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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CAMILA DE OLIVEIRA RAUBER A UNIDADE DAS VIRTUDES NO PROTÁGORAS DE PLATÃO RIO DE JANEIRO 2018

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Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO · 1 ARISTÓTELES, Metafísica, B 1, 995a 24-995b. Tradução: Giovanni Reale. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 85. 2 PLATÃO, Protágoras,

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CAMILA DE OLIVEIRA RAUBER

A UNIDADE DAS VIRTUDES NO PROTÁGORAS DE PLATÃO

RIO DE JANEIRO

2018

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO · 1 ARISTÓTELES, Metafísica, B 1, 995a 24-995b. Tradução: Giovanni Reale. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 85. 2 PLATÃO, Protágoras,
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CAMILA DE OLIVEIRA RAUBER

A UNIDADE DAS VIRTUDES NO PROTÁGORAS DE PLATÃO

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação Lógica e

Metafísica, PPGLM, da Universidade Federal do

Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção de Mestre em Filosofia.

Orientadora: Carolina de Melo Bomfim Araújo

RIO DE JANEIRO

2018

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO · 1 ARISTÓTELES, Metafísica, B 1, 995a 24-995b. Tradução: Giovanni Reale. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 85. 2 PLATÃO, Protágoras,

CIP - Catalogação na Publicação

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Rauber, Camila de Oliveira

R239u A unidade das virtudes no Protágoras de Platão /

Camila de Oliveira Rauber. -- Rio de Janeiro, 2018.

98 f.

Orientador: Carolina de Melo Bomfim Araújo.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do

Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências

Sociais, Programa de Pós-Graduação em Lógica e

Metafísica, 2018.

1. Virtude. 2. Relação todo-partes. 3.

Conhecimento. 4. Protágoras. 5. Platão. I. Araújo, Carolina de Melo Bomfim, orient. II. Título.

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO · 1 ARISTÓTELES, Metafísica, B 1, 995a 24-995b. Tradução: Giovanni Reale. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 85. 2 PLATÃO, Protágoras,

Camila de Oliveira Rauber

A Unidade das Virtudes no Protágoras de Platão

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-

Graduação Lógica e Metafísica do Departamento de

Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte

dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre

em Filosofia.

Rio de Janeiro, 27 de Junho de 2018

______________________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Carolina de Melo Bomfim Araújo, Orientadora (UFRJ)

______________________________________________________________________

Prof. Dr. Anderson de Paula Borges (UFG)

______________________________________________________________________

Prof. Dr. Fernando Muniz (UFF)

Rio de Janeiro

2018

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AGRADECIMENTOS

À CAPES, pela bolsa de estudos de fundamental importância para o prosseguimento desta

pesquisa;

À Carolina Araújo, por todos esses anos de orientação, ensino e incentivos concedidos;

Aos professores Rodrigo Guerizoli e Daniel Lopes, por terem feito parte da banca da

qualificação;

Aos professores Anderson Borges e Fernando Muniz pela disponibilidade em fazerem

parte da banca da defesa;

À minha família, em especial, minha mãe Leila, por todos os momentos de amor,

paciência e motivação para concluir esta dissertação;

Aos meus amigos que foram, dentre outras coisas, de fundamental importância para o

progresso desta pesquisa: Gerarda, Camilla Magalhães, Jéssica Koncimal, Luciana

Chachá, Pamela Leguizámon, Felipe Ayres, Juliana Joyce, Kelly Teixeira, Paulo

Teixeira, Alcino Júnior;

Ao Gutierres Fernandes Siqueira, meu maior incentivador que, com seu amor, sempre

acreditou e me incentivou na conclusão deste presente trabalho;

A Deus, pois sem Ele nada disso seria possível.

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RESUMO

RAUBER, Camila de Oliveira. A unidade das virtudes no Protágoras de Platão.

Rio de Janeiro, 2018. Dissertação (Mestrado em Filosofia (Lógica e Metafísica)) –

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de

Janeiro, 2018

Esta dissertação tem por objetivo defender uma interpretação da unidade das

virtudes tal como ela aparece no Protágoras de Platão. Esta interpretação difere das duas

leituras comumente aceitas da questão: a tese da identidade e a tese da bi-condionalidade

/ equivalência. Nossa proposta é pensar que Platão trata da unidade da virtude como um

problema que envolve a relação entre o todo e suas partes. Nesse sentido, o todo e as

partes não serão idênticos entre si, nem as partes entre elas mesmas. Ao invés, elas

formariam uma espécie de estrutura unitária, onde cada parte ocupa uma função

específica no todo.

PALAVRAS-CHAVE: Virtude. Todo. Partes. Conhecimento. Platão. Protágoras.

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ABSTRACT

RAUBER, Camila de Oliveira. A unidade das virtudes no Protágoras de Platão.

Rio de Janeiro, 2018. Dissertação (Mestrado em Filosofia (Lógica e Metafísica)) –

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de

Janeiro, 2018

This dissertation aims to argue for an interpretation of the unity of virtues, as it

appears in Plato’s Protagoras. This interpretation differs from the two commonly

accepted readings of the question: the identity thesis and the bicondicionality /

equivalence thesis. Our proposal is to think that Plato deal with the unity of virtues as a

problem that involves the relation between the whole and its parts. In this sense, neither

the whole and the parts will be identical with each other, nor the parts between

themselves. They would rather form a kind of unitary structure, in which each part

occupies a specific function in the whole.

KEYWORDS: Virtue. Whole. Parts. Knowledge. Plato. Protagoras.

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Sumário

1. Introdução ........................................................................................................... 7

2. Estado da Questão ............................................................................................. 15

2.1. A unidade da virtude a partir da tese da bi-condicionalidade .......................... 15

2.1.1. Releitura das teses da unidade e da semelhança a partir da tese da bi-

condicionalidade ....................................................................................................... 19

2.1.2 Vlastos e a Predicação Paulina ........................................................................ 22

2.2. A unidade da virtude como Tese da identidade ................................................. 24

2.2.1 Tendências versus “estados de alma” ou “força-motriz” ................................. 26

2.2.2 Aplicação da tese da força-motriz ao Protágoras ............................................ 28

2.2.3 Conhecimento como dynamis .......................................................................... 31

3. Hipótese ............................................................................................................... 36

4. Os modelos do Ouro e da Face .......................................................................... 37

4.1 O modelo do ouro .............................................................................................. 39

4.2 O modelo da face ............................................................................................... 42

4.3 Platão e a noção de ὅλον ................................................................................... 43

4.4 O modelo da face como uma estrutura ἕν-ὅλον ................................................ 49

4.5 A contradição de Protágoras e a inserção de σοφία como parte da virtude ....... 52

5. Σοφία como virtude-ὅλον: análise dos argumentos da Coragem e da

Temperança ............................................................................................................ 58

5.1 Σοφία e Coragem .............................................................................................. 58

5.2 Σοφία e Temperança ......................................................................................... 67

6. Análise dos argumentos da Justiça e Piedade e da Justiça e Temperança .... 73

6.1 Justiça e Piedade ................................................................................................ 73

6.2 Justiça e Temperança ......................................................................................... 76

7. A relação entre as partes e a relação entre as partes e o todo da virtude ..... 79

8. O argumento da negação da acrasia ................................................................. 83

8.1 Descrição do argumento sobre a força da ἐπιστήμη e a negação da acrasia ....... 84

8.2 A relação entre virtude ἕν-ὅλον e conhecimento (ἐπιστήμη ) ............................ 87

9. Conclusão ............................................................................................................ 91

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................... 95

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO · 1 ARISTÓTELES, Metafísica, B 1, 995a 24-995b. Tradução: Giovanni Reale. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 85. 2 PLATÃO, Protágoras,

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1. Introdução

“ἀνάγκη πρὸς τὴν ἐπιζητουμένην ἐπιστήμην ἐπελθεῖν ἡμᾶς πρῶτον περὶ ὧν

ἀπορῆσαι δεῖ πρῶτον (...).ἔστι δὲ τοῖς εὐπορῆσαι βουλομένοις προὔργου τὸ

διαπορῆσαι καλῶς: ἡ γὰρ ὕστερον εὐπορία λύσις τῶν πρότερον

ἀπορουμένων ἐστί, λύειν δ᾽ οὐκ ἔστιν ἀγνοοῦντας τὸν δεσμόν, ἀλλ᾽ ἡ τῆς

διανοίας ἀπορία δηλοῖ τοῦτο περὶ τοῦ πράγματος: ᾗ γὰρ ἀπορεῖ, ταύτῃ

παραπλήσιον πέπονθε τοῖς δεδεμένοις: ἀδύνατον γὰρ ἀμφοτέρως προελθεῖν

εἰς τὸ πρόσθεν. διὸ δεῖ τὰς δυσχερείας τεθεωρηκέναι πάσας πρότερον,

τούτων τε χάριν καὶ διὰ τὸ τοὺς ζητοῦντας ἄνευ τοῦ διαπορῆσαι πρῶτον

ὁμοίους εἶναι τοῖς ποῖ δεῖ βαδίζειν ἀγνοοῦσι, καὶ πρὸς τούτοις οὐδ᾽ εἴ ποτε

τὸ ζητούμενον εὕρηκεν ἢ μὴ γιγνώσκειν:τὸ γὰρ τέλος τούτῳ μὲν οὐ δῆλον

τῷ δὲ προηπορηκότι δῆλον.”

“Com relação à ciência que estamos procurando, é necessário examinar os

problemas, dos quais, em primeiro lugar, deve-se perceber a dificuldade,

(...). Ora, para quem pretende resolver bem um problema, é útil perceber

adequadamente a dificuldade que ele comporta: a boa solução final consiste

na resolução das dificuldades previamente estabelecidas. Quem ignora um

nó não poderá desatá-lo; e a dificuldade encontrada pelo pensamento

manifesta a dificuldade existente na coisa. De fato, enquanto duvidamos,

estamos numa condição semelhante a quem está amarrado; em ambos os

casos, é impossível ir adiante. Por isso é preciso que, primeiro, sejam

examinadas todas as dificuldades tanto por estas razões, como porque os

que pesquisam sem primeiro ter examinado as dificuldades assemelham-se

aos que não sabem aonde devem ir. Ademais estes não são capazes de saber

se encontraram ou não o que buscam; pois não lhes é claro o fim que devem

alcançar, enquanto isso é claro para quem antes compreendeu as

dificuldades”1.

O contexto dialógico do Protágoras de Platão, elaborado a partir de diversas nuances,

tem como ponto chave aquilo que veio a ser conhecido como a unidade das virtudes. Após

Sócrates concordar em contar o relato de seu encontro com Protágoras a um amigo anônimo2,

o diálogo abre com uma conversa entre Sócrates3 e Hipócrates, um jovem desejoso de ser

aluno de Protágoras. Devido à sua falta de coragem, Hipócrates pede a Sócrates que este

intervenha a seu favor junto a Protágoras para saber se o sofista aceita Hipócrates como

aluno4. O núcleo da conversa inicial entre essas duas personagens é expresso na seguinte

passagem:

1 ARISTÓTELES, Metafísica, B 1, 995a 24-995b. Tradução: Giovanni Reale. São Paulo: Edições Loyola,

2005, p. 85. 2 PLATÃO, Protágoras, 310a. 3 A presente dissertação não se compromete em apresentar o Sócrates histórico, mas apenas Sócrates como

personagem de Platão. 4 PLATÃO, Protágoras, 310a-314c.

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO · 1 ARISTÓTELES, Metafísica, B 1, 995a 24-995b. Tradução: Giovanni Reale. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 85. 2 PLATÃO, Protágoras,

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SOC. – ἆρ᾽ οὖν, ὦ Ἱππόκρατες, ὁ σοφιστὴς τυγχάνει ὢν ἔμπορός τις ἢ

κάπηλος τῶν ἀγωγίμων, ἀφ᾽ ὧν ψυχὴ τρέφεται; φαίνεται γὰρ ἔμοιγε

τοιοῦτός τις.

HIP. – τρέφεται δέ, ὦ Σώκρατες, ψυχὴ τίνι;

SOC. – μαθήμασιν δήπου, ἦν δ᾽ ἐγώ. καὶ ὅπως γε μή, ὦ ἑταῖρε, ὁ σοφιστὴς

ἐπαινῶν ἃ πωλεῖ ἐξαπατήσῃ ἡμᾶς, ὥσπερ οἱ περὶ τὴν τοῦ σώματος τροφήν,

ὁ ἔμπορός τε καὶ κάπηλος. καὶ γὰρ οὗτοί που ὧν ἄγουσιν ἀγωγίμων οὔτε

αὐτοὶ ἴσασιν ὅτι χρηστὸν ἢ πονηρὸν περὶ τὸ σῶμα, ἐπαινοῦσιν δὲ πάντα

πωλοῦντες, οὔτε οἱ ὠνούμενοι παρ᾽ αὐτῶν, ἐὰν μή τις τύχῃ γυμναστικὸς ἢ

ἰατρὸς ὤν. οὕτω δὲ καὶ οἱ τὰ μαθήματα περιάγοντες κατὰ τὰς πόλεις καὶ

πωλοῦντες καὶ καπηλεύοντες τῷ ἀεὶ ἐπιθυμοῦντι ἐπαινοῦσιν μὲν πάντα ἃ

πωλοῦσιν, τάχα δ᾽ ἄν τινες, ὦ ἄριστε, καὶ τούτων ἀγνοοῖεν ὧν πωλοῦσιν

ὅτι χρηστὸν ἢ πονηρὸν πρὸς τὴν ψυχήν: ὡς δ᾽ αὕτως καὶ οἱ ὠνούμενοι παρ᾽

αὐτῶν, ἐὰν μή τις τύχῃ περὶ τὴν ψυχὴν αὖ ἰατρικὸς ὤν. εἰ μὲν οὖν σὺ

τυγχάνεις ἐπιστήμων τούτων τί χρηστὸν καὶ πονηρόν, ἀσφαλές σοι

ὠνεῖσθαι μαθήματα καὶ παρὰ Πρωταγόρου καὶ παρ᾽ ἄλλου ὁτουοῦν: εἰ δὲ

μή, ὅρα, ὦ μακάριε, μὴ περὶ τοῖς φιλτάτοις κυβεύῃς τε καὶ κινδυνεύῃς. καὶ

γὰρ δὴ καὶ πολὺ μείζων κίνδυνος ἐν τῇ τῶν μαθημάτων ὠνῇ ἢ ἐν τῇ τῶν

σιτίων. σιτία μὲν γὰρ καὶ ποτὰ πριάμενον παρὰ τοῦ καπήλου καὶ ἐμπόρου

ἔξεστιν ἐν ἄλλοις ἀγγείοις ἀποφέρειν, καὶ πρὶν δέξασθαι αὐτὰ εἰς τὸ σῶμα

πιόντα ἢ φαγόντα, καταθέμενον οἴκαδε ἔξεστιν συμβουλεύσασθαι,

παρακαλέσαντα τὸν ἐπαΐοντα, ὅτι τε ἐδεστέον ἢ ποτέον καὶ ὅτι μή, καὶ

ὁπόσον καὶ ὁπότε: ὥστε ἐν τῇ ὠνῇ οὐ μέγας ὁ κίνδυνος. μαθήματα δὲ οὐκ

ἔστιν ἐν ἄλλῳ ἀγγείῳ ἀπενεγκεῖν, ἀλλ᾽ ἀνάγκη καταθέντα τὴν τιμὴν τὸ

μάθημα ἐν αὐτῇ τῇ ψυχῇ λαβόντα καὶ μαθόντα ἀπιέναι ἢ βεβλαμμένον ἢ

ὠφελημένον.

SOC. – Porventura, Hipócrates, o sofista não seria certo negociante e

vendedor de mercadorias, com as quais a alma se nutre? Pois, para mim, é

claro que ele é algo desse tipo.

HIP. – Mas a alma, Sócrates, nutre-se de quê?

SOC. – De ensinamentos, decerto – respondi. E cuidado, meu amigo, para

que o sofista, ao elogiar o que vende, não nos engane, assim como fazem

as pessoas envolvidas com a nutrição do corpo, o negociante e o vendedor.

Com efeito, das mercadorias que portam, eles próprios não sabem o que é

útil ou nocivo para o corpo, mas elogiam todas elas quando estão à venda;

tampouco sabem disso seus clientes, a não ser que seja ele casualmente um

professor de ginástica ou um médico. Da mesma forma, aqueles que

rondam pelas cidades negociando e vendendo ensinamentos a todos que

almejam por eles, elogiam tudo quanto vendem, mas, talvez, haja também

em meio a eles, excelente homem, quem ignore, dentre as coisas que vende,

o que é útil ou nocivo para a alma; e o mesmo sucede aos seus clientes, a

não ser que seja ele eventualmente um médico da alma. Se você, por acaso,

conhece o que é útil ou nocivo dentre os ensinamentos à venda, então é

seguro que os compre de Protágoras ou de quem quer que seja; caso

contrário, homem afortunado, veja se não está lançando à sorte e pondo em

risco o que lhe há de mais caro! Com efeito, há um risco muito maior na

compra de ensinamentos do que na de alimentos. Pois, quando se compra

comidas e bebidas do vendedor ou negociante, é possível transportá-las em

recipientes; antes de comer ou beber e então acomodá-las no corpo, pode-

se estocá-las em casa e, convidando quem conhece o assunto, aconselhar-

se com ele sobre o que se deve ou não comer e beber, em que quantidade e

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em que ocasião. Por conseguinte, não há grande risco nessa compra.

Todavia, no caso dos ensinamentos, não é possível transportá-los em outro

recipiente, mas é necessário, uma vez pago o preço, que se carregue na alma

o que se aprende e se saia daí ou prejudicada ou beneficiada.5

O interessante nesta passagem é notar a ideia central desenvolvida na conversa entre

Hipócrates e Sócrates, a saber, que existe um certo perigo em querer tomar aulas com um

sofista. O perigo surge devido a pelo menos três fatores: o primeiro, ao fato de o próprio

Hipócrates não saber se, de fato, Protágoras é especialista naquilo que diz ensinar; segundo,

a aparência de sabedoria que envolve a imagem de Protágoras, bem como o tipo de

mercadoria – usada como analogia ao ensino do sofista - que ele pretende fornecer; e, por

fim, o maior de todos os perigos, que é Hipócrates vir a ter sua alma6 prejudicada por um mal

ensino, o que afetaria não somente seu intelecto, mas também seu caráter e suas futuras ações.

Lopes7 destaca que o propósito de Sócrates nessa passagem, e na sequência do

diálogo, é o de dissuadir Hipócrates a não querer tomar aulas com Protágoras. Nesse sentido,

a função do argumento sobre a unidade das virtudes, que surge mais adiante, é testar

Protágoras, de modo a expor o tipo de mercadoria que o sofista se propõe vender e, acima de

tudo, se ele, de fato, é um especialista no que se propõe a ensinar. No decorrer de sua

elaboração sobre o que consiste a unidade das virtudes, a incoerência de Protágoras

funcionará como motivo para “desencantar o fascínio de Hipócrates pelo sofista”8 e, assim,

fazê-lo desistir de ter aulas com o sofista. Sócrates, então, empreende uma investigação

comprometida em desvendar que tipo de coisa Protágoras diz ensinar e se, de fato, ele

conhece a matéria do seu ensino9.

Assim, Sócrates e Hipócrates se dirigem até a casa de Cálias, a maior e mais “suntuosa”

casa da cidade, segundo Hípias10. E em 314d, após baterem na porta de Cálias, se deparam

com o porteiro, um eunuco cuja reação ao vê-los denuncia mais uma nuance presente no

diálogo, a saber, a de confundir a figura de Sócrates com a de um sofista. Segundo Lopes11,

5 PLATÃO, Protágoras, 313c-314b. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017. p.

387-389. 6 De acordo com Taylor, “ ‘alma’ tem um sentido menos amplo que o Grego psuchē, que significa o eu em seus

aspectos não corpóreos, abrangendo intelecto, vontade, desejos e emoções.”.(TAYLOR, 1991, p. 66). 7 LOPES, 2017, p. 105, 151-152. 8 Ibid., p. 152. 9 PLATÃO, Protágoras, 318a. 10 PLATÃO, Protágoras, 337d. 11 LOPES, D. R. N. Protágoras de Platão, São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p. 29,36.

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10

o que se tem aqui é não só uma crítica a esta “visão comum” de Sócrates como um sofista,

mas, também, uma tentativa por parte de Platão em distinguir o sofista do filósofo.

Sócrates e Hipócrates, portanto, são inseridos nesse cenário cuja casa está repleta de

pessoas ilustres. De um lado, observam Protágoras acompanhado por Párolo, Cármides,

Xantipo, Filípide, Antímines, além do próprio Cálias. E, do outro lado da casa, Hípias, Fedro

e os demais estrangeiros, conversando sobre fenômenos naturais e astronômicos12. Quando

Sócrates, enfim, consegue se dirigir a Protágoras, questiona-o acerca do tipo de mercadoria

que ele propõe vender. Sócrates obtém dele a informação de que o tema do seu ensino

consiste na arte política e na boa formação dos homens como cidadãos (“δοκεῖς γάρ μοι

λέγειν τὴν πολιτικὴν τέχνην καὶ ὑπισχνεῖσθαι ποιεῖν ἄνδρας ἀγαθοὺς πολίτας.13”).

Desse modo, Protágoras inicia um longo discurso para explicar de que modo ele pode ser

considerado o mais capacitado para o ensino dos temas acima, que podem ser resumidos no

ensino de uma única coisa: virtude14. Contando uma versão do mito de Prometeu, Zeus – ele

diz – após observar que os homens careciam da arte política15 e que isto os impossibilitava

de conviverem uns com os outros, decide enviar aos homens a justiça (δίκη) e o pudor

(αἰδώς). Eles foram distribuídos de modo a não serem exclusivos a único homem – como

ocorre com o médico que, em sendo um, tem que tratar de muitos16. A distribuição entre

todos permite que mantenham a sobrevivência da cidade17.

Se, por um lado, o mito dá a entender que Zeus, ao distribuir tais atributos para todos

os homens, dá a todos, igualmente, condições de deliberarem acerca de assuntos políticos e

internos, por outro lado, Protágoras sustentará a seguinte afirmação: pelo fato destes atributos

não serem algo intrínseco aos seres humanos, devem ser adquiridos pelo ensino18. Protágoras

demonstra, a partir do argumento da punição em 323d-324c como esses atributos são

ensináveis. Ele explica que, ainda que todos os seres humanos possam ter acesso a tais

atributos, existem pessoas que não os têm. Por isso, sendo esses incapazes de deliberar acerca

12 PLATÃO, Protágoras, 314e-315c. 13 PLATÃO, Protágoras, 319a. 14 PLATÃO, Protágoras, 319e-320a. 15 PLATÃO, Protágoras, 322b. 16 PLATÃO, Protágoras, 322c. 17 PLATÃO, Protágoras, 322d. 18 PLATÃO, Protágoras, 323c.

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de assuntos políticos e de manter um bom convívio com seus concidadãos, a cidade constata

a necessidade de possuir uma pessoa qualificada e capacitada para ensinar tais atributos19.

Segundo Protágoras, essa constatação ocorre no seguinte caso: alguns homens, que

possuem, por exemplo, um caráter contrário à virtude – e, por conseguinte, acabam por

praticar ações não virtuosas – devem ser submetidos a repreensões em forma de castigo, cuja

finalidade será a de ensiná-los a serem virtuosos. Para Protágoras, isto constitui uma

evidência de que a virtude pode ser ensinada por meio da coação de tais homens pelo castigo

tornando-os, assim, virtuosos20.

Protágoras está lidando com dois tipos de raciocínio: 1) Os homens apenas

conseguem conviver em grupo se possuírem a virtude (justiça e pudor). Se os atenienses, por

exemplo, conseguem conviver em grupo, isto prova que eles possuem virtude. 2) Todavia,

existem alguns homens que agem de modo contrário à virtude e estes devem ser castigados.

Se todo castigo é uma forma de tornar alguém virtuoso, a virtude pode ser considerada como

algo que pode ser aprendido por outrem. A ideia que perpassa esses dois raciocínios é que a

virtude não é algo que alguém naturalmente tem, mas que pode ser adquirida. Tendo em vista

que, apesar de ser algo disponível a todos os homens, algumas pessoas não a possuem, isso

leva a possibilidade de pensar que, segundo Protágoras, a virtude pode ser considerada um

objeto de ensino.

Apesar de existir certo conflito entre o mito de Protágoras e o ensino da virtude – já

que, segundo ele, os atributos seriam distribuídos não através de um único homem, tal como

o médico que curaria muitos, mas estaria acessível a todas as pessoas – Protágoras, em 324e-

325a, amplia a noção de virtude ao dizer que uma cidade, para que possa subsistir através da

convivência conjunta dos homens entre si, necessita da presença não só da justiça – denotada

não mais pela palavra ‘δική’, mas por ‘δικαιοσύνη’21 – mas também necessita da temperança

19 PLATÃO, Protágoras, 323c-324c. 20 PLATÃO, Protágoras, 323e-324b. 21 Sobre a distinção δίκη/ δικαιοσύνη, vemos que, na maior parte do discurso inicial de Protágoras, até este

ponto, em 324e-325a, a ‘justiça’ aparece como ‘δίκη’ e tal termo, de acordo com Havelock, toma como

referência aquilo que é externo ao indivíduo, uma vez que sua função é a de ser aplicada às “regras do poder

político e seu exercício” caracterizando, assim, uma virtude política (HAVELOCK, 1978, p. 311). Porém

Protágoras não parece fazer tal distinção ao utilizar um termo ou outro. Quando Sócrates coloca o argumento

da unidade da virtude, a referência à ‘justiça’ muda, pois Sócrates aplica o outro termo que Protágoras vai adotar

no final da sua explanação, a saber, ‘δικαιοσύνη’. Nesse sentido, a virtude passa a “identificar algo pessoal”,

isto é, a virtude passa a ser compreendida como um aspecto moral na alma do indivíduo. Logo, a referência

para a justiça, principalmente a partir da passagem em 329c, é essa justiça entendida como um aspecto moral e

interno do indivíduo. (HAVELOCK, 1978 p. 311-312).

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(σωφροσύνη) e da piedade (τὸ ὅσιον), as quais, nas palavras de Protágoras, consistem numa

única coisa: virtude (ἀρετή). A partir do momento que Protágoras relaciona a virtude com

um conjunto de atributos antes não mencionados, afirmando serem eles uma única coisa, a

virtude, Sócrates então avança sobre a questão da possibilidade de alguém ensinar a virtude,

passando a analisar de que modo Protágoras está concebendo essa noção de virtude como

unidade. A questão é abordada em dois momentos distintos do diálogo:

ἔλεγες γὰρ ὅτι ὁ Ζεὺς τὴν δικαιοσύνην καὶ τὴν αἰδῶ πέμψειε τοῖς

ἀνθρώποις, καὶ αὖ πολλαχοῦ ἐν τοῖς λόγοις ἐλέγετο ὑπὸ σοῦ ἡ δικαιοσύνη

καὶ σωφροσύνη καὶ ὁσιότης καὶ πάντα ταῦτα ὡς ἕν τι εἴη συλλήβδην,

ἀρετή: ταῦτ᾽ οὖν αὐτὰ δίελθέ μοι ἀκριβῶς τῷ λόγῳ, πότερον ἓν μέν τί ἐστιν

ἡ ἀρετή, μόρια δὲ αὐτῆς ἐστιν ἡ δικαιοσύνη καὶ σωφροσύνη καὶ ὁσιότης,

ἢ ταῦτ᾽ ἐστὶν ἃ νυνδὴ ἐγὼ ἔλεγον πάντα ὀνόματα τοῦ αὐτοῦ ἑνὸς ὄντος. τοῦτ᾽ ἐστὶν ὃ ἔτι ἐπιποθῶ.22

Você dizia que Zeus havia enviado aos homens a justiça e o pudor, e, em

vários momentos de sua fala, por sua vez, você se referia à justiça,

sensatez23, piedade e todas elas como se fossem, em suma, uma única coisa:

virtude. Explique-me então este ponto com um argumento preciso: se a

virtude é uma única coisa e são partes dela a justiça, a sensatez e a piedade;

ou se essas coisas, às quais há pouco me referia, são todas elas nomes de

uma única e mesma coisa. Eis o que ainda desejo.24

A recolocação da questão surge se encontra em 349b:

ἦν δέ, ὡς ἐγᾦμαι, τὸ ἐρώτημα τόδε: σοφία καὶ σωφροσύνη καὶ ἀνδρεία καὶ

δικαιοσύνη καὶ ὁσιότης, πότερον ταῦτα, πέντε ὄντα ὀνόματα, ἐπὶ ἑνὶ

πράγματί ἐστιν, ἢ ἑκάστῳ τῶν ὀνομάτων τούτων ὑπόκειταί τις ἴδιος οὐσία

καὶ πρᾶγμα ἔχον ἑαυτοῦ δύναμιν ἕκαστον, οὐκ ὂν οἷον τὸ ἕτερον αὐτῶν τὸ

ἕτερον;

A questão era a seguinte, creio eu: se sabedoria, temperança, coragem,

justiça e piedade, embora sejam cinco nomes, concernem a uma única

coisa, ou, se para cada um desses nomes, há uma substância particular, ou

seja, uma coisa dotada de uma capacidade que lhe é própria, sendo cada

uma delas diferente da outra.25

22 PLATÃO, Protágoras, 329c-d. 23 Nesse ponto da tradução é importante ressalvar que, diferente de Lopes, iremos traduzir “σωφροσύνη” por

“temperança” e utilizar esta palavra como referência ao longo deste trabalho, e não a palavra “sensatez”, como

faz o autor. 24 PLATÃO, Protágoras, 329 c-d. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p. 437-

439. 25 PLATÃO, Protágoras, 349b. Tradução: Daniel R.N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p. 497.

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Admitindo, portanto, que a virtude pode ser ensinada – afirmação esta que será retomada

e analisada por Sócrates em 361a-c –, o próximo passo consiste em evidenciar como

Protágoras, de fato, entende a relação entre virtude, de um lado, e justiça, piedade e

temperança, de outro lado. Ou ainda, em que sentido estes objetos são denominados ‘virtude’:

no sentido em que a virtude é uma unidade e os demais objetos são como partes dessa

unidade, ou no sentido de que todas são apenas nomes distintos para uma mesma coisa, não

havendo distinção entre elas? Assim, a virtude é colocada em outra perspectiva, que não se

dissocia da questão sobre ela poder ser ensinada, mas que apresenta um outro caminho para

se responder a essa pergunta. Trata-se de mostrar, por outra vertente, se Protágoras, que julga

ser o melhor professor em matéria de virtude26, conhece, de fato, este objeto.

