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0 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS Elenice Maria Nery POR ENTRE CÓRREGOS E FAXINAS: A IDENTIDADE SERTANEJA EM CURRAL DE SERRAS DE ALVINA GAMEIRO Teresina (PI) 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS

Elenice Maria Nery

POR ENTRE CÓRREGOS E FAXINAS: A IDENTIDADE SERTANEJA EM

CURRAL DE SERRAS DE ALVINA GAMEIRO

Teresina (PI)

2011

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ELENICE MARIA NERY

POR ENTRE CÓRREGOS E FAXINAS: A IDENTIDADE SERTANEJA EM

CURRAL DE SERRAS DE ALVINA GAMEIRO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Piauí, como requisito à obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientadora: Profa. Dra. Maria do Socorro Rios Magalhães

Teresina (PI)

2011

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ELENICE MARIA NERY

POR ENTRE CÓRREGOS E FAXINAS: A IDENTIDADE SERTANEJA EM

CURRAL DE SERRAS DE ALVINA GAMEIRO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Piauí, como requisito à obtenção do título de Mestre em Letras.

Área de Concentração: Estudos Literários

Aprovada em: 28 / 07 / 2011

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________ Profa. Dra. Maria do Socorro Rios Magalhães – UFPI

Presidente

_____________________________________________________ Profa. Dra. Joseane Maia Santos Silva – UEMA

Examinadora

_____________________________________________________ Prof. Dr. Diógenes Buenos Aires de Carvalho – UEMA

Examinador

_____________________________________________________ Prof. Dr. Sebastião Alves Teixeira Lopes – UFPI

Suplente

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À memória de Durval Ferreira Nery (meu pai), sertanejo maior dessa escola chamada vida, mestre em teorias que as Ciências não discutem em seus inúmeros capítulos.

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AGRADECIMENTOS

Primeiro agradeço a Deus, por me mostrar, no tempo certo, o tempo certo. Ao Mestrado Acadêmico em Letras; À SEDUC, pela liberação; À FAPEPI, pelo pequeno apoio financeiro; À Biblioteca da Academia Piauiense de Letras, por disponibilizar material necessário à feitura deste trabalho; À professora Socorro Magalhães – minha orientadora – pela delicadeza em se mostrar disponível em meu momento transitório de orfandade; pela grandeza de alma e, principalmente, por acreditar em mim e me deixar ‘voar’ quando eu jurava ter asas; Ao Professor Diógenes Buenos Aires, pelo olhar crítico e pela sutileza das provocações; e aos demais professores do Mestrado em Letras, pelas contribuições; À professora Dione Moraes, por me despertar para o tema e acreditar na relevância de minha pesquisa; ao professor Francisco Júnior, pela torcida e pelo abraço amigo em meio aos corredores dessa estrada solitária; e à Teresinha Queiroz, pelas indicações; À minha família, pelo apoio (moral e financeiro) e compreensão; A meu pai (in memorian), pela inspiração e à minha mãe por suportar e entender minha ausência; A todos os colegas da 6ª turma, pelo companheirismo, pelas angústias divididas, pelos embates e, acima de tudo, pelo amadurecimento intelectual. Especialmente ao Wagner, por ter sempre as palavras ‘mágicas’: vai dar certo! Ana Cláudia, presença amiga que me fez prosseguir; Meridalva, pela acolhida em seu lar e seu coração; Lílian, pelas leituras criteriosas e toda a ajuda; e Ana Paula e Sueleny, pelos momentos lúdicos; Ao Emanoel (presença singular), pela comprovação de que relacionamentos acadêmicos podem virar amizade eterna, e por todo apoio e companheirismo, sem os quais eu não conseguiria; Aos colegas da 7ª turma (Jandira, Douglas, Eliana e Sílvia), companheiros inseparáveis, pela amizade que não tira férias; Ao Ivo, amizade que ultrapassa páginas e conceitos, por todos os livros que eu prometo devolver um dia; À Illana, pelo companheirismo incansável no processo de seleção; à Evree, pelo apoio e torcida e à Clarine, pela valiosa amizade, sem a qual tudo seria pior;

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Aos amigos das páginas amarelas da graduação, que ainda se fazem presentes: Ivo (novamente e sempre), Luciana(s), Francisca, Jainara, Múcia e Jussandra, pelo carinho e amizade; À Luisa Vieria, Uzelina Carvalho e Fátima Filha, pela sensibilidade em serem flexíveis no momento mais difícil; e aos demais colegas de trabalho (4ª DRE e SENAC), pela força e amizade; À Janice, Amanda e Bianca, pelo pronto atendimento, sempre de sorriso aberto; E a cada um que, de certa maneira, contribuiu para conclusão desta etapa.

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Falar assim é que é falar com a natureza. Não conheço povo como o nosso do sertão, que por palavras dê mais realce ao seu sentir, tenha mais energia do dizer...

Euclides da Cunha

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RESUMO

O romance Curral de Serras de Alvina Gameiro apresenta um protagonista que rememora e narra, após vinte e cinco anos, sua trajetória de desbravador do sertão nordestino, em busca de um irmão desaparecido. Através dessa narrativa, o leitor descortina o lado de dentro do Nordeste, apresentado não por um “escritor-viajante” (SÜSSEKIND, 1990), mas por um personagem cujo olhar demarca os contornos internos da região e apresenta um mapa, traçado pela escrita, de um espaço a ser redescoberto e reinventado, a partir de uma concepção socioliterária. A proposta deste estudo é analisar o romance de Alvina Gameiro à luz dos estudos culturais, com foco na construção da identidade, tema muito recorrente na literatura contemporânea. Ao verificar a arquitetura verbal do romance, em que a autora prima pela preservação dos aspectos linguísticos próprios da genuinidade brasileira, a pesquisa encontrou um elemento essencial nesse processo de construção identitária: a linguagem. Neste sentido, discorre sobre o processo de construção identitária do sujeito sertanejo, no romance Curral de Serras, a partir da história contada pelo protagonista a um interlocutor, partindo da concepção teórica de que a identidade se constrói na ambivalência EU/OUTRO e também na diferença. Para entender essa construção identitária, utilizam-se, dentre outros, os pressupostos teóricos de Stuart Hall (2003), Kathryn Woodward (2009) e Zygmunt Bauman (2005). O estudo analisa também como o Regionalismo se manifesta no romance e, para isso, busca subsídios em Antonio Candido (2006a; 2006b; 2009), Afrânio Coutinho (1970), Albuquerque Jr. (2009), entre outros que sustentem a pesquisa. São estudados, ainda, os aspectos da cultura sertaneja identificados no romance e, apoiados nos Estudos Culturais, também é analisado a contribuição da cultura para a construção identitária dos sujeitos sertanejos de Curral de Serras. Finalmente, o trabalho investiga como o espaço imaginado como sertão é descrito pelo protagonista; nesta parte, utilizam-se como aporte teórico as ideias da historiadora Candice Vidal (1997) e sua discussão sobre o sertão no pensamento social brasileiro.

Palavras-chave: Curral de Serras. Alvina Gameiro. Identidade sertaneja

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ABSTRACT

The novel Curral de Serras by Alvina Gameiro presents a protagonist who remembers and narrates, after twenty-five years, his history of backland northeastern’s explorer, in pursuit of a missing brother. Through this narrative, the reader opens the inside part of the Northeast, presented not by a "travel writer" (Süssekind, 1990), but by a character whose gaze demarcate the internal borders of the region and presents a map, drawn up by writing, a space to be rediscovered and reinvented, from a socioliterary conception. The purpose of this study is to analyze Alvina Gameiro’s novel in the light of cultural studies, focusing on identity construction, a recurring theme in contemporary literature. When checking the verbal architecture of the novel, in which the author cherishes for the preservation of linguistic aspects of Brazil's own authenticity, the search found an essential element in this process of identity construction: the language. In this sense, the search discusses the process of identity construction of the backland subjects in the novel Curral de Serras, from the story told by the protagonist to an interlocutor, based on the theoretical concept that identity is constructed in the ambivalence of SELF/OTHER and also in the difference. To understand this identity construction are used, among others, the theoretical assumptions of Stuart Hall (2003), Kathryn Woodward (2009) and Zygmunt Bauman (2005). The study also examines how regionalism manifests itself in the novel and, therefore, seeks subsidies in Antonio Candido (2006a, 2006b, 2009), Afranio Coutinho (1970), Albuquerque Jr. (2009), among others to support the research. It is also studied the aspects of the country culture identified in the novel and, supported in Cultural Studies, it is also analyzed the contribution of culture to the construction of the country subjects identity in Curral de Serras. Finally, this search investigates how the space imagined as backland is described by the protagonist, in this part, are used, as theoretical support, the ideas of the historian Candice Vidal (1997) and her discussion about the backland in Brazilian social thought.

Key-words: Curral de Serras. Alvina Gameiro. Backlands Identity.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................11

2 CURRAL DE SERRAS E A RECRIAÇÃO DO UNIVERSO SERTANEJO ......18

2.1 Um passeio pela narrativa de Curral de Serras ..................................................18

2.2 A arquitetura verbal de Alvina Gameiro ............................................................29

2.3 O narrador de Curral de Serras e a ordenação do tempo e do espaço ..............39

3 CURRAL DE SERRAS E O REGIONALISMO .....................................................48

3.1 O Regionalismo na ficção: percursos ...................................................................49

3.1 O Regionalismo nordestino: a instituição de um discurso .................................52

3.2 Curral de Serras e a construção discursiva de um espaço real ..........................57

4 O HERÓI SERTANEJO E A QUESTÃO IDENTITÁRIA .................................66

4.1 Isabela x Valente: desconstruindo papéis, igualando sujeitos, construindo

identidades ...................................................................................................................72

4.2 O imaginário de sertão na ficção de Alvina Gameiro ........................................81

4.3 Traços representativos da cultura sertaneja.......................................................88

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................97

REFERÊNCIAS ..........................................................................................................101

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1 INTRODUÇÃO

Só o silêncio e a lua trazem toda a competência de dizer coisas tão grandes, que nas palavras não cabem.

Alvina Gameiro

O romance Curral de Serras, de Alvina Gameiro, é um convite para desbravar o

sertão nordestino, apresentado pela ótica do narrador. Através do relato de Valente, o

personagem central, o leitor conhece não só sua história de vida como também os

elementos da cultura sertaneja e fatos que justificariam o comportamento de alguns

personagens, como o de Isabela – a personagem desestabilizadora da paz interior do

protagonista. Valente é um viajante desbravador do sertão nordestino que reconstrói sua

identidade de sertanejo a partir da narração de sua história de vida a um interlocutor.

Essa narração faz com que o leitor acompanhe os últimos 25 anos de vida do

protagonista, com suas conquistas, desilusões e ensinamentos filosóficos.

Para justificar a relevância do romance Curral de Serras, objeto de nossa

pesquisa, apresentamos, inicialmente, um breve resumo biográfico da autora e, em

seguida, apresentamos o romance, numa ótica que privilegia sua compreensão

estrutural. Para tanto, deixamos o romance falar de e por si, mostrando que teorias

seriam mais pertinentes para sua abordagem.

A piauiense Alvina Fernandes Gameiro nasceu em Oeiras-PI, em 1917 e faleceu

em Brasília, 1999. Foi poetisa, romancista, contista, pintora e professora. Iniciou os

estudos em Teresina-PI, seguindo, mais tarde para o Rio de Janeiro, onde se formou em

Artes Plásticas pela Escola Nacional de Belas Artes; graduou-se, posteriormente, pela

Universidade de Columbia (NY-USA). Foi professora de Português e de Inglês em

várias escolas do Piauí, Ceará e Maranhão; tendo lecionado também na Faculdade de

Filosofia de São Luís-MA. Escreveu seriados para a TV Ceará, Canal 2, de 1963 e

1965, como registra Francisco Miguel de Moura (2001). Pertenceu à Academia

Piauiense de Letras, ocupando a cadeira de nº 14 (de 1990 a 1999), apesar desse marco

em sua vida, pouco se encontra documentado sobre seu histórico literário desse período.

Como professora, destacava-se por ser uma pessoa de ‘alma refinada’, que se

preocupava em preparar os indivíduos para “os deveres da vida”. Como escritora e

artista, destacava-se pela sólida formação humanística, de acordo com biografia

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publicada em encarte do jornal Meio Norte1, em maio de 2001. Estudiosa da Língua

Portuguesa, transformou sua obra literária em verdadeiros laboratórios linguísticos. Em

Curral de Serras, por exemplo, a autora apresenta o sertanejo com uma linguagem

próxima da oralidade, que rende ao romance um caráter telúrico, mas que nos faz

enxergar o sertão em uma dimensão analítica bem mais ampla.

