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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS ESCOLA DE COMUNICAÇÃO IDENTIDADE ÉTNICA E A DISPUTA PELOS ESPAÇOS DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: UMA ANÁLISE DO CASO ALDEIA MARACANÃ Renata Marcelle Vieira da Silva Rio de Janeiro / RJ 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO

IDENTIDADE ÉTNICA E A DISPUTA PELOS ESPAÇOS DA CIDADE DO RIO

DE JANEIRO: UMA ANÁLISE DO CASO ALDEIA MARACANÃ

Renata Marcelle Vieira da Silva

Rio de Janeiro / RJ

2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO

IDENTIDADE ÉTNICA E A DISPUTA PELOS ESPAÇOS DA CIDADE DO RIO

DE JANEIRO: UMA ANÁLISE DO CASO ALDEIA MARACANÃ

Renata Marcelle Vieira da Silva

Monografia de graduação apresentada à Escola

de Comunicação da Universidade Federal do

Rio de Janeiro, como requisito parcial para a

obtenção do título de Bacharel em

Comunicação Social, Habilitação em

Jornalismo.

Orientador: Prof. Drª Ilana Strozenberg

Rio de Janeiro / RJ

2013

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IDENTIDADE ÉTNICA E A DISPUTA PELOS ESPAÇOS DA CIDADE DO RIO

DE JANEIRO: UMA ANÁLISE DO CASO ALDEIA MARACANÃ

Renata Marcelle Vieira da Silva

Trabalho apresentado à Coordenação de Projetos Experimentais da Escola de

Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para a

obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social, Habilitação Jornalismo.

Aprovado por

_______________________________________________

Prof. Drª Ilana Strozenberg – orientador

_______________________________________________

Prof. Drª Cristina Rêgo Monteiro

_______________________________________________

Prof. Drª Beatriz Jaguaribe

Aprovada em:

Grau:

Rio de Janeiro/ RJ

2013

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DA SILVA, Renata Marcelle Vieira.

Identidade étnica e a disputa dos espaços da cidade do Rio de Janeiro: uma análise do

caso Aldeia Maracanã / Renata Marcelle Vieira da Silva – Rio de Janeiro; UFRJ/ECO,

2013.

Número de folhas (63f.).

Monografia (graduação em Comunicação) – Universidade Federal do Rio de Janeiro,

Escola de Comunicação, 2013.

Orientação: Ilana Strozenberg

1. Identidade 2. índio 3. discurso I. STROZENBERG, Ilana (orientador) II.

ECO/UFRJ III. Jornalismo IV. Identidade étnica e a disputa dos espaços da

cidade do Rio de Janeiro: uma análise do caso Aldeia Maracanã.

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho à pessoa mais

importante da minha vida: a minha avó,

Zezilda. Pela força e perseverança dela,

alcancei muitos sonhos até aqui.

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AGRADECIMENTO

Definitivamente, como diz a canção, é impossível ser feliz sozinho. Essa é a

máxima que me vem à cabeça nesse momento, em que o ciclo universitário se fecha e o

mundo do mercado de trabalho chama, aos gritos, para mais desafios, mais

responsabilidades, e também mais sonhos. São só 23 anos, diria minha avó. São todos

esses anos, digo para mim mesma. A verdade é que a vida começa outra vez. Agora, com

mais memórias, mais histórias, mais tudo. E se o tempo é relativo, o amor, a compreensão,

o apoio e a amizade não são. Foram 5 anos de descobertas e também de uma confirmação:

sou as pessoas que amo. Agradeço profundamente, e em primeiro lugar, à minha avó,

Zezilda. Esse ser maravilhoso que é a minha referência mais sólida desde que eu esboçava

os primeiros rabiscos, mas nem imaginava ser jornalista. Aquela que deu plantões em

dobro na enfermaria de um hospital para que eu tivesse o material escolar completo.

Aquela que rodou o Rio de Janeiro comigo na corrida pelas inscrições em concursos,

quando eu estava apenas na 5ª série. Aquela que dedicou a vida inteira – e não exagero – à

realização dos meus sonhos. E continua dedicando. Agradeço também à minha mãe,

Silvana, que me mostrou todos os dias de minha infância e adolescência a importância do

conhecimento, dos livros, dos filmes - ainda que tenha conseguido terminar o ensino médio

aos 40 anos de idade. Agradeço também ao meu tio Sidris, que me fazia feliz, ainda

pequena, quando me dava seus livros antigos. Também pela sua ajuda e apoio ao longo da

graduação. A força desse caminho também veio dele, que sempre acreditou em mim, como

um verdadeiro pai. Agradeço à minha avó Lourdes e meu avô Orlandi, por terem estado

presentes sempre, mesmo longe. Ao meu padrasto Severino, por trabalhar duro, me ajudar

e apoiar, mesmo me conhecendo há apenas 4 anos. Agradeço ao Colégio Pedro II e aos

professores maravilhosos responsáveis por grande parte do meu caráter. Ao Marcelos

Caldeira, ao Anderson Ribeiro, ao Leonardo Bueno, à Gabriela Dias, ao Thiago Fragoso, e,

em especial, à Tânia Carvalho, pelo apoio incondicional. Agradeço também aos

professores que, lá atrás, acreditaram que podiam transformar a realidade de alunos da

escola pública, cheia de deficiências e percalços. Muito obrigada Anne Machado e Andrea

Luz. Agradeço também aos amigos maravilhosos, José Henrique e Lorrainne, por serem

meus pilares o tempo todo. Agradeço, ainda, aos mestres da Escola de Comunicação. Ao

Márcio Amaral e ao Paulo Vaz, por me mostrarem que um mundo sem Filosofia não vale a

pena. À Raquel Paiva, sempre presente e atenta à jornada dos alunos. Ao Renzo Taddei,

grande fonte de inspiração para o tema deste trabalho, e, enfim, à minha orientadora Ilana

Strozenberg, que mesmo sem nunca ter me dado aulas, me recebeu com toda gentileza e

atenção nessa reta final da conclusão do curso. Não posso me esquecer dos amigos

maravilhosos que a ECO me deu: Mainah, Vinícius, Thaís, Arize, Camilla, Hanna, Eliza,

entre tantos outros que fizeram essa trajetória ser cheia de sorrisos e aprendizados.

Agradeço, enfim, aos que me fizeram ser quem eu sou. Aos que participaram das

minhas melhores lembranças e dos meus maiores aprendizados. Àqueles que me fizeram

chegar a uma das melhores universidades do país, àqueles que me ajudaram a completar o

caminho dentro dela.

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“Meu tempo é quando”

(Vinicius de Moraes)

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DA SILVA, Renata Marcelle Vieira. Identidade étnica e a disputa dos espaços da cidade

do Rio de Janeiro: uma análise do caso Aldeia Maracanã. Orientador: Ilana Strozenberg.

Rio de Janeiro, 2013. Monografia (Graduação em Jornalismo) – Escola de Comunicação,

Universidade Federal do Rio de Janeiro. 63f.

RESUMO

O presente trabalho pretende analisar de que maneira o Jornal O Globo e o Jornal do

Brasil, ambos nas versões online, abordaram os acontecimentos motivados pela ocupação

do terreno antigo Museu do Índio, na zona norte do Rio de Janeiro, mais popularmente

chamado de Aldeia Maracanã. A ocupação, iniciada no ano de 2006, entrou na pauta

frequente desses veículos de comunicação a partir de janeiro deste ano, em razão de ações

do governo do Estado para desocupar o local - até então destinado à obras de mobilidade

no entorno do Estádio Mário Filho, o Maracanã, para a Copa do Mundo e as Olimpíadas,

que serão sediadas na cidade. Foram levados em consideração aspectos como a escolha dos

interlocutores e a noção de índio – do ponto de vista da identidade étnica – que se

estabeleceram nos textos jornalísticos. Esta análise está aliada a uma observação

etnográfica realizada no espaço em questão ao longo dos dias 28 de janeiro ao dia 1º de

fevereiro.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 A identidade étnica na antropologia brasileira

2.2 O conceito de identidade social e as interrelações: uma análise de Roberto

DaMatta

2.3 Política indigenista: SPI, FUNAI, a constituição de 1988 e o papel do antropólogo

2.4 O índio no livro didático: generalização e primitivismo

2.5 A identidade social na pós-modernidade: descentramento e pluralização

3 ALDEIA MARACANÃ: CRONOLOGIA E RELATO ETNOGRÁFICO

3.1 O caso Aldeia Maracanã

3.2 Uma semana na aldeia: o relato etnográfico como metodologia

4 A ALDEIA E A IMPRENSA

4.1 Jornalismo, discurso e fato histórico

4.2 JB online e O Globo online: caracterização dos veículos e exploração do tema

4.3 Metodologia de análise do discurso jornalístico

4.4 Análise comparativa dos textos

4.5 Interlocutores: quem sustenta e direciona o debate

4.6 A noção de índio: o real e o discurso

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

6 REFERÊNCIAS

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1 INTRODUÇÃO

Este trabalho visa analisar e interpretar uma antiga - mas não menos importante -

questão no cenário brasileiro: a identidade e os direitos dos povos indígenas e sua

representação do discurso midiático. São quase seis séculos desde a colonização até a

república federativa atual, mas a dicotomia entre o colonizador branco e o nativo indígena

não se extinguiu. Ela se transformou no conflito entre empresários, estado, alguns grupos

da população nacional e indígenas que resistem política e culturalmente na defesa de seu

espaço e modos de vida.

Ao longo dos últimos três anos, alguns movimentos de resistência indígena se

destacaram nos meios de comunicação, como a luta pela preservação da região do Xingu,

ameaçada pelas obras da hidrelétrica de Belo Monte; a resistência dos Guarani-Kaiowá no

Mato Grosso do Sul, em razão de disputa entre fazendeiros e nativos. Este último caso, em

específico, tomou contornos significativos na grande imprensa, sobretudo diante da

mobilização popular nas redes sociais em favor desses índios. Situações como essas

motivam um questionamento importante: a mobilização popular em torno do(s)

movimento(s) de resistência indígena muda o tratamento da informação transmitida pelos

grandes veículos? Os indígenas são apenas um objeto de fala no quebra-cabeças discursivo

ou também podem ser sujeito e se fazerem ouvir? Sua perspectiva de mundo é levada em

consideração, em sua especificidade, ou é ignorada em detrimento da fala de outros

agentes sociais?

Em 2013, outro episódio de resistência indígena chamou a atenção, não apenas por

envolver a reivindicação de espaços com base na identidade étnica, mas também por

transcorrer dentro do espaço urbano-metropolitano e angariar simpatizantes do ponto de

vista ideológico e do ponto de vista de participação ativa na resistência: o caso da Aldeia

Maracanã, na cidade do Rio de Janeiro. Esse episódio foi o tema escolhido para o presente

trabalho de conclusão de curso. Desde 2006, indígenas de várias partes do país, que vieram

residir no Rio de Janeiro por diversas razões – conflitos por posse de terra em outros

estados, estudos, dificuldades financeiras, dentre outras – ocupavam o terreno do antigo

Museu do Índio, às margens da Radial Oeste, uma das vias expressas mais importantes do

Rio, na zona norte. O espaço, apesar da origem histórica, estava há quase 30 anos

abandonado, ora vazio, ora ocupado por sem-teto, até ser ocupado por esses índios, que

tinham como projeto a revitalização do local e a construção de um centro de referência

para a cultura indígena (proposta esta negociada junto ao governo federal e estadual, que

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prometeram atuar na transformação do espaço). Em 2012, no entanto, o planejamento das

obras do Estádio Mário Filho, o Maracanã, tornou inviável a manutenção do espaço, que

teria que ser demolido em favor de obras de mobilidade na região, mais especificamente,

um estacionamento. Sem acordo, governo e indígenas travaram uma batalha judicial até

que o uso força policial foi escolhida como ferramenta de desocupação do espaço. Ao

mesmo tempo, diversos setores da sociedade se mobilizaram pela resistência: estudantes,

professores, militantes de movimentos sociais, jornalistas e documentaristas estrangeiros,

etc. Foi nesse momento que a grande imprensa começou a dar destaque frequente à

questão. Esse episódio e os discursos da imprensa a seu respeito são o foco deste trabalho.

Analisar, comparativamente, os discursos de diferentes veículos de comunicação

sobre um mesmo conflito é uma opção interessante do ponto de vista teórico na medida em

que permite questionar a postura de imparcialidade, objetividade e neutralidade assumida

pelos órgãos da imprensa. No entanto, focar exclusivamente nestes discursos deixa de lado

um aspecto importante do ponto de vista antropológico. Nessa perspectiva, é através do

fluxo dos comportamentos, que os sentidos culturais emergem e podem ser apreendidos.

Por isso, além da pesquisa e da análise dos jornais, foi realizada também uma observação

etnográfica, o que foi possível porque o episódio estava ocorrendo ao longo da realização

do trabalho. Nessa observação, foi possível perceber que estavam presentes, nos conflitos,

indivíduos com perfis bastante diferentes, convivendo na ocupação da Aldeia Maracanã.

Assim, a reivindicação étnica aparecia misturada com causas relacionadas às políticas

públicas de urbanização, em função das reformas urbanas realizadas no Rio de Janeiro

visando os grandes eventos da Copa do Mundo e das Olimpíadas.

O objetivo central desse trabalho é analisar os sentidos da identidade indígena

presente nas ações e discursos dos ocupantes da Aldeia Maracanã – os próprios indígenas e

demais apoiadores - e no discurso veiculado na mídia através do jornal O Globo e o Jornal

do Brasil. Nos dois casos, se optou pela versão online porque esse ambiente teve papel

importante no desenrolar do episódio, tanto no que se refere ao compartilhamento de

informações quanto à militância. Especificamente, se buscou responder às perguntas: Em

que medida os diversos discursos convergem, divergem ou partem de pontos de vistas

diferentes? De que modo as informações coletadas durante a etnografia se relacionam com

o que foi publicado nos jornais? Como a discussão sobre identidade étnica e preservação

cultural se relaciona com o debate político de grupos de cariocas e sua crítica sobre as

ações de privatização de espaços públicos pelo estado?

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A análise comparativa dos discursos jornalísticos foi realizada sobre um total de 16

matérias publicadas nos jornais O Globo e Jornal do Brasil – oito em cada – ao longo de

um período de três meses, escolhido por abranger datas emblemáticas no desenvolvimento

do caso da Aldeia Maracanã. Serão analisadas e comparadas matérias do dia 12 de janeiro,

quando o Batalhão de Choque da Polícia Militar cercou pela primeira vez o terreno do

museu do índio sob a alegação de cumprir um possível mandado de reintegração de posse;

do dia 13 de janeiro, quando uma manifestação em favor dos índios foi realizada e uma

liminar da justiça impediu a remoção dos ocupantes do local; do dia 18 de março, em que o

prazo para a desocupação do terreno chegou ao final; e notícias referentes ao dia 22 de

março, quando a Polícia Militar, depois de entrar em conflito com manifestantes,

desocupou o antigo terreno do Museu do Índio.

No segundo capítulo do presente trabalho é feito um breve histórico da noção de

índio nas Ciências Sociais brasileiras, desde as influências europeias e norte-americanas

até os trabalhos de campo realizados aqui no Brasil.

O terceiro capítulo apresenta o contexto do conflito abordado nos discursos e na

pesquisa de campo. É um também breve histórico do terreno do antigo Museu do Índio,

bem como uma retrospectiva da ocupação da Aldeia Maracanã, desde 2006 até março deste

ano. Logo adiante, é relatada a pesquisa etnográfica realizada no mês de janeiro, através de

entrevistas, conversas informais e, principalmente, observação das ações e inscrição dos

discursos que ali se estabeleceram.

O quarto capítulo apresenta uma análise comparativa das matérias dos dois veículos

analisados e discute como a noção de índio é construída e utilizada nesses discursos.

Finalmente, a Conclusão apresenta uma síntese dos principais resultados alcançados

e aponta caminhos para futuras pesquisas.

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2 REFERENCIAL TEÓRICO

Este capítulo se propõe a abordar, inicialmente, o conceito de identidade étnica

estabelecido por alguns dos principais nomes da antropologia brasileira, como Gilberto

Freyre, Darcy Ribeiro, Roberto Cardoso de Oliveira e Roberto Da Matta. Mais à frente,

será feito um breve histórico e o debate sobre a representação do índio no Brasil desde o

século XVI até a atualidade, pontuando políticas públicas implementadas no país. A

questão do etnocentrismo será abordada a partir de textos de Everardo Rocha e Eduardo

Viveiros de Castro e, por fim, será discutido o conceito de identidade cultural na pós-

modernidade tal como definido por Stuart Hall.

