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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ UFPI PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PRPPG CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS CCHL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DO BRASIL PPGHB MESTRADO EM HISTÓRIA DO BRASIL MHB MARIA AUXILIADORA CARVALHO E SILVA DE SALTEADORES ERRANTES A MÁRTIRES E MILAGREIRO: representações sociais de ciganos na Cidade de Esperantina-Piauí (1913-2010) TERESINA PI 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO – PRPPG

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS – CCHL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DO BRASIL – PPGHB

MESTRADO EM HISTÓRIA DO BRASIL – MHB

MARIA AUXILIADORA CARVALHO E SILVA

DE SALTEADORES ERRANTES A MÁRTIRES E MILAGREIRO: representações

sociais de ciganos na Cidade de Esperantina-Piauí (1913-2010)

TERESINA – PI

2011

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MARIA AUXILIADORA CARVALHO E SILVA

DE SALTEADORES ERRANTES A MÁRTIRES E MILAGREIRO: representações

sociais de ciganos na Cidade de Esperantina-Piauí (1913-2010)

Dissertação apresentada à Coordenação do

Programa de Pós-Graduação em História do

Brasil, do Centro de Ciências Humanas e

Letras, da Universidade Federal do Piauí,

como requisito parcial para obtenção do grau

de Mestre em História do Brasil.

Orientadora: Profª. Drª. Áurea da Paz Pinheiro.

TERESINA – PI

2011

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FICHA CATALOGRÁFICA

Universidade Federal do Piauí

Biblioteca Comunitária Jornalista Carlos Castello Branco

Serviço de Processamento Técnico

S586d Silva, Maria Auxiliadora Carvalho e

De salteadores errantes a mártires e milagreiro: representações

sociais de ciganos na Cidade de Esperantina – Piauí (1913-2010) /

Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. – 2011.

142 f.: il

Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – Universidade

Federal do Piauí, Teresina, 2011.

Orientação: Profª. Drª. Áurea da Paz Pinheiro

1. Ciganos - Piauí. 2. Memória Coletiva. 3. Religiosidade

Popular. I. Título.

CDD: 305.891 497

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MARIA AUXILIADORA CARVALHO E SILVA

DE SALTEADORES ERRANTES A MÁRTIRES E MILAGREIRO: representações sociais

de ciganos na Cidade de Esperantina-Piauí (1913-2010)

Dissertação apresentada à Coordenação do

Programa de Pós-Graduação em História do

Brasil, do Centro de Ciências Humanas e

Letras, da Universidade Federal do Piauí, para

obtenção do grau de Mestre em História do

Brasil.

Orientadora: Profª. Drª. Áurea da Paz Pinheiro

Trabalho apresentado e aprovado em 22/03/2011

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________

Profa. Dr

a. Áurea da Paz Pinheiro (Orientadora)

Universidade Federal do Piauí - UFPI

_________________________________________________________

Prof. Dr. Solimar Oliveira Lima

Universidade Federal do Piauí - UFPI

________________________________________________________

Profª. Drª. Eliane Moura Silva

Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

________________________________________________________

Profª. Drª. Viviane Pedrazani (Suplente)

Universidade Estadual do Piauí - UESPI

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Aos ciganos do Brasil

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por me iluminar nesta caminhada, a trilhar os caminhos da sabedoria e

discernimento em minhas escolhas.

À minha mãe Maria de Amorim Silva, a pessoa mais especial em minha vida.

A todos os meus familiares pelo apoio.

À Profª. Drª. Áurea da Paz Pinheiro, minha orientadora, pela confiança, entusiasmo e

força que depositou neste trabalho e em mim.

Aos professores doutores, Solimar Oliveira Lima e Jacqueline Lima Dourado, pelas

valiosas contribuições apresentadas durante o exame de qualificação.

Ao Prof. Dr. Edwar de Alencar Castelo Branco, pelas críticas e sugestões apresentadas

ao meu projeto, durante a disciplina Seminários de Linha de Pesquisa, que muito nortearam a

realização deste trabalho.

Aos devotos, pela gentileza em conceder entrevistas.

Aos colegas de turma: Agnelo Pereira, Vanessa Negreiros, Ernani Brandão, Graça

Prazeres, Neuza Arêa Leão, Sorailky Batista, Iêda Moura, Pedrina Nunes, Carla Danielly,

Veruska Laureana e Teotônio Filho, pelo apoio e incentivo na elaboração desta pesquisa.

Pelos nossos momentos de conversa, descontração, risos e alegrias compartilhados durante o

biênio 2009-2010.

À grande amiga Viviane Pedrazani, por ter me incentivado em retornar à vida

acadêmica, acompanhando-me nessa trajetória desde a elaboração do projeto até a conclusão

desta pesquisa.

Aos amigos Alexandre Veras e Adriana Soares, presentes de Deus, agradeço o apoio,

incentivo e por estarem sempre presentes na minha vida, torcendo pelo meu sucesso e minha

felicidade.

Ao Mestrado em História do Brasil, por ter aberto essa oportunidade de crescimento

pessoal, intelectual e profissional.

À Professora Telde Soares Leal Melo Lima, pela revisão ortográfica.

À Lauriene Matos, minha eterna professora de inglês, pela correção do abstract.

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A todos que direta ou indiretamente contribuíram para a realização desta Dissertação,

que me ajudaram de alguma forma, no decorrer do meu percurso em busca do almejado título

de “Mestre em História do Brasil”, agradeço imensamente.

Muito Obrigada!!

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Mora, no sangue cigano,

uma canção de pássaros

expulsos do Paraíso.

Só tiveram tempo

de levar consigo:

a música e a dança,

roupas do corpo

abrigo do espírito,

cobertor de soluços.

Deus logo os chamou de volta

para alegrarem de novo as festas do Céu.

(Ciganos - Poemas em Trânsito. Thesaurus, Brasília, 1998)

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RESUMO

A dissertação versa sobre o massacre de um grupo de ciganos realizado pela Polícia

Militar do Piauí, no início do século XX. Segundo a imprensa da época, os ciganos

percorriam o norte piauiense, andavam armados e praticavam furtos e depredações à

propriedade privada. Essas ações teriam portanto motivado uma perseguição ao grupo

pela polícia que veio a alcançá-los no povoado Retiro da Boa Esperança, atualmente

Município de Esperantina. No local, travou-se um tiroteio no qual morrem ciganos adultos

e uma criança. Os corpos dos ciganos mortos, após um velório não convencional sob a

sombra de três mangueiras, foram jogados em vala única. O sentimento de piedade

manifestado pelas pessoas pela morte trágica, ausência do ritual cristão diante da morte e a

maneira como foram sepultados, acabou por transformá-los em mártires e o local do

sepultamento em espaço de romaria e preces. Eis uma transformação no plano do

imaginário popular no que tange às representações dos ciganos: de salteadores errantes a

mártires e milagreiro. Essa ressignificação elaborada historicamente para o plano mítico é

um dos pressupostos da pesquisa. Neste trabalho traço uma abordagem sobre as

representações sociais historicamente construídas sobre ciganos no Brasil. Historicizo o

massacre dos ciganos usando como fontes os jornais de época, as fontes policiais, a

investigação oral para compreender essa tragédia entre as pessoas de Esperantina. Ao

analisar as fontes orais, deparo-me com a história de um massacre que permanece viva na

memória coletiva, reinventado por gerações. Faço uma análise das representações que

favoreceram essa ressignificação. Por último, abordo os usos sociais dessas representações

e apresento ao leitor um sentimento religioso construído em torno das almas dos ciganos

pelos esperantinenses, bem como as práticas de religiosidade popular, como visitas aos

cemitérios, o ato de acender velas e fazer promessas ao Ciganinho, que segundo o

imaginário coletivo, por ser uma criança, um inocente, ganhou poderes na hierarquia do

mundo celestial, podendo intervir entre Deus e as pessoas deste mundo em momentos

difíceis.

PALAVRAS-CHAVES: Ciganos. Memória Coletiva. Piauí. Religiosidade Popular.

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ABSTRACT

This paper broaches a massacre of a gipsy group, interprised by the military police of Piauí

during the beginning of the twentieth century. According to the press from that time, these

people were traveling in the northern part of Piauí they were armed, pickpocking and

vandalizing private property. These acts would have leaded a pursuit of the group by the

police that reached them in a village named Retiro da Boa Esperança, currently Esperantina.

In that place a shoot-out happened, where many gipsies were killed, including a child. The

corpses, after an unusual deathwatch that took place under a mango tree shadow, were threw

in unique ditch. The mercy felling evidenced by the people cause of the tragedy and specially

because they were buried without the Christian ritual, like animals, turned them from villains

to martyrs also the place where they dead became a point of pilgrimages and prayers. Here is

a changement in the popular imaginary plan about the representation of these gypsies. This

resignification historically developed to the mythical plan is one of the topics of this research.

I report the massacre of gypsies using as source a press from that time, some others

informations were given by the police. I used the oral investigation to understand this tragedy

among the people from Esperantina. Analyzing the oral source I came across the history of a

massacre that remains alive in collective memory that is recreated over generations. I make an

analysis of the representation that supports this resignification. Finally, I broached social uses

of these representations and I showed the readers a religious felling developed around

gipsies´souls by the people from Esperantina as well the popular religiosity practices like

visits to the cemetery, the act of lighting candles and making promises to the gipsy child

“Ciganinho” who, according to the collective imaginary, being an innocent, got some power

in the hierarchy of celestial world. People think the kid would be able to intervene on their

lives to help them.

KEYWORDS: Gipsies. Collective Memory. Piauí. Popular Religiosity.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 01 Espaço urbano do Retiro da Boa Esperança no início do século XX -

Fonte: Arquivo Particular de Maria Auxiliadora Carvalho e Silva

60

Figura 02 Rota da tropa policial em perseguição aos ciganos - Fonte: Arquivo

Particular de Maria Auxiliadora Carvalho e Silva

72

Figura 03 Cemitério dos Ciganos – Fonte: Arquivo Particular de Maria Auxiliadora

Carvalho e Silva

100

Figura 04 Cemitério dos Ciganos (vista interna) - Fonte: Arquivo Particular de Maria

Auxiliadora Carvalho e Silva.

100

Figura 05 Visitantes acendem velas no cruzeiro do cemitério no dia de finados

- Fonte: Arquivo Particular de Maria Auxiliadora Carvalho e Silva

101

Figura 06 Jatobazeiro, local onde o Ciganinho teria buscado esconderijo - Fonte:

Arquivo Particular de Maria Auxiliadora Carvalho e Silv.

104

Figura 07 Cemitério do Ciganinho - Dia de finados - Fonte: Arquivo Particular de

Maria Auxiliadora Carvalho e Silva

105

Figura 08 Figura 08: Fiéis acendem velas no túmulo do Ciganinho no dia de finados -

Fonte: Arquivo Particular de Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

115

Figura 09 Fiéis acendem velas no Jatobazeiro - Fonte: Arquivo Particular de Maria

Auxiliadora Carvalho e Silva

116

Figura 10 Placa do túmulo restaurado pela devota Maria de Jesus de Sá Carvalho - 118

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Fonte: Arquivo Particular de Maria Auxiliadora Carvalho e Silva

Figura 11 Ex-votos depositados ao lado do túmulo do Ciganinho - Fonte: Arquivo

Particular de Maria Auxiliadora Carvalho e Silva

120

Figura 12 Ex-voto de pernas - Fonte: Arquivo Particular de Maria Auxiliadora

Carvalho e Silva

121

Figura 13 Ex-voto de seios - Fonte: Arquivo Particular de Maria Auxiliadora

Carvalho e Silva

121

Figura 14 Ex-voto de uma mão - Fonte: Arquivo Particular de Maria Auxiliadora

Carvalho e Silva.

122

Figura 15 Ex-votos variados - Fonte: Arquivo Particular de Maria Auxiliadora

Carvalho e Silva

122

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ................................................................................... 12

1. CIGANOS NO BRASIL: marginalização e tolerância ................................................ 20

1.1 Segregados na Metrópole, tolerados na Colônia........................................................... 20

1.2 A inserção dos ciganos no comércio ............................................................................ 31

1.3 Mitos sobre o povo cigano........................................................................................... 38

2. CORRERIA DE CIGANOS NO PIAUÍ ...................................................................... 47

2.1 O alvorecer do século XX no Piauí .............................................................................. 47

2.2 O Retiro da Boa Esperança .......................................................................................... 57

2.3 O “banditismo dos ciganos” e ação policial ................................................................. 67

3. CIGANOS: da tragédia à religiosidade popular ........................................................... 96

3.1 Dia de finados: gestos de fé e devoção ........................................................................ 96

3.2 Ciganinho Roldão: o errante milagreiro ....................................................................... 101

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 126

REFERÊNCIAS E FONTES .......................................................................................... 128

APÊNDICES

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Neste estudo, narro a história do massacre de um grupo de ciganos realizado pela

Polícia Militar do Piauí, em 1913, no povoado Retiro da Boa Esperança, atualmente,

município de Esperantina.

O acontecimento envolveu um grupo de ciganos que percorria o Norte do Piauí, acusado

de praticar furtos e depredações. A notícia da presença dos ciganos chegou ao conhecimento

do poder público que enviou um contingente policial em perseguição ao grupo, que foi

“caçado” de Miguel Alves, passando pelos povoados Peixe e Marruás [atualmente os

municípios de Nossa Senhora dos Remédios e Porto, respectivamente], Campo Largo, e,

finalmente, no Retiro da Boa Esperança, onde foi travado um tiroteio, que resultou na morte

de alguns deles.

Segundo notícias publicadas nos jornais da época, os ciganos formavam um “bando” em

torno de duzentas pessoas montadas a cavalo, armadas de garruchas, espingardas, rifles,

espadas e punhais, que atacavam e depredavam propriedades dispersas pela região. As

notícias que se espalhavam, criaram no imaginário coletivo sentimentos e atitudes de repulsa

e medo por parte das populações locais. A imprensa adjetivava os ciganos de “bandidos”,

“trapaceiros”, “cangaceiros cearenses”, que saqueavam cereais e animais, para transporte e

alimentação. Além disso, os ciganos eram acusados de assediarem moças da sociedade, na

tentativa de raptarem-nas para integrá-las ao “bando”. Essas e demais histórias das ações dos

ciganos teriam oportunizado “O massacre do Retiro” em 1913, onde policiais cercaram,

massacraram e dispersaram o “bando” de ciganos, pondo fim à saga do grupo.

A violência da qual foram vítimas e o sepultamento não convencional dos mortos, que

foram atirados em uma vala comum, sem caixão, sem mortalha e sem velório – prática

contrária à fé e à piedade cristã –, acabariam por transformar os ciganos, outrora “bandidos”,

em mártires, tornando o local de sepultamento dos mesmos em espaço de romaria e preces.

Após quase um século, o acontecimento ainda não foi devidamente estudado pela

historiografia piauiense. O trabalho “Massacre no Retiro: os ciganos entre a História e o

imaginário popular”, monografia de final de curso de graduação em História de minha autoria,

é o único trabalho acadêmico até então realizado. Reconstituí a história do massacre, a partir

da análise de fontes hemerográficas, de matérias publicadas sobre o acontecimento divulgadas

nos principais periódicos da época, dentre eles “Piauí” e “Diário do Piauí”; além de fontes

oficiais, como relatórios e inquéritos policiais.

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Naquela pesquisa, centrei as análises no município de Esperantina, local que

representa1515 o palco final da tragédia cigana. A escolha da temática partiu de um interesse

pessoal. Nasci em Esperantina, desde criança ouvia falar da história daqueles ciganos. Em

recorrentes indagações de como a polícia teria matado um grupo de ciganos, que

supostamente roubava na região; ou sobre um sentimento de indignação que dominava

pessoas que narravam o acontecimento.

Na tarefa de reconstituir a história do massacre na cidade, utilizei além das fontes já

citadas a metodologia da História Oral. Entrevistei filhos de contemporâneos do massacre,

encontrei a última testemunha ocular da chacina. “A História Oral, ao se interessar pela

oralidade, procura destacar e centrar sua análise na visão e versão que dimanam do interior e

do mais profundo da experiência dos atores sociais”1. Deparei-me com memórias que

permanecem vivas para muitas pessoas de Esperantina, mesmo após décadas do

acontecimento.

Agora, como pesquisa em nível de mestrado acadêmico, avanço no estudo e análise da

temática. Ao narrar uma história do “Massacre do Retiro”, indago sobre as condições de

existência de grupos sociais específicos como os ciganos no Piauí no início do século XX.

Para realizar o meu intento, formulo as seguintes indagações: Como poderia ser descrita a

sociedade piauiense do Norte do Piauí nas duas primeiras décadas do século vinte? Quem

eram os ciganos e que papéis desempenharam no interior da sociedade piauiense? Que lugar

os ciganos ocupam no imaginário coletivo? Que memória social foi construída do “Massacre

do Retiro”? No que se refere aos ciganos de Esperantina e ao “Massacre do Retiro”, que

razões históricas teriam colaborado para a transmutação, no sentido de ressignificação, dos

ciganos de errantes salteadores a mártires e a milagreiro?

Pretendo historicizar o acontecimento, analisar as representações sociais construídas dos

grupos ciganos, os usos sociais dessas representações e compreender através das práticas

devocionais aos ciganos, os signos, os sentidos e os significados da religiosidade popular

entre as pessoas de Esperantina e entorno.

Neste trabalho, estudo o massacre dos ciganos como um acontecimento tornado fato

histórico, um fenômeno cultural construído e representado socialmente por grupos ciganos e

por populações que viveram o tempo do acontecimento e para além dele. Ao tomar como

objeto de estudo o massacre dos ciganos, insiro-me na tradição de pesquisas de temas

1 LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. Prática e estilos de pesquisa na história oral contemporânea. In:

FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação

Getúlio Vargas, 1999, p. 16.

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recorrentes na produção da Nova História Cultural. Considero os ciganos uma categoria

subalterna, sujeitos sociais excluídos de uma história escrita tradicional, que ao longo de

muitos anos privilegiou categorias sociais dominantes. No amplo campo de investigação da

Nova História Cultural, sujeitos marginalizados têm um papel significativo nas narrativas dos

historiadores, que buscam compreender as atitudes em relação aos excluídos, as categorias

sociais subalternas; entender as imagens e representações construídas desses grupos em um

contexto de transformações econômicas, sociais e mentais em comunidades marcadas por

lógicas sociais.

Para uma melhor compreensão do trabalho que intitulei “De salteadores errantes a

mártires e milagreiro: representações sociais de ciganos na Cidade de Esperantina-Piauí

(1913-2010)”, organizo a narrativa da seguinte forma: Capítulo 1, “Ciganos no Brasil:

marginalização e tolerância”, onde traço uma caracterização construída culturalmente sobre o

povo cigano. Dividi-o em três sub-tópicos: No primeiro: “Segregados na Metrópole,

tolerados na Colônia”, abordo a origem dos ciganos, a chegada deles no continente europeu e

as primeiras manifestações de exclusão pela sociedade européia, em especial, a política do

degredo colonial, e a chegada desse povo ao Brasil; no tópico: “A inserção dos ciganos no

comércio”, defendo que esses nômades, mesmo fora da tradicional ordem do trabalho no

mundo colonial, buscavam formas que garantissem a sobrevivência: o comércio de

mercadorias diversificadas, a arte circense, e o conserto de peças nos engenhos; mas foi como

mercadores de escravos que ganharam aceitação e valorização social. No último tópico:

“Mitos sobre o povo cigano”, mostro os estereótipos construídos sobre os ciganos ao longo da

história: “sujos”, “vadios” e “ladrões”. É na prática do roubo que a imagem dos ciganos se

consolida. No final do século XIX, com o fim do trabalho escravo, muitos dos ex-mercadores

passaram a sobreviver de pequenos delitos, e, em consequência disso, sofreram ações

repressivas pela polícia mineira, as chamadas “correrias de ciganos”. Tento fazer uma

conexão entre as correrias de ciganos em Minas Gerais e a repressão ocorrida no Piauí.

Os ciganos são atores sociais. Representados historicamente como marginais, foram

marginalizados, excluídos, e passaram a ser estudados como minorias, como grupos

periféricos. Abro essa discussão com a chave teórica de Jean-Claude Schmitt, historiador dos

marginais, que entende que uma sociedade se revela por inteiro diante do trato de suas

margens, ou ela exclui ou integra seus marginais, atenta para o critério da utilidade social2.

Utilizei a teoria de Schmitt para compreender a inserção dos ciganos na sociedade colonial.

2 SCHMITT, Jean-Claude. A história dos marginais. In: LE GOFF, Jacques. A História Nova. 3. ed. São Paulo:

Martins Fontes, 1995.

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Para a construção da narrativa, fiz um balanço da literatura, de estudos sobre ciganos no

Brasil no terreno da História, Antropologia e Ciganologia. Foi um trabalho de “garimpagem”,

visto que existem poucos estudos acadêmicos conhecidos sobre ciganos no Brasil. As

pesquisas em História sobre o tema são tímidas e, como sujeitos do conhecimento histórico,

os ciganos são ainda marginais na historiografia.

No segundo capítulo: “Correria de ciganos no Piauí”, apresento ao leitor o massacre dos

ciganos. Para uma melhor compreensão do conflito, dividi o capítulo em três sub-tópicos, no

primeiro: “O alvorecer do século XX no Piauí”, apresento a conjuntura social, política e

econômica do Estado do Piauí nos anos iniciais do século XX, com base em produções

historiográficas locais; no segundo: “O Retiro da Boa Esperança”, apresento ao leitor a

organização, desenvolvimento e urbanização do povoado, nas duas primeiras décadas do

século anterior. Faço uma revisão de literatura e apresento o “Retiro” tomando como

referência obras publicadas por escritores esperantinenses. Usei as fontes orais, entrevistei

pessoas que conhecem a história do povoado, informações que complementam aquelas

extraídas da bibliografia consultada; faço um mapeamento do centro da cidade de Esperantina

e mostro o espaço urbano do “Retiro”, em 1913, bem como a localização de prédios e

logradouros, como Igreja, Praça, Cemitério e residências de pessoas que naquela época

atuaram direta ou indiretamente no massacre dos ciganos. O tópico “O „banditismo‟ dos

ciganos e ação policial” é um prolongamento da minha pesquisa anterior, onde narro o

massacre com detalhes e mais maturidade acadêmica.

Encontrei limitações na tarefa de historicizar o massacre no Retiro. Os ciganos, por

serem ágrafos, não deixaram registros escritos, a documentação que analisei [fontes policiais

e jornais] reflete a visão que os donos do poder tinham sobre o povo cigano, um olhar hostil e

preconceituoso. Esses documentos do “centro”, segundo Schmitt, são reflexos do lugar onde

foram produzidos, e nos possibilitou uma releitura do próprio centro3.

Torna-se uma tarefa árdua trazer os ciganos - sujeitos sociais marginais, minorias,

excluídos, para o corpo do texto, deslocando-os das notas de rodapé. É preciso contar a

história desse povo, mesmo diante da relativa escassez de documentação por eles mesmos

produzida, o que temos, na maioria das vezes, são documentos não produzidos pelos ciganos.

Esse é o grande desafio do historiador que se propõe a estudar e interpretar a história dos

excluídos, dos marginais.

Em nosso ofício de historiadores, os marginais estreiam preenchendo lacunas da história

3 SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit., 1995.

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tradicional, trazendo de volta à memória os esquecidos: criminosos, bruxos, negros,

homossexuais, prostitutas e ciganos. Cada vez que a história se orienta para novos territórios,

ressurge um questionamento sobre as fontes, se elas permitem responder às novas

problemáticas.

Como ouvir a voz dos marginais do passado, quando por definição, ela foi sistematicamente abafada pelos detentores do poder, que falavam dos

marginais, mas não os deixavam falar. Chegar diretamente ao que os

marginais diziam, sem passar de uma maneira ou de outra pela mediação de um discurso oficial ou erudito, é uma empresa quase desesperada

4.

Schmitt sugere arquivos e documentos diversos que emanam do “centro” não das

margens: registros da Inquisição, dos arquivos de polícia, dos tribunais de justiça ou das

prisões. A partir dessas fontes, “o historiador pode ouvir melhor a voz dos marginais. Por

mais paradoxal que possa parecer, a razão disso é que esses arquivos nasceram da repressão”5.

Essas fontes, na visão schmittiana, são depoimentos sobre o próprio „centro‟, sobre o lugar em

que foram elaboradas. Dessa forma, a história da marginalidade traz uma contribuição

essencial de não ter somente preenchido as margens da história, como ter possibilitado

também uma releitura da história do centro6.

Contar a história de grupos marginais a partir de uma história inédita das margens ou

uma história renovada do centro, é um passo essencial na contribuição para uma história total

em construção. Esse procedimento remete o historiador do centro à periferia, ao âmago de seu

objeto, a um indicativo de que, através dos discursos e das práticas de marginalidade e de

exclusão, manifestam-se as transformações fundamentais das estruturas econômicas, sociais e

ideológicas, pois “[...] tanto na sociedade como no livro, a margem é vazia e a figura

imprevista do marginal que nela vem inscrever-se, na maior parte dos casos é fugidia, prestes

a dissolver-se em um lado ou a cair no outro porque desafia os marcos preestabelecidos da

„razão social‟” 7.

Antes da sugestão de Schmitt, no tocante à problemática das fontes, o historiador

italiano Carlo Ginzburg já atentava para os documentos do “centro” em trabalhos como “O

Queijo e os Vermes” [1987]8 e “Andarilhos do Bem”

9 [1988], que focalizam marginais. No

4 SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit., 1995, p. 285. 5 Ibid. Id. 6 Ibidem. 7 SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit., 1995, p. 286 8 GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição.

São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

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primeiro trabalho, o autor narra o cotidiano, a vida de um moleiro, conhecido por Menocchio,

perseguido pela Inquisição por disseminar ideias heréticas no povo de sua aldeia. Como

fontes, o historiador utiliza os processos da Inquisição, que condenaram o moleiro, homem

simples do povo; no outro trabalho, Ginzburg lança luzes sobre a questão da bruxaria e sua

perseguição: Os andarilhos do bem eram os praticantes de um culto de fertilidade, na região

italiana do Friuli, entre o final do século XVI e a primeira metade do século XVII.

Apresentavam-se como defensores das colheitas contra bruxos e feiticeiros que, em sonho ou

delírio semi-onírico, combatiam com ramos de erva-doce. Se vencessem os andarilhos do mal

[bruxos ou feiticeiros], a colheita de trigo e uva seria abundante, se perdessem a guerra, o

resultado seria a fome. A Igreja Católica, naquele período, perseguia essas crenças oriundas

da cultura popular pagã, buscava levar seus praticantes a confessar essas batalhas noturnas,

uma versão clássica do Sabá10

. Diante desse labor, Ginzburg também utiliza como

documentos os processos inquisitoriais, uma vez que esses marginais por serem iletrados não

deixaram documentos escritos; “é lícito dizer que as vozes desses camponeses chegam

diretamente até nós, sem véus, não confiadas – como muitas vezes ocorre – a testemunhos

fragmentários e indiretos, filtrados por uma mentalidade diversa e inevitavelmente

deformante”11

.

Ciente de que se trata de contextos e períodos diferentes – ou seja, Itália no século XVI

e XVII - podemos utilizar a mesma metodologia relativa às fontes empregadas por Ginzburg

quando ele analisa os processos inquisitoriais e trazê-la para a conjuntura da construção da

história sobre ciganos no Brasil e no Piauí, pois os ciganos por serem ágrafos não deixaram

registros escritos e a documentação é de caráter dispersa e parcial. Documentos em que

ciganos aparecem, são “ouvidos” indiretamente, através de mediadores, como os chefes de

polícia. Nessas fontes, produzidas por esses sujeitos, descrevem-se hábitos, costumes, modos

de ser e fazer do povo cigano, numa análise descritiva meticulosa, mas por intermédio de um

olhar hostil e constrangedor, tal qual nos processos inquisitoriais tratados por Ginzburg.

É através dessas fontes, mesmo denotando um olhar preconceituoso, “coisificado” ao

ser cigano, que posso historicizá-los. Para essa história chegar até nós, já que os ciganos eram

anônimos, não deixavam “rastros”, foi necessário o encontro deles com o poder, que resultou

9 GINZBURG, Carlo. Os Andarilhos do Bem: feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo:

Companhia das Letras, 1988. 10 Reunião noturna das sextas-feiras, muito conhecida no período medieval. Nesse festim, que começava à meia-

noite, as bruxas entregavam-se a orgias e ao demônio, voavam em suas vassouras, cavalgavam seus bodes, ou

mesmo transformadas sob a forma de pássaros. Para que pudessem voar, untavam seus corpos com uma poção

mágica por elas preparada. 11 GINZBURG, Carlo. Op., Cit., 1988, p. 07.

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em um massacre. Caso contrário, como atenta Michel de Foucault, não se poderia reaver a

vida desses homens infames, em si mesmas, nas mentiras imperiosas que supõem os jogos do

poder e as relações com ele12

.

Quando analisei as fontes orais, os depoimentos coletados sobre a história do massacre

no Retiro, enfatizei na narrativa o imaginário coletivo, a maneira como o acontecimento,

tornado fato, permanece vivo na mentalidade coletiva, repassado e reinventado por gerações.

É preciso entender que as representações de uma sociedade numa época formam um sistema

articulado com outros, classificação social e religião que também são modos de

comunicação13

. A maioria dos meus entrevistados não foram contemporâneos do massacre, no

entanto tiveram contato com pessoas que testemunharam o acontecimento em 1913. Assim, a

partir das reflexões de Maurice Halbawchs, percebi que um homem para evocar seu próprio

passado necessita fazer apelo às lembranças dos outros, dessa forma, a carga de lembranças

que esses entrevistados carregam não lhes pertence, trata-se de uma memória emprestada14

.

No terceiro capítulo, intitulado “Ciganos: da tragédia à religiosidade popular”, mostro

ao leitor um sentimento religioso construído em torno das almas dos ciganos pelas pessoas de

Esperantina. Os ciganos adjetivados como bandidos foram ressignificados no plano do

imaginário coletivo para mártires o que se justifica devido à morte bárbara que tiveram. Um

sentimento de piedade toma conta do esperantinense quando o massacre é lembrado. O

sentimento religioso é mais intenso para com o Ciganinho, a criança que foi alvejada pela

polícia de um jatobazeiro quando procurava esconderijo. É comum as pessoas fazerem

promessas ao pequeno errante, colocando-o como intercessor entre os homens e Deus. No

tópico “Dia de finados: gestos de fé e devoção”, mostro a solidariedade cristã das pessoas de

Esperantina em torno da alma dos ciganos no dia de finados quando se dirigem ao cemitério

onde estão enterrados, para acenderem velas e lembrarem os ciganos e o massacre em

orações. Em outro tópico, “Ciganinho Roldão: o errante milagreiro”, mostro a devoção ao

pequeno nômade e as diversas práticas de religiosidade popular em torno dele: visitas ao

cemitério, promessas, ex-votos. Para construir esse capítulo, adotei novamente a metodologia

da História Oral quando saí “à caça” de devotos do Ciganinho ou pessoas que fizeram

promessas a ele diante de uma eventualidade, para concederem entrevistas e falarem sobre

suas experiências religiosas, de promessas. Visitei os cemitérios dos Ciganos e do Ciganinho

no dia de finados, por várias vezes, no intuito de observar o fluxo de visitas de fiéis católicos,

12 FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagens/veja, 1992. 13 PATGLEAN, Evelyne. A História do Imaginário. In: LE GOFF, Jacques. A História Nova. 3. ed. São Paulo:

Martins Fontes, 1995. 14 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, Ed. Revista dos Tribunais, 1990.

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nesses lugares colhi depoimentos dos visitantes e registrei por meio de fotos, imagens que se

encontram inseridas no corpo do capítulo. Busquei a teoria de Émile Durkheim para iluminar

meu estudo sobre a devoção ao menino cigano. Roldão é um ser espiritual e a relação que os

devotos mantêm com ele é determinada pela natureza que lhe é atribuída: por procedimentos

psicológicos, procurando convencê-lo através de palavras [invocações, orações] ou de

oferendas e de sacrifícios15

. Adequei o pensamento durkheimiano de que os seres espirituais

são predominantes ao homem comum e entre eles se estabelece uma dependência recíproca:

“Os deuses, também, têm necessidade do homem; sem as oferendas e os sacrifícios eles

morreriam”16

. Assim, entendo que, se os devotos dependem do Ciganinho para interceder

junto a Deus, o Ciganinho também precisa de seus devotos para se manter nessa posição de

destaque na hierarquia espiritual.

15 DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo:

Ed. Paulinas, 1989. 16 Ibidem, p. 69-70.

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CAPÍTULO 1

CIGANOS NO BRASIL: marginalização e tolerância

1.1 Segregados na Metrópole, tolerados na Colônia

Ciganos. O que se sabe e o que se diz sobre eles? As representações sociais construídas

ao longo do tempo em torno do povo cigano dizem respeito a um contingente disperso pelo

mundo, sem pátria, gente livre, alegre, aventureira, que preserva tradições e costumes

acumulados e recriados de geração a geração.

Costuma-se associar ao povo cigano, aos seus costumes e valores, a imagem de

mistério, de fascínio, uma estreita ligação com o futuro por intermédio de práticas

adivinhatórias. Eis aí uma visão romântica e idealizada. Por outro lado, os ciganos são vítimas

de um arraigado preconceito, expresso até na definição da palavra cigano, que quer dizer:

astuto, velhaco, trapaceiro, povo errante e miserável, que procede da Índia, que percorre todo

o mundo, ora a enganar compradores e vendedores de gado nas feiras, ora envolvidos na

pirataria, etc.17

O mesmo preconceito é expresso na palavra ciganice – sua derivada – que

significa artimanhas para iludir nas compras e vendas. Esses preconceitos e estereótipos

impõem abismos entre as etnias e a sociedade, transforma-os em objetos de curiosidade, de

temor e de crendices18

. Dessa forma,“[...]os ciganos são retratados a partir de sentimentos que

oscilam entre o fascínio que suas tradições exercem e os temores alimentados por estigmas e

superstições atrelados ao seu estilo livre”19

. E como as demais minorias que são vítimas de

condenação, julgamento e atitudes segregacionistas do mundo civilizado, o preconceito racial

e cultural contra os ciganos continua vivo, sendo a história desse povo marcada pela

exclusão20

.

A origem dos ciganos é permeada de controvérsias. Alguns ciganólogos recorreram à

Bíblia para explicar suas origens, apontando-os como descendentes de Caim. O trecho do

livro de Ezequiel 30: 23 [Dispersarei os egípcios entre as nações, eu os disseminarei em

17 CAVALCANTI, Sônia Maria Ribeiro Simon. Caminheiros do destino. São Paulo: PUC-SP, 1994. 18 Ibidem. 19 COSTA, Elisa Maria Lopes da. Ciganos em terras brasileiras. In: Revista de História da Biblioteca Nacional.

Ano 02, n. 14, nov. 2006, p. 15. 20 CAVALCANTI, Sônia Maria Ribeiro Simon. Op. Cit., 1994.

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23

diversos países] foi associado aos ciganos, visto que eles eram conhecidos como egípcios

quando chegaram à Europa21

.

Porém, a hipótese mais aceita é a de que procederiam da Índia. Expulsos do território

indiano no final do século XIV, teriam migrado para a Pérsia e Egito, e somente no início do

século XV teriam se espalhado pela Europa. A dispersão dos grupos teria ocorrido de forma

gradual, tocando eles em épocas irregulares a pontos sucessivos22

. Uma vez no Egito, por

ocasião da fuga da Virgem Maria, os ciganos recusaram-se em dar-lhe hospedagem, o que

justificaria o caráter peregrino e errante dos ciganos, dispersos, sem pátria, por todos os

tempos23

. Essa lenda tenta explicar o nomadismo, uma das características do povo cigano.

A presença desse povo no continente europeu é logo notada, “a atração do exotismo e a

caridade para com aqueles considerados peregrinos prevalecem sobre a desconfiança”24

, “[...]

as mulheres têm „cabelos negros como rabo de um cavalo‟ e grandes anéis nas orelhas.

Todavia, embora lhes ofereçam víveres, as prefeituras proíbem-nos de entrar nos limites das

cidades e logo adquirem o costume de pagar para que eles fossem embora”25

.

A partir do século XVI, as autoridades francesas passaram a assimilá-los explicitamente

aos „indigentes‟ e „vagabundos‟ por não terem profissão ou domicílio. Justificavam que “[...]

o nascimento não é rigorosamente o que faz o boêmio26

, mas sim a profissão vagabunda”27

.

A partir de então, atitudes radicais são dirigidas contra os ciganos. De acordo com um

decreto do governo francês de 1682, “os homens devem ser mandados às galés28

, as mulheres

devem ter seus cabelos raspados e serem banidas, e as crianças devem ser internadas no

Hospital”29

.

Em Portugal, foram identificados como “gicianos”, “egipcianos”, “egicianos” ou,

simplesmente, ciganos.