Seu ‘labor artístico’ seria resultado de uma vivência pessoal pelos campos do

Piauí, como ela mesma declara em seu discurso de posse na Academia Piauiense de

Letras (1990). Afastara-se do Estado apenas no plano físico, pois buscava “nas estradas

dispostas em toda direção” colher o “documentário folclórico” para enfocar em suas

obras literárias. Mas o Piauí não representava, para a autora, “exclusivamente o objeto

de ótica literária no campo do romance, da novela, do conto e da poesia, mas, o doce

lenitivo para remir saudades” (GAMEIRO, 1990)2 que a conservava viva e conformada

na distância de sua terra. Esse telurismo é bastante ressaltado em suas obras, nas quais o

Piauí é o espaço retratado.

Ressaltamos que, embora haja um reconhecimento de Alvina Gameiro como

escritora, sua vasta produção literária não atingiu a dimensão crítica em sua totalidade.

Trabalhos sobre sua produção literária ainda são tímidos no meio acadêmico, percepção

que nos instigou e impulsionou a realizar essa pesquisa.

Gameiro iniciou na literatura com o romance A vela e o temporal, em 1957 –

segundo o crítico Francisco Miguel de Moura (2001, p. 167), a obra “levantou críticas

elogiosas de José Américo de Almeida e José Lins do Rêgo”; a seguir, lançou O vale

das açucenas (1960); em 1967, escreveu o livro de poesia Orfeão de sonhos; em 1969,

publicou 15 contos que o destino escreveu. Logo em seguida, teria arrebatado elogios de

Martins Napoleão3 com Chico vaqueiro do meu Piauí (1971). À época do lançamento

de Curral de serras, o poeta elogiou a produção de Gameiro, dando ênfase à emoção

sentida ao ler Chico vaqueiro do meu Piauí.

1 O jornal Meio Norte publicou encartes, intitulado Figuras notáveis da história do Piauí, contendo biografias de vários autores da literatura piauiense. O encarte dedicado a Alvina Gameiro foi o de maio de 2001.

2 Cf. Discurso de posse de Alvina Gameiro, no Hotel Rio Poty, em 05/09/90. Caderno da APL (p. 22)

3 Poeta, membro da Academia Piauiense de Letras, onde ocupou a cadeira de Abdias Neves, era considerado um poeta de formação clássica que demonstrava devoção aos poetas do passado e ainda cultuava os poetas que primavam pela preservação da linguagem. O que talvez justifique os elogios ao poema de Alvina Gameiro.

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[...] Atenho-me ao Chico Vaqueiro, porque afinal eu sou tarado mesmo é por poesia. E esta sua me toca especialmente, porque, na verdade, continuo um ser rural, machucado aos atritos da civilização e da cidade. Você fez bem em renovar os temas do nosso Hermínio Castelo Branco, com a sua extrema sensibilidade. E quero dizer-lhe que pensei comigo mesmo que, depois de ler Martin Fierro, com toda a agreste filosofia do campônio gaucho, não iria mais me comover diante da poemática telúrica. Qual nada! Você escreveu uma história simples, que vai direta ao coração, somando homem e terra: [...] Mas não é do conteúdo que vive o seu livro: é também do continente poético, onde há coisas deliciosas [...]. Nunca mais vou esquecer este verso: ‘quebrantado ao quebrar das quebradas’. (GAMEIRO, 1980, p. 228).

Esse comentário, tecido por Martins Napoleão, encontra-se no romance Curral

de Serras, onde vários autores e críticos comentam a produção literária da autora.

Percebe-se que o poeta parece sensibilizado com o telurismo do poema em prosa da

autora; o destaque é dado aos versos de Chico vaqueiro porque estes teriam emocionado

também Câmara Cascudo: “Chico Vaqueiro do meu Piauí guarda muito do meu coração

menino, criado em fazenda sertaneja, sertão de pedra e sol” (idem, p. 227).

Nos anos de 1980, Curral de serras é lançado, e, embora a crítica local enalteça

o fato, não encontramos, durante nossa pesquisa, informações precisas acerca do

lançamento do romance, pois pouco se tem documentado sobre a recepção crítica da

obra literária da autora. Seu último livro, Contos dos sertões do Piauí, fecha o ciclo de

sua produção sobre o sertão. Ressaltamos que, embora haja um leve reconhecimento de

Alvina Gameiro como escritora, sua vasta produção literária não atingiu a dimensão

crítica em sua totalidade. Trabalhos sobre sua produção literária ainda são tímidos no

meio acadêmico – fato que rende a esta pesquisa um caráter maior de originalidade.

Seu talento de escritora, principalmente com o romance Curral de Serras tem

sido, muitas vezes, comparado ao de Guimarães Rosa, por conta da linguagem sertaneja,

demonstrada no romance. Entretanto, essa comparação não constituirá objeto de análise,

neste trabalho, embora aproximemos a produção literária dos dois autores, ao enfatizar

esse aspecto linguístico. Acreditamos ser essa linguagem um dos pilares para o

desenvolvimento de nossa proposta de identificação da construção identitária sertaneja,

haja vista que um dos elementos constituintes da identidade de um povo é a sua língua.

O nome de Alvina Gameiro pode ser associado às narrativas que versam sobre a

cultura sertaneja, principalmente com as obras Curral de Serras, Chico Vaqueiro e os

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Contos dos sertões do Piauí. Sua produção abarca uma dimensão estética e cultural que

não se ajusta ao modelo de uma única escola literária, por isso, esta proposta de leitura

do romance como possibilidade de entender a construção da identidade cultural

sertaneja, a partir de um enfoque sertanejo, fundamenta-se nos postulados teóricos dos

estudos culturais. Enxergamos esse viés analítico por conta da dimensão cultural

perceptível em Curral de Serras, na qual podemos situar o sertanejo, com seus

costumes, sua linguagem, seus mitos e suas tradições.

Em nossa análise, abordaremos a construção identitária do sertanejo,

considerando, dentre outros aspectos, a memória do narrador, pois, através dela, tem-se

uma compreensão do romance, privilegiando a inferência de uma série de

entendimentos, inclusive da estética literária de Gameiro. Numa focalização em

primeira pessoa, o narrador-protagonista descortina os espaços da narrativa e reconstrói

sua identidade a partir das lembranças divididas com o personagem que acompanha seu

relato. Durante a conversa do narrador com esse interlocutor, o leitor tem acesso aos

acontecimentos dos últimos 25 anos da vida do protagonista, através das suas

reminiscências. Mesmo se tratando de recordações, o narrador procura ser o mais linear

possível em sua narração, talvez, para que não escape algum aspecto importante para a

compreensão da narrativa, já que ele é que tem o domínio sobre a narração. É necessário

salientar que a importância do aspecto temporal na narrativa de Curral de Serras reside

em saber diferir o tempo em que a história é contada do tempo em que os fatos

aconteceram. O tempo da narração acontece em uma noite de 1955 e os fatos relatados

pelo personagem Valente aconteceram há vinte e cinco anos desta data, mais

precisamente em 1930.

Não se pretende, todavia, com essa informação, restringir o romance a uma

análise estrutural, voltada para a compreensão do tempo, espaço e discurso; esses

aspectos serão enfatizados não como meros instrumentos para inserir o romance dentro

de uma periodização literária, mas sim para compreender a produção da autora, dentro

de um universo maior de interpretação. Da mesma forma que, ainda se tratando de um

romance de uma autora piauiense, compreendemos sua dimensão crítica e analítica para

além das fronteiras estética, temporal e espacial. Assim, objetivamos abordar o universo

cultural dos personagens de Gameiro, no sentido de entender a construção da identidade

sertaneja, no romance, como um todo.

Ao rememorar sua trajetória de retirante a procura do irmão desaparecido,

Valente vai contornando o sertão nordestino e apresentando particularidades

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imprescindíveis para a compreensão do espaço da narrativa. Sua visão não é a de um

mero viajante, mas de alguém que estabeleceu pouso em diversos estados da região e se

apropriou dos costumes dos lugares. Como o sertão, retratado por Gameiro, é um

espaço traçado ficcionalmente, as fronteiras discursivas do campo histórico-literário não

serão alargadas, no sentido de questionarmos verdades lançadas pelo narrador.

Intenciona-se tão somente reconhecer esse espaço imaginado como sertão, com o intuito

de entender sua relevância na construção identitária do sertanejo, pois através do

discurso do protagonista, depara-se não com uma região de miséria, mas com um

elemento essencial na formação do povo brasileiro. Neste sentido, é preciso acompanhar

cada descrição local, cada comportamento dos personagens para então se traçar um

contorno da região nordestina sertaneja, pela pena ficcional da escritora, bem como os

aspectos identitários dos sujeitos que se descobrem nordestinos na medida em que

(re)inventam o Nordeste, de acordo com os postulados de Albuquerque Jr. (2009).

Ressaltaríamos ainda que nosso texto apresenta mais uma série de provocações

do que respostas prontas aos questionamentos surgidos ao longo da investigação crítica.

Além das questões que norteiam nossa pesquisa, outras surgem, sem que tencionemos

usá-las como base de análise, entretanto não as descartaremos sem investigar suas

respostas. Por exemplo, em que estilo literário se pode situar o romance Curral de

Serras4? A possível aproximação de Alvina Gameiro a Guimarães Rosa é viável5? Em

que medida os personagens da autora representam o ‘legítimo’ sertanejo6? Tais

questionamentos reforçam o viés sociocultural escolhido para este trabalho,

intensificando, assim, a possibilidade analítica do romance a partir desta ótica.

Este trabalho tem como objetivo geral analisar a construção da identidade

sertaneja no romance Curral de Serras de Alvina Gameiro; e como objetivos

específicos apontar a contribuição da linguagem para a construção da identidade

sertaneja; identificar os traços representativos da cultura sertaneja presentes no romance

4 Em Literatura no Piauí (2001), de Francisco Miguel de Moura, Alvina Gameiro é considerada como pertencente ao Grupo Meridiano. “No rastro da ‘geração de 45’, nacional, o movimento meridiano abjurava Drummond, os poetas de 30 e o regionalismo de seus romancistas, mas no fundo os imitava” (MOURA, 2001, p. 155). Em nossa pesquisa, optamos por utilizar o romance Curral de Serras mais na perspectiva do que se convencionou chamar de ‘romance de 30’, dadas suas características que o aproximam dos escritores dessa geração.

5 Ressaltamos que essa comparação é aceita por alguns pesquisadores, mas também é refutada por outras, como veremos mais adiante em nossa análise.

6 A expressão ‘legítimo’ é aqui utilizada no sentido pureza, autenticidade.

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Curral de Serras; e ainda identificar de que forma o Regionalismo é apresentado no

romance. Para atingir os objetivos propostos, dividimos o trabalho em quatro partes, a

saber: no primeiro momento, em introdução, faremos um percurso pelo fazer literário de

Alvina Gameiro e discorremos sobre as linhas gerais do romance Curral de Serras,

identificando suas características e o estilo da autora. Também faremos considerações

sobre a relevância do romance para entender a lógica da construção identitária, segundo

os pressupostos dos Estudos Culturais.

No segundo momento, em capítulo intitulado Curral de Serras e a recriação do

universo sertanejo, mostraremos a tentativa de recriação do universo sertanejo, a partir

do fazer literário de Alvina Gameiro. Discorreremos sobre a narrativa do romance, o

papel do narrador, a compreensão de tempo, espaço e discurso na ficção de Curral de

Serras e abordaremos ainda a arquitetura verbal da autora, apontando a linguagem do

romance como elemento imprescindível para a construção da identidade sertaneja.

Como apoio teórico, utilizaremos as contribuições de Umberto Eco (1994), Gerard

Genette (1995), Antonio Candido (2009), Dino Preti (1982) e Hudinilson Urbano (2000;

2001).

No capítulo seguinte, Curral de Serras e o Regionalismo, discorreremos acerca

do movimento regionalista no Brasil e no Nordeste, no intuito de descortinar o

macroespaço da narrativa (o sertão nordestino) e entender como se manifesta o

Regionalismo literário de Alvina Gameiro no romance analisado. Buscaremos, ainda, os

aspectos da cultura regionalista presentes em Curral de Serras, apoiados nas indicações

teóricas de Lúcia Miguel Pereira (1973), Afrânio Coutinho (1970), Antonio Candido

(1989), Albuquerque Júnior (2009), dentre outros.