2.1 A identidade étnica na Antropologia Brasileira

A discussão sobre a identidade étnica atravessa não só os estudos da antropologia

brasileira, mas também está presente nos discursos midiáticos, nas políticas públicas de

Estado e, é claro, no modo como os indivíduos assumem posições sociais e se

interrelacionam. Tomando-se o contexto brasileiro como objeto de estudo, a sobrevivência

dos povos indígenas a séculos de colonização e dominação e a contínua resistência desses

grupos diante do estado nacional merecem atenção especial. Ainda que a categoria

genérica “indígena” não dê conta da pluralidade étnica e cultural dos povos ameríndios, a

discussão sobre identidade étnica no Brasil recai sobre a dicotomia “índio x branco”. Mas

como a noção de índio foi produzida no Brasil? O que é ser índio no Brasil?

Antes de analisar o entendimento do estado brasileiro sobre a indianidade e as

consequentes políticas públicas implementadas, bem como os discursos midiáticos em

torno dessa, será feito um breve histórico dos estudos antropológicos sobre a identidade

étnica no Brasil. Como a produção acadêmica classificou e qualificou a identidade

indígena ao longo do tempo? Quais análises e conceitos marcam os diversos entendimentos

sobre a etnicidade indígena? Em “A identidade étnica na Antropologia Brasileira”, Roberto

Athias (2007), faz um breve histórico das concepções dos antropólogos e cientistas sociais

brasileiros a respeito da indianidade. Athias toma por base o também antropólogo

brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira, que define da seguinte maneira o conceito de

identidade étnica:

A identidade étnica é, enquanto forma ideológica das representações

coletivas de uma sociedade, concebida como um caso particular de

identidade social e como uma forma ideológica das representações

coletivas de um grupo étnico determinado. A definição da identidade

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étnica se faz, portanto de maneira dialética observando as relações entre o

nós e os outros. Isto implica bem entendido que duas entidades estejam

em relação, pois nenhum grupo social pode se conceber ideologicamente

se não percebe a existência de outro grupo. (CARDOSO DE OLIVEIRA

apud ATHIAS, 2007:119)

Athias também questiona em seu trabalho o modo como a identidade indígena se

definiu em função dos interesses do estado brasileiro ao longo dos séculos. Segundo o

autor:

As relações entre o estado nacional e os povos indígenas foram se

definindo em diferentes contextos sociopolíticos tendo como pano de

fundo as três dimensões presentes nos processos de formação dos estados

nacionais na América Latina: a primeira, a busca para uma concentração

econômica dos recursos, um modelo de desenvolvimento de fronteiras; a

segunda, um poder centralizador em todos os níveis; e a terceira, uma

fictícia “unidade étnica” nacional.” (ATHIAS, 2007:16)

Do ponto de vista das ciências sociais, o autor aponta três correntes no estudo da

etnicidade: a primeira está ligada à Teoria da Fusão das Raças (o índio, o branco europeu e

o negro), difundida ao longo dos séculos XIX e XX, que desmistificou a teoria da

superioridade branca e propôs uma teoria da mistura das raças em reposta às abordagens

que ainda predominavam entre os intelectuais brasileiros na época, adeptos de uma visão

eurocêntrica que afirmava a desgenerescência física e intelectual do homem no caso da

mistura genética.

Um dos autores que se contrapôs a esse ideário racista e purista foi Gilberto Freyre,

apontando como a mistura entre o índio, o europeu e o negro é o elemento formador do

povo brasileiro, responsável por sua especificidade original e adequada à natureza do meio

ambiente do país. Mas há que se ressaltar que não Freyre não se aprofunda na diversidade

cultural dentro da própria categoria indígena. Ao contrário, o índio aparece em sua obra

como uma categoria generalista e homogênea.

Antes de apresentar as outras duas correntes apontadas por Athias, é importante

pontuar o caráter etnocêntrico da teoria da superioridade branca e da pureza étnica. Na

perspectiva etnocêntrica, o conceito sobre o outro é construído a partir dos padrões e

valores de quem emite o discurso, sem que o outro possa dizer algo sobre si mesmo. O

antropólogo Everardo Rocha, em “O que é etnocentrismo” (1984), define:

etnocentrismo é uma visão do mundo com a qual tomamos nosso próprio

grupo como centro de tudo, e os demais grupos são pensados e sentidos

pelos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é

existência. No plano intelectual pode ser visto como a dificuldade de

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pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza,

medo, hostilidade, etc. (ROCHA, 1984: 3).

A postura etnocêntrica se instala no momento da constatação da diferença, do

choque cultural, o que explica bem as teorias racistas que se firmaram do século XVI ao

XIX, nascidas do choque causado pela colonização europeia nas Américas. A visão do

“eu” é tomada como única possível e plausível, a mais natural, a certa. Já o grupo do

“outro” – no caso as sociedades tribais -, ao entrar nessa lógica, torna-se o engraçado, o

absurdo, o ininteligível.

A antropologia, neste momento, está dominada pelo Evolucionismo, que tenta

explicar a diferença através do seguinte raciocínio: todas as sociedades teriam que passar

por estágios obrigatórios do desenvolvimento. O processo social seria evolutivo e

ascendente, com etapas a serem superadas e objetivos a serem alcançados. O problema

reside no fato de que tais etapas e objetivos partem justamente da representação do

processo de desenvolvimento do capitalismo industrial europeu-ocidental, sem nem levar

em conta que tal trajetória está baseada em apenas um modelo de sociedade, dentre tantos

outros possíveis. Rocha enfatiza que:

nem todas as sociedades buscam valorizar o tempo linear, histórico, feito

de acontecimentos sucessivos, com uma forma lógica (...) Cada sociedade

pensa sobre si mesma nos seus próprios termos. Não necessariamente sob

a lógica evolucionista, capitalista e industrial do ocidente. (ROCHA

1984:60)

No sentido evolucionista, uma vez que todos deveriam caminhar para o mesmo

ponto, determinadas sociedades estariam mais atrasadas que outras e vice-versa. A

definição de critérios medidores do chamado “progresso”, como o avanço científico,

separa o mundo entre primitivos e civilizados. E uma vez que se classifica determinada

sociedade como primitiva, estabelece-se o direito de “desenvolvê-la”. O que explica o

extermínio de culturas e povos tribais nas Américas, por exemplo. Rocha completa: “para

uma sociedade que tem poder de vida e morte sobre muitas outras, o etnocentrismo se

conjuga com a lógica do progresso, com a ideologia da conquista, com o desejo da riqueza,

com a crença num estilo de vida que exclui a diferença.” (ROCHA, 1984:75).

Por outro lado, há que se ressaltar que a atitude etnocêntrica não é exclusividade

das sociedades industrializadas ocidentais. A diferença reside no poder destrutivo que estas

sociedades tiveram sobre a cultura e a vida das sociedades tribais. Em “Os Pronomes

Cosmológicos e o Perspectivismo Ameríndio” (1996), o antropólogo Eduardo Viveiros de

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Castro cita uma anedota do antropólogo francês Lévi-Strauss: do mesmo modo que os

europeus chegaram à América se perguntando se o indígena tinha alma (como critério de

humanidade), os índios afogavam os brancos que aprisionavam a fim de verificar se seus

corpos eram ou não sujeitos à putrefação. Enquanto os brancos apelavam para as Ciências

Sociais na investigação da humanidade do outro, os índios recorriam às Ciências Naturais.

Lévi-Strauss aponta que, para os selvagens, há a classificação dos humanos verdadeiros e

dos extra-humanos. E que o etnocentrismo seria uma atitude ideológica e natural, inerente

aos coletivos humanos. Viveiros destaca que, de acordo com a perspectiva desse autor:

os índios, como os invasores europeus, consideram que apenas o grupo a

que pertencem encarna a humanidade; os estrangeiros estão do lado da

fronteira que separa os humanos dos animais e espíritos, a cultura da

natureza e da sobrenatureza. Matriz e condição de possibilidade do

etnocentrismo, a posição natureza/cultura aparece como um universal da

apercepção social. (VIVEIROS DE CASTRO, 1996: 124).

A segunda corrente diz respeito aos estudos sobre aculturação e mudança cultural

nos anos 1930, influenciados pela Antropologia norte-americana. Tais estudos estiveram

voltados essencialmente para a descrição dos processos de difusão, transmissão e

assimilação de "traços culturais". Eles tentavam explicar o contato entre índios e brancos, e

a consequente mudança cultural destes grupos em contato. No Brasil, foi o caso dos

estudos de Eduardo Galvão, que realizou pesquisas junto aos “Guajajara”, no Maranhão,

monitorando o contato desses indígenas com a população branca da região, a fim de

verificar de que forma os traços culturais eram mantidos ou perdidos, em ambos os lados, e

que comunidades indígenas se “deixavam aculturar” mais facilmente frente à pressão

cultural majoritariamente branca. Nesse momento, também ganha corpo a teoria da

Transfiguração Étnica, de Darcy Ribeiro, crítica à corrente da aculturação. Ribeiro

considera que a simples análise da manutenção ou perda de traços culturais não é suficiente

se não forem consideradas questões como dominação econômica, mudanças demográficas

e perda do patrimônio geográfico:

[...] assim como não há conversão, não há assimilação. O que há é uma

integração inevitável. Se o índio é cada vez mais cercado de um contexto

civilizado ou comercializado, se ele próprio se converte em mão de obra,

se ele próprio tem que produzir mercadoria, é claro que ele tem uma

integração cada vez maior com a sociedade nacional. Mas esta integração

não quebra nele a identidade, que é como a do judeu, como a do cigano.

Ele mantém a sua identidade como indígena. Apesar de transformados os

costumes, apesar de mudar o modo de se vestir. Apesar de todas essas

mudanças, ele permanece indígena. (RIBEIRO apud ATHIAS, 2007: 99).

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A terceira corrente parte de uma forte crítica ao conceito de aculturação. Também

considera a noção de transfiguração étnica, proposta por Darcy Ribeiro, pouco operacional,

e propõe substituí-la pela noção de fricção interétnica. Um dos principais autores dessa

linha de pensamento é Roberto Cardoso de Oliveira. Esse autor propõe uma abordagem

menos culturalista e mais sociológica do fenômeno de contato interétnico e considera a

noção de identidade étnica como uma construção ideológica. Nesse sentido, o contato é

concebido como uma relação processual dentro de um sistema interétnico e a ênfase se dá

nas relações contínuas que existem entre as populações e não no patrimônio cultural de

cada uma delas. Roberto Athias, citando Cardoso de Oliveira, destaca:

[...] não são os resultados da influência da cultura de uma sobre a outra,

nem o produto de uma criação comum determinada pelos fatores postos

em interação pelos grupos étnicos. Estas transformações exprimem a

maneira como cada sociedade reorganiza o complexo estrutural, de suas

relações econômicas, políticas e sociais, de maneira a manter no curso do

contato e no seio do sistema determinado por este um nível ao menos

razoável de relações com o sistema interétnico.” (ATHIAS, 2007:109).

O conceito de “identidades parodoxais” proposto por Roberto DaMatta (1976)

também se insere nessa perspectiva. Isso será melhor desenvolvido no próximo tópico.

2.2 As identidades sociais e o sistema cultural

Antes de se aprofundar no conceito de identidade étnica, Roberto DaMatta (1976)

discute o conceito de identidade social em “Quanto custa ser índio no Brasil?

Considerações sobre o problema da identidade étnica”. Segundo esse autor, os papéis

sociais implicam regras que comandam o funcionamento de um grupo social, isto é, atuam

como mediadores entre os códigos e os indivíduos que compõem uma sociedade. Uma

identidade social abriga vários papéis, como, por exemplo, um homem que é pai, médico,

marido e filho. Neste caso, tais papéis de emparelham, se encaixam, porque podem ser

exercidos simultaneamente, e de forma coerente, foi um mesmo indivíduo.

Por outro lado, dentro do sistema, os papéis sociais são tidos como desejáveis ou

indesejáveis, o que faz com que a sociedade encoraje alguns e iniba outros. Neste último

caso, trata-se das identidades custosas, aquelas que resultam em certos custos sociais.

DaMatta chama estes casos de situações não-gramaticais, onde há algum custo para algum

ator da interação social, como por exemplo, um estudante que se comporta como estudante

em uma festa junto, aos seus professores. O autor explica:

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Todo sistema social está ordenado em termos de múltiplas realidade,

domínios ou sub-universos de significação (...) tais sub-universos nem

sempre são coerentes entre si. É assim que o sistema social está ordenado,

em suas múltiplas realidades. Por outro lado, cada sub-universo é

dominado por valores específicos, proporcionando simultaneamente uma

visão especial (ou particular) da totalidade social e um modo de

relacionamento com todos os outros domínios do sistema. (DAMATTA,

1976:36).

Assim sendo, cada domínio tem seus códigos e seu sistema de identidades sociais.

Os domínios são abertos ou fechados em relação aos outros, e, desse modo, as identidades

sociais podem ser custosas ou não nessa interelação. Tal custo está diretamente relacionado

à questão do poder. “Cada domínio pode ter mais ou menos recursos para institucionalizar

seus pontos de vista acerca da totalidade social, estendendo ou não tais pontos de vista para

todo o sistema social” (DAMATTA, 1976:38). No contexto do sistema social, entretanto,

os domínios são hierarquicamente organizados. Por exemplo, há identidades que estão às

margens ou nas fronteiras da sociedade, numa posição de subalternidade (como os

indígenas), e outras que se encontram no seu centro, em posições de dominação.

Uma vez que cada universo social tem suas tradições e sistemas de classificação

diferenciados e suas experiências sociais e históricas são diferentes, as leituras existentes

em cada um sobre a realidade social, ainda que seja sobre o mesmo acontecimento, são

múltiplas. Essas diversas visões ou leituras da realidade disputam pelo reconhecimento de

sua legitimidade. Nessa disputa, os diferentes grupos sociais fazem uso de “recursos para

tornar legítimas certas perspectivas da realidade social e, consequentemente, invalidar as

outras.” (DAMATTA, 1976:41).

Ao analisar as relações, Roberto DaMatta distingue entre identidades paradoxais e

complementares. Assim, existem identidades encaixadas positivas, complementares como,

por exemplo, as relações que se estabelecem entre pais e filhos, médicos e pacientes,

maridos e esposas, mas há também os casos em que, apesar de encaixadas, são encaixadas

de forma contraditória ou negativa, como é o caso dos papéis de polícia e bandido, macho

e homossexual, virgem e prostituta, branco e índio. O autor explica que, neste caso, não se

trata do uso incorreto de regras de interação ou de seleção de papéis sociais, mas sim de

identidades.

Definidas como negativas, indesejáveis e ilegítimas, já que elas

ameaçam o sistema como uma perspectiva desviante, especial e não

legitimada mas, paradoxalmente, uma „leitura‟ contida e

engendrada pelo próprio sistema, como se fosse sua outra face ou

seu „outro lado‟ (DAMATTA, 1976:36).

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Nas situações, em que identidades paradoxais estão em confronto, a violência

funciona como um recurso totalizador. No caso da história colonial do Brasil e da

dominação dos povos indígenas pelos europeus, a violência resultou em submissão

política: a sociedade tribal teve que aceitar o quadro referencial totalizador do branco

europeu.

Ainda assim, DaMatta faz uma ressalva à essa relação direta entre o uso da

identidade étnica como recurso dominador:

a identidade étnica parece de fato atuar como uma identidade onipresente,

ou seja, como uma identidade que está sempre ao lado da situação de

conjunção e que pode ser acionada para qualificar negativamente,

determinar alguns ganhos ou neutralizar conflitos. Parece pacífico que a

identidade étnica é sempre ativada pelo grupo dominante para denegrir o

grupo dominado, como parte de um conjunto de instrumentos que visam

subjugar o índio. Mas não se deve esquecer, caso se queira realmente

ultrapassar o plano puro e simples do senso-comum, que identidades

étnicas são também acionadas para exigir proteção e/ou obter vantagens

que, no contexto regional, podem parecer ponderáveis. (DAMATTA,

1976:51).

2.3 Política indigenista: SPI, Funai , a Constituição de 1988 e o papel do antropólogo

De acordo com dados do último censo do IBGE, em 2010, 817 mil índios vivem no

Brasil, o que representa 0,4% da população do país. Eles estão distribuídos entre 688 terras

indígenas e algumas áreas urbanas. Há também 82 referências de grupos indígenas não-

contatados, das quais 32 foram confirmadas. Existem ainda grupos que estão requerendo o

reconhecimento de sua condição indígena junto ao atual órgão federal indigenista, a

FUNAI. São cerca de 220 povos indígenas, mais de 80 grupos de índios isolados, sobre os

quais ainda não há informações objetivas. Cerca de 180 línguas são faladas pelos membros

destas sociedades, que pertencem a mais de 30 famílias linguísticas diferentes1.