O primeiro olhar dos portugueses conseguia perceber o nomadismo, o

costume de andar em grupo, um outro modo de vestir. Uma observação mais

atenta identificava uma língua estranha e um modo de se comportar diferente da população portuguesa. Com o passar do tempo, os preconceitos

21 SILVA, Denize Carolina Auricchio Alvarenga da. Introdução à história dos ciganos. Disponível em:

http://www.historianet.com.br/conteúdo/default.aspx?codigo=965. Acesso em 22 out. 2010. 22 MORAES FILHO, Mello. Os ciganos no Brasil e Cancioneiro dos ciganos. São Paulo: Ed. da USP, 1981. 23 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Ciganos em Minas Gerais: uma breve história. Belo Horizonte: Crisálida, 2007. 24 SCHMITT, Jean-Claude. A história dos marginais. In: LE GOFF, Jacques. A História Nova. 3. ed. São Paulo:

Martins Fontes, 1995, p. 277. 25 Ibid. Id. 26 Era como o cigano era chamado na França. 27 SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit.,1995, p. 277 28 Antigos navios de guerra, de borda baixa, movidos a remo, mas também dotados de 2 ou 3 mastros. Tinham de

15 a 30 metros de comprimento e eram movidos geralmente por condenados ou escravos. 29 SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit., 1995, p. 277

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24

iam ganhando forma30

.

Uma sociedade se revela por inteiro, segundo Jean-Claude Schmitt, no que concerne ao

tratamento de suas margens. Teoricamente, duas possibilidades lhe são oferecidas: a

integração ou a exclusão dos marginais. Em todas as épocas nas sociedades existe uma linha

divisória que decide pela integração ou pela exclusão conforme o critério da “utilidade”

social. Este conceito “fixa o limite além do qual a segurança dos bens, das pessoas e da ordem

estabelecida parece, com ou sem razão, ameaçada”31

como também indica “um limite do

pensável, em que se encontram os que põem em xeque as taxonomias sociais, os que são

privados de „estatuto‟”32

. O historiador francês, ao teorizar a marginalidade, bem como sua

integração ou exclusão, ilustra a chegada dos ciganos na Europa como um exemplo notório.

Nas representações dos contemporâneos, não há lugar então para esses

nômades de pele morena. Assim, são apresentados primeiro como

peregrinos, e eles próprios exibem salvo-condutos do imperador, do rei, ou mesmo do papa, e pretendem que estão indo para Roma, visitar túmulo de

São Pedro. No entanto, a consciência sedentária já está bem estabelecida nas

populações européias e alia-se ao medo dos vagabundos para fazer fracassar essa tentativa de integração: eles são rejeitados do outro lado da linha

divisória e juntam-se aos indigentes nas galés ou no Hospital Géneral. Ora,

em ambos os casos, quer sejam assimilados a peregrinos, quer o sejam a

bandidos, nenhum lugar específico lhes é reconhecido, nem pode ser, nas representações da sociedade

33.

Ciganos e seus descendentes em Portugal foram proibidos pelas Ordenações

Manuelinas34

de ocuparem cargos públicos, eclesiásticos e de receberem títulos honoríficos.

Além dessas proibições, as autoridades judiciais culpavam-nos sempre pelos mesmos crimes:

ser nômade, deslocarem-se em grupos, cometerem pequenos furtos, pedirem esmolas sem

autorização específica, fingirem saber feitiçarias, falarem geringonça35

, usarem “traje de

ciganos”, ou as mulheres lerem a sorte, a buena-dicha36

. Tinham a sua imagem negativada,

eram considerados “indigentes e vagabundos”, porque não tinham profissão definida, nem

domicílio fixo, moravam em qualquer lugar, “gente sem senhor”, inúteis ao mundo37

.

A legislação portuguesa do século XVI procurava reprimir as diferenças e igualá-los ao

30 COSTA, Elisa Maria Lopes da Costa. Op. Cit., 2006, p. 16-17. 31 SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit., 1995, p. 286. 32 Ibid. Id. 33 Ibid. Id. 34 Codificação portuguesa promulgada por D. Manuel em 1521. Ordenações Manuelinas. Disponível em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ordena%C3%A7%C3%B5es_Manuelinas. Acesso em 18 mar. 2010. 35 O dialeto calo, também chamado romani-ibérico. 36 COSTA, Elisa Maria Lopes da Costa. Op. Cit., 2006, p. 17. Buena dicha atividade de prever o futuro através

da leitura da palma das mãos, também conhecida como quiromancia. 37 SCHMITT, Jean-Claude. Op. Cit., 1995, p. 280.

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restante da população, mas sem sucesso. “A falta de êxito das tentativas de integração forçada

juntou-se à necessidade dos colonizadores de povoar os territórios de além-mar, e por isso o

degredo foi aplicado tanto ao indivíduo quanto à família cigana”38

.

Sua Majestade D. Pedro, rei de Portugal e Algarves, preocupadíssimo com a

„inundação de gente tão ociosa e prejudicial por sua vida e costumes, andando armados para melhor cometerem seus assaltos‟, decidiu determinar

por decreto, que além do degredo para a África já estabelecido nas

ordenações Filipinas de 1603, eles seriam também degredados para o

Brasil39

.

Essa resolução real foi estabelecida no século XVII, mas no século anterior já havia

informações sobre a chegada de uma família cigana ao Brasil, como degredada. O cigano

João Torres e sua esposa Angelina foram presos apenas pelo fato de serem ciganos.

Estando ele na prisão, padecendo à míngua, „fraco e quebrado‟ e não

podendo „servir em coisa de mar‟ devido sua debilidade física, sendo muito pobre „que não tinha nada seu‟, pediu comutação de sua pena nas galés para

o degredo no Brasil e „para sempre‟. Seus cinco anos de galés foram

comutados „em outros cinco anos de degredo no Brasil, onde ele levou sua mulher Angelina e seus filhos

40.

No final do século XVII, aconteceu de forma generalizada o degredo de ciganos para o

Brasil. As informações sobre aquele período são muito limitadas, pois são conhecidos apenas

os documentos relativos às políticas anticiganas portuguesas. Daí ser praticamente impossível

procurar com exatidão quaisquer dados histórico-demográficos sobre ciganos no Brasil. Essa

documentação torna-se menos escassa a partir do século XVIII, durante o reinado de D. João

V (1706-1750), momento em que a perseguição aos ciganos portugueses se acentuou e

dezenas deles foram degredados para as colônias ultramarinas, inclusive o Brasil. No entanto,

é bastante difícil, praticamente impossível mesmo, determinar quantos ciganos vieram para o

Brasil até 182241

. Não resta dúvida de que “[...]os primeiros ciganos que desembarcaram no

Brasil foram oriundos de Portugal, e que estes não vieram voluntariamente, mas expulsos

daquele país”42

.

Uma das razões dos ciganos serem enviados aos trópicos como degredados foram as

38 COSTA, Elisa Maria Lopes da. Op. Cit., 2006, p. 17. 39 PIERONI, Geraldo. Vadios e ciganos, heréticos e bruxas: os degredados do Brasil-Colônia. Rio de Janeiro,

Bertrand Brasil: Fundação Biblioteca Nacional, 2000, p. 111. 40 COELHO, Francisco Adolfo. Os ciganos de Portugal. Lisboa, Imprensa Nacional, 1892 Apud PIERONI,

Geraldo. Op. Cit., p. 111. 41 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007. 42 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 27.

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acusações por furtos e blasfêmias contra Deus. Sob essa suspeita foram acusadas as ciganas

Maria Fernandes e Apolônia Bustamente, que:

[...] pareciam irritadíssimas com as abundantes chuvas que caíam incessantemente naquele período. Usando de palavras indecorosas contra

Deus e a fé católica, resolveram grotescamente atribuir a Deus todos os

incômodos das chuvas. Blasfemaram dizendo que Deus urinava sobre elas43

.

O degredo, segundo a história tradicional, teria sido a fórmula encontrada por Portugal

para povoar as terras do além-mar; política usada como instrumento pela Metrópole para

colonizar o Brasil. Essas atitudes perduraram por três séculos, homens e mulheres vieram

integrar a população da Colônia, sendo que a maioria desse contingente fazia parte de estratos

humildes da população portuguesa. Condenados em Portugal pela Inquisição por crimes que

variavam desde “furtar uma mão de trigo” a “cortar uma árvore frutífera”, bem como crimes

por adultério, bigamia, crime de lesa-majestade e homicídio44

. Além desta variedade de

crimes, os ciganos foram acusados também pela Inquisição de serem feiticeiros: “A prática de

ler a sorte – buena dicha – fazia com que eles fossem considerados pelo diabólico tribunal

como signatários de pacto infernal e, portanto, merecedores de castigos corporais e até mesmo

de desterro” 45

.

A legislação ibérica explica o posicionamento do poder civil e religioso em relação aos

ciganos, que juntamente com os judeus e muçulmanos, eram considerados indivíduos

perniciosos; por conseguinte, ameaçadores da unidade espiritual dos países que na época dos

grandes descobrimentos marítimos representavam os baluartes da fé católica, cujos ideais de

expansionismo, baseado na centralização do poder, não permitiam divergências quanto aos

princípios dogmáticos, nem tampouco quanto às práticas ou aos rituais que pudessem

concorrer com os oficiais46

. Assim, “em nome dos bons costumes e da unidade da fé, e contra

todos aqueles que a isto não se subordinavam, foram tomadas medidas severas e muito

distanciadas das páginas do evangelho”47

.

O degredo seria uma política de exclusão social? Significava um remédio, um elixir

milagroso, capaz de provocar a expiação e regeneração dos crimes e pecados cometidos? O

que podemos considerar é que essa política possibilitou à Metrópole livrar-se de seu

43 Primeira Visita do Santo Ofício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça, Confissões

da Bahia: 1591-1592, prefácio de Capistrano de Abreu, Rio de Janeiro, F. Briguet, 1935, p. 58-128 Apud

PIERONI, Geraldo. Op. Cit., 2000, p. 112. 44 Ibidem. 45 MOTA, Ático Vilas-Boas da. Ciganos – Antologia de Ensaios (org.). Brasília: Thesaurus, 2004, p. 44. 46 Ibidem. 47 Ibidem, p. 44.

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contingente populacional, considerado inútil, indesejado e perigoso e, ao mesmo tempo,

ofereceu a possibilidade de purificar a alma dos culpados. Sob esse prisma, o degredo

funcionou como um nítido rito de purificação e integrou-se perfeitamente à luta da Inquisição

pelo controle, correção, manutenção e consolidação da ortodoxia e unidade religiosa.

Minorias naquele contexto como cristãos-novos e ciganos foram sistematicamente

perseguidos em Portugal com o degredo colonial48

.

Em princípio, a idéia de solucionar o problema do povoamento com as penas do

degredo não trouxe eficácia: “Muitos condenados abandonavam o território após o

cumprimento da pena ou mesmo antes, com o argumento de terem sido degredados para o

Brasil sem lugar específico mencionado na sentença”49

. Elisa Costa aponta o decreto de 18 de

janeiro de 1677, que impunha a especificação do destino para as capitanias da Bahia,

Maranhão, Paraíba, Pernambuco e Rio de Janeiro, dentre outras. “Eram encaminhados ao

respectivo governador e deveriam ser registrados ainda no dia da chegada, com anotação do

tempo de pena a cumprir e da data em que findaria. Cumprida a pena, deveriam receber a

certidão devida”50

.

A escolha da Capitania do Maranhão, para receber os ciganos, não ocorreu de forma

aleatória:

[...] o destino dos degredados seriam as áreas menos densamente ocupadas

pelos colonizadores, nas quais o espaço seria disputado com os índios. Ainda

que segregados na Metrópole, dava-se preferência aos ciganos, e não ao gentio da terra, no processo de ocupação de determinadas áreas da Colônia

Portuguesa na América51

.

Rodrigo Teixeira52

discorda de Elisa da Costa53

ao apontar que ainda não foram

descobertos documentos que indiquem dados sobre o número de ciganos deportados naquele

período, para quais capitanias e por quais motivos, mas sabe-se que outras capitanias também

receberam ciganos, como Pernambuco, Ceará e Bahia. Salvador, a primeira capital colonial

brasileira tornou-se também a mais importante cidade para os ciganos do Brasil. A

comunidade exercia atividades como venda e troca de animais, metalurgia [caldeireiros,

latoeiros, ferreiros, consertadores de alambiques e engenhos], artes circenses [saltimbancos,

48 PIERONI, Geraldo. Op. Cit., 2000 49 COSTA, Elisa Maria Lopes da. Op. Cit.,2006, p.18. 50 Ibid. Id. 51 GONÇALVES, Andréa Lisly. Fazer o quê? In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 02, n. 14,

nov. 2006, p. 20. 52 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007 53 COSTA, Elisa Maria Lopes da. Op. Cit., 2006.

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teatro mambembe], amestradores, empalhadores. As mulheres liam a “buena-dicha” ou

“batiam cartas” [cartomancia], vendiam miçangas, dançavam, cometiam pequenos delitos,

pediam esmolas, etc.54

. De Salvador, muitos rumaram em direção à região das minas [hoje

Minas Gerais], mas sempre acusados de causarem incômodos às autoridades mineiras.

Rumaram para São Paulo, onde supostamente passaram a incomodar também as

autoridades paulistas. Naquela Capitania, foram solicitadas medidas contra ciganos que

apareciam na cidade e que eram “prejudiciais” à população porque andavam com jogos e

outras perturbações:

[...] por ser notório nesta cidade se acha um bando de ciganos composto de homens, mulheres e filhos sendo público terem sido expulsos de Minas

Gerais por serem perniciosos naquelas povoações e assim se vieram acolher

a esta cidade aonde já vão havendo algumas queixas [...]55

.

O final do século XIX e início do século XX foi o ápice de confrontos entre polícia e

ciganos, ao que Teixeira denominou de “correrias de ciganos”. Eram movimentações de

ciganos em fuga, perseguidos pela polícia, onde ocorriam frequentes tiroteios, resultando em

morte de ambos os lados. Minas Gerais foi palco desse movimento em grandes proporções,

mas, as correrias também aconteceram em outros estados. A não submissão do povo cigano

aos padrões dominantes e a incapacidade das autoridades em lidar com ele ficou patente em

muitos documentos. A prática dominante, por ser aparentemente de simples aplicação,

conforme Elisa da Costa, consistia em frequentes tentativas de expulsão. “Minas expulsa seus

ciganos para São Paulo, que os expulsa para o Rio de Janeiro, que os expulsa para o Espírito

Santo, que os expulsa para a Bahia, de onde são expulsos para Minas Gerais, e assim por

diante”56

. Essa estratégia adotada desde que os primeiros ciganos chegaram à Europa,

pretendia também no mundo colonial mantê-los em “movimento”57

, ou seja,o melhor lugar

para os ciganos era sempre o mais distante: “[...]no bairro vizinho, no município ou no Estado

vizinho, ou então no país vizinho ou num país bem distante”58

.

Esses estudiosos da temática afirmam que os ciganos chegaram ao território mineiro

logo após a descoberta do ouro: “[...] os judeus e cristãos-novos, bandos imensos de ciganos,

atiraram-se para as terras ultramarinas, buscando fortuna e a redenção na largueza dos sertões

54 PAIVA, Assède. Brumas da História do Brasil: ciganos e escravos, a verdade. (ensaio). Rio de Janeiro.

Edição independente: Fábrica de Livros do SENAI, 2002. 55 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 33. 56 COSTA, Elisa Maria Lopes da. Op. Cit., 2006, p. 19. 57 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 34. 58 Ibid. Id.

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infindos, onde dificilmente chegariam as importunações do Santo Ofício”59

.

No que tange ao papel da Igreja Católica na Colônia, temos informações sobre a

“Primeira Visita do Santo Ofício” às Capitanias da Bahia, entre 1591 e 1593, e Pernambuco,

no biênio seguinte.

Esta referência, porém, não é suficiente para indicar o povo cigano como um

alvo da Inquisição. Pelo contrário. Apesar de sua longa existência – do

século XVI ao XIX – e de seu alcance geográfico se estender de Portugal às colônias, são relativamente poucos os processos contra ciganos. As

acusações quase não variam: blasfêmias, pequenos delitos e, um caso de

bruxaria60

.

A presença dos ciganos no Rio de Janeiro foi certa desde o início do século XVIII. A

princípio, chegaram ocupando as áreas pantanosas da Capital, os terrenos considerados

desvalorizados, em virtude da dificuldade de edificar e por causa da insalubridade. Tratava-se

de uma área desabitada, na qual,

[...] ninguém pretendera por inaproveitável. Constituída de brejos e

alagadiços que as menores chuvas inundavam, tinham fama de pestilenta pelos miasmas que dela exalavam. Os pauis que a formavam tornavam-na

própria tanto para a lavoura como para que nela se erigissem construções

permanentes. Nesse pantanal e desprezado, onde ninguém os viria

incomodar, ergueram os seus míseros e toscos casebres de moradia dos ciganos

61.

Ainda no final daquele século, quando foi empreendido o processo de saneamento da

capital, pelo vice-rei Luís de Vasconcellos e Souza, os ciganos foram obrigados a se retirarem

daquele local:

Não foram para longe. Com o consentimento tácito ou formal da Ordem do

Carmo, instalaram-se na chácara que fora de Paula Carvalho, junto com as

divisas das terras de Coelho da Silva. Aí levantaram as suas casas, formando

uma nova rua, em ângulo reto com a de São Jorge e que deles tomou o nome, conservando-o até à época da Independência

62.

Esse espaço formaria o Campo de Sant‟Ana, também conhecido como Campo dos

Ciganos. Por volta da década de vinte, do século XIX, a região viria a ser o Largo do Rossio,

atualmente Praça Tiradentes, na capital carioca.

Foi naquela área que a população cigana concentrou-se majoritariamente no Rio de

59 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 31. 60 COSTA, Elisa Maria Lopes da. Op. Cit., 2006, p.17. 61 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit.,2007, p. 38. 62 Ibidem, p. 34.

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Janeiro durante todo o século XIX, momento em que viveu um ápice em economia e status

social. Os anos que antecederam a Independência, durante a permanência da Corte portuguesa

no Brasil, são considerados o momento de maior aceitação e de valorização romântica cigana,

ao menos no Rio de Janeiro63

. Embora os ciganos tenham chegado à capital imperial, fixando-

se em locais insalubres, construindo casebres miseráveis, muitos deles tornaram-se ricos. A

razão desse sucesso econômico foi o comércio de escravos, ainda que eles desempenhassem

outras profissões64

. Uma dessas profissões foi o ofício de meirinho65

, uma atividade que se

transformou em objeto de transmissão hereditária: “[...] podem ser identificadas linhas de

descendência nas quais toda uma geração de filhos e netos trabalha no métier”66

. Sobre essa

questão, Oliveira China registra depoimento de uma testemunha ocular:

Tivemos aqui um quarteirão habitado por ciganos, quando eu era estudante do Pedro II. A rua principal era a da Constituição (que o povo denominava

de „Rua dos Ciganos‟). Mais tarde, quando estudante de Direito, encontrei

nessa mesma rua, muitos ciganos em atividade. Era notável o número deles na função de „oficiais de justiça‟, ou meirinhos e, nessa mesma rua estavam

situados os principais juizados e cartórios forenses. [...] Anos depois, alguns

elementos típicos, ainda meirinhos (a profissão passa de pais a filhos), ainda

resistiam esparsos pelos cartórios e juizados, sendo notável o característico racial da tez morena bronzeada e os olhos garçons

67.

Costuma-se assinalar a participação institucional no Judiciário, como um importante

referencial de sedentarização, pois teria sido a partir das funções desempenhadas na Justiça

carioca que os ciganos tornam-se parte fixa da sociedade majoritária68

.

Evocar sua participação no Judiciário é uma forma de operar o que se pode

chamar de „inversão de estigma‟. De fato, a posição que os ciganos ocuparam historicamente os colocava ao lado dos mantenedores da ordem

pública. Os calons se dedicaram, durante sucessivas gerações, a um ofício

que tem fé pública, ou seja, que torna sua palavra presumidamente

verdadeira. Pode-se, sem muito esforço, imaginar a repercussão disso para um grupo constantemente posto sob suspeição

69.

O ofício de meirinho exercia especial atração sobre os ciganos, “[...] talvez por ser a

porta modesta que arrombavam para derrogar a velha proibição do exercício de cargos

63 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007. 64 Ibidem. 65 Oficial de Justiça. 66 SOUZA, M. A. de; SILVA MELLO, M. A. da. Meirinhos Aristocráticos. In: Revista de História da Biblioteca

Nacional. Ano 02, n.14, nov/2006, p. 29. 67 CHINA, J. Baptista de Oliveira. Os ciganos no Brasil: subsídios históricos, etnográficos e lingüísticos.

Separata da Revista do Museu Paulista. São Paulo, 1936, p. 418-419. 68 SOUZA, M. A. de; SILVA MELLO, M. A. da. Op. Cit., 2006, p. 29. 69 Ibidem, p. 32.

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públicos”70

.

No universo do Judiciário, os ciganos estavam relacionados a outros ofícios, como:

porteiros de auditório, taquígrafos, auxiliares-datilógrafos, comissários de menores,

comissários de vigilância, escreventes, ficharistas. Mas, foi como oficiais de justiça que se

sobressaíram, esse ofício parece ter sido um verdadeiro negócio de ocasião, e a ocasião, a

oportunidade para ocupá-lo, foi, sem dúvida, a transferência da Corte para a Colônia.

A instalação da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, no início do século XIX, além de

consequências imediatas – a abertura dos portos às nações amigas e muitas mudanças

substantivas na economia e sociedade, a saber, a interiorização da metrópole – proporcionou

também a ascensão sócioeconômica dos ciganos e, em especial, daqueles que comerciavam

escravos. Essa atividade proporcionou-lhes uma maior aceitação e até mesmo uma

valorização social, uma vez que exerciam uma atividade reconhecida como útil por grande

parte da população71

.

Com a transferência da família Real portuguesa para o Brasil, em 1808, vieram também

milhares de portugueses, dentre eles ciganos: eram cantores, músicos e ferreiros da Corte72

. O

folclorista Mello Morais levanta essa possibilidade:

Do interminável séquito da família real poucos prestavam para alguma coisa. Eram fidalgos e vadios. Aos fidalgos mandou-se dar pensões do tesouro, [...]

os vadios foram empregados nas repartições que se criaram para esse fim. E

os fidalgos e vadios não eram mais fidalgos nem menos vadios do que os

ciganos, que certamente fizeram parte da comitiva [...]73

.

Alguns ciganos, na capital imperial, tornaram-se ilustres, chegando a patrocinar

festividades na Corte. Em virtude da comemoração da elevação do Brasil ao Reino Unido, em

1815, no segundo dos três dias de celebrações, “D. João VI levou a corte inteira e a delegação

estrangeira ao Campo dos Ciganos para uma tarde e noite de danças e entretenimento”74

. Em

outra ocasião festiva, quando da comemoração das bodas do Príncipe Real D. Pedro, os

ciganos foram novamente convidados para apresentarem suas danças e músicas:

[...] e logo entrou na praça a célebre danças dos ciganos, que se compunha

de seis homens, e outras tantas mulheres vestidos todos com muita riqueza;

depois de tudo quanto apresentaram de ornato era veludo; e ouro:

precedia-os uma banda de música instrumental; e sobre um estrato

70 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 39. 71 Ibidem, p. 90 72 CAVALCANTI, Sônia Maria Ribeiro Simon. Op. Cit., 1994, 73 MORAES FILHO, Mello. Op. Cit., 1981, p. 28-29. 74 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 41.

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fronteiro às reais pessoas executaram com muito garbo, e perfeição, várias

danças espanholas, que mereceram universal aceitação75

.

Até fins da segunda década do século XIX, o Campo dos Ciganos “[...] havia se tornado

o bairro boêmio do Rio, uma área conhecida por uma vida alegre e pelos artistas brasileiros e

estrangeiros que ali viviam”76

.

Podemos compreender esse momento sui generis da história cigana no Brasil se

relacionarmos com a ascensão do movimento romântico na Europa, que aqui repercutia com a

visão de que o cigano era a encarnação dos ideais da vida livre e integrada à natureza. A

mulher cigana era também idealizada naquele momento, agora não mais a miserável e

desonesta quiromante, mas, uma mulher forte, sensual e fascinante77

. Nesse contexto, “[...]

portugueses e demais europeus que chegavam ao Brasil, ávidos por encontrar os mais

exóticos tipos humanos nos trópicos, os ciganos correspondiam bem a essa expectativa”78

.

Ao final da década seguinte, os ciganos já não eram requisitados para se apresentarem

nas festividades da Corte do império recém-fundado. Esse momento de ascensão e triunfo

começou a ruir, em função dos movimentos em prol da Independência, acrescidos de

momentos fatais sobre o escravismo em décadas posteriores. Assim, não havia qualquer

possibilidade de os ciganos servirem ao perfil que se idealizava para o “ser brasileiro”79

.

Quando a questão da raça passou a ser temática essencial na definição da identidade nacional,

mesmo sob o enfoque romântico do exotismo, após a Independência, a nação passou a ser

descrita de forma a-histórica, via paisagem natural. Naturalistas brasileiros e estrangeiros

percorrem o Brasil procurando pesquisar a flora e a fauna, mas passaram a se interessar

também pela população, principalmente das cidades, discutindo os tipos humanos e

analisando os efeitos da miscigenação. A gradual incorporação do discurso científico ao

conceito de “ser nacional” teve seu marco com a criação do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro [IHGB], em 1838. Essa ação ia de encontro à prática historiográfica que se

desenvolvia na Europa. Em meados do século XIX, o Império elegeu o indígena como

símbolo fundamental e consolidou o discurso de que a miscigenação entre o branco, o índio e

o negro promoveria o patriotismo e consolidaria a nação em desenvolvimento80

. “Dos

ciganos, permaneceu a idéia de imisturáveis, supersticiosos, desclassificados e desconfiados

75 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 41-42. 76 Ibid. Id. 77 Ibidem. 78 Ibidem, p. 41. 79 Ibidem, p. 43 80 Ibidem.

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do que de participantes da formação do brasileiro”81

. Diante dessa perspectiva: “a presença

dos ciganos na composição da população seria omitida, pois era uma minoria difícil de ser

apreendida por esse discurso nacionalista. Negando-se aos ciganos o direito à história,

tentava-se colocá-los à margem da „boa sociedade‟”82

.

Além disso, o crescimento da importância do projeto de modernização e civilização dos

costumes junto às elites brasileiras, pretendiam estabelecer um reordenamento físico das

cidades, higienizar as vias públicas e excluir dos centros urbanos todos os indivíduos que não

se adequassem à nova ordem. Ainda que “civilização” e “progresso”, fossem expressões

fundamentais na cultura europeia nos fins século XVIII, no Brasil, foi no transcorrer dos

oitocentos que se almejaram tais metas. A partir daquele momento, “[...] intensificou-se a

repressão às populações marginalizadas, entre elas os ciganos. Eles tanto não se enquadravam

na nova ordem como, segundo a sociedade acreditava, a ameaçavam”83

. Dessa forma,

segregar e expulsar os ciganos da cidade passou a integrar o projeto “civilizador” das

autoridades imperiais. Essas medidas repressivas acabaram por fechar, paulatinamente, o

cerco sobre os ciganos84

.

1.2 A inserção dos ciganos no comércio

Como apresentei acima, os primeiros ciganos vindos de Portugal se espalharam

rapidamente pelo território brasileiro. Esses ciganos ibéricos compunham o gênero Calon, que

vieram para o Brasil como degredados até o final do século XVIII. Outro grupo, o Rom,

proveniente do Leste Europeu, chegou ao Brasil na primeira metade do século XIX. Os

Calons, segregados e perseguidos na Metrópole, na nova pátria, não se inserem na tradicional

ordem do trabalho: senhor, escravo ou agregado. Fora dessa ordem, precisavam garantir a

sobrevivência e ocuparam-se de variadas funções: vendedores ambulantes de cavalos,

bugigangas, escravos, saltimbancos circenses, caldeireiros [consertadores de peças dos

engenhos de açúcar]. “Os negociantes ambulantes estrangeiros no Brasil passaram a ser

conhecidos em certas áreas por „gringos‟ dentro da velha tradição peninsular de denominar-se

81 RIBEIRO, Cristina Betioli. Ladrões de Crianças. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 02, n.

14, nov. 2006, p. 25. 82 Ibid. Id. 83 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 16. 84 Ibidem.

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„gringo‟ o cigano ou vagamundo [...]”85

. De acordo com Gilberto Freyre, os ciganos são os

primeiros a serem chamados de gringos no Nordeste86

; o sociólogo pernambucano conclui:

“A respeito dos gringos convém lembrar que os ciganos foram, na sua especialidade – venda

de escravos e cavalos – os primeiros vendedores ambulantes que tornaram conhecidos em

trechos remotos do Brasil [...]”87

. Como vendedores ambulantes, foram sem dúvida,

elementos de integração nacional, no tempo em que as estradas eram pouco mais, pouco

menos que trilhas88

.

O comércio foi considerado a mais importante das atividades desenvolvidas pelos

ciganos, desde que chegaram ao Brasil. Comercializavam as mais diversas mercadorias, como

tecidos, jóias, roupas, quinquilharias. Essa atividade exigia deles utilizar habilidades retóricas

para o convencimento da outra pessoa, bem como a diversidade dos produtos que

comercializavam oferecia-lhes a oportunidade de algum tipo de socialidade com a população

não-cigana.

A versatilidade dos ciganos para o exercício das atividades econômicas mais

favoráveis diante das circunstâncias foi um dos principais fatores para sua

sobrevivência ao longo do tempo. Ao encontrarem nichos econômicos

desocupados, nos quais pudessem exercer alguma de suas inúmeras atividades, eles encontravam formas de se inserir em sociedades hostis que,

eventualmente, os toleravam89

.

Destacaram-se também no comércio de animais, sobretudo, cavalos e bestas. Foi em

grande parte por conta dessa atividade que carregaram o estigma de ladrões e trapaceiros. A

primeira, por serem acusados de negociar animais roubados; a segunda, por transformarem

pangarés em vistosos cavalos de raça e convencerem os compradores de que o eram. Gilberto

Freyre destaca que no mundo colonial “[...] houve, enfim, muito velhaco e espertalhão

escondido por trás das barbas patriarcais e engabelando, com suas manhas, comissários,

agentes e até ciganos, vendedores de cavalos pelo engenho”90

.

Sobre essa ocupação, o historiador Rodrigo Teixeira se posiciona em defesa dos ciganos

ao levantar a possibilidade de que eventuais trapaças devem ter realmente ocorrido nesse

comércio, não porque os negociantes fossem ciganos, mas porque a atividade proporcionava

85 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil. 2. ed. Rio

de Janeiro: José Olympio, 1951, p. 201. 86 FREYRE, Gilberto. Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil.

7. ed. – São Paulo: Global, 2004, p. 115. 87 Ibidem, p. 201. 88 PAIVA, Assède. Op. Cit., 2002, p. 31. 89 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 83. 90 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1951, p. 141.

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muitas possibilidades para enganos. Teixeira acredita que eventuais trapaças ocorressem no

intuito de se reafirmar a identidade cigana em frente aos não-ciganos: “Enganar o não-cigano

era, ocasionalmente algo valorizado entre os ciganos”91

.

Outro ofício desempenhado por eles foi o de saltimbancos e circenses. Essa atividade

indutora do lúdico era vista com desconfiança pelos não-ciganos, por estar associada à

transgressão das normas sociais.

Gilberto Freyre esclarece que os ciganos introduziram animais exóticos no desempenho

dessa atividade no Nordeste açucareiro colonial:

[...] iam de engenho a outro, diz a tradição que com meninos, às vezes roubados; que faziam acrobacias sobre cavalos, geralmente também

roubados; com ursos verdadeiros, ou então fingidos – só a pele ou a imitação

da pele do animal por cima de um homem – que dançavam ao som de pandeiros; com macacos ou macacas grandes, vestidas de sinhás, cheias de

laços de fitas, que também dançavam e faziam graças [...]92

.

Trata-se de uma ocupação secular, associada aos ciganos antes mesmo de sua chegada à

Europa que, no Brasil, foi vista de forma ambígua: “[...] embora estivessem individualmente

estigmatizados, enquanto artistas, os ciganos eram muitíssimo apreciados. O mais curioso é

que, os mesmos que os aplaudiam enquanto artistas rechaçavam-nos, enquanto indivíduos”93

.

A quiromancia, termo erudito para a expressão popularmente conhecida como buena-

dicha, era uma atividade típica das mulheres ciganas. Para elas, significava “[...] uma

atividade lúdica e sua principal e mais rendosa atividade. Para as consulentes, quase sempre a

buena-dicha significava boas novas, ou seja, a esperança de mais sorte na vida”94

. Além

dessa, as ciganas também se ocupavam com a cura e o exorcismo de doenças. Similar a essa

atividade, embora também exercida por homens, era a feitura de simpatias para recuperar

escravos desaparecidos. “[...] Muitos senhores de escravos não hesitavam em recorrer ao

auxílio dos ciganos para recuperar um cativo fugido de seus planteis. Afinal, os ciganos eram

famosos pelas mais fortes simpatias e orações para aparecer negro fugido”95

.

Mas foi sobretudo o comércio de escravos a atividade econômica de maior destaque

exercida pelos ciganos. Esse ofício, exercido com muita intensidade nas primeiras décadas

dos oitocentos, proporcionou-lhes uma maior aceitação e até mesmo uma valorização social,

uma vez que exerciam uma atividade reconhecida como útil por grande parte da população.

91 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 85. 92 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 2004, p. 115 93 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 87. 94 Ibidem, p. 90. 95 GONÇALVES, Andréa Lisly. Op. Cit., 2006, p. 21.

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Esse ramo no qual se inseriram, contribuiu para o abandono do nomadismo, consagrado como

referência para a identidade do grupo:

[...] muitos ciganos tiveram êxito nesse ramo, a ponto de ocuparem mais do

que posições intermediárias na hierarquia traficante. Membros de famílias

incluídas em decretos de banimento conseguiram até mesmo figurar nas listagens das fortunas cariocas e de agraciadas com condecorações

96.

Atuavam como agentes intermediários, que comerciavam com os agentes da costa, de

vários portos marítimos, principalmente o porto do Rio de Janeiro. “Os intermediários

transportavam seus escravos para os futuros proprietários por canoa ou pequenas embarcações

ou através de rotas terrestres”97

.

A comercialização de escravos trouxe extraordinário ganho aos ciganos, no

Rio, alguns tornaram-se ricos. A causa disto é que o sistema escravista era um dos pilares da economia, já que as áreas mineradoras ainda absorviam

grande mão-de-obra, e as plantações cada vez mais necessitavam desse

trabalho. Além disso, nas cidades, o trabalho dos escravos diversificava-se cada vez mais

98.

Sob um prisma social, os ciganos também se beneficiaram com tal atividade. O

comércio de escravos, apesar de todos os seus aspectos repulsivos, era sem dúvida uma

ocupação utilitária para as classes mais baixas. Os ciganos, por negociarem também escravos

de segunda mão, cuja necessidade de capital era bem menor do que o comércio de venda por

atacado, possibilitavam o acesso à mercadoria às pessoas de baixo poder aquisitivo, como

brancos pobres e até ex-escravos, que compravam a mercadoria africana, almejando com isso,

adquirir melhor status. Por sua vez, tal comércio permitiu aos ciganos publicizar sua

identidade étnica e fortalecer os limites culturais, distinguindo-os da população branca, desta

forma, sua imagem ia sendo matizada e igualmente fragmentada99

.

No decorrer do período colonial até a primeira metade dos oitocentos, o comércio de

escravos não era adjetivado como degradante à condição humana. Por conseguinte, os atores

envolvidos nessa atividade não eram vistos como protótipos do mal.

A utilidade social que passaram a ter, relacionava-se ao fato de que a posse

de escravos era um atributo importante para o status social. Então, os

comerciantes de escravos eram elementos que proporcionavam

96 SOUZA, M. A. de; SILVA MELLO, M. A. da. Op. Cit., 2006, p. 30. 97 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 91. 98 Ibidem, p. 97. 99 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007

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indiretamente a elevação do status do comprador100

.

É importante salientar que, em função desse comércio na Corte, os ciganos se

encontravam sedentarizados, desenvolvendo uma atividade econômica relativamente estável e

inseridos no cotidiano local, embora mantendo sua identidade. No entanto, no interior do

Império, sobretudo nas áreas rurais, mantinham uma continuidade em relação ao século

anterior.

A partir da segunda metade do século XVIII, o abastecimento de escravos africanos no

Rio de Janeiro concentrava-se na Rua do Valongo101

. Tratava-se de uma área localizada no

subúrbio da cidade, criada sob a justificativa de

[...] evitar que escravos nus, recém-chegados da África, andassem pela Capital nus e com moléstias – o que ocorria até então. A intenção, portanto,

era livrar a corte desses incômodos e tentar promover a recuperação dos

escravos doentes. Ali, os negros eram vendidos por grandes firmas, por casas leiloeiras e por traficantes independentes

102.