Recordando o contexto do Mênon27, que abre com a indagação sobre a possibilidade de

a virtude ser ensinada, Sócrates, de um modo semelhante ao que faz naquele diálogo,

redireciona a pergunta sobre o ensino da virtude no Protágoras para um ponto mais

fundamental. À diferença de Mênon, no entanto, onde esse ponto consistia na busca por uma

definição da virtude, o Protágoras redireciona a questão para a relação da virtude com outros

objetos também conhecidos como virtudes.

Nesse contexto, a questão elaborada por Sócrates acerca da unidade das virtudes coloca

o Protágoras em um terreno comum a outros diálogos, que consiste no tópico da unidade e

da multiplicidade. Segundo Centrone, Platão, ao abordar o tema que ficou conhecido como

‘unidade das virtudes’, estabelece uma “relação dialética entre unidade e multiplicidade,

identidade e diversidade28”. Isto pode ser observado a partir das perguntas que a própria

abordagem da questão da unidade suscita, dentre elas:

1. Se cada parte corresponde a um objeto diferente do outro, como eles se relacionam

entre si?

2. Se, por outro lado, essas virtudes forem idênticas, qual a razão da distinção entre os

nomes? Seriam idênticas em todos os aspectos?

26 PLATÃO, Protágoras, 328b. 27 PLATÃO, Mênon, 71d. 28 CENTRONE, Bruno. “A virtude platônica como ὅλον das Leis ao Protágoras”. In: Migliori, Maurizio (org.)

e Valditara, Linda M. Napolitano (org.). Plato Ethicus: A filosofia é vida. São Paulo: Edições Loyola, 2015. p.

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3. Se elas não são idênticas, o que explica o fato de elas serem também denominadas

como ‘virtude’?

4. Sendo idênticas, por que teríamos a impressão de que uma ação justa não é idêntica

a uma ação corajosa?

Existem duas interpretações principais que lidam de forma distinta com a pergunta de

Sócrates:

1. Tese da Bi-condicionalidade: Segundo Vlastos29, precursor desta posição, Sócrates

estaria se posicionando a favor de uma abordagem em que as virtudes seriam tomadas

como distintas umas das outras. Apesar de, na retomada da questão em 349b, Sócrates

parecer comprometido com uma identificação, e não distinção, das virtudes entre si,

Vlastos elabora outro modo em que esta pode vir a ser compreendida e assim reforça

a alegação de sua distinção. A explicação seria mediante uma noção de co-implicação

entre elas, em que a virtude seria uma espécie de classe co-extensiva, uma vez que

todas elas seriam aplicadas a um mesmo indivíduo. Assim, quando Sócrates faz

referência à semelhança ou identidade entre as virtudes, não está identificando as

virtudes entre si, como sendo iguais, mas apontando para uma classe co-extensiva

aplicada a um mesmo indivíduo, o qual, por sua vez, teria todas as virtudes.

2. Tese da Identidade: Esta posição, que tem Penner30 como principal precursor, assume,

diferentemente de Vlastos, que Sócrates, ao falar sobre identidade entre as virtudes,

o faz no sentido forte do termo ‘identidade’, ou seja, no sentido em que as virtudes

são todas iguais. No caso de Penner, a explicação para essa identificação das virtudes

é que Sócrates estaria se referindo a unidade da virtude como sendo um mesmo

“estado de alma” ou “força-motriz”, que faria as virtudes idênticas entre si, na medida

em que elas possuiriam a mesma justificação causal e, por isso, seriam todas

denominadas como ‘virtude’. Hartman31, por sua vez, irá tomar um caminho diverso

29 VLASTOS, 1971, p. 221-265. 30 PENNER, 1973 p. 35-68. 31 HARTMAN, Margareth. “How the Inadequate Models for Virtue in the “Protagoras” Illuminate

Socrates’view of the Unity of the Virtues”. Apeiron. Vol. 18, No. 2, p. 110-117, 1984.

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ao de Penner ao afirmar que a identificação das virtudes entre si não se justificaria a

partir de uma explicação baseada no estado psicológico ou força-motriz do indivíduo,

mas, antes, no entendimento de que a virtude, tomada como conhecimento, seria uma

única δύναμις, o que permitiria afirmar a virtude como unidade.

Segue-se a exposição de ambas as interpretações.

2. Estado da Questão

2.1. A Unidade da Virtude a partir da Tese da Bi-condicionalidade

Em seu artigo intitulado The Unity of the Virtues in the Protágoras32, Vlastos destaca

que Sócrates estaria “empregando três fórmulas distintas”33 para a compreensão da teoria da

unidade da virtude. Estas fórmulas seriam a tese da unidade, a tese da similaridade e a tese

da bi-condicionalidade. Tais teses, contudo, estariam sendo percebidas por Protágoras não

como etapas distintas, mas como “momentos sucessivos” de uma “única doutrina”.

A começar pela tese da unidade, Sócrates, ao optar pela posição de que as virtudes se

aplicam a uma mesma coisa, estaria definindo-a em 349b como sendo a da identidade das

virtudes entre si. Isso parece contradizer o fato de que, em 329c-d, Sócrates, tal como

Protágoras, estaria admitindo que se trata de uma questão entre o todo e suas partes

distintas34. Isso porque, em geral, assumir a posição expressa em 349b levaria ao

entendimento de que se trata de uma tese da unidade em, ao menos, dois sentidos: a) “as

cinco virtudes são a mesma virtude”, e (ii) seus nomes são sinônimos”35.

Vlastos observa que ambas as noções não correspondem, de fato, à real posição de

Sócrates. As razões seriam estas: se o tratamento da questão diz respeito à identidade entre

os termos, isso significa dizer, por exemplo, que “o definiens de Coragem”36 (1971, p. 227)

32 VLASTOS, Gregory. “The Unity of the Virtues in the Protagoras”. Platonic Studies. Princeton: Princeton

University Press, 1971, p. 221-265. 33 Ibid., p. 224. 34 Ibid., p. 226. 35 Ibid., p. 227, tradução nossa. 36 Observa-se que o uso de maiúsculas para as virtudes ocorre somente nas citações do autor na medida em que

Vlastos as utilizar. O mesmo não será feito nesta dissertação.

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pode ser usado como padrão para os outros termos, tais como piedade, justiça e demais

virtudes; por outro lado, se alguém afirma que os cinco termos são sinônimos, “isto

implicaria que qualquer destas cinco palavras poderiam ser livremente intercambiáveis em

qualquer sentença (...) sem alterar seu sentido ou verdade.”37

Com respeito à primeira implicação decorrente da identidade entre as virtudes, Vlastos

diz não poder afirmar que elas são idênticas umas às outras. Para sustentar esse ponto de

vista, ele se utiliza dos argumentos encontrados nos passos 5d e 6c do Êutifron. Segundo tais

passagens Sócrates, ao falar sobre a definição de ‘piedade’, vai dizer que esta se trata de

“uma única ἰδέα38 (...) auto-identificável em todas as ações pias”, funcionando como padrão

para identificar um ato como sendo pio ou não39. Nesse sentido, não seria possível definir a

piedade ou as ações como sendo pias por meio de outra virtude, como a coragem, uma vez

que esta última funcionaria como padrão apenas para questões concernentes a ações

corajosas ou covardes.

A segunda implicação recai sobre a relação de sinonímia entre as virtudes. Por exemplo,

em certas frases, tais como as que aparecem no Êutifron: i) “A piedade é esta forma em

virtude da qual todas as ações pias são pias” 40, e ii) “A piedade é esta parte da justiça que

envolve o serviço aos deuses” 41, a substituição de ‘piedade’ por ‘coragem’ e de ‘piedade’

por ‘justiça’, nos respectivos casos, teria estas consequências: na primeira frase, haveria uma

falsificação, dado que a ἰδέα seria responsável por uma determinada característica e ação no

indivíduo, e não outra; e, na segunda frase, esta perderia sentido, pois, sendo a piedade uma

parte, e não a totalidade, da justiça, o definiens de uma não serviria para a outra.

A tese da semelhança surge como um segundo modo de interpretar a questão. Tendo

como referência as passagens 329d e 330a-b, em que Sócrates diz serem as virtudes

semelhantes, Vlastos observa que um dos problemas para esta interpretação é que Sócrates

não diz em que sentido as virtudes seriam semelhantes. Segundo Vlastos, Sócrates oferece

uma analogia cuja imagem não esclarece o que ele estaria entendendo por ‘semelhança’.

37 VLASTOS, 1971, p. 227. 38 De acordo com Chantraine, o termo ‘ἰδέα’ surge como uma “derivação nominal” do verbo ἰδεῖν, do aoristo

do verbo ὁράω que significa “ver como sensação percebida”. Quando passamos para o termo no substantivo, a

palavra ganha outras conotações, como no contexto platônico que passa a conceber ἰδέα/, juntamente com εἶδος,

como a algo com referência a objetos metafísicos. (CHANTRAINE, 1968, p. 455.). 39VLASTOS, 1971, p. 227. 40 PLATÃO, Êutifron, 6d: “ἀλλ᾽ ἐκεῖνο αὐτὸ τὸ εἶδος ᾧ πάντα τὰ ὅσια ὅσιά ἐστιν”. 41 PLATÃO, Êutifron, 12e: “τὸ μέρος τοῦ δικαίου εἶναι εὐσεβές τε καὶ ὅσιον, τὸ περὶ τὴν τῶν θεῶν θεραπείαν”.

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Essa analogia aparece em 329d, que compara as virtudes e suas partes com a barra de ouro

e suas partes, as quais não difeririam uma das outras, senão em “grandeza e pequenez” 42 (ἢ

μεγέθει καὶ σμικρότητι).

Se a semelhança está sendo entendida no mesmo sentido em que as partes do ouro, cujas

partes apenas se diferem quanto ao tamanho, Sócrates estaria dizendo que “as virtudes são

semelhantes no que diz respeito a todas as suas qualidades”43, ou seja, “que elas são

disposições qualitativamente indistinguíveis”44. Esta afirmação não seria diferente daquela

proposta pela tese da unidade, pois ambas acabam por eliminar a distinção entre as virtudes.

Uma das consequências é que isto impossibilita “classificar ações particulares como

instâncias dessa ou daquela virtude”45. Além disso, a busca por definições de cada virtude,

que ocorre em diferentes diálogos, perde o sentido, pois não haveria nenhum elemento

qualitativo para distingui-las umas das outras. Um outro ponto que Vlastos observa é que,

ainda que haja situações em que mais de uma virtude se faça presente, “as diferentes

disposições morais são expressamente reconhecíveis”46, ou seja, não se pode deixar de

perceber a distinção qualitativa entre elas47.

Vlastos, por sua vez, visa solucionar os problemas derivados das duas teses anteriores

através do que ele chama de tese da bi-condicionalidade. A tese se baseia, sobretudo, na

passagem 329e, em que Sócrates, diferente de Protágoras, assume a seguinte posição: se um

indivíduo participa de uma parte da virtude, ele necessariamente deve participar de todas as

demais. Vlastos expressa essa afirmação por meio de duas fórmulas equivalentes:

(1) N [(x) (Cx↔Jx↔Px↔Tx↔Wx)]48

42 Tradução nossa. 43 VLASTOS, 1971, p. 330. 44 VLASTOS, 1971, p. 330. 45 VLASTOS, 1971, p. 330. 46 VLASTOS, 1971, p. 331. 47 De acordo com Taylor, Vlastos estaria afirmando que Platão rejeita ambas as teses, a unidade e a semelhança,

porque elas implicariam “que os nomes das virtudes são sinônimos”. Contudo, Taylor observa que se as duas

são as mesmas, designadas por nomes distintos, não existe problema em considerar que o definiens de uma cabe

na outra. Ainda em relação aos casos em que os nomes não são sinônimos, ele vai dizer que “é perfeitamente

apropriado usar o definiens de a para determinar se um ato recai sob uma descrição apropriada para b.” Além

disso, Vlastos não considera a possibilidade de pensar a tese da unidade como uma tese que descreva a virtude

como um mesmo estado de caráter – posição esta defendida por Taylor. (TAYLOR, 1984, p. 104-105). 48 VLASTOS, 1971, p. 232.

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(2) N (C ≡ J ≡ P ≡ T ≡ W).49

Na primeira fórmula, a variável x está sendo aplicada a pessoas, e não a ações, podendo

ser lida do seguinte modo: “Necessariamente, para todo x, se x é corajoso então x é justo, se

x é justo x é pio, se x é pio x é temperante, se x é temperante x é sábio”50. Sendo esta aplicada

a pessoas, e não a ações, ela não tem – como as teses anteriores – por pressuposto dizer que,

quando uma pessoa realiza determinada ação, esta ação, necessariamente, deve ser

caracterizada por todas as virtudes. De modo contrário, o que a fórmula diz é que um

indivíduo possui todas as virtudes, e suas ações podem ser caracterizadas por meio de uma

virtude ou mais de uma, guardadas as devidas distinções qualitativas entre elas.

A segunda fórmula pode ser lida assim: “Necessariamente, a classe do corajoso é co-

extensiva com a classe do justo, a classe do justo é co-extensiva com a classe do piedoso, a

classe do piedoso é co-extensiva com a classe do temperante, a classe do temperante é co-

extensiva com a classe do sábio”51. No que concerne à noção de co-extensão necessária,

sendo ela aplicada ao mesmo objeto – neste caso a uma pessoa – disso não resulta haver uma

identidade entre as virtudes, mas sim que elas partilham algo em comum e que faz com que

todas estejam no mesmo indivíduo. De modo geral, o que ambas as fórmulas postulam é que

as cinco partes da virtude estariam necessariamente presentes num mesmo indivíduo, mas

não necessariamente numa mesma ação particular.

A respeito do operador modal ‘necessidade’, Vlastos explica que seu uso vai além da co-

extensibilidade entre as virtudes: traz também a ideia de que somente por meio da sabedoria

é que um indivíduo possui todas as demais virtudes. Ou seja, a sabedoria é colocada por

Vlastos como a condição necessária, e também suficiente, para um indivíduo possuir as

demais virtudes52. Esse papel atribuído à sabedoria, considerada como uma das partes da

49 VLASTOS, 1971, p. 232. 50 VLASTOS, 1971, p. 232, nota 26. 51 VLASTOS, 1971, p. 232, nota 27. 52 Brickhouse e Smith fazem uma objeção a esta interpretação de Vlastos. Ao considerar a sabedoria como a

virtude necessária e suficiente para a aquisição das demais virtudes, dois pontos são colocados pelos autores:

1) Se a sabedoria é uma condição necessária e suficiente para aquisição das outras virtudes, basta que o

indivíduo tenha uma das virtudes mais a sabedoria para ser considerado virtuoso; 2) se cada virtude é

considerada um tipo de conhecimento específico em relação ao conhecimento geral, não haveria motivo para

considerar a sabedoria como algo necessário e suficiente na aquisição das demais, já que cada parte seria uma

parte do conhecimento, aquela necessária para realizar uma ação específica. (BRICKHOUSE, T.C.; SMITH,

N. D., 1997, p. 315). Também Devereux observa que esta posição que Vlastos toma em relação ao papel da

sabedoria no Protágoras não se mostra coerente com outras afirmações encontradas, por exemplo, no Laques.

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virtude, é justificado por Vlastos como sendo uma posição coerente com o princípio socrático

de que a sabedoria seria aquela que torna melhores os homens. Além disso, Vlastos entende

que Sócrates estaria afirmando no próprio Protágoras que a sabedoria é “suficiente para as

ações virtuosas”53.

2.1.1. Releitura das teses da unidade e da semelhança a partir da tese da bi-condicionalidade

Partindo da tese da bi-condicionalidade, Vlastos sugere uma releitura da tese da

unidade e da semelhança a partir de uma proposição L – em que ‘L’ significa link, na medida

em que visa ligar as três teses54:

L Virtude, Sabedoria, Temperança, Coragem, Justiça, Piedade são inter-

predicáveis: se “B” é um substituto de um dos substantivos anteriores e “A”

de um dos adjetivos cognatos, então B é A (i.e., A é predicado de B)”, onde

A deve ser “entendido como aplicado não a uma entidade abstrata nomeada

por B, mas [aplicado]55 a cada uma de suas instâncias. 56

Com isso, dada a tese da bi-condicionalidade,

“Justiça é sábia;

Justiça é temperante;

Justiça é corajosa;

Justiça é pia;

Justiça é justa;

Justiça é virtude.”57

Vlastos explica que o termo predicado não deve ser entendido como estando atribuído

a um nome abstrato, mas aplicado ao indivíduo que é, nesse caso, justo. Com isso, ao dizer

que, por exemplo, a justiça é temperante, deve-se compreender por esta afirmação que o

indivíduo justo é também um indivíduo temperante. Ainda sobre os aspectos dessa tese de

Vlastos, o termo predicado também pode ser colocado na forma substantivada como “Justiça

Neste diálogo, em 198a, bem como no Mênon (78d-79a), Platão não insere a sabedoria na lista daquilo que ele

considera como partes da virtude. Iremos, mais a frente, sustentar que, de fato, a sabedoria, tal como utilizada

por Platão no Protágoras, não será por ele identificada como parte, mas com o todo da virtude. (DEVEREUX,

1993. p. 773. Nota 13). 53 VLASTOS, 1971, p. 233, nota 29. 54 VLASTOS, 1971, p. 234, tradução nossa. 55 Inserção da autora. 56 VLASTOS, 1971, p. 234-235, tradução nossa. 57 VLASTOS, 1971, p. 235, tradução nossa.

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é Sabedoria”, “Temperança é Justiça”, entre outros. Estes seriam entendidos como inter-

predicáveis do seguinte modo “Justiça é sabia e Sabedoria é justa”58. Em resumo, o que a

tese da bi-condicionalidade diz é que, se uma pessoa tem uma das virtudes, ela

necessariamente terá todas as demais. Com isso, se N é justo, N é sábio, N é temperante, etc.

logo, a justiça de N será sábia, temperante e assim por diante59.

Partindo desse ponto, ele dá início a uma releitura da tese da unidade. Lembrando

que ela parte da afirmação de que “os nomes de todas as virtudes devem ser aplicados a uma

mesma coisa”60, Vlastos chama a atenção para o fato de que ‘nome’ (ὄνομα) pode ser

utilizado de dois modos: a) com o sentido de nome próprio, e b) com o sentido de uma

“expressão descritiva61”. Por exemplo, analisando uma passagem do Fédon62, é possível ver

que o número três é nomeado de duas formas distintas: como ‘três’, em que o nome tem a

função de ser uma referência do objeto, ou seja, aponta para o próprio objeto; e também como

‘ímpar’ e, nesse caso, este nome estaria descrevendo uma qualidade ou atributo do objeto em

questão.

Além da distinção entre as funções desempenhadas pelo ‘nome’, tem-se o caso que,

enquanto o nome, aplicado como referência ou como nome próprio do objeto, estabelece uma

identidade entre a coisa e o nome, o segundo caso não estabelece uma identidade entre o três

e o ímpar, ou seja, eles não são sinônimos, pois “o fato de que eles nomeiam a mesma coisa

não implica que eles sejam” sinônimos ou idênticos63.

Vlastos sustenta que, no caso do Protágoras, quando é dito que, por exemplo, ‘a

temperança é sabedoria’, esta e demais frases de mesmo estilo podem ser traduzidas como

“Temperança é nomeada [descritivamente] Sabedoria”, e assim também para os outros

casos64. Situando esta explicação no Protágoras, Vlastos faz uso de duas passagens: uma,

que se encontra no final do diálogo, em 361b-c, em que Sócrates vai dizer que todas as

virtudes são sabedoria, e a segunda, em 332a-333b, em que ele irá dizer que, pelo fato de a

sabedoria e a temperança terem o mesmo oposto, elas seriam uma única coisa.

58 VLASTOS, 1971, p. 236. 59 VLASTOS, 1971, p. 237. 60 VLASTOS, 1971, p. 238. 61 VLASTOS, 1971, p. 238. 62 PLATÃO, Fédon, 103e-104b. 63 VLASTOS, 1971, p. 240. 64 VLASTOS, 1971, p. 241-242.

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Na primeira passagem, Sócrates, ao falar que todas as virtudes são sabedoria, estaria,

na realidade, dizendo que a justiça é sabedoria, bem como a temperança é sabedoria, e assim

por diante. Isso poderia ser traduzido da seguinte forma: “Justiça é nomeada

[descritivamente] por sabedoria”65, o mesmo valendo para as demais virtudes, com excessão

da própria sabedoria, cuja aplicação seria entendida como nome próprio. Nesse sentido, não

seria o caso de uma identificação entre as virtudes e a sabedoria, mas de uma relação bi-

condicional entre elas66.

Com relação à segunda passagem acima, o termo ‘oposto’ estaria sendo aplicado no

mesmo sentido em que ‘complemento’ é aplicado na teoria dos conjuntos. Sendo assim, dizer

que a sabedoria e a temperança possuem o mesmo oposto é dizer que ambas são

complemento, neste caso, da insensatez. Isso quer dizer que, se ambas as virtudes têm o

mesmo complemento, elas são classes co-extensivas. Segundo Vlastos, isso demonstra que

a tese da unidade pode ser re-interpretada a partir da leitura dada pela tese da bi-

condicionalidade, quando a unidade da virtude passa a ser entendida como “atributos

instanciados necessariamente em uma e mesma classe de pessoas”67.

Já na releitura da tese da semelhança, Vlastos sugere que a busca de Sócrates pela

semelhança entre as virtudes deve ser vista a partir da “bi-condicionalidade das classes de

suas instâncias68”. A fim de assegurar tal releitura, Vlastos examina as seguintes premissas

presentes no Protágoras: “i) A Justiça é justa (330c) e a Piedade é pia (330d); e ii) A Justiça

é pia e a Piedade é justa (331b)”69. Dada esta releitura, pode-se observar, a partir dessas

premissas, que Sócrates estaria chamando a atenção para o fato de que a semelhança entre

essas virtudes estaria em que ambas são pias e justas.

Então, segundo a proposição L, se ter uma virtude é ter todas as demais, e se isso significa

que um indivíduo justo é, necessariamente, pio, temperante, etc., a justiça, que nele está

instanciada pode ser dita como pia, temperante, etc. Assim, “cada uma é como o resto em

todos os cinco aspectos”70, mas cada virtude possui sua própria caraterística que as

distinguem entre si.

65 VLASTOS, 1971, p. 242. 66 VLASTOS, 1971, p. 243. 67 VLASTOS, 1971, p. 246. 68 VLASTOS, 1971, p. 247. 69 VLASTOS, 1971, p. 249. 70 VLASTOS, 1971, p. 247.

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Ao fazer a releitura das duas teses acima, Vlastos entende que as três acabam por “se

tornar expressões complementares da mesma afirmação básica71”, qual seja, a de que possuir

uma virtude leva, necessariamente, à obtenção de todas as demais. Entretanto, não fica claro

o entendimento por detrás das afirmações tais como ‘a justiça é temperante’. Isso porque, se,

por um lado, a ‘temperança’ é um nome descritivo para ‘justiça’, por outro, Vlastos diz que

a ‘temperança’ é aplicável ao indivíduo que é justo, e não ao ente abstrato ‘justiça’. De que

modo ele visa solucionar esse problema?

2.1.2. Vlastos e a Predicação Paulina

A justificativa de Vlastos para esta leitura começa por assumir que as sentenças

predicativas estão sendo entendidas pelo o que ele chama de predicação paulina72, que irá se

diferenciar do tipo de predicação conhecida como predicação ordinária. Por predicação

paulina entende-se, por exemplo, que, dada a frase do tipo “A Caridade é gentil73”, o que está

sendo qualificado como gentil não é a caridade em si, porque não se está atribuindo

“propriedades morais a entidades abstratas”74, mas ao indivíduo que, possuindo tal caridade,

é também gentil. Ao contrário, a predicação ordinária estaria assumindo que, na frase “A

Caridade é gentil”75, a propriedade ‘gentil’ estaria sendo aplicada ao ente caridade. Portanto,

a distinção entre esses dois modos de compreender uma predicação é que, enquanto a

predicação ordinária entende que o predicado está sendo aplicado ao próprio ente abstrato, a

predicação paulina interpreta que tais predicados são aplicados às instâncias desses entes nos

indivíduos, e não aos próprios entes.

É por meio dessa interpretação que, segundo Vlastos, as sentenças no Protágoras

devem ser compreendidas. Para finalizar, Vlastos propõe considerar a seguinte reflexão: se

71 VLASTOS, 1971, p, 252. 72 A predicação paulina tem como referência afirmações do apóstolo Paulo, tal como “O amor é sofredor e é

benigno” (I Cor. 13:4). Seguindo essa e outras afirmações semelhantes encontradas nas cartas de Paulo, a

predicação paulina seria o entendimento de que o ‘ser sofredor’ e o ‘ser benigno’ estão se referindo não ao ente

abstrato ‘amor’, mas ao indivíduo que possui este tipo de amor. 73 VLASTOS, 1971, p. 233. 74 VLASTOS, 1971, p. 253. 75 VLASTOS, 1971, p. 233.

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Sócrates pensava a justiça como um universal76, como é possível sustentar esta leitura no

Protágoras? Nas palavras de Vlastos:

Lida como predicação Paulina (...) “Justiça é justa e pia” implica

diretamente que qualquer um que instancie Justiça será justo e pio; e

exatamente o mesmo é verdadeiro para a leitura Paulina de “Piedade é pia

e justa.”” (...) Lida como predicação ordinária, “(...) tudo o que nós

podemos obter de “Justiça é justa e pia” é que o universal, Justiça, tem essas

duas propriedades. E do fato de que um universal possui certas

propriedades, não se segue que as instâncias tenham tais propriedades.77

Em outras palavras, se tais sentenças forem lidas por uma perspectiva baseada na

ideia de predicação ordinária, não se segue a afirmação de que o indivíduo, no qual a justiça

se instancia, venha também a ser justo e pio. Isto acaba por não se mostrar coerente com o

que está sendo exposto no Protágoras, o que justificaria, no entender de Vlastos, que se trata

do tipo de entendimento sugerido pelas predicações paulinas no Protágoras. Resta, por fim,

saber como a proposição L e a predicação paulina, que constituem a Tese da Bi-

condicionalidade, afetarão a tese da unidade da virtude e a tese da semelhança78.

Sob a ótica da bi-condicionalidade, a tese da unidade (sinonímia) não se aplicaria a

nomes como referentes, mas como descrições. Aplicada à tese da semelhança, a bi-

condicionalidade resulta em que as virtudes são como as outras nos cinco aspectos, porque

um indivíduo não pode participar de uma sem participar das demais, ainda que cada uma

guarde sua distinção específica. Portanto, afirmações do tipo “x é semelhante a y”, de acordo

com a predicação paulina, podem ser ditas na medida em que têm como referência as

instanciações no indivíduo e não na medida em que, indistintamente, as virtudes, que Vlastos

chama de Universais, sejam semelhantes.

76 VLASTOS, 1971, p. 252. 77 VLASTOS, 1971, p. 255-256, tradução nossa. 78 Do ponto de vista da tese da bi-condicionalidade, Sócrates estaria compreendendo as predicações do tipo

“justiça é pia” e “piedade é justa” (Prot. 330a -331b) como predicações paulinas, querendo dizer, com isso, que

“a justiça é tal que suas instâncias serão justas e pias” e assim também com as demais virtudes. Contudo, para

Devereux, após afirmar aquelas sentenças, Sócrates não vai inferir algo parecido com o que Vlastos quer

defender, mas sim que elas são apenas semelhantes. (DEVEREUX, 1992, p. 769).

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2.2 Α Unidade da Virtude como Tese da Identidade

(a) Terry Penner

Em seu artigo, intitulado “The Unity of Virtue”79, Terry Penner tem como propósito

demonstrar que, ao colocar em discussão o tema da unidade da virtude no Protágoras,

Sócrates está fortemente comprometido com o que ele vai chamar de Tese da Identidade.

Esta tese se fundamenta na seguinte ideia: Coragem = Sabedoria = Temperança = Justiça =

Piedade80, em que o sinal ‘=’ denota o sentido forte do termo ‘identidade’.

Penner inicia sua análise observando as dificuldades que alguns intérpretes possuem

e que os levam a rejeitar esta posição. Referindo-se àqueles que sustentam uma tese da

equivalência – similar em muitos pontos a tese da bi-condicionalidade – em contraposição à

tese da identificação das virtudes entre si, Penner ressalta que a causa de tal rejeição começa

numa interpretação equivocada da questão “O que é X”. Segundo Penner, este tipo de questão

deve ser pensada e reformulada do modo seguinte: “o que é esta única coisa, a mesma em

todos os casos, em virtude da qual homens corajosos são corajosos?”81. Contudo, os que

negam a tese da identidade assim o fazem por entender a questão como que tratando, em

geral, de uma busca por significados82. Por exemplo, no caso de uma pergunta do tipo ‘o que

é a coragem’, estariam raciocinando da seguinte maneira:

i) “Em adição aos homens corajosos, deve existir uma tal coisa como a coragem –

isto é, o significado de ‘coragem’ – em virtude da qual homens corajosos são

corajosos; e

ii) O significado de ‘coragem’ é diferente do significado de ‘sabedoria’”83

A partir dessas duas proposições, segue-se que, uma vez que os significados são

diferentes, apenas a coragem, e não outra virtude, pode fazer com que homens sejam

79 PENNER, Terry. “The Unity of Virtue”. The philosophical Review. Vol. 82, No. 1 (1973), p. 35-68. 80 Ibid., p. 36. 81 Ibid., p. 38. 82 Ibid., p. 38. 83 Ibid., p. 38.

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corajosos e, portanto, não se pode considerar a doutrina da unidade da virtude como uma

tese da identidade – apesar de ser possível ainda falar de uma semelhança entre as virtudes

e, por conseguinte, de uma tese da equivalência entre elas.