Para atuar no imbróglio provocado pelo contato entre as identidades paradoxais

(superficialmente entendidas como branco e índio), o Estado brasileiro estabelece

oficialmente uma política indigenista em 1910, através da criação do Serviço de Proteção

ao Índio (SPI), durante o governo do presidente Nilo Peçanha, e sob a direção de Cândido

Mariano da Silva Rondon, mais conhecido como Marechal Rondon. Entretanto, tal política

oficial nunca enfocou a diversidade cultural dos índios do Brasil. Pelo contrário, o índio foi

1 Disponível em: www.funai.gov.br. Acesso em: 20 de setembro de 2012.

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considerado por muito tempo como uma categoria genérica que deveria ser integrada à

sociedade nacional. Uma única política foi utilizada para “atrair” e “integrar” tais povos,

tão diferentes entre si, e com diferentes graus de contato com o resto da sociedade

brasileira. Roberto Athias cita Cardoso de Oliveira ao dizer que “esta política indigenista

na sua prática confirma a redução das etnias indígenas a uma só categoria chama „índio‟,

inventada pelo „civilizado, outra categoria também abstrata.” (CARDOSO DE OLIVEIRA

apud ATHIAS, 2007:31).

Juridicamente, o índio era considerado como um menor de idade, e chegou a ter o

mesmo status de um deficiente mental no antigo Código Civil. Não é difícil entender o

porquê de políticas paternalistas e marcadas pela cooptação cultural. O indígena era

entendido como um coletivo homogêneo e dependente da ação do Estado. Renato Athias

lista quatro mentalidades que rondaram as políticas públicas indigenistas desde o começo

do século XX no Brasil. Primeiro, a mentalidade estatística, em que o número de índios

seria irrisório diante do número de brasileiros, o que diminuiria sua importância em termos

de políticas públicas e demandas sociais. Tal mentalidade também vale para a

desimportância atribuída à morte de dezenas ou centenas diante do igual panorama entre

crianças que morriam de desnutrição no Nordeste, por exemplo. Há também a mentalidade

romântica, desenvolvida, sobretudo, entre intelectuais, herdada dos estereótipos da

literatura de Gonçalves Dias e José de Alencar: o índio como um ser puro e ingênuo, o

“bom selvagem”. Há ainda a mentalidade burocrática, a exemplo dos primeiros anos do

Serviço de Proteção ao Índio, em que os funcionários não tinham preparação técnica nem

científica para lidar com as comunidades indígenas, e agiam segundo uma mentalidade

romântica que via o índio sob um ponto de vista paternalista. E a quarta mentalidade, a

capitalista, que predomina, sobretudo, nos principais meios de decisão política e

econômica até a atualidade. Os índios são vistos como improdutivos, obstáculos ao

progresso econômico da nação, principalmente tratando-se da oposição entre a manutenção

de suas terras e a expansão agrícola, energética e pecuária. São muitos os exemplos da

atualidade, como a região do Xingu e de Belo Monte, no estado do Pará.

No final dos anos 1970, a intenção era tirar os índios da tutela do Estado. Em “no

Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é” (2006), Viveiros de Castro chama esse

processo de “desindianização jurídica”, isto é, retirar da responsabilidade do Estado

“aqueles já não apresentassem mais os “estigmas da indianidade necessários para o

reconhecimento de seu regime especial de cidadania”. (VIVEIROS DE CASTRO, 2006:1).

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A ideia que permeia tais ações governamentais deixa claro o pensamento evolucionista e

positivista, em que o índio é uma etapa a ser superada em direção à chamada “civilização”.

Também percebe-se, aqui, o quanto o “ser índio” era visto como um atributo determinável

por uma inspeção, como requisitos que deveriam ser preenchidos para autenticar uma

“indianidade”. Nesse sentido, Viveiros destaca:

[...] índio não é uma questão de cocar de pena, urucum e arco e flecha,

algo de aparente e evidente nesse sentido estereotipificante, mas sim uma

questão de estado de espírito. Um modo de ser e não um modo de

aparecer. Na verdade, algo mais (ou menos) que um modo de ser: a

indianidade designava para nós um certo modo de devir, algo

essencialmente invisível mas nem por isso menos eficaz: um movimento

infinitesimal incessante de diferenciação, não um estado massivo de

diferença anteriorizada e estabilizada, isto é, uma identidade. A ideia era

que índio não podia ser visto como uma etapa da marcha ascensional até

o invejável estado branco ou civilizado. (VIVEIROS DE CASTRO,

2006:2)

Em 1967, o governo militar de Costa e Silva cria a Fundação Nacional do Índio, a

Funai, em substituição ao SPI. O objetivo oficial era assegurar e proteger as terras

indígenas, além de fornecer a estes povos educação formal básica. Nesse contexto de

tentativa de controle dos povos indígenas, eles acabaram sendo visibilizados enquanto

atores políticos ao longo dos anos 70. Aos poucos, os índios começaram a reivindicar e

obtiveram um reconhecimento constitucional de um estatuto diferenciado permanente

dentro da chamada “comunhão nacional”.

Em 1988, um grande marco: a Constituição de 1988 consagrou o princípio de que

as comunidades indígenas constituem-se de sujeitos coletivos de direitos coletivos. O índio

deu lugar à comunidade. A referência indígena passou a ser um movimento coletivo, não

um atributo individual. A constituição interrompeu o processo de “desindianização” que se

desenrolava até então e os índios começaram a perceber que podia ser interessante voltar a

ser índio aos olhos do Estado. Viveiros de Castro classifica esse momento como um

processo de “re-etinização do povo brasileiro”. E nesse processo, surge a figura do

antropólogo como um perito que produz laudos de autenticidade étnica, identitária e

cultural. Atributo que vai inteiramente na contramão da essência da Antropologia. Viveiros

destaca ainda que a pergunta “quem é índio?” é uma pergunta jurídica, e não

antropológica, na medida em que só o índio pode se autoafirmar como índio. Não se trata

de uma questão cultural, verificável através de conteúdos culturais. A reposta a essa

questão cabe às comunidades que se sentem implicadas por ela. “Não cabe ao antropólogo

definir quem é índio, cabe ao antropólogo criar condições teóricas para permitir que as

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comunidades interessadas articulem sua indianidade.” (VIVEIROS, 2006:15). O autor

ainda reforça:

Em suma, para o antropólogo, o índio é como freguês – sempre tem

razão. O antropólogo não está lá para arbitrar se as pessoas que lhe

hospedam e cuja vida ele escarafuncha têm ou não razão no que dizem.

Ele está lá para entender como é que aquilo que elas estão dizendo se

conecta com outras coisas que elas também dizem ou disseram, e assim

por diante. Ao antropólogo não somente não cabe o direito de decidir o

que é uma comunidade indígena, como cabe, muito ao contrário, mostrar

que esse tipo de problema é indecidível. (VIVEIROS, 2006:7).

2.4 O índio no livro didático: generalização e primitivismo

O entendimento do estado acerca da questão indígena manifesta-se não só nas

políticas públicas estendidas aos próprios povos indígenas, mas no modo como são

representados nos livros didáticos, que passam pela sanção governamental. Deste modo, o

discurso dominante se cristaliza não apenas entre as estruturas de governo, mas também no

imaginário da população, através da educação. Veremos a seguir o quanto a representação

do índio, na análise de Everardo Rocha, é generalista e abordada no campo da Teoria da

Fusão das Raças como definição da formação do povo brasileiro.

Neste sentido, avaliar o livro didático é fundamental, já que essa plataforma é um

elemento de reprodução de determinados valores socialmente privilegiados numa dada

cultura. Através de que mecanismos se instalam e se perpetuam as profundas distorções

nas representações que fazemos da vida daqueles que são diferentes de nós? No capítulo

“O índio didático: notas para o estudo de representações”, do livro “A testemunha ocular:

textos de Antropologia Social do Cotidiano, (ROCHA et al, 1984) trata dessa questão.

A questão central deste problema é quem fala o quê sobre quem. Não são os

indígenas – entenda-se aqui os diversos grupos - que falam a respeito de si, de suas

culturas ou modos de enxergar a realidade. É o homem branco, sob o ponto de vista do

colonizador, que atribui características e valores aos povos indígenas: “aqueles que são

diferentes de nós por não poderem dizer de si mesmos, são representados sempre através

de nossa própria ótica e segundo necessidades ideológicas de um dado momento”

(ROCHA et al, 1984:16).

Rocha divide em três momentos a representação que se estabeleceu sobre o índio,

como forma de emprestar sentido a determinados fatos históricos no Brasil: no século XVI,

quando o europeu se depara com as sociedades tribais, o índio é questionado em sua

humanidade. “Teria ele alma? São antropófagos? Como animais?” Quando sua

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humanidade é aceita, a questão se desloca para o paganismo: o índio, enquanto pagão e

inocente de sua condição, precisa ser salvo através da catequese. Mais tarde, no século

XIX, o índio assume o lugar de filho da pátria, de homem de coragem, de primeiro

habitante da terra, portanto, formador da essência étnica do povo brasileiro, com base no

Mito das Três Raças: o branco europeu, o índio e o negro, cada qual com sua contribuição

à dita “essência” do brasileiro. O branco, como elemento intelectual, o índio como fator de

coragem e pureza da terra e o negro, com a força física. Percebe-se claramente a base

determinista e biologizante dessa linha de pensamento, portanto, etnocêntrica.

Dois conceitos definem, de acordo com o autor, o tipo de representação dada ao

índio no livro didático: generalização e primitivismo. O índio é definido como uma

categoria única, que existe em contraste com o homem branco. Este, por sua vez, sempre é

especificado: os portugueses, holandeses ou espanhóis. Tal homogeneização leva ao

entendimento errôneo do indígena como membro de um grupo unitário, o que passa longe

da realidade. A única diferença apontada por esse discurso é sua classificação como índio

do litoral e índio do interior, tal como fizeram os colonizadores nas primeiras cartas, sem

levar em conta as múltiplas etnias e diferenças entre os grupos. Há ainda os aspectos que

denotam o primitivismo: as características da sociedade tribal privilegiadas nos livros são

sempre as mesmas: eles fazem canoas, vivem em ocas, andam nus, etc. Não se discute

nada sobre a complexidade de sua vida ritual, sua concepção de mundo, seu sistema de

parentesco ou descendência. Rocha explica bem as raízes desse tipo de representação:

parece lógico supor que de acordo com o critério de escolha das áreas da

cultura indígena a serem privilegiadas, torna-se, então, possível

generalizar o estabelecer o atraso cultural. Não foi assim que o

evolucionismo procedeu? [...] Junta-se um certo número de aspectos, a

partir deles compara-se vários grupos sociais e daí escalona-se os

diferentes estágios de civilização. (ROCHA et al, 1984:35).

´O indígena é o “outro” calado. A ele, não é permitido falar sobre si mesmo. “é

mera imagem sem voz, manipulado de acordo com os desejos ideológicos, o índio é, para o

livro didático, apenas uma forma vazia que empresta sentido ao mundo dos brancos.”

(ROCHA et al, 1984:17)

2.5 A identidade social na pós-modernidade: descentramento e pluralização

Como se pode ver, a questão da identidade é um tema amplamente discutido pela

Teoria Social. Stuart Hall, uma das figuras mais importantes da área dos estudos culturais

das últimas décadas, discute o caráter essencialmente plural e negociável das identidades,

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indo na contramão dos teóricos que tentaram fixá-las dentro de fronteiras geográficas e

padrões culturais. Segundo Hall, as velhas identidades que, por tanto tempo, estabilizaram

o mundo social, estão agora em declínio. O indivíduo moderno, até então visto como um

sujeito unificado em sua identidade, se desloca, se fragmenta, e novas identidades surgem a

cada contexto.

Em “A identidade cultural na pós-modernidade” (1992), Hall faz um histórico das

concepções sobre a identidade sujeito até chegar ao estágio da pós-modernidade, ou a

chamada “modernidade tardia”. São três concepções: o sujeito iluminista, o sujeito

sociológico e o sujeito pós-moderno. O sujeito do iluminismo estava baseado numa

concepção de unidade, razão e consciência. O sujeito é, sob este ponto de vista,

individualista, nuclear e centrado em si mesmo. Já a noção de sujeito sociológico surge no

contexto em que o mundo moderno se complexifica, e o sujeito percebe que não é

autônomo nem autossuficiente, mas que depende da relação com o outro para se

estabelecer. A concepção do “eu” passa a ser interativa: a identidade se estabelece

justamente como ponte entre o interior e o exterior. Hall explica que, neste sentido, “a

identidade costura o sujeito à estrutura [...] Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos

culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis”

(HALL, 1992:12). Entretanto, é exatamente essa concepção que está em mudança. Hall

prossegue:

O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e

estável, está se tornado fragmentado; composto não só de uma única, mas

de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas.

Correspondentemente as identidades eu compunham as paisagens sociais

„lá fora‟ e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as

„necessidades‟ objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como

resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de

identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades

culturais, tornou-se provisório, variável e problemático. (HALL,

1992:12).

Tal processo produz o sujeito pós-moderno, que não tem mais uma identidade fixa,

essencial ou permanente, mas uma identidade móvel, que se transforma continuamente em

relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais

que nos rodeiam. Hall explica que o sujeito assume identidades diferentes em diferentes

momentos, e que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente, ao contrário, se

contradizem entre si, se deslocam na medida em que nos direcionamos para pontos

diferentes.

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O principal fator desencadeador deste processo é o impacto da globalização sobre

as identidades culturais. Citando Anthony Giddens, sociólogo britânico, Hall destaca: “na

medida em que áreas diferentes do globo são postas em interconexão umas com as outras,

ondas de transformação social atingem virtualmente toda superfície da terra” (GIDDENS

apud HALL, 1992:15). Nesse sentido, as sociedades modernas são - por definição e em

oposição à sociedades tradicionais - as sociedades da diferença, da mudança constante.

Elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que geram diferentes

“posições de sujeito”. Poder-se–ia argumentar que tal panorama de instabilidade poderia

desintegrar os grupos sociais. Contudo, as identidades, apesar de diferentes, se articulam

conforme a necessidade.

Stuart Hall lista alguns pontos essenciais na questão do descentramento das

identidades, da modernidade em diante. Primeiramente, o nascimento da biologia

darwiniana, seguido do surgimento das novas ciências sociais. O pensamento marxista gera

o primeiro descentramento do sujeito. Karl Marx deslocou duas proposições-chave da

filosofia moderna: a de que há uma essência universal de homem e que essa essência é o

atributo de cada indivíduo singular. Embora seu trabalho tenha sido amplamente criticado,

seu anti-humanismo teórico teve um impacto considerável sobre muitos ramos do

pensamento moderno.

O segundo dos grandes descentramentos no pensamento ocidental do século XX

sobre a identidade vem da descoberta do inconsciente, por Sigmund Freud. A teoria de que

nossas identidades, nossa sexualidade e a estrutura de nossos desejos são formadas com

base em processos psíquicos e simbólicos do inconsciente, que funciona de acordo com

uma lógica muito diferente daquela Razão, desconstrói o conceito do sujeito cognoscente e

racional provido de uma identidade fixa e unificada – o „penso, logo existo‟, do sujeito de

Descartes. As partes ditas femininas que se expressam inconscientemente nos homens, e

assim por diante. Hall reforça essa ideia: “a identidade é realmente algo formado, ao longo

do tempo, através de processos inconscientes e não algo inato [...] Existe sempre algo

„imaginário‟ ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está

sempre em processo, sempre sendo formada”. (HALL, 1992:38). Para o autor, ao invés de

falarmos da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la

como um processo em andamento. Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a

“identidade” e construindo biografias que costuram as diferentes partes de nossos “eus”.

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O autor assinala o terceiro descentramento com o trabalho do linguista francês,

conhecido como pai do estruturalismo, Ferdinand de Saussure. Ele argumentava que nós

não somos, em nenhum sentido, os autores das afirmações que fazemos ou dos significados

que expressamos na língua. A língua é um sistema social, e não individual: é o

compartilhamento de significados embutidos na cultura. Na sequência, o quarto

descentramento surge com a obra do historiador e filósofo francês Michel Foucault que

destaca um novo tipo de poder, que chama de “poder disciplinar”, que se desdobra ao

longo do século XIX, chegando ao seu desenvolvimento máximo no início do século XXI.

O objetivo do “poder disciplinar” consiste em manter as vidas, as atividades, o trabalho, as

infelicidades até os prazeres do indivíduo, assim como sua saúde física e moral, suas

práticas sexuais e sua vida familiar, sob estrito controle e disciplina, com base no poder

dos regimes administrativos, do conhecimento especializado dos profissionais e no

conhecimento fornecido pelas disciplinas das Ciências Sociais.

O quinto elemento de descentramento das identidades foi o impacto do feminismo,

tanto em sua acepção teórica quanto sua vertente de movimento social. O feminismo teve

uma relação direta com o descentramento conceitual do sujeito cartesiano e sociológico:

questionou a clássica distinção entre o “dentro” e o “fora”, o “privado” e o “público”; abriu

para a contestação política a família, a sexualidade, o trabalho doméstico, o cuidado com

as crianças, etc; enfatizou, como uma questão política e social, o tema da forma como

somos formados e produzidos como sujeitos generificados; expandiu-se para incluir a

formação das identidades sexuais e de gênero, enfim, o feminismo questionou a noção de

que os homens e as mulheres eram parte da mesma identidade, a “Humanidade”,

substituindo-a pela questão da diferença sexual.

Hall discute ainda a questão da nacionalidade como atributo da identidade cultural.