O último capítulo, O herói sertanejo e a questão identitária, focalizará o

processo de construção identitária do sujeito sertanejo, baseada na ambivalência

EU/OUTRO. Abordaremos a relação entre o casal Valente e Isabela, em subitem

intitulado Isabela x Valente: desconstruindo papeis, igualando sujeitos, construindo

identidades, no sentido de identificar a caracterização dos personagens, a partir de uma

ótica regionalista. Demonstraremos também como a imagem de sertão é construída no

romance. Como aporte teórico, recorreremos a Stuart Hall (2003), Zilá Bernd (1992),

Homi Bhabha (1998), Zygmunt Bauman (2005), Manuel Castells (1999), Kathryn

Woodward (2009) e as contribuições acerca da construção identitária; e para embasar

nossa discussão sobre o sertão, utilizaremos os pressupostos de Candice Vidal (1997)

nessa reconstrução do imaginário do sertão nordestino.

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É a partir dos postulados desses teóricos, em apontarem o caráter de mobilidade

e multiplicidade da identidade de um sujeito, que esta pesquisa ganha respaldo; e é

através das descrições do macroespaço da narrativa (o sertão nordestino) que ela se

direciona e se fundamenta. Assim, reiteramos a percepção de Curral de Serras como

um romance regionalista que traz sujeitos sociológicos, no dizer de Hall (2003), capazes

de reconstruírem sua identidade a partir da identificação (SILVA, 2009), e que

ultrapassam fronteiras do masculino e feminino, para assumirem posições de sertanejos.

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2 CURRAL DE SERRAS E A RECRIAÇÃO DO UNIVERSO SERTANEJO

Pela desconfiança do sim, ou confiança do não, quis tirar o causo a limpo.

Alvina Gameiro

Neste capítulo, refletimos sobre as linhas gerais do romance e a recriação do

universo sertanejo, através da arquitetura verbal de Gameiro, que caracterizariam sua

escrita em uma esfera regionalista. Primeiro, faremos um passeio pelo texto narrativo,

observando suas particularidades, como enredo, personagens, tempo e espaço. Em

seguida, ao analisarmos a escrita da autora, discorreremos sobre a função da oralidade

na escrita do romance Curral de Serras– aspecto que o destaca no cenário da literatura

regionalista nacional. E, finalizando o capítulo, abordaremos como o narrador ordena

tempo em espaço, através de seus relatos.

O universo sertanejo recriado em Curral de Serras é entendido, por nós, como

sendo a representação dos elementos que constituem a cultura desse grupo. Assim, para

reconstruir esse universo, a autora utiliza uma linguagem própria colhida diretamente do

sertão, para elencar fatos relatados pelo narrador, que colaboram para o entendimento da

narrativa. Neste sentido, é preciso acompanhar os relatos do protagonista e as descrições

locais para que a percepção do mundo sertanejo seja pertinente.

2.1 Um passeio pela narrativa de Curral de Serras

A narrativa de Curral de Serras gira em torno da trajetória de Rogato Valente

Coralboia, personagem que (re)constrói sua identidade de sertanejo a partir das

lembranças divididas com um interlocutor – ressaltamos que essa construção identitária

será abordada de acordo com as concepções teóricas de Hall (2003), Bauman (2005),

dentre outros que subsidiam nossa análise. A narração se dá em primeira pessoa e o

protagonista, que é o próprio narrador, tem autonomia para contar os fatos da maneira

mais conveniente, numa espécie de monólogo (apesar da presença desse interlocutor);

através desse foco narrativo, o leitor torna-se conhecedor da história de vida do

narrador, com as alegrias e os dissabores vividos durante a ‘peregrinação’ pelo sertão

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nordestino, em busca do irmão desaparecido. Assim, é através da perspectiva de Valente

que os fatos são apresentados, tanto os vivenciados por ele, durante essa trajetória como

os que ele toma conhecimento através dos relatos de uma terceira pessoa.

O narrador é uma espécie de viajante que contorna o sertão nordestino,

procurando um irmão desparecido. Em uma parada, para descansar da montaria e para

matar a sede “numa isca de riacho”, ele é surpreendido por uma pessoa que o interpela,

fazendo-lhe um convite inusitado. Esse sujeito passa a acompanhar o narrador durante

os próximos anos de sua vida. Tal encontro marca o início da narrativa: “[...] ´tava

apeado, montaria matando sede numa isca de riacho [...] um homem apareceu, pensando

que no repente” (GAMEIRO, 1980, p. 9). Esse homem misterioso é Seu Pulquério,

personagem que, a mando da patroa, devia “caçar homem branco, forte, munido de

coragem e se beleza estampada tivesse não fazia desmerecimento” (idem, p. 10) para

trabalhar em sua fazenda; e como o rapaz se ajustava ao perfil traçado pela mulher, o

convite é feito para seguir viagem: “– No aberto da cor, no corte da figura, no

desassombro da fala amostra vosmecê o talho da encomenda” (ibidem). Destemido,

embora desconfiado, o rapaz resolve seguir o vaqueiro até a dita morada onde a mulher

os aguardava.

Esse primeiro contato gera alguns minutos de silêncio. Valente pensava em que

artimanhas poderia estar se metendo, mas, ainda assim, segue viagem em companhia do

vaqueiro; porém, de repente, este resolve lhe dar a opção de seguir ou não, deixando-o

intrigado: “ – Não querendo ir, o moço não vai. Emenda caminho. Pronto! Aguardo

outro cavaleiro.” (id. ibid). Diante desse comportamento do desconhecido, Valente

reflete: “Quebra-cabeça dos grandes, atravessado na minha frente... Gastei foi tempo no

piso dos talvez” (idem, p. 11), mas, como precisava de algum dinheiro, sobretudo para

dar prosseguimento a busca pelo irmão, resolveu encarar como mais um desafio: “Ficar

posso ou não, é o depende quem vai dizer” (ibidem, p. 11). Assim, resolve seguir o

homem rumo ao terreno desconhecido, mas isso não o amedrontava, pois carregava

consigo a esperança de reencontrar o irmão e levá-lo de volta, para alegria da mãe. Por

mais que lhe parecesse estranho o convite daquele homem, não volta atrás na decisão:

“– Vou mas é por minha conta... De fora se ponha, homem! Careço d’algum dinheiro e

mesmo... é bom esbarrar uns tempos” (ibidem, p. 11). Aceito o convite, os dois se põem

em montaria e partem rumo a Pernambuco.

Também no início da narrativa, o leitor é apresentado a algumas informações

importantes para entender a história: estamos no mês de setembro – “mês danado de

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seco”, conforme palavras do narrador – em um lugar onde a água fica mais escassa no

período e o capim, poeticamente, aguarda a chegada de novas chuvas para retomar o

verde. “Desne que o mundo é mundo, capim é cabelo da terra, cobertor do chão,

esperança dos vivos, e quando cai chuva e ele verdece, é nem ver um bilhete da

saudade...” (GAMEIRO, 1980, p. 9). Esses elementos são retomados ao longo da

narrativa, intensificando o caráter regionalista da obra, principalmente, ao primar pela

linguagem e ambientação locais.

A viagem até a fazenda parecia longa, mas o rapaz, acostumado à vida de

viajante, seguia o curso natural da aventura, embora cismado de tudo, inclusive da

paisagem dos arredores: “Lugar esquisito... tresconjuro! Já se viu um canto do mundo

adonde passarinho um qualquer não fizesse morada? Aquilo bom sinal não era não”

(idem, p. 12), mas, ao avistar a fazenda, sua impressão sobre o lugar cede espaço ao

encantamento pela arquitetura local:

[...] terreiro batido, todo de barro branco, desses de fazer loiça, aberto em quadro de bom tamanho, à feição de praça de igreja, com arrodeio de palhoças, que telha mesmo só recebeu permissão de dar cobertura à casa-grande. A morada era decente e tinha entrono no altar de pedras fumentas; ostentava, bem no meio, sentinela duma torre espingulada e, corrida de ponta a ponta, possuía varanda agasalhadeira de sombra. O curral ficava no mais baixo, dum lado d’oitão, que d’outras bandas s’escanchava trepadeira encarnada, cacheando toda em flor (GAMEIRO, 1980, p. 16).

Através dessa descrição, tem-se uma breve compreensão descritiva tanto do

microespaço – a fazenda, nos longes do Pernambuco – quanto do macroespaço do

romance – o imaginário de sertão traçado por Alvina Gameiro. A fazenda chamava-se

Vão-da-Cumbuca – informação que o leitor só obtém após um longo contato com a

narrativa – mas ganha o apelido de Curral de Serras, nome dado por Valente à morada

de Isabela, personagem desestabilizadora da paz interior do protagonista.

Chegando à fazenda, o rapaz é recebido com ‘tratos de fidalguia’, que o

deixavam intrigados. Primeiro: por que fora chamado a ir àquela fazenda? Segundo: por

que todo tratamento de regalias? Sua curiosidade, aos poucos, vai cedendo lugar a

outros sentimentos. Depois do descanso, em rede branca e limpa, é chamado para se

apresentar à nova patroa. Valente, então, responde uma série de perguntas feitas por ela:

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- O senhor como se chama? De idade, quanto conta? Dadonde é a proveniência e pr’a que lado se botava, quando encontrou positivo? Por mor de que aceitou o trabalho em minhas terras? Adonde já ‘teve alugado? E dê a explicação, que cuspiu vosmecê de lá... Em que arte é aprendido? Sabe ler? Sabe escrever e também sabe contar? A pois, de acordo com o talento, tem trabalho a receber, por ganhar o merecido (GAMEIRO, 1980, p. 20).

Pacientemente, todas as perguntas são respondidas e, pelas respostas dadas, o

leitor tem um perfil do protagonista, traçado por ele mesmo:

- Sou oficial carpina; sei ofício de pedreiro; aprendi arte de fazer loiça com muito bom mestre oleiro; rei roçar, sei plantar, sei dirigir a desmancha; sei laçar, sei abolar, sei lidar que nem vaqueiro; conheço remédio em quantidade, sabendo p’ra que qu’eles servem. No mais, eu sou curioso e qualquer outro trabalho, enxergando como se faz, com pouco exercício aprendo, se me botar pra fazer (GAMEIRO, 1980, p. 22, grifo nosso).

Esse autorretrato de Valente nos servirá de base para uma análise mais

específica do protagonista: a sua construção identitária de sujeito sertanejo. Diante da

fala do narrador temos a imagem do que seria esse sujeito sertanejo de Gameiro. Em

vários momentos da narrativa, o protagonista deixa transparecer que é conhecedor do

ofício de vaqueiro, seja para impressionar Isabela, seja para ter a oportunidade de sair

com seu Pulquério, o vaqueiro da fazenda, em busca da boiada. “Até, d. Isabela, em se

ouvindo um aboio desmedido, rasgado por estes sertões sem fundo, como a alma dum

vaqueiro, toma logo entendimento de ser aquilo uma conversa entre o homem e as reses

brutas” (idem, p. 113). É importante ressaltar que o narrador não exerce a função de

vaqueiro. Ele conhece o ofício não pela experiência, mas pela convivência com a arte:

nas terras do Piauí, fazia todo o serviço do campo, mas não se fixou na profissão e se

declarava curioso o suficiente para desempenhar qualquer papel que lhe fosse

necessário, de acordo com o que a situação exigisse, conforme se percebe em seu

autorretrato passado à dona da fazenda.

Após a apresentação de Valente, a patroa resolve confiar-lhe o poder sobre a loja

que dispunha na fazenda, entregando-lhe as chaves; porém, deixa claro que as ordens

são dela, embora o rapaz tenha todo o controle sobre os negócios. Em princípio, o novo

morador da fazenda estranha o funcionamento das coisas por lá, principalmente, os

mandos da patroa e o medo que os moradores tinham dela. Ele fica intrigado,

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principalmente, com o comportamento servil das pessoas: Por que ninguém fazia nada

que pudesse contrariar a patroa? De que as pessoas tinham tanto medo?

[...] mas qu’encanto seria aquele de ninguém poder ao menos pensar em botar o pé nos longes, nem uma unha de fora? E todos ali, acomodados, achando jeito de tomar conformação? Com certeza curtiam receio ou medo bem esticados, por obra d’algum exemplo grave de demonstrados, que deviam de ser medonhos, capazes de trazer assombrada a gente p’r’o resto da vida... E falar? Ninguém s’atrevia! Só foi mesmo seu Pulquério quem me deu aqueles adiantado, no caminho de minha vinda. Isso mesmo pelos altos, que, no claro, não falou [...] (GAMEIRO, 1980, p. 45, grifo nosso).

