresentar na escola, o tema foi a Páscoa. Apesar de

toda essa falta de oportunidades ainda mantinha em mim viva essa vontade do fazer teatral. Já

morando em Natal e cursando Teatro na UFRN, pude finalmente entrar em um grupo, o Grupo

de Teatro Eureka, que surgiu em fevereiro de 2014, mas que só em 2015 eu entro para fazer

parte, quando fui escalado para a montagem do espetáculo Debaixo da pele.

No mesmo ano de 2015 eu tinha tanto entrado para o curso de Teatro quanto para o

grupo e esse momento foi de grande importância para minha formação artística. Convivia quase

diariamente com os mais de 15 integrantes e por muitas vezes tinha a sensanção de estar com

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minha segunda família, quando estávamos todos reunidos. Fato é que com o aprofundamento

nos estudos, e a vontade do grupo de se inserir no mercado profissional, passamos também a

entender que existia um conceito por trás do trabalho de grupo e que diferente de grupo de

teatro, o teatro de grupo trazia suas próprias características, que inclusive o determinava ser

chamado assim. Ou seja, participar de um grupo de teatro ia mais além do que só estar presente,

tinha também que entender a sua essência enquanto coletividade. Para Carreira (2003, p.23),

“O ato de estruturação de um grupo nasce sempre de uma percepção de que a possibilidade

desta unidade grupal de funcionamento implica criar instrumentos tanto no campo da criação

como no campo da estrutura social do próprio coletivo”, sobre isso complementa

O grupo é sempre uma estrutura de autogestão e traz componentes identitários,

afetivos e técnicos (de linguagem e de estrutura de produção) que permitem

supor que a idéia de grupo implica em uma tomada de posição frente aos

códigos e “leis” da criação e produção teatral. Neste sentido a percepção do

grupo como um lugar de resistência frente às dinâmicas impostas pela

hegemonia é legítima e funciona como mecanismo que impulsiona a criação

de projetos que se pensam independentes.(CARREIRA, 2003, p.23)

Naquele momento, ao considerar a ampla linguagem teatral, foi preciso também

compreender que para a montagem desse espetáculo precisaríamos não só dos atores ou do

diretor e dramaturgo Denílson David4, mas também de um cenógrafo, um iluminador, um

maquiador, um figurinista, um sonoplasta, dentre outras diversas funções que compunha os

elementos essenciais da cena. Na verdade, tudo varia de acordo com a proposta estética que se

deseja trabalhar. No caso do Debaixo da Pele, queríamos levar adiante essa ideia de trabalhar

com todos esses elementos. No teatro de grupo essas demais funções podem também ser

ocupadas pelos atores que o compõe, onde cada um fica responsável, de acordo com suas

afinidades, por desenvolver essas habilidades, e assim funcionava o Eureka.

Com o Debaixo da pele já sabíamos o que abordar e quem seria o diretor da peça, e

como estávamos agora descobrindo o teatro de grupo tínhamos enquanto parte da equipe técnica

também atores do grupo. A montagem do espetáculo teve início em 2015, quando passamos a

criar cenas e também levantar recursos para a execução das necessidades cenográficas. Todo

esse processo de montagem durou quase dois anos e enquanto o espetáculo ia ganhando forma

circulávamos com a esquete nas escolas e eventos nos quais éramos selecionados.

4 Formado em Licenciatura em teatro pela UFRN.

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FIGURA 2 – Esquete Debaixo da pele,

apresentado na Cientec 2015, na Escola de

Música da UFRN.

Para a produção dos figurinos, compra dos materiais de maquiagem, confecção do

cenário e dos objetos cênicos, material gráfico e pagamentos dos técnicos que não fazia parte

do grupo, como a direção musical e o sonoplasta, trabalhamos incessantemente fazendo

bazares, rifas e também festas. Chegamos a inscrever o projeto em editais e leis de incentivo à

cultura para a montagem e circulação do espetáculo. Passamos na lei estadual Djalma

Maranhão, mas devido ainda sermos um grupo pequeno, não conseguimos fazer a captação dos

recursos. Esse episódio foi um momento bastante complicado e víamos a possibilidade de talvez

não conseguir levar o projeto adiante.

FIGURA 3 – Pré-estreia do espetáculo Debaixo da pele no festival O mundo

inteiro é um palco.

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Com muita luta, resistência e força de vontade conseguimos montar o espetáculo.

Queríamos levar nossa mensagem adiante e assim o fizemos, mesmo diante do cenário de

dificuldades. Assim o Debaixo da pele finalmente estreou, no dia 23 de setembro de 2016, no

festival O mundo inteiro é um palco, promovido pelo grupo potiguar Clown de Shakespeare5.

O Grupo de Teatro Eureka foi bastante pedagógico em sua essência. Enquanto fornecia uma

experiência de formação artística concomitante com a graduação, tínhamos também o

aperfeiçoamento de outras habilidades técnicas dentro do grupo. Para além disso, o espetáculo

também possuía um aspecto documental6 e dialético, onde além de representar fatos históricos,

fazia uma reflexão acerca da cultura do racismo, algo que naquele momento estava começando

a ganhar debate nas mídias de massa, sendo que fomos a primeira peça teatral no nosso estado

a abordar em cena essa temática.

FIGURA 4 – Cenário do Espetáculo Debaixo da pele antes de uma

apresentação no teatro da Rede CUCA, em Fortaleza – CE.

O cenário do espetáculo remetia simbolicamente à proa de um navio negreiro. Havia

uma passarela feita com tablados de madeira que fazia o formato da ponta, nos arredores uma

rede feita com cordas penduradas em varas de bambus que possuíam tamanhos decrescentes da

ponta da proa vindo em direção ao público. No chão havia a lona onde os 12 atores

permaneciam em cena todo o espetáculo, sentados em tambores que movimentávamos de

acordo com as marcações. No fundo da cena, no caso da "proa" do navio, ficava uma espécie

5 Grupo de teatro de Natal, RN. Surgiu em 1993. 6 As referências sobre o fato, pessoa/grupo social e/ou época documentados são solicitadas em busca de

uma decodificação. Não há como escapar, os dados documentais fazem com que o contato direto com

uma versão sobre os acontecimentos históricos requeira do espectador seu posicionamento sobre os

mesmos. ” (SOLER, 2013. p.142)

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de altar formado com bambus, onde eram deixados os instrumentos musicais. A concepção do

cenário foi criada por Patrícia Cezino7, que também fazia parte do Grupo de Teatro Eureka e

do Debaixo da Pele enquanto atriz. Além disso, ela também ficou responsável pela preparação

corporal dos atores. Tínhamos enquanto proposta estética um espetáculo para ser apresentado

em lugares alternativos, em palcos, nas ruas ou espaços semiabertos, podendo também ser um

espetáculo acessível para apresentar nas escolas.

Após a pré-estreia fizemos uma temporada de 4 dias ainda em 2016 no espaço TeceSOL,

em Natal, com a última data no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. E circulamos

todo o ano de 2017 chegando a apresentar na cidade de Fortaleza, na 10ª Bienal da UNE (União

Nacional dos Estudantes), no Centro Cultural do Banco do Nordeste e também na Rede CUCA

(Centros Urbanos de Arte e Cultura), sendo o total de 3 viagens e 7 apresentações durante o

ano. Apresentamos também duas seções para alunos de escolas de Parnamirim, no Cine Teatro

Municipal da cidade, e duas seções para alunos de duas escolas públicas de Natal no TCP

(Teatro de Cultura Popular). Fizemos ainda mais uma temporada de quatro dias no TeceSOL

no mês de maio, tendo em vista apresentar no dia 13 de maio, dia em que a lei áurea foi assinada.

Fizemos uma apresentação no Museu Câmara Cascudo e na mostra de teatro MARTE (I Mostra

de Artes Teatrais Integradas) em João Pessoa (PB). O fato de possuirmos um grande material

que compunha o cenário dificultava um pouco nossa circulação já que os recursos financeiros

eram escassos e também não havíamos conseguido captar recursos com a lei estadual de

incentivo à cultura. No início do ano de 2018, com a saída de até então 4 atores do elenco,

incluindo a minha, o espetáculo Debaixo da Pele e o Grupo de Teatro Eureka chegam ao fim.

7 Discente do curso de Licenciatura em Teatro da UFRN.

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2. POR UM TEATRO QUE RESISTA

O fazer teatral é um exercício que envolve uma gama de conhecimentos, convenções e

recursos. Para se fazer teatro se faz necessário, se formos pensar dentro da caixa, um edifício

teatral, dispondo das aparelhagens que constituem as tecnologias da cena, os profissionais

técnicos responsáveis pela execução desse material, e toda a equipe artística que irá dar "vida"

à cena. Assim teremos uma estrutura clássica do teatro, sendo possível usar ao máximo suas

convenções para garantir a qualidade do trabalho apresentado.

A arte teatral é uma linguagem ampla e complexa que envolve também em si outras

linguagens, como a música, a arquitetura, a dança, a literatura e outras infinidades de

manifestações artísticas. Podemos assim entender o teatro como uma arte coletiva onde os

artistas criam em coletivo. Mas para além de toda essa sistemática teatral que foi construída ao

longo da história e das evoluções da linguagem, temos a essência dessa arte, que é a

representação, a atuação, a dramaticidade, a cena, e as capacidades da comunicação oral,

corporal, visual e cênica. Sobre isso o inglês Peter Brook, erradicado na França, comenta em

seu livro A porta aberta, a ideia de que “o fenômeno do teatro vivo não depende de condições

externas” (BROOK, 1925, p. 11) e complementa

Se o hábito nos leva a crer que o teatro tem por base um palco, cenário, luz,

música, poltronas... partimos do princípio errado. Para fazer filmes não

podemos prescindir de uma câmera, do celuloide e dos meios para revelá-lo,

mas para fazer teatro somente uma coisa é necessária: o elemento humano.

Isto não significa que o resto não tenha importância, mas não é o

principal.(BROOK, 1925, p.12)

Isso é o que aproxima todos os tipos de teatro como manifestação cênica. Em paralelo

a essa questão estrutural e organizacional do teatro clássico, temos, ao fazermos também uma

análise histórica a cerca dessa arte, uma história de revolução e resistência. O teatro nem sempre

possuiu essa estrutura a qual conhecemos e ao longo do tempo foi se modificando e se

adaptando aos diferentes contextos sociais, políticos e econômicos. Podemos dizer então que

essa arte foi passada de geração em geração, não somente por seus recursos estruturais, mas

principalmente por todo o conhecimento que foi levantado e ensinado, pelos escritos e

principalmente pela prática.

É preciso reconhecer os desafios do nosso tempo, levar em conta que desde o seu

surgimento o teatro passa por questões existenciais, quando a sociedade coloca à prova a

importância de sua existência. Vemos isso na Grécia antiga, no teatro medieval, elisabetano,

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realista e pós-dramático. No entanto, podemos enxergar também que com essa trajetória temos

como resultado a reinvenção dessa arte. Talvez essa seja uma das maiores características do

teatro, sua capacidade de se reinventar, e de existir, cabendo a nós, atores da atualidade,

encenadores, professores de teatro, pensar qual o teatro que queremos para nossas próximas

gerações. Como superar as limitações materiais e a defasagem das relações humanas e coletivas.

Como se manter vivo em meio a um sistema fiscal de produção e de cobranças de

recursos? Como manter um grupo iniciante de teatro? Como fazer circular um espetáculo e sua

equipe de artistas por outras cidades? Temos com essas questões problemas intrínsecos ao fazer

teatral atual. Temos com a mercantilização da arte uma árdua missão de sobreviver do que

produzimos. Nessa situação muitos atores talvez se inibam de arriscar altos voos incertos, mas

sem movimentação a cena teatral passa a ficar fragilizada e insegura.

O teatro de grupo é um ato de resistência atualmente. Juntos os artistas pensam

coletivamente a arte, sua existência, seu lugar de encontro, suas produções e seu público, têm

em si vontades coincidentes de pensamentos e visão de mundo, querem permanecer juntos,

realizar diferentes trabalhos, apresentar-se por diferentes lugares e diversos públicos. Com a

falta dos recursos passamos a nem enxergar o horizonte e vemos apenas os obstáculos. De fato,

precisaríamos olhar para os artistas iniciantes, as pequenas companhias em formação, ver quais

oportunidades esses artistas estão tendo para inserir-se no mercado profissional.

A falta de recursos pode ocasionar uma limitação criativa. Por isso temos hoje uma

realidade bastante difícil, na qual podemos nos deparar com vários edifícios teatrais em desuso

e não por falta de artistas ou grupos, mas talvez por falta de gestão, por má administração dos

recursos, por estruturas burocráticas ou até mesmo por falta de políticas públicas de incentivo

à cultura e produção artística. Por sorte, toda essa problemática não inviabiliza a existência do

fazer teatral, pois sua essência não se baseia na questão estrutural e cenográfica, e sim no seu

elemento fundamental, como explica Eugênio Kusnet (1985),

Procuremos chegar à essência do teatro por eliminação progressiva dos seus

elementos. Sem qual deles o teatro não poderia existir? Sem prédio, sem

palco? Claro que pode! Basta que façam espetáculos ao ar livre. Sem cenário,

sem iluminação? Pode! A natureza nos dá, às vezes, esses elementos em forma

mais rica do que a que pode ser conseguida em teatro. Sem música? Claro. Ela

nunca foi essencial no teatro falado; ela é útil mais não indispensável. Sem

texto fixo? Por que não? As falas podem ser improvisadas como em teatro

“happening”. Sem diretor? O ator pode autodirigir-se. E sem ator? O que

poderia substitui-lo? (KUSNET, 1985, p. 04)

Temos maior parte dos teatros fechados atualmente na cidade de Natal/RN, onde está

situada a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), como por exemplo o Teatro

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Sandoval Vanderlei, no bairro do Alecrim, e o Teatro Alberto Maranhão (TAM), no bairro da

Ribeira, que se trata do maior e mais antigo teatro público da cidade. Temos também uma

grande defasagem em espaços alternativos para apresentação ou para ensaio dos espetáculos e

reuniões de grupos, o que se torna um grande empecilho para um grupo que está começando

conseguir recursos para custear esses espaços. Esses problemas estruturais também estão

presentes nas escolas e na universidade. Na própria UFRN temos no Departamento de Artes

(Deart) um teatro inacabado e, portanto, fechado. Nas escolas vemos salas de aulas insuficientes

para a demanda escolar, onde nem sempre haverá salas disponíveis para um trabalho teatral.