A década de 20 do século XIX, representa o período em que o mercado do Valongo

viveu o seu ápice de movimentação comercial, plenamente integrado à cidade. Quando

desembarcavam os navios negreiros, os cativos eram alojados em depósitos onde seriam

maquiadas as feridas adquiridas no longo traslado da África para a América:

Exaustos e confusos, os cativos eram jogados em galpões, a fim de serem

tratados e „maquiados‟ para a venda em leilão público. Era chegada a hora de engorda, de tratar e cuidar dos escravos: aplicava-se óleo da palma a fim

de esconder as doenças e dar brilho à pele; lustravam-se os dentes,

impunham-se exercícios físicos para aumentar a flexibilidade. Afinal, o preço do escravo era definido pelo sexo, pela idade e especialização, mas

dependia sobretudo da condição física103

.

Por conta dessa tática de camuflar os ferimentos, sabe-se que havia constantes queixas

pelos calotes cometidos por mercadores, e os ciganos eram, de praxe, acusados disso. Um dos

calotes atribuídos aos ciganos era o de pintarem os cabelos brancos e a barba dos negros

velhos para que aparentassem mais novos104

. Os viajantes viam os mercadores de escravos

como criaturas cruéis e repugnavam a atitude dos ciganos. O médico e folclorista Mello

100 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 93. 101 Alutinação de Vale Longo, originado em Portugal. Refere-se ao largo do Valongo ou Rua do Valongo,

entreposto onde ficavam os negros para serem vendidos. Hoje, rua do Carneiro, cercanias do bairro da Saúde,

Rio de Janeiro. 102 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 95. 103 Ibidem, p. 95-96. 104 MORAES FILHO, Mello. Quadrilhas de Ciganos. In: MOTA, Ático Vilas-Boas da. Op. Cit.,, 2004.

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Morais Filho, pioneiro em estudos sobre ciganos no Rio de Janeiro no final do século XIX,

concorda com essa idéia:

Em 1830, os bairros preferidos pelos Calons para sua habitação foram o Valongo e a grande área da Cadeia (Nova). O comércio de escravos,

obrigando-os a se fixarem naquele local, em conseqüência do tráfico, a

exploração das minas e o negócio de animais reclamando a sua presença

neste, segue-se que havia na escolha uma razão natural. Depois de 1808, a Rua dos Ciganos e o Campo de Sant‟Ana foram-se despovoando desses seus

primitivos moradores que, chamados a outras funções, distraídos com os

proventos do ouro e barganha de cavalos, procuravam as localidades mais próximas das estradas do interior e toda Prainha e Saúde, opulentos

empórios dos carregamentos da Costa d‟África.

Quem, ao escurecer, passava por aqueles armazéns, pertencentes a diversos proprietários, dos quais eram comissários os ciganos, sentia desprenderem-se

dos salões infectos as exalações especiais à raça negra [...] Os ciganos, como

um povo banido, vilipendiado, aceitaram com prazer o comércio que

aviltava mais ao senhor que comprava, do que à família, os filhos, os vencidos, escravizados [...] Naqueles bazares da tirania humana e da

deslealdade da sorte, o cigano, repimpado em sua poltrona, de chicote em

punho, era o medianeiro de má fé nas transações dos desgraçados [...] [...] Marquês de B... pertencia à raça boêmia [cigana]. Sua imensa fortuna

proveio de ser medianeiro, na compra de escravos para Minas, a Amaro

Velho, João Gomes Velho e João Gomes Barroso, dos quais recebia uma

dobla por cabeça. O refugo entregava aos parentes, que iam vender no interior. Os Calons, adaptados por esse lado à nossa civilização, mais

salientes se tornavam pelos seus costumes e usos, incontestavelmente

próprios. Moravam em casas térreas, gostavam que tivessem três portas, que conservavam abertas durante o dia e parte da noite...

105.

Embora o comércio de escravos apresentasse ampla estrutura de funcionamento legal, o

crescimento da necessidade dessa mercadoria na Capital, bem como os lucros do negócio,

contribuíram para o desenvolvimento de formas ilegais desse comércio: “Eram comuns

traficantes que trabalhavam sem licença e com escravos roubados. As constantes queixas

contra ladrões traziam grande insegurança aos proprietários”106

. Na imprensa carioca, eram

constantes as advertências para que não se comprassem escravos fugidos ou roubados:

“Constantemente acusavam-se os ciganos e homens livres de roubarem escravos. Entre os

suspeitos alguns claramente adquiriam escravos por roubo, e os registros da polícia incluem

testemunhos dos raptos de escravos são totalmente conclusivos neste ponto”107

.

Com a criação da Intendência Geral da Polícia da Corte e do Estado do Brasil, a partir

de 1808, órgão responsável pela manutenção da ordem, administração das obras públicas e

organização das tropas, os ciganos passaram a representar “um grande incômodo para a

105 MORAES FILHO, Mello. Op. Cit., 1981, p. 36. 106 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 98. 107 Ibid. Id.

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realização do controle do espaço urbano”108

; a repartição criada atribui o roubo de escravos

como atividade típica dos ciganos.

O comércio ilegal de escravos envolvia pessoas de diversos segmentos sociais com

funções específicas: de ladrões a compradores, de intermediários a transportadores de negros

para fora da cidade. Esses personagens aproveitavam-se da fama dos ciganos e envolviam-se

no furto de negros: “Às vezes, o escravo era negociado na própria cidade, não havendo nem a

preocupação de levá-lo para longe de seu antigo senhor”109

.

A partir de 1850, com a Lei Eusébio de Queiroz, que decretou a proibição do tráfico

negreiro, ocorreram mudanças substantivas no mercado escravista a ponto de afetar

sensivelmente o papel desempenhado pelos ciganos no comércio de escravos. Embora a

primeira tentativa de se proibir o tráfico negreiro para o Brasil tenha sido a partir de 1831,

oficialmente, a proibição da entrada de escravos africanos ocorreu em 1850, e os impactos

econômicos da extinção do tráfico são brutais:

O valor dos cativos triplica, transformando a escravaria de uma fazenda num

problema financeiro fundamental. [...] os grandes proprietários, sobretudo

paulistas, foram obrigados a recorrer ao tráfico interno de escravos. Os

cativos passaram a vir do Nordeste, oriundos das decadentes fazendas de cana, o que acarretou não só a elevação súbita dos preços no mercado, como

também uma migração de escravos ladinos mais adaptados ao local110

.

Até essa data, os comerciantes portugueses monopolizavam o tráfico transatlântico. Com

a proibição do comércio, tiveram que se enquadrar em outras parcelas do mercado escravista,

dentre elas o comércio de segunda mão. Era uma atividade bem menos lucrativa, porém com a

hipervalorização dos preços dos escravos após 1850, passou a proporcionar altos lucros. No

entanto, era um setor ocupado por grandes e pequenos proprietários, dentre eles, os ciganos.

Isso explica de certa forma o crescente cerceamento ao comércio de escravos feito pelos

ciganos, a partir da segunda metade do século XIX111

.

Enfrentando a partir de então a concorrência com os portugueses e cerceados cada vez

mais pelas posturas municipais, as duas primeiras leis abolicionistas: Lei do Ventre Livre

(1871) e a Lei dos Sexagenários (1885), os ciganos foram pressionados ainda mais pelas

atividades desempenhadas com o comércio. A primeira Lei libertava os filhos de escravos,

mas não as mães, e estabelecia que o liberto deveria ficar até os 21 anos sob a tutela do

108 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 98. 109 Ibidem, p. 99. 110 MORAES FILHO, Mello. Op. Cit., 1981, p. 114-115. 111 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit, 2007.

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senhor; a segunda, também chamada de Lei Saraiva-Cotegipe, concedia liberdade aos

escravos ao completarem 60 anos de idade. Ambas as leis consistiam em formas de maquiar o

processo de abolição, e ao mesmo tempo representavam tentativas de responder ao

movimento abolicionista cada vez mais atuante e mais apoiado pelo povo112

.

Diante desse contexto, nos anos que precederam a abolição, tornou-se raro encontrar

grupos de ciganos que lucrassem com o mercado de escravos como fora no início do século.

Com o decreto da Lei Áurea, em 1888, que aboliu em definitivo o trabalho escravo no Brasil,

os ciganos do Centro-Sul brasileiro perdem uma importante fonte de subsistência. No final do

século XIX, restava-lhes “permanecer entre uma população rural cada vez mais hostil ou se

unir à massa de trabalhadores urbanos”113

. No entanto, ainda havia uma última „opção‟ para

garantia da sobrevivência: a prática de pequenos delitos contra a propriedade privada.

1.3 Mitos sobre o povo cigano

Como abordei no início da narrativa, é associado ao povo cigano a imagem de

liberdade, de mistério, de fascínio, a ligação com o futuro através de práticas adivinhatórias

como a leitura de cartas e das mãos. A imagem do preconceito os estigmatiza como velhacos

e trapaceiros por conta da sua forma de garantir a sobrevivência e seu estilo de vida livre.

O historiador mineiro Rodrigo Teixeira, em estudo sobre o povo cigano, utiliza como

fontes os relatos de viajantes e memorialistas. Esses documentos, os estereótipos “sujos”,

“trapaceiros” e “ladrões” são recorrentes.

Os ciganos andavam em bandos mais ou menos numerosos, e aqueles que

não se entregavam à pilhagem, e a certos negócios, como a compra e venda de cavalos, nos quais os indivíduos pouco experientes sempre saíam

logrados, eram geralmente caldeireiros ambulantes, e onde quer que

chegassem, levantavam as suas tendas, e saíam à procura de trabalho que

consistia, especialmente, no conserto de objetos de latão e cobre. As mulheres, porém, importunas, astutas e nimiamente loquazes, saíam a

esmolar, e liam a buena-dicha pelas linhas das mãos, predizendo a boa ou

má-sorte do indivíduo, mediante uma remuneração qualquer114

.

Posso iniciar esta discussão sobre a percepção das nuances do discurso sobre o povo

cigano a partir da análise do vocábulo contido em um dicionário de época, citado por Rodrigo

112 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007 113 Ibidem, p. 103-104. 114 COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Anais pernambucanos: Vol. V (1701-1739). Recife: Arquivo Público

Estadual, 1983. 1718, p. 299-303 Apud TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 37.

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Teixeira:

Cigano – Raça de gente vagabunda, que diz que vem do Egito, e pretende

conhecer de futuros pelas rayas, ou linhas da mão; deste embuste vive, e de

trocas, e baldrocas; ou de dançar, e cantar: vivem em bairros juntos, tem

alguns costumes particulares, e uma espécie de Germânia com que se entendem. [...] Cigano, adj. Que engana com arte, subtileza e bons modos

115.

No dicionário aparece uma mitologia política. Quando falamos de opiniões formadas

em torno de ciganos, devemos considerar que algumas vezes eles mesmos contribuíram para a

construção de mitos. Em função disso, em algumas ocasiões, as autoridades locais como

também os próprios ciganos produziram diferentes razões ideológicas e mitos coincidentes

sobre os ciganos116

.

Vinculados a um conjunto de estereótipos, predominantemente negativos, os ciganos foram identificados como tendo uma natureza „perigosa‟, uma

encarnação da ameaça, pois seriam sujos e imorais. Assim, o cotidiano

cigano sempre esteve intimamente associado à imagem que se construiu

deles. Imagem esta que manifestava as ressonâncias dos pesadelos e, eventualmente, até dos sonhos, da sociedade que os „abrigava‟

117.

Um dos adjetivos mais aplicados aos ciganos, foi o de “sujos”. Essa adjetivação advém

talvez da maneira mais fácil pela qual os indivíduos numa certa sociedade e cultura podem se

diferenciar dos demais, daí se tornarem excluídos, repugnados, adjetivados de forma

negativa118

. No Nordeste da cana-de-açúcar, essas imagens ficaram conhecidas: “É possível,

ainda, que, essa gente em extremo porcalhona, os ciganos, desde o século XVII desterrados

no Nordeste – desde 1686, pelo menos -, fossem grandes propagadores da pulga e percevejo

por esta região brasileira”119

.

Assim, a associação dos ciganos à sujeira é uma das mais sedimentadas imagens e

estereótipos firmados sobre eles em diversas sociedades.

Estar diante do cigano era estar diante da diferença extrema. Qualquer cigano era

reduzido ao estatuto da imagem cigana, construída como se fosse natural, imutável e

indestrutível. No que tange ao aspecto físico, o “olhar cigano” era o mais notado pelo não-

cigano, era mais que um traço de sua aparência física, era como se tivesse uma dimensão

transcendental. Assim, numa sociedade que transmitia seus saberes tradicionalmente de forma

115 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p.13. 116 Ibidem. 117 Ibidem, p. 135. 118 Ibidem. 119 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 2004, p. 115.

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oral, o olhar é o ponto de partida para a compreensão entre as pessoas120

.

O encontro e a revelação do outro se inicia com o olhar. A presença do olhar

cigano instaurava uma crise de identidade do não-cigano, acompanhada de

perplexidade e medo. Assim, o olhar cigano incomodava porque ao mirarem,

constrangiam os não-ciganos para não o devolverem. Ao ser olhado pelo cigano, o indivíduo sentia-se „coisificado‟. Em contrapartida, o cigano ao

incidir seu olhar sobre o outro, rompia momentaneamente com a fronteira e a

distância original, seu mundo ficava à deriva121

.

No campo da religião, sobretudo da religião cristã, os ciganos foram ainda mais

rechaçados pelos moralistas. Considerados hereges, pagãos, idólatras e ateus, não cumpriam

as solenidades de matrimônio e batismo. Para a Igreja Católica, os ciganos viviam em pecado

por praticarem o concubinato. Tradicionalmente, realizavam suas próprias cerimônias, não se

casavam na Igreja, talvez pelo alto custo dos trâmites burocráticos e do pagamento ao pároco

que realizava o casamento.

A burocracia da Igreja dificultava, já que os supostos pretendentes ao matrimônio deveriam levantar documentos, como o batismo, e apresentar

testemunhas, a fim de que se garantisse o local de residência, de não serem

já casados, atestando-se a idoneidade dos requerentes122

.

Acredito que era difícil aos ciganos cumprir todos esses requisitos.

Não executavam suas tarefas de forma mensurada, de forma cíclica e rotineira, não

viviam sob a égide do relógio, não consideravam a duração dos dias e das noites, ignoravam o

tempo abstrato, linear e uniformemente dividido. A elite incomodava-se pela maneira como

eles dispunham de seu tempo, que lhes parecia ser de ociosidade. Ao mesmo tempo em que

defendia o trabalho como a única via para os pobres conseguirem algo digno; essa elite via o

ócio como patrimônio e privilégio unicamente seu. Assim, os ciganos, por usufruírem

também do ócio, serviam de mau exemplo aos homens trabalhadores e constituíam uma

dissonância ao trinômio trabalho/ordem/progresso. Nessa perspectiva, o cigano seria um

miserável por sua preguiça, ou um indivíduo enriquecido por conta das suas atividades

ilícitas. Dessa maneira,

[...] os ciganos constituíam-se em um dos segmentos sociais identificados como vadios, embora de forma sui generis, por se diferenciarem etnicamente

dos demais. Portanto, entender como se viam os vadios, ajuda a perceber

120 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007. 121 Ibidem, p. 108. 122 Ibidem, p. 112.

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como se viam os ciganos123

.

Vadio era o indivíduo sem domicílio, que se recusava a seguir o ritmo e as regras do

trabalho. A partir dessa definição, decorria a imagem de desonestidade e de ausência de

vínculos sociais. A concepção de vadiagem compreendia a itinerância e a ociosidade,

comportamentos e atitudes vistos como ameaçadores à estabilidade social, portanto, não havia

consenso definitivo quanto à percepção do que era vadio ou ocioso.

Além de ser inconveniente, de representar um ônus, um peso que recaía sobre a

sociedade, no imaginário das elites urbanas, a vadiagem significava um substrato comum, a

origem de todos os outros crimes. Entre as décadas de 1820 a 1830, temia-se que os vadios

não apenas engrossassem os protestos das camadas pobres das cidades contra a carestia e a

opressão, mas também se levantassem contra os ricos, pondo em risco suas propriedades. À

proporção que crescia essa população “desordeira” e “perigosa”, maior era a preocupação

com as algazarras e os delitos, principalmente os roubos. O número de pobres vagando nas

ruas aumentava com as crises econômicas conjunturais, quando escasseavam os empregos e

havia carestia de alimentos124

.

Vadiagem e mendicância eram considerados crimes policiais segundo o Código

Criminal do Império de 1830, no art. 295, e o “criminoso”, as pessoas que não se ocupassem

de forma honesta e útil para sua subsistência deveriam cumprir pena de 08 a 24 dias de prisão.

No entanto, a Lei de 26 de outubro de 1830 reformou o artigo, elevando a pena para 01 ano e

06 meses de prisão e em caso de reincidência, a pena seria duplicada125

.

Esse código indicava que os vadios deveriam se tornar “úteis” e se inserir no sistema

produtivo e de uma ordem estabelecida. Para os ciganos, essa legislação significava que

sofreriam ações repressivas ainda mais violentas, uma vez que eles eram considerados

“incorrigíveis”, sem qualquer esperança de regeneração, pelo menos em curto prazo. Dessa

forma, a solução imediata seria expulsá-los da cidade e até mesmo da Província. Em função

da intensa desconfiança em relação aos ciganos, eles foram simplesmente “irrecuperáveis” e,

de acordo com algumas teorias da época, acreditava-se que os ciganos eram uma “raça” na

qual o caráter (negativo) de seus membros já estaria determinado desde o nascimento126

.

Tradicionalmente, as sociedades sedentárias veem no nomadismo um comportamento

suspeito, associado à criminalidade. Essa visão está também sedimentada nos dicionários e

123 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 115. 124 Ibidem. 125 Ibidem. 126 Ibidem

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enciclopédias do século XIX, que rejeitavam e tratavam pejorativamente o nomadismo, uma

vez que esse seria um modo de vida oposto ao “crescente progresso”, afinal o ideal

civilizatório requisitava a presença da cidade, e, consequentemente, exigia-se o

sedentarismo127

. Assim, “visto a partir do signo da falta e não-ser, os nômades são os que não

têm habitação fixa, não deixam traços duradouros de sua existência, não são civilizados”128

.

Apontados pelas sociedades sedentárias como vagabundos e bárbaros, os nômades

como forasteiros eram depredadores e desestabilizadores da ordem pública. Como

estrangeiros eram portadores de fascínio; identificados como hostis, sua presença trazia uma

alternativa ao modo de vida sedentário, por conta disso colocavam em questão os papéis

sociais; como endemoniados, recordavam o mal, dimensão que deveria ser extirpada da

sociedade sedentária e cristã129

. Por mobilizarem uma série de valores que afrontavam o

status quo e por criarem novas perspectivas culturais, os nômades causavam repulsa e

fascínio.

Portanto, o vagabundo era caracterizado pela não-posse de domicílio, era associado

também à imoralidade, pouca higiene, falta de vínculos com a sociedade sedentária e

civilizada; à vagabundagem como o estrangeiro, mal afamado, ladrão em potencial,

preguiçoso, delinquente e propagador de epidemias como a varíola, que alastrou a população

mineira, nas primeiras décadas do século XVIII e que teria sido trazida pelos ciganos130

.

O estigma mais agregado aos ciganos é o de ladrões: de galinha, de cavalos ou de

crianças – são algumas variações da mesma imagem forte e estereotipada em relação ao

cigano. O mito do roubo de crianças tem origem na literatura europeia do século XVII, e no

século XIX, a temática foi adotada na literatura com teor “educativo”:

Acreditavam que o contraste entre o „mundo civilizado‟ dos jovens leitores e

a „vida perniciosa‟ dos ciganos, por suposição, incitaria as crianças a

apreciar mais sua própria cultura e a obedecer a seus pais. Essas estórias fantasmas contribuíram bastante para criar uma imagem negativa dos

ciganos. Assim os autores manipulavam a imagem dos ciganos para

valorizar as virtudes cívicas e civilizadas dos não-ciganos. Essa literatura sobre os ciganos foi uma estratégia de educação moral, portanto de

dominação131

.

Essa literatura “educativa” reforçou mais um estereótipo que se construiu ao longo do

127 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007 128 DUARTE, Regina Horta. Noites circenses: espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX.

Campinas: UNICAMP, 1995, p. 37. 129 Ibidem. 130 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007 131 Ibidem, p. 121.

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tempo através da ótica depreciativa sobre os hábitos e modos de vida dos ciganos132

.

Contrários aos modelos de conduta cívica e virtuosa, estritamente

recomendados pelos leitores de romances do século XIX, os ciganos eram maus exemplos, mas exóticos e fascinantes. Os „ladrões de crianças‟ eram

personagens interessantes para a literatura, porém maus cidadãos133

.

De todos os delitos dos quais são acusados, nenhum foi mais frequente e significativo

do que o roubo. Este é, sem dúvida, o mais temido traço do “caráter” cigano. Considerado um

ato imperdoável, principalmente num contexto em que a noção de propriedade ia ganhando

cada vez mais tonicidade, a associação ao roubo impregnava com um estigma marcante os tão

“suspeitos” ciganos.

Segundo estudos de especialistas, muitos já citados acima, os primeiros ciganos que

chegaram à Europa traziam consigo o hábito da pilhagem, comum em algumas regiões da

Ásia – continente de onde provavelmente vieram. Naquelas regiões, a pilhagem não era

considerada um crime, principalmente quando praticado por viajantes. Há uma lenda cigana

que tenta explicar a origem e a razão de roubos praticados por eles, pela qual, no momento em

que Cristo estava sendo crucificado, os soldados romanos se viram impedidos de espetar seu

coração porque um cigano roubara um dos pregos. Por causa disso, os ciganos ganham do

próprio Cristo, a permissão para roubar134

.

Acusados de roubos, mas sem nenhuma comprovação, essas simples suspeitas somadas

a eventuais trapaças e roubos, principalmente no comércio de cavalos, solidificava-se a idéia

de cigano como sinônimo de ladrão.

Mas, é em virtude da acusação de roubo que vão ocorrer confrontos entre polícia e

ciganos, com maior intensidade, do final do século XIX ao início do século XX, no território

mineiro. Tratava-se das correrias ciganas, perseguições feitas pelas autoridades policiais aos

ciganos em fuga, onde constantemente havia tiroteios, o que resultava em morte tanto de

policiais como de ciganos. Embora fossem numericamente inexpressivos, causavam grande

incômodo às autoridades policias; eram acusados de roubos diversos e também de

corromperem os costumes, colocando em perigo a ordem pública, daí serem encarados pelas

autoridades como perturbadores da ordem vigente. Recorto da obra de Teixeira, um trecho do

relatório de um chefe de polícia destacado para perseguir um grupo de ciganos:

132 RIBEIRO, Cristina Betioli. Op. Cit., 2006. 133 Ibidem, p. 25. 134 MACEDO. Oswaldo. Ciganos, natureza e cultura. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

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Centenas de ciganos, em diversas zonas do Estado, que vinham

„provocando‟ desordens, munidos de fino armamento e de carabinas das

mais modernas, prontos à tenaz resistência aos destacamentos, que os perseguem, proclamando abertamente seus desrespeitos aos poderes

constituídos135

.

Similar à correria mineira foi uma correria ocorrida em território piauiense, no início do

século XX, onde a polícia militar destacada para combater um grupo de ciganos percorreu um

itinerário pelo norte do Estado. As fontes para o estudo da correria piauiense são também os

jornais de época, fontes policiais, como inquéritos e relatório de chefe da polícia.

O olhar do chefe policial, evidentemente, é um olhar estrangeiro, que não percebe que

os ciganos são portadores de uma cultura própria. Em geral, eles são notados pela ausência de

valores, atitudes e condutas prezadas pela elite brasileira, que procura alcançar plenamente a

governabilidade, a civilização e o progresso. Por esse entendimento, os ciganos são

considerados apolíticos, sem pátria, sem religião, sem lei, sem civismo e são incivilizados136

.

Os valores dos ciganos eram tidos como algo tão absurdo que nem sequer

eram percebidos como sendo traços de uma outra cultura. Além disso, como

forasteiros, os ciganos são vistos com extremo temor, pois se apresentam de armas na mão, conduzindo munições de guerra, semeando a terror por toda a

parte, vivendo até aqui de roubos e pelo roubo137

.

No final do século XIX, a força armada do Estado de Minas Gerais, enfrentou

constantes e fatigantes marchas e contramarchas, provocando debandada de ciganos. A polícia

mineira agia para expulsá-los de cidade em cidade, sem promover um extermínio

generalizado e também sem fazer qualquer tentativa de acordo.

Ser cigano significava, no mínimo, estar sob suspeita. As ações policiais eram

precipitadas na apuração de supostos crimes cometidos por eles. Muitas vezes, eram presos,

torturados, seus bens eram confiscados e eles enfrentavam tiroteios simplesmente pelo fato de

serem ciganos. A apreensão dos bens, em geral, como objetos e mulas, era feita sob a

alegação de serem roubados. “Na verdade, o simples fato de esses bens estarem com eles era

motivo suficiente para serem considerados roubados. Aos ciganos, era quase negado o direito

à posse dos bens”138

.

À imprensa coube o papel de manter os leitores informados sobre os problemas

causados pelos ciganos, os periódicos elogiavam as atuações das forças policiais: Cada

135 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p. 68. 136 Ibid. Id. 137 Ibidem, p. 69. 138 Ibidem p. 79.

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adjetivo agregado à palavra cigano era uma forma de exaltar a Polícia. A intenção era

contrastar a „crueldade‟ dos ciganos com a „coragem‟ da força policial. Assim, ao festejarem a

debandada geral dos ciganos imposta pelas autoridades, pretendiam passar o discurso de

estarem saneando moralmente o Estado139

. Na correria do Piauí, a imprensa também se fez

presente de forma similar, ao divulgar notícias sobre o acontecimento, rechaçava os ciganos

como desordeiros, bandidos, trapaceiros e cangaceiros cearenses, e destacava o papel da força

policial, enaltecendo a bravura dos soldados piauienses.

A presença dos ciganos como pauta na imprensa escrita, no período citado, expressava o

incômodo que eles causavam à sociedade em geral. Defensora da civilização, do progresso e

do avanço da ciência, subentende-se como um projeto de educação e controle da população.

Apesar do público leitor se concentrar na “boa sociedade”, as questões tematizadas na

imprensa repercutiam diretamente no cotidiano das pessoas, em que a imprensa fomentava as

determinações políticas das elites locais140

.

Quando apresentamos questões propostas pelos autores para responderem sobre a

origem das “correrias” e perseguições aos ciganos, como na região mineira, entre o final do

século XIX e início do XX, as respostas foram diversas. Recapitulemos que as transformações

ocorridas na economia e na sociedade, com a gradual fragmentação do escravismo, tiveram

um impacto na vida dos ciganos. Com a extinção do trabalho escravo, alguns ciganos

perderam sua principal atividade econômica, o mercado de escravos. A Região do Campo de

Sant‟Ana e as ruas dos Ciganos e do Valongo, no Rio de Janeiro, viveram o apogeu da

comunidade cigana nas primeiras décadas do século XIX. Com o transcurso do século, essa

comunidade entrou em decadência juntamente com o comércio de escravos, tanto pelo fim do

tráfico negreiro, quanto pela crescente introdução do trabalho assalariado e pela divulgação

das ideias abolicionistas. A abolição da escravatura foi sem dúvida o golpe final no comércio

de escravos, praticado pelos ciganos. Com o fim desse comércio, os grupos ciganos deixaram

o Rio de Janeiro rumo às Minas Gerais, aumentando substantivamente o número deles na

região mineira141

.

Nas últimas décadas do século XIX, com o crescente papel da medicina social, o projeto

higienista associou os ciganos à mais baixa escória, caracterizando-os como horda, malta,

manada de facínoras e desordeiros. Individualmente, o cigano era visto como um preguiçoso,

vagabundo e sujo, assemelhando-se à imagem do homem livre e pobre. O cigano era visto,

139 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007 140 Ibidem. 141 Ibidem.

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sobretudo, como um ladrão em potencial. Os adeptos do higienismo viam neles um incômodo

enorme às normas sanitárias em implantação, em especial no Rio de Janeiro, que deveria ser o

modelo de nova cidade racionalmente organizada. Isso trouxe aos ciganos graves problemas

com a polícia, provocando constantes fugas em direção às cidades vizinhas ou ao interior142

.

A maior parte dos ciganos sempre dependeu do mercado consumidor não-cigano, tanto

para seus serviços, como a quiromancia, quanto para a comercialização de seus produtos.

Dessa forma, os ciganos tiveram sua história atrelada às cidades. À medida que o processo de

urbanização foi se acentuando no final do século XIX, acompanhado pelo discurso da

civilização e progresso, os ciganos foram cada vez mais segregados do espaço urbano. As

autoridades desejavam tê-los o mais longe possível, na periferia ou fora do perímetro urbano.

As sucessivas escaramuças sofridas pelos ciganos, de uma cidade a outra, foi a principal causa

das “Correrias de Ciganos”143

.

Esse acontecimento, intenso no final do século XIX e início do século XX, talvez tenha

sido uma das maiores perseguições contra ciganos na História do Brasil. As correrias

aconteceram em grande intensidade no território mineiro, acredita-se que elas tenham

ocorrido também em outros estados, além da correria no Piauí, no início da década de 1910. É

sobre essa correria e perseguição que tratarei no próximo capítulo.

142 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007 143 Ibidem.

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CAPÍTULO 2

CORRERIA DE CIGANOS NO PIAUÍ

2.1 O alvorecer do século XX no Piauí

Nos anos iniciais da segunda década do século XX, mais precisamente em 1913, o

território piauiense foi palco de uma “correria” de ciganos, provocada pela Polícia Militar do

Estado. O acontecimento envolveu um grupo de ciganos que percorria o Norte do Piauí,

acusado de praticar furtos e depredações. A notícia da presença do grupo nômade chegou ao

conhecimento do poder público, que enviou um contingente policial para perseguí-los. A

tropa policial seguiu um itinerário à “caça” dos ciganos, passando por Miguel Alves e os

povoados Peixe [atualmente Nossa Senhora dos Remédios], Marruás [Porto], Campo Largo,

e, finalmente, alcançando-os no Retiro da Boa Esperança [atualmente Esperantina] onde foi

travado um tiroteio, que resultou na morte de alguns ciganos.

Igualmente ao que Rodrigo Teixeira denominou de “correria de ciganos” em solo

mineiro, a “correria” ocorrida no Piauí constou dos mesmos elementos: perseguição policial,

confronto com a polícia, aprisionamento e morte de ciganos. A imprensa também se fez

presente, teve o papel de veicular as informações e formular opiniões sobre os ciganos, em

geral adjetivando-os de “bandidos”, “trapaceiros” e “cangaceiros cearenses”.

Após quase um século, o acontecimento ainda não foi devidamente estudado pela

historiografia. O trabalho “Massacre no Retiro: os ciganos entre a História e o imaginário

popular”, monografia de final de curso de graduação em História de minha autoria, é o único

trabalho acadêmico até então realizado. Naquele estudo, que retomo agora, reconstituo a

história do massacre. Mesmo sendo pouco estudado, o acontecimento passou a ser conhecido

na historiografia local como “Massacre dos Ciganos”.

Para melhor compreender o conflito, considero necessário contextualizar o Piauí nos

anos iniciais do século XX e apresentar um perfil da urbanização e organização do povoado

Retiro, local que serviu de palco para a tragédia final da saga cigana.

Analisar a conjuntura do Estado do Piauí entre os finais do século XIX e os primeiros

anos do século XX, nos leva “[...] a refletir o que foi, historicamente, a transição do período

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monárquico para uma „nova ordem‟, a República, período esse movimentado por crises

políticas que perpassaram todo o País”144

. Naquele contexto, a nova ordem política

representava desejos e esperanças de um novo regime que se evidenciavam no imaginário

republicano brasileiro. Desta forma:

[...] os republicanos partem de um diagnóstico da „monarquia „ como sistema de governo de vícios, que não satisfaz as necessidades do presente, funciona

mal e comprime o organismo social, não permitindo, portanto, o

desenvolvimento das suas forças sociais de renovação. Essas forças de renovação eram as do progresso, a imagem do progresso – versão prática do

conceito homólogo de civilização – transformou-se na obsessão coletiva da

burguesia brasileira, obsessão esta reveladora da outra face do progresso – a

pobreza145

.

No Piauí, a “Proclamação da República “[...] traduziu-se politicamente num ato de

passagem de um governo para outro sem grandes manifestações a favor ou contra o antigo

regime”146

. Não se trata, porém, de afirmar que o Piauí não estivesse em sintonia com os

movimentos que ocorriam no País no final do século XIX. Existiram sim, no Piauí, partidários

do ideário republicano, embora ligados aos partidos monarquistas como o Partido Liberal, ou

quem com militância isolada em um outro partido, defendesse essas ideias.

A mudança do regime político, em particular nos primeiros anos, permitiu o

alinhamento dos antigos grupos conservadores e liberais, e mesmo a eliminação de antigas lideranças políticas – inclusive pelo abandono dos

interesses partidários. Nesse novo ordenamento, antigas lideranças dos dois

partidos se uniram para formar os Partidos Republicano Federal, Democrata e Legalista, este de efêmera duração. O Partido Republicano Federal resultou

da aliança entre os antigos líderes do Partido Conservador – como Gabriel

Ferreira e Teodoro Pacheco – e chefes liberais, como o Barão de Uruçuí

(João da Cruz e Santos). O Partido Democrata resultou basicamente da dissidência do Partido Liberal, identificada desde os primórdios da década de

1880 e chefiado por Mariano Gil Castelo Branco (depois Barão de Castelo

Branco), cuja liderança alcançava parte do centro-norte da Província e envolvia quase toda a sua parentela

147.

No Piauí, o novo regime federativo, legitimado juridicamente pela Constituição de

1891, não trouxe mudanças significativas para o Estado.

144 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Cotidiano e Pobreza: a magia da sobrevivência em Teresina – Teresina:

Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1995. p. 17. 145 Ibid. Id. 146 NASCIMENTO. Francisco Alcides do. A revolução de 1930 no Piauí. Teresina: Fundação Cultural

Monsenhor Chaves, 1994, p. 19. 147 QUEIROZ, Teresinha. Os literatos e a república: Clodoaldo Freitas, Higino Cunha e as tiranias do tempo.

Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1994, p. 224.

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Não obstante, foi um período marcado por lutas pela manutenção de sua autonomia, uma vez que existiam ameaças de o Piauí ser incorporado às

unidades federativas limítrofes, em face da alegada insuficiência de recursos

para sua auto-sustentação. Contudo, realizavam-se transformações de natureza político-administrativa, que buscavam a consolidação da autonomia

do Estado148

.

A mudança de regime político não representou mudanças profundas para o Estado, o

que houve de fato foi uma rearticulação de forças, uma vez que “[...] o novo regime negou

espaço para a participação política de novos segmentos, pois não ocorreram mudanças

efetivas. A elite política advinda do Império continuou compondo os quadros da

administração e os cargos eletivos, sobretudo nos momentos iniciais”149

.

Naquele período ocorreram confrontos entre algumas facções políticas, em especial as

do grupo de oposição ao governo, que reagiu às mudanças contrárias aos seus interesses. Essa

foi, sem dúvida, uma das principais características dos grupos oligárquicos150

na disputa pelo

poder.

Embora esses grupos, uns rotulados de „liberais‟, outros de „conservadores‟, se confrontassem, na verdade pertenciam a uma mesma classe social de elite,

com os mesmos objetivos e concepções ideológicos. Os confrontos se davam apenas em épocas de eleições, quando seus interesses pessoais eram

atingidos. Daí fazerem novas recomposições ou alianças, pois nenhum deles

queria perder o poder. Utilizavam a imprensa escrita como estratégia política de apoio ao poder: propagando suas idéias, fazendo críticas à oposição ou

apoiando seu grupo político151

.

A imprensa, por meio dos periódicos impressos, era o instrumento que a elite política

utilizava para fazer oposição. “Através desses periódicos, observamos os conflitos políticos,

bem como o discurso respaldado no ideário positivista”152

.

Teresina, capital do Estado do Piauí, naquele contexto, passou por um conjunto de

mudanças superficiais, projetadas por um grupo da elite local. Apesar de ser uma cidade

pequena, com aspectos provincianos, há nos discursos da elite, marcas de um imaginário

progressista. Nesses discursos, destaca-se a ideia de que para o progresso se instalar teria que

148 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit.,1995, p. 18. 149 BRANDÃO. Adail J. Monteiro. As armadilhas do poder: partidos políticos e a sucessão governamental de

Miguel Rosa. Teresina: CNPq/UFPI, 1996, p. 18. 150 Esses grupos têm sua origem nas famílias que se constituíram no Piauí nos séculos XVII e XVIII,

principalmente ligadas à terra. Essas famílias detiveram o poder político e econômico, adquiriram prestígio em

nível regional e federal e se mantiveram hegemônicas por séculos. 151 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit.,1995, p.19. 152 Ibid. Id.

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haver uma ordenação da sociedade153

.

A aspiração pelo progresso, revelada nos discursos e na prática pode ser

traduzida nos projetos políticos, e nas lutas por iluminação pública, estradas, telégrafos, encanamento d‟água e estrada de ferro. Como também pode ser

identificada nos projetos que objetivavam a organização do espaço urbano,

seja através de medidas policiais, seja pelas leis de ordenamento da cidade, como o código de postura, ou ainda de instituições de Misericórdia, Asilo

dos Alienados e Asilo da Mendicidade, que tinham por fim afastar os loucos,

coibir a mendicância das ruas, disciplinar o processo migratório, regulamentar o trabalho e prevenir a „ociosidade‟ e a „vagabundagem‟

154

Naquele momento, a maioria da população da Capital era formada por ex-escravos,

migrantes, homens livres e pobres, que estavam à margem do comércio. Esse contingente

vivia em áreas insalubres da cidade, no desconforto, na doença, imundície e promiscuidade.