Receoso de que a patroa tivera cometido algum crime brutal, no passado, do qual

as pessoas não queriam recordar, Valente passa a se resguardar e, principalmente,

privar-se da companhia de Isabela. Não que tivesse medo dela, mas por se julgar

conhecedor das artimanhas da vida. Tudo era muito misterioso naquele lugar. Desde o

convite de seu Pulquério, o ‘viajante’ já havia cismado:

[...] não conhecia o guiador, nem atinava com a razão encoberta no misterioso chamado daquela dona. Uma fazenda em tal distância, socada adonde Judas-perdeu-a-bota, fincada nos escondidos, sem caminho d’endereço, moldava era uma emboscada e só devia de ser a lura de maçaroca manhosa... Entonces, por causa que me aventurava no risco? E eu outra escolha tinha? Quem anda na procura, só esbarra com o encontro. (idem, p. 14, grifo nosso)

Isabela, ao contrário, desde o primeiro contato, encanta-se pelas qualidades de

Valente, embora sua condição de patroa exigisse dela comportamentos rígidos,

sobretudo, com os empregados. Após ouvir a história de vida do rapaz e acertarem os

detalhes do trabalho, ela frisa:

-É aquele o armazém. Repare, nas portas de azul pintadas, a marca de cinco pontas duma estrela, ferro em brasa, de limpar cabelo duro quando assenta no meu gado, a pois sim, ela também tem serventia de carimbar o traseiro de qualquer cabra atrevido, que, ao menos em pensamento, sonhe com a ousadia de querer me levar no coice, ou empoeirar os meus olhos. (idem, p. 22)

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Apesar de toda essa rispidez no trato com o rapaz, e vendo que ele não

descumpriria suas ordens, tomando conta do armazém e limitando-se a viver no

isolamento da casinha que lhe arranjaram para moradia, Isabela passa a cercá-lo de

todas as maneiras possíveis. Alegando acompanhar os negócios, começa a frequentar a

loja e a convidá-lo para sentar-se à mesa com ela todas as noites, no jantar. A

convivência faz com que o protagonista aumente as desconfianças em relação às

intenções da patroa, que, por sua vez, já começa a nutrir esperanças de um

relacionamento sólido entre eles:

´Tou rezando noite e dia, p’ra vosmecê se pôr feliz e não querer ir-se embora nunca mais. Parece mentira... mas, garanto: despois da chegada de vosmecê, nasceu em meu pé de vida o broto duma esperança, qu’eu agôo (sic) com reza e fé, p’ra virar felicidade até o fim dos meus dias (idem, p. 64).

Em certa ocasião, o protagonista fica sabendo que, na fazenda, trabalhava um

rapaz que tinha o mesmo nome de seu irmão e, como já havia desconfiado de que esse

irmão estaria morto, fica muito intrigado com o revelado, achando que, por algum

motivo, Isabela o havia matado. A partir dessa noite, resolve vingar a morte do irmão,

embora já se sentisse envolvido demais com a patroa. “Meu Jesus Crucificado! A pois

não era que o pobre Lino tinha entrado em armadilha? Por ali ele não s’achava, só se

fosse recolhido embaixo de casamata, ou entonces, ‘tava morto [...]” (idem, p. 34). Esse

revelado, no dia em que Isabela lhe ‘ordena’ que não a chame mais de dona, desencanta

o rapaz de uma maneira que ele se deixa dominar por um ódio enorme, que ele tenta

disfarçar na presença dela.

Já metido em meu canto, sem as vistas de ninguém, despenhei com toda a força por riba do sofrimento. De tudo tinha esquecido: do jantar muito apurado, em cabeceira da mesa; da regalia me dada p’r’eu chamar só Isabela; daquela voz aquentada, em semudo do costume, fazendo questão, no claro, por ficar junto de mim [...]. Naquele estado de sofrença, só me restava, acochando o meu juízo, sovelando meu coração e esgoelando no meu pé d’ouvido, até arrancar meu choro [...]. (idem, p. 35)

O narrador, então, começa a viver uma situação conflituosa, pois se vê dividido

entre o amor por Isabela e a continuidade da investigação sobre o desaparecimento do

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irmão; mas, mesmo com toda determinação, valentia, coragem e audácia que o

caracterizavam, o “pretume da menina dos olhos” de Isabela desestabiliza o sertanejo e

o faz perder o embalo das ideias. O que antes era incerteza parece ganhar corpo em

coisa certa: o amor do protagonista pela dona da fazenda. Todavia ele não pode

abandonar a possibilidade de vingar a suposta morte do irmão, principalmente por

suspeitar que a patroa tivesse culpa, dado seu silêncio diante do assunto, durante uma

conversa entre eles, alegando ser história triste, que ela contaria depois. Tomado pela

angústia de amar a mulher que queria odiar, a certeza do sentimento paradoxal o

sufocava.

Dentro de mim tinha um açude, gemendo pr’a quebrar parede e acabou arrebentando duma vez, que natureza de amor e d’água tem igualmente forças irmãs, e não respeitam desgraça, nem preceito nem preconceito nem dereito de ninguém (idem, p. 88).

Durante um passeio pela fazenda, Valente tenta arrancar alguma confissão de

Isabela que a inocentasse ou pelo menos despertasse a piedade através do

arrependimento, mas ela desconversa e a certeza de que o perigo se aproxima invade o

rapaz. “Queria era de todo o coração sucumbir naquele desfalecimento que me chamava

pr’a vida e dava entrada pr’a morte” (idem, p. 88). Esse é o desespero que paira sobre o

protagonista quando percebe que não teria mais como fugir dos encantos de Isabela e

resolve se entregar ao amor que tanto desassossegava sua alma. “Ajustamos o

matrimônio com grande alegria dela e sentimento de minha parte. Ia ser um banquete

numa cova. A certeza ‘tava escrita...” (ibidem, p. 88).

Inferimos, dessa forma, que o antagonismo, para Valente, não é representado por

uma pessoa, mas por uma condição existencial. Sua história de vida sempre girou em

torno da procura pelo irmão desaparecido e o fazia contornando o lado de dentro do

Nordeste, numa busca incansável, até se deparar com a fazenda de Isabela e estabelecer

pouso por lá, trabalhando na loja entregue a ele pela própria dona, em missão de

confiança. Acostumado com a liberdade de governar a própria vida, sente dificuldades

de aceitar o comportamento da patroa em querer mandar em tudo e em todos, inclusive

nele:

– Não se atreva, seu Rogato, a desmudar minhas ordens. Se ponha no devido lugar, qu’eu não gosto de atreviduras. Vosmecê tá

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s’espalhando? ... ´Tá pondo as unhas de fora? É d’estranhar o malcomportado do senhor por descostume de insolências, desafiando ordem que por mim foi dada (GAMEIRO, 1980, p. 81).

Essa manifestação de raiva por parte de Isabela era, na verdade, preocupação

com o noivo. Envolvido em uma briga para defendê-la, Valente é repreendido dessa

maneira, demonstrando mais ainda o amor da moça, tomada pelo medo de perdê-lo.

Porém, a teimosia do rapaz em desobedecê-la serve para aumentar a confiança da amada

em relação ao noivo. Assim, os dias se passam, e ele, já entregue aos encantos de

Isabela, conhece, a um só tempo o amor e o ódio, pois descobre o paradeiro do irmão.

Este teria sido morto de uma forma brutal, sob encomenda da mesma mulher que já

tanto amava. Com isso, dá mostras de desespero ao ouvir a confissão de Seu Pulquério

sobre o acontecido, durante uma conversa entre os dois:

– Na loja, quem trabalhava, quando eu não me achava aqui? –Em antes de vosmecê chegar, quem labutava na loja era um moço que morreu e tinha nome de Lino. Senti no peito um socavanco e o fino duma dor, qu’era ver uma punhalada. Acho que meu sangue fugiu e eu saí deste mundo por espaço duns minutos, com a boca no surrão. Seu Pulquério todo entretido com o fio do quicé, rapando, dum taquinho de fumo de rolo, fiapos pr’a obra de dois cigarros, não reparou no abalo que, na certa, s’estampou por riba de minha cara ou em toda a minha pessoa. E quando me entregou um dos pitos, eu já ´tava refeito, sem demonstrar alteração (GAMEIRO, 1980, p. 65, sem grifo no original).

Valente já desconfiava de que seu irmão Lino estivera na fazenda de Isabela e

que algo muito grave devia ter-lhe acontecido, e após essa conversa com o vaqueiro,

que lhe relata como se deu a morte do rapaz, ele sente o mundo ruir e decide se vingar

da amada, usando o amor como arma. Lentamente ele arquiteta a vingança e tenta

disfarçar seu plano através de metáforas. Assim, quando a amada reclama do seu

silêncio, ele diz:

– Os sentimentos e as idéias (sic), d. Isabela, minha noiva, têm requisito d’escola não, nem fazem conta d’estudo; elas nascem com a gente; são as sementes do espírito, que vão aos poucos tomando corpo em nossa alma e nossa cabeça. (GAMEIRO, 1980, p. 113).

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Com essa declaração, o rapaz intencionava dizer que planejava algo, mas não

demonstrava seus reais planos. Amava Isabela, mas precisava vingar a morte do irmão,

agora já tida como certa: “Foi ali, naquela hora, que jurei vingança rude, em resoluto

firmidão, requerendo o preço justo, por nada ficar devendo a tanto descomedido [...]”

(ibidem, p. 67). Assim se dera a morte de Lino: Isabela, que era casada com ele no

período, desconfia do seu envolvimento com uma moça dos arredores, filha de seu

Pulquério, e manda envolver os dois em um couro fresco de boi, conforme relato do

vaqueiro:

E foi só por uma desgraça purinha que a Norberta, minha filha, foi buscar um sal na loja e, ali, a patroa pegou a pobre em conversa com seu Lino. Posso jurar, por tudo quanto é sagrado, qu’entre eles não tinha nada de mais, a pois minha filha era noiva [...] E que valia a verdade, se a mulher virou serpente? Sim, senhor!! Desmudou num bicho bruto; endoidou, se pôs em fúria, dando uma ordem p’ra seu Tarcílio e seu Aspreno mor de matar um boi bem grande e mandou seu Corbiniano [...] encourar minha mocinha, amarrada com seu Lino, na pele fresca do boi, que acabava de ser morto, inda correndo bem sangue (GAMEIRO, 1980, p. 66).

A brutalidade da morte do irmão gera uma agonia em Valente e ele se vê

envolvido mais ainda pelo amor e ódio crescidos, na mesma proporção, por Isabela. No

entanto, leva a vingança até o fim; casa-se com ela e a abandona logo após a noite de

núpcias. E, jurando amor eterno, parte rumo ao Piauí para dar notícias de Lino à mãe

que tanto o esperava. Percebemos que o final do romance é trágico, embora não se saiba

a certeza da morte de Isabela. A morte do protagonista é, antes, uma morte em vida.

Valente encerra-se em si mesmo, em nome do amor nutrido por Isabela, que ele

pretende carregar enterrado no peito: “É que de lá pra cá, saí não mais nunca de dentro

de mim mesmo, por vigilar benquerença e tomar de conta das nembranças,

qu’estabelecem meu viver” (ibidem, p. 127).

Antes de partir de vez da fazenda de Isabela, Valente, em agradecimento a seu

Pulquério, segreda-lha um fato de sua vida, que também é novidade para o leitor:

– Seu Pulquério, meu amigo [...]. Entonces, a bem da verdade, sem esta de fulustreco, participo que meu nome em real de ser é Marcelo dos Andrades Cajazeira e que sou irmão gêmeo do finado Lino [...]. Aí vosmecê tem o motivo que me troixe e m’enxotou destas terras. Sou do sul do Piauí. Moro perto da cidade de Corrente, em fazendinha qu’é nossa e se chama Muçambê. [...]. Assim, peço a

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vosmecê obra de favor, somando àqueles qu’eu já tou devendo: cuide de minha mulher. Faça por mim, não por ela. Eu sofro. Vosmecê sabe disso, venho sofrendo antecipado, e até a dona sabia (ibidem, p. 128-9, grifo nosso).

Esse trecho inicia uma nova fase na vida do protagonista, agora já declarado ter

outro nome. Inicia-se a fase do luto, em que ele chora ‘tresdobrado’ pela morte do

irmão, pela dor da mãe e por sua sina mesquinha. Seus dias, sem vida, são consumidos

nos trabalhos da fazenda da família; a mãe tenta arrancar alguma confissão dele, já que

o silêncio se apodera de sua vida, até um novo dissabor invadir sua existência:

Tocando o causo p’ra frente, eu aviso a seu Doutor que o senhor dê de s’aprontar que o pior vem vindo agora, escritinho o repuxo duma enchente, a soco de tromba d’água, não dando pr’a tomar pé, que direi p’ra se boiar, caçando qualquer respiro!... parecendo, assim de muito, com o gume da foice da morte, roçando pé de vida dum cristengo, solavancando o sujeito até botar sem sentido desgarrado de qualquer tino (GAMEIRO, 1980, p. 145).

