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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE DEPARTAMENTO DE ENFERMAGEM PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM ENFERMAGEM CURSO DE DOUTORADO JOÃO MÁRIO PESSOA JÚNIOR PERFIS E PRÁTICAS DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE MENTAL EM DOIS HOSPITAIS PSIQUIÁTRICOS DE GRANDE PORTE NATAL 2014

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

    CENTRO DE CINCIAS DA SADE

    DEPARTAMENTO DE ENFERMAGEM

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU EM ENFERMAGEM

    CURSO DE DOUTORADO

    JOO MRIO PESSOA JNIOR

    PERFIS E PRTICAS DOS PROFISSIONAIS DE SADE MENTAL EM DOIS

    HOSPITAIS PSIQUITRICOS DE GRANDE PORTE

    NATAL

    2014

  • Joo Mrio Pessoa Jnior

    PERFIS E PRTICAS DOS PROFISSIONAIS DE SADE MENTAL EM DOIS

    HOSPITAIS PSIQUITRICOS DE GRANDE PORTE

    Tese apresentada banca de defesa do Programa de Ps-

    Graduao em Enfermagem da Universidade Federal do

    Rio Grande do Norte como parte dos requisitos para a

    obteno do ttulo de Doutor em Enfermagem.

    rea de concentrao: Enfermagem na Ateno Sade

    Linha de Pesquisa: Enfermagem na Sade Mental e

    Coletiva

    Orientador: Prof. Dr. Francisco Arnoldo Nunes de

    Miranda

    NATAL

    2014

  • Catalogao da Publicao na Fonte

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

    Pessoa Jnior, Joo Mrio.

    Perfis e prticas dos profissionais de sade mental em dois hospitais psiquitricos

    de grande porte / Joo Mrio Pessoa Jnior. Natal, 2014.

    132f.

    Orientador: Prof. Dr. Francisco Arnoldo Nunes de Miranda.

    Tese (Doutorado em Enfermagem)Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

    Centro de Cincias da Sade. Programa de Ps-Graduao em Enfermagem.

    1. Enfermagem Educao Tese. 2. Sade mental Servios Tese. 3. Recursos

    Humanos Tese. I. Miranda, Francisco Arnoldo Nunes de. II. Ttulo.

    RN/UF/BSE13 CDU: 616-083:613.86

  • PERFIS E PRTICAS DOS PROFISSIONAIS DE SADE MENTAL EM DOIS

    HOSPITAIS PSIQUITRICOS DE GRANDE PORTE

    Tese de doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Enfermagem da

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para a obteno do

    ttulo de Doutor em Enfermagem.

    Aprovada em: 11/12/2014

    Banca Examinadora:

    _________________________________________________________________

    Professor Dr. Francisco Arnoldo Nunes de Miranda Presidente

    (Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN)

    ________________________________________________________________

    Professora Dra. Antnia Regina Ferreira Furegato Examinador Externo

    (Escola de Enfermagem de Ribeiro Preto/Universidade de So Paulo EERP/USP)

    _______________________________________________________________

    Professora Dra. Milva Maria Figueiredo de Martino Examinador Interno

    (Universidade Estadual de Campinas UNICAMP)

    ______________________________________________________________

    Professor Dr. Gilson de Vasconcelos Torres Examinador Interno

    (Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN)

    _______________________________________________________________

    Professora Dra. Raionara Cristina de Arajo Santos Examinador Interno

    (Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN)

    ________________________________________________________________

    Professora Dra. Sandra Aparecida de Almeida Examinador Externo

    (Universidade Federal da Paraba)

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, fora maior que move meu caminhar, renovo em ti todos os dias minha esperana e

    meus sonhos para seguir, me faz aprendiz da vida.

    Aos meus pais, Joo Mrio Pessoa e Maria Alves Dantas Pessoa, pelo esforo em me

    conduzir nos caminhos da educao, meu maior tesouro aqui na terra.

    Aos meus irmos Jomara Dantas Pessoa e Jomarques Allan Pessoa Dantas, pela torcida e

    pelas preciosas palavras de conforto.

    A toda minha famlia paterna e materna, tios, primos e agregados.

    Ao meu Pai Acadmico e eterno Professor Francisco Arnoldo Nunes de Miranda,

    orientador nessa jornada em que me fez seu Aprendiz Assustado.

    Aos professores que fizeram parte da banca de qualificao e defesa da tese, Dra. Antnia

    Regina Ferreira Furegato, Dra. Milva Maria Figueiredo de Martino, Dr. Gilson de

    Vasconcelos Torres, Dra. Raionara Cristina de Arajo Santos e Dra. Sandra Aparecida

    de Almeida pelos excelentes apontamentos e contribuies.

    Ao meu amigo e grande irmo Dr. Francisco de Sales Clementino pela convivncia,

    aprendizagem durante todo esse trajeto.

    minha conterrnea Dra. Ellany Gurgel Cosme do Nascimento pelo incentivo e parceria

    intelectual nas empreitadas cientficas.

    minha amiga Dra. Joana DArc de Souza, grande me natalense.

    Aos companheiros de Calabouo e de orientao, Kallyane Kelly, Fernando, Clara, Marta

    e Rafaella pelo companheirismo, pelas conversas e troca de experincias.

    A todos os Professores que fazem o Programa de Ps-Graduao em Enfermagem na

    Ateno Sade da UFRN.

    Aos colegas do curso de Doutorado turma 2014, pessoas especiais, cuja amizade e

    experincia construda durante a nossa convivncia foram preciosas.

    Aos queridos alunos e a atual Coordenadora Juliana Pontes, do Curso de Graduao da

    Enfermagem e Obstetrcia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

    minha nova famlia carioca D. Juraci Augusta, Ana Paula, Aline, Jnior, Luiz Felipe e

    Antonny.

    Aos amigos e incentivadores, Concebida, Hugo, Mercs, Vannucia, Ewerton, Leandro,

    Anderson.

    Enfim, a todos as pessoas que contriburam direta ou indiretamente para a realizao desse

    sonho

  • A vida resultado das nossas aes e pensamentos Cabe, a cada um, a doce e rdua misso de recri-la

    Viver s d prazer enquanto sonhamos

    Mesmo que seja o impossvel

    Mas mesmo assim so nossos sonhos.

    Joo Mrio Pessoa Jnior

    (Trecho da poesia tempo de sonhar premiada no

    Concurso Nacional Novos Poetas, Prmio Rima Rara 2013).

  • RESUMO

    Na rede de ateno psicossocial brasileira, os profissionais de sade so atores importantes no

    processo de transformao das polticas pblicas em sade mental entre os diversos servios.

    Na realidade do hospital psiquitrico, entende-se a necessidade de ampliar o debate em torno

    do atual contexto de prticas desenvolvidas. O estudo objetivou analisar o processo de

    reforma psiquitrica e a poltica de sade mental no Estado do Rio Grande do Norte (RN) a

    partir dos perfis e prticas dos profissionais de nvel superior em dois hospitais psiquitricos.

    Pesquisa transversal e descritiva, com dados quantitativos e qualitativos, realizada em dois

    hospitais psiquitricos do RN. O universo da populao alvo foi de 95 profissionais,

    considerando-se a margem de erro de 8%, taxa de no resposta e os critrios de incluso: possuir vnculo efetivo com a instituio por meio de aprovao em concurso pblico por, no

    mnimo, seis meses, sendo servidor estadual ou municipal; possuir uma carga horria semanal

    mnima de 20 horas no servio; participar diretamente de atendimento e/ou atividades com

    pacientes e familiares. A amostra final foi de 60 profissionais. Utilizou-se como instrumento de

    coleta de dados um questionrio de perguntas fechadas e semiabertas sobre o perfil

    socioeconmico, as polticas, as prticas e a formao em sade mental. Tabularam-se os

    dados quantitativos no software estatstico SPSS e para anlise utilizou-se estatstica simples e

    bivariada, do tipo qui-quadrado, adotando-se o nvel de significncia valor p

  • ABSTRACT

    In the Brazilian network of psychosocial care, health professionals are important actors in the process of transformation of mental health public policies among various services. In the

    reality of psychiatric hospitals, one should understand the need to expand the debate about the

    current context of practices developed. This study aimed at analyzing the process of

    psychiatric reform and the mental health policy in the State of Rio Grande do Norte (RN)

    from the profiles and practices of higher-level professionals in two psychiatric hospitals. This

    is a cross-sectional and descriptive research, with quantitative and qualitative data, conducted

    in two psychiatric hospitals of RN. The universe of the target population was 95

    professionals, taking into account the margin of error of 8%, non-response rate and the

    inclusion criteria: holding effective link with the institution by means of approval in public

    examination for, at least, six months, being state or municipal servant; having a minimum

    weekly workload of 20 hours in service; participating in care and/or activities with patients

    and families in a direct way. The final sample consisted of 60 professionals. The tool for data collection was a questionnaire with closed and semi-open questions about socioeconomic

    profile, and mental health policies, practices and training. Quantitative data were tabulated in

    the statistical software SPSS, and simple and bivariate statistics, chi-square type, was used for

    analysis by adopting the significance level with the value p

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    CAPS Centro de Ateno Psicossocial

    CAPS ad Centro de Ateno Psicossocial lcool e Drogas

    CAPS i Centro de Ateno Psicossocial Infantil

    CNSM Conferncia Nacional de Sade Mental

    DINSAM Diviso Nacional de Sade Mental

    HJM Hospital Dr. Joo Machado

    HMSCL Hospital Municipal So Camilo de Lellis

    HP Hospital Psiquitrico

    EERP Escola de Enfermagem de Ribeiro Preto

    ESF Estratgia de Sade da Famlia

    INPS Instituto Nacional de Previdncia Social

    LOS Lei Orgnica da Sade

    MS Ministrio da Sade

    NAPS Ncleo de Ateno Psicossocial

    OMS Organizao Mundial de Sade

    PNSM Poltica Nacional de Sade Mental

    RAPS Rede de Ateno Psicossocial

    RP Reforma Psiquitrica

    RPB Reforma Psiquitrica Brasileira

    RN Rio Grande do Norte

    SESAP Secretaria de Estado da Sade Pblica

    SM Sade Mental

    SMS Secretaria Municipal de Sade

    SRT Servios Residenciais Teraputicos

    SUS Sistema nico de Sade

    UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte

    UPHG Unidades Psiquitricas em Hospitais Gerais

    USP Universidade de So Paulo

  • LISTA DE QUADROS E FIGURAS

    Quadro 2 Descrio das variveis referentes ao perfil socioeconmico dos profissionais.