Nas últimas décadas do século XIX, a cidade “[...] foi palco de encenações de uma massa de

migrantes nordestinos fugidos da seca”155

tornando-se a “terra da fome ao invés do seu

famoso título de „Cidade Verde‟ atribuído pelo escritor Coelho Neto”156

.

A emigração em larga escala se inicia com a grande seca de 1877 a 1879, a

qual deixou a memória em toda a região, até os dias de hoje. Três anos seguidos sem chuvas; sem semeaduras, sem colheitas, os rebanhos

morrendo, os homens fugindo para não morrer. É verdade que em secas

anteriores haviam-se registrado já emigrações além das fronteiras da província que era a principal vítima das faltas de chuvas, o Ceará. [...] Na

seca de 1792, emigrações houve das fronteiras do Ceará para as terras

úmidas do Piauí, e que o êxodo de sertanejos adquiriu maiores proporções

em 1825, estendendo-se até o Pará. Reconhece, porém, que só se torna intensa – intensíssima – depois de 1877

157.

A Capital tornou-se um receptáculo não somente de flagelados da seca, mas também de

imigrantes de quase todo o Piauí; apresentava um “[...] contraste com uma cidade que se

tentava dotar de infra-estrutura urbana, „uma cidade que se civilizava‟”158. Em razão dessa

contradição, a elite criou uma política de afastamento desses migrantes do perímetro urbano,

iniciativa dos grandes proprietários de terras com o apoio do Governo.

O discurso da elite política era voltado à necessidade de uma prática progressista,

contudo uma parte da população de Teresina estava vivendo do subemprego, da mendicância

153 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995. 154 Ibidem, p. 20. 155 Ibidem, p. 33 156 BRANDÃO, Adail J. Monteiro. Op. Cit., 1996, p. 33. 157 FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos: gêneses e lutas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 22. 158 BRANDÃO, Adail J. Monteiro. Op. Cit., 1996, p. 35.

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e de trabalhos temporários. “Essa gente, em muitos casos, era levada à loucura e ao suicídio,

provocados pelo vício do álcool”159

. A pobreza se fazia presente na vida social piauiense, e

essa realidade inquietava as elites locais, a ponto de se criar,

[...] tentativas no sentido de preservar o centro da cidade, por constituir a

zona urbana e por representar, através de seus símbolos, as autoridades

constituídas. Com o passar dos anos, esta zona urbana cresceu, surgindo novas ruas, avenidas, bairros, ruas calçadas, praças arborizadas e edifícios

160.

Esses discursos recheados de indícios de um ideário que recriava o imaginário social, a

partir do progresso e da ordem, deixavam transparecer a preocupação com a crise social,

decorrente dos problemas políticos e econômicos em que o Piauí se encontrava mergulhado,

crise essa que, desde o final do Império, era sentida no desempenho dos governos

oligárquicos, em sua busca pela hegemonia do poder161

.

No aspecto econômico e social, a situação do Piauí era muito diferente da situação do

Centro-Sul do Brasil. Esta região estava centrada na dinâmica da produção do café voltada em

grande parte para o mercado externo, enquanto no Piauí, a economia e a sociedade

apresentavam características similares às de extensas áreas do interior do Nordeste, marcada

por “[...] uma pecuária secularmente estacionária, para não dizer decadente, associava-se

rudimentar agricultura de subsistência, praticada principalmente por moradores de grandes

latifúndios”162

. Assim, o nível técnico era elementar, o que tornava baixo o índice de

produtividade163

. Em face disso, não ocorriam mudanças básicas na produção, não havia

diversificação na composição do comércio e nem se evidenciavam quaisquer sinais de

mudanças qualitativas das atividades econômicas tradicionais164

, com exceção dos municípios

de Barras, Pedro II, Oeiras e Amarante, que comercializavam parte de sua produção de arroz,

milho, feijão, mandioca e cana-de-açúcar. No entanto, essas atividades comerciais eram

realizadas através de troca de produtos agrícolas por bens ofertados pelo comércio ambulante

vindo das províncias vizinhas do Piauí165

.

No ápice da sociedade piauiense estavam os detentores das maiores e melhores

extensões de terras dedicadas à pecuária, os quais em alguns casos incursionavam pelas

159 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995, p. 35. 160 Ibidem, p. 33 161 Ibidem. 162 QUEIROZ, Teresinha. A importância da borracha de maniçoba na economia do Piauí (1900-1920).

Teresina: FUNDAP, 2006, p. 101. 163 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995. 164 QUEIROZ, Teresinha. Economia piauiense: da pecuária ao extrativismo. Teresina: Apech/UFPI, 1993. 165 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995.

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atividades mercantis. Na base, estava todo o restante da população, composta por pequenos

proprietários e posseiros, sobretudo não detentores de terras, que habitavam as fazendas como

vaqueiros, agregados e arrendatários166

.

Tratava-se de uma população predominantemente rural. A economia podia ser definida

como fechada e autosuficiente167

.

A produção agrícola – com exceção do algodão, em alguns anos em que os

preços eram mais favoráveis – geralmente circunscrevia no mercado local e a maior parte das necessidades dos habitantes, que eram poucas, eram

satisfeitas no âmbito da própria família. Móveis, utensílios domésticos,

calçados, redes, alimentos, quase tudo era produzido localmente168

.

Quanto à mão de obra, no início da década de 1870, já era adotado no Piauí o sistema de

agregado, que utilizava o trabalho livre como forma de remuneração. “Assim, valendo-se de

sua sorte, o vaqueiro percebia uma quarta de cada quatro novas cabeças de gado

contabilizadas”169

. No início da República, “[...] os trabalhadores livres continuaram seus

serviços nas propriedades, conjuntamente com os ex-escravos, sem muita consciência do que

vinha a ser trabalho remunerado”170

. Outras modalidades de trabalho eram adotadas, também

sem assalariamento ou uma combinação com outras formas de pagamento, como a meação, a

parceria. “Nessas modalidades, o homem do campo vinha subordinado ao proprietário da

terra, que detinha poder local, e, de modo geral agradecendo ao „coronel‟ pelos pequenos

favores e apadrinhamento recebidos”171

. Esses coronéis que detinham o poder político local,

[...] compunham ou dominavam as Câmaras dos Municípios, cuja

„autonomia e independência‟ a Constituição estadual de 1891 institucionalizara. O pacto do poder com as oligarquias dominantes garantia

a autoridade dos chefes locais, a cuja força e influência se subordinavam, em

maior ou menor grau, os habitantes das comunas. A lei era determinada ou derivada da vontade do chefe do momento e sua vinculação era menor com o

Direito que com a força, a qual se media, em muitos casos, pela capacidade

de aliciar e comandar cabras ou jagunços e, evidentemente, pelo poder econômico

172.

A situação dos trabalhadores rurais era de extrema pobreza, enfrentavam problemas

como a falta de capital, de técnicas, instrumentos de crédito e a baixa produtividade do

166 QUEIROZ, Teresinha. Op. Cit., 2006. 167 Ibidem. 168 Ibidem, p. 101 169 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995, p. 24. 170 Ibid. Id. 171 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995, p. 24. 172 QUEIROZ, Teresinha. Op. Cit., 2006, p. 101.

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trabalho resultante desses fatores e das condições naturais. Não encontrei leituras sobre o

período em destaque, que abordassem sobre revoltas de trabalhadores rurais contra a miséria e

a reação do governo. Em um estudo sobre o governo de Miguel Rosa, Adail Brandão destaca:

“O sul do Estado, em virtude dos lucros da maniçoba, atraía muitas pessoas, inclusive

desordeiros que amedrontavam as famílias. Visando à defesa da comunidade, a força pública

entrou em ação com plano de confisco de armas. Em reação foram assassinados alguns

policiais e oficiais”173

.

Suponho que esses personagens sejam os “maniçobeiros alienígenas”, cujas referências

constantes vêm do fato de lhe ser atribuída a origem dos conflitos sociais em que as regiões

sudeste e sudoeste do Piauí foram palco174

. “Esses grupos de extratores, em função de sua

origem, eram tratados como maniçobeiros pernambucanos, cearenses, baianos e adjet ivados

como turbulentos e malfeitores. A sua afluência era atribuída à situação de desordem e

insegurança reinante nas áreas produtoras”175

.

A economia agrária do Piauí ao final do século XIX e início do século XX

caracterizava-se pela combinação da pecuária com o algodão. Historicamente, a economia

piauiense ganhou destaque por suas fazendas de gado que pertenciam aos potentados da

pecuária nordestina. Desde os tempos da colonização, a pecuária foi sua principal atividade

econômica, destacou-se como suporte básico até o início do século XX, quando a atividade

econômica do extrativismo vegetal – a borracha de maniçoba, a cera de carnaúba e a amêndoa

de babaçu incorporaram-se ao quadro econômico do Piauí, como atividade de maior

importância para o Estado176

. Nesse momento, o quadro econômico do Estado sofreu

alterações com o advento do extrativismo. Dessa forma, se a economia piauiense ensaiava

integrar-se ao mercado internacional ainda ao século XIX, durante a primeira metade do

século XX, essa integração começou a se manifestar. Nas primeiras cinco décadas, a

economia foi se dinamizando pelas exportações daqueles produtos extrativos que

sobrepujaram e alteraram a função outrora exercida pela pecuária177

.

A exploração da maniçoba no Nordeste ocorreu em uma conjuntura de altos preços

alcançados pela borracha no final do século XIX e início do século XX, período em que

ocorria grande crescimento das indústrias automobilística e elétrica. Essa atividade propiciava

um saldo de recursos para o Piauí. “[...] 1897, com a descoberta da maniçoba, começou a

173 BRANDÃO, Adail J. Monteiro. Op. Cit., 1996, p. 33. 174 QUEIROZ, Teresinha. Op. Cit., 2006. 175 Ibidem, p. 104. 176 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995. 177 QUEIROZ, Teresinha. Op. Cit., 1993.

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aparecer avultado saldo no orçamento, o que possibilitou, mais tarde, o governo Arlindo

Nogueira a promover o serviço de água e iniciar o de luz elétrica em Teresina”178

. Esse

governador mostrava-se otimista, pois “[...] a borracha, para ele, no momento em que o gado

se desvalorizava, cujo dízimo baixara de modo assustador e imprevisto, representava uma

nova era de prosperidade e de esperanças”179

.

Naquele período, a contribuição média anual no conjunto da receita das exportações do

Piauí foi de 48,8%. No entanto, a partir do período 1913-14, o produto foi perdendo

importância, devido à crise mundial e nacional, que pode ser explicada em parte pela queda

nas cotações da borracha. Outra razão para essa decadência foi a competitividade dos

produtos asiáticos, que perderam para o Brasil sua posição privilegiada. Durante o século XX,

o Brasil detinha o monopólio da oferta do produto, entretanto “[...] o capital europeu ao

instalar empresas produtoras na Ásia buscava superar a dependência dos países consumidores

à oferta brasileira”180

. A produção no continente asiático caracterizou-se pelo plantio

racional, que aumentava a oferta e diminuía os preços, por isso, contrapunha-se à produção

brasileira que era “inelástica, de alto custo e qualidade heterogênea”181

.

A borracha de maniçoba tinha assumido a posição de principal produto na pauta das

exportações do Estado. Como se tratava de um produto secundário em relação ao látex da

seringueira, teve sua cotação em baixa no período e não havia um substituto para este

produto182

. Entre os anos 1917 e 1920, sua contribuição como geradora da receita já era pouco

significativa183

.

A exploração da cera de carnaúba, assim como da borracha de maniçoba, começou

ainda no século XIX e nos finais deste mesmo século foram realizadas no Piauí tentativas de

colocar o produto no mercado externo. “A partir dos primeiros anos do século XX o produto

passou a ocupar lugar de destaque no conjunto das exportações do Piauí, ao lado da borracha

de maniçoba, do algodão e a partir de 1911, também do babaçu”184

.

Em decênios da segunda metade do século XIX, a cera era imperfeitamente aproveitada

pelos habitantes do lugar.

178 SANTANA, R. N. Monteiro de. Evolução histórica da economia piauiense. 2. ed. Editora Academia

Piauiense de Letras: Teresina, 2001, p. 91. 179 Ibidem, p. 92. 180 QUEIROZ, Teresinha. Op. Cit., 1993, p. 34 181 Ibid. Id. 182 BRANDÃO, Adail J. Monteiro. Op. Cit., 1996. 183 QUEIROZ, Teresinha. Op. Cit., 1993. 184 QUEIROZ, Teresinha. Op. Cit., 2006, p. 181.

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Anteriormente, a árvore era empregada na construção de currais, de casas,

ou na fabricação de utensílios, a exemplo de esteiras, chapéu, cofo, peneira,

corda, e o pó, em vela, etc. (...) Nos primeiros anos desse século (XX), as fábricas de tecidos a utilizavam para dar brilho no gomado dos tecidos. Logo

mais no sul do País, foi aproveitada na fabricação de pasta para calçados e,

em menor quantidade, para soalho”185

.

O produto passou a ganhar importância, entre os anos 1904-1914, sob o ponto de vista

das finanças públicas. Com o advento da crise de 1913/14, período em que as exportações

enfrentavam dificuldades, as cotações da cera de carnaúba reagiam positivamente,

propiciando receitas crescentes para o Estado.

Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial abriram-se novas perspectivas

para as exportações da cera, de que se conseguiu produzir um componente bélico – ácido pícrico, de alto poder explosivo. Os altos preços então

alcançados colocaram-na, a partir de 1914, como a principal responsável

pela formação da receita do Piauí, superando inclusive a borracha186

.

Esse pico das exportações teve apenas a duração da guerra. Entre os anos 1920 e 1921,

com a normalização do mercado, e, consequentemente, a redução dos preços, o produto sofreu

sua primeira grande crise, com reflexos no comércio exportador e nas áreas produtoras187

.

No início do século XX, cito o babaçu, cujas primeiras exportações, ao contrário dos

outros produtos, teve início nesse século, mais especificamente em 1911. O principal mercado

consumidor era a Alemanha. Além disso, durante a Primeira Guerra Mundial, as exportações

realizam-se principalmente para o mercado interno; após o conflito, o comércio externo foi

ativado, permitindo a entrada de outros países no mercado consumidor.

A exportação desses produtos passou a ser um fator de viabilização de renascimento do

Piauí. Nos primeiros anos do século XX, foram realizados, na Capital, como citei acima,

serviços públicos em nome do progresso – o abastecimento de água e o fornecimento de luz

elétrica188

. No entanto, a borracha de maniçoba, a cera de carnaúba e a amêndoa de babaçu,

mesmo inseridas na demanda do comércio internacional, não se consolidaram como

atividades dinâmicas e duradouras capazes de influenciar nas transformações da estrutura

sócioeconômica do Estado189

.

O imaginário “progressista” contagiava a nação brasileira. Teresina, assim como as

outras cidades do Brasil, “[...] assimilou esse imaginário de crescimento material,

185 SANTANA, R. N. Monteiro de. Op. Cit., 2001, p. 97. 186 QUEIROZ, Teresinha. Op. Cit., 1993, p. 29. 187 Ibidem. 188 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995.

189 Ibidem.

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desencadeando uma euforia de „progresso‟. É necessário dizer que parte da elite piauiense

tinha por inspiração o positivismo, manifestado através das idéias de „progresso e ordem‟”190

.

No entanto, no alvorecer do século XX, era um desafio para essa elite conciliar seu imaginário

progressista com uma realidade social desafiadora, apesar da paisagem que se configurava

com o novo século oferecer perspectivas de modernidade à nação brasileira191

.

No que tange ao Piauí e, particularmente, a sua capital, Teresina, neste

período não passou de um sonho daqueles que alimentaram a ilusão de que estavam vivendo novos tempos – „o progresso‟. Na verdade, esta elite

constituía um pequeno número daquelas pessoas que se vestiam com artigos

de luxo chegados da França, como sedas, veludos, leques de madrepérola, gravatas, perfumarias e jóias de ouro, vendidos nas casas de comércio das

ruas Bella [hoje Senador Teodoro Pacheco] e Imperatriz [hoje Rui Barbosa].

[...] nas residências de luxo dessa elite usavam-se escarradeiras de porcelana, ervilhas e enlatados

192.

O comércio da capital piauiense era uma atividade fraca em virtude de sua dependência

com o Maranhão, através da cidade de Caxias. Os meios de transportes utilizados para a

circulação das mercadorias eram em geral, o lombo dos animais, devido à ausência de

estradas trafegáveis; a canoa, a balsa e o vapor, nos trechos navegáveis do rio Parnaíba e seus

afluentes. O comércio era bastante limitado, o centro de destaque desta atividade era a cidade

de Parnaíba193

. O comércio externo do Piauí dependia do Estado do Maranhão, em virtude do

Porto de Amarração não dar acesso a vapores de linhas transatlânticas.

O Maranhão atinge a cidade de Teresina com mais rapidez, com a ampliação

de sua via férrea. Neste contexto, inicia-se em Teresina uma luta pela

construção do Porto de Amarração, acreditando-se que o custo de mercadorias se tornaria mais baixo, pela diminuição das distâncias, o que

possibilitaria o progresso do Piauí194

.

Foi a partir dos governos das décadas de 1910, nas gestões de Antonino Freire e Miguel

Rosa, que os discursos dos governantes piauienses ganharam destaque diante da preocupação

com as mudanças no comércio e na indústria. Em função do descaso do Governo da União

para com o Nordeste e, especificamente, com o Piauí, naquele período, propostas foram

levadas à Câmara Legislativa do Estado em um trabalho conjunto com a empresa privada,

190 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995, p. 31. 191 Ibidem. 192 Ibidem, p. 31.

193 Parnaíba constituía naquele período, o maior empório comercial do Estado. Mantinha relações comerciais

com algumas praças da Europa e dos Estados Unidos, importava bens de consumo de luxo, material de

construção e equipamentos e exportava produtos de extrativismo animal e vegetal. 194 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995, p. 32.

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objetivando solucionar o problema infraestrutural através da construção de estradas, da

navegabilidade do Rio Parnaíba e seus afluentes e da construção do Porto de Amarração195

.

Esses discursos traduzem a luta em prol das transformações infraestruturais do Piauí,

embora a realidade do Estado fosse a de que seus grupos políticos não representavam uma

força substancial que conseguisse apoio do poder central aos projeto que lhes possibilitassem

atingir o tão almejado “progresso”. Dessa forma, as novas expectativas advindas da nova

ordem republicana, foram frustradas. As críticas manifestadas nos jornais eram no sentido de

que a “República continuava com a política imperial de esquecimento dos Estados mais

pobres como o Piauí, que não dispunham de fontes de rendas suficientes para prescindirem

dos auxílios da União”196

.

2.1 O Retiro da Boa Esperança

A urbanização no interior do Estado, municípios, vilas, freguesias ou povoados, naquele

período, era precária em relação à Capital. Apresentamos agora o perfil da organização e

desenvolvimento do povoado Retiro da Boa Esperança no período recortado para esta

investigação.

O Retiro da Boa Esperança durante as décadas iniciais do século XX estava sob a

jurisdição do município de Barras. Sua origem remonta à primeira metade do século XVIII,

surgiu com esse nome no contexto da doação de sesmarias197

pela Coroa Portuguesa. De

acordo com os dados do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], data de 13 de

julho de 1713 a carta que conferiu o sítio da Boa Esperança, situado na margem esquerda do

rio Longá, ao português Miguel Carvalho e Silva, que fixou residência no local, estabelecendo

uma fazenda de gado e constituindo numerosa família198

. Em seguida, João Antônio dos

Santos, também português, depois de tomar parte na demarcação de terras, tornou-se

fazendeiro, proprietário da fazenda Urubu, construiu currais próximos ao povoado, e

denominou-o de Retiro da Boa Esperança, onde situou rebanho199

. O povoado tomava

195 ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno. Op. Cit., 1995, 196 QUEIROZ, Teresinha. Op. Cit., 2006, p. 50. 197 Sesmaria foi um instituto jurídico português que normatizava a distribuição de terras destinadas à produção.

Surgiu em Portugal no final do século XIII e se converteu em verdadeira política de povoamento, estendendo-se

às suas colônias. 198 IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Esperantina. Rio de Janeiro, 1959 (Coleção de

Monografias Municipais, n. 245) 199 FRANCO, José Patrício. O Município no Piauí: 1761-1961. Teresina: COMEPI, 1977.

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impulso e se desenvolvia, a “[...] primeira casa de telha foi construída por volta de 1830. Em

1847, estava concluída a capela, que foi demolida em 1907 para dar lugar à igreja, concluída

em 1908”200

. “Foi pois o belo e apreciável local do Retiro da Boa Esperança, com as

vantajosas condições de seu terreno, que atraiu os primeiros moradores, os quais aglomerando

e aumentando de número, dedicando-se à lavoura e à pecuária.”201

.

O espaço urbano estava restrito a uma “[...] pequena povoação ao redor da capela, com

pouquíssimas casas de telhas e várias de palha, sendo que estas últimas encontravam-se

espalhadas pelo povoado”202

. Havia apenas uma rua, “[...] que era a rua Coronel José Fortes:

uma rua que tinha um areal muito grande, uma rua formada de areias ensombreada por

cajueiros”203

.

200 REBÊLO, Emília Maria de Carvalho Gonçalves. Relações entre urbanização e educação escolar no

Município de Esperantina (PI), no período de 1960/1980. Teresina, UFPI, 1997, p. 50. 201 FRANCO, José Patrício. Op. Cit., 1977, p. 40. 202 REBÊLO, Emília Maria de Carvalho Gonçalves. Op. Cit., 1997, p. 50. 203 SILVA, Maria Auxiliadora Carvalho e. Massacre no Retiro: os ciganos entre a História e o imaginário

popular (monografia de Conclusão do Curso de História – UFPI), Teresina, 1998.

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01: Espaço urbano do Retiro da Boa Esperança no início do século XX204.

204 SILVA, Maria Auxiliadora Carvalho e. Op. Cit., 1998.

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Até o final do século XIX, o Retiro da Boa Esperança,

[...] contava ele apenas aproximadamente mais (sic) dúzia de casas de telhas,

essas mesmas de péssima construção. O restante do povoado compunha-se de número não muito avultado de casas de palhas, espalhadas e perdidas no

seio do imenso tucunzal, no perímetro que hoje compreende a zona centro da

Cidade205

.

A chegada do novo século descortinou novos horizontes na vida do povoado, que

ganhou impulso e atraiu somas maiores de moradores. Naquele período, despertou-se o

interesse pela lavoura, em especial a algodoeira, que trouxe grande produtividade.

Naquele tempo foi montado aqui o primeiro engenho para descaroçar

algodão. Tratava-se de uma enorme bolandeira, puxada por burro. O

engenho foi instalado sob enorme latada no local onde fica hoje a casa de

residência de Raimundo Teles. A bolandeira foi trazida do Ceará, por Jerônimo Cirilo, natural daquele Estado, procedente de um certo lugar

denominado „Cofo‟, lá para as bandas da Serra da Ubatuba206

.

Completava o quadro da economia do Retiro, além da pecuária, o extrativismo do

babaçu, da carnaúba e a agricultura de subsistência, sustentada no cultivos do arroz, milho,

mandioca e algodão. Além dessas atividades, havia ainda extração da palha de tucum e a

venda de frutas:

A renda da pobreza era o fiapo da palha de tucum – e o tucum, para engorda

de porco. Matava-se e ia vender em Piracuruca. [...] A produção era para fazer rede. Então, eles tocavam e iam vender na Vila da Manga. A produção

era essa: quando era três horas da manhã ninguém dormia, as mulheres

batendo algodão, cada uma tinha um engenho de mão para descaroçar. Também enchiam-se comboio de mangas e saía-se vendendo até Piracuruca:

era o ramo de vida da pobreza na época207

.

O comércio do povoado estava resumido apenas ao largo da igreja. “Até o último ano

do século XIX, contava o Retiro da Boa Esperança uma única casa comercial. Era

estabelecido aqui o comerciante Jerônimo do Monte Furtado”208

. Esse comerciante,

consciente da ausência de competição demonstrava segurança e paciência no trato com a

clientela, confiante que o freguês não tinha outra opção:

205 PEREIRA, Antônio Sampaio. Esperantina à luz da História. Teresina: COMEPI, 1965, p. 26. 206 Ibidem, p. 37. 207 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.

1997. Nascido em 01 nov. 1920, quando jovem testemunhou comentários sobre o massacre dos ciganos entre os

contemporâneos da época. Faleceu em 19 out. 2009. 208 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965, p. 27.

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À tarde, o pessoal que vinha comprar querosene, ia ficando sentado na calçada. De instante a instante, o folgado vendedor, metendo a cabeça pela

estreita janelinha, gritava estridente: Deixa juntar mais! Já quase à noite,

quando a freguesia era avultada, Jerônimo abrindo apenas uma folha da porta principal do estabelecimento, ia vendendo a cada pessoa, „dois vinténs

de gás„. O dinheiro, produto da venda, era displicentemente atirado ao chão,

num cantinho especialmente destinado àquele fim209

.

A aquisição de mercadorias dava-se através do comércio com outras praças,

principalmente com Parnaíba. “Esperantina, no início do século, não tinha muita ligação com

Teresina, a ligação maior que a gente tinha era com Parnaíba”210

. O primeiro comerciante

comprava mercadorias para revenda nessa Cidade. “Homem abastado, o nosso único

comerciante „apartava negócio‟ na praça de Parnaíba. Naquele tempo era uma viagem penosa.

Parnaíba era quase no fim do mundo e a viagem só era feita, no máximo, duas vezes por

ano”211

.

Na primeira década do século XX, precisamente em 1905, outro comerciante se instalou

no Retiro da Boa Esperança, passando a concorrer com Jerônimo Furtado. Era Manoel Lages

Rebêlo, que montou um estabelecimento comercial também no largo da igreja. Esse novo

comerciante também se dedicava a outras atividades, inclusive lavoura e criação.

Moço trabalhador e esforçado, em pouco tempo prosperou, chamando para a sua companhia os irmãos mais moços, Patriotino e Gervásio, com os quais

formou sociedade comercial. A firma dos três irmãos Lages do Retiro da

Boa Esperança, dentro de pouco tempo tornou-se muito conhecida e conceituada nas principais praças do Estado

212.

O comércio da carne era feito debaixo de árvores. O açougue mais importante era o que

ficava embaixo das “Três Mangueiras”. Quando um animal era abatido, soprava-se um

búzio213

, avisando aos moradores que o produto estava à venda214

. O mesmo recurso era

utilizado no serviço de arrecadação de impostos:

Ouvindo a buzina, meu avô [José Vicente Vaz, encarregado de fazer a

arrecadação dos tributos, era avô de Antônio Sampaio Pereira] depois de

alisar o pontudo bigode, botava o ouvido no tempo e depois de localizar o

209 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965, p. 28. 210 CASTRO, Valdemir Miranda de. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

10 out. 1997. Nascido em 21 ago. 1969, é escritor, poeta, professor e pesquisador da História de Esperantina. 211 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965, p. 27. 212 Ibidem, p. 39. 213 Uma espécie de apito 214 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965.

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ponto de aviso ou chamado, despachava o diligente pigoreiro para arrecadar

a sagrada parte devida ao „patrão governo‟215

.

Dentre os impostos, havia o imposto da enxada, que o lavrador era obrigado a pagar

dois mil réis por ano, e um imposto cobrado por animais abatidos para o consumo da

população216

.

Como as casas estavam espalhadas e ocultas pelo matagal, soprava-se o búzio diante da

prestação desses serviços e cobrança de impostos, como forma de avisar aos moradores.

Além do comércio, verificava-se no Retiro a presença de curtumes217

e de olarias218

.

Outra atividade artesanal de destaque do povoado era a tecelagem de redes, derivada do

cultivo do algodão. O primeiro tear introduzido no povoado remonta às últimas décadas do

século XIX, de propriedade de Antônio Florêncio Ramos. Esse mestre artesão ensinou sua

arte aos discípulos: Marco Pereira e Francisco Quaresma. Após anos de ensino, eles

receberam o “grau” de mestre tecelão. Sobre essa experiência, Pereira destaca: “Até pouco

tempo, o discípulo era obrigado trabalhar no ofício e demais ocupações da casa, para o

mestre, gratuitamente, durante um lustro, se é que pretendia ser iniciado em qualquer arte”219

.

Com o passar dos tempos, o novo mestre Marco Pereira passou os ensinamentos da arte

de tecer aos seus parentes, e assim se sucedeu, a ponto de anos mais tarde, o ofício da

tecelagem ser uma espécie de monopólio dos descendentes daquele artesão.

Em Esperantina, bater tear é privilégio de um clã, admirado, que, através de

tantos anos, essa família vem conservando religiosamente os tradicionais teares e ensinamentos aos filhos e netos, passando de geração a geração, uma

arte aprendida com um dos primeiros habitantes desta Paróquia de Nossa

Senhora da Boa Esperança220

.

Embora o Retiro da Boa Esperança fosse tomando impulso no tocante a sua economia e

urbanização, ainda era precário o sistema de transportes: “A Vila não dispunha de ônibus ou

outro transporte de linha regular. Não havia carro de linha, apenas de carga”221

. A

precariedade também se estendia ao serviço das comunicações: “Na época os serviços de

correios se faziam de forma precariíssima. O dinheiro arrecadado dos impostos era remetido

215 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965, p. 38. 216 Ibidem

217 Estabelecimento onde se processa o couro cru de animais, com a finalidade de deixá-lo utilizável para a

indústria ou venda a atacado. 218 Local onde se fabricam peças de cerâmica, como telhas, tijolos, adobes. 219 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit.,1965, p. 35 220 Ibidem, p. 36 221 REBÊLO, Emília Maria de Carvalho Gonçalves. Op. Cit., 1997, p. 54.

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para Teresina por um „positivo‟, que ia a pé, levando também cartas. Chamava-se José

Caetano”222

.

Era precário também o regime de detenção de presos. No início do século XX, não

existia cadeia pública no Retiro, funcionava o velho sistema de pelourinho como forma de

detenção. “Não dispondo de cadeia, os presos eram levados ao „tronco‟, ficando os homens

presos por um lado e as mulheres pelo outro. Quem cometesse o mais leve e ligeiro deslize, ia

diretinho com o pé trancafiado no grotesco instrumento de detenção”223

. Conforme a

literatura, o delegado do povoado Raimundo da Rocha Maciel, popularmente conhecido por

“Raimundo Amansa a Égua” costumava deixar os presos na mais incômoda posição no

referido instrumento e algumas vezes:

[...] nas suas andanças e farras, deixando mulheres presas, ao voltar depois

de longas andanças em busca de pinga, encontrava-as na mais lamentável situação. As detentas que eram obrigadas permanecerem longas horas

sentadas no chão frio, com as pernas estiradas e imobilizadas, presas por

cadeados, não tinham outra alternativa senão fazerem suas necessidades

pessoais, ali mesmo, muitas vezes sob as vistas de homens, presos nas mesmas condições

224.

Esse sistema de detenção acabou quando Silvestre Lopes Duarte e Francisco Ferreira,

moradores do povoado, “[...] pegaram o „tronco‟ do Amansa a Égua e jogaram com cadeado,

corrente e tudo, nas águas do Longá”225

. Ao saber do acontecimento, o delegado:

Despojado do seu precioso e querido talismã, [...] ficou fulo e ameaçava

denunciar ao governo imperial, tamanho desrespeito à sua augusta e respeitabilíssima autoridade, acalmando-se quando veio a saber que o

imperador não existia mais e que o tronco não passava de coisa condenável

no regime republicano226

.

Através da literatura, podemos caracterizar o universo social do povoado Retiro da Boa

Esperança como isolado, fragmentado, alheio à conjuntura política republicana. O Brasil

deixava de ser uma monarquia e ensaiava um novo regime, a República. Com o regime

republicano, uma nova Constituição foi promulgada (1891), e dentre algumas de suas

determinações, destaca-se que não era reconhecido como dever do Estado, ao contrário da

Constituição Imperial (1824), proporcionar educação básica e gratuita aos brasileiros. Assim,

222 REBÊLO, Emília Maria de Carvalho Gonçalves. Op. Cit., 1997, p. 55. 223 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965, p. 37. 224 Ibidem, p. 38. 225 Ibid. Id. 226 Ibid. Id.

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podemos compreender a presença de “grandes mestres” no Retiro da Boa Esperança, no final

do século XIX e por algumas décadas do século seguinte. Como não havia escolas do

governo, “[...] o ensino ficava a cargo de mestres contratados pelos pais das crianças. Eram os

„professores de varanda”227

. Recebiam essa denominação porque ensinavam na varanda das

casas, “[...] o pai chamava o „professor de varanda‟ para „desarnar‟ os meninos, para ensinar

as primeiras letras”228

.

Os primeiros mestres do povoado foram Luiz Aleijado, Belarmino Bola de Ouro,

Lázaro, conhecido como “Porca Parida”, Higino Gregório dos Santos, Isaías e José de Lemos

Sobrinho. A partir da segunda e terceira décadas do século XX, destacaram-se os mestres

João Paulo, Levi Saavedra, Félix e a Mestra Joaninha Pinheiro, a Janoca. Alguns desses

professores exerciam o magistério no povoado, ou seja, levavam uma vida sedentária, “[...]

esperando que os discípulos acorressem ao seu encontro, nunca se dando ao trabalho de ir-

lhes à cata”229

. Ainda nas últimas décadas do século XIX, o povoado possuía duas escolas,

que segundo a literatura,

[...] empolgaram os moradores do povoado e a matutada das redondezas, que

sem elas, não dispunham de meios para ensinar aos filhos, portanto, só os mais abastados mandavam letrar seus rebentos em Barras, que naquela época

já tinha foros de centro adiantado e possuía alguns mestres de „meter fé‟

[...]230

.

Outros mestres faziam incursões pelos demais povoados, “[...] dando preferência aos

núcleos habitacionais de maior densidade demográfica, onde ficava aboletado por tempo

indeterminado, dependendo sua permanência no lugar, daquilo que recebia como

prometimento para o desempenho dos misteres do seu ofício”231

.

Quando os alunos estavam devidamente letrados, os mestres procuravam novas turmas

em outras localidades. Mas,

[...] antes de transferir-se em definitivo, ia pessoalmente fazer uma ligeira

averiguação e, só depois de sondar o local, era que, caso a coisa lhe

agradasse, tratava de engatar o compromisso com o pessoal do lugar. Ajustadas as condições, voltava para a casa, pondo-se à espera do aviso de

que tudo estava em dia e de conformidade com as exigências que ele fizera,

227 PEREIRA, Antônio Sampaio. Velhas Escolas – Grandes Mestres. Teresina: COMEPI, 1966, p.22. 228 SILVA, Maria Auxiliadora Carvalho e. Op. Cit., 1998, p. 30. 229 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1966, p. 17. 230 Ibidem, p. 15. 231 Ibidem, p. 18.

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a fim de evitar a precipitação de um passo em falso e também para que a

muda não redundasse em fracasso232

.

Instalada a escola no novo lugar, como forma de aumentar a renda, os mestres recebiam

discípulos de povoados adjacentes - uma espécie de internato - com direito à alimentação,

dormida e, em alguns casos “[...] o arejado casarão de palha abrigava sua meia dúzia de

rapazolas de fora, os quais pagavam módicas mensalidades, cujos pagamentos eram aceitos

não só em espécie, mas recebidos também em cereais, criação miúda, bicho de pena, carne e

outros comestíveis”233

.

A obrigação firmada com os pais dos alunos que não moravam no “internato” era

apenas em ensinar a ler, escrever e contar, e para aqueles que residiam com o mestre era,

[...] além de letrá-los, garantia abrir-lhes as idéias, isto é, prometia ensinar-

lhes fazer peias, cabrestos, abanos, cofos, esteiras, jacás, balaios, urupembas, quibanos e uma infinidade de outras pequenas utilidades domésticas, que um

homem prático, do interior, precisa saber, para usá-las, quando preciso.

Além dessas pequenas coisas, ensinava ainda, mais por indústria e proveito

próprio do que pelo gosto de transmitir o que sabia aos outros, a execução de muitos trabalhos pesados, inclusive tecer todo tipo de cerca, especialmente

cerca de surrão, na qual passava quinau234

em muitos mestres cerqueiros235

.

Aos alunos mais curiosos, os mestres ensinavam-lhes saberes de outras ciências, e esses

ensinamentos eram passados de forma reservada. Segundo testemunhos de pessoas mais

velhas, sabe-se que muitos alunos do Mestre Belarmino teriam saído de sua casa como

respeitados benzedores,

[...] pois o velho Bola-de-Ouro era também mestre em responsar Santo

Antônio, atalhar fogo e atalhar sangue com palavras, curar na imbira, no rumo e no mastro, rezar contra quebranto, carne quebrada, mau olhado,

campainha caída, dor de dente, especialmente quando a dor de dentes era de

pontadas, levantar arca caída, benzer contra izipira (erizipela) e outros

malefícios236

.