Esse elemento surpresa, parecendo ‘o gume da foice da morte’, era, na verdade a

chegada de seu irmão à fazenda; o irmão, que teria sido morto nas terras de Isabela e

que desencadeara toda a série de desgraças na vida do protagonista, estava vivo. O Lino,

morto na fazenda, era seu primo que tinha o mesmo apelido do irmão. Essa revelação

desestrutura mais ainda Marcelo/Valente, pois passa a ter remorso por ter abandonado o

amor de sua vida. O vazio que se apossara de seu peito, desde a volta da fazenda de

Isabela, cede lugar ao ódio pelo irmão e ao desespero diante da incerteza de ter ou não

matado Isabela, já que ele a deixara desacordada, ao abandoná-la, e isso o cega a ponto

de perder a sanidade mental.

Ai! Seu Doutor, que agastura! Que medonho estrugimento!... Já tantos anos passados, e só numa hora ingrata assim, que maginei nisso tudo. Foi consumição desmedida atubibando meu miolo!... Acho de ter sido o clamor daquela dúvida, me sacudindo sem pena, que me apartou de mim mesmo, verrumando teima assim: matei d. Isabela. Não matei. Enterraram. Não enterraram. A mulher já ´tá é morta. Qual nada, ela ‘inda ´tá viva. Este homem não é o Lino. É o Lino, sim, senhor! E esta mulher d’acompanho é a filha do seu Pulquério, ou adjunto mais outro p’ra moda de passatempo? E as crianças presentes, dadonde tinham saído?!... (GAMEIRO, 1980, p. 149).

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Essas dúvidas que pairavam sobre o protagonista só aumentavam o seu

desespero e sua infelicidade: teria matado a mulher que amava, em honra da memória

do irmão, cujo fim triste teria sido encomendado por ela? E agora, diante da certeza de o

irmão não ter morrido, mas sim o primo, tem a alma povoada de desassossego e uma

enfermidade toma conta de seus dias, levando sua mãe a velá-lo durante anos. E só o

poder da oração e os cuidados maternais fazem com que ele se restabeleça, como se

infere por essas palavras da mãe: “Arranquei sustança do corpo, dobrei as forças do

espírito e me larguei nos braços de Deus com vosmecê no regaço, nem ver criança de

colo” (idem, p. 151). Reencontrando forças para continuar a vida, aos poucos, as coisas

vão se ajustando e o protagonista retoma a rotina, sem, entretanto, esquecer sua história

de amor.

Todas essas informações são passadas através da conversa – uma espécie de

entrevista a uma pessoa interessada em sua história de vida – com seu interlocutor, o

Doutor que ouve e acompanha atentamente cada recordação do narrador. Em um

determinado momento da narrativa, o protagonista questiona se seu interlocutor não está

cansado, já que eles passaram a noite inteira neste relato – nos dando conhecimento de

que o tempo da narração é de apenas uma noite, como se reconhece pelo trecho a seguir:

Eu falei a noite inteira... Dê espiada, seu Doutor, ali, na extrema, p’ra ver se não são as barras do dia que já vêm arrastando a saia da luz por riba da escuridão? Isto quer dizer que se passou a noite toda quentando pé de borralho em reconto de minha vida (GAMEIRO, 1980, p. 160, sem grifo no original).

Desabafar toda sua história a um desconhecido não incomodava

Marcelo/Valente, porém algo o inquietava: por que o interesse do tal homem em sua

história triste, se ele era médico e não escritor?

Só tem mais uma demorinha, por amor de d’eu tomar as páreas, dando satisfazemento à teimosia duma pregunta, que se acha atubibando meu juízo em desne que meti pé nesta estória [...]: ora, se o Doutor não ganha vida com arromaçado de livro, estoriando vida alheia, por se dizer homem formado, com diploma de Doutor-Médico, qual foi o rendimento que achou em se pôr aí anotando do passado até o presente os mandos de minha sina? (idem, p. 160).

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A resposta a essa pergunta veio através das lágrimas do Doutor e de um gesto

inesperado para o narrador:

Me valha Nossenhora do Amparo e todos os santos da corte do céu e da terra, qu’eu fiz seu Doutor merujar o par de olhos!... Mas qu’é isto, moço de Deus? O Doutor tomou louquice? Por mor de que traz mão estirada, pedindo benção, p’ra mim? Vosmecê fala é no sério? E ´tá mesmo garantindo qu’eu sou o pai do senhor?!... Não será qu’é sonho não? Entonces vosmecê, um moço de luxo, puxado em educação e refinada sabença, e até homem formado, é meu filho de verdade? [...] Ah! Este mundão de porte, em vero mesmo de ser, é pequeno, nem ver um ovo... Eu lá podia nunca esperar a pessoa dum filho meu, já entroncado em graúdo de homem vistoso assim? [...] Repare bem, seu Doutor, meu filho, o guadiante que amostro... (idem, p. 161, sem grifos no original).

Essa nova informação só é conhecida, pelo leitor, ao final do livro, mostrando,

com isso que, mesmo que o narrador-protagonista apresente uma narrativa

autobiográfica, através das lembranças, o relato é dado de modo linear, salvo algumas

passagens em que a narração é interrompida para dar conhecimento de outro fato.

Assim, o leitor acompanha, atentamente o ‘desmembrar’ dos últimos 25 anos do

narrador, sem que este se utilize dos recursos das anacronias, que consistem em

antecipar ou protelar eventos, tão comum nas narrativas de caráter memorialista –

discussão retomada em tópico posterior, no qual discorreremos sobre o tempo em

Curral de Serras.

2.2 A arquitetura verbal de Alvina Gameiro

O Doutor mesminho sabe que por estes sertões sem cerca o povo fala é no sistema que tem costume d’escuitar.

Alvina Gameiro

A linguagem do romance Curral de Serras apresenta aspectos que muito se

aproximam da oralidade, revelando, assim, que, no universo linguístico de Gameiro, a

autenticidade da linguagem colhida no sertão (MOURA, 2001) é muito valorizada. Essa

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linguagem, carregada de subjetividade, chega a gerar um efeito poético, talvez, por isso,

Manoel Paulo Nunes7 tenha afirmado que o romance é um poema em prosa, inclusive,

com versos metrificados. Em nossa pesquisa, não utilizaremos a métrica para investigar

a veia poética do romance, mas a subjetividade linguística, que transita entre o lirismo e

a filosofia, como se percebe na frase: “[...] viver é a gente gastar o tempo e o tempo

gastar a gente” (GAMEIRO, 1980, p. 113), na qual se percebe um caráter de

ensinamento, de reflexão sobre a vida. Toda a narrativa é recheada de reflexões como

essa – o que nos faz pensar esse trânsito lírico-filosófico do romance.

Além desse aspecto, a autora prima por outra particularidade: a peculiar

linguagem caipira, de “sabor ingênuo” e conservador do modus vivendi de seus

personagens.

O Doutor tome na conta que forneço meu relato, mas já é passado a limpo, debulhado dos entraves. S’eu tivesse pondo em uso, ali, pelo pé da letra, todos os ditos desses muitos, não dava nem pr’a se ouvir, que digo entonce p’r’o Doutor poder decifrar? (GAMEIRO, 1980, p. 73).

Observa-se, pelo trecho, que há uma preocupação do personagem em explicar o

uso de determinada linguagem pela gente do sertão. É como se o interlocutor somente

fosse capaz de entender aquilo que estivesse ‘traduzido’ por alguém da região. Assim, o

narrador, em vários momentos da narrativa, tenta dar essa explicação de como se

manifesta a oralidade sertaneja. Isso se dá, segundo Hudinilson Urbano (2000, p. 19),

porque “[...] a competência de falar ou narrar é outorgada pelo autor da obra a entidades

que ele mesmo projeta, como o narrador, personagens, personagem-narrador etc.”. Em

Curral de Serras, é Valente quem se encarrega de ‘passar a limpo’ a linguagem do povo

da região. Gameiro prioriza o aspecto da oralidade na escrita do romance, para

‘imprimir’ as marcas do regionalismo e fidelizar a fala da gente do sertão nordestino.

Segundo Dino Preti (1982), essa transformação da fala em escrita literária, que chega ao

leitor com aparência de realidade, não é aleatória. Existem certos recursos para isso. É

exatamente essa ideia que temos da obra da autora piauiense: a sensação de estarmos

diante de fatos da realidade. Essa oralidade na escrita constitui marca estilística do

romance e não se trata de ‘depurar’ a língua falada popular nem de tentar elevá-la à

7 “Curral de Serras é um poema em prosa, inclusive porque é composto todo ele em versos de redondilha maior, métrica multissecular da Língua Portuguesa”. (NUNES apud MOURA LIMA e DIAS, 2001).

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categoria de literária, mas sim de literalizá-la no que tem de espontâneo e expressivo,

ressalta Urbano (2000) sobre o assunto.

A. Tito Filho define o ponto alto do romance Curral de Serras como sendo “a

fixação da linguagem desses trechos humanos sem contatos com o progresso e com as

transformações dos modos de viver dos povos” (GAMEIRO, 1980, p. 8). Tal

informação, logo na apresentação do romance, pode direcionar o leitor para um olhar

sobre a gente do sertão, através de uma ótica estereotipada e reduzida do sertanejo como

sendo aquele que não teve contato com o progresso, verdade que se desfaz na medida

em que a narrativa se desenvolve.

Moura Lima e Dias (2001, p. 7) apontam que o romance apresenta uma fala

cronológica,

[...] medida pela cadência e pelo ritmo. Há na estrutura frasal um halo poético que pontilha a ação e robustece a afirmativa de que a fala nordestina é cantada. E a arquitetura da frase gameriana sinaliza em seu eixo uma acentuada queda para as formas regulares, que denuncia um fator intencional de materializar sonoridades métricas e estróficas.

A arquitetura frasal gameriana é responsável não só pelo encantamento do leitor

diante da sonoridade das palavras, mas também pela compreensão dos elementos

basilares na construção do romance. O leitor é apresentado ao palavreado do povo

sertanejo do romance, que, pela ótica do narrador, fala assim: “Êi! Ramo, raca réia

ralente... Rigia diacho! qui ralentia eu também gumito pru mode metê rosmecê no

currá” (GAMEIRO, 1980, p. 74). Essa, segundo o narrador, era a linguagem do povo

que não conhecia escola, a não ser de nome e isso era passado de geração a geração.

Entretanto, essa marca linguística não constitui característica do sertanejo traçado pela

autora, é, antes, uma particularidade de determinado grupo presente no romance. Aqui o

narrador se refere ao “atravessamento de língua de caboclo brabo, negro da senzala e

matuto destes sertões por dentro” (idem, p. 73). Essa linguagem o narrador conhecia

bem, embora salientasse ser entendido nas letras: “Não desconheço meus recursos; sei

que não sou bem falante, e não aprendi no apurado, mas tomei algum estudo, andei

lendo ror de livros, almanaques de remédios e uns folhetos d’estórias que cheguei a

decorar” (idem, p. 73).