    Natal/RN, 2014........................................................................................................................ 56

    Quadro 3 Artigo produzido a partir dos resultados da tese................................................. 64

    Figura 1 Grfico de distribuio e percentual de aproveitamento das classes das UCEs

    estabelecidas pelo ALCESTE obtidos dos profissionais de sade. Natal/RN, 2014............... 63

    Figura 2 Dendograma de Classificao Descendente Hierrquica estabelecido pelo

    ALCESTE obtidos dos profissionais de sade. Natal/RN, 2014............................................. 63

    ARTIGO DE REVISO I

    Quadro 1 Sntese dos estudos encontrados sobre a enfermagem e o processo de

    desinstitucionalizao no mbito da sade mental, segundo ano de publicao, peridico,

    autores, tipo delineamento/objetivo e concluso................................................................49

    ARTIGO II

    Figura 1 - Descrio das etapas de anlise do corpus pelo Alceste.........................................82

    Quadro 1 Primeiro eixo temtico o hospital e a reforma psiquitrica...............................83

    Quadro 2 Segundo eixo temtico o acompanhamento teraputico...................................84

    ARTIGO III

    Figura 1 - Eixos e temas do estudo..........................................................................................95

    Quadro 1 Primeiro eixo temtico atuao profissional em sade mental........................ 96

    Quadro 2 Segundo eixo temtico a formao em sade mental...................................... 97

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Distribuio das categorias profissionais pelo universo, amostra e percentual de

    participantes nos dois hospitais psiquitricos.......................................................................... 59

    ARTIGO I

    Tabela 1 Frequncia absoluta e relativa do universo e amostra por categoria profissional

    nos dois hospitais psiquitricos. Rio Grande do Norte, Brasil. 2014........................................69

    Tabela 2 Perfil socioeconmico e de formao dos profissionais dos hospitais psiquitricos

    do Rio Grande do Norte........................................................................................................... 70

    Tabela 3 Frequncias de desfecho do profissional que realiza projeto teraputico individual

    associado a varivel de atendimento individual, familiar e grupal aos usurios atendidos em

    Hospitais Psiquitricos no Rio Grande do Norte..................................................................... 71

    Tabela 4 Frequncias de desfecho do profissional que segue a Poltica Nacional de Sade

    Mental associado a varivel de como realiza atendimento individual, grupal e familiar aos

    usurios atendidos em Hospitais Psiquitricos no Rio Grande do Norte..................................72

  • SUMRIO

    1 INTRODUO .................................................................................................................. 13

    1.1 PROBLEMATIZAO.................................................................................................... 16

    1.2 JUSTIFICATIVA .............................................................................................................. 18

    2 OBJETIVOS........................................................................................................................ 20

    2.1 OBJETIVO GERAL.......................................................................................................... 20

    2.2 OBJETIVOS ESPECFICOS............................................................................................. 20

    3 REVISO DE LITERATURA.......................................................................................... 21

    3.1 ENSAIO TERICO I........................................................................................................ 23

    3.2 ENSAIO TERICO II....................................................................................................... 35

    3.3 ARTIGO DE REVISO I.................................................................................................. 45

    4 METODOLOGIA............................................................................................................... 55

    4.1 CARACTERIZAO DO ESTUDO................................................................................ 55

    4.2 LOCAIS DE PESQUISA................................................................................................... 55

    4.3 INSTRUMENTOS DE COLETA DE DADOS................................................................. 56

    4.4 POPULAO E AMOSTRA............................................................................................ 58

    4.5 PROCEDIMENTOS PARA COLETA DE DADOS.........................................................59

    4.6 PREPARAO DO CONJUNTO DE DADOS............................................................... 60

    4.7 ASPECTOS TICOS......................................................................................................... 60

    4.8 ANLISE DOS DADOS................................................................................................... 61

    5 RESULTADOS.................................................................................................................... 64

    5.1 ARTIGO I PERFIL E PRTICAS DE PROFISSIONAIS DE SADE MENTAL EM

    HOSPITAIS PSIQUITRICOS.............................................................................................. 66

    5.2 ARTIGO II A POLTICA DE SADE MENTAL NO CONTEXTO DO HOSPITAL

    PSIQUITRICO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS................................................................ 78

    5.3 ARTIGO III - A ATUAO PROFISSIONAL E O PROCESSO DE FORMAO EM

    SADE MENTAL................................................................................................................... 91

    6 CONCLUSO................................................................................................................... 103

    7 CONSIDERAES FINAIS E RECOMENDAES................................................. 104

    REFERNCIAS....................................................................................................................106

    APNDICES..........................................................................................................................112

    ANEXOS................................................................................................................................116

  • 13

    1 INTRODUO

    As transformaes advindas com os avanos tecnolgicos e cientficos nos ltimos

    anos contriburam diretamente para o movimento de transio demogrfica e epidemiolgica

    em todo o mundo, com reflexos diretos nos distintos setores da sociedade, particularmente na

    sade. Desse modo, as doenas crnicas no transmissveis (DCNTs), incluindo as doenas

    cardiovasculares, doenas respiratrias crnicas, diabetes, cncer, entre outras, passaram a

    representar prioridade nas polticas pblicas entre os pases de baixa e mdia renda, diante do

    maior de nmero de mortes a elas atribudas. Os transtornos mentais e comportamentais,

    tambm chamados de transtornos neuropsiquitricos, ocupam maior carga deste crescimento,

    com destaque para a depresso, as psicoses e os transtornos atribuveis ao uso inadequado do

    lcool (PAIM et al., 2011; SCHMIDT et al., 2011; VASCONCELOS, 2013).

    Nesse contexto, a Organizao Mundial de Sade (OMS), por meio do Atlas de

    Sade Mental (2011), assinala, de um lado, o despertar para a necessidade crescente da

    questo dos transtornos mentais, levando em conta o fato de que uma em cada quatro pessoas

    ir precisar de cuidados de sade mental em algum momento da sua vida; do outro, destaca

    que os investimentos destinados para essa rea ainda representam apenas dois por cento dos

    recursos gastos com sade, algo inferior a trs dlares norte-americanos per capita, por ano, e

    que, a mais das vezes, tais recursos utilizados atendem uma pequena parcela da populao

    mundial (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2011)

    No Brasil, estudos afirmam que 30% dos adultos apresentam algum sintoma

    associado aos transtornos mentais (depresso, ansiedade e estados mistos); em So Paulo, a

    prevalncia de transtornos bipolares e psicoses no afetivas foi estimada em 1,1% (LIMA et

    al., 2008). Outro dado relevante o de a mortalidade em pessoas com psicoses, sobretudo

    causada por suicdio, ser to alta quanto em pases desenvolvidos (BRASIL, 2013; PAIM et

    al., 2011; SIMES et al., 2013).

    Contudo, mesmo com as garantias legais, inseridas num perodo marcado pela

    intensificao da globalizao, deixa-se maioria das pessoas com transtornos mentais graves

    a tarefa de carregar como puderem o seu fardo particular de depresso, demncia,

    esquizofrenia e dependncia de substncias e de outros males, como as drogas; muitas se

    transformam em vtimas por causa da sua doena e se convertem em alvos de estigma e

    discriminao (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2011; SCHMIDT et al., 2011).

    Nessa perspectiva, os transtornos mentais j representam quatro das dez principais

    causas de incapacitao em todo o mundo, onde cerca de 450 milhes de pessoas padecem de

    https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0CB8QFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.who.int%2F&ei=Fm1-VMzGJYefNsysgsgK&usg=AFQjCNHopouZEBn6kMI8RAzaAM8l9DUHHQ&sig2=l0MRJzzbcprZeV03osFV5ghttps://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0CB8QFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.who.int%2F&ei=Fm1-VMzGJYefNsysgsgK&usg=AFQjCNHopouZEBn6kMI8RAzaAM8l9DUHHQ&sig2=l0MRJzzbcprZeV03osFV5g
  • 14

    enfermidades neuropsiquitricas, atingindo prevalncia pontual ao redor de 10% (WORLD

    HEALTH ORGANIZATION, 2011; VASCONCELOS, 2013). Entretanto, concorda-se que a

    rea de sade mental representa um dos segmentos de pouco prestgio no campo das polticas

    pblicas de sade no Brasil, carecendo de maiores recursos e investimentos financeiros. Tal

    fato incide na pouca visibilidade do cenrio de produo dos servios em sade e na

    sobrecarga imposta aos profissionais da rea (PITTA, 2011; QUINDER; BESSA JORGE;

    FRANCO, 2014).

    Frente aos desafios desse cenrio, as polticas pblicas no campo da sade mental e

    ateno psicossocial, a partir da Lei Federal 10.216/01, mais conhecida como Lei da Reforma

    Psiquitrica, e da IV Conferncia Nacional de Sade Mental, empenham-se em qualificar,

    expandir e fortalecer a rede extra-hospitalar formada pelos servios substitutivos de sade

    mental, que no tm caracterstica de confinamento ou institucionalizao, como o Centro de

    Ateno Psicossocial (CAPS), a Residncia Teraputica, o Lar Abrigado, o Hospital-Dia

    (HD), alm de implementar estratgias assistenciais, como Leito Psiquitrico em Hospital

    Geral, Pronto-Socorro, Emergncia Psiquitrica, entre outras (BRASIL, 2013).

    Alguns desses servios disponibilizam atividades em grupo, outras, individuais,

    destinadas s famlias, ou ainda comunitrias. Anteriormente, com as Portarias do Ministrio

    da Sade 189/1991 e 224/1992, foi regulamentada a remunerao de procedimentos como

    consulta individual e em grupo desenvolvidos pelas equipes de profissionais como

    enfermeiros, psiclogos, mdicos e assistentes sociais nesses dispositivos, alm de definir

    padres mnimos para o funcionamento dos servios de sade mental, consubstanciando a

    ideia de uma rede diversificada de assistncia (BRASIL, 2013).