O mesmo pensamento é expresso quando, ao invés de significado, o X da questão é

tomado como referência a essências ou a universais. Nesse caso, dizer que as virtudes são

idênticas umas às outras, seria o mesmo que afirmar:

iii) “A essência da coragem = essência da sabedoria sse “coragem” e “sabedoria” são

sinônimos – isto é, se o significado de coragem = significado de sabedoria.”84

Ao chegarem ao mesmo resultado, estas perspectivas acabam por negar a

possibilidade de tomar a unidade da virtude como uma tese da identidade. Estas posições,

tanto a que toma como referente o significado, quanto aquela cuja referência é a essência

ou o universal, fazem parte do grupo que Penner vai denominar the meaning view85 - ou

“os proponentes do significado”. Com o objetivo de combater a posição deste grupo,

Penner retorna para a questão “o que é X” e observa a necessidade de tal questão ser

compreendida por outro foco, ou seja, não como uma busca por significados, mas uma

busca por um tipo de estado psicológico que explique não só como os homens se tornam

corajosos, mas se este mesmo estado psicológico também torna tais homens sábios ou

não86.

Se o resultado dessa investigação for afirmativo, então o estado psicológico que torna

os homens corajosos será idêntico ao que torna os homens sábios. A distinção, portanto,

entre os proponentes do ponto de vista do significado e Penner é que os primeiros irão

tomar como referente da coragem o significado, a essência, ou o universal da coragem;

enquanto Penner irá tomar como referência da coragem o que ele chama de “entidade

teórica”, isto é, o “estado psicológico que explica o fato de que certos homens praticam

84 PENNER, 1973, p. 38. 85 PENNER, 1973, p. 39. 86 Segundo Devereux a posição que adota a explicação de um mesmo estado para denotar a virtude e eliminar

qualquer possibilidade de distinção entre elas, levando à negação de que as virtudes são partes distintas do todo

parece “inconsistente com a posição de Sócrates [no Protágoras] e com a visão que ele endossa no Laques e

no Mênon”. (DEVEREUX, 1992, p. 767).

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atos corajosos”87. E, uma vez que, explica o autor, “as condições de identidade para

estados psicológicos são presumivelmente mais amplas que a sinonímia, podemos supor

que dois termos-virtudes não-sinônimos se referem a um mesmo estado psicológico.”88

2.2.1. Tendências versus “estados de alma” ou “força - motriz”

Pelo fato de Penner construir seu argumento a partir da noção de estados psicológicos,

ele precisa lidar com uma objeção à sua posição. Esta objeção considera que as

referências para “coragem”, “sabedoria” e demais virtudes devem ser entendidas como

disposições: “de um lado, disposição para comportamento corajoso e, de outro,

disposição para comportamento sábio”89. Isso significa que, se existem dois tipos de

comportamentos distintos, de igual modo existem dois tipos distintos de disposições,

causando uma dificuldade para o estabelecimento da ideia de que duas virtudes possam

se referir a uma mesma e única coisa.

Surge assim a seguinte objeção a Penner: “as disposições são numericamente distintas

sse elas conduzem a diferentes tipos de comportamentos”90. Para defender sua posição,

Penner apresenta dois modos em que se pode conceber as noções de coragem e sabedoria,

por exemplo: 1) a que compreende disposições como tendências91, consideradas

“numericamente distintas sse elas conduzirem a diferentes tipos de comportamento”92; e

2) a que concebe disposições como “coragem” e “sabedoria” como força-motriz ou

estados de alma, onde “a mesma força-motriz ou estado de alma pode resultar em

diferentes tipos de comportamento”93. A partir dessas duas concepções, Penner elabora

uma possibilidade descritiva da unidade da virtude:

Sócrates pensava que todos e somente aqueles homens com tendências a

ações corajosas, teriam tendências para ações sábias (estas ações sendo em

geral diferentes das primeiras ações). Mas ele pode ter acreditado que todas

estas tendências surgiam da mesma força-motriz ou estado psicológico (por

87 PENNER, 1973, p. 41. 88 PENNER, 1973, p. 42. 89 PENNER, 1973, p. 44. 90 PENNER, 1973, p. 44. 91 PENNER, 1973, p. 44. 92 PENNER, 1973, p. 44. 93 PENNER, 1973, p. 45.

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exemplo, um certo tipo de conhecimento). (PENNER, 1973, p. 45, tradução

nossa.)

O que se tem aqui é a descrição dos dois tipos de disposição, tendências e forças-

motrizes, cujas diferenças poderiam ser superadas. Entretanto, há um problema em conceber

a noção de disposição como tendência. Isso se deve ao fato de que esta identificação corre o

risco de cair, com muita frequência, no mesmo problema que o dos proponentes do

significado, qual seja, o de distinguir algo a partir de seu significado. O resultado seria, então,

alcançado em função da não-sinonímia entre elas. Isto, por sua vez, não ocorreria com a

noção de força-motriz.

Outra ocorrência que demonstra a distinção entre ‘tendência’ e ‘força-motriz’ pode

ser encontrada em um raciocínio semelhante ao dos filósofos da ciência. Segundo estes,

independente do significado linguístico dessas disposições, o fato é que todo comportamento

possui uma explicação física94. É esse sentido de explicação que Penner vai associar à noção

de força-motriz, entendida, por sua vez, como uma entidade única que explica as diferentes

ações dos indivíduos.

Penner ainda observa que não há nada de econômico em considerar que exista uma

“tendência ao comportamento corajoso” para além da força-motriz ou estado de alma que

leva a comportamentos tais como de coragem, de sabedoria, de temperança, porque a noção

de ‘tendência’ se faz apenas em “referência a um comportamento ou estado específico”95.

Por exemplo, se os homens são considerados corajosos, estes não são corajosos segundo suas

tendências a atos corajosos, mas sim “se eles possuem a qualidade requerida para realizar

ações corajosas em circunstâncias apropriadas”96. Nesse sentido, essa qualidade requerida

estaria sendo identificada com a força-motriz ou estado de alma. Assim é que Penner rejeita

a possibilidade de que Sócrates estaria compreendendo as disposições também como

tendências.

94 PENNER, 1973, p. 47. 95 PENNER, 1973, p. 47. 96 PENNER, 1973, p. 48.

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2.2.2 Aplicação da tese da força-motriz ao Protágoras

Segundo Penner, na passagem 329c-d do Protágoras, Sócrates, em oposição a

Protágoras, parte da ideia de que as virtudes não são distintas, mas são nomes diferentes para

uma única e mesma coisa. Esta formulação, juntamente com os demais argumentos do

diálogo, formariam uma defesa da tese da identidade da virtude97.

O primeiro desses argumentos, identificado como argumento dos contrários, se

encontra a partir do passo 332a. Nesta passagem Sócrates explica a Protágoras que, se cada

coisa possui um único contrário, então, a temperança e a sabedoria correspondem a uma única

coisa, pois ambas possuem o mesmo contrário: a insensatez98. Aplicando a tese da identidade

a este caso, Penner sustenta que Sócrates está, na verdade, lidando especificamente com

apenas dois contrários: a virtude e o vício. Assim se tem, de um lado, a virtude, que se refere

tanto à temperança, quanto à sabedoria; e de outro, o vício, que se refere tanto à insensatez,

quanto à intemperança. Logo, quando Sócrates diz que é pela temperança que os homens se

tornam temperantes, e pela insensatez que os homens se tornam insensatos99, ele está, em

realidade, opondo virtude e vício. Dessa forma, Sócrates estaria afirmando que é por meio

da virtude que um indivíduo irá agir de modo temperante, corajoso, sábio, e, de modo

contrário, por meio do vício que irá agir covardemente, injustamente, e assim por diante. O

que Penner propõe é que, ao lermos desse modo, possamos vir a entender que se trata de “um

argumento que parte do modo como os homens agem e leva às forças- motrizes ou estados

de alma que causam tais ações”100.

O argumento da confiança101 surge como segunda justificativa para a leitura de

Penner. Aqui Sócrates estaria se colocando em oposição a uma afirmação feita por Protágoras

de que a coragem é diferente das demais virtudes e, por isso, pode ser encontrada, inclusive,

em indivíduos ignorantes e injustos102. Por sua vez, Sócrates afirma que só é possível agir

com coragem à medida que o indivíduo também for sábio103. Penner interpreta esta

97 PENNER, 1973, p. 50. 98 PLATÃO, Protágoras, 332a-333b. 99 PLATÃO, Protágoras, 332b. 100 PENNER, 1973, p. 52. 101 PLATÃO, Protágoras, 349d-351b. 102 PLATÃO, Protágoras, 349d. 103 PLATÃO, Protágoras, 350c.

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declaração como uma identificação entre coragem e sabedoria, entendendo que “aquilo que

torna um homem corajoso é idêntico àquilo que o torna sábio”104. Dessa forma, o que

Sócrates está querendo dizer é expresso por Penner do seguinte modo:

Certos homens, mergulhadores, são confiantes em mergulhar dentro de

poços porque eles sabem [o que eles estão fazendo]; e algo similar se dá

com os cavaleiros habilidosos, que lutam a cavalo com confiança, e com a

habilidade dos guerreiros que lutam confiantemente com um escudo

protetor. E de modo geral: Aqueles que sabem o que estão fazendo são mais

confiantes do que aqueles que não sabem. (PENNER, 1973, p. 53-54,

tradução nossa)

Assim, o que explica o fato dos homens expressarem confiança em suas respectivas

ações é o conhecimento da habilidade desempenhada. Em outras palavras, é por causa do

conhecimento que um indivíduo demonstra confiança na hora de agir. Portanto, tais homens

são corajosos porque conhecem. Por outro lado, pode-se afirmar que homens ignorantes

dessas mesmas habilidades demonstram uma espécie de confiança ignorante e, portanto, não

podem ser considerados, de fato, confiantes. Então, nesse sentido, o que Sócrates faz é

assumir que “todos os homens corajosos são confiantes”105 e, sendo confiantes devido ao

conhecimento que possuem, a coragem é colocada na mesma classe daquilo que faz com que

homens sejam corajosos, ou seja, a sabedoria.

O terceiro argumento parte da expressão “aquilo em virtude de quê”106, presente no

passo 360c. A proposta de Penner é demonstrar que se trata de uma expressão “causal ou

explicativa, ao invés de epistêmica ou semântica”107. A mesma demonstração visa a ser

aplicada à questão “o que é X”. O intuito é o de sustentar que a questão tem por objetivo

buscar “um relato psicológico (explicação) sobre o que é isto que, nas almas dos homens,

torna-os corajosos”108. Em ambos os casos, a questão é compreender que alguém que “age

por meio de F”109, não age devido ao “significado de F estar instanciado em um ato que

alguém vê como um ato que está sendo realizado F-mente”110. Isso significa que, quando

104 PENNER, 1973, p. 53. 105 PENNER, 1973, p. 55. 106 PENNER, 1973, p. 56. 107 PENNER, 1973, p. 56. 108 PENNER, 1973, p. 56-57. 109 PENNER, 1973, p. 57. 110 PENNER, 1973, p. 57.

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Sócrates afirma, por exemplo, em 360c, que “os covardes são covardes por causa da

covardia”111, ele está querendo dizer que os covardes são covardes porque faltam a eles

conhecimento e, portanto, são covardes por causa da ignorância “daquilo que deve e não deve

ser temido”112.

Tomando estes argumentos, Penner afirma que Sócrates estabelece duas coisas: a

primeira delas é a separação de dois contrários, o conhecimento e a coragem de um lado, a

ignorância e a covardia de outro, onde os dois não podem estar no indivíduo ao mesmo tempo.

Estando as demais virtudes do lado do conhecimento, um indivíduo pode ser, ao mesmo

tempo, corajoso e justo, mas não corajoso e injusto. A segunda é que a expressão “por causa

de F”, indica que aquilo que torna alguém covarde não é o sentido ou o significado de F em

suas ações, mas a existência de uma força-motriz ou estado de alma, a saber, a ignorância ou

covardia. Com isso, para Penner faz mais sentido pensar que Sócrates está à procura de uma

explicação de algo que ocorre na alma do indivíduo, e que faz com que ele aja de determinado

modo, do que de uma definição nominal ou do significado das virtudes, que postularia uma

identidade entre elas.

Retomando mais uma vez ao argumento dos contrários, é importante observar que

neste argumento os contrários sublinhados foram ‘virtude’ e ‘vício’ e não ‘conhecimento’ e

‘ignorância’, tal como aparecem nesses dois últimos argumentos. Para demonstrar que se

trata de uma mesma coisa, a saber, de um lado, a virtude como igual ao conhecimento e, por

outro lado, o vício como igual à ignorância, Penner prossegue para sua quarta e última

justificativa com respeito ao Protágoras, a qual se encontra nos passos 360e-361d,

denominados por Penner como argumento da “Virtude é Conhecimento”113.

Penner demonstra a aplicação da tese da identidade do seguinte modo: ao dizer que

virtude é conhecimento, Sócrates estaria promovendo a identidade entre as virtudes. Em

sendo a virtude conhecimento, ela pode ser ensinada. Para Penner, estes dois casos, “virtude

é conhecimento”114 e “virtude é ensinável”115, estariam sendo tratados por Sócrates “como

111 PENNER, 1973, p. 57. 112 PENNER, 1973, p. 57. 113 PENNER, 1973, p. 58. 114 PENNER, 1973, p. 58. 115 PENNER, 1973, p. 58.

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instâncias de respostas”116 para as seguintes questões, respectivamente: “o que é X (a virtude

em si mesma)?” e se “X é Γ (virtude é ensinável)” 117.

Por fim, o autor destaca que, em ambas as questões, ‘virtude’ aparece como um termo

singular118. E se a resposta para a questão “o que é X” é “virtude é conhecimento”, então

Sócrates estaria dizendo que coragem = sabedoria = temperança = justiça = piedade = virtude

= conhecimento. Em outras palavras, Sócrates, ao longo do diálogo, procura uma única

entidade, e não várias, para explicar porque os homens agem de modo temperante, pio, e

assim por diante119. Sendo assim, se a questão está sendo pensada como um pedido por uma

explicação, baseada em “crenças psicológicas substanciais”120, e não em uma análise do

significado de X, faz sentido considerar que a virtude e o conhecimento, sendo iguais, sejam

tomados no sentido de uma força- motriz, ou seja, como uma explicação psicológica. O

Protágoras estaria, assim, comprometido com a busca por uma “descrição psicológica da

virtude”121, ou seja, uma descrição ou explicação sobre o que é isso que atua na alma do

indivíduo, e que faz com que ele tenha ações virtuosas122.

(b) Margaret Hartman

2.2.3 Conhecimento como dýnamis

Hartman assume uma posição voltada para uma identificação entre as virtudes e não uma

distinção entre elas. Ao contrário de Vlastos que, segundo a autora, entende a possibilidade

116 PENNER, 1976, p. 58. 117 PENNER, 1973, p. 58. 118 PENNER, 1973, p. 59. 119 Para Devereux “existem passagens [no Protágoras] que não se encaixam” com esta posição, a qual não

admite nenhum elemento de distinção entre as virtudes. Por exemplo, em 359d-360d, Sócrates, ao afirmar que

as virtudes são uma única e mesma coisa, isto é, conhecimento do bem e do mal, apresenta uma definição de

coragem que não serve para as demais virtudes. Isso contraria a ideia de que “as virtudes são idênticas por

definição”. Nossa análise posterior também irá se comprometer com a ideia de que as virtudes, no Protágoras,

estão sendo consideradas distintas. (DEVEREUX, 1992, p. 787). 120 PENNER, 1973, p. 60. 121 PENNER, 1973, p. 60. 122 Para Brickhouse e Smith, tomar “cada instância de uma virtude individual” como idêntica a outra gera um

paradoxo, pois, se assim o fosse, não seriam várias, mas uma virtude apenas, sem a necessidade de se aplicar

nomes diferentes. O segundo problema com essa tese é que ela não parece se encaixar com uma afirmação que

se encontra no Êutifron, no passo 12d, a saber, que a piedade seria uma parte da justiça. Isso porque, se todas

são idênticas por constituírem o mesmo conhecimento por definição, não há como entender em que medida a

piedade seria parte da justiça. (BRICKHOUSE, T. C.; SMITH, N. D., 1997, p. 316).

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da unidade da virtude somente no sentido em que todas se aplicam a um mesmo objeto, sua

contra-argumentação é a de que a noção de relação entre parte e todo evocada no Protágoras

não é entre virtude e objetos comuns – no caso de Vlastos, virtudes e indivíduos –, mas uma

relação mantida pelas virtudes entre si a partir de uma mesma unidade, a saber, o

conhecimento. Apesar de, em certo sentido, sua posição estar apoiada em Penner – para quem

a unidade da virtude passa a ser explicada como uma relação de identidade entre

conhecimento e virtude – Hartman não parte da compreensão de ‘conhecimento’ como sendo

um estado psicológico ou força-motriz. Antes, o conhecimento é compreendido pela autora

como uma δύναμις, isto é, uma força ou uma capacidade, que permitiria afirmar a virtude

como unidade.

Sua análise parte da observação de que, tanto a analogia da barra do ouro e suas partes,

quanto a analogia da face e suas partes, que se encontram nos passos 329d-e do Protágoras,

não oferecem imagens adequadas para a compreensão do que seria essa relação do todo-parte

da virtude. Contudo, ela usa justamente a inadequação de tais modelos para apontar o oposto

do que elas sustentam, construindo assim um novo caminho para a clarificação do problema

da unidade da virtude.

Para demonstrar a inadequação de tais modelos Hartman recorre ao diálogo Mênon

na passagem em 74b em diante. Nesta passagem, Sócrates tenta explicar a Mênon em que

sentido pode-se entender a relação entre a virtude e suas partes. Sócrates começa sua

explicação a partir da analogia da figura e do círculo, cuja relação é expressa como sendo a

relação entre a figura e uma figura. O mesmo poderá ser observado com respeito à relação

entre a cor e o branco, ou seja, a relação entre a cor, como um todo, e uma cor, o branco,

como parte desse todo. Desse modo a analogia é feita do seguinte modo: “círculo está para

figura, assim como branco está para a cor, assim como a coragem está para a virtude”123.

A partir dessa analogia, Hartman retoma os dois modelos propostos no Protágoras

para demonstrar a inadequação dos mesmos. A começar pelo modelo da face e aplicando a

analogia do Mênon vista no parágrafo anterior, a relação entre os olhos e a face não faz

sentido se comparada com o padrão das outras relações pois, observa a autora, enquanto

redondez, branco e coragem são, respectivamente, um tipo de figura, um tipo de cor, e um

123 HARTMAN, 1984, p. 111.

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tipo de virtude, “os olhos não são um tipo de face”124. De igual modo, adicionar à lista o

modelo do ouro e afirmar que “assim como as partes do ouro estão para o ouro”125, pelo

mesmo padrão no Mênon, também não fará sentido dizer que “pedaços de ouro são um tipo

de ouro”126, porque os pedaços de ouro são o próprio ouro em partes e tamanhos distintos,

formado não por serem partes, mas simplesmente por terem sido formados pela quebra da

barra de ouro.

No entanto, por mais que estes modelos se mostrem inadequados para clarificar a

relação parte-todo da virtude, Hartman observa que, ainda assim, o modelo da face consegue

oferecer uma imagem que permite entender a unidade da virtude de outra forma. Segundo a

autora, tal modelo “sugere que uma multiplicidade de órgana é uma multiplicidade de

dynámeis correspondentes”127 a cada órgão. Desse modo, a face é entendida como aquela que

“nutre todas as dynámeis (...) relacionadas com a percepção do mundo sensível”128.

Se isto pode ser afirmado e se o modelo da face se apresenta como inadequado, então,

segundo Hartman, parece ser possível pensar que o que Platão faz é direcionar “a um

entendimento das virtudes (...) como uma unidade de uma dýnamis e seus correspondentes

órgãos”129, ao invés da correspondência entre uma multiplicidade de dynámeis para uma

multiplicidade de órgãos. Para sustentar esta hipótese, ela parte da afirmação de Sócrates em

361 em diante no Protágoras, quando as virtudes são ditas como sendo conhecimento, que

corresponde à virtude como um todo. Além disso, a seguinte afirmação “virtude é

conhecimento”, será também explorada pela autora em mais outros dois diálogos de Platão:

a República, em 477c-d, que irá afirmar que a “epistéme é uma dýnamis na alma”130, e o

Timeu, nos passos 45b-c e 67e-68b, que vai esclarecer a relação existente entre visão e

dýnamis.

Partindo da afirmação no Protágoras de que todas as virtudes correspondem ao

conhecimento, Hartman se dirige à República em 477c-d e toma o exemplo que Platão dá

sobre a visão. Segundo Platão, a visão seria considerada uma dýnamis, relacionada à cor

124 HARTMAN, 1984, p.112. 125 HARTMAN, 1984, p.112. 126 HARTMAN, 1984, p.112. 127 HARTMAN, 1984, p.112. 128 HARTMAN, 1984, p.112. 129 HARTMAN, 1984, p.113. 130 HARTMAN, 1984, p.113.

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como sendo seu obejto. Hartman destaca dois pontos que caracterizam algo como uma

dýnamis: “aquilo [o objeto] com que a dýnamis está relacionada [e] o que a dýnamis

realiza”131. Diante disso, o objetivo da autora será o de clarificar o que ela entende por

“unidade da força/capacidade (dýnamis) que torna as pessoas virtuosas, isto é, a epistéme”132.

Uma dúvida pode surgir a respeito do motivo pelo qual Platão estaria considerando a

visão como uma única dýnamis. Isso porque se, por um lado, a cor é uma única coisa, por

outro lado, ela também é múltipla, já que também existem tons como o amarelo, o verde, e

assim por diante. O mesmo ocorre com a visão, que não capta somente uma cor, mas muitas

cores. Com a finalidade de demonstrar e justificar a razão pela qual Platão está considerando

a visão como uma e não várias dynámeis, Hartman vai se ater às passagens 45b-c e 67e-68b

do Timeu, que discutem a visão e a cor a partir de sua estrutura física, isto é, os olhos.

De acordo com o Timeu, os olhos são uma espécie de fogo por carregarem consigo

“uma luz suave”133 que não arde e que seria uma espécie de fogo puro. Então, quando esse

fogo puro vai de encontro às partículas de fogo que estão presentes nos objetos externos,

ocorre a visão. A percepção que corre das diferentes cores “depende da qualidade das

partículas de fogo que se encontram com o fogo puro dos olhos”134. Sendo assim, dependendo

do tamanho e da velocidade com que essas partículas colidem com o fogo puro dos olhos, é

possível perceber diferentes cores, como a cor branca, a cor preta, a cor vermelha e demais

cores.

Portanto, as diferentes cores percebidas pela visão não são “produzidas por diferentes

tipos de fogo inerentes aos olhos”135, mas pelo único fogo puro inerente aos olhos que entra

em contato com as partículas de fogo dos objetos externos, e que gera visão, isto é, gera a

unidade “que dá passagem a uma multiplicidade”136. A partir disso se pode afirmar que Platão

considera a visão “como uma única δύναμις”137, e não diversas dynámeis.

Aplicando esta análise ao caso da virtude, Hartman compara suas conclusões como

algo que pode ser utilizado para dar um novo sentido a interpretação empreendida por

131 HARTMAN, 1984, p.113. 132 HARTMAN, 1984, p.113. 133 PLATÃO, Timeu, 45b. Tradução: Rodolfo Lopes. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos,

2011, p. 124. 134 HARTMAN, 1984, p. 114. 135 HARTMAN, 1984, p. 115. 136 HARTMAN, 1984, p. 115. 137 HARTMAN, 1984, p. 115.

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Vlastos. Esse novo sentido recai sobre a afirmação de Vlastos de que as teses da unidade da

virtude, da similaridade e da bi-condicionalidade são “expressões complementares de mesma

base afirmativa”138. Sendo assim, partindo dessa nova perspectiva proposta por Hartman tem-

se que a tese da unidade da virtude passa a ser entendida como unidade na medida em que

“a virtude tem uma dýnamis”139; a tese da similaridade como sendo “uma dýnamis

relacionada a uma multiplicidade de objetos similares”140 e, por fim, a tese da bi-

condionalidade como sendo uma afirmação de que “pessoas que possuem uma virtude

tendem a ter todas as demais porque todas as virtudes partem de uma mesma força

(dýnamis)”141.

Todavia, Hartman faz uma ressalva a respeito da noção de identidade implicada em

sua tese ao justificar que não se trata da mesma noção de identidade sugerida pelo modelo da

barra de ouro, cuja diferença diria somente respeito ao tamanho das partes e não à diferença

qualitativa das virtudes. Por outro lado, no que diz respeito às partes da dýnamis, estas “são

fundamentalmente diferentes das partes do ouro”142, porque enquanto o ouro cria suas partes

a partir do momento em que é quebrado, a dýnamis, como por exemplo a visão, cria “uma

multiplicidade quando (...) entra em contato com as diferentes chamas”143, isto é, com as

diferentes partículas de fogo, e não por ser quebrada de algum modo, tal como a barra de

ouro. Com isso Hartman irá dizer que “a analogia com a visão é que a sua multiplicidade é

explicada por um apelo à multiplicidade de objetos através dos quais uma dýnamis pode ser

apontada”144.

Quando o conhecimento passa a ser compreendido como uma dýnamis145, a virtude,

que está relacionada ao conhecimento no Protágoras – relação esta que é entendida por

Hartman, assim como por Penner e outros autores, como uma relação de identidade – passa

a ser compreendida de tal modo que a multiplicidade desse conhecimento, tal como a justiça,

a temperança, entre outras virtudes, passa a ser “explicada pelas diferentes direções para que

ele aponta (...) [e a] multiplicidade das virtudes é criada a partir de uma mesma força

138 HARTMAN, 1984, p. 116, apud. VLASTOS, 1971, p. 252. 139 HARTMAN, 1984, p. 116. 140 HARTMAN, 1984, p. 116. 141 HARTMAN, 1984, p. 116. 142 HARTMAN, 1984, p. 116. 143 HARTMAN, 1984, p. 116. 144 HARTMAN, 1984, p. 116. 145 PLATÃO, República, 477d.

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(dýnamis) funcionando em diferentes esferas”146 e não o resultado de uma “quebra” gerando

diversas partes iguais que diferem apenas em tamanho.

3. Hipótese

A hipótese que será proposta a seguir visa oferecer um diferente caminho

interpretativo para a questão da unidade das virtudes no Protágoras. Entendendo que a

questão está, sobretudo, centralizada no tema da unidade que envolve a virtude, a chave de

leitura parece estar diretamente ligada a relação entre a virtude, de um lado, e suas partes, a

saber, a justiça, a piedade, a coragem e a temperança, de outro.

Segundo John Cooper147, Sócrates não fornece “uma concepção clara sobre como

exatamente a virtude é uma unidade”, de modo que afirmar que uma interpretação é, em

absoluto, melhor que a outra não faria sentido. Mas é justamente a falta de clareza ou ainda,

a presença de certas lacunas em alguns pontos do discurso que leva à possibilidade de se

pensar em um caminho alternativo àquelas teses vistas anteriormente. Estes pontos, em sua

maioria, estão ligados à tentativa de Sócrates de fazer com que Hipócrates e os demais

ouvintes percebam que Protágoras, de fato, não conhece, mas apenas aparenta saber algo a

respeito da virtude como unidade. Com isto, surge uma nova oportunidade para entender o

que possivelmente Platão estaria sugerindo ao trazer o tema da unidade das virtudes neste

contexto do Protágoras.

Com vistas a isso, a hipótese aqui sugerida segue em parte a leitura que Bruno

Centrone faz deste tema no presente diálogo148. Segundo o autor, a unidade da virtude é

apresentada como “uma totalidade orgânica e unitária, articulada em partes distintas, e

diferente da simples soma ou justaposição de tais partes149”. Como dito anteriormente, o

tema das virtudes e, principalmente, a concepção da virtude como uma unidade vêm inseridas

146 HARTMAN, 1984, p. 116-117. 147 COOPER, John M. Reason and Emotion: Essays on Ancient Moral Psychology and Ethical Theory. New

Jersey: Princeton University Press, 1999. p. 79. 148 CENTRONE, 2015, p. 103-119. 149 CENTRONE, 2015, p. 103.

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em um contexto cujo tema do um e do múltiplo se encontram presentes a partir de duas

analogias150 sugeridas por Sócrates para se pensar a questão da unidade (ἕν).

Com base nessas analogias, Platão traz para o contexto do diálogo a concepção de

unidade que reflete uma relação em que, de um lado, tem-se a imagem da unidade da virtude

como ὅλον, isto é, todo, e, de outro lado, as demais virtudes como partes (τὰ μόρια) desta

virtude-ὅλον. Ambos os modelos propostos pelas analogias oferecem concepções distintas

de ὅλον e μόρια, bem como a relação entre elas, resultando em dois modos diferentes de se

conceber a unidade.

A seguir, a análise de ambas as analogias tem como objetivo justificar a escolha de

uma em detrimento da outra. O critério para tal decisão será mediante a concepção de todo e

partes coerente com o contexto do Protágoras.

4. Os modelos do ouro e da face

Ernest Nagel observa que, para se compreender o modo pelo qual o todo (τὸ ὅλον) e

suas partes (τὰ μόρια) se relacionam, bem como fazermos quaisquer afirmações acerca desta

relação, é necessário que, antes, venhamos a conhecer de que modo o ὅλον e as μόρια estão

sendo entendidos e empregados no contexto em que eles estão sendo analisados151. Ainda,

de acordo com Rhamon Nunes, um dos “aspectos essenciais” do estudo da parte e do todo

consiste em propor “uma teoria ontológica capaz de capturar (...) [o modo pelo qual] nossas

intuições [captam] as noções de parte e todo”152. Apesar do autor estar especificamente se

referindo ao desenvolvimento atual do campo da mereologia, esses aspectos essenciais se

encontram como reflexões presentes principalmente na elaboração dessas duas analogias.

Tendo isso em mente, é possível perceber que Platão está sugerindo dois modos em que

alguém pode intuir/compreender os conceitos de todo e parte a partir do resultado que ambos

tem para a concepção da virtude como unidade.

150 PLATÃO, Prótágoras, 329d-e. 151 NAGEL, Ernest. “Wholes, Sums and Organic Unities”. Philosophical Studies: An International Journal for

Philosophy in the Analytic Tradition. Vol. 3. No. 2, 1952, p. 178. 152 NUNES, Rhamon de Oliveira. “Problemas de Mereologia: O que é um Todo?”. Revista do Seminário dos

Alunos do PPGLM/UFRJ. Vol. 5, No. 1, 2014, p. 145.