Infere-se, a partir do trecho, que o narrador tem alguma escolaridade, embora

tenha sido criado no sertão nordestino, onde a vida é mais difícil, segundo os discursos

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engessados, o que reitera a discussão de Albuquerque (2009) de que o Nordeste não é só

a região de miséria e seca, mostrando assim um diálogo do modo de vida do sertanejo

com várias culturas brasileiras. De acordo com Urbano (2000, p. 13), “as variedades

socioculturais e as modalidades relacionam-se entre si, de modo geral, por uma maior

aproximação da linguagem culta à escrita e da popular à falada.” Tal assertiva talvez

nos leve a questionar, segundo Dino Preti (1982), “Como pode a língua escrita

incorporar a falada? Como se pode pensar o oral no escrito?” Essa seria a grande

questão a ser levada em conta em nosso trabalho, pois partimos dessa ideia de pensar a

escrita de Gameiro como a representação da fala do homem do sertão. Verifica-se que a

autora parece rechear o discurso de Valente

com termos e expressões locais [...] para que funcionassem como um verdadeiro índice da personagem (sua origem sertaneja, sua cultura, sua personalidade). Não podemos ter dúvida, pois, de que há uma tentativa de reproduzir a linguagem rural [...] (PRETI, 1982, p. 128, grifo no original)

A origem do protagonista é denunciada em dois momentos do romance, quando

ficamos sabendo que Valente é piauiense: o primeiro é quando ele narra uma aventura

no Ceará, por conta de uma encomenda de medicamentos, em que o cliente teria se

indisposto com ele; o segundo momento é quando o narrador, despedindo-se da fazenda

de Isabela, resolve relatar ao amigo Pulquério a história de sua vida. O narrador é do

Piauí, de uma localidade próxima à cidade de Corrente. Entretanto, em apresentação a

Isabela, ele declara ser de outro Estado: “[...] sou cearense, nascido nas terras de seu

Balbino, qu’é bisneto dos Medeiros, da raça dos Carvalhosos, gente antiga, fina e

graúda, quase toda afazendada no município de Crato” (GAMEIRO, 1980, p. 21). A

moça, porém, desconfia da informação do rapaz e, em outro momento de conversa,

afirma: “ora, vosmecê disse na chegada qu’era filho do Ceará, e não achei pé nisso

logo...” (idem, p. 38). Essa desconfiança se deu porque a patroa achou a fala do

protagonista parecida com a de uma lavadeira de roupa que também era do Piauí. “[...]

siá Fredesvinda, aquela que lava roupa e é filha do Piauí, traz em uso um conversado

irmão gêmeo deste um, empregado por vosmecê” (ibidem). Para afastar qualquer

sombra de dúvida, o rapaz diz ter mãe piauiense e isso convence Isabela. “Agora, o

senhor me diz que tem mãe nascida no Piauí, deve ter pegado fala do mesmo jeitinho

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dela, e o causo ‘tá explicado... Conversando no correto, é que a gente s’entende, mata

dúvida e acaba mesmo é botando as cartas na mesa...” (ibidem).

Ressalta-se, com isso, que a linguagem oral, muitas vezes, denuncia o falante

como pertencente a uma determinada região. Mesmo em se tratando de estados

localizados na mesma região geográfica, há particularidades em cada registro oral,

diferenciando-os nesse aspecto. Neste sentido, não se pode cometer o erro de

condicionar diretamente a língua aos fatores culturais ou raciais, embora se reconheça

que pode haver uma ligação entre eles, em especial no que se refere ao vocabulário de

uma língua, segundo Preti (2000). É necessário, porém, entender as variações por que

passam os falantes de uma língua, considerando ainda que a linguagem varia no tempo,

no espaço, na hierarquia sociocultural, na situação de comunicação e na forma de

realização.

No romance ora analisado, essa variação linguística é perceptível nos

personagens centrais (Valente e Isabela) e aqui destacamos a questão do pronome de

tratamento, para demonstrar que, numa situação de comunicação, a variação linguística

marca também hierarquias. No primeiro contato dos protagonistas, Isabela o chama de

senhor, mas com a convivência diária, ela determina que passará a tratá-lo por vosmecê

e ele a tratará por vossa mercê, demonstrando o poder da e reforçando a importância de

não se ultrapassar as fronteiras estabelecidas por ela.

Importante ressaltar ainda o uso das reticências marcando as falas dos

personagens no romance de Gameiro. Preti (1982, p. 132), analisando Visconde de

Taunay, destaca que o uso desse tipo de pontuação demonstra que o autor parece ter

[...] plena consciência do ‘truncamento frásico’ na língua falada, anotando sempre com reticências as interrupções da frase, motivadas por fatores situacionais, como a emoção, por exemplo, mas também por uma natural incapacidade do falante no arranjo das palavras, sua distribuição correta o período e suas relações recíprocas.

Curral de Serras é todo marcado por essas interrupções, mas destacamos trechos

de uma conversa do casal, refletindo sobre a poesia da chuva, no sertão, para

exemplificar essas interrupções. Isabela desconfia da tristeza de Valente e tenta

arrancar-lhe alguma confissão.

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- Respire... como é gostoso o cheiro de terra molhada com mão das primeiras águas... [...] Se os olhos não me enganam, vejo neblina banzeira, carujando no rosto de vosmecê. É por via dalguma dama, de mulher outra qualquer, também dum filho, da senhora de vosmecê ou é nembrança d’algum irmão? tenho cá um desentendido, que pinica meu juízo ... É por razão deste sério que sojiga vosmecê e não solta alegria nem ao menos um bocadinho... Será morrinha de amor? (GAMEIRO, 1980, p. 38)

Observa-se que a pausa no discurso é marcada pela emoção de Isabela. Tomada

pelo ciúme dos pensamentos do amado, a moça interrompe o desenrolar das ideias,

como se quisesse dar espaço para que ele completasse as lacunas deixadas pela

incerteza do amor. A emoção também rompe a fala de Valente, em outra passagem,

quando ele se sente invadido pelo vazio diante da perda de si próprio. “Eu vivia era só

em corpo, que minh’alma eu deixei longe...” (idem, p. 131).

Esse discurso lírico-reflexivo se repete por todo o romance, como já foi frisado

anteriormente. A autora parece selecionar ditos filosóficos para, então, inseri-los na

narrativa, atribuindo-lhe o caráter de ‘ensinamentos’, passados tanto pelo protagonista

quanto por outro personagem. Destaquem-se aqui as lições passadas por compadre

Conrado a Valente, quando este andava entristecido pela dor do amor perdido:

[...] mal de amor estabelece diferença no reconhecível. É dor que não se consola, traz desapiedade em abundância, abrolha, cresce, atopetando um vivente, até adotar os dentros [...] E quanto mais a gente dá d’arrancar raiz, desabastar e fazer poda, mais alguma outra judiação, aí é que a diaba cresce e dobra sustança à beça, nutrida que nem dá amostra de ter sofrido qualquer maltrato... É deste amor que vosmecê foi mordido. É do que sente e se ressente. E, s’eu não tomo caminho errado, o bem-querer que atitubiba o juízo de vosmecê ‘tá naufragado no sem-jeito. (idem, p. 135).

Percebe-se a força da ancestralidade presente no trecho. A importância da

sabedoria passada pelos mais velhos, explicando essa sabedoria como sendo “o

momento em que as águas se separam com maior nitidez”, de acordo com Eclea Bosi

(1994, p. 60). Mesmo com todo respeito pelo amigo, as orientações do velho não são

argumentos suficientes para que Valente volte à fazenda de Isabela, preferindo sofrer as

incertezas sobre a vida da amada. Todo o aspecto reflexivo do romance gira em torno da

identidade do personagem central. Inicialmente, ele questionava o caráter de Isabela;

depois tenta entender por que ela teria matado seu irmão; por último, vem a inquietação

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do amor, trazendo consigo a certeza do casamento (que ele diz ser um chamado para a

morte) e a incerteza de vida após a vingança. Em momento de desajuste de ideias, o

narrador define sua situação:

[...] eu não era nem casado, nem solteiro, nem viúvo. No muito, era um descasado, mas fiel a compromisso de fogueira de São João e benzedura de mandingueiro, lacrada com pacto de sangue e promessa d’amor eterno extremado até a morte (GAMEIRO, 1980, p. 136).

Valente, mesmo sofrendo acentuadamente a perda da amada e reconhecendo

esse sofrer, não desistia da lida no campo. Podemos dizer que Gameiro reforça, com

isso, o caráter de homem forte do sertão, que não se deixa levar pelas fraquezas da alma.

Passados alguns dias, desde a chegada da Fazenda, o narrador tenta retomar a vida,

como mostra o trecho:

Nem chegou a fazer um mês, quando dei de terrar os pés e me pôr, de qualquer jeito, d’unhas grudadas no trabalho. E foi com esse recurso de fazer das fraquezas forças que, com umas poucas semanas, já porfiava na bruta, e o arrocho do serviço ia serenando meu tormento: consertei todo o cercado, mudando estacas podres adonde o arame bambeava; levantei uma parede do quartinho do paiol, que s’amostrava aluída; dei limpa no poço fundo [...]; andei trocando uns mourões da porteira, endereitando o chiqueiro das cabras e dos porcos; consertei a cancela do galinheiro [...]; também tratei de conferir nosso gadinho[...]. (idem, p. 131)

Verifica-se que a autora tenta representar o sertanejo através de características

que o identifiquem como um homem forte e corajoso. Essa tentativa de representação

do real, segundo Preti, (1982, p. 74), se dá porque,

[...] em certos escritores [...] há um interesse evidente em apresentar suas personagens como seres vivos, com relações diretas com o ambiente em que atuam, muito embora reconheçamos que tal processo nem por isso deixe de continuar sendo ficção, mera mimese seletiva da realidade. Poderíamos, acaso, duvidar de que um Visconde de Taunay, por exemplo, nos primeiros alvores de Realismo literário, tivesse tido este interesse obsessivo pela realidade da fala de suas personagens, a ponto de incluir, em seu romance Inocência8, notas de

8 [...] Inocência é uma das primeiras obras em nossa literatura que enfrentou o problema da transcrição do ato da fala, procurando pelos desvios de norma urbana culta fixar os falares rurais de suas personagens. (PRETI, 1982, p. 138)

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rodapé, para justificar as variações de linguagem apresentadas, em função dos desvios de norma culta, em determinada comunidade?

Gameiro também traz, não em nota de rodapé, mas em glossário, explicações

sobre alguns termos usados por seus personagens, rendendo-lhe a singularidade da

representação regionalista. O glossário demonstra o conhecimento que a autora tem do

vocabulário apresentado no romance, intensificando o aspecto regional deste. Ao

utilizar variantes como “se avexe não”, “apear”, “fogoió” “carecer” etc., o narrador

realça e endossa o discurso do sertanejo nordestino. Essa opção de Gameiro pelo

discurso informal e oral dinamiza a narrativa e endossa nossa análise linguística. Preti

(2000, p. 12) enfoca que

[...] a análise linguística do texto literário [...] possibilita um outro ângulo de compreensão [...]: a valorização da língua falada, que surpreende o leitor, ao se dar conta que se narra e “se fala”, na obra, com a linguagem do dia-a-dia, a qual o envolve e o absorve, com a mesma força com que pode fazê-lo nas situações de comunicação, na vida real.

A força da oralidade é, sem dúvida, um dos grandes recursos estilísticos de

Gameiro, em Curral de Serras. Não se pode, apesar disso, negar o aspecto de língua

culta presente nos discursos dos personagens. Poderíamos apontar uma relação de

formalidade dentro da informalidade da linguagem oral do romance. De acordo com

Urbano (2000, p. 135-6), a informalidade na produção literária se faz por simulação. E

explica:

Será tanto mais informal quanto mais revelar um tom de descompromisso com as técnicas, regras e fórmulas especiais e complexas, um tom de narrativa oral coloquial, isto é, como se produzida distensamente para ouvintes à frente, como se despreocupada com o rigor na linguagem, no plano organizacional e na interligação lógica dos fatos e circunstâncias, na sequência tópica cronológica, com situações dramáticas mais ou menos bem caracterizadas e delimitadas, com relação planejada de incidentes e parágrafos, atingindo o leitor com uma sensação desconcertante. Tudo, ao contrário, caracterizaria uma narrativa mais formal, elaborada.

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Há que se considerar que a linguagem coloquial9 de Curral de Serras não lhe

subtrai o caráter de texto bem elaborado e nem gera uma contradição, pois a autora

consegue transitar entre o oral e o escrito, demonstrando, com isso, uma sintonia entre

as duas modalidades porque a autora dá a seus personagens e, em especial, ao narrador,

a responsabilidade de reproduzir um discurso, através de frases feitas, expressões típicas

do sertão nordestino. Para isso, transcreve a língua regional de lugares afastados da vida

urbana, como se verificam nos trechos mostrados a seguir:

Mas a fé, ouvi dizer, só morre se o homem é morto. (p. 27)

[...] assim eu fui ensinado: é dever de toda pessoa que se preza e

tem vergonha. (p. 29)

Decisão é um acerto tomado com a gente mesmo. (p. 46)

A verdade, seu Doutor, não é obra de julgamento, que deite

brolhos de amostra na raiz de informação. A verdade deve de ser

o resultado da certeza (p. 55)

Deus quando fez vosmecê gastou fartura de galas e prendas

d’embelezado, que não sei como sobrou embelecos uns

qualquer, p’ras outras mulheres do mundo... (p. 58)

Essa veia regionalista de Gameiro, em fidelizar o sertanejo, principalmente no

que concerne a linguagem, faz com que a autora seja comparada a Guimarães Rosa.

