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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO O OCULTISMO NA OBRA DE ÉLIPHAS LÉVI ZAHED GILSON RIBEIRO DA SILVA UFRJ/ Faculdade de Letras Setembro de 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

O OCULTISMO NA OBRA DE ÉLIPHAS LÉVI ZAHED

GILSON RIBEIRO DA SILVA

UFRJ/ Faculdade de Letras Setembro de 2009

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O Ocultismo na Obra de Éliphas Lévi Zahed.

Gilson Ribeiro da Silva

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como quesito necessários para a obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Poética).

Orientador: Prof. Doutor Antônio José Jardim e Castro.

Rio de Janeiro

Setembro de 2009

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Resumo

O Ocultismo na Obra de Éliphas Lévi Zahed.

Gilson Ribeiro da Silva.

Orientador: Antônio Jardim.

Resumo de Dissertação de Mestrado submetida ao programa de Pós-Graduação em

Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro,

como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Poética.

Este trabalho consiste em um esforço de síntese da obra do filósofo ocultista Éliphas Lévi

Zahed, no que concerne à sua teoria sobre os conhecimentos que regem secretamente a

vida do homem e do universo. Para tal, foram pontuados os elementos mais significativos

desse conhecimento, sendo eles: a Cabala, o Hermetismo e a Ciência dos Números.

Palavras-chave: ocultismo, ciência oculta, sabedoria, conhecimento.

Rio de Janeiro,

Setembro de 2009.

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Abstract

O Ocultismo na Obra de Éliphas Lévi Zahed.

Gilson Ribeiro da Silva.

Orientador: Antônio Jardim.

Resumo de Dissertação de Mestrado submetida ao programa de Pós-Graduação em

Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro,

como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Poética.

The present consists in a syntesis effort about the work of the occult philosopher Eliphas

Levi Zahed, in what refers his theory over the knowledge that secretly reigns men´s life

and universe´s . For so, the most significant elements of this knowledge were punctuated,

being : Kaballah, the Hermetism and the Number´s Science.

Rio de Janeiro,

Setembro de 2009.

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Quem Jeová, poderá morar em Vosso Tabernáculo, quem poderá assistir em Vosso Santo Monte? Aquele que anda com inteireza, que faz o que justo, e o que fala a Verdade do coração. O que não anda difamando com a língua, não faz mal ao próximo, nem afronta o vizinho. Aquele, cujos aos olhos o réprobo é desprezível, mas, que honra aos que temem a Jeová, e não quebranta ainda com o próprio dano o juramento. Que o dinheiro não empresta com usura, nem recebe peita contra o inocente. Aquele que deste modo procede, não será, em tempo algum, abalado.

Salmo 15.

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Só a razão dá direito à liberdade. A liberdade e a razão, estes dois grandes e essenciais privilégios do homem, estão tão estreitamente unidos que não podemos abjurar um, sem renunciar ao exercício da outra. A liberdade quer triunfar da razão e a razão exige imperiosamente o reino da liberdade. A razão e a liberdade são, para o homem, mais que a vida. É belo morrer pela liberdade, é sublime ser mártir da razão, porque a razão e a liberdade são a própria essência da imortalidade da alma.

Éliphas Lévi Zahed. O Grande Arcano. Cap. X.

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Sumário.

Introdução página 9

Capítulo 1. A obra metafórica do mestre. página 16

Capítulo 2. Deus. A Natureza. O Homem. página 25

Capitulo 3. A revelação do mito e o mistério do invisível. página 40

Capitulo 4. O ocultismo da Cabala e a Ciência dos Números. página 56

Conclusão. página 85

Bibliografia. página 91

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Introdução.

A cada novo tempo, a impressão que nos despertam o progresso e a evolução

tecnológica é de que o misticismo – termo que assumiu valor pejorativo – e a

religiosidade se modificaram de tal modo, para se adaptarem às necessidades da vida

moderna, que são como meros suportes psicológicos que servem de sustento ao equilíbrio

das relações humanas. Em algum tempo no passado, a sociedade se alicerçava em torno

destes princípios espirituais, o que os fundamentava como único objetivo pelo qual todos

os outros esforços convergiam. Mas podemos notar que no auge do conhecimento

científico de nossa era, teorias de vanguarda acabam por evocar interpretações diversas a

respeito da condição do homem em relação ao universo, dos motivos pelos quais a

própria vida em si existe. Os eternos questionamentos ainda se mantêm, as respostas,

como - deveria ser óbvio - é que mudam, porém sem nunca romperem o círculo de

transcendência que as envolve. Esta atmosfera transcendente é tão abrangente que

permite que teorias diferentes se associem de forma espantosamente coerente o que

desperta a falsa noção de correspondência entre elas. Temos como exemplo os novos

princípios sobre física subatômica – a física quântica – e o quanto ela nos faz pensar no

mundo invisível como uma nova explicação para a relação entre a matéria e a mente.

Essencialmente, tais considerações não têm de forma alguma relação com aquilo que é o

verdadeiro fundamento da física ou do budismo, por exemplo, ou mesmo com a singela

noção das manifestações do tempo e do espaço. Jung, em seu trabalho sobre os símbolos,

propôs um valor universal para determinados gestos, imagens e ações, como se estas

fizessem parte ou surgissem do interior da essência humana, algo semelhante ao nível

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fisiológico da existência. Esta conclusão é positivista por um lado, pois situa a razão do

fenômeno não em um princípio inteligente primordial – conforme o ocultismo preconiza

– contudo discorre por uma nova condição do pensamento humano nunca antes

explorado. Este tão criticado viés científico nos conduziu a imensas e surpreendentes

descobertas e teorias sobre o universo e a criação.

Nenhum pensamento do século XIX pode equiparar suas previsões aos fatos que

sucederiam no século XX. Alguns poucos vislumbres da poesia puderam trazer à tona da

realidade o que estava por vir. Mas onde estavam os místicos quando a revolução da

sociedade tecnológica abraçou o mundo inteiro, encurtando distâncias e miscigenando as

culturas? Fora a questão da influência da Globalização, já há muito tempo que a

autoridade da ciência tradicional corrobora qualquer outra perspectiva e a si submete as

demais formas de compreensão. Isso não é nenhuma novidade. Porém, estas mesmas

escolas de ciência abriram brechas em seus códices para incluírem novas “linhas de

pesquisa”, ou pelo menos novos questionamentos. Um exemplo disso é o fato da

medicina aceitar que a crença do doente no valor de cura do medicamento intensifica ou

reduz sua eficácia. Há diversos outros exemplos disso que não se restringem apenas às

ciências exatas, mas também povoam as filosofias, as artes e outros campos das

disciplinas humanas. Esta nova onda de teses permitiu que a lama do preconceito fosse

parcialmente dissolvida, contudo não foi tão eficaz quanto esperavam algumas opiniões.

Tudo passou a ser tomado de uma atmosfera exótica e quase oportunista da qual surgiram

milhares de praticantes de uma “vida alternativa”. Religião e ciência se aproximaram e

sofreram, ambas, modificações em sua forma de interpretar a existência. Mas interpretar

não é o mesmo que compreender. Os verdadeiros iniciados ainda existem e conhecem

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que tais transformações, desta nova era, estão entre o limiar da renovação e a decadência

morais. “Os falsos profetas” seriam estes pseudo-idealizadores auto-proclamados sábios e

mestres, mas que, porém, não passam de temerários charlatães ou ignorantes desvairados.

Esta dura reflexão, feita pelos mestres ocultos, repudia e alerta aos incautos dos perigos

de profanar os Mistérios do Templo da Sabedoria. Trata-se, no entanto, de uma questão

de reconhecer que qualquer movimento que tenha a presunção de aproximar tecnologia e

fé deve ser elaborado sobre os mais augustos princípios da ética, da fraternidade e

epistemologia. Contudo, são poucos os fiéis iniciados e seu segredo permanece

inviolável. O restante, diz a doutrina, é profano. Não julguemos o profano como réprobo,

e sim como comum, mundano.

Onde estão os místicos de nossa época? Muitos poucos atravessaram a metade do

século XX. Quase nenhum é hoje conhecido. E as escolas de mistérios? E a promessa dos

Rosa-Cruzes? O Grande Templo dos Maçons? A Grande Obra dos Alquimistas

Guilherme Postello, Raimundo Lullo e Nicolas Flamel? Quem ainda conhece o

prodigioso iluminado Paracelso? Não falamos apenas de nomes da filosofia oculta,

filósofos tradicionais, grandes questionadores de nosso tempo no ocidente e no oriente,

foram esquecidos pelos jovens estudantes. Não é um fenômeno isolado ou estático no

tempo, ele ocorreu e ocorrerá sempre. É um fato comum na transformação da

humanidade.

É possível observar que a mediocridade das aspirações do homem é decorrente de

uma perspectiva pobre e superficial, que não consegue atingir a profundidade daquilo que

realmente compõe a individualidade do ser. Vivemos em um mundo veloz e sempre

sedento de novidades. A grande realização do homem moderno é a estabilidade

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financeira, a ascensão profissional, o reconhecimento público e a possibilidade de ser

livre para consumir. Quando o homem não tem mais a vista para reconhecer a Verdade

por trás das coisas nem mesmo a arte pode revelar-se. É o que muitos julgam ser a crise

da pós-modernidade. Essa é a era sem fim. Sem novas descobertas, o que mais

poderemos aguardar de nós mesmos? Os profetas de nosso tempo são economistas e

“futurólogos” que julgam reconhecer verdades inestimáveis nos fluxos de queda e subida

das bolsas de valores ou nas novas tendências sexuais, na moda ou nas minorias contra-

conceituais.

Este nosso mundo não é menos confuso do que o era o de séculos anteriores,

quando a alquimia e a astrologia eram ciências reais, como hoje é a física ou a química.

No passado, havia, porém, a compreensão de que tais práticas eram devotadas aos sábios

e aos escolhidos, de certa forma, diferente do acesso que se possui hoje aos centros

acadêmicos. Esta diferença caracteriza uma perda das virtudes fundamentais para se

postular as formas de ciência. Em outras palavras, o acesso ao conhecimento é

indiscriminado. Com isso, os objetivos desta ciência tornaram-se, ao mesmo tempo,

disseminar as suas benesses a todos, sem restrições, e sustentar o modo de vida moderno.

Este modo de viver, principalmente nas nações mais ricas e prósperas, tem se mostrado

em desacordo com a sustentabilidade, no ponto de vista ecológico, e economicamente

desigual. Quanto mais a sociedade tecnológica passa a ser eficiente em sua busca por

transformar o meio ambiente, a fim de alcançar os mais elevados níveis de conforto, mais

e mais produz um vazio que vai muito além do crescimento de pobreza material, traz

consigo grandes conseqüências culturais e ideológicas. Em uma realidade de extremos

tão acentuados, o que pode aguardar de seu futuro, um miserável que vive no interior de

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alguma região rural, cujos únicos avanços da tecnologia que dele se aproximam são os

programas de televisão alienadores e os equipamentos eletrônicos ultrapassados? A

tradição rende lugar ao novo, ao imediatismo da satisfação temporal. Podemos dizer que

é a busca por essa forma de felicidade que ocupa o lugar na vida dos homens. Seja a mais

simplória condição de conforto ou a plenitude de uma estabilidade econômica e a

ascensão profissional, a realização interior que se fundamenta naquilo que deve haver de

mais profundo na existência foi esquecida. Deteriorou-se em meio às brumas da

incerteza. Aqui começa este trabalho.

A Filosofia Oculta é a filosofia do invisível, o estudo das forças secretas do

universo, do homem e de Deus. É a sabedoria das coisas que se dão em níveis mais sutis

e que influem diretamente neste nosso mundo físico mais denso. Esta relação não se atém

apenas ao abstrato da realidade, mas a toda a constituição do Pequeno e do Grande

Cosmo, das relações sociais, das artes e na constituição dos povos. Há uma vastidão de

estudiosos que dedicaram suas vidas a constituição de um corpus que buscasse uma

Grande Síntese universal, relacionando todas as doutrinas, todas as obras e tudo que

proviesse do homem. Este é o grande trabalho a ser realizado. O reino futuro. A grande e

gloriosa comunidade fraternal, justa e próspera florescerá para um novo mundo – esta é a

única profecia da qual se valem os filósofos deste caminho. Dentre estes tantos – que na

verdade são um grão perdido no deserto de povos ignorantes - resolvemo-nos por estudar

o trabalho do mestre Éliphas Lévi Zahed que muito nos instruiu no caminho da Sabedoria

e do amor à Verdade.

Éliphas Lévi é conhecido em diversos círculos de estudos ocultistas e sua

autoridade, no tocante às pesquisas sobre Cabala, Magia e Medicina Universal, assim

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como suas teorias sobre o misterioso livro do Tarô e a obra de Hermes Trismegisto – o

Corpus Hermeticum - tornaram-se referência para muitos outros escritores por todo

oriente e ocidente, seja no estudo das ciências comparadas, seja no trabalho de construção

do novo homem. Ele fez parte das sociedades secretas mais brilhantes e sigilosas do

século XIX, e é lembrado ainda hoje como um brilhante iniciado. Com base nos escritos

do mestre, formularemos alguns pontos de reflexão sobre a filosofia e a condição do

homem moderno, a sociedade e as novas formas de pensamento. Buscaremos explicar

alguns posicionamentos tendo por base a doutrina ocultista em seu aspecto externo, nos

limitando sempre a não penetrar em fundamentos de ordem secreta e sigilosa, ou que

despertasse mais confusão do que clareza em seu entendimento, ou mesmo que seu

caráter simbólico dependa de uma interpretação pessoal impossível de ser transmitida.

Falar de uma filosofia oculta não é assumir autoridade alguma sobre a verdade ou

sobre a revelação ideal da essência do universo, mas é defrontar toda uma corrente de

pensamentos com outras mais. A grande diferença que encontramos no ocultismo é a

razão de todas as teorias que o compõem estarem unidas por um fio condutor, um eixo

central que é o elemento do invisível. Este é o fundamento do ocultismo, que se desdobra,

ao mesmo tempo, em arte e ciência. São indissociáveis e complementam a Grande Obra

do iniciado. O mestre ilumina que a imaginação é a faculdade primordial para que o sábio

reconheça sem ilusão aquilo que a verdadeira vista revela do invisível. É como ver

através de uma janela a luz do sol que chega diretamente sem obstáculos. O vulgo e o

profano vêem como que por um vidro cheio de impurezas e embaçado, impossibilitado de

distinguir o que é meramente projeção da luz ou apenas o reflexo e a sombra, semelhante

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aos homens no Mito da Caverna. A poesia traz em si esta essência diáfana e por isso é tão

profundamente sentida quando surge por obra de verdadeiro gênio.

Nenhuma das antigas escolas de mistérios deixava de testar seus discípulos quanto ao

conhecimento da arte – fosse por música, escultura ou letras – para que pudesse

posteriormente reconhecê-lo como merecedor de receber os conhecimentos mais

singelos. Conhecer e saber, aqui, são coisas muito distintas. O sábio faz o correto uso do

conhecimento.

Não temos como objetivo discorrer sobre os conceitos mais profundos da

filosofia oculta, mas evocar a reflexão que determinados princípios podem florescer.

Vivemos uma pós-modernidade sem fim onde o abjeto navega junto ao sublime,

confundindo os olhares e vulgarizando o que há de mais sagrado no homem. Não falamos

de religião alguma, mas do religare tão discutido como intermediário da grande senda da

humanidade, que segue rumo à perfeição e à felicidade. Negamo-nos a defrontar a ética.

A ela nos referimos como a compreensão dos valores universais e perenes.

Faz-se necessário esclarecer algo sobre os termos e expressões aqui utilizados.

Vamos despi-los de toda carga de conceitos que estes contêm, a fim de não gerarmos

interpretações equivocadas. Faremos sempre os apontamentos quando seu uso se remeter

a determinados significados no âmbito da Poética ou conforme o costumeiramente

encontrado na literatura de outros pensadores.

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1. A obra metafórica do mestre.

Nenhuma biografia foi convincentemente adequada para determinar com maior

verossimilhança aquela que fora a existência do mestre. Talvez por sua contestada

formação em uma época conturbada. O que se sabe apenas com clareza é que nasceu em

Paris, no ano de 1810, com o nome de batismo Alphonse Louis Constant, cuja tradução

para o hebraico, efetuada pelo próprio, é Éliphas Lévi Zahed.

Ninguém sabe exatamente como foi iniciado nos ensinamentos ocultistas, seja na

Cabala ou na Alquimia, e muitas de suas fontes de estudos são no mínimo obscuras. Mas,

a verdade é que seus escritos iluminaram em muito a jornada de milhares de discípulos

que seguiram seus passos e fundaram as mais diversas ordens espiritualistas pela Europa.

