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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO ALMAS QUE VAGUEIAM NA ESTRADA FRIA: ALEGORIAS DA PASSAGEM EM PESSACH: A TRAVESSIA Luciana Povoa de Almeida Silva 2013

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1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

ALMAS QUE VAGUEIAM NA ESTRADA FRIA: ALEGORIAS DA PASSAGEM

EM PESSACH: A TRAVESSIA

Luciana Povoa de Almeida Silva

2013

2

ALMAS QUE VAGUEIAM NA ESTRADA FRIA: ALEGORIAS DA PASSAGEM

EM PESSACH: A TRAVESSIA

Luciana Povoa de Almeida Silva

Dissertação de Mestrado submetida ao

Programa de Pós-Graduação em Ciência

da Literatura da Universidade Federal do

Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para a obtenção do

título de Mestre em Teoria Literária.

Orientador: Professor Doutor João

Camillo Penna.

Rio de Janeiro

2013

3

Almas que vagueiam na estrada fria: alegorias da passagem em Pessach: a travessia

Luciana Povoa de Almeida Silva

Orientador: Professor Doutor João Camillo Penna

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência

da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos

requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Teoria Literária.

Aprovada por:

________________________________________________________________

Presidente, Professor Doutor João Camillo Penna - UFRJ

________________________________________________________________

Professora Doutora Mary Kimiko Guimarães Murashima - UERJ

_________________________________________________________________

Professor Doutor Luis Alberto Nogueira Alves - UFRJ

_________________________________________________________________

Professor Doutor Eduardo Coelho – UFRJ, suplente

_________________________________________________________________

Professora Doutora Venus Brasileira Couy – UFRJ, suplente

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2013

4

SILVA, Luciana Povoa de Almeida.

Almas que vagueiam na estrada fria: alegorias da

passagem em Pessach: a travessia / Luciana Povoa de

Almeida Silva – Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras,

2013.

xiii.91f.

Orientador: João Camillo Penna.

Dissertação (Mestrado) – UFRJ / FL / Programa de Pós

Graduação em Ciência da Literatura, 2013.

Referências bibliográficas: f. 102-104.

1. Cony, Carlos Heitor. 2. Literatura. 3. Teoria Literária.

I. Penna, João Camillo. II. Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em

Ciência da Literatura. III. Título.

5

A Oskar e Emilie S., pela possibilidade da pessach oferecida.

Às Clarices de minha vida, por demonstrarem os vértices vitais.

6

Sed pleni omnes sunt libri, plenae sapientium voces, plena exemplorum vetustas; quae

iacerent in tenebris omnia, nisi litterarum lumen accederet.

(CÍCERO, Pro Archia)

7

Agradecimentos

O amor impede a morte, escreveu Clarice ao despejar a Água Viva de sua

Olympia portátil. No instante em que eu considerei a literatura frígida e sem mais razões

para os seus existencialismos – talvez pela necessidade da compreensão de sua téchne,

deixando de lado a fruição do prazer relativo à simples leitura de suas linhas e não tendo

que me ater às exegeses das entrelinhas –, Carlos Heitor Cony promoveu a travessia do

meu eu próprio e retirou a minha alma que vagava nas estradas frias do deslocamento.

Eu, que à beira de me tornar a égide do homem do imediato kierkergaardiano, tive

minha consciência realojada ao pulso ritmado da catarse literária que outrora eu tive e

estava prestes a perder. Quando o deleite pela arte em linhas e versos estava quase

escapando pelas minhas mãos – como a areia fina que foge dos dedos da criança na

praia, sobejando inocência no prazer do instante-já –, Cony impediu a queda no

precipício que leva a morte. Eu retornara ao amor à confecção literária. Saí dos meus

meses de deserto em direção à aurora que, novamente, nascia para mim. Refiz a

travessia.

Ao Carlos Heitor Cony, por impedir a causa da ruína. Pelo regalo que

sempre estará em um local privilegiado da minha biblioteca e de minha cabeceira.

Ao Professor Doutor João Camillo Penna, pela honra de seus diálogos e

orientações várias.

À Professora Doutora Martha Alkimin de Araújo Vieira, por revelar as

veredas do páthos da Teoria da Literatura, desde os primórdios de minha graduação em

Literaturas, e por demonstrar a existência da kalokagathía em seus mais profundos e

singelos vértices.

8

Ao Professor Doutor Eduardo Coelho, pelo auxílio.

À Professora Doutora Venus Brasileira Couy, pela disponibilidade

imediata frente a esse trabalho tanto vital quanto necessário. Obrigada por assistir ao

parto.

À Professora Doutora Mayara Ribeiro Guimarães, por compartilhar o

brilho nos olhos pela ucraniana mais brasileira que existe – a morte é pequena demais

para a magnitude da herança lispectoriana –, pelos livros-veredas e pela compreensão. A

sine qua non compreensão.

À Mary Murashima, Maryzinha, samurai das planilhas, magistra das

galáxias – tudo é demasiadamente pouco. Você está na esfera acima do tudo. Quem

sabe, um dia, algum idioma consiga adjetivar toda a magnificência que é você. Ou,

talvez, as planilhas. Enquanto isso, eu continuo dizendo em casa: “quando eu crescer, eu

quero ser igual a ela”. Não, esquece, não dá. Você cria o mundo em duas horas. É

covardia.

Ao magister Anderson de Araújo Martins Esteves: suas sinapses estão a

salvo das Erythrinidae. Não se preocupe.

À Tatiana Gandelman, judia-eclética, shel zahav. Você é o machado

dourado que o toco teme.

Aos meus amigos helênicos Michális Manóloglou, Paraskevi

Giannakou e Konstantina Karamichali, por colaborar, graciosamente, com sentido

pragmático da minha Pessach em direção ao meu retorno a casa: Σας ευχαριστώ πάρα

πολύ για όλα!

9

Às águas da Lagoa Rodrigo de Freitas, indispensáveis para a dissertação

quando a necessidade de liberação de endorfina se fazia urgente: obrigada, querido skiff

Paulo Ronái por suportar a fúria dos meus músculos durante os longos e dolorosos

treinos do Remo e, mesmo assim, singrar com maestria e elegância as águas das quais

eu fazia o meu refúgio.

À família Póvoa – minha mãe, Fátima; meu pai, Luciano e meus

irmãos Marcus Vinicius e Lili –, pelo apoio incondicional desde os primeiros rabiscos

do Jardim de Infância ao fim dos meus dias. Meu general-mãe, Yiddishe Mamma, que

na austeridade de sua criação me fez a eterna busca do melhor possível. Meu pai,

Luciano¸ que, no silêncio das palavras mas na sonoridade dos gestos, construiu meu

caráter e a minha total e completa admiração e entrega pelos cavalos. Fez-me Centauro,

pois. Meu irmão Marquinho: nossa paixão pelo mar. Minha saudosa – mas sempre

presente – irmã Lili: nunca esquecerei o recado final dos seus olhos. A vida é breve

para quem já nasceu sabendo amar.

À D. Maria da Penha, por sempre acreditar na positividade e mostrar que

a amizade é uma honra de poucos, mesmo quando há seis décadas separando o nosso

nascimento.

À Fernanda, καλλιόπη μου, por cotidianamente demonstrar, a mim, a

existência da Ítaca kavafiana nos mais simples índices vitais. Porto cretense, no qual o

navio se mantém ancorado até o final. O fim inexiste. As âncoras permanecem.

Aos meus filhos e amigos de rabo, Antônia, Ártemis, Capitu, Cheid,

Clarice, Dr. Preguinho, Eduarda, Fabiana, Giuseppe, Haia, Ioannis, Lica,

Mascarada, Maria Helena, Maristela, Princesa, Sophia, Valentina (Porrinha), Zion

10

e Zizi – todos Marias e Josés – que me trouxeram a liberdade e sempre me fazem

passar por cima. Fortalezas de ontem, de hoje e de amanhã.

À Chaya Lispector, eternizada na parede do meu escritório e em minhas

sinapses desde os meus treze anos de idade, por me proporcionar a descoberta do

mundo e ser o zahav meu de cada dia.

À Clarice, minha Clarice de quatro patas, por me fazer compreender a

linha retilínea entre as nossas retinas. O bambuzal da esquina sempre será o locus do

encontro dos nossos destinos.

Aos aproximados seis milhões de judeus aprisionados e mortos em Arbeitsdorf,

Auschwitz-Birkenau, Bardufoss, Belzec, Bergen-Belsen, Bolzano, Bredtvet, Breendonk,

Breitenau, Buchenwald, Chelmno, Dachau, Falstad, Flossenbürg, Grini, Gross-Rosen,

Herzogenbusch, Hinzert, Jasenovac, Kaufering, Kauen/Kovno, Klooga, Langenstein

Zwieberge, Le Vernet, L’viv, Majdanek, Malchow, Maly Trostenets, Mauthausen-

Gusen, Mittelbau-Dora, Natzweiler-Struthof, Neuengamme, Niederhagen, Oranienburg,

Osthofen, Pinkas I, Pinkas II, Plaszów, Ravensbrück, Riga-Kaiserwald, Risiera di San

Sabba, Sachsenhausen, Sobibór, Stutthof, Lager Sylt, Theresienstadt, Treblinka,

Vaivara, Varsóvia e Westerbork, por instaurarem uma nova era e um novo conceito de

memória: U’vtardemat ilan va’even, schvuyah bachalomah, ha’ir Asher badad

yoshevet, ubelibah – chomah (“E no profundo sono da árvore e da pedra, presa em um

sonho está a cidade solitária; e em seu coração – um muro).

11

Resumo

ALMAS QUE VAGUEIAM NA ESTRADA FRIA: ALEGORIAS DA PASSAGEM

EM PESSACH: A TRAVESSIA

Luciana Povoa de Almeida Silva

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Ciência da Literatura, Centro de Letras e Artes, da Universidade Federal do Rio de

Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos à obtenção do grau de Mestre em Ciência da

Literatura (Teoria Literária).

Orientador: João Camillo Penna

A presente dissertação tem por objetivo investigar como o romance intitulado Pessach:

a travessia, de Carlos Heitor Cony, pode ser entendida como uma alegoria da passagem

em termos de transformação da individualidade de seu protagonista Paulo Simões – um

judeu assimilado, caracterizado pelo esvaziamento de ideais e apatia política. Para tanto,

buscar-se-á auxílio teórico em Walter Benjamin no que tange à questão da alegoria; em

Georg Lukács, para que seja possível compreender o locus do protagonista no romance

moderno; em Søren Kierkegaard, para se pensar a constituição do “si próprio” em seu

processo reflexivo de individuação, e em Giorgio Agamben, com o objetivo de se

realizar uma exegese no que diz respeito à constituição originária judaica do

personagem Joaquim Goldberg Simon e a sua dupla condição de supertestis e terstis no

decorrer do seu desenvolvimento individual. Igualmente, será abordada, de modo

sucinto, a questão do “deslocamento” em sua perspectiva teórica elaborada por Elena

Palmero González, James Clifford e Stuart Hall, para que seja possível compreender

como é realizada a constituição deslocada do protagonista do romance a ser estudado

em vias de recuperação de sua autorreflexividade.

Palavras-chave: travessia; individuação; alegoria; testemunho; transformação.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2013

12

Abstract

WANDERING SOULS IN THE COLD ROAD: ALLEGORIES OF THE PASSAGE

IN PESSACH: A TRAVESSIA

Luciana Povoa de Almeida Silva

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Ciência da Literatura, Centro de Letras e Artes, da Universidade Federal do Rio de

Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos à obtenção do grau de Mestre em Ciência da

Literatura (Teoria Literária).

Orientador: João Camillo Penna

Abstract: This dissertation aims at investigating the way the novel entitled Pessach: a

travessia by Carlos Heitor Cony, can be understood as an allegory of the passage in

terms of transformation of the individuality of its protagonist Paulo Simões - an

assimilated Jew, characterized by the emptiness of his ideals and political apathy. The

study solicits the help of theorists such as: Walter Benjamin regarding the issue of the

allegory; Georg Lukács, for the understanding of the protagonist’s locus in the modern

novel; Søren Kierkegaard, in order to think the constitution of "itself” in its reflexive

process of individuation; and Giorgio Agamben, with the objective of performing an

exegesis with regard to the constitution of original Jewish characters such as Joaquim

Simon Goldberg and his double condition as supertestis and terstis towards his

individual development. It will also be discussed, briefly, the issue of displacement in

its theoretical perspective as elaborated by Elena Palmero González, James Clifford and

Stuart Hall, as means of understanding how the displaced constitution of the novel’s

protagonist is accomplished in the process of his recovery his self-reflexivity.

Keywords: passage; individuation; allegory; testimony; transformation.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2013

13

Sumário

Introdução................................................................................................................... .....14

1. Quando o contexto enuncia-se em texto: tempos de Ditadura....................................18

1.1. Pessach: a travessia em contexto......................................................................19

1.2. Panorama histórico-político...............................................................................24

2. Personagem em trânsito: a alegoria da Pessach e a constituição do herói

problemático....................................................................................................................35

2.1. Alegoria e a passagem por cima: a pessach do indivíduo.................................35

2.2. Paulo Simões: a travessia do indivíduo problemático lukácsiano ao herói de sua

própria epopeia.........................................................................................................47

3. Processos de individuação: contribuições de Walter Benjamin e Søren

Kierkegaard.....................................................................................................................54

3.1. Do restitutio ao novum: perspectivas benjaminianas........................................54

3.1.1. As teses sobre a História e a história de Pessach: a travessia...................56

3.1.2. Mnemosýne em vias de recuperação..........................................................58

3.2. Kierkegaard e a inteireza paradoxal do indivíduo.............................................60

3.2.1. Tornar-se si próprio ou o desafio da subjetivação.....................................63

3.2.2. Éthos e a consciência reflexiva..................................................................75

4. Pessach: travessia e deslocamento..............................................................................81

4.1. Vestígios de almas que vagueiam na estrada fria..............................................81

4.1.1. O aidós da sobrevivência: o duplo êxodo do deserto e a consciência do

éthos cindido........................................................................................................86

4.2. Deslocamentos reais e metafóricos: a travessia como constitutio e

(re)constitutio...........................................................................................................93

Conclusão......................................................................................................................100

Referências bibliográficas............................................................................................ 102

14

Introdução

Dentre os teóricos que investigaram a produção literária da modernidade e da

contemporaneidade, podemos destacar Walter Benjamin, Georg Lukács, Giorgio

Agamben e Søren Kierkegaard, cujos trabalhos, voltados para manifestações da arte

literária e filosófica que datam dos séculos XIX e XX, oferecem significantes reflexões

para a compreensão de boa parte dos textos literários da contemporaneidade.

O presente trabalho pretende estudar alguns aspectos trabalhados,

majoritariamente, pelos teóricos supracitados na leitura de um romance brasileiro de

1967. Trata-se da obra de Carlos Heitor Cony intitulada Pessach: a travessia. O referido

texto, ambientado nos chamados “anos de chumbo” da ditadura militar no Brasil,

apresenta um protagonista que assoma seus quarenta anos e percebe o vazio de sua

existência até então.

O primeiro item da reflexão aqui proposta em torno da obra de Cony volta-se,

justamente, para a realização de um breve mapeamento do contexto histórico-político

em que a narrativa se desenvolve. Com o auxílio teórico de Roberto Schwarz, na obra

Cultura e Política 1964-1969 e de diversos ensaios presentes na obra organizada por

Ferreira & Delgado, intitulada O Brasil republicano: o tempo da ditadura – regime

militar e movimentos sociais em fins do século XX, é possível construir um panorama

imagético do período em que se passa a trama envolvendo Paulo Simões e seu caminho

de profunda reflexão e de questionamentos vários sobre suas atitudes e posturas até

então.

A partir daí, propõe-se uma exegese acurada da constituição do protagonista da

obra – Paulo Simões – com o auxílio teórico de Walter Benjamin, Georg Lukács, Søren

Kierkegaard e Giorgio Agamben.

15

O segundo capítulo abarcará o conceito de alegoria desenvolvido por Benjamin

em seu estudo intitulado Origem do drama trágico alemão, buscando compreender a

alegoria como constituinte fundamental do contexto em que transita o protagonista. No

mesmo capítulo, abordar-se-ão conceitos desenvolvidos por Lukács em sua obra Teoria

do Romance, sobretudo no que diz respeito à percepção da personagem como elemento

problemático no contexto da narrativa da modernidade. Partindo da compreensão

lukácsiana acerca da constituição do herói problemático, constrói-se uma hipótese sobre

a travessia pela qual passa o protagonista, de indivíduo alienado para membro ativo de

uma coletividade. Destaca-se, dessa forma, a percepção de como o protagonista só

alcança a compreensão de si mesmo a partir de seu engajamento a essa coletividade

redentora de seus “quarenta anos de deserto”.

O terceiro capítulo da presente dissertação lidará, novamente, com a personagem

Paulo, entretanto não pela perspectiva do processo narrativo empreendido na

modernidade, mas como indivíduo em trânsito, com implicações na constituição de seu

ethos levando em conta a reconstrução de sua individualidade. Para tanto, foram

utilizados conceitos de Walter Benjamin presentes na coletânea O anjo da História e a

reflexão ontológica de Søren Kierkegaard contida no livro O desespero humano. Nessa

mesma parte do presente trabalho, buscar-se-á, igualmente, a apreciação dos temas

sobre a questão da redenção e rememoração de acordo com a ótica do messianismo

judaico e, sem dúvida, do materialismo histórico – cuja matriz teológica é inegável –

verificados na obra em contraste com o pensamento benjaminiano encontrado nas Teses

sobre a história.

Por fim, a última parte desta pesquisa volta-se para a relação entre o protagonista

e a questão de seu ethos judaico escamoteado a partir da postura de seu pai, Joaquim

Goldberg Simon, e por ele mesmo recuperado em um tenso diálogo que remete

16

necessariamente ao episódio histórico da Shoah durante a vigência do nazismo.

Paralelamente, é traçada uma relação com o conceito de deslocamento que constitui

tanto Paulo, no macroambiente da narrativa, quanto Joaquim, no encontro fundamental

entre pai e filho que, finalmente, desnudam-se nas suas escolhas individuais. Procura-se

demonstrar, por fim, como o sujeito é constituído e reconstituído a partir de seu

deslocamento, seja ele objetivo – físico, geográfico – e/ou subjetivo – como a viagem

interior e intimista pode estabelecer que o entre-lugar seja a redenção, a verdadeira

travessia individual. Para isso, conta-se, brevemente, com o apoio teórico de críticos

como Elena Palmero González, Edward Said, Stuart Hall e James Clifford para

compreender como a diáspora pós-moderna é capaz de ressuscitar,

epistemologicamente, o cerne identitário-cultural.

A travessia presente no título é a marca a ser explorada na narrativa de Cony,

uma vez que se faz alegoria constitutiva do romance e, concomitantemente, necessário

caminho para a transformação e êxodo do deserto que é a existência do protagonista até

seus quarenta anos.

17

É tempo de acabar com tanta ignomínia. Os homens que, à minha volta, preparam-se

para a luta, repelem a ignomínia que caiu sobre eles. Preferem morrer a aturar essa

ignomínia. Eu a aceito, ainda. Preparo-me para consumar, mais uma vez, a coisa

hedionda, abominável, sem sentido: o bidê.

(CONY: 2007, 196)

18

1. Quando o contexto enuncia-se em texto: tempos de Ditadura

René Bady, em sua obra intitulada Introduction à l'étude de la littérature

française, diz que “o escritor não é uma resultante, nem mesmo um simples foco

refletor; possui o seu próprio espelho, a sua mônada individual e única. Tem o seu

núcleo e o seu órgão, através do qual tudo o que passa se transforma, porque ele

combina e cria ao devolver à realidade.” 1

Em tom crítico semelhante, Antônio Candido, em “Literatura e Sociedade”,

postula que a exegese essencial da obra só é possível ao amalgamar texto e contexto em

sua relação dialeticamente integrada. Desta feita, o que parecia absoluta e

inconciliavelmente externo – o caráter social - se faz elemento interno – as veredas

literárias stricto sensu – na consonância entre realidade e ficção. A integridade da obra

de per si não se deixa enveredar em sua plenitude em óticas divergentes em relação ao

texto, que de modo honesto e consciente, permite ser amparado – para fins de maior

compreensão fenomenológica – em seu contexto, em uma relação simbiótica e unívoca,

de acordo com o pensamento de Fausto de Macrocosmos: “tudo é tecido num conjunto,

cada coisa vive e atua sobre a outra”. 2

Mesmo sem a pretensão de se elaborar um estudo sociológico sobre a obra, a

matéria do romance se encontra em estado de intersecção relativo à ambiência social,

permitindo o pleno fluxo do significado. É nessa esfera que é possível reflet ir sobre o

romance Pessach: a travessia, de Carlos Heitor Cony.

1 BADY, René. Introduction à l’étude de la littérature française, Éditions de La Librairie de

l’Université, Friburgo, 1943, p.31. 2 Segundo o original alemão utilizado por CANDIDO, Antônio, “... alies sich zum Ganzen webt!

/ Eins in dem andem wirkt und lebt!”. In: Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre

Azul, 2006. p. 15.

19

1.1. Pessach: a travessia em contexto

A obra em questão, publicada originalmente em 1967, narra a travessia de Paulo

Simões, um escritor carioca de boa circulação no mercado editorial, que vivencia uma

reviravolta em seu núcleo vital no dia de seu aniversário de quarenta anos. Paulo

Simões, que renega suas origens judaicas e, por consequência, seu sobrenome

“Goldberg Simon” – tornando-se, pois, um judeu assimilado – recebe a visita de Silvio,

seu ex-companheiro de serviço militar e de Vera, ambos membros de um grupo de

guerrilha, em seu apartamento na manhã em que completa quarenta anos, a fim de tentar

convencer Paulo a entrar para a luta armada.