    Recorda-se e atribui-se esse processo alvissareiro de mudanas aos movimentos de

    Reforma Psiquitrica (RP) e conhecida Declarao de Caracas, proclamada na Conferncia

    Regional para a Reestruturao da Ateno Psiquitrica na Amrica Latina, convocada pela OMS

    (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2011), pois estimularam de sobremaneira as

    discusses sobre o tipo de tratamento psiquitrico destinado ao doente mental, entre outras

    questes deste campo de saber e macroestruturais entre os pases latino-americanos.

    Na nova lgica instituda, o hospital psiquitrico integra em conjunto com outros

    servios, como o Centro de Ateno Psicossocial III, o Servio de Atendimento Mvel de

    Urgncia (SAMU), os hospitais gerais, entre outros, a rede de urgncia/emergncia em sade

    destinadas ao atendimento das crises e surtos psiquitricos. Nesse servio, o usurio fica sob

    a observao mdica e de outros profissionais, algumas vezes, em regime de internao, at

    ser encaminhado para outro servio da rede.

    https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0CB8QFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.who.int%2F&ei=Fm1-VMzGJYefNsysgsgK&usg=AFQjCNHopouZEBn6kMI8RAzaAM8l9DUHHQ&sig2=l0MRJzzbcprZeV03osFV5ghttps://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0CB8QFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.who.int%2F&ei=Fm1-VMzGJYefNsysgsgK&usg=AFQjCNHopouZEBn6kMI8RAzaAM8l9DUHHQ&sig2=l0MRJzzbcprZeV03osFV5ghttps://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0CB8QFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.who.int%2F&ei=Fm1-VMzGJYefNsysgsgK&usg=AFQjCNHopouZEBn6kMI8RAzaAM8l9DUHHQ&sig2=l0MRJzzbcprZeV03osFV5g
  • 15

    Entretanto, medida que a rede substitutiva avana, os hospitais psiquitricos

    passam a ter um papel adjacente na ateno psicossocial. Dessa forma, as propostas

    conduzidas pela Reforma implicam na ampla transformao da estrutura de funcionamento

    dos hospitais psiquitricos, at ento referncia no tratamento de doentes mentais ao longo de

    muitos anos, e prope-se a reduo progressiva dos leitos em hospitais psiquitricos e

    diminuio do nmero e perodo de internao dos usurios (PITTA, 2011;

    VASCONCELOS, 2013).

    Destaca-se nesse contexto o processo de avaliao contnua de todos os hospitais

    psiquitricos por meio do Programa Nacional de Avaliao dos Servios Hospitalares

    (PNASH Psiquiatria), que instituiu normas e diretrizes para a assistncia hospitalar

    psiquitrica, reclassifica os hospitais psiquitricos e define a estrutura e a porta de entrada

    para as internaes psiquitricas no mbito do Sistema nico de Sade SUS (BRASIL,

    2013). Entre os anos de 1996 e 2012 foram desativados mais de 50% dos leitos psiquitricos

    em Sistema nico de Sade (SUS), o equivalente a uma mdia de 40.000 leitos (BRASIL,

    2013).

    O processo de ampliao da rede de cuidados em sade no campo da ateno

    psicossocial pressupe, segundo Dal Poz, Lima e Perazzi (2012), maior qualificao dos

    profissionais envolvidos, sejam enfermeiros, mdicos, psiclogos, assistentes sociais, dentre

    outros, com competncias e habilidades para atuarem entre os diversos servios e dispositivos

    de sade mental, ateno terciria e nos hospitais psiquitricos. Desse modo, busca-se investir

    no processo de formao profissional, especializao e a educao permanente, orientado pela

    Poltica Nacional de Sade Mental.

    Nesse sentido, o trabalho em sade mental necessita, ao contrrio de outras reas da

    sade, de tecnologia essencialmente humana, capaz de promover a articulao intersetorial em

    prol do resgate da cidadania, da reabilitao psicossocial e da garantia dos direitos humanos

    das pessoas com transtornos mentais e seus familiares (DAL POZ; LIMA; PERAZZI, 2012).

    A efetivao do processo de Reforma Psiquitrica brasileiro representa a adoo de novas

    prticas e saberes frente loucura, considerando as especificidades e complexidades que

    envolvem o sujeito com transtorno mental, abolir de vez os manicmios internos e externos,

    num contnuo e incessante reinventar-se nas formas de agir e conceber a realidade, inclusive

    em servios de emergncia modernos e eficazes.

  • 16

    1.1 PROBLEMATIZAO

    O advento da Reforma Psiquitrica no Brasil (RPB), especialmente a partir do ano de

    1992, estimulou a expanso e fortalecimento da rede de servios substitutivos na assistncia

    em sade mental, com destaque para a implementao dos CAPS entre os municpios e o

    processo de reduo progressiva dos leitos em hospitais psiquitricos. Entretanto, grande parte

    do atendimento aos doentes mentais ainda acontece nos servios de internao psiquitrica.

    Nesse contexto, credita-se que a transio da assistncia em sade mental centrada

    em hospitais para o atendimento em servios de base comunitria acontece de maneira

    gradual e desigual. Por algumas particularidades, concorda-se que em alguns municpios o

    quantitativo de servios de assistncia em sade mental ainda bastante reduzido ou at

    mesmo insuficiente para atender a demanda populacional. Em alguns casos, por questes de

    ordem poltico-econmica e mesmo ligadas gesto pblica, eleva-se a no instalao desses

    servios em seus territrios (PITTA, 2011; LABOSQUE, 2011).

    O Estado do RN possui dois hospitais psiquitricos: o Hospital Dr. Joo Machado

    (HJM), localizado no Municpio de Natal, capital do RN, vinculado Secretaria de Sade

    Pblica, e o Hospital Municipal So Camilo de Lellys (CSSCL), pertencente Secretaria

    Municipal de Sade da Prefeitura de Mossor/RN, segundo municpio em densidade

    populacional do estado.

    Dimenstein e Bezerra (2011), em um estudo realizado no HJM sobre o fenmeno da

    reinternao, conhecido como revolving door, identificaram que, entre anos de 2007 e

    2008, de um total de 2.516 internaes, a maioria dos casos era de reinternaes, reflexo em

    parte da ineficincia de uma rede de suporte e ateno evidente em todo o estado. Suscita-se o

    debate em torno dos entraves da rede de ateno psicossocial, particularmente no suporte

    crise, e, com isso, o hospital psiquitrico continua sendo o grande centro de captao desses

    usurios.

    No contexto histrico da Reforma Psiquitrica no RN, entre avanos e desafios na

    ateno sade mental, observou-se evoluo nos indicativos de cobertura por CAPS em seu

    territrio, passando, no ano de 2008, de 0,69 para cada cem mil habitantes, e, no ano de 2012,

    0,84 para cada cem mil habitantes; alm disso, ocorre a implantao de dois CAPS III, um no

    Municpio de Caic e outro na capital, Natal (BRASIL, 2012). Embora a proposta de

    implantao de novos servios seja necessria, deve-se reconhecer que a assistncia que esses

    hospitais dispensam, especialmente no atendimento da crise mental, tambm necessria e

  • 17

    importante. Para se chegar a uma extino total dos mesmos, ainda h que se passar por

    diversas mudanas e ampliao da rede substitutiva de sade mental.

    No entanto, mesmo diante deste cenrio de aumento quantitativo dos servios

    intermedirios, o RN vivenciou um estgio de estagnao das propostas reformistas, com

    reflexos da gesto em nveis estadual e municipal, e que no se configura na expanso

    qualitativa desses servios, levando-se em conta os problemas enfrentados pelos hospitais

    psiquitricos, como escassez de recursos humanos e profissionais qualificados, demanda alta

    de usurios que do entrada para atendimentos ambulatoriais e de nvel primrio, as

    reinternaes, entre outros (PESSOA JNIOR et al., 2013).

    Circunscrevendo tal problemtica e partindo-se da vertente dos profissionais de

    sade mental, entende-se a necessidade de se ampliar a discusso em torno das polticas de

    sade mental e dos recursos humanos inseridos nos hospitais psiquitricos do RN. A pesquisa

    integrante do projeto multicntrico intitulado Papis e funes dos profissionais dos

    servios e polticas de sade mental, do Departamento de Enfermagem Psiquitrica e

    Cincias Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeiro Preto Universidade de So Paulo

    (EERP-USP), e, agora, replicado no Estado do Rio Grande Norte, com vistas a identificar as

    polticas de ateno psiquitrica no Brasil. Ressalta-se que esse estudo vem sendo realizado

    em outros estados do pas, a saber: Minas Gerais, Paran, Gois e Rio de Janeiro

    (FUREGATO et al., 2010; GARLA; FUREGATO; SANTOS, 2010; ESPERIDIO;

    RODRIGUES; SILVA, 2011; SANTOS, 2014).

    Destarte, menciona-se que a primeira etapa do Projeto foi realizada por Santos

    (2014) no Municpio de Natal/RN, com os profissionais de nvel superior atuantes nos

    servios substitutivos da rede de ateno psicossocial local, onde se identificaram inmeras

    dificuldades no desenvolvimento de suas prticas frente s condies de trabalho.

    A motivao inicial para a realizao do estudo se deu a partir do mestrado, como

    bolsista do Plano de Reestruturao e Expanso das Universidades Federais (REUNI) e

    preceptor de discentes do sexto e stimo perodos do curso de Graduao em Enfermagem da

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte, nas prticas disciplinares dos componentes

    curriculares ENF 2009 Ateno Integral Sade II e ENF 7004 Estgio Integrado IV: ateno

    sade de alta complexidade, mdulo sade mental, que aconteciam no HJM. Nesse perodo

    pde-se vivenciar a atividade de docncia num hospital psiquitrico, com a utilizao de

    instrumentos didtico-pedaggicos dialgicos diversificados, baseados em ferramentas

    inovadoras do ensino em sade mental, como a utilizao da escuta ativa, filmes, estudos de

    caso, entre outras.