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Posto isto, em 329d, Sócrates propõe duas imagens segundo as quais se poderia

pensar a unidade das virtudes:

πότερον, ἔφην, ὥσπερ προσώπου τὰ μόρια μόριά ἐστιν, στόμα τε καὶ ῥὶς καὶ

ὀφθαλμοὶ καὶ ὦτα, ἢ ὥσπερ τὰ τοῦ χρυσοῦ μόρια οὐδὲν διαφέρει τὰ ἕτερα

τῶν ἑτέρων, ἀλλήλων καὶ τοῦ ὅλου, ἀλλ᾽ ἢ μεγέθει καὶ σμικρότητι;

São partes (τά μόρια) tais como as do rosto153, boca, nariz, olhos e orelhas

– indaguei –, ou, tais como as partes do ouro, em nada se diferem umas das

outras, seja reciprocamente, seja em relação ao todo, senão em grandeza ou

em pequenez?154

Para se pensar a virtude como unidade, as seguintes analogias estão assim

apresentadas: a primeira, analogia da face e dos órgãos que a compõem, sugere um modelo

de unidade em que a face, tomada como o todo (ὅλον), se articula com seus diferentes órgãos,

identificados como suas partes, distintas umas das outras. Esta distinção entre as partes é

dada não somente quanto ao formato que possuem, mas, em especial, pela função que cada

uma irá desempenhar segundo sua posição específica nesta face.

A segunda analogia, a da barra do ouro, identifica o todo (ὅλον) como sendo esse

ouro inteiro, seja no formato de barra ou outra forma qualquer; e cujas partes não são distintas

desse todo. Nesse sentido, a noção de unidade que aqui está sendo apresentada é a de um

todo que, identificado com suas partes, não irá possuir nenhum elemento de distinção, a não

ser no que diz respeito ao aspecto quantitativo, isto é, o tamanho dessas partes. Tal diferença

quantitativa seria análoga a que as pessoas distinguissem-se apenas por possuir mais ou

menos virtude.

Em resumo, para Centrone155, as analogias sugerem dois modos de leituras possíveis

envolvendo a concepção de unidade: “i) há partes da virtude (...) (no sentido quantitativo156)

e é possível possuir separadamente uma da outra”, imagem esta que estaria sugerida pelo

modelo do ouro, e ii) “há partes da virtude e é impossível possuí-las independentemente uma

da outra”, tal como é sugerido pelo modelo da face. Vejamos primeiramente como a unidade

pode ser pensada a partir da imagem sugerida pelo modelo do ouro.

153 Ao longo do texto, optamos por traduzir “προσώπου” por “face”, ao invés de “rosto”. 154 PLATÃO, Protágoras, 329d. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p. 439. 155 CENTRONE, 2015, p. 106-107. 156 Explicação da autora.

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4.1 O modelo do ouro

Como já foi dito, a imagem do ouro é tal que não existe um modo de diferenciar o

todo de suas partes. Segundo, as partes apenas são discernidas quanto a seu tamanho e isso

apenas ocorre quando elas são separadas do ὅλον. Uma vez que Platão não sugere como isso

se daria, essa separação pode ser pensada como uma quebra da barra do ouro, em que se

obteria diversas partes, sendo que o ὅλον, que representa a unidade da virtude, deixaria de

existir. Ou seja, o todo, que representa essa unidade, só é possível na medida em que é uma

soma de suas partes iguais, cuja diferença para estas é, novamente, uma diferença de

grandeza.

Brickhouse e Smith consideram a analogia do ouro como aquela adequada à posição

de Sócrates ao longo do diálogo. Para eles, esta analogia sugere tanto que Sócrates estaria

pensando que as virtudes “se referem a uma mesma coisa”157, quanto que elas podem ser

pensadas como sendo distintas umas das outras. Outra passagem que justificaria esta

interpretação dos autores se encontra no passo 361b do Protágoras. Esta passagem toma o

conhecimento como o todo da Virtude, o que permite aos autores considerarem que, para

Sócrates, “todas as virtudes são partes de uma mesma coisa, o conhecimento”158.

Um outro fator para os autores escolherem esta analogia como a mais adequada diz

respeito a uma tentativa de compatibilizar o Protágoras com outras informações acerca das

virtudes que se encontram no Êutifron (11e-12e) e no Laques (197a), nesta ordem: i) “que

algumas partes são partes de outras e cada uma é parte do todo”159; e ii) “que as virtudes são

partes próprias do todo da virtude”160. Portanto, para eles:

A analogia indica que Sócrates pensa que as virtudes-nomes individuais

(individual virtue-names) se referem a uma mesma coisa e ainda podem ser

diferenciadas umas das outras. [Além disso, a analogia parece dar conta de

afirmar que] as virtudes são partes próprias umas das outras (...) e são partes

próprias da virtude como um todo.161

157 BRICKHOUSE, T. C.; SMITH, N. D. “Socrates and the Unity of the Virtues”. The Journal of Ethics. Vol.

1, No. 4 (1997) p. 319. 158 Ibid., p. 319. 159 Ibid., p. 318-319. 160 Ibid., p. 317-318. 161 Ibid., p. 319, 322, tradução nossa.

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De modo a visualizar esta adequação entre a analogia do ouro e o conhecimento como

o todo da virtude, eles se utilizam de uma outra analogia para fazer esta ponte. De um lado,

existe algo que pode ser denominado “disciplina da triangulação”162 e, de outro lado, “as

aplicações especializadas”163 dessa disciplina, como a “navegação costeira e a inspeção”164.

Estas últimas não devem ser pensadas como sub-disciplinas da triangulação, mas como

“aplicações da triangulação a diferentes problemas em contextos distintos.”165 Disto resulta:

i) que os resultados diferentes são “alcançados pelas diferentes aplicações do mesmo

conhecimento”; e ii) “qualquer um que sabe sobre navegação sabe a respeito da inspeção”.166

Aplicando ao caso das virtudes, eles vão dizer que, “embora seja um e o mesmo

conhecimento que constitui duas virtudes, elas são, todavia, diferentes virtudes, se de fato

elas tem diferentes funções (ἔργα).”167 Então, as virtudes teriam funções diferentes, ainda

que produzidas, por assim dizer, pelo mesmo conhecimento. Ademais, suas distinções em

relação uma com as outras ocorreriam na medida em que são “aplicadas a uma gama de

problemas específicos, que produzem um tipo específico de ἔργον (função)”.168

Apesar dos autores oferecerem uma boa resolução para a relação mereológica da

unidade das virtudes, não fica claro como a analogia do ouro se encaixa nessa explicação.

Primeiro porque, de modo muito visível, a analogia alí proposta não se compromete em

estabelecer qualquer distinção no âmbito qualitativo das virtudes, como função, capacidade,

dentre outros. Portanto, nenhum outro critério, como função (ἔργον) específica, capacidade

(δύναμις) própria ou ações distintas, está sendo aludido por esta imagem.

Centrone observa que uma das razões pela qual este modelo do ouro se mostra

inadequado é porque “as partes da virtude são suscetíveis de definições diversas”169 e, além

disso,

Do ponto de vista da condição da alma do agente, o estado psíquico de quem

realiza sacrifícios e de quem enfrenta o inimigo em batalha é evidentemente

diferente: há um preciso πάθος correspondente a cada uma dessas virtudes,

162 BRICKHOUSE, T. C.; SMITH, N. D., 1997, p. 321. 163 BRICKHOUSE, T. C.; SMITH, N. D., 1997, p. 321. 164 BRICKHOUSE, T. C.; SMITH, N. D., 1997, p. 321. 165 BRICKHOUSE, T. C.; SMITH, N. D., 1997, p. 321. 166 BRICKHOUSE, T. C.; SMITH, N. D., 1997, p. 321. 167 BRICKHOUSE, T. C.; SMITH, N. D., 1997, p. 322. 168 BRICKHOUSE, T. C.; SMITH, N. D., 1997, p. 322. 169 CENTRONE, 2015, p. 111.

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e o fato de em ambos os agentes estar presente a mesma ciência do bem e

do mal não comporta uma identidade indiferenciada. Se as virtudes são

apenas nomes de um idêntico estado de espírito, não haverá nenhuma

distinção possível entre coragem, santidade, etc. (CENTRONE, 2015, p.

111-112, nota 25.)

De fato, nesse sentido, a única distinção entre as partes do ouro seria no escopo de

atuação dimensional – e não funcional – de cada uma delas. Por exemplo, a justiça seria uma

virtude maior que a piedade no sentido em que a primeira abarcaria um número maior de

objetos (indivíduos) e situações do que a segunda. Não há, portanto, nenhuma distinção, seja

do significado delas, seja das distinções citadas acima. Além disso, tal analogia não parece

também coadunar com as afirmações do Êutifron ou do Laques, tal como os autores tentam

propor.

Outro ponto que parece tornar o modelo do ouro inadequado é o fato de que tal

representação da unidade implica que um indivíduo pode ter uma das partes sem as demais,

ou seja, ele não precisa da unidade para ser considerado virtuoso. Esse é justamente um dos

resultados que Sócrates irá combater ao longo do diálogo, o que depõe contra qualquer

concepção de unidade que leve a esta possibilidade de se obter parte da virtude, e não o todo.

Um dos motivos por trás da negação desta consequência e, portanto, deste tipo de composição

que leva a uma unidade, é que alguém poderia ser ao mesmo tempo, justo e ímpio, por

exemplo.

Analisando a relação envolvida nesta concepção de unidade a partir da analogia do

ouro, é possível observar que o todo, isto é, a unidade, é algo que depende das suas partes

para existir e não o contrário. Isto também não seguiria a diretriz proposta por Brickhouse e

Smith, pois, para eles, as virtudes individuais assim o são devido ao conhecimento do bem e

do mal, e não que este conhecimento, igualado a virtude, seja uma espécie de soma ou

dependente de suas partes.

Para finalizar, o modelo do ouro nos leva às seguintes conclusões: i) ele não

corresponderia à segunda alternativa da questão que o antecede em 329c-d – em que as várias

virtudes não passam apenas de nomes distintos para uma mesma coisa, isto é, a virtude. Esta

alternativa apresenta uma concepção de virtude que não se compromete com a relação parte-

todo, mas somente com a ideia de unidade como um único objeto, a virtude, recebendo

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diferentes nomes; ii) O modelo do ouro, por sua vez, constitui um exemplo de relação entre

parte e todo. Porém tal relação pressupõe uma identidade entre o todo e suas partes, ou seja,

não admite nenhuma distinção de ordem qualitativa. O todo e suas partes apenas variam em

ordem de grandeza; iii) Sendo o todo e suas partes indistintos, com excessão do tamanho –

em que o todo é concebido como maior que suas partes – este modelo carrega em si a ideia

de que o todo pode ser considerado como simples resultado da soma de suas partes. Ele seria,

com isso, dependente de suas partes, e não o contrário; e, por fim, iv) o modelo do ouro dá a

possibilidade de um indivíduo possuir uma parte sem as demais. A única diferença seria em

se ter mais ou menos ouro.

Estes resultados, em especial o último deles, serão combatidos por Sócrates ao longo

de todo o diálogo. Isso mostra que a concepção de unidade suposta nos argumentos que

veremos mais adiante não vai na mesma direção aduzida por este modelo. É em decorrência

desses fatores que percebemos que Platão não está considerando tal analogia como aquela

mais apta a nos fazer entender algo acerca da natureza da virtude como unidade.

Nesse ponto, nossa hipótese segue um caminho que toma como ponto de partida o

modelo da face para a concepção da unidade da virtude. Segundo a posição de Centrone,

apesar do modelo da face ser o modelo que Protágoras selecionará mais a frente (329e), ele

surge como o mais adequado para explicar a natureza da virtude a partir do aspecto da

unidade. Ademais, como veremos, Protágoras, apesar de escolher o modelo mais adequado,

não irá se comprometer, de fato, com as implicações contidas nessa imagem para a unidade

das virtudes.

4.2 O modelo da face

A fim de demonstrar como o modelo da face se adequa à noção de unidade que parece

estar proposta no Protágoras, a continuação da análise pretende realçar as características e

os aspectos presentes neste modelo. Outrossim, será observado que esta analogia,

diferentemente da analogia do ouro, se harmoniza com outros diálogos, como o Laques e o

Mênon, mas, em especial, com o Parmênides. Este último diálogo possui um contexto

mereológico em que Platão apresenta noções de todo e parte compatíveis com o modelo da

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face, servindo como meio de aprofundar e destacar as características presentes nesta

abordagem.

Deste modo, como descrito anteriormente, a face, identificada com o todo (ὅλον),

possui diferentes órgãos, que são suas partes. A relação é tal que o todo é distinto das suas

partes, bem como as partes são distintas entre elas mesmas. Assim sendo, algumas

características relevantes já podem ser esboçadas, a saber: i) o aspecto da distinção, em

oposição ao da identidade presente no modelo do ouro, que envolve tanto as partes com

relação ao ὅλον, quanto as partes entre elas mesmas; ii) a dependência das partes em relação

ao todo; iii) como consequência dessa relação de dependência, não é possível ter uma parte

sem as demais; e iv) a noção de unidade que é intuída a partir da imagem da face sugere um

todo orgânico, cujas relações internas permitem não somente a interação e a partilha entre

elas, como mantêm suas respectivas distinções.

Sendo assim, o modelo da face sugere uma imagem bem delimitada. Essa unidade

possui diferentes órgãos ou partes, formando um todo de estrutura complexa. O ὅλον,

portanto, é concebido como uma estrutura que reúne e é composta por diferentes μόρια. Estas,

por sua vez, apesar de distintas umas das outras e dotadas de δύναμις própria, isto é, uma

capacidade que as especifica, compartilham, de um certo modo, a mesma natureza dessa

unidade.

Nesse momento, para um melhor aproveitamento e aprofundamento deste modelo, é

necessário analisar como Platão pode conceber esta relação entre o todo e suas partes, cujas

opções já foram aqui levantadas: i) como identidade entre todo e partes; ii) como total

distinção entre o todo e as partes; iii) como distinção entre o todo e as partes que, ao mesmo

tempo, mantenha entre ele algo em comum que os unifica. Estas questões, que podem ser

levantadas diretamente do Protágoras são tratadas claramente por Platão em passagens do

Parmênides que analisaremos a seguir.

4.3 Platão e a noção de ὅλον.

Pelo fato de não haver um desenvolvimento linear e aprofundado sobre a relação entre

todo e partes no Protágoras, a presente análise se estende a outros diálogos com a finalidade

de melhor compreender a questão a partir do modo como ela aparece dentro do pensamento

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platônico. Partindo desses primeiros resultados obtidos a partir do modelo da face, ou seja,

de um ὅλον composto de um determinado modo e bem ordenado – em contraposição a

imagem sugerida da barra de ouro cujas partes não são distintas, e cuja unidade pode ser um

simples resultado de uma soma das partes – Verity Harte, em sua obra “Plato on Parts and

Wholes: The Metaphysics of Structure”170, nos oferece uma abordagem aprofundada sobre o

tema da relação entre ὅλον e partes, sobretudo a partir do Parmênides 171.

Por ela estar comprometida com a temática da mereologia em Platão, e não do uso

desta como explicação de uma questão ou aspecto específico de um diálogo, a presente

proposta acerca do tema da mereologia diverge da autora quanto ao objetivo, mas não quanto

aos argumentos. Assim sendo, a análise de Harte oferece a possibilidade de ampliar a

percepção e a compreensão de como Platão pensa a relação entre todo e partes.

Consequentemente, esta análise tem como objetivo fundamentar a hipótese que, a nosso ver,

perpassa as entrelinhas da discussão acerca da unidade das virtudes no Protágoras.

Seguindo o raciocínio de Harte, o Parmênides apresenta algumas passagens-chave

sobre o modo como Platão desenvolve os conceitos de ὅλον e μόριον, bem como a relação

entre eles. Em resumo, o contexto deste diálogo é dado pela discussão sobre o um e o

múltiplo, cuja descrição pode ser formulada nos seguintes termos: como é que alguma coisa

pode ser ao mesmo tempo um (ἕν) e muitos (πολλά)172? A tentativa de Sócrates para a

resolução da questão é feita do seguinte modo: quando Sócrates é considerado como alguém

que possui um lado esquerdo, e um direito, uma frente e uma parte de trás, ele pode ser

considerado como algo múltiplo devido à sua participação na quantidade. E, de outro modo,

quando considerado em sua totalidade, ele será um quando comparado com outros

indivíduos, por participar da forma do um (ἕν)173. Assim Sócrates conclui:

ἐὰν οὖν τις τοιαῦτα ἐπιχειρῇ πολλὰ καὶ ἓν ταὐτὸν ἀποφαίνειν, λίθους καὶ

ξύλα καὶ τὰ τοιαῦτα, τὶ φήσομεν αὐτὸν πολλὰ καὶ ἓν ἀποδεικνύναι, οὐ τὸ

ἓν πολλὰ οὐδὲ τὰ πολλὰ ἕν, οὐδέ τι θαυμαστὸν λέγειν, ἀλλ᾽ ἅπερ ἂν πάντες

ὁμολογοῖμεν:

170 HARTE, Verity. Parte e todo em Platão: A metafísica da estrutura. Tradução: L. M. Fontes. São Paulo:

Annablume clássica, 2015. 171 A análise de Harte se estende também aos diálogos Teeteto, Sofista, Filebo e Timeu. Porém, por questões de

maior proximidade com nosso trabalho, vamos nos ater somente às conclusões que ela retira do Parmênides. 172 PLATÃO, Parmênides, 128d-129e. 173 PLATÃO, Parmênides, 129c-d.

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Se então alguém tentar mostrar que coisas desse tipo são simultaneamente

um e múltiplas – pedras, pedaços de madeira e coisas tais – diremos que ele

demonstra que algo é múltiplas coisas e um, não que um é múltiplas coisas,

nem que o múltiplo é um, e que não diz nada de espantoso, mas coisas com

que todos concordaríamos. 174

Sócrates parte dessa afirmação para ressaltar que espantoso não é dizer que algo pode

ser ao mesmo tempo um e múltiplo, mas, sim, afirmar que as coisas em si mesmas, neste

caso, as formas, seriam também o seu contrário, como por exemplo, afirmar que o um

também é múltiplo e vice-versa. E é exatamente neste momento que Parmênides chega para

levantar um dilema para a hipótese metafísica de Sócrates.

Verity Harte destaca alguns pressupostos presentes na resposta de Sócrates a Zenão

que irão levar ao dilema que será posto por Parmênides. Ligado ao contexto do um e do

múltiplo – uma temática presente nos textos de Zenão e, principalmente, Parmênides, as duas

outras personagens deste diálogo – pode-se observar que, quando Sócrates diz ter partes –

lado esquerdo, lado direito – ele automaticamente relaciona esse fator à participação na

quantidade. Harte observa que essa “é a primeira ocorrência de que partes pluralizam175”, ou

seja, a noção de partes está atrelada à ideia de que, se algo possui partes, esse algo é múltiplo.

A segunda observação de Harte é que existe na fala de Sócrates uma certa suposição

inicial subjacente, a saber, a identificação do todo com suas partes. Tal identificação gera o

problema da composição por identidade, em que o todo termina por ser identificado como

uma coleção de partes, e não como um indivíduo propriamente dito176. E se o todo, por

exemplo, Sócrates, acaba por ser identificado com suas partes, surge uma dificuldade para se

pensar o todo como unidade.

Uma terceira observação é o modo como Sócrates irá caracterizar o um: ele não

admite o seu oposto, isto é, não admite a multiplicidade. Nesse sentido, a noção de unidade

aqui se assemelha à noção eleata em que uma unidade não tem partes – uma unidade no

sentido em que “o um exclui a pluralidade e, portanto, é atômico”177.

174 Platão, Parmênides, 129d. Tradução: Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. São Paulo: Edições Loyola

2008, p. 29. 175 HARTE, 2015, p. 102. 176 HARTE, 2015, p. 58-60. 177 HARTE, 2015, p. 129.

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Todavia, Harte destaca que o “pressuposto adicional”178 nas entrelinhas da

argumentação, de que o todo é identificado com suas partes, terá “um efeito direto sobre os

termos”179 da solução metafísica dada por Sócrates no contexto do diálogo, “particularmente,

em sua concepção da forma do um”180. Esse “efeito direto” é o que leva diretamente ao

dilema proposto por Parmênides à teoria das formas de Sócrates. Especificamente nos passos

130a-131e, Parmênides traça o dilema, tal como se nota nas seguintes passagens:

(A)

- οὐκοῦν ἤτοι ὅλου τοῦ εἴδους ἢ μέρους ἕκαστον τὸ μεταλαμβάνον

μεταλαμβάνει; ἢ ἄλλη τις ἂν μετάληψις χωρὶς τούτων γένοιτο;

- καὶ πῶς ἄν; εἶπεν.

- πότερον οὖν δοκεῖ σοι ὅλον τὸ εἶδος ἐν ἑκάστῳ εἶναι τῶν πολλῶν ἓν ὄν, ἢ

πῶς;

- τί γὰρ κωλύει, φάναι τὸν Σωκράτη, ὦ Παρμενίδη, ἓν εἶναι;

- ἓν ἄρα ὂν καὶ ταὐτὸν ἐν πολλοῖς καὶ χωρὶς οὖσιν ὅλον ἅμα ἐνέσται, καὶ

οὕτως αὐτὸ αὑτοῦ χωρὶς ἂν εἴη.

- Não é verdade que cada uma das coisas que tem participação

ou bem tem participação na forma inteira, ou bem em uma parte

dela? Ou haveria uma outra participação além dessas?

- Como poderia? disse ele.

- Então, parece-te que a forma inteira, sendo uma, está em cada

uma das múltiplas coisas? Ou como seria?

- Mas o que impede, Parmênides, disse Sócrates, que ela esteja?

Então, sendo uma e a mesma, estará inteira, simultaneamente,

em coisas que são múltiplas e separadas, e, assim, ela estaria

separada de si mesma.181

(B)

- ἦ οὖν ὅλον ἐφ᾽ ἑκάστῳ τὸ ἱστίον εἴη ἄν, ἢ μέρος αὐτοῦ ἄλλο ἐπ᾽ ἄλλῳ;

- μέρος.

- μεριστὰ ἄρα, φάναι, ὦ Σώκρατες, ἔστιν αὐτὰ τὰ εἴδη, καὶ τὰ μετέχοντα

αὐτῶν μέρους ἂν μετέχοι, καὶ οὐκέτι ἐν ἑκάστῳ ὅλον, ἀλλὰ μέρος ἑκάστου

ἂν εἴη.

- φαίνεται οὕτω γε.

- ἦ οὖν ἐθελήσεις, ὦ Σώκρατες, φάναι τὸ ἓν εἶδος ἡμῖν τῇ ἀληθείᾳ

μερίζεσθαι, καὶ ἔτι ἓν ἔσται;

- Será então que a vela inteira estaria sobre cada um, ou uma

parte dela sobre um, outra sobre outro?

- Uma parte.

- Logo, Sócrates, disse ele, são divisíveis as formas mesmas,

178 HARTE, 2015, 114. 179 HARTE, 2015, 114. 180 HARTE, 2015, 114. 181 PLATÃO, Parmênides, 131a-b. Tradução: Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. São Paulo: Edições

Loyola, 2008, p. 33, grifo nosso.

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e as coisas que delas participam participariam de uma de suas

partes, e não é mais o todo que estaria em cada uma das coisas,

mas, sim, uma parte caberia a cada coisa.

- Parece pelo menos que é assim.

- Será então, Sócrates, que estarás disposto a dizer que a forma,

uma, em verdade, se nos divide e ainda será uma?182

Como destacado nas passagens acima, essa nova dinâmica do diálogo insere de modo

mais claro e patente as noções de parte e todo, as quais, até então, estavam subentendidas no

discurso de Sócrates. O que Parmênides faz, ao trazer o tema mereológico do todo e suas

partes para a superfície do diálogo, é demonstrar não só aquilo que já estava latente no

discurso de Sócrates, mas, de modo mais pontual, a necessidade de esclarecimento acerca do

que ele, Sócrates, quer dizer ao declarar que a forma do um não contém partes.

Em vista disso, o dilema, tal como destacado nas passagens acima, pode ser lido nos

seguintes termos: uma coisa particular, ao participar da forma do um, participa do todo ou

apenas de uma parte desta forma? Ambas as alternativas presentes na questão trazem

objeções às formas. Sendo o primeiro caso (i), em que os particulares participam do todo da

forma do um, a forma pode ser tomada como separada dela mesma, estando presente em cada

particular que dela participa; por outro lado, no segundo caso (ii), se o particular participa de

uma parte da forma do um, poder-se-á supor que a forma é constituída de partes, sendo então

múltipla e não una.

O grande problema que Parmênides aqui explora a partir dos pressupostos da hipótese

das formas de Sócrates é pensar como, dadas essas condições, alguém pode supor que o todo,

identificado com a forma um, é uma unidade, já que este todo se identifica com suas partes.

Esta identificação entre o todo e as partes é denominada por Harte como “composição por

identidade”183, algo que também pode ser observado no Protágoras com o modelo da barra

do ouro. Por oposição a esse modelo Platão propõe um novo modo para conceber as noções

de parte e todo, bem como as suas relações no Parmênides. Essa mudança na perspectiva

mereológica encontra-se a partir do passo 146b:

182 PLATÃO, Parmênides, 131c. Tradução: Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. São Paulo: Edições Loyola

2008, p. 35, grifo nosso. 183 HARTE, Verity. Plato on Parts and Wholes: The Metaphysics of Structure. New York: Oxford University

Press, 2002, p. 74.

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πᾶν που πρὸς ἅπαν ὧδε ἔχει, ἢ ταὐτόν ἐστιν ἢ ἕτερον: ἢ ἐὰν μὴ ταὐτὸν ᾖ

μηδ᾽ ἕτερον, μέρος ἂν εἴη τούτου πρὸς ὃ οὕτως ἔχει, ἢ ὡς πρὸς μέρος ὅλον

ἂν εἴη.

Toda coisa é, com relação a toda coisa, penso, da seguinte maneira: ou é a

mesma, ou é diferente; e, se não for a mesma nem diferente, ou bem será

uma parte dessa coisa em relação à qual é assim [sc.nem a mesma nem

diferente], ou bem será como um todo em relação a uma coisa que seria

parte <dessa>184.

Nessa passagem, Parmênides coloca quatro possibilidades relacionais, descritas por

Harte do seguinte modo: “I) a é o mesmo que b; II) a é outro que não b; III) a é parte de b;

IV) a é um todo de que b é parte”185. Até aqui, a opção três estava sendo explorada a partir

da noção de que o todo é identificado com as suas partes. Com o início dessa nova perspectiva

proposta por Platão, Parmênides explorará a quarta opção que acarretará em um novo

entendimento da relação parte-todo. Sendo assim, em 157c, Parmênides vai dizer:

ἀλλὰ μὴν τό γε ὅλον ἓν ἐκ πολλῶν ἀνάγκη εἶναι, οὗ ἔσται μόρια τὰ μόρια:

ἕκαστον γὰρ τῶν μορίων οὐ πολλῶν μόριον χρὴ εἶναι, ἀλλὰ ὅλου.

Entretanto, é necessário que o todo seja um formado de uma multiplicidade

de coisas, e desse um as partes serão partes. Pois, cada parte, é necessário

que seja parte não de uma multiplicidade, mas de um todo.186

Desse momento em diante, a quarta noção de que existe algo que é o todo do qual x

faz parte é reconstruída por Platão a partir de um princípio que não mais envolve um

comprometimento com uma composição por identidade, mas com algo que Harte irá chamar

de composição restrita187. Por ‘composição restrita’, ela entende uma composição que não

admite a identificação entre parte e todo, e nem entre as partes elas mesmas, e supõe o todo

como uma estrutura que unifica essas partes, garantindo ao todo sua unidade.

Portanto, nessa passagem 157c, Parmênides explica o modo como algo pode ser

entendido como sendo um. Esse modo diz que, a partir do momento em que o todo não é

identificado com suas partes, as partes não tornam esse todo múltiplo, mas se encontram no

184 PLATÃO, Parmênides, 146b. Tradução: Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. São Paulo: Edições Loyola,

2008, p.77. 185 HARTE, 2015, p. 201. 186 PLATÃO, Parmênides, 157c. Tradução: Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. São Paulo: Edições Loyola,

2008, p. 107. 187 HARTE, 2002, p. 157.

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todo formando uma única e não muitas coisas. A ideia que está presente nessa passagem é a

de que ser parte depende de ser parte de um todo, e não independentemente deste.

Segundo Harte, o entendimento de Platão nessa passagem é o de que “o todo é

composto de muitos, mas não é identificado com estes muitos que o compõem (...), ele é

gerado [como sendo] um e completo”188. A noção de “completude”, de acordo com Harte,

está ligada à ideia de um todo a que nenhuma parte falta. Entretanto, o todo, completo em

todas as suas partes, não é, ao mesmo tempo, um e muitos, mas uma única coisa. Nesse

sentido, Platão estabelece um outro entendimento para a relação entre todo e partes, segundo

o qual é possível tratar o ὅλον como ἕν quando assumimos que o todo é diferente de suas

partes, bem como as partes entre elas mesmas. Assim, enquanto a identificação entre o todo

e suas partes resultar em assumir, dentre outras consequências, que o todo é um e múltiplo

ao mesmo tempo, semelhante às diretrizes do modelo do ouro, a segunda concepção

mereológica traz um novo modo de intuir a unidade e que se adequa ao modelo da face.

4.4 O modelo da face como uma estrutura ἕν-ὅλον

A fim de saber se a composição restrita proposta por Platão no Parmênides aplica-se

à analogia da face à unidade da virtude, é necessário saber em que medida as intuições e

deduções nelas envolvidas se correspondem. A primeira observação é a de que a face e os

seus órgãos de fato correspondem àquela relação entre todo e partes que não envolve uma

identificação entre estes componentes. Ademais, o tipo de composição envolvida nesse

modelo sugere ordenamento e regras, segundo os quais as partes não podem ocupar qualquer

lugar da face: por exemplo, os olhos não podem ocupar o lugar da boca. Podemos observar

que a face, como ὅλον, oferece um tipo de estrutura com determinações específicas,

nomeadas como a δύναμις de cada parte, isto é, uma certa capacidade que é desempenhada

pela parte, que lhe é própria e que designa a função dessa parte em relação ao todo.