Segundo o próprio, recebera grandes iluminações dos filósofos gregos,

principalmente os pré-socráticos, assim como dos alquimistas medievais famosos

(Paracelso, por exemplo), outros ocultistas contemporâneos seus, iluministas alemães,

etc. Não é incomum encontrar em suas principais obras referências sobre determinados

autores e alguma crítica a sua filosofia. Isso porque seu desejo era o da renovação,

restabelecendo os fundamentos a fim de convidar aqueles que o lessem para vislumbrar

um novo significados nas coisas que, segundo ele próprio, seria o verdadeiro.

Dentre as suas mais conhecidas obras estão Dogma e ritual da Alta Magia, A

História da Magia e Grande Arcano. Esta trilogia compõe as bases de seus ensinamentos

e revelam muito sobre os fundamentos de suas teorias, sobre a interpretação das chaves

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ocultas1 e sobre a razão e forma de obtê-las segundo suas convicções. São livros que se

complementam e necessitam de serem abordados em conjunto para que o estudante possa

compreender aquilo que está contido neles.

O primeiro elemento que deve ser apontado e que é a seiva da qual se alimenta

sua linguagem é a simbologia das metáforas que permeiam todos os seus capítulos.

Metáfora, na definição mais simples, significa aquilo que algo toma em si por

significado, mas que não é natural de sua essência. Ou seja, aquilo que veste uma

roupagem diversa da comumente vislumbrada. A metáfora por si só já é uma forma de

transformação da realidade, quando a julgamos como processo de metamorfose daquilo

ao qual se atém. Quando a arte evidencia o elemento comum é uma forma de metaforizar.

Mas, e quando tudo o mais na realidade torna-se metáfora? Aí é o que o mestre chama de

universo. Como cabalista, ele conjurou a linguagem como forma de construção desse

universo, como veículo de manifestação divina, construtor, reformador e destruidor. Esse

Logos é o fundamento de todas as coisas do mundo humano. É interessante observarmos

que para se entender a Cabala é preciso conhecer seus ideogramas e suas referências

numéricas, pois são o corpo da Criação dado aos homens pelos “seres superiores” em

imemorial época da história da Terra. Aqui já adentramos um dos míticos labirintos da

filosofia de Éliphas Lévi. Isso será feito de forma mais completa em capítulo específico.

Na História da Magia temos uma narrativa inicial que discorre sobre a revelação dos

mistérios e de como os homens corromperam este saber. Interessante comparação é o

mito de Prometeu e de como sua profanação resultou em seu sofrimento terrível. Aqui, é

o livro apócrifo de Enoque, descendente de Adão, que segundo o Gênese é levado desta

1 As chaves são segredos que apenas os iniciados possuem e que são necessárias para desvendar determinados conhecimentos ocultos. São chamadas chaves porque têm a função de abrir as “portas seladas” dos mistérios.

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vida para outra sem morrer. O mestre faz seu primeiro paralelo – a história é uma

metáfora para a iniciação.

Ele cita outro mito que faz menção à tradição cabalística. Notemos que uma

mesma alegoria deve servir para diversas finalidades. Aqui, por exemplo, revelam como a

sabedoria passou pelas gerações e como o homem que a busca vivencia as diversas fases

de sua compreensão. A história se chama O livro da penitência de Adão, segundo consta

na página 49 da História da Magia. Éliphas Lévi a encontrou na Biblioteca do Arsenal na

França:

Adão teve dois filhos, Caim que representa a força brutal, Abel que representa a doçura inteligente. Eles não puderam entrar em acordo e morreram um pelo outro, por isso sua sucessão foi dada a um terceiro filho chamado Set. Ora, Set, que era justo, pode chegar até a entrada do jardim terrestre sem que o querubim o afugentasse com sua espada flamejante. Set viu então que a Árvore da Ciência e a Árvore da Vida se achavam reunidas, formando uma só. E o anjo lhe deu três grãos que continham toda a força vital desta Árvore. Quando Adão morreu, Set, seguindo as instruções do anjo, colocou os três grãos na boca de seu pai morto, como um penhor de vida eterna. Os ramos que saíram destes três grãos formaram a moita ardente, no meio da qual Deus revelou a Moisés seu nome eterno: uyua dta uyua.2 Moisés colheu um triplo ramo da moita sagrada e foi para ele a vara dos milagres. Esta vara, se bem que separada de sua raiz, não deixou de viver e de florir e foi assim conservada na Arca. O rei Davi plantou esse ramo vivo na montanha de Sião, e Salomão mais tarde tomou a madeira desta árvore no triplo tronco para fazer dela as duas colunas Jakin e Boaz, que estavam na entrada do templo; ele as revestiu de bronze e pôs o terceiro pedaço de madeira mística no frontal da porta principal. Era um talismã que impedia tudo o que era impuro de penetrar o templo, mas os levitas corrompidos arrancaram durante a noite esta barreira de suas iniqüidades e a arremessaram no fundo da piscina probática, enchendo-a de pedras. A partir desse momento o anjo de Deus agitou todos os anos as águas da piscina e lhes comunicou uma virtude milagrosa para evitar que homens procurassem lá a árvore de Salomão. No tempo de Jesus Cristo, limparam a piscina e os judeus achando este poste, inútil no pensar deles,

2 “O ser que é que foi e que será”.

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levaram-no da cidade e fizeram uma ponte sobre o regato de Cedron. Foi sobre esta ponte que Jesus passou depois de sua prisão noturna no Jardim das Oliveiras e foi do alto desta prancha que seus algozes o precipitaram para arrastá-lo na torrente e em sua precipitação em preparar de antemão o instrumento de suplício, eles levaram consigo a ponte que era uma tábua de três peças composta de três madeiras diferentes e com elas fizeram uma cruz.

Ao longo da narrativa, Éliphas Lévi vai discorrendo sobre alguns significados da lenda,

que é, na verdade, infinita de temas, como o são todos os mitos. Isso porque ele é feito da

mesma substância da poesia. Acreditamos que a única forma de revelar o mito é através

da metáfora que não cria, mas re-cria. Recriar é a prática do artista. Daí dizer que a magia

é uma arte fundamentada na linguagem e não em formulas matemáticas estéreis.

Podemos perceber que a História da Magia é na verdade uma história mágica da

humanidade, onde a explicação de seus acontecimentos secretos torna-se mais obscura

ainda, porém permeando de beleza todos os fatos. Tal qual a Poética, o mestre conta com

a força presente na arte e pode tornar o simples algo evidente. Em magia, esta

sensibilidade presente na alma de todas as coisas é chamada de Luz Astral . Essa luz ou

energia latente em todas as formas existe paralelamente a nossa realidade (plano astral) e

nos é percebida pelos órgãos sensitivos da alma. Podemos dizer que é uma outra visão,

outra audição, etc. Em qual poema não podemos ver essa realidade sensível que

deslumbra aqueles que o lêem e que incrivelmente pode ser transmitida sem que nada

além do poema seja tido? O que o mestre faz é de idêntica forma nessa reconstrução pela

metáfora.

Valendo-nos da narrativa anterior, encontramos liames que caminham ao longo do

relato e que dão, simbolicamente, corpo ao significado secreto da passagem. Mesmo que

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não saibamos a profundidade de seu sentido, ao reler a pequena história, podemos obter

algum sentido que a própria narrativa transmite. Ora, neste conto de autoria misteriosa,

por exemplo, compreendemos que, em uma de suas interpretações, a mesma madeira que

serviu a Set, terceiro filho de Adão, servira de objeto de suplício para Jesus Cristo. É o

elemento de união entre as gerações, bem utilizada por uns e de uso fatal para outros. É

como se o conhecimento primordial seguisse por cada um destes patriarcas da Cabala e

fosse morrer com o sacrifício de Jesus. Há outros componentes que o mestre cita, como

as sementes serem o dogma ternário3 e como Caim e Abel representarem as forças

contraditórias. Vale lembrar que essas forças não são negativas ante si, mas são diferentes

apenas. Conforme Heidegger, di-ferença é dimensão que mede o que lhe é próprio. Assim

sendo, algo que chega ao que é seu fundamento, aqui já traçando um paralelo com o

conhecimento ocultista, é algo que está repleto de pureza para revelar, e somente o que

está puro pode mostrar o vigor cósmico que penetra todas as coisas e as dá vida imortal.

Para cada trecho da alegoria podemos encontrar o seu significado maior e ainda fracioná-

la em pequenas outras partes cheias de seu significado interno. Segundo a tradição

ocultista, interpretando a alegoria podemos dizer que para cada um que obteve as frações

da árvore uma funcionalidade foi aplicada. Esta utilização corresponde exatamente para

cada aspecto da personalidade dos patriarcas. Moisés e o Tabernáculo e a vara de

milagres; Salomão e os colunas do Templo. Jakin, significa forte. Boaz, significa fraco.

Estas colunas, por sinal, são semelhantes a Abel e Caim. E por assim em diante o relato

segue.

3 O ternário faz referências diversas a princípios que envolvem a forma de concepção da realidade, segundo o ocultismo. Este ternário é o mesmo que está presente no mistério da Trindade cristã ou no Trimurt hindu. Ao mesmo tempo em que sua explicação está no segredo dos números 3, 4 e 7, conforme a Cabala, também é o todo da Essência das coisas.

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Na introdução da História da Magia, Éliphas Lévi diz “O verbo é a razão da

crença e nele está também a expressão da fé que vivifica a ciência. O verbo, λογοζ, é a

fonte da lógica.” O mestre afirma que o verbo, isto é, de certa forma, a linguagem, é onde

está a razão de todas as coisas. Razão aqui significa que é o ponto de medida entre os

antagonismos da existência. O verbo não pode ser brevemente conhecido como fala, ou

escrita, mas como a materialização da divindade no elemento organizacional do universo.

Tal como se fosse a forma mais elementar de elemento da existência. Éliphas Lévi fala de

ciência e crença, liberdade e autoridade, homem e mulher e outras aparentes contradições.

Para explicá-los, vale-se da metáfora das colunas do templo de Salomão. Ambas, Jakin e

Boaz, são importantes para a manutenção da abóbada do templo do grande rei, já que sem

a presença de uma delas, toda a construção ruiria. Esta atração/repulsão necessária ao

equilíbrio do cosmo ele chama de Analogia dos Contrários, onde a busca incessante

destas duas di-ferenças conduz ao que apenas o verbo e a ação resumem. A palavra é tão

importante em magia por isso. Falar é dar corpo ao verbo. Este verbo seguido de atos dá

magnitude à Criação. O homem, em ocultismo, é o pequeno criador. A primeira forma de

criação do homem é a linguagem enquanto pensamento. A segunda é a fala. A terceira é o

agir. Por isso, o homem deve ser limpo em pensamentos, palavras e ações, como diz a

Bíblia. Podemos encontrar uma grande semelhança com o que Platão promulgava de seus

pensamentos. O mundo das idéias e o mundo sensível se aproximam muito deste

conceito. Poderíamos dizer que é a transformação deste conceito que os neo-platônicos

legaram à Cabala.

Em um outro livro, Grande Arcano, o mestre submerge em mistério e faz de seus

capítulos apenas um oceano de metáforas muito difíceis de serem resolvidas. O grande

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arcano da magia é um elemento que não pode ser ensinado e é o limiar entre o

conhecimento meramente intelectual e a sabedoria verdadeira. Não queremos falar dele

aqui, a despeito do titulo do livro ser propriamente esse, já que esse trabalho não tem

como primeiro objetivo a iniciação, mas um breve diálogo entre a filosofia do mestre e a

Poética. Acaba por ser mais valioso nesse momento refletir sobre a construção da

metáfora do que iluminar os enigmas do ocultismo.

Quando falamos de metáfora em Éliphas Lévi, concluímos que tudo que disse

tinha um significado diferente da mera redação de seus escritos. Ele costumava evocar o

princípio de que toda a essência é trina, isto é, possui três revelações básicas sobre a sua

natureza. Provavelmente, seus argumentos também tinham a natureza semelhante. Nada é

propriamente o que aparenta ser em Éliphas Lévi. O trabalho de re-velar, isto é, velar de

novo, era responsabilidade máxima para aquele que temia que os conhecimentos fossem

levados às mãos dos iníquos. Trabalhou nisso semelhante aos alquimistas da idade média

que punham um mito dentro de outro mito e construíam um sistema metafórico que ao

invés de permitir que se apoderassem de sua verdade, transformavam-se em ferramentas

mais poderosas para levar aos que acreditavam ser a verdade única. Na página 235 de

Grande Arcano está escrito: “A chave do enigma da esfinge é Deus no homem e na

natureza. Aqueles que separam o homem de Deus, o separam da natureza, porque a

natureza é cheia de Deus e repele com horror o ateísmo.” A metáfora da esfinge é muito

presente em Éliphas Lévi. Para ele não se poderia imaginar o universo sem Deus, já que

ambas as coisas são uma somente. O que ele quis dizer na verdade é que a ordem do

cosmo apenas poderia ter sentida se algo maior, criador e perpétuo estiver além das

conjecturas humanas. O enigma da esfinge está mais profundo do que a charada de Édipo

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está na forma do corpo da criatura e na origem mítica que possui. Essa fera monstruosa é

feita de um corpo humano, um leão, um touro e uma águia. Para os antigos, estes animais

simbolizavam os elementos primordiais da natureza: leão – fogo, touro – terra, águia – ar,

homem – água. E o enigma: “qual animal que pela manhã tem quatro patas, a tarde tem

duas, e a noite tem três? A resposta: o homem. O mestre fala do três e o une ao quatro do

corpo da esfinge. Ela é a natureza que pode servir ao homem ou devorá-lo. O três é a

constituição mágica do homem: físico, mental e espiritual, ou, corpo, alma e espírito.

Segundo as tradições iniciáticas, todos os mitos têm seu significado oculto e nos dão a

sua metáfora para que de acordo com o grau de evolução de cada ser, este possa absorver

o que lhe é devido para não lhe fazer mal ou não lhe ser inócuo. Lembramos mais uma

vez do Mito da Caverna. Os homens livres da caverna, não podiam ser dados a ver a luz

plenamente para que não ficassem cegos.

Apesar de ser o maior dos três livros do mestre, Dogma e Ritual da Alta Magia

não se distancia muito no tocante ao uso da simbologia. Contudo, de tudo que escrevera

aquilo que está contido no Dogma é fundamentalmente mais profundo e mais complexo

no âmbito das ciências ocultas. Ele trata da parte mais sigilosa do conhecimento, o rito, e

mais do que nunca, o ocultou por detrás dos véus de Ísis. O ritual em si pressupõe a parte

da magia que lida com a prática e o contado com os seres preter-humanos. É no ritual

onde o verbo se faz carne. Este é o celebrar do grande ritual da vida! Quando o mago

desempenha o ritual ele se assemelha a Deus em sua criação, transformando esse Logos

em ação, fazendo ser aquilo que é. Interessante a semelhança do que diz o mestre com o

que Heidegger disse a respeito da palavra em sua obra A caminho da linguagem. Na

página 188 está escrito: “Λογοσ é tanto palavra para dizer como para o ser, ou seja, para

24

o fazer-se vigor do que é vigente. Dizer e ser , palavra e coisa, pertencem um ao outro

num modo velado, pouco pensado e até impensável.” Para ambos, o Logos parece ser

aquilo que é. Este verbo ser na terceira pessoa é o reflexo do que diz na primeira pessoa –

sou – isto é, identidade em um e indefinição no outro. O verbo como na sua forma é

remete a algo permanente, mas que não se refere a ninguém nem nada, ao contrário do

sou que identifica e situa. Enquanto que o home diz “sou”, a divindade diz “é” quando

cita a si mesma e ao universo. Heidegger diz que este pertencer um ao outro da palavra

com a coisa foi pouco pensado, ou até impensável, mas ousamos dizer que o é feito

sempre que o homem, em sua reflexão, se confronta com a razão de sua verdadeira

natureza.

25

2. Deus. A Natureza. O Homem.

Antes de definirmos no que se fundamenta a doutrina do mestre, faz-se necessário

conhecer o que vem a ser essa ciência oculta ou secreta. Historicamente, sempre houve

durante o desenvolvimento dos conhecimentos tradicionais dos povos, uma arte ou

sabedoria que não era dada a qualquer um obter, mas para penetrá-la seria preciso iniciar-

se em práticas e condutas singulares. Essa nova forma de direcionar e compreender a vida

lembrava em muito o ascetismo dos místicos, mas, salvo em determinadas circunstâncias,

não era esperado do aluno seguir o caminho do sacerdote. De certo, era um intermédio

entre o homem comum e o religioso. O budismo prevê “um caminho do meio” como

forma basilar para alcançar os primeiros rudimentos do saber. Este caminho equilibrado é

o que mantém o iniciado entre a transcendência do espiritual e a sedimentação da matéria.

Dessa forma, o conhecimento do ocultista se baseia nas possibilidades do homem comum

evoluir espiritualmente sem se desprender do mundo físico, material, no qual está

intimamente interligado.