  • 18

    Soma-se a articulao entre a ps-graduao e o grupo de pesquisa Aes

    promocionais e de ateno sade de grupos humanos em sade mental e coletiva,

    cadastrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPQ) e

    reconhecido pela UFRN, atravs da participao de pesquisas de campo, parcerias com

    profissionais dos servios, atividades de extenso e produo cientfica. Ressalta-se que a

    coleta de dados do relatrio de mestrado aconteceu especialmente no HJM, convivendo

    diretamente com a equipe de profissionais (PESSOA JNIOR, 2011).

    Sentiu-se, portanto, a partir do ingresso no curso de Doutorado em Enfermagem na

    UFRN, e, mais recente, a aprovao no concurso para professor efetivo para docente na

    Universidade Federal do Rio de Janeiro/Campus Maca, no curso de Enfermagem e

    Obstetrcia na rea de sade mental e sade coletiva, a necessidade de analisar as polticas de

    sade mental e o atual cenrio de prticas na ateno sade mental.

    Elegeram-se como questes de pesquisa:

    Qual o perfil socioeconmico e quais as prticas dos profissionais de nvel superior

    em hospitais psiquitricos?

    Qual a opinio dos profissionais sobre a poltica de sade no contexto do hospital

    psiquitrico?

    Quais aspectos ligados atuao profissional e formao em sade mental so

    identificados por eles?

    Pressupe-se que os perfis e prticas profissionais desenvolvidos no mbito do

    hospital psiquitrico influenciam na qualidade da ateno sade mental e, por conseguinte,

    refletem no trajeto das polticas pblicas de sade e no processo de formao nesse campo.

    1.2 JUSTIFICATIVA

    O processo de Reforma Psiquitrica brasileiro trouxe o cenrio de mudanas

    importantes para o tratamento do transtorno mental a partir da adoo de novas estratgias

    teraputicas que visam um cuidado humanizado e reabilitador para o sujeito com transtorno

    mental. Circunscrevem-se seus reflexos no Estado do Rio Grande do Norte com a criao e

    ampliao de rede de servios substitutivos, especialmente os CAPs. E, dessa forma, os

    hospitais psiquitricos passaram a ocupar um espao adjacente nesse cenrio.

    Frente aos desafios de se implementar a rede de ateno crise e emergncia em sade

    mental, evidencia-se que os hospitais psiquitricos ainda concentram a maior parte do

  • 19

    atendimento realizado nessa rea, embora sejam desprivilegiados no foco das polticas atuais.

    Tais estratgias geram mudanas na rede de ateno de sade mental com influncias e

    reflexos nos perfis e prticas dos profissionais que atuam nos hospitais psiquitricos pblicos.

    No RN, o Hospital Joo Machado (HJM) e o Hospital Municipal So Camilo de Lellis tentam

    se adaptar s novas configuraes de assistncia implantada.

    Reconhece-se, nesse sentido, o papel importante dos profissionais de sade atuantes

    no hospital psiquitrico, pois convivem com as mudanas e alterao no fluxo das prticas a

    partir da adoo de outros servios, alm disso, convivem com a ideia de extino progressiva

    dessa instituio somada incompreenso dos demais profissionais da rede, como uma forma

    de no reconhecimento profissional.

    Destarte, entende-se a necessidade de ampliar o debate no mbito das polticas e atual

    processo de estruturao de servios no contexto de Reforma Psiquitrica mediante a

    experincia e entendimento sobre a prtica profissional no modelo hospitalar, como forma de

    reflexo e debate em torno do atual processo de reforma vivido no pas.

  • 20

    2 OBJETIVOS

    2.1 OBJETIVO GERAL

    Analisar o processo de Reforma Psiquitrica e a poltica de sade mental no Estado do

    Rio Grande do Norte, a partir dos perfis e prticas dos profissionais de sade mental em

    hospitais psiquitricos.

    2.2 OBJETIVOS ESPECFICOS

    Conhecer o perfil socioeconmico e de formao e as prticas de profissionais em

    hospitais psiquitricos.

    Compreender o discurso de profissionais sobre a poltica de sade no contexto do

    hospital psiquitrico.

    Identificar aspectos ligados atuao profissional e formao em sade mental sob a

    tica de profissionais de hospitais psiquitricos.

    .

  • 21

    3 REVISO DE LITERATURA

    Estruturou-se a reviso de literatura a partir da elaborao de trs artigos cientficos,

    considerando aspectos tericos e filosficos em torno do objeto de estudo em questo.

    Posteriormente, os artigos foram encaminhados para revistas cientficas com vistas a

    contribuir no campo de debates e reflexes em torno da Reforma Psiquitrica e na

    Enfermagem em sade mental.

    O primeiro artigo, intitulado O processo cuidar em sade mental no contexto da

    ateno psicossocial, teve por objetivo identificar o fenmeno do processo de cuidar em

    sade mental e os fatores que o determinam. Estabeleceram-se as categorias de anlise em

    consonncia com a reviso bibliogrfica realizada, resultando em quatro eixos temticos,

    sendo eles: o processo de cuidar em sade mental; desinstitucionalizao em sade mental:

    interface para o cuidado; crenas e valores sobre a assistncia em sade mental; rede de

    ateno psicossocial brasileira: avanos e desafios.

    Espera-se que este estudo contribua nos debates em torno das prticas profissionais e

    os desafios enfrentados para a reconstruo de novas prticas assistenciais em sade mental,

    reforando-se o cuidado em sade mental articulado com as demandas reais do sujeito social

    doente.

    No segundo artigo O dito e no dito: reflexes sobre Reforma Psiquitrica e Michel

    Foucault objetiva-se refletir sobre contrapontos existentes no processo histrico de Reforma

    Psiquitrica Brasileira e o pensamento de Michel Foucault, sob a tica do dito e no dito. A

    discusso encontra-se estruturada em trs eixos: o primeiro menciona o dito sobre a reforma

    psiquitrica, contextualizando os principais aspectos sociais e polticos que marcaram o

    movimento; o segundo eixo destaca o filsofo Michel Foucault e sua obra clssica que

    influenciou o pensamento ocidental sobre loucura; e, no terceiro tecem-se alguns contrapontos

    em torno da Reforma Psiquitrica. A histria oficial da Reforma perfaz episdios e

    personagens enigmticos, contrapontos sobre o dito e no dito.

    O terceiro artigo denominado de A Enfermagem e o processo de

    desinstitucionalizao no mbito da sade mental: Reviso Integrativa objetivou sintetizar o

    conhecimento produzido sobre a atuao da enfermagem no processo de

    desinstitucionalizao no mbito da sade mental. Trata-se de reviso integrativa da literatura

    realizada a partir de busca on-line de estudos nas bases de dados: CINAHL, Scopus e

    LILACS.

  • 22

    A partir da sntese dos estudos, observou-se que a atuao de enfermagem frente ao

    processo de desinstitucionalizao em sade mental tem priorizado atividades teraputicas

    interdisciplinares voltadas reinsero dos pacientes com transtornos mentais no convvio

    familiar e na sociedade. Assim, o processo de cuidar em sade mental realizado pela

    enfermagem exige cada vez mais iniciativa, criatividade e o estabelecimento de vnculos

    afetivos e sociais.

  • 23

    3.1. ENSAIO TERICO I

    O processo de cuidar em sade mental no contexto da ateno psicossocial

    The mental health care process in the context of psychosocial care

    Joo Mrio Pessoa Jnior1 Francisco Arnoldo Nunes de Miranda

    2

    RESUMO: Ensaio analtico que objetivou identificar o fenmeno do processo de cuidar em

    sade mental e os fatores que o determinam. Como resultados, estabeleceram-se as categorias

    de anlise em consonncia com a reviso bibliogrfica realizada, resultando em quatro eixos

    temticos, sendo eles: a) o processo cuidar em sade mental; b) desinstitucionalizao em

    sade mental: interface para o cuidado; c) crenas e valores sobre a assistncia em sade

    mental; d) rede de ateno psicossocial brasileira: avanos e desafios. O registro contextual do

    fenmeno em questo revela-se como uma discusso atual e desafiadora, mediante o atual

    cenrio de produo das aes em sade, encenando uma reflexo importante em torno do

    transtorno mental e suas repercusses na coletividade. Ademais, espera-se que esse estudo

    contribua nos debates em torno das prticas profissionais e os desafios enfrentados para a

    reconstruo de novas prticas assistenciais em sade menta, reforando-se o cuidado em

    sade mental articulado com as demandas reais do sujeito social doente.

    Palavras-chave: Sade Mental; Ateno Psicossocial; Cuidado.

    ABSTRACT: This is an analytical essay that aimed to identific the phenomenon of

    phenomenon of the mental health care process and the factors that determine it. Under this

    perspective, the analytical categories were established in line with the performed literature

    review, which has resulted in four thematic axes, namely: a) the process mental health care

    process; b) deinstitutionalization in mental health: interface for care actions; c) beliefs and

    values about mental health care; d) Brazilian psychosocial care network: advances and

    challenges. The contextual registration of the phenomenon at stake is revealed as a current

    1Doutorando em Enfermagem pelo Programa de Ps-Graduao em Enfermagem da Universidade Federal do

    Rio Grande do Norte (PPGEnf), Bolsista CAPES. Natal RN, Brasil. E-mail: [email protected] 2Doutor. Docente do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

    (DENF/UFRN). Coordenador do PPGEnf. Bolsista Produtividade CNPQ. Natal RN, Brasil. E-mail:

    [email protected]

    Autor correspondente: Joo Mrio Pessoa Jnior

    Rua Otvio Laurindo de Azevedo, 1026, Apt 06, Praia Campista, Maca/RJ. E-mail: [email protected]

    mailto:[email protected]:[email protected]
  • 24

    and challenging discussion, given the current productive scenario of health actions, by

    signaling an important reflection about mental disorders and their effects on collectivity.

    Furthermore, we hope that this study might contribute in the debates regarding the

    professional practices and challenges faced for the reconstruction of new mental health care

    practices, by reinforcing the mental health care articulated with the actual demands of sick

    social subjects.

    Keywords: Mental Health; Psychosocial Care; Care Actions.