Absolutamente contrário aos meios radicais que essa vertente da esquerda

propunha, o escritor rejeita enfaticamente a ideia, sem saber que as próximas horas

seriam responsáveis por um total redirecionamento de suas convicções de uma efetiva

práxis política, a priori de caráter involuntário. Entretanto, com o decorrer do tempo, as

ações involuntárias passam pela travessia do engajamento – o êxodo de uma realidade

com objetivos opacos em direção a firmes traçados de destinos e incumbências

pessoais: a Terra Prometida do indivíduo de per si, - na linguagem de Kierkegaard - a

subjetividade em vias de libertação.

O ano é 1966 – mais precisamente 14 de março de 1966 –, dois anos após o

golpe militar de 1964 no Brasil. É interessante, nesse âmbito, elaborar uma pequena

rememoração desse ambiente político durante o período de 1964 a, aproximadamente,

1969, tendo em vista o pressuposto de Antônio Candido evidenciado no início do ensaio

citado acima, em que o caráter externo – a conjuntura social, contextual – da obra torna-

se um composto dialeticamente íntegro ao associar-se ao caráter interno da obra – o

corpus literário.

20

Roberto Schwarz, em seu ensaio “Cultura e Política, 1964-1969”, inserido na

coletânea O pai de família e outros estudos 3, expõe de modo bastante consistente o

panorama político dessa época. Vejamos, a seguir, algumas considerações do autor que

considero de absoluta relevância para o presente estudo.

Conforme já exposto nos parágrafos supracitados, Pessach: a travessia inicia

seu enredo em 14 de março de 1966. A data do dia e do mês escolhidos pelo autor para

iniciar a travessia de Paulo Simões não é casual: foi no dia 13 de março de 1964 que

ocorreu o Comício da Central, considerado um dos mais populosos da história

brasileira, no qual o presidente João Goulart procurou se fortalecer angariando o apoio

da população para as suas propostas de transformação social, fortalecendo o seu

governo bastante enfraquecido em função da oposição declarada dos militares e da crise

na economia.

Deposto no golpe de 1964 no qual a ditadura militar instala-se, Goulart é

sucedido, através da eleição indireta de 11 de abril do mesmo ano, pelo general

Humberto de Alencar Castello Branco. Na ocasião, a luta armada ainda não se

encontrava organizada e o povo, por sua vez, mobilizava-se ideologicamente ainda de

forma morosa, sem pensar, exatamente, na possibilidade das guerrilhas. É importante

lembrar, também, que uma parcela bastante significativa da população apoiava as

diretrizes gerais promovidas pelo governo de Castello Branco. O povo vivenciava os

prováveis resultados, conforme explicita Schwarz:

Em seguida, [o povo]4 sofreu as consequências:

intervenção e terror nos sindicatos, terror na zona rural,

rebaixamento geral dos salários, expurgo especialmente

nos escalões baixos das forças armadas, inquérito militar

na Universidade, invasão das igrejas, dissolução das

3 SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política, 1964-1969. In: O pai de família e outros estudos.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 4 Adendo meu.

21

organizações estudantis, censura, suspensão de habeas

corpus etc. (SCHWARZ: 1992, 62)

Tendo como foco a figura de Paulo Simões, alegoria5 da intelectualidade

esquerdista, é interessante ressaltar a propriedade hegemônica, na semântica de viés

cultural, dessa ala política. Muitos intelectuais de esquerda foram poupados das torturas,

prisões e longos interrogatórios no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS),

deixando tal “tratamento férrico” ser direcionado àqueles que organizavam a

proximidade comunicativa com operários, marinheiros, soldados e camponeses. Até o

momento, a esquerda florescia em um andamento excepcional em seu locus restrito,

tornando-se, desta feita, um excelente complexo mercadológico ao redimensionar a

fisiognomia artística e editorial.

Essa disposição foi sedimentada em 1964, tendo a sua duração estendida até,

aproximadamente, dezembro de 1968, já no governo de Arthur da Costa e Silva. A

partir de então, a esquerda intelectual passa a ser, também, ávida e obstinadamente

combatida pelo regime militar. Irrompe, nos centros acadêmicos e grêmios estudantis,

uma nova massa com habilidades intelectuais interessantes à esquerda, colaborando

para fortalecer a oposição ao poder do Estado: os estudantes e sua situação de

semiclandestinidade, configurando-se como uma geração compactamente anticapitalista

6.

5 A discussão sobre o conceito de alegoria será elaborada no capítulo 2 da presente monografia,

a partir do escrito de Walter Benjamin, Origem do drama trágico alemão. 6 É interessante ressaltar, de acordo com SCHWARZ (1992), que no período pré-64 o

pensamento de esquerda no Brasil combinava um caráter antiimperialista, com uma débil

organização no que diz respeito à luta efetiva de classes. Como exemplo disso, temos a proposta

do Partido Comunista de aliança entre a burguesia nacional e a classe trabalhadora, contra o

capital estrangeiro. Desse modo, o PC caracteriza-se muito mais pelo aspecto antiimperialista do

que pelo caráter anticapitalista. Em contraposição, conforme já exposto nos parágrafos

supracitados, a geração estudantil de grêmios e centros acadêmicos representavam, a seu modo,

a massa que vociferava contra o progresso do capital.

22

Nesse sentido, Cony elabora uma representação ficcional sutil sobre essa

temática a partir da personagem Ana Maria, filha de Paulo Simões, interna em um

colégio católico após o divórcio dos pais. A personagem em questão, através do diálogo

com o seu pai em um breve momento da narrativa, sugere em sua fala a manifestação de

um movimento estudantil em sua formação embrionária, e que virá a ser percebido

como um incômodo, uma periculosidade potencial para o regime em vigência.

- (...) A gente tem um processo infernal para tapear as

freiras. - A diretora disse que apanhou uma aluna lendo um livro

meu. O livro está lá na diretoria. - Isso foi golpe. As freiras apanharam um livro apenas,

mas há outros que entraram aqui e são lidos em rodízio. - Isso não me honra muito.

- Mas não é só você. Lemos Sartre, Faulkner, Miller... - Miller?

- Sim. Uma garota diz que você, nos primeiros livros,

imitava Miller, é verdade?

- É difícil explicar, mas não é verdade. - Bem, de qualquer forma, vou estudar sociologia. Temos

aqui dentro um grupo de esquerda, pai, não é legal? (grifo meu). (CONY, 2007:51)

A passagem que remete à chegada de Paulo Simões ao colégio de sua filha

representa uma espécie de iconografia triádica composta pelo próprio protagonista, Ana

Maria e as freiras que conduzem o regimento interno da instituição de ensino. Eis, desse

modo, uma ambientação paradoxal, do conflito ideológico entre as partes: enquanto Ana

Maria figura como a voz da doutrina esquerdista ainda incipiente, restrita ao viés

intelectual guiado pela literatura de Faulkner, Sartre, Miller e até mesmo do próprio

Paulo – ainda que a filha, seu respectivo grupo ideológico e vários outros indivíduos o

considerem um “bocado alienado” 7 –, as freiras atuam como o cânone do interdito: a

7 Cf. CONY: 2007, 52.

23

censura da literatura8 é recorrente, estipulando um tipo de Index interno além de apoiar

claramente o governo militar. Há, assim, dois polos de concentração ideológica

nitidamente demarcados.

O terceiro item de elocução, Paulo Simões, encontra-se no ponto intermediário

entre os dois polos supracitados: inserido em sua clausura de subjetividade superficial e

autovivificação e limitado em apenas assinar, no máximo, alguns manifestos para

libertar presos políticos, a personagem limita-se, até o momento, à sua própria

neutralidade.

(...) Não sou a favor de nenhuma causa. Nem contra. Sou

homem e sou neutro. (CONY: 2007, 46)

Um dos primeiros momentos em que o sujeito em questão retira-se de seu estado

inerte de neutralidade é quando interpela Ana Maria: eis a imersão no fluxo de

consciência do indivíduo ao ter a sua voz interna despertada, buscando a compreensão

de si e de sua ideologia própria, em prol da compreensão da existência em um momento

embrionário da consciência de Paulo Simões em relação à sua idiossincrática semântica

existencial.

8 É interessante perceber como a questão da literatura é trabalhada no romance em tela,

principalmente na passagem discutida. A arte é considerada, pela ala reacionária, um aviso de

incêndio, uma pulsão de possíveis perigos ideológicos que possam ser veiculados através desse

meio, seja a arte como música, pintura, literatura. Esta, por sua vez, ocupa um locus

privilegiado: Paulo Simões é escritor, ou seja, integra-se na intelectualidade que, consciente ou

não a priori, pode a qualquer momento apresentar-se como engajada em causas da esquerda,

tendo em vista a sua função formadora da personalidade crítica do indivíduo. Nas palavras de

CANDIDO (1999:84), “longe de ser um apêndice da instrução moral e cívica, ela age como o

impacto discriminado da própria vida e educa como ela com altos e baixos, luzes e sombras”.

In: BORGES, Marilurdes Cruz. Sentido, dialogismo e cena enunciativa em Pessach: a travessia,

de Carlos Heitor Cony. Dissertação apresentada à Universidade de Franca. Franca: 2008, p. 25

24

Dessa forma, é possível perceber uma situação em que a intelectualidade –

representada pelo escritor no romance – encontra-se pressionada pela direita e pela

esquerda, inserindo-se em uma situação de “crise aguda”.9 Nesse sentido, a temática

prioritária em obras literárias e na filmografia política é, de fato, a conversão do

intelectual à luta armada, à militância.

Pessach: a travessia trabalha com a passagem do indivíduo da

inessenciabilidade à essenciabilidade, indivíduo este que “passa por cima” 10

de seu

caráter problemático e intrinsecamente romanesco à microepopeia de um microgrupo

diante da macroestrutura do sistema. Paulo Simões é o sobrevivente da libertação de si

mesmo, dos libambos dos seus “quarenta anos de deserto” próprios em direção ao

engajamento lato sensu de suas convicções e destinos, finalmente, delineados.

1.2. Panorama histórico-político

Nilson Borges, em seu artigo intitulado “A Doutrina de Segurança

Nacional e os governos militares”11

, evidencia, de modo extremamente lúcido e

didático, o panorama político brasileiro durante o período da ditadura militar. No início

do ensaio, o autor coloca em foco o desencadeamento dos golpes do Estado e a entrada

dos militares no panorama político nos anos 70 em vários países da América Latina – e,

certamente, em terras brasileiras. Como exemplo, cita-se o ano de 1979, em que dois

9 Cf. SCHWARZ, R. Cultura e política, 1964-1969. In: “O pai de família e outros estudos”. Rio

de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 89. 10

“Passar por cima” é o significado literal da palavra hebraica Pessach, que remete à Páscoa

judaica. Esta, grosso modo, recorda a libertação do povo de Israel do Egito, de acordo com a

narrativa de Shemot. 11

In: FERREIRA, J. e DELGADO, L. A. N. (org.). O Brasil Republicano: o tempo da ditadura

– regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2003. p. 15-42.

25

terços da população latino-americana estavam sob a égide dos regimes militares ou sob

as rédeas castrenses.

No caso brasileiro, o início do ciclo militarista deu-se através do golpe – ou, de

acordo com as palavras do autor, “processo intervencionista” – de 1964 aliado à

aniquilação do governo de João Goulart. Entretanto, mesmo com muitos teóricos

querendo restringir a entrada militar no cenário político apenas com a instauração do

golpe em 1964, relatos históricos evidenciam a crise como uma espécie de instante

catártico das Forças Armadas, em que estas se apresentam como “atores políticos

atuantes”. Borges oferece diversos exemplos dessa crise como brecha militar:

Assim foi, em 1889, com a proclamação da República,

mediante um golpe articulado por Deodoro da Fonseca,

Floriano Peixoto e a mocidade militar, liderada por

Benjamin Constant, e assim continuou sendo, em 1930,

com a derrubada da República oligárquica, que permitiu a

instauração da ditadura do Estado Novo e a deposição de

Getúlio Vargas em 1945. Mas foram também os militares

que participaram do processo de estabelecer um regime

democrático, que vigorou de 1945 a 1964, e garantiram a

posse de Juscelino Kubitschek em 1955, abortando um

golpe preparado por setores das Forças Armadas.

(BORGES: 2003, 15)

Analisando o histórico das Forças Armadas no panorama político brasileiro,

Nilson Borges diagnostica duas fases majoritárias nesse contexto: a primeira, pré-1964,

na qual havia a intervenção pontual dos militares para fins exclusivos de

restabelecimento da ordem institucional para que, logo depois, as rédeas do Estado

fossem novamente entregues às mãos civis: era, assim, estipulada a chamada “função

arbitral-tutelar” dos militares12

; a segunda, pós-1964, em que irrompe a Doutrina de

Segurança Nacional (DSN) instrumentalizada pela Escola Superior de Guerra (ESG),

12

É interessante observar como Nilson Borges aproveita uma hipótese formulada pelo

brasilianista norte-americano, Alfred Stepan, em Os militares na política, editado em 1971, que

identificou o padrão de intervenção dos militares na estrutura política brasileira antes do golpe

de 1964 com o papel do antigo poder moderador, na monarquia.

26

proporcionando a condução do Estado pelos militares, desviando a base civil dos

centros de decisões políticas e tornando-os “agentes de segundo plano” na coadjuvância

para que houvesse uma pseudodemocracia e uma pseudolegitimidade nas vitrines do

regime. Desse modo, o aparelho militar acabou se tornando a grande força tutelar do

sistema, limitando o alcance das ações civis de acordo com os seus interesses

hegemônicos.

Dessa forma, é possível perceber que o ano de 1964 foi um divisor de águas

considerável para o aparelho militar brasileiro, tendo em vista o fato de que, até o

mencionado ano, as Forças Armadas mantiveram-se em condição arbitral-tutelar –

função esta já elucidada em parágrafos anteriores. A partir dos novos rumos do país de

1964 em diante, o processo intervencionista por parte dos militares passa a ter um

caráter extremo e contundente, caminhando para a diligência efetiva da pátria, e não

mais se contentando com a anterior condição arbitral-tutelar: de agora em diante – até o

fim do período militar brasileiro – a hegemonia do Estado estava atrelada ao poderio

castrense. Nilson Borges, inclusive, põe em foco a questão do intervencionismo militar,

após a República proclamada, ter sido um processo constante no cenário político

brasileiro, até mesmo por tal procedimento ter se tornado habitual em nosso histórico

como consequência das constantes intervenções militares, criando uma espécie de

cultura militar.

Voltando um pouco na cronologia dos fatos com o objetivo de elucidar

brevemente determinadas questões, é importante ressaltar que os anos 1950 foram

importantes para o reforço da autoridade pública dos militares, através da centralização

de ações políticas e administrativas a fim de controlar o aparato sociopolítico do Estado,

controle este incentivado pelo crescimento da industrialização e o pelo processo

progressivo de urbanização. Além disso, houve um significativo divisionismo na

27

instituição militar, acarretando as denominadas clivagens, isto é, o polêmico surgimento

de partidos militares dentro da própria instituição, fato este ocasionado

fundamentalmente, por aspectos de cunho organizacional e ideológico. Nesse contexto,

na tentativa de homogeneização do aparato, setores militares acabaram se aproximando

de setores civis estimulados pela Escola Superior de Guerra, acarretando uma

aproximação de elites civis ao locus militar.

O padrão moderador 13

das Forças Armadas abriu as portas, de modo pari passu,

à centralização cada vez mais efetiva do aparelho militar em relação às rédeas políticas

do Estado.

Da análise do período pré-1964, vai-se notar um processo

de centralização do poder militar na medida em que o

poder civil se subordinava ao poder militar, sendo que, a

partir dos anos 1930, as Forças Armadas asseguram o

monopólio legal e real da intervenção. Como

consequência, o aparelho militar torna-se sujeito político

coletivo, muito embora, ao disputar o controle político,

surjam no seu interior clivagens (partidos militares) que

comprometem sua unidade organizacional. (BORGES,

2003:19)

Borges dá o exemplo dos governos de Getúlio Vargas, de difícil compreensão

em relação à questão militar. Em 1930, as Forças Armadas foram peça fundamental

para que Vargas chegasse à Presidência. Posteriormente, liderados por Eurico Gaspar

Dutra e Góes Monteiro, os militares apoiam a implantação do ditatorial Estado Novo

para, em seguida, levar Getúlio Vargas ao suicídio ao impor-lhe forçadamente a sua

deposição. Tal medida estaria baseada na alteração ideológica de Vargas ao dialogar

com as massas promovendo, dessa forma, o fortalecimento dos sindicatos relacionados

ao governo e a exaltação do espírito ufanista. Assim, há uma fissura considerável entre

13

Ao mencionar o poder moderador, há uma referência explícita ao modelo imperial, em que o

poder moderador está centrado na figura do imperador.

28

o governo varguista e as alianças militares e elites civis, estabelecendo a síndrome

antigetulista na instituição desde 1930 até o governo de Goulart.

É importante mencionar a relevância da expressão segurança nacional que já se

fazia visível nos discursos das Forças Armadas nos anos 1930 principalmente pelas

manifestações de Góes Monteiro que associavam a presença da Segurança Nacional à

fundamentação ufanista da ordem e da disciplina popular que colaborassem para a

solidificação cada vez mais expressiva da importância inabalável do país frente a

qualquer outro possível interesse dos civis.

O ano de 1964 foi, indubitavelmente, um marco na política e na sociedade

brasileiras a partir da tomada do poder pelas mãos militares apoiadas por empresas

nacionais e transnacionais, além do governo americano e de setores das Forças Armadas

oriundas da ESG (Escola Superior de Guerra), elementos que gerenciavam uma política

conspiratória, na qual a Doutrina de Segurança Nacional – assistida pelos EUA e França

– apresentou-se como justificativa na tomada do poder e alteração estrutural das bases

políticas do Estado.

No contexto em que Pessach: a travessia é ambientada, o golpe instaurado no

ano de 1964 é a base de novas delimitações para as funções a que se atribuíram as

próprias Forças Armadas durante todo esse processo sociopolítico, no qual os militares

passam a coordenar múltiplas funções administrativas e políticas, incorporando, a

priori, uma média de trinta por cento dos cargos anteriormente ocupados por civis. É

interessante levar em consideração o fato de que, segundo Borges, o regime militar pós-

64 apresentava duas características consideradas contraditórias: a durabilidade e a

mutabilidade. A primeira diz respeito ao longo tempo de permanência militar nas rédeas

governamentais; a segunda, por sua vez, refere-se à interface do governo no que diz

29

respeito à presença ou ausência de abertura política – a mutabilidade promove a

concretização efetiva do poder instaurado e mantido pela ala militar.

A censura, a repressão e o terrorismo produzidos pelo Estado foram a tríade de

apoio das Forças Armadas em relação ao seu papel de partido político representante da

burguesia e dos interesses das elites que outrora dominavam ativa e frontalmente. Desse

modo, a sociedade civil acabou por ser agenciada pelos militares e por seus aliados à

medida que as condições de supremacia e legitimidade militares eram cada vez mais

consolidadas no país: conforme o aparelho militar fortalecia o estado, neutralizando o

máximo possível as pressões civis sob o subterfúgio do crescimento econômico

brasileiro, as Forças Armadas atingiam um elevado grau de autonomia na Instituição.

O núcleo do poder militar estava embutido naquilo que

chamavam de sistema: um órgão informal que agrupava os

generais do Alto Comando Militar. Ao sistema cabia a

tarefa de, em última instância, decidir sobre as questões

políticas, tanto de política interna quanto de política

externa. Nada de importante deixava de passar pelo crivo e

pelo nihil obstat do sistema. Os partidos civis eram meros

coadjuvantes no cenário político, além de estarem

divididos entre o partido do governo (Arena-PDS) e a

oposição consentida (MDB-PMDB). As forças Armadas,

no papel de poder dirigente-hegemônico, impediam que

fossem transferidos para a classe civil os centros de

decisão política. (BORGES, 2003:21-22)

É interessante verificar como Borges, analisa, de modo bastante didático, o

período pós-1964. Segundo ele, o pós-1964 pode ser dividido em três fases principais.

A primeira inicia-se com o golpe militar do referido ano e estende-se até a instauração

do AI-5. Nesse período, as diretrizes do regime militar foram extremamente discutidas,

ou seja, se os militares do sistema iriam adiante com os planos de dirigismo estatal ou se

reconduziriam, com limites estabelecidos, o poder aos civis de bases confiáveis. O

avanço militar em relação ao papel dirigente seria denominado “processo

revolucionário”, nomenclatura formulada durante o governo de Castelo Branco, que

30

acreditava que tal “revolução” deveria ter um caráter transitório, entretanto suas ideias

foram suplantadas pela parcela militar considerada mais radical. O “processo

revolucionário” dos militares foi definitivamente estabelecido, até então, como

permanente a partir do momento em que Arthur da Costa e Silva é empossado como

presidente da República, além da publicação do Ato Institucional de número 5 como

fato sine qua non para a permanência militar, estabelecendo, dessa forma, o poderio das

Forças Armadas no controle do Estado.

A segunda fase do período pós-1964 constitui-se na transição entre a

implementação do AI-5 até a liberalização política, cujo início deu-se no período de

governo do presidente Ernesto Geisel, no qual o referido Ato Institucional foi revogado.