Citando Benedict Anderson, ele coloca como as culturas nacionais são pensadas como

parte da natureza dos indivíduos, quando, na verdade, são um discurso, um conjunto de

símbolos e representações que nos influencia e organiza nossas ações quanto à concepção

que temos a respeito de nós mesmos. Os sentidos sobre o que é a “nação” geram

identificação e sentidos sobre nós mesmos. É por isso que as diferenças entre nações

residem nas formas através das quais elas são “imaginadas”. E elas são imaginadas através

dos seguintes elementos: a narrativa sobre a nação, através da cultura popular, da mídia e

da literatura; o privilégio da tradição como caráter imutável e a existência de um mito

fundacional, que localiza a origem da nação num tempo não real, mas mítico. Contudo,

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Hall destaca que “a maioria das nações consiste de culturas separadas que só foram

unificadas por um longo processo de conquista violenta – isto é, pela supressão forçada da

diferença cultural” (HALL, 1992:59), como podemos observar na história da colonização

europeia sobre a África e as Américas. O autor assinala que as identidades nacionais não

subordinam todas as outras formas de diferença e não estão livres do jogo de poder, de

divisões e contradições internas. Assim, quando vamos discutir se as identidades nacionais

estão sendo deslocadas, devemos ter em mente a forma pela qual as culturas nacionais

contribuem para “costurar” as diferenças numa única identidade.

Para Hall, o fenômeno da globalização é o fator desencadeante da movimentação

das identidades culturais na pós-modernidade. Ela se refere aos processos atuantes numa

escala global, que atravessam as fronteiras nacionais, integrando e conectando

comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornando o mundo,

em realidade e em experiência, mais interconectado. A globalização enfraquece a ideia

sociológica clássica da sociedade como um sistema bem delimitado, e a substitui por uma

perspectiva focada na forma como a vida social está ordenada ao longo do tempo e do

espaço, já que essas categorias são básicas para os sistemas de representação, o que gera

efeitos diretos sobre as identidades culturais.

Muitas vezes, as “identificações globais” se deslocam e são colocadas acima do

nível da cultura nacional. Algumas vezes, ameaçam apagar as identidades nacionais. Os

sujeitos que estão em zonas “influenciáveis” do globo isto é, aquelas que recebem mais

fácil e frequentemente influências de outras partes do mundo, são confrontados o tempo

todo uma gama de diferentes identidades, dentre as quais parece possível fazer uma

escolha. Entretanto, Hall faz uma ressalva ao afirmar que parece improvável que a

globalização vá simplesmente destruir as identidades nacionais. É mais provável que ela

produza, como produz, novas identificações globais e novas identificações locais:

a globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as identidades

centradas e „fechadas‟ de uma cultura nacional. Ela tem um efeito

pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de

possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as

identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas;

menos fixas, unificadas ou trans-históricas. (HALL, 1992:87).

Neste sentido, ele continua a argumentar e lista três contratendências a ideia de que

as identidades nacionais estão se homogeneizando diante do fenômeno da globalização.

Novamente, afirma que “ao lado da tendência em direção à homogeneização global, há

também uma fascinação com a diferença e com a mercantilização da etnia e da alteridade.

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Há, juntamente com o impacto do „global‟, um novo interesse pelo „local‟.”

(HALL,1992:77). Isso atrelado ao fato de que nem todas as partes do globo são atingidas

na mesma proporção pelos efeitos da globalização, e as relações de poder cultural ainda

são desiguais entre o ocidente e o oriente.

Ainda na discussão sobre a relação entre as identidades locais e os efeitos da

globalização, o autor explica a noção tradução, que diz respeito às formações de identidade

que atravessam as fronteiras naturais, compostas por sujeitos dispersos de seu local de

origem. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus suas “terras natais” e tradições, mas

não tem a ilusão de retorno ao passado. A situação as obriga a negociar com as novas

culturas: não são assimiladas completamente pelos novos contextos, não perdem

completamente as suas identidades. Hall afirma que elas têm suas identidades “traduzidas”,

no sentido de transferidas, transportadas:

Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das

histórias pelas quais elas foram marcadas. A diferença é que elas não são

nem nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são,

irrevogavelmente, o produto de várias histórias culturais interconectadas,

pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias „casas‟. As pessoas

pertencentes a essas culturas híbridas tem sido obrigadas a renunciar ao

sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural

„perdida‟ ou de absolutismo étnico. Elas estão irrevogavelmente

traduzidas. (HALL, 1992:89).

Entretanto, em contraposição a ideia de que o hibridismo e o sincretismo cultural

produzem, no sentido positivo, novas formas de cultura, esse mesmo relativismo também

pode implicar, por indeterminação de identidades culturais, custos e perigos, o que ele

exemplica através do nascimento de grupos fundamentalistas no Oriente Médio, mas que,

pode se aplicar também a deslegitimação da identidade indígena no contexto urbano, como

veremos no capítulo de análise deste trabalho. Atrelado a isso, está também o conceito de

negociação de identidades: o episódio da Aldeia Maracanã pode ser amplamente analisado

nesse sentido, uma vez que uma reivindicação política se desenvolveu aliada a afirmação e

negociação da(s) identidade(s) cultural(is).

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3 ALDEIA MARACANÃ: CRONOLOGIA E RELATO ETNOGRÁFICO

Antes de analisar como os jornais “Jornal do Brasil” On Line e “O Globo” On line

trataram os episódios que se sucederam no Rio de Janeiro em função dos conflitos em

torno da ocupação da chamada Aldeia Maracanã, faz-se necessário um entendimento sobre

a dinâmica deste fenômeno e também sobre como seus agentes se relacionaram com os

veículos de comunicação no momento de maior efervescência do desses fatos no cenário

da grande mídia. Para isto, foi feita uma breve observação etnográfica dos acontecimentos

antes e durante a análise do tratamento jornalístico da questão. Nela foram coletadas

informações dos diferentes agentes em interlocução no conflito no espaço em que ele

ocorreu. Com base nas ideias apresentadas por Clifford Geertz em “Uma descrição densa”

(1973). A intenção foi entender os significados das ações do movimento que se articulou

em defesa da ocupação do local por um grupo de origem indígena no discurso de seus

participantes e como esse discurso e ações se articulavam com os das instâncias

exteriores: poder político, poder jurídico e veículos de comunicação.

3.1 O caso “Aldeia Maracanã”

Não há informação suficiente e disponível – ao menos por vias oficiais - que

descreva, sem contradições, a origem do terreno da chamada Aldeia Maracanã. Portanto,

serão levadas em conta neste trabalho as fontes de veículos jornalísticos, tanto os que serão

analisados, quanto outros, que apresentaram informação sobre o caso.

O espaço, localizado às margens da Radial Oeste - umas das principais vias

expressas da zona norte da cidade do Rio de Janeiro – e no entorno do Estádio Mário Filho

- o Maracanã - remonta ao início do século XIX, quando era ocupado por engenhos de

açúcar e era de propriedade jesuíta. Tais dados estão registrados em um relatório de 1997,

do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural, o INEPAC (órgão vinculado à Secretaria de

Cultura do estado do Rio de Janeiro) e carimbado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e

Nacional (IPHAN), divulgado pela Agência Pública de Jornalismo, em reportagem do dia

18 de janeiro deste ano2.

2 Disponível em:

http://www.apublica.org/wpcontent/uploads/2013/01/relat%C3%B3rio_inepac_processo_tombamento.pdf.

Acesso em: 26 de outubro de 2013.

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No ano de 1889, quando o Brasil se torna República, tais terras, então adquiridas

pelo Duque de Saxe, genro de D. Pedro II, deixariam de pertencer ao Império do Brasil e

passariam a ser propriedade do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. O casarão

imperial se tornou conhecido a partir de 1953, como sede do Museu do Índio, chefiado por

Darcy Ribeiro, mas idealizado anos antes pelo Marechal Rondon então chefe do Serviço de

Proteção ao Índio, como um local que serviria de sede à pesquisa e documentação da

cultura indígena. O museu se tornaria referência internacional, servindo de “modelo a

diversas instituições, orientando-a quanto à catalogação e classificação de material

etnográfico e quanto aos melhores métodos de exposição museográficas”, como aponta o

relatório do INEPAC supracitado e anexado a este trabalho. Embora os pesquisadores do

então INEPAC não tenham verificado nenhuma menção ao fato nos jornais de 1953, todas

as matérias que tratavam da comemoração de 30 anos do Museu do Índio foram publicadas

em 1983.

Em 1978, o Museu do Índio mudou oficialmente de endereço: foi para a Rua das

Palmeiras, em Botafogo, zona sul da cidade. O antigo prédio, então, passou para as mãos

da Companhia Nacional de Abastecimento, que durante anos abandonou o casarão e o

deixou praticamente em ruínas. Deteriorado, acabou não sendo tombado pelo IPHAN, que

o avaliou como de baixa relevância nacional do ponto de vista histórico e arquitetônico, de

acordo com o relatório também divulgado pela reportagem da Agência Pública3.

Em 20 de outubro de 2006, um grupo de índios de diferentes tribos ocupou o

prédio, de acordo com informações dos próprios ocupantes, que serão melhor detalhadas

no subcapítulo seguinte. Desde então, o grupo de indígenas fundou no local a Aldeia

Maracanã, que passou a ser caracterizada como um espaço de resistência e luta pela

criação de um centro cultural indígena, por seu significado e importância histórica.

Segundo o Cacique Carlos Tukano, líder do movimento até março deste ano, a ocupação se

deu pela vontade de um espaço sob gestão dos indígenas. De origem amazônica, Tukano

conta que se mudou para o Rio de Janeiro em 1997 para trabalhar no Museu do Índio em

Botafogo. Ele argumenta que a motivação da ocupação partiu de uma necessidade de um

3 Disponível em:

http://www.apublica.org/wpcontent/uploads/2013/01/processo_tombamento_iphan_antigo_museu_do_%C3

%ADndio.pdf. Acesso em: 26 de outubro de 2013.

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espaço próprio também para receber indígenas migrantes sem lugar para ficar, enfim, um

espaço de preservação da cultura e convivência dos povos. Em 23 de outubro de 2006,

segundo informações de uma reportagem do Jornal do Brasil4, ainda em versão impressa, o

Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, então dono do terreno, havia

concordado em transformar o casarão em um centro de referência indígena. Com falas do

Governador Sérgio Cabral (“vamos ter que fazer um grupo de trabalho para restaurar o

espaço”), a matéria informa que o governo do Estado também havia aderido à causa e

estava disposto a concretizar a proposta dos indígenas.

A partir disso, o prédio passou a ser recuperado de acordo com a pequena

capacidade financeira dos indígenas que ali se instalaram. Como já citado, o péssimo

estado de conservação do prédio não possibilitou, de fato, a construção de um centro de

referência indígena como o imaginado. Várias pequenas casas foram sendo construídas ao

redor do prédio principal, para abrigar os índios de cerca de 20 etnias diferentes que ali se

instalavam e promoviam seus rituais à medida em que a estrutura permitia, já que não

houve ação estatal, apesar da promessa.

Ainda de acordo com informações do Jornal do Brasil, o Governo do Estado do Rio

formalizou em 29 de outubro de 2012 a compra do terreno, até então de posse do Governo

Federal – através da Companhia Nacional de Abastecimento, em razão das obras de

mobilidade no entorno do estádio do Maracanã para a Copa das Confederações (2013) e

para a Copa do Mundo (2014). Segundo a matéria publicada, o governador Sérgio Cabral

justifica a demolição:

“Será feita uma área de mobilidade com determinadas características. E

no meio do caminho tem esse prédio, que não é tombado e não tem

nenhum valor histórico. Portanto, não tem cabimento ele ficar no meio do

caminho de uma concepção que é para garantir segurança e conforto para

milhares de pessoas que vão ao Maracanã” 5.

Neste momento, mesmo destino teriam a Escola Municipal Friendenreich e o

Estádio de Atletismo Célio de Barros.

4 Disponível em: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2013/01/26/cabral-desconhece-promessas-de-outro-

cabral/. Acesso em: 26 de outubro de 2013.

5 Disponível em: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2012/10/29/apesar-da-proibicao-da-demolicao-do-museu-

do-indio-cabral-compra-o-terreno/. Acesso em: 26 de outubro de 2013.

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Estabelecido o imbróglio, os veículos de comunicação - a exemplo do Jornal o

Globo e do Jornal do Brasil, que serão analisados neste trabalho - e outros veículos que

fizeram uma série de matérias especiais de fiscalização das obras da Copa do Mundo,

reforçaram a cobertura do assunto, que envolve não só a posse de um imóvel, mas um jogo

de identidades e poderes dentro do espaço da cidade do Rio de Janeiro.

O caso ganhou notória repercussão nacional e internacional quando o Batalhão de

Choque da Polícia Militar do Rio de Janeiro cercou o local, no dia 12 de janeiro, a fim de

desocupá-lo. Mais a frente, serão listados os episódios-chave, emblemáticos, que

evidenciaram o tema na mídia nacional e internacional, sobretudo nos dois veículos aqui

tratados, especificamente.

É importante ressaltar que a proposta deste trabalho é analisar os eventos que se

sucederam entre os meses de janeiro (com a primeira ameaça militar ao local) e março

(quando a força policial desocupa o imóvel e parte dos indígenas é transferida para um

termo em Jacarepaguá, zona oeste do Rio). Entretanto, o caso não se esgota aí. Parte dos

indígenas e outros militantes da causa mantiveram o movimento “Aldeia Resiste” e

reocuparam o espaço no dia 5 de agosto. Inclusive, o prédio foi tombado em caráter

definitivo pela prefeitura do Rio no dia 12 de agosto, como informa a Agência Brasil6

3.2 Uma semana na aldeia: o relato etnográfico como metodologia

“Quer ser índio, quer terra? Então vai pra floresta”. Ouvi esse comentário de uma

editora-executiva de um telejornal de um importante canal de notícias a cabo, se referindo

ao episódio da Aldeia Maracanã. Tal comentário é revelador acerca do que alguns setores

da mídia tradicional entendem a respeito do que seja identidade cultural e, mais ainda, do

que seja a identidade indígena. Algo engessado, sob a égide de critérios de pureza e

contextos sociais pré-definidos. Esse cenário torna ainda mais necessária a discussão sobre

que tipo de discursos foram disseminados e ratificados sobre este tema ao longo do período

analisado por este trabalho.

Contudo, além de monitorar os conteúdos discursivos veiculados pelas plataformas

de comunicação em questão, o presente trabalho está baseado em uma pesquisa de campo,

6 Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-08-12/prefeitura-do-rio-decide-tombar-escola-

friedenreich-e-antigo-museu-do-indio. Acesso em: 26 de outubro de 2013.

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realizada entre os dias 28 de janeiro e 1 de fevereiro deste ano. Ao longo destes 5 dias,

visitei o espaço da Aldeia Maracanã afim de observar comportamentos, coletar

informações, interpretar discursos e entender, internamente, a relação que se estabelecia

entre os ocupantes do espaço, entre os ocupantes e a abordagem dos meios de comunicação

e, principalmente, a articulação dos discursos e ações de ambos os lados, sem, no entanto,

ter a pretensão de absorver o que se chame de “verdade dos fatos”. Em “Uma descrição

densa” (1973), artigo que foi base teórica para a parte etnográfica deste trabalho, o

antropólogo Clifford Geertz destaca que o que chamamos de nossos dados, numa pesquisa

como esta, são a nossa própria construção a partir das construções de outras pessoas.

Neste sentido, ele ressalta o fenômeno da cultura como uma teia de significados:

O conceito de cultura (...) é essencialmente semiótico. (...) O homem é

um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu.

Assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto não

como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência

interpretativa, à procura de significado. (GEERTZ, 1973:4).

A análise implica na escolha de algumas dessas construções simbólicas entendidas

por Geertz como estruturas de significação, por serem estratégicas para a compreensão dos

sentidos em pauta.

O que inscrevemos é aquela pequena parte do discurso social ao qual

nossos informantes nos dão acesso e podem nos levar a compreender. A

análise cultural é uma adivinhação dos significados, uma avaliação das

conjecturas, um traçar de conclusões explanatórias a partir das melhores

conjecturas. (GEERTZ, 1973:7).

Basear-se apenas na interpretação dos jornais limitaria em grande escala a

percepção dos significados da construção de identidade indígena que se busca neste

trabalho, já que a disputa por um terreno e a reivindicação desse e de outros espaços da

cidade – como veremos adiante – se relaciona diretamente com o fator “identidade étnica”.

Ao longo de uma semana, estive no local realizando entrevistas, documentando

diálogos, observando rituais, perfis e comportamentos, e até mesmo participando de

determinadas atividades coletivas. Geertz define:

Fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de „construir uma leitura

de‟) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências,

emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais

convencionais do som, mas com exemplos transitórios do comportamento

modelado. (GEERTZ, 1973:7).