Por outro lado, são nesses espaços de ensino que podemos observar o surgimento de novos

grupos de teatro, resultado da disseminação da prática do fazer teatral.

Mesmo com condições desfavoráveis a arte se faz resistência e quando um coletivo

almeja realizar uma montagem, ela de fato acontece. A importância de toda essa reflexão não é

somente levantar as dificuldades, nem julgar a qualidade dos trabalhos, tampouco apontar

culpados para a situação. Nesse caso gostaria de enfatizar o fazer teatral que se mantém firme

e produtivo em meio ao caos, mas também pensar nos caminhos a seguir para que a situação

seja revertida e o teatro reinventado.

O teatro não está fadado ao fim. Se formos analisar nossa época, momento das mídias

sociais, do cinema e diversos outros formatos audiovisuais, podemos ver que houve uma grande

migração por parte dos fazedores de teatro, que encontram nesses meios mais oportunidades de

trabalho digno. Com isso digo que não é fácil o fazer teatral, é uma jornada árdua que requer

além de tudo tempo e dedicação, e eu diria que, com todos esses empecilhos, é preciso também

ter autoconfiança. Para além do cumprimento de nosso papel social enquanto artistas de

reivindicar melhorias no que diz respeito a nossa área de atuação, devemos entender que apesar

das situações desfavoráveis existem outros meios de criação, sem que isso afete nosso fazer

artístico, cito como exemplo mais um trecho de Peter Brook (1925), em seu livro A porta aberta

Um diretor sul-africano extremamente dinâmico, que criou um movimento de

Teatro Negro nos distritos segregados da África do Sul, disse-me: “Todos nós

lemos O teatro e seu espaço, um livro que nos ajudou muito. ” Fiquei contente,

embora muito surpreso, pois a maior parte do livro foi escrita antes de nossas

experiências na África e referia-se aos teatros de Londres, de Paris, de Nova

York... O que poderia ter achado útil naquele texto? Por que sentiam que o

livro também se destinava a eles? Qual a relação do livro com a proposta de

fazer teatro nas condições de vida de Soweto? Fiz esta pergunta e ele

respondeu: “A primeira frase! ”

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Posso escolher qualquer espaço vazio e considera-lo um palco nu. Um homem

atravessa este espaço vazio enquanto outro o observa, e isso é suficiente para

criar uma ação cênica.

Eles estavam convictos de que fazer teatro nas condições que dispunham seria

um desastre inevitável, porque nos distritos segregados da África do Sul não

existe nenhum “edifício teatral”. Achavam que não conseguiriam ir adiante se

não tivessem teatros de mil lugares, com panos de boca e bambolinas,

equipamentos de luz e projetores coloridos como em Paris, Londres e Nova

York. E de repente veio um livro cuja primeira frase afirmava que eles tinham

tudo que era necessário para fazer teatro. (BROOK, 1925, p. 04)

Oportunidades é a palavra-chave. Lembro da minha infância no interior e da escassez

de aulas de teatro na escola. Assim como em todo campo de aprendizagem é na escola que

temos um contato mais efetivo com todas as áreas do conhecimento, e é através da

aprendizagem que conseguimos disseminar nossas ideias e vontades. O teatro escolar é um

exemplo de resistência, resistência estrutural, resistência ao tempo, resistência aos temas,

resistência de público, mas é na escola que o teatro se mantém vivo, onde muitos alunos, através

da experiência, seja ela suficiente ou não, decidem seguir essa carreira, ou até mesmo onde

grupos surgem e depois passam a ter sua independência fora da instituição. Assim também

acontece na universidade ou em qualquer lugar onde seja levado o conhecimento teatral.

A cena acontece com o contato do artista com o público, é a arte efêmera, o doar-se, a

troca, a mensagem a ser passada e a visão de mundo a ser questionada. Com tantas dificuldades,

ficar preso a uma estrutura clássica inalcançável não é uma escolha sabia, às vezes nem mesmo

se trata de uma questão de escolha, é trabalhar com o que se tem à disposição, mesmo que isso

se resuma aos atores.

A essência do teatro está na capacidade de representar uma visão, uma reflexão feita da

nossa realidade, do que vivemos, dos nossos dramas internos e dos desfechos que tramamos.

Assim teremos um teatro resistente, que não se abala, mas que progride, transgredi, recria e

cria, inova, se reinventa, surpreende e cativa, transforma. A cena não pode parar, o teatro é um

movimento constante feito de mutações, emoções e fantasia, nele podemos ver nossa vida

refletida, enxergar o amanhã e buscar novos horizontes. Um teatro que resiste é um teatro que

existe, que vê nas suas dificuldades seu potencial criativo.

2.1. A RESISTÊNCIA LEVA À UNIÃO: A FORMAÇÃO DE UM NOVO GRUPO DE

TEATRO

O teatro de grupo pode também ser visto como um ambiente de aprendizagem teatral. É

através da coletividade que trocamos nossas expectativas individuais e compartilhamos nossa

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visão de mundo. Nela podemos ser quem somos verdadeiramente, para além dos interesses

profissionais e artísticos, e muitas vezes nos deparamos com amizades fortes que permeiam e

entrelaçam nossas vidas, tendo em vista um objetivo em comum.

Um grupo pode ser formando por um número ilimitado de participantes, de diversas

áreas de atuação. Trata-se de um ambiente de experimentação, onde cada integrante faz parte,

como uma pequena engrenagem do que vem a ser um motor potente de produção artística.

Sendo assim, cada um torna-se especial a sua maneira, ensinando do seu jeito uma nova lição

a cada montagem. Mas nem tudo é perfeito, e assim como em qualquer ambiente coletivo, os

grupos de teatro também podem passar por momentos difíceis, principalmente no que diz

respeito ao cumprimento das divisões de trabalho, por alguma irresponsabilidade que alguém

venha a cometer ou mesmo por divergências de ideias, vindo a abalar o coletivo. No entanto,

cabe ao grupo buscar entender as dificuldades que enfrenta e coletivamente procurar as soluções

justas para que continue a trabalhar em harmonia e sem conflitos internos.

Cabe então perceber que cada integrante tem sua particularidade e que também faz parte

do coletivo entender o que cada membro pode estar passando na sua vida particular, pois assim

teremos um diálogo leal entre os seus integrantes. Para entender melhor a realidade de um grupo

de teatro é preciso primeiro contextualizar sua existência e também seus integrantes. Quando e

onde surgiu? Por quem é formado? Quais seus objetivos e linha de trabalho? Quais suas

perspectivas para o futuro do grupo? Assim podemos chegar perto da sua identidade de grupo.

Para André Carreira,

O teatro de grupo é uma noção ampla que representa uma grande gama de

modalidades organizativas, mas que especialmente nos remete, na atualidade,

a um imaginário cada vez mais forte entre os jovens realizadores teatrais. Esse

imaginário diz respeito a um modelo idealizado de organização grupal que

funciona como um referente que mobiliza muitas ações criativas e de

organização social no âmbito do teatro. Por isso é impossível hoje refletir

sobre os procedimentos de treinamento do ator sem incluir questões relativas

à noção de grupo ou de grupalidade como muitos preferem dizer.

(CARREIRA, 2003, p. 22)

Em outro estudo complementa

Assim, percebemos que o teatro de grupo aparece como uma promessa de

permanente reflexão sobre os fundamentos do teatro, bem como do desejo de

construir métodos de formação do ator baseados em uma ordem ética para o

trabalho coletivo. Estas formulações podem não representar um traço comum

a todo teatro de grupo, mas sem dúvida diz respeito a características que se

associa sistematicamente com a noção de “grupalidade” que é reiterada na

esfera desse movimento. (CARREIRA; OLIVEIRA, 2005, p.02)

Cada grupo possui sua própria realidade de trabalho e sua própria identidade artística,

bem como sua forma de organização. Pode esse ser um grupo de teatro escolar, da igreja,

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amador, profissional. Existem infinitos tipos de grupos com diferentes características. Nesse

caso gostaria de abordar em especial os grupos que têm como objetivo a montagem de

espetáculos e a formação de profissionais de teatro. Como citado no início desse capítulo, vejo

em algumas das experiências que vivenciei no meu estado, o Rio Grande do Norte, que um

lugar de ensino teatral passa a ser um ambiente favorável ao surgimento de novos grupos ou

coletivos de teatro. São nesses espaços, cursos ou oficinas de teatro, que os artistas se encontram

e se afinam, ocasionado, em muitos casos, pelo trabalho juntos em uma montagem cênica, como

parte dos resultados dessas aulas.

Assim acontece no curso de teatro da UFRN, onde todos os anos vários grupos surgem,

seja por meio de algum trabalho de disciplina, seja por afinidades estéticas, ou por outros

motivos. É possível observar isso também nas escolas, onde os alunos criam seus grupos para

dar continuidade aos seus trabalhos cênicos, e que por muitas vezes saem do ambiente escolar

e partem para o mercado profissional. Há também um fator importante a considerar que é a

dificuldade de ser um artista independente. Mesmo no teatro, uma arte coletiva, muitos artistas

optam por esse caminho. Outros se veem num lugar de que “a união faz a força” e que em um

grupo talvez os caminhos se alinhassem numa proposta mais produtiva. Seria essa uma questão

controversa e que, como citei anteriormente, depende da realidade de cada organização teatral.

São muitos os obstáculos enfrentados por artistas de teatro. Temos a falta de incentivo

financeiro no mercado profissional, especialmente para grupos recém-formados e a escassez de

políticas públicas que garantam nossa existência. Falta recursos, capital de investimento, essa

é sem dúvidas a maior barreira enfrentada para a montagem de um espetáculo, pois precisa-se

de dinheiro para montar um espetáculo. É necessário recursos para a cenografia, a equipe

técnica, para o aluguel dos espaços para apresentação. Segundo Carreira (2003, p.23), “A

carência de financiamento público às atividades dos grupos representa uma permanente ameaça

de morte ao projeto coletivo cujo eixo seja a liberdade de criação”.

Nem todos os grupos irão começar com seu próprio espaço de apresentação e ensaio,

tampouco com patrocinadores para cobrir esses gastos. Assim sendo, para que um grupo se

sustente e exista, é preciso resistir a todas as dificuldades e com muito esforço e dedicação

conquistar o seu espetáculo, o seu público e sua forma de manutenção. Se os integrantes

trabalham temos um problema de tempo para juntar o grupo nas reuniões, e sem trabalho os

integrantes podem chegar desmotivados nos ensaios. Essa é uma questão complexa que muitos

grupos enfrentam e que por vezes acaba fazendo com que o grupo se se desfaça.

O Grupo de Teatro Eureka, do qual fiz parte por 3 anos, chegou ao fim em fevereiro de

2018. Dos seus 15 integrantes, alguns tiveram que sair, foram morar em outras cidades por

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questões de estudos ou a trabalho. Assim, o espetáculo Debaixo da Pele ficou com desfalque e

por conta de conflitos de ideias e desgaste nas relações o grupo se desfez 4 anos depois do seu

surgimento. Nesse momento houve, por parte da maioria dos integrantes, a vontade de não

desistir, pois entre nós ainda tínhamos afinidades nos nossos ideais. O grupo ao qual vínhamos

trabalhando arduamente havia terminado, mas a vontade de continuar existia na maioria dos

seus integrantes, por isso optamos por resistir, e sob um novo nome reexistir. Assim, em 06 de

março de 2018, nasce o Avante Grupo de Teatro, formado inicialmente por 8 atores e atrizes

que antes compunham o Eureka, sendo que logo depois 2 deles se afastaram restando até então

6 membros. São eles Allyerly Dantas8, Arthur Araújo9, Clau Medeiros10, Eduardo Leão11, Taize

Tertulino12 e Rubinho Rodrigues13.

Com esse novo grupo almejamos não repetir os erros cometidos anteriormente, produzir

respeitando nossos limites, não burocratizar e hierarquizar nossas relações, não desenvolver

mais projetos do que nosso tempo permitia, não depender a nossa existência de editais ou

incentivos financeiros. Queríamos apenas estar juntos e produzir um espetáculo por vez, levar

nossa arte aos lugares em que nos fosse possível. Toda essa reformulação não fez de nós um

grupo menos dedicado ou responsável, muito pelo contrário, fizemos o que era preciso para que

nossa existência continuasse sendo possível. Agora tínhamos um grupo formado por atores e

atrizes, e queríamos muito trabalhar sob a ótica de um novo diretor, que não fosse do grupo,

mas que se disponibilizasse estar conosco e criar juntos um novo espetáculo, essa era nossa

vontade naquele momento, passar por essa experiência era como dar um importante passo para

nossa formação artística.

É na prática que vivenciamos a verdadeira aprendizagem teatral, pintando o cenário,

confeccionando os figurinos e adereços, testando a iluminação, nesses momentos vemos a troca

de conhecimentos, a essência do teatro de grupo e do ambiente formativo que este vem a ser.

Nas apresentações tudo se concretiza. O contato com o público é o ápice para o trabalho do ator

e do jogo coletivo da cena, é nesse momento que o grupo se torna um só organismo. De repente

as dificuldades podem não ser um motivo para o fim, mas talvez um ponto de partida para a

criação. Se você não tem recursos, faz um teatro com o que você tem, não necessariamente você

precisa se desdobrar em outros trabalhos para levantar esse recurso, já que qualquer outro

8 Discente do curso de Licenciatura em Teatro, UFRN. 9 Formado em Teatro pela UFRN. 10 Discente do curso de Licenciatura em Teatro, UFRN. 11 Discente do curso de Licenciatura em Teatro, UFRN. 12 Formado em Teatro pela UFRN. 13 Formado em Teatro pela UFRN.