Esse foi o período em que a tortura dos presos políticos era uma prática comum e

recorrente com a finalidade de manter, de acordo com a ótica da Direita governamental,

a ordem e o progresso do Estado brasileiro.

A terceira fase refere-se à liberalização política estabelecida no governo do então

presidente Ernesto Geisel, no qual as diretrizes do “processo revolucionário” foram

freadas, revertendo o histórico da censura do DOPS e reajustando as medidas de

segurança do Estado estabelecidas pelo controle militar. A partir do processo de

liberalização política e, por consequência, do desaparecimento do Ato Institucional

Número 5, o poder foi, pari passu, retornando às mãos civis, desde que estes estivessem

nos moldes das bases confiáveis.

Indubitavelmente, durante esse período a censura e a tortura foram

características que sobressaíram na política brasileira da ditadura militar. A repressão

oriunda e fomentada pelo Serviço Nacional de Informação (SNI) – com base na

Doutrina de Segurança Nacional (DSN) – acarretou um vertiginoso crescimento do

31

“terror”, seja por parte da Esquerda – com ataques constantes dos guerrilheiros da luta

armada –, seja por parte do aparelho governamental através das famigeradas torturas

físicas e psicológicas de uma parte da Inteligência militar. A partir do crescimento

vertiginoso das ações terroristas por parte da ala considerada mais “radical” do aparelho

militar, houve o surgimento da denominada síndrome de tensão-pressão no próprio

escopo militar entre oficiais atrelados à Inteligência e os restantes, avessos a qualquer

tipo de intervenção violenta e excessiva do sistema vigente. Nesse contexto, surgem as

rivalidades ideológicas e práticas entre aqueles ligados à Inteligência – “comunidade de

informação” – e os moderados, contrários ao regimento daquela parcela militar

politicamente engajada.

As ações terroristas levadas a cabo pelo Serviço Nacional de Informação (SNI)

só serão reduzidas quando o presidente Ernesto Geisel demite o general Ednardo

D’Ávila Melo, então comandante do II Exército, após a constatação do assassinato por

tortura de um operário, de um jornalista e de um tenente da Polícia Militar, José Ferreira

de Almeida – todos presos políticos. Foi somente após essa demissão que a função do

SNI – ou, que seja, da comunidade de informações – acabou por ser reformulada.

Segundo Borges:

(...) Somente o recuo do Serviço Nacional de Informações

para a especificidade do seu papel como órgão de informação

e contrainformação da presidência da República

restabeleceria as condições para uma efetiva contenção das

Forças Armadas como um aparelho de intervenção no

domínio político. (BORGES: 2003, 23)

Um dos aspectos de considerável importância no que diz respeito ao período

estudado é a denominada Doutrina de Segurança Nacional, de base estadounidense.

Sua origem situa-se em meados da Guerra Fria, oriunda das posições ideológicas entre

Leste e Oeste. É interessante perceber como a DSN oferece, em cada ramo estrutural,

32

cada tijolo necessário para a construção e, principalmente, manutenção da força do

Estado e de sua ordem social preestabelecida pelas mãos vigentes. Na concepção da

Doutrina, “a guerra e a estratégia tornam-se a única realidade e a resposta a tudo”

(BORGES: 2003, 24).

Desse modo, irrompe – nas bases da ideologia instaurada pela Doutrina – um

conceito de extrema relevância no cenário militar: a segurança nacional como uma

espécie de “programa de assistência militar”, tendo forte aliança com os preceitos

institucionais norte-americanos, ampliando a noção conceitual de totalidade da guerra,

na qual prepondera a ampla questão do conflito de nível nacional e internacional. Nesse

sentido, entra em campo a problemática concepção de “geopolítica”, tendo como

objetivo impregnar a teoria com marcas políticas, e não mais preponderantemente

geográficas.

O aparato militar brasileiro aderiu à compreensão epistemológica do termo

“geopolítica” pensado pelo professor Friedrich Ratzel14

. Para ele, “o Estado é um

organismo que necessita de espaço e expansão como qualquer outro ser biológico. A

partir daí foi ressuscitada a expressão espaço vital, de H. G. Von Treitschke.”

(BORGES: 2003, 25). Levando em consideração o uso do termo espaço vital pelo

nacional-socialismo alemão durante a segunda grande guerra, os rumos que poderiam

ser tomados pelas estratégias militares afiliadas a esse tipo de mentalidade é, no

mínimo, delicada e preocupante. E é no background desse processo complexo e

inquietante que as páginas de Pessach: a travessia serão delineadas em direção à busca

da subjetivação e do tornar-se si próprio a partir da saída da passividade rumo ao ato

14

Friedrich Ratzel (1844-1904), geógrafo e filósofo alemão, um dos criadores da vertente da

sociologia denominada “Geografia Social”. Desenvolveu a teoria do Estado como um organismo

vivo, necessitando expandir-se como qualquer outro ser biológico. Nesse sentido, propôs o conceito

de Lebensraum (“Espaço Vital”), apropriado pelo nacional-socialimo nazista alemão de Adolf Hitler

e utilizado como projeto político do mesmo na segunda guerra mundial.

33

indubitavelmente reflexivo de Paulo Goldberg Simon: a passagem por cima mediante à

inesperada Terra da Promissão personativa.

34

Antes que a vida me insulte, eu insultarei a vida: me engajo numa luta – não há

cruzadas para defender o túmulo do Salvador, é pena – e a ela me entrego com

ferocidade. Talvez consiga ser herói.

(CONY: 2007, 36)

35

2. Personagem em trânsito: a alegoria da Pessach e a constituição do herói

problemático

Ao remeter à exegese da obra que é objeto de estudo da presente dissertação a

uma abordagem teórica benjaminiana e lukácsiana, entende-se como podem ser

complementares as reflexões de ambos os teóricos germânicos.

No presente capítulo, intenta-se pensar como o conceito de alegoria, trabalhado

por Walter Benjamin, em Origem do drama trágico alemão, aplica-se à leitura acurada

da Pessach – travessia do indivíduo-personagem Paulo Simões. Do mesmo modo, com

o auxílio de Georg Lukács, especificamente da obra Teoria do Romance, objetiva-se

realçar a constituição do protagonista como herói problemático da modernidade no

romance em questão.

2.1. Alegoria e a passagem por cima: a Pessach do indivíduo

Walter Benjamin, em “Alegoria e drama trágico”, capítulo de A Origem do

drama trágico alemão, disserta amplamente sobre a questão da alegoria em sua relação

com o conceito de símbolo. Benjamin procura reabilitar o conceito de alegoria,

percebendo-o de maneira distinta das concepções tradicionais de símbolo e alegoria,

revendo o conceito de símbolo como postulado pelo romantismo de Goethe e Schlegel,

indicando como a concepção romântica do símbolo traduziria uma pretensão ao saber

absoluto (PEREIRA: 2007, 48), que, por sua vez, careceria da têmpera dialética15

(BENJAMIN: 2004, 174), algo que se teria manifestado já na concepção do

Classicismo, na compreensão de um indivíduo perfeito que descreveria “o círculo do

15

Para Benjamin, a visão romântica dos conceitos de símbolo e alegoria perde em valor

reflexivo ao não contemplarem a profundidade dialética que as duas noções precisam carregar.

36

simbólico”16

, perdendo a dimensão dialética presente na “apoteose barroca”17

(BENJAMIN: 2004, 174).

Na ótica benjaminiana percebe-se uma busca por pensar a noção de símbolo

como algo diverso do que foi proposto pelo Romantismo, a partir de reflexões de

Cysarz, Creuzer e Görres. Em Cysarz, o filósofo percebe como a noção de “fenômeno

alegórico” é reconhecida no Barroco, mas apenas de maneira superficial. Será com

Creuzer e Görres que Benjamin poderá desenvolver melhor sua ideia. No primeiro, o

símbolo apresenta-se como combinação entre a esplêndida beleza da forma e a suprema

plenitude do ser, fusão entre finito e infinito, traduzindo-se, na arte, pela escultura grega

– exemplo do símbolo na esfera da obra de arte como uma espécie de plasmado perfeito.

Tal compreensão leva Creuzer a uma reflexão acerca do símbolo artístico, que seria

superior ao, por exemplo, símbolo religioso (BENJAMIN: 2004, 178) e de natureza

plástica. Creuzer ainda oferece uma distinção entre símbolo e alegoria18

, que no entanto

precisará ser ainda desenvolvida por Benjamin, que busca ajuda em Görres. Em

Creuzer, o símbolo é entendido hegelianamente como um processo de corporificação da

ideia em sua forma sensível. Ele é visível, inteiro, imediato, instantâneo.

A partir de um delineamento mais claro do conceito de símbolo na ordem do

belo, Benjamin pode iniciar a construção do conceito de alegoria, como manifestação

diferenciada do símbolo, ainda se apoiando em Creuzer. Se o símbolo é visível, inteiro,

imediato e instantâneo, a alegoria seria “apenas uma conceito geral, ou uma ideia,

16

O “círculo do simbólico” constituiria a ideia de um indivíduo perfeito, inteiro como o próprio

símbolo – como será comentado mais a frente. 17

Entende-se a apoteose barroca como a revelação do indivíduo que não pode ser pleno na

medida em que se apresenta em conflito, não tendo apenas uma dimensão e uma afirmação

como a é a ideia de símbolo para os românticos. Ao contrário do Romantismo, a apoteose

barroca é dialética (BENJAMIN: 2004, 174). 18

Para Creuzer, há uma distinção entre a representação alegórica e simbólica, em que a primeira

“significa apenas um conceito geral ou uma ideia, diferentes dela mesma, enquanto aquele (o

símbolo) é a própria ideia tornada sensível, corpórea.” (BENJAMIN: 2004, 179)

37

diferentes dela mesma” (BENJAMIN: 2004, 179), que se entende aqui como algo não

plasmado, não corporificado. Entretanto, a percepção da ideia de alegoria é ainda

aprofundada por Benjamin, com o auxílio de Görres, autor que busca traduzir a relação

entre símbolo e alegoria sob a ótica das Ideias (PEREIRA: 2007, 49). Para Görres, de

acordo com Benjamin, o símbolo seria o signo das Ideias e a alegoria seria sua

reprodução, numa relação em que o símbolo permanece o mesmo, enquanto a alegoria,

como cópia, pode se por em movimento ao longo da história (BENJAMIN: 2004, 179).

Não aposto muito na hipótese distintiva que diz que o

símbolo é e a alegoria significa...Basta-nos a explicação

do primeiro como signo das ideias – autárquico, compacto

e entrincheirado em si mesmo –, e da segunda como

figuração das mesmas em progressão contínua,

acompanhando o fluxo do tempo, dramaticamente móvel,

torrencial. (GÖRRES apud BENJAMIN: 2004, 179)

É a partir desse aprofundamento de Görres que Benjamin prossegue em sua

argumentação e consegue apresentar a dinâmica da alegoria, como noção que se revela

profícua em significações. Há uma inegável relação dialética entre símbolo e alegoria,

uma vez que o primeiro representaria a plenitude e inteireza que se manifesta na

experiência simbólica em instante místico, em que o símbolo recebe seu significado

profundo e enigmático; e a alegoria, também em uma relação dialética semelhante, cuja

significação não se daria apenas pela sua “autossuficiência indiferente”, mas por um

processo dialético que se dará pelo mergulho da alegoria no abismo entre o ser figural e

a significação (BENJAMIN: 2004, 180) do momento em que está e guarda.

Embora, sem trazer a autossuficiência presente no símbolo, a alegoria revela

novas possibilidades de significação, que surgem pelo esforço interpretativo da mesma.

De acordo com Pereira:

É da impossibilidade de conhecimento deste fundo escuro

e enigmático do símbolo – que remete a uma outra

dimensão na qual entrecruzam espaço e tempo sagrados –

38

o lugar onde nasce o esforço interpretativo da alegoria.

(PEREIRA: 2007, 49)

A alegoria traria, portanto, uma busca: a interpretação, a procura de alguma

compreensão que, embora se valha do símbolo, não se apresenta em sua inteireza

enigmática, pontual e instantânea, mas na calma contemplativa, para retomar a

expressão benjaminiana. Uma calma contemplativa que permite a existência do esforço

interpretativo e a explosão de significados.

Nesse ponto, é importante focalizarmos a compreensão do autor de Origem do

drama trágico alemão sobre o Trauerspiel, sobretudo na sua exegese da relação entre o

histórico e a forma artística, algo que, pontualmente, é de interesse extremo para a

reflexão em torno da obra Pessach: a travessia na medida em que esclarece como se

pode perceber o romance enquanto uma alegoria da passagem, na qual há um

aproveitamento do conteúdo material histórico na criação ficcional a representar a

imagem de uma passagem existencial. Na ótica de Benjamin, há um objeto para a crítica

filosófica que residiria na busca em revelar a função da forma artística. Aqui, vale

observar a reflexão benjaminiana em sua inteireza:

O objeto da crítica filosófica é o de demonstrar que a

função da forma artística é a de transformar em conteúdos

de verdade filosóficos os conteúdos materiais históricos

presentes em toda obra significativa. Esta transformação

do conteúdo material em conteúdo de verdade faz do

declínio da força de atração original da obra, que

enfraquece década após década, a base de um

renascimento no qual toda a beleza desaparece e a obra se

afirma como ruína. Na estrutura alegórica do drama

barroco, sempre se destacaram, como uma paisagem de

ruínas, essas formas da obra de arte redimida.

(BENJAMIN: 2004, 198)

Na obra de arte que serve de objeto de investigação benjaminiana, na estrutura

alegórica do drama barroco, descrita como uma paisagem em ruínas, fragmentada,

39

encontrar-se-ia a obra de arte que se redime de seu declínio a partir do momento em

que, ao se valer da história dentro de uma estrutura alegórica necessariamente lacunar e

fragmentada, ela se afirma em toda a sua força e vigor de arte reconfigurada de per si,

redimindo-se de sua própria ruína pela passagem do tempo, algo que dialoga com o

conceito benjaminiano de História, especialmente desenvolvido na tese IX sobre a

história, em que vemos a descrição do quadro de Klee, O anjo da história, em que o

anjo é a imagem alegórica atônita do ser diante do passado e sendo tragado pelo futuro:

(...) o anjo da história deve ter este aspecto. Voltou o rosto

para o passado. A cadeia de factos que aparece diante de

nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que

incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança

aos pés. Ele gostaria de acordar os mortos e reconstituir, a

partir de seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do

paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas,

(...) arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que volta as

costas. (...) Aquilo a que chamamos o progresso é este

vendaval. (BENJAMIN: 2010, 14)

Se para Benjamin, como vimos em citação anterior, a história é matéria da

criação artística, torna-se mais clara a relação entre alegoria, ruína e passagem de

tempo. Nesse sentido, a não inteireza da alegoria está marcada em seu caráter

fragmentário de ruína: diferente do símbolo que se apresenta em uma inteireza

enigmática e acabada, a alegoria seria o fragmento, em relação dialética, sem dúvida,

com o símbolo, trazendo em si a temporalidade não contínua, mas em sua imagem da

história como paisagem primordial petrificada, fragmentos de ruínas que compõe a

história contemplada pelo anjo, sempre em movimento.

Percebe-se, portanto, o símbolo visto como um fenômeno manifestado em uma

semântica do eidos; a alegoria, por sua vez, remete-se a um contexto mais amplo, e não

40

a uma figura centralizada e fechada. O caráter alegórico é, pois, o contraponto

especulativo19

, de onde emerge a reflexão propriamente dita.

A ótica benjaminiana compreende a História, como estrutura moderna,

representada através da configuração da alegoria, elemento expressivo do Barroco em

função de seu caráter antinômico. Este, por sua vez, é um item inerente à estrutura que a

própria realidade apresenta na dialética de sua composição. Sendo assim, interessa

expor a alegoria enquanto categoria estética, pois se refere à atualidade contínua da

fenomenologia histórica, diferentemente do símbolo – apesar de todo o discurso

contrário da tradição do Romantismo. A partir da mediatização da imagem pela

alegoria, há, portanto, o caráter especulativo que promove a reflexão ao aduzir uma

realidade de fragmentos in perpetuum mobile, em contínua progressão. De modo

antagônico, o símbolo apreende uma totalidade instantânea e enclausurada em si

mesma.

A alegoria é paisagem, contexto, o background de um amálgama entre natureza

e história20

, no qual a especulação é a indicação para as veredas do ethos e o ato de

refletir gerado pelo caráter alegórico é chave de acesso do indivíduo moderno. Seguindo

essa lógica, é possível dizer que Pessach: a travessia é a história da redenção do sujeito

de seu “poço estéril” 21

, do vácuo causado pela ausência de delimitações nítidas de

destino em quarenta anos de deserto.

Ao retornar à obra literária, objeto da presente dissertação, observamos que os

personagens Paulo, Macedo, Vera e mais alguns companheiros de guerrilha chegam a

Pelotas, mais precisamente em uma aldeola denominada “Capão Seco”. Ao chegar

19

BENJAMIN, W. “Alegoria e drama trágico”. In: Origem do drama trágico alemão. Lisboa:

Assírio e Alvim, 2004. p. 174. 20

Para Benjamin, a expressão alegórica teria nascido “de uma curiosa combinação de natureza e

história”. Cf. Idem, p. 181. 21

Cf. CONY, Carlos Heitor. Pessach: a travessia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 26.

41

nesse vilarejo, o protagonista percebe que se encontra com um sujeito que, certamente,

pertence ao escalão superior ao de Macedo. Este, por sua vez, diz ao próprio que ele

está livre, não é mais uma espécie de prisioneiro de Macedo - em função do perigo que

poderia representar. Os testes já haviam sido feitos e Paulo Simões não representava

mais nenhum tipo de elemento delator daquele sistema sui generis. Entretanto, diante da

perspectiva de retornar à sua vida sem objetivos traçados, sem incumbências vitais,

Paulo desconversa e diz, levianamente, que permanece por conta de sua curiosidade.

Em uma noite de vigília forçada no quarto que lhe foi destinado no cativeiro

montado pelos guerrilheiros, Paulo apresenta, pela primeira vez durante a narrativa, uma

exposição consciente de sua real situação psicológica em sua realidade, elaborando um

brainstorm interior que corrobora os indícios de sua travessia para a auto-libertação.

Justamente no momento em que a personagem principal reflete sobre a sua existência

antes de optar por sua definitiva permanência no grupo da luta armada, Paulo Simões

faz a seguinte consideração:

A vigília forçada me obriga a pensar em tudo, em minha

vida, em meus quarenta anos. Faço o balanço interior

sumário de minhas possibilidades, agora que me atolava

na intrincada rede de loucos: meia dúzia de livros que não

me satisfazem, uma filha a quem o mundo e os trancos da

vida vão tornando distante, algumas recordações, e, talvez,

um futuro. Tenho mesmo um futuro? Quando saí do

Rio, meu futuro era escrever a história de um judeu

assimilado – no fundo, eu sabia que jamais escreveria

sobre o bidê, complacente ou não. Talvez, desejasse

vingar o pai. Mas o pai já se vingara, tornava inútil

qualquer vingança minha. Prolongo o balanço interior até que o sono é mais forte do

que as minhas preocupações e o ronco do motorista.

Consigo dormir, descobrindo que minha decisão está

tomada, tal como a podia tomar, nos únicos termos em que

a aceitaria: uma soma de circunstâncias que me tornam

humilde mas obstinado. Fraco, mas, pela primeira vez,

forte o bastante para ser capaz de uma escolha.

(CONY: 2007, 278. Grifos meus)

42

No trecho acima, percebe-se a reflexão do protagonista entremeada por termos

como “possibilidades”, “futuro”, “decisão”, “escolha”. O os quatro termos se fazem,

portanto, a base de sua elucidação filosófica para si mesmo. A Pessach do indivíduo,

pois, inicia-se, de modo delineado e lúcido em direção à própria redenção, elaborando a

sua diáspora do niilismo.

Em primeiro lugar, é importante esclarecer o significado não só nominal mas

também estritamente conjuntural do vocábulo Pessach: em âmbito morfológico, a

palavra pode ser traduzida do ídiche por “passagem”, “passagem por cima”, referindo-

se ao Anjo da Morte que passa sobre as casas hebréias e a transição entre a escravidão e

a liberdade dos judeus. Algumas análises também compreendem o sentido de Pessach

inserido na passagem dos hebreus pelo Mar Vermelho liderados por Moisés na fuga do

Egito.

O mês de Abib – ou Nissan, de acordo com a nomenclatura babilônica – abrange

três grandes festividades: a Pessach, o Chag Hamatzot – a festa dos pães ázimos –, e o

Yom HaShoah – o dia da lembrança da Shoah. Todos referidos à temática da libertação

e inseridos cronologicamente no mesmo mês de março, em correspondência ao

calendário gregoriano.

Curiosamente, a Páscoa judaica se dá no dia 14 de Abib (março) – exatamente no

dia do aniversário de quarenta anos de Paulo Simões, isto é, no dia em que se inicia o

processo da travessia da individualidade sem rumos definidos ao engajamento pela

pátria em um grupo de guerrilheiros.