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Ao contrário do que pensavam fazer alguns jornalistas – verificar a se a

“indianidade” reivindicada era verdadeira para legitimar a luta pelo espaço – minha

intenção era inscrever e interpretar a interpretação identitária que aqueles sujeitos tinham

de si próprios. Como bem coloca Viveiros de Castro, o papel do etnógrafo não é

inspecionar conteúdos culturais e julgá-los legítimos ou não, mas sim entender de que

modo os sujeitos se auto-afirmam em questão de identidade e como isso se relaciona com

suas ações, visão de mundo, e discurso sobre outras coisas. Outro aspecto importante nesta

pesquisa de campo é a tentativa de relativização do ponto de vista, sob pena de cair na

armadilha do etnocentrismo. Dois interesses divergentes estavam em conflito: a

preservação de um espaço entendido como patrimônio cultural, imaterial, como significado

importante da memória social brasileira; e a necessidade governamental e privada de

apropriar-se do espaço em prol de eventos entendidos como econômica e socialmente

importantes para a cidade.

Quem estava na chamada Aldeia Maracanã? Ou melhor: que sujeitos a constituíam

enquanto movimento cultural e também político? Assim que cheguei ao espaço, bem

marcado por pinturas e frases de ordem em seus muros, fui recebida por Hélcio Mello,

professor de História. Ele me contou, superficialmente, história do local, o antigo Museu

do Índio de Darcy Ribeiro, me mostrou algumas partes espaço e me apresentou à Melissa,

professora de cultura indígena e contadora de histórias. À beira de uma espécie de fogueira

feita de palha seca, acesa todo fim de tarde, como ritual, Melissa conversava com um

jovem, estudante de Ciências Sociais.

Sentei-me próxima a eles, no chão, em torno da fogueira. Melissa me contou que já

frequentava o espaço há 2 anos e participava da organização e execução de eventos sobre a

cultura indígena, rodas de contação de histórias, coisas desse tipo. Perguntada sobre o

motivo de sua presença no local, a resposta não começou com um discurso sobre a

resistência e luta indígena no Brasil. Para ela, a questão indígena era emblemática e

simbólica em um contexto maior: o de privatizações, despejos e arbitrariedades que

vinham sendo perpetradas pelas autoridades da cidade do Rio de Janeiro nos últimos anos,

desde a promessa da Copa do Mundo e das Olimpíadas. A aldeia era, então, para ela, mais

uma ferramenta simbólica de luta contra o governo do Estado, através da causa indígena

que ali se estabeleceu.

O fluxo de pessoas era intenso: havia rodízio entre os ocupantes, cerca de 50, por

causa da falta de espaço para todos, sem contar a presença de jornalistas e documentaristas

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estrangeiros, que se hospedavam por mais tempo. O propósito era, além de absorver e

partilhar novos elementos culturais, fortalecer a resistência a uma possível invasão do

governo através da polícia.

Já no primeiro contato com o local, percebi que o perfil dos ocupantes era bastante

diverso. Professores, estudantes universitários (quase todos de ciências humanas),

militantes de movimentos sociais e os que se identificavam enquanto índios (e também

partilhavam de outros papéis sociais, como colocou DaMatta como os de advogados,

professores, entre outros). Também conheci Mônica Lima, pesquisadora da área da Saúde

na UERJ, que se envolveu fortemente com a causa. Começou a frequentar o local e dar

suporte à saúde do líder da ocupação, o Cacique Carlos Tukano. Era o caso também de

Rossana, assistente administrativa, moradora do bairro do Maracanã. Visitou o espaço da

Aldeia por curiosidade, ficou por afeto, transformou-se em militante da causa.

Também foi possível perceber pessoas que se juntaram à ocupação muito mais por

estilo de vida – ou uma insatisfação política generalizada - do que por relação com a

cultura indígena, reivindicada naquele espaço. Eram chamados anarco-punks. Alguns

estavam lá, pois não se encaixavam nas regras da própria casa, outros, pelo estilo de vida

simples e libertário que o próprio ambiente emanava. A rotina, totalmente coletivizada,

pressupunha cooperação entre os membros e esforço em prol do grupo nas atividades do

dia-a-dia, como cozinhar e limpar os espaços. A maioria, jovens entre 18 e 25 anos. Pude

conversar com três deles. Estavam empolgados em viver a experiência de morar em

condições simplórias e até precárias, partilhando o cotidiano com várias pessoas diferentes

– além dos índios, professores, jornalistas, cineastas, brasileiros e estrangeiros, uma

pluralidade de perfis ocupava o local.

Além dos rituais de canto e dança, dos quais participavam não só os indígenas, mas

todos os ocupantes, já inseridos nessas práticas, a pintura era um fator visual importante

como significado de adesão à causa, de inserção naquele contexto. Ao recusar a pintura

(que era permanente por alguns dias), ganhei alguns olhares antipáticos de alguns

ocupantes, os ditos “não-índios”. Também era assim na hora das refeições. Os rituais

cotidianos, fossem eles básicos, como as refeições e a limpeza, ou manifestações culturais

indígenas, como as rodas de canto, dança e fogueira, eram integradores de cada

“estrangeiro” que adentrava aquele ambiente.

Ao conversar com alguns ocupantes indígenas - que migraram de outras regiões do

país com suas famílias por oportunidades de sustento ou apenas se deslocaram para o Rio

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para se juntar à resistência, temporariamente - fui várias vezes perguntada sobre a minha

ascendência indígena. O que eu sabia sobre ela, de onde eram meus pais, avós, de que etnia

poderiam ser meus antepassados. Das várias vezes que os abordei para conversas mais

descontraídas ou entrevistas, a indagação por minha possível origem indígena sempre

vinha à tona. Como se isso me torna-se parte daquele movimento, como adepta daquela

comunidade que ali se estabelecera.

Duas lideranças eram claras naquele espaço. A do Cacique Carlos Tukano, que deu

início à ocupação em 2006, e a de José Urutau Guajajara, original do Maranhão e professor

especializado em línguas indígenas, há 10 anos no Rio de Janeiro, também ocupante da

Aldeia com sua esposa Potira Guajajara (que aprendeu a falar português quando se mudou

para o Rio) e seus dois filhos, há cerca de 6 anos. Ambos era articuladores do diálogo entre

as cerca de 10 etnias presentes no local (aporimã, pataxó, guarani, guajajara, kalapalo,

krikati, tupinambá, potiguara, puri, tukano, kaiapó) e os demais apoiadores, bem como

instâncias do poder público, com o auxílio do advogado e também guajajara Aarão.

Embora caracterizar os grupos ali presentes seja mais conveniente à análise deste

trabalho, dois personagens em específico, e um episódio ritual, merecem atenção especial.

O primeiro deles é Kuati, original da Bahia, de etnia Pataxó. Na Aldeia maracanã, o

responsável pela venda de artesanato indígena. Kuati conta que saiu de sua aldeia por dois

motivos: um deles, o conflito de lideranças, não dentre os indígenas, mas entre as

lideranças indígenas (das quais ele fazia parte) e entidades do governo do governo da

Bahia, responsáveis por intermediar a relação da aldeia com os serviços públicos, além das

relações de trabalho e emprego com o comércio da região. Kuati explicou o conflito de

interesses nas seguintes palavras: “mesmo que eles quisessem ajudar, a gente não falava a

mesma língua”, se referindo não ao detalhe do idioma, pois muitos em sua antiga aldeia

falavam português, mas ao tipo de visão que se estabelecia acerca do mundo, dos dois

lados. Tal afirmação nos leva de volta ao que DaMatta diz sobre os domínios, isto é, os

sistemas de significado presentes nos discursos dos grupos sociais, que nem sempre são

coerentes entre si. E quando há um choque de valores e/ou pontos de vista acerca do que é

o mundo e como se deve agir nele, o domínio privilegiado hierarquicamente – neste caso, o

estado – se sobrepõe aos outros, como as comunidades indígenas.

Movido pelo sentimento de insatisfação, Kuati decidiu vir para o Rio de Janeiro em

busca de um trabalho autônomo, sem a mediação de nenhuma instância do governo. Veio

vender artesanatos e logo se juntou a outros indígenas, até se estabelecer na Aldeia

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Maracanã. “Meu povo é um povo guerreiro e eu não poderia deixar de me juntar aos

irmãos em defesa da nossa cultura. Nós somos o Brasil, e não somos tratados como,

estávamos aqui primeiro e fomos humilhados”, me disse ele. Quando soube que eu

estudava jornalismo, recuou. E repetiu o discurso que eu já havia ouvido algumas vezes no

local: o de que a imprensa manipula as informações e colabora com os interesses

empresariais. Em outras palavras, é nociva à causa indígena, uma vez que parte de um

ponto de vista absolutamente divergente. Mas ainda assim, Kuati reconheceu a importância

dos veículos de comunicação para a visibilização da causa, e como ponto de partida para o

engajamento da sociedade nela, ainda que pela via contrária, a da discordância com o

discurso midiático.

Outro ponto que me chamou a atenção no discurso de Kuati foi a percepção em

relação aos estereótipos reforçados pelos meios de comunicação, no caso, canais de

televisão, mais especificamente a TV Globo. “Eles vem aqui, não conversam com a gente,

não perguntam sobre nossa reinvindicação, simplesmente filmam ou nos pedem para

colocar nossos acessórios, cocares e colares.” O que nos leva novamente à discussão do

índio como categoria não apenas generalizada, mas com ares de folclore, como Everardo

Rocha argumenta em “O índio do livro didático” (1984).

O segundo personagem que merece um relato especial é Daniel Puri. Professor de

História na rede pública paulista e natural de São Paulo, ele se encaixa perfeitamente no

que Stuart Hall chama de “sujeito pós-moderno”, no que concerne à multiplicidade de

identidades e identificações, dependendo dos contextos por onde o sujeito transita.

Por ocasião da pesquisa, Daniel havia começado a frequentar a Aldeia Maracanã há

um ano e meio, desde que veio visitar o local durante um período de férias. Mas a história

de identificação de Daniel com a indianidade bem antes disso. A partir de alguns costumes

que figuravam nas histórias contadas pela avó, Daniel começou um trabalho de pesquisa e

deduziu que tinha antepassados indígenas, da etnia Puri, original do sudeste, entre o Rio de

Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo. Ele explica que os Puri são de uma etnia

considerada extinta pela FUNAI, mas ainda assim, assumiu a identidade indígena no

último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010. A partir

de então, começou a estudar tupi, cantos indígenas, danças, e também a tentar localizar,

através da internet, remanescentes dessa etnia, de mono a conservar os costumes do que ele

passou a acreditar ser seu povo. Ele afirmou que não assumiu apenas uma memória social

de um povo, mas de fato assumiu uma identidade. Daniel tornou-se, nas palavras de Stuart

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Hall, fragmentado. Ele pluralizou sua identidade através de um processo de identificação

em um determinado contexto, no caso, ao ser interpelado pela cultura indígena.

Por fim, vale descrever um episódio emblemático no que diz respeito ao uso da

identidade étnica como elemento de negociação e persuasão na dinâmica dos interesses

sociais. Além dos líderes da Aldeia Maracanã, já mencionados – Carlos Tukano, José

Urutau – e de outros integrantes de destaque da ocupação – um casal de jovens indígenas

também tem um peso simbólico importante neste relato etnográfico – Thiago Kayapó e

Samantha Kalapalo. Ambos originais de Brasília, e que estavam na Aldeia há pouco tempo

como apoiadores da resistência e, além disso, já eram relativamente conhecidos no cenário

das lutas indígenas. Ela é filha do cacique e pajé Künué Kalapalo, e ele, além de jogador da

Seleção Brasileira Indígena de Futebol, é sobrinho de Raoni Kayapó, ambos engajados na

luta pela região do Xingu. Antes de conhecê-los, ouvi repetidas vezes a seguinte história:

as etnias kayapó e kalapalo são historicamente inimigas, em razão de um conflito em 1240,

em que os Kayapós canibalizaram os vencidos, os Kalapalos. Desde então os filhos das

etnias foram totalmente afastados, de modo que nenhuma união ocorresse. Era, portanto

contra o peso da tradição que os dois eram namorados. Na verdade, estavam noivos e se

casariam, rompendo uma poderosa tradição. Numa ocasião, quando os procurava para uma

entrevista, eles conversavam com um homem que aparentava ser jornalista e dizia: “vocês

são o Romeu e a Julieta do mundo indígena, isso tem apelo popular, vocês vão ficar

famosos e isso vai ser bom para a Aldeia, para a luta de vocês. Vamos tirar umas fotos

bonitas, fazer uma matéria.” O fator simbólico do conflito entre as etnias estava sendo

explorado ali, tanto como elemento de apelo midiático quanto como elemento de luta

política naquele contexto, através da identidade étnica.

Thiago concordava com a proposta, enquanto a expressão facial de Samantha era de

dúvida. Depois disso, o casal me contou que se conheceu em virtude de uma partida de

futebol em Brasília, e que a língua portuguesa foi a ponte entre os dois, já que um não

conhece a língua do povo do outro, e vice-versa. Enfim, o dia do noivado chegou, dia 02

de fevereiro, organizado pelo cacique Tukano. O celebrante: o pai de Samantha. A

cerimônia foi amplamente registrada por jornalistas e documentaristas estrangeiros. O

evento deu destaque à causa do ponto de vista não só da ideia de união dos povos e reforço

da tolerância, mas da perspectiva do apelo emocional. Segundo Clifford Geertz, o que se

deve perguntar a respeito dos gestos e ações de um grupo não é seu status ontológico.

Devemos nos indagar sobre a sua importância: o que está sendo transmitido com a sua

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ocorrência através da sua agência, seja ela um ridículo ou um desafio, uma ironia ou uma

zanga, um deboche ou um orgulho.

Dentre os veículos brasileiros, o Portal R77 fez o registro, valendo-se da

comparação com a história de Shakespeare, o que leva a crer que o suposto jornalista

acima citado seja de fato o autor da matéria.

Mantive contato com o Thiago através da rede social Facebook através de sua

página pessoal e ele mesmo me informou que o noivado havia terminado. De fato, havia

durado menos de um mês. Neste caso, vale retomar a colocação de Roberto DaMatta sobre

o acionamento da identidade étnica em determinadas situações:

a identidade étnica parece de fato atuar como uma identidade onipresente,

ou seja, como uma identidade que está sempre ao lado da situação de

conjunção e que pode ser acionada para qualificar negativamente,

determinar alguns ganhos ou neutralizar conflitos. Parece pacífico que a

identidade étnica é sempre ativada pelo grupo dominante para denegrir o

grupo dominado, como parte de um conjunto de instrumentos que visam

subjugar o índio. Mas não se deve esquecer, caso se queira realmente

ultrapassar o plano puro e simples do senso-comum, que identidades

étnicas são também acionadas para exigir proteção e/ou obter vantagens

que, no contexto regional, podem parecer ponderáveis. (DAMATTA,

1976:51).

Enfim, percebe-se o quanto as dinâmicas internas de identidade cultural dos

indivíduos formadores da Aldeia Maracanã se relacionaram diretamente com a ação

política deles no contexto aqui analisado. Mas além das relações entre identidade étnica e

ação política, este trabalho irá analisar, principalmente, como dois veículos jornalísticos

interpretaram e reportaram essas relações, e de que modo os produtos finais – isto é, os

textos – contribuem para uma visão etnocêntrica da questão ou alargam os pontos de vista

sobre a temática indígena no espaço urbano do Rio de Janeiro.

7 Disponível em: http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/noticias/casal-indigena-revive-drama-de-romeu-e-

julieta-e-fcaim-noivos-contra-vontade-das-tribos-20130202.html. Acesso em: 26 de outubro de 2013.

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4 A ALDEIA E A IMPRENSA

Além do relato etnográfico, o outro enfoque deste trabalho reside na análise do

discurso jornalístico sobre a Aldeia Maracanã em dois veículos de comunicação – Jornal

do Brasil e O Globo, ambos em suas plataformas online. O objetivo é entender de que

modo os discursos dos ocupantes do espaço e os discursos desses jornais se relacionam, se

correspondem ou se contradizem. Além disso, entender como a noção de índio aparece nos

textos através da escolha dos interlocutores e do tratamento da linguagem. Em primeiro

lugar, será discutido, com base no artigo “A mídia e o lugar da História” (2000), de Ana

Paula Goulart, o papel do jornalismo como criador de fatos históricos, e a necessidade de

relativizar os discursos, uma vez que são produzidos em condições específicas – sociais,

ideológicas e subjetivas – sobretudo no que diz respeito às visões particulares das empresas

jornalísticas. Em seguida, será analisada uma série de textos jornalísticos de cinco

momentos considerados emblemáticos por evidenciar a ocupação da Aldeia Maracanã na

mídia, dentro do recorte temporal aqui proposto - entre os dias 12 de janeiro e 22 de março

-, retomando também os conceitos apresentados no referencial teórico.

4.1 Jornalismo, discurso e fato histórico

Hoje em dia, mais do que em qualquer período de nossos tempos, os

conceitos de jornalismo e história mantêm uma total afinidade. Convivem

tão intimamente que tentar separá-los resultará em grave erro de

avaliação histórica ou em imperdoável falha de compreensão do

fenômeno jornalístico. (MARINHO apud RIBEIRO, 2000:25).