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trabalho além do teatral pode gerar uma sobrecarga de tarefas nos integrantes do grupo.

Simplesmente resista, use o que você tem a seu favor, se tem somente os atores, usa esses corpos

como cenário, como figurino, como sonorização. Não é sobre falta de recursos que Grotowski

fala quando escreve Em busca de um teatro pobre, mas é justamente sobre o ator se sobressair

de qualquer recurso cenográfico, o ator é o seu próprio instrumento de trabalho.

2.1.1 A re-existência como fonte de criação: uma experiência de grupo com o espetáculo “Sem

choro, nem vela”

Existir é uma condição da vida. No teatro, existir é estar em cena, a cena é uma ação

contínua e ininterrupta, segundo Stanislavski. Para existir no teatro o ator precisa estar em cena,

e para tal precisa criar, dar vida a uma nova persona. Essas são algumas das relações que

podemos fazer entre a vida e o teatro, enquanto condição de existência. Assim como a cena, a

vida é o aqui e o agora, trata-se daquilo que está no tempo presente e sujeito da ação. Sem

existência não existe representação. O teatro é uma representação da vida, sendo assim, a

existência é o principal ponto de partida para a criação da cena. Para criar algo novo é necessário

antes de tudo criar um espaço vazio. Segundo Peter Brook, em seu livro A porta aberta, “o

espaço vazio permite que surja um fenômeno novo”, sobre isso ele comenta

Para que alguma coisa relevante ocorra, é preciso criar um espaço vazio. O

espaço vazio permite que surja um fenômeno novo, porque tudo que diz

respeito ao conteúdo, significado, expressão, linguagem e música só pode

existir se a experiência for nova e original. Mas nenhuma experiência nova e

original é possível se não houver um espaço puro, virgem, pronto para recebe-

la.(BROOK, 1925, p. 04)

Com o fim do espetáculo Debaixo da Pele e do Grupo de Teatro Eureka, em fevereiro

de 2018, percebi que nós, ex-integrantes do grupo, não nos contentávamos com a ideia de pôr

um fim a uma parceria de trabalho coletivo que já vínhamos desenvolvendo juntos nos últimos

três anos. O fim do grupo foi um momento confuso para mim e acredito que para os demais

também, pois foi perceptível durante nossos próximos encontros e também na decisão de criar

um novo grupo de teatro. Assim como eu, os demais integrantes compartilhavam da mesma

situação de ter participado do seu primeiro grupo de teatro, e do fato disso se dar em paralelo

ao início do curso de teatro e da formação acadêmica. Passamos aproximadamente um mês

refletindo quais seriam nossos próximos passos. Enquanto alguns ex-integrantes preferiram

seguir enquanto artistas independentes, outra parte resolveu optar pela criação do novo grupo,

o Avante Grupo de Teatro.

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Assim, com a criação do grupo em 06 de março daquele mesmo ano de 2018 tínhamos

também a vontade de começar a montar um novo espetáculo. Para isso nos reuníamos toda

semana, fazíamos leituras dramáticas de peças de teatro, onde cada integrante sugeria uma

leitura. Foram lidas as peças: Quem casa quer casa, de Martins Pena; Seis personagens a

procura de um autor, de Luigi Pirandello; Agreste, de Newton Moreno; Avental todo sujo de

ovo, de Marcos Barbosa e As centenárias, de Newton Moreno. A partir dessas leituras optamos

por um tema que mais se aproximasse com os sentimentos que estávamos passando naquele

momento. Também queríamos uma direção que viesse de fora grupo, para que o processo não

ficasse somente direcionado a partir da nossa visão.

Com a peça escolhida fomos à procura do diretor. Foi então que pensamos em George

Holanda14, pois já tínhamos assistido uma direção sua recentemente do texto Conselho de classe

de Jô Bilac, em uma ação de extensão no Deart. Marcamos um encontro e fizemos uma conversa

sincera, explicamos nossas frustrações e vontades. Naquele momento confuso as coisas ainda

não eram tão claras para gente e ele logo identificou que tínhamos, diante dessa angústia do fim

do antigo grupo, um sentimento de falar sobre a morte. Era isso, nessa conversa foi perceptível

que havia sido estabelecido ali uma conexão entre os atores e o futuro diretor. Ele se prontificou

a nos dirigir e então fomos tentar conseguir os direitos autorais do texto para a montagem.

Tentamos entrar em contato com a equipe do autor Newton Moreno através de e-mails e não

obtemos respostas. No nosso segundo encontro acabamos por definir que faríamos uma

dramaturgia autoral, elaborada através de um processo de criação laboratorial.

Assim foi acontecendo, passamos a nos reunir duas vezes por semana. Trabalhamos no

primeiro momento esse sentimento fúnebre. Inicialmente cada um levou uma música que

representasse particularmente esse sentimento, que lembrasse a morte ou a despedida. Em

seguida escrevemos nossas impressões sobre os seguintes pontos: a morte (na primeira pessoa),

a despedida, eu morri, pós vida. Depois cada um pesquisou uma imagem que simbolizasse a

morte, e num outro encontro George pediu para que levássemos histórias engraçadas (real ou

ficcional) que envolvesse a morte ou o velório, queria quebrar um pouco com a tensão que esse

tema geralmente instaura na cena. Esses foram os estímulos iniciais para o início do processo.

No decorrer dos encontros nos foi pedido que apresentássemos uma cena individual de

Stand-up comedy, envolvendo essas histórias engraçadas de morte e a cena seria narrada pela

própria morte ou pela pessoa que morreu. A ideia dessa atividade surgiu num dia após o ensaio

quando começamos a, espontaneamente, contar essas histórias engraçadas que alguns atores do

14 Mestre em Artes cênicas pela UFRN.

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grupo tinham vivenciado, enquanto riamos involuntariamente. Mais tarde assistimos o filme O

sétimo selo (1957) de Igmar Bergman e escrevemos individualmente um texto respondendo às

seguintes questões: como a morte vive? O que ela quer? Também foi pedido para pesquisarmos

sobre a barca de Caronte e criar uma cena de 3 minutos.

Nesse momento estávamos experimentando várias propostas de cenas, usando diversos

tipos de estímulos, como imagens, textos, músicas e filmes. Para finalizar esse primeiro ciclo

de estímulos para a construção das personagens assistimos ao filme japonês A partida (2008),

de Yojiro Takita, e escrevemos individualmente um texto relatando uma história de despedida.

Foi também pedido pelo diretor para criarmos uma cena de despedida em um ambiente familiar,

e pela primeira vez poderíamos convidar outro integrante para participar da cena. Assim

encerramos esse primeiro momento de apresentação de propostas de cenas individuais e/ou

coletivas.

No segundo momento partimos para os laboratórios corporais, instaurávamos essas

imagens que havíamos estudado, assim surgiram figuras como o lobisomem, a beata, a morte,

a criança, a carpideira, o cachorro, o medroso, o religioso, o velho, o sertanejo, o padre. Mais

tarde o diretor pediu para fixarmos nas seguintes figuras: a morte, o capetinha, a beata, o

sertanejo, a carpideira e a criança. Ao fim desses laboratórios cada ator escolheu a matriz

corporal que mais tinha se identificado e trabalhamos mais ou menos 5 meses nessas matrizes

para então definirmos nossos personagens. Allyerly Dantas, a morte; Arthur Araújo, o padre

Inácio; Rubinho Rodrigues, o medroso Canindé; Taize Tertulino, a carpideira Margarida e eu,

Eduardo Leão, o barqueiro. Nesse período a atriz Clau Medeiros precisou se afastar do

espetáculo devido a problemas pessoais, restando cinco atores/atrizes no elenco.

O barqueiro carregador de almas. Meu processo de construção da personagem se deu

devido a sua aproximação com a morte. Durante o processo experimentei a figura do lobisomem

e da criança em um único laboratório e dessa transição surgiu o capetinha, o qual buscava uma

relação de servo e protetor com o ator que interpretava a morte. Antes desse laboratório em

questão, tinha proposto como referência Cerberus, o cachorro de 3 cabeças guardião da entrada

do submundo, pois no início do processo escolhi-o como a imagem que, para mim, representava

a morte. Também tínhamos investigado a barca de Caronte, figura mitológica, onde criamos e

apresentamos cenas individuais baseada em nossas pesquisas. Coincidentemente eu apresentei

essa cena usado uma máscara de diabo, ao qual eu mesmo havia confeccionado durante uma

oficina.

Trabalhei durante algum tempo, em torno de sete ensaios, essa figura animalesca, a qual

acompanhava a morte e anunciava as partidas. Já no processo de montagens das cenas, partindo

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da improvisação entre as personagens, a figura animalesca foi se humanizando até chegar no

barqueiro. Enquanto o barqueiro ia se consolidando enquanto personagem também buscava

novas referências para agregar à figura. Em uma dessas pesquisas me deparei com o carrasco,

ou algoz, figura que durante a idade média executava a sentença de morte nas guilhotinas, e por

ser um ato que acontecia nos lugares públicos usava então um capuz para que sua identidade

não fosse revelada. Achei muito interessante essa história e fazia sentido para o barqueiro que

atuava como um mensageiro da morte, anunciava a partida e transportava as almas para o outro

mundo.

FIGURA 5 – Personagem O Barqueiro do espetáculo Sem choro, nem vela do

Avante grupo de teatro.

Com isso senti a necessidade de usar também uma máscara em cena, já tinha feito

oficina de criação de máscaras e também estudado algumas técnicas na disciplina Pedagogia do

Corpo, no curso de Teatro. Assim, passei a trabalhar a personagem em cena pensando nessas

técnicas, enquanto a máscara do barqueiro ficava pronta, pois sabia o quanto desafiador é para

o ator trabalhar mascarado. Para Ariane Mnouchkine, em sua trajetória à frente do Théâtre du

Soleil, a máscara expressiva tem um importante papel no corpo do ator. Segundo ela, a máscara

traz em si o princípio da representação e por isso se constitui como essencial para formação do

ator:

Desde que um ator “encontra” sua máscara, ele está próximo da pocessão, ele

pode se deixar possuir pela personagem, como os oráculos. Alguns se sufocam

literalmente, ficam se voz, seus olhos e seu corpo anulados pela máscara. Para

outros o trajeto nessa travessia é doloroso. (MNOUCHKINE, 1989)

E complementa:

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Para alguns a máscara permite uma liberação extraordinária mas para outros

ela representa um martírio. A máscara faz ressentir as coisas com o corpo e

não com a cabeça. Mas o encontro com o espectador é essencial. A

personagem mascarada existe desde que a gente a reconhece. E a gente a

reconhece porque ela exprime qualquer pessoa e ao mesmo tempo as outras

pessoas que se assemelham a ela. Ela torna-se essencial. É isso que a valida

aos nossos olhos, o que ela nos faz descobrir de humano numa certa classe.

(MNOUCHKINE, 1989)

As personagens foram aprofundadas junto com a criação das cenas, num exercício de

improvisação onde seguíamos o roteiro feito pelo diretor e também dramaturgo George

Holanda. Assim, o espetáculo foi ganhando forma e junto da dramaturgia e das personagens

também pensávamos coletivamente na cenografia. O cenário é um couro de boi, faz referência

ao personagem Canindé que trabalha num curtume cortando couro, ao teatro pobre de

Grotowski e ao tapete descrito nas obras de Peter Brook, o "Couro" do boi foi confeccionado

com a lona do nosso antigo grupo, o qual cortamos no formato similar da couraça seca do boi,

bastante comum em decorações sertanejas, e pintamos durante nossos encontros. Boa parte dos

figurinos e acessórios também foram produzidos com o mesmo material, a lona.

As demais peças que compõem o figurino foram adquiridas ou confeccionadas pelos

atores. A maquiagem também remete à morte. O pancake branco remete à palidez da pele morta,

as cores terrosas dão vida às marcas de expressão das personagens, a sonorização do espetáculo

é feita durante a cena, pelos atores que estão de fora dela e são também usados alguns

instrumentos musicais como o violão, o atabaque, caxixi, escaleta e também alguns objetos que

produzem sons como garrafas de plástico e de vidro. A iluminação traz uma mistura de cores

quentes e frias, o âmbar a cor do sertão, e a cor azul, o mar, o qual é citado no final do

espetáculo. O nome Sem choro, nem vela foi o último a ser definido, surgiu espontaneamente

durante um dos ensaios quando o diretor George falou que queria tudo pronto para o ensaio

seguinte “sem choro, nem vela”. No mesmo instante notamos que aquele seria o nome que mais

representaria a peça.

Assim sendo, o espetáculo estreou no dia 27 de junho de 2019 dentro da programação

do Tudo Amostra, mostra do curso de teatro da UFRN, que acontece semestralmente no

Departamento de Artes (DEART), apresentando as produções artísticas desenvolvidas pelos

estudantes nas disciplinas. A segunda apresentação do espetáculo também aconteceu na

universidade, no II Circuito Universitário de Comunicação, Cultura e Artes (CUCCA), no dia

15 de agosto de 2019. Em seguida fizemos uma breve temporada em Natal, com duas datas de

apresentação feitas no bairro de Tirol, nos dias 20 e 21 de setembro de 2019, no Galpão do

Tropa Trupe. Nesse trabalho pudemos falar metaforicamente dos sentimentos do coletivo, que

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naquele momento, com o enceramento de um ciclo, essas sensações de término e despedidas

foram latentes. No entanto, com a criação do novo grupo de teatro a discursão sobre a morte

mostra que ela também é vida e que um ciclo precisa se fechar para que outro se inicie. Nossa

existência foi o principal ponto de partida para essa composição, a resistência se fez presente e

assim conseguimos virar o jogo do que seria o fim para um novo recomeço, da morte que virou

vida e da falta de recursos que se tornou potencial criativo.

FIGURA 6 – Espetáculo Sem choro, nem vela no Tudo Amostra 2019.1.