O diálogo inicial entre Sílvio e Paulo é um grande painel da estruturação real do

pensamento acerca de si deste último a partir de um bilhete de rememoração anotado em

sua mesa de trabalho: “resolver o caso de Sílvio”. Tendo, a priori, o objetivo de

solucionar uma pendência – que Paulo desconhecia até então – da alteridade – no caso,

43

Silvio –, a questão a ser resolvida era própria do protagonista. A sua passagem só pode

ser efetivada a partir do momento em que ele volta-se para o outro, inserindo-se,

portanto, em suas questões particulares da existência. O adjunto adnominal “de Sílvio”

é apenas um invólucro no qual Paulo Simões assimila-se. Sílvio, na realidade, é o

estopim da travessia da personagem ao dialogar com ele sobre a possibilidade de

reverter o vácuo do homem, promovendo o engajamento, a incrustação do mesmo no

êxodo de sua excessiva neutralidade em relação a tudo e a todos, exceto a si,

corroborando a sua ideia de que “a coisa mais inglória da vida é a gente ser livre e não

ter nada o que fazer com a liberdade” 22

:

Para os crentes, eu era hipócrita. Para os hereges, era

quase crente. Ficava assim onde queria; no meio.

Sozinho. (CONY: 2007, 11. Grifo meu)

A pátria exige sacrifícios de todos nós!’ A frase que posso

ouvir novamente, vinte anos depois, da boca de Sílvio, que

daqui a pouco estará aqui. Tanto o coronel como Sílvio

são patriotas, à sua maneira. Eu continuo o mesmo:

sozinho. (CONY: 2007, 13. Grifo meu)

Paulo Simões mantém-se, no início da narrativa, em seu vácuo existencial, na

solidão protegida pelo mascaramento da personalidade e da origem, com o medo de que

alguém o surpreenda na saída de um banho contínuo, “nu assim, sem as máscaras que

(...) protegem.” 23

O gabinete em que se enclausurava para escrever seus romances não o

julgaria, não o interpelaria acerca do curso de sua vida, não o despertaria para a

vinculação necessária para sair de sua neutralidade que buscava passar por cima das

vicissitudes, dos conflitos polarizados e das escolhas essenciais do indivíduo. Ao

receber Silvio em sua residência – o casulo de suas resignações irrefletidas – Paulo

22

Cf. Idem, p. 222.

23 Cf. Idem, p. 17.

44

principia a saída do meio-termo, a fim de, paulatinamente, construir a inauguração de

seu renascimento: “o importante é ter um destino, iniciar a travessia.” 24

A noção de nascimento, potência de morte e renascimento são inerentes à

fruição da narrativa. Ao findar o diálogo com Silvio e começar a se preparar para visitar

a filha no colégio interno, Paulo diz que está pronto, finalmente: “são onze horas e são

quarenta anos quando fecho a porta e entro no mundo.” (CONY: 2007, 42). Diante desta

assertiva, percebe-se que o verbo “fechar”, disposto dialogicamente com o verbo

“entrar”, é responsável pela alegoria da finalização do indivíduo em seus antigos

moldes, encerrando a sua disposição na neutralidade e permanente atopia. Ao entrar no

mundo, Paulo Simões inicia o seu processo redentor pela busca de um engajamento em

uma luta que seja imbuída de vitalidade e propósitos. Eis, assim, o início da

mortificação do antigo pelo renascimento do sujeito.

Uma cena significativa na obra é o momento em que, chegando à residência dos

pais por conta de seu aniversário – e os mesmos esquecem-se da data –, Paulo Simões

encontra o médico que tenta convencer a mãe do escritor que ela não apresenta nenhum

quadro excessivamente sério. Paulo conversa com o médico, que tenta explicar o que

acontece na realidade: o útero de sua mãe está atrofiado e pesa insistentemente em sua

região, “cuja flacidez é irrecuperável”.

Nesse sentido, o útero, responsável pela formação do zigoto – o embrião

humano –, encontra-se em estado de atrofia. O órgão imbuído de gerar e desenvolver o

indivíduo degenera-se, mortifica-se paulatinamente em um processo de definhamento.

Paulo saíra de um útero em pleno funcionamento e, aos quarenta anos, reencontrava-o,

através de um desenho mal traçado oriundo das mãos do médico, em degeneração.

Caído, pesando com insistência de sua mãe, atrofiado. O seu espaço de origem fora

24

Cf. Idem, p. 111.

45

mortificado. O que gerou, o que promoveu o seu nascimento, caminha para o fim de sua

atividade, nas veredas da potência de morte.

Paulo Simões, em um momento anterior à decisão pela luta armada, encontra-se

em um impasse sobre a temática de seu próximo escrito: a virgindade através da ótica

de um bidê ou o episódio do Êxodo:

O esboço do romance é razoável, mas pretensioso. (...)

Evidente, sentia – como sinto ainda – a beleza do episódio

em si: o povo escravizado, mas alimentado, decide partir

para a aventura no deserto, liderado por um tipo suspeito

como Moisés. (...) Aí está, mais ou menos, o núcleo do

romance: o episódio do Êxodo, cujas evidências sociais,

políticas e religiosas são claras, nasceu de motivação

estritamente pessoal. (...) E o povo inteiro, certa noite,

escolheu a liberdade. (...) O povo partia para um destino,

fundava uma posteridade. Em termos de povo – termos

coletivos – aquela noite foi uma noite existencial, embora,

mais tarde, tenha sido também um grande fato social e

político. (CONY, 2007: 227-228)

De acordo com o desenvolvimento da narrativa, é perceptível que a estrutura da

evolução da personagem é diretamente ligada ao ímpeto de seu objeto de escrita. Paulo

Simões é, concomitantemente, o narrador do episódio do Êxodo e o agente do seu

próprio Êxodo em relação à liberdade, em uma estrutura limpidamente construída em

mise en abyme.

Em relação ao condutor dessa espécie de “diáspora subjetiva”, há a figura do

personagem Macedo. Inicialmente, causando medo e espanto, o personagem em questão

inicia o seu processo de tranquilização e encorajamento de Paulo: “Não sei por que, essa

visão me tranquiliza e fortalece” (CONY: 2007, 269). Na parte final da obra, período

em que, finalmente, Paulo se engaja por completo na guerrilha, Macedo fulgura como a

alegoria messiânica do enredo, lembrando ao protagonista a passagem do mar vermelho:

Macedo, “Moisés esculpido em carne”, conduz o escritor em direção à sua travessia, à

saída da margem indefinida ao ponto de chegada de seu fado, à sua Terra da Promissão.

46

A morte de Macedo – cena de cunho retumbante e sacrificial – é a guinada final

relativa ao renascimento de Paulo, no momento em que aquele atira duas granadas em

direção aos soldados que se encontram próximos. O líder cai de braços abertos,

assemelhando-se ao símbolo mor cristão. Paulo decide, enfaticamente, atravessar a

região dos pampas gaúchos até a fronteira, o outro lado que contém o nada. O

protagonista uroboriza um círculo de desconhecimento: do início de sua vida até o dia

dos seus quarenta anos o mesmo vivencia o deserto, a inexistência de sentido vital; a

partir do encontro com o grupo de Vera, Silvio e Macedo, Paulo experimenta o

empenho por um nítido objetivo até o momento em que chega a poucos metros da

fronteira, tornando-se, portanto, “um novo corpo que surge, afinal obstinado, lúcido” 25

mas que por fim opta por retornar à margem, desistir da covardia do exílio que em nada

pode assemelhar-se ao herói problemático lukácsiano que deu origem ao pequeno herói

épico construído não mais em vistas de um destino unicamente pessoal, mas também

comunitário a partir do momento em que o seu próprio processo de vida passa a

preencher a ação da obra.

Paulo Simões não segue a finalização de sua diáspora rumo ao exílio. A sua

Terra Prometida é ele mesmo em seu próprio território, com a lucidez de um indivíduo

não mais assimilado em uma vida inessencial e sem rumo, mas com a obstinação de

quem consegue realizar a passagem por cima e encontra a aurora que nasce para si e

para ela caminha.

25

Cf. Idem, p. 332.

47

2.2. Paulo Simões: a travessia do indivíduo problemático lukácsiano ao herói de sua

própria epopeia.

Carlos Heitor Cony, ao estruturar o protagonista de Pessach: a travessia,

parece trabalhar com uma série de questões elencadas por Georg Lukács, encontradas

em A teoria do romance 26

. Em resumo, para Lukács a vida pode tornar-se algo

estritamente essencial no decorrer da trajetória romanesca. A essenciabilidade vital do

indivíduo romanesco só pode ser encontrada a partir da delimitação de um objetivo

nítido de seu percurso, isto é, do engajamento em si próprio de alguma forma. Este, por

sua vez, depende da necessidade de reflexão do sujeito remetendo-o ao, talvez, estado

de melancolia. De acordo com Georg Lukács, isso pode ser considerado a aura do

autêntico romance:

Esse ter de refletir é a mais profunda melancolia de todo

o grande e autêntico romance. A ingenuidade do escritor –

uma expressão positiva somente para o mais intrinsecamente

inartístico da pura reflexão – é aqui violada, invertida no

contrário; e o contrapeso desesperadamente conquistado, o

equilíbrio oscilante de reflexões que se suprimem umas às

outras, a segunda ingenuidade, a objetividade do romancista,

é para tanto um simples sucedâneo formal: ele torna possível

a configuração e arremata a forma, mas a própria maneira do

remate indica com um gesto eloquente o sacrifício que se

teve de fazer, o paraíso eternamente perdido que foi buscado

mas não encontrado, cuja busca infrutífera e desistência

resignada dão fecho ao círculo da forma. (LUKÁCS: 2007,

86. Grifo meu.)

A partir da reflexão lukacsiana, compreende-se o momento em que Paulo

Simões opta por continuar no grupo de guerrilheiros como uma desesperada tentativa da

personagem encontrar o seu caráter essencial em sua rotina automatizada, mecânica e

26

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas cidades; Ed. 34, 2007.

48

inerte. Nesse sentido, Paulo busca algo, problematizando-se em suas reflexões e

almejando encontrar-se como próprio.

É interessante perceber como Paulo, Vera e Macedo estabelecem um corpo

triádico que representa a coletividade e, mesmo com a morte dos dois últimos no

confronto com os soldados da fronteira, este corpo continua a representar os mesmos

interesses. O protagonista, ao chegar à fronteira e optar pelo retorno à pátria, alegoriza

todo um conjunto imerso em um único indivíduo: os objetivos da comunidade e os

objetivos do próprio sujeito finalmente encontrado são colocados de forma equânime na

passagem de Paulo Simões – de per si e pelo todo.

O personagem em tela perpassa três estágios em sua configuração. No primeiro,

Paulo Simões vivencia a alienação de um destino opaco, sem referências e envolto em

neutralidade. No segundo, o escritor passa por uma série de movimentações

aparentemente involuntárias que o retiram de sua inércia, demonstrando,

paulatinamente, a sua condição de animaduerto27

. Por fim, o terceiro estágio do

protagonista revela-se, após o reconhecimento de suas diretrizes próprias traçadas, na

reconfiguração do caráter individual stricto sensu na parte integrante do todo. Desse

modo, é possível traçar um contínuo reversivo entre o indivíduo problemático

romanesco e traços constitutivos do herói de uma microepopeia, em que, segundo

Lukács:

O herói da epopeia nunca é, a rigor, um indivíduo. Desde

sempre se considerou traço essencial da epopeia que seu

27

Do latim animaduerto, -is, -ti, -sum, -ere: de animus e aduerto. O verbo-cerne de

animaduerto é aduerto, composto de preposição ad e do verbo uerto, cuja acepção é “voltar,

virar para”. Animus,-i, por sua vez, é o substantivo cuja tradução para língua portuguesa é

bastante ampla, porém simplificaremos aqui. Animus, -i, portanto, pode ser traduzido pelo

princípio espiritual da vida intelectual e moral do homem, princípio vital, vida, alma, espírito.

Dessa forma, animaduerto trata-se de vocábulo latino composto de um substantivo e outro

verbo, ligando-se, assim, ao léxico filosófico, que significa a revelação do espírito em direção à

ambiência valorativa exterior. Em termos gerais e filosóficos, animaduerto poderia ser

traduzido por “virar, voltar o espírito, a alma para fora”.

49

objeto não é um destino pessoal, mas o de uma

comunidade. (LUKÁCS: 2007, 67. Grifo meu)

Tal percepção merece uma reflexão acerca do trânsito da personagem Paulo

Simões, uma vez que parece um paradoxo haver, ao mesmo tempo, em uma única

personagem a caracterização de um herói problemático – necessariamente um indivíduo

voltado para as suas próprias idiossincrasias – e o herói da epopeia, ligado ao destino

coletivo. A personagem central do romance em tela seria o indivíduo em processo de

modificação, que pode ser melhor compreendido ainda pela teorização de Lukács:

O romance é a forma da aventura do valor próprio e da

interioridade; seu conteúdo é a história da alma que sai a

campo para conhecer a si mesmo, que busca aventuras

para por elas ser provada e, pondo-se à prova, encontrar a

sua própria essência. (LUKÁCS: 2007, 91)

É certo perceber como o protagonista passa pelo processo de encontro de sua

própria essência. Entretanto, há algo mais para além daquilo que diz respeito à

existência particular de Paulo Simões: o surgimento de um indivíduo não mais passivo

diante do cenário político de seu país; um indivíduo que, ao não atravessar o rio,

completa a travessia e abraça um ideal pela coletividade, podendo ser observado, nesse

sentido, também como um herói pelo coletivo.

Essa percepção dupla da personagem pode ser melhor compreendida, se

considerarmos o protagonista como um indivíduo constituído por duas dimensões: a

primeira, mais aparente, revelaria um indivíduo que, ao ser inserido em uma

comunidade política, tornar-se-ia atrelado ao coletivo, às responsabilidades de ação e

reação de um todo, apesar de inicialmente o gesto não ser voluntário. É no processo da

primeira dimensão de Paulo que se inicia, de forma inconsciente, a travessia para si

mesmo, algo a ser revelado na segunda dimensão do protagonista. Ou seja, será a partir

dessa camada mais superficial e voltada para o coletivo que será dado o primeiro passo

50

para um processo mais profundo de individuação, ou seja, para a constituição de uma

dimensão individual e reflexiva do protagonista.

Nesse sentido, acredita-se poder perceber em Paulo Simões a dimensão mais

profunda e individual do herói problemático do romance e, em paralelo, traços do que

constituiria um elemento referente ao coletivo em uma microepopeia.

Após o processo de “alienação do homem em relação às suas estruturas” 28

,

Paulo Simões passa a reconhecer as necessidades supra-pessoais do dever-ser a partir da

ausência de objetivos concedidos de forma imediata. Segundo Lukács, o caráter

romanesco da obra é disposto como algo em processo, em um devir essencialmente

problemático.

O caráter problemático do indivíduo romanesco se dá em função de sua

necessidade de reflexão diante do desconcerto do mundo – devidamente imperfeito.

Essa relação vincula diretamente o mundo ao sujeito, de modo que tal desconcerto do

universo exterior passa a ser, também, o desconcerto da realidade interior do indivíduo.

Eis, dessa forma, o sujeito problemático romanesco, cujo ethos encontra-se

fragmentado, em indelével confronto com o mundo em produtivo diálogo com a sua

interioridade.

Espectador solitário da manhã que chega, sigo pouco a

pouco. O riacho abre-se a meus pés. Macedo tivera sorte

em escolher aquele trecho, vejo do outro lado a fácil

margem. Lavo o rosto naquela água que corre, sinto a

aspereza e o calor do homem que há em mim. (CONY:

2007, 331)

No referido diálogo com a sua interioridade, a margem da fronteira em relação

ao território brasileiro que finda é um elemento relevante nessa discussão: o outro lado

é composto pelo nada, pelo desconhecido – pelo Paulo de outrora. A nulidade do outro

extremo parece remeter o protagonista ao seu condicionamento anterior à própria

28

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades, 2007. p.65.

51

travessia de lucidez. Nesse sentido, ele opta por permanecer em seu espaço no qual há

raízes, reconhecimento: o locus de contínua busca e luta por determinações não mais

somente individuais, mas sim políticas, isto é, coletivas em nome de seu povo e de sua

nação. A ideia de deixar a “terra” soa como um abandono de causa. O individual passa a

dar lugar ao todo, relembrando a estrutura semântica e conceitual do verso épico, no

qual imperam, segundo Lukács, a totalidade e a grande ausência do sujeito por si só.

Em termos estruturais, Lukács identifica a forma interna do romance como a

“peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo” 29

. Paulo Simões é a

representação direta dessa ideia no romance estudado. Em sua realidade apenas

existente – mas não vivificada – há a nulidade de sentido em relação ao sujeito. O

protagonista encontra-se, pois, no autorreconhecimento diante das intempéries a partir

da configuração de sua individualidade engajada no estabelecimento exitoso do

coletivo.

Ao elaborar o autorreconhecimento através da causa coletiva, Paulo estabelece

uma espécie de percurso épico. Lukács, ainda n’ A teoria do romance, postula que a

epopeia caracteriza-se pela “origem ou o desenlace de grandes tensões”.30

. O nosso

personagem, por sua vez, tem a origem e o desenlace de suas tensões a partir do

momento em que ele se une a um pequeno grupo coletivo em prol de uma grande

coletividade: a pátria. Percebe-se, assim, a relação da alma com seu destino –

característica da épica – na qual a loucura não tem espaço. O animus, o dínamo do

sujeito é a sua própria alma, sendo a porta pela qual aquele se insere em si: o homem,

como experiência subjetiva, torna-se estado de ânimo.

Desta feita, Paulo Simões – ou Paulo Goldberg Simon –, Silvio, Vera, Macedo e

os demais personagens coadjuvantes do enredo amalgamam-se em um “grande

29

Cf. Idem, p. 82.

30 Cf. Idem, p. 84.

52

complexo vital orgânico, de um povo ou de uma estirpe” 31

em prol de uma totalidade,

participando de um conjunto articulado de aventuras que corroboram a ideia de um

destino universal que acaba por conferir um conteúdo a esses acontecimentos.

Paulo vincula seu destino a essa totalidade comunitária após encontrar-se com a

sua própria essência, em um movimento lukácsianamente reverso: do romance à

constituição de uma protoepopeia diante de um todo unívoco e indissolúvel. O

indivíduo que se encontra definitivamente nos braços da coletividade para que, assim,

possa guiar a aurora em direção ao “novo corpo que surge, afinal obstinado, lúcido” 32

na grande epopeia burguesa.

31

Cf. Idem, p. 67.

32 Cf. CONY, Carlos Heitor. Pessach: a travessia. Rio de Janeiro, 2007. p. 332.

53

A aurora, agora atrás de mim, esquenta com a vertigem e o clamor de sua luz vermelha

um novo corpo que surge, afinal obstinado, lúcido.

(CONY: 2007, 332)

54

3. Processos de individuação: contribuições de Walter Benjamin e Søren

Kierkegaard

Uma vez trabalhadas as estruturas alegóricas de acordo com as perspectivas

benjaminianas, bem como a constituição de Paulo Simões como personagem da

modernidade, na acepção de Lukács, pretende-se no presente capítulo direcionar o foco

de reflexão para a representação do protagonista como indivíduo em trânsito através de

proposições retiradas de Benjamin e Kierkegaard.

3.1. Do restitutio ao novum: perspectivas benjaminianas

Na coletânea portuguesa de artigos de Walter Benjamin, O anjo da história, há

um ensaio intitulado “Experiência e indigência” 33

em que ele disserta sobre o

apagamento da experiência a partir da geração de 1914-1918, da Primeira Guerra

Mundial, um dos acontecimentos mais catastróficos da história universal.

A época é entendida por Benjamin como se caracterizando por uma intensa

propagação da técnica, gerando uma espécie de nova indigência daqueles que

depositaram suas esperanças em um terrível e caótico renascimento 34

. Essa pobreza de

experiência configura-se como uma metonímia da grande pobreza que adquiriu um

novo rosto: irrompe, então, um tipo de “nova barbárie”, entretanto vinculada a um novo

matiz conceitual, positivo.

Senão vejamos aonde esta nova pobreza leva o bárbaro.

Leva-o a começar tudo de novo, a voltar ao princípio, a saber

viver com pouco, a construir algo com esse pouco, sem olhar

nem à esquerda nem à direita. (BENJAMIN: 2010, 74)

33

No Brasil, o artigo foi traduzido com o título “Experiência e pobreza” e está inserido no

volume I das Obras escolhidas – magia, técnica, arte e política, traduzida por Sergio Paulo Rouanet. 34

BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Lisboa: Assírio e Alvim, 2010. p. 74.

55

É possível dizer que Paulo Simões, protagonista de Pessach: a travessia,

representa, de certa forma, essa barbárie positiva ao construir algo com esse pouco, em

sua, a priori¸ perda de experiência a partir de uma rotina automatizada, uma dormência

que ele prefere alongar em uma desorientada e fragmentada vida privada, na qual

valores sociais são estritamente reificados. Essa conjuntura se dá do início até

aproximadamente o meio da narrativa, quando Paulo vilipendia o pedido de Silvio para

que ele entrasse para a guerrilha. Contudo, a partir do momento em que o escritor –

guiado pelo mercado, pelo editor, pela técnica capitalista, opta, mesmo que não

assumidamente, pela luta armada, essa situação é revertida: a ação coletiva reconfigura

a alienação à barbárie. Veremos esse processo ao longo do presente capítulo.

Paulo Simões e seu grupo de guerrilheiros, incluindo o messiânico Macedo,

estão a serviço da transformação da realidade, da saída da inércia da humanidade.