Aplicando este modelo à unidade da virtude, Centrone irá dizer que:

Platão pensou a unidade da virtude em termos de um ὅλον, ou melhor, de

ἕν-ὅλον, isto é, de uma totalidade orgânica e unitária, articulada em partes

distintas e diferente da simples soma ou justaposição de tais partes.189

188 HARTE, 2002, p. 131. 189 CENTRONE, 2015, p. 103.

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Assim, a face pode ser pensada como um tipo de estrutura unitária que fornece uma

capacidade (δύναμις) específica para cada parte. Essas partes, por sua vez, irão ocupar uma

posição determinada nesta estrutura, que se pode também chamar de virtude ἕν-ὅλον, como

o faz Centrone. A virtude, reconhecida e denominada desse modo, tem a sua natureza assim

definida: o todo (ὅλον) não funciona tal como a proposta da barra de ouro, mas passa a ser

compreendido como uma estrutura unitária, que dispõe de funções identificadas pelo

desempenho de capacidades específicas.

Em relação às partes representadas pelos órgãos da face, infere-se que um dos

aspectos principais que envolve a noção de partes é, como já expressado, o elemento de

distinção. Esta distinção entre as partes e o todo e das partes entre elas mesmas, é o que

possibilita a saída do dilema do um e do múltiplo que leva a unidade a ser considerada como

uma e múltipla ao mesmo tempo, gerando uma contradição. É exatamente nessa direção que

os órgãos da face apontam: partes que em nada se identificam, nem quanto aos seus formatos,

nem com respeito a suas funções e capacidades especificas, ou ainda, a objetos visados por

cada uma. O que elas possuem em comum, e que analisaremos mais à frente no capítulo 7, é

uma certa natureza que permite que, por exemplo, esses órgãos façam parte dessa estrutura

específica e não de outra, em que tal natureza não é intrinsíca a elas mesmas, mas é partilhada

pela unidade.

Pode-se objetar que a boca, o nariz, os ouvidos e os olhos possam ser pensados fora

da face. John Cooper, ao se posicionar em favor de uma leitura que identifica as virtudes

entre si, diz que não faz sentido tomar o modelo da face como a escolha correta. Isso porque,

segundo ele:

Se as virtudes diferem uma das outras em uma constituição interna e no

comportamento que as expressa, o que poderia causar qualquer co-

instanciação necessária? [E ainda] A diferença entre Sócrates e Protágoras

acerca da co-instanciação segue-se de suas diferenças a respeito da unidade

da virtude.190

O que Cooper faz – e que lembra a própria posição de Protágoras ao longo do diálogo

– é tomar este elemento de distinção como suficiente para dizer que esse modelo não leva à

190 COOPER, 1999, p. 83, tradução nossa.

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co-implicação das virtudes e, por isso, não é possível considerar tal modelo como o mais

adequado.

Tal interpretação, contudo, não parece levar em conta a noção de todo e partes, logo,

de unidade, com que a analogia se compromete. Uma das objeções que se pode fazer é

justamente que a concepção de unidade proposta pelo modelo da face não admite a não co-

implicação entre as partes. Por esse modelo, é evidente que um órgão fora da face perde a

sua natureza específica, não podendo mais ser considerado como tal. Do mesmo mesmo, as

virtudes, fora dessa estutura unitária, deixam de ser virtudes. Isso porque, assim como os

órgãos, as partes de um todo são dependentes desse todo, e não o contrário. Com isso, o

modelo da face leva a uma concepção de unidade onde, necessariamente, as virtudes estão

co-implicadas. A virtude como ἕν-ὅλον não se divide em partes, nem é uma soma de suas

partes. Ao contrário, os objetos que dela participam se tornam partes enquanto estão na

configuração desse todo.

Em resumo ao que foi dito até aqui, os modelos propostos por Sócrates trazem em si

duas concepções distintas sobre o que seriam o todo e as partes e, consequentemente, a

relação que existe entre eles. De acordo com uma análise do conceito de ὅλον mencionado

no Parmênides, Platão parece considerar problemática a identificação entre o todo e a parte,

uma vez que, dentre outras coisas, tal identificação leva não à unidade mas à pluralidade do

todo. Por essa perspectiva, o ὅλον é um tipo de unidade e as suas partes são diferentes tipos

que interagem e compõem de um certo modo essa estrutura unitária.

Essa concepção de ὅλον se adequa ao que o modelo da face representa, dando conta

de diversos aspectos da unidade da virtude. A questão acerca da natureza da virtude é

colocada de um modo semelhante ao Protágoras em uma passagem das Leis ( Livro XII,

965d-e). Destaca-se a versão de Centrone, que segue a tradução de Zadro:

τοῦτο, ὦ φίλοι, εἰ μὲν βουλόμεθα, τὰ νῦν οἷόνπερ σφόδρα πιέσαντες μὴ

ἀνῶμεν, πρὶν ἂν ἱκανῶς εἴπωμεν τί ποτ᾽ ἔστιν εἰς ὃ βλεπτέον, εἴτε ὡς ἓν εἴτε

ὡς ὅλον εἴτε ἀμφότερα εἴτε ὅπως ποτὲ πέφυκεν: ἢ τούτου διαφυγόντος

ἡμᾶς, οἰόμεθά ποτε ἡμῖν ἱκανῶς ἕξειν τὰ πρὸς ἀρετήν, περὶ ἧς οὔτ᾽ εἰ πολλά

ἐστ᾽ οὔτ᾽ εἰ τέτταρα οὔθ᾽ ὡς ἓν δυνατοὶ φράζειν ἐσόμεθα;

Esta coisa, amigos, se a quisermos, agora devemos mantê-la bem firme e

não a largaremos antes de ter definido suficientemente o que é isto que é

preciso olhar, quer deva ser considerado como uno, quer um todo, quer uma

e outra coisa, quer ainda qualquer outra natureza. Ou então, [e] se isso nos

escapa, pensamos nunca saber o bastante sobre a virtude, da qual não

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saberíamos dizer nem se é muitas coisas, nem se quatro, nem se deve ser

pensada como uma?191

Apesar de Platão não responder a essa questão nas Leis, Centrone considera que a

resposta que se segue tem a ver com a terceira via proposta nesse diálogo, e que consiste em

pensar a virtude como um ἕν-ὅλον. A importância dessa observação se faz ao notar que a

concepção da virtude em termos de um ἕν-ὅλον é um tema presente em Platão e que o diálogo

Protágoras oferece um bom caminho para o tratamento e reflexões acerca desta temática.

Por conseguinte, a passagem nas Leis mostra como é possível, dentro do contexto platônico,

pensar a unidade das virtudes no Protágoras a partir da noção de composição restrita que

Platão desenvolve no Parmênides: essa ponte é feita pelo modelo da face.

4.5 A contradição de Protágoras e a inserção da σοφία como parte da virtude

Após a apresentação das analogias, Sócrates indaga Protágoras sobre qual das duas

imagens melhor representa a concepção da virtude como unidade. E Protágoras escolhe o

modelo da face (Prot. 329d-e). Na sequência, Sócrates aprofunda a investigação com as

seguintes questões:

Σ. πότερον οὖν, ἦν δ᾽ ἐγώ, καὶ μεταλαμβάνουσιν οἱ ἄνθρωποι τούτων τῶν

τῆς ἀρετῆς μορίων οἱ μὲν ἄλλο, οἱ δὲ ἄλλο, ἢ ἀνάγκη, ἐάνπερ τις ἓν λάβῃ,

ἅπαντα ἔχειν;

Π. οὐδαμῶς, ἔφη, ἐπεὶ πολλοὶ ἀνδρεῖοί εἰσιν, ἄδικοι δέ, καὶ δίκαιοι αὖ,

σοφοὶ δὲ οὔ.

Σ. ἔστιν γὰρ οὖν καὶ ταῦτα μόρια τῆς ἀρετῆς, ἔφην ἐγώ, σοφία τε καὶ

ἀνδρεία;

Π. πάντων μάλιστα δήπου, ἔφη: καὶ μέγιστόν γε ἡ σοφία τῶν μορίων.

Σ. ἕκαστον δὲ αὐτῶν ἐστιν, ἦν δ᾽ ἐγώ, ἄλλο, τὸ δὲ ἄλλο;

Π. ναί.

Σ. ἦ καὶ δύναμιν αὐτῶν ἕκαστον ἰδίαν ἔχει; ὥσπερ τὰ τοῦ προσώπου, οὐκ

ἔστιν ὀφθαλμὸς οἷον τὰ ὦτα, οὐδ᾽ ἡ δύναμις αὐτοῦ ἡ αὐτή: οὐδὲ τῶν ἄλλων

οὐδέν ἐστιν οἷον τὸ ἕτερον οὔτε κατὰ τὴν δύναμιν οὔτε κατὰ τὰ ἄλλα: ἆρ᾽

οὖν οὕτω καὶ τὰ τῆς ἀρετῆς μόρια οὐκ ἔστιν τὸ ἕτερον οἷον τὸ ἕτερον, οὔτε

αὐτὸ οὔτε ἡ δύναμις αὐτοῦ; ἢ δῆλα δὴ ὅτι οὕτως ἔχει, εἴπερ τῷ

παραδείγματί γε ἔοικε;

Π. ἀλλ᾽ οὕτως, ἔφη, ἔχει, ὦ Σώκρατες.

S. Há homens, então – disse eu –, que participam (μεταλαμβάνουσιν) de

certas partes (μορίων) da virtude, enquanto outros homens participam de

191 CENTRONE, 2015, p. 104.

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outras, ou é necessário que, se alguém vier a adquirir uma, ele possua todas

elas?

P. De forma alguma – respondeu ele –, visto que há inúmeros homens

corajosos (ἀνδρεῖοί) que são injustos (ἄδικοι), e homens justos (δίκαιοι),

por sua vez, que não são sábios (σοφοὶ).

S. Então, também são partes da virtude sabedoria (σοφία) e coragem

(ἀνδρεία)? – perguntei.

P. Sim, absolutamente – disse ele. – E a sabedoria (σοφία) é a parte

principal.

S. E cada uma delas – disse eu – se difere da outra?

P. Sim.

S. Porventura, cada uma delas possui uma capacidade (δύναμις) particular?

Em relação às partes do rosto, por exemplo, os olhos não são como as

orelhas, tampouco possuem a mesma capacidade (δύναμις); nenhuma delas

é como a outra, nem quanto à capacidade (δύναμις), nem quanto ao restante.

Da mesma forma, também as partes da virtude (τὰ τῆς ἀρετῆς μόρια) não

são uma como a outra, nem em si mesmas nem quanto à sua capacidade,

não é? Evidentemente esse é o caso, se a similitude com o exemplo procede.

P. Mas é esse o caso, Sócrates – disse ele.192

Esta passagem traz novos elementos para a discussão do tema da unidade das

virtudes, em especial o de saber se, de fato, Protágoras possui conhecimento acerca deste

assunto. Como visto na sessão anterior, o modelo da face é aquele cuja reflexão resulta em

uma unidade implicando a inseparabilidade das virtudes. No entanto, a resposta de Protágoras

traz consequências surpreendentes porque ele não só direciona para uma conclusão que não

decorre da analogia da face, como introduz: i) duas novas virtudes, em que uma delas, a

sabedoria, será coloca em questão nas próximas abordagens; e ii) a admissão de que é

possível que um indivíduo seja, por exemplo, injusto e pio ao mesmo tempo.

Neste ponto da análise pode-se levantar a seguinte objeção contra a defesa do modelo

da face como o modelo platônico para a unidade: se o modelo do rosto é o adequado e se ele

implica inseparabilidade, por que Sócrates pergunta, na sequência, se alguém pode ter uma

parte das virtudes sem as demais?

O início da resposta à objeção acima tem um caráter mais simples e intuitivo. Como

vimos, um dos principais intuitos de Sócrates consiste em averiguar se Protágoras de fato,

possui um conhecimento autêntico acerca da unidade das virtudes, ou se consiste apenas em

uma aparência de saber. Pois, do fato de Protágoras ter escolhido o modelo adequado, não

significa que ele sabe algo a respeito. À semelhança de um candidato que acerta uma questão

objetiva, o examinador não pode garantir que aquele acertou a resposta devido a seu

192 PLATÃO, Protágoras, 329e-330b. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p.

439-441.

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conhecimento da questão – pois o candidato pode ter acertado por sorte. O examinador só

terá a certeza se tiver a oportunidade de o interrogar. O mesmo ocorre com Protágoras e

Sócrates. Sócrates só pode mostrar aos seus ouvintes se Protágoras conhece, ou não, apenas

aprofundando a questão, pois acertar na escolha do modelo adequado por si só não constitui

indício de conhecimento.

A continuação da resposta é sustentada pelo próprio diálogo, tomando as duas

passagens a seguir:

(I)

ὅσα δὲ ἐξ ἐπιμελείας καὶ ἀσκήσεως καὶ διδαχῆς οἴονται γίγνεσθαι ἀγαθὰ

ἀνθρώποις, ἐάν τις ταῦτα μὴ ἔχῃ, ἀλλὰ τἀναντία τούτων κακά, ἐπὶ τούτοις

που οἵ τε θυμοὶ γίγνονται καὶ αἱ κολάσεις καὶ αἱ νουθετήσεις. ὧν ἐστιν ἓν

καὶ ἡ ἀδικία καὶ ἡ ἀσέβεια καὶ συλλήβδην πᾶν τὸ ἐναντίον τῆς πολιτικῆς

ἀρετῆς:

Todavia, em relação aos bens que eles presumem advir aos homens pelo

empenho, exercício e ensino, se alguém possuir os males que lhes são

contrários, é nessas circunstâncias que ocorrem as exasperações, as

punições e as admoestações. Dentre esses males, um é a injustiça e a

impiedade e, em suma, tudo o que é contrário à virtude política.193

(II)

εἰ μὲν γὰρ ἔστιν, καὶ τοῦτό ἐστιν τὸ ἓν οὐ τεκτονικὴ οὐδὲ χαλκεία οὐδὲ

κεραμεία ἀλλὰ δικαιοσύνη καὶ σωφροσύνη καὶ τὸ ὅσιον εἶναι, καὶ

συλλήβδην ἓν αὐτὸ προσαγορεύω εἶναι ἀνδρὸς ἀρετήν.

Pois, se há essa única coisa e ela não é a arte do carpinteiro, do ferreiro ou

do ceramista, mas justiça, sensatez e ser pio – em suma, uma única coisa

que eu chamo precisamente de virtude do homem.194

Ambas as passagens constituem a fala de Protágoras que antecede a questão da

unidade colocada por Sócrates em 329c. Por isto, é importante observar como o termo ‘ἓν’,

que designa ‘unidade’ aparece na fala de Protágoras. Na primeira passagem, nota-se que

Protágoras emprega ‘ἓν’ (unidade) com referência ao conjunto de coisas contrárias à virtude,

tais como a injustiça e a impiedade. Na segunda passagem, o mesmo termo é usado para

indicar elementos que, em conjunto, podem ser denominados virtude. Protágoras, já nessas

193 PLATÃO, Protágoras, 323d-324a. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva 2017, p.

423, 425. 194 Ibid., p. 427.

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passagens, dá a entender que a unidade é uma espécie de resultado de uma soma de vários

elementos distintos postos em um mesmo conjunto.

De acordo com Da Silva195, Protágoras possui uma concepção de “unidade empírica”

da virtude. Pensando na questão do ensino abordada na abertura do diálogo, começando pela

educação infantil e passando por vários estágios até a vida adulta, o indivíduo, nesse processo

de aprendizagem, teria “ao final, todas as virtudes (...) incorporadas.”196 Ou seja, as virtudes

não são adquiridas como uma unidade, mas suas partes, ao longo do tempo, vão sendo

incorporadas ao indivíduo, o que permite afirmar que este, por não possuir todas, pode, sim,

ao mesmo tempo, ser injusto e piedoso. Ainda segundo o autor, para Protágoras:

A unidade das virtudes deve consistir na possibilidade de que seus

elementos não necessitem de qualquer relação pré-estabelecida para

garantir esta unidade. (...) A unidade aqui é entendida como um todo de

partes completamente distintas sem nenhuma interrelação entre essas

partes.197

Pode-se agora entender com mais clareza por que Sócrates pergunta a Protágoras se

é possível alguém ter uma parte das virtudes sem as demais. Sócrates está contrapondo a

escolha atual de Protágoras pelo modelo da face com a latente concepção dada por ele

naquelas duas passagens anteriores a 329c, e que Sócrates não deixa passar despercebido.

Indagar acerca da escolha de Protágoras pelo modelo da face não constitui uma objeção a

esta analogia, mas ao próprio Protágoras, com a finalidade de demonstrar que ele, de fato,

apenas possui uma aparência de conhecimento acerca do tema da unidade.

Existem ao menos mais duas objeções a esta leitura. Uma é a atribuição da tese da

identidade a Sócrates. De acordo com Centrone198, a dificuldade reside no fato de que

Sócrates coloca a virtude como unidade, o que faz com que outros intérpretes tenham

dificuldades em pensar que a virtude possui partes. Porém, a impossibilidade de compreender

a virtude como um todo unitário ocorre quando se afirma que o todo é idêntico às suas partes,

o que faria o todo, ao mesmo tempo, um e múltiplo. Mas, quando o todo não está identificado

195 DA SILVA, José Wilson. A unidade das virtudes nos diálogos socráticos: uma questão de método. São

Paulo: Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Univerdade de São

Paulo, 2006, p.18-20. 196 Ibid., p. 18. 197 Ibid., p. 19. 198 CENTRONE, 2015, p. 108-109.

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com suas partes, a unidade do todo passa a ser preservada, bem como a relação dessa unidade

com as suas distintas partes.

Uma segunda objeção ao modelo da face seria a de que quando Sócrates argumenta

a favor da semelhança ou identidade em relação às partes, ele estaria propondo uma

identidade e não uma distinção entre as partes. Isso contaria ou como algo que se segue do

modelo do ouro ou como a tese da identidade. A presente hipótese interpreta que essa

semelhança que Sócrates reivindica não conta a favor da tese da identidade ou da imagem do

ouro, mas, sim, a favor da natureza da virtude como unidade que transmite para as partes

aspectos em comum, justamente por estas participarem e adquirirem a natureza de poder

serem consideradas virtude.

De fato, olhando novamente para a passagem em 329e-330b, após Protágoras dizer

que um indivíduo pode ter uma parte das virtudes sem as demais, Sócrates, na sequência,

retoma o modelo da face para enfatizar os aspectos que tal imagem revela sobre a virtude: i)

que cada uma possui sua própria δύναμις (capacidade), ii) que cada uma é diferente em

relação à outra e, iii) portanto, são diferentes entre si e diferentes quanto à sua δύναμις

específica. Protágoras aceita que assim seja, porém, o que ele deveria mencionar – e é o que

está em jogo desde a abertura da questão em 329c-d – é que, apesar dessas distinções entre

elas, elas compartilham algo em comum, ou seja, ele deveria fazer o que Sócrates fará nos

próximos argumentos que é focar no todo, isto é, na unidade, representada por esta estrutura

da face.

Isso porque o que estas partes compartilham é o fato de que todas possuem a mesma

natureza, a de ser uma virtude, assim como cada órgão da face é um órgão da face. Portanto,

o que Protágoras ignora, intencionalmente ou não, é a face, isto é, a própria estrututa unitária

que corresponde à natureza da virtude como todo. Possuir a mesma natureza não só resulta

da interação e interrelação com o todo, isto é, da virtude pensada como unidade, mas da

interação umas com as outras dentro dessa estrutura unitária, assim como o nariz interage

com a boca, os olhos com os ouvidos, e assim por diante.

O que queremos sugerir neste momento é que, quando Sócrates recoloca o modelo da

face na sequência da resposta de Protágoras, ele o faz com o propósito de contrapor o dizer

de Protágoras de que se pode ter uma parte independentemente do todo com o modelo que

ele mesmo, Protágoras, escolhera. Em suma, o modelo da face garante o contrário, a saber,

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que só é possível ter a virtude como um todo e não parte dela. A busca, portanto, de uma

semelhança entre as partes da virtude é uma busca pela demonstração de que o indivíduo, ao

participar da virtude, participa dela como um todo, e não em parte. Que esse todo é uno e não

múltiplo é garantido pela concepção da unidade da virtude a partir do modelo da face.

Um segundo ponto em que podemos perceber que Sócrates não vai contra o modelo

da face, mas contra essa implicação equivocada de Protágoras, encontra-se na parte final do

diálogo, em que Sócrates diz:

οὕτω δὴ τούτων ὑποκειμένων, ἦν δ᾽ ἐγώ, Πρόδικέ τε καὶ Ἱππία,

ἀπολογείσθω ἡμῖν Πρωταγόρας ὅδε ἃ τὸ πρῶτον ἀπεκρίνατο πῶς ὀρθῶς

ἔχει—μὴ ἃ τὸ πρῶτον παντάπασι: τότε μὲν γὰρ δὴ πέντε ὄντων μορίων τῆς

ἀρετῆς οὐδὲν ἔφη εἶναι τὸ ἕτερον οἷον τὸ ἕτερον, ἰδίαν δὲ αὑτοῦ ἕκαστον

ἔχειν δύναμιν: ἀλλ᾽ οὐ ταῦτα λέγω, ἀλλ᾽ ἃ τὸ ὕστερον εἶπεν. τὸ γὰρ ὕστερον

ἔφη τὰ μὲν τέτταρα ἐπιεικῶς παραπλήσια ἀλλήλοις [359β] εἶναι, τὸ δὲ ἓν

πάνυ πολὺ διαφέρειν τῶν ἄλλων, τὴν ἀνδρείαν, γνώσεσθαι δέ μ᾽ ἔφη

τεκμηρίῳ τῷδε: ‘εὑρήσεις γάρ, ὦ Σώκρατες, ἀνθρώπους ἀνοσιωτάτους μὲν

ὄντας καὶ ἀδικωτάτους καὶ ἀκολαστοτάτους καὶ ἀμαθεστάτους,

ἀνδρειοτάτους δέ: ᾧ γνώσῃ ὅτι πολὺ διαφέρει ἡ ἀνδρεία τῶν ἄλλων μορίων

τῆς ἀρετῆς.’

Uma vez estabelecidos esse pontos, Pródico e Hípias – disse eu –, que

Protágoras defenda, perante nós, a correção de sua reposta inicial, mas não

exatamente de sua primeira resposta: naquela ocasião, ele afirmava que, na

medida em que são cinco as partes da virtude, nenhuma delas era como a

outra, cada qual dotada de uma capacidade particular. Não é isso, contudo,

a que me refiro, e sim ao que ele disse posteriormente. Pois ele afirmou mais

adiante que quatro delas são razoavelmente parecidas umas com as outras,

ao passo que uma, a coragem, distingue-se em muito de todas as demais,

dizendo que eu compreenderia essa diferença mediante a seguinte

evidência: “Encontrará, Sócrates, homens que são extremamente ímpios,

injustos, intemperantes e ignorantes, mas corajososíssimos. Com isso, você

compreenderá que a coragem se distingue em muito das demais partes da

virtude.199

Ao colocar os equívocos das conclusões e respostas de Protágoras, Platão vai

demonstrando, ao longo do diálogo, que Protágoras apenas aparenta ter o conhecimento da

virtude, pois, na verdade, ele não consegue responder que tipo de coisa é a sua unidade.

Assim, Protágoras, até aqui, comete duas incoerências: i) afirma que o indivíduo pode

participar de uma das virtudes sem as demais – ou seja, ele não compreende o que de fato

seria a concepção adequada do todo e das partes e, em consequência, ii) não concebe que elas

possuem algo em comum, serem virtudes – o que seria uma falsa concepção da relação entre

199 PLATÃO, Protágoras, 359a-b. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Pesperctiva, 2017, p. 525.

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elas, portanto, da unidade. Protágoras apenas assume o modelo da face para tomar a distinção

como garantia de que uma parte pode ser obtida independente das demais. Sócrates, por sua

vez, segue em demonstrar que o modelo da face e a distinção que ele sustenta garante que só

é possível ter a virtude como um todo, todo este que, com as partes, compõe uma estrutura

unitária.

Portanto, tem-se de um lado, Protágoras defendendo uma ideia de unidade que

compreende o rosto como uma mera soma mereológica de partes distintas, ou seja, algo

puramente material e espacial; e de outro lado, Sócrates, que, apesar de não ser claro desde

o ínicio, sustenta uma posição que defende um modelo de unidade parte-todo que não é nem

homogêneo, nem idêntico no que diz respeito ao todo e suas partes, nem mesmo uma soma

mereológica. Sendo assim, a partir de 330b, Sócrates estará trabalhando com quatro

argumentos cuja finalidade será a de destacar o papel da virtude como unidade, apontando

que os aspectos em comum, seja entre as partes da virtude, seja entre as partes e a sabedoria,

refletem justamente esse caráter da unidade como natureza cujas partes dela participam. Estes

argumentos seriam:

i) É possível que a justiça seja ímpia? (Prot. 330b-332a).

ii) As partes podem ter os mesmos contrários? (Prot. 332a-333c.)

iii) É possível que uma pessoa injusta seja temperante? (Prot. 333d-334c).

iv) Um homem ignorante pode ser corajoso? (Prot. 349d-351b / 359c-360e).

Nos próximos capítulos analisaremos os quatro argumentos, não necessariamente

segundo a ordem acima.

5. Σοφία como virtude-ὅλον: análise dos argumentos da coragem (Prot. 349d-351b /

359c-360e) e da temperança (Prot. 332 a-333c).

5.1 Σοφία e coragem

O intuito de começar por estes dois argumentos – que correspondem na sequência do

diálogo, ao quarto e ao segundo argumento – tem a ver com o exame do papel que a σοφία

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desempenha neste diálogo. É sobretudo no argumento da coragem, que a σοφία, inserida por

Protágoras como parte da virtude, juntamente com a coragem200, não será identificada por

Sócrates como tal, uma vez que ela aparece empregada de modo intercambiável, tendo o

mesmo sentido que ἐπιστήμη.

Antes desse argumento, Sócrates vai referir-se à σοφία como parte sem demonstrar

qualquer comprometimento com essa posição, valendo-se apenas da visão de Protágoras.

Mas, mesmo nesses casos, como será visto no argumento da temperança, já é possível

perceber a posição de Sócrates, ainda que ela só fique mais clara no argumento da coragem.

Estes quatro argumentos estão inseridos em um conjunto de formulações que tentam

estruturar uma noção de unidade e que, a todo momento, buscam defender uma unidade cujo

resultado não condiz com a posição de Protágoras de que um indíviduo possa ter uma parte

das virtudes sem as demais. O argumento da coragem é o último dos quatro argumentos onde

Protágoras insiste nessa posição, admitindo que, por mais que alguém possa falar que as

virtudes são semelhantes neste ou noutro ponto, o mesmo não pode ser dito a respeito da

coragem, visto que esta é diferente de todas as demais. É importante notar que Protágoras

não vai compreender ‘semelhança’ no mesmo sentido que Sócrates.

Quando Sócrates, nestas quatro exposições, referir-se a uma semelhança ou

identidade entre as virtudes, não estará, como defendido na sessão anterior, negando o

modelo da face em função de uma espécie de tese da identidade entre as virtudes, ou

igualando o todo com suas partes, mas retomando o ponto principal da discussão, a unidade.

É a reação de Protágoras a esses argumentos que induz o leitor a pensar que se trata de uma

negação da distinção entre as virtudes. Na verdade, a objeção de Sócrates será em função da

concepção de unidade de Protágoras, uma concepção, como já dissemos, que não decorre do

modelo da face, e que se compromete apenas com uma noção empírica de acúmulo de

“virtudes”.

200 Retomando o trecho da passagem vista anteriormente: “Π. οὐδαμῶς, ἔφη, ἐπεὶ πολλοὶ ἀνδρεῖοί εἰσιν, ἄδικοι

δέ, καὶ δίκαιοι αὖ, σοφοὶ δὲ οὔ. Σ. ἔστιν γὰρ οὖν καὶ ταῦτα μόρια τῆς ἀρετῆς, ἔφην ἐγώ, σοφία τε καὶ ἀνδρεία;

Π. πάντων μάλιστα δήπου, ἔφη: καὶ μέγιστόν γε ἡ σοφία τῶν μορίων.” P. De forma alguma – respondeu ele –,

visto que há inúmeros homens corajosos (ἀνδρεῖοί) que são injustos (ἄδικοι), e homens justos (δίκαιοι), por sua

vez, que não são sábios (σοφοὶ). S. Então, também são partes da virtude sabedoria (σοφία) e coragem (ἀνδρεία)?

– perguntei. P. Sim, absolutamente – disse ele. – E a sabedoria (σοφία) é a parte principal. (PLATÃO,

Protágoras, 329e-330a, tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p. 439.)

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60

Como ficam essas duas posições frente ao modelo da face? O modelo sugere uma

imagem de unidade concebida como um todo, cuja estrutura, apoiada na ideia de distinção

entre todo e partes, aponta justamente para essa natureza unificada compartilhada pelas

partes. As partes, por sua vez, possuem aspectos de semelhança ou de identidade não entre

elas mesmas, ou seja, não em relação às suas formas, funções ou capacidades específicas,

mas em sua natureza, pelo fato de participarem dessa unidade, o que constitui uma

dependência do todo que será analisada em capítulos posteriores.

O que Protágoras dá a entender é que ele está negando essa natureza subjacente que

responde pela virtude e, com isso, negando qualquer comprometimento com a unidade.

Sócrates, por sua vez, busca, como veremos em cada argumento, um modelo de unidade cuja

coerência se mostra ajustada as diretrizes e intuições propostas pelo modelo da face. A

proposta de Sócrates é a de demonstrar que essa unidade é justamente aquela que

impossibilita que se possa assentar que um indivíduo possa ser ao mesmo tempo injusto e

virtuoso. Lembrando que, para Protágoras, o que justifica a possibilidade de alguém ter uma

parte sem as demais é a ideia implícita de uma “unidade empírica”. Esta unidade pode ser

caracterizada como o resultado de um acúmulo de partes adquiridas ao longo do processo da

aprendizagem. Essas partes não possuem interrelações entre si nem nenhuma dependência

em relação ao todo. Em suma, o conceito de unidade acaba exercendo um papel obsoleto,

deixando de existir como um ente relevante para uma relação entre o todo e suas partes

Entrando na análise do argumento da coragem propriamente dito, Sócrates questiona

a Protágoras se ele considera que os homens ousados são também corajosos e se estes

mesmos homens, que realizam ações com ousadia, assim o fazem por serem conhecedores

(ἐπιστήμονες) do modo como estas ações devem ser feitas. Protágoras irá concordar e o

diálogo passa a ser desenvolvido da seguinte maneira:

Σ. οἶσθα οὖν τίνες εἰς τὰ φρέατα κολυμβῶσιν θαρραλέως;

Π. ἔγωγε, ὅτι οἱ κολυμβηταί.