2.2. CONTEXTUALIZANDO A FORMAÇÃO TEATRAL NA UNIVERSIDADE

No ano de 2015 entrei no curso de Licenciatura em Teatro da UFRN. A escolha do curso

se deu por dois motivos, o primeiro foi o meu desejo de me tornar um ator, vontade essa que

descobri ter durante minha juventude, de acordo com o que ia me questionando “o que eu queria

ser quando crescer?". A segunda foi o fato de me tornar um professor, essa vontade posso

afirmar que já estava em mim antes mesmo de querer me tornar um ator. Sempre brincava

quando criança de escolinha, e como sempre fui muito apaixonado pelas artes, me encantou a

possibilidade de me tornar um educador daquilo que sempre admirei.

Quando me mudei para Natal, no ano de 2014, vim devido a minha aprovação no curso

de Gestão Hospitalar, também na UFRN, o qual fiz dois períodos. Enquanto estudava nesse

curso passei a fazer oficinas de teatro, fiz oficinas de clowns na Semana de Ciência, Tecnologia

e Cultura da UFRN (CIENTEC), e também participei enquanto ator da encenação de um aluno

do curso de teatro. A esquete se chamava Perdidos no porão, tendo como encenador o aluno

Carlos Alberto da Silva Junior (Caju, como é conhecido). A peça tinha como tema a ditadura

militar e por coincidência foi nessa mesma disciplina que foi apresentada a esquete Debaixo da

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pele, a qual eu assisti pela primeira vez e que no ano seguinte eu passaria a integrar a montagem

do espetáculo. Com essa experiência pude ter um maior contato com o Deart, com os alunos do

curso de teatro e também com alguns professores. Nesse mesmo ano eu fiz o Teste de

Habilidades Específicas (THE), onde fui aprovado para ingressar na Licenciatura em Teatro e

no ano seguinte iniciei os estudos.

Em 2015, já cursando teatro, pude perceber quão vasta era a linguagem teatral, e nesse

momento participava do maior número de atividades possível com intuito de adquirir o máximo

de conhecimentos e experiências teatrais. A estrutura curricular do curso é bastante abrangente

e além dos componentes curriculares teóricos, há também disciplinas práticas, ou com carga

horária dividida entre prática e teoria. No curso tínhamos bastante aulas práticas e isso foi bom

porque ia cada vez mais desenvolvendo minhas habilidades corporais e vocais. Além disso, nas

disciplinas práticas sempre criávamos um material cênico a ser apresentado no encerramento

do semestre. Durante todo o período pesquisamos e criávamos cenas, tendo esse momento

prático como aporte pedagógico.

Na universidade temos o privilégio de realizar exercícios que não conhecemos ou

dominamos. E, para além disso, também há a diversidade dos estudantes e artistas presentes,

com diferentes áreas de atuação. Nesse ponto encontramos a questão-chave da formação teatral,

isto é, não apenas fazer o que se gosta ou domina, mas estar disposto a sair de sua zona de

conforto e experimentar novos métodos de trabalho. Por ser um ambiente de ensino e

aprendizagem teatral torna-se também um lugar propício para a criação artística, e um lugar de

formação profissional e de surgimento de grupos de teatro. Óbvio que uma formação artística

teatral não depende exclusivamente do ambiente de ensino, ou somente de uma relação de

estudo teórico-prático, a formação vem com as experiências adquiras dentro e fora do lugar de

ensino, das vivências, da apreciação de outros trabalhos, da contextualização sociocultural e do

fazer teatral.

Na academia conhecemos a história da origem do teatro, as grandes correntes de

pensamentos, a importância da cenografia, a filosofia da arte e os fenômenos da cena. Com isso

o aluno dispõe de um grande referencial para a elaboração de suas futuras pesquisas e

produções. Com a defasagem do ensino de teatro nas escolas, muitos alunos chegam na

universidade apenas com uma bagagem prática de trabalhos realizados na escola, nas igrejas ou

nos grupos amadores, enquanto alguns já vem do mercado profissional com o intuito de adquirir

uma formação superior. É importante que nenhuma dessas formas de ingresso no curso sejam

discriminadas, pois podemos observar essa mistura com um olhar pedagógico, no qual ambos

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podem trocar seus conhecimentos e diferentes experiências, além de trabalharem juntos nos

processos criativos, de igual para igual.

A atuação é um foco importante do curso de teatro, embora nem todos os discentes

queiram exatamente ser atores ou atrizes. Mas passar por esse campo de conhecimento é

essencial para uma formação teatral, assim como também é importante para quem segue a

carreira de ator estudar as áreas de direção, dramaturgia, cenografia e encenação. O trabalho do

ator começa então a ganhar destaque no âmbito da aprendizagem, quando se encontra em

processo de construção de personagem e criação de cenas, pois passa não só a se dedicar a

estudar as técnicas de interpretação e de marcação de cena, como também a desenvolver uma

visão ampla do fenômeno teatral, se tornando capaz de relacionar seu personagem com o espaço

e as tecnologias da cena.

Com as dificuldades estruturais presentes nos espaços de ensino de teatro, como a

ausência de um edifício teatral dispondo de todos os aparatos cênicos, por exemplo, pode haver

uma limitação criativa no sentido de explorar ao máximo os recursos teatrais existentes. Não se

trata necessariamente de se ter uma estrutura teatral com tecnologias de ponta, e sim de uma

estrutura básica, que podemos dizer até mesmo convencional, e sua importância para uma

formação de nível superior.

No entanto, percebi durante o curso que para enfrentar esses problemas, que não é algo

presente apenas na UFRN, nem na cidade de Natal, mas sim em todas regiões do Brasil, em

diferentes escalas, é necessário muitas vezes adaptar o plano de curso para que mesmo com um

desfalque estrutural o conteúdo seja transmitido por meio da busca de outras saídas, como por

exemplo, a apresentação teatral em espaços alternativos. Para Jerzy Grotowski (1971), no livro

Em busca de um teatro pobre, “as montagens não se originam de postulados estéticos a priori”,

acerca disso ele comenta

Pela eliminação gradual de tudo que se mostrou supérfluo, percebemos que o

teatro pode existir sem maquilagem, sem figurino especial e sem cenografia,

sem um espaço isolado para representação (palco), sem efeitos sonoros e

luminosos, etc. Só não pode existir sem o relacionamento ator-espectador, de

comunhão perceptiva, direta, viva. Trata-se, sem dúvida, de uma verdade

teórica antiga, mas quando rigorosamente testada na prática destrói a maioria

das nossas ideias vulgares sobre teatro. ” (GROTOWSKI, 1971, p. 05)

Se não temos na universidade ou na cidade teatros acessíveis para o direcionamento de

apresentação teatrais, que então as apresentações sejam feitas nas ruas, em espaços alternativos

ou até mesmo em sala de aula. Isso também interfere no trabalho do ator, pois muitas vezes não

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há salas suficientes para o ensaio de todos os projetos de montagem cênica, limitando assim as

produções artísticas das disciplinas a ensaiar apenas no horário das aulas. A solução muitas

vezes é realizar o ensaio na rua, ou no espaço pensado para a apresentação. Assim, a formação

teatral na universidade também sofre com o processo de resistência, onde resiste para que exista,

supera as barreiras das dificuldades de pesquisa e desenvolve novas propostas para uma

formação integral e suplementar. Para Eugênio Kusnet, “o ator é o único elemento de teatro

absolutamente indispensável”. O autor ainda questiona que

O ator, o homem que vive, que pensa, que sente é o único elemento de teatro

absolutamente indispensável. Todos os outros elementos, embora sejam de

imensa utilidade, não são mais que satélites desse “sol” do teatro que é o ator.

E finalmente, podemos perguntar: poderá o teatro existir sem espectador?

Não! A razão da existência do teatro é exatamente a sua comunicação com o

espectador. (KUSNET, 1985, p. 04)

A coletividade teatral permite um ambiente de muita aprendizagem, com os laboratórios

corporais é possível a troca de conhecimento e de repertório entre os que fazem o exercício, ao

olhar, observar e também estabelecer relações com os demais corpos. A teoria traz um suporte

para reflexão acerca da prática teatral, contextualizando nossas criações, e também o

pensamento crítico sobre a cena. A universidade é, portando, um lugar de pesquisa e

experimentação, com liberdade para desenvolver nosso potencial seja individual, seja coletivo.

Enquanto formação docente, pensar criticamente o teatro permite ao futuro professor

desenvolver suas próprias metodologias de trabalho, como trabalhar o corpo do indivíduo a

superar suas limitações e ao coletivo seu potencial criativo, permite então, através de sua

poética, pensar o ensino do teatro, o referencial teórico e o desenvolvimento de práticas

pedagógicas para a cena.

2.2.1 Pedagogias da montagem de um espetáculo teatral: adaptando “A ópera de 3 Vinténs” de

Bertold Brecht

Uma das experiências mais marcantes que tive dentro de uma disciplina do curso de

teatro foi sem dúvidas a experiência de montar um texto de Brecht. A disciplina foi Atuação

IV, ministrada pela professora Melissa Lopes15, e ocorreu no período 2017.1. O objetivo da

disciplina partiu de uma proposição da professora, seguido de um acordo feito com a turma, e

era, portanto, montar um espetáculo na íntegra durante o período da disciplina e apresentar na

15 Graduação em Artes Cênicas (UniCamp) Mestrado em Artes (UniCamp) Doutorado em Artes da cena (UniCamp)

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mostra de teatro do curso que acontece a cada final de semestre, o Tudo Amostra. Para a

professora, a proposta pedagógica da disciplina se dava no destrinchar de todas as fases de um

processo de montagem, assim como na organização de todos os elementos que compunha a

cena. A peça escolhida para a montagem foi o texto de Brecht, A ópera de 3 Vinténs, que fala

sobre a luta de classes, mostrando o cotidiano daqueles que estão na base da pirâmide social,

com uma crítica social fortemente presente no texto dialético. Aspecto esse observado por

Rosenfeld (1977, p.166) como essência da poética brechtiana, “Chamava suas peças Versuche,

termo que, às vezes traduzido por ‘ensaios’, tem para Brecht antes o sentido de ‘experimentos’,

na acepção das ciências naturais, com a diferença de se tratar de "experimentos sociológicos”.

E sobre a Opera de 3 Vinténs, complementa

A ópera de três vinténs é, apesar de tudo ou por isso mesmo, grande teatro,

teatro teatral em todos os sentidos: no cruel e no ameno. Profundamente

incomoda, é uma joia de comodidade. É uma peça astuta, traiçoeira, mesmo e

precisamente naquilo que ultrapassa, confunde, neutraliza e escapa às

intenções do próprio autor.(ROSENFELD, 1977, p. 166)

Até então, durante minha formação na universidade, essa foi a primeira vez que tinha

montado integralmente uma peça teatral em uma disciplina. Já havíamos em outras ocasiões

feito extratos cênicos de peças, mas não com esse caráter de fazer da montagem o plano de aula

da disciplina, o que me deixou bastante entusiasmado durante o processo de criação. Embora

seja uma montagem fora de um grupo de teatro, vou falar sobre essa experiência por se tratar

de uma peça montada com a minha turma de curso, onde fazíamos juntos nossa última disciplina

de atuação, mostrando que a coletividade teatral não está presente somente nos grupos.

Nas primeiras aulas realizamos a leitura dramática do texto e fizemos laboratórios

corporais para introduzir as matrizes das personagens, um dos laboratórios mais marcantes foi

o de representar no corpo um animal. Após o alongamento e aquecimento nos deitamos no chão

e a professora pediu, durante a condução da prática corporal, para visualizarmos mentalmente

um animal, o primeiro que viesse à cabeça ou algum que tivesse afinidade. No meu caso

visualizei um calango. Em seguida, ainda em nível baixo, demos início à mutação do nosso

corpo para o animal escolhido. Depois fomos para o nível médio e mesmo sendo animais

quadrúpedes íamos adaptando essa matriz a um corpo bípede, Em seguida chegamos ao nível

alto, ficando totalmente de pé. Era como uma espécie de homens animais, corpo humano, mas

com o estado de espírito dos animais. Depois veio os sons e os gestos que esses animas

reproduzem. Esse laboratório se repetiu umas três vezes e em cada vez o corpo já se conectava

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mais rápido com sua matriz animalesca. Mais tarde essa matriz foi essencial para a construção

das personagens da peça.

Uma outra proposta interessante que partiu da professora-diretora foi a de sairmos da

zona de conforto e trabalhar com personagens que mais teríamos dificuldades para construir,

ou que menos nos identificássemos. Sobre a seleção das personagens, cada aluno escolheu os

personagens que se desafiaria atuar, e em uma aula específica fizemos as apresentações de um

trecho da cena com as personagens escolhidas. A última palavra foi da diretora que escolheu

quem mais demonstrou dedicação na atividade e melhor representava o papel. Como a turma

possuía mais de 23 alunos, e também estávamos montando Brecht, cada personagem era feito

por mais de um ator/atriz, e cada ator/atriz poderia escolher mais de uma personagem. Azevedo

(2004) melhor explica a escolha dos personagens no teatro brechtiano

No processo de Trabalho brechtiano, as personagens não são distribuídas

segundo o tipo físico do ator, e durante os ensaios o interprete tem

oportunidade de experimentar vários papéis. Dessa forma, tudo adquire uma

dimensão coletiva de criação e o ator vai, minuciosamente, caracterizando

aquele que vai ser o seu papel: cuida para que cada gesto seja claro e seleciona-

os rigorosamente durante a pesquisa. (AZEVEDO, 2004. p.24)

Alguns alunos optaram por fazer parte da equipe técnica do espetáculo, mas também

houve uma distribuição das funções entre os atores, proposta bem parecida com o trabalho de

teatro de grupo. O cenário foi produzido por um grupo de alunos que já pesquisavam a

cenografia ou tinham interesse pela área, assim como a iluminação e a sonoplastia. A

maquiagem foi criada pelo aluno Mychell Ferreira16. Com relação aos figurinos, cada ator/atriz

pôde propor o seu, de acordo com peças de roupas que íamos conseguindo emprestado ou

comprando em bazares. Sobre isso, algo bastante relevante foi a autonomia dada pela

professora-diretora para que os alunos pudessem criar e explorar sua criatividade. Algo raro de

acontecer já que em muitos casos, enquanto atores, temos que lidar com diretores autoritários,

que acabam por decidir toda a estética do espetáculo à sua ótica, boicotando assim o processo

criativo dos atores.