Todos esses mestres usavam a palmatória como castigo nas suas aulas. Sobre isso,

Pereira cita na sua obra depoimento de Belizário Catitu, o último aluno do mestre

Belarmino, que na época com quase 100 anos de idade, relatou:

232 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1966, p. 18. 233 Ibidem, p. 21. 234 Passar quinau significa corrigir com palavras, mostrando o erro. 235 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1966, p. 22. 236 Ibidem, p. 22-23.

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Mode qui ainda to sintino ar mão ardê, só dur bolo qui ele dava na gente!

[...]Tio Belarmino tinha a mão tão pesada, qui só chumbo. Quando ele dava

um bolo cum mais talento, mode qui ficava um bichim troceno na palma da mão da gente, mode entrá pra dentro. Eu qui conte [...], quiera supapo dum

bolo dado puru tio Belarmino, pois sô dos qui mijô bunitas vezes, na roda do

argumento237

.

Além da palmatória, Mestre Belarmino utilizava outras punições, e eram aplicadas

conforme a gravidade da falta cometida, como por exemplo uma lição “mastigada” ou um

translado mal feito, a punição dada ao aluno era:

[...] posto de joelhos em cima de montinhos de caroços de milho, com os

olhos vendados por grotescos óculos de cacos de cabaça, ou então, caso

fosse a canícula e o sol estivesse abrasador, era mandado para o terreiro,

onde ficava descalço no meio da areia quente, tendo ainda uma cadeira na cabeça, sobre a qual Mestre Belarmino colocava uma pedra bem crescida, ou

em falta de pedra, qualquer objeto pesado238

.

Se o aluno não soubesse mesmo ou apresentasse dificuldades em aprender a leitura ou a

escrita, o mestre colocava-o de “[...] quatro pés no meio da sala, a fim de ser cavalgado por

um discípulo mais aberto, que o esporeava com os calcanhares nos vazios, mostrando aos

outros que passava, que o pobre coitado era mesmo burro”239

.

Mesmo aplicando penas rigorosas aos alunos, esses mestres eram estimados pela

sociedade local. Assim, “[...] naquele tempo, um mestre era um verdadeiro achado e quem

tivesse a sorte de ter um à mão, nunca ousava desgostá-lo, nem que fosse por força de um

motivo forte”240

. A ele era dada “carta branca” e, portanto, contrariá-lo com a supressão de

tais prerrogativas seria uma temeridade241

.

Essas escolas viveram o apogeu nas últimas décadas do século XIX e algumas delas

chegaram ao alvorecer do século XX, segundo o literato Pereira, elas deixaram um legado de

bons serviços prestados às gerações daquela época, deram margem para que fossem recebidas

pelas gerações subsequentes como um precioso subsídio para enriquecer ainda mais o acervo

das tradições esperantinenses.

No decorrer dos anos iniciais do século XX, o povoado tomou impulso, novas e sólidas

construções foram edificadas, o comércio foi se desenvolvendo, enquanto a lavoura e a

pecuária igualmente progrediam. Em virtude desse crescimento e progresso, o povoado foi

237 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1966, p. 26-27. 238 Ibidem, p. 25. 239 Ibid. Id. 240 Ibidem, p. 21 241 Ibidem.

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elevado à categoria de vila, pela Lei nº 970, de 25 de junho de 1920, sob o nome de Boa

Esperança, território desmembrado de Barras. Todas as exigências da Lei nº 598, de 19 de

junho de 1911 foram preenchidas. Tratava-se da primeira lei de organização municipal pela

Assembleia, e foi sancionada pelo Governador do Estado na época, Antonino Freire. “Essa lei

condicionava a elevação de povoado a vila, mediante critério de população, casa de Conselho

e Cadeia Pública, e terras para o patrimônio do novo município”242

. A mudança do nome para

Esperantina deu-se em razão do decreto lei nº 154, de 30 de setembro de 1943, que proibia a

existência de vários topônimos, e nesse caso o nome de Boa Esperança era dado a vários

municípios brasileiros243

.

Foi nesse contexto próspero que, na manhã do dia 11 de novembro de 1913, o povoado

Retiro foi palco do massacre de um grupo de ciganos pela polícia militar. O grupo naqueles

dias de novembro andava errando pelos povoados adjacentes.

Narro a seguir minuciosamente o fato, a partir do primeiro saque oficialmente

registrado, as notícias encaminhadas às autoridades competentes, o itinerário da tropa policial

em perseguição ao grupo, a chegada no Retiro, bem como o confronto entre polícia e ciganos

que resultou na morte de alguns e aprisionamento do grupo errante.

2.3 O “banditismo” dos ciganos e ação policial

As primeiras notícias de supostas práticas de banditismo dos ciganos em terras

piauienses, segundo fontes impressas, têm registros em mês de outubro de 1913. O grupo

provavelmente possuía uma fazenda no Maranhão, denominada Fazenda Cigana, e outra no

Ceará, por nome Jaivaras. O território piauiense funcionava como um corredor entre os dois

estados e no Piauí os ciganos teriam cometido uma série de infrações244

. A fazenda Jaivaras

localizava-se na região de Sobral: “[...] é aqui de Sobral para quem vai a Canindé. Uma mata

próxima a um açude chamado Jaivaras, e lá é a fazenda deles. Nesse tempo eles eram muitos e

traziam de lá levando de lá para cá”245

.

A imprensa piauiense através dos principais jornais Diário do Piauí, Piauí, Correio de

Teresina, Gazeta noticiava a presença “ameaçadora” de um “bando” armado em torno de

242 FRANCO, José Patrício. Op. Cit.,1977, p. 130. 243 Ibidem. 244 SILVA, Maria Auxiliadora Carvalho e. Op. Cit., 1998. 245 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.

1997.

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duzentas pessoas, dentre homens, mulheres e crianças, montadas a cavalo, armados com

facas, garruchas, espingardas, rifles, espadas e punhais, que, segundo as notícias, atacavam e

depredavam propriedades dispersas pela região norte piauiense. As notícias se espalhavam

rapidamente e criavam, no imaginário coletivo, sentimentos e atitudes de repulsa e medo por

parte das populações locais. A imprensa adjetivava os ciganos como “trapaceiros”,

“bandidos” e “cangaceiros cearenses”, que saqueavam cereais e animais para a alimentação e

transporte.

Um enorme bando de ciganos, esses indivíduos errantes, malfajezos e

exploradores, que não têm pouso fixo e vivem de terra em terra a explorar e

iludir o nosso sertanejo na sua boa fé, um bando deles invadiu e saqueou a próspera povoação do Peixe, no Município de Barras, a quatro léguas da

margem do Parnaíba, roubando e cometendo desatinos inqualificáveis. Logo

depois de terem praticado semelhantes atos de barbaria, retiraram-se da

povoação com os criminosos troféus, e segundo fomos informados ameaçando de fazerem o mesmo na Cidade de Barras [...]

246.

Esse teria sido primeiro ato de suposto banditismo dos ciganos registrado oficialmente

pela imprensa piauiense. Tratava-se do ataque ao comerciante Antônio do Rego Castelo

Branco, um dos homens mais influentes do Povoado Peixe. Para os articulistas da imprensa

local, na tarde do dia três de novembro de mil novecentos e treze, os ciganos de nome

Mocinho, Mundico, Bento, Rodolfo, chefiados por Benjamim Medrado, teriam invadido a

loja daquele senhor. O chefe dos ciganos teria abordado Antônio do Rego, expressando-se

assim: “queremos cachaça, queremos vinho”247

. O proprietário, que se encontrava na loja,

atendia às ordens dos ciganos. Após terem sido servidos, Medrado teria sentado numa cadeira

próxima ao balcão, retirado da bota uma faca e apontado para Antônio do Rego, que naquele

momento estaria debruçado sobre o balcão, do lado de dentro, e teria exclamado: "Olha

fulano, um espinho por menor que seja nos incomoda, avalia esta toda metida no corpo do

diabo"248

. Em seguida, "pediu um vidro de óleo, abriu-o, passou nos bigodes e cabelos e

perguntou o preço".249

Ao saber pelo proprietário que o referido produto custava 2 $600, teria

dito: "Só vale dez tostões e é o quanto eu pago".250

Além dessa afronta, teria mandado pesar

café, opondo-se também ao preço. Quanto às bebidas, Antônio do Rego teria procurado

obedecer, com receio de ser desagradável. No entanto, o cigano teria desprezado os copos

246 OS CIGANOS do Peixe. Correio de Teresina. Teresina, ano 1, n. 40, 10 nov. 1913. p. 02. 247 OS CIGANOS. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 267, 23 nov. 1913. p. 02 248 OS CIGANOS. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 267, 23 nov. 1913, p. 02. 249 OS CIGANOS. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 267, 23 nov. 1913. p. 02. 250 OS CIGANOS. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 267, 23 nov. 1913. p. 02.

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postos para beber o vinho e teria ido até a prateleira e feito descer os copos embrulhados, os

quais estariam expostos à venda. Dentre frases injuriosas, Benjamin teria se manifestado ao

comerciante: "Sr. Antônio do Rego, o senhor merece mesmo é uma visita do Antônio

Silvino".251

Após essa agressão moral, os ciganos teriam deixado o estabelecimento sob

zombarias e risadas.

No inquérito feito pela polícia a Antônio do Rego, consta que este comerciante “[...]

ameaçado em sua vida e propriedade, retirou sua família de casa e seguiu para a cidade de

Barras a fim de pedir providências ao governo, tudo isto ao mesmo dia [...]"252

.

A imprensa informou que a transferência da família foi para a casa de Dona Chiquinha

Torres, parenta e amiga de Antônio do Rego, residente no mesmo povoado253

. "Em Barras,

telegrafou aos amigos, comunicando o ressaltante [sic] ataque aos Exmo. Drs. Governadores e

Secretário de Polícia, pedindo providências"254

, conforme vemos abaixo:

BARRAS, 4 - Estou aqui foragido, um bando de ciganos invadiu a minha

loja no Peixe e, realizando verdadeiro saque, armado como se achava, de

rifles e facas, levantando ameaças de morte. Retirei a família. A população ali armada, sem a menor garantia de propriedade e vida, suporta, há um mês

penosas depredações e urgentes providências. Saudações: Antônio Rego255

.

BARRAS, 4 - Um bando de ciganos numeroso, superior a cem, está devastando a povoação Peixe, praticando ostensivamente fortes depredações,

ontem armados a rifles e punhais, foram à casa do nosso importante amigo

Antônio do Rego, fazendo saque em sua loja, com grandes ameaças,

determinando o fechamento da casa e a retirada da família, estando aqui para solicitar garantias. Pedimos remeter forças urgentes para enérgicas

providências. Pobreza ali sobressaltada. Impossibilitadas agir pelo grande

armamento dos ciganos, apelamos para a vossa justiça, sempre pronta. Saudações - José Felipe, Lincoln Correia, Luiz Fernandes, Antônio Fortes,

Silvestre Tito, José Fortes256

.

Nos arredores de Peixe e Marruás, a documentação oficial informa que ciganos teriam

cometido uma série de ataques a outros populares. Em geral, tratava-se de furtos de cereais e

animais, como galinhas, porcos [“capados”], cavalos e vacas. Os ciganos também negociavam

objetos com animais entre as pessoas desses povoados, usando a prática do escambo, eram

constantes os casos de engodos. Destaco a troca de um cavalo pertencente a Francisco Fortes

251 OS CIGANOS. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 267, 23 nov. 1913. p. 02. [Antônio Silvino foi um

cangaceiro que atuou no Cangaço no final do século XIX]. 252 INQUÉRITO Policial. Depoimento de Antônio do Rego Castelo Branco. Repressão dos ciganos. Diário do

Piauí. Teresina, ano 3, n. 294, 23 dez. 1913. p. 02.

253 OS CIGANOS. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 267, 23 nov. 1913. p. 02 254 OS CIGANOS. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 267, 23 nov. 1913. p. 02 255 OS CIGANOS. Piauí. Teresina, ano 23, n.1256, 29 nov.1913. p.02. 256 OS CIGANOS. Piauí. Teresina, ano 23, n.1256, 29 nov.1913. p.02.

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Sampaio por um rifle e um trancelim de ouro. No momento da troca dos objetos, o cigano

Medrado teria entregado apenas o trancelim que, por sinal era de latão, e a justificativa de não

entregar a arma teria sido que o cigano seu proprietário estava chorando com pena de separar-

se dele257

. Segundo essa documentação, muitos dos animais eram arrebatados à força bruta e

quando seus proprietários manifestavam resistência, os ciganos agiam com violência.

Ainda com base nessas fontes, apresento o fato do cigano Rodolfo de Tal, que teria

exigido do senhor Francisco Calixto Gomes a venda de um porco. Calixto ter-se-ia oposto ao

negócio e Rodolfo teria puxado uma espada, cravado a ponta em cima de uma mesa e teria

feito ameaças de morte, amedrontando sua família. Sob esse clima de tensão, Calixto teria

entregado o animal258

. Esse mesmo cigano teria proposto ao senhor Mamede de Souza Vieira

a compra de uma vaca. Mamede a teria negociado por quarenta mil réis. No dia combinado da

entrega da rês, os ciganos teriam matado a vaca, fugido do povoado sem deixar nenhum

pagamento ao negociante259

. Outro caso semelhante aconteceu entre os ciganos Ataliba e João

que teriam proposto negociação com o senhor Antônio Gomes de Brito de um porco por

outro, velho e imprestável. Gomes ao suspeitar do suposto engodo, teria recusado o negócio.

O cigano João, enfurecido e supostamente armado de chicote e faca, só não agrediu o senhor

por causa da interferência de um terceiro. Porém teria alertado que quando o encontrasse

sozinho, lhe daria uma surra260

.

Além dos fatos citados, a documentação acusa que alguns jovens ciganos tentavam

raptar donzelas, no intuito de integrá-las ao grupo. O cigano Gaspar tentara raptar Rosina;

Mundico faz tentativas à moça Maria261

. Um dos casos mais curiosos foi o da jovem Maria da

Cruz de Medeiros, assediada pelo cigano Aguiar, filho do Rodolfo. O jovem cigano oferecia

presentes, dirigia-lhe gracejos e pedia-lhe insistentemente os cachos de seus cabelos. Como a

moça não correspondia a suas expectativas, Aguiar prepara-se para raptá-la, porém sem êxito

na empreita262

. Diante destas supostas tentativas de rapto de donzelas, a solução encontrada

257 INQUÉRITO Policial. Depoimento de Francisco Fortes Sampaio. Repressão dos Ciganos. Inquérito Policial

feito pela Polícia de Barras no Peixe. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 294, 23 dez. 1913. p. 02. 258 INQUÉRITO Policial. Depoimento de Francisco Calixto Gomes. Repressão dos ciganos. Inquérito Policial feito pela Polícia de Barras no Peixe. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 296, 15 dez. 1913. p. 02-03. 259 INQUÉRITO Policial. Depoimento de Mamede de Souza Vieira. Repressão dos ciganos. Inquérito Policial

feito pela Polícia de Barras no Peixe. Diário do Piauí.Teresina, ano 3, n. 296, 15 dez. 1913. p. 02-03. 260 INQUÉRITO Policial. Depoimento de Antônio Gomes de Brito. Repressão dos ciganos. Inquérito Policial

feito pela Polícia de Barras no Peixe. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 296, 15 dez.1913. p. 02-03. 261 INQUÉRITO Policial. Depoimento de Antônio Martins Chaves. Repressão dos ciganos. Inquérito Policial

feito pela Polícia de Barras no Peixe. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 296,15 dez.1913. p. 02-03. 262 INQUÉRITO Policial. Depoimento de Maria da Cruz de Medeiros. Repressão dos ciganos. Inquérito Policial

feito pela Polícia de Barras no Peixe. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 296, 15 dez.1913. p. 02-03.

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pelas famílias dessas jovens, segundo as fontes, era escondê-las em casa de parentes em

outros povoados.

A rala documentação existente sobre essa correria de ciganos emana de uma única

“verdade”: a do centro, da dominação, a qual lança um olhar hostil, agressivo e coisificado ao

grupo nômade.

Em matéria publicada no jornal Piauí, havia a suspeita que “entre os ciganos andam

também facínoras acusados pela polícia de outros estados e que se aproveitam da companhia

desses bandos nômades de vagabundos para praticar verdadeiras depredações,”263

inclusive a

referida matéria questionou o acontecimento do povoado Peixe, que não passaria de mero

teatro. Essa suspeita também foi conferida pelo tenente da tropa policial que reprimiu o grupo

cigano: “[...] É certo, conforme verifiquei que nos bandos dos ciganos, existiam muitos

cangaceiros conhecidos, vindo de estados limítrofes”264

.

Na tarde de 04 de novembro, o governador Miguel Rosa recebeu os telegramas de

Antônio do Rego e de seus amigos, e imediatamente convocou ao palácio o Secretário de

Polícia, o Tenente-Coronel Comandante e Major Fiscal do Corpo de Polícia, Raimundo

Burlamaqui. Na reunião ficou deliberado seguir com urgência um contingente policial em

perseguição aos ciganos. Esse contingente, composto por 30 praças, ficou sob o comando do

2º Tenente Manoel da Cruz Oliveira, que partiu no dia seguinte, 05 de novembro, no vapor

Barão de Uruçuí para o posto Marruás, com destino à povoação Peixe. Essa deliberação foi

publicada no Diário do Piauí:

CONTIGENTE POLICIAL: Sob o comando do 2º Tenente Manoel

embarcou ontem no vapor „Barão de Urusshy‟ para o posto de Marruás, com

destinação à povoação Peixe do município de Barras, um contingente da força pública, a fim de perseguirem um vultoso bando de ciganos, que na

referida povoação, está cometendo depredações e saqueando casas

comerciais265

.

263 OS CIGANOS. Piauí. Teresina, ano 23, n.1256, 29 nov.1913. p.02. 264 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02. 265 SECRETARIA DE POLÍCIA. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 253, 06 nov.1913. p. 02

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Figura 02: Rota da tropa policial em perseguição aos ciganos266.

266 SILVA, Maria Auxiliadora Carvalho e. Op. Cit.1998.

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A tropa policial partiu de Teresina na manhã do dia 05 de novembro e desembarcou no

porto de Miguel Alves na tarde do dia 07. É importante destacar que Teresina e Miguel Alves

são cidades quase vizinhas, mas naquela época a viagem de uma cidade à outra, tornava-se

demorada devido à precariedade dos meios de transportes. Nesse local, a tropa encontrou

alguns ciganos. No relatório do Tenente Manoel da Cruz Oliveira, enviado ao Major Fiscal

Comandante Interino Raimundo Mendes Burlamaqui, foi narrada minuciosamente a operação

à caça dos ciganos. O tenente relata:

[...] Ali encontrei o cigano conhecido pela alcunha de Seu Homem com o

seu pequeno bando. Intimei-o a se retirar do nosso território em virtude das ordens terminantes, por escrito, que vão juntas. O referido cigano mostrou-se

humilde e respondeu-me estar pronto a cumprir a que lhe determinara. Com

ele fui até o seu acampamento e procurei logo tomar-lhe todas as armas. Um dos seus companheiros, tomando de um rifle declarou não cumprir minhas

ordens ao que mandei agarrá-lo, resultando na sua resistência sair contuso.

Uma cigana, mais adiante que prorrompia em impropérios contra a força e

que se achava armada, foi ligeiramente contusa, devido ser necessário empregar a força para fazê-la abandonar nosso território. Meia hora depois

estavam todos os ciganos na outra margem do rio267

.

Os jornais do Estado informavam os acontecimentos e divulgavam as últimas notícias:

Continua o contingente sob o comando do valente oficial, 2º tenente Manoel

de Oliveira, perseguir os bandos de ciganos que infestam o norte do Estado,

praticando depredações. Os bandidos têm sido desarmados e acampados além da fronteira piauienses. Audaciosos, porém, como são estes bandidos

de nova espécie tem alguns bandos opostos resistências, ferindo soldados do

contingente, onde ainda não houve baixa a lamentar. A força tem respondido

na altura da agressão, saindo vitoriosa em todos os encontros [...]268

A tropa seguiu seu destino chegando a Marruás à noite daquele mesmo dia. A essa

altura, os ciganos estavam acampados no povoado Campo Largo. O corpo policial seguiu em

marcha de guerra à caça dos ciganos. Este povoado, que na época estava sob a jurisdição de

Barras, hoje é município e obedece ao mesmo nome.

Os soldados chegam ao povoado por volta da meia-noite, sob clima de guerra, “[...]

fazendo alto a uma distância de 60 metros do acampamento dos ciganos. Postei minha força

deitada em linha de atiradores [...]”269

.

Os ciganos andavam divididos em grupos, cada um desses grupos tinha um chefe.

Segundo a documentação, os chefes eram Liberato Guerreiro, Benjamim Medrado, Liberato

267 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02. 268 OS CIGANOS. Piauí. Teresina, ano 23, n. 2155, 22 nov. 1913. p. 02. 269 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02.

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Gama, Rodolfo de Tal e Pedro Ivo. O grupo de Campo Largo estava chefiado por Guerreiro.

Este chefe fez jus ao sobrenome diante de um aparato policial composto por 30 soldados,

quando “[...] apoderou-se do seu rifle, ao que o emissário o aconselhou a tal não fazer, no que

atendeu. Vindo a minha presença, intimei-o a se retirar do nosso território, ao que respondeu

arrogantemente que não se retiraria, fosse preciso lutar”270

. Em seguida foi preso, ficando sob

à guarda de um sargento e um cabo da tropa.

Os ciganos estavam acampados na casa de um senhor, que segundo o tenente, fora

obrigado a dar-lhes pousada e alimento. Naquela madrugada aconteceu um confronto entre

soldados e ciganos, a força avança em direção à casa onde estavam abrigados. Troca de tiros

partia de todos os lados, alguns ciganos fugiam atirando pela noite escura. Nesse clima de

guerrilha, uma mulher foi morta e também o hospedeiro

[...] viu-se mortalmente ferido no ventre, por uma bala de rifle, pois a bala

deixou um orifício de mais de 05 cm na saída, o que só acontece com balas

de chumbo e nunca com as de aço, como eram as nossas. Sou levado a crer que aquele infeliz fora vítima de seus hóspedes obrigados, no momento em

que se retiravam precipitadamente atirando a torto e a direito271

.

Em meio ao tiroteio, segundo o documento policial, Liberato Guerreiro, que ficara sob

guarda, ter-se-ia armado de um punhal na tentativa de matar o 1º sargento Anísio. Trava-se

uma luta corporal entre ambos, terminando na morte do cigano.

Esse incidente foi noticiado nas páginas dos jornais Piauí e Norte, conforme apresento

abaixo:

Das notícias telegráficas pelo tenente Manoel da Cruz Oliveira, deduzimos o

seguinte: No dia 07, a meia noite, no povoado Campo Largo o tenente Cruz

Oliveira encontrou os ciganos a postos. Mandou intimá-los à prisão e eles responderam a bala. O tenente estendendo os soldados em linha de atiradores

correspondeu com uma descarga. O tiroteio foi rápido, e tendo o inimigo

perdido o chefe e alguns companheiros, fugiu logo protegido pela noite272

.

Ainda naquela madrugada, a tropa regressou a Marruás chegando na aurora do dia 08.

Os grupos de ciganos vagavam espalhados pelos povoados no norte piauiense, assim um

pequeno grupo composto por nove ciganos foi encontrado a caminho. Não havendo

resistência dado o pequeno número perante a tropa, retiraram-se do território piauiense. Os

270 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02. 271 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02. 272 CIGANOS. Piauí. Teresina, ano 23, n. 2155, 22 nov. 1913. p. 03.

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soldados chegam ao Peixe, no dia 09, e lá receberam a notícia de que os ciganos àquela altura

rumavam em direção ao povoado Retiro da Boa Esperança273

.

Os soldados partiram em direção ao Retiro, “[...] alcançando-os duas léguas antes de

chegarem àquela povoação. Procurei falar-lhes, mas a resposta que me deram foi um tiroteio

cerrado, que não se teve efeito, atribuo à distância em que estavam uns 400 m, e ao fato de

atirarem eles a cavalo e andando”274

.

O local de alcance teria sido o Pequizeiro da Areia, distante 12 km de Esperantina, onde

a polícia atira numa criança cigana. Tal fato é citado na literatura local:

Feitos os primeiros disparos, foi abatido um menino que caíra do meio de

uma carga, ficando o corpo estendido no chão. Mais tarde, Manoel

Quaresma, vaqueiro de Manoel Lages Rebêlo, na Fazenda Tucuns, passando pelo local, campeando gado, encontrou o garoto sobre a porção de sangue

coagulado. Depois de verificar que a criança estava morta, conduziu-a para

casa, dando no dia seguinte sepultura ao pequenino nômade, cujo lugar do sepultamento ainda é conhecido por Cemitério do Ciganinho

275.

Há versões sobre a morte desse menino, segundo o imaginário popular dos

esperantinenses: “Os soldados vinham atirando nos ciganos, e os ciganos correndo para cá

[...] e o Ciganinho tava trepado num pé de cajueiro. O soldado apertou o dedo, e ele caiu no

chão [...] o Ciganinho estava se mexendo e aí ele passou a faca na goela do cigano”276

. E

esta também:

E lá no primeiro tiroteio eles teriam abatido um jovem adolescente de 14 anos de idade que vinha montado num animal que trazia uma carga de

objetos de valor. Então, lá esse ciganinho foi abatido, e dizem que alguém

que passava pelas proximidades, que seria um morador de Esperantina, teria escondido parte dessa carga, e depois teria ficado com ela; que dentre esses

objetos tinha muitos objetos de valor, de metais preciosos: ouro e prata277

.

Numa conversa com Dona Raimunda Sabino, ela me falou que esse menino se chamava

Roldão, no entanto esse nome é desconhecido para as pessoas de Esperantina, em geral, é

conhecido popularmente como “Ciganinho”. Entre outras versões, existe até a de que esse

menino nem seria cigano:

273 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913 274 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02. 275 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965, p. 42. 276 PEREIRA, Francisco Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 08 out.

1997. Nascido em 04 out. 1909, tecelão, contemporâneo ao massacre dos ciganos. Faleceu em 08 set. 2008. 277 SÁ FILHO, Bernardo Pereira de. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

01 dez. 1997. Nascido em 29 mai. 1957, esperantinense, bisneto de contemporâneos ao massacre, historiador,

professor do Departamento de Geografia e História da UFPI.

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[...] esse menino estava trepado lá em cima dum pé que ainda hoje tem, um pé de jatobá. Agora, não sei se esse menino era cigano ou um menino

curioso d‟algum morador ali de perto. [...] e esse menino que tem enterrado

lá no cemitério [...], eu já ouvi por longe não era mesmo cigano não. Era de um morador vizinho que tava como curioso trepado olhando os ciganos...

porque os ciganos não iam deixar esse menino lá em cima e virem se

embora, não é? Por aí você tira que a história é toda mal contada278

.

Nas correrias de ciganos em Minas Gerais, era comum grupos ciganos deixarem

crianças e mulheres para trás diante da perseguição policial. Segundo a análise de Rodrigo

Teixeira:

Deixar mulheres e crianças para trás era talvez uma estratégia de sobrevivência dos bandos perseguidos, que facilitava a fuga dos homens,

tornando-a mais rápida. Sabia-se também que mulheres e crianças, mesmo

sendo ciganas, evocariam a piedade da polícia, pois eram consideradas frágeis. Portanto, não deveriam ser maltratadas

279.

Se isso de fato era uma tática utilizada pelos ciganos em perseguição, o recurso na

correria do Piauí não sortiu o objetivo esperado pelo grupo nômade.

A morte da criança cigana foi ignorada pelo tenente no seu relatório, porém foi

publicada nas páginas do Diário do Piauí: “No Retiro morreram nove ciganos e foi baleado

um menino cigano, duas ciganas e um homem do povo”280

. À expressão „baleado‟ subtende-

se que a criança não morrera, assim como as ciganas e o senhor do povoado.

Na tarefa de reconstituir a história do massacre em Esperantina, além das fontes

hemerográficas e oficiais, utilizei também as fontes orais como recurso da pesquisa. A

História Oral, entendida ora como uma técnica, ora como uma disciplina, ora como uma

metodologia da pesquisa em História, nas últimas décadas do século XX tem nos orientado e

proporcionado meios para obter um conjunto de propósitos, como buscar um melhor

conhecimento da história e sociedade contemporânea e poder contribuir para a modificação de

uma prática científica frequentemente ligada de seu entorno e dos sujeitos sociais com que

interage. Para Michel Pollack, a História Oral quando privilegia a análise dos excluídos, dos

marginalizados e das minorias, ressalta a importância de memórias subterrâneas que, como

278 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.

1997. 279 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Ciganos em Minas Gerais: uma breve história. Belo Horizonte: Crisálida, 2007,

p. 70. 280 OS CIGANOS. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 267, 23 nov. 1913. p. 02.

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parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à „Memória oficial‟281

.

Dessa forma, ela apresenta uma proposta inovadora por seus objetos quando “[...] dá atenção

especial aos „dominados‟, aos silenciosos e aos excluídos da história (mulheres, proletários,

marginais), à história do cotidiano e da vida privada [...], à história local e enraizada”282

.

Então, em 1997 diante do labor de historicizar o massacre dos ciganos, saí à procura de

testemunhas sobreviventes ao fato, em Esperantina, de pessoas cujos pais, parentes ou

conhecidos fossem contemporâneos ao acontecimento, e que assim, talvez soubessem de

informações repassados por eles. Nessa caça, encontrei a última sobrevivente que fora

testemunha ocular da chacina, D. Raimunda Alves Pereira, conhecida por Raimunda Sabino,

hoje falecida, na época do massacre contava com 06 anos de idade. As informações desta

senhora foram substantivas para a minha pesquisa.

Ainda no Pequizeiro, os ciganos entraram na residência de Isabel Maria da Conceição e

tentaram ludibriar seu pai. Um bisneto de Isabel informou-me:

[...] os ciganos ali passaram e através de conversa conseguiram persuadir o pai dela que acreditava muito nesse lado místico, em feitiçarias – nesse tipo

de religiosidade – em curandeirismo. Então eles chegaram e invadiram a

casa, uma parte, e realizaram ali um certo ritual, dizendo que ele estava com feitiço e que teria conseguido tirar um besouro da cabeça dele, através do

ouvido. Em troca disso eles pediram pagamento, e conseguiram levar

galinha e quase à força bruta levar também algumas peças de vestuário. E a

mãe de minha bisavó, que era cega, ainda conseguiu tomar dos ciganos uma camisa e uma combinação – que era uma peça de vestuário feminino – que

tinha sido feita para o casamento dela. E que a mãe de minha bisavó teria

rogado praga neles dizendo que o fim deles haveria de ser bala283

.

Quando os ciganos chegaram ao Retiro, alguns deles foram acolhidos pelo comerciante

João Franco, que residia na entrada do povoado. Um sobrinho-neto de João Franco informou:

[...] então um tio meu, João Franco, procurou salvar algumas pessoas desta

turma, inclusive crianças, velhos e alguns jovens , sei que chegou a limite de

12 a 15 pessoas que ele salvou debaixo de um galpão de madeira que forrava a casa, que ele dava o nome de assoalho, que ali o pessoal vivia por cima,

mas por baixo eles tinham como um depósito de guardar utensílios de

animais, cangalhas, cambitos de carregar madeira, que ele juntava muito nos

interiores, nas fazendas. [...] O velho João Franco, onde ele colocou

281 POLLACK, Michel. Memória, Esquecimento e Silêncio. In: Estudos Históricos, vol. 2, n.3. Rio de Janeiro,

1989, p. 4. 282 FRANÇOIS, Etienne. A fecundidade da história oral In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína.

Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999. 283 SÁ FILHO, Bernardo Pereira de. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

01 dez. 1997.

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esse pessoal. Portanto salvou uma parte desse pessoal e os outros foram

atacados, por sinal dizem que morreram bastante284

.

Sobre a acolhida de João Franco, Raimunda Sabino comentou: “Porque eles vinham

num afligido! Aí, o finado João Franco botou um bocado, os que vinham na frente, viu. Eles

se valeram dele, agora os outros...”285

.

Assim, “quando passou o reboliço, o finado João Franco levantou uma chave da casa e

eles fugiram”286

. Conta-se também que os ciganos passaram pela casa da senhora Maria

Riotinto, vizinha de João Franco, e uma cigana deu uma boneca de louça, para uma menina

sua chamada Ana287

.

A marcha policial seguiu em direção ao Retiro da Boa Esperança no encalço dos

ciganos. Era a manhã do dia 11 de novembro de 1913, parecia mais uma manhã normal no

cotidiano “retirense”: “O povo do vilarejo já começava a deixar as casas, rumo ao trabalho,

quando de repente, sem que ninguém esperasse, espalhou-se por todos os cantos do povoado

uma onda de terror. Todo mundo foi colhido de surpresa. O espanto foi geral”288

. Aquela

manhã tranquila acabava de ser alterada, quando entram em cena:

À frente, espavoridos, exaustos, uns a pé, outros a cavalo, vinham muitas

pessoas, homens, mulheres e crianças, em doida disparada, em desabalada

carreira: era o bando de ciganos que tinha por „capitão‟, o simpático cigano Medrado. Atrás, muitos soldados, avançando desordenadamente, disparando

as suas armas, cada qual querendo chegar primeiro na fúria de quem

persegue presa que não quer deixar escapar. Era uma força volante da Polícia do Estado, sob o comando do Ten. Belchior, que por ordem do Governador

do Estado, estava incutida de malbaratar o grupo nômade, que segundo

denúncias feitas ao governo do Estado, vinha praticando uma série de

pequenas irregularidades, ocorrências ainda tão comuns nos dias atuais, sempre verificadas por ocasião da passagem de remanescentes dos antigos

ciganos do Egito289

.

Na entrada do povoado disparos de tiros foram feitos entre soldados e ciganos:

“Chegando ao Retiro, já com minha gente reunida, fui novamente recebido à bala. O meu

284 FRANCO, Paulo Memória. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 06 dez. 1997. Nascido em 06 jun. 1909, empresário, sobrinho e filho adotivo de João Franco. Faleceu em 23 dez. 2004. 285 PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 07

out. 1997. Nascida em 07 jan. 1907, aposentada, testemunha ocular do massacre dos ciganos. Faleceu em 01 fev.

2000. 286 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.

1997. 287 SILVA, Maria Auxiliadora Carvalho e. Op. Cit., 1998. 288 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965, p. 40. 289 Ibidem, p. 41.

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pessoal deitado e abrigado, respondeu ao fogo”290

. O povoado foi tomado de surpresa, pois

“[...] os ciganos chegaram sob fogo e a população desavisada não sabia do que se tratava,

desconhecendo por completo, os fatos antecedentes ao ataque291

. Sobre a chegada dos ciganos

no Retiro, informantes comentaram:

Era pela manhã! Pela manhã porque meu pai vinha do rio, tava carregando água pro pessoal aqui, tavam botando água e escutavam os tiros que vinham

da rua. O papai disse que passou uma bala pertinho dele, na hora que tavam

atirando, e correu pro rumo de casa com os „oi‟ de palha nas costas e aí chegou. E o pessoal só passando, correndo pro rumo da rua

292.

Seu Cazuza Norato, que é pai do finado Wagner, disse que quando levantou

neste dia, mais tarde porque estava com uma dor na coluna. Quando ele

abriu as portas da loja, tava abrindo, chegou quatro ciganos a cavalo apeado, numa mangueira que tinha ali em frente ao Hélio, amarram os cavalos. Aí a

Dona Sinhara, esposa dele, chama-o para tomar café. Quando ele entrou pra

tomar café, que senta na mesa, demorou um pouco, ele ouviu os tiros293

.

No tópico anterior apresentei o panorama urbanístico do povoado, com algumas casas

de telhas ao largo da igreja, e o restante de palha espalhadas e isoladas por um imenso

matagal. Por esse perfil, podemos imaginar o terror generalizado que o fato causou às pessoas

do povoado: “A finada Maria Cândida tava de resguardo, e aí saiu correndo pro rumo do

Morro da Chapadinha com o menino prá se esconder numa ladeira. E aí ficou até a boca da

noite, até calmar”294

.

Podemos concluir que o Retiro da Boa Esperança era um universo social isolado e

desconhecedor não só da conjuntura política nacional, conforme apresentei antes, como

também ignorava os fatos que ocorriam ao seu derredor. Se observarmos o mapa na página

72, os povoados Peixe, Marruás e Campo Largo são regiões limítrofes. Sobre esse

desconhecimento do que se passava na conjuntura dos povoados, um informante acrescentou:

O povo esperantinense, do Retiro da Boa Esperança, não estava entendendo

nada do que estava acontecendo, não houve tempo para que o povo pudesse

guardar, refugiar as pessoas, socorrer os ciganos, esconder os ciganos –

não houve tempo para isso! Não, eles é que foram invadir as casas,

290 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02. 291 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965, p. 41. 292 PEREIRA, Margarida Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 08

out. 1997. Nascida em 12 set. 1930, doméstica, aposentada, filha de contemporâneos ao massacre. 293 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.

1997. 294 PEREIRA, Margarida Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 08

out. 1997.