Mesmo com ilusões enfraquecidas, há um processo amplo de identificação com a

mesma. A transformação suplanta a descrição. De um lado, há a crise: a ditadura militar

brasileira – a barbárie em sua semântica negativa. De outro, os positivamente bárbaros

que estão, pari passu, adquirindo a tão necessária experiência. Estes, conforme

Benjamin:

(...) estão do lado daqueles que desde sempre fizeram do

radicalmente novo a sua causa, com lucidez e capacidade

de renúncia. Nas suas construções, nos seus quadros, nas

suas narrativas, a humanidade prepara-se para, se

necessário for, sobreviver à cultura. E o que é mais

importante: faz isso a rir. Talvez esse riso soe aqui e ali a

bárbaro. Seja. Desde que cada indivíduo de vez em

quando ceda um pouco de humanidade àquelas massas que

um dia lha devolverão com juros acrescidos.

(BENJAMIN: 2010, 78)

56

3.1.1. As teses sobre a História e a história de Pessach: a travessia.

Michael Löwy, em Walter Benjamin: aviso de incêndio – uma leitura das teses

“Sobre conceito de história” 35

, elabora uma excelente leitura crítica sobre as teses

benjaminianas sobre a história. Na tese I, Benjamin ressalta a importância da teologia

para o desenvolvimento do materialismo histórico, mencionando a alegoria do pequeno

anão escondido na máquina, em decorrência da leitura de “O jogador de xadrez de

Maelzel”, um conto-ensaio de Edgar Allan Poe traduzido por Baudelaire. A teologia,

por sua vez, é o animus messiânico sem o qual não há a possibilidade do triunfo do

materialismo histórico: o anão é a força revitalizadora ativa que permite a ação

revolucionária.

Tanto para o teórico de Frankfurt quanto na narrativa de Cony a teologia é

visível, apesar de sua intrínseca sutileza: no romance estudado, a iniciativa de Paulo

Goldberg Simon em relação à entrada para o grupo clandestino de guerrilheiros é

linearmente acompanhada por símbolos e alegorias judaicos: uma das representações

alegóricas mais interessantes é a figura de Macedo. Tal personagem é o dínamo

propulsor da ação revolucionária de Paulo que, segundo o próprio, apresenta-se como

um “Moisés esculpido em carne” que contribui significativamente para a passagem por

cima, para a travessia da barbárie à ação. Além disso, os símbolos judaicos – como

exemplo, a Menorá – presentes no texto atuam como elementos de alguma espécie de

revelação, seja ela qual for. Outros itens já mencionados no presente estudo colaboram,

de igual modo, para o desenvolvimento da escrita de Pessach, tal como a significação

do próprio título para o romance, a busca por uma espécie de Terra da Promissão, o

35

LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio – uma leitura das teses “Sobre o

conceito de história”. São Paulo: Boitempo editorial, 2005.

57

Anjo da Morte, os quarenta anos de deserto – tanto para o povo hebreu quanto para o

próprio Paulo Simões.

Nesse sentido, é possível compreender a ideia de que a teologia, para Benjamin,

é uma confluência entre rememoração (Eingedenken) e redenção (Erlösung). Em

relação à Erlösung, a tese II postula uma passagem gradual da esfera individual dessa

redenção à reparação coletiva no âmbito da história. É o que ocorre em Pessach: a

travessia: Paulo Simões, ao entrar para a luta armada, passa primeiramente por sua

redenção particular, em que o seu destino próprio toma uma determinada forma, um

sentido, uma validação. Após esse processo, o indivíduo problemático, ao se

transformar em um herói de uma microepopeia, contribui para a reparação de uma

coletividade, uma comunidade: eis, assim, a entrada alegoricamente teológica – e

profana, a revolução – para o campo da história, em busca da emancipação dos

oprimidos.

No âmbito da rememoração (Eingedenken), é interessante observar a elaboração

do personagem do pai de Paulo Simões e sua construção discursiva. A partir da história

do pai, o protagonista escreve um esboço de romance sobre a questão judaica

enquadrando-a na passagem do Êxodo: a crônica de um judeu assimilado. Ao expor o

seu medo quase esquizofrênico ao filho, o pai constrói uma estrutura rememorativa em

referência ao passado que, em sua ótica, poderia ser a constatação do presente: ontem

foram os judeus a serem perseguidos; hoje, isto é, durante a ditadura militar, os

comunistas.

Ao relembrar a barbárie negativa dos campos de concentração depois de anos

renegando por medo a origem, o pai de Paulo passa por um processo curioso: antes de

revelar ao filho que, mesmo escondido da família, ele sempre celebrava o Yom Kippur –

assim como o avô do protagonista, de acordo com o seu relato, havia a perda da

58

experiência a partir do momento em que se buscava voluntariamente uma aniquilação

da memória: o encobrimento da origem e do viver de seus dias a partir de sua condição

– judaica, no caso – e, dessa forma, o impedimento do trânsito de relatos e narrativas

entre os membros dessa comunidade assume uma forma significativa de degradação da

Erfahrung, na qual o silêncio impera.

3.1.2. Mnemosýne em vias de recuperação

Entretanto, no instante em que o pai de Paulo assume ao filho a sua origem, a

sua tradição, o seu pertencimento a uma coletividade própria, há uma recuperação da

experiência a partir de tal relato de costumes judaicos outrora encobertos, tentando

revelar ao filho uma espécie de existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos 36

.

E Paulo Simões – agora, mesmo ainda relutando em assumir depois de tanto tempo

oculto e incógnito, Goldberg Simon – passa a descobrir qualquer vestígio do tesouro 37

,

em uma aliança inquebrantável entre rememoração e redenção.

– Você precisa ler o capítulo 16 do Levítico. É a descrição

do Arrependimento, base da festa do Yom Kippur. Vou

confessar uma coisa: nunca deixei de celebrar o Yom

Kippur.

– Nunca tinha percebido isso. Mesmo em minha infância? – Sim. Fazia-o às escondidas, não queria que sua mãe

nem você suspeitassem. Você nunca desconfiou, não? – Não. Sinceramente, nunca.

– Pois é um alívio saber disso. Quando eu era criança,

vivia num lar como o seu: meu pai, judeu assimilado,

também decidira não ser judeu. Fui educado na ignorância

da lei judaica. Um dia, em minha infância, entrei em seu

quarto, encontrei-o vestido de branco, voltado para a tarde

que caía. Recitava em voz baixa o cântico que mais tarde

vim a saber que era o “Kol Nidre”, o hino da aflição da

alma. Fiquei quieto, no meu canto. Quando o pai acabou,

36 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da

cultura. São Paulo: Brasiliense, 2008. p. 114. 37

Cf. Idem.

59

deu comigo. Perguntou se eu estava ali há muito. Disse

que sim. Não esqueço o tom de sua voz quando me pediu:

‘Não diga nunca a ninguém que me viu fazer isso.’

(CONY: 2007, 91)

Ainda que não seja possível desenvolver de modo adequado, no curto espaço do

presente texto, a questão do tempo e toda a sua gama de significações, em Pessach: a

travessia, vale ressaltar a sua importância na cena em que Paulo, Macedo e Vera

encontram-se perto dos onze soldados que estão do outro lado da fronteira. Observe-se a

pergunta do protagonista:

Há quanto tempo estou fora de casa? Há quantos anos eu

fiz quarenta anos? Fiz mesmo quarenta anos ou não tenho

mais tempo, sou eterno? (CONY: 2007, 324)

Nesse sentido, é válido lembrar que Benjamin postula, em seu artigo de 1916,

publicado com o título de “Sur le Trauerspiel et la Tragédie” 38

, a ideia de que o tempo

histórico não pode ser confundido com o tempo mecânico dos relógios. O tempo da

história estaria repleto de temporalidade messiânica; em contrapartida, o tempo dos

relógios seria mecânico e vazio. Pouco tempo mais tarde, em 1919, Benjamin elabora

essa ideia em dois conceitos inseridos na tese, O conceito de crítica de arte no

romantismo alemão 39

, contrastando “o infinito temporal qualitativo” do messianismo

romântico com o “infinito temporal vazio”, inerente às ideologias do progresso,

conforme as palavras de Löwy.

38

BENJAMIN,W. “Sur le Trauerspiel et la Tragédie”, 1916, Furor, nº 2, outubro de 1982, p. 7-

8 apud LÖWY, M. Walter Benjamin: aviso de incêndio – uma leitura das teses “Sobre o

conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 125. 39

BENJAMIN, W. Der Begriff der Kunstkritik in der deutschen Romantik, 1919, cit., p. 86-7

apud LÖWY, M. Walter Benjamin: aviso de incêndio – uma leitura das teses “Sobre o conceito

de história”. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 125.

60

Além disso, com as suas fontes imersas na tradição do messianismo judaico, ele

ainda comenta que o tempo, em relação à percepção dos hebreus, não era uma categoria

vazia, abstrata e linear, mas de caráter absolutamente conteudístico. É exatamente o que

verificamos na passagem supracitada do romance de Cony: um tempo que não se prende

a uma arbitrariedade linear, mas sim o tempo da experiência construído a partir da

significação real, e não de um pêndulo mecânico que rege as calendas e, além disso, os

prazos de regimento e gestação dos textos a serem escritos por Paulo Simões segundo as

determinações de seu editor e, por consequência, do mercado. O protagonista e todos

aqueles engajados na luta – seja ela em prol da libertação de si mesmo e/ou da

coletividade – atacam, através do tempo histórico da revolução, o tempo mecânico do

pêndulo: o qualitativo supera o quantitativo sem significância maior.

Da redenção, fez-se a travessia. Da restitutio, fez-se o novum em espasmos

ativos de absolvição individual e coletiva do processo de alienare: a constante e

inexorável Pessach.

3.2. Kierkegaard e a inteireza paradoxal do indivíduo

A obra intitulada O desespero humano, de autoria do filósofo e teólogo

dinamarquês Søren Kierkegaard, é de grande valia para uma exegese mais cuidadosa e

sutil da obra de Carlos Heitor Cony. No capítulo cujo título é “Do desespero

considerado não sob o ângulo da consciência, mas apenas quanto aos fatores da síntese

do eu”, o autor trabalha a questão do desespero de acordo com a ótica da dupla

categoria do finito e do infinito.40

Segundo Kierkegaard, a síntese dialética estabelecida

40

É importante lembrar que “desespero” e “angústia”, para Kierkegaard, são dois conceitos distintos. Segundo Jonas Ross, em seu artigo intitulado “Kierkegaard e a antropologia entre a

angústia e o desespero”, o primeiro, desenvolvido na obra O desespero humano (doença até a

61

no eu consciente entre infinito e de finito, a consciência da infinitude e da finitude é

uma particularidade inerente ao sujeito humano, segundo a qual o infinito consistiria no

campo de possibilidades, manifesta pela capacidade reflexiva, abertura do ser finito,

condição inicial do ser, ao infinito.

A questão que nos interessa nesse ponto é como o indivíduo torna-se ou é capaz

de se tornar “próprio”. É possível tornar-se definitivamente próprio na finitude e/ou na

infinitude do sujeito? É possível tornar-se sujeito absoluto e concreto? Kierkegaard

negativa essa interrogação, colocando em pauta o fato de que o processo de “tornar-se si

próprio” é tornar-se concreto, algo irrealizável na esfera do infinito e do finito, tendo em

vista a concretude do indivíduo como uma questão de síntese, sendo, portanto,

impossível de se amalgamar por inteiro nessa dupla categoria.

É interessante perceber que, no âmbito da síntese do sujeito em relação à sua

concretude, é perfeitamente plausível pensar na impossibilidade de se fundir como

“próprio” e “concreto”. Entretanto, vale considerar o fato de que até o sujeito alcançar o

nível de síntese, ele perpassa uma autotransição comportamental não estática, mas

gradativa e escalonada. O nível de gradação e escalonamento relativo à autotransição

comportamental do sujeito pode variar, dependendo do estopim individual de cada caso,

entretanto não pode se tratar de algo irrealizável em âmbito de se tornar próprio, tendo

morte), é oriundo da má relação da síntese consigo própria, isto é, quando é um desequilíbrio na

síntese do indivíduo. Nas palavras do filósofo, “o ser humano é uma síntese de infinito e de

finito, do temporal e do eterno, da liberdade e da necessidade, em resumo, uma síntese” (KIERKEGAARD: 2010, 25) que, mal feita, gera o “desespero”. Já a “angústia”, relacionada à

ideia do “pecado original”, situa-se na esfera de uma discussão ético-antropológica. A angústia

está no ato de efetivar a própria possibilidade em relação ao desconhecido, colaborando para a compreensão de que o sujeito tem um papel ativo na constituição de seu próprio ato de

desesperar-se: o princípio da eliminação do desespero é a “conscientização” deste como algo

que é oriundo do próprio sujeito em sua própria individualidade, e não por algum quesito

externo. O que é ontológico no ser é a angústia, e não o desespero. O desespero caracteriza-se pelo salto responsável pelo desequilíbrio na síntese; a angústia rodeia, gira no entorno desse

salto.

62

em vista a complexidade da síntese e de seus desdobramentos tanto pessoais quanto

socio-comportamentais.

Nesse sentido gradativo, aproximamo-nos do pensamento teórico de

Kierkegaard sobre a “evolução” do eu, procedimento este que consiste, para ele, no

afastamento ilimitado e indefinido de si próprio, em uma espécie de “infinitização” do

indivíduo. Dessa forma, aproximamos nossa hipótese descrita anteriormente em relação

ao caráter gradativo e escalonado do processo de apropriação do sujeito, cada vez mais

concreto e definido de acordo com os seus preceitos e suas normas para consigo e em

relação a outrem: eis o afastamento indefinido rumo à infinitização do eu, cada vez mais

afastado de si e, exatamente por esse motivo, mais perto dos degraus mais altos de

evolução quanto à hermenêutica de si.

Evidentemente, pelo título aplicado ao escrito, Kierkegaard pretende trabalhar

com a compreensão do desespero humano. Nesse sentido, o autor diagnostica os

sintomas de um ente desesperado, que ele tenha consciência disso ou não: é aquele que

não se torna ele próprio. Observemos o verbo empregado: “tornar-se”. Um verbo que,

naturalmente, assume um caráter passivo e ativo concomitantemente. Através da ação e

passividade do sujeito, somente ele e, sobretudo, somente através de sua própria

intervenção em si, é possível retirar-se do estado anterior de inércia natural. É o sujeito

que age e sofre pela ação própria que, caso não venha a restituir-se de si, permanecerá

em estado de desespero latente, sem galgar a evolução de suas próprias sinapses críticas

e fundamentais para o desenvolvimento de si, do próprio, do particular. Enquanto não

há possibilidade de se tornar próprio, o eu não é ele próprio, todavia não se constituir

como próprio é a caracterização do desespero, proveniente da síntese estabelecida do eu

consigo próprio. O desespero é a ausência de delimitações sine qua non para a harmonia

63

vital do indivíduo, sendo, portanto, a grande impossibilidade da travessia obstinada de

per si.

3.2.1. Tornar-se si próprio ou o desafio da subjetivação

O que muito nos interessa na teoria de Kierkegaard para a compreensão do

romance de Cony é o entendimento da configuração do eu e toda a sua trajetória no

processo de “tornar-se” efetivamente próprio. Retorno, portanto, à questão da síntese do

indivíduo segundo os apontamentos do dinamarquês. A partir dessa leitura, observa-se

que o homem mantém-se numa espécie de linha divisória de dois termos, não

necessariamente antagônicos. A síntese é feita de dois elementos: de finito e de infinito,

de temporal e de eterno, de absolvição e liberdade e de necessidade. De acordo com

essa teoria de Kierkegaard, o eu, a formação individual ainda inexiste.

É interessante perceber que o eu é uma entidade de relação que não se amalgama

e estabelece com algo diferente e alheio a si, mas somente com ele próprio, consistindo,

dessa orientação, a sua interioridade não configurada “em si”, mas voltada sobre si e em

sua própria compreensão em seu estabelecimento. Caso haja o conhecimento de si

próprio, há o terceiro termo da síntese, fundamental para o surgimento efetivo e

consciente do eu. Na obra de Cony, a real conscientização própria do eu é limitada,

inicialmente, pelo estágio primeiro de neutralidade de Paulo Simões, elemento

dificultador e empecilho no que diz respeito ao surgimento consciente e efetivo do eu,

dificultando a compreensão da sua interioridade.

Nesse sentido, a individuação do protagonista revela-se em potência e em

latência, tendo em vista a sua inicial inexistência real, sendo somente no instante futuro

do tornar-se. Enquanto não há meio de conseguir tornar-se próprio, o processo de

64

individuação não se concretiza, o eu não se configura como próprio: eis o desespero de

não ser próprio, sendo uma síntese de finito delimitador e de infinito ilimitador.

Sendo uma relação orientada sobre si, ela tem de ter sido estabelecida

exatamente por si. É nesse aspecto que a Pessach trabalha com a passagem e com o

indivíduo reconfigurado a partir de seu caráter inessencial em direção ao caráter

essencial, “passando por cima” de seu caráter problemático, inerte e niilificado. Paulo

Simões – ou Paulo Goldberg Simon – é o grande agente e transformador de sua história

em vias de libertação de si mesmo, tornando-se ele próprio – cada vez mais próprio –,

retirando-se de seus quarenta anos de deserto interior, de desespero inconsciente pela

ruptura da síntese de sua personalidade, indo em direção ao oásis do descobrimento de

suas verdadeiras terras férteis de convicções e liberdades por si mesmo cultivadas.

Desse modo, o personagem dá início ao processo de solidificação do eu,

deixando de lado o seu anterior estado de evaporação paulatina, até não se configurar

mais, finalmente, na impessoalidade de sua esfera sensível. Há, então, uma saída

consciente – mesmo que inicialmente forçada e involuntária – de sua existência abstrata,

disforme, carente de morfocaracterização, caminhando a passos relativamente lentos em

direção à significação de personagem-agente de seus anseios, vontades e, por fim, a um

destino delineado por seus próprios traços.

Um item fundamental para o início da saída de sua inércia como indivíduo é o

caráter imaginário. De acordo com a interpretação de Kierkegaard para o pensamento de

Fichte:

O que há de sentimento, conhecimento e vontade no

homem depende em última análise do poder da sua

imaginação, isto é, da maneira segundo a qual todas as

faculdades se refletem: projetando-se na imaginação. Ela é

a reflexão que cria um infinito, por isso, o velho Fichte

65

tinha razão quando via nela, mesmo para o conhecimento,

a origem das categorias. Assim como o eu, também a

imaginação é reflexão; reproduz o eu e, reproduzindo-o,

cria o possível do eu; e a sua intensidade é o possível de

intensidade do eu. (...) É o imaginário em geral que

transporta o homem ao infinito, mas afastando-o apenas de

si próprio e desviando-o assim de regressar a si próprio.

(KIERKEGAARD: 2010, 47)

Percebe-se, na argumentação de Kierkegaard, como a imaginação seria a origem

das categorias e, assim como o eu, a imaginação também seria reflexão. Sendo reflexão,

haveria a possibilidade de reproduzir o eu e, em tal processo de reprodução, acabar-se-ia

criando não exatamente o eu, mas a possibilidade deste eu. E o fator que regula o

possível de intensidade do eu é a própria intensidade da capacidade reflexiva e, por

consequência, de acordo com a percepção kierkegaardiana, imaginativa. Cabe ressaltar

que imaginação e reflexão são articuláveis, mas não constituem sinonímia, como uma

leitura rápida poderia denotar. Para Kierkegaard, a imaginação é uma espécie muito

particular de reflexão – quiçá uma protorreflexão -, uma vez que “não é uma faculdade

como as outras... mas, por assim dizer, é o seu proteu”41

, ou seja, ela é a reflexão que se

baseia “no sentimento, no conhecimento, na vontade”42

e que é o agente da infinitização

por conta de guardar em si “um sentimento, um conhecimento, um querer

imaginários”43

. Ao lançar mão da imagem de proteu, o filósofo remete ao ser que sabe o

porvir e se metamorfoseia infinitamente. Assim, é possível perceber, nessa imaginação

infinita, a capacidade do homem de ser síntese de finito e infinito, por sua capacidade de

múltiplos desvelares com o propósito de voltar-se sobre si próprio.44

41

Cf. KIERKEGAARD, S.O desespero humano. São Paulo: Editora Unesp, 2010. p. 47 42

Cf. Idem. 43

Cf. Idem. 44

Cf. Idem, p. 25.

66

Um fator de extrema importância quando o foco discursivo é a exegese do

desespero e do desesperado é a categoria e o ângulo crítico da consciência. A natureza

da consciência não se faz muito relevante em nossa discussão, tendo em vista os seus

níveis distintos de diferenciação. Todavia, o conceito da consciência se estabelece

sempre do mesmo modo. Daí não se pode concluir, pois, que o desesperado tenha a

consciência de se constituir como tal. Desta feita, a consciência interior é caráter

determinante e decisivo para o estabelecimento do sujeito. Ao se tratar do eu, a

consciência interior torna-se fundamental e mister para a sua real significação de si e

para si: a consciência fornece a linha tênue da medida do processo interno de

individuação, sem haver a possibilidade da desmedida caótica dos gregos antigos:

consciência e existência do eu são diretamente proporcionais.

Pode-se distinguir abstratamente as diversas

personificações do desespero perscrutando os diversos

fatores desta síntese que é o eu. (...) Quanto mais

consciência houver, tanto mais eu haverá; pois que, quanto

mais ela cresce, mais cresce a vontade, e haverá tanto mais

eu quanto maior for a vontade. Em um homem sem

vontade, o eu é inexistente; mas quanto maior for a

vontade, maior será nele a consciência de si próprio.