Para a adaptação do texto resolvemos trazer o espetáculo para a realidade de Natal,

cidade onde estava sendo montada a peça. Assim o local onde acontecia a peça era chamado de

Natown, em referências ao nome da cidade, trocadilho já conhecido pelos moradores,

principalmente os mais jovens. As regiões citadas na peça também faziam referência aos bairros

de Natal, como por exemplo o bairro histórico da Ribeira e Camarão. O coro dos mendigos

16 Discente do curso de Licenciatura em teatro, UFRN.

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · 2019. 12. 15. · FIGURA 7 – Cena das putas na adaptação de A opera dos três vinténs. FIGURA 8 – Turma de Atuação

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fazia alusão aos pedintes de esmolas e vendedores ambulantes, o coro dos bandidos aos "pintas

natalenses", como são conhecidos os "marginais" da cidade, e o coro das putas fazia referência

às travestis que se prostituem nas ruas, algo também comum de se ver na cidade, infelizmente

uma realidade bastante visível.

FIGURA 7 – Cena das putas na adaptação de A opera dos três vinténs.

Assim sendo fiquei com duas personagens, o Delegado Silva, e uma personagem do

Coro das putas. O trabalho corporal dos animais ajudou na construção das personagens, pois a

minha matriz de calango serviu tanto para o delegado quanto para a puta, uma das ações que

permaneceram nas personagens foi o de balançar a cabeça de cima para baixo para Silva, e a

malemolência do quadril para a puta. Quando se tinha mais de um/uma ator/atriz fazendo uma

personagem, os Gestus17 eram compartilhamos para que assim a personagem estivesse afinada

em cada ator/atriz e para que o público identificasse a personagem não só pela caracterização

visual, mas também pelos seus Gestus18.

O espetáculo tinha bastante musicalidade, usávamos bases de teclado para acompanhar

as vozes cantadas, o coro das putas também tinha uma música, a qual demos uma base de funk

à letra, com direito também a uma coreografia no estilo do ritmo. Esse momento era um dos

ápices do espetáculo, o público ria muito e notávamos que a plateia havia percebido as

17 Gestus não significa uma gesticulação, não se trata de uma questão de movimento das mãos, explicativos ou

enfáticos, mas de atitudes globais. Uma linguagem é gestus quando está baseada num gesto e é adequada a atitudes

particulares adotadas pelo que a usa, em relação aos outros homens. (BRECHT, 1967, p.77) 18 “O gesto torna-se um ato social que pode exprimir as relações estabelecidas entre os homens de determinada

época e tem, dessa maneira, a função de esclarecer o espectador. O ator, posicionando-se em função do que

apresenta no palco, sublinha e acentua, discorda ou reafirma, enfim, uma posição a respeito do que está fazendo,

escolhendo e aprimorando cada movimento em cena. ” (AZEVEDO, 2004, p. 24)

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referências, ocasionando a identificação com a realidade, que não é só exclusiva da nossa

cidade, mas presente em todas as regiões do Brasil. Sem dúvidas o coro das putas travestis foi

uma sacada genial para a adaptação do espetáculo para nossa realidade, já que se tratava de uma

peça estrangeira e também de outra época. Para Rosenfeld (1977), o texto escrito por Brecht já

apresenta em si uma abordagem dialética, quando expõe diferentes posicionamentos de

diferentes camadas sociais

A filosofia cínica da peça, com sua alegria amarga, é expressão de um

moralismo desiludido, baseado na experiência de que o homem (pelo menos

o citadino) não presta. Dos grandes, pouco se espera; mas nem sequer os

pequenos chegam a ser tão puros como lhes cabe. Com a deplorável diferença

- diz uma das personagens - de que só os coitados são castigados pelos seus

crimes.(ROSENFELD, 1977, p. 162)

Para o espetáculo fluir e ser apresentado na íntegra precisamos também fazer ensaios

em outros horários além da aula e também foi realizado um ensaio técnico no Teatro

Laboratório Jesiel Figueiredo, no Deart, local onde aconteceram as apresentações. Assim o

espetáculo foi apresentado duas vezes, nos dias 20 e 21 de junho de 2017, dentro da

programação do Tudo Amostra daquele mesmo semestre.

FIGURA 8 – Turma de Atuação IV, no Tudo Amostra 2017.1.

Durante as apresentações os 23 atores/atrizes ficavam no camarim por trás da rotunda,

assim como os elementos do cenário que entravam e saíam de acordo com a mudança de cena,

também havia trocas de figurinos. Todas essas ações que aconteciam nos bastidores também

precisaram ser ensaiadas, parecia que outro espetáculo acontecia por trás da cortina. Ainda

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acontecia da cena das putas começar dentro do camarim. As cortinas eram abertas, mostrando

o centro do camarim, fazendo com que tudo de cenário e atores fosse levado para as laterais,

para não serem vistos pelo público, mostrando apenas o camarim vazio, como se ali atrás

estivesse vazio e arrumado, não havendo nada acontecendo. Alguns espectadores comentaram

depois que parecia um passe de mágica, pois viam a quantidade de atores e acessórios entrando

e saindo de cena durando todo o espetáculo, e nesse momento que a cortina era aberta nada

ficava visível. Recebemos a seguinte mensagem da Professora Melissa Dias antes da

apresentação:

“Está sendo uma grande loucura!

23 atores em cena, música, dança e teatro. Quem nunca cometeu uma loucura,

que atire a primeira pedra.

Sei que tivemos altos e baixos durante todo o processo, mas isso faz parte.

Nunca participei de um processo criativo que tenha sido unânime entre

todos.... mas no geral, em termos de criação artística... acho que temos um

bom trabalho nas mãos.

Quando dei início a esse projeto eu tinha em mente que queria bons atores

em cena, queria que eles tivessem sintonia uns com os outros e que boa parte

do espetáculo viesse da mente e do coração pulsante de cada um deles.

Em vários momentos do processo eu vi isso acontecer e ontem, ensaiando a

contra-regragem isso ficou mais evidente para mim.

Eu estou orgulhosa e confiante no nosso espetáculo!

O que posso desejar agora a vocês, é que se permitam, se entreguem e se

divirtam.... muito!”

Com a estreia cumprimos com o objetivo da disciplina de montar o espetáculo. Com a

montagem pude aprender muito enquanto ator, percebendo também o qual pedagógico pode ser

a produção de um espetáculo. O arte-educador atua como um diretor, a turma de estudantes

como os atores, a peça é o plano de aula, e a apresentação como a avaliação onde podemos ver

os resultados da aprendizagem. É inegável o fato de aprendermos teatro fazendo teatro. Na

verdade, isso acontece com qualquer área de conhecimento, a prática é o instrumento verdadeiro

para a aprendizagem. Com essa comparação fica uma reflexão acerca da pedagogia da

montagem de um espetáculo teatral, onde os alunos terão contato com os principais elementos

que compõem a cena, bem como irão trabalhar em conjunto com todos eles.

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3. EM BUSCA DE UMA REALIDADE TEATRAL

Gostaria de iniciar o último capítulo desse trabalho fazendo uma breve reflexão acerca

do papel da arte na vida das pessoas e quais as suas contribuições para uma formação

humanística. Muito se especula sobre qual seria a função da arte e quais as suas reais

contribuições para a sociedade. O que sabemos e está constatado nos mais diversos estudos

sobre a origem da arte, é de uma necessidade do ser humano de expressar, sob diferentes tipos

de manifestações, a sua visão sobre a vida, os sentimentos pelo real, a subjetividade do ser, a

espetacularização das formas e a capacidade de “tocar” o lado sensível do outro.

Durante minha jornada acadêmica no curso de teatro, mais especificamente nas

disciplinas de estágio, sempre nos era cobrado por parte dos professores pesquisar qual seria a

função da arte que acreditamos para podermos também encontrar qual a nossa função enquanto

artistas e também enquanto arte-educadores. Então, vou falar um pouco no que acredito e da

minha experiência com o teatro. Viver e questionar verdadeiramente qual o papel da arte que

exerço durante a minha rotina, acadêmica e profissional.

A arte está presente em todos os lugares e em todas as pessoas, basta apenas que a

encontremos e lhe demos vida. Logo, a arte pode ser existência, vontade, liberdade, prazer,

inquietação, felicidade, compreensão, desejo, criatividade, emoção, movimento, composição,

execução, imaginação, transgressão, empatia, energia, reflexão, realidade, ficção,

posicionamento, denuncia, poesia, sensibilidade e outras infinidades. Com ela temos uma maior

capacidade de conhecer mais sobre nós mesmos, tendo a oportunidade de transformar a

realidade a nossa volta.

Essa é a maior contribuição que a arte deixou para mim, além de tantas outras, essa foi

a mais importante. Com a arte pude me conhecer melhor, reconhecendo meu corpo, minha voz,

minha mente, meus desejos, meus potenciais, minhas fraquezas, meus medos, meus defeitos

etc. Assim, consegui refletir, aprender e evoluir. Tudo isso foi possível vendo, fazendo e

problematizando a arte. Feita essa reflexão poética passarei a abordar, no decorrer deste

capítulo, as relações entre o teatro, a escola, a coletividade e a formação artística.

Todo e qualquer lugar, instituição de ensino, que está inserida na sociedade, seja pública

ou privada, tem a sua singularidade. Se pararmos para observar, no decorrer de nossa formação,

as escolas que frequentamos, podemos perceber que cada uma possuía o seu jeito de funcionar,

apesar de serem parecidas. Cada escola está situada em um lugar diferente, em um bairro

central, periférico ou rural, ou seja, inseridas também no contexto social, cultural e político da

comunidade. Assim, podemos dizer que cada escola possui uma realidade diferente. Assim,

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onde o lugar muda, os alunos mudam, os professores geralmente mudam, a cozinheira muda, o

porteiro muda, todos os funcionários mudam, até mesmo a estrutura muda quando comparamos

uma escola da periferia com a do centro, ou a pública com a privada. Essa realidade interfere

diretamente no processo de aprendizagem do aluno, da turma e da escola, na relação professor-

aluno e nas relações sociais e coletivas. Gosto muito desse ponto de partida para qualquer

prática educativa, principalmente para pensar um plano de aula ou um planejamento anual,

considerando as necessidades da realidade escolar. Para Freire (2013), ensinar exige o

reconhecimento da identidade cultural e apreensão da realidade. Assim, ele afirma que

A questão da identidade cultural, de que fazem parte a dimensão individual e

a de classe dos educandos cujo respeito é absolutamente fundamental na

prática educativa progressista, é problema que não pode ser desprezado.

E complementa:

A experiência histórica, política, cultural e social dos homens e das mulheres

jamais podem se dar ‘virgem’ do conflito entre as forças que obstaculizam a

busca da assunção de si por partes dos indivíduos e dos grupos e das forças

que trabalham em favor daquela assunção.(FREIRE, 2013, p. 42)

O professor de teatro no Brasil tem hoje uma imensa dificuldade no que diz respeito a

ter uma estrutura confortável de ensaios na escola. Talvez isso se dê pelo contexto histórico da

educação brasileira onde a arte nem sempre foi incentivada nas escolas, mas que nunca deixou

de existir e contribuir para uma formação humana, social e política do aluno.

Temos enquanto disciplina de artes uma média de um ou dois horários de aulas

semanais, um tempo muito curto para aplicar um planejamento mais complexo, preparar uma

prática teatral mais aprofundada, ou até mesmo, fazer um processo de criação cênica. Nesse

caso, o ideal é que o tempo seja proveitoso e o planejamento garanta que os prazos estão sendo

cumpridos, para que nada saia do combinado até a apresentação. Em situações onde a escola

não possui uma sala de ensaio ou um auditório o professor também tem que considerar as

limitações do espaço para o ensaio, e ver o que pode ser feito para escolher uma estética mais

relevante, adequando a cena ao espaço, para melhor coordenar o trabalho dos alunos.

Existem muitas formas de propor um trabalho para ser feito em sala de aula. Nesses

momentos me agrada a ideia de seguir uma linha de criação mais aberta, onde os alunos possam

criar cenas de teatro ou de dança a partir da improvisação e que possam ser apresentadas em

algum lugar da escola. No entanto, é importante destacar que não existe um caminho definitivo

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a ser seguido. Para Japiassu (2001), nenhum caminho para o ensino de teatro na escola é melhor

ou superior aos demais

Tenho a clara convicção de que não existe apenas um caminho para o

desenvolvimento do trabalho com teatro na escola e, além disso, a firme

opinião de que, entre os caminhos possíveis, nenhum pode ser considerado,

absoluta e descontextualizadamente, melhor ou superior aos outros. Eles são

diferentes – cada um com seus próprios ‘encantos’, ‘habitantes’ e ‘lugares de

onde se vê’. O importante é poder escolher com segurança – e às vezes por

conveniência – qual caminho seguir. (JAPIASSU, 2001, p. 16)

O teatro, por reproduzir em cena um ponto de vista sobre a vida, pode trazer em sua

dinâmica de comunicação uma posição política. Esta age no cotidiano das relações sociais e

está praticamente relacionada a quase tudo o que se diz respeito ao ambiente coletivo. Enquanto

artistas temos nossa liberdade de expressão para abordar em cena qualquer posição. Quando

em cena defendemos um ponto de vista isso não quer dizer que todos aqueles que estão na

plateia irão concordar com o que foi mostrado. Toda cena é passível à reflexão, e jamais age

sobre o espectador como uma verdade absoluta. Até porque trata-se de um teatro, uma

encenação, e o público é totalmente ciente disso. Posições políticas estão presentes nos textos

dramáticos desde as primeiras peças do Teatro Grego.