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foram invadindo as casas para se refugiarem, e a própria polícia foi

invadindo as casas também, tentando matar, tentando prender295

.

No meio à troca de tiros, um senhor do povoado foi atingido por bala da polícia. Era o

Coronel Frederico Francisco de Carvalho, um das pessoas mais ilustres do Retiro, que

naquele momento:

[...] estava à porta de sua residência, situada no largo da Igreja, ultimando os

preparativos de uma viagem que faria à Parnaíba, [...]. No momento em que

ia firmar-se no estribo da montada, teve sua atenção despertada pela entrada

de muitas pessoas estranhas que vinham correndo, perseguidas por grande número de soldados que abriam fogo em todas as direções

296.

No relatório policial, o tenente Manoel da Cruz lançou a hipótese de que este senhor

saíra ferido devido a sua imprudência em conservar-se no meio dos ciganos. No inquérito

policial, o Coronel Frederico prestou queixa, e no texto essa informação foi convergente ao

relato de Manoel da Cruz. Ao perceber que estava ferido, gritou aos soldados dizendo que não

era cigano, que não fizessem fogo em direção de sua casa:

[...] Que julga casual o ferimento que recebeu, não pensando que houvesse propósito dos praças, tendo o fato sucedido, devido a confusão do momento,

pois achava cercado de ciganos, de partida como já declarou, já embotoado,

de sorte a ser bem possível o sucesso, pois que todos os ciganos chegaram montados em trajes de viagem [...]

297

Segundo o Senhor Dimas, o disparo que atingiu Frederico partiu do Soldado Barradas,

um dos componentes da tropa policial:

O Barradas disse que pensava que era um cigano quando ele meteu o pé no

estribo e passou a perna, o Barradas largou fogo nele de lá [...] pegou na

perna dele, cortou duas moedas de cruzado, a bala – e ficou na perna, morreu

com ela na perna298

.

Este senhor não era contemporâneo ao acontecimento, mas quando contava o

acontecimento falava como se realmente tivesse presenciado as cenas do massacre cigano.

295 CASTRO, Valdemir Miranda de. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

10 out. 1997. 296 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit. 1965, p. 40-41. 297 INQUÉRITO Policial. Depoimento de Frederico Francisco de Carvalho. Repressão dos ciganos. Inquérito

feito pela Polícia de Barras no Retiro da Boa Esperança. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 300, 31 dez. 1913.

p. 02. 298 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.

1997.

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Para Maurice Halbwachs:

Um homem, para evocar seu próprio passado, tem frequentemente

necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros. Ele se reporta a pontos de referência que existem fora dele, e que são fixados pela sociedade. Mas

ainda, o funcionamento da memória individual não é possível sem estes

instrumentos que são as palavras e as idéias, que o indivíduo não inventou e que emprestou de seu meio. Não é menos verdade que não nos lembramos

senão do que vimos, fizemos e sentimos, pensamos num momento do tempo,

isto é, que nossa memória não se confunde com a dos outros. Ela é limitada muito estritamente no espaço e no tempo

299.

Assim ilumino meu objeto de estudo adaptando a teoria halbawchiana, entendendo que

o Senhor Dimas e demais entrevistados, que não são contemporâneos ao massacre, carregam

consigo uma bagagem de lembranças históricas, as quais podem ser ampliadas pela

conversação. Trata-se de uma memória emprestada, que não é deles.

Voltando à narrativa, quando Frederico percebeu que tinha sido atingido, pediu socorro

a sua esposa, que o conduziu para o interior da casa. Os animais de carga, arreados prontos

pra viagem, ficaram assustados com os tiros, e lançaram fora todos os volumes300

.

Os ciganos, encurralados pela polícia, procuraram refúgio na casa do comerciante

Manoel Lages Rebêlo, situada no largo da Igreja, em frente à Praça das Três Mangueiras. No

seu relato, o tenente citou que os nômades diziam serem “homens de bem”, e que ele

procurou “cercar a dita casa, auxiliado pelo seu valente proprietário, que um dos bandidos

quisera matar à pistola, quando ele procura arrancar um seu filho dos braços de uma

cigana”301

.

Esse comerciante fez o seu depoimento no inquérito policial e informou a chegada dos

ciganos na sua loja:

Respondeu que no dia onze do corrente mês às nove horas da manhã mais ou

menos, estava ele respondente em sua loja com diversos cidadãos deste

povoado e com o Capitão Francisco Borges Rebelo, de Barras, quando a sua casa foi repentinamente invadida por enorme grupo de ciganos, todos

armados a rifles, facas e garruchas, tomando conta de todas as dependências,

sobretudo do quarto de dormida onde se homiziaram muitos; que na ocasião

da chegada diziam que vinham perseguidos por caçadores; que logo depois entrava neste povoado o Tenente Manoel da Cruz Oliveira, comandando

uma força policial, o qual lhe fez ciente de que vinha em missão do governo,

para desarmar e expulsar os ciganos, pedindo-lhe que tivesse calma, que a

sua pessoa e a sua família estavam garantidas, que retirassem essa de casa,

299 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, Ed. Revista dos Tribunais, 1990, p. 54. 300 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit. 1965. 301 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02.

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o que ele respondente fez imediatamente entre a aflição que reinava302

.

Sobre a ameaça de morte por um cigano, Manoel Lages informou:

[...] encontrando uma cigana no corredor que leva à cozinha, puxou-a pela mão para conduzí-la fora de casa, tendo neste momento casualmente

segurado uma pequena trança, sem entretanto ter a mais leve intenção de

ofendê-la, quando um dos ciganos bota-se para ele respondente, armado de pistola, só não ofendendo por ter mostrado que contra a cigana nenhum mal

queria praticar303

.

Esse fato é desconhecido no imaginário das pessoas de Esperantina. Quando se referem

ao massacre e ao personagem Manoel Lages, elas contam que uma cigana teria implorado a

Manoel Lages um esconderijo pela dor do parto que sua mãe sentira, que não a entregasse à

policia. Manoel Lages acolheu a cigana, escondendo-a debaixo de uma cama. Porém, no

momento em que os soldados chegaram e perguntaram pela cigana, ele respondeu que a vira

passar apontando pra uma direção, mas na verdade, fazia gestos aos policiais indicando que

ela estava debaixo da cama. Os policiais dirigiram-se ao local e alvejaram a cigana304

. Sobre a

passagem dos ciganos pela casa de Manoel Lages, Dimas Amorim comentou:

[...] o resto correu para a casa do Manoel Lages, que era na esquina – a Dona

Matildes estava deitada adoentada, quando ouviu arrojo, correu, saltou uma cerca, rasgou a roupa, rasgou a perna, para fugir lá pros vizinhos. Aí os

soldados chegaram, não pediram permissão não, entraram, até quando não

acharam nenhum para fazer o serviço, e botando debaixo de um pé de amêndoa [os ciganos mortos]. [...] Foi invadindo a casa. Eu não estou lhe

dizendo que chegaram invandindo, [...] a casa estava aberta [...]305

.

No ataque à casa de Manoel Lages, segundo fontes oficiais, 10 soldados fizeram o

cerco, no intuito de intimar os ciganos para que se rendessem e entregassem as armas. Nessa

circunstância, o chefe Benjamim Medrado, conforme fonte policial resiste:

O chefe do bando respondeu: - Não se sujeitar a intimação e que o destino

dele era aquele, que não entregava as suas armas, sendo preciso invadir a

casa com o consentimento e auxílio de seu dono, ao que os bandidos

302 INQUÉRITO Policial. Depoimento de Manoel Lages Rebêlo. Repressão dos ciganos. Inquérito feito pela

Polícia de Barras no Retiro da Boa Esperança. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 300, 31 dez. 1913. p. 02. 303 INQUÉRITO Policial. Depoimento de Manoel Lages Rebêlo. Repressão dos ciganos. Inquérito feito pela

Polícia de Barras no Retiro da Boa Esperança. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 300, 31 dez. 1913. p. 02.

304 SILVA, Maria Auxiliadora Carvalho e. Op. Cit., 1998. 305 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.

1997.

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fugiram pelos fundo refugiando-se no mato próximo, de onde fizeram fogo

cerrado, a uma distância de 300m. Não tive mais contemplação e ordenei

fogo vivo sobre eles. Pouco resistiram os bandidos. Notando que eles esmoreciam pela diminuição dos tiros, ordenei uma carga de baioneta, que

determinou fuga precipitada306

.

Essa cena de “heroísmo” foi abordada também na literatura local:

O valente „capitão‟ Medrado que não abandonava o seu bando nem mesmo

no momento mais trágico da vida, já não podia controlar a situação. Dava

ordens e insinuava a maneira da melhor segurança, mas no momento de

grande nervosismo as suas ordens não podiam ser cumpridas, nem tampouco ouvidas, dado o clamor e o pânico causado pelo violento ataque, que muito

tinha de sádico e bestial. Era o momento do salve-se quem puder!307

.

O literato esperantinense critica o procedimento de guerrilha usado pelos soldados: “As

praças indisciplinadas, atiravam sem a mínima observância às regras que deviam regular a

segurança da população do povoado. Nem uma medida foi tomada pela força policial, no

sentido de evitar possíveis baixas nos habitantes do local”308

.

Segundo relatório policial, “morreram no tiroteio seis ciganos, inclusive o chefe

Benjamin Medrado, homem de uma audácia incrível”309

. Pereira e Dona Raimunda Sabino

apresentam mais detalhes sobre os ciganos mortos:

Findo fogo, cinco homens jaziam mortos. Um adolescente e duas mulheres

estavam feridos a bala. Uma das mulheres, a graciosa Roxinha, esposa do

„Capitão‟, morto durante o fogo, ficou em estado grave, morrendo depois. A

outra, uma cigana idosa e o rapazinho, tratados por pessoas caridosas, conseguiram escapar à morte

310.

Assim que calmou o negócio de tiro, eu fui com minha tia. Aí eu disse:

„Vamos Madrinha Chiquinha reparar? Aí, ela pegada na minha mão, e eu na dela, fomos lá. Já tinham endireitado os ciganos que estavam mortos, já

estavam todos assim... pegados uns nos dedos dos outros. Todos de braços

abertos! Cinco! [...] Foram os soldados que fizeram assim, entrelaçaram os

dedos, todos de braços abertos! Cinco! Cinco! Cinco! Aí tinha uma cigana, ela estava na porta do finado Zé Fortes, tava contaminado de cigano, cheio

de ciganinhos. [...] E uma cigana baleada nas calçadas no finado Zé Fortes.

Também não durou muito, quando foram levar eles pro cemitério, num carro de boi. Já tinham morrido muito: seis! Eu digo isso porque eu ví! [...]Era uns

„homão‟, eram bonitão! Tinha uma mulher que a boca era só ouro, a boca

306 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02. 307 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965, p. 43. 308 Ibid. Id. 309 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02. 310 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit., 1965, p. 43.

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era só ouro, tanto os lados superior, quanto o inferior311

.

Os corpos dos ciganos mortos foram brutalmente arrastados e amontoados debaixo das

Três Mangueiras e, os animais dos ciganos também foram baleados sendo que alguns

chegaram a morrer312

.

No momento do confronto, muitos ciganos fugiam, o que levou o tenente Manoel Cruz,

conforme expressa em seu relatório, a “seguir uma força de 10 praças comandada pelo

intrépido cabo José Leandro em perseguição de um numeroso grupo que fugia a toda brida.

Esta escolta perseguiu os bandidos fazendo-os se internarem no estado do Ceará”313

.

No dia do massacre, 11 de novembro de 1913, uma manhã de terça-feira, estava tendo

aula na escola do povoado, que ficava ao lado da casa do Coronel Frederico. No momento do

tiroteio, o mestre mandara todos os alunos deitarem-se no chão para que evitasse acidentes de

bala de perdida. “Quando acalmou o tiroteio, ele despachou os alunos. Então, João Rego, um

dos alunos, vai passando e vê o monte de ciganos mortos”314

.

O bisneto de Isabel Maria da Conceição, em entrevista relatou :

E no caso da minha bisavó, ela teria dito que tinha fé em Deus que o fim deles haveria de ser bala. E um dos ciganos que estava baleado debaixo do

pé de oiti ao reconhecer o pai da minha bisavó teria dito: „Oh gajão, aquela

tua mulher tem a boca amaldiçoada!315

Segundo depoimento de Raimunda Sabino, também no momento do tiroteio, uma

cigana pôs o joelho em terra e amaldiçoou o povoado, vaticinando que ele nunca progrediria.

A própria entrevistada testemunhou a cigana praguejar: “Eu tava bem assim, e ela assim. [...]

Aí ela chorando e se maldizendo, que tinha muita fé em Deus e em Nossa Senhora, que o

Retiro, de Retiro, ele não passaria nunca, de ser perseguido de guerra e peste. Isso eu digo

porque eu vi!”316

. Sobre a praga, a própria entrevistada acredita que ela se concretizara em

seguida, quando, 04 anos após o incidente, o Retiro conheceu uma epidemia que as pessoas,

na época, chamaram de Peste. “Em 17, quase se acaba tudo por aqui, duma sezão que veio só

311 PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 07 out. 1997. 312 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit. 1965. 313 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 02. 314 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.

1997. 315 SÁ FILHO, Bernardo Pereira de. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

01 dez. 1997. 316 PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 07

out. 1997.

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do inferno, quase mata tudo. Foi o lugar que mais confusão já vi na minha vida”317

.

Para Lozano, “Abordar o fenômeno da oralidade é ver-se defronte e aproximar-se

bastante de um aspecto central da vida dos seres humanos: o processo de comunicação, o

desenvolvimento da linguagem, a criação de uma parte muito importante da cultura e da

esfera simbólicas humanas”318

. Diante dessa prática, conclui o historiador mexicano, “[...] a

História Oral, ao se interessar pela oralidade, procura destacar e centrar sua análise na visão e

versão que dimanam do interior e do mais profundo da experiência dos atores sociais”319

.

O entrevistado Dimas Amorim discorda da praga da cigana: “Sei disso não! Não deram

tempo nem pra falar, coitados. Isso é conversa de gente!”320

.

Sobre outra praga, uma entrevistada informou que muito tempo depois do massacre,

quando tinha a idade de 30 anos, foi vizinha de um soldado que fizera parte da tropa policial

que massacrou os ciganos. Este soldado, de nome Romão Dias Carneiro, pegou uma criança

cigana pela coxa, jogou-a para cima e aparou-a com uma espada. Dias Carneiro comentou

com Marina, na condição de vizinho, que a mãe da criança amaldiçoou-o, rogando que ele

chegaria a um estado de pobreza que não teria sequer um prato para comer. “Ele contou prá

mim. E eu emprestei minhas vasilhas para ele. Emprestei prato, rede, panela; quando chegava

pescador na casa dele, ele ia buscar vasilhas lá em casa”321

.

Outro personagem presente no imaginário popular é o Senhor Chico Fortes. No

momento do tiroteio, este cidadão, que trabalhava numa loja em frente às Três Mangueiras,

pegou uma toalha branca e montou-a numa cana, em forma de bandeira. Chico Fortes

começou a agitar a improvisada bandeira, pedindo com isso a suspensão do fogo, a fim de

evitar que outra pessoa saísse ferida. A polícia atendeu ao gesto322

.

Outra súplica também presente no imaginário coletivo teria ocorrido quando uma cigana

entrou correndo na Igreja e mostrou aos soldados uma imagem de Cristo crucificado, pedindo

humildemente que não atirassem em seu povo323

.

Essas imagens estão presentes no imaginário coletivo esperantinense, sendo repassadas

317 PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 07

out. 1997. 318 LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. Prática e estilos de pesquisa na história oral contemporânea. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos e abusos da História Oral. Rio de janeiro: Fundação

Getúlio Vargas, 1999, p. 15. 319 Ibidem, p. 16. 320 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.

1997. 321 AMORIM, Marina do Carmo. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 13

fev. 1998. Nascida em 10 jan. 1926, doméstica aposentada, filha de contemporâneos ao massacre. 322 SILVA, Maria Auxiliadora Carvalho e. Op. Cit.,1998. 323 Ibidem.

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e reinventadas de geração a geração.

O imaginário como objeto histórico é menos auto-suficiente do que qualquer

outro; as representações de uma sociedade e de uma época formam um sistema, por sua vez articulado com todos os outros, classificação social e

religião, inclusive, é óbvio, mas também modos de comunicação324

.

Assim, “é preciso ir buscar o sentido de uma sociedade em seu sistema de

representações e no lugar que esse sistema ocupa nas estruturas sociais e na „realidade‟”325

.

À tarde, os corpos dos ciganos foram conduzidos ao cemitério, após ficarem expostos à

sombra das Três Mangueiras. Este fato é o mais presente no imaginário coletivo, é o momento

em que as pessoas de Esperantina hoje mais se reportam pelo fato dos cadáveres terem sido

conduzidos ao cemitério local num carro de boi e enterrados numa só vala.

Desde criança ouvia com freqüência meu avô materno, que era contemporâneo ao

massacre, narrar a condução dos corpos ao sepultamento. Aqui me reporto novamente a

Halbwachs: “Fazemos apelo aos testemunhos para fortalecer ou debilitar, mas também para

completar, o que sabemos de um evento do qual já estamos informados de alguma forma,

embora muitas circunstâncias nos permaneçam obscuras”326

.

As pessoas costumam fazer referências como: “Jogaram eles num carro de boi como se

joga madeira, amontoaram, fizeram um buraco e jogaram dentro, numa só vala”327

, e: “O

enterro foi tudinho dentro de um carro de boi pro cemitério, enterrado de dois por riba do

outro, só numa cova”328

.

O carro de boi, que segundo os entrevistados pertencia a João Franco: “[...] e pediram os

carros do velho João Franco para transporte dos mortos para o cemitério”329

.

E um dos chefes lá, não sei se foi mesmo o Tenente Barradas ou foi o Juca

Fortes, disse que era para chegar na casa do João Franco, estava um carro de

boi do pai dele, que tinha vindo deixar babaçu, uns bagulhos e levar mercadoria pro Jatobá, Aí ele chama o carrego depressa, manda buscar os bois e meter no carro [...]

330

324 PATGLEAN, Evelyne. A História do Imaginário. In: LE GOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo:

Martins Fontes, 1995, p. 309. 325 Ibidem, p. 300. 326 HALBWACHS, Maurice. Op. Cit., 1990, p. 19. 327 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.

1997. 328 PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 07

out. 1997. 329 FRANCO, Paulo Memória. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 06 dez.

1997. 330 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.

1997.

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Essas informações divergem da literatura local: “[...] os cadáveres foram conduzidos ao

cemitério, jogados num carro de boi de Laurentino Gomes Rebêlo, vulgo Lolô, cujo

transporte fora requisitado pela força, que mandou fazer o sepultamento em vala comum”331

.

Dona Raimunda Sabino comentou, expressando-se com emoção: “Meu avô foi quem foi

enterrar. Silvestre! Silvestre foi quem foi enterrar eles ali naquele cemitério!”332

Foi também “trabalho” da tropa policial dar “[...] socorro às mulheres que os bandidos

haviam abandonado. Seguiam para o Maranhão, para onde desejavam. Forneci-lhes montadas,

roupas, alimentos e algum dinheiro”333

. No entanto, este apoio foi limitado quando se referiu

aos filhos do casal Medrado e Roxinha, que “[...] deixaram duas crianças que foram levadas

para casa de Belarmino Machado que, contra a vontade de alguns soldados, ofereceu guarida

aos pequenos e inditosos órfãos”.334

Segundo um informante: “[...] os que puderam ir embora,

foram embora a cavalo, [...] e os que ficaram debaixo do subterrâneo do João Franco, quando

foi três dias depois, ele soltou”335

.

Os soldados permaneceram no Retiro até o dia 13 daquele mês. Sobre a permanência da

tropa, Raimunda Sabino confirmou a quantidade: “Só dois!”336

, e acrescentou que nesses dias

os policiais não fizeram nada no povoado, apenas ficaram “ [...] friviando os outros [ciganos]

pra ver se achava pra matar. Procurou mas não achou, já tinham saído, já tinham ido

embora”337

.

Em seguida, os soldados regressaram para o Peixe. Segundo relatório policial, por onde

a tropa passava, algumas pessoas vinham ao seu encontro no intuito de serem restituídos os

bens que, supõe-se, os ciganos tinham lhes arrebatado:

Chegando nesse dia no lugar Engano, onde restituí ao Sr. José Lopes um

jogo de malas que Benjamim Medrado havia roubado. Dali parti, chegando

ao Peixe dia 15, às 11h da manhã. Na tarde desse dia apareceu-me o Sr. Francisco Fortes Sampaio, pedindo para ser-lhe entregue um cavalo que

Benjamim Medrado se havia apoderado; e como ficasse provado por

331 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit. 1965, p. 44. 332 PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 07 out. 1997. 333 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 03. 334 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit. 1965, p. 41. 335 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.

1997. 336 PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 07

out. 1997. 337 PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 07

out. 1997.

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testemunhas e suspeitas, conforme documento junto, que era ele o legítimo

dono, fiz-lhe a entrega do mesmo animal338

.

Na localidade Peixe, foi aberto um inquérito pelo Promotor Público e Delegado da

Polícia de Barras, onde 26 pessoas depuseram, a maioria vítimas das depredações do grupo

nômade. Nas queixas arroladas, todas essas testemunhas mostraram-se indignadas com as

ações dos ciganos e foram unânimes em concordar com a atitude do governo no

aprisionamento do grupo. Com exceção do senhor José Félix da Costa, ao enfatizar que a

atitude do governo teria sido melhor se tivesse mandado fazer uma coivara de fogo, e nela

tivesse incendiado todos os ciganos339

. O referido inquérito foi realizado no Peixe, Marruás e

Retiro da Boa Esperança, e a maioria dos depoentes era formada por pessoas simples do povo.

O Jornal Diário do Piauí publicou em suas páginas um telegrama do promotor público

aludindo ao inquérito e ao trabalho eficaz do governo:

BARRAS, 10 – Tenho grandes inadiáveis ocupações aqui. Peço consentir demore minha ida ao Peixe para 15, quando partirei impreterivelmente.

Tenho o máximo empenho na repressão dos ciganos que são bandidos e

cangaceiros cearenses. Estando no Peixe o mês passado fui testemunha dos horrores praticados, do armamento que conduziam, do pânico da população

pobre. Requeri inquérito, então conseguindo com isso a entrega de muitos

animais furtados, e não fui avante por falta de garantias. O Delegado Lincoln está ausente por necessidade imperiosa, porém, chegará a 12 e seguirá

comigo. O povo está satisfeitíssimo com as providências do Governo.

Saudações: Arimatéia Tito (Promotor Público)340

.

O tenente da tropa policial, ao dar-se conta que os ciganos estavam refugiados no

Maranhão e outra parte no Ceará, e que, receosos de pisarem em solo piauiense, devido à ação

militar, solicitou ao governo o regresso dos soldados. No relatório foi citada a quantidade de

armas aprendidas no poder dos ciganos:

[...] entrego ao corpo o que apreendi em poder dos ciganos, os seguintes

armamentos: 32 rifles, 04 espadas e espadins, 15 garruchas e pistolas de

diferentes calibres e fabricantes, 11 facões e 34 punhais e facas; sendo 04 rifles, 03 espadas e espadins, 04 pistolas e garruchas, 04 facões e 05 punhais

em Miguel Alves, ao bando dos ciganos, conhecido por Seu Homem

constando-me mais que o dito cigano havia escondido 04 rifles, em um

capinzal, por ocasião que os fiz embarcar para o Maranhão [...] As outras

338 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 03. 339 INQUÉRITO Policial. Depoimento de José Félix da Costa. Repressão dos ciganos. Inquérito feito pela Polícia

de Barras em Marruás. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 298, 28 dez. 1913. p. 01-02. 340 OS CIGANOS. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 251, 11 nov. 1913. p. 02.

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armas foram apreendidas em Campo Largo, Engano, Tanquinho, Peixe e

principalmente no Retiro da Boa Esperança341

.

A força policial conforme veiculava a imprensa, fora formada com o intuito de

aprisionar os ciganos e expulsá-los do território piauiense. O tenente da tropa apresentou

no relatório, o destaque dos soldados.

[...] a força do meu comando fez na diligência para a qual fui escalado. O

modo por que se portou a força foi o mais digno, não havendo nenhuma

violência, que não fosse perfeitamente justificada pelas circunstâncias,

muitas vezes extraordinárias, em qual nos colocaram os ciganos. [...] Não tivemos nenhuma baixa a lamentar e somente dois homens foram feridos

levemente, os quais continuaram a cumprir seus deveres pontualmente342

.

No trecho acima o tenente enfatiza a ausência de violência policial no combate ao grupo

nômade, justifica que os incidentes de Campo Largo e Retiro da Boa Esperança devem ser

entendidos como respostas à violência, à resistência e ataque por parte dos ciganos. Porém, se

atentarmos ao trecho abaixo, no qual o tenente descreve o aparato da tropa, bem como suas

munições, posso concluir que a caça aos ciganos pretendeu muito mais que aprisionamento e

expulsão do grupo nômade de terras piauienses.

O armamento mauser, que pela primeira vez entrou em ação, é de superior

qualidade, permitindo, conservar os ciganos a uma grande distância, fora do

alcance útil dos seus rifles. A munição é de excelente qualidade, não me tendo falhado um só tiro. Os homens portaram-se em geral com muita

disciplina e valentia, marchando bem, suportando todas as fadigas, com

aquela boa vontade e entusiasmo que é própria do nosso soldado343

.

Pela dimensão do aparato policial, da quantidade de soldados, disciplinados e

conhecedores de táticas de guerrilhas, se compararmos ao dos ciganos, embora estes fossem

numericamente mais expressivos que a tropa, suas armas não passavam de facas, garruchas,

espingardas, facões e punhais. Mais uma vez considero que a perseguição aos ciganos não

poderia resultar senão em um trágico massacre.

Como já destaquei anteriormente, uma das dificuldades em reconstituir a história de

grupos marginais, advém da escassez ou ausência de documentos por eles produzidos. Como

recurso, o historiador utiliza como fontes os documentos emanados dos donos do poder, da

repressão a esses atores sociais, desta forma é possível “ouvir” tais personagens. Esses

341 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 03. 342 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 03. 343 RELATÓRIO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 292, 20 dez.1913. p. 03.

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ciganos, assim como os demais que atravessaram a história, ocupando-se em negociar animais

e mercadorias diversas, foram anônimos, sem vez ou voz, não produziram documentos

escritos, não ocuparam cargos políticos ou eclesiásticos, não deixaram rastros. Remeto-me ao

pensamento de Michel de Foucault, quando discute a vida dos homens infames do século

XVIII (loucos e prisioneiros), o qual afirma que, para que algo deles chegasse até nós:

[...] foi porém necessário que um feixe de luz, ao menos por um instante, as

viesse iluminar. Luz essa que lhes vem do exterior. Aquilo que as arranca à noite em que elas poderiam e talvez devessem sempre, ter ficado, é o

encontro com o poder: sem este choque, é indubitável que nenhuma palavra

teria ficado para lembrar o seu fugidio trajeto. O poder que vigiou aquelas vidas, que as perseguiu, que, ainda que por um só instante, prestou atenção

às suas queixas e ao seu leve burburinho e que as marcou com um golpe das

suas garras, foi também o poder que suscitou as poucas palavras que delas nos restam: quer porque se lhe tenham querido dirigir para denunciar,

apresentar queixa, solicitar, suplicar, quer porque ele tenha pretendido

intervir e que com algumas palavras tenha julgado e decidido. Todas

aquelas vidas, que estavam destinadas a passar ao lado de todo o discurso e a desaparecer sem nunca terem sido ditas, não poderiam deixar traços –

breves, incisivos, enigmáticos muitas vezes – senão em virtude do seu

contato momentâneo com o poder344

.

Embora esses „homens infames‟ e os ciganos estejam inseridos em contextos – tempo,

espaço e realidade social diferentes – a teoria foucaultiana adequa-se como chave de

discussão teórica sobre o massacre dos ciganos: o encontro desses ciganos com o poder que

resultou em chacina e aprisionamento do grupo, fez com que esses homens infames que

historicizo, chegassem até nós.

Ainda me apropriando do pensamento de Foucault, concluo que seria impossível reaver

a vida desses homens infames – os ciganos – em si mesmas, em estado livre, não se poderia

recuperá-las a não ser fixadas nas declamações, nas parcialidades tácitas, nas mentiras

imperiosas que supõem os jogos do poder e as relações com ele345

.

A tropa policial partiu para Teresina no dia primeiro de dezembro de 1913. A imprensa

na capital divulgou o trabalho dos soldados destacando a ação como uma tarefa de bravura e

heroísmo:

Voltou de sua execução pelo interior do Estado, o contigente de trinta

praças, sob o comando do valente oficial, segundo tenente Manoel de

Oliveira, que tinha ido em socorro das pessoas atacadas pelos ciganos. O

contingente voltou bem disposto. Ao seu encontro foi o estado maior da

344 FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagens/veja, 1992, p. 97-98. 345 Ibidem, p. 98.

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polícia. Ao chegar ao quartel, foi indiscutivelmente a alegria no encontro das

praças que vinham da luta, vitoriosas e altivos, com os seus camaradas e

famílias. Uns bravos daqui mandamos ao denodado oficial, segundo tenente Manoel Oliveira e aos seus comandados, pela galhardia com que se

houveram nos repetidos tiroteios que travaram com os bandidos346

.

O Diário do Piauí também divulgou matéria com teor parecido:

Acaba de regressar ao seu quartel, a força que sob o comando do 2º tenente

Manoel da Cruz Oliveira daqui partira no vapor de 05 mês passado a fim de bater os ciganos que cometiam tropelias no Peixe e arredores, alarmando a

população, em bando armado. Felizmente, porém, a nossa força, chegou a

tempo de resguardar a propriedade dos nossos patrícios, seriamente

ameaçada por aqueles bandoleiros. Os homens que regressaram nas melhores disposições, foram recebidos na entrada da cidade, pelo Estado

Maior do Corpo, atravessando o luzido esquadrão, as nossas ruas, sob a

simpatia do povo. Daqui enviamos, aos valentes soldados os nossos votos de boas vindas

347.

Sobre a destinação dos bens dos ciganos, o imaginário coletivo esperantinense é

povoado por lendas e fantasias. Uma delas é que os ciganos eram ricos e tinham ouro: “Dizem

que tinham ouro! Os ciganos eram, tinham muito ouro! Eram ciganos que tinham ouro!”348

.

No imaginário coletivo, aparecem duas mulheres, que teriam se apropriado de pertences

dos ciganos. Maria Pinga-Fogo e Maria Cobrinha, ambas empregadas domésticas. A primeira

teria delatado à polícia o esconderijo de uma cigana:

Tinha uma mulher aqui, que chamavam de Pinga-Fogo – apelido – eu não

sei como era o nome dela, ela trabalhava nas cozinhas desse povo. Lá já nos últimos ela foi mostrar aonde estavam escondidos [...] e os soldados

mataram e tiraram um cordão de ouro com a medalha ou era crucifixo, e

deram pra ela – ela morreu com ele no pescoço349

.

Tinha uma cunhã véia aqui, uma Maria Pinga-Fogo. Essa deu de garra: ela

tirou colar de ouro, ela tirou cordão de ouro, ela tirou medalha de ouro, ela

tirou coração de ouro, tudo isso ela tirou! [...] Só ouro! Dinheiro, essas

coisas. Era muita coisa bonita que eles traziam! Olha foi muita gente que roubou, o povo roubando, dizem que havia ouro

350.

Dona Marina Amorim contou que quando criança costumava brincar na casa de Maria

346 OS CIGANOS. Piauí. Teresina, ano 23, n. 1257, 06 dez.1913. p. 04. 347 CIGANOS. Diário do Piauí. Teresina, n. 277, 04 dez.1913. p. 02. 348 PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 07

out. 1997. 349 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.

1997. 350 PEREIRA, Raimunda Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05

out. 1997.

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Cobrinha. Ela frequentemente estendia, no varal de sua casa, umas saias que dizia terem

pertencido às ciganas que morreram no Retiro. “Eu ví mais de uma saia, eram umas saias bem

bonitas, roxas, muito bem cheias de pérolas”351

. Maria Cobrinha estendia essas saias no sol

frequentemente para evitar o mofo e, em seguida, guardava-as numas malas de couro352

.

Essas apropriações carregam uma natureza lendária e mística, encontram-se no

imaginário coletivo e acredito que continuará sendo transmitido de geração a geração.

Para Pereira, apenas a tropa policial ficou com os pertences: “É fato verídico que os

soldados despojaram os ciganos de todos os seus pertences, incluindo-se jóias, ouro e prataria.

Até roupas, redes e animais foram levados. Além da chacina, o saque!”353

.

Uma semana depois do massacre, o governo lançou edital de convocação para as

pessoas reclamarem seus pertences que foram arrebatados pelos ciganos. O edital foi

publicado no jornal O Piauí:

A Secretaria de Polícia Civil está publicando edital com o prazo de 30 dias,

chamando as pessoas que se julgarem interessadas para reclamarem animais

que lhes foram roubados pelos ciganos e foram apreendidos pela Polícia Militar na exerção (sic) que acaba de fazer pelo norte do Estado. O prazo

referido é contado de 5 deste mês. As partes interessadas deverão dar todos

os sinais dos animais que lhe foram roubados. Terminado o prazo, serão os ditos animais arrematados em hasta pública, como bens de evento

354.

A correria cigana em terras piauienses foi muito similar às que ocorreram com

frequência em Minas Gerais entre o final do século XIX e início do XX. Seria uma extensão

ou uma continuidade? Algumas características são comuns nos estudos, como a perseguição

policial com a simples intenção de “expulsá-los” do território onde estavam “pertubando”.

Recordemos a velha política anticigana colonial importada da Europa, que era de colocar os

ciganos em “movimento”, o melhor lugar para eles era sempre o mais distante355

. Outras

características comuns às correrias eram: tiroteios travados entre as duas forças que

resultavam em mortes dos dois lados, expulsão e aprisionamento, e também a presença da

imprensa que diariamente, em seus periódicos, veiculava notícias rechaçando os ciganos

como “bandidos”, “vadios”, “ladrões” e informava ao público leitor os “problemas” causados

por ciganos. As ações do poder instituído acabavam por reforçar um estereótipo construído

social e culturalmente ao longo de três séculos. A imprensa também elogiava a tarefa da

351 AMORIM, Marina do Carmo. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 13

fev. 1998. 352 SILVA, Maria Auxiliadora Carvalho e. Op. Cit., 1998. 353 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit. 1965, p. 44. 354 OS ROUBOS dos Ciganos. Piauí. Teresina, ano 23, n. 1258, 13 dez. 1913. p. 02.

355 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007.

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polícia. “A intenção era contrastar a „crueldade‟ dos ciganos com a „coragem‟ da Força

Policial. Ao festejarem a debandada geral dos ciganos impostas pelas autoridades, acreditam

que isto tem o „sentido de sanear moralmente o Estado”356

. Na correria piauiense, a imprensa

destacava que:

Foi sobremodo alvissareiro o encontro da força policial com os malfeitores em Miguel Alves e Marruás, neste último conseguindo os nossos soldados

fazer retirar-se do território piauiense em bando. [...] Ainda mesmo que a

corrente de ciganos aumente, formando uma grande e municiada quadrilha, em nossos sertões nada conseguirá além de terror súbito. O corpo Militar de

Polícia, um verdadeiro punhado de bravos instruídos como se acha, contra o

elemento preciso para fazê-lo recuar de qualquer posto que ocupem357

.

O papel da imprensa se completava quando divulgava os avisos e editais da Secretaria

de Polícia sobre as apreensões de animais que estavam em posse dos ciganos. Para a imprensa

e “donos” do poder, se tais bens estavam em poder dos ciganos, eram produtos adquiridos

pelo roubo. Era como se para o cigano fosse negado o direito de posse.

Na correria de ciganos no Piauí, os nômades “errantes” são acusados de cometerem

saques, depredações, engodos e ataques à propriedade privada nos pequenos povoados por

onde passavam. Logo, levantou-se uma volante policial para perseguí-los sob o intuito de

apenas expulsá-los do Piauí. Porém a ação resultou em trágica chacina. A perseguição já

começou no Município de Miguel Alves, distante poucas léguas da capital. Seguindo um

itinerário, onde em alguns pontos ocorriam expulsão, aprisionamento e até mesmo confrontos,

como foi o caso de Campo Largo, onde os grupos começaram a se dissipar e minguar a

quantidade de ciganos.

Restou um grupo avultado que na impossibilidade de atravessar o Rio Parnaíba porque a

tropa cortara-lhe a retirada, os ciganos tomaram outra direção, procurando despistar a força

policial e atravessar o rio em lugar mais seguro e em ocasião mais propícia358

. Chefiados por

Medrado, o grupo migra em direção ao Retiro da Boa Esperança. Já sabemos o desfecho desse

acontecimento, o Retiro serviu de palco para a tragédia cigana. Consumada a chacina: ciganos

mortos, feridos e aprisionados. O velório representou um gesto contrário à fé e piedade cristã:

sob a sombra de três mangueiras, sem mortalha e sem caixão. Os corpos jogados num carro de

boi como se fossem madeira ou entulho a caminho do sepultamento, e feito em vala comum.