    Introduo

    Desde a instituio da Constituio Federal e a elaborao do Sistema nico de Sade,

    projetaram-se novas polticas pblicas de sade no Brasil, pautadas no respeito aos direitos

    humanos e no resgate da cidadania dos indivduos e coletividade (Rosen, 2006). Desse modo,

    os movimentos sociais avanaram em direo problemtica dos transtornos mentais, tendo

    em vista o cenrio de violncia e segregao instaurado com o modelo asilar/manicomial, que

    perdurou durante dcadas.

    Na arena dos debates ensejados pela sociedade, a Reforma Psiquitrica movimento

    de bases sociopolticas e culturais props a extino do manicmio e a humanizao das

    prticas assistenciais repressoras destinadas ao portador de transtornos mentais e

    comportamentais naquela poca, o que eclodiu em reformas no campo psiquiatria, a exemplo

    de pases europeus, como Franca, Inglaterra, Itlia, Espanha (Desviat, 1999; Costa-Rosa,

    2006). O modelo tradicional do cuidado em sade mental, num primeiro momento, foi

    marcado pela presena da famlia. E, posteriormente, com a criao do hospital e da

    psiquiatria, teve-se o mdico e o enfermeiro com a teraputica da medicalizao (Foucault,

    2002).

    Nos ltimos anos adensaram-se novas bases teraputicas para o tratamento, agora

    comunitrio. Incorporaram-se as psicoterapias e os conceitos da psicanlise e psiquiatria

    moderna, e o trabalho passou a agregar outros profissionais, entre eles, psiclogos, assistentes

    sociais e terapeutas ocupacionais. Segundo Amarante (2008) as aes e prticas no campo da

    ateno psicossocial ensejam transformaes no processo de cuidar em sade mental, com

    vistas reabilitao psicossocial e a desinstitucionalizao.

    Corroborando com Cardoso e Galera (2011), entende-se o cuidar em sade mental

    numa viso complexa e ampliada, decorrente de uma relao contnua e intrnseca de

    interao entre servios de sade, profissionais, usurios e suas famlias, tendo o usurio

  • 25

    como foco central da interveno. Esse cuidar vislumbra no apenas minimizar riscos ou

    controlar sintomas, mas avanar em direo as particularidades emocionais, culturais e

    pessoais do adoecimento mental.

    Entretanto, no cotidiano dos servios de sade mental o processo cuidar ainda

    pautado na concepo clnica e simplificadora, marcado pela teraputica da internao, com o

    fenmeno conhecido como porta giratria, caracterizado por diversas internaes,

    especialmente nos episdios agudos, e momentos de estabilidade quando o usurio retorna

    sociedade (Ramos e col., 2011; Cardoso e Galera, 2011). Soma-se tambm a necessidade de

    ampliao e maiores investimentos na rede de servios extra-hospitalares, escassez de

    recursos humanos qualificados na rea de sade, entre outros, e seus reflexos diretos nessa

    problemtica (Bezerra Jnior, 2007).

    Configura-se, portanto, um desafio a ser enfrentado no campo da ateno psicossocial,

    considerando-se a necessidade de investimentos num cuidado em sade mental baseado no

    acolhimento, no projeto teraputico e co-responsabilizao do tratamento. Nessa direo,

    devem-se ampliar os espaos sociais de debate sobre o processo de Reforma Psiquitrica

    vivido e prprio processo cuidar em sade mental, quando se remontam os mltiplos cenrios

    de prticas e aes em sade efetivadas entre os estados e municpios, frente s conquistas e

    desafios perseguidos nesses mais de 20 anos de lutas.

    Assim, percebe-se a necessidade de refletir sobre o processo cuidar em sade mental

    mediante o atual cenrio de produo das aes em sade, encenando uma reflexo

    importante em torno do transtorno mental e suas repercusses na coletividade. Ademais, o

    estudo em tela objetiva analisar o fenmeno do processo de cuidar em sade mental no mbito

    da ateno psicossocial e os fatores que o determinam.

    Trata-se de um ensaio terico utilizando o referencial terico de anlise contextual

    proposto por Hinds, Chaves e Cypress (1992). Nele o contexto trabalhado sob quatro

    distintas camadas, a saber, contexto imediato, contexto especifico, contexto geral e

    metacontexto. O contexto imediato focaliza o presente imediato, o fenmeno em si, e busca

    respostas sobre sua ocorrncia. No contexto especfico destacam-se o passado imediato, os

    aspectos concretos relacionados ao fenmeno. Para o contexto geral a subjetividade e cultura

    influenciam diretamente a compreenso do fenmeno. E, o metacontexto diz respeito aos

    elementos normorreguladores e polticos que condizem o fenmeno estudado (Hinds e col.,

    1992).

    Nessa perspectiva terica, estabeleceram-se as categorias de anlise desse estudo: a) o

    processo cuidar em sade mental (contexto imediato); b) desinstitucionalizao em sade

  • 26

    mental: interface para o cuidado (contexto especfico); c) crenas e valores sobre a assistncia

    em sade mental (contexto geral); d) rede de ateno psicossocial brasileira: avanos e

    desafios para o cuidado em sade menta (metacontexto).

    a) O processo de cuidar em sade mental

    O termo cuidar em sade agrega em si um conjunto de concepes, definies e

    caractersticas conforme o referencial adotado (Ayres, 2004; Ballarin e col., 2010). Desse

    modo, pode-se pensar num conceito que o define enquanto compreenso filosfica, um ato,

    uma atitude, uma prtica de ressignificao das aes e atividades desenvolvidas pelos

    profissionais de sade no processo teraputico (Ayres, 2004; Ballarin e col., 2010). Dito de

    outra forma, o cuidado representa a interao dialgica entre dois ou mais sujeito na busca

    pelo alvio do sofrimento ou pelo bem-estar do outro, precede a relao entre quem cuida

    (cuidador) e o ser que cuidado (Boff, 1999).

    O processo cuidar em sade mental, especialmente a partir do surgimento da

    psiquiatria e da instituio hospitalar, adquiriu uma nova configurao no que se refere ao

    modo de tratamento e s estratgias teraputicas direcionadas s pessoas com transtornos

    mentais e suas famlias, impulsionados com o movimento de reforma psiquitrica. Antes a

    atuao profissional no campo da assistncia aos considerados loucos era estritamente

    restrita figura do mdico, que direcionava as aes a serem realizadas e determinava como

    deveria ser tratada cada pessoa. A principal estratgia utilizada era o isolamento social,

    considerado como primordial para a reabilitao do indivduo (Dias e Silva, 2010).

    Sobre essa mudana, Kirschbaum e Paula (2002, p. 492) dizem que [...] retira-se o

    foco da figura do profissional mdico, que era o personagem central da psiquiatria no modelo

    mdico-clnico e emergem outros profissionais, com distintas formaes, que tambm

    atendero o doente mental. Com as mudanas recentes trazidas pela Reforma, configurou-se

    um tratamento no apenas direcionado aos aspectos clnicos da doena mental, mas tambm a

    defesa da ideia do sujeito sentir-se protagonista no seu tratamento.

    Nesse contexto, o conceito de interdisciplinaridade tenta romper com o conhecimento

    fragmentado, transcendendo com a viso cartesiana, aspirando necessidade de haver a

    unidade de conhecimento. Desse modo, temos a concepo de trabalho em equipe

    interdisciplinar e de um novo modelo do cuidar em sade mental propostos.

    A lgica de organizao do trabalho em equipe de sade mental ainda tenta romper

    com essa concepo de fragmentao da assistncia e a rigidez presente nos servios que

    ainda hoje perduram e, muitas vezes, acabam produzindo efeitos adversos no tratamento das

  • 27

    pessoas com transtornos mentais (Filizola e col., 2008). O trabalho em sade mental passou

    a ser desenvolvido por profissionais de vrias especialidades, como enfermeiros, psiclogos,

    psiquiatras, assistentes sociais, terapeuta ocupacional, educador fsico, pedagogos, tcnicos

    em enfermagem, arteterapeuta, entre outros, que assumem uma agenda teraputica de

    atividades diversificadas, como oficinas em grupos, msica, pintura, teatro, atendimento

    clnico individual, psicoterapia.

    Mesmo diante dessas projees, observa-se a existncia de entraves e dificuldades na

    reorganizao dos processos de trabalho com vistas concretizao dos preceitos da reforma

    psiquitrica no Brasil. Alm disso, coexistem tenses na definio de papis e saberes entre os

    profissionais frente aos novos dispositivos de sade mental (Filizola e col., 2008).

    Oliveira e Alessi (2003) referem que o modelo mdico-psiquitrico continua

    hegemnico no cotidiano dos servios, evidenciado pelas prticas desrespeitadoras e distantes

    do ideal de incluso social e cidadania dos sujeitos/usurios. Faz-se necessrio inferir que a

    produo do cuidar implica necessariamente, como traz Merhy (1998), primar pela vida e

    respeito ao ser humano, e aos servios de sade cabe acolher, responsabilizar, resolver e

    autonomizar. O trabalhador de sade na condio de operador direto desse cuidar reconhece

    seu papel diante das demandas e especificidades que surgem das pessoas sob seus cuidados.

    Assim, o cuidar em sade mental exige profissionais comprometidos com o processo

    reformista, que corroborem com o pensamento de fraternidade e dignidade humana, sendo

    sensveis ao outro, capazes de interagir, ouvir, respeitar as diferenas. Romper com o

    sentimento de autoritrio e verticalizador do saber profissional, resgatando a lgica

    humanitria da subjetividade de cada sujeito.

    Emerge, portanto, a necessidade do processo de desinstitucionalizao do social no

    seu sentido amplo, rompendo-se com velhos olhares e com os modos de institucionalidade

    que permeiam o cotidiano. Representa ir alm da sociabilidade fundada nas relaes de

    dominao entre os sujeitos, na busca de novas rotas possveis para a interface de um novo

    cuidado em sade mental, pautado na tica e no resgate da autonomia do sujeito com

    transtorno mental e familiares nos modos de andar a vida, o que no exclui o tratamento

    clnico (Amarante, 2008).

    b) Desinstitucionalizao em sade mental: busca da interface para o cuidado

    No movimento de reforma psiquitrica brasileira, concepes e conceitos ligados ao

    processo sade/doena mental foram redesenhados, tendo como marco referencial terico a

    psiquiatria democrtica e a experincia basagliana na Itlia. Floresceu, sistematicamente, uma

  • 28

    nova conjuntura paradigmtica na rea de psiquiatria, onde confluem novos termos e

    conceitos nesse campo (Hirdes, 2009).