No Teatro do oprimido, por exemplo, a proposta da cena é de ser dialética, onde mais

de uma posição política são colocadas em divergência, causando no espectador não somente o

papel de questionar, mas também de libertá-lo de qualquer posição pré-estabelecida. Com isso

quero dizer que, de uma forma ou de outra, a discussão política vai estar sempre presente em

cena, direta ou indiretamente. Já enquanto arte-educadores, talvez possamos encontrar barreiras

para criar narrativas de cunho mais explicitamente político, pois em muitos casos confundem a

política com partidarismos, sendo estas duas coisas totalmente distintas. Em contrapartida, é de

extrema importância para a formação e aprendizagem dos jovens vivenciar esses debates.

A arte abertamente política pode se tornar um grande tabu em um espaço público de

ensino. Nem sempre nós, professores de teatro, temos a liberdade de fazer uma cena na escola

problematizando situações referentes ao atual cenário político no país, por exemplo. Existe uma

barreira criada para com a educação. Esta barreira é fruto de uma visão fechada acerca do

ensino, na qual a educação é posta apenas como um instrumento de formação para a vida

profissional. O papel da escola é formar cidadãos para que eles possam ter a autonomia e os

conhecimentos necessários para seu desenvolvimento humano e social, como bem explana

Durval Muniz de Albuquerque Jr. “A educação pensada como formação vai se propor a ser uma

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educação integral, que dá conta de todos os aspectos da vida, que prepara física, mentalmente,

moralmente o futuro cidadão”.

Se deixarmos de lado nossas capacidades de pensar criticamente, seremos facilmente

manipulados pelos políticos e não passaríamos de um mero reprodutor de discursos. Quando

ensinamos um aluno a pensar criticamente damos a ele a sua autonomia, a sua liberdade de

escolha e de expressão. Em uma aula dialógica ou em um plano de curso flexível, os alunos

irão demonstrar de alguma forma, em algum momento, a sua vontade de aprender ou abordar

alguns dos diversos temas que lhes atraem, ou que faça relação com a proposta do curso.

Atualmente, as discussões sociais estão bem mais acessíveis e sendo cada vez mais

abordadas nas mídias, seja nas redes sociais, com conteúdo em plataformas de audiovisual ou

na TV. Ou seja, o aluno já tem acesso a essas informações fora do espaço de ensino formal, e

em algum momento isso poderá vir à tona durante as aulas.

Por isso, o professor deve estar preparado para responder essas questões, apresentando fatos e

dados concretos, diferentes posições, e até mesmo mediando o debate para que eles mesmos

encontrem a resposta.

Na disciplina de teatro essas questões surgem naturalmente e com maior frequência,

pois se trata de uma linguagem que promove diferentes experiências no corpo e na mente,

despertando nosso senso crítico de acordo com o que vamos problematizando, encenando ou

assistindo uma cena. É muito importante que a escola seja um lugar de aprendizagem em todas

as áreas do conhecimento e que os alunos tenham a liberdade de expressar artisticamente suas

questões e sua reflexão, de acordo com o que é proposto pelo exercício.

Não são em todas as realidades escolares que podemos garantir essa liberdade de

expressão. Temas como intolerância religiosa, orientação sexual, identidade de gênero,

racismo, machismo, aborto, dentre outros, em uma escola de proposta de ensino conservadora,

por exemplo, podem ser vistos com maus olhos por parte da direção, professores ou até mesmo

familiares dos estudantes. Para Japiassu (2001), a criatividade possui relação direta com a ideia

de liberdade de expressão, sobre isso comenta

Considerada importante aspecto da inteligência humana – e via para

potencializar a capacidade e resolução de problemas -, a criatividade passou

a ser estimulada na educação escolar no âmbito de um pensamento

educacional liberal progressivista, fundamentado nos princípios da escola

ativa. Postulava-se, assim, um ‘novo’ modelo de ensino para atender aos

ideias democráticos de ‘liberdade de expressão’ e ‘livre iniciativa’ do futuro

cidadão. (JAPIASSU, 2001, p. 21)

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Para Coelho (2014), as relações entre teatro e educação consistem primordialmente na

condição de formação humana,

O mergulho em si mesmo propiciado pelo teatro potencializa as descobertas

pessoais de uma forma indireta. No teatro, é por meio do não-ser que se

descobre o ser. No fazer teatral, a tolerância se amplia na medida em que o

“eu” se coloca no lugar do outro, que sinta suas dores, as alegrias, os

sentimentos. No jogo da encenação dentro da escola, é possível trabalhar

conflitos específicos. Em uma cena, o aluno pode se colocar no lugar do

professor ou no lugar de um colega discriminado pela sala. Um jovem

preconceituoso pode fazer o papel de um personagem que sofre com o

preconceito de seus amigos da escola e, por meio dessa “troca de papéis”, o

jogo cênico, que promove a reflexão das ações de modo a sensibilizar seus

agentes, atua também como um meio bastante produtivo para a resolução de

conflitos causados pela intolerância no contexto escolar. (COELHO, 2014)

O acesso à cultura é um direito garantido na constituição19 brasileira, pois promove a

identidade de um povo. Por isso a arte faz se necessária durante o processo de formação

humana. Para que haja uma democratização do acesso ao ensino do teatro, é de grande

importância que ele seja abordado nas escolas públicas, pois são elas que possuem o maior

número de alunos matriculados. Outro ponto que também gosto de enfatizar é que nas escolas

existem alunos que já exercem, desejam ou sonham em se profissionalizar enquanto artista, e

que muitas vezes acabam não encontrando oportunidades de desenvolvimento dentro das

escolas.

Por isso, devemos nos atentar ao fato de que o teatro, apesar de ser de origem popular20,

na atualidade apenas uma parte da população tem acesso às aulas e espetáculos, muitas vezes

apenas a classe artística e a elite. A maioria das escolas privadas de Natal oferta disciplina e

professores de teatro, enquanto no ensino público a realidade é de total desvalorização. Isso não

quer dizer que seja uma regra, ou que o ensino de artes seja melhor quando em escola privada.

Mas também é importante reconhecer que mesmo a escola pública ofertando a disciplina de

artes em seu currículo, ela ainda corre o risco de não ser tratada com a seriedade que merece.

Sobre essa relação entre desvalorização das artes e educação escreveu Japiassu:

As artes ainda são contempladas sem a atenção necessária por parte dos

responsáveis pela elaboração dos conteúdos programáticos de cursos para

formação de professores alfabetizadores e das propostas curriculares para a

educação infantil e o ensino fundamental no Brasil. Embora os objetivos da

educação formal contemporânea estejam direcionados para a formação

19 Art. 215 da Constituição federal do Brasil, 1988. 20 Surgiu através de manifestações culturais do povo, como no caso do teatro grego, originário do culto dos

camponeses ao deus Dionísio.

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omnilatral, quer dizer, em todas as direções do ser humano (Saviani 1997),

constata-se que o ensino das artes, na educação escolar brasileira, segue

concebido por muitos professores, funcionários de escolas, pais de alunos e

estudantes como supérfluo, caracterizado quase sempre como lazer, recreação

ou ‘luxo’ – apenas permitidos a crianças e adolescentes das classes

economicamente mais favorecidas. (JAPIASSU, 2001, p. 17,)

A coletividade da prática teatral é um grande fator pedagógico desta arte, pois ela se

constitui da essência do fazer teatral, tendo como suporte o processo de criação coletivo ou

colaborativo. Segundo Ary e Santana (2015), “Em ambos, reside, com maior ou menor teor,

a ideia de rompimento de uma hierarquia funcional rígida e de não especialização do

exercício das diversas funções artísticas específicas.”. A autonomia, quando promovida no

fazer teatral, promove o desenvolvimento das potencialidades artísticas dos indivíduos, e

quando em coletivo essas experiências individuais são compartilhadas, provocando assim um

processo de ensino-aprendizagem. Também vale salientar algumas diferenças nas

características desses dois tipos de processos

A criação coletiva, como movimento relevante, surge para a cena

brasileira na década de 1960, entretanto, sua consolidação ocorre ao longo da

década de 1970 com o fortalecimento do movimento de teatro de grupo. Já os

processos criativos, nomeados como processos colaborativos surgem na

década de 1990. O termo se fortalece com a consolidação de coletivos de

criação com vocação para a pesquisa de linguagem que buscavam

alternativas para viabilizar a produção de modo diverso do teatro de

encenação, instaurado durante os anos 80 no Brasil.(ARY; SANTANA,

2005, p. 23-24)

Atualmente são diversas as possibilidades que o trabalho coletivo, desenvolvido pelos

grupos de teatro, pode proporcionar à cena, como melhor explica Carreira e Oliveira neste artigo

de 2005.

Ainda que o trabalho coletivo seja característico do fazer teatral, as diversas

possibilidades de organização deste trabalho conformam um leque amplo de

formas e procedimentos que se definem por suas regras internas. A matriz que

serve de paradigma à forma moderna de grupo de teatro se definiu a partir dos

projetos que se estruturaram, especialmente a partir da busca de uma maior

experimentação das questões relacionadas com o ator como via de construção

da cena. (CARREIRA; OLIVEIRA, 2005, p.02)

Um ponto importante dessa discussão é a possibilidade de levar essa vertente do trabalho

coletivo desenvolvido pelos grupos também para a metodologia do ensino de teatro nas escolas.

O professor de teatro, diante de uma proposta de criação de cena, pode explorar ambas

características dos processos de criação, coletivo ou colaborativo.

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As experiências primárias e secundárias garantidas durante o processo prático da

montagem e ensaio de cenas, chega também a terceiros, no caso, a plateia. Nesta fase os

espetadores têm acesso à produção artística final, lapidada durante o processo. A experiência

de cena também é formativa, enquanto os artistas analisam a recepção do seu trabalho à

apreciação crítica de terceiros, o público, por sua vez, tem acesso aos resultados de uma

colaboração artística. Tanto o processo quanto a apresentação são duas fases totalmente

pedagógicas, e tanto contribui para o desenvolvimento da aprendizagem quanto para uma

formação artística. Para Koudela e Santana (2005), o espectador também se torna parte do

processo pedagógico do teatro, sendo então possível direcionar o conteúdo da peça, pensando

em como depois avaliar os espectadores acerca de alguns aspectos de sua apreciação

A pedagogia do teatro abrange também o receptor na apreciação de

espetáculos teatrais. Assim como o espectador frente ao espetáculo, o

professor pode explorar os materiais de apoio educativo para transformar a ida

ao teatro numa experiência significativa, através da mobilização do processo

de apreciação e criação de seus alunos.

Continua:

A apreciação e análise, por parte das crianças e jovens de espetáculos teatrais

de qualidade, bem como a participação em eventos artísticos, são formas de

trabalhar a construção de valores estéticos e o conhecimento de teatro, sendo

que o professor poderá desenvolver procedimentos variados para avaliar a

fruição, apreciação e leitura do espetáculo, fazendo propostas para a

tematização do conteúdo da peça.(KOUDELA; SANTANA, 2005, p. 153)

O teatro, assim sendo, se constitui como linguagem própria, pois possui um sistema de

comunicação próprio, através de suas convenções da cena. Ou seja, possui sua forma de

organizar e transmitir informações. O fenômeno da cena também se faz de grande impacto para

a educação por sua capacidade de dialogar com as demais linguagens da nossa cultura. Japiassu

(2001) melhor descreve este fenômeno,

Importante meio de comunicação e expressão que articula aspectos plásticos,

audiovisuais, musicais e linguísticos em sua especificidade estética, o teatro

passou a ser reconhecido como forma de conhecimento capaz de mobilizar,

coordenando-as, as dimensões sensório-motora, simbólica, afetiva e cognitiva

do educando, tornando-se útil na compreensão crítica da realidade humana

culturalmente determinada. (JAPIASSU, 2001, p. 22)

O potencial pedagógico do teatro já foi reconhecido pela igreja católica e esteve presente

no início da história da educação brasileira. Como ironia do destino, o teatro feito pelos padres

jesuítas foi usado para catequizar os nativos que aqui encontraram, quando chegaram ao Brasil,

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os índios, e que posteriormente passa a ser também usado como método pedagógico nas

primeiras instituições de ensino. Assim, a história do surgimento do teatro brasileiro coincide

com a do início da educação no nosso país. Apesar de se tratar de um caso de apropriação de

uma manifestação artística para a consolidação da colonização por exploração no Brasil, o

teatro pôde ser, naquele primeiro momento, reconhecido como uma potente ferramenta

pedagógica.

Com a formação artística na escola em ativa, teremos também um movimento cultural

entre os alunos, já que os debates e as criações também serão compartilhados entre as turmas.

A escola então passaria, por exemplo, não só a produzir material artístico, como peças de teatro,

mas também a consumir esse material, fazendo jus a uma proposta de ensino que vise o apreciar,

o fazer, e o contextualizar, defendida por Ana Mae Barbosa.

Com a contemporaneidade as relações sociais estão cada vez mais inconsistentes. Nesse

ponto se faz importante o ensino de teatro na base da formação educacional, garantindo assim

um maior incentivo para a prática da coletividade. Além disso, a troca de experiências

promovida por essas práticas coletivas contribui para o processo ensino-aprendizagem, bem

como cria espaços férteis para a criação teatral, principalmente ao considerar a autonomia dos

indivíduos, e consequentemente o desenvolvimento de suas potencialidades artísticas.

3.1. TEATRO ESCOLAR E RESISTÊNCIA: REAFIRMANDO A IMPORTÂNCIA DO

ENSINO DE TEATRO NAS ESCOLAS

Podemos enxergar a presença do teatro na escola sobre diferentes óticas. Primeiro temos

que problematizar algumas questões. O teatro está presente em todas as escolas? Qual a

contribuição do ensino de teatro para a formação dos alunos? Temos profissionais

especializados em teatro? Como se dá hoje a produção teatral nas escolas? O que é o teatro

escolar? Podemos então começar com essa última questão, existe de fato um teatro escolar? Na

verdade, o teatro escolar é um termo usado para toda produção teatral criada na escola e feita

pelos estudantes. Trata-se, portanto, da forma teatral mais acessível ao público.