Os ciganos mortos, outrora qualificados como bandidos, ascenderam à condição de

356 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. Cit., 2007, p.76. 357 BANDITISMO. Diário do Piauí. Teresina, ano 3, n. 258, 12 nov. 1913. p. 02. 358 PEREIRA, Antônio Sampaio. Op. Cit. 1965.

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mártires. Os supostos crimes foram perdoados pela brutalidade de suas mortes. O sentimento

de piedade desencadeou-se numa devoção popular à alma dos ciganos e do Ciganinho.

Entender as razões históricas que favoreceram a ressignificação destes sujeitos e compreender

os signos, sentidos e significados das práticas de religiosidade popular entre as pessoas de

Esperantina é o tema do capítulo que segue.

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CAPÍTULO 3

CIGANOS: da tragédia à religiosidade popular

3.1 Dia de finados: gestos de fé e devoção

Os ciganos personagens dessa narrativa, que erravam em terras nordestinas no início do

século XX, não se diferenciavam quanto ao estereótipo construído em torno da etnia. Assim,

como os outros grupos, esses também eram rechaçados como bandidos, trapaceiros,

malfeitores, vagabundos.

Esses ciganos, ao exercerem suas atividades de compra e venda de mercadorias em

terras piauienses, foram acusados de praticarem delitos contra cidadãos com os quais

negociavam. Como apresentei no capítulo anterior, uma perseguição policial foi organizada

no intuito de bani-los do território, porém essa ação resultou em aprisionamento e morte de

alguns ciganos. Após a chacina, os corpos dos ciganos, expostos a “velório” não

convencional, não seguindo o rito católico, à sombra das “Três Mangueiras”, foram

conduzidos ao cemitério para sepultamento.

Os ciganos mortos, outrora representados como bandidos ascenderam à condição de

mártires, dada a tragicidade de suas mortes. Quase um século após do massacre, um

sentimento de piedade toma conta do esperantinense quando o assunto é o massacre dos

ciganos. Este sentimento é também acompanhado por um gesto de solidariedade às suas

almas, quando no dia de finados, as pessoas acendem velas no cemitério onde estão

enterrados. Movidos por uma solidariedade nessa data litúrgica, os ciganos e o acontecimento,

são lembrados em orações pelos fiéis católicos da cidade. O sentimento religioso é mais forte

em torno do menino cigano, conhecido popularmente como “Ciganinho”, que passou a

intervir junto a Deus nos momentos difíceis. Percebe-se aí, uma ressignificação dos sujeitos:

de salteadores errantes, agora representados como mártires e milagreiro. Trata-se de uma

transformação no plano do imaginário coletivo que se processou do terreno histórico para o

mítico.

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A proposta deste capítulo é abordar a prática de devoção popular construída pelas

pessoas de Esperantina, em torno da alma dos ciganos, que agora são lembrados em orações

pelos católicos fiéis, em especial no dia de finados, e o sentimento de fé em torno da alma do

Ciganinho milagreiro.

Para a construção deste capítulo saí à “caça” de devotos do Ciganinho, pessoas que,

diante de aflições ou necessidades, fizeram promessas e tiveram graças alcançadas por

intercessão do menino cigano. Utilizei novamente a metodologia da História Oral, fiz

entrevistas com os devotos e, no dia de finados, dirigi-me aos cemitérios dos Ciganos e do

Ciganinho, no intuito de fotografar, de observar o fluxo de fiéis, e na oportunidade acabei

colhendo depoimentos de visitantes e de devotos. Usei também como fontes, algumas das

entrevistas colhidas durante minha pesquisa de monografia realizada em 1997.

Reportando-me ao sentimento de piedade aos ciganos mortos, o fato mais presente no

imaginário das pessoas de Esperantina foi a maneira pela qual os corpos foram sepultados:

jogados num carro de boi, sem caixão, sem mortalha e enterrados todos em única vala, prática

condenável pela tradição católico-cristã. Segundo depoimentos de entrevistados: “[...]

mataram eles como que matavam uns bichos brutos [...], dizem que jogaram num sei quantos

num buraco [...], dizem que tomaram as jóias de ouro deles tudim, dizem que tinha até

bengala de ouro”359

. Outra entrevistada acrescentou: “Eu sei que eles foram mortos, dizem

que foram, trouxeram eles num carro, parecia uns bichos brutos, e sepultaram”360

. “Minha vó

sempre contava que eram, momento eles passavam, depois que se acabou o massacre, dentro

da carroça [...]. Várias pessoas, senhoras já de idade [...], criança mortas para levar para jogar

lá no cemitério”361

.

Há quem lamente o fato, apontando uma possibilidade da tragédia ter sido evitada:

Ao mesmo tempo a gente fica assim é pensativo [...], que talvez se tivesse

agido de forma diferente [...], não teria tido tanta morte, tanto sangue

derramado na nossa terra. A gente se pergunta [...], será que foi correto da

forma com que aconteceu [...] do momento. Poderia ter sido diferente [...] se

tivesse deixado eles entrar na cidade como eles já vinham já passando por

outras cidades e nada aconteceu. Por que Esperantina? Será se estava

359 CASTRO, Maria Durvalina de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

16 jun. 2010. Servidora pública municipal aposentada, 74 anos, devota do Ciganinho. 360 SILVA, Maria de Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 17 jun.

2010. Aposentada, 71 anos, devota do Ciganinho 361 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

15 jun. 2010. Professora aposentada, 50 anos, devota do Ciganinho.

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predestinado a acontecer isso?362.

Os corpos dos ciganos foram sepultados no cemitério, que na época do massacre, em

1913, era o do povoado. Hoje encontra-se desativado, é reduzido a um pequeno espaço ao que

fora no início do século e é conhecido como “Cemitério dos Ciganos”. O local onde os

ciganos foram enterrados, já não existe mais, foi tomado por construções. “Ali era o

cemitério. Depois o Senhor Manoel Lages foi intendente363

aqui [1921-1924], foi que ele fez,

aquele que hoje nós temos: Cemitério São João Batista”364

.

Localizado na rua Coronel José Fortes, no centro de Esperantina, o “Cemitério do

Ciganos”, permanece com o portão sempre fechado, tornando-se inacessível a visitas, exceto

no dia de finados quando é aberto. Uma entrevistada comentou: “Nunca entrei lá não, só vive

fechado”365

. No dia de finados, o cemitério é aberto pela Prefeitura Municipal de Esperantina,

para visitas. Nesse momento, os fiéis católicos da cidade acendem velas no cruzeiro do

cemitério para as almas dos ciganos, relembram o acontecimento e fazem orações.

Essa data litúrgica, 02 de novembro, entendida pela Igreja Católica como o dia da

celebração de vida eterna das pessoas queridas que já faleceram, consiste na visita aos

cemitérios, acender velas, orar por estes entes, celebrar missas em sufrágio de suas almas e

depositar flores nos seus túmulos. Trata-se de uma prática tradicional.

[...] a Igreja dedica um dia por ano para rezar por todos os mortos, pelos

quais ninguém rezava e dos quais ninguém se lembrava. Desde o século XI,

os Papas Silvestre II (1009), João XVIII (1009) e Leão IX (1015) obrigam a

comunidade a dedicar um dia por ano aos mortos. Desde o século XIII, esse

dia anual por todos os mortos é comemorado no dia 2 de novembro, porque

no dia 1º de novembro é a festa de „Todos os Santos‟. O Dia de Todos os

Santos celebra todos os que morreram em estado de graça e não foram

canonizados366

.

Assim, trata-se de uma celebração a todos os que morreram e não são lembrados na

oração. Essa prática milenar cristã também é estendida aos ciganos mortos em Esperantina

362 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 15 jun. 2010. 363 Responsável pela administração de um povoado. Os intendentes existiram no Brasil até 1930, quando surgem

as figuras dos prefeitos. 364 ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 05 out.

1997. Nascido em 01 nov. 1920, quando jovem testemunhou comentários sobre o massacre dos ciganos entre os

contemporâneos da época. Faleceu em 19 out. 2009. 365 VAZ, Maria das Graças Barbosa do Rego. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

Esperantina, 14 jun. 2010. Doméstica, aposentada, 71 anos, devota do Ciganinho. 366 Disponível em http://www.velhosamigos.com.br/DatasEspeciais/diafinados.html. Acessado em 22 set. 2010

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pelos fiéis católicos da cidade. No dia de finados, no cemitério, alguns visitantes

informaram suas razões de acenderem velas para os ciganos: “[...] tem muitas almas que

são esquecidas e a gente precisa dar uma luz pra eles, pra lembrar que eles existem”367

. E

também: “[...] todos os anos eu gosto de acender velas porque a gente tem essa

consideração, tem sempre essa penitência de fazer isso pra eles”368

. Uma senhora

comentou:

[...] a gente, a gente vem aqui acender velas, porque tem muita gente que não

tem parente, por exemplo num caso desses, né? Não tem uma pessoa que,

então todo mundo vem naquela intenção de, de acender vela pra eles, porque

toda alma precisa de luz. Então, estamos aqui pra isso369

.

Outros visitantes comentaram: “Vontade até que eu tenho, mas pela primeira vez que

eu achei esse portão aberto foi hoje”370

.

Eu só venho dia de finados porque é só quando eu vejo aberto. Mas eu gosto

de vir porque eu acho que eles são assim esquecidos, é tão tal que a gente tá vindo aqui, eu acho que eles não têm família aqui [...]. Porque nos outros

cemitérios, tem os parentes. E eles porque eu acho que morreram muitos, eu

acho que os que têm ainda num podiam nem conhecer371

.

Além da inacessibilidade a visitas durante o ano, o Cemitério dos Ciganos também

encontra-se “abandonado” pelo poder público no tocante à limpeza, é comum o matagal

tomar de conta do ambiente. Essa informação converge com o lamento de uma devota:

Eu sempre falava [...] que um dia tivesse assim uma condição melhor, fazer

um ambiente que marcasse, pois Esperantina hoje de uma certa forma, ela é conhecida como época, como a questão do massacre dos ciganos, então não

é que a gente tivesse assim, mas que o cemitério tivesse, é, fosse mais

zeloso, era no centro da cidade. Mas é incrível a gente vê assim o abandono por parte da gestão pública, o matagal é demais, a gente percebe que, é, num

tem, se não for o período de finados, outro momento ele não é visitado. Ele

é, a gente sabe, que além dos ciganos, existe outras pessoas [...] de famílias

367 SILVA, Antônia da. (Visitante do Cemitério dos Ciganos no dia de finados). Depoimento concedido a Maria

Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 368 PEREIRA, José. (Visitante do Cemitério dos Ciganos no dia de finados). Depoimento concedido a Maria

Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 369 SOUSA, Maria Carmelita (Visitante do Cemitério dos Ciganos no dia de finados). Depoimento concedido a

Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 370 LEAL, Maria de Fátima. (Visitante do Cemitério dos Ciganos no dia de finados). Depoimento concedido a

Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 371 CARVALHO, Rosa (Visitante do Cemitério dos Ciganos no dia de finados). Depoimento concedido a Maria

Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009.

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renomadas de Esperantina que têm túmulo lá naquele local [...], mas a gente

percebe assim o abandono por parte também dos próprios familiares [...], não

só da gestão pública, os próprios familiares, os túmulos quebrados [...]. Já existe outras residências, já existe comércio no local onde a gente sabe que

ali tem túmulo372

.

Figura 03: Cemitérios dos Ciganos

Figura 04: Cemitério dos Ciganos (vista interna)

372 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

15 jun. 2010.

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Figura 05: Visitantes acendem velas no cruzeiro do

cemitério no dia de finados

3. 2 Ciganinho Roldão: o errante milagreiro

A visita dos fiéis católicos ao Cemitério dos Ciganos estende-se também ao

Cemitério do Ciganinho, localizado no povoado Pequizeiro da Areia, zona rural de

Esperantina, distante 06 km do centro urbano. Muito mais que uma simples visita de dia de

finados, a devoção ao Roldão assumiu maiores proporções que aos ciganos adultos

enterrados no cemitério no centro de Esperantina. A criança é conhecida popularmente por

“Ciganinho”, mas aqui passo a chamá-lo de Roldão, o nome informado por Dona

Raimunda Sabino.

Nos momentos de dificuldade muitas pessoas apegam-se com fé à alma do menino

cigano, acreditando que este passa a interceder junto a Deus. Partindo do princípio e da

piedade, por ter a condição de criança à época do massacre, um inocente que se escondera

numa árvore na tentativa de escapar à morte, segundo o imaginário popular, o Ciganinho,

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do plano espiritual é capaz de obrar milagres: “Acredito, só pelo sofrimento de merecer

uma criança. Acho que tem aquela graça, né que Deus permite”373

. Uma devota relatou:

Eu acho assim, por conta de ter sido um jovem, a distância que eles estavam

e onde ele percorreu, correndo, se escondendo dos policiais, tentando fugir,

eu acho que foi quem mais sofreu aflição. [...] Eu vejo assim: meu Deus ele correu tanto para tentar fugir da morte [...], tentando se defender das balas e

lá tão distante, porque leva assim 2 ou 3 horas para chegar no local [...] a pé,

uma distância até boa, e ele correndo [...], tentando se defender e ainda terminou morrendo. Então eu sempre lembro só dele do Ciganinho

374.

O reconhecimento de que a devoção ao Ciganinho é mais forte é percebida na fala de

devotos: “Eu nunca penso assim nesses outros [ciganos adultos], não. É eu penso mais no

Ciganinho lá, não sei se existe outras pessoas que têm devoção aos ciganos. Eu falo desse

da zona rural, do Ciganinho”375

. “Ninguém conta história deles não. Mas, lá não falta

coroa, num falta vela. Mas, a história das graças é com o Ciganinho”376

.

Olha, com relação à alma dos ciganos, porque eles não veem os ciganos como pessoas santas. O povo em si, principalmente as pessoas mais recentes,

veem os ciganos mesmo até como bandidos, mas dentro dessa história dos

ciganos existe um menino cigano, ciganinho, que morreu no lugar do

Pequizeiro da Areia e tá enterrado lá na Carraspanha – que esse menino sim – um vaqueiro à tarde, encontrou o menino morto numa poça de sangue e

enterrou o menino num cemitério, que esse cemitério foi enterrado, foi

iniciado com essa criança [...]. Hoje são muitas pessoas enterradas lá, nesse cemitério, lá nas Carraspanhas; e que as pessoas fazem promessas pra esse

cigano, o menino, e levam até ex-votos, levam, se você for a esse cemitério,

você vai encontrar la, peito de pessoas, pernas, pés, então, lá tem alguns ex-

votos de madeiras, que as pessoas fazem promessas com esse Ciganinho e

alcançam milagres, a religiosidade do povo, né? Mas, os ciganos mesmos, os adultos, não têm referência nenhuma na religião [...]377.

Roldão foi morto pela polícia militar que estava em perseguição aos ciganos, quando a

tropa os alcançou no povoado Pequizeiro da Areia. Segundo o imaginário popular, o menino

desgarrou-se do grupo nômade na tentativa de fugir para escapar do aprisionamento, refugiou-

373 SANTOS, Pedro Araújo dos. (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia de finados). Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 374 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

15 jun. 2010. 375 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

15 jun. 2010. 376 SILVA, Maria de Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 17 jun.

2010. 377 CASTRO, Valdemir Miranda de. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

10 out. 1997. Nascido em 21 ago. 1969, é escritor, poeta, professor, pesquisador da História de Esperantina.

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se num jatobazeiro, ainda hoje vivo. No entanto, foi visto pela polícia que o alvejou da própria

árvore. Roldão caiu e terminou de morrer com a queda. O Senhor Antônio André informou:

“A caravana ia passando. Dizem que a criança tava trepada aí, eles atiraram e derrubaram a

criança, o que eu sei é isso. Aí pegaram, enterraram aqui”378

.

Esse jatobazeiro que serviu de esconderijo pra o menino Cigano, é cultuado pelos

devotos, e muitas pessoas quando acendem velas no túmulo do Ciganinho, costumam também

acender velas ao redor da árvore. Entendo com essa prática, que o jatobazeiro constitui-se

uma hierofania379

. Segundo Mircea Eliade, o homem ocidental moderno experimenta um

certo mal-estar diante de variadas hierofanias:

[...] é difícil para ele aceitar que, para certos seres humanos, o sagrado possa

manifestar-se em pedras, ou árvores, por exemplo. (...) porém, não se trata de

uma veneração de pedra como pedra, de culto da árvore como árvore. A

pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias, porque „revelam‟ algo que já

não é nem pedra, nem árovre, mas o sagrado [...]380

.

Adoto o pensamento desse historiador das religiões para iluminar a veneração ao

jatobazeiro como hieorofania. Ao manifestar o sagrado, a árvore torna-se outra coisa, e

portanto continua a ser ela mesma, porque continua a participar do meio cósmico envolvente.

Por ser uma árvore sagrada, não vai ser menos árvore, nada a distingue de outros jatobazeiros.

Para os devotos, cujos olhos a veem como sagrada, sua realidade imediata transmuda-se numa

realidade sobrenatural.

378 NASCIMENTO, Antônio André. (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia de finados). Depoimento

concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 379 Termo criado para designar algo sagrado que se manifesta. Ver ELÍADE, Mircea. O sagrado e o profano: a

essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 380 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fonte, 1992, p. 17-18.

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A ação de esconder-se na árvore, ser alvejado pelos policiais, cair e morrer com a queda

serve de justificativa para as pessoas apegarem-se à alma da criança cigana em momentos de

dificuldade ou aflição. “É porque o seguinte, ele foi judiado, ele foi atirado bem aqui, nesse

pau, nesse galho aqui assim, foi hasteado. Aí a negrada faz aquela promessa com ele, diz que

ele é muito milagroso. E é muito valido, graças a Deus. Eu mesmo tenho muita fé”381

.

Roldão foi a primeira pessoa a ser sepultada no lugar que mais tarde passou a ser um

cemitério, que é conhecido como o “Cemitério do Ciganinho”. Nas histórias presentes no

imaginário local, um vaqueiro que campeava pela região do Pequizeiro da Areia (também

chamada por outras pessoas de Carraspanhas), encontrou o corpo do menino cigano

ensanguentado, caído no chão, levou-o para casa onde fez velório e no dia seguinte, o

sepultamento. O menino foi enterrado próximo ao local que caíra do jatobazeiro. Roldão, ao

contrário dos seus parentes que morreriam horas mais tarde no Retiro, teve velório em

residência e foi sepultado no dia seguinte à sua morte.

381 CRUZ, Francisco das Chagas (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia de finados). Depoimento

concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009.

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Figura 06: Jatobazeiro, local onde o Ciganinho teria buscado esconderijo.

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Figura 07: Cemitério do Ciganinho – dia de finados

Por ser o primeiro “habitante” do cemitério, o pequenino errante é considerado pelos

moradores do Pequizeiro e entorno, como o “dono” do cemitério, razão pela qual, as primeiras

velas são acesas pra ele:

Em primeiro lugar ele que é o dono. Acendi já. Tá lá dentro queimando lá.

[...] Logo pra ele que é o dono, é dono daqui, de tudo, do quadro aqui o dono

é ele. [...] Porque foi o primeiro, começou foi por ele. Foi matado junto a esse jatobazeiro aqui. E sepultado ali. Uns dizem que foi aqui, outros dizem

que foi ali, num sei, não é do meu tempo, eu num sei nem a era, não sei se

foi em 10 ou se foi em 05382

.

A visita ao Cemitério do Ciganinho, ao contrário das visitas ao Cemitério dos Ciganos,

não acontece somente no dia de finados, mas são visitas diárias e constantes ao túmulo da

criança nômade: “Olha, dia de segunda-feira, tem tanta gente que vem de fora. Olha, veio uma

senhora de Teresina, mandou fazer uma latada. Foi tanta gente, teve um leilão. Olhe, vem

gente de Teresina pagar promessa aqui”383

. A devota conclui: “Eu freqüento sempre,

frequento sempre, sempre entro lá, acendo velas pra todas as almas, eu tenho muita fé na alma

dele, todas as agonias, assim, qualquer aperreio me tenho com a alma dele e sou valida”384

.

As visitas não têm dia nem hora para acontecerem, segundo esse visitante: “Sempre

quando passo ali, entro aqui. [..] E muitas vezes a gente chega aqui 10 horas da noite e tem

382 SOUSA, Antônio Gonçalo de. (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia de finados). Depoimento

concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 383 VAZ, Maria das Graças Barbosa do Rego. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

Esperantina, 14 jun. 2010. 384 VAZ, Maria das Graças Barbosa do Rego. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

Esperantina, 14 jun. 2010.

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gente aqui[...]”385

.

A imagem dos ciganos, mesmo diante do sentimento de piedade, devido à

barbaridade de suas mortes e da forma como foram conduzidos ao sepultamento, ainda

é negativizada no imaginário coletivo: “E são, são cristãos, cristãos, embora errados,

mas, são cristãos, mataram, e a gente lamenta contar a história deles e rezo pra eles,

acendo velas [...]”386

.

Eu sei que, o que ficou bem foi a questão do massacre [...], do poder, da

aquisição dos pertences que eles tinham, eles estavam trazendo bastante ouro [...], e também o medo que as pessoas tinha [...], deles saquearam as

casas por conta da própria cultura que eles tinham de tirar os animais se

apossar [...] das terras, é o que a gente sabe um pouco da história dos

ciganos387

.

O Ciganinho ficou isento dessa imagem negativa no imaginário popular, não

somente pela barbaridade praticada em sua morte, mas pelo fato de ser uma criança:

“[...] porque mataram um inocente, uma criança, né?”388

.

Em torno dele, floresceu uma devoção popular mais intensa e visível. As

pessoas costumam se apegar à alma da criança cigana em momentos de aflição e

dificuldade, para que, no plano espiritual, possa interceder junto a Deus. A

religiosidade popular católica de Esperantina tornou-se mais expressiva a partir da

ressignificação dos papéis dos ciganos diante do massacre.

É importante neste trabalho apresentar algumas reflexões sobre a religiosidade

popular. Nas últimas décadas, especialmente a partir da década de 80, alguns

historiadores no Brasil têm realizado pesquisas no campo da religião e da

religiosidade, até então objeto de pesquisa da sociologia, da teologia, da filosofia e

também da antropologia389

.

Se antes, o interesse dos historiadores se detinha na história das relações

políticas e institucionais da Igreja, priorizando as relações entre Igreja e

385 CASTRO, Solange. (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia de finados). Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 386 SILVA, Maria de Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 17 jun.

2010. 387 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

15 jun. 2010. 388 CONCEIÇÃO, Francisca Maria da. (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia de finados). Depoimento

concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 389 ANDRADE, Solange Ramos de. O catolicismo popular no Brasil: notas sobre um campo de estudos. In:

Revista Espaço Acadêmico, n. 67, dez. 2006.

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Estado, a partir da década de 80, surgem trabalhos que enfatizam os

comportamentos a atitudes de determinados grupos religiosos. A

antropologia religiosa passa a ser o referencial para o estudo dos rituais e das práticas religiosas. O interesse está em analisar como as pessoas se

comportam diante do fenômeno religioso390

.

A temática da religiosidade teve influência da nouvelle histoire, surgida na

França na década de 1920, mais tarde chamada de Escola dos Annales. Este campo de

estudo deve muito a seus fundadores, Lucien Febvre e Marc Bloch.

Defensores de uma história abrangente e totalizante, rejeitaram as premissas

de uma história política marcada pelos feitos dos grandes homens em momentos de guerra ou decisões político-institucionais. Ao redescobrirem o

„homem comum‟ como elemento fundamental no desencadeamento de

transformações históricas, tanto na curta quanto na longa duração, propuseram uma abordagem problematizada dos processos históricos

globais391

.

A partir desta perspectiva, o estudo das religiosidades, especificamente das

crenças religiosas, percebidas na sua dupla determinação – religiosa e política -,

recebeu a atenção dos fundadores dos Annales, cujos estudos se mantiveram como

referências obrigatórias para a compreensão e análise das crenças coletivas, embora

tenham permanecido por muito tempo como iniciativas isoladas, já que muito

recentemente esta temática foi retomada pela historiografia contemporânea392

.

A valorização deste campo, enquanto temática fértil de pesquisa em História,

deu-se a partir da confluência da História com a Antropologia. Segundo a historiadora

Jacqueline Hermann, “[...] propostas gerais de estudos das religiosidades populares e também

análises mais específicas que começam a ganhar espaço, como por exemplo, trabalho sobre

festas religiosas, demonstram uma gama de temas e questões que começam a ser

investigadas”393

. Numa sociedade como a brasileira que, por quase quatro séculos, teve o

Catolicismo como religião oficial, seja da Colônia seja do Império, a religião é definida em

termos cristãos. Seus símbolos, suas crenças, seus personagens, sua hierarquia são cristãos, e

religião no senso comum significa basicamente “acreditar em Deus”. Entretanto, o

sincretismo religioso também está presente entre os fiéis, fruto da diversidade cultural

390ANDRADE, Solange Ramos de. Op. Cit., 2006, p.15. 391 HERMANN, Jacqueline. História das Religiões e Religiosidades. In: CARDOSO, Flamarion Cardoso;

VAINFAS, Ronaldo (organizadores.). Domínios da História: ensaios sobre teoria e metodologia. Rio de Janeiro:

Campus, 1997, p. 341. 392 Ibidem. 393 Ibidem, p. 351-352.

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formadora do Brasil394

.

A religiosidade popular, na compreensão de João de Deus Góis “[...] é uma

expressão privilegiada de inculturação da fé. Não se trata só de expressões religiosas, mas

também de valores, critérios, condutas e atitudes que nascem do dogma católico e

constituem a sabedoria do nosso povo, formando-lhe a matriz cultural”395

.

A religiosidade popular, com frequência, não se apresenta purificada de elementos

alheios à fé cristã. A religiosidade existe em todo ser humano, é uma motivação e até

necessidade para celebrar essa religiosidade em alguns momentos da vida; é herança

transmitida de geração a geração. A tradição do povo pode enriquecer muito a vida

religiosa, elos da corrente que o ligam à fé cristã, como acender velas, fazer novenas para

conseguir a solução de problemas, buscar água benta, fazer correntes, participar de

procissões396

.

Esses elementos da religiosidade popular são encontrados no contexto da cultura, e

correspondem ao conhecimento da realidade que finda por justificar o comportamento social.

As culturas sendo singulares e plurais fazem parte de um contexto instrumental que permite

ao indivíduo ter um encontro em melhor posição para afrontar os problemas sociais os quais

se encontram na busca da satisfação de suas necessidades397

. A cultura se apresenta

constituída por mecanismos como instituições, mitos, organizações, leis e tecnologia, pelos

quais o indivíduo adquire características mentais, como valores, crenças ou hábitos, que lhe

possibilitam participar da vida social. Assim, é um componente do sistema social que também

inclui estruturas socais e mecanismos de adaptação para conservar o equilíbrio com o

contexto sócioambiental398

.

A religiosidade católica popular é um terreno fecundo, que emerge de um grupo social

apresentando traços culturais diferentes dos aspectos lineares inerentes à doutrina cristã

ortodoxa e tradicional399

. É uma das características mais importantes da cultura das classes

populares latino-americanos no século XX, podendo ser descrita como uma forma particular e

394 HERMANN, Jacqueline. Op. Cit., 1997. 395 GOIS, João de Deus. Religiosidade Popular: pesquisas. Edições Loyola: São Paulo, 2004. p.07. 396 Ibidem. 397 OLIVEIRA, José Clerton & LEITE, Liliana. Pagando promessa, buscando esperança percepções sobre a

romaria e religiosidade popular. In: FOLKCOM. Do ex-voto à indústria do milagre: a comunicação dos

pagadores de promessas. DOURADO, J.L.; GOBBI, M. C. , MELO, J.M. (organizadores). Teresina, Halley,

2006. 398 Ibidem. 399 Ibidem.

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espontânea de expressar os caminhos que as classes populares escolhem para enfrentar suas

dificuldades no cotidiano400

.

Dentre a diversidade de práticas de religiosidade popular, a mais frequente é o ato de

fazer promessas e o seu devido pagamento. Pode-se questionar: o que motiva uma pessoa a

fazer uma promessa? A resposta pode estar em uma necessidade do fiel, que se materializa em

um pedido feito por ele, ou em um pedido feito por alguém a um ser superior, mediante um

juramento de uma recompensa a este Ser pelo êxito, conforme a solicitação401

. A promessa

pode ser definida como, “[...] um acordo que resulta numa negociação entre os dois planos

envolvidos: o superior e o terreno. Em termos reais nada mais é que uma relação de troca”402

.

Tomo como ilustração do ato de fazer promessa, meu objeto de estudo: a devoção

popular em torno do Ciganinho. Dentre os devotos entrevistados, todos relataram experiências

de promessas com graças alcançadas. Uma senhora devota me contou: “[...] eu tive um

problema nos meus pés, e o médico falou que eu teria que fazer uma cirurgia nos meus pés.

Eu falei que não, que não ia fazer a cirurgia, eu ia fazer a promessa com o Ciganinho. Quando

eu fiz essa promessa, com ele Ciganinho, logo com dias eu estava curada”403

. Uma devota que

estava acendendo velas no túmulo do menino cigano comentou:

[...] eu tive um sobrinho que tava preso, aí no momento eu me vali pela alma

dele, do Ciganinho para que ele me ajudasse, conseguir sair daquele

sofrimento que meu sobrinho tava passando naquela prisão. Aí ele me valeu,

e consegui... aí de lá pra cá sempre ele vem me socorrendo quando sempre

preciso dele ele me ajuda404

.

A palavra promessa, definida pelo dicionário como “ação ou efeito de prometer,

promissão; aquilo que se promete; juramento”405

, já carrega em seu significado etimológico a

responsabilidade de um compromisso, principalmente, quando ela é firmada no momento do

pedido a um Ser superior. Independente do contexto, a promessa sugere uma troca, e surge na

vida de uma pessoa a partir de um fato que interfere no ciclo normal do cotidiano de alguém.

Assim, ela raramente procede dentro da normalidade406

.

400 VALLA, Victor Vicent (org.) Religião e cultura popular. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. 401 PEREIRA FILHO, Sebastião Faustino. Promessas: contrato individual e social com seres superiores. In: FOLKCOM. Do ex-voto à indústria dos milagres: a comunicação dos pagadores de promessas. DOURADO,

J.L.; GOBBI, M.C.;MELO, J. M. (organizadores). Teresina: Halley, 2006, 402 Ibidem. 403 CARVALHO, Maria de Jesus de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Teresina,

11 ago. 2010. Empresária, 50 anos, devota do Ciganinho. 404 SOUSA, Marlene. (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia finados). Depoimento concedido a Maria

Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 405 XIMENES, Sérgio. Dicionário da Língua Portuguesa. 3 ed. São Paulo: Ediouro, 2001, p. 706. 406 PEREIRA FILHO, Sebastião Faustino. Op. Cit., 2006, p. 36.

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Essa característica demonstra um ato de „arbitrariedade‟ e de „oportunismo‟ por parte do ser humano, que vai resultar num processo de negociação

(troca) entre ele e um ser superior. O primeiro no mundo real, do

firmamento, com outro de um mundo incognoscível e talvez inexistente, que

estaria no plano psicológico do fiel. Plano este que nada mais é que a crença

depositada no indivíduo que o carrega por um ser de devoção407

.

Émile Durkheim define os seres espirituais como “sujeitos conscientes, dotados de

poderes superiores àqueles que o comum dos homens possui. Essa qualificação convém pois

às almas dos mortos, aos gênios, bem como as divindades propriamente ditas”408

. O sociólogo

francês admite que a única relação que podemos manter com esses seres é determinada pela

natureza que lhes é atribuída:

São seres conscientes, não podemos agir sobre eles senão da maneira como

se age sobre as consciências em geral, ou seja, por procedimentos

psicológicos, procurando convencê-los ou emocioná-los, quer através de

palavras (invocações, orações), quer através de oferendas e de sacrifícios409

.

Uma vez que a promessa vai resultar num ato de negociação entre o fiel e o ser

espiritual, ilustro como exemplos o „diálogo‟ que uma devota teve com o Ciganinho sobre a

maneira pela qual a promessa seria paga. “Eu fiz uma promessa com ele, mas foi logo

conversado para eu pagar no outro cemitério, que eu não ia lá. [...] Eu pedi uma graça e rezava

pra ele, acender vela lá na família dele, onde são sepultados os outros. Minha promessa foi

assim, o pagamento da promessa”410

.

Dona Maria referia-se à impossibilidade de pagar a promessa no Cemitério do

Ciganinho, negociando o lugar do pagamento, de acender velas e orar pela alma dele no

Cemitério dos Ciganos. Outra devota, Dona Bernadete:

Eu fiz uma cirurgia por volta de 1970 [...]1977. E por conta da cirurgia,

minha mãe e outras pessoas fizeram é, bastante promessas [...]. E essas promessas era pra que a gente visitasse lá o túmulo do Ciganinho, levasse

água benta, levasse flores, depositasse lá o coração, [...] de madeira. Foi uma

cirurgia cardíaca, de ponte safena. Hoje eu sou portadora de 3 pontes

safenas. E por conta disso, a gente tem continuado a frequentar. E num tem assim um período determinado, sempre a gente combina, passa assim 2

407 PEREIRA FILHO, Sebastião Faustino. Op. Cit., 2006, p. 36. 408 DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo:

Ed. Paulinas, 1989, p. 60. 409 Ibid. Id. 410 SILVA, Maria de Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 17 jun.

2010.

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meses, 3, a gente retorna lá o ambiente. Sempre tendo aquele carinho [...], de

zelar todas as vezes que a gente vai [...]411

.

A preferência coletiva em depositar fé e devoção em um ser, o qual o povo lhe atribui a

patente de “ser superior”, é marcada por vários fatores. Um deles, segundo a análise de

Pereira Filho, é definido

[...] pelo espaço ao qual o fiel está mais próximo como os santos padroeiros

das cidades, as entidades religiosas como um todo, que foram condicionadas

as pessoas desde cedo, pelos seus descendentes através da ritualização típica

das relações coletivas e individuais estabelecidas no lugar, eventos estes que reforçam sua fé

412.

Aproximo a explicação deste cientista social com meu objeto de estudo, ilustrando com

o depoimento de uma devota sobre o começo de sua devoção ao Ciganinho:

Assim, por mais freqüência, há 30 anos atrás, por conta de acompanhar a nossa mãe que, muito devota, tinha muito respeito assim dos ciganos em si, a

gente frequentava fazendo companhia [...], ia, não tinha assim aquela fé que

nós, né, éramos todos crianças. Sempre ela levava todos os filhos [...], lá [...]

Hoje a gente já faz com mais fervor do que antigamente. Antigamente a gente ia com aquela coisa de acompanhar [...], fazer companhia daquele

momento, de acompanhar as orações, fazer a limpeza no ambiente, levar

flores [...] A gente achava assim, achava assim, mais por aquele esporte, sua companhia. Mas hoje a gente já percebe assim com mais seriedade [...], o

que a gente tá fazendo, o momento que a gente visita o túmulo do

Ciganinho413

.

Pereira Filho esclarece que a fé e devoção que os fiéis católicos carregam por

“seres superiores”, primeiramente é em Jesus Cristo ou Deus. Trata-se de uma “[...]

consciência de poder de um ser superior universal supremo. Mas que se permite a

crença em seres de poder secundário, mesmo sabendo da sua “inferioridade” de

poder”414

.

O ato de fazer promessas a seres superiores não consiste em religião individual,

são aspectos da religião comum a toda igreja e não a sistemas religiosos distintos e

autônomos415

. É a igreja da qual ele é membro que ensina ao indivíduo o que são deuses

pessoais, qual é o seu papel, de que maneira deve entrar em contato com eles, de que maneira

411 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

15 jun. 2010. 412 PEREIRA FILHO, Sebastião Faustino. Op. Cit., 2006, p. 36. 413 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

15 jun. 2010. 414 PEREIRA FILHO, Sebastião Faustino. Op. Cit., 2006, p. 36. 415 Ibidem, p, 37.

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113

deve honrá-los416

.

Desta forma, a promessa acontece na consciência coletiva dos membros sociais, mas é

na consciência do indivíduo que ela se manifesta. Não se trata de uma religião independente,

há uma obediência hierárquica e isso é evidente nos participantes417

.

Diante dessa hierarquização, os seres superiores desempenham um papel de mediador

para o devoto, de intercessão entre o indivíduo e o ser superior universal (Deus). “Para o fiel,

o mediador advogará em seu nome perante o Deus às solicitações feitas no momento da

firmação do „contrato‟ estabelecido na promessa”418

.

Essa hierarquização e o poder de mediação são compreendidos entre os devotos do

Ciganinho: “[...] ele tem o poder, né, junto com Jesus Cristo, Deus nosso pai, né, ele ajudar a

gente. Com a ajuda de Deus nosso pai, de Cristo nosso irmão, Maria Santíssima nossa mãe

porque ele sofreu demais”419

; “Oh! Alma do Ciganim, favorecei que eu tô tão aperreada

[...]”420

.