(KIERKEGAARD: 2010, 45)

No âmbito da relação entre desespero e consciência como conceito e fator

decisivo em tal correspondência, é interessante observar a caracterização do pai de

Paulo Simões na narrativa estudada. Em uma conversa entre pai e filho durante uma

visita deste último à residência dos pais, Paulo Goldberg Simon dialoga com o médico

da família acerca do estado de saúde de sua mãe. Ela, mediante os seus oitenta e seis

anos de existência, passa a sofrer um processo de desgaste natural do corpo, uma

espécie de consumpção generalizada por motivos estritamente etários. Entretanto, seu

pai, já com uma neurastenia natural acarretada pela idade, nada mais compreende –

67

mesmo que de forma errônea – a suposta existência de um câncer em sua esposa.

Apesar das inúmeras tentativas elaboradas por Paulo e pelo médico a fim de explicar

que não se tratava de um carcinoma, mas sim de uma autofagia do próprio organismo,

os pais não compreendem e insistem na possibilidade infundada do tumor maligno. A

partir de tal diálogo aparentemente desconexo, Paulo e seu pai iniciam uma discussão

sobre as suas próprias origens judaicas.

No momento em que Kierkegaard teoriza que “em um homem sem vontade, o eu

é inexistente; mas quanto maior for a vontade, maior será nele a consciência de si

próprio” 45

, é absolutamente plausível pensar na construção narrativa de Joaquim

Goldberg Simon46

em relação ao item vontade anteriormente citado. No pequeno e

breve diálogo estabelecido entre Joaquim e Paulo – pai e filho –, é possível perceber a

coerência de sua psyché por detrás da aparente neurastenia causada supostamente pelo

Holocausto47

: Joaquim sempre se encontrara em sua condição de judeu, apesar de fazê-

lo muitas vezes às escondidas da própria família. Joaquim nunca deixara de celebrar o

Yom Kippur e nunca o filho havia percebido tal feito. Desta feita, verifica-se a

complexidade da personagem em questão e a sua polaridade em relação ao protagonista:

enquanto Paulo é a personificação da ausência da vontade e engajamento e, além disso,

niilifica a condição de se tornar próprio na síntese entre liberdade e necessidade durante

45

KIERKEGAARD, S. O desespero humano. São Paulo: Editora Unesp, 2010. p. 27. 46

Ao fazer referência ao sobrenome do personagem em questão, opto por reverter ao seu nome

judaico de origem, na medida em que ele passa a reconhecer-se em sua identidade judaica.

Nesse sentido, a concepção de Joaquim como indivíduo é estabelecida através do ato voluntário

de sua consciência interior e vontade. Assim, a sua origem é reconhecida em diversos fatores,

como o hábito atrelado à identidade, ao caráter, ao modo de ser, pensar ou sentir (o ‘έθος

estritamente ligado ao ‘ήθος) e, nesse caso, no sobrenome “Goldberg Simon” como alternativa

ao “Simões”. 47 No capítulo 4 da presente dissertação, o conceito de holocausto será revisado a partir da

percepção teórica de Giorgio Agamben, sendo que, a partir daí, tal termo será substituído

veementemente pelo vocábulo Shoah, devido ao caráter etimológico pejorativo que a palavra

holocausto guarda.

68

longos e infrutíferos anos – no âmbito de consciência pessoal e personativa –, a

configuração do personagem Joaquim revela-se ao contrário: trata-se de um homem

imerso em sua vontade, no engajamento de si próprio tornando-se concreto na aceitação

do seu verdadeira individualidade escolhida.

(...) O velho fala pausadamente, sem raiva dele mesmo,

mas sem pena. Meditara naquelas palavras. Palavras que,

por acaso, com algumas variantes, estão escritas dentro da

pasta que Laura me devolvera pouco antes. Lembro

perfeitamente: havia coisas de dez anos, iniciara um

romance. Tomara, como exemplo, o próprio pai, o homem

que traíra suas origens. A ideia não fora avante, eu

esboçara algumas páginas, algumas situações – e

esquecera tudo. Ficara apenas a ideia central, que um dia

pretendia retomar, aproveitando e ampliando a temática

central, enquadrando-a dentro da passagem do Êxodo, a

noite em que todo um povo resolve abandonar o cativeiro

às margens do Nilo e partir para o deserto, para as pedras e

as montanhas do deserto. Essa noite, que decidiu a história

de um povo – e foi, até certo ponto, a noite mais

importante do mundo –, seria diluída em acontecimento

menor, individual: um homem escolheria a árdua

caminhada pelo deserto, em busca de uma terra que jamais

alcançaria. Seria essa a sua passagem, a sua travessia:

conquistar a liberdade – ou a paz – e o importante não era

a conquista em si, mas a travessia, a busca – os pães não

fermentados – e repudiar o cativeiro, a passividade

escrava, o grilhão.

Mais tarde, compromissos imediatos me obrigaram a

escrever outras coisas, só a ambição ficou. É possível que

algum dia, distraidamente, tenha falado do plano ao pai,

ou a algum amigo. Hoje, não me sinto motivado para o

tema. Mesmo porque a grande motivação – cortar os

grilhões – fora superada no plano pessoal. Rompera meus

grilhões interiores – (tanto Laura – dourada algema) – e se

não chegara a terra alguma, pelo menos me sentia livre.

- Está prestando atenção, meu filho?

O velho continuara falando, eu não o ouvira. Digo que sim

com a cabeça e me concentro na conversa. Ele conclui

uma espécie de confissão:

- Não queria terminar meus dias sem me dar conta disso.

Você sabe, cada judeu decide de si mesmo. Ele é quem

escolhe se será ou não um judeu. Eu tinha decidido não ser

69

judeu, e assim vivi. Agora, que sinto o fim próximo, ao

lado de sua mãe, uma ruína, sem mais futuro, quero

incorporar-me à minha raça. No fundo, queira ou não

queira, é também a sua raça.

- O senhor decidiu ser judeu. Está certo. Pois eu decido

não ser judeu, e também estou certo.

O pai não ouve. Continua no mesmo tom:

- Você precisa ler o capítulo 16 do Levítico. É a descrição

do Arrependimento, base da festa de Yom Kippur.

- Nunca tinha percebido isso. Mesmo em minha infância?

- Sim. Fazia-o às escondidas, não queria que sua mãe nem

você suspeitassem. Você nunca desconfiou, não?

- Não. Sinceramente, nunca.

- Pois é um alívio saber disso. Quando eu era criança,

vivia num lar como o seu: meu pai, judeu assimilado,

também decidira não ser judeu. Fui educado na ignorância

da lei judaica. Um dia, em minha infância, entrei em seu

quarto, encontrei-o vestido de branco, voltado para a tarde

que caía. Recitava em voz baixa o cântico que mais tarde

vim a saber que era o “Kol Nidre”, o hino da aflição da

alma. Fiquei quieto, no meu canto. Quando o pai acabou,

deu comigo. Perguntou se eu estava ali havia muito. Disse

que sim. Não esqueço o tom de sua voz quando me pediu:

“Não diga nunca a ninguém que me viu fazer isso.”

- Pois o senhor pode ficar tranquilo. Eu nunca o vi fazer

isso.

O pai está arquejante. Aquilo lhe custara um esforço difícil

e compenetrado. Toma o copo de cerveja, aos goles, como

se fosse remédio.

- O senhor também obedece aos jejuns, aos alimentos

proibidos?

- Quando posso. Tenho a obrigação de ser judeu, mas sou

casado com uma cristã. Espero que ela morra primeiro...

- E se o senhor for antes dela?

Ele faz o gesto com a mão, como se a hipótese fosse

absurda:

70

- Ela vai primeiro. Eu sei o que digo. A menos que ocorra

uma perseguição. Então, farei questão de ir para as ruas

com a estrela-de-davi nas costas. Ou, conforme o caso,

não deixo que ninguém bote a mão em mim e nela: vamos

juntos, na mesma morte. (CONY: 2007, 89-91)

No trecho acima, o diálogo entre o pai, Joaquim, e o filho, Paulo, pode ser

perceber uma relação dialética entre os indivíduos ligados por sua gênese em comum,

mas incompatíveis na esfera de suas próprias epistemologias: enquanto Joaquim

Goldberg Simon leva seriamente em consideração a sua condição judaica, Paulo, por

sua vez, é um assimilado e renega as suas origens. Nesse sentido, os dois personagens

são configurados na dialética da relação, em que um se estabelece como o contrário um

do outro no que diz respeito à consciência e compreensão de uma origem semita em

comum, apesar da união intrínseca de sua idiogênese. Joaquim elaborara a travessia, a

busca, os pães não fermentados fundamentais no repúdio do cativeiro de si, cortando os

grilhões e os libambos que o impediam de se tornar próprio e concreto.

Kierkegaard, ainda no capítulo “Do desespero considerado não sob o ângulo da

consciência, mas apenas quanto aos fatores da síntese do eu”, afirma que o

conhecimento vai de par com a consciência.48

Em caso contrário, em que a consciência

não esteja alinhada em um processo simbiótico com o conhecimento, este, em sua

aparente progressão, cria-se como um conhecer monstruoso que o indivíduo utiliza para

acabar por malbaratar o eu durante a sua edificação movediça: constrói-se um eu fake

para que, a curto ou médio prazo, ele seja diluído em bases que não sejam sólidas

exatamente pela ausência fundamental da consciência: eis a pseudo concretização do eu

em vias de simulacro vital. À medida que se incorpora o caráter consciente ao

conhecimento de si, o sujeito passa a ter as suas bases sólidas para a real experiência – a

48 KIERKEGAARD, Søren. “Do desespero considerado não sob o ângulo da consciência, mas

apenas quanto aos fatores da síntese do eu”. In: O desespero humano. São Paulo: Editora

Unesp, 2010. p. 48.

71

Erfahrung benjaminiana – e desconstituir a monstruosidade kierkegaardiana de um

conhecimento aparente, volúvel e sem significação a longo prazo, sem haver, portanto,

o desperdício do eu – “um pouco como o desperdício de vidas humanas para construir

as pirâmides ou vozes nos coros russos só para produzir uma nota, uma única.” 49

A partir do momento em que o indivíduo não tem a consciência atrelada ao

conhecimento de sua objetivação vital – prendendo-se apenas a diferenças pífias sem

que reconheça a sua única necessidade no autoprocesso de travessia e busca de si

próprio –, ele passa ao estado de indigência, de estreiteza humana pela falta e/ou perda

do eu, disperso, assim, em sua clausura do finito ao invés de dissipar suas moléculas

particulares na esfera do infinito: em vez de se tornar único, o indivíduo retém-se no

âmbito do “mais um” – uma eterna e cíclica repetição do nada pelas vias do simulacro.

Kierkegaard ainda afirma que “a nossa estrutura originária está, com efeito,

sempre disposta como um eu que deve tornar-se ele próprio; e como tal, é certo que um

eu tem sempre ângulos, mas daí apenas se conclui que é preciso dar-lhes resistência, e

não limá-los”.50

. Em hipótese alguma o indivíduo deve abdicar de ser próprio ou não

aceitar sê-lo por razões temerárias em relação à alteridade: é preciso ser o estandarte da

originalidade de si na qual reside a plenitude do ser, tendo em vista o fato de que

“tornar-se é partir, mas tornar-se si próprio é um movimento sem deslocação” 51

, isto é,

a consciência do ato real de existir é um processo idiossincrático e silencioso, no qual

somente o sujeito é capaz de interpretar a configuração de si em uma constante e cíclica

renovação de sua busca em espasmos de (re)descobertas do eu.

49

Cf. Idem. 50

Cf. Ibidem. p. 50. 51

Cf. Ibidem. p. 53.

72

No instante da transformação em direção à sua originalidade, ele encontra o

possível e a necessidade como itens essenciais para o tal processo, levando em

consideração a fundamental existência da liberdade de si para si: o desespero, portanto,

ocorre tanto pela ausência do possível quanto pela ausência de necessidade. Sem eles,

não há busca, não há travessia, não há renovação: apenas corrobora-se um devir sem

sentido e sem direção, inerte em sua significação maior e ampla caminhando, cada vez a

passos mais largos e com grilhões mais pesados, para o vácuo do homem.

Pessach: a travessia possui, de forma até mesmo um tanto quanto natural, uma

estruturação de enredo dividida em três partes, de modo geral: a primeira, em que Paulo

Simões ainda não fora despertado da inércia individual e, portanto, não iniciara o longo

e doloroso processo de travessia, de passagem por cima; a segunda, em que há o

diálogo de importância notabilíssima entre Joaquim Goldberg Simon e Paulo, além da

existência de uma série de decisões – aparentemente – involuntárias que começam a

surgir a partir de seu “recrutamento compulsório” no grupo da guerrilha de Sílvio e

Vera; e, por fim, a terceira, na qual o protagonista se insere na autocompreensão de seu

ser, mergulhando no nível da categoria de consciência interior atrelado à necessidade da

busca de tornar-se próprio.

Em um estágio primeiro, é possível considerar o protagonista da obra de Carlos

Heitor Cony, Paulo Simões, como uma espécie de homem do espontâneo. Segundo a

teoria de Søren Kierkegaard, esse tipo de imediatismo relativo ao ser refere-se à esfera

do mundo material, físico, prático, sendo o homem do espontâneo algo que não

ultrapasse a passividade, “sem outra dialética que não seja a do agradável e do

desagradável, nem outros conceitos além dos de felicidade, infelicidade, fatalidade”52

. O

espontâneo não permite, pois, o fluido devir, mas sim o sobrevir irreflet ido que

52

Cf. Ibidem, p. 71

73

promove o desespero de alguém que, de per si, não tem a capacidade de produzir a

reflexão.

Nesse sentido, adentramos a órbita do desespero-fraqueza kierkegaardiano

quando se faz referência à primeira fase de Paulo Simões, na qual este não se quer ser

próprio e, por sua vez, vive na sombra de si. Tudo o que vivencia é espectro,

representação de algo inexistente de fato e que só subsiste na espontaneidade

superficial. A estrutura profunda não pode ser descoberta a partir do momento em que o

conhecimento não está amalgamado à consciência: o que há, portanto, é apenas uma

vivência fugaz e irrefletida que não é capaz de gerar os árduos processos de genuínas

experiências. Esse é o desespero do imediato, no qual o indivíduo não almeja ser si

próprio ou, ainda de forma mais complexa, não quer ser um eu. Talvez caiba a

possibilidade de desejar ser um outro em um processo de alienare, aniquilando o seu ser

pois a espontaneidade não possui individuação, não possui conhecimento de seu

psiquismo interior:

Desespera, portanto, e o seu desespero consiste em não

querer ser ele próprio. (KIERKEGAARD, 2010:76)

Um dos vocábulos mais característicos do homem do imediato é a passividade.

O indivíduo que retém o seu caráter irrefletido em seu espírito é, de forma absoluta, de

uma extensa fragilidade e instabilidade e qualquer fato que o queira transformar em ato

a partir do movimento da reflexão acaba levando-o ao desespero irracional e

injustificável, dificultando a possibilidade do regresso. É interessante perceber como a

questão da perda do aspecto temporal está inserida no caráter passivo do homem do

imediato: a partir do momento em que o indivíduo se concentra irrefletidamente no hic

et nunc, na instantaneidade das ações carentes de consciência real impregnadas de

Erlebnis de superfície, o quesito “tempo” evapora na volatilidade desse imediatismo,

74

sem que, na maioria das vezes, o sujeito se dê conta do mesmo. A falta de um passo a

mais na trajetória de saída de tal passividade faz com que esse indivíduo considere-se

desesperado na sombra de si mesmo, entregue à sua imobilidade.

Imóvel procuro compreender o que se passou. Vera cobre

o seu corpo – até então ela estava nua e eu nem reparara.

Próximo ao leito, do outro lado, a cara congestionada de

Macedo, as estrias vermelhas e ferozes. Na mão, o

revólver. (CONY: 2007, 203. Grifo meu.)

Percebemos, no trecho acima, o que foi descrito no parágrafo anterior: a questão

da imobilidade do homem do espontâneo frente à sua inércia reflexiva de si próprio e

em relação à alteridade que o rodeia. Nesse sentido, corrobora-se a ideia de indigência

desse indivíduo, da fraqueza espiritual – no sentido do animus latino – que o impede,

nesse momento, de fruir a lei de progresso do eu haja vista a incapacidade, por falta de

vontade, de consciência real dificultando a construção da experiência e perpetuando as

constantes recepções de simulacro. Quando se tem a imobilidade do eu, a representação

é o estágio máximo ao qual o ser pode atingir.

(...) Tudo isso me confunde, não sofro, é verdade, mas não

posso dormir. Também não é uma hora para mais uma vez

refletir. Há quantos anos eu fiz quarenta anos? Fiz

mesmo quarenta anos ou não tenho mais tempo, sou

eterno? Quem sabe se não morri, massacrado também

em Capão Seco, e minha alma vagueia nessas estradas

frias, enlouquecida e penada, sem coragem de aceitar a

realidade da morte? (CONY: 2007, 324. Grifo meu)

(...) os anos, os calendários e os relógios são

escamoteações para os que vivem fora do tempo e, por

isso, precisam medi-lo.(CONY: 2007, 279)

Nos trechos de Pessach: a travessia evidenciados acima, percebe-se a questão

latente da temporalidade atrelada ao indivíduo em seu processo natural de

desenvolvimento, seja este apenas cronológico, isto é, objetivo; e/ou subjetivo – o

tempo que caminha não somente de acordo com a sincronia dos relógios, mas a noção

75

de tempo que age conjuntamente à interioridade e seus decursos idiossincráticos. Nesse

sentido, Carlos Heitor Cony trabalha, de modo magistral e extremamente articulado,

com o temporal e sua relação com a transformação de Paulo Simões. A narrativa é

iniciada exatamente no momento em que o protagonista completa quarenta anos de

vida, data esta que não o “irrita nem surpreende”, de acordo com as palavras do

personagem: o movimento interno de consciência de si ainda não fora iniciado,

corroborando a identificação de Paulo ao homem do imediato, aquele que nem sequer

possui um eu suficiente para o movimento ativo do almejar algo ou querer ter sido algo

que não fora, não reconhecendo a si próprio e somente chegando ao inicial seguimento

de reconhecimento fake de um eu voltado para as vias exteriores.

Entretanto, a partir do momento em que Paulo Simões se percebe engajado em

um processo inicialmente involuntário relativo à sua inserção na luta armada contra a

ditadura militar brasileira, todo esse processo passa, paulatinamente, a ser

reconfigurado. O personagem dá mais um passo, mesmo que lentamente, em direção à

real significação do seu éthos, isto é, da sua identidade cujo estopim forçado fora

fundamental para o despertar da consciência de seus quarenta anos de deserto –

quarenta anos sob a égide do apagamento de si no árido universo do desconhecimento

interior.

3.2.2. Ethos e a consciência reflexiva

A segunda fase do protagonista na obra estudada, isto é, o estágio em que Paulo

se direciona à significação de sua identidade a partir da conscientização de sua

existência, há uma determinada modificação do desespero-angústia tendo em vista, por

76

menor que seja, a liga entre reflexão e imediato – de acordo com a teoria

kierkegaardiana: o indivíduo, com o mínimo de consciência efetiva que seja do seu eu,

torna-se algo a mais ultrapassando a linha imaginária e subjetiva entre a passividade

completa e absoluta e o mínimo de ação e deslocamento relativos ao conhecimento de

suas próprias estruturas. Mesmo que ele fale estar em estado de desespero, já não será

mais algo absurdo e inerte. Uma parte da travessia já fora iniciada: a busca e, por

consequência, o progresso.

(...) O progresso, neste caso, no puro imediato, está em

que o desespero já não provém sempre de um choque, de

um acontecimento, mas pode se dever a essa reflexão

sobre si próprio, e não é então uma simples submissão

passiva a coisas exteriores, mas, em parte, um esforço

pessoal, um ato. (KIERKEGAARD: 2010, 74)

Há, portanto, a manifestação de um determinado nível interno de reflexão, e,

assim, um efetivo regresso à condição reflexiva do eu: tal começo de ato reflexivo inicia

a ação de escolha através da qual a concretização do si próprio é realizada pela

percepção da diferença entre a esfera interior e exterior, fato que também legitima a

influência dessa escola sobre a questão do eu ao assumir-se como tal. Nesse processo de

assumir-se como tal, tendo em vista a imperfeição do eu seja ele de qual tipo for,

qualquer dificuldade ou choque maior fará com que ele recue aterrorizado ou, então, um

fato que venha a existir vem para evidenciar uma ruptura profunda entre o eu e o

homem do imediato – ou, talvez, o caráter imaginário do indivíduo descobrindo a esfera

da possibilidade que, ao acontecer, seria responsável pela separação do sujeito em

relação ao seu vínculo com o imediato.

Há, desta feita, uma dupla categorização do desespero: a primeira, em que ele é

considerado desespero-fraqueza – indicando a passividade do eu –; e a segunda, na qual

ocorre a manifestação contrária ao seu movimento de afirmação a partir da inserção do

77

elemento consciência, e a reflexão de si próprio faz com que este indivíduo consciente

de si próprio diferencie-se do espontâneo puro relativo ao sujeito desprovido de

consciência real e de reflexão ativa, chegando à defesa do eu. Quanto à segunda

categorização do desespero:

(...) Compreende que a perturbação causaria o abandoná-

lo, e a sua meditação ajuda-o a compreender que se pode

perder muito, sem contudo se chegar ao ponto de perder o

eu; faz concessões e está em estado de as fazer, tendo

sabido distinguir o eu de qualquer exterioridade, e

pressentindo vagamente que nele deve existir uma parcela

de eternidade. (KIERKEGAARD: 2010, 75)

(...) Todo o problema do eu, do verdadeiro, se torna como

que uma porta condenada no mais fundo da sua alma. Sem

nada por detrás, ele toma sobre si, mas inclinando-se para

o exterior, para aquilo a que se chama a vida, a vida real, a

vida ativa; não mantém senão prudentes relações com o

pouco de reflexão que ainda conserva, receando que

reapareça o que se escondia lá no fundo. Pouco a pouco

consegue esquecê-lo; com o tempo chega a acha-lo quase

ridículo, principalmente quando está em boa sociedade,

entre homens de valor e de ação, desses que têm amor à

realidade e estão em bons termos com ela.