Na escola, alunos e professores se juntam para criar ou montar uma peça de teatro,

totalmente nova ou de algum texto já existente. Pode ser apresentada como uma atividade

dentro de outra disciplina, ou como parte do conteúdo da disciplina Artes /teatro. Pode também

ser feita como uma atividade extracurricular, como é o caso dos grupos de teatro das escolas.

Essas peças podem ser apresentadas apenas para uma turma, para toda a escola, ou na escola e

aberta ao público, familiares e amigos dos estudantes, e demais pessoas. Assim como também

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pode ser apresentado em outro espaço fora da escola, em outra escola, na rua, na praça, ou em

algum evento em específico.

Geralmente para a montagem das peças, são escolhidos textos clássicos do teatro e

também da cultura popular brasileira. Devido à ausência de recursos estruturais as peças são

montadas de maneira mais natural possível, em muitos casos sem grandes estruturas

cenográficas, figurinos e maquiagem improvisados e iluminação cotidiana21. Dessa forma

constituísse a visão que temos por teatro escolar. Não são todas as escolas que possuem grupos

de teatro, ou que também chegam a montar integralmente peças de teatro, apesar das maiorias

das escolas em algum momento de sua existência se arriscar no fazer teatral, apenas algumas

apresentam essa cultura rotineira das montagens.

Essa situação se dá por infinitos motivos, dos mais simples até os mais complexos, como

a de não haver a presença um profissional de teatro capacitado ou até mesmo por falta de

“comprometimento” dos alunos. Esse último arrisco dizer que é uma questão complexa, e

totalmente relativa, acredito que com a experiência de um professor de teatro os alunos ditos

“desinteressados” passariam através de uma didática, que se aproxime mais deles, poderia

despertar um maior interesse de participar dessa experiência. De fato, o teatro é mais do que

decorar um texto e marcar uma cena, o que muitas vezes falta nesses casos de montagem teatral

nas escolas é uma contextualização e reflexão sobre essa arte. A criação coletiva, a experiência,

o processo, podem ser em muitas ocasiões mais interessantes do que apenas uma montagem

rápida para apresentação de fim de ano. Outro ponto significativo é considerar o processo de

maturação de cada indivíduo, como aponta Joana Lopes (1981):

Vemos a técnica como uma bagagem a ser adquirida com a única finalidade

de aperfeiçoar a capacidade natural de metamorfosear-se, através do corpo e

da voz que são nossos instrumentos principais para a dramatização. Esta, por

sua vez, depende de um processo de maturação individual.

E complementa

A simples memorização de um texto e uma interpretação fiel e obediente às

regras impostas pelo diretor de cena – encenador ou professor – com ampla

utilização de recursos técnicos na metamorfose, não realizam o papel

educativo que a arte dramática pode desempenhar na formação do indivíduo

que tenha optado por ser ator. (LOPES, 1981, p. 65)

21 Diferente da iluminação cênica, ao qual dispõe de equipamentos específicos, a iluminação cotidiana diz respeito

a equipamentos de luz habituais utilizados na iluminação do dia-a-dia, como as lâmpadas fluorescentes e de leds,

ou até mesmo a própria luz solar.

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É importante para o professor em formação ir a campo conhecer melhor a realidade do

seu futuro local de trabalho. Entender as demandas que a educação pública pede, conhecer a

estrutura física escolar, bem como seu funcionamento pedagógico e burocrático, a realidade dos

estudantes que compõe o corpo discente daquele espaço, contextualizar a produção artística

feita pelos alunos.

Na licenciatura em teatro da UFRN esse contato se dá geralmente pelas quatro

disciplinas de Estágio Curricular Obrigatório, mas também pode ser feito por meio de

programas de ensino, pesquisa e extensão, como é o caso do PIBID Teatro (Programa de Bolsas

de Iniciação à Docência). Em muitas situações esses programas extracurriculares são mais

efetivos nesse contato, pois permite uma maior autonomia do futuro professor de pesquisar e

desenvolver projetos de teatro na escola, um exemplo disso é o projeto de extensão Circuito de

Teatro Escolar, sobre qual falarei mais à frente.

A universidade está sempre em constante processo de pesquisa, nos cursos de

licenciatura as escolas são sempre seus principais alvos. No curso de teatro, sempre pensamos

antes de fazer qualquer atividade qual seria sua prática pedagógica, ou seja, o que esse exercício

tem a contribuir para o processo de aprendizagem de quem o faz.

De fato, existe uma grande preocupação de como ensinar teatro, também de como

preparar os alunos para o fazer teatral, e a escola de como recepcionar essas produções artísticas.

Tudo deve andar em harmonia, a montagem de uma peça envolve toda a escola, direta ou

indiretamente. Um ponto bastante crítico no que diz respeito ao diálogo entre universidade e

educação básica são as escolas do interior do estado, como geralmente as universidades de artes

ficam situadas na capital, ou centros urbanos, dificulta o acaso dos alunos de licenciaturas a

chegar nas escolas do interior. Para isso é extremamente importante uma intervenção por parte

da universidade, no tocante que diz respeito a criação de programas e ações que leve a

universidade até essas escolas, para que assim possamos ter uma visão mais completa do

panorama da educação pública em todo estado.

Também vale salientar que é nos interiores que as escolas mais sofrem com a falta de

professores formados em teatro ou qualquer outra área do campo das artes. Assim, quero

afirmar que para uma melhor qualidade da formação dos professores de teatro é de grande

importância manter um diálogo com as escolas públicas, assim como acredito que também é de

grande relevância para a comunidade escolar dialogar com a universidade e os futuros

professores, podendo apresentar os seus desafios e perspectivas para uma melhor qualidade na

educação da comunidade estudantil.

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3.1.1. PIBID Teatro UFRN: uma experiência de iniciação à docência

O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência do curso de Licenciatura

em teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PIBID Teatro UFRN) foi meu

primeiro contato com as escolas do ensino fundamental após ingressar no ensino superior. O

fato mais instigante dessa experiência foi a minha, até então, recente conclusão do ensino

médio, que aconteceu em 2013. Fazia então apenas dois anos de intervalo entre essas duas

experiências, mesmo na academia a sensação de ser aluno ainda era bastante presente, e naquele

momento voltava para a escola, agora sobre uma nova ótica, não como aluno e nem como

professor, mas como um arte-educador em formação.

O PIBID é um programa presente em quase todas as universidades públicas do Brasil.

Trata-se de um projeto de ensino, voltado, portanto, aos cursos de licenciatura. O programa tem

por objetivo melhorar a qualidade da formação de professores que irão atuar na rede pública de

ensino. Assim, os estudantes de licenciatura contemplados com o edital participam do

planejamento e aplicação das aulas em uma escola pública, vinculada ao programa, com o

professor supervisor, responsável pela disciplina. Nesse caso, nós alunos do curso de teatro,

ficávamos a par da disciplina de teatro, ou de artes com ênfase em teatro.

Um professor universitário coordena o projeto de cada curso, o PIBID Teatro tinha como

coordenador o Prof. Dr. Savio Araújo22. Além dele, também tinha quatro professores

supervisores, de quatro escolas públicas diferentes, ao qual os aproximadamente 30 bolsistas se

dividiam para atuar. Geralmente o programa contemplava todas as séries do ensino fundamental

I e II. Assim que entrei no programa no ano de 2015, fiquei junto a Prof.ª Supervisora Lidiane

Diniz23 da Escola Municipal Laercio Fernandes (Ensino fundamental I), localizada no bairro do

Vale Dourado, zona norte de Natal. Lá desenvolvi atividades com as turmas do 2º e 3º Ano, na

disciplina de artes/teatro. Nesse trabalho quero enfatizar minha experiência no ano de 2017

junto ao Prof. Supervisor Leandro Cavalcante24, na Escola Municipal Veríssimo de Melo

(Ensino fundamental II), localizada no bairro de Felipe Camarão, zona oeste de Natal.

Nessa experiência ficamos com as turmas do 9º Ano "C" e "D" do turno vespertino.

Tínhamos como objetivo do planejamento anual a montagem de uma peça criada pelos próprios

alunos, uma encenação por turma. Essa é uma metodologia criada pelo Prof. Leandro para tais

22 Graduação em Educação artística: Artes cênicas (UFRN) Mestrado em Educação (UFRN) Doutorado em Educação (UFRN) Pós-Doutorado (University of British Columbia) 23 Graduação em Educação artística: Artes cênicas (UFRN) 24 Graduação em Educação artística: Música (UFRN) Especialização em Psicopedagogia (UVA-CE) Mestrado em Artes cênicas (UFRN)

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turmas desde o ano de 2009, foi inclusive tema de sua dissertação de mestrado intitulada A arte

de conduzir-se pelo ensino de teatro: realidades e ficções de alunos-diretores em Camarão

(2014). E se dava por diversos motivos, o primeiro deles é fato da disciplina de artes ter no 9º

ano a ênfase em tetro, em decorrência do Plano Político Pedagógico (PPP) da escola dividir por

séries as subdivisões do campo das artes, assim o 6º e 7º ano ficavam com as artes visuais, o 8º

ano com a música e 9º ano com as artes cênicas. E por ser a última série na escola, os alunos

passam então por essa experiência mais prática da cena, onde podem pensar o fazer teatral como

um conjunto de conhecimentos que caminham juntos.

Outro ponto relevante para a adoção dessa metodologia, são questões levantadas pelo

próprio Prof. Leandro durante a sua experiência docente na escola. Ao qual percebe dois olhares

complementares acerca do fazer do aluno, como bem descreve em sua dissertação “O primeiro

olhar, já despertado, entende que existe o desejo dos alunos em realizar atividades artísticas; e

o segundo olhar, como desafio, observa uma não maturação dos alunos no ato de relacionarem-

se em grupo”. E complementa

Como professor de arte via durante os bimestres alunos com certas

dificuldades na resolução de propostas artísticas apresentadas por mim para a

avaliação, ao mesmo tempo observava posturas dos mesmos alunos

completamente opostas ao estarem em outras atividades. Me intrigava saber

que detinham saberes artísticos, mas que existia a dificuldade em manifestar

esses saberes no cotidiano da disciplina de Artes. Como fazer com que

assumissem esses saberes sem que para isso tivesse de obrigá-los

individualmente, já que isso seria a mesma postura de muitos professores,

inclusive a minha primeiramente? Ou ainda, me vinha a mente entender quais

saberes tinham sido despertados nos alunos até a chegada ao 9º ano (último

ano do ensino fundamental II).(CAVALCANTE, 2014, p. 68)

As primeiras aulas da disciplina foram com jogos teatrais de integração e adequação,

realizados na própria sala aula e nas dependências da escola, como corredor e refeitório. Maior

parte desse Jogos eram autorais, elaborados pelo professor através de suas experiências

anteriores, e em decorrência das necessidades da turma. Com os jogos, passávamos alguns dos

princípios teatrais, trabalhando a comunicação, o coletivo e os sentidos. Após algumas aulas

trabalhando esses jogos, vinha o momento das oficinas, onde a turma experimentava cada uma

das principais categorias que constituem a cena. Por exemplo, oficina de dramaturgia, onde os

alunos puderam entender melhor a criação do texto dramático. Houve também a oficina de

iluminação onde os iluminadores de cada turma puderam vir até o Departamento de artes da

UFRN conhecer os equipamentos de iluminação do Teatro Laboratório Jesiel Figueiredo.

Assim, os alunos também iam afinando quais elementos lhes interessavam na cena.

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Fiquei responsável pela oficina de atuação. Pensei na inviabilidade de ser feita na sala

de aula, devido ao pouco espaço. Assim, optei por fazê-la no refeitório da escola. Para que a

oficina fosse bastante proveitosa, resolvi pontuar durante os exercícios que todos os ruídos

seriam um objetivo a mais para a concentração, então explanei no início da atividade que todo

o foco deveria estar no espaço cênico delimitado. A oficina aconteceu no dia 03 de agosto, no

turno vespertino, e juntamos as duas turmas para a oficina.

No primeiro momento propus o exercício de “equilíbrio do espaço”, os alunos

caminham pelo espaço delimitado buscando manter-se sempre bem distribuídos e sem deixar

“espaços vazios”, nessa atividade trabalhamos a respiração, concentração e foco. Em seguida

passei o jogo do “congela/descongela”, onde todos os jogadores podem congelar e descongelar

os demais participantes com apenas um toque, a intenção principal dessa atividade era trabalhar

o estado cênico. Finalizei com o exercício de "passar o bastão", ainda caminhando pelo espaço

pedi para que olhassem nos olhos de cada pessoa que cruzassem durante a caminhada pelo

espaço, então inseri um bastão25 no jogo, e pedi para que passassem o bastão, de um para o

outro, não passado de mão em mão, mas arremessando de fato o bastão, segurando-o pelo meio

e fazendo com que fosse verticalmente até o outro jogador. Observando como o copo reage às

intenções de jogar e receber o bastão. O objetivo maior dessa atividade era de demonstrar

princípio da ação (e reação) física.

No início, os alunos estavam com um pouco de dificuldade para se concentrar, alguns

optaram apenas por observar, isso é bastante comum. Ainda no jogo dos bastões, pedi para que

os alunos formassem um círculo, e um aluno por vez, andava até o centro e jogava e recebia o

bastão para cada pessoa do círculo. Nesse momento falava os princípios daquele jogo, que além

de foco e concentração também era preciso entender a noção de ação e reação, e como esses

impulsos agem no corpo. Que a atuação funcionava basicamente com o mesmo estado de

prontidão. De fato, naquela oficina não quis me aprofundar tanto em construção de personagens,

pois os alunos ainda estavam definindo suas dramaturgias, optei então por passar um exercício

introdutório de base, mas também de muita importância para o processo de criação.