A ciência oculta não se permite repousar em teorias puras como a física ou a

astronomia, mas precisa conhecer quase que empiricamente todos os seus processos de

obtenção de saber. Não é permitido penetrar o âmago da questão sem que se experimente

sua essência. Não há como conhecer o ioga sem praticá-lo, por exemplo. Outro aspecto

do ocultismo é o sincretismo, ou melhor, a síntese de todas as coisas. Esse conceito é

26

profundamente aplicado aos estudos das diversas filosofias, principalmente no que diz

respeito às religiões, a fim de se conhecer seu ponto de interseção.

O ocultismo de Éliphas Levi estabelece como alicerces fundamentais de sua

doutrina o conhecimento dos três planos definidores da estrutura de nosso mundo.

Quando nos referimos ao mundo, é necessário esclarecer o que esta expressão acolhe em

si. Para o mestre, tudo é real, isto é, tudo faz parte da realidade objetiva, já que para ele

não existe esta realidade subjetiva. Com isso podemos compreender que aquilo que

rotulamos de imaginário é a realidade em outros níveis de percepção. Estes níveis são

infinitos e se confundem em suas reflexões mais elevadas com a própria natureza daquilo

que chamamos divindade. Os sonhos, as idéias, enfim, a imaginação em si é a realidade

se manifestando de outra forma. Objetivamente todas as coisas poderiam infundir umas

sobre as outras, já que agora, a partir desta teoria, todas pertencem ao mesmo mundo.

Esta noção geral de mundo, apesar de parecer simplória, deve bastar apenas por

enquanto, a fim de introduzir uma breve compreensão do tema, visto que seria preciso

muito mais que um único trabalho para defini-la. Este mundo, composto de outros tantos

níveis, é semelhante ao Cosmo grego ou ao que os cientistas modernos chamam de

multiverso. Talvez neste nosso século, não seja difícil reconhecer que o invisível tem

alguma parte na grande ação estrutural das coisas, visto que teorias como as da física

nuclear incidem sobre a questão que já é debatida nos livros escolares. Assim, é

facilmente aceitável que o magnetismo exista e exerça sua ação sobre os elementos

físicos visíveis, mas ainda não é comum reconhecer que a mente aja sobre a matéria. A

despeito do que a medicina ou a psicologia acreditam ser a ação do pensamento sobre a

fisiologia individual, “o poder da mente” não ultrapassa a esfera individual em sua

27

eficácia. O ocultismo se difere da filosofia e da ciência modernas neste ponto. Vale

lembrar que o mestre não fez referência em nenhuma das três obras que citamos, a

respeito da vida em outras esferas, ou mesmo existência em outras galáxias.

O mundo é um plano de relações que se correspondem continuamente, como já

dissemos de outra forma, e que se prevalece de um equilíbrio que vai além da mera

química ou física dos elementos moleculares. Ele se eleva até as manifestações da alma,

dos ciclos de gerações, do destino das raças e da perfeição dos elementos divinos. Mesmo

que o próprio Deus seja a reunião de todos os outros três elementos em si – Homem,

Natureza, Deus - o ocultismo tem diversos significados para representá-lo e alguns deles

simbolizam desdobramentos quase que infinitos destes três pontos básicos.

Antes de prosseguirmos é necessário outro esclarecimento. O ocultismo é

paradoxal, pois tudo aquilo que diz é simbólico. Nada é apenas o que aparenta. Muitas

das explicações pareceram distorcidas ou contraditórias, mas fazem parte de um

mecanismo de revelação interior que a cada um que a busca deve construir.

Comecemos a nos referir o que é o Homem. Este homem é o ser prototípico, ideal,

reflexo do Deus verdadeiro na Natureza. Por sua vez, assim como o universo, ele é

composto por três planos diferentes que correspondem exatamente ao físico, ao astral e

ao espiritual. Entre o físico e o astral ainda podemos encontrar outras gradações que não

nos cabem acentuá-las neste momento, pois não comprometerão o entendimento

fundamental.

O plano físico é o plano natural ou material. É a realidade visível que se

manifesta. O Homem não é o corpo ou a matéria carnal, mas a relação que há entre os

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seus três planos de geração, tal qual o mundo que descrevemos anteriormente. Assim, a

alma ou os sentimentos são o Homem mais sutil, e o espírito o Homem absoluto.

Se é o Homem uma manifestação de todo o universo, tudo o que o compõe

também é como o universo que o cerca. Os sentidos humanos têm sua correspondência no

cosmo. A biologia humana é semelhante à natureza, com suas estações, seus ciclos, suas

erupções, sua vida e sua morte. Mas tem a natureza uma morte verdadeira? Mesmo no

deserto mais árido existe ausência de vida ou substância? E o ser humano, após a morte

do corpo encontra a destruição total ou a matéria de sua decomposição ainda permanece

como outras substâncias? Bem, aqui achamos a chave da imortalidade da matéria, quem o

duvidar reflita sobre aquilo que acontece com as cinzas de uma árvore queimada e o pó

que se forma da erosão das rochas e chegará ao homem na sepultura. Conforme a ciência

tradicional, fomos formados da matéria das estrelas que deixaram de existir há muito

tempo.

Os antigos costumavam compreender o Homem como uma forma de acúmulo de

diversos elementos, seja a água, o fogo, a madeira, o ar ou a água. Os orientais ainda

introduziram mais outro elemento secreto, contudo real, chamado de vazio, pois era

alguma coisa semelhante à essência, porém sem ter uma definição precisa ou absoluta. É

como se fosse o cimento que dá liga aos tijolos que formam uma casa, ou o código

genético que define o Homem como um ser humano. Tais teorias levaram aqueles

indivíduos a aceitarem que tudo o que pudesse influenciar a natureza, também o faria no

Homem e vice versa. Por isso, podemos entender como foi possível conceber algo como

a Astrologia ou a Alquimia. Hoje, é comum que os estudantes de ciências ocultas

chamem estes estudos de artes, visto que sua real compreensão depende de uma

29

interpretação pessoal e inspiração individual. Naqueles tempos, porém, eram ciências

lógicas.

Então o Homem possui sua constituição baseada em um equilíbrio semelhante ao

da Terra e para ser saudável depende de um clima ameno, luz solar, água, etc. Uma breve

reflexão nos faz compreender que tudo isso não é novidade alguma. A ecologia, uma

disciplina moderna, já prevê que o homem depende de uma relação salutar com a

natureza, e que adaptar-se ao meio é fundamental para a preservação. O “conhece a ti

mesmo” prevê este conhecimento, mas o transcende. Um dos primeiros arcanos da

iniciação é a capacidade de dominar as próprias faculdades com a finalidade de ser

senhor do que o cerca. A propósito, iniciação é um termo utilizado para referir-se ao

processo de auto-conhecimento que permite ao indivíduo adentrar os níveis mais

sigilosos do conhecimento. Esta iniciação é tanto externa como interna. Na primeira,

através de ritos e processos de admissão em uma determinada comunidade ou sociedade

secreta. Já para a segunda é uma evolução interior que permite ao discípulo, através da

reflexão, do estudo e da prática, descobrir sozinho os enigmas da sabedoria. A primeira

batalha do homem comum é contra si mesmo. No livro hindu chamado Bagavata Gita, é

contada a saga de Arjuna, príncipe que foi levado a combater a maior contenda de sua

vida. Neste dia, em meio às tropas e cavalheiros de seu exército, ele suplica ao condutor

de sua biga que o leve à diante de todos a fim de reconhecer quem seriam seus inimigos.

Qual não fora sua surpresa e decepção quando descobriu que eram seus entes mais

queridos, conhecidos parentes, amados primos e tios. Abalado pela revelação terrível,

desistiu de lutar e se retirou do campo de batalha. O seu cocheiro o seguiu e, na tentativa

de dissuadi-lo de abandonar a guerra, tratou de revigorá-lo. Esse reles condutor de biga

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revela-se muito mais do que a simplicidade mostra. Ele é Krishna, o deus maior, e o

revelador da sabedoria secreta ou iogas. Este poema é repleto de simbologias que fazem

menção ao caminho do discipulado rumo à iniciação. Para tal, ele não deve de abster-se a

combater seus vícios que durante muito tempo são como nossos melhores e inseparáveis

amigos. Apenas através deste estudo, os iogas, é que Arjuna encontra os fundamentos de

sua guerra e assim resolve, sem arrependimento, lutar. O homem comum que busca

encontrar o segredo da iniciação deve reformar-se e ser como Arjuna. Krishna aqui é a

voz da divindade que existe em todos nós. Muitos são os mitos que tratam desta busca

interior. Os ocultistas acreditam que toda a mitologia é baseada em alguma forma de

ensinamento alegórico que conduz a esta percepção. O protótipo do Homem verdadeiro é

o herói mitológico grego. Heracles, Teseu, Perseu são alguns exemplos. Os trabalhos ou

obras de suas vidas são os caminhos do homem comum que busca a iluminação. Não é

incomum que se peça aos aprendizes que interpretem muitos destes mitos e façam

correspondências com sua vida pessoal.

Aos vícios ou valores humanos foram associados os muitos deuses e deusas das

lendas de todo o mundo. No ocidente, os planetas do sistema solar foram comparados a

determinadas características da personalidade humana. Com isso, todo um grupo de

manifestações psicológicas pode ser apreendido e interpretado segundo estas teorias que

comparavam o humor humano à emanação planetária correspondente. A astrologia

moderna se baseia nesta teoria. É toda uma obra de avaliação interior, não exterior e não

tem nada que ver com energias espaciais ou cósmicas, antimatéria, gravidade, etc. Os sete

planetas arquetípicos acabaram por se tornar as sete virtudes e os sete pecados capitais

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que a Igreja Católica manteve vivos em sua doutrina. É neste ponto que as relações da

constituição humana se ligam à Natureza simbólica da qual falamos.

Júpiter, Saturno, Marte, Vênus, Mercúrio, Sol e a Lua, estes são os considerados

planetas pela astrologia. Todos eles circulam na gravidade de um centro secreto que tem

reflexo no homem comum. Os ocultistas dizem que as posições que estes planetas

configuram no céu no momento do nascimento de cada indivíduo revelam características

de sua personalidade. Ora, não fosse algo mais complexo, seria uma tolice desmedida.

Não é um absurdo que as estações influenciem sobre os seres vivos, se não fosse

realidade, o que se dizer das plantas que apenas crescem no verão ou dão seus frutos

apenas no meio do ano, ou em determinado mês especifico? Por que o ciclo menstrual

das mulheres é parecido com o ciclo lunar?

Tais perguntas, se não de todo retóricas, são apenas para salientar que algo do

calendário astrológico tem fundamento real. É como dizer que um poema evoca a poesia

simplesmente por obra da junção de suas estrofes, versos e palavras. Como toda arte, ele

aguarda em si na esperança de ter amparada a profusão de energia que emana e que no

regresso desta força, surja a compreensão ou a interpretação daquilo que diz.

Os elementos filosóficos – fogo, terra, ar, água – são elementos reais também,

estão na Natureza e no Homem. Em ocultismo, também servem para definir aspectos da

personalidade dos seres ou da condição na qual se encontram. Aquilo que os antigos

chamavam de humores permeava o ser humano e determinava a natureza de cada

indivíduo. Eram em quatro: fleuma, sangue, bílis e astrabile. Para Aristóteles, o equilíbrio

da physis dependia da proporcionalidade destes elementos. Note-se que são em quatro

assim como o são os elementos primordiais. A prevalência destes humores determinava a

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índole dos seres (sanguíneo, biliosos, fleumáticos ou melancólicos). Estes componentes,

como já dissemos, também existiam na Natureza e permeavam tudo com as quatro

qualidades fundamentais do Universo: quente, frio, úmido e seco. O fogo, por exemplo é

quente e seco. A água é fria e úmida. Esta medicina antiga estava mais próxima de uma

forma de arte que compreendesse a geração humana do que propriamente uma ciência,

visto que compreendia o Homem como algo natural, filho da Natureza.

A Natureza é a vida que se manifesta perpetuamente, é o segundo elemento mais

importante na hierarquia cósmica. É representada pelo símbolo da mulher, pois seus

atributos fazem referência à maternidade e à gestação. Tanto é que os mitos antigos a

descrevem como uma deusa violada por seu próprio filho, ou pelo cosmo vazio e

inexorável. Esta comparação é de vital importância para que possamos compreender o

que significa a Natureza no Homem e o Homem na Natureza. A Natureza é onde o poder

repousa para germinar e dar vida. Utilizemos, como nos ensina o mestre Éliphas Lévi, os

números para exemplificar a relação entre os três elementos do mundo. O zero é o vazio

absoluto. Está além do positivo ou negativo. É a estabilidade infecunda. Quando algo age,

proveniente deste zero, ele é uma reta contínua que segue descendendo até alcançar

alguma coisa que a receba e contenha. No universo, não há nada além de Deus e sua

existência. Tudo se resume a Ele. Ele sozinho é o zero, sua vontade pode ser o um. Este

Deus que podemos conceber com nossas mentes limitadas é referente a este um ativo e

único. Mas, o um e a idéia do um já concebem duas coisas. A idéia é a geração do um

essencial. Então, o dois é 1+1, ou seja, o um que se realiza duas vezes, mas em planos

diferentes. Na primeira realização ele é feito a partir de algo que não conhecemos, ele

apenas “é” para nós. Na segunda concepção ele está condensado em algo, ou seja, existe

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o um idéia e o um essência. Mas conceber uma idéia já predetermina que deve haver um

terceiro para realizar esta correspondência. Se o um é um traço em descendência, o dois é

um semicírculo com uma cava, ou apenas uma cava que recebe algo no meio de si. O três

é simplesmente a junção destes outros. Estas concepções visuais são fundamentadas nas

formas geométricas simples, como a reta, o triângulo, o círculo, o ponto e o quadrado.

Abaixo, o esquema lembra a relação do um, do dois e do três conforme estas figuras:

Lembremos que para a geometria antiga todas as formas planas surgem com o ponto. As

figuras acima são formadas por seguimentos de retas, isto é, aglomerações de pontos em

reta. A geometria filosófica imagina que tais figuras primitivas estão repletas de

significado. Oswald Wirth em seu livro O Simbolismo Hermético e sua Relação do a

Alquimia e a Franco Maçonaria declara que “A geometria deste genial filósofo (Platão)

não era com efeito, a de Euclides, ciência da medida e do espaço, com seus teoremas e

suas demonstrações. Tratava-se de outra geometria, da mais sutil espiritualidade, de

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uma arte mais que de uma ciência, arte que consistia em vincular as idéias às formas e

em ler os símbolos compostos por linhas como as figuras dos geômetras.”

No Gênese, temos o seguinte no capítulo 1 versículo 27: Criou, pois, Deus o

homem à sua imagem; à imagem de Deus: homem e mulher os criou.

No versículo vinte e nove, há a informação que fora esta a criação do homem no sexto

dia. É exatamente a soma dos valores numéricos anteriores. Não estamos nos valendo do

texto bíblico para evocar de forma alguma autoridade sobre nossas idéias, mas apenas nos

utilizamos dele para relembrar o quanto o simbolismo tem seu valor. Éliphas Lévi

acreditava que inicialmente as reflexões dos sábios se baseavam em concepções lógicas e

matemáticas. Ora este é um importante fator de pensamento da Cabala. Esta não separa as

palavras dos números e das idéias que representam. Daí a importância fundamental da

linguagem no ocultismo. Não seria possível compreender seus segredos sem

mergulharmos na linguagem universal que chamamos anteriormente Logos. Com o passar

do tempo, a superstição e a decadência fizeram com que os vulgos tomassem o símbolo

pela essência e surgiu a idolatria. As idéias matemáticas deram lugar à manifestação das

imagens, a constituição de ídolos e a antropoformização. Temos por exemplo a teogonia

dos egípcios.

Mas o Homem tem o germe da divindade, pois é fruto da descendência da sua

manifestação. Seu berço de gestação e evolução é a Natureza. Sendo ela sua mãe, traz em

si elementos que a compõe. O Homem possui seu anoitecer e seu amanhecer. Sua cabeça

está repleta de constelações. Os astros do sistema solar circundam seu peito. Os signos

zodiacais compõem seus membros e circulam em seu sangue. Uma máxima muito antiga

mostra como somos conectados em todos os níveis, inclusive naturais: O que está em

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cima é como o que está em baixo, o que está em baixo é como o que está em cima. Esta

frase está na Tábua de Esmeralda, livro escrito por Hermes Trismegisto, entregue a seu

filho como revelação de toda a sabedoria verdadeira. A obra de Hermes está contida no

chamado Corpus Hermeticum, como o nome já determina, é a grande organização de

todo o conhecimento do mestre lendário e que, alegoricamente, pode estar contido na

superfície de uma esmeralda, devido a sua simplicidade. Diz-se em ocultismo que o

grande segredo é de tão simplória compreensão que até uma criança o sabe, mas sua

obtenção é tão obscura que somente é dada aos espíritos iluminados adquiri-la. A

aparente contradição diz respeito ao caráter restaurador que a doutrina denota. Esta

renovação deve ocorrer, como ocorre visivelmente na Natureza, para que o individuo

esteja pronto para receber novos valores. Estes valores são lapidados através da própria

vontade do discípulo que aqui já conhece a verdadeira substância que os forma. O

iniciado reconstitui seu próprio corpo astral, pois é o senhor da Natureza e domina os

espíritos que nela são a vida.