(KIERKEGAARD: 2010, 76)

Nesse aspecto, é possível verificar que a partir da inserção da consciência real e

reflexão ativa do indivíduo, este passa a considerar o exterior como um dos reflexos de

seu interior, possibilitando, dessa forma, a sua inclinação para a vida efetiva e nominal –

eis o início da Erfahrung benjaminiana na realidade do eu após a verificação de si

próprio e do eu concreto. O desespero relativo ao elemento do temporal é o tipo mais

inconspícuo do desespero, principalmente em sua segunda forma, ou seja, na forma em

que há o imediato acrescido do caráter reflexivo sobre o eu. Nas palavras de Søren

Kierkegaard, “quanto mais o desespero se impregna de reflexão menos é visível, ou

78

menos fácil é de encontrar. Tão certo é que a maior parte dos homens não aprofunda

muito o seu desespero, o que não prova que o não tenham.”53

Tal segunda forma do desespero passa a ser um progresso significativo:

enquanto a primeira forma caracterizava-se pelo desespero-fraqueza, o indivíduo, em

sua forma posterior, provido da qualidade reflexiva e consciente desespera da sua

fraqueza – a forma primeira não transpunha a consciência, o entendimento da fraqueza;

já na segunda forma, a consciência vai além e sintetiza-se em uma nova categoria dela

mesma: a consciência da sua fragilidade: “(...) o desesperado vê por si só que a fraqueza

é dar tanto valor ao temporal, que a fraqueza é desesperar.” 54

(...) Mas há luz à minha frente, a aurora que nasce para

mim – e para ela caminho.

Espectador solitário da manhã que chega, sigo pouco a

pouco. O riacho abre-se a meus pés. Macedo tivera sorte

em escolher aquele trecho, vejo do outro lado a fácil

margem. Lavo o rosto naquela água que corre, sinto a

aspereza e o calor do homem que há em mim.

O dia clareia, avermelhado e rude. O sol daqui a pouco

pulará no horizonte, expulso do ventre da terra

amanhecida. Dou alguns passos em direção à outra

margem. Estou deixando a terra e penetrando num

estranho espaço, sem raízes. Faço uma volta em torno de

mim mesmo, contemplo o que ficou atrás, mundo de chão

e céu. O sangue da madrugada torna fantástico aquele

território imenso, feito não apenas de chão e céu, mas de

dor e de gente, de águas e claridades, de prantos e afagos.

Estou no vértice do enorme triângulo irregular. Do outro

lado, está o nada, que é pior do que a morte.

Sinto uma alegria selvagem quando abandono a travessia e

retorno à margem. A aurora, agora atrás de mim, esquenta

com a vertigem e o clamor de sua luz vermelha um novo

corpo que surge, afinal obstinado, lúcido.

53

Cf. Ibidem, p. 77. 54

Cf. Ibidem, p. 83.

79

Desenterro a metralhadora – e volto. (CONY, 2007: 331-

332)

Assim ocorre a configuração dessa segunda forma de desespero – o progresso

considerável do indivíduo, levando em consideração a mudança do seu ponto de vista

cada vez mais consciente do seu desespero e, portanto, responsável por elaborar, através

do esforço pessoal que sai da inércia intelectual levando-o à esfera da concretização das

próprias escolhas relativas ao seu eu – na narrativa de Carlos Heitor Cony em relação à

composição do protagonista Paulo Simões, o homem consciente de um novo corpo e um

novo espírito que irrompem através da obstinação e da sua lucidez.

80

Espectador solitário da manhã que chega, sigo pouco a pouco. O riacho abre-se a

meus pés. Macedo tivera a sorte em escolher aquele trecho, vejo do outro lado a fácil

margem. Lavo o rosto naquela água que corre, sinto a aspereza e o calor do homem

que há em mim.

(CONY: 2007, 331)

81

4. Pessach: travessia e deslocamento

Perpassadas as aporias que permanentemente constituem o indivíduo cindido

aqui notadamente representado na figura da personagem Paulo Simões, passa-se a uma

reflexão em que o ethos da subjetividade individual entra em confronto com o elemento

judaico que, mesmo de modo escamoteado, insinua-se na constituição identitária do

protagonista. Entra em cena a reflexão sobre Paulo Simões – cuja constituição étnica

original, mesmo que fora do âmbito de sua aquiescência, nomeia-o Paulo Goldberg

Simon – e sua delicada relação com o pai, absorto em uma aparente neurastenia do

testemunho.

4.1. Vestígios de almas que vagueiam na estrada fria

O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha de Giorgio Agamben pode

prestar-nos um relevante auxílio na compreensão da escrita de Carlos Heitor Cony em

Pessach: a travessia no que diz respeito ao núcleo judaico da trama. Ou seja, para

compreendermos Paulo e Joaquim Goldberg Simon - o primeiro, que nega as suas

origens semitas; o segundo, que mesmo passando grande parte de sua vida sem

confessar o seu éthos judaico, assume a sua identidade para o filho depois de quarenta

anos de seu nascimento.

Agamben recupera o valor do testemunho, a partir da incapacidade de falar

daqueles que foram testemunhas diretas ou indiretas do sistema nazista de Adolf Hitler.

A significação do testemunho encontra-se precisamente naquilo que falta, naquilo que

não é visível e material – na ausência de enunciação provocada pela linha fronteiriça

entre o que é humano e o que se torna inumano a partir dos campos de extermínio e de

82

suas consequentes adjacências epistemológicas quanto à ética, culpabilidade, inocência,

julgamento, absolvição e reconhecimento – grande parte das categorias de base religiosa

e/ou moral têm como base tais fundamentos do direito. 55

O filósofo italiano relembra a dupla etimologia latina do vocábulo da língua

portuguesa, testemunha. O primeiro, testis, significa “aquele que se põe como terceiro”,

cuja lexia em língua latina já havia sofrido alteração morfológica de terstis para testis.56

O segundo, superstes, anuncia aquele que vivenciou determinado fato de modo direto

perpassando-o de início ao fim, sendo capaz, dessa forma, de testemunhar sobre o que

viveu. Nesse caso, portanto, daremos ênfase à significação do primeiro termo, terstis >

testis, tendo em vista a configuração literária – e, portanto, da nossa tentativa de estudo

e verificação teórica – das duas personagens de Cony já mencionadas anteriormente. A

testemunha de recepção, isto é, aquela que absorve o relato a partir da narrativa da

alteridade, não vivenciando o fato em questão, acaba se pondo como terceiro elemento

55 A qualidade de autorreferência do julgamento tem, como uma de suas consequências – de acordo

com S. Satta –, o fato de que a pena não é a consequência do julgamento, mas ele próprio configura-

se como penalidade, segundo uma das máximas do Direito Penal que se revela pela sentença Nullum

iudicium sine poena. Mediante a teoria de Salvatore Satta, “poder-se-ia dizer até que a pena

completa está no julgamento; que a pena infligida – o cárcere, o carrasco – interesse apenas

enquanto for, por assim dizer, prolongamento do julgamento (pense-se no termo justiçar).” (SATTA,

S. Il mistero del proceso. Milano: Adelphi, 1994. p. 26 apud AGAMBEN, Giorgio. O que resta de

Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III); trad. Selvino J. Assman. São Paulo:

Boitempo, 2008. p. 29). O mesmo jurista e escritor menciona que isso significa, também, que “a

sentença de absolvição é a confissão de um erro judicial”, que cada um é intimamente inocente, mas

que o único verdadeiro inocente não é quem acaba sendo absolvido, e sim quem passa pela vida sem

julgamento” (AGAMBEN: 2008, 27).Caso se confirme a ideia, e o sobrevivente tem a plena

convicção de que ela é verídica, então adentramos no campo da possibilidade dos processos serem os

incumbidos pelo enleio das inteligências que durante muito tempo obstruiu as vias de pensamento

sobre a realidade de Auschwitz e dos demais campos de extermínio. É inquestionável, em termos

pragmáticos, o caráter necessário dos processos – como, por exemplo, os julgamentos de Nuremberg

que foram responsáveis pela abertura dos primeiros processos contra os vinte e quatro principais

considerados criminosos da Segunda Guerra Mundial –, entretanto a sua aparente suficiência pode

ter sido responsável por difundir uma falsa ideia de que toda a problemática já estivesse resolvida a

partir de uma burocracia que não traduz toda a complexidade dos campos e dos testemunhos. 56

A etimologia de testemunha é retirada por Giorgio Agamben do clássico de Émile Benveniste, O vocabulário das instituições indo-européias, volume II, capítulo 7. Campinas: Unicamp, 1995, p.

275-280.

83

entre o opressor direto e o oprimido direto. É, portanto, o indivíduo que estabelece o

vínculo com o testemunho indireto a partir de experiências relatadas pelo outro.

Todavia, no caso em que nos detemos, o outro é um ente diretamente ligado à

testemunha em questão: Joaquim Goldberg Simon.

Nesse sentido, é interessante verificar a complexidade da personagem Joaquim

Goldberg Simon. Se o protagonista Paulo Simões configura-se como "testis", uma vez

que ele não passa pela experiência do campo de concentração em momento algum,

Joaquim transita de “testis” a “superstes” na medida em que em um primeiro momento

ele observa o relato sobre as violências do genocídio judaico em sua família e, em um

segundo momento, a partir do retorno ao seu locus originário - a aldeia natal de seus

pais -, ele experimenta tudo o que ouvira em relato, tornando-se, desta feita, uma

espécie de “superstes”, ou seja, há um processo de transição de testemunha indireta à

testemunha direta, finalizando, portanto, em um retorno do mesmo aos ritos judaicos e a

recuperação de sua identidade judaica pós-Shoah, ao contrário de Paulo que não conta

com essa experiência para transitar entre um estado e outro, permanecendo na esfera do

“testis” como judeu assimilado.

– Já vi muita coisa, filho. E, como judeu, vi mais ainda.

Meus parentes, por parte de pai, foram trucidados em

Dachau, Treblinka e Sobibor. Depois da guerra, quando

fiz aquela viagem de negócios, fui ver o que restava de

minha aldeia, terra do meu avô. Tive dois irmãos em

Treblinka, meu pai, que conseguiu fugir antes, escapou do

campo de concentração, mas teve fim pior: morreu

agoniado, acho que sua morte foi provocada por ele

mesmo. Como judeu, membro de uma raça antiga,

conheço muitas espécies de Treblinka. São dois mil anos

de Treblinkas. E aqui, por que não? Por que aqui é

diferente? A Polônia, no início da Idade Média, era

diferente. Para lá fugiram todos os judeus da Europa. E

depois? Você conhece a história.

Lembrava-me dessa viagem, vinte anos atrás, ele

trabalhava para ume escritório de representações

84

comerciais, maquinaria pesada, o Plano Marshall investia

fundo na Alemanha Ocidental, ele fizera bons negócios lá.

Voltara um pouco diferente. Mas não dei importância,

primeiro porque ele tinha suas manias, segundo porque eu

estava mais interessado na minha própria vida. (CONY:

2007, 92)

No diálogo entre Paulo e Joaquim, algumas passagens nos chamam a atenção. O

pai, Joaquim, ao dirigir-se a Paulo diz: “Já vi muita coisa, filho. E, como judeu, vi mais

ainda.” Na referida frase, é possível perceber a questão do olhar: este, por sua vez, é o

encarregado do páthos da alma, administrando toda uma eficácia sobre o

reconhecimento do indivíduo para si – em uma atitude passiva – e para a alteridade –

em uma atitude necessariamente ativa, mínima que seja. Em sua indiscutível força

latente, o olhar é o sustentáculo da manifestação – instrumento e símbolo da epifania e

da revelação a partir de sua faculdade de percepção integral. Assim, há uma relação

comparativa de intensidade do olhar mediante duas circunstâncias: a primeira, como o

fato de ver algo no âmbito da experiência e percepção; a segunda, como a questão do

mesmo ver algo, todavia impregnada pela tal relação comparativa de intensidade a

partir de sua condição como judeu: “como judeu, vi mais ainda”. Há, portanto, uma

relação entre a identidade semita e um maior grau perceptivo de entendimento e

revelação a partir do momento em que ser judeu e, por consequência, ser testemunha

amplia a área de percepção de sua Erfahrung benjaminiana. Joaquim Goldberg Simon

encontra-se em uma situação idiossincrática: ao mesmo tempo em que é o “terstis >

testis” por ter recebido a carga vivencial de seus parentes “trucidados em Dachau,

Treblinka e Sobibor”, a personagem está, também, vinculada à sua condição de

“superstes”, levando em consideração a ida à aldeia – chamada de minha aldeia por

Joaquim – na qual residiu a ala paterna dos Goldberg Simon, com foco em seu avô.

85

Sob esse ponto de vista, percebe-se o ímpeto de Joaquim ao que diz respeito ao

ato de narrar, aproveitando a maior parte do tempo de visita do filho a fim de tentar

repassar a ele algum vestígio de sua experiência. A necessidade de transmissão dessa

experiência – talvez em uma tentativa inconsciente de redução da barbárie já iniciada de

forma considerável na geração da Primeira Guerra Mundial, em que foi possível

diagnosticar, segundo os termos de Benjamin, uma grande pobreza em termos de

experiências comunicáveis pelo fato dos combatentes voltarem silenciosos do campo de

batalha, impedindo a transmissão da Erfahrung – é quase um ponto de neurastenia por

parte da personagem: há o incessante ímpeto da passagem, da propagação retumbante

da narração de pai para filho, em uma espécie de tentativa de desvelamento das veredas

nas quais, caminhando, será possível encontrar os vestígios do tesouro, assim como já

indicara Esopo. Todavia, o tesouro maior descobre-se imaterial: é a saída da inércia do

indivíduo, transformando-o no cerne de suas próprias experiências. De acordo com a

ótica de Benjamin, a narração (Erzählung) é composta por dois elementos fundamentais

em sua configuração: a experiência (Erfahrung) e a memória (Erinnerung), itens

responsáveis pela transmissibilidade dessa tríade fundamental para a saída do limbo da

barbárie do indivíduo. No caso de Pessach: a travessia verifica-se a tentativa de

rememoração (Eingedenken) por parte de Joaquim Goldberg Simon ao relatar toda a

história da família mediante o sofrimento causado pela Shoah – os parentes trucidados,

física e psicologicamente, nos campos de Dachau, Treblinka e Sobibor; a fuga de seu

pai (avô de Paulo) do segundo campo de extermínio mencionado anteriormente – como

artefato de redenção do passado por meio de sua atualização através da passagem de tais

relatos ao filho, produzindo, portanto, uma experiência na qual seja viável ao sujeito

apoderar-se da atualidade de si próprio como fruto e substância de tal realidade

pretérita.

86

4.1.1. O aidós da sobrevivência: o duplo êxodo do deserto e a consciência do ethos

cindido

Em um momento anterior à confissão de Joaquim a Paulo relativa ao seu

cotidiano judaico oculto, é possível verificar um diagnóstico já estabelecido por

Agamben quanto ao sobrevivente57

: o sentimento de culpa e vergonha é um locus

clássico dos renascidos dos campos, configurando-se como o enleio daquele que

sobreviveu fisica e mentalmente. A vergonha passa a ser, então, um dos grandes

sintomas do conflito trágico da modernidade, indicando o perfil do culpado-inocente na

tênue linha da concomitância: ao mesmo tempo em que o indivíduo sente a culpa por ter

sobrevivido em detrimento do outro que não teve o mesmo destino na Shoah –

circunstância esta que interrogações do tipo “porque eu sobrevivi e ele, meu colega de

campo, não? Porque eu e não ele? Porque ele e não eu?” surgem na psyché embaraçada

do sobrevivente. No campo de extermínio, não há a possibilidade de individuação de

vida e morte: ninguém consegue sobreviver e/ou perecer em seu lugar próprio. De igual

modo, pari passu com o sentimento de culpa, vem à tona a pulsão de vergonha, no 57

Ao mencionar o termo sobrevivente, refiro-me a dois perfis do mesmo: o sobrevivente direto

– aquele que vivenciou a realidade dos campos de extermínio e toda a circunstância nazista da

Segunda Guerra – e o sobrevivente indireto – aquele que leva consigo toda a carga passiva da

mesma realidade, através das experiências repassadas por seus ascendentes próximos que, por

sua vez, estiveram presentes na Shoah (ou, em termo estabelecido pelo senso comum, porém

ignorante e insensível, Holocausto –, tendo em vista o fato de que tal termo não somente supõe

uma equiparação inaceitável entre altares e os fornos crematórios, todavia recebe uma herança

semântica precisamente antijudaica por toda a sua carga pejorativa e negativa mediante a

acepção latina do vocábulo holocaustum, oriundo do grego holókaustos – adjetivo este que tem

por acepção literal a expressão “todo queimado”, cujo substantivo é holohaústoma. Por trás de

toda a história semântica do termo, claramente cristã, há o fato de que os padres católicos

faziam uso dele com o fim de traduzirem, mesmo que de modo incoerente, a doutrina complexa

do sacrifício da Bíblia, principalmente em relação ao Levítico e aos Números. A partir da

herança da Vulgata, os padres latinos passam a utilizar o termo holocaustum para estabelecer a –

sua concepção de – exegese sobre os sacrifícios dos Hebreus, como podemos constatar em Hil.,

In Psalm. 65, 23 apud Agamben: Holocausta sunt integra hostiarum corpora, quia tota ad

ignem sacrificii deferebantur, holocausta sunt nuncupata – “Os holocaustos são os corpos

íntegros das vítimas (dos sacrifícios), pois todos são levados ao fogo do sacrifício; os

holocaustos são nomeados”. (AGAMBEN: 2008, 38. Tradução minha).

87

sentido da inabilidade absoluta de rompimento consigo próprio – na tentativa de fuga de

si há o encontro com a impossibilidade de evadir-se: “não se pode esconder o que

gostaríamos de subtrair ao olhar”.58

Nesse sentido, verifica-se um complexo processo de

envergonhar-se: o que se manifesta é, assim, o sujeito pregado a si mesmo em uma

absoluta incapacidade de fuga de si em direção ao esconderijo de si próprio, havendo,

portanto, uma inevitável e incômoda presença do eu diante de si mesmo.

Envergonhar-se significa: ser entregue a um inassumível.

No entanto, este inassumível não é algo exterior, mas

provém da nossa própria intimidade; é aquilo que em nós

existe de mais íntimo (por exemplo, a nossa própria vida

fisiológica). O eu é, nesse caso, ultrapassado e superado

pela sua própria passividade, pela sua sensibilidade mais

própria; contudo, esse ser expropriado e dessubjetivado é

também uma extrema e irredutível presença do eu a si

mesmo. É como se nossa consciência desabasse e nos

escapasse por todos os lados e, ao mesmo tempo, fosse

convocada, por um decreto irrecusável, a assistir, sem

remédio, ao próprio desmantelamento, ao fato de já não

ser meu tudo o que me é absolutamente próprio. Na

vergonha, o sujeito não tem outro conteúdo senão a

própria dessubjetivação, convertendo-se em testemunha do

próprio desconcerto, da própria perda de si como sujeito.

Esse duplo movimento, de subjetivação e de

dessubjetivação, é a vergonha. (AGAMBEN, 2008: 110)

A vergonha é, pois, uma espécie de sentimento ontológico, que

encontra seu lugar próprio no encontro entre o homem e o ser;

tem tão pouco a ver com um fenômeno psicológico, que Heidegger pode escrever que o ser mesmo traz consigo a

vergonha, a vergonha de ser. (AGAMBEN, 2008: 110, 111)

É no grau em que o ser é entregue ao seu “inassumível” judaico – oriundo de sua

mais profunda intimidade – que figura a existência de Paulo Simões. O “inassumível”

judaico que, por sua vez, reverbera como um caráter “inassumível” holístico, completo,

tendo em vista o fato de que ao não se encarregar de sua identidade semita, ele, por sua

58

Agamben, G. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Trad. Selvino

J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 109.

88

vez, acaba por não se incumbir de sua caracterização total, influenciando a falta de

exegese sobre a própria vida até o marco da libertação: o seu aniversário de quarenta

anos, a visita de Sílvio, a privação involuntária na guerrilha até o instante de

compreensão de seus reais, vitais e fundamentais objetivos pessoais do eu próprio.

Desse modo, portanto, é possível verificar um inicial condicionamento de um ser

expropriado – isto é, aquilo que está fora de sua propriedade, sua condição como

indivíduo, nada mais sujeito de seus caminhos – e dessubjetivado. Sob a égide da

suprema e indomável presença do eu embaciado frente a si mesmo, o Paulo Simões

inicial – pré-quarenta anos, desprovido de sua compleição consciente, absorto na

maquinização irreflexiva de sua identidade como sujeito – insere-se em um processo no

qual a consciência é como areia que escapa por entre os dedos da criança na praia,

levada pelo vento em direção a lugar nenhum, escapando por todos os lados e seguindo

um rumo indefinido: concomitantemente, é solicitada de forma irrecusável a presenciar

ao auto-desmoronamento, ao fato de não haver tudo naquilo que deveria ser

absolutamente próprio.