Para a encenação, nem todos os alunos precisavam ir para a cena, a turma era dividida

de acordo com os interesses dos alunos. Um ponto muito importante dessa proposta

metodológica se dá ao fato de que a turma que construiu toda a encenação, desde a dramaturgia

a cenografia. Não houve por parte do professor, ou dos bolsistas, intervenção nas montagens,

apenas orientação em relação ao diálogo entre as funções e do cronograma a ser seguido. A

25 O bastão era um cabo de vassoura, feito com madeira.

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própria turma decidia entre si quem seria o/a diretor/a, os atores e as atrizes, dramaturgo/a,

sonoplasta, cenógrafo/a, figurinista, maquiador/a e iluminador/a.

No final da disciplina, cada turma apresentou sua encenação para as demais turmas,

tanto matutino quanto vespertino. O VERO26 da arte, como era chamado o circuito teatral que

acontece no final do ano na Escola Municipal Veríssimo de Melo, com as apresentações das

encenações das turmas do 9º ano, aconteceu naquele ano de 2017 no Teatro Laboratório Jesiel

Figueiredo no Deart, sendo que as quatro turmas do 9º ano, dos dois turnos, puderam se

apresentar uma para as outras.

Essa foi uma das experiências mais completas que vivenciei junto ao PIBID Teatro.

Com o planejamento e execução dos conteúdos da disciplina, foi possível propor uma

experiência integral do fazer teatral para os alunos. Além de propor uma atividade de criação

artística, os alunos também puderam trabalhar a autonomia do coletivo, ao decidir seus diretores

e demais especificidades da equipe. Outro ponto que considero bastante importante é a

integração dos alunos com a universidade, ao qual contribui tanto para a educação dos

estudantes da escola quanto para a formação dos futuros professores.

Lembro das minhas primeiras experiências no PIBID, de quando ainda não sabia

diferenciar bem o estar na escola enquanto aluno e enquanto professor, com essa experiência

na Escola Municipal Veríssimo de Melo para as turmas do 9º ano também pude observar o meu

amadurecimento. Agora eu me questionava como é ser estudante, e anseio para quando estiver

efetivamente sendo professor. Com certeza aprendi bastante com o Professor Leandro e os

demais bolsistas que atuaram neste mesmo ano na escola, ver o resultado apresentado pelos

alunos foi emocionante e encorajador. Foi um momento de troca e de muita aprendizagem,

aprendemos muito com as turmas, do planejar ao executar, de ter sempre um plano B, assim

como a turma aprendeu bastante, na prática, um pouco do fazer teatral. Ao final das

apresentações no VERO da arte, encerramos as atividades enquanto bolsistas, ficando apenas

as experiências e seguramente uma grande bagagem de conhecimentos.

3.1.2. Circuito de teatro escolar: uma experiência de intercâmbio teatral

O Circuito de Teatro Escolar foi um projeto de extensão vinculado a Universidade

Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a sua terceira e última edição aconteceu no ano de

2017. O projeto foi realizado em parceria com o Grupo de Teatro Eureka, que até então tinha

26 Vivências Educacionais Rendem Oscar.

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por maioria dos integrantes, alunos do curso de Licenciatura em Teatro. O circuito de teatro foi

o maior evento de teatro escolar de Natal, realizando apresentações teatrais e intercâmbio

cultural entre as escolas. Na sua última edição o circuito passou a envolver também escolas do

interior do estado.

Cada escola podia se inscrever no circuito sob duas modalidades, na categoria grupo de

teatro ou ponto de circulação. Sendo assim, as escolas que possuíam grupos de teatro poderiam

se inscrever nas duas categorias, as escolas que não possuíam grupo se inscreviam como ponto

de circulação. O circuito possuía duas fases, a primeira, fase circuito e segunda, fase mostra.

Na fase de circulação, as escolas que possuíam grupos de teatro apresentavam em uma escola

ponto de circulação. Já na fase mostra, algumas peças selecionadas, outras convidadas,

apresentavam em um espaço convencional de teatro para o público aberto. Assim funcionava o

circuito, sendo o principal objetivo incentivar o fazer teatral nas escolas, além de proporcionar

essa experiência de troca de conhecimentos artísticos entre os alunos.

Após cada apresentação na fase circulação, o grupo abria uma roda de conversa na

escola que o recebeu, proporcionando aos alunos tirar suas dúvidas em relação à montagem e

abordagem das peças. No circuito não havia premiações, e tinha como principal foco a formação

teatral nas escolas. Já em sua terceira edição, muitos professores de teatro montavam as peças

nas escolas para poderem se inscrever no circuito. Nessa última edição pude participar enquanto

voluntário, fazia produção do evento, ligava para todas as escolas públicas (municipais e

estaduais) e privadas de Natal, apresentando o projeto e passando as informações necessárias

para a inscrição. Enviando e recebendo e-mails com a ficha de inscrição, junto a uma equipe

que possuía dois bolsistas, e 8 voluntários integrantes do Grupo de teatro Eureka, e/ou do Curso

de Teatro.

Na terceira edição recebemos 48 inscrições válidas, deste total foram contempladas 29

escolas, distribuídas por 15 cidades do estado. Já a segunda edição do circuito de teatro escolar

alcançou um público de aproximadamente 1.600 pessoas em suas duas fases. Com esse projeto

podemos observar que o fazer teatral permanece vivo nas escolas, bastando somente o incentivo

e condições favoráveis para a produção artística teatral.

Muitas das peças produzidas pelas escolas acabam sendo apresentadas apenas uma vez,

geralmente como avaliação para obtenção de uma nota na disciplina de artes. Com o

intercâmbio teatral essas peças de teatro ultrapassam os muros da escola, chegando também em

outra realidade escolar, como em muitos casos da modalidade ponto de circulação, escolas que

não possuíam grupos ativos ou não produzem nenhum material cênico. Com as apresentações

os alunos têm um maior contato com o fazer teatral, e não se trata de uma realidade utópica,

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pois percebem que também são capazes de produzir, despertando assim a curiosidade e

criatividade dos alunos.

FIGURA 9 – III Circuito de teatro escolar. G - Companhia teatral

profanos IFRN – Campus Central – Natal/RN O casamento mais que

suspeitoso. P -Escola Estadual. Myrian Coeli - Natal/RN.

Com a roda de conversa ao fim de cada apresentação os alunos compartilham suas

experiências, o propósito da montagem e como se deu todo o processo de criação das cenas.

Além disso, também tem a temática que cada peça aborda, levando o público a refletir sobre

diferentes temas tratados. Com a participação de diferentes cidades também é possível de haver

uma experiência de intercâmbio cultural, onde os diferentes contextos escolares se cruzam, num

ato de diálogo e aprendizagem.

Para nós, alunos do curso de teatro, tivemos a oportunidade de estar mais próximos das

escolas, da disciplina de artes e das poéticas da cena, trabalhada pelos professores com os

alunos. Os professores por sua vez sentem-se motivamos a produzir, pois com essa

oportunidade de circular por outros espaços, faz com que os seus trabalhos não se restrinjam

apenas a escola onde atua.

A universidade acaba por se aproximar com a educação básica, nessa última edição do

circuito fizemos algo que tínhamos bastante vontade de fazer, inserir uma nova fase, a fase pré-

circuito. Nesta fase os alunos de teatro envolvidos na produção do projeto, iam até as escolas

que apresentariam enquanto grupo, oferecer uma oficina teatral para os alunos atuantes. Dessa

forma o conhecimento produzido pela universidade e particularmente pelo curso de teatro chega

até as escolas, bem como contribui, tanto para a formação dos licenciandos em teatro quanto

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para os grupos de teatro escolar. Esse é um ponto bastante importante ao qual sempre gosto de

enfatizar.

O Circuito de teatro escolar manteve-se então por três anos consecutivos, em constante

evolução, a cada edição havia um aumento considerável de escolas inscritas, de peças aprovadas

e de alcance de público. Para contemplar essa demanda também era necessária uma equipe cada

vez maior na produção. Para além dos estudantes e profissionais a frente da produção do

circuito, o evento também apresentava necessidades cada vez maior de recursos. Boa parte

desses recursos vinha da parceria com a Pró-Reitoria de Extensão da UFRN (PROEX),

aprovados por edital, e destinava-se a custear as camisetas e o material gráfico do evento. Outras

parcerias também eram estabelecidas com a universidade, como o transporte dos grupos e

lanche para os alunos.

Na última edição, porém, o projeto foi aprovado sem recursos, o que inviabilizou nas

demandas de produção do circuito, ao qual vinha crescendo o público alcançado e as escolas

participantes. Com essa defasagem, o circuito aconteceu, mas apresentou muitas limitações na

questão organizacional. De fato, o projeto não foi contemplado da forma que a demanda pedia,

tivemos que com muito esforço fazer com que todo o planejamento fosse cumprido. Sendo

assim, como forma de crítica à universidade e por sobrecarga de trabalho na equipe de

produção, o Circuito de Teatro Escolar não foi inscrito para sua realização no ano seguinte.

Apesar dessa decisão ter sido temporária, pois pretendíamos retoma-lo mais à frente, com o fim

do Grupo de Teatro Eureka, o projeto foi então não mais realizado.

Durante as suas três edições o circuito mostrou que é possível incentivar o ensino de

teatro, mesmo que muitas vezes não tenhamos as condições favoráveis. Com a produção teatral

nas escolas, os estudantes terão maior contato com a arte, podendo através da cena abordar

diferentes conteúdos, bem como refletir criticamente acerca de determinados assuntos. Para os

atores e atrizes, é uma grande experiência de desenvolvimento da criatividade e expressividade,

um lugar de descobertas e transformação do pensamento. Para os espectadores, uma aula do

fazer teatral, pois enquanto “público” pode apreciar a arte, ver e entender como acontece a cena,

despertando o seu senso crítico acerca de diferentes situações.

A escola passa a produzir arte e cultura, abrindo espaço para uma formação ampla e

humanística, considerando a importância das artes no processo de ensino aprendizagem. Os

professores de teatro, em muitos casos também artistas; atores, diretores, dramaturgo etc., por

sua vez, exercem outro lado da sua formação, a prática artística, construindo novos

conhecimentos, ou em releituras de obras estudadas.

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Com isso teremos um teatro que contribui na formação da sociedade, bem como pode

ser o início da formação de grandes artistas da cena, que ao decorrer da vida vai adquirindo

suas experiências. O teatro ainda está longe de ser uma arte “popular”, pois não está presente

na formação da sociedade de forma acessível, isso só seria possível se fizesse parte da realidade

de todas as escolas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo proporcionou uma ampla reflexão acerca da coletividade da prática

teatral. Dentro desse tema foram muitas as abordagens que se sucederam ao longo do seu

desenvolvimento. A intenção principal desse trabalho foi mostrar como essa prática coletiva

tem em sua essência um caráter criativo e formativo para o ator. Para isso resolvi usar minhas

próprias experiências, vividas durante minha formação acadêmica no curso de licenciatura em

teatro, e, paralelamente, a minha formação artística também em grupos de teatro. Dessa forma,

o estudo abrange os anos 2014 a 2019. Nesse período foi onde eu adquiri maior parte de toda

minha formação teatral até então. As experiências são então relatadas, trazendo uma

aproximação com a literatura teatral existente, dialogando com autores e estudos já renomados,

buscando essa legitimidade para as colocações expostas.

Além dos relatos, também escrevi reflexões acerca de determinados temas, é onde

consigo relacionar todas as práticas citadas em uma temática comum. Uma das minhas maiores

descobertas, durante a investigação dessa pesquisa, foi a de que é indissociável falar do coletivo

sem falar de si. É importante entender que um coletivo é formado por pessoas com diferentes

experiências de vida. Quando em uma pratica teatral as relações coletivas se intensificam, elas

ocasionam no indivíduo um estado de reconhecimento. Isto é possível já que o ator usa de seu

repertório, de suas experiências, para a criação. No caso o coletivo seria o lugar onde todas

essas experiências se cruzam.

Outra grande observação foi perceber em qual realidade o estudo é desenvolvido, pois

sem essa ponderação talvez não fizesse sentido algumas questões abordadas, principalmente as

de caráter político-social. A realidade social do lugar onde as experiências aconteceram também

se tornam um fator de grande importância para a pesquisa, afinal, estamos falando de

coletividade e formação teatral. Por isso, foi de grande importância entender o contexto político

e social, do espaço e dos personagens desse estudo.

Os objetivos do trabalho foram então concluídos, primeiro no diálogo das minhas

experiências em práticas teatrais coletivas com o referencial teórico existente acerca do tema.

Além disso, levantando uma reflexão crítica acerca da problemática apresentada, difundindo

um novo caminho para mais investigações, com uma escrita crítica e reflexiva e que ao ser

publicada pode influenciar no leitor o desejo de repensar práticas pedagógicas em teatro.

O presente trabalho pode contribuir em diferentes pontos para a sociedade. Primeiro

enquanto documento, pois relata fatos e dados acerca de produções teatrais da cidade onde foi

realizado. Segundo, enquanto pesquisa, pois sugere um caminho de investigação, relacionando

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conceitos e pedagogias para pensar acerca do ensino de teatro e da formação de atores. Por fim,

enquanto texto crítico, dialogando com diferentes autores, a sua ideia central, a coletividade da

arte teatral, trazendo para a escrita um caráter de reflexão, atualizada a partir de práticas teatrais

consolidadas.

O trabalho considera a importância do trabalho coletivo do teatro para a formação do

ator, bem como também seu potencial criativo. Além disso, aborda as questões pedagógicas

presentes na montagem de espetáculos e como essa questão pode ser incorporada na área do

ensino de teatro, contribuindo para o fomento à produção teatral escolar, formação de atores e

educação humanística.

O estudo também abrange a possibilidade de novas pesquisas, que podem ser

desenvolvidas a partir de questões levantadas por essa investigação. Assim sendo, chego ao fim

desse trabalho desejando dar continuidade a esse estudo, no aprofundamento da pesquisa acerca

da essência criativa e formativa presente nas práticas teatrais coletivas.

Para encerrar, o trabalho se caracteriza como memorial, e é apresentado à Universidade

Federal do Rio Grande do Norte como requisito para obtenção do título de licenciado em teatro.

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