Assim como o Homem está na Natureza, ambos estão em Deus. Quando a

filosofia oculta trata da divindade, sempre faz referência a vários níveis de percepção,

compreensão e sensibilidade que revelam a apreensão que o ser humano pode obter deste

plano absoluto. Em níveis mais complexos de reflexão, Deus é a forma das formas, o

Eterno, o Elemento Cósmico; Ele é tudo e todas as coisas. Por isso, uma definição única é

quase impossível, visto que sua natureza absoluta prevê uma gama infindável de

possibilidades. Este forma de divindade é apenas referida ao Espírito Absoluto do qual

todos fazemos parte. Em outro pólo, o Homem está como portador da fagulha do infinito,

o fragmento de Deus habitando no universo criado. A geometria sagrada simboliza esta

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chama divina na forma do triângulo com um vértice para cima – é o símbolo do fogo

hermético – essência da vida eterna e imortal.

Nele entendemos que o sentido da força ascendente é o destino da evolução. Por sua vez,

o triângulo para baixo é a força fecunda que decai e adentra a matéria para criar a vida e a

geração no universo.

Este Deus que fecunda a terra e dá luz ao Homem é o Deus cognoscível e pode ser

comparado a uma força motriz manifestável. Esta presença superior é encontrada em

vários textos alquímicos como a chama perfeita que renova e dá vida a todas as coisas. É

através dela que o discípulo faz a transmutação mais importante de sua existência.

Em um plano mais próximo ao Homem está a manifestação menos abstrata e sutil

da divindade. Ela se apresenta como formas divinas, manifestações sagradas que podem

ser associadas à idéia que os antigos tinham de deuses, anjos, etc. Estas gradações da

manifestação sagrada são apenas formas mais objetivas da energia divina e que estão

presentes no plano denso da matéria como forças naturais. Apesar de, contudo, ser

comum descaracterizarmos o pensamento como uma destas forças, estas formas divinas

também se manifestam nele. Na natureza, elas podem ser chamadas de elementais, por

exemplo, e no plano mental de mente cósmica. A mitologia criou seus romances baseados

em conceitos próximos a estes, fazendo surgirem reis, impérios, reinos e exércitos de

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seres naturais. Os chamados anjos ou guias espirituais estão em um plano mais inferior,

aproximado do Homem e fazem o intermédio entre ele e as potências divinas.

Assim, deste Deus Absoluto até seus enviados, existe uma decadência da

densidade da percepção, isto é, a reflexão torna-se mais profunda quando se atinge

esferas superiores, e menos labiríntica em níveis mais densos. Aquele Deus mais

complexo e abstrato é objeto das conjecturas mais profundas da filosofia, enquanto os

deuses menores, gênios, santos, entidades diversas são sempre compreendidos pelo mero

instrumento da fé. Isto se dá porque os planos mais materiais estão próximos ao nível do

astral, quer dizer, da dimensão dos sentidos. Por outro lado, a divindade plena está mais

elevada ao plano mental, inteligível. O todo é mente, o universo é mental. Estas são as

palavras do Caibalion, um livro de autoria desconhecida que relata os fundamentos do

cosmo tendo por princípio que todas as coisas são feitas a partir da mente. Para nós, da

mente cósmica.

Mas o sentir este Deus em quaisquer de suas manifestações não pode ser feito

através do mero intelecto. O contato sempre se dará no caminho do coração, isto é,

apenas com a passividade dos sentidos, da sensibilidade. A oração é um processo sagrado

de contato com estes planos divinos. Este estado de recepção somente se dá plenamente

quando alcançamos uma postura de isolamento e vazio, para que este algo possa nos

povoar a mente e os sentidos. Por isso que é aconselhado aos discípulos das religiões que

sempre mantenham seu coração e sua mente limpos de pensamentos ou desejos, apenas

exigindo que vibrem com o objetivo de construir uma atmosfera propícia para o

santificado.

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No cristianismo, este fogo sagrado que ascende do interior do Homem é a voz do

Cristo, que se revela e nos purifica de dentro para fora. Ele é o Homem-Deus, por isso é

chamado nas Escrituras de Redentor. Esta redenção nos levará para a glória de termos

Deus novamente vivo conosco, tal qual era no início.

No estudo do ocultismo, tais preceitos não podem ser conhecidos separadamente.

Esta relação sempre resultará da compreensão total da Grande Obra, como dizem os

alquimistas. Desta compreensão singular surgirá a relação totalizante do saber com o ser

que desembocará no grande oceano da iluminação. O budismo chama de Tatágata este

estado de paz e estabilidade que vem antes da iluminação ou budhi. Neste mar não há

revolta ou calmaria; não há revolução ou imobilidade; neste mar reina a plenitude

equilibrante do Homem que encontra Deus na Natureza.

Na doutrina de Éliphas Levi, como na Cabala judaica, este Deus revelado ao

homem tem atributos inalcançáveis. Não existe um nome para defini-lo, mas apenas a

junção de quatro letras que, soletradas, evocam sua presença. IOD, HE, VAU, HE –

juntas podemos chegar ao significado aproximado de JEOVÁ, como conhecido na idade

média, porém, com certeza é algo muito mais complexo. Este tetragrama reúne três letras

em particular, sendo que uma delas, he, se repete para encerrar a forma perfeita. Em

Cabala, segundo o mestre, iod é Adão, o primeiro, o elemento inicial. A letra iod

representa o falus e a parte construtora das outras letras. As outras letras fazem surgir

heve – Eva, a mulher, o feminino, o segundo ser humano. Assim, metaforicamente, Deus,

ou Jeová, é composto da união do homem e da mulher, sendo ele mesmo masculino e

feminino, como já havíamos visto. Vale lembrar que o nome Adão provém do hebraico e

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significa “terroso”, isto é, feito de terra. Mais uma vez, podemos vislumbrar a metáfora

que o mito evoca por meio da linguagem.

Outras interpretações omitem o Homem nesta trindade e acrescentam a

Arte. Isso porque o homem se vale da Arte para construir, sendo ele mesmo obra da

Natureza e de Deus. Diz um princípio maçônico: Deus cria; a Natureza gera; a Arte

transforma.

Não é incomum o mestre se referir a elementos contidos na mística cristã ou

hebraica, visto que sua inclinação e devoção a estes estudos foi, primorosamente, a

vanguarda de diversas reflexões posteriores, assim como fundamento inexorável de sua

espiritualidade. A poética de Éliphas Lévi contempla um intrincado mecanismo de

interpretação dos mitos e das alegorias da mitologia dos povos antigos. Este estudo, isto

é, esta capacidade de desvendar o segredo por trás da poesia é uma exigência deste nosso

trabalho e que merece ser muito bem detalhada.

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3. A revelação do mito e o mistério do invisível.

Alguns princípios devem ser esclarecidos antes de analisarmos o valor do mito

para o aprendizado. O mito é o véu de ocultamento de uma verdade e que apenas pode ser

descoberto por intermédio de algumas das chaves corretas. Então, como conhecer se

aquilo que se vê nas entrelinhas do drama mítico é realmente o mistério desvelado? É um

trabalho interior, dizem os instrutores, ouvir a voz interna conduz à certeza. Como saber o

que é realidade e o que é apenas uma falsa interpretação dos nossos olhos afetada pela

ilusão? O Mito da Caverna propõe: o que é sombra e o que é apenas reflexo para quem

não conhece a Verdade? Não é um trabalho fácil. É como tentar mostrar a luz aos

pássaros que dormem à noite, não faremos mais do que deixá-los mais cegos ainda. O

mito é um elemento de instrução para a revelação gradual e salutar da Verdade.

Para o mestre, porém, tudo é real. Tudo é fruto e resultante de algo. Todas as

coisas estão ligadas por uma cadeia de intervenção oculta. Este oculto é o invisível e o

mistério. Chama-se ocultismo porque trata de dois aspectos do conhecimento. O primeiro

é o caráter secreto dos ensinamentos. O segundo é a natureza invisível das forças mais

sutis do universo.

O trabalho de Éliphas Lévi tenta restabelecer de forma mais determinante e

significativa a relação perpétua entre o rito e o mito. Esta conexão nunca foi rompida,

mas existe de forma inconsciente na coletividade. Restaurar essa relação consciente é, de

certa forma, o objetivo das tradições esotéricas. É, contudo, por intermédio da Poética

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que tudo se consubstancia. Na arte, mito e rito não se separam estão unidos pelo

esplendor das imagens que, voláteis, multiplicam-se. O mito surge próprio do artista e o

rito, podemos assim dizer, é a absorção da obra de arte por parte daquele que a percebe.

Talvez esta seja uma das formas mais simples de ritualística. Quando o leitor retoma o

significado da obra ele inova sobre o mito particular do artista tornando-o público. Nas

palavras de Joseph Campbell: “O sonho é o mito privado. O mito é o sonho público.”

Quando esse sonho primordial que definiu todos os mitos que foram tornados públicos é

apreendido, então se alcança o que o mestre chama de ritual da alta magia. Magia é a

vigência no rito do mito primordial que permite à Natureza se manifestar conforme a

vontade do iniciado.

Éliphas Lévi permite-se aceitar que todos os mitos têm seu significado oculto e

que ao iniciado é dada a tarefa de desvelar estas metáforas para por fim compreender a

linguagem secreta da Verdade. O Éliphas Lévi diz que muitos relatos biográficos de

antigos mestres não passam de metafóricas mensagens sobre a trilha da iniciação. Ele

assim nos fala sobre um episódio da vida de Platão.

Platão viajava com Símias, próximo à Caria, e encontrou homens de Délios que

careciam de explicação a respeito de um oráculo de Apolo. Dizia ele que os males da

Grécia seriam extintos quando a pedra cúbica fosse dobrada. Estes délios tentaram dobrar

uma pedra cúbica que estava no templo de Apolo e a única coisa que conseguiram foi

criar um poliedro de vinte e cinco faces. Para retornar a forma natural da pedra, deveriam

dobrá-la por mais vinte e seis vezes, aumentando o volume primitivo da pedra. Platão,

então, mandou que os délios fossem ao matemático Eudóxio, afirmando que o oráculo os

havia apresentado um problema que carecia do estudo da geometria. Éliphas Lévi admitiu

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algumas hipóteses sobre o relato: 1º - Platão não sabia a resposta do enigma; 2° - Platão

sabia, mas não a revelou a seus discípulos, buscando que compreendessem por si sós; 3° -

Esta parábola havia sido criada pelo próprio filósofo. Pelo menos duas destas teorias

propõem que Platão conhecia o seu verdadeiro valor oculto, o que nos parece bem

razoável. Quando analisamos aquilo que Éliphas Lévi chama a Ciência dos Números

encontramos a sua raiz nos ensinamentos pitagóricos na Grécia. Para o autor, Pitágoras é

um mestre verdadeiro iniciado. Não é incomum encontrarmos nas interpretações que

Éliphas Lévi faz do mito os fundamentos dos números e sua relação com a Cabala. Para

compreendermos com mais clareza é necessário executar o mesmo exercício de

compreensão do mito se valendo do método do mestre.

Se nos lembrarmos do mito de Psique, saberemos que o poeta pode mostrar esse

significado tão profundamente quanto o filósofo. A bela jovem estava ameaçada pela

inveja da deusa da beleza, Afrodite, já que os homens haviam deixado de lado o seu culto

para contemplarem a beleza humana da mortal. Por vingança, a deusa envia seu filho,

Eros, para fazer com que a jovem se apaixonasse pela criatura mais repugnante que

existia. Porém, ao achegar-se de Psique, o deus sofre o golpe de sua própria arma fatal: se

apaixona pela doçura e beleza da mulher. Ocultando da mãe seu desejo, fez com que os

homens jamais pudessem amá-la de verdade, apenas se limitando a admirá-la. Dessa

forma suas irmãs se casaram e ela permanecia sozinha. Os pais a levam então ao oráculo

de Apolo que, já por intermédio de Eros, vaticinam que a jovem moça deve se entregar a

uma serpente, mais poderosa do que os deuses, no alto de uma montanha. Ela é então

conduzida para o terrível destino. No alto da montanha ela adormece e é transportada

pelo Zéfiro até um vale paradisíaco. Uma voz a conduz para um palácio e acaba por

43

declarar-se seu esposo. Muito feliz ela chama as irmãs para visitá-la que muito se

deslumbram e se invejam. Assim tramam desmascarar a voz do benfeitor anônimo, dando

um punhal e uma lâmpada para que durante a noite, no momento da visita de seu amado

obscuro, ela pudesse desvelar-lhe a verdadeira natureza. Nesse erro, um pouco de óleo

em incandescente queima Eros que se vai. “O amor não pode viver sem confiança”,

foram suas palavras de despedida. As provas de Psique foram árduas para se redimir dos

erros cometidos pela ingratidão. Passou em todas menos na de resistir ao desejo de

partilhar um pouco da beleza da morte. Seu prêmio fora o sono da morte. O belo mito nos

revela o simbolismo muito profundo da trajetória da alma em busca da perfeição e da

visão da Verdade.

Há um significado presente no simbolismo da alma que busca o matrimônio.

Poderíamos dizer que é mais que uma união é uma procura que se realiza apenas no nível

mais elevado, isto é, quando lhe é permitido, à Psique, ser como os deuses. Não seria esta

proximidade de que nos fala Heidegger quando noz diz que pensar é estar na essência

daquilo que é pensado, e que para tal devemos ser na coisa pensada? É introduzir-se na

profundeza do ente e ultrapassá-la até seu cerne. Psique foi às profundezas do Inferno

para realizar a purificação deste que chamaremos retorno. Como o mito que relata a

decadência da alma que perde as suas asas e decai para a vida, assim é com a busca pelo

pensamento puro e essencial. No momento nos ateremos à alma e seu significado

misterioso. A alma deve buscar a pureza, a sabedoria que está nas formas puras e para tal

deve se livrar dos veículos físicos de percepção. Principalmente a visão, que é o mais

enganoso de todos, pois é através dela que o homem constrói o mundo ilusório e

imperfeito. Nossa realidade é baseada no que vemos e constatamos a partir dessa

44

impressão. As paixões surgem dessa interpretação equivocada do mundo. Porém, é

interessante observar que a primeira busca da alma é por Eros, o deus da paixão. Então,

podemos afirmar que a primeira busca do homem é para saciar seus instintos e que,

apesar do que se imagina, a busca por Eros conduz em outro plano à Sabedoria. É uma

busca gradativa que deve se realizar desvendando-se os véus que nos ocultam os olhos.

Mas Sócrates diz que se o raciocínio não se afasta mais e mais do corpo, isto é, se não

aceitarmos o mistério e confiarmos que poderemos contemplar a essência sem os olhos

físicos, tudo se perde no óleo incandescente da dúvida. E a alma se afasta mais uma vez

para se redimir. Isso até a perfeição.

Mas Psique tem em si a chama da eternidade. Segue em seu desejo de reencontrar

o amado misterioso, filho da Beleza, deus da Paixão. Na morte, que é retratada pela

decadência que a conduz a duras provações, se liberta do corpo, reduto de desconfianças

e receios, para purificar-se nas profundezas do Inferno. Estranha realidade se desvela

agora. Neste drama imortal, onde se embatem a alma e o corpo, a serenidade tende a

vencer os elementos voláteis da physis, que mesmo fixos se mantêm constantemente em

mutação. Estes na lenda são representados pelos trabalhos terríveis que Afrodite lhe

ordena. Trabalho vem de sofrimento, e quanto trabalham os heróis gregos. Trabalho,

sofrimento, drama e ação. É o círculo vital de relações da vida humana! A alma percorre

estes caminhos e não se rebela nunca, sofre incondicionalmente até a purificação plena. É

o reencontro derradeiro. A aproximação do Ser Eterno da Alma na imortalidade.

Mas por que esta trajetória pelo Hades para encontrar a iluminação? É este o

caminho necessário? Um barqueiro conduz as almas à profundeza deste reino de sombra

e morte. O rio é símbolo da eternidade entre os hindus. É o que muda em sua

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permanência interior. Limite entre duas margens paralelas, como a vida e a morte. Mas o

Hades está repleto de sub-reinos. Está longe de ser um simplório lugar de descanso e

silêncio. Aprofundemo-nos na compreensão do mito de Psique. A todos os homens é

dado o direito de regenerar-se. A humanidade descende de algo maior e mais sublime,

como já dissemos, provemos de um lampejo do divino. Mas nosso estado atual é de

degradação e faz-se necessário restabelecermos esta integridade primordial. A viagem

feita por Psique desde o mundo dos homens, indo ao Inferno para depois ascender ao

Reino dos deuses é exatamente isso, como diz o mestre. É semelhante a uma fórmula

alquímica que reproduz os estágios de morte e renascimento. Os alquimistas antigos a

chamam de V.I.T.R.I.O.L 4. O primeiro ritual que o aprendiz é lavado a desempenhar é o

da morte. A semente precisa morrer para germinar e dar nova vida. Este ato de morte e

renascimento está profundamente ligado ao elemento terra. Os maçons dizem que o

trabalho consiste em desbastar a pedra bruta para formar a pedra cúbica. Isso significa,

despir-se de sua personalidade e regenerar-se livrando-se dos defeitos. Somente através

desde trabalho de “retirar as imperfeições” é que se pode encontrar a verdadeira natureza

do homem.