    O termo desinstitucionalizao, originado dos preceitos reformistas italianos, que,

    segundo Rotelli (1990) no pode ser entendido to somente como a mudana de centro ou de

    foco da ateno de um modelo institucional para o de base social e comunitria. Corroborando

    nesse sentido, Hirdes (2009, p. 299) afirma que a desinstitucionalizao tem uma conotao

    muito mais ampla do que simplesmente deslocar o centro da ateno do hospcio, do

    manicmio, para a comunidade.

    A desistitucionalizao configura-se como o novo paradigma da Reforma Psiquitrica

    no Brasil, na medida em que prope a reabilitao e reinsero psicossocial das pessoas com

    transtornos mentais e comportamentais, a partir de um modelo de ateno focado no na

    doena, mas no sujeito social. Pensar nessa perspectiva significa conceber a pessoa com

    transtorno mental e comportamental numa dimenso mais subjetiva, como sujeito inserido

    num contexto biopsicossocial, onde seu modo de vida, cultura e realidade se inter-relacionam

    entre si (Cavalheri, 2010).

    O termo desinstitucionalizao no Brasil assumiu trs caractersticas distintas na

    medida em que estes aportes conceituais influenciaram a reforma psiquitrica e apresentavam

    resqucios de outras reformas de outros pases: desinstitucionalizao como desospitalizao;

    desinstitucionalizao como desassistncia; desinstitucionalizao como desconstruo

    (Amarante, 2008).

    O entendimento sobre o conceito da desinstitucionalizao como desospitalizao,

    cujo foco centra-se na crtica ao modelo hospitalar psiquitrico, no se configura em uma

    mudana de ateno propriamente dita. Essa concepo partilha com a corrente reformista da

    psiquiatria preventiva e comunitria americana que perdurou durante o governo do Presidente

    Kennedy, com fim administrativo e burocrtico (Amarante, 2008).

    A desinstitucionalizao como desassistncia tem por base o pensamento conservador,

    que divulgava a ideia de que a extino dos servios promoveria a no continuidade da

    assistncia pessoa com transtorno mental e comportamental. Nesse plano esto includos

    alguns grupos econmicos (donos de instituies, mdicos psiquiatras e outros que lucraram,

    historicamente, com a expanso dos asilos e manicmios pelo pas) e conservadores que

    defendiam a hegemonia biologicista da psiquiatria italiana (Rotelli, 1991).

    O entendimento conceitual sobre a de desinstitucionalizao como desconstruo

    pauta-se sobre o processo peculiar da reforma psiquitrica brasileira. Rompe com o paradigma

    psiquitrico vigente, a partir de uma ateno em sade mental centrada na comunidade e no

  • 29

    territrio. O xito da experincia italiana basagiliana contribuiu para esse pensamento,

    especialmente com a promulgao da Lei 180 conhecida como de Lei de Basaglia na Itlia

    (Basaglia, 2005).

    Segundo Amarante (2008), o pensamento de desconstruo, ento concebido pelo

    movimento de reforma psiquitrica brasileira, confluiu, em alguns momentos, com a ideologia

    do movimento sanitarista, na medida em que pregava a reformulao das prticas e aes

    tecnicistas e medicamentosas no campo da sade. Um exemplo disso foi a VIII Conferncia

    Nacional de Sade (1986), que desencadeou, em 1987, na I Conferncia Nacional de Sade

    Mental.

    As concepes sobre a desinstitucionalizao identificadas por Amarante, como

    desospitalizao e como desassistncia influenciaram o conjunto de atores envolvidos,

    requerendo esclarecimentos conceituais, no sentido de fazer prevalecer a

    desinstitucionalizao como desconstruo do modelo hospitalocntrico (Amarante, 2008).

    Nota-se que ainda h confluncia desses conceitos na vida cotidiana dos sujeitos

    psicossociais.

    c) Crenas e valores sobre a loucura e a assistncia em sade mental

    Historicamente, perduraram crenas e valores distintos sobre o louco e a produo

    histrico e social da loucura, com reflexos diretos da conjuntura politica, econmica e cultural

    de cada poca, e que ainda hoje conflui nos mltiplos cenrios da assistncia no campo da

    sade mental.

    Na Antiguidade Clssica, a loucura estava associada ao poder e manifestaes de

    divindades religiosas e mitolgicas da poca, especialmente entre os gregos, para efetuar o

    controle das vontades individuais. De fato, o louco no era concebido como enfermo ou

    doente, nem to pouco perdurava a cultura da segregao, pois existia uma relao de atrao

    e respeito entre os deuses e os ditos loucos (Pessoti, 2004).

    A partir da Idade Mdia, com o advento da sociedade feudal e os modos de produo

    econmicos voltados agricultura e o comrcio, predominava o domnio teolgico e

    dogmtico da Igreja Catlica. Nesse momento, conforme Pessoti (2004) as manifestaes de

    loucura e o louco representavam o atraso para o desenvolvimento, um verdadeiro fardo para

    a economia, pois no pagavam impostos e impediam o processo de comercializao de

    produtos. No imaginrio social, a Igreja pregava a ideologia de que a loucura representava a

    figura do mal e a imagens demonacas, onde demnio exercia o controle sobre a vida afetiva

    do sujeito e exercia controle do conhecimento.

  • 30

    A partir da Revoluo Francesa, especificamente entre os sculos XVII e XVIII, novas

    transformaes aconteciam no campo poltico, econmico e cultural, especificamente, se

    evidenciavam tambm mudanas no percurso histrico da psiquiatria e da loucura para o

    abrigo dos novos saberes e prticas na sociedade. Vivencia-se o perodo do progresso das

    cincias e do conhecimento, baseado no conhecimento mecanicista influenciado por Descartes

    (Desviat, 1999; Amarante, 2008)

    Nessa linha, o hospital, instituio antes destinada filantropia e caridade religiosa,

    passou a adquirir suas bases sociais e polticas, atribui-se o momento de inveno do Hospital

    Geral. Assim, a conceituao de loucura rompe a ideao mitolgica e religiosa, e adquire um

    tom de cientificidade, especialmente no campo psiquitrico, passando a ser concebida como

    uma doena mental (Desviat, 1999; Amarante, 2008).

    A principal forma de interveno e tratamento empregado para a loucura era a

    internao propriamente dita dos loucos em ambientes isolados do convvio entre as pessoas.

    Em outras palavras, a sociedade passou a exercer o poder tutelar sobre a assistncia do louco

    (Saraceno, 1996). O modelo hospitalocntrico fortemente arraigado na psiquiatria era

    sustentado por uma corrente que pregava a institucionalizao e medicalizao da doena

    mental.

    As experincias reformistas avanaram no que se refere s lutas e mobilizaes em

    prol de transformaes nas prticas institucionalizadas empregadas. Esse modelo clssico da

    prtica psiquitrica foi e ainda hoje continua sendo difundido na sociedade, embora seja

    bastante questionado, dados os efeitos de excluso que opera.

    d) Rede de Ateno Psicossocial Brasileira: avanos e desafios

    A Rede de Ateno Psicossocial Brasileira, entre desafios e possibilidades, tem

    buscado, nos ltimos anos, alternativas para a transformao de prticas e servios

    assistenciais voltados s pessoas com transtornos mentais e comportamentais, condizentes

    com os preceitos do movimento de Reforma Psiquitrica. A rede de ateno psicossocial

    prev a implantao de novos dispositivos e um conjunto de servios substitutivos ao hospital

    psiquitrico, com espaos destinados ao atendimento das pessoas com transtornos mentais,

    pautados na lgica da desospitalizao e acolhimento (Brasil, 2012).

    Diante do conjunto de dispositivos e estratgias, reconhecidos como legados da

    reforma psiquitrica visualizam-se a ampliao e implantao da cobertura no territrio

    brasileiro, tendo como fio condutor o preceito da desistitucionalizao com vistas formao

    de uma rede de base comunitria e territorial de cuidados em sade mental. Dentre esses,

  • 31

    destacam-se os Centros de Ateno Psicossocial (CAPS), leitos psiquitricos em hospitais

    gerais, Servios Residncias Teraputicas (SRT), Hospitais-Dia, Programa de Volta para

    Casa, Centros de Convivncia, Cooperativas de trabalho. Tal rede vem se expandido entre os

    municpios brasileiros, graas os incentivos do governo federal com a Portaria 224/1992, a

    Lei Federal 10.216/2001, somados aos debates encenados nas quatro conferncias nacionais

    de sade mental e as demais legislaes oficiais que orientam perfis e prticas (Brasil, 2012).

    Os servios que formam a rede de ateno psicossocial devem dispor de profissionais

    de diversas reas, no unicamente da sade (como msicos, artesos, artista plsticos, entre

    outros), capazes de estimular o desenvolvimento das habilidades e criatividade dos sujeitos no

    espao comunitrio. Cabe mencionar que esses servios procuram estabelecer aes que

    estimulem a intersetorialidade, ou seja, estratgias capazes de articular a comunicao dos

    principais espaos e equipamentos pertencentes ao territrio (Amarante, 2008).

    Atualmente, a construo de uma rede de ateno psicossocial de base comunitria, a

    partir da ampliao e consolidao das novas estratgias e dispositivos substitutivos ao

    modelo psiquitrico hospitalar, tem ganhado impulso na poltica de assistncia em sade

    mental. Nessa trajetria, observam-se avanos e desafios que permeiam o iderio reformista, e

    que trazem consigo a necessidade crescente de reflexo em torno da atual conjuntura poltica

    e social da ateno psicossocial, bem como sobre as perspectivas futuras desse processo no

    Brasil.