Ressaltamos que essa aproximação é feita por alguns críticos locais, como Francisco

Miguel de Moura, mas há distanciamentos defendidos por outros. Moura (2001, p. 167)

descreve Curral de Serras como sendo “[...] obra monolítica, segura, onde sobressai o

ritmo popular da redondilha maior, num exercício profundo de captação da antiga

Língua Portuguesa no discurso do sertanejo, com muita originalidade, só encontrado

paralelo em Guimarães Rosa”. Embora não se questionem (in)verdades nessa assertiva,

nossa pesquisa não objetiva o alargamento dessa discussão. Se há essa aproximação (e o

há), como se infere por alguns trechos, em que comparamos a estética verbal de um e do

9 O termo coloquial, adotado nesta análise, segue a indicação de Urbano (2000): coloquial, sinônimo de conversacional (um subgênero da língua falada).

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outro, não ampliaremos a discussão, por conta do recorte analítico pretendido neste

trabalho.

Contudo, não abandonaremos de todo a possibilidade analítica comparativa, até

porque, seguindo as indicações de Eco (1994), uma análise não impede outras, já que

um texto não perde a magia se for dissecado. Assim, lançaremos nosso olhar sobre o

que chamamos anteriormente de universo linguístico dos dois autores, não com o intuito

de estabelecer paralelos entre eles – pelo menos em um primeiro momento – mas no

sentido de entendermos a lógica da construção do povo sertanejo, a partir dos elementos

constituintes de uma marca identitária. Se a autora piauiense se aproxima do mineiro

Guimarães Rosa, em termos de estética verbal, comparações com outros autores

poderiam ser feitas, em relação, por exemplo, a construção de personagens. Neste caso,

teríamos a personagem feminina central de Curral de Serras – Isabela – que, dadas suas

características fortes, julgamos conveniente aproximá-la de Maria Moura, personagem

de Rachel de Queiroz, no romance Memorial de Maria Moura (1992). Assim,

salientamos a relevância de um estudo mais aprofundado, utilizando o método

comparativo, para compreensão de outros aspectos do romance que, no momento,

fogem ao nosso olhar.

No que tange à aproximação de Gameiro ao autor de Grande sertão: veredas, é

válido ressaltar que, embora haja divergências de opinião crítica acerca dessa

aproximação, há que se considerar que ambos primam por uma linguagem rica,

carregada de marcas da oralidade, que os elevam a um patamar de reconhecimento no

que diz respeito à ‘autenticidade’ linguística. Em Curral de Serras encontramos “termos

que remontam ao português castiço, em desuso no meio urbano” (MORAES, 2006, p.

23). Esse aspecto linguístico é considerado o grande achado do romance. Dino Preti

(1982, 128) ressalta que o tom pitoresco dado à linguagem por alguns autores, através

dos regionalismos, dá a esses autores a possibilidade de tentar “criar uma atmosfera

sertanista, procurando fazer com que suas personagens utilizem o vocabulário como um

índice da condição social em que vivem na comunidade”. Isso é perceptível no romance

de Gameiro, não só no personagem Valente, mas em todos os demais a quem é dada voz

na narrativa. É neste sentido que ressaltamos a linguagem como elemento fundamental

na caracterização de Curral de Serras como romance regionalista, conforme será

discutido em capítulo posterior.

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2.3 O narrador de Curral de Serras e a ordenação do tempo e do espaço

Aqui, onde a voz do narrador se cala, o autor quer que passemos o resto da vida imaginando o que aconteceu.

Umberto Eco

Outro aspecto merece atenção especial no desenrolar da narrativa de Curral de

Serras: a presença do interlocutor. O narrador, que também é o protagonista, tem um

interlocutor, a quem ele trata por ‘seu Doutor’ – personagem que só ganha ‘voz’ ao final

da narrativa para revelar sua identidade. Antes que isso aconteça, é como se cada leitor

fosse o doutor que ‘ouve’ atentamente o monólogo do personagem. Para dar a sensação

mesmo de se ouvir a voz do narrador, a autora utiliza uma linguagem intercalada de

elementos próprios da oralidade: “O Doutor repare bem; agorinha dou entrada no

atalho, que de banda deixei no começo desta estória. Não tá anembrado? Era conversa

da chuva, vestindo a terra de novo [...]” (GAMEIRO, 1980, p. 47). Esse relato tinha sido

interrompido para o narrador retratar a tristeza que se apoderou dele com a chegada da

chuva, causando desconfiança em Isabela.

Ali parou bom pedaço. Na certa ´tava me olhando, mas eu reparava era no céu, sentindo a cara da dona enfiada no meu rumo, e ela continuou: – Quando chove, já botou sentido nisto? Tudo ganha deferença. É uma troca no geral. Até parece que o inverno traz a alma das mudanças. Aumenta ou míngua tormento... Quem deixou amor distante, é ver água é ver saudade criando raiz no peito, dando broto das nembranças daquilo que se passou, do gosto que já se teve e ficou noutro lugar... (GAMEIRO, 1980, p. 38).

Como em um discurso memorialista, o narrador vai deslocando as camadas da

memória para dar conta de seu relato e o faz como quem tem conhecimento dos ditos,

dos causos, enfim, como alguém que conhece a fundo seu povo, sem precisar recorrer às

lembranças dos outros para intensificar a sua, como defendem os autores da teoria

memorialista. Halbwachs (2004), por exemplo, diz que recorremos às lembranças dos

outros para intensificar a nossa, mas isso não é muito perceptível em Curral de Serras,

pelo menos na conversa entre narrador e interlocutor. Todas as informações passadas

pelo narrador são extraídas de sua própria memória. Assim, é preciso que se

compreenda o papel do narrador da obra literária, de acordo com Urbano (2000, p. 24).

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Todo conto, por exemplo, tem um narrador, delegado direto do destinador-enunciador, que eventualmente tanto pode coincidir ou fundir-se com o autor (narrador onisciente ou de terceira pessoa), como estar em sincretismo com um protagonista da história (eu-narrador-protagonista).

No romance analisado o narrador desempenha o papel de narrador-protagonista

e toda a história contada é refletida no discurso de Valente. Candido (et al, 2009, p. 26),

discorrendo sobre a importância do narrador, salienta que

Na ficção narrativa desaparece o enunciador real. Constitui-se um narrador fictício que passa a fazer parte do mundo narrado, identificando-se por vezes (ou sempre) com uma ou outra das personagens, ou tornando-se onisciente.

O narrador do romance tem autonomia sobre a narrativa, pois é seu ponto de

vista que predomina. Valente relata toda sua vida ao interlocutor sem se preocupar com

a veracidade da informação. Ele afirma com prontidão seu discurso e sua única

preocupação é se o interlocutor vai acompanhando seu raciocínio. “O Doutor vai me

seguindo? Tomou piso do enredo. Entonces, dê reparo que ´tou mesmo m’enfiando, sem

saída, é numa estória de amor...” (GAMEIRO, 1980, p. 37). Como os acontecimentos

jamais podem se narrar a si mesmos, segundo Todorov (2008), é preciso que haja um

emissor capaz de proferir o enunciado literário. Aqui entendido, conforme Urbano

(2000, p. 20), como sendo o próprio discurso literário. O autor seria o artista da obra

literária e o narrador/emissor a figura central, responsável pela emissão do discurso.

Dentro das ‘condições concretas da comunicação’, destaca-se em particular, a figura do emissor; no caso específico do discurso literário, é o fator condicionante, representado pelo autor, como artista da palavra em geral e como artista de uma obra literária em particular.

A presença de um interlocutor seria outra possibilidade comparativa entre

Alvina Gameiro e Guimarães Rosa. Em Grande sertão: veredas (1967), Riobaldo

também tem um interlocutor, mas limitemo-nos a considerar a aproximação em termos

de linguagem. Analisando a imagem de sertão na literatura, a partir de um estudo

comparado, Valverde (2008, p. 114) informa que “a escrita de Guimarães Rosa instaura

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uma nova dizibilidade do sertanejo, homem brasileiro”. Se Guimarães instaura, Alvina

segue a mesma linha, parecendo comungar o caráter musical das palavras “como forma

de abstrair uma compreensão mais aguda do ser e estar no mundo” (id. ibid). Optando

por manter o ‘linguajar’ do povo sertanejo, a autora mantém “uma certa autenticidade

da linguagem, aproximando talvez do estilo do grupo modernista de 30, que tanto

valorizou a temática regionalista”, (MACEDO, p. 98). Essa seria uma das possibilidades

de classificação do romance em uma estética realista.

Salientamos que, sendo o narrador o responsável pela ordenação dos fatos, é

necessário que ele transite entre o mundo narrado e o mundo comentado; o tempo da

narrativa e o tempo da narração, pois ele tem o ‘poder’ de controlar a narrativa de

modo a tornar compreensíveis os momentos de fato e de relato. Segundo Urbano

(2000), “ao mundo narrado pertencem todos os tipos de relatos constantes na narrativa;

ao mundo comentado, todas as situações comunicativas que não são relatos, citando-se

de maior interesse aqui o diálogo e o comentário propriamente dito”. Benveniste (apud

URBANO, 2000, p. 39) explica:

Cada vez que no seio de uma narrativa histórica aparece um discurso, quando o historiador, por exemplo, reproduz as palavras de uma personagem ou intervém, ele próprio, para julgar os acontecimentos referidos, se passa a outro sistema temporal, o do discurso, o próprio da linguagem consiste em permitir essas transferências instantâneas.

Valente é o personagem central, a partir do qual se tem um foco narrativo, mas

tem sua importância dividida com Isabela, que, na mesma proporção, reclama para si o

protagonismo; porém, é o rapaz o detentor do discurso. E, considerando a fala de

Benjamin (apud BOSI, 1994, p. 84), de que há dois tipos de narrador: o que vem de fora

para contar as aventuras e o que ficou e é conhecedor do povo, questionaríamos: qual

dos dois caracterizaria Valente?

Sempre houve dois tipos de narrador: o que vem de fora e narra suas viagens; e o que ficou e conhece sua terra, seus conterrâneos, cujo passado o habita. O narrador vence distâncias no espaço e volta para contar suas aventuras (acredito que é por isso que viajamos) num cantinho do mundo onde suas peripécias têm significação.

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Retomando a trajetória do protagonista, tem-se um ‘viajante’, desbravador do

sertão nordestino, portanto, tomando o Piauí como referência, é alguém conhecedor da

terra e dos conterrâneos; mas, considerando sua morada no Ceará, na Bahia, em

Pernambuco, este se torna o viajante que narra suas viagens. Mesclam-se, assim, os dois

narradores, citados por Benjamin, no mesmo personagem. Isso seria possível graças a

liberdade criativa do autor, pois “neste mundo fictício, diferente, as personagens

obedecem a uma lei própria.” (CANDIDO, 2009, p. 67). O narrador tem a liberdade de

alterar o modo da narração para impor, de certa maneira, o seu relato e Valente o faz

transitando entre o tempo da história e o da narração. Ao contar um fato ele tem o

cuidado de antecipar ao leitor (através do interlocutor) que fará uma retomada no tempo

narrativo para explicar com mais clareza uma determinada situação.

Para se entender como se daria esse deslocamento do tempo narrado para o

tempo da história narrada, é necessário entender esses dois aspectos temporais: o tempo

da narrativa – tempo em que os fatos aconteceram (25 anos) e tempo da narração –

tempo que o narrador leva para contar esses fatos (uma noite). Toda história de vida do

protagonista é contada ao interlocutor através das lembranças que vão surgindo, mas o

narrador tenta ordená-las de modo que elas não percam a linearidade; assim, conta sua

sina de viajante a partir do dia em que aceitou o convite para trabalhar na fazenda de

Isabela até o momento da separação do casal.

Citando Bastos (1983), Urbano diz que é possível passar do comentário à

narração e vice-versa e que essa passagem é uma característica do discurso oral em

relação ao escrito. É possível se perceber essa técnica em Curral de Serras, pois o

narrador, muitas vezes, para explicar fatos do presente da narração precisa voltar ao

presente da narrativa. Considerando tempo da narração o tempo da conversa com o

Doutor, tem-se, no trecho a seguir uma passagem explicativa, logo no início do

romance: “Se avexe não, doutor. Quando bem nem vosmecê esperando ‘teja, esbarro no

mesmo ponto e emendo na saudade que acabo de suspender. Entonces, como ia dizendo,

‘tava apeado [...]” (GAMEIRO, op. cit. p. 9). A narrativa havia sido suspensa.