Porém, precisamos indagar: por que Tétis não mergulhou Aquiles inteiramente

nos águas na invulnerabilidade, mas deixou o calcanhar de fora, como de previsse o que

iria ocorrer? É o limite do desconhecido que clama sempre o seu quinhão no destino.

Nada é pleno ou absoluto neste mundo, de outra forma os deuses não precisariam de um

monte que os elevasse para além da terra dos mortais. Por que no auge de sua soberania,

Édipo foi apanhado pela fatalidade e cegou-se para exigir a honra? A visão o enganara,

4 Visita Interiorem Terrae, Rectificandoque, Invenies Occultum Lapidem. “Visita o interior da Terra, retificando, encontra a pedra oculta.”

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necessitava, assim como Tirésias, de uma outra vista – terceira – que o levasse à

compreensão, mesmo que esse compreender fosse o fim. Qual será então a chave para a

Sabedoria? Conhecer as coisas como são em sua essência e aproximar-se delas para se

tornar uno a elas. Mas não nos esqueçamos que algo apenas se aproxima daquilo que tem

parte, isto é, do que é próprio de si. Então como pode o homem conduzir-se por este saber

se não for próprio das idéias daquilo que deseja saber? Contudo acaba por surgir uma

outra questão inevitável e contundente. E ela dirá se é possível ao homem compreender o

mundo que o cerca ou se é plenamente ignorante de todas as coisas. Têm os humanos

proximidade com todas as idéias que compõem a physis? Ser sábio seria conduzir a si

mesmo onde estão apenas os deuses. Os deuses são como os heróis. Os heróis se tornam

eternos com as suas ações. Ulisses, Aquiles, Jasão, Agammenon, Hércules, e muitos

outros se perpetuaram pela história. Os deuses nascem eternos. A história do Cosmos é o

atestado de sua perpetuidade.

Compreender assim passa a ser mais que um esforço poético e torna-se algo

arbitrário quando se pensa o mito como algo que ensina a religiosidade. Esta é a diferença

clara entre os mitos das religiões vigentes e os da antiguidade. Na chamada síntese

universal que o mestre teoriza isto é possível porque esta revelação do mito se dá com

bases sólidas de uma doutrina oculta sob a estrutura de todas as culturas e que o iniciado,

com as chaves certas, pode restaurar sem problemas.

Se existe um poderoso mito entre ainda vivente na filosofia do ocultismo é o de

Hermes Trismegisto. Mas quem este de quem nos fala o mestre? E seu fabuloso livro,

cujos ensinamentos são tão profundos e simples que cabem na superfície de uma

esmeralda soberbamente escolhida? Orfeu, Ulisses, Hércules, Arjuna, Sigfried, Rama, e

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muitos outros heróis e deuses que em sua epopéia elucidam os caminhos sagrados da luz.

Em particular, Hermes é uma personagem recorrente nos textos de filosofia. Hermetismo

é um segmento de estudo cujo significado secreto é velado com as mais secretas e

obscuras chaves. Na poesia hermética, o significado dos versos é a mais pura e sincera

introspecção. Há poucas histórias sobre “o três vezes sábio” Hermes. Ele pertence ao

Oriente e ao Ocidente. É um rei soberano cujas virtudes o elevaram ao patamar de um

deus. O Tarot, este livro fantástico de mistério, possui uma chave em seus arcanos

maiores que simboliza a supremacia deste hierofante, a qual o mestre define da seguinte

forma:

Hieróglifo, um carro cúbico de quatro colunas, com uma coberta de pano azul e estrelado. No carro entre as quatro colunas, um triunfador coroado de um círculo sobre o qual se elevam e irradiam três pentagramas de ouro. O triunfador tem na sua couraça três esquadros superpostos; tem nos ombros o urim e o thumim de suprema dignidade de santificador, figurados pelos dois crescentes da lua em Gedulah e Geburah; tem na mão um cetro remontado por um globo, um quadrado e um triângulo; a sua atitude é altiva e tranqüila. Ao carro está atrelada uma dupla esfinge ou duas esfinges que se prendem pelo baixo-ventre; tiram uma de um lado e a outra do outro; mas uma delas volta a cabeça, e elas olham para o mesmo lado. A esfinge que volta a cabeça é a preta, a outra é branca. No quadrado que constitui a frente do carro, vê-se lingham indiano remontado pela esfera volante dos Egípcios. Este hieróglifo, cuja figura exata damos aqui, é o mais belo, talvez, e o mais completo de todos os que compõem a clavícula do Tarot.

Esta representação de Hermes é um resumo de toda uma concepção e uma

filosofia. A letra hebraica que acompanha esta carta, zain, representa ideograficamente,

um gládio, uma espada ou um relâmpago divino. É a arma da vitória, símbolo dos reis e

poder dos sacerdotes. Hermes é um rei-deus; um sacerdote real. Todos os mitos antigos

se referem ao nobre que exerce poderes de um deus, ou que recebe as dádivas celestes

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para exercer a soberania dos escolhidos. A existência dos heróis é um livro de

aprendizado para os iniciados.

O Mito de Thot, como nos conta Platão, é uma metáfora para a criação da grande

linguagem cósmica do universo. Outros mitos também representam este estado primitivo,

pré-cataclísmico, de outras formas. Os assírios associavam o grande nada inicial ao

dragão negro Thiamat, de cuja escuridão surgiu todas as coisas existentes. Os ocultistas

assimilaram esta idéia com a idéia do número 0, ou o porvir. A Gigantomaquia dos Titãs

é um exemplo de como o mundo visível surge do invisível, ou o caos inicial dá origem ao

reino dos deuses conhecidos. Metaforicamente, após a derrota dos gigantes, Cronos foi

destruído e com isso o tempo foi simbolicamente morto. O fim do tempo é na verdade o

inicio de um outro, mais denso e mais ordenado. Thot se apresenta a Amon-Rá com um

propósito: dividir a carga da memória. Memória e tempo estão interligados por laços

objetivos de perpetuidade. Ao criar a escrita, Thot libertou os seres da responsabilidade

de sempre manter as muralhas da memória inabaláveis. Mas o reflexo disso seria a

gradual substância da memória. Os homens recorreriam à escrita, ou linguagem, para

sempre. A referência desta metáfora não é a mesma dos aspectos cosmogônicos presentes

nos demais mitos mencionados. Quando Platão cita a escrita ele introduz um novo modo

de pensar o surgimento da humanidade tal como ela é. Para Éliphas Lévi, esta é a língua

das línguas, o fator determinante da raça humana. É a chama roubada por Prometeu. Não

foi dado em doação como um presente, mas fora adquirido por meios escusos. A escrita

de Thot é algo semelhante. Apesar de ser dada aos homens, não o foi por unanimidade

entre os deuses do Egito. A conseqüência do que ocorreria é semelhante ao drama de

Pandora. O mestre acredita que além desta explicação, este mito se remete a degeneração

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dos povos antigos que perderam sua magnitude devido à corrupção generalizada. Para os

ocultistas, isso ocorreu com os atlantes e os lemurianos.

Hermes Trimegisto.

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Platão cita um cataclismo. O mestre acredita em punição. Língua humana e sua escrita é

uma metáfora para esta linguagem cósmica inicial. É a materialização da idéia. Foi uma

forma de refletir no verbo humano a obra universal. Aqui reina mais um mistério.

Um outro mito fundamental para o ocultismo é o de Hércules. Sua jornada reflete

a do Homem de Desejo5 em busca do ideal de transformação. Muitas são as figuras

postas em reflexão neste mito: desde o esmagamento das duas serpentes no berço, à

entrega de sua vida na pira em chamas. Faremos uma observação a respeito, dada a

grande atenção do mestre para a compreensão desta metáfora.

Os trabalhos de Hércules, considerando os doze principais, fazem referência aos

doze signos zodiacais presentes no firmamento celeste. Cada casa zodiacal representa a

ação de um deus em particular e seu aspecto ideológico. As doze casas são divididas em

quatro grandes grupos de três signos que pertencem aos quatro pontos cardeais. Esse é o

mundo simbólico da lenda. Ao mesmo tempo em que se refere aos móbiles do céu, o

reflexo destes signos se dá no dia humano, dividido em dois momentos: o diurno e o

noturno. Estes quatro grupos de signos estão interligados aos quatro elementos filosóficos

– fogo, terra, ar e água – e os animais que os representam simbolizam bem isso. Notemos

que em seus trabalhos Hércules também enfrentou criaturas que faziam menção a estes

elementos, como o Leão e a Hidra. O zodíaco representa a escalada do homem rumo à

elevação espiritual. Elevar-se sobre o fogo é dominar o leão terrível que ataca com fúria.

Para abafar o fogo deve-se sufocá-lo na caverna da reclusão, estrangulando-o com a força

de sua vontade. E assim por diante, pedra após pedra, a vitória deve ser obtida pela ação

da vontade individual.

5 Aquele que procura a iniciação.

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Hércules e a Hidra. Representação do conflito do Homem e das forças provenientes do elemento água.

52

Para o mestre, tudo era simbólico, até os relatos da Bíblia, cuja significação está

profundamente relacionada com o estudo da Cabala. Em hebraico, o nome de Jesus é

formado pelo nome de Deus hvhy (Iod-He-Vau-He) mais a letra w (shim) no meio. Esta

letra é, ideograficamente, uma chama que arde com três labaredas erguidas. No

tetragrama divino hvhy é inserida a chama da criação, surgindo o redentor – hvwhy. O

valor numérico muda de quatro (número da essência) para cinco (número da realização).

Por isso os ocultistas, principalmente Éliphas Lévi, fazerem referência ao pentagrama

como figura de poder.

6

6 Este pentagrama é uma concepção de Éliphas Lévi. Ele representa a síntese de diversos fundamentos cabalísticos. O nome de Deus no Tetragramaton; as armas do mago, representadas pelos quatro objetos; os signos planetários; os números ternários; e outros mais. É, para o mestre, um pantáculo completo.

53

A estrela lembra um homem completo com os braços abertos e a cabeça para

cima. As superstições e as aberrações do conhecimento dizem que a estrela ao contrário

simboliza um bode, elemento do mal, da feitiçaria e do sacrifício. Tal prática se refere a

uma profanação do templo, não pertence à alta magia.

Tudo é interligado no ocultismo. Éliphas Lévi bem contribuiu para isso.

Perpetuando os antigos mestres, ele corrigiu para seu tempo os signos e nunca permitiu

que sua ciência vulgarizasse o conhecimento tradicional.

Podemos concluir que no mestre é impossível falar em mito sem imaginar o rito

que ele vem a evocar. Este ritual advindo da compreensão da metáfora é a parte prática

do estudo do ocultismo. Ritual é algo muito mais complexo do que podemos imaginar.

Mesmo as pequenas práticas do cotidiano, que muitos chamam de rituais diários, são

fruto de um conjunto de crenças que desenvolvemos durante a constituição de nossa

personalidade. A diferença substancial é que os mitos que deram origem aos rituais da

antiguidade surgiram do fantástico. Este é o tema fundamental da mitologia. O que a

psicologia moderna chama de ritual muitas vezes tem base superficial e explicação

meramente científica. A fonte do mito é o desconhecido que se manifesta. Outra questão

é que geralmente o rito necessita que o executor desempenhe seus atos tal qual uma

encenação que remete a princípios transcendentais. É a dramatização do fantástico ou do

invisível. No rito, o executor representa situação que estão intimamente conectadas a

histórias antigas com repercussão na realidade objetiva. Estes rituais não se restringem

apenas a tradições religiosas, mas sociais como um todo. Quando alguém situa o ato de

escovar os dentes de manhã como um ritual, ele esquece que sua correspondência se dá

ao fato de que, cientificamente, é uma prática saudável, além de manter a aparência bucal

54

mais aprazível. Não é um ato de evocação do oculto. Não representa uma dramatização.

A natureza do ritual modifica-se conforme a interpretação do mito. Sua suposta

arbitrariedade se dá em relação a isso.

Vale lembrar que para o ocultismo, tudo o mais deve estar em consonância com a

harmonia do universo, isto é, a constante representação do invisível deve permear o

mundo que nos cerca. Por isso os templos seriam monumentos de representação do mito,

como marcos simbólicos de significado maior. Para os maçons, a construção de um Loja

deve seguir os mais profundos regimentos a fim de que simbolizem com exatidão os

mistérios velados.

Na figura da esquerda, temos um ritual de iniciação maçônico, onde um profano, como

são chamados os que suplicam os ensinamentos da sociedade, recebe a iniciação

simbólica. Na direita, o artista espanhol Plácido Domingo na interpretação de Parsival.

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Ambos são mistérios dramatizados. Percebamos que as naturezas das encenações são

diversas, mas ambas evocam o passado, os atos secretos de um mundo invisível, distante

ou antepassado. O mesmo se passa com a missa católica ou com os rituais de candomblé.

Quando Éliphas Lévi desvenda um mito, ele se esforça por esmiuçá-lo, analisando

cada parte o compõe, sintetizando suas referências na doutrina secreta. Para que o

iniciado realiza os rituais secretos ele precisa estar plenamente consciente das

conseqüências de sua manifestação e nunca promulgá-lo de forma leviana ou sem

objetivo real. O ritual é a manifestação da obra dos deuses. Com o mesmo furor poético

que uma obra de arte é composta, assim se dá a realização do ritual verdadeiro. Para isso,

o é preciso conhecer os segredos e as ferramentas corretas. Éliphas Lévi diz que estão

todos na Cabala e é preciso particularizar seu estudo a fim de melhor compreende-lo.

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4. O ocultismo da Cabala e a Ciência dos Números.

A Cabala não surgiu com o ocultismo, mas sempre foi um dos estudos praticados

nos círculos mais sigilosos do povo judeu. Sua origem se confunde com a própria historia

dos arcanos da religião judaica. Para o mestre, ela surgira entre os caldeus que os

transmitiram aos egípcios e por fim aos sábios hebreus na época do Cativeiro.

Não há instruções cabais sobre como conduzir sua investigação ou a forma de

transmiti-la aos novos estudantes, há, porém, um consenso quanto aos escritos que fazem

parte de seu corpus, mesmo que sua autoria não possa ser plenamente estabelecida. Os

fundamentos estão contidos em alguns livros: Sepher Yetzirah, Sepher Zohar, Torah e o

Talmude. Os dois primeiros são livros pouco conhecidos, enquanto os dois seguintes

fazem parte do conhecimento tradicional da religião. Os místicos modernos uniram ao

conhecimento da Cabala hebraica partes do texto bíblico, principalmente aquelas que

eram comuns a ambas as religiões. Há muitos outros que são muito pouco conhecidos ou

até mesmo lendários. Um dos mestres lendários é Shimeon Ben Johay, figura

fundamental dos primórdios do estudo secreto. Para os cabalistas hebreus é comparado

aos patriarcas Abrão e Jacó.

O ocultismo francês do século XIX atribui elementos diferentes não originários à

Cabala, que suscitaram diversas discussões sobre a verdadeira ligação que possuiriam

com sua essência. Éliphas Lévi foi um daqueles que reconstruíram a Cabala, por assim

dizer. A ela foram acrescidos elementos de hermetismo, cristianismo, zoroastrismo,

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alquimia, magia, sufismo, gnosticismo, etc. Isto ocorreu porque havia um enorme esforço

empreendido para que fosse possível erigir uma grande síntese de todos os

conhecimentos religiosos e místicos, assim como sociais e artísticos. O mestre foi um

destes grandes trabalhadores e aqui traremos uma breve reflexão sobre o que concebeu

sobre a santidade da Cabala.

Faz-se necessário que possamos determinar a importância da linguagem na Cabala

enquanto construtora do mundo. Sendo uma língua baseada em ideogramas, o hebraico

sugere ao pensamento místico que todas as coisas estão relacionadas por um significado

silencioso e hieroglífico. Cada coisa ao ser cognominada recebe algo como uma

mitologia particular, de forma que seu nome possa ser explicado pelas figuras que as

letras representam. Por exemplo, a letra B do nosso alfabeto latino. Segundo a explicação

de Éliphas Lévi, esta letra corresponde numericamente ao 2. Em árabe e mauritânico, por

exemplo, este número recebe a mesma forma assemelhada ao dois indo-arábico.

Reparemos que ele é, simplesmente, um meio círculo e uma reta horizontal. É a

representação de uma ave – cisne, ganso, pato – que voa e nada. É, na Cabala um signo

do ar e da água ao mesmo tempo. A letra hebraica correspondente é o Beth b, um

barco com as velas erguidas ao vento. Então ao enunciar alguma palavra que possua esta

letra, estaríamos evocando todo esse arcabouço hieroglífico.