Σ. πότερον διότι ἐπίστανται ἢ δι᾽ ἄλλο τι;

Π. ὅτι ἐπίστανται.

Σ. τίνες δὲ ἀπὸ τῶν ἵππων πολεμεῖν θαρραλέοι εἰσίν; πότερον οἱ ἱππικοὶ ἢ

οἱ ἄφιπποι;

Π. οἱ ἱππικοί.

Σ. τίνες δὲ πέλτας ἔχοντες; οἱ πελταστικοὶ ἢ οἱ μή;

Π. οἱ πελταστικοί. καὶ τὰ ἄλλα γε πάντα, εἰ τοῦτο ζητεῖς, ἔφη, οἱ

ἐπιστήμονες τῶν μὴ ἐπισταμένων θαρραλεώτεροί εἰσιν, καὶ αὐτοὶ ἑαυτῶν

ἐπειδὰν μάθωσιν ἢ πρὶν μαθεῖν.

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61

Σ. ἤδη δέ τινας ἑώρακας, ἔφην, πάντων τούτων ἀνεπιστήμονας ὄντας,

θαρροῦντας δὲ πρὸς ἕκαστα τούτων;

Π. ἔγωγε, ἦ δ᾽ ὅς, καὶ λίαν γε θαρροῦντας.

Σ. οὐκοῦν οἱ θαρραλέοι οὗτοι καὶ ἀνδρεῖοί εἰσιν;

Π.αἰσχρὸν μεντἄν, ἔφη, εἴη ἡ ἀνδρεία: ἐπεὶ οὗτοί γε μαινόμενοί εἰσιν.

Σ. πῶς οὖν, ἔφην ἐγώ, λέγεις τοὺς ἀνδρείους; οὐχὶ τοὺς θαρραλέους εἶναι;

Π. καὶ νῦν γ᾽, ἔφη.

Σ. οὐκοῦν οὗτοι, ἦν δ᾽ ἐγώ, οἱ οὕτω θαρραλέοι ὄντες οὐκ ἀνδρεῖοι ἀλλὰ

μαινόμενοι φαίνονται; καὶ ἐκεῖ αὖ οἱ σοφώτατοι οὗτοι καὶ θαρραλεώτατοί

εἰσιν, θαρραλεώτατοι δὲ ὄντες ἀνδρειότατοι; καὶ κατὰ τοῦτον τὸν λόγον ἡ

σοφία ἂν ἀνδρεία εἴη;

S. Você sabe, então, quem são as pessoas que mergulham em cisternas

audaciosamente?

P. Sim, os mergulhadores.

S. Por que possuem conhecimento, ou por algum outro motivo?

P. Porque possuem conhecimento.

S. E quem são as pessoas audaciosas201 em combater montadas a cavalo?

São os cavaleiros, ou os que não sabem montar?

P. Os cavaleiros.

S. E em manejar a pelta202? Os peltastas, ou os que não sabem manejá-la?

P. Os peltastas. E o mesmo vale para todos os demais casos – disse ele –, se

é isto o que você procura: os que possuem conhecimento são mais

audaciosos do que aqueles que não o possuem, e, em relação a si próprios,

são mais audaciosos depois que aprendem do que antes de terem aprendido.

S. Já viu pessoas – perguntei –, que não possuem conhecimento de nenhuma

dessas coisas, mas são audaciosas em cada uma delas?

P. Já vi sim – respondeu. – E excessivamente audaciosas.

S. Então, essas pessoas audaciosas não são também corajosas?

P. A coragem seria decerto vergonhosa se assim o fossem – disse ele –, pois

são desvairadas.

S. Como, então – perguntei –, você se refere aos corajosos? Não são

audaciosos?

P. Mantenho o que digo – respondeu.

S. Então – disse eu –, essas pessoas que são assim audaciosas não são

corajosas, mas manifestamente desvairadas, não são? E os mais sábios, por

sua vez, são os mais audaciosos e, sendo os mais audaciosos, são os mais

corajosos, não são? E segundo esse argumento, a sabedoria seria coragem,

não seria?203

A primeira observação de Sócrates é que não somente os conhecedores são ousados,

como também os ignorantes demonstram ousadia em diversas situações. A distinção entre

eles, por sua vez, é que, sendo os indivíduos mais sábios os mais ousados, Sócrates pode

concluir que a coragem não é ousadia – porque esta também se encontra em homens

ignorantes – mas σοφία, por ser justamente algo que distingue a coragem da ousadia.

201 A presente dissertação usa “ousadia” ao invés de “audácia” para a tradução de ‘θαρραλέους’. 202 Espécie de escudo grego antigo. 203 PLATÃO, Protágoras, 349e-350c. Tradução: Daniel R. N. Nunes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p.

499-501, grifo nosso.

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Tomando este argumento à luz da hipótese proposta, Protágoras até então havia

afirmado que um homem ignorante, por exemplo, pode ser ao mesmo tempo corajoso.

Sócrates, por seu lado, tenta demonstrar que não é possível ter uma parte da virtude sem as

demais porque uma unidade é justamente essa em que as partes são dependentes do todo e,

consequentemente, um indivíduo não pode ser parte ignorante e parte corajoso. Sendo assim,

ao dizer que a coragem é σοφία, Sócrates parece ter como intuito indicar que existe algo que

é semelhante às partes e que as identifica de tal modo que elas não podem ser obtidas

individualmente – ou seja, não podem ser encontradas em indivíduos ignorantes, injustos, e

assim por diante.

Este algo é promovido pela unidade, contudo, – e isto Protágoras parece não

compreender – isso não quer dizer uma identidade entre as partes da virtude e a σοφία, ou

entre as demais partes da virtude, como espécie de tentativa de identificar o olho com a boca

a fim de eliminar as distinção entre eles. A identificação que aqui parece estar em jogo é mais

no sentido da razão que explicaria o porquê destas partes serem tomadas em conjunto e não

separadas. Por este viés, o todo, tal como representado pela face, apresenta uma estrutura

específica e bem ordenada de que as partes, assim como os órgãos da face, fazem parte. Essa

é a noção de ‘partes’ aqui implicada.

Não obstante, Protágoras não se deixa convencer por esta associação da coragem com

a sabedoria. Por isso, Sócrates segue com o argumento em 360b:

Σ. θαρροῦσιν δὲ τὰ αἰσχρὰ καὶ κακὰ δι᾽ ἄλλο τι ἢ δι᾽ ἄγνοιαν καὶ ἀμαθίαν;

Π. οὕτως ἔχει, ἔφη.

Σ. τί οὖν; τοῦτο δι᾽ ὃ δειλοί εἰσιν οἱ δειλοί, δειλίαν ἢ ἀνδρείαν καλεῖς;

Π. δειλίαν ἔγωγ᾽, ἔφη.

Σ. δειλοὶ δὲ οὐ διὰ τὴν τῶν δεινῶν ἀμαθίαν ἐφάνησαν ὄντες;

Π. πάνυ γ᾽, ἔφη.

Σ. διὰ ταύτην ἄρα τὴν ἀμαθίαν δειλοί εἰσιν;

- ὡμολόγει.

Σ. δι᾽ ὃ δὲ δειλοί εἰσιν, δειλία ὁμολογεῖται παρὰ σοῦ;

- συνέφη.

Σ. οὐκοῦν ἡ τῶν δεινῶν καὶ μὴ δεινῶν ἀμαθία δειλία ἂν εἴη;

- ἐπένευσε.

Σ. ἀλλὰ μήν, ἦν δ᾽ ἐγώ, ἐναντίον ἀνδρεία δειλίᾳ.

- ἔφη.

Σ. οὐκοῦν ἡ τῶν δεινῶν καὶ μὴ δεινῶν σοφία ἐναντία τῇ τούτων ἀμαθίᾳ

ἐστίν;

- καὶ ἐνταῦθα ἔτι ἐπένευσεν.

Σ. ἡ δὲ τούτων ἀμαθία δειλία;

- πάνυ μόγις ἐνταῦθα ἐπένευσεν.

Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO · 1 ARISTÓTELES, Metafísica, B 1, 995a 24-995b. Tradução: Giovanni Reale. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 85. 2 PLATÃO, Protágoras,

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Σ. ἡ σοφία ἄρα τῶν δεινῶν καὶ μὴ δεινῶν ἀνδρεία ἐστίν, ἐναντία οὖσα τῇ

τούτων ἀμαθίᾳ;

S. E a audácia deles é vergonhosa e má devido a alguma outra coisa senão

à estupidez e ignorância?

P. É o que sucede – disse ele.

S. E aí? Aquilo em razão de que os covardes são covardes, por acaso você

chama de covardia ou coragem?

P. Pelo menos eu chamo de covardia – respondeu.

S. E não se revelaram covardes devido à ignorância das coisas temíveis?

P. Certamente – disse ele.

S. Portanto, são covardes devido a essa ignorância, não são?

Ele concordou.

S. Aquilo em razão de que são covardes, você concorda que é covardia?

Ele confirmou.

S. A ignorância das coisas temíveis e não temíveis não seria, então,

covardia?

Ele acenou que sim.

S. Com efeito – disse eu –, a coragem é contrária à covardia.

Ele disse que sim.

S. A sabedoria (ἡ σοφία) relativa às coisas temíveis e não temíveis não é

contrária, então, à ignorância delas?

A essa altura, ele ainda acenou que sim

S. E a ignorância delas? Não é covardia?

Com muita relutância, ele acenou que sim.

S. Portanto, a sabedoria (ἡ σοφία) relativa às coisas temíveis e não temíveis

é coragem, que é contrária à ignorância delas, não é? 204

Sócrates aqui destaca dois tipos de relações interagindo: de um lado, a relação entre

covardia e ignorância; de outro, a relação entre coragem e σοφία. A primeira estabelece que

os covardes assim o são devido à covardia, cuja causa é a ignorância a respeito das coisas

que devem e não devem ser temidas. Já os corajosos assim o são devido à coragem, cuja

causa é a σοφία, isto é, o conhecimento daquilo que deve e do que não deve ser temido. A

consequência destas relações para o agente é que, uma vez sendo ignorante, ele não poderá

ser, ao mesmo tempo, corajoso, pois a coragem, que torna o indivíduo corajoso, depende do

conhecimento do que se deve ou não deve ser temido. Isto porque ambas as características,

o de ser sábio e ser corajoso, andam juntas, e não separadas. Ou seja, a virtude como unidade

exibe uma relação tal que não permite ao indivíduo ter somente uma parte da virtude, ou

ainda, uma parte desconectada da σοφία porque, de algum modo, esta última qualifica a

coragem, a qual não pode ser obtida individualmente.

204 PLATÃO, Protágoras, 360b-d. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p.

529-531, grifo nosso.

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É necessário agora refletir se Sócrates estaria de fato, tal como Protágpras, tomando

a σοφία como parte ou alguma outra coisa. Como visto, a σοφία, juntamente com a coragem,

será tomada como uma das partes da virtude (329e). Mas, ao longo do Protágoras,

diferentemente da coragem, que não é posta em questão, e sim aceita por Sócrates como

parte, a σοφία surge como um caso estranho a questão da unidade. Se notarmos as passagens

aqui citadas, os termos nelas sublinhados, a saber, ἐπιστήμη e σοφία, estão sendo utilizados

de modo intercambiável, no sentido forte de possuírem o mesmo sentido e significado, isto

é, conhecimento. Em 350a-b, são utilizadas variações do verbo ἐπίσταμαι, cuja forma

substantivada, ἐπιστήμη, é intercambiável com σοφία. Isto pode ser constatado pelo fato de

que Platão começa associando coragem à ἐπιστήμη, mas conclui a primeira parte do

argumento com a afirmação “coragem é σοφία”. Observa-se que Platão começa

estabelecendo que o contrário da coragem é a ignorância, isto é, a falta do conhecimento

daquilo que deve ser temido, e termina concluindo, mais uma vez, que a coragem é um tipo

não de ἐπιστήμη, mas de σοφία.

Em virtude da ἐπιστήμη e σοφία serem utilizadas de modo indistinto, surge um

problema que é saber qual o sentido que Platão atribui a σοφία dentro deste contexto da

virtude. Em 361b, Sócrates simula um interlocutor anônimo que expõe a questão do seguinte

modo:

Σ. εἰ μὲν γὰρ ἄλλο τι ἦν ἢ ἐπιστήμη ἡ ἀρετή, ὥσπερ Πρωταγόρας ἐπεχείρει

λέγειν, σαφῶς οὐκ ἂν ἦν διδακτόν: νῦν δὲ εἰ φανήσεται ἐπιστήμη ὅλον, ὡς

σὺ σπεύδεις, ὦ Σώκρατες, θαυμάσιον ἔσται μὴ διδακτὸν ὄν.

S. “Pois, se a virtude fosse alguma outra coisa que não conhecimento, como

Protágoras tentava argumentar, ela obviamente não poderia ser ensinada.

Todavia, se é manifesto que é conhecimento como um todo, como você se

apressa em dizer, Sócrates, será espantoso se ela não puder ser ensinada.”205

O que se destaca nessa passagem é que Platão categoriza a unidade da virtude como

ἐπιστήμη ὅλον. Se, de fato, σοφία e ἐπιστήμη são a mesma coisa, a σοφία, para Platão, está

identificada com o todo e não como uma das partes da virtude. De fato, a σοφία dentro do

pensamento platônico, tem várias possibilidades de sentido. Segundo Nicholas Denyer206:

205 PLATÃO, Protágoras, 361b. Tradução: Daniel R. N. Nunes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p.533. 206 DENYER, Nicholas. Plato: Protágoras. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.

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Os termos σοφία e ἐπιστήμη estão relacionados de algum modo com

‘sabedoria’ e ‘conhecimento’: pode-se argumentar que são apenas dois

nomes para a mesma coisa (Teet. 145d-e, Xen. Mem. 4.6.7); porém também

pode ser argumentado que σοφία deva ser reservada para um tipo de σοφία

especialmente importante ou valiosa (Rep. 428c-429a). (DENYER, 2008,

p. 124, tradução nossa.)

Dentro dessa perspectiva mais ampla do contexto platônico, ambas as possibilidades,

a de ser ou parte ou todo, poderiam ser adequadas à σοφία. Para Centrone, a analogia da face

apresenta um elemento que permite considerar a σοφία como sendo, ao mesmo tempo, tanto

parte quanto o todo. Tomando a passagem da República em 507c – em que a visão é

relacionada ao conhecimento – ele vai dizer:

A visão tem, em Platão, uma posição proeminente; e, mesmo sendo parte

em certo sentido, pode-se dizer que a visão é o rosto inteiro (...); a parte, e

em geral a parte considerada mais importante, designa por meio de

sinédoque o todo (como às vezes a testa, ou o próprio olho, indicam toda a

pessoa). (CENTRONE, 2015, p. 114-115.)

Contudo, não faz sentido dizer que a σοφία corresponde ao todo e à parte ao mesmo

tempo e, por outro lado, escolher um modelo, tal como o da face, que não identifica o todo

com suas partes. Se tal afirmação de Centrone fosse adequada, Protágoras não estaria errado

em tomar o modelo da face e, na sequência, afirmar que se pode ter uma parte, por exemplo,

a testa, sem o todo e, ainda sim, classificar alguém como virtuoso. Nesse ponto da discussão,

nossa hipótese diverge da de Centrone quanto à função da σοφία em relação à virtude. A

presente hipótese oferece uma leitura em que a σοφία, tal como parece propor o diálogo

Protágoras – ainda que não de modo tão evidente, isto é, por uma fala direta de Sócrates, por

exemplo –, está identificada não como parte, mas com o todo da virtude.

Esta interpretação não só se mostra coerente com a discussão no próprio Protágoras

– e também, vale dizer, com o Parmênides – como encontra no Laques um contexto muito

semelhante a várias passagens e temáticas aludidas no Protágoras, em especial, o de que não

se pode confundir o todo com as suas partes. Neste diálogo, uma das virtudes, a coragem,

terá a sua definição confrontada com a definição da virtude como todo, justamente porque

ambas não podem ter a mesma definição, por não serem idênticas.

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O Laques tem como objetivo saber se é bom que jovens venham a aprender o combate

com armas (μαχόμενον ἐν ὅπλοις)207. Com respeito a esse assunto, Sócrates vai dizer que é

necessário investigar o todo da virtude (ὅλης ἀρετῆς)208, começando com uma parte dela, a

saber, a coragem209. Em 194e-195a, Nícias irá dizer a Laques que a coragem é o

conhecimento do que deve e do que não deve ser temido (“ταύτην ἔγωγε, ὦ Λάχης, τὴν τῶν

δεινῶν καὶ θαρραλέων ἐπιστήμην καὶ ἐν πολέμῳ καὶ ἐν τοῖς ἄλλοις ἅπασιν”). Sócrates, então,

em 198d-199a, fala que o conhecimento, a respeito do que quer que seja, é sempre um

conhecimento sobre o passado, o presente e o futuro. Isso porque o conhecimento diz respeito

às mesmas coisas, em qualquer tempo. Por exemplo, a medicina é a arte do presente, do

passado e do futuro com respeito a saúde. Em 199b, Nícias irá concordar que a sua definição

de coragem diz respeito tanto à coisas boas futuras, quanto aos futuros males. Sócrates

pergunta a Nícias se um homem, com esse tipo de conhecimento, não seria privado de

temperança, da justiça e da piedade. Nícias acha que não seria privado dessas coisas, e

Sócrates coloca a seguinte questão:

Σ. οὐκ ἄρα, ὦ Νικία, μόριον ἀρετῆς ἂν εἴη τὸ νῦν σοι λεγόμενον, ἀλλὰ

σύμπασα ἀρετή.

Ν. ἔοικεν.

Σ. καὶ μὴν ἔφαμέν γε τὴν ἀνδρείαν μόριον εἶναι ἓν τῶν τῆς ἀρετῆς.

Ν. ἔφαμεν γάρ.

Σ. τὸ δέ γε νῦν λεγόμενον οὐ φαίνεται.

Ν. οὐκ ἔοικεν.

Σ. οὐκ ἄρα ηὑρήκαμεν, ὦ Νικία, ἀνδρεία ὅτι ἔστιν.

S. Então, Nícias, não seria uma parte da virtude o que dizes, mas a virtude

inteira.

N. Parece.

S. Mas dissemos que a coragem é uma das partes da virtude.

N. Pois dissemos.

S. Mas agora não se parece com aquilo que dissemos.

N. Não parece.

S. Então, não descobrimos, Nícias, o que é a coragem.210

É possível perceber por esta passagem que Platão toma as partes da virtude como

diferentes da virtude-ὅλον – algo também sugerido pelo modelo da face no Protágoras. A

ênfase da questão é colocada sobre a necessidade de não confundir as partes com o todo. No

207 PLATÃO, Laques, 179e-180a. 208 PLATÃO, Laques, 190c. 209 PLATÃO, Laques, 190c-d. 210 PLATÃO, Laques, 199b, tradução nossa.

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caso do Laques, o problema aparece na definição de coragem, que recebe a mesma definição

no Protágoras. Por sua vez, o Protágoras não irá adentrar nessa questão propriamente dita

da definição de coragem, mas irá, na sequência, relacionar a virtude-unidade com o

conhecimento. Se de fato Platão não está comprometido em tomar a σοφία como parte da

virtude, podemos concluir a partir dessa passagem sobre a coragem, que a σοφία causa a

coragem, e esta torna os homens corajosos. Em outras palavras, o que causa a coragem como

uma virtude é o fato desta coragem ser parte da virtude-ὅλον, tal como as demais partes.

Sendo assim, o elemento em comum destacado nesta passagem e que aponta para a

natureza unitária da virtude é esse em que a coragem faz parte de uma estrutura que guarda

relação com a σοφία, e não com a ignorância, uma vez que a ignorância não faz parte da

virtude e nem é uma virtude. Como consequência, um indivíduo não pode ser ao mesmo

tempo ignorante e virtuoso. Virtude está ligada à ἐπιστήμη ὅλον (em que σοφία = ἐπιστήμη)

e, consequentemente, suas partes também devem ser consideradas um tipo de conhecimento,

uma vez que são um tipo de virtude.

5.2. Σοφία e Temperança

O segundo argumento a ser analisado se encontra entre os passos 332a-333c. Nesse

argumento a σοφία reaparece, agora relacionada à temperança. O argumento tem como

proposta demonstrar aspectos em comum que permeiam a unidade da virtude. O intuito da

nossa hipótese é demonstrar que nesse, e nos demais argumentos, essa busca por elementos

ou aspectos de semelhança ou de identidade não estaria contando a favor de uma tese da

identidade ou semelhança, mas sim a favor do modelo de unidade presente na analogia da

face.

Um outro ponto relevante a se ter em mente na leitura desta passagem é que Sócrates

não deixa claro em que sentido ele está pensando o papel da σοφία até chegar no argumento

da coragem, visto acima. Como afirma Taylor211, Sócrates está, neste argumento, ignorando

“os amplos aspectos da σοφία”. Portanto, Sócrates aparenta tomar a a σοφία a partir do ponto

de vista de Protágoras, ou seja, como parte, mas não dá nenhum indício de que está

211 TAYLOR, C.C.W. Plato: Protagoras. New York: Oxford University Press, 1991, p. 122.

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comprometido com essa visão, como sustenta o nosso argumento anterior. Sendo assim,

temos o seguinte argumento:

Σ. ἀφροσύνην τι καλεῖς;

- ἔφη.

Σ. τούτῳ τῷ πράγματι οὐ πᾶν τοὐναντίον ἐστὶν ἡ σοφία;

Π.ἔμοιγε δοκεῖ, ἔφη.

Σ.πότερον δὲ ὅταν πράττωσιν ἅνθρωποι ὀρθῶς τε καὶ ὠφελίμως, τότε

σωφρονεῖν σοι δοκοῦσιν οὕτω πράττοντες, ἢ εἰ τοὐναντίον ἔπραττον;

Π.σωφρονεῖν, ἔφη.

Σ.οὐκοῦν σωφροσύνῃ σωφρονοῦσιν;

Π.ἀνάγκη.

Σ.οὐκοῦν οἱ μὴ ὀρθῶς πράττοντες ἀφρόνως πράττουσιν καὶ οὐ

σωφρονοῦσιν οὕτω πράττοντες;

Π.συνδοκεῖ μοι, ἔφη.

Σ.τοὐναντίον ἄρα ἐστὶν τὸ ἀφρόνως πράττειν τῷ σωφρόνως;

- ἔφη.

Σ.οὐκοῦν τὰ μὲν ἀφρόνως πραττόμενα ἀφροσύνῃ πράττεται, τὰ δὲ

σωφρόνως σωφροσύνῃ;

- ὡμολόγει.

S. Há algo que você chama insensatez?

Afirmou que sim.

S. E a sabedoria não é absolutamente contrária a tal coisa?

P. É o que me parece – respondeu.

S. Quando os homens agem de maneira correra e benéfica212, eles lhe

parecem sensatos agindo assim nessas circunstâncias, ou o contrário disso?

P. Parecem sensatos – disse ele.

S. E não é com sensatez213 que eles agem sensatamente?

P. Necessariamente.

S. E aqueles que não agem nem corretamente agem insensatamente e não

são sensatos quando agem, não é mesmo?

P. É o que eu acho – disse ele.

S. Portanto, agir insensatamente é o contrário do agir sensatamente?

Afirmou que sim.

S. Então, quando se age insensatamente, age-se com insensatez; ao passo

que, quando se age sensatamente, age-se com sensatez, não é?

Ele assentiu.214

Sócrates chama a atenção para o fato de que tanto a σοφία quanto a temperança

(σωφροσύνη), possuem o mesmo contrário, a saber, a insensatez (ἀφροσύνην). Sócrates vai

delimitar o conceito de ἀφροσύνη como aquela responsável por tornar um indivíduo

insensato (ἄφρων). Ser insensato é aquilo que faz com que um indivíduo aja contrariamente

àquilo que é ὀρθός (correto) e ὠφέλιμος (útil), dois conceitos muito importantes para o

212 Utilizamos a palavra “útil” para a tradução de “ὠφέλιμος”. 213 Esta dissertação utiliza “temperança” ao invés de “sensatez” para a tradução de “σωφροσύνη” e

“temperante/ser temperante” ‘para σωφρονεῖν”, ao invés de sensatez, como o faz Daniel Lopes. 214 PLATÃO, Protágoras, 332a-333c. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p.

447.

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conceito de unidade da virtude como ἀρετή ἐπιστήμη ὅλον, a ser abordado mais adiante.

Desse modo, sendo a ἀφροσύνη contrária tanto à σοφία quanto à temperança, pode-se deduzir

que ambas, σοφία e σωφροσύνη, estão relacionadas ao agir corretamente (ὀρθῶς) e de

maneira útil (ὠφελίμως). Dando prosseguimento, Sócrates vai sugerir mais alguns exemplos

de modo a clarificar o ponto a que ele quer chegar. Por exemplo, o καλός (belo), o ἀγαθός

(bem) e ὀξύ (agudo), cada um destes, segundo Sócrates, possui seu contrário respectivo que,

nesta ordem, seriam: αἰσχρός (indigno, desonroso), κακός (mal) e βαρύς (grave)215. A partir

disso, Sócrates fará duas afirmações:

1. “(...) para cada um dos contrários existe somente um, e não muitos, contrários” –

“οὐκοῦν, ἦν δ᾽ ἐγώ, ἑνὶ ἑκάστῳ τῶν ἐναντίων ἓν μόνον ἐστὶν ἐναντίον καὶ οὐ

πολλά”216;

2. (...) “se algo é feito contrariamente, é feito por ação do contrário” – “οὐκοῦν εἴπερ

ἐναντίως πράττεται, ὑπὸ ἐναντίου πράττοιτ᾽ ἄν;”217.

Sócrates se utiliza dessas premissas para concluir que, se cada coisa possui um único

contrário, então, deve haver uma identidade entre σοφία e σωφροσύνη, uma vez que elas

compartilham o mesmo contrário (Prot. 333a-b). Apesar da rapidez da conclusão de Sócrates

dar a entender que poderia estar considerando a tese da identidade como sua posição, o

argumento, segundo a perspectiva da nossa hipótese, tem outra finalidade, que pode ser

observada a partir do desafio que Sócrates propõe a Protágoras com o intuito de fazer com

que este enxergue sua própria contradição e que os demais ouvintes percebam que o sofista,

de fato, não possui conhecimento acerca da unidade da virtude. O desafio consiste em fazer

com que Protágoras escolha entre a proposição que afirma que cada coisa só tem um único

contrário e o modelo da face. Tal desafio não leva necessariamente à negação da virtude,

como o faz a leitura proposta pela tese da identidade, mas força Protágoras a encarar as reais

implicações contidas no modelo da face acerca da natureza da virtude. Isso faz com que o

leitor do diálogo perceba que, ao não saber resolver tal dilema, Protágoras demonstra falta

215 PLATÃO, Protágoras, 332c. 216 PLATÃO, Protágoras, 332c. 217 PLATÃO, Protágoras, 332e.

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70

de conhecimento sobre o tema analisado, tanto no que diz respeito às relações das partes entre

si e com o todo, quanto às consequências da projeção dessa unidade no indivíduo.

O argumento de Sócrates, quando posto em questão, leva às seguintes ponderações:

i) se Sócrates quisesse estabelecer uma tese da identidade entre as virtudes ou se apoiar no

modelo do ouro, negando assim o modelo da face, ele deveria, ao menos, ter feito algo que

ele não faz: partindo da constatação de que cada coisa tem um único contrário e que, por

isso, a σοφία e a σωφροσύνη não possuem nenhuma distinção por serem idênticas, a mesma

formulação deveria ter aparecido no argumento da coragem visto anteriormente. Alí Sócrates

deveria ter dito que o contrário da coragem não é a covardia, mas a insensatez – contrário

direto da σοφία – e do mesmo modo com as demais partes da virtude. Por conseguinte,

Sócrates teria que explicar: a) ou que a covardia não é o contrário da coragem; b) ou que a

coragem possui não um, mas dois contrários: a covardia e a insensatez. ii) A segunda razão

se apoia em uma das observações de Centrone:

Se do fato de duas coisas não serem estritamente idênticas se seguisse sua

radical diversidade, neste caso o ἀγαθόν deveria ser radicalmente diferente

do καλόν, algo que Sócrates certamente não admitiria. O argumento serve

para pôr Protágoras à prova.218

Por estas observações Sócrates, ao buscar um aspecto em comum entre as partes, não

pode estar, com isso, querendo negar que duas coisas não idênticas, como o caso do ἀγαθόν

e do καλόν, não possuam algum aspecto semelhante entre si. A mesma reflexão se aplica às

partes, ou seja, o fato delas serem distintas com respeito a elas mesmas e em relação ao todo,

não é suficiente para negar: 1) a sua dependência necessária na/da unidade; 2) os aspectos

semelhantes ou idênticos entre elas, que não eliminam suas distinções, mas são resultado da

sua participação nesse todo, isto quer dizer, nesta natureza unitária da virtude. Isto serve para

mostrar que Protágoras não está comprometido com a compreensão da virtude como unidade,

e que os argumentos de Sócrates focados na relação entre partes e todo – representado pela

σοφία – e as partes entre si são sempre uma tentativa para se voltar à questão que Protágoras

parece se recusar a responder: o que é a unidade das virtudes? Protágoras é, então, cada vez

mais exposto como alguém que não compreende as implicações envolvidas no modelo da

face porque ele não conhece o que seja essa unidade. Buscar os aspectos semelhantes na

218 CENTRONE, 2015, p.115.

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dessemelhança seria, nesse sentido, um modo de demonstrar que, nessa relação entre parte e

todo, a virtude não é uma soma de partes que podem ser divididas e destacadas das demais,

mas uma unidade.