    Sucintamente, compreende-se, conforme Bezerra Jnior (2007), entre os desafios para

    Reforma Psiquitrica Brasileira, trs pontos importantes: a) no plano assistencial definem-se

    novas perspectivas para o cuidado em sade mental em conformao aos dispositivos e

    estratgias de ateno psicossocial implantadas, onde preconiza-se a superao do modelo

    tradicional da clnica por uma concepo ampliada, e que abranja os conceitos de rede e

    territrio; b) no plano jurdico e poltico diz respeito ao debate em torno da cidadania e

    respeito ao direito das pessoas com transtornos mentais, alm disso, defende-se a criao de

    novas estratgias e formas de incluso social dessas pessoas, resgatando tambm sua

    autonomia pessoal e, c) no plano sociocultural refora-se o papel da insero social das

    pessoas com transtornos mentais nas atividades culturais, rompendo-se de vez com o modelo

    de excluso e isolamento de outrora. H o incentivo solidariedade e o respeito diversidade,

    desconstruindo-se o preconceito e o estigma da doena mental.

    Outrossim, cabe reforar, desse modo, a necessidade de investimentos na

    instrumentalizao dos profissionais de sade para atuaram nesse novo modelo de ateno, da

  • 32

    sensibilizao de gestores pblicos e de uma articulao maior entre os diversos atores ligados

    a esse processo.

    Consideraes finais

    Na reflexo sobre o processo de cuidar em sade mental na ateno psicossocial

    identificou aspectos relevantes ligados a esse fenmeno do cuidar em sade mental e a

    necessidade de ampliao do debate em torno das polticas pblicas no campo dos transtornos

    mentais, como forma de possibilitar a execuo de um projeto teraputico compartilhado e

    avanar em direo implementao da rede de ateno intersetorial em sade mental

    defendidas pela Reforma.

    Assim, o processo cuidar em sade mental vem exigindo transformaes tericas e

    prticas no processo de trabalho dos profissionais, levando-se em considerao as demandas

    dos usurios com transtornos mentais e seus familiares. Busca-se um repensar nas aes e

    prticas teraputicas ainda arraigadas ao modelo clnico psiquitrico e o aparato manicomial,

    desenvolvidas no cotidiano dos servios, com vistas o resgate da cidadania dos sujeitos e

    compromisso tico ao ser humano. Espera-se que esse estudo contribua com os debates no

    campo da ateno psicossocial sobre as prticas profissionais, reforando-se o cuidado em

    sade mental articulado com as demandas reais do sujeito social doente.

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  • 35

    3.2. ENSAIO TERICO II

    O dito e no dito: reflexes sobre Reforma Psiquitrica e Michel Foucault

    The stated and non-stated: historical counterpoints on Psychiatric Reform and Michel

    Foucault

    Joo Mrio Pessoa Jnior2, Francisco Arnoldo Nunes de Miranda3

    RESUMO Objetiva-se refletir sobre contrapontos existentes no processo histrico de

    Reforma Psiquitrica Brasileira e o pensamento de Michel Foucault, sob a tica do dito e no

    dito. A discusso encontra-se estruturada em trs eixos: o primeiro menciona o dito sobre a

    reforma psiquitrica, contextualizando os principais aspectos sociais e polticos que marcaram

    o movimento; o segundo eixo destaca o filsofo Michel Foucault e sua obra clssica que

    influenciou o pensamento ocidental sobre loucura; e, no terceiro tecem-se alguns contrapontos

    em torno da Reforma Psiquitrica. A histria oficial da Reforma perfaz episdios e

    personagens enigmticos, contrapontos sobre o dito e no dito.

    PALAVRAS-CHAVE: Sade mental; Filosofia; Cincia; Conhecimento.

    ABSTRACT It aims to reflect on existing counterpoints in the historical process of the

    Brazilian Psychiatric Reform and the thought of Michel Foucault, in the optic said and not

    said. The discussion is structured around three axes: the first mentions told about the

    psychiatric reform, contextualizing the main social and political aspects that marked the

    movement, the second axis highlights the philosopher Michel Foucault and his classic work

    that has influenced Western thinking about madness, and on the third spin up some

    counterpoints around the Psychiatric Reform. The official history of the Reformation totals

    episodes and enigmatic characters, counterpoints on said and not said.

    KEYS WORD: Mental Health; Philosophy; Science; Knowledge.

    2Doutor em Enfermagem pelo Programa de Ps-Graduao em Enfermagem da Universidade Federal do Rio

    Grande do Norte (PPGE), Bolsista CAPES/DS. Natal (RN), Brasil. [email protected] 3Doutor em Enfermagem. Docente Associado II do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do

    Rio Grande do Norte (DENF/UFRN). Bolsista Produtividade CNPQ. Natal (RN), Brasil. [email protected]

    Correspondncia: Joo Mrio Pessoa Jnior

    Rua Otvio Laurindo de Azevedo, 1026, Apt 06, Praia Campista, Maca/RJ. E-mail: [email protected]

    mailto:[email protected]:[email protected]
  • 36

    Introduo

    Revisitar aspectos histricos do surgimento da psiquiatra e o movimento de Reforma

    Psiquitrica constitui um exerccio filosfico reflexivo necessrio quando se remontam

    saberes/conhecimentos produzidos pelo homem em distintas pocas no campo da sade.

    Momento de se buscar compreender de maneira mais ampla tais saberes e sua inter-relao

    com a dinmica social envolta de contextos polticos, econmicos e culturais de pases

    (TORRE; AMARANTE, 2001; FREITAS, 2004).

    Reconhece-se nesse trajeto de transformaes, conforme Pereira (2004), a existncia

    de figuras e sujeitos que se destacaram tradicionalmente por seu papel, atuao ou at mesmo

    seus estudos e/ou pensamento sobre determinado fenmeno social. Entretanto, partindo-se de

    um pensamento filosfico crtico e problematizador da histria clssica contada, faz-se

    necessrio dar voz aos sujeitos no mencionados nos livros, discursos oficiais e estabelecendo

    um contraponto, o no dito ao que institucionalmente foi dito e formulado no processo de

    produo do conhecimento humano.

    Nesse sentido, considera-se que a perspectiva questionadora de sinalizar esse

    contraponto sobre a histria da Reforma Psiquitrica e a obra clssica de Michel Foucault

    sobre loucura, possibilitaro a atitude de repensar o processo transformao do saber mdico

    psiquitrico ocidental hegemnico para o cuidado interdisciplinar, pautado em novas

    concepes para ateno em sade ao indivduo com transtornos mentais (CASTEL, 1978;

    PEREIRA, 2004). Parte-se desse exerccio de reconstituio dos movimentos reformistas

    internacionais, reconhecendo as suas consonncias na histria das polticas brasileiras.

    Assim o presente estudo objetiva trazer para discusso alguns contrapontos existentes

    no processo histrico de Reforma Psiquitrica e o pensamento de Michel Foucault, sob tica

    do dito e no dito. A discusso encontra-se estruturada em dois eixos: o primeiro, o dito,

    menciona o dito sobre a reforma psiquitrica, contextualizando os principais aspectos sociais

    e polticos que marcaram o movimento e a transformao do pensamento sobre a loucura e

    surgimento da psiquiatria; e, no segundo, o no dito, tecem-se alguns contrapontos em torno

    da Reforma, particularmente sobre a figura de Phellipe Pinel e a obra Histria da loucura de

    Foucault.

  • 37

    O dito da reforma psiquitrica

    Num cenrio marcado internacionalmente por um perodo de desordem social e de

    intensa crise econmica, especialmente entre os pases da Europa, em fins do sculo XVII,

    emergiram as primeiras experincias de enclausuramento social, e que ainda no possuam

    carter de medicalizao ou enfoque voltado ao tratamento de doenas (AMARANTE, 2011).

    Os hospcios e asilos se configuravam como espaos destinados ao recolhimento e

    hospedagem de pessoas, em sua maioria, mendigos, desempregados, prostitutas, ladres,

    dentre outras, que apresentavam algum tipo de ameaa ao convvio em sociedade.

    Um breve retrospecto sobre a trajetria do hospital na sociedade aponta uma origem

    ligada, num primeiro momento, Igreja Catlica, quando a teologia exercia poder e influncia

    em todo o mundo. Sua estrutura reportava a semelhanas com albergues, casas de apoio aos

    necessitados, sob a tutela de religiosos que prestavam cuidados espirituais. Coincidentemente,

    nesse perodo vivia-se sob a gide da Idade Mdia, onde os hereges, as pessoas contrrias ao

    pensamento hegemnico defendido pela Igreja, estariam condenados fogueira da Inquisio,

    pois representavam perigo ao convvio entre os burgos (GOMBRICH, 1979; ROSEN, 1994;

    MEDEIROS, 2005).

    No Brasil assinala-se tambm que os primeiros hospitais instalados tinham carter

    filantrpico, vinculados Igreja Catlica. Muitos consideravam esses espaos como

    depsitos humanos, dada a grande quantidade de pessoas que abrigavam com as mais

    variadas enfermidades ali concentradas. Mencionam-se como exemplos as Santas Casas de

    Misericrdia, especialmente entre o eixo do Sudeste.

    Passos (2009) refere que a partir da Revoluo Francesa, novas transformaes

    aconteciam no campo poltico, econmico e cultural, com a queda da monarquia do Antigo

    Regime e o advento da burguesia, os quais contribuiram diretamente para mudanas

    importantes na medicina, e, especificamente, para o percurso histrico da psiquiatria e da

    loucura.

    A ordem social exigia uma nova conceituao da loucura e, acima de tudo, de suas

    formas de atendimento. Com a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, com o

    Contrato Social e a livre circulao de pessoas e mercadorias, a nova soberania civil tinha que

    refletir sobre a responsabilidade e os limites da liberdade (CASTEL, 1978; PASSOS, 2009).

    Gradativamente, ao longo do sculo XIX e XX novos estudos, projees e

    perspectivas terico-conceituais foram lanados para as instituies hospitalares,

    influenciados pelos diversos continentes, particularmente a Europa. Dentre os apontamentos,

  • 38

    refere-se a influncia da Enfermeira Florence Nightgale, com os livros lanados Notes on

    Hospitals e Notes on Nursing, que exerceram influncia sobre as discusses referentes

    disposio das enfermarias e qualidade funcional do hospital, dadas as suas experincias e

    estudos.