Essa afirmação, de um dos maiores donos de conglomerados de comunicação no

mundo, Roberto Marinho, evidencia a ideia de que o jornalismo é a “testemunha ocular da

história”, o que torna os fatos jornalísticos, então, fatos históricos. Jornalismo e Historia

estariam, assim, inseparáveis.

Mas o que define o fato histórico? Ana Paula Goulart Ribeiro explica que o fato

histórico se define não apenas por estar no passado, mas pela relação de encadeamento

causal que ele estabelece entre fatos antecessores e sucessores, de modo a formar uma

totalidade processual. Ela explica ainda que:

A relação que um acontecimento mantém com outros acontecimentos não

é, no entanto, dada, intrínseca. Nenhum fato é em essência é histórico

porque nenhum traz consigo um sentido já dado [...] Não existe fato

histórico „bruto‟. Ele é sempre produto de uma elaboração teórica que o

promove à categoria de histórico. (RIBEIRO, 2000:26).

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É importante ressaltar que o conhecimento histórico é resultado de um processo de

construção. Isto é, os sujeitos sociais desempenham papel ativo na construção dele, na

medida em que selecionam, relacionam e atribuem sentidos aos fatos. Ainda que não se

possa dizer que todo conhecimento histórico é totalmente subjetivo, não se anulam as

mediações existentes entre a realidade e a consciência dos indivíduos. O universo social e

o discursivo não são duas dimensões absolutamente estanques. Ao contrário, são

permeadas e permeáveis.

Outro ponto importante é a memória, já que ela é a substância de trabalho do

historiador. Mas a memória não é uma exclusividade da disciplina da História – através de

objetos, relatos, tradições. Ela está intrinsicamente ligada às representações coletivas. E

justamente por isso, se constitui como um instrumento de poder. O processo de

estruturação da memória, isto é, seu processo de construção de sentido, é muito sensível à

disputas entre grupos sociais. Segundo a autora, existem duas formas de estruturação da

memória coletiva:

Há, de um lado, a memória oficial, que, ao selecionar e ordenar os fatos

segundo certos critérios, se constrói sob zonas de sombras, silêncios,

esquecimentos e repressões. De outro lado, há, opondo-se a oficial, várias

memórias coletivas subterrâneas que, seja nos quadros familiares, em

associações ou em grupos étnicos, culturais ou políticos, transmitem e

conservam lembranças „proibidas‟ ou simplesmente ignoradas pela visão

dominante. Os limites entre essas duas memórias são, obviamente, muito

difíceis de traçar. (RIBEIRO, 2000:31).

A autora explica ainda que a História enquanto disciplina exerceu um papel crucial

na constituição e na formalização da memória oficial. Por estar próxima das instâncias de

poder – através da academia -, a disciplina sempre se apresentou como discurso

semantizador das ações e da transformação da realidade social. Entretanto, perdeu a

posição central na construção da memória oficial com a inserção das tecnologias de

comunicação nas sociedades industriais. Cada vez mais, os meios de comunicação são o

locus principal das representações sociais. “A mídia é o principal lugar de memória e/ou de

história das sociedades contemporâneas.”. (RIBEIRO, 2000:33). Sendo assim, os fatos

históricos que até então eram resultado dos investimentos semiológicos da ciência

histórica, passam a habitar o campo do discurso jornalístico. A produção de significado das

transformações sociais passa a ser realizada, sobretudo, através das operações linguísticas e

translinguísticas da mídia.

Os meios de comunicação, neste século, passaram a ocupar uma posição

institucional que lhes confere o direito de produzir enunciados em relação

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à realidade social, aceitos como verdadeiros pelo consenso da sociedade.

A História passou a ser aquilo que aparece nos meios de comunicação de

massa, que detêm o poder de elevar os acontecimentos à condição de

históricos. O que se passa ao largo da mídia é considerado, pelo conjunto

da sociedade como sem importância. (RIBEIRO, 2000:33)

Uma das razões disso é o mito da neutralidade jornalística e da imparcialidade, que

surgem em meados do século XIX e se fortalecem ao longo do XX. Também o conceito de

objetividade que se origina nos Estados Unidos nas décadas de 20 e 30. E tal processo foi

concomitante à organização de grandes conglomerados jornalísticos. Antes, os jornais

eram locais de análise e interpretação, comentário, polêmicas, críticas e ideias. Depois da

industrialização da produção textual – expressa, por exemplo, através da criação dos

manuais de redação - o jornalismo passa a ser o “espelho da realidade”. O fato jornalístico

passa a se assemelhar, então, ao fato histórico: cada reportagem é um legado para

construção de conhecimento histórico.

Neste sentido, Goulart ressalta que a apreensão do real pela mídia pressupõe a ação

transformadora da linguagem. Nenhum discurso é puro ou reflexo de uma realidade

exterior. No entanto, não se pode separar, em total oposição, o real e o discurso, já que a

linguagem também constitui o real. Sem linguagem não existe produção, relações sociais,

lutas de classes. Para que tudo isso exista, é preciso que os seres se constituam com suas

identidades - expressas através de discursos - para que haja constituição de sentido. “Não

se trata, portanto, de dois universos, dois reais (um material e outro discursivo). As duas

instâncias estão estreitamente ligadas (...). O real é uno e é histórico. E a história se define

exatamente como o processo temporal de constituição dos seres e das suas significações.”

(CHAUÍ e ORLANDI apud RIBEIRO, 200: 39). Ao mesmo tempo, não se pode tomar

como abstratas as categorias de imprensa e discurso jornalístico. A autora enfatiza ainda

que:

Cada órgão de comunicação (seja de grande imprensa ou a dita nanica)

possui um mecanismo ideológico próprio (entendendo ideológico não

como conteúdo, mas como forma de funcionamento discursivo). Cada um

possui uma economia discursiva própria e produz um campo de feito

discursivo também específico. Mas, apesar de cada veículo construir um

„real‟ diferente, é bom não esquecer que há neles um fundo comum de

referência. A coerência da mídia é o que lhes dá credibilidade e aceitação.

(RIBEIRO, 2000:43)

É em busca da especificidade e particularidade dos discursos, que analisaremos o

que foi publicado no Jornal do Brasil e n‟O Globo.

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4.1 JB online e O Globo online: caracterização dos veículos e exploração do tema

O ambiente online foi escolhido como foco de análise deste trabalho dado o intenso

compartilhamento de informações sobre a Aldeia Maracanã – sobretudo como forma de

militância cultural e política – nas redes sociais da internet, sobretudo no Facebook. Como

já citado, foram escolhidos o Jornal O Globo, fundado em 29 de julho de 19258 no Rio de

Janeiro - e disponível em versão online desde 29 de julho de 1996 – e o Jornal do Brasil,

fundado em 9 de abril de 18919 também no Rio de Janeiro e disponível apenas na versão

online desde o dia 1º de setembro de 2010, quando passou a ser o primeiro jornal 100%

digital do país.

Ambos estão divididos em sete editorias: país, Rio, economia, internacional/mundo,

tecnologia/ciência e tecnologia, esportes e cultura, além de colunas, blogs, etc. As matérias

a seguir analisadas estavam todas hospedadas na editoria Rio. Em números, o Jornal o

Globo publicou, no período entre 12 de janeiro e 22 de março, 33 matérias e/ou galerias

fotográficas contendo a expressão “Aldeia Maracanã”. Já o Jornal do Brasil, por sua vez,

publicou 59 matérias, número quase duas vezes maior.

4.2 Metodologia de análise do discurso jornalístico

Além da etnografia já relatada no capítulo 3, este trabalho está baseado na análise

de textos jornalísticos sobre a Aldeia Maracanã. Para isso, foram escolhidos quatro

acontecimentos emblemáticos para o desenvolvimento da temática nos jornais, entre os

dias 12 de janeiro e 22 de março. São eles:

- o cercamento do espaço da Aldeia Maracanã pelo Batalhão de Choque da Polícia Militar

no dia 12 de janeiro;

- A comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro

(ALERJ) manifesta apoio à Aldeia Maracanã, em 19 de janeiro;

- No dia 18 de março, a Justiça determina prazo para desocupação da Aldeia Maracanã até

o dia 20 de março;

- Os ocupantes são retirados violentamente do local pelo Batalhão de Choque no dia 22 de

março.

8 Disponível em: http://memoria.oglobo.globo.com. Acessado em: 02 de novembro de 2013.

9 Disponível em: http://www.jb.com.br/paginas/news-archive/. Acessado em: 02 de novembro de 2013.

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Os seguintes critérios serão levados em consideração na análise dos textos: de que

modo relacionam a temática da Aldeia Maracanã com a disputa de outros espaços da

cidade; como a noção de índio é apresentada nas matérias e, por fim, quem foram os

interlocutores escolhidos para tratar da questão nos textos – e em que sentido isso qualifica

o debate.

4.3 Análise comparativa das matérias

12 de janeiro

Na manhã do dia 12 de janeiro, o antigo Museu do Índio foi cercado por policiais

do Batalhão de Choque da Polícia Militar, sob a alegação de estarem de prontidão, apenas

aguardando uma ordem judicial de reintegração de posse – até então inexistente. A

movimentação atraiu apoiadores do movimento de ocupação e vários jornalistas, e o

episódio terminou sem conclusão neste dia: a polícia deixou o local após 12 horas de cerco.

O Jornal O Globo publicou uma nota de plantão noticiando o cerco, logo pela

manhã, e uma matéria mais elaborada após a polícia deixar o local. Já o Jornal do Brasil

publicou duas matérias grandes sobre o assunto, também nesses dois momentos.

Analisaremos aqui as matérias publicadas no momento pós-cerco.

O texto do jornal O Globo, intitulado “Após cerca de 12 horas, Batalhão de Choque

deixa antigo Museu do Índio, no Maracanã”10

, começa dando a justificativa dos policiais

para o cerco do local, e em seguida dá espaço à fala do defensor público Daniel Macedo,

explicando que não existia ordem judicial para a desocupação do espaço. O presidente da

Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio, a Emop, também dá seu depoimento,

seguido da fala do Cacique Carlos Tukano, líder da ocupação. O deputado estadual

Marcelo Freixo, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL-RJ), membro da Comissão de

Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), também pondera, pedindo

cautela à justiça, à polícia e ao governo do estado.

10 Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/apos-cerca-de-12-horas-batalhao-de-choque-deixa-antigo-

museu-do-indio-no-maracana-7277708. Acesso em: 31 de outubro de 2013.

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O texto do Jornal do Brasil, intitulado “Batalhão de Choque abandona cerco à

Aldeia Maracanã”11

, começa com a fala do deputado estadual Marcelo Freixo, que

classifica a ação policial como “estranha” e levanta a hipótese de que a polícia invadiria o

local, mesmo sem ordem judicial, não fosse a movimentação de apoiadores e jornalistas no

entorno”. O defensor público Daniel Macedo também é ouvido, e adjetiva a ação de

“vergonhosa”. Ele relaciona a ação com o episódio em que o governo afirmou que a

derrubada do antigo Museu do Índio era uma exigência da Federação Internacional de

Futebol (FIFA), que por sua vez, desmentiu o governo. Uma estudante de antropologia,

acampada no local, também é ouvida, afirmando o quão absurda estava sendo a ação do

estado.

Diferentemente da matéria de O Globo, o texto do Jornal do Brasil não se encerra

na fala dos interlocutores presentes no episódio. O JB faz uma retrospectiva para que o

leitor entenda o caso mais profundamente, desde o começo das ações na justiça em 2012.

Um outro defensor público é ouvido, e explica o quão misteriosa é a motivação do governo

do estado em demolir o antigo Museu do Índio, já que não se trata de uma exigência da

FIFA e órgãos como o IPHAN e o INEPAC já tinham se manifestado contrariamente à

demolição. A matéria faz menção a outro caso de disputa popular por um espaço da cidade:

a Escola Municipal Friendenreich, que também seria demolida por estar no entorno do

estádio do Maracanã. Em seguida, o texto põe em dúvida a integridade do processo de

concessão do Maracanã, citando uma investigação do Ministério Público Federal. O texto

termina com a fala de dois parlamentares, ratificando a necessidade de investigação do

consórcio, que, entre outras coisas, programava a demolição da Escola Municipal

Friedenreich, do antigo Museu do Índio, do Parque Aquático Julio Delamare e do estádio

de atletismo Célio de Barros.

Em ambos os textos, o debate se sustenta majoritariamente no campo jurídico:

estado e justiça – através de representantes do governo, da Alerj, da Defensoria Pública e

do Ministério Público – argumentam e contra-argumentam sobre a legitimidade ou não da

demolição do prédio. A matéria do Jornal do Brasil, em particular, enfatiza o debate sobre

a disputa dos espaços da cidade uma vez que cita investigações do MPF sobre o consórcio

ganhador da concessão do Maracanã e os outros imóveis também ameaçados de

11 Disponível em: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2013/01/12/batalhao-de-choque-abandona-cerco-a-

aldeia-maracana/. Acesso em: 31 de outubro de 2013.

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demolição. É importante também salientar o teor das falas escolhidas nos dois textos.

Como já citado, em ambos, o defensor público Daniel Macedo é ouvido, bem como o

Deputado Marcelo Freixo, mas em falas de conteúdos diferentes. Enquanto que em O

Globo, a fala dos dois está no campo semântico jurídico, no Jornal do Brasil, as falas se

aproximam do campo expressamente opinativo com adjetivos como “vergonhoso” (na fala

de Daniel) e “estranho” (na fala de Marcelo Freixo).

19 de janeiro

No dia 19 de janeiro, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Alerj

manifesta apoio à ocupação da Aldeia Maracanã, diante dos últimos acontecimentos

envolvendo a presença do aparato policial do estado no local. O presidente da Comissão, o

deputado federal Domingos Dutra (PT-RJ), divulgou, em nota, o repúdio às ações

apressadas do governo em retirar os ocupantes da Aldeia Maracanã.

A matéria publicada em O Globo, intitulada “Comissão de direitos Humanos da

Câmara manifesta apoio à Aldeia Maracanã”12

, destaca a fala do parlamentar, que

demonstra preocupação com o envolvimento da polícia no caso e defende a causa indígena,

afirmando que “a realização de um bom evento esportivo internacional não pode se dar à

custa do enterro da memória nacional, expresso neste momento pelos povos indígenas, que

foram dizimados ao longo destes 513 anos da descoberta do Brasil”. O texto segue na

esfera jurídica, ao afirmar a necessidade de o governo federal se manifestar a respeito do

caso, citando que o governo tem um prazo de 10 dias para reconsiderar a suspensão de

duas liminares que impediam a remoção dos ocupantes e a demolição do antigo Museu do

Índio. Além disso, explica que as liminares haviam sido revogadas a pedido da

Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro para permitir a desocupação do prédio,

mas que a Defensoria da União pede que a medida seja reconsiderada. Nenhuma liderança

ou qualquer ocupante da Aldeia são ouvidos a respeito do trâmite jurídico.

No Jornal do Brasil, em “Índios: Comissão de Direitos Humanos da Câmara cobra

explicações do governo”13

, fala semelhante do deputado Domingos Dutra é usada, mas em

12 Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/comissao-de-direitos-humanos-da-camara-manifesta-apoio-

aldeia-maracana-7345209. Acesso em: 31 de outubro de 2013.

13 Disponível em: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2013/01/19/indios-comissao-de-direitos-humanos-da-

camara-cobra-explicacoes-do-governo/. Acesso em: 31 de outubro de 2013.

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trecho mais incisivo, citando diretamente, com ironia, o governador Sérgio Cabral: "que

infelicidade: carregam um sofrimento que começou com a chegada de Cabral em 1500 e

ainda são perseguidos por Cabral." Semelhante ao texto anterior, a matéria do JB segue

relatando fatos da esfera jurídica, explicando que a Procuradoria de Patrimônio e Meio

Ambiente exige a retirada dos moradores da Aldeia Maracanã para a execução das obras de

mobilidade do entorno do estádio, e dá voz ao Cacique Carlos Tukano, que explica que

tem a notificação da Procuradoria em mãos, mas que nada foi assinado. A matéria cita

ainda, diferentemente de O Globo, a visita de um procurador federal dos direitos do

cidadão ao local, e expõe sua fala a favor da preservação do prédio enquanto patrimônio

histórico. Há também a fala de outro procurador da república dos direitos do cidadão, dessa

vez o do Rio de Janeiro, sobre o impedimento da demolição através de decisões judiciais.

O texto relata mais um fato favorável aos indígenas: ouve o presidente da Fundação

Darcy Ribeiro, sobrinho do antropólogo que dá nome à fundação, dizendo que um

documento de 1865, do Duque de Saxe, suposto dono do terreno na época, registrava a

vontade do duque de destinar o local à causa indígena para sempre. O documento estaria

sendo procurado no Arquivo Nacional. Por fim, reproduz, na íntegra, a nota de apoio da

Comissão de Direitos Humanos da Alerj.