Existe ainda uma terceira razão favorável à leitura proposta por nossa hipótese. Como

já sinalizado no início da exposição deste argumento, o agir de modo correto (ὀρθός) e útil

(ὠφέλιμος) são ambos contrários à ἀφροσύνην e, portanto, descrevem mais dois traços

comuns a todas as virtudes. Isso pode ser explicado por meio da concepção da unidade como

todo. Em resumo ao que será visto no capítulo 7, as virtudes possuem aspectos comuns à

medida que elas participam do todo. Sendo dependentes desse todo, elas partilham uma

mesma natureza, a saber, a de serem virtude. Além do mais, tais traços ou aspectos se revelam

estritamente ligados ao conhecimento que depois será associado à unidade da virtude na parte

final do Protágoras nos passos: 352c; 358b e 361b-c.

O princípio em que se baseia a ideia de que ὀρθός e ὠφέλιμος são aspectos presentes

em todas as partes e garantidos pela virtude como natureza unitária é a presença da φρόνησις

em todas elas. A φρόνησις é mencionada em 352c no argumento conhecido como a negação

da acrasia, e estará associada ao conhecimento que é dito ser todo belo, e não em parte. Sua

função é de auxiliar os homens a agir segundo este conhecimento, ou seja, sua função é levar

os homens a agir bem219. Logo depois, em 358b em diante, esse conhecimento associado à

φρόνησις, designando, sobretudo, um conhecimento prático, é definido como um

conhecimento forte e resistente à força da aparência, fazendo com que toda ação bela seja

boa e útil (“καὶ τὸ καλὸν ἔργον ἀγαθόν τε καὶ ὠφέλιμον;”). Por conseguinte, a virtude está

ligada a esse conhecimento prático que, como unidade, faz com que cada parte que a ele

pertence seja descrita como bela, boa, correta e útil aos homens. É este conhecimento que,

em 361b-c, estará sendo descrito como a virtude como um todo, ou unidade.

A relação da virtude com o conhecimento, associada à φρόνησις que leva à ação

qualificada como ὀρθός e ὠφέλιμος, pode ser observada claramente nos passos 88a-89a do

Mênon, onde se sublinha a seguinte passagem:

219 PLATÃO, Protágoras, 352c: “ἢ καλόν τε εἶναι ἡ ἐπιστήμη καὶ οἷον ἄρχειν τοῦ ἀνθρώπου, καὶ ἐάνπερ

γιγνώσκῃ τις τἀγαθὰ καὶ τὰ κακά, μὴ ἂν κρατηθῆναι ὑπὸ μηδενὸς ὥστε ἄλλ᾽ ἄττα πράττειν ἢ ἃν ἐπιστήμη

κελεύῃ, ἀλλ᾽ ἱκανὴν εἶναι τὴν φρόνησιν βοηθεῖν τῷ ἀνθρώπῳ;”.

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Σ – ἆρα οὐχ ὥσπερ τῇ ἄλλῃ ψυχῇ ἡ φρόνησις ἡγουμένη ὠφέλιμα τὰ τῆς

ψυχῆς ἐποίει, ἡ δὲ ἀφροσύνη βλαβερά, οὕτως αὖ καὶ τούτοις ἡ ψυχὴ ὀρθῶς

μὲν χρωμένη καὶ ἡγουμένη ὠφέλιμα αὐτὰ ποιεῖ, μὴ ὀρθῶς δὲ βλαβερά;

Μ – πάνυ γε.

Σ – ὀρθῶς δέ γε ἡ ἔμφρων ἡγεῖται, ἡμαρτημένως δ᾽ ἡ ἄφρων;

Μ – ἔστι ταῦτα.

Σ – οὐκοῦν οὕτω δὴ κατὰ πάντων εἰπεῖν ἔστιν, τῷ ἀνθρώπῳ τὰ μὲν ἄλλα

πάντα εἰς τὴν ψυχὴν ἀνηρτῆσθαι, τὰ δὲ τῆς ψυχῆς αὐτῆς εἰς φρόνησιν, εἰ

μέλλει ἀγαθὰ εἶναι: καὶ τούτῳ τῷ λόγῳ φρόνησις ἂν εἴη τὸ ὠφέλιμον: φαμὲν

δὲ τὴν ἀρετὴν ὠφέλιμον εἶναι;

Μ – πάνυ γε.

Σ – φρόνησιν ἄρα φαμὲν ἀρετὴν εἶναι, ἤτοι σύμπασαν ἢ μέρος τι;

Μ – δοκεῖ μοι καλῶς λέγεσθαι, ὦ Σώκρατες, τὰ λεγόμενα.

S – Não é o caso que, assim como a sensatez (φρόνησις) que, conduzindo

as outras partes da alma, torna úteis as coisas da alma, e a insensatez

(ἀφροσύνη) torna essas coisas danosas, e, novamente, também a alma,

usando e conduzindo corretamente aquelas coisas, assim também as tornam

úteis, [porém não conduzindo e usando] corretamente as tornam danosas?

M – Totalmente

S – Então, a alma dotada de sensatez conduz corretamente, e a que é

insensata conduz erradamente?

M – Assim é.

S – Portanto, segundo tudo isso, deve-se dizer que, para o homem, as demais

coisas dependem da alma, e as coisas da alma dependem da sensatez, se

quiserem ser boas. Afirmamos, então, que a virtude é útil?

M – Totalmente.

S – Afirmamos que a virtude é sensatez, seja como todo, seja uma parte

dela?

M – Julgo que disseste belamente, Sócrates. 220

Este é outro contexto muito semelhante a certas partes da estrutura do Protágoras.

Sócrates diz a Mênon que, para que algo seja considerado como útil e proveitoso, em resumo,

bom (ἀγαθός), deve estar acompanhado pela φρόνησις. Isso porque as coisas que estão na

alma podem ser tanto boas quanto ruins. Por exemplo, a coragem pode trazer o bem ou o mal

para o indivíduo221. O que fará diferença será o fato dela estar acompanhada ou não pela

φρόνησις, caso contrário, ela será apenas uma “espécie de ousadia (οἷος θάρρος)”222. Em

outras palavras, a coragem, quando não acompanhada da φρόνησις, que é um aspecto que

corresponde à natureza da virtude como unidade, não será coragem, pois, fora do todo, ela

deixa de ser uma virtude.

Uma vez que a virtude mantém essa ligação com φρόνησις tanto como todo, isto é,

de modo completo, quanto em relação a suas partes, não só a virtude, mas também suas

220 PLATÃO, Mênon, 88d-89a, tradução nossa. 221 PLATÃO, Mênon, 88b. 222 PLATÃO, Mênon, 88b.

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partes, dependem da relação com a φρόνησις. Nesse sentido, todas a partes da virtude são

contrárias à ἀφροσύνη, e isso não porque as virtudes são idênticas entre si, mas porque elas

participam da natureza da virtude que está acompanhada pela φρόνησις. Em suma, as

virtudes são semelhantes, não por serem iguais, mas porque todas levam o indivíduo à ação

correta e útil porque todas compartilham da mesma natureza do todo.

Para concluir sobre a relação entre σοφία e unidade do todo, Sócrates e Protágoras

divergem sobre o significado de σοφία. Ao que apontamos, Sócrates entende que a σοφία,

que é o mesmo que ἐπιστήμη (conhecimento), se associa à φρόνησις, e portanto, ao todo da

virtude.

6. Análise dos Argumentos da Justiça e Piedade (330b-332a) e da Justiça e Temperança

(333d-334c)

6.1 Justiça e Piedade

A partir dessa sessão serão analisados dois argumentos que correspondem à relação entre

as partes da virtude. Começando pela análise que relaciona a justiça e a piedade, tem-se a

seguinte passagem:

Σ – ‘οὐκ ἄρα ἐστὶν ὁσιότης οἷον δίκαιον εἶναι πρᾶγμα, οὐδὲ δικαιοσύνη

οἷον ὅσιον ἀλλ᾽ οἷον μὴ ὅσιον: ἡ δ᾽ ὁσιότης οἷον μὴ δίκαιον, ἀλλ᾽ ἄδικον

ἄρα, τὸ δὲ ἀνόσιον;’ τί αὐτῷ ἀποκρινούμεθα; ἐγὼ μὲν γὰρ αὐτὸς ὑπέρ γε

ἐμαυτοῦ φαίην ἂν καὶ τὴν δικαιοσύνην ὅσιον εἶναι καὶ τὴν ὁσιότητα

δίκαιον: καὶ ὑπὲρ σοῦ δέ, εἴ με ἐῴης, ταὐτὰ ἂν ταῦτα ἀποκρινοίμην, ὅτι ἤτοι

ταὐτόν γ᾽ ἐστιν δικαιότης ὁσιότητι ἢ ὅτι ὁμοιότατον, καὶ μάλιστα πάντων ἥ

τε δικαιοσύνη οἷον ὁσιότης καὶ ἡ ὁσιότης οἷον δικαιοσύνη.

S – “Portanto, a piedade não é como ser uma coisa justa, nem a justiça como

ser uma coisa pia, mas como não ser pia; e se a piedade é como não ser

justo, então ela é como ser injusto, ao passo que a justiça é como ser ímpio;

não é isso?” O que lhe responderemos? Eu próprio diria, em minha defesa,

que tanto a justiça é pia quanto a piedade é justa; e, em sua defesa, se você

me permite, eu daria a mesma resposta, que justiça e piedade são a mesma

coisa ou coisas muitíssimo semelhantes e, sobretudo, que a justiça é como

a piedade e a piedade é como a justiça.223

Este constitui o primeiro argumento na sequência do diálogo e a primeira chance de

Protágoras para demonstrar que conhece o tema da unidade da virtude. Lembrando que

223 PLATÃO, Protágoras, 331a-b. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p. 443.

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Protágoras não admitiu nenhuma semelhança ou identidade na concepção da virtude como

unidade – o que, na perspectiva da nossa hipótese, constitui uma falta de atenção ou mesmo

negação da própria função que a face desempenha na analogia em relação às partes, qual seja,

da participação em comum que as partes têm nessa natureza a partir da estrutura da unidade

– Sócrates coloca diante de Protágoras o modelo da face e o contrapõe com a conclusão a

que este chegou em 329e em diante: se alguém pode ter uma parte sem as demais, estaria

Protágoras afirmando que a justiça é impiedade e vice-versa? Protágoras entende que

Sócrates quer propor uma semelhança entre as partes para negar a distinção entre elas,

levando igualmente à negação da conclusão de poder ter uma parte independente do todo224.

Todavia, segundo a interpretação proposta por nossa hipótese, é possível fazer uma

leitura em que se perceba que o que Sócrates está dizendo é que a semelhança não se deve às

partes em si, que continuam e são distintas umas das outras. A semelhança se deve a e é

explicada pela unidade. A face não torna os órgãos iguais, mas é ela que os faz terem a mesma

natureza, qual seja, a de serem órgãos da face e não do sistema respiratório. É por meio disso

que eles possuem aspectos em comum sem deixarem de ser distintos. Sócrates quer

demonstrar a Protágoras que, se ele encarar a distinção como algo que leva a possuir uma

parte da virtude, e não a virtude como um todo, ele terá que admitir que a justiça é ímpia, i.e.,

dizer que um indivíduo pode ser ímpio e, ainda assim, possuir uma parte da virtude.

O intuito de Sócrates com este argumento é mostrar a Protágoras que a unidade é o

que condiciona as partes a serem o que elas são. É possível perceber que Sócrates aponta

para isso a partir do momento que ele visa demonstrar que há algo que ambas as partes,

mesmo distintas, teriam em comum, sendo esse o fator responsável para a afirmação de que

ser pio é ser justo, e vice-versa. Nesse sentido, a afirmação seria não que justo é igual a pio,

mas, tomando o modelo da face como parâmetro, seria um entendimento do tipo ‘aquele que

tem face e tem boca, tem olhos’. E isso porque estes fazem parte de uma unidade, que não se

divide, mas funciona como estrutura para estas partes e estas, por sua vez, partilham de

aspectos da natureza da virtude, sem se igualarem ao todo e umas com as outras.

Quando Sócrates postula que a justiça e a piedade devem ser idênticas ou

semelhantes, ele o faz para Protágoras perceber que, em realidade, não é a identificação entre

as δυνάμεις de ambas que deve ser levada em consideração, uma vez que a ação justa é

224 PLATÃO, Protágoras, 331a-332a.

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diferente de uma ação pia e que ambas possuem capacidades e funções especificas, mas que

essa distinção não leva à consequência de se ter uma parte sem as demais, porque ambas, a

justiça e a piedade, fazem parte de uma mesma estrutura, a saber, a virtude que não admite

nem a impiedade nem a injustiça. A justiça e a piedade, nesse sentido, seriam,

respectivamente, pia e justa, não no sentido destes serem um atributo específico de cada uma,

mas no sentido de demonstrar que, onde se encontra a justiça, também se encontra a piedade.

Uma pessoa que possui a justiça não tem como agir impiamente, porque a verdadeira justiça,

aquela que faz parte da virtude, se encontra na mesma estrutura que a piedade.

O enfoque de Sócrates sobre a questão da identidade e semelhança entre as partes

parece ter o sentido de apontar para a existência de algo que perpassa todas essas partes, e

que faz com que elas, mesmo sendo distintas, sejam obtidas todas juntas, e não em parte.

Assim como o rosto do indivíduo é completo, e não pode ser obtido em partes, a justiça ou a

piedade, sem estar juntamente com as demais partes na virtude como um todo, deixa de ser

virtude, assim como um olho, fora da face, não é o mesmo que estando na face. Isso porque

é a face que proporciona que o olho tenha a visão, do mesmo modo a virtude faz com que a

coragem seja considerada uma virtude. A busca da identidade ou semelhança, seria, em

realidade, a busca por essa unidade que relaciona essa multiplicidade de virtudes.

Para finalizar, Cooper, um defensor da identificação entre as virtudes, vai dizer que

tomar a semelhança entre as partes indicaria “um tipo de unidade mais forte que aquela

pertencente a um todo de partes”225. Essa leitura de Cooper assemelha-se à de Protágoras, ou

seja, que todo e partes são uma soma mereológica em que as partes não são co-implicadas.

Entretanto, quando se adota uma abordagem coerente com as intuições inferidas pela imagem

do modelo da face, tal ideia de unidade se apresenta igualmente forte, por, ao menos, dois

motivos: i) A noção de semelhança ou identificação não tem como critério a eliminação das

distinções entre as partes e o todo. De modo contrário, é devido à dependência das partes ao

todo que elas compartilham da mesma natureza que, fora da face, elas não possuem. Portanto,

não podem ser obtidas independentes dessa unidade; e ii) Essa concepção de unidade como

todo-parte, baseada no modelo da face, preserva tanto a distinção entre todo e partes, quanto

a unidade da virtude.

225 COOPER, 1999, p. 81.

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6.2 Justiça e Temperança

O seguinte argumento socrático contra a posição de Protágoras relaciona a justiça e a

temperança. A seguir, selecionamos a parte do argumento que nos parece central:

Σ. ἴθι δή, ἔφην ἐγώ, ἐξ ἀρχῆς μοι ἀπόκριναι. δοκοῦσί τινές σοι σωφρονεῖν

ἀδικοῦντες;

Π. ἔστω, ἔφη.

Σ – τὸ δὲ σωφρονεῖν λέγεις εὖ φρονεῖν;

Π – ἔφη.

Σ – τὸ δ᾽ εὖ φρονεῖν εὖ βουλεύεσθαι, ὅτι ἀδικοῦσιν;

Π – ἔστω, ἔφη.

Σ – πότερον, ἦν δ᾽ ἐγώ, εἰ εὖ πράττουσιν ἀδικοῦντες ἢ εἰ κακῶς;

Π – εἰ εὖ.

Σ – λέγεις οὖν ἀγαθὰ ἄττα εἶναι;

Π – λέγω.

Σ – ἆρ᾽ οὖν, ἦν δ᾽ ἐγώ, ταῦτ᾽ ἐστὶν ἀγαθὰ ἅ ἐστιν ὠφέλιμα τοῖς ἀνθρώποις;

Π – καὶ ναὶ μὰ Δί᾽, ἔφη, κἂν μὴ τοῖς ἀνθρώποις ὠφέλιμα ᾖ, ἔγωγε καλῶ

ἀγαθά.

S. Adiante, então! – disse eu. – Responda-me desde o princípio! Parece-lhe

que alguém seja sensato226 ao cometer injustiça?

P. Que seja! – respondeu.

S – Você afirma que ser sensato é ter bom senso?227

Disse que sim.

S – E ter bom senso é deliberar bem ao cometer injustiça?

P – Que seja! – respondeu.

S – Se ele for bem sucedido. Ao cometer injustiça – perguntei –, ou

malsucedido?

P – Bem sucedido.

S – Você afirma, então, que certas coisas são boas?

P – Afirmo, sim.

S – Por acaso – perguntei – são boas as coisas que são benéficas228aos

homens?

P – Sim, por Zeus – disse ele. – E mesmo que não sejam benéficas aos

homens, pelo menos eu as chamo de boas. 229

A sequência deste argumento é interrompida por Protágoras. Ele diz que, apesar de

existirem coisas boas, elas podem não ser úteis aos homens. A explicação para isso é que as

coisas consideradas boas possuem uma natureza variada (“οὕτω δὲ ποικίλον τί ἐστιν τὸ

ἀγαθὸν καὶ παντοδαπόν”)230, o que pode ser exemplificado com o azeite. Apesar de ser bom

226 Mais uma vez lembramos que a palavra “temperança” está sendo utilizada nesta dissertação no lugar de

“sensatez” para a tradução de “σωφροσύνη” e “temperante/ser temperante” ‘para σωφρονεῖν”, ao invés de

sensato/ser sensato. 227 Nesta dissertação fazemos uso da expressão “pensar bem” ao invés de “bom senso” para a tradução de “εὖ

φρονεῖν”. 228 Lembramos que a palavra “útil” é a que adotamos na presente dissertação para a tradução de “ὠφέλιμος”. 229 PLATÃO, Protágoras, 333d-e. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Pauo: Editora Perspectiva, 2017, p. 451. 230 PLATÃO, Protágoras, 334a-c.

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e útil quando utilizado externamente, ele deixa ser ser bom e útil quando ingerido pelo

homem. Segundo Denyer esta resposta causa uma dificuldade para a estrutura deste que

constitui o terceiro argumento na sequência do diálogo, porque ela impede que “aprendamos

aonde a questão estava levando”231.

Contudo, algumas conclusões podem ser retiradas desta passagem se pensada em

conexão com o que foi visto até aqui. Em 333b, Protágoras, mais uma vez, reforça a ideia de

que, para muitas pessoas, existem indivíduos injustos que também se mostram temperantes

quando agem injustamente. Assim é que alguém pode admitir que um indivíduo temperante

é capaz de cometer um ato injusto. Essa é a concepção que Protágoras tem da virtude. Ele

passa a defender essa posição, dita por ele ser aquilo que a maioria das pessoas concebe,

insistindo que um indivíduo pode ter uma parte da justiça, e nesse caso, pode ser ao mesmo

tempo injusto e temperante. Por sua vez, Sócrates analisa as implicações por trás do

estabelecimento de uma relação entre temperança e injustiça. O intuito é, mais uma vez,

demonstrar que tal associação não se sustenta.

Se, como visto no argumento da σοφία e da temperança, a temperança está ligada à

φρόνησις – contrária à ἀφροσύνην – um indivíduo que é temperante passa a ser um indivíduo

que εὖ φρονεῖν, isto é, uma pessoa que tem bom senso, ou ainda, que pode ser caracterizada

por pensar bem. Considerando essa informação juntamente com a posição de Protágoras, se

um indivíduo é temperante no momento em que age injustamente, sendo suas ações descrita

como εὖ φρονεῖν, o resultado a que se chega é que ele age de forma injusta por considerar

essa ação como sendo a melhor deliberação. Dessa forma para um indivíduo temperante,

neste caso, a ação injusta revela ser a melhor escolha.

O segundo bloco do argumento visa estabelecer a relação entre algo que é, ao mesmo

tempo, bom e útil aos homens, ou seja, que as coisas boas são úteis aos homens. No

argumento do Mênon apresentado anteriormente, uma coisa é dita como sendo boa quando é

feita de modo correto. Isto é considerado útil aos homens, e isso só é possível quando está

acompanhada pela φρόνησις – uma afirmação que também aparece no Protágoras, como

visto antes. No momento em que Sócrates visa relacionar estes dois blocos, Protágoras o

interrompe com seu argumento um tanto relativista e o exemplo do azeite.

231 DENYER, 2008, p. 134.

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Numa tentativa de unir os dois blocos, Denyer sugere que Sócrates poderia fazer o

seguinte questionamento: “quem é beneficiado e prejudicado por tal justiça ou tal

injustiça”232? Pensando de outro modo, dado que a ação injusta seria considerada boa e útil,

fruto do pensar bem e do deliberar pelo melhor, o passo seguinte seria pensar para quem esta

ação injusta seria útil. Isto envolveria, no mínimo, dois indivíduos: aquele que pratica a ação

e aquele que recebe esta ação. Sendo a injustiça o resultado da melhor deliberação, se ela for

considerada útil, ela deverá ser considerada boa para ambos.

Entretanto, quem sofre uma ação injusta não a considera como algo bom por si

mesmo. Por conseguinte, a ação injusta sofrida pelo indivíduo não é tomada como algo útil,

porque ela não traz benefício, mas prejuízo para o indivíduo. Uma ação injusta também revela

que aquele que escolheu praticar esta ação não optou pelo útil aos homens, mas sim ao que é

mal e prejudicial. Tal ação é diretamente contrária aquele que, de fato, pode ser considerado

temperante.

Protágoras, talvez prevendo a conclusão a que seria levado, tenta relativizar o

argumento que envolve as coisas boas e a utilidade destas para os homens, com a intenção

de demonstrar que nem tudo o que é bom é útil, ou proveitoso aos homens. Essa posição o

levaria a um outro raciocínio, a saber, que podem haver coisas úteis as quais, no entanto, não

são boas, o que explicaria o fato de alguém agir injustamente. Nesse caso, a questão seria não

que a injustiça é algo ruim, mas que alguns homens agem em função do que é útil para si,

ainda que precisem praticar uma ação injusta e isso seria o mesmo que deliberar bem. Logo,

a temperança não estaria ligada ao que é bom, mas ao que é útil ao homem, uma vez que a

utilidade está relativizada, podendo ser associada tanto a coisas boas quanto a coisas ruins,

tomando sempre a si mesmo como parâmetro.

A partir destes dois pontos Sócrates mais uma vez aponta para uma falta de coerência

do raciocínio de Protágoras, que admite que um indivíduo pode ser injusto e, ainda, ter uma

parte da virtude, como a temperança. De modo contrário, dizer que um indivíduo é virtuoso,

é dizer que ele possui todas as partes da virtude. Isso significa que um indivíduo, sendo

temperante, age também de modo justo, não porque temperança e justiça são idênticas, mas

porque ambas fazem parte dessa estrutura única, que não admite ser dividida, nem obtida em

232 DENYER, 2008, p. 134.

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partes e que mantém, de forma distinta, cada uma das suas partes segundo suas capacidades

específicas.

7. A Relação entre as partes e parte/todo da virtude

A partir da análise feita dos quatro argumentos discutidos nas seções 5 e 6, é possível

compreender que a divergência central entre Sócrates e Protágoras recai sobre a equivocada

compreensão de Protágoras acerca da unidade. Protágoras não consegue explicar esta relação

que envolve as partes regidas por essa unidade e não percebe que elas não podem ser obtidas

fora dessa relação. De posse das informações obtidas anteriormente, a análise se volta para a

concepção de estrutura e da relação entre o todo e suas partes inferidas a partir do modelo da

face para o entendimento da virtude como unidade.

Fazendo uma avaliação da analogia antes de retornar ao Parmênides, a face é esse todo

ou estrutura que possibilita, de algum modo, a cada parte desempenhar bem sua capacidade

(δύναμις) específica. Isso leva ao entendimento de que tais características assim o são em

função da dependência das partes com essa unidade, o que significa dizer que pensar as partes

separadas dessa estrutura é pensá-las sem uma δύναμις própria de cada uma. Por exemplo,

para o olho possuir a capacidade de ver e ser considerado um órgão da face, precisa estar em

estrita conexão com a face. Fora dessa estrutura, o olho deixa de ser um órgão e passa a ser

considerado apenas um material disforme, separado da natureza da face e incapaz de ver –

ou seja, sem δύναμις. Quando a parte, portanto, é separada do todo, ela deixa de ser ‘parte’

de algo, não podendo mais ser considerada o mesmo ente, porque ela perde as características

que apenas obtém ao fazer parte da estrutura, não sendo algo intrínseco a ela.

Aplicando o mesmo caso com relação à unidade da virtude, as partes, como a justiça,

a temperança, a coragem e a piedade, somente possuem essa natureza denominada ‘virtude’

na medida em que participam dessa virtude-ὅλον, isto é, dessa unidade. Como consequência,

tais virtudes não podem ser consideradas como tal ao estarem separadas dessa estrutura

unitária. Fora do todo, ela deixa de ser parte, isto é, ela deixa de ser justiça, piedade,

temperança e coragem, passando a ser outro ente que não uma virtude.

Toda essa analogia entre a unidade da virtude e o modelo da face pode ser explicada

também a partir de uma noção de composição desenvolvida por Harte a partir do Parmênides.

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Segundo a autora uma “composição envolve limite nas relações que as partes possuem umas

com as outras e com o todo; [portanto] a composição envolve estrutura”233. Essa noção de

limite entre as partes estaria apontando não só a função que elas ocupam na estrutura unitária,

mas também a distinção entre elas mesmas. Destaca-se a seguir a passagem no Parmênides

em 158c-d:

Π - καὶ μὴν ἐπειδάν γε ἓν ἕκαστον μόριον μόριον γένηται, πέρας ἤδη

ἔχει πρὸς ἄλληλα καὶ πρὸς τὸ ὅλον, καὶ τὸ ὅλον πρὸς τὰ μόρια.

A - κομιδῇ μὲν οὖν.

Π. τοῖς ἄλλοις δὴ τοῦ ἑνὸς συμβαίνει ἐκ μὲν τοῦ ἑνὸς καὶ ἐξ ἑαυτῶν

κοινωνησάντων, ὡς ἔοικεν, ἕτερόν τι γίγνεσθαι ἐν ἑαυτοῖς, ὃ δὴ πέρας

παρέσχε πρὸς ἄλληλα: ἡ δ᾽ ἑαυτῶν φύσις καθ᾽ ἑαυτὰ ἀπειρίαν.

A - φαίνεται.

P – Por outro lado, quando cada parte, cada uma, se torna parte, a partir daí

tem limite cada uma com relação a cada uma das outras e com relação ao

todo, e o todo com relação às partes.

A – Seguramente.

P – Para as coisas outras que o um resulta pois que, a partir do um e delas

mesmas, quando entram em comunhão com ele, algo diferente, nelas

mesmas, segundo parece, vem a ser, algo que justamente oferece um limite

de uma em relação a outra; mas, a natureza delas em si mesmas <oferece>

a falta de limite.

A – Parece.234

O que parece estar sublinhado nesta passagem é que Platão estabelece duas maneiras

em que algo, que funciona como parte, pode ser pensado: a) parte (μόριον) de um todo (ὅλον)

e b) parte por si mesma, isto é, considerada segundo sua natureza independente do todo.

Sendo o ὅλον uma unidade (ἕν), quando as partes são consideradas a partir da sua relação

com essa unidade, ocorre o surgimento de algo distinto (ἕτερόν) entre as partes, a saber, o

limite (πέρας) entre elas.

De outro modo, quando estas coisas são consideradas em si mesmas, isto é, fora da

relação com o todo e com as demais partes, são consideradas como algo ilimitado (ἀπειρίαν),

cuja ausência de limite impede que elas sejam definidas tal como seriam ao estar em relação

com o todo, sendo, portanto, partes do todo. De acordo com a explicação de Dorothea Frede,

quando Platão se refere ao ilimitado, tal como ocorre no Filebo235, as coisas que são

233 HARTE, 2002, p. 138. 234 PLATÃO, Parmênides,158c-d. Tradução: Maura Iglésias e Fernando Rodrigues, 2008, p. 109. 235 PLATÃO, Filebo, 23c-27c.

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consideradas ilimitadas “não possuem natureza definida até que um “limite” ou medida

definida e estável lhes sejam impostos”236

Em outras palavras, quando as coisas, que são ditas partes, são consideradas em si

mesmas, elas não possuem a mesma natureza e o mesmo elemento que lhes marca quando

elas são partes de um todo. Ou seja, fora do todo elas são algo diferente do que quando

consideradas como partes. Isso porque a natureza e o elemento de distinção que nelas surge,

neste presente caso, a δύναμις específica de cada uma, não são intrínsecos às coisas em si

mesmas; elas só os adquirem na medida em que estão em relação com o todo, pois é o todo

que as define e que estabelece a relação entre elas.

Harte sugere pensar o todo em termos de estrutura fazendo uma comparação com o

estruturalismo matemático. Resnik, utilizando o termo “padrão” ao invés de “estrutura”, vai

dizer: “um padrão é uma entidade complexa consistindo de um ou mais objetos, os quais eu

chamo de posições, permanentes em várias relações (e tendo diversas características,

posições e operações distintas)”237. De acordo com Harte, para Resnik “a entidade complexa

é a estrutura; a estrutura não é algo que os objetos envolvidos possuem” 238.

Ao tomarmos o modelo da face como uma estrutura do mesmo tipo descrito acima, é

possível observar que nele as partes estão, por assim dizer, bem arranjadas e posicionadas de

um determinado modo. Por meio desse posicionamento, a cada uma é atribuída uma δύναμις

específica. Pensando na virtude, ela seria então uma espécie de estrutura unitária, tal como a

face, que compartilha sua natureza com as demais partes, de modo que podemos chamar a

justiça e as demais de partes como virtude, porém sem eliminar o aspecto distintivo entre

elas.

Os quatro argumentos apresentados até aqui são evidência de que a virtude-ὅλον pode

ser pensada em termos de uma estrutura unitária no Protágoras. Sendo assim, quando

Sócrates utiliza esses argumentos para demonstrar o equívoco de Protágoras a respeito da

unidade – apontando assim o que poderia ser considerado sua própria concepção de unidade

– ele o estaria fazendo em dois sentidos: 1) para demonstrar que Protágoras não entendeu as

reais implicações que o modelo da face traz para o entendimento da virtude – como o fato de

236 FREDE, Dorothea. Desintegração e restauração: prazer e dor em Filebo e Platão, In: Kraut, Richard (Org.).

Platão. São Paulo: Editora Ideias e Letras, 2013, p. 505. 237 HARTE, Verity, 2002, p. 175. 238 HARTE, 2002, p. 176.