Uma devota falou-me sorrindo sobre sua súplica ao Ciganinho como mediador a Deus:

“Diariamente, por tudo o que tenho, eu ponho minhas mãos pra cima: „Meu Deus, meu

Ciganinho, me ajuda!‟ Todos os dias eu peço pra ele, incrível, incrível!”421

A forma cruel como Roldão foi morto, no imaginário coletivo, fê-lo conquistar um

poder na hierarquia espiritual entre Deus e os homens, conforme relatos destes visitantes no

dia de finados: “Porque lá do jeito que ele foi morto, né, e a gente pede a ele, ele pode obrar

milagre”422

.

Ah num sei, eu acho assim pelo jeito que ele sofreu na hora da morte [...],

pelo jeito [...], eu acho que se existe assim o perdão de Deus, deu aquela

força pra ele lá onde ele está pra ele fazer o milagre [...] quando a

gente [...], eu acho que esse é o momento [...] quando a gente conversa

com ele, pede, faz o pedido, aí a gente recebe a benção423

.

Numa visita também, registrei uma oração proclamada espontaneamente por uma

416 PEREIRA FILHO, Sebastião Faustino. Op. Cit., 2006, p. 30. 417 Ibidem. 418 Ibidem, 37. 419 CASTRO, Maria Durvalina de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 16 jun. 2010. 420 VAZ, Maria das Graças Barbosa do Rego. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

Esperantina, 14 jun. 2010. 421 CARVALHO, Maria de Jesus de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

Esperantina, 11 ago. 2010. 422 SILVA, Maria do Socorro. (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia de finados). Depoimento concedido a

Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 423 CARVALHO, Maria da Conceição. (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia de finados). Depoimento

concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009.

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devota diante do túmulo do Roldão:

Deus, Nosso Senhor e Nossa Senhora, vós, que a gente fazer a promessa

com ele [Ciganinho] e é de achar valido, como eu fiz. Deus Nosso Senhor, Nossa Senhora e ele consegui pra um bom lugar, salve as almas todas, em

paz em salvamento. Amém!

Nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo. Amém Deus Nosso Senhor, Nossa Senhora, vós que me daí forças, vós me daí

coragem, vós me daí uma boa salvação. Como eu desejo as almas se salvar

pra bom lugar, pedindo a Deus, de bom coração, que eu seja muito feliz assim mesmo doente, mas Deus Nosso Senhor consegui eu viver muitos

anos de vida e felicidade e fortuna. Amém. Em nome do Pai, do Filho, do

Espírito Santo. Oh meu Jesus, louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus

Nosso Senhor e Nossa Senhora, a bênção meu pai do céu, a bênção minha mãe do céu e da terra, como minha já faleceu, noutro mundo em paz

salvamento. Deus salve todos, eu peço a Deus de bom coração. Amém!424

.

Através do fenômeno da mediação, especula-se a dimensão da fé do fiel conforme o

resultado da negociação. Mesmo que a crença seja compreendida como algo incalculável, sem

medida concreta, deve-se considerar o caráter de satisfação perante o desfecho do caso. A

graça alcançada faz o fiel reforçar sua fé no ser evocado425

.

Percebi nas falas dos devotos que a fé em Roldão, enquanto ser espiritual milagreiro, é

reforçada a partir de uma experiência de graça alcançada.

Ah! Por que ele, todas as graças que pedi a ele, eu fui concedida com a graça

dele. Já tive bastante frágil de saúde e ele me ajudou. Pedi ajuda e ele me

ajudou. Todas as pessoas que vêm aqui pedir ajuda em sufrágio à alma dele,

ele ajuda. E é assim426

.

Uma senhora comentou: “Ah! porque tudo que eu peço a ele, ele me dá, com a força de

Deus”427

. Ainda sobre a questão da fé reforçada ao Ciganinho, uma devota relatou: “Pela

minha própria experiência, que tive comigo, e com outras pessoas que lá estão dando seu

depoimento”428

.

O procedimento do pagamento de promessa ou quitação do “débito”, em geral, é

estabelecido no momento da realização, como forma de garantia no processo de negociação

424 SILVA, Maria de Deus. (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia de finados). Depoimento concedido a

Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 425 PEREIRA FILHO, Sebastião Faustino. Op. Cit., 2006. 426 SILVA, Maria José. (Visitante ao Cemitério do Ciganinho dia de finados). Depoimento concedido a Maria

Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 427 SANTOS, Juracy Pereira dos. (Visitante ao Cemitério do Ciganinho dia de finados). ). Depoimento concedido

a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 428 CARVALHO, Maria de Jesus de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Teresina,

11 ago. 2010.

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115

entre as partes envolvidas429

. As promessas podem ser pagas sob várias formas. Destaco aqui,

o sacrifício físico (autoflagelo e esforço), por abdicação (espiritual) de algo que a pessoa tem

muito apreço e resiste ao prazer que isso proporcionava; sacrifício material (oferendas) ao ser

ou a alguém. Este último é chamado de beneficiário de terceiro grau. Outra forma de se pagar

promessa é através de preces e orações ao ser solicitante430

.

Essa forma de pagamento foi a mais presente entre os devotos do Ciganinho: “Eu

acendi umas velas e rezei um padre nosso pra alma dele”431

. “Eu peço, a minha graça é pra

rezar pra eles, nunca fiz pra visitar, eu faço é pra mim rezar. E assim eu rezo na intenção dele,

e rezo, sem ir lá. E alcanço minhas graças”432

. “Não há uma noite que eu não reze pra alma

dele, agradecendo tanta coisa que ele já tem me mostrado, assim, milagres, sou muito devota a

ele”433

.

429 PEREIRA FILHO, Sebastião Faustino. Op. Cit., 2006. 430 Ibidem. 431 SILVA, Antônio Francisco da. (Visitante do Cemitério do Ciganinho no dia de finados). Depoimento

concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 02 nov. 2009. 432 SILVA, Maria de Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 17 jun.

2010. 433 VAZ, Maria das Graças Barbosa do Rego. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

Esperantina, 14 jun. 2010.

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Figura 08: Fiéis acendem velas no túmulo

do Ciganinho no dia de finados

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Figura 09: Fiéis acendem velas no Jatobazeiro

Além das preces e orações, o pagamento se estende também a visitas ao cemitério, onde

no túmulo do Roldão, os fiéis depositam flores, acendem velas, e em muitos casos essas

visitas chegam a ser frequentes, transformando-se em devoção: “Fiquei todo tempo

frequentando, acendendo vela pra ele, pro Ciganim”434

.

Eu, numa dificuldade, muito aperreada, eu me apeguei com a alma do

Ciganinho, pra mim ir pagar a promessa de pé e rezar um terço e colocar

vela, aí fui valida. E eu alcancei a minha promessa, o que eu alcancei foi uma graça, pra mim. Quando eu alcancei, eu fui pagar, paguei minha

promessa. Aí depois, outros tempos, de novo eu estava também aperreada,

eu me apeguei de novo com a alma do Ciganinho e fazer a mesma coisa e pagar a promessa, rezar um terço pra ele, deixar vela aí eu fiz de novo,

quando eu alcancei, eu obtive a graça aí eu fui pagar a promessa. Aí eu

paguei a promessa e até hoje eu gosto de ir lá fazer minhas preces [...]

434 VAZ, Maria das Graças Barbosa do Rego. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

Esperantina, 14 jun. 2010.

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Quando estou assim com dificuldade eu rezo pra ele [... ]eu rezava todo

santo dia pra alma do Ciganinho [...]435

.

Eu frequento é 04 vezes no ano, na época em que ele faz, completa, é, a data

do falecimento que consta lá, tem a data. No mês de setembro, quando no festejo de Esperantina, eu vou até lá. No festejo de janeiro, também em

Esperantina, eu também chego até lá no cemitério. E normalmente são

quatro vezes. Tudo que eu peço, que eu quero, conseguir alguma coisa eu sempre coloco o Ciganinho, faço minhas promessas. Minha fé é tão grande

que realmente tem dado certo436

.

Já as visitas de Dona Bernardete não são fixadas pelo calendário:

E num tem assim um período determinado, sempre a gente combina, passa

assim 2 meses a 3, a gente retorna lá o ambiente. Sempre tendo aquele

carinho [...], de zelar todas as vezes que a gente vai [...], frequentar [...] lá o

local onde está o túmulo, levar flores, zelar pelo ambiente e aquele cuidado [...] de frequentar para não deixar abandonado, o ritual de costume [...],

retirar a sujeira [...] lá no cemitério, mas logo logo a gente vai estar

retornando [...], com fé no Ciganinho437

.

A devoção de ir com frequência ao Cemitério representa um exercício de afirmação de

fé no Ciganinho: “Marcar presença, agradecer de corpo ali presente, dizer minhas palavras

bonitas, rezar, acender velas e fortalecer mais diante dele, presente, levar minha fé”438

. Para

Dona Bernardete Rodrigues, a devoção significa “[...] a questão da fé [...], da nossa

religiosidade, de levar luzes, levar flores, lembrar o momento do massacre”439

.

Outras formas de pagamento de promessas encontrada por devotos do Ciganinho foi o

zelo pelo santuário. Cito o exemplo da capela restaurada por Dona Jesus Carvalho: “Coloquei

até lá a plaquinha com meu nome, incrementei a plaquinha no túmulo, tudo recuperado, teto,

paredes, juntei aquelas peças [ex-votos] que estava tudo, pegando sol, chuva, que não tinha

mais local”440

. E também a reconstrução da cerca do cemitério por Maria das Graças,

conhecida em Esperantina como Dona Gracy:

435 CASTRO, Maria Durvalina de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

16 jun. 2010. 436 CARVALHO, Maria de Jesus de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 11 ago. 2010. 437 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

15 jun. 2010. 438 CARVALHO, Maria de Jesus de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Teresina,

11 ago. 2010. 439 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

16 jun. 2010. 440 CARVALHO, Maria de Jesus de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Teresina,

11 ago. 2010.

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Porque eu já fiz uma promessa. Aquele cemitério quando chegamos aqui, a

cerca estava toda quebrada. E aí aconteceu um caso na minha família, aí eu

tava desesperada, como era que, como era que eu via aquela fé ali me peguei com a alma dele, mandei cercar todim de arame, pegou 14 dias de serviço, só

com meu suor e do José. Só teve uma senhora que me deu uma ajuda, a D.

Maria, a mãe do Pe. Jurandir, ela era muito religiosa, ela vinha muito aí

pagar promessa aí eu falando: „Oh! Maria, Maria agora tô mandando fazer um serviço lá no Ciganinho!‟ „Oh! D. Gracy, como é?‟. Aí eu disse:

mandando cercar tudim. Pois eu vou lhe dar uma ajuda. Aí parece que ela

me deu um dinheiro, pagar um trabalhador ou foi 2. Todo dia o José ia. Nós pagamos o trabalhador, fizemos, compramos o arame, fizemos

441.

No universo da religiosidade popular, ainda no que se refere ao pagamento de

promessas, destaco a figura do ex-voto, que significa quadro, pintura ou objeto, representando

partes do corpo, que se colocam em um santuário, para o pagamento de uma promessa ou o

agradecimento de um favor ou uma graça concedida por um santo, ou seja, um voto que foi

alcançado. Os materiais dos ex-votos são variados, entre eles: madeira, cera, gesso, papelão,

441 VAZ, Maria das Graças Barbosa do Rego. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

Esperantina, 14 jun. 2010.

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Figura 10: Placado túmulo restaurado pela devota Maria de Jesus de Sá

Carvalho

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tecido, geralmente das partes enfermas do corpo humano442

. Assim, “[...] constituem uma

forma de expressão singular de religiosidade, e no caso do Nordeste do Brasil, um catolicismo

rústico”443

.

Embora o valor artístico do ex-voto esteja no artesanato, pois a peça é laboriosamente

trabalhada, muitas das vezes pelo próprio beneficiado da graça, que intenta caprichar na

modelagem, para demonstrar ao santo da sua devoção o quanto está agradecido. O seu valor

documental é bem mais amplo. Além dos objetos votivos (partes do corpo humano

modeladas), o ex-voto abrange também:

[...] os zoomorfos, representando miniaturas de bois, cavalos, jumentos, porcos, carneiros, galinhas. E ainda, os simbólicos – fitas que têm a medida

da cabeça, velas do tamanho de uma criança, miniaturas de embarcações,

casas, máquinas de costura, pilões debarro, instrumentos de trabalho, e aqueles em objetos, como jóias, peças de vestuário, mechas de cabelo,

garrafas, cachimbos, baralhos, dados, bozós, muletas, óculos444

.

O termo ex-voto é uma abreviação latina de „Ex Voto Sucepto‟ („por um voto

alcançado‟, em consequência de um voto). Sua origem é desconhecida, mas, sabe-se que eram

muito usados na Antiguidade, sendo uma prática tão antiga quanto a história da

humanidade445

.

Nas Escrituras Sagradas há presença de relatos que explicitam promessas da cultura

hebraica, onde os homens, quando estavam em desespero ou dificuldade, formavam pactos

com as divindades (Gênesis 28: 20), logo era estabelecida uma aliança entre homens e

divindades, culminando com a realização de um ato religioso446

.

Os ex-votos contam sempre uma história particular, de um indivíduo ou grupo. Como

também, ao mesmo tempo, revelam uma outra história, a das crenças e devoções das

populações que os utilizam447

.

442 FERRETTI, Sérgio e LINDOSO, Gerson. O ex-voto e sua dimensão simbólico-comunicativa no festejo do

padroeiro do Maranhão: São José de Ribamar. In: FOLKCOM. Do ex-voto à indústria dos milagres: a

comunicação dos pagadores de promessas. DOURADO, J. L.; GOBBI, M. C.;MELO, J. M.(organizadores).

Teresina: Halley, 2006. 443 SABBATINI, Marcelo. O museu de ex-votos de Padre Cícero: um olhar museológico sobre o turismo

religioso em Juazeiro do Norte. In: FOLKCOM. Do ex-voto à indústria do milagre: a comunicação dos pagadores de promessas. DOURADO, J. L.; GOBBI, M. C.; MELO, J. M.(organizadores). Teresina, Halley,

2006, p. 249. 444 BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: um estudo dos agentes dos meios populares de informação de fatos e

expressão de idéias. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. 445 FERRETTI, Sérgio e LINDOSO, Gerson. Op. Cit., 2006. 446 Ibidem. 447 NEVES, Guilherme Pereira. Milagres do cotidiano.

http://revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=2218>. Revista de História da Biblioteca Nacional.

Acessado em 16 out. 2010.

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Para Gerson Lindoso & Sérgio Ferreti, “os santuários são os locais sagrados em que

os religiosos depositam seus ex-votos, em tom de agradecimento por um feito divino”448

.

Ilustro como santuário, o túmulo do Ciganinho Roldão, onde é comum a presença de uma

variedade de ex-votos – cabeças, pernas, pés, braços moldados em madeira ou barro –

como símbolos que lembram as graças alcançadas por Deus e por sua intercessão.

Dona Bernardete Rodrigues, ao submeter-se a uma cirurgia cardíaca, sua mãe fez uma

promessa ao Ciganinho que, se tivesse êxito na cirurgia, depositaria um ex-voto em forma de

coração no túmulo do cigano. Em outra circunstância de aflição da família de Dona

Bernardete, sua mãe novamente apegou-se à alma do Ciganinho, cuja gratidão seria também

expressa em ex-voto.

[...] teve um acidente de um conhecido nosso, um acidente de moto e aí eu

pedi muito assim que retornasse à vida, a gente tinha medo que ele ficasse

com sequelas e, graças a Deus, ele voltou tá uma pessoa muito boa de saúde não ficou com nenhuma sequela, a mãe mandou fazer a cabeça depositou lá

448 FERRETTI, Sérgio e LINDOSO, Gerson. Op. Cit., 2006, p. 617.

Figura 11: Ex-votos depositados ao lado do túmulo do

Ciganinho

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no local [...]449

.

Figura 12: Ex-votos de pernas

Figura 13: Ex-votos de seios

449 RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvaho e Silva. Esperantina,

15 jun. 2010.

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Figura 14: Ex-voto de uma mão

Figura 15: Ex-votos variados

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Muito além de simples objetos nos seus variados tipos de matérias-primas, os ex-votos

têm a função de expressar alguma idéia, mensagem ou comunicação. São classificados

também como símbolos padronizados, que transmitem informação no domínio público, sendo

as relações dos símbolos asserções arbitrárias de similaridade450

. Assim, “os ex-votos são

ferramentas importantes de mediação simbólica entre o profano e o sagrado e cada um deles

vai conter um significado diferenciado de acordo com as pretensões de cada devoto sendo as

formas testemunhais de que uma intercessão divina foi efetuada”451

.

Como abordei anteriormente, as promessas só acontecem num momento de

necessidade. Para Durkheim, “[...] se é verdade que o homem depende dos seus deuses, a

dependência é recíproca. Os deuses, também, têm necessidade do homem; sem as oferendas e

os sacrifícios eles morreriam”452

. Sob esse aspecto, existe apenas um plano – o que o homem

está, o outro plano, é criação que está na imaginação. E é nesse último onde estão situados os

fenômenos religiosos. As promessas como rito fortalecido pelas crenças é de cunho

meramente subjetivo ou de opinião:

[...] é mais uma manifestação exercida pelos seguidores religiosos que se

processam de acordo com suas regras. E num jogo de razão e fé, dão continuidade à religião. Que provavelmente está aqui antes da filosofia e da

ciência, de quem ambas podem ter nascido, e permanecerá por muito tempo.

Pois é na ausência da filosofia e da ciência que o homem busca respostas

para suas inquietações diárias. E mesmo quando as duas não mais existirem para alguém ou para o homem, talvez a religião seja o refúgio das suas

angústias e das suas realizações 453

.

Entendo essa relação de reciprocidade presente entre o Ciganinho e seus devotos. Nas

entrevistas colhidas, percebi que o êxito de graças alcançadas reforçou a fé dos fiéis no

menino Cigano. Foi comum ouvir relatos como esse: “Eu tenho muita fé nele porque já obtive

as graças que eu pedi”454

, “Minha fé é dobrada. Sempre sou acolhida”455

.

Esses devotos passaram a buscar continuadamente a mediação do Ciganinho em seus

momentos de aflição, dirigindo-se até o túmulo do Roldão: “Vou com fé na alma dele”456

,

como afirmou D. Gracy ao comentar sobre a motivação de suas idas constantes ao Cemitério.

450 FERRETTI, Sérgio e LINDOSO, Gerson. Op. Cit., 2006. 451 Ibidem, p. 617. 452 DURKHEIM, Émile. Op. Cit., 1989, p. 69-70. 453 PEREIRA FILHO, Sebastião Faustino. Op. Cit., 2006, p. 35. 454 CASTRO, Maria Durvalina de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

16 jun. 2010 455 CARVALHO, Maria de Jesus de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Teresina,

11 ago. 2010. 456 VAZ, Maria das Graças Barbosa do Rego. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

Esperantina, 14 jun. 2010.

Figura 16: Ex-votos variados

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125

Dona Durvalina também tem a mesma prática: “Eu tenho muita fé, por qualquer coisa eu vou

lá, eu peço e alcanço a graça, viu, tenho muita fé nele”457

. Em suas casas, nos momentos de

orações, também são espaços onde devotos reforçam sua fé: “Toda coisa assim que tá um

assim um pouco difícil assim, aí, coisa assim, uma doença, uma coisa assim, eu me pego com

a alma do Ciganinho: „Oh! Alma do Ciganim, favorecei que eu to tão aperreada‟”458

.

Essas experiências de graças alcançadas, fazem o menino Cigano ser uma presença

constante da vida dos fiéis, que para muitos, tornou-se já uma relação de afeto: “Mas, eu gosto

dele! Ave-maria! Adoro o Ciganinho!”459

. As experiências são repassadas para outras pessoas,

e a procura ao Menino Cigano Milagreiro vai aumentando, como foi o relato de Dona Jesus:

“[...] pessoas também que eu contei minha história e passaram a frequentar também levando

sua história que conseguiu, é, recuperar alguma coisa”460

, e Dona Durvalina, quando pela

primeira vez apegou-se à alma da criança:

Aí eu com dificuldade, aí uma pessoa me disse assim: „Oh, Durvalina! A alma do Ciganinho é tão forte, Ave-Maria!‟. Eu disse que já tinha feito

promessa com santo [...], mas não tinha alcançado ainda. Ela disse: „Oh!

Meu Deus do céu, a alma do Ciganinho é tão forte, faça uma promessa com ele, se apegue com ele!‟. Aí eu peguei

461.

Entendo aí uma relação de dependência destes fiéis ao Menino Cigano. É no momento

de suas aflições que buscam o Ciganinho como mediador entre os homens Deus. A

dependência é também recíproca, pois são esses devotos, suas experiências de graças

alcançadas que fazem do Ciganinho um ser espiritual milagreiro, um inocente que teve uma

morte cruel, um mártir, e por isso alcançou um espaço de “poder” no mundo espiritual. Mas, é

através das orações, promessas, graças atendidas, visitas ao túmulo do Ciganinho, ex-votos

que se dá o reconhecimento do Roldão diante de Deus. Assim, o Ciganinho também precisa

dos devotos para se afirmar nessa posição de destaque.

457 CASTRO, Maria Durvalina de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

16 jun. 2010. 458 VAZ, Maria das Graças Barbosa do Rego. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina, 14 jun. 2010. 459 CASTRO, Maria Durvalina de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

16 jun. 2010. 460 CARVALHO, Maria de Jesus de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

Esperantina, Teresina, 11 ago. 2010. 461 CASTRO, Maria Durvalina de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

16 jun. 201

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Os devotos esperantinenses costumam andar com fé no pequeno errante. As visitas ao

Cemitério acontecem com freqüência, ex-votos são depositados no túmulo em agradecimento

às graças alcançadas, os pedidos a ele são renovados em momentos de orações. Assim a fé

destes devotos no Menino Cigano não costuma falhar.

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127

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os ciganos historicamente são representados sob formas múltiplas, de alegres,

aventureiros, misteriosos a velhacos, astutos e trapaceiros. Vindos ao Brasil banidos pelo

degredo colonial, integraram-se na nova pátria como mercadores ambulantes, artistas

circenses, fazendo a buena-dicha, comerciando escravos, e demais ocupações para garantir a

sobrevivência numa terra onde a ordem social do trabalho já estava rigorosamente

estratificada.

Mesmo integrados na nova sociedade pelo critério da utilidade social, condição que não

lhes foi dada nas sociedades européias, os ciganos ainda eram vistos sob o signo da

desconfiança. “Bandidos”, “ladrões”, “sujos”, “vagabundos”, “desordeiros”, eram alguns dos

adjetivos com que lhes qualificavam. A boa sociedade que necessitava dos seus serviços,

como rezas para recuperar escravos fugidos, leitura de cartas e das mãos para prever o futuro

e comprar escravos a baixo custo, rechaçava-os como indivíduos, qualificando-os com tais

adjetivos. A elite incomodava-se com o modo pelo qual os ciganos dispunham do seu tempo:

ignoravam tarefas mensuradas e realizadas de forma cíclica e rotineira, desconheciam o

controle da égide do relógio, como também o tempo linear e uniformemente dividido. Por

conta disso, os ciganos eram vistos como ociosos, em uma sociedade em que o ócio era um

privilégio que deveria ser exclusivo da elite. Os demais elementos sociais deveriam trabalhar

para manter a tríade: trabalho, ordem e progresso. Por essa perspectiva, os ciganos eram um

péssimo exemplo para os trabalhadores. A solução encontrada pela classe dominante para

livrar-se desse povo “incorrigível” foi a expulsão: o lugar ideal para os ciganos era sempre o

lugar mais distante. Em outro momento, essa expulsão é efetuada com mais violência através

da perseguição policial. As correrias de ciganos formaram o ápice de perseguição e violência

policial, que resultavam em aprisionamentos, tiroteios e morte de grupos, entre o final do

século XIX e início do século XX.

Uma dessas correrias aconteceu em terras piauienses. Ciganos armados, acusados de

práticas de delitos aos cidadãos com os quais negociavam, são perseguidos pela polícia militar

com o intuito de bani-los do nosso território. Muito mais que uma simples expulsão, a correria

piauiense terminou em um trágico massacre no povoado Retiro da Boa Esperança. Os corpos

dos ciganos massacrados após velório inconvencional, sob a sombra de três mangueiras,

seguem para sepultamento amontoados num carro de boi e são jogados em vala única, uns

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sobre os outros. O sentimento de piedade diante da morte trágica, a ausência do ritual cristão

diante do velório - sem mortalha e caixão, e a animalização do sepultamento, transformaram

esses errantes “errados” em mártires, segundo o imaginário coletivo. Mesmo tendo suas falhas

suavizadas por esta compaixão, os ciganos ainda são relembrados como “errados” pelos

esperantinenses. O ciganinho Roldão, por ser um inocente, ficou isento de imagem negativa.

A morte trágica, acompanhada da condição pueril, fizeram-no conquistar um espaço de poder

no mundo espiritual, segundo o imaginário popular. Daí, as pessoas se apegam à sua alma nos

momentos de dificuldade, e o pequeno nômade passa a interceder por elas junto a Deus.

Promessas, visitas ao cemitério, ex-votos, são algumas das práticas de devoção religiosa ao

menino cigano.

Os ciganos que erravam em terras piauienses eram adjetivados como trapaceiros,

ladrões, bandidos, desordeiros: salteadores errantes. Violentamente perseguidos foram

desrespeitados como indivíduos, após mortos, foram desrespeitados enquanto cristãos. Mas, o

sentimento de piedade daqueles que, culturalmente rechaçavam-nos de bandidos, acabou por

ressignificá-los em mártires e milagreiro, agregando assim novas representações sociais e

culturais ao grupo errante.

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129

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Esperantina, 13 fev. 1998.

ARAÚJO, Dimas Amorim. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

Esperantina, 05 out. 1997.

CARVALHO, Maria da Conceição. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e

Silva. Esperantina, 02 nov. 2009.

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CARVALHO, Maria de Jesus de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e

Silva. Teresina, 11 ago. 2010.

CARVALHO, Rosa. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

Esperantina, 02 nov. 2009.

CASTRO, Maria Durvalina de Sá. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e

Silva. Esperantina, 16 jun. 2010.

CASTRO, Solange. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

Esperantina, 02 nov. 2009.

CASTRO, Valdemir Miranda de. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

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CONCEIÇÃO, Francisca Maria da. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e

Silva. Esperantina, 02 nov. 2009.

CRUZ, Francisco das Chagas. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

Esperantina, 02 nov. 2009.

FRANCO, Paulo Memória. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

Esperantina, 06 dez. 1997.

LEAL, Maria de Fátima. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

Esperantina, 02 nov. 2009.

NASCIMENTO, Antônio André. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e

Silva. Esperantina, 02 nov. 2009.

PEREIRA, Francisco Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

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PEREIRA, José. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva. Esperantina,

02 nov. 2009.

PEREIRA, Margarida Alves. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

Esperantina, 08 dez. 1997.

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RODRIGUES, Bernardete da Silva. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e

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SÁ FILHO, Bernardo Pereira de. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

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Esperantina, 02 nov. 2009.

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Esperantina, 02 nov. 2009.

SOUSA, Maria Carmelita. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

Esperantina, 02 nov. 2009.

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Esperantina, 02 nov. 2009.

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Esperantina, 02 nov. 2009.

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Esperantina, 02 nov. 2009.

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Esperantina, 02 nov. 2009.

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SILVA, Maria José. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

Esperantina, 02 nov. 2009.

SANTOS, Juracy Pereira dos. Depoimento concedido a Maria Auxiliadora Carvalho e Silva.

Esperantina, 02 nov. 2009.

VAZ, Maria das Graças Barbosa do Rego. Entrevista concedida à Maria Auxiliadora

Carvalho e Silva. Esperantina, 14 jun. 2010.

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ROTEIRO DAS ENTREVISTAS

Nome do devoto:

Idade:

Profissão:

1. O senhor [a] já visitou o cemitério onde os ciganos estão enterrados? E o cemitério onde

o ciganinho está enterrado?

2. Com qual freqüência o senhor [a] visita esses lugares [o cemitério onde estão enterrados

os ciganos e o cemitério onde está enterrado o ciganinho?].

3. O senhor [a] visita o cemitério sempre ou somente no dia de finados? Por quê?

4. O que senhor [a] sabe sobre a história da morte dos Ciganos em Esperantina?

5. Há quanto tempo o senhor [a] conhece essa manifestação de fé [essa piedade, as

promessas que as pessoas fazem aos ciganos [ou ao ciganinho]?

6. O que motiva o senhor [a] a vir ao cemitério visitar o túmulo dos ciganos [e o túmulo do

ciganinho]?

7. Há quanto temo o senhor [a] vem a este lugar?

8. Conte a sua experiência nessas vindas ao cemitério [ao túmulo do ciganinho]?

9. O senhor [a] já fez alguma promessa ao ciganinho?

10. O senhor [a] acredita que os ciganos são milagrosos? Por quê?

11. O senhor [a] acredita que o ciganinho é milagroso? Por quê?

12. O senhor [a] já fez alguma promessa para os ciganos ou ciganinhos? [e outras pessoas já

fizeram? Que tipo de promessa?]

13. O senhor [a], depois da graça alcançada, mantém alguma devoção aos Ciganos ou ao

Ciganinho?

14. O senhor [a] fez [ou faz] promessas ou se “apega” [se vale] dos ciganos ou ciganinho

em momentos difíceis?

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1) Você já visitou o cemitério onde os ciganos estão enterrados, aquele perto do S. Chico

Quaresma?

Já, várias vezes.

2) E o cemitério do Ciganinho?

Também, muitas vezes.

3) Qual a freqüência que você visita esses lugares, tanto o cemitério dos Ciganos, como

o do Ciganinho?

Olha, dos ciganos ali na Cel José Fortes, geralmente é no período de finados, em

novembro. Agora o do Ciganinho, já na zona rural é com mais freqüência [...], não tem assim

um período determinado.

4) O que você sabe sobre a morte dos ciganos em Esperantina?

Eu sei que, o que ficou bem foi a questão do massacre [...], do poder, da aquisição dos

Ficha Técnica

Tipo de entrevista: Temática

Entrevistador: Maria Auxiliadora Carvalho e Silva

Entrevistado: Bernadete da Silva Rodrigues

Idade: 50 anos

Profissão: Professora

Levantamento de dados: Maria Auxiliadora Carvalho e Silva

Pesquisa e elaboração do roteiro: Maria Auxiliadora Carvalho e Silva

Transcrição: Maria Auxiliadora Carvalho e Silva

Conferência da transcrição: Maria Auxiliadora Carvalho e Silva

Copidesque: Maria Auxiliadora Carvalho e Silva

Técnico de gravação: Maria Auxiliadora Carvalho e Silva

Local: Esperantina

Data: 15 de junho de 2010

Duração: 11 min 22 segundos

Mp4 do áudio

Páginas: 04

A escolha da entrevistada se justifica por ser devota do Ciganinho há 30 anos

Temas: Piauí. Memória. Religiosidade. Devoção Popular.

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pertences que eles tinham, eles estavam trazendo bastante ouro [...], e também o medo que as

pessoas tinha [...], deles saquearam as casas por conta da própria cultura que eles tinham de

tirar os animais se apossar [...] das terras, é o que a gente sabe um pouco da história dos

ciganos.

5) Há quanto tempo você conhece essa manifestação de fé em que as pessoas se apegam

à alma dos Ciganos e do Ciganinho?

Assim, por mais freqüência, há 30 anos atrás, por conta de acompanhar a nossa mãe

que muito devota tinha muito respeito assim dos ciganos em si, a gente freqüentava fazendo

companhia [...], ia não tinha assim aquela fé que nós temos hoje [...]. Hoje a gente já faz com

mais fervoroso do que antigamente. Antigamente a gente ia com aquela coisa de acompanhar

[...], fazer companhia daquele momento de acompanhar as orações, fazer a limpeza no

ambiente, levar flores [...]. A gente achava assim, achava assim mais por aquele esporte [...]

éramos todos crianças. Sempre ela levava todos os filhos [...], na sua companhia. Mas hoje a

gente já percebe assim com mais seriedade [...], o que a gente tá fazendo o momento que a

gente visita o túmulo do Ciganinho.

6) Que motivo lhe leva a visitar o túmulo dos Ciganos no Centro e do Ciganinho na Zona

Rural?

Mas assim [...], a questão da fé [...], da nossa religiosidade de levar luzes, levar flores,

lembrar o momento do massacre. Ao mesmo tempo a gente fica assim é pensativo [...], que

talvez se tivesse agido de forma diferente [...], não teria tido tanta morte, tanto sangue

derramado na nossa terra. A gente se pergunta [...], será que foi correto da forma com que

aconteceu [...] do momento? Poderia ter sido diferente [...] se tivesse deixado eles entrar na

cidade como eles já vinham já passando por outras cidades e nada aconteceu. Por que

Esperantina? Será se estava predestinado a acontecer isso?

7) Há quanto tempo você vem a esses cemitérios?

Como eu estava falando [...], há 30 anos atrás, a gente tem freqüentado mais. Eu fiz

uma cirurgia por volta de 1970 [...]1977. E por conta da cirurgia, minha mãe e outras pessoas

fizeram é, bastante promessas [...]. E essas promessas era pra que a gente visitasse lá o túmulo

do Ciganinho, levasse água benta, levasse flores, depositasse lá o coração, [...] de madeira.

Foi uma cirurgia cardíaca, de ponte safena. Hoje eu sou portadora de 3 pontes safenas. E por

conta disso, a gente tem continuado a frequentar. E num tem assim um período determinado,

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sempre a gente combina, passa assim 2 meses, 3, a gente retorna lá o ambiente. Sempre tendo

aquele carinho [...], de zelar todas as vezes que a gente vai [...]. A gente fica triste [...], porque

a outra vez agora no mês de maio, nós estivemos lá no ambiente e ficamos assim receosos

[...], por conta de uma pessoa que freqüenta lá o ambiente danificou, queimou o mausoléu, é

os ex-votos que tinha lá, os ex-votos muito milagre, perna, cabeça, braços, que as pessoas

levavam [...], depositavam lá. A gente observa que foi danificado [...], é, ficamos surpresos

porque eu não sabia que estava acontecendo isso nesse momento, [...]. E passava um pouco

tempo que a gente retornava a gente fazia o ritual de costume [...], retirar a sujeira que tinha lá

no cemitério, mas logo logo a gente vai estar retornando [...], com fé no Ciganinho.

8) Mas você mesma já fez promessa pro Ciganinho?

Já . Já, assim [...], de colocar [...], pedir por conta [...], de tratamento de saúde, teve um

acidente de um conhecido nosso, um acidente de moto e aí eu pedi muito assim que retornasse

à vida, a gente tinha medo que ele ficasse com sequelas e, graças a Deus, ele voltou tá uma

pessoa muito boa de saúde não ficou com nenhuma sequela, a mãe mandou fazer a cabeça

depositou lá no local [...]. E sempre a gente tem muita fé, eu falo assim com toda franqueza

[...], sempre que estou precisando conseguir alguma coisa eu me pego ao Ciganinho [...], e sou

sempre valida.

9) E você acredita que os Ciganos adultos são milagrosos?

Eu nunca penso assim nesses outros não. É eu penso mais no Ciganinho lá, não sei se

existe outras pessoas que têm devoção aos ciganos. Eu falo desse da zona rural do Ciganinho.

Eu acho assim, por conta de ter sido um jovem, a distância que eles estavam e onde ele

percorreu, correndo, se escondendo dos policiais, tentando fugir, eu acho que foi quem mais

sofreu aflição. Minha vó sempre contava que eram momento eles passavam, depois que se

acabou o massacre dentro da carroça né, várias pessoas, senhoras já de idade né,

criança...mortas para levar para jogar lá no cemitério.

Eu vejo assim...meu Deus ele correu tanto para tentar fugir da morte né, tentando se

defender das balas e lá tão distante porque leva assim 2 ou 3 horas para chegar no local né a

pé, uma distância até boa, e ele correndo né, tentando se defender e ainda terminou morrendo.

Então eu sempre lembro só dele do Ciganinho.

10) Você já fez alguma promessa pros Ciganos adultos?

Não. Não. Nunca fiz.

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11) Depois dessa graça alcançada você mantém alguma devoção aos Ciganos e ao

Ciganinho?

Ao ciganinho [...], de fazer, frequentar [...] lá o local onde está o túmulo, levar flores,

zelar pelo ambiente e aquele cuidado [...] de frequentar para não deixar abandonado. Eu

sempre falava [...] que um dia tivesse assim uma condição melhor, fazer um ambiente que

marcasse, pois Esperantina hoje de uma certa forma, ela é conhecida como época, como a

questão do massacre dos ciganos, então não é que a gente tivesse assim, mas que o cemitério

tivesse, é, fosse mais zeloso, era no centro da cidade. Mas é incrível a gente vê assim o

abandono por parte da gestão pública, o matagal é demais, a gente percebe que, é, num tem,

se não for o período de finados, outro momento ele não é visitado. Ele é, a gente sabe, que

além dos ciganos, existe outras pessoas [...] de famílias renomadas de Esperantina que têm

túmulo lá naquele local [...], mas a gente percebe assim o abandono por parte também dos

próprios familiares [...], não só da gestão pública, os próprios familiares, os túmulos

quebrados [...]. Já existe outras residências, já existe comércio no local onde a gente sabe que

ali tem túmulo