Precisamos estabelecer todos os ramos de estudo que fazem parte da Cabala e que

nos dias atuais são tidas como práticas ocultas diferentes. Falamos da Teurgia, da

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Gematria, Temuria, da magia cerimonial. A Teurgia, apesar de não ter surgido com a

Cabala é uma forma de evocação que trabalha com diversas práticas e mecanismos

próprios da mística judaica, como a evocação de seres divinos (anjos e gênios) por

virtude de fórmulas recitadas e nomes secretos. Obviamente a complexidade é

extremamente maior, mas fundamentalmente, sua mecânica se assemelha a isso. A

Gematria e a Temuria são estudos dos nomes e dos anagramas que surgem em um texto

ou sentença. Hoje é comum o termo Numerologia para referir-se a esta forma de estudo.

A Numerologia trabalha com parte dos fundamentos que existem na Gematria e na

Temuria sendo que desconectados do corpo geral que seria a Cabala.

Não há como compreender os rudimentos cabalísticos sem conhecer as

correspondências que existem entre os números e as letras do alfabeto hebraico. Deles

surge o mundo secreto da santa ciência. O alfabeto é composto por 22 letras recebendo

cada uma um valor numérico em escala unitária, decimal e milesimal. Estas letras são

divididas em três grupos: as três mães, as sete duplas e as doze simples. Diz-se que as três

mães deram origem às outras. As sete duplas são assim designadas, pois possuem duas

formas de serem pronunciadas. Outro estudo simpático à Cabala é a Astrologia. Contudo,

a diferença entre a Astrologia Judiciária, como é conhecida, e a cabalística tornaram-se

tão acentuadas que quase passaram a ser estudos diferentes. Os cabalistas uniram o

estudo desta astrologia ao estudo da geração das letras e fizeram surgir o fundamento do

universo. Este sistema pré-ordenado é julgado perfeito e perpétuo, podendo qualquer

homem através dele alcançar a conclusão de qualquer questão que surja.

O mestre diz no capítulo dez de seu Dogma e Ritual da Alta Magia, de onde

vieram os fundamentos históricos do surgimento desta ciência:

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Todas as religiões conservaram a lembrança de um livro primitivo escrito em figuras pelos sábios dos primeiros séculos do mundo, e cujos símbolos, simplificados e vulgarizados mais tarde, forneceram à Escritura suas letras, ao Verbo seus caracteres, à Filosofia oculta seus signos misteriosos e seus pentáculos. Este livro, atribuído a Enoque, sétimo senhor do mundo depois de Adão, pelos hebreus; a Hermes Trismegisto pelos egípcios; a Cadmo, o misterioso fundador da Cidade Santa, pelos gregos, - este livro era o resumo simbólico da tradição primitiva, chamada, depois, Cabala, de uma palavra hebraica que é equivalente a tradição.

Outro mecanismo muito importante da composição da Cabala são as chamadas

Sephiroth. Estas unidades comportam em si a essência das idéias formadoras de tudo

aquilo que há no mundo. São conceitos profundamente frutíferos que juntamente com os

valores numéricos das letras constroem a fabulosa Árvore da Vida. Nesta árvore os dez

frutos formam relações entre si – tal qual caminhos de correspondência – e sua “seiva”

corre abundante de saber. Esta Árvore, contudo, não faz parte do corpo da Cabala

hebraica, mas foi erigida e introduzida na idade média. As sephira seguem a gradação de

energia emanada da divindade rumo a terra-manifestação. São elas:

1. Kether – A Coroa, o poder equilibrante.

2. Hochmah – A Sabedoria, equilibrada na sua ordem imutável pela iniciativa da

Inteligência.

3. Binah – A Inteligência ativa, equilibrada pela Sabedoria.

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4. Chesed ou Gedulah – A Misericórdia, segunda concepção da Sabedoria, sempre

benévola, porque é forte.

5. Geburah – O Rigor necessitado pela própria Sabedoria e pela Bondade. Sofrer o

Mal é impedir o Bem.

6. Tiphereth – A Beleza, concepção luminosa do equilíbrio nas formas, o

intermediário entre a coroa e o reino, o principio mediador entre o criador e a

criação.

7. Netsah – A vitória, isto é, o triunfo eterno da inteligência e da justiça.

8. Hod – A Eternidade das vitórias do espírito sobre a matéria, do ativo sobre o

passivo, da vida sobre a morte.

9. Iesod – O Fundamento, isto é, a base de toda crença e de toda verdade. É o

Absoluto, segundo o mestre.

10. Malchut ou Malkut – O Reino, é o universo, é a criação inteira, a obra e o espelho

de Deus, a prova da razão suprema, a conseqüência formal que nos força a

remontar às premissas virtuais, o enigma cuja palavra é Deus, isto é: razão

suprema e absoluta.

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Estas são as definições tais como Éliphas Levi as apresenta. São apenas exemplos daquilo

que podem ser em sua íntegra. No esquema de diagrama, podemos notar que a hierarquia

de sua posição segue a seqüência significativa de 1, 2, 2,1,2,1,1. A figura a seguir mostra

a forma como os ocultistas do século XIX a conceberam:

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Daath é uma sephira invisível na Árvore, ou seja, ela se encontra no limiar entre o

conhecimento humano e o divino, entre realidade mortal e a imortal. Na lenda, se Binah é

a mãe, Maria, Eva, Daath é Maria Madalena, a mulher do mundo, Lilith a primeira esposa

de Adão que lhe deu o saber, mas não a doçura da maternidade. É dito que aqui, em

Daath, jaz o verdadeiro inferno, pois é deste fogo que surge a criação. É a chama da

liberdade que queima aos bons e maus, tal qual o sol.

A Árvore é dividida em três colunas que representam o masculino, o feminino e o

neutro, ou a união entre os dois. Em Kether, Tipheret, Yesod e Malkhut encontramos

sínteses em planos de manifestação diferentes, todas interligadas entre si. Este eixo é o

que equilibra todas as faculdades laterais, semelhante à balança da justiça. Entre a

severidade e a misericórdia, a vitória e a eternidade, existe a beleza, pois como diz Platão,

não há como florescer o Bem sem o Belo. A verdadeira vitória é eterna e severidade com

amor é o alvorecer da justiça. Dentre outros significados, Tipheret representa Jesus

Cristo, o sol e o centro do firmamento. Das sephirot inferiores é necessário passar através

desta para alcançar as superiores. “Ninguém vem ao Pai senão por mim”, está escrito. As

primeiras formas geométricas são triângulos que têm sua base se tocando e seu cume

invertido. Se os sobrepusermos teremos a Estrela de Davi, ou como Éliphas Lévi o

nomeia, O Selo de Salomão . Como já havíamos nos referido, este selo

é o da harmonia divina, a luz espiritual que resume a Grande Obra no verbo humano.

Éliphas Lévi introduz, além deste formato e classificação, outras correspondências

que antes não existiam na Árvore. Para o mestre, este plano de revelação contém todos os

63

elementos do universo, como se fossem princípios absolutos da manifestação sagrada da

criação. Notemos que elas se comunicam através de linhas que formam a união de

determinadas idéias. Assim, a coroa está ligada à beleza, assim como a severidade e a

compaixão estão ligadas entre si, por exemplo. São vinte ligações que formulam a

máquina do conhecimento cabalístico. Às dez sephirots podemos unir a idéia das vinte e

duas letras do alfabeto hebraico, tendo assim os chamados Trinta e dois Caminhos do

Conhecimento presentes na Árvore. Os ocultistas encontraram semelhança entre este

alfabeto e um outro livro enigmático, constituído de vinte e duas lâminas com desenhos

característicos, cuja origem é tão misteriosa quanta a própria Cabala. Esta obra, que reúne

ao mesmo tempo uma arte singular em suas figuras e uma linguagem metafórica perdida,

é ainda hoje instrumento de adivinhação na cartomancia. Trata-se do famoso Tarot que

surgiu pela primeira vez em Marselha com os ciganos e que permaneceu vivo na mística

popular. Reis e imperadores já se consultaram através deste processo; as academias

holísticas de nosso tempo dão cursos sobre como ler a sorte através dele. Para os

verdadeiros iniciados, tal ferramenta é muito mais do que um mero conjunto de cartas de

sortilégio, é um livro sagrado de revelações que nunca puderam ser transcritas em

nenhuma linguagem existente.

O mestre entende que os elementos da Cabala estão em semelhança com o Tarot.

O próprio nome revela segredos que podem ser descobertos através da Gematria. Tarot,

Tora, Rota. A rota a que se refere é a de Ezequiel na grande revelação da Bíblia. A Torá

dos hebreus é uma fundamental doutrina cabalística. Ora esta interpretação não é

arbitrária, visto que nos desenhos originais do Tarot temos caracteres hebraicos

representando cada uma das figuras dos arcanos maiores. Este baralho lembra em muito

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os baralhos de cartas tradicionais, e há quem afirme que vieram descendentes daquele. O

Tarot possui setenta e oito cartas divididas em arcanos menores e arcanos maiores. Os

arcanos maiores contêm as pinturas misteriosas que Éliphas Lévi diz pertencerem à

mística da Cabala. Esta inovadora percepção fez com que os diversos estudiosos de sua

época se voltassem para aquilo o que ele tinha a dizer. Ele encontrou estreitas

semelhanças entre o que os cabalistas originais disseram e o hermetismo e a magia.

Através de um estudo minucioso das letras hebraicas e do alfabeto greco-latino, por

intermédio de uma fórmula que ele chamava de Plano do Éden e Plano de Tebas,

construiu o edifício de sua doutrina num complexo arcabouço de seu Dogma. A

complexidade destas explicações é demasiado extensa para ser proposta neste trabalho.

Mas exemplificarmos é essencial para transmitir ao menos o frontispício do Templo.

O Plano de Tebas, segundo o mestre, é um esquema de interpretação que tem

inicio no formato que as letras apresentam em conformidade com a geometria simbólica

do hermetismo. No livro Curso de Filosofia Oculta, ele fala algo a respeito em suas

cartas ao Barão Spedalieri, quando iniciava os mesmos nos rudimentos do estudo dos

números e da Cabala.

As letras hebraicas são determinadas geometricamente por um pentáculo chamado plano do Éden, cuja figura eu já lhe mandei. As letras gregas e latinas, assim como as do alfabeto francês [e português], são formadas e calculadas de acordo com outro pentáculo que é o plano de Tebas, cuja representação o senhor poderá encontrar em minha Chave dos Grandes Mistérios. Este pentáculo lhe dá o significado em hieróglifos geométricos, não só de todas as letras como ainda de todos os números.

65

O mestre diz que todos os números e todas as letras possuem um significado relativo e

um significado absoluto. Precisamos conhecer alguns valores básicos das figuras para

reconhecermos a validade deste pentáculo. As figuras simples são a reta, o círculo, o

meio-círculo ou curva, o quadrado e o triângulo. Os valores numéricos inerentes a eles

são claros, salvo o meio-círculo ou a curva que pode ser interpretada como dois ou um,

dependendo do campo ao qual é aplicada. Mas o círculo completo é o zero, o triângulo é

três, o quadrado quatro e a reta um. O círculo com um ponto no meio é o dez, pois

representa o zero fecundado pela unidade. Notemos que o pentáculo acima, está

circunscrito um A. nele podemos reconhecer o triângulo e as retas; o um e o três. Este

esquema transferido para a revelação das sephirots nos leva a Kether e Binah, a coroa e a

inteligência. Unidos os significados podemos desdobrá-la na compreensão de que a coroa

é a senhora da inteligência e que a inteligência ideal é coroada por Deus absoluto. E por

66

assim segue. Este sistema pode se mostrar meramente rígido e inflexível, mas é

virtualmente infinito.

A Cabala e a Ciência dos Números, assim como a Alquimia e o Hermetismo,

formam o corpo da filosofia oculta de Éliphas Lévi. Toda a prática decorrente destes

conhecimentos se resume aos exercícios de aprimoramento da mente e do caráter, que

permitem alcançar os níveis mais profundos de domínio da vontade. Somente quando este

grau é obtido é que o iniciado pode se dedicar aos estudos de magia cerimonial ou alta

magia. A grande obra do mestre possui exatamente este título, Dogma e Ritual da Alta

Magia, o que em sua época lhe conferiu o título popular de mago. Esta magia não é

aquela prática religiosa dos antigos ritos pagãos, mas uma intrincada “arte cientifica” que

jamais é conferida aos vulgos. Magia, segundo o mestre, é a forma de fazer a natureza se

manifestar de acordo com suas leis. Ao contrário daquilo que pode parecer ao cético, a

magia é uma arte natural e apenas aquele que compreende seus segredos pode estar apto a

fazê-la se revelar. Aqui há um segredo.

O motivo pelo qual a magia apareceu ao mundo moderno como uma transgressão

das leis naturais é que todos os seus fundamentos são subjetivos e em nenhuma de suas

formas pode ser descoberta ou estabelecida pelo empirismo. Não que os mistérios das

faculdades secretas da mente fossem desprezadas pelos cientistas, mas a sua

incredulidade quanto aos processos pelos quais estas faculdades pudessem se revelar é

que isolou os dois campos.

Nem mesmo entre os estudiosos do ocultismo existe parcialidade a respeito da

interpretação da doutrina. Para aqueles que são fieis ao primitivo estudo da Cabala, a

síntese que adveio do ocultismo francês/inglês, é um absurdo infundado. Apenas alguns

67

círculos de cabalistas judeus e poucos ocultistas mantêm este posicionamento. Para os

que reconhecem a comunhão dos fundamentos, existem pontos insatisfatórios quanto à

ligação entre a Árvore da Vida e os números e letras do alfabeto hebraico. As mudanças

tornaram-se mais acentuadas quando no século XX, após as teorias da psicologia

junguiana, novos elementos foram introduzidos. Alister Crowley, ocultista famoso inglês,

foi um dos grandes inovadores na leitura dos preceitos do ocultismo. Ele tentou

identificar o fundamental sentimento de liberdade originário do século XX aos novos

caminhos que o ocultismo revelava aos religiosos de todos os povos. Ao contrário de

Éliphas Lévi, que se restringiu a aprofundar-se na sabedoria ocidental e na sua raiz

judaico-cristã, Crowley trabalhou arduamente em uma verdadeira síntese de todas as

formas arcanas de misticismo. Infelizmente foi mal interpretado, e alguns de seus

excessos o levaram ao ostracismo e ao erro. Porém, o mais interessante é que após

Éliphas Lévi, muitos foram os esforços por introduzir no âmbito do mundo comum –

profano - os fundamentos mais materiais do ocultismo, e que foram chamados

adequadamente de espiritualismo.

Em todos os seus livros, o mestre utiliza a única linguagem que poderia

transmutar a concepção tradicional e permitir que a ruptura revele o que o invisível

guarda. Não há fórmulas cientificas aqui, tais quais receituários ou escritos fantásticos,

como diz a lenda, há, contudo poesia. No Dogma, o mestre faz menção a algumas

conjurações e como empreendê-las e registra a belíssima simbologia de suas orações

misteriosas. É impossível que um coração possa conhecer os mistérios sem que a poesia o

toque de antemão. Não é toda a arte da linguagem poesia? O grande obstáculo de Éliphas

68

Lévi é a vulgaridade de seu tempo e os riscos dos excessos que o romantismo promovia.

Um jogo intrincado de dualidades que ele buscava repreender, mas aqui teve pouca força.

A Ciência dos Números se prolonga por todas as artes que o mestre desenvolvia.

Os arcanos deste estudo são elevadíssimos e não podem ser absorvidos de uma forma

simplória. Tudo que for dito neste trabalho a respeito é apenas o corpo visível do

conhecimento e não poderá jamais ultrapassar isso.

Esta chamada “ciência” é tal qual uma belíssima expressão de vigor espiritual, que

resume todas as formas de compreensão da vida, da morte, daquilo que podemos gerir

como sendo a manifestação de Deus e do universo. É um alfabeto feito de números. É

uma matemática de letras e palavras. Semelhante a uma máquina que desdobra

indefinidamente as correspondências, elevando as reflexões a níveis cada vez mais sutis.

Esta arte dá vida a todas as coisas; o trabalho infindável de reduzir os elementos a estas

formas simples gera transformações substanciais na essência daquilo que acreditamos. O

estudo do mestre está vinculado a princípios clássicos e tradicionais, mas com o exercício

deste estudo, pode-se facilmente transcendê-lo e evoluir as relações para além das mais

básicas correspondências. Este é o objetivo. Torna-se, assim, um processo permanente de

construção interior, cuja contribuição de cada um, na medida de suas percepções

individuais, alimenta o grande edifício da ciência.