    Nessa linha, o hospital, instituio antes destinada filantropia e caridade religiosa,

    passou a adquirir suas bases sociais e polticas. Foucault (1978) atribui o sculo XVII como

    sendo o momento de inveno do Hospital Geral, onde, concomitantemente, houve o

    direcionamento para as debates em torno do louco e da loucura na sociedade ocidental,

    embora, num primeiro momento, destinava-se a intervenes punitivas, determinadas por

    autoridades reais e judicirias.

    Na sua obra clssica Foucault assinala uma nova postura no campo da produo do

    conhecimento pela defesa de ideias crticas em torno da psiquiatria enquanto saber cientfico,

    rompendo o pensamento absolutista dominante na poca numa perspectiva epistemolgica

    que avana em direo ao homem como sujeito, autor principal da produo de conhecimento

    e da prpria filosofia (FOUCAULT, 1978).

    Projeta-se, portanto, de acordo com Machado (1986) um lugar social para o dito louco

    com a instituio de novas formas de lidar e trat-lo sob a gide do poder mdico, onde se

    entende criticamente os diversos espaos do louco e da loucura na sociedade. A imagem de

    ordem e controle das mazelas humanas dentro desse espao de confinamento promove uma

    ideia de que este o melhor local para que essas pessoas sejam tratadas, ou de que retir-las

    de l se torna um risco para a sociedade.

    Com o passar do tempo, os mdicos comearam a atuar nesse espao, no intuito de

    transformar as prticas ali realizadas, com enfoque nos ideais humansticos trazidos com a

    modernidade. Desse modo, os hospitais tornaram-se ambientes de cura e de tratamento de

    enfermos, privilegiando a medicalizao e o saber da medicina (PASSOS, 1999;

    AMARANTE, 2011).

    Como assinalam Foucault (1978) e Desviat (199) o enclausuramento anteriormente

    vigente, determinado pelos lettres de cachet (ditames de reis e autorizao dos governos) e

    que baniam dos espaos sociais as pessoas que ameaassem a ordem social, passou por um

    processo de abolio. No poderia se conceber um pensamento que privasse o direito humano

    liberdade, tendo em vista o confinamento absolutista da poca.

    Alguns estudiosos costumam denominar esse perodo como a transio entre a

    sociedade absolutistas determinada pela gide de governos totalitrios e clericais, para a

    sociedade disciplinar de bases normalistas e que imprimiriam gradativamente aspectos de

  • 39

    cidadania (CASTEL, 1978; PASSOS, 2009; AMARANTE, 2011). Goffman (2003) destaca

    nesse cenrio que a microssociologia das instituies psiquitricas, consideradas por ele como

    instituies totais, sejam as de carter clnico, prisional ou conventual. Refere que tanto

    com a institucionalizao forada ou mesmo a voluntria, d-se incio ao processo de

    mortificao do eu do sujeito. Mais do que somente uma relao de opresso e violncia, a

    interveno sobre a vida do sujeito, classificando-o de normal ou anormal, constitui-se na

    afirmao de um poder mdico que, travestido de cientfico, nada mais do que a imposio

    ideolgica do modelo de racionalidade burguesa (GRADELLA JNIOR, 2002).

    Nesse contexto, Foucault (1989) menciona que o doente emerge se naturaliza como

    produto da excluso social, considerado um sujeito perigoso e violento para o convvio

    comunitrio. Prevalecia a cultura de poder do diagnstico psiquitrico e psicolgico sobre a

    vida do indivduo, que, por conseguinte, enfrentaria o processo de estigmatizao, sendo

    distituido de seus direitos civis e teria sua tutela por tcnicos e agentes psiquitricos.

    Paralelamente, Desviat (1999, p. 19) diz que:

    [...] a psiquiatria e o manicmio surgiram, em suma, em uma poca constitutiva de

    ordem democrtica contempornea, resgatando o tratamento dos alienados do

    atendimento promscuo dos hospitais ou albergues para pobres, originrios da grande

    crise econmica dos primrdios do capitalismo, e exercendo uma srie de funes

    exclusivamente mdicas.

    A publicao de Trait Mdico-Philosophique por Phelippe Pinel, em 1801, se tornou

    base para a constituio da psiquiatria e a nova conformao da ordem social, contendo

    pontos fundamentais sobre a cincia da alienao mental, sumariamente definida como

    doena das paixes, que produziria a perda da sensatez humana sobre a realidade de mundo

    (DESVIAT, 1999; RICCIARDI, 2001). O termo alienado (alienare e alienatio) remeteria a

    algo externo aliengena, fora do mundo; ou que oferecesse riscos ou perigo sociedade e

    ordem moral.

    Os escritos arqueolgicos e ginecolgicos foucaultianos sobre a loucura humana

    abordam as relaes existentes entre o discurso, a prtica e o saber, tecendo-se os

    fundamentos do que viria constituir a psiquiatria e a prtica mdica psiquitrica (MACHADO,

    1986; DELLUZE, 1988). Dessa forma, as instituies eram concretizadas somente aps o

    conhecimento do fenmeno estudado, e, no caso da doena mental, o desconhecimento na

  • 40

    poca sobre o fenmeno levaria a criao de uma instituio para buscar, a partir do

    aprisionamento e enclausuramento do sujeito, entender as causas que o tornam diferentes dos

    outros.

    No sculo XIX a Psiquiatria assumiu uma postura biologicista, centrando-se na

    medicina de bases biolgicas, mediante o paradigma imperante nas cincias naturais. Assim, o

    hospital psiquitrico, como incita Gradella Jnior (2002), contribui para o processo de

    cronificao do doente mental ao reforar a submisso desses a mecanismo de violncia

    institucional, impondo a prtica do internamento e segregao social por toda vida, seja pelo

    desconhecimento do fenmeno estudado ou mesmo pela ausncia de estratgias teraputicas

    de reinsero do sujeito ao convvio familiar e comunitrio. Esse modelo clssico da prtica

    psiquitrica foi e ainda hoje continua sendo difundido na sociedade, embora seja bastante

    questionado, dados os efeitos de excluso que opera.

    Contrapontos sobre a histria contada: o no dito da reforma psiquitrica

    Pinel, convencionalmente, foi considerado o precursor das discusses sobre o

    alienismo mental e a psiquiatria, sendo-lhe atribuda a honraria de pai da psiquiatria. Seu

    mrito diz respeito contribuio na fundao dos primeiros hospitais psiquitricos e

    elaborao do tratamento moral para a loucura e o alienado. De acordo com ele, essa

    modalidade de tratamento consistia na soma de princpios e medidas que, impostos aos

    alienados, pretendiam reeducar a mente, afastar os delrios e iluses e chamar a conscincia

    realidade. O hospital, enquanto instituio disciplinar seria ele prprio, uma instituio

    teraputica (AMARANTE, 2011, p.33).

    A prpria obra de Pinel, Traite Medico-Philosophique sur I'Alienation Mentale

    (1801), com a fundao da psiquiatria e a primeira reforma na instituio hospitalar,

    estabelecendo os pilares do tratamento moral, feitos considerados grandiosos por estudiosos,

    questionada na sua legitimidade por outros, sendo necessrio, portanto, assinalar o

    contraponto a essa histria (FREITAS, 2004).

    Sobre a figura de Pinel, Ricciardi (2002) refere trs motivos para o destaque de Pinel

    na trajetria da psiquiatria: o apogeu social e cultural vivido pela Frana no sculo XIX, sua

    terra de origem; o pioneirismo de Pinel no campo da Psiquiatria, com a instituio das novas

    modalidades de tratamento para a doena mental e suas bases filosficas e ideolgicas

  • 41

    inspiradas na Antiguidade Clssica. Esses substratos subsidiaram a construo da nova

    psiquiatria.

    Havia trs pontos fundamentais que envolviam o tratamento moral que justificam as

    aes realizadas: o isolamento social; o espao asilar como recurso predominante e o

    autoritarismo. Esses ideais do alienismo pineliano tiveram uma repercusso internacional

    histrica, e contriburam para a promulgao da Lei de 1838, na Frana, legitimando a relao

    entre o mdico e o doente mental, num momento em que poltica de criao de hospitais de

    alienados se expandiu entre os vrios continentes (FREITAS, 2004; RICCIARDI, 2002).

    Desmistificando essa passagem da histria, Gladys Swain (1978), na sua tese de

    doutorado intitulada Le Sujet de La folie, discutiu as controvrsias existentes na histria da

    psiquiatria e no campo da loucura. Criticou todo o herosmo propagado mundialmente em

    torno de Pinel e sua projeo na imagem de libertador dos alienados de Bictre [asilo

    masculino], e posteriormente de Salpetrire [asilo feminino], a partir dos quadros de

    Charles Muller; numa miscelnea histrica povoada de incertezas e controvrsias sobre seus

    feitos. Em uma das passagens, ela traz que o filho de Pinel, Scipion Pinel, foi o autor de

    grande parte de seus estudos e postulado (POSTEL, 1994; FREITAS, 2004).

    Sobre esse momento, Ricciardi (2002, p. 2) acrescenta que:

    Esta desmistificao da loucura operada por Pinel concorre para a prpria

    mistificao da sua pessoa, no famoso episodio fictcio de Bictre. Segundo tal

    episdio, propagado por mais de um sculo e registrado, dentre outros, no quadros de

    Muller para os loucos de Bictre e de Robert-Fleury para as loucas da Salptrire,

    Pinel havia libertado os loucos das correntes com as quais eram atados nas

    instituies at ento.

    Na segunda edio do Tratado, Pinel fez meno s contribuies de algum que no

    ele para a extino do sistema de enclausuramento e represso vigente, destacando as

    experincias do Sr. Pussin no Hospcio de Bictre ainda de uma maneira tmida. Nesse

    trecho ele se referiu ao francs Jean-Baptiste Pussin, o primeiro enfermeiro psiquitrico do

    mundo, embora tenha sido esquecido entre os escritos clssicos de Foucault e de outros

    estudiosos da poca. O mesmo no tinha formao acadmica na rea, mas foi o verdadeiro

    autor de uma nova abordagem para lidar com o doente mental (RICCIARDI, 2002;

    FREITAS, 2004).

  • 42

    Freitas (2004) diz que Pussin foi um dos precursores do movimento, iniciado na

    Europa ainda no sculo XVII, em prol de um tratamento mais humano para as pessoas com

    transtornos mentais, que no utiliza