Novamente, a esfera jurídica é o principal campo semântico das vozes ouvidas

pelos dois jornais. No entanto, o Jornal do Brasil amplia as fontes – contrárias à derrubada

do prédio – e inclui como argumento um fato em potencial, isto é, a possível existência de

um documento que legitimaria, através da memória histórica, a permanência do prédio e de

seus ocupantes.

18 de março

Ao longo do mês de março, a pressão para a desocupação da Aldeia Maracanã

aumentou significativamente. No dia 18 de março, terminava o prazo dado pela justiça

para que todos os ocupantes deixassem o prédio, e a expectativa geral era pelo conflito,

dadas as discordâncias seguidas entre ocupantes e o governo ao longo dos meses.

No Jornal O Globo, o primeiro texto, “Clima é de apreensão entre índios da Aldeia

Maracanã”14

explica que o prazo judicial acabou e que os ocupantes aguardam uma

14 Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/clima-de-apreensao-entre-indios-na-aldeia-maracana-7868872.

Acesso em: 31 de outubro de 2013.

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possível reversão da decisão. O jornal ouve novamente o defensor público Daniel Macedo,

que diz que a Defensoria Pública está tentando estender o prazo para evitar o despejo – e

um possível conflito, já que militâncias de outros movimentos sociais já haviam se

deslocado para o local e mantinham uma vigília. A reportagem cita ainda que, na sexta-

feira anterior à data, o grupo se revoltou após receber a notificação de imissão de posse,

entregue por um oficial de justiça e, em protesto, fez cinco pessoas reféns, inclusive a

subsecretária estadual de Direitos Humanos do Rio, Andréa Sepúlveda, que foi liberada,

junto dos outros reféns, no mesmo dia. Fato que não aparece no Jornal do Brasil, como

veremos a seguir. O defensor público destaca também a inexatidão das propostas do

governo, e o risco que o grupo corre de deixar o imóvel e ser esquecido. Segundo ele, “eles

ocupam aquele prédio desde 2006 e deram vida a um local onde eram praticados crimes.

Agora são tratados como bandidos pelo mesmo governo que os incentivava a realizar

eventos culturais ali”.

O texto do Jornal do Brasil, por sua vez, “Aldeia Maracanã resistirá até o último

minuto”15

, começa com a decisão dos indígenas de permanecerem no local, e dá voz a dois

deles, Afonso Aporinã e Urutal Guajajara, que explicam que o grupo vai permanecer no

local e resistir pacificamente a qualquer ação de despejo - o que não é verificado na

matéria de O Globo. A matéria se estende no campo jurídico, e explica que a Defensoria

Pública tentou um recurso à decisão do Tribunal Regional Federal – que determinou a

reintegração e posse – mas não conseguiu, o que torna a desocupação uma questão de

horas.

22 de março

No dia 22 de março, o Batalhão de Choque da Polícia Militar cercou novamente o

terreno do antigo Museu do Índio, mas dessa vez, retirou os ocupantes do local, em ação

conflituosa. Parte dos ocupantes – 12 pessoas - aceitou ir para um alojamento provisório

em Jacarepaguá, sob a promessa governamental de criar um Centro de Referência Indígena

na cidade. Cada veículo publicou 5 matérias sobre o assunto nesta data.

A primeira matéria publicada pelo Jornal O Globo foi um texto da agência de

notícias Reuters, intitulado “Polícia enfrenta manifestantes e invade antigo museu do

15 Disponível em: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2013/03/20/aldeia-maracana-resistira-ate-o-ultimo-

minuto/. Acesso em: 31 de outubro de 2013.

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índio”16

. A apuração inicial não foi do próprio jornal. O texto explica que a força policial

usou escudos e bombas de feito moral no enfrentamento com índios e outros manifestantes,

e que alguns deles usavam cocares e tinham parte do rosto e do resto do corpo pintados –

adjetivação aparentemente descartável para o entendimento do evento, mas que,

semanticamente, revela que tais elementos foram considerados importantes para definir os

indígenas presentes na ação. A matéria mostra a versão da polícia para o conflito, que

argumenta que a invasão só ocorreu depois de um princípio de incêndio. Em seguida, as

explicações jurídicas sobre a desocupação e a demanda do projeto de obras no entorno do

Maracanã são citados. Um dos líderes indígenas da Aldeia Maracanã é citado, explicando

que o grupo quer garantias para deixar o local. Sua fala é seguida pela do defensor público

Daniel Macedo, mais uma vez, que considera a ação da polícia um abuso de autoridade. A

reportagem termina com os prazos para o término das obras do Maracanã.

Em outro texto, “Após manifestações, índios aceitam ficar em terreno de

Jacarepaguá”17

O Globo explica que os indígenas aceitaram ser realocados em uma área

de Jacarepaguá, mas não cita o grupo que não entrou nesse acordo com o governo do

estado. Em seguida, relata novamente o conflito, atribuindo a confusão aos manifestantes

que impediam a saída dos indígenas do local e cita uma manifestação a favor dos indígenas

ocorrida no Centro da cidade, finalizando o relato com as mudanças no trânsito durante o

protesto. Mais uma vez, o texto retoma a fala do defensor público Daniel Macedo,

criticando a ação da Polícia Militar. Uma nota do ministério público também é citada, em

desacordo com a força desproporcional aplicada pela polícia (na mesma data, matéria

dedicada à nota é publicada18

)

Nessa sequência, O Globo dedicou uma matéria às criticas do defensor público

Daniel Macedo à ação da PM, “Ação da PM na Aldeia Maracanã foi „ato desastrado‟, diz

defensor público”19

, juntamente com a fala de representantes do Ministério Público, do

16 Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/policia-enfrenta-manifestantes-invade-antigo-museu-do-

indio-no-rio-7920034. Acesso em: 31 de outubro de 2013.

17 Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/apos-manifestacoes-indios-aceitam-ficar-em-terreno-de-

jacarepagua-7920038. Acesso em: 31 de outubro de 2013.

18 Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/mpf-pm-agiu-com-forca-desproporcional-na-desocupacao-da-

aldeia-maracana-7919477. Acesso em: 31 de outubro de 2013.

19 Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/acao-da-pm-na-aldeia-maracana-foi-ato-desastrado-diz-

defensor-publico-7914673. Acesso em: 31 de outubro de 2013.

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deputado estadual Marcelo Freixo, condenando a ação violenta da polícia. Informações

sobre manifestantes detidos no conflito também são divulgadas. Além disso, o texto relata

que a Ordem dos Advogados do Brasil, a OAB, através do procurador-geral Guilherme

Peres de Oliveira, afirmava desconhecer qualquer mandado de segurança que impedisse a

desocupação do antigo Museu do Índio, e que desconhecia as pessoas que se denominavam

representantes da instituição, com tais documentos. O texto segue com informações da

secretaria de assistência social do estado, explicando os possíveis locais de transferência

dos índios que aceitaram deixar a Aldeia Maracanã, o possível pagamento de um aluguel

social a estas pessoas ou ajuda financeira para retornarem aos seus lugares de origem.

Todas essas propostas teriam sido acordadas entre a secretaria e os índios na quinta-feira

anterior à desocupação.

O Globo também publicou a versão da Polícia Militar diante das severas críticas.

Em “Em nota, a PM questiona diretamente as declarações de defensor sobre ocupação da

Aldeia Maracanã”20

. A Corporação reitera que agiu de modo a “preservar o patrimônio

público e a vida dos próprios manifestantes”, alegando que a invasão se deu após um

princípio de incêndio provocado pelos próprios ocupantes, dentro do terreno do antigo

Museu do Índio. A nota é reproduzida na íntegra.

Por fim, verifica-se que está presente, em todas as matérias, falas de representantes

da Justiça avaliando um momento de violência, considerado desproporcional. A

legitimidade da reivindicação cultural e política do local não foi posta em pauta nos textos

publicados nesta data.

O Jornal do Brasil publicou texto de produção própria para anunciar a ação da

Polícia Militar na Aldeia Maracanã. “Batalhão de Choque entra na Aldeia Maracanã para

retirar índios”21

começa, como em O Globo, descrevendo o uso de bombas e outros

artefatos no momento da desocupação. O defensor público Daniel Macedo também é

ouvido, mas dessa vez, tem fala maior e mais detalhada: “Já estávamos retirando os idosos,

as mulheres e as crianças para serem levados para um terreno em Jacarepaguá, oferecido

pelo governo. Pedimos aos policiais para esperarem mais dez minutos, mas isso não

20 Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/em-nota-pm-questiona-declaracoes-de-defensor-sobre-

ocupacao-da-aldeia-maracana-7924090. Acesso em: 31 de outubro de 2013.

21 Disponível em: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2013/03/22/batalhao-de-choque-entra-na-aldeia-

maracana-para-retirar-indios/. Acesso em: 31 de outubro de 2013.

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aconteceu e o comandante determinou a invasão do Batalhão de Choque. Isso não

precisava ter terminado desta forma. Muitas pessoas foram atingidas por balas de borracha

e spray de pimenta. Estamos estudando a possibilidade de entrar com uma representação

contra o comandante por crime de abuso de autoridade”. A versão da polícia militar

também é citada, em discurso indireto. Diferentemente de O Globo, o texto do Jornal do

Brasil informa que representantes da OAB chegaram ao local, no momento da

desocupação, com mandados de segurança e informa o nome do desembargador que teria

concedido o documento. O texto também informa que o advogado dos ocupantes do local,

Aarão da Providência Costa Filho, foi detido pela polícia ao tentar entrar no terreno. A

matéria segue com mais detalhes, contextualizando a razão da retirada dos índios. Cita, por

exemplo, a intenção do governo do estado de construir um museu olímpico no local e a

promessa da secretaria de assistência social sobre um Centro de Referência Indígena.

Destaca a discordância dos índios caso o antigo museu do índio seja o destino de um

museu olímpico, citando a reunião deles com membros da secretaria de assistência social

dias antes da desocupação - como também cita O Globo - mas de forma sutilmente

diferente. O texto segue citando personalidades que se mostraram contrárias ao fim do

museu do índio, como a ministra da cultura, Marta Suplicy, e artistas como Caetano

Veloso, Chico Buarque e Leticia Sabatella (o jornal também dedicou matérias ao

posicionamento desses artistas sobre o tema). A matéria se encerra com o depoimento do

procurador regional do Ministério Público, Jaime Mitropoulos, reiterando a posição

contrária da instituição à violência policial. O jornal inclui também parte da fala em que ele

diz que representantes da justiça também foram atingidos pela ação da polícia com sprays

de pimenta.

A matéria seguinte publicada pelo Jornal do Brasil, “Aldeia Maracanã: Freixo diz

que entrará na Justiça contra violência policial”22

dedica-se à fala do deputado estadual

Marcelo Freixo, afirmando que vai recorrer à justiça por causa da conduta da polícia na

desocupação da Aldeia Maracanã, considerada por ele como “absurda”. Inclusive, o texto

apresenta uma informação não apresentada em O Globo, dada pelo deputado: “A decisão

da policia de entrar foi absurda. A justificativa da PM de que entrou porque estava tendo

22 Disponível em: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2013/03/22/aldeia-maracana-freixo-diz-que-entrara-na-

justica-contra-violencia-policial/. Acesso em: 31 de outubro de 2013.

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um incêndio na Aldeia e, por isso a entrada foi precipitada, é absurda. Os bombeiros

entraram, apagaram o incêndio e 15 minutos depois a polícia entrou. Essa justificativa da

PM é mentirosa.” O texto relata ainda que o deputado foi atingido por bombas de gás

lacrimogênio lançadas pela polícia.

Ainda com foco na violência policial, o Jornal do Brasil publica um texto sobre a

repercussão do caso na imprensa internacional: “Ação truculenta da desocupação do museu

do índio repercute mundialmente”23

. A matéria dá destaque para a Reuters, a rede britânica

BBC e o também jornal britânico Daily Mail, que reportaram a desocupação. Novamente, a

fala do defensor público Daniel Macedo depõe contra a polícia militar afirmando que uma

representação pode ser formalizada contra o comandante da ação.

Na contramão do que foi visto no Jornal o Globo no dia 22 de março, que citou em

apenas uma matéria o depoimento de um indígena acerca da ação de desocupação, o Jornal

do Brasil dedicou um texto – “Índios foram tratados como bandidos pelos policiais, diz

cacique Tukano”24

à fala do Cacique Carlos Tukano, um dos líderes da Aldeia Maracanã.

O indígena, que critica veementemente a ação policial, alega que os ocupantes foram

tratados como “bandidos”, e também dá detalhes sobre a transferência de parte do grupo

para um terreno em Jacarepaguá, conforme acordado com o governo estadual. O texto

ainda traz uma contradição de depoimentos: ao mesmo tempo em que afirma, através de

depoimento de Carlos Tukano, que os indígenas preferem um Centro de Referência

construído na região central da cidade, o secretário de Estado de Assistência Social e

Direitos Humanos, Zaqueu Teixeira, afirma que os índios “gostaram tanto que decidiram

ficar por lá desde já. Eles decidiram também que o Centro de Referencia da Cultura

Indígena será construído na mesma área”.

Por fim, o Jornal do Brasil relata a manifestação a favor dos indígenas, ocorrida no

mesmo dia, em matéria intitulada “Ativistas protestam contra a desocupação do antigo

Museu do Índio”25

, reportada em um parágrafo de uma das matérias de O Globo, como já

23 Disponível em: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2013/03/22/acao-truculenta-na-desocupacao-do-museu-

do-indio-repercute-mundialmente/. Acesso em: 31 de outubro de 2013.

24 Disponível em: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2013/03/22/indios-foram-tratados-como-bandidos-pelos-

policiais-diz-cacique-tukano/. Acesso em: 31 de outubro de 2013.

25 Disponível em: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2013/03/22/ativistas-protestam-contra-a-desocupacao-

do-antigo-museu-do-indio/. Acesso em: 31 de outubro de 2013.

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supracitado. O texto cita ainda que a ação da polícia em relação aos manifestantes foi

violenta, como informa um manifestante: “chegaram ao local com violência, batendo e

utilizando o spray de pimenta e taser, arma utilizada pelos policiais que dispara choques no

alvo". A polícia também dá sua versão no texto, afirmando que apenas liberou a via para

circulação e não agrediu ninguém. O texto segue citando artistas contrários à demolição do

prédio, como Caetano Veloso, que critica a “vulgaridade que ronda a atual administração

estadual". O texto termina, em repetição dos outros contextualizando os planos do governo

de construir um museu olímpico no local e alojar os índios em Jacarepaguá, local onde

também seria construído um Centro de Referência Indígena.

4.4 Quem sustenta e direciona o debate

A análise que Ribeiro faz da construção do conhecimento histórico pode ser trazida

para a análise do fenômeno jornalístico. Tal como o conhecimento histórico, o discurso

jornalístico é um fenômeno prático, em que os sujeitos não são apenas intermediários de

uma descrição ou registradores de fatos, existentes em si mesmo. A reportagem dos fatos

está calcada no discurso, essa “substância” fronteiriça entre o real e a consciência social. O

fato jornalístico é algo construído, ainda que a “ancoragem factual” legitime certas

informações como nomes, datas, lugares e a maioria dos acontecimentos. Para além desse

efeito de objetividade, que se dá através das próprias estratégias enunciativas do

jornalismo, o fato concreto está envolto em determinado universo de entendimento

produzido por determinado jornalista, que trabalha em determinada empresa e tem

determinada postura ideológica sobre os acontecimentos. A autora destaca que:

sabemos [...] que nenhum registro é ingênuo ou descomprometido.

Nenhum registro apenas registra. Todo ele pressupõe o trabalho da

linguagem, pressupõe uma tomada de posição dos sujeitos sociais. Todo

registro é discurso e possui, assim, mecanismo ideológico próprio, uma

forma de funcionamento particular. Entender esse funcionamento,

conhecer as operações discursivas através das quais o jornalismo atribui

sentido aos fatos da atualidade é essencial para dar conta de como os

meios de comunicação produzem uma ideia de história e como, no

mesmo processo, constroem-se e legitimam-se como lugar social.

(GOULART, 2000:37-38).

Os múltiplos sentidos que podem ser produzidos sobre um mesmo fato se

verificam, dentre outras maneiras, a partir da simples comparação, por exemplo, de

manchetes. O tratamento da linguagem nas manchetes abaixo, ambas lançadas no dia 22 de

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março sobre a desocupação da Aldeia Maracanã, dá sentidos diferentes ao mesmo contexto

social:

- O GLOBO: “Clima é de apreensão entre índios na Aldeia Maracanã”26

- JORNAL DO BRASIL: “Aldeia Maracanã resistirá até o último minuto”27

Além do tratamento semântico das informações, os personagens escolhidos para

estruturarem o fato jornalístico são elementos ainda mais fundamentais para entendermos

as bases do discurso, isto é, de que modo um fato social é semantizado e transformado em

fato jornalístico. No caso específico da Aldeia Maracanã aqui tratado, a qualificação do

fato está claramente inserida, em ambos os jornais, na esfera jurídica e administrativa. As

fontes são praticamente as mesmas e se repetem ao longo de mais de três meses de

cobertura sobre o assunto. Defensores públicos, procuradores de justiça, advogados e

secretários de estado são as fontes majoritárias tanto do jornal O Globo quanto no Jornal

do Brasil.