As cartas do mestre ao Barão Spedalieri são um claro exemplo destes passos

iniciais e de algumas correlações básicas sobre o estudo dos números e das letras. Vão

até número dez, o fim da escala inicial. Ele reúne algo de uma geometria particular, mas

fundamental para a fixação das bases destes valores abstratos. Vale lembrar que este

saber vem do mesmo tronco que chegará a dar os frutos da magia prática. Não há quase

69

nada escrito sobre a prática. O conhecimento se transfere através de uma tradição

puramente oral, onde um discípulo ouve as experiências do instrutor. Não devemos

confundir mestre com aquele que ensina os rudimentos da arte a um neófito. Este mestre

é único, magnânimo, alcançá-lo é tornar-se como ele. “Quando o discípulo está pronto, o

mestre aparece”, diz o axioma. Este mestre é oculto e vem a cada um no determinado

momento em que está devidamente pronto para receber o conhecimento. O instrutor pode

ser um companheiro, um amigo, alguém com que o aprendiz se relacione. Mas o mestre é

sempre superior, absoluto. Nada mais pode ser dito do mestre.

O estudo dos números é feito com base na concepção e no desdobramento dos

quatro primeiros que por sua vez surge de três elementos básicos. O tetragrama, como já

dissemos, é a reunião de três letras, sendo que a segunda se repete para formar o nome

impronunciável de Deus. Esta quádrupla forma simboliza, antes de tudo, a solidez cúbica

da obra divina. Em um esquema simples podemos visualizar a seguinte construção:

70

Sabemos por ela que 1+2+3+4=10. Os grupos são divididos em dois. Um que resume o

três (1+2) e outro que resume o sete (3+4). O plano superior é o da manifestação divina,

onde podemos sintetizar a geração sagrada, isto é, o ativo, simbolizado pela unidade; o

passivo, simbolizado pelo binário; a síntese que está resumida no ternário. O plano

inferior representa a concepção formal, partindo da essência quádrupla até a década

sagrada que é a noção numérica de Deus. Esta noção é a fórmula do universo. Por ele

podemos conhecer todas as coisas.

Há dez nomes ligados aos dez Sephiroth. Quando os Sephiroth se repetem, mudando de meio concepcional, os nomes mudam. Assim, há quarenta nomes para os Sephiroth repetidos quatro vezes e relativos às quatro letras do Tetragrama, porque todos os nomes estão contidos em cada número. Os Sephiroth, percorrendo a escala ascendente e descendente do Setenário, formam 70 nomes, aos quais, acrescentando-se dois, isto é, a unidade principiante e a unidade sintética, o Alpha e Omega dos gregos, o Aleph e o Thau dos hebreus, dá-se o valor numeral de 72, o número dos nomes que Salomão havia gravado sobre os trinta e seis talismãs.

Sephirot é a concepção do nome divino pelos números e Schemoth é a

compreensão pelas letras. As letras se relacionam ao verbo que Éliphas Lévi alega ser a

única forma que o homem tem de participar da natureza da criação divina. Este seria,

portanto, o verbo humano. Os números são a forma intelectual da obra enquanto que a

prática, ou concebível materialmente, seria o das letras. Os hebreus chamavam Deus

apenas de Schema, isto é, O Nome, referência ao Tetragrama impronunciável.

Em Cabala, diz-se que as Cinqüenta Portas do Conhecimento podem ser abertas

através das Trinta e duas Chaves. Ora o pentagrama é a forma do conhecimento, como

71

vimos, e assim multiplicado pelo dez dá as Portas secretas. O mesmo se dá com o 32. a

arbitrariedade aparente tem um explicação matemática simples. A soma é a união e a

multiplicação é a geração. Isso basta.

No esquema acima vemos três espaços físicos que simbolizam as idéias dos

números pela forma geométrica. O primeiro é simples e nada habita dentro do triângulo.

É a trindade perfeita e pura. O segundo é onde está circunscrito o pentagrama, já que a

união do 2+3 dá o cinco, número do saber perfeito do homem. O da base é o espaço de

ordem e perfeição formado por sete triângulos que são a raiz místicas de todas as coisas.

Toda figura é construída tendo por base duas formas simples: o triângulo e o quadrado.

Sete triângulos circulam um quadrado interior, dando o nove, número da iniciação.

Penetrar pelo nono grau é ver a iniciação. Como pode o nove, por fim, reinar sobre o dez?

Isso ocorre, pois o dez é uma forma que não existe para o homem, mas é uma síntese uma

reunião. Para o homem, termina no nove sua jornada. O dez inicia a obra divina e restaura

o um, pois que 1+0= 1.

O número 1 é o número da unidade, da representação de Deus como idéia

relativamente definida pelo homem. O 1, segundo o mestre, relembra o plano superior

mais perfeito e inalcançável. O que emana de lá é apenas um reflexo tênue da realidade

perfeita. Em suma: o um é o princípio.

Que é um princípio? É uma base de palavra, é uma razão de ser do verbo. A essência do verbo está no princípio: o princípio é o que é; a inteligência é um princípio que fala.7

7 LÉVI, Éliphas. Dogma e Ritual da Alta Magia. Pensamento. São Paulo. 1997. p. 71.

72

Este princípio é o princípio do pensamento. A faculdade de criar, de fazer existir se

confunde com a existência do ente. O Eu sou o que Sou da sarça ardente vista por Moisés

é este fundamento. O universo é e basta. Tudo existe, tudo é real, como já dissemos.

Conforme propõe o mestre, o axioma oculto, O ser é o ser, resume todo o princípio em

si. Se relacionarmos o valor do 1 com os três campos de estudo da filosofia oculta,

localizaremos a unidade em Deus e no Homem, individualmente como reflexos.

A primeira letra do alfabeto hebraico é o aleph que simboliza um homem que

ergue uma das mãos para o céu e a outra abaixa a terra. É o resumo do macrocosmo e do

microcosmo.

É a expressão do princípio ativo de todas as coisas, é a criação no céu, corresponde à onipotência do verbo aqui. Esta letra é, por si só, um pentáculo∗, isto é, um caráter que exprime a ciência universal.

Na primeira figura do Tarot, o Mago, a gravura retrata o homem exatamente desta forma.

Ainda se apresentam elementos à sua frente todos ferramentas para a arte mágica.

O verbo divino e o verbo humano atuam em campos parecidos, porém em

dimensões diferentes. O número 1 é o da crença mantida pela razão. Para o mestre, este

exercício é aquele mantido pela ciência, que prova o que o intelecto julga cabível.

∗ A palavra pentáculo refere-se a um símbolo ou palavra que resume toda uma doutrina que tenha relação ao grande princípio de realização do ocultismo. A tradução para o português sempre traz a palavra escrita assim, porém, a filologia nos indica a forma pantáculo, pelo prefixo panta, todo/tudo, mais adequada ao significado atribuído. Em nosso trabalho, manteremos a grafia pentáculo, a fim de nos mantermos fieis à tradução nacional e por fazer menção ao valor que o número cinco possuía na vida do mestre.

73

O número 2 é o do binário, como mostrado anteriormente. O dois revela a idéia de

uma base igual que sustenta a plenitude de todas as coisas. A forma do dois em números

hindu-arábicos é a de um semicírculo sobre um traço vertical que se encerra sobre um

traço horizontal, ou base do triângulo. Ao mesmo tempo em que o dois reflete a igualdade

ele relembra a mulher, a passividade e o negativo. Estabilidade e idéia. O binário é a

dupla natureza de tudo. É o invisível e o visível. Um sustentado pelo outro. As colunas do

templo, como diz a tradição, são duas. Salomão as pôs no pórtico e as fez negra e branca,

lembranças da força que atrai e repele; submissão do discípulo ao poder fatídico das duas

grandes energias cósmicas. No Fédon, vemos o invisível sustentando o visível, pois o

inferno é sob a terra. Assim, uma coisa sempre terá algo que se oponha a ela, para por fim

dar a geração das coisas. É física simples. O movimento se dá pelo atrito e resistência.

Nos fundamentos da iniciação sagrada, a inteligência repousa sobre a fé. Os

maçons possuem, representados em todos os seus templos, duas figuras peculiares. Em

uma, o aprendiz é representado por um homem nu ajoelhado diante da primeira coluna e

tem a seguinte inscrição: Minha força está em Deus. Na segunda coluna, um

companheiro está vestido de pé e com os olhos vendados: Persevero no bem. Um quadro

se explica pelo outro. No primeiro, o aprendiz se vale da fé em Deus e segue por sua

intuição, ouvindo a voz que guarda no interior de seu coração. Esta é a primeira

provação. Deus fala por ele. Na segunda figura, o companheiro, aprendiz elevado por

seus esforços, está vendado, isto é, já conhece e não erra ao proferir suas palavras, por

isso a venda. Ele conhece porque a inteligência é fundamentada pela certeza inabalável

que se revelara.

74

O ternário é a figura perfeita da existência do Deus manifestado. Ele determina

que há três mundos, isto é, três planos de realização do λογοζ. Ele é a ação do verbo,

como diz o mestre. O triângulo é ao mesmo tempo 1 no cume e 2 na base. O três é a

realização desta forma geométrica. O três também está unido à idéia do Messias, isto é, o

Reformador. Entre os hindus, Bhrama, Vishnu e Shiva. Criação, destruição e reformação.

A compreensão do ternário é fundamental para a filosofia oculta. Sem permitir-se obter

os rudimentos deste número, o discípulo não pode aceitar as formalidades dos outros

números e se perderá do caminho. O ternário é a descendência mais distante de Deus.

Refere-se ao Espírito Santo, ou ao Ruach-Elohim, dos cabalistas. Há três céus, segundo a

tradição: Aziluth, o plano puro de Deus, onde não há idéias; Jesirah, o segundo céu, onde

o nome do Pai está gravado e pode ser concebido por idéias; e Briah. Os cabalistas

encontraram o Tetragrama no segundo céu e podem soletrar um dos nomes perfeitos de

Deus. Em Aziluth, não há nomes. Existe apenas uma designação que é uma frase: eieie,

Ele é.

Nas três pessoas está o Filho no lugar da Mãe, porque os cabalistas cristãos

reconheceram que na pessoa perfeita não existe passividade, apenas, gerador, geração e

gerado. Pai, Filho e Espírito Santo, segundo a Bíblia. Deste tripartido conceito temos a

porta de onde saem todas as criações.

O quaternário é o número da base fundamental da filosofia. É representado pela

figura cúbica do quadrado. Dentro outras referências, ele simboliza a cruz que irradia

para todos os lados. São quatro linhas que seguem até o infinito sem fim.

75

Quando inscrita no interior de um círculo, a cruz simboliza a fecundação e a emanação da

luz Divina que existe em toda a matéria.

O cinco é cheio de virtude mágica, sendo o número preferido e mais estudado pelo

mestre. Para cada um de nós há uma correspondência que se resume em um dos dez

números. Ele acreditava que estava sob a influência do 5. Parecia que sim.

76

O pentagrama é a junção do quaternário e da unidade que forma o Homem-Deus

ou a sabedoria sagrada. É o JHVH penetrado e aperfeiçoado pelo SHIM, isto é JHSVH,

como já vimos. Ieshua é Jesus, ou o Messias. É uma relação magnífica que exemplifica se

forma simplória a descendência divina pelas palavras.

Quando falamos no pentagrama evocamos diretamente a proeminência do

conhecimento secreto, ou da ciência oculta. Aqui falamos de magia e ocultismo prático.

Este símbolo, o pentagrama, a estrela de cinco pontas, não é uma figura conhecida apenas

pelos ocultistas da Idade Média. Ela é encontrada desde os cultos pagãos da Europa até os

rudimentos da religião primitiva na China. Goethe em seu Fausto refere-se ao símbolo do

microcosmo, como é chamado pelos ocultistas:

“Ah! Como a esta vista todos os meus sentidos estremecem! Sinto a juvenil e santa volúpia da vida ferver nos meus nervos e nas minhas veias. Será um deus aquele que traçou este signo que acalma a vertigem de minh’alma, enche de alegria meu pobre coração, e, numa impulsão misteriosa, desvenda ao redor de mim as forças da natureza? Sou um Deus? Tudo se torna tão claro para mim; vejo nestes simples traços, a natureza ativa se revelar à minh’alma. Agora, pela primeira vez, reconheço a verdade dessa palavra, do sábio: - O mundo dos espíritos não está fechado! Teu sentido está obtuso, teu coração está morto. Levanta-te! Banha, ó adepto da ciência, o teu peito, ainda envolto de um véu terrestre, nos esplendores do dia nascente!”∗

Esta é, portanto, a chave da qual os iniciados se armam contra os malefícios. Quem dela

sabe se valer não sucumbirá ao mal. O cinco é o símbolo dos espíritos. Quem escreve esta

estrela está em contato com as forças invisíveis. Devidamente projetado, ele dá

∗ Fausto, 1ª parte, cena 1ª.

77

supremacia ao mago. A compreensão deste signo é profundamente conectada ao plano

inconsciente da mente. O iniciado o contempla e sua percepção se projeta para este

campo inexplorado de sua psique e, a cada degrau, permite que se aposse daquilo que está

em si mesmo. O cinco é o ponto médio do denário. É a porta de separação entre as

escalas superiores e inferiores da geração da ciência dos números. Leonardo Da Vinci

conhecia o valor deste número misterioso e o refletiu na representação do Homem

Vitruviano .

O frontispício do Dogma e Ritual da Alta Magia contém a estrela de cinco pontas

conforme o mestre a traçou idealizada como um pentáculo.

O seis é número do homem. Éliphas Levi assim definia o ternário que se repete

sobre si mesmo. O cinco relembra o homem como criatura perfeita – Adan Cadmon – e o

seis como o ser que ele é na encarnação. Ao mesmo tempo em que encerra a criação do

Senhor, este número relembra que a gradação da essência divina se materializa nas

criações e retoma a noção da similaridade das coisas visíveis e invisíveis. Ora, o mestre

faz referência à estrela de seis pontas, que é Selo de Salomão, como união do homem e da

Divindade, isto é, a realização da idéia pelo número. Nenhum outro número mostra com

tamanha perfeição o Equilíbrio Mágico que tanto nos fala o mestre.

78

No meio deste magnífico símbolo está a unidade vivificante de Deus. Como já dito, o

triângulo voltado para cima é o da chama que eleva e faz evoluir; o triângulo voltado para

baixo é o da penetração do poder divino na matéria e no homem.

Compreender este equilíbrio é a necessária atribuição do iniciado que deseja

alcançar os graus mais elevados da consciência. O equilíbrio é feito de três fatores

superiores e três inferiores. Os primeiros ligados diretamente às causas superiores e os

seguintes às causas inferiores ou menores. É aqui que o mestre faz a imposição necessária

de se demonstrar na razão absoluta o ideal da divindade. Ele exige que o iniciado possa

por seus esforços provar a existência de Deus pelo raciocínio.

O triângulo supremo contém as seguintes elementos: necessidade, liberdade e

razão. Cabalisticamente, razão é Kether, necessidade é Hocmah e liberdade é Binah. No

plano humano, fatalidade, vontade e poder são o seu reflexo. Fatalidade é a condição

primordial na qual todas as coisas estão interligadas em uma ordem inevitável de causas e

efeitos. Vontade é a possibilidade de se agir, de se manifestar conforme a inteligência

onde a liberdade se concilia com a necessidade dos acontecimentos. “Poder é o sábio

emprego da vontade, que faz servir a própria fatalidade à realização dos desejos do

sábio”, nas palavras do mestre.

Para magia, o visível é apenas a revelação do invisível. O homem vê a sombra e a

toma como verdadeira em lugar do objeto que a projeto. Aparentemente, as coisas

semelhantes possuem uma simpatia atrativa, o que ocorre diametralmente inverso nas leis

ocultas. A analogia dos contrários é o que permite obter a razão verdadeira das relações

universais. Somente através do equilíbrio pode o iniciado se servir do grande agente

oculto, da energia que a tudo comanda e que está oculta no astral. A ciência moderna

79

alcançou algumas das manifestações desta força, mas sem compreender qual a sua

natureza verídica. O Sol lança sobre a Terra sua luz que se reflete nas criaturas e nos

objetos. Tudo partilha de vida e de determinado grau de manifestação na fatalidade. Os

materialistas zombarão aqui, pois afirmamos que os objetos têm sua vida inata, assim

como o ar, as rochas e todos os chamados “seres vivos”. Não é fetichismo, tal qual

seguem alguns indígenas, mas algo diferente. O espírito das coisas, aqui, não é como

estes o imaginam. Falamos de equilíbrio e este equilíbrio figura na natureza dos

chamados inanimados. No homem, devem se unir aqueles outros demais elementos para

que esteja completo.

O equilíbrio pressupõe que existam duas forças que têm o mesmo valor e ambas

devem manter uma a outra no mesmo grau de ação. Naturalmente, a fatalidade mantém

estas energias em liberdade, permitindo sua livre circulação o que gera conflito entre elas.

É uma forma natural de carma que se opera de forma semelhante no homem. Falamos

mais claramente aqui. As calamidades que se operam na Terra também ocorrem no

homem, mas de forma semelhante e não igual. Os terremotos e erupções vulcânicas no

homem são as manifestações de nossos instintos que se sobrepõem a vontade consciente.