Esse é, pois, um dos pontos de intersecção entre Paulo Simões e seu pai,

Joaquim Goldberg Simon: enquanto o primeiro, inicialmente – volto a frisar: o Paulo

inicial, pré-quarenta anos – é configurado como um ser expropriado e dessubjetivado

pela impossibilidade de assumir-se e pela ausência de consciência efetiva sobre os

traçados próprios de si mesmo, o segundo é tomado, até o momento da confissão ao

filho sobre a sua identidade hebreia, pela vergonha. É pela vergonha que o indivíduo é

tomado por nenhum outro conteúdo a não ser a própria dessubjetivação: trata-se,

portanto, de uma vergonha que não só se isenta de culpabilidade, mas já sem tempo –

absorta em uma intangível inaptidão para que seja efetivado o quebrantamento de si

mesmo, processo este no qual a evasão de si encontra o seu polo na mais absoluta

89

incapacidade de autoevasão: por estar cravado em si próprio e, por consequência,

impedido de sair dos grilhões e amarras do ego envergonhado, o sujeito perpassa a

encruzilhada da impossibilidade da fuga e do esconderijo – de tanto esconder-se, o eu se

perdeu no labirinto de suas próprias vicissitudes, na dupla categoria da vergonha em que

se assume um paralelo entre a passividade e a atividade: ser percebido e perceber são

protagonistas do autorretrato do expropriado, expondo-se como o tónos emotivo mais

particular da subjetividade.

A produção da consciência na presença do discurso é um dos caminhos no

processo labiríntico da subjetivação, na qual, de forma frequente, caracteriza-se por um

movimento traumático de que o indivíduo demora a libertar-se. Sendo assim, a

consciência configura-se em uma instável e quebradiça linha textual e subtextual – ou

seja, exteriorizada e interiorizada – desvelando-se e velando-se, concomitantemente:

nesse ínterim entre o mostrar-se e o guardar-se, o ser sugere a ruptura sobre a qual foi

edificado, isto é, revela - em um movimento quase erótico, de mostrar-se aos poucos,

retirando peça por peça de seu aparato intelectual e psíquico, para depois cobrir-se

novamente – a dessubjetivação essencial que está presente em toda subjetivação. Na

estrutura oculta da consciência e da subjetividade está a vergonha: por constar-se na

enunciação, a consciência possui de per si a consignação à “inassumibilidade” do

indivíduo.

Na circunstância familiar de Paulo e Joaquim Goldberg Simon, mesmo na

ausência da “assumibilidade” inicial de sua etnia intrinsecamente judaica por parte do

primeiro e na instabilidade da mesma pelo segundo – levando-se em consideração que

em apenas um momento da narrativa Joaquim assume a sua ritualística semita para o

filho, Paulo –, percebe-se a sobrevivência do homem após a sua aniquilação em suas

mais raízes particulares: isso não ocorre pelo fato de haver, em qualquer beco

90

existencial que seja, uma essência própria ao sujeito destinada à destruição ou à

salvação, mas sim em função do corte, da incisão, provocada no locus hominibus, isto é,

no lugar próprio do humano – este encontra-se cindido. Os seus lugares, tanto de Paulo

quanto de Joaquim, estão solidificados na ruptura entre o ser que vive e o ser que fala59

,

na linha divisória entre a inconsciência inumana e a consciência – característica

primordial humana.

Nesse sentido, o não-lugar de ambos os sujeitos caracteriza-se pela malograda

articulação entre o ser que vive e o lógos, sendo o homem o indivíduo faltoso em

relação a si próprio e cifrando-se nesse faltar-se e, por consequência, no desvio errante e

no abismo hiante patente em tal circunstância. Seguindo Giorgio Agamben em O que

resta de Auschwitz, é possível encontrar elementos interseccionais e, ao mesmo tempo,

dispersivos e antagônicos nas personagens Paulo e Joaquim Goldberg Simon. Em

relação aos elementos interseccionais entre ambos, o mais evidente é em relação ao fato

de o homem ser um elemento individual em potência e, no instante em que granjeia

reflexivamente a sua capacidade infinita de indestrutibilidade, ele acaba por acreditar

em estar concebendo, de fato, a sua essência.

No caso de Paulo, isso acontece pari passu, desde o momento da visita de Sílvio

e a proposta do mesmo em recebê-lo no grupo comunista da luta armada até o momento

final em que Paulo percebe que, em quarenta anos de existência, nenhum objetivo real

tivera sido traçado em função de sua extrema passividade e inconsciência perante a sua

vida e, assim, passa a ter um objetivo maior em relação ao Brasil, tornando-se, por fim,

si próprio e agente efetivo de sua própria subjetivação: trata-se, pois, de uma dupla

conversão a si mesmo – o judeu que se abstém de sua inconsciência e se assume como

59

AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Trad.

Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 137.

91

judeu – no caso, Joaquim Goldberg Simon –, e o apolítico que se assume como

engajado na circunstância da guerrilha: eis o caráter alegórico do romance. No caso de

Joaquim, por sua vez, tal procedimento ocorre no instante em que assume para o filho a

sua condição de judeu, revelando-se engajado na causa de sua etnia em sua família

como, por exemplo, no instante em que aconselha ao filho a leitura do capítulo 16 do

Levítico, que é caracterizado pela descrição do Arrependimento, a base da festa do Yom

Kippur. Durante o diálogo entre pai e filho, Joaquim diz: “Não queria terminar meus

dias sem me dar conta disso”. Dar-se conta disso é, portanto, a apreensão de sua própria

essência judaica, saindo do estágio da dessubjetivação e adentrando o espaço da

subjetivação, tornando-se ser falante por parte do ser vivo, e do tornar-se vivo por parte

do tão sofrível e custoso lógos: esses vetores que vão da dessubjetivação à subjetivação

e vice-versa – não coincidindo em um ponto central de intersecção – correspondem são

o lugar do testemunho.

Ao mesmo tempo em que os dois personagens estão em confluência quanto à

apreensão consciente de suas próprias essências a partir do fator sine qua non da

consciência subjetivadora, estão, também, dissonantes em relação à concepção do ethos

que os amalgama, querendo ou não, quanto à circunstância étnica e familiar: enquanto o

pai, depois de anos, assume a sua condição semítica do ponto de vista étnico e religioso,

o filho não se enxerga como tal e refuta qualquer possibilidade de inserção na esfera

judaica familiar. Apesar de diferentes potências individuais, ambos apreendem o real

entendimento de suas essências particulares e desvelam-se, finalmente, como sujeitos da

própria individuação. Legitima e conscientemente denominadas próprias, agentes de

sua história que ocupam o vão do ser outrora imerso em seu inerte umbral de si mesmo.

Nesse processo, reside o caráter alegórico do romance, proposto a partir da

compreensão benjaminiana do termo: há a alegoria da transformação da passividade à

92

ação, da negação à afirmação, da superficialidade à profunda compreensão das

individuações de Paulo e Joaquim.

93

4.2. Deslocamentos reais e metafóricos: a travessia como constitutio e (re)constitutio

(...) Depois da guerra, quando fiz aquela viagem de

negócios, fui ver o que restava de minha aldeia, terra de

meu avô. Tive dois irmãos em Treblinka, meu pai, que

conseguiu fugir antes, escapou do campo de concentração,

mas teve fim pior: morreu agoniado, acho que sua morte

foi provocada por ele mesmo. Como judeu, membro de

uma raça antiga, conheço muitas espécies de Treblinka.

(...).

(CONY, 2007, 92)

No trecho acima, é interessante perceber como, além da questão do duplo

deslocamento de Paulo Simões – o seu deslocamento geográfico em companhia dos

outros guerrilheiros imposto pelas diretrizes do sistema político vigente no Brasil, e o

seu deslocamento interior, epistemológico e consciente, em direção ao assumir-se como

si próprio nas vias da subjetivação, guiado pelas rédeas do seu caráter reflexivo galgado

de modo paulatino –, há, também, a questão do breve – mas efetivo – traço diaspórico

na constituição da personagem Joaquim Goldberg Simon. Após o término da Segunda

Guerra Mundial, Joaquim decide visitar o que restava da aldeia na qual residiu os seus

parentes aproveitando o ensejo de uma viagem de negócios. Nesse momento, a cultura

inerente ao seu caráter personativo torna-se apta a partir do movimento, uma cultura

deslocada de forma contínua, fazendo com que esse deslocamento passe a ser, de fato,

uma acepção cultural e não apenas um modesto ato de transferência ou extensão de

concepções móveis. Pelo contrário, o deslocamento pelo qual Joaquim Goldberg Simon

perpassara outrora – configurando-se como um vasto manancial de mobilidades físicas,

emocionais e, por consequência, hermenêuticas do próprio eu – foi de absoluta

relevância no fundamental processo de saída de sua “inassumibilidade” judaica em

direção ao seu ethos étnico e religioso. No território multifacetado do verbo diasporein,

94

que por si só seria a égide da deslocalização, eis que surge o indivíduo relocalizado em

si mesmo através da libertação dos libambos que, por sua vez, encontravam-se

sedimentados no negrume da inconsciência dessubjetivada do eu.

O termo diáspora, tendo sua origem no verbo grego diasporein, cuja semântica

fundamental está ligada à dispersão, foi bastante vinculado à história dos hebreus na

Antiguidade, a partir do exílio forçado em terras babilônicas no século VI a.C.

Entretanto, a modernidade foi, aos poucos, reformulando essa concepção fixa e

estagnada.

Os tempos modernos e pós-modernos, por mais que essa diferenciação entre

modernidade e pós-modernidade seja complexa demais para discutirmos em um espaço

tão sucinto como o presente escrito, diagnosticaram outros feixes de significação,

incluindo a questão do deslocamento nas recentes elaborações semânticas relativas à

realidade diaspórica.

Nesse sentido, alguns teóricos expuseram de modo bastante significativo

algumas teses sobre o referido tema. Elena Palmero González, em seu artigo

“Desplazamiento cultural y procesos literários en las letras hispanoamericanas

contemporáneas: la literatura hispano-canadiense”, expõe o fato de que James Clifford,

na sua obra intitulada Dilemas de la Cultura. Antropología, literatura y arte en la

perspectiva posmoderna (1995), postula uma exegese relativa ao tema central de como

é possível estudar uma cultura quando esta acaba tornando-se apta ao movimento. Desta

feita, portanto, o autor percebe a cultura como uma forma permanentemente deslocada,

revolvendo a ideia de que a residência é a base do coletivo e a viagem é o seu caráter

complementar, ou seja, Clifford teoriza a possibilidade de as práticas de deslocamento

configurarem-se como uma efetiva acepção cultural, e não somente o simples ato de

transferir ou estender suas concepções móveis.

95

O deslocamento, na visão de Clifford, é imbricado pelo quesito da identidade no

instante em que esta não necessariamente se vincula à continuidade fluida de tradições

ou culturas, mas sim no momento em que à identidade de per si se amalgama as ideias

de deslocalização e relocalização a partir da mobilidade de caracteres. Tal postura

remete ao conceito de cultura translocal, que superaria a ideia de global ou universal e

abrangeria os diversos pontos de encontro nos vários níveis em que pode haver

interpenetração cultural, tais como os locais, regionais e globais. Tal visão consegue

perceber melhor a profunda complexidade que essa mobilidade de múltiplos

deslocamentos pode trazer para a construção de cada indivíduo, levando,

evidentemente, a uma construção identitária ímpar e intercambial.

Dialogando com a visão de James Clifford, Stuart Hall propõe que as estéticas

diaspóricas – que implicam numa série de entrecruzamentos – são naturalmente impuras

na medida em que reorganizam e reconfiguram os materiais originais, atualizando e

modificando tanto as culturas de origem quanto as culturas de adoção. Nesse sentido,

como Palmero González ressalta, a diferença cultural precisa ser compreendida como

um jogo de significados “sempre postergados, relacionais e intercambiáveis.”

Ainda sob a condução elucidativa de Palmero González, é interessante recorrer à

teoria de Edward Said em The World, the Text and the Critics 60

em que o autor

explicaque há uma considerável diferença entre a noção de cultura como posse ou

pertencimento natural e a noção estática, pragmática e cartesiana de pertencimento

imposto, invariável. Nesse sentido, pois, Said estabelece uma distinção entre o conceito

de filiação e afiliação, ou seja, a primeira como um envolvimento infundido,

determinado, e a segunda como um processo voluntário.

60 SAID, Edward. The World, the Text and the Critics. Cambridge: Harvard University

Press, 1983.

96

Para a melhor compreensão do fenômeno do deslocamento, cito, abaixo, um

trecho do verbete preparado por Elena Palmero González para o Dicionário das

mobilidades culturais: percursos americanos61

, organizado por Zilá Bernd:

Pensar a noção de deslocamento no âmbito das ciências

sociais e especificamente na órbita dos estudos da cultura

significa remeter a diferentes formas de mobilidade, física, espiritual, linguística; a diversas práticas de emigração,

exílio, diáspora, êxodos, nomadismos, circulações humanas;

é pensar em translado e em trânsitos de todo o tipo, em

políticas do movimento e em economias da viagem.

Entendido como vivência e prática dos sujeitos, o

deslocamento é um conceito fundamental nos estudos sobre imaginário e memória cultural. Entendido como metodologia

de trabalho, converte-se em paradigma fundamental para

pensar processos culturais. (BERND: 2010, 109)

Em Pessach: a travessia, Paulo Simões vivencia uma curiosa realidade de

intelectual diaspórico em que é possível perceber um processo tríádico na constituição

deslocada do protagonista: em um primeiro momento, Paulo está afundado em sua

inércia existencial, preferindo “prolongar esta dormência”62

que assola sua vitalidade;

no segundo momento, Paulo, através de uma série de acontecimentos que o levam até a

luta armada contra a ditadura militar brasileira, passa a ter que, juntamente aos

companheiros de guerrilha, se refugiar dentro do próprio país em função da repressão

dos militares e buscas efetuadas pelo DOPS; no terceiro momento, mesmo estando a

poucos metros de uma das fronteiras do Brasil pelo Sul, Paulo Simões decide não

efetivar o canônico exílio.

A partir do momento em que o protagonista rompe com o seu estado de

dormência, dos seus próprios e intrínsecos “quarenta anos de deserto”, isto é, de sua

espécie de exílio interno para si mesmo, ele passa a uma outra espécie de deslocamento:

61 BERND, Zilá (org.). Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos. Porto

Alegre: Literalis, 2010. 62 CONY, Carlos Heitor. Pessach: a travessia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 7.

97

o deslocar-se no trânsito da mobilidade imposta pelo regime militar dentro dos limites

geográficos do território nacional.

Percebe-se, então, dois tipos de condição exilada: no primeiro caso – o exílio

interno da personagem –, há um panorama estático e irreflexivo do sujeito, tendo em

vista, principalmente, as suas raízes judaicas adormecidas por uma memória que não

quer lembrar-se de sua origem, seja por medo imposto pelo pai, seja por sua própria

condição de alienado. No segundo caso, o deslocamento se dá pela própria movência

presente em sua atuação na sociedade: de escritor alienado à indivíduo atuante e prestes

a entrar para a guerrilha contra o status quo. O exílio em várias instâncias passa a

caracterizar Paulo Simões, posto que ele se dá conta do exílio de sua condição de judeu

– exílio esse coletivo, individual e familiar, concomitantemente – e nega, por fim, o

exílio que seria imposto pelo regime ditatorial na medida em que ele não cruza a

fronteira e retorna, ativo e armado, para construir seu país e sua subjetivação própria.

Do exílio interno e interior, imerso na prática póstuma da autorreflexividade

promovida pela atuação em qualquer causa determinada que seja – no caso, a luta

armada contra a ditadura militar –, ao deslocamento sine qua non para a sua própria

memória, vitalidade e cultura, eis a crise. Crise esta fundamental para o despertar inócuo

dos braços de Morfeu.

O trecho a seguir é retirado da cena em que Paulo Simões vai até o internato da

filha para visitá-la no dia em que ele completa quarenta anos. Vejamos um exemplo da

excessiva neutralidade do protagonista que caminha pelas veredas do alienare:

– De qualquer forma, a história fará justiça ao papa. Já

estamos habituadas ao ódio. - Os judeus também. - O senhor é a favor da causa deles? - Não. Não sou a favor de nenhuma causa. Nem contra. Sou

homem e sou neutro. (CONY: 2007, 46)

98

No trecho acima, verifica-se o estado de aparente indiferença de Paulo Simões

em relação ao quesito religião. Entretanto, a partir do excessivo incômodo demonstrado

ao longo da narrativa, percebe-se que há um processo paulatino de construção pessoal

do protagonista: processo este de saída de um discurso e de uma mentalidade

irreflexivos quanto a praticamente todos os acontecimentos de seus quarenta anos.

A partir da visita de Sílvio ao seu apartamento no dia de seu aniversário, uma

espécie de epifania passa a se manifestar nos minuciosos detalhes que virão a compor

seu cotidiano. No instante em que Paulo ajuda a levar um indivíduo que fora capturado

pelo DOPS e conseguira fugir, entretanto bastante ferido e debilitado, e, posteriormente,

é impedido de sair da fazenda utilizada como abrigo para os perseguidos políticos, o

deslocamento de Paulo Simões inicia-se mesmo que involuntariamente.

Quando o protagonista começa a se interessar pela situação imposta em vista que

ela passara a significar a sua existência, isto é, passara a reconstituir o seu ethos

particular, o processo de deslocamento constitutivo se faz: a sua diáspora pelo território

nacional efetiva um complexo processo de estabelecimento identitário do protagonista

em função do próprio deslocamento físico propulsor das fundamentais alterações

epistemológicas do sujeito. Nesse sentido, Paulo Simões atravessa duas espécies de

deslocamento concomitantes: um pragmático, físico, geográfico; outro, epistemológico,

subjetivo, emocional e, principalmente, constituidor de seus passos a caminho da

subjetivação.

Paulo Simões efetua a travessia, a passagem por cima de sua dormência

identitária. O deslocamento da inércia e passividade de outrora recompõe os fragmentos

perdidos nas veredas de um grande sertão de excessiva e acéfala neutralidade que fora

decomposta. Sua residência, o reconhecimento de sua própria persona foi feito em

viagem: viagem esta que é prova contundente de que o entre-lugar pode – e deve – ser o

99

locus da produção por rotas impuras que permitem alcançar o cerne da identidade. A

permanência pode ser a promissão.

100

Conclusão

A escrita de textos romanescos que lidam com temas da história recente corre o

risco de apresentar um caráter panfletário que pode comprometer, de modo irreparável,

a qualidade da obra. Definitivamente, esse não é o caso de Pessach: a travessia uma vez

que, como foi demonstrado nessa monografia, o contexto histórico-político, embora

presente,é apresentado entremeado por um recuo alegórico, que serve, de fato, como

ambientação para a travessia do indivíduo inserido em uma sociedade definida por ele

por seus antolhos e pela castração.

A construção da narrativa e das personagens que a permeiam dialoga

perfeitamente não apenas com o conceito do indivíduo problemático da modernidade,

mas, igualmente, com a própria falta de perspectiva e letárgica vivência em que o

sujeito pode se inserir.

Na dissertação, o conceito de alegoria benjaminiano – que, de fato, teria a sua

exegese dificultada sem o auxílio filosófico de Creuzer e Görres – apesar de ser

extremamente sutil e complexo, foi fundamental para a nossa concepção teórica acerca

de Pessach: a travessia. A alegoria, ao trazer em si o caráter da busca, da interpretação

e da calma contemplativa, faz com que exista o esforço interpretativo e a explosão

semântica necessários à compreensão significativa do passar dos tempos. Embora se

valha do símbolo, ela não retém o enigma e a instantaneidade que aquele possui: a

alegoria é a paisagem na qual residem em linhas pontilhadas – para que após uma

profunda observação, passe a fazer sentido em sua inteireza nunca estática – a natureza

e a História. Ao promover a reflexão, constitui-se. Revela-se de um modo distinto para

cada indivíduo que tenta interpretá-la. Complementar à ideia de alegoria para a

compreensão da obra, são os conceitos de Kierkegaard com os quais foi possível

101

constituir o caminho triádico de Paulo Simões na sua passagem ao longo da narrativa

até a chegada ao estado de consciência do desespero-angústia, motor sine qua non para

a conclusão da travessia, agora em início efetivo de caminhada.

Passagem, ou também deslocamento de condição, seja do pai que se assume

judeu perante o filho, seja do filho que assume a si mesmo diante de si. Retornado é

Paulo, não à condição de judeu, mas à condição de senhor consciente do si próprio.

Finda a passagem, travessia do ser perdido e encontrado em si mesmo através do

processo de reflexão de sua subjetivação, ele se constitui não apenas como herói

problemático, mas pelo paradoxo demonstrado com o auxílio de Lukács, um herói que

se volta para o coletivo nas reminiscências de um microepopeia.

Concomitantemente, ao falar da travessia do indivíduo Paulo Simões, fala-se da

travessia do homem alienado para a tomada de consciência de si mesmo através da

tomada de consciência do mundo. E é justamente esse caráter universal de sua narrativa

– mas ao mesmo tempo individual e local – que torna o romance de Carlos Heitor Cony

uma peça literária sui generis ao narrar uma espécie de odisseia contemporânea em que

o sujeito, perdido de si mesmo, reencontra o seu caminho de volta através de uma

pequena coletividade unida por objetivos próprios.

O retorno não é mais o ponto de partida da narrativa, mas sim o ponto de

chegada do sujeito que se perdera de si mesmo durante alegóricos quarenta anos.

102

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