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que essa unidade, tal como a face, não pode ser obtida em parte; e 2) para demonstrar que as

partes possuem uma relação entre si, não por serem idênticas ou semelhantes umas às outras,

mas porque é a virtude-ὅλον, a unidade, que determina o modo como essas virtudes se

relacionam.

Quando Protágoras apenas utiliza o modelo da face para demonstrar que as virtudes

são distintas, ele desconsidera – consciente disso ou não – o fato de que, neste modelo, não

só a distinção está implicada, mas também a noção de unidade: uma unidade mantém as

partes de um determinado modo, em que a boca não ocupa o lugar dos olhos, nem os ouvidos

o nariz. Essa concepção de unidade estabelece que as partes, a justiça e a piedade, por

exemplo, não possuem características contrárias umas às outras, isto é, não existe o caso em

que a justiça seja ímpia, e a piedade injusta.

A explicação para isso é que ambas compartilham a mesma natureza da virtude – não

de modo a serem idênticas entre si, porque, enquanto a virtude reúne em si cada uma das

virtudes, a parte da virtude individual não possui a δύναμις das demais partes – e por isso

não compartilham características contrárias ao que a virtude é e comporta em sua estrutura,

como a injustiça e a impiedade. Segundo, uma vez que a virtude, como será abordada na

próxima sessão, é um tipo de conhecimento que está ligado à φρόνησις, as virtudes levam os

indivíduos a agir de modo útil e correto, ou seja, εὖ φρονεῖν (pensar e agir bem), associado

ao conhecimento.

Essas características pertenceriam, portanto, à virtude como unidade, sendo atribuídas

às partes na medida em que dela participam. Essas características que foram apontadas nos

argumentos anteriores, bem como a razão pela qual o indivíduo não pode instanciar uma

parte, mas apenas a virtude como um todo, se encontram reunidas na parte final do diálogo,

que fala a respeito da força do conhecimento contra as aparências, conhecida, em geral, como

o argumento da negação da acrasia.

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8. O argumento da negação da acrasia.

Em 352b-359a, Sócrates faz a seguinte afirmação, contrastando com o início do

diálogo239: uma vez que a virtude é um tipo de conhecimento, ela pode ser ensinada. O que

Sócrates pretende demonstrar é que, se Protágoras não aceitar que a virtude é conhecimento,

ele não poderá ser considerado professor da virtude. A dificuldade de Protágoras em aceitar

essa posição de Sócrates é que ela contém implicações contrárias à sua concepção de unidade

da virtude.

Neste argumento, Sócrates sustenta que as pessoas possuem uma ideia equivocada a

respeito do que ocorre com aquilo que elas chamam “ser vencido pelos prazeres”240. O

entendimento por trás desta expressão é o de que, mesmo possuindo conhecimento do que é

o melhor, um indivíduo continua vulnerável a agir segundo aquilo que não é o melhor para

ele. Essa compreensão ordinária para a maioria das pessoas coloca um desafio para Sócrates

porque vai exigir dele a mesma resposta requerida nos argumentos anteriores, ou seja, que

ele explique porque é necessário que as virtudes sejam entendidas como unidade. A

indagação retoma porque, com esse senso comum, fica aberta a possibilidade de se admitir

que aquele que possui conhecimento pode, ainda sim, escolher pelo pior. E isso leva,

novamente, à concepção de unidade que Protágoras parece querer promover, ou seja, uma

“unidade empírica” formada pela soma das partes que podem ser obtidas independentemente

dessa unidade. A relevância desse argumento da negação da acrasia para a questão da unidade

fica patente quando Sócrates, em 361b-c, comunica que a virtude é conhecimento. Para

conectar este argumento com os anteriores e compreender a relevância do mesmo para o tema

da unidade desenvolvido neste diálogo, vejamos o que foi dito até aqui:

O modelo da face indica um modo possível e adequado dentro dos moldes deste

diálogo e de um contexto platônico mais amplo de compreensão da unidade das virtudes. Por

esse modelo é possível entender e definir a unidade a partir de uma relação entre todo e suas

partes que não envolve a identificação entre eles e entre as partes elas mesmas. Considerando

a unidade das virtudes por meio dessa lente, esta pode ser percebida como uma estrutura

unitária responsável por: a) promover e delimitar a distinção entre as partes ao dotá-las com

239 PLATÃO, Protágoras, 320b. 240 PLATÃO, Protágoras, 353a.

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δύναμις específica para cada parte b) fazer com que todas elas partilhem dessa natureza do

todo de modo que elas, a partir dessa relação, possam ser denominadas ‘virtudes’.

Na tentativa de persuadir Protágoras e, principalmente, seus ouvintes de que o sofista

apenas tem uma aparência de saber ou concepção equivocada acerca deste tema, Sócrates

elabora quatro argumentos com o intuito de sustentar a unidade da virtude a partir dos

aspectos comuns às partes ou entre as partes e o todo, isto é, pela natureza que partilham.

Tais aspectos, como vimos, são: i) nenhuma parte é contrária à outra; ii) todas as partes são

contrárias a todos os vícios; ii) todas levam o indivíduo a agir de modo correto e útil; iii)

todas as partes são conhecimento. É este último item que Sócrates deverá sustentar agora e

que tem a ver diretamente com a virtude como todo, já que, para que as partes sejam

consideradas conhecimento, é necessário que participem dessa natureza da virtude. O que

Sócrates vai fazer é demonstrar que o conhecimento não se deixa vencer pela força das

aparências. A seguir, tem-se a descrição e análise do argumento.

8.1. Descrição do argumento sobre a força da ἐπιστήμη e negação da acrasia.

Para dar início a esta investigação é necessário recapitular o que foi visto sobre o

argumento da coragem e da σοφία a partir de 349b. Este é o contexto da última tentativa de

Protágoras em defender que uma virtude pode ser adquirida sem as demais. Mais uma vez, a

explicação seria que a coragem se apresenta como algo totalmente distinto das demais partes

da virtude, podendo ser encontrada em pessoas ignorantes, injustas, intemperantes, entre

outros vícios241. Sócrates elabora um argumento para demonstrar que a coragem e a σοφία –

que tem aqui o mesmo sentido que conhecimento – possuem uma relação que permite afirmar

uma semelhança entre elas242.

A rejeição de Protágoras a essa tentativa de Sócrates tem como propósito negar que

haja uma relação forte entre coragem e conhecimento, para afirmar que uma pessoa ignorante

também pode ser corajosa, condizendo com a afirmação de que a virtude, como unidade,

pode ser obtida em parte. A implicação contida nessa rejeição de Protágoras é que, mesmo

que exista um indivíduo corajoso, que possua conhecimento sobre determinada técnica –

241 PLATÃO, Protágoras, 349d. 242 PLATÃO, Protágoras, 350c-d.

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como mergulhar em poços profundos ou guerrear a cavalo – isso não significa que ser

corajoso é ter, necessariamente, conhecimento. Em outras palavras, para Protágoras, alguém

pode ser corajoso sem conhecimento porque a coragem não está ligada ao conhecimento.

Nesse sentido, o conhecimento não seria critério para impedir alguém de realizar uma ação

contrária à prática virtuosa. Além disso, a partir do momento em que o indivíduo possui uma

parte, com a ausência das demais, ele só possui a virtude em um nível estrito de ação, podendo

estar associada a outras coisas que não são virtudes.

Esta implicação leva Sócrates a construir um argumento a partir da ideia de que

Protágoras está equivocado quanto ao que é ἐπιστήμη. Em 351b-c, ele pergunta a Protágoras

se os homens, que vivem bem (εὖ ζῆν), também vivem de modo agradável (ἡδέως), e se os

que vivem mal (κακῶς), vivem de modo desagradável (ἀηδῶς). Protágoras diz que isso só é

possível quando o viver de modo agradável (ζωή ἡδόμενος) está associado ao que é καλός,

isto é, ao que é nobre. Com isso, Protágoras abre a possibilidade de pensar que nem tudo o

que é agradável está relacionado ao bem, porque existem coisas que não são boas, mas que,

ainda assim, se mostram agradáveis243 – algo que já estava implícito na interrupção do

argumento sobre a justiça e a temperança por Protágoras.

Sócrates precisa demonstrar que o valor de ‘agradável’ está ligado ao do bem, e não

a qualquer coisa que pareça bem ao indivíduo, principalmente se consistir em uma má ação.

Para isso, ele questiona em que sentido Protágoras se posiciona acerca destas opções: 1) que

o conhecimento, como entende a maioria, é algo que não é capaz de governar um indivíduo

e, por isso, o indíviduo, mesmo sabendo o que é a melhor ação, pode errar em suas ações, ou

2) que o conhecimento – que é “conhecimento das coisas que são boas e más (γιγνώσκῃ τις

τἀγαθὰ καὶ τὰ κακά)” – governa a ação dos indivíduos e, por meio da φρόνησις, os leva a

agir bem e de modo correto.244

Protágoras concorda com Sócrates que a descrição do conhecimento é tal como a

segunda alternativa. Mas Protágoras é aquele que fundamenta seu saber na aparência das

coisas ou, ainda, a partir de uma perspectiva empírica de mundo. Logo, para ele, mesmo

sendo este o caso, o fato é que – e isso é o que ele leva em consideração – para a maioria das

pessoas, alguém que tenha a posse do conhecimento do que é o bem e o mal pode cometer

243 PLATÃO, Protágoras, 351d-e. 244 PLATÃO, Protágoras, 352a-c.

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ações contrárias ao que dita o conhecimento, ou seja, pode ser vencido pelos prazeres, e não

praticar aquilo que seria melhor para eles. Sócrates rechaça a posição da maioria alegando

que não existe nenhum caso em que o conhecimento é vencido pelo prazer, mas, por um

equívoco de entendimento, o indivíduo acha que possui o conhecimento, quando, na verdade,

não o tem. Por isso, é necessário explicar de outro modo o que leva alguém a agir de forma

contrária ao que é melhor245.

Primeiramente, ele explica como as pessoas entendem o que é deixar-se vencer pelos

prazeres: elas pensam que sabem o que é mal para elas, mas mesmo assim o fazem, porque,

a princípio, consideram que tal objeto ou situação as levaria a algum tipo de prazer. Além

disso, elas compreendem que algo é considerado como ruim ou bom em função de seus

resultados posteriores: o que é ruim terá consequências negativas para o indivíduo, o que é

bom levará o indivíduo a alcançar o bem. Elas, em geral, associam o mal à dor, e o bem ao

prazer. Contudo, existem situações em que coisas dolorosas são, na verdade, um bem, porque

resultam em coisas boas, como saúde, ou a salvação da cidade.246

O que Sócrates tenta mostrar é que as pessoas sempre irão associar o prazer ao bem

e a dor ao mal. A questão é que nem tudo o que é prazeroso ou doloroso é, respectivamente,

um bem ou um mal247. O que vai definir se uma ação deva ser classificada como boa ou má

- é o resultado desta. Se o fim de uma ação for bom, então, o prazer se mostra autêntico,

porque tem como resultado um benefício para o indivíduo. Da mesma forma, se evitar a dor

resultar em algo bom, também este indivíduo estará agindo conforme o que é melhor, porque

o resultado dessa ação é bom. Ou seja, saber se uma ação é boa ou má tem a ver com o

conhecimento da conclusão dessa ação, o que tem a ver com conhecimento a longo prazo.

Partindo desta constatação de que o agradável não é diferente do bem e o

desagradável não é distinto do que é mal, Sócrates sugere a seguinte explicação: a maioria

das pessoas entende, num curto prazo de tempo, que a ação que ela pratica é um bem porque

lhe causa prazer. Se agir dessa forma é ser vencido pelo que é agradável, o que a maioria das

pessoas está dizendo é que, ainda que elas possuam o conhecimento do que é o verdadeiro

bem, isto é, o que é o melhor, elas escolhem essa outra coisa que aparenta ser um bem, mesmo

sabendo que, na verdade, se trata de algo ruim. Essa conclusão a que leva o raciocínio do

245 PLATÃO, Protágoras, 353a-b. 246 PLATÃO, Protágoras, 353c-354b. 247 PLATÃO, Protágoras, 354c-355a.

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senso comum descreve que, ao saber o que é melhor, o indivíduo acaba optando por um

“bem” menor.248

Sócrates vai dizer que essa não é a verdadeira explicação. O que de fato acontece

nesse caso é que essas pessoas não possuem conhecimento algum e é devido à ausência de

conhecimento que elas acabam por praticar uma ação que se mostra como ruim a médio e

longo prazo. Isso ocorre porque a maioria das pessoas comete ações desse tipo por ser

vencida por uma aparência de bem, ou seja, um “prazer” imediato, seduzida pelo que Sócrates

irá chamar de “φαινομένου δύναμις249”, algo como força da aparência. Essa força da

aparência faria com que as coisas tomassem uma aparência diversa do que elas são. Essa

distorção seria a nível temporal, porque a dificuldade aqui, e a razão que faz com que elas

sejam derrotadas pela força da aparência, é o fato delas não saberem discernir se aquilo, que

se apresenta no tempo presente, é melhor ou não para elas mesmas no futuro250.

O indivíduo, derrotado pela aparência, não consegue ter uma apreensão real do objeto

ou da situação próxima temporalmente a ele e, por isso, não consegue discernir o verdadeiro

bem do mal. Em 356e-357e, Sócrates diz que isso é devido à ausência de conhecimento do

bem e do mal, que consiste, segundo ele, numa espécie de “μετρητική τέχνη”251, ou seja, uma

arte da medida, que faz com que o indivíduo não se deixe enganar pelas distorções

provocadas pela força da aparência.

8.2 A relação entre virtude ἕν-ὅλον e conhecimento (ἐπιστήμη).

Em seu argumento sobre a negação da acrasia, Sócrates traz uma definição de

conhecimento forte cuja principal característica é o de ser resistente às aparências. Segundo

Gosling:

O que combate a força das aparências é o conhecimento das medidas. (...)

Admitir que a técnica de medir remove a força das aparências parece sugerir

que convicções seguem imediatamente ao cálculo. Emoções tais como o

medo tendem a ser julgadas baseados em aparência, e evaporarão quando

formos confrontados com os fatos. Estamos descomplicando não apenas em

248 PLATÃO, Protágoras, 355a-356c. 249 PLATÃO, Protágoras, 356d. 250 PLATÃO, Protágoras, 356c-e. 251 PLATÃO, Protágoras, 356d.

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motivação, mas, também nosso modo de aquisição de crenças. É isso que

torna a posição de Sócrates tão otimista em relação ao progresso moral.252

Desse modo, Sócrates coloca que este conhecimento, uma vez instanciado no

indivíduo, capacita a pessoa a agir sempre em função do bem, sendo algo útil ao indíviduo e

aos demais que possam estar recebendo esta ação. Portanto, esse conhecimento, classificado

como um tipo de μετρητική τέχνη – técnica ou especialidade em não se deixar levar pela

proximidade ou distância temporal de um evento – é um conhecimento não só a nível teórico,

voltado para um objeto, mas um conhecimento prático, por estar associado à φρόνησις, não

admitindo que um indivíduo pratique algo contrário a este saber. Este é o tipo de

conhecimento que está ligado à unidade da virtude e que Sócrates expõe a Protágoras da

seguinte maneira:

Σ. εἰ μὲν γὰρ ἄλλο τι ἦν ἢ ἐπιστήμη ἡ ἀρετή, ὥσπερ Πρωταγόρας ἐπεχείρει

λέγειν, σαφῶς οὐκ ἂν ἦν διδακτόν: νῦν δὲ εἰ φανήσεται ἐπιστήμη ὅλον, ὡς

σὺ σπεύδεις, ὦ Σώκρατες, θαυμάσιον ἔσται μὴ διδακτὸν ὄν.

S. “Pois, se a virtude fosse alguma outra coisa que não conhecimento, como

Protágoras tentava argumentar, ela obviamente não poderia ser ensinada.

Todavia, se é manifesto que é conhecimento como um todo, como você se

apressa em dizer, Sócrates, será espantoso se ela não puder ser ensinada.”253

Aqui Sócrates expressa de forma direta uma característica essencial da natureza da

unidade da virtude, qual seja, a de ser uma ἀρετή ἐπιστήμη ὅλον. Uma vez que as partes

obtém, por participação, a natureza de ser uma virtude, elas igualmente são tomadas como

conhecimento254, que se diferencia da ἀρετή ἐπιστήμη ὅλον uma vez que dela é dependente

e que cada uma possui sua δύναμις própria. Essa característica essencial que define a natureza

da virtude como unidade pode ser pensada como sendo a principal já que, por meio dela, é

possível relacionar todas as características vistas anteriormente nos quatro argumentos.

Sendo assim, a partir de toda essa relação, é possível inferir que, se uma pessoa é

virtuosa, ela o é devido a esta unidade que é, por sua vez, categorizada como um tipo de

conhecimento – μετρητική τέχνη. Com isso, essa pessoa não só é capaz de agir segundo a

252 GOSLING, Justin. Weakness of the Will: The Problems of Philosophy their past and Present. London:

Routledge, 1990, p. 14-15. 253 PLATÃO, Protágoras, 361b. Tradução: Daniel R. N. Nunes. São Paulo:Editora Perspectiva, 2017, p. 533. 254 PLATÃO, Protágoras, 361b-c.

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δύναμις específica de cada parte, como pensa e age em função do que é melhor – indivíduo

εὖ φρονεῖν. Como resultado, ela não age em função daquilo que é contrário à virtude, por

exemplo, a ἀφροσύνην – bem como não admite que o indivíduo seja em parte virtuoso e em

parte contrário à virtude – isto é, ele não pode ser, ao mesmo tempo, justo e ímpio, temperante

e injusto, e assim por diante.

Para concluir esta argumentação da negação da acrasia – que leva à intrínseca relação

entre a virtude como unidade, a ἀρετή ἐπιστήμη ὅλον – e a μετρητική τέχνη –, é importante

fazer a ligação entre esta e o argumento que está inserido neste contexto, que é o argumento

da coragem e da σοφία visto na sessão 5. A intenção aqui é: 1) unir a questão da σοφία ao

conhecimento e a virtude agora como ‘ἐπιστήμη ὅλον’; e 2) refazer a leitura do argumento

por uma perspectiva mais ampla na qual ele está inserido.

Como visto, em 353b, Sócrates afirma que entender o que de fato ocorre no momento

em que alguém se diz vencido pelo prazer auxilia na compreensão da relação entre a coragem

e as demais partes da virtude255. Em outras palavras, saber que um indivíduo age mal devido

à ignorância e não à falha ou fraqueza do conhecimento, explicaria porque um indivíduo tem

todas e não somente uma parte da virtude. No segundo momento do argumento da

coragem256, aquilo que é considerado verdadeiramente bom e agradável só pode ser

discernido por alguém que possui o conhecimento do bem e do mal. Este indivíduo agiria em

vista daquilo que é bom e útil. Agir de modo contrário a isso é agir em função da aparência

de bem, isto é, agir por meio da ignorância.

Analisando a coragem no indivíduo, uma pessoa corajosa é assim considerada por

agir de acordo com o bem. Sendo a coragem um tipo de conhecimento, o indivíduo corajoso

será aquele que, ao enfrentar dores e perigos, fa-lo-á sabendo que o resultado dessa ação – o

fim dela a curto, médio e longo prazo – será bom e agradável. O contrário disso descreve o

tipo de ação impulsionada pela covardia. Nesse caso, o indivíduo não enfrenta, mas foge de

situações dolorosas e perigosas, por parecer a ele que, evitando a proximidade da dor e do

perigo, estará fazendo a escolha pelo melhor. A coragem, portanto, é contrária à covardia e,

255 PLATÃO, Protágoras, 353b: “οἶμαι, ἦν δ᾽ ἐγώ, εἶναί τι ἡμῖν τοῦτο πρὸς τὸ ἐξευρεῖν περὶ ἀνδρείας, πρὸς

τἆλλα μόρια τὰ τῆς ἀρετῆς πῶς ποτ᾽ ἔχει.”. 256 PLATÃO, Protágoras, 358b-c.

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por sua vez, contrária à ignorância, porque aquilo que a rege, isto é, o todo, é a ἀρετή

ἐπιστήμη ὅλον, ou seja, a unidade da virtude. 257

Quando Platão diz que coragem é σοφία – portanto, conhecimento como descrito

anteriormente e associado ao todo – e que um indivíduo que possui este conhecimento não

age contrariamente ao que é o melhor, o mesmo vale para as demais virtudes porque, assim

como a coragem só é coragem (virtude) por participar dessa estrutura que é o todo, assim

também as demais, participando desse todo, podem ser ditas como conhecimento. Desse

modo, como a unidade não pode ser dividida em partes, um indivíduo que é corajoso não

pode agir impiamente, injustamente e de modo intemperante.

Protágoras, no final do diálogo, se vê diante de um dilema sem saída: ou ele admite

que a unidade da virtude é o tipo de conhecimento definido por Sócrates – e não um acúmulo

de virtudes adquiridas ao longo dos anos - e demonstra que ele, de fato, nada sabe a respeito

das virtudes; ou ele nega que a unidade da virtude seja um tipo de conhecimento, levando à

impossibilidade de ensiná-la e de haver qualquer professor da virtude.

257 PLATÃO, Protágoras, 359c-d.

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91

9. Conclusão

A conclusão desta dissertação começa por indicar como nossa hipótese se situou

diante do estado da questão. Vlastos, como foi visto, centraliza sua leitura muito mais na co-

implicação das virtudes do que na própria ideia de virtude como unidade. Em resposta, o

caminho da nossa hipótese foi o inverso: entendendo que Platão, por meio de Sócrates, está

centrado no tema da unidade da virtude, onde a co-implicação surge apenas como um dos

resultados da concepção de unidade, é a unidade, e o não inverso, que explica porque uma

pessoa não pode ter uma parte da virtude sem as demais. Além disso, quando Sócrates trata

das virtudes como partes ou relacionadas à σοφία, existe uma diferença para a qual Vlastos

não atenta. Esta consiste em que ora Sócrates se refere aos termos da virtude considerados

como objetos em si, ora como instanciados no indivíduo, e os relaciona.

Relacionar as partes entre si e as partes com o todo, por exemplo, indica aquilo que é

comum entre elas devido à unidade; outra coisa é, partindo dessa concepção, mostrar sua

implicação quando instanciada no indivíduo, por exemplo, que ele não pode ter uma das

partes sem as demais. Vlastos adota a predicação paulina como leitura para essas relações,

centralizando-se somente no indivíduo. Ademais, ele considera a σοφία como parte, quando

Platão não parece estar comprometido com essa leitura, como tentamos mostrar. Pela tese

aqui apresentada Platão usará σοφία no mesmo sentido que ἐπιστήμη, associada ao todo e

não às partes.

Em relação a Penner, nossa posição se diferencia principalmente na defesa de que as

virtudes são distintas umas das outras e isso não constitui impedimento para se pensar a

virtude como unidade. Usando a mesma resposta que foi dada a Cooper, que tem uma posição

que vai na direção da tese da identidade, a relação de não identidade entre o todo e suas partes

está fundamentada na noção de um todo como estrutura unitária de que as partes são

necessariamente dependentes. Ainda sobre a posição da tese da identidade, diferente de

Hartman, que não considera os modelos da face e do ouro como adequados, nossa hipótese

toma o modelo da face como diretriz para aquilo que entendemos ser a posição de Platão

expressa pelos argumentos de Sócrates.

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Em termos mereológicos, a noção que designa essa unidade deve ser compreendida

como estrutura a partir das intuições proporcionadas pelo modelo da face. Essa estrutura

envolve uma relação entre todo e suas partes em que estas são dependentes daquela. A

unidade da virtude seria, portanto, esta estrutura que delimita as partes da virtude entre si,

bem como o modo em que elas se relacionam, além de torná-las participantes dessa natureza

da unidade de modo a poderem assim serem consideradas ‘virtudes’.

De modo a defender essa interpretação da virtude como unidade proposta no

Protágoras, a presente dissertação argumentou a partir de Centrone e Harte de modo a

compreender como esses conceitos mereológicos e suas relações, sobretudo por meio do

modelo da face, correspondem a uma perspectiva mais ampla no pensamento platônico.

Assim, baseados em Centrone, tomamos o modelo da face como diretriz que indica o modo

como Platão concebe a unidade da virtude. Como afirmamos, em sintonia com esse autor,

essa unidade se apresenta como uma estrutura ἕν-ὅλον, ou seja, “uma totalidade orgânica e

unitária, articulada em partes distintas e diferente da simples soma ou justaposição de tais

partes”258. Essa articulação entre o todo e suas partes tem como uma de suas consequências

a afirmação de que alguém pode ter uma das virtudes sem as demais.

Através de Harte, procuramos oferecer um entendimento mais ampliado das noções

mereológicas que estão em jogo no Protágoras. Tomando o Parmênides como ponto de

partida, Platão elabora um novo modo de pensar o todo, as partes e suas relações ao não

identificá-lo com suas partes, algo presente no Protágoras com a analogia da face. A unidade

portanto é concebida como uma estrutura cuja “composição envolve limite nas relações que

as partes possuem umas com as outras e com o todo”259. Nesse sentido, as partes são aquelas

que, fora do todo, perdem a sua natureza de serem órgãos da face ou virtudes. A partir dessa

leitura apoiada no próprio pensamento platônico, é possível sustentar a hipótese que a

unidade da virtude é essa estrutura complexa em que as partes se relacionam entre si e com

o todo não por um princípio de indentidade, mas por um princípio em que a virtude-ὅλον

determina o modo como elas devem ser segundo sua própria natureza.

A dependência das partes em relação ao todo foi indicada a partir dos quatro

argumentos sobre as virtudes. Na análise desses argumentos foi possível observar que a busca

258 CENTRONE, 2015, p. 103. 259 HARTE, 2002, p. 138.

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por semelhanças e identidades não se faz necessariamente por uma identificação entre as

virtudes, tal como sustentada pela tese da identidade ou pela analogia do ouro. De outro

modo, os quatro argumentos oferecem caminhos para se pensar uma noção de unidade tal

como conduzida por meio da imagem do modelo da face. Neste caso, o que explica e sustenta

essas coisas em comum entre virtudes distintas é o fato delas participarem dessa natureza

unitária. Sendo assim, a natureza da virtude gera nessas partes os seguintes atributos: i) todas

as partes são conhecimento devido à natureza da virtude consistir em uma ἀρετή ἐπιστήμη

ὅλον; ii) nenhuma parte é contrária à outra; iii) elas possuem o mesmo contrário devido à

natureza da virtude; iv) todas conduzem à ação correta (ὀρθός) e útil (ὠφέλιμος), porque a

virtude-ὅλον está assoaciada à φρόνησις; e v) elas, para existirem como tais, são

necessariamente dependentes do todo, logo, não podem ser obtidas em parte.

Com relação ao papel da σοφία no diálogo, entender em que sentido ela está sendo

utilizada por Platão se mostrou fundamental para o entendimento da virtude como unidade.

Isso porque, partindo da hipótese do modelo da face, o todo não está identificado com suas

partes. Assim, ao contrário de Centrone, que defende a possibilidade de Platão ter pensando,

neste diálogo, a σοφία como parte e todo ao mesmo tempo – o que o leva, ao nosso ver, ao

sentido oposto de sua argumentação a favor do modelo da face –, nossa interpretação

procurou defender que a σοφία corresponde ao todo, e não às partes da virtude. Baseado no

argumento da coragem e da acrasia, bem como em algumas passagens do Laques, a σοφία

se define como virtude-ὅλον por estar sendo utilizada por Sócrates não como um tipo

específico de saber mas como intercambiável com a ἐπιστήμη, associada à virtude como todo.

Por fim, o conhecimento surgiu como essencialmente associado à virtude como um

todo, passando a unidade da virtude a ser definida como uma ἀρετή ἐπιστήμη ὅλον. Este

conhecimento surge como aquele que resiste à aparência e sempre leva o indivíduo a agir

bem, uma vez que está associado à φρόνησις e não pode ser obtido em parte.

Quando observamos que a virtude-ὅλον, ou seja, a unidade da virtude, corresponde

ao conhecimento do todo, identificado como sendo o conhecimento do bem e do mal260, e

que este conhecimento está associado à φρόνησις, que leva o homem à ação boa e útil261,

chegamos às seguintes conclusões: 1) que o fato de um indivíduo não poder ser em parte

260 PLATÃO, Protágoras, 352c. 261 PLATÃO, Protágoras, 352c, 358b.

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corajoso e em parte injusto não se explica porque o indivíduo possui uma parte da virtude,

mas a virtude como um todo, ou seja, o conhecimento do bem e do mal. 2) Isso explica que

a coragem e as demais partes da virtude, separadas desse todo, não são suficientes para

impedir que um indivíduo aja de modo contrário à virtude. Isso porque, se assim o fosse, não

haveria motivos para Sócrates negar a possibilidade de obter apenas uma parte da virtude.

Com isso, dizer que um indivíduo corajoso não irá agir injustamente, é dizer que aquele que

possui a coragem, possui as demais virtudes, porque a virtude, como unidade, deve ser obtida

como um todo. Tendo isso em vista, o diálogo nos dá abertura para podermos dizer que o

fato de cada parte ser conhecimento, cada um distinto do outro, se deve à sua participação na

unidade da virtude.

Em resumo a tudo que aqui foi dito, procuramos demonstrar que a ideia da virtude

como estrutura unitária é sugerida pela analogia do modelo da face, o qual, dentre outros

aspectos, nega a possibilidade de que um indivíduo possa instanciar uma das partes sem as

demais. Nesse sentido, os argumentos sobre partes da virtude se mostram coerentes com o

modelo da face, por terem como objetivo demonstrar a impossibilidade de se ter uma parte

da virtude sem as demais.

Para concluir, a relação da virtude-ὅλον com o conhecimento demonstra que um

indivíduo, que é virtuoso, não só terá em si instanciada a coragem, mas também todas as

demais partes da virtude, não podendo, em função disso, agir contrariamente ao que é

moralmente melhor, isto é, justo, pio, temperante e corajoso. Assim, ao mostrar que a virtude

é conhecimento, Platão resguarda a unidade da virtude, bem como a relação dessa unidade

com as suas partes.

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