Pela lei das correspondências, se o homem é tão senhor de si que não pode ser tomado

pela ira, assim dominará o fogo dos vulcões e os incêndios não o queimarão. Quem não

se deixa dominar pela luxúria nunca sucumbirá a concupiscência, assim podendo dispor

da paixão carnal dos outros. Não é uma fábula que contamos. Quem o duvidar que o

tente. Recolha-se de seus vícios mais comuns e verá a revelação das primeiras maravilhas

ocorrendo.

80

O seis bíblico é sempre lembrado pela repetição trina que compõem o número

auspicioso da Besta, descrita no livro de João, Apocalipse. Του Μεγα Τηεριον, a

Grande Besta é simbolizada pelo 666, criatura fatal que trará a revelação da desgraça do

homem. Este é o número do homem realmente, mas que se remete ao princípio das

coisas, o paraíso edênico, onde a Árvore da Vida e a da Ciência do Bem e do Mal se

confrontam. Os três seis estão em todos, cabe ao que busca escolher sua senda.

O setenário é a porta do sagrado. Não é incomum conhecermos prodígios e lendas

sobre este número santificado. Por ele se chega aos planos superiores. Depois dele vem o

fundamento e a iniciação perfeita. Sete é, antes de mais nada, um número de estabilidade

e repouso, tal como o sétimo dia da Criação. É a junção do ternário e do quaternário.

Geometricamente, podemos construir a forma mais perfeita que todas as outras, cuja

própria visão remete o sábio aos planos superiores de reflexão. É a Pedra Cúbica dos

alquimistas. É a forma primitiva das pirâmides, cuja esfera abaixo do cubo é o próprio

planeta. Ele tem a seguinte forma:

1 – Kether 6 - Netsah

2 – Hochmah 7 - Hod

3 – Binah 8 - Iesod

4 – Tipheret 9 - Geburah

4

3

1

2 5

6 7

10

9

8

81

5 – Chesed ou Gedulah 10 – Malchuth

Esta é a realização da figura:

Conforme propõe o mestre, As sephirots superiores se unem a Tipheret para construir a

cruz reveladora de Cristo, ou o Sol Verdadeiro. Há outra cruz formada pela quadrangular

composição das outras sephirots, de Gedulah à Malkuth. A última é a base e a primeira

aquela que serve de plano superior, sendo, por sua vez, a base da pirâmide superior.

Gedulah e Tipheret são duas expressões de amor que se manifestam em planos diferentes.

Ambas são este Cristo Verdadeiro. Uma é a Beleza a outra se iguala ao princípio

platônico do Bem.

Sete são os dias da semana. Sete os planetas da astrologia cabalística. Sete os

órgãos do homem que estão na face. Seis são duplos e um é único. Este é semelhante ao

Iod dos cabalistas e é a representação da cabeça toda, do órgão genital e do pronunciador

do verbo. O setenário relembra a espada do querubim que guarda o segredo. É o mistério

do oculto. Os gênios do Apocalipse são em sete. Por fim, Netsah, é a glória.

82

O oito retoma uma perfeição que se manifestava nos planos inferiores sob a forma

do nome quádruplo de Deus. O mestre diz que este é o número mágico da realização. O

verbo se revela para que a obra se conclua. Apenas pelo trabalho o discípulo poderá

alcançar a revelação maior que o aguardo no nono degrau.

Uma esfera que sobrepõe a outra representam o número oito que se apresenta

como o caduceu de Hermes, onde duas serpentes se entrelaçam e se equilibram. Se o seis

é o equilíbrio das energias ocultas, o oito é a harmonia já estabilizada.

Como diz o mestre, o oito informa que o absoluto se mostra pela brevidade das coisas. A

eternidade, por exemplo, que se fundamenta pela brevidade do tempo. O oito é, contudo,

um número que mostra a ação da estabilidade infinita, como linhas que se entrelaçam

indefinidamente.

83

O nove é o número mais profundo de todos. É o número do iniciado. Podemos

perceber que o nove é o número da trindade que se repete três vezes. Aqui o homem está

plenamente composto. Ele se fez revitalizado nos três planos de manifestação. O nove

traz a junção dos triângulos de Salomão e inclui um terceiro, perfeito e absoluto. A forma

do número nove em nossa língua é semelhante a um bastão, símbolo de segurança do

sábio. Pouco pode ser dito deste número, pois ele se remete aos segredos mais profundos

do conhecimento oculto. Ele é a cabeça do profano que olha através dos pórticos abertos

do templo; dos lados tem oitos princípios magnos e acima, no frontispício, uma luz

suprema o ilumina.

A extensão destas explicações nos impede de acrescentar, sem o risco de

divagarmos ao infinito com explicações que façam menção de nossas experiências de

caráter pessoal, maiores informações sobre a tão magnífica Ciência dos Números. O

mestre escreveu em todos os seus livros a base deste saber pouco conhecido até mesmo

pelos ocultistas. Na verdade, a necessidade de se empreender práticas meramente

especulativas lança os estudantes para fora deste campo reflexivo. Mas nada sobre

Éliphas Lévi poderia ser dito sem conhecermos este saber desenvolvido por ele.

Por fim, os primeiros dez números se encerram. Assim o define Éliphas Lévi:

Os números e os nomes se harmonizam uns com os outros e se explicam uns aos outros. Cada nome exprime uma idéia especial de Deus, e todas as idéias de Deus são idéias invariáveis e universais.

No plano das idéias estas podem ser invariáveis. Pensar uma cadeira é pensar a

cadeira. Pintar ou construir a cadeira é fazer um arremedo da cadeira ideal. No caso das

84

sephirot não há forma a não ser aquela simbólica que é mais uma alegoria da idéia do que

ela propriamente dita.

Ainda sobre a ciência ele escreve:

A Alta Ciência compreende duas coisas: a palavra ou o verbo, e as obras, que são a última forma, ou o complemento do verbo. A ciência dos signos e de sua correspondência é uma iniciação à ciência da palavra; a ciência da luz e do fogo é o segredo das obras. Ciência dos signos e de seus correspondentes é a Cabala. Ciência da luz é a magia; ciência do fogo, o hermetismo. A ciência dos signos começa na ciência das letras. As letras são idéias absolutas. As idéias absolutas são números. Os números são signos perfeitos. Juntando as idéias aos números, pode-se operar sobre as idéias como sobre os números e chegar à matemática da Verdade.

Interessante a afirmação de que a ciência é a magia. Na consciência de nosso tempo, são

coisas radicalmente contrárias. Aqui, contudo, ciência não se esquiva das coisas naturais

do espírito. A mente está entre o espírito e a alma. O espírito é fogo celeste e a alma

sensação. A mente é a razão entre estas di-ferenças. Daí a linguagem ser uma faculdade

da razão e não do sentimento puro. Este não se basta no que está escrito, transcendendo-

o. É como se aquilo que criamos neste mundo fosse apenas uma fissura que pudesse

deixar à mostra o que há do outro lado e que percebemos em nossa individualidade. A

arte é uma forma de solidariedade sob esta ótica abstrata.

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Conclusão.

No conto de Jorge Luis Borges, O Aleph, um homem comum encontra algo que

revela a eternidade e a plenitude absoluta de todas as coisas. A contemplação deste

conhecimento permite que ele componha um poema quase infinito, cujos versos tentam

descrever, uma a uma, as partes do planeta. Para obter a contemplação deste Aleph é

preciso entrar em um lugar peculiar da casa e se prostrar de forma adequada. Neste conto

os homens comuns obtêm os segredos e logo o perdem, pois aparentemente esta

sabedoria não os fascina. Talvez porque conhecer tudo não conduz à sabedoria. Talvez a

verdadeira sabedoria esteja no limitem do desconhecimento. Em algum lugar, oculto da

compreensão do homem, esconde-se o segredo de todas as coisas. Quando evocamos o

direito de contemplá-lo, apenas nos aparece um parco resquício de sua natureza a qual

chamamos ilusão. É esta que nos permite recriar o universo conforme nosso desejo. O

poeta, o cientista, o místico o ateu, todos vêem o mundo conforme lhes é possível provar

do estro cósmico.

Aldous Huxley descreveu algo semelhante à visão do Aleph em seu livro As

portas da percepção, quando tomado pelo efeito da mescalina, substância alucinógena

obtida do cacto peiote, tem visão que ultrapassam o limite da realidade comum. Se

imaginarmos que o Aleph de ambos é o correto, onde reside a Verdade única? Se ela

realmente existir o faz apenas em um lugar semelhante à morada de Deus. Talvez esse

Deus único seja também a Verdade. Então ela não pode ser alcançada jamais, assim como

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um Deus absoluto não pode ser percebido, tamanha a limitação da humanidade. O que

apanhamos são apenas aparições mesquinhas das nossas próprias conjecturas.

Éliphas Lévi fora, antes de ser um mistério, um homem que compreendia a arte.

Não é incomum encontrar místicos, sábios e professores de magia, mas aqueles que

conclamam não são verdadeiramente mestres, assim como os que se admitem para o

mundo não são verdadeiros filósofos. Assim como os que prostituem seus versos não são

autênticos poetas. Aqueles aos quais chamamos por mestres estão em silêncio sagrado.

Não têm religião e não pregam governo algum. Seus escritos são pouco renovadores. Não

praticam magia. Não são deuses. Eles estão aqui e nos falam por enigmas todos os dias.

Suas teorias são paradoxais. Seus ritos são tão comuns que todos os conhecem, porém,

não o praticam com o poder da realização que estes senhores secretos possuem. Sua

ciência é feita para todos os alfabetos criados e mesmo para as línguas sem escrita

convocam à doutrina primordial. Seus épicos são constituídos pela mitologia universal,

onde todos os seres fazem parte, como heróis e bestas fantásticas. Os maçons ousaram

dizer um dia: Deus é o Homem.

Quando Éliphas Lévi disse que tudo é real, ele queria dizer que o invisível do

homem está nele mesmo e apenas com seus esforços neste mundo poderá ser vitorioso.

Este é o mundo da humanidade. É aqui que deve fazer sua transformação. O amor crístico

começa pelo amor ao próximo. Se não podes fazer estas coisas simples, como hás de ser

maior que as tempestades, ou ser supremo às adversidades? Não é possível dominar os

elementos sem dominar a si mesmo.

O mais importante ensinamento do mestre é que a filosofia de um indivíduo deve

ser tão verdadeira para ele que não possa viver fora dela. O chamado do ocultismo não é

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para os mistérios do invisível, nem para os temores do mundo astral, mas para uma vida

cheia de si mesmo, repleta da crença que se pode ter em algo. É melhor crer em uma

única coisa do que evocar a dúvida em todas as outras. A grande cisão do ocultismo com

as demais filosofias é exatamente aqui, no momento em que os estudiosos precisam crer o

suficiente para praticar sua filosofia. Nenhum dos “ismos” até agora teve poder para isso.

Chamarmos de “filosofia ocultista” é apenas rotular uma manifestação dos esforços pelo

saber pessoal. Infelizmente, nos falta a todos o poder de transformação que possibilita

desejar algo que possa ser grandioso e realizador. A felicidade de nosso tempo não tem

muito que ver com realização e transformação; por muitas vezes, caminha em sentido

notadamente contrário.

A humanidade na qual vivemos está desprovida de objetivos. A falsa percepção

do domínio da natureza e da supremacia do homem sobre as outras formas de vida o fez

ignorar que a existência em si evoca a grandiosidade. Não somos apenas isso. Devemos,

contudo, nos convencer desta condição. Nenhuma religião fará isso. Nenhuma forma de

arte pode conduzir a isso. Mas, através de nosso re-conhecimento (isto é, conhecer de

novo) de que estes elementos nos possibilitam chegar até onde desejamos é que o valor

sincero das coisas pode ser descoberto.

No fim da jornada, estará um espelho para a auto-contemplação, num despertar

estranho para algo que esteve logo ao alcance, mas que nunca foi tocado. É aquilo que faz

da arte beleza e sofrimentos incomparáveis. É o que podemos chamar de iminência, como

diz Borges. É neste momento atemporal, quando tudo colide para o alvorecer de uma

idéia, que o universo se retrai e todas as coisas se comprimem e retornam para as suas

devidas realidades.

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Quando Éliphas Lévi estreita as simbologias em uma Grande Síntese, podemos

lembrar que todos os deuses da mitologia antiga residem em uma mesma morada

distante. Por detrás de suas longas barbas de tempo e indiferença são a cópia de uma

mesma canção feita por bardos que jamais se conheceram. O fogo que Prometeu roubou

dos céus é a diferença que cada homem possui em sua individualidade. Os deuses

invejam essa possibilidade, pois são todos fruto de um mesmo relato contado de

diferentes formas.

O ocultismo dá direito ao homem de evocar indefinidamente a canção que criou o

universo, os deuses e os demônios. Ele recria o mundo e restaura o ser. É uma ferramenta

apenas: pode servir para construir, reparar ou destruir. Todo o conhecimento do homem é

assim.

O budismo diz que os homens bons e os homens maus diferenciam-se por sua

natureza. Os maus não reconhecem nas ações errados o erro. Mesmo que se mostre a eles,

continuarão a promulgá-lo desprezando aqueles que os advertem. Os bons homens sabem

a medida do certo e do errado. Daí, a estes lhe advém maior responsabilidade. Irão,

contudo se compadecer dos seus erros e estarão, mesmo que envergonhados e

ressentidos, agradecidos de serem apontados nestes. Em uma fábula - que é como decifrar

o significado das letras de uma palavra e organizá-los para reconstruir uma lenda – uma

rainha sonhou com um elefante que possuía seis presas de marfim. Ela, desejosa por ter

tais tesouros, suplicou ao rei que as conseguisse para ela. O rei, que muito a amava,

ofertou recompensas a qualquer um que pudesse conseguir essa façanha propriamente

impossível. Porém, tal elefante fantástico existia nas montanhas do Himalaia. O animal

estava se preparando para entrar no reino de Buda, chamado Terra Pura. Um caçador

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sabia onde encontrá-lo e seguiu jornada em busca da fera maravilhosa. Sabendo que o

elefante estava prestes a alcançar este estágio de santidade, ele se disfarçou como monge

e pode assim se aproximar do animal. Desferindo três lanças envenenadas o caçador

atacou e atingiu o elefante. Foi então que pode descobrir em sua medíocre lembrança que

aquele elefante de seis presas de marfim o havia salvado uma vez, permitindo que

regressasse em segurança para casa. Mas já era tarde demais, o elefante iria morrer.

Compadecido da ignorância do caçador, o elefante o protegeu entre suas patas para que

os outros elefantes não o matassem. Questionando ao caçador o motivo de tamanha

ingratidão o mesmo apenas respondeu que não pode pensar em mais nada que não fosse a

recompensa ofertada pelo rei. Ouvindo isso, o elefante sorriu e chocou a cabeça contra

uma árvore, fazendo quebrar as pretas de marfim, para logo após isso, entregá-la ao

homem ingrato. Naquele momento, o elefante branco de seis presas compreendeu a

Verdade. Adentrando a Terra Pura disse: “Quando eu for um Buda, poderei ajudá-lo a se

livrar das três setas envenenadas que carregas: a cobiça, o ódio e a estultícia.”

A trajetória da vida é o caminho entre nosso lar e o Himalaia místico dos elefantes

brancos. Quando conseguimos refletir, nos damos conta de que em nossas mãos

carregamos armas ao invés de ferramentas. Quando possuímos a capacidade de

compreender aquilo que uma fábula como está traz nas tramas secretas de seu tecido, é

sinal de que ainda não nos tornamos inaptos para conhecer a Verdade pela arte. E, para a

arte, ciência, religião, morte, vida, certo, errado, e tudo o mais que o homem chama de

antagonismo, não passa de mera estética, pois quando constrói suas metáforas, todas elas

têm o mesmo peso, isto é, todas reluzem na intensidade do artista.

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Quando Éliphas Lévi fala de ciência, ele precisa se referir à grande ordem

cósmica que não pode ser explicada, mas que por suas leis esquadrinhou e mantém vivo o

cosmo sem fim. Para o mestre, ciência é a condição do homem operar com inteligência

suas faculdades. Assim:

Os horizontes da ciência são vastos, mas o campo que ela ocupa é dividido de um modo tão regular e os raios que vão do centro à circunferência são tão regulares e perfeitos, que sendo dado um ângulo já se pode saber a medida e o lugar de todas as coisas. Ora, o senhor está no centro dessa terra prometida à qual parece que tem medo de não chegar nunca. O labirinto agora é seu; o fio de Ariadne está em suas mãos.

Um fragmento do infinito é tão infinito quando o todo ao qual se refere. Paradoxalmente,

o conhecimento limitado do homem é tão absoluto quanto o todo conhecimento de Deus.

A plenitude da humanidade está na sombra do universo perene, mas, sob a condição de

ser também um universo, projeta sua sombra indefinidamente. Esta refração é inexorável.

A Poética também passa a ser uma arte divina, um processo de comunhão com o

absoluto, fazendo de nós deuses também. Como disse São Paulo: “Somos todos deuses”!

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