Como verificado através de entrevistas e conversas ao longo da pesquisa de campo,

a base do movimento de ocupação do antigo Museu do Índio é uma reivindicação de

preservação da memória e do patrimônio cultural indígena, aliada a uma resistência

política à administração do atual governo do Rio de Janeiro. Entretanto, é plausível dizer

que, em sua maioria, os textos giraram em torno do imbróglio judicial sobre o terreno. As

fontes consultadas pelos veículos de comunicação direcionaram o debate para o direito de

propriedade de um espaço da cidade: de quem é o terreno por direito? Quem pode ocupá-lo

com legitimidade? O que será feito com ele? Qual será a eficácia de sua finalidade

enquanto Museu do Índio, museu olímpico ou estacionamento do Estádio do Maracanã?

Debate altamente em voga nesse momento em que outros espaços da zona norte do Rio de

Janeiro também estavam ameaçados de demolição pela administração pública, em razão de

futuros eventos esportivos.

Ainda que os dois veículos tenham se assemelhado bastante na abordagem através

do campo semântico jurídico, a diferença de abordagem é significativa no que diz respeito

26 Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/clima-de-apreensao-entre-indios-na-aldeia-maracana-7868872.

Acesso em 31 de outubro de 2013.

27 Disponível em: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2013/03/20/aldeia-maracana-resistira-ate-o-ultimo-

minuto/. Acesso em 31 de outubro de 2013.

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à elementos contrários e elementos favoráveis à ocupação do terreno do antigo Museu do

Índio. O Jornal do Brasil, além de dar maior destaque ao tema pelo número de matérias

publicadas, publicou matérias maiores – mais contextualizadas – e apresentou com um

número maior de depoimentos favoráveis à permanência da Aldeia Maracanã do que o

verificado no Jornal O Globo. Além das falas de representantes da justiça e de

parlamentares, o JB também recorreu à opinião de artistas e dedicou a essas falas diversas

matérias que não foram foco de análise deste trabalho. Como já apresentado, não há

registro puro quando se fala em fato jornalístico. Filtros ideológicos estão sempre

intermediando o real e o discurso reportado. Ao trazer falas mais contrárias à ação do

governo (não somente nos momentos de conflito entre ocupantes, manifestantes e a

polícia), dedicar um texto inteiro à manifestação a favor dos índios, e buscar opiniões

favoráveis à ocupação dentre a classe artística – este último aspecto, fora do debate em O

Globo - o Jornal do Brasil se posiciona ideologicamente a favor da causa, legitimando-a

através de depoimentos de defesa.

É importante ressaltar, a respeito dos interlocutores do debate, que os ocupantes da

Aldeia Maracanã raramente foram ouvidos. O que é incoerente até mesmo com as

estratégias enunciativas do jornalismo, que presumem o registro da fala dos atores centrais

de um determinado acontecimento. Neste caso, os protagonistas do acontecimento –

indígenas e demais ocupantes do terreno, ativamente participativos nas ações culturais e de

negociação com o governo – não foram os protagonistas do discurso. Embora o Jornal do

Brasil tenha dado um espaço um pouco maior para a fala dos líderes -como vimos em

reportagem sobre a fala do Cacique Tukano – não foi com base no discurso dos indígenas

que o acontecimento foi reportado. Como pude ouvir do índio de origem pataxó, Kuatí, ao

longo da minha pesquisa de campo, os jornalistas brasileiros não paravam para ouví-los.

Queriam registros fotográficos e tiravam suas próprias conclusões através da observação.

É importante ressaltar também que o grande contingente de apoiadores dos

indígenas da Aldeia Maracanã – que ajudaram a fortalecer a resistência de ocupação -

também foi raramente consultado como fonte das matérias jornalísticas. Apenas uma

reportagem do jornal do Brasil usa a fala de uma ocupante, estudante de Antropologia, para

ratificar o quão absurdo foi o cerco do terreno pela polícia no dia 12 de janeiro. No dia 22

de março, o Jornal do Brasil também colhe o depoimento de um manifestante a favor da

manutenção do antigo Museu do Índio. Os apoiadores apareceram, nos dois veículos,

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enquanto “existentes”, mas não enquanto emissores do discurso e, sobretudo, composição

do movimento.

Em suma, os simpatizantes da causa indígena, peças fundamentais no movimento

de resistência, ou seja, também protagonistas do fenômeno, foram quase ignorados pelos

jornalistas enquanto fontes de opinião (tal como foram emitidas por juristas, parlamentares

e até artistas que simpatizavam com a causa) ou mesmo parte dos dados factuais. A

maioria deles, como já mencionado, os militantes usaram em seu discurso o argumento da

defesa da etnicidade indígena, mas, ao mesmo tempo, estabeleceram uma relação forte

entre essa defesa e a defesa dos espaços da cidade contra a onda privatizações imposta pelo

governo estadual – como era o caso não só do maracanã, mas também do Parque Júlio

Delamare e o Estádio Célio de Barros, que na época seriam demolidos. Ou seja, a fala

sobre a etnicidade indígena também foi usada como estratégia para defesa de outros

interesses, mas os jornais não deram destaque a esse aspecto.

4.5 A noção de índio: o real e o discurso

Ainda que estejamos falando de um conflito que se deu dentro do espaço urbano,

aliado a questões políticas de disputas por espaços da cidade, os conceitos básicos

apresentados neste referencial teórico, sobre a relação entre grupos étnicos diferentes –

neste caso, índios e brancos, minoria e estado – são altamente cabíveis. Tal como explica

Roberto DaMatta (1976), verificamos o quanto assumir a indianidade na reivindicação por

um espaço foi custoso. O papel de índio – ou simpatizante da categoria – foi

veementemente desencorajado, uma vez, na situação em questão, os interesses indígenas se

chocavam com interesses movimentados pela lógica do capital – que também foi a lógica

do Estado no episódio. A reivindicação com base em um direito étnico, histórico e cultural

não era compatível com a necessidade da eficácia – as obras de mobilidade do Maracanã,

fonte de lucro em razão dos eventos esportivos internacionais. Foi visto, exatamente, o que

DaMatta (1976) descreve como “situação não-gramatical”. O domínio do estado, mais

forte do que um grupo minoritário de indígenas, se utilizou do poder totalizador da

violência para institucionalizar seu ponto de vista: a reivindicação dos índios não era mais

importante e legítima do que o planejamento de obras urbanas, e por isso, os que estavam a

margem foram hierarquicamente esmagados pelos os que estavam no centro da sociedade.

Por outro lado, os índios usaram o fator identidade como mecanismo de proteção diante do

estado.

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Como apresentado, a reivindicação de um patrimônio étnico e cultural indígena,

questão central da ocupação da chamada Aldeia Maracanã (e também aliada a uma

resistência política local, em um contexto específico do Rio de Janeiro) não foi eixo

temático da discussão sobre os temas nas matérias jornalísticas analisadas. Como já

apresentado, a discussão girou em torno de uma disputa jurídica por um espaço, e os

índios, enquanto protagonistas daquela ação, foram raramente parte do discurso. O que foi

verificado nas matérias pode ser retomado na obra de Everardo Rocha (1984), não são os

indígenas que falam sobre si, suas perspectivas, culturas, aspirações. É o homem branco

que fala sobre ele partindo de um ponto de vista diferente, de um universo de significação

diferente. Segundo Rocha (1984), os índios “aqueles que são diferentes de nós por não

poderem dizer de si mesmos, são representados sempre através de nossa própria ótica e

segundo necessidades ideológicas de um dado momento” (ROCHA,1984:16). E ainda que,

diretamente, não se possa verificar um discurso etnocêntrico nesses jornais, o fato de o

índio ser objeto da fala do outro, mas não enunciador do próprio discurso, também é uma

forma de etnocentrismo. Eles foram registrados em fotos, sempre adereçados com cocares

e pinturas (entretanto, nem sempre estavam assim). Não falavam sobre si, apenas

emprestavam sua imagem como ilustração do discurso jurídico e governamental.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o objetivo de discutir as representações do índio no cenário midiático

brasileiro - em especial, em dois órgãos da imprensa carioca em suas versões online – esse

trabalho começou por fazer uma contextualização histórica do modo como essas

representações foram construídas na teoria antropológica brasileira. Para tanto, foram

utilizados o livro do antropólogo Renato Athias, “A noção de identidade étnica na

Antropologia Brasileira” (2007), que faz uma leitura de autores como Darcy Ribeiro,

Gilberto Freyre, Roberto Cardoso de Oliveira, dentre outros. O autor faz uma linha do

tempo teórica, e mostra como as Ciências Sociais interpretaram o indígena, desde sua

interpretação como elemento formador da identidade brasileira, na fábula das três raças, até

o entendimento do indígena descolado de suas origens e imerso em outros sistemas

culturais.

As ideias de Roberto DaMatta e Eduardo Viveiros de Castro também foram

referências centrais nessa parte e serviram de ponto de partida para o trabalho, sobretudo

no que diz respeito ao custo das identidades sociais no Brasil. DaMatta mostra como ser

indígena é algo que se choca com as perspectivas de mundo baseadas no capitalismo e que,

por isso, torna-se demasiado custoso. O cenário está calcado no conceito de etnocentrismo,

no qual o julgamento de uma visão de mundo é feito com base em outra visão de mundo,

considerada “mais evoluída”. Eduardo Viveiros de Castro também trata desse tema e

serviu de base para a discussão sobre a tutelização dos povos indígenas pelas políticas

públicas e pela esfera jurídica ao longo dos últimos 100 anos, com base em concepções

etnocêntricas. A obra de Everardo Rocha, “O que é etnocentrismo?” (1984) também foi

consultada no que diz respeito a este conceito, em profundidade, e à materialização desta

visão nos livros didáticos brasileiros, como consequência de uma visão política de estado.

Por fim, a base teórica também se apoiou na noção de identidade cultural descentralizada,

proposta pelo teórico cultural jamaicano Stuart Hall, no que se refere aos hibridismos

identitários resultantes da chamada pós-modernidade.

Em seguida, ao longo do relato etnográfico, pôde-se perceber o quanto as

identidades são intercambiáveis e, sobretudo, plurais. Conviviam, no espaço da Aldeia

Maracanã, indígenas retirados de sua condição social e cultural original e ambientados, e

também indígenas já ambientados à espaços urbanos e ocidentalizados, além de indivíduos

natos do espaço urbano ocidentalizado.

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Foi exatamente essa amálgama sóciocultural a substância do movimento de

ocupação do antigo Museu do Índio. Também no relato etnográfico, foi percebido o quanto

os ocupantes se sentiam desmerecidos em seus depoimentos, ao que tinham a dizer sobre a

própria identidade e sobre a luta pelo espaço no contexto de disputas da cidade à imprensa

local. Na maioria das vezes, como visto nas matérias jornalísticas aqui analisadas, ela

ignorou a importância do discurso deles, agentes do movimento, e destacou, unicamente, a

fala de representantes da administração estatal e da justiça na qualificação dos

acontecimentos. Nesse sentido, a hipótese levantada foi a do etnocentrismo e da

“infantilização” do indígena. Ele não é emissor de um discurso sobre si mesmo, a ele não é

dado poder de fala nem de repercussão sobre os fatos. Ele é apenas tratado sob a tutela da

justiça, que define se ele deve ou não permanecer em determinado lugar e agir de

determinada maneira, levando em consideração, sempre – e de forma hierarquicamente

mais importante - os interesses do Estado e do capital. Ainda que ele esteja na posição de

protagonista de um determinado acontecimento – como foi o caso da Aldeia Maracanã -

não é a partir dele que, historicamente, os discursos midiáticos se estabelecem, mas no que

é dito sobre ele nas esferas política, administrativa, militar (através da polícia) e jurídica.

A partir dessas análises, uma questão aparece como fundamental: a relação entre as

perspectivas da antropologia e do jornalismo na descrição da realidade social. A

antropologia pode ser definida, sinteticamente, como o ramo das ciências sociais que

estuda as sociedades humanas e suas relações a partir do conceito de cultura, buscando

compreender (e não avaliar) suas diferentes expressões. Na perspectiva da antropologia

interpretativa, que tem em Clifford Geertz uma referência teórica central, a cultura é

entendida como uma “teia de significados” e o foco da pesquisa deve ser os diferentes

pontos de vista dos sujeitos cujo comportamento se visa interpretar. Para tanto, o principal

método da pesquisa antropológica é a “observação participante”, na qual os pesquisadores

passam longos períodos de tempo convivendo com o universo de seu objeto de estudo. O

resultado dessa observação, que inclui longas entrevistas, diferentes formas de registro e

anotações de diários de campo é a etnografia, definida por Geertz como “descrição densa”,

isto é um relato que busca dar conta dos significados presentes no comportamento dos

sujeitos estudados. Foi essa perspectiva que se tentou incorporar, embora que de forma

restrita, dentro dos limites de uma monografia de graduação. Jornalismo e antropologia se

assemelham na medida em que pretendem observar e analisar o comportamento e a

experiência humanos, ainda que de maneiras bem diferentes e ao longo espaços de tempo

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muito diversos. Por outro lado, ambos visam divulgar suas descobertas e interpretações

sobre um determinado contexto da vida social para um público mais abrangente. No

entanto, o que vemos é que os prazos quase que instantâneos do mundo jornalístico atuam

em detrimento da profundidade ou “densidade” das interpretações e da sua validade. Não

se trata necessariamente de mentiras ou invenção de fatos, mas da construção de discursos

que se restringem a uma perspectiva simplista e reproduzem estereótipos do discurso

dominante, que podem ocultar ou omitir a complexidade da realidade que se pretende

retratar.

É importante salientar que, além dos filtros subjetivos de cada jornalista, existem

muitos interesses envolvidos na produção de notícias, o que resulta em discursos

deliberadamente enviesados e imparciais. Discursos jornalísticos são originários de

empresas jornalísticas. Empresas estas que tem determinados patrocinadores, determinados

acordos políticos e, evidentemente, formas ideologicamente específicas de avaliar o peso

político e econômico dos fatos. Ainda assim, o jornalista, enquanto sujeito produtor de

conteúdos, pode e deve sestar preparado em termos de conhecimento não só prático, mas

sobretudo teórico, para realizar um trabalho mais profundo e, consequentemente, mais

crítico sobre os fatos e os processos sociais que os desencadeiam, no sentido de atribuir aos

textos noticiosos sua consistência e densidade necessárias.

Uma maior interlocução entre o campo do Jornalismo e da Antropologia poderia

contribuir para uma maneira mais holística e muito mais rica de produzir conteúdos no

contexto da informação jornalística. Permitiria também, ao jornalista, questionar boa parte

dos conhecimentos recebidos através de entrevistas com os ditos especialistas, e seus os

comentários sobre determinados temas, que, muitas vezes, são aceitos por serem

socialmente legitimados.

E isso é importante não apenas sob o ponto de vista da profundidade da apuração,

mas do relacionamento entre veículos e sua audiência. O processo de recepção das notícias

não é mais o mesmo desde o advento da internet e, sobretudo, das redes sociais. As

audiências adquiriram um poder maior de questionar as informações recebidas e

estabelecerem, elas mesmas, outras narrativas a respeito dos acontecimentos. Já não se

assistem – ou se lêem – os noticiários passivamente. Os receptores se envolvem com a pós-

transmissão via “comentários” postados nos jornais digitais, difundem conteúdos pelo

Twitter e pelo Facebook através de seus dispositivos móveis. Audiências opinam e

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desafiam os produtores da notícia em tempo real, como foi visto também no caso da Aldeia

Maracanã.

Esse novo contexto, em que a relação entre receptores e a produtores de notícias se

torna fluida, o papel dos jornalistas é posto em questão. Para fortalecê-lo e diferenciá-lo, é

importante que possam aprofundar e dar mais consistência à sua perspectiva sobre os fatos

sociais, não apenas no sentido de reforçar os processos de pesquisa e coleta e apuração de

dados, mas de construir interpretações mais críticas, que dêem conta da complexidade

social e se afastem dos estereótipos correntes. Assim poderão oferecer aos receptores –

estejam eles onde estejam – uma narrativa mais robusta e menos simplista, que avalie o

acontecimento factual com mais profundidade e com atenção à sua dimensão processual.

Essa pesquisa, de âmbito limitado, se restringiu ao discurso da grande imprensa

carioca, num caso específico. Pesquisas que fizessem análises comparativas entre os

discursos dos chamados jornalismo tradicional e jornalismo alternativo - produzido por

indivíduos na internet – são necessárias para o futuro desse debate.

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6 REFERÊNCIAS

ATHIAS, Renato. A noção de identidade étnica na antropologia brasileira: de Roquette

Pinto à Roberto Cardoso de Oliveira. 1 ed. Pernambuco: Editora Universitária UFPE,

2007.

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