Ainda é Urbano que nos orienta nessa análise. Segundo ele, a mudança de tempo

pode ser indicada pelos verbos que ora estão no presente ora no passado; podendo ainda

estarem no futuro, mas no romance aqui analisado o deslocamento se dá mais para o

passado, como já explicitamos anteriormente.

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Certas partes de um texto, com efeito, podem ser realçadas pelo pretérito perfeito e pretérito imperfeito. Esse realce tem, teoricamente, por função colocar certos conteúdos em primeiro plano, priorizando-os como fundamentais, e deixar outros num pano de fundo, considerando-os secundários. (URBANO, 2000, p. 40)

Tal reflexão explica-se através de uma conversa do narrador com seu

interlocutor, em cuja passagem ele justifica por que não teve medo de Isabela quando

chegou à fazenda.

O Doutor por certo não entende o regulamento do meu dito... Mas porém, repare o estado aquele, adonde meu espírito se amontava num ror d’experimentados... [...] Um sujeito assim, que nem eu, tem pesponto em terra esticada, com toda versidade do chão. Andou azulando oitão de serras, despois de varrer pelos baixos [...] Cristengo em tal escolha – seu Doutor, fique sabendo – já se acha diplomado [...] O Doutor me diga: eu podia ter sobrosso de mais algum traconismo? Qual o quê! Aguardava o chamado da mulher, mas era m’embalando na rede, no bem-bom e descansado... (GAMEIRO, op. cit, p. 19, sem grifo no original)

Pelos verbos destacados, percebe-se que essa variação temporal é necessária

para que fato narrado e fato acontecido tenham sua identificação reforçada. Cada vez

que Valente chama a atenção do Doutor para acompanhar seu relato, ele tem a

preocupação em justificar tal relato, voltando ao passado para enfatizar a veracidade da

informação, como se quisesse preencher todas as possíveis lacunas deixadas pela

narração. É a ‘verdade’ do narrador que vai prevalecer, pois é “a personagem que com

mais nitidez torna patente a ficção, e através dela a camada imaginária se adensa e se

cristaliza” (CANDIDO, 2009, p. 20).

O caráter anacrônico da narrativa, segundo Genette (1995), seria estabelecido

nos desvios entre duas variações: ordem e duração; e que o recurso narrativo mais

comum seria intercalar sequências retrospectivas ou prospectivas às sequências narradas

– principalmente em se tratando de narrativas memorialistas, em que os eventos são

narrados à medida que surgem na lembrança do personagem – evocando ou antecipando

fatos, de modo que a ação se desloque para o passado ou para o futuro sem que o

discurso se torne descontínuo. Destes recursos, em Curral de Serras é mais utilizada a

técnica do flashback, considerando que os fatos são contados por um narrador que tem

conhecimento sobre todos os eventos e que pode ordená-los da maneira mais

conveniente, tornando o trajeto princípio/fim um caráter de mobilidade. Importante

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também ressaltar que toda a narrativa é vista por uma única perspectiva e isso assegura

ao narrador uma liberdade de conduzir o enredo de forma espontânea, conforme o

aparecer das lembranças, apoiado nos pressupostos de Halbwachs (2004, p. 29) de que

“o primeiro testemunho a que podemos recorrer será sempre o nosso”.

Ainda há que se considerar outro aspecto temporal: o tempo da leitura, que não

deve, obrigatoriamente, coincidir com os demais. Por se tratar de narrativa escrita, o

estabelecimento da diferença entre tempo de discurso e tempo da leitura torna-se difícil,

como observa Eco (1994, p. 65):

Na ficção escrita, com certeza é difícil estabelecer o tempo do discurso e o tempo da leitura: entretanto, não há dúvida de que às vezes uma grande quantidade de descrição, uma abundância de detalhes mínimos podem ser não tanto um artifício de representação quanto uma estratégia para diminuir a velocidade do tempo de leitura até o leitor entrar no ritmo que o autor julga necessário para a fruição do texto.

É interessante observar como o narrador tenta controlar o tempo da leitura em

Curral de Serras. Apesar dos detalhes descritivos e mesmo narrativos, o leitor é

redirecionado ao desenrolar da narrativa, através da preocupação que o narrador tem em

saber se o interlocutor está realmente acompanhando a história. Como se ele precisasse

da certeza de que o leitor acompanha suas lembranças.

Outro aspecto igualmente interessante a ser observado é que a descrição

detalhada, no romance, não torna a leitura enfadonha, pois é uma descrição impregnada

de poesia, como se infere a partir do trecho em que o narrador descreve o local do

banho, na fazenda de Isabela.

Com lindeza caprichosa, dessas coisas afermosadas, que só a mão de Deus sabe afeitar, se amostrava o banhado. Desencontro sem termo a natureza fazia ali: secura de rachar pé, campeando duma banda da terra, doutro lado a fresca por molhado da corrente, alargada de muito naquele ponto. E despois, fiquei sabendo qu’ela era o corpo refeito daquele olinho-d’água, adonde matamos sede, em descidos da morraria. Olhei o revezamento do fiinho da vertente, virado em ribeira, com querer bem já nascido em desne a primeira vista. Fui metendo devagarzinho a minha mão no riacho e, mesmo assim, com todo o jeito, amassei a cara d’água. Tomei banho demorado, naquele morno que tem colo de mulher amorosa. M’enfiei em roupa limpa, pois que arrengo dum cabra churro, com inhaca de ranço. Brilhantinei meus cabelos p’r’o louro fechar a cor, abri caminho duma banda, antes de me pentear e, já no ponto arrumado, voltei pelo mesmo

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caminho, fazendo que não dava fé do povo qu’encontrava na estrada. (GAMEIRO, 1980, p. 18)

Esse trecho ocupa um parágrafo inteiro da cena, que mais parece um verdadeiro

ritual de Valente. Observa-se que o narrador tem a preocupação em respeitar o local

como se fosse um templo sagrado e essa narração detalhada dá ao espaço uma

responsabilidade sobre alguns aspectos na narrativa, pois se torna um dos elementos

caracterizadores do romance como sendo regionalista. Compreendido esse critério

regionalista, segundo Coutinho (1970, p. 303), como “útil em um plano elementar, em

que se verifique se há ou não uma contraface da obra na realidade externa, físico-social,

extraliterária ou artística”.

Aqui se faz necessário ressaltar a importância de uma abordagem sobre o espaço

em Curral de Serras. No romance, este é essencial, pois há uma estreita relação entre as

atitudes dos personagens e os locais que os cercam. Mas os espaços têm representações

diferentes para os personagens. A fazenda, por exemplo, representa para Isabela não só

o seu refúgio, a sua fortaleza, mas toda a sua história de vida, pois foi lá onde ela viu a

família ser dizimada. É da fazenda e para a fazenda que ela projeta sua vida. É,

sobretudo, da varanda da casa que a moça tem contato com o mundo, mas esta também

representa o espaço negativo das saudades: a lembrança da família morta, a orfandade

precoce, a solidão, tudo isso comungado com a poesia trazida pela chuva, em um fim de

tarde. Já para Valente esse espaço de Isabela não tem a mesma significação que tem os

campos por onde ele percorre.

Espaço e personagem se completam em alguns momentos da narrativa,

revelando uma armadilha, como enfoca Antonio Dimas (1994). Segundo o autor, o

espaço é uma das armadilhas do texto, espalhadas à tocaia do leitor e esse componente,

em algumas situações, torna-se secundário, dada sua diluição. Assim, caberia ao leitor

“[...] descobrir onde se passa uma ação narrativa, quais os ingredientes desse espaço e

qual sua eventual função no desenvolvimento do enredo.” (DIMAS, 1994, p. 06). Em

Curral de Serras, o espaço impõe sua presença desde o título do romance, pois o leitor

pode começar a indagar se o espaço da narrativa é o próprio curral. E essa curiosidade o

leva a desbravar os múltiplos espaços apresentados, mas sempre em função de uma

espacialidade maior (o sertão nordestino), reforçando o caráter de imprescindibilidade

desse elemento na compreensão da narrativa. E muitas vezes é o leitor quem precisa

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descobrir a função do espaço em um âmbito de funcionalidade, pois de acordo com

Dimas (1994, p. 32),

[...] a obra literária não tem nenhuma obrigação de se ajustar a este ou àquele padrão único de comportamento. Isto é: num mesmo romance podemos encontrar as várias modalidades de apresentação espacial, às vezes dispersas ao longo das páginas, às vezes de modo contíguo, quando não mesclados. Cabe ao leitor detectá-las, separá-las e avaliá-las em sua funcionalidade.

No romance de Gameiro, o espaço aparece como pano de fundo para várias

situações vividas pelos personagens. Citemos dois espaços representativos para Valente

e para Isabela. No primeiro caso, tomemos o olho-d’água como exemplo – descrito

como um espaço de beleza e poesia, pelo narrador.

[...] respirei coisinha bonita, tetéia mimosa, largada no tempo [...]. Era o mimo duma fontezinha arriada dum joelho de pedra, ensaiando quedinha de nada e saindo logo no macio de trote requebrilhado [...]. Lá naquele olho-d’água, molhamos a goela, a cara e deixamos as montarias beber e fartar. (GAMEIRO, 1980, p. 16)

Sempre que Valente se refere a uma réstia de água, dá ao local um tom poético

impregnado de melancolia. A referência às chuvas é sempre carregada de

sentimentalismo, pois esta representa o momento de transformação tanto do espaço

quanto dos personagens. O anúncio das chuvas era o recado que a natureza mandava

para o sertão, para que a terra se preparasse para o momento de sua chegada.

Dezembro se gastava era de todo, prometendo água no coice. Em tudo o que a gente olhasse, ‘tava escrito: vai chover. O céu mandava recado, a terra se preparava, a bicharada curtia desassossego, e a feição do tempo desmudava [...]; o vento crispão, resfriado, assobiava atrevido esfiapando folha das plantas e o anuviado corria no avexame, por amor de desentroixar carga d’água e dar banho na terra. (idem, p. 38).

Já em relação a Isabela, o espaço a que ela dá mais importância na fazenda é a

casa, principalmente a varanda, pois como já foi dito, é o local das projeções. A

primeira visão que o protagonista tem da moça é da varanda da casa.

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Eu tinha fechado a loja e já tava voltando do riacho, quando o aguaceiro se arriou, lavando o chão com sustança embrutecida. Encontrei d. Isabela na entrada da varanda, até molhada um bocado, só por ter gosto de tomar respingo daquelas primeiras águas. E foi ele me avistar, pegou logo foi um pé de fala [...] (idem, p. 38).

A discussão sobre o espaço da varanda será retomada posteriormente, ao

apontarmos os elementos da cultura sertaneja, mas é válido informar que a varanda

representa para a moça a ponte que liga presente e passado de sua vida. Dimas (1994, p.

22) ressalta que “[...] um espaço que desabrocha em várias direções [...] atua como

ponte mnemônica que liga o presente ao passado, adquirindo, portanto, funcionalidade”.

Assim, a varanda é o local a partir do qual Isabela se recorda de fatos de sua vida e, de

certa forma, ela cobra essas lembranças de Valente, por sentir ciúmes de seus

pensamentos quando este observa a chuva.

Ainda sobre o elemento espacial em Curral de Serras – quer seja o micorespaço

da narrativa quer o macro – é primordial em nossa análise por ter sua funcionalidade

explicada pelo caráter regionalista do romance. Mas é importante salientar, segundo

Lúcia Miguel Pereira (1973), que “se considerarmos regionalista qualquer livro que,

intencionalmente ou não, traduza peculiaridades locais, teremos que classificar desse

modo a maior parte da nossa ficção” (op. cit, p. 179). Assim, entendemos ser

conveniente uma abordagem, dentro de uma historiografia literária, dessa vertente, para

então, entender como se manifestaria esse regionalismo no romance.

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3 CURRAL DE SERRAS E O REGIONALISMO

O escritor é a testemunha que está com a palavra. Ou ele simplesmente depõe, ou dá a seu depoimento o tom do libelo. Registra ou denuncia.

Josué Montello

A compreensão da estética regionalista no romance Curral de Serras se dá a

partir do entendimento do que representa esse termo na literatura brasileira, através de

um percurso historiográfico que abarque, desde primeiras manifestações, no

Romantismo, com Alencar, até o período em que consideramos adequado situar o

romance de Gameiro. Salientamos que, em um primeiro momento, não tencionamos

usar uma concepção específica do que seja um romance regionalista; ou seja, não

adotamos um conceito pronto, acabado, mas, tomando como ponto de partida uma

‘noção genérica’ do termo, investigaremos como essa concepção ganha corpo ao longo

do uso. Assim, buscaremos detectar as características do romance ora analisado que

possam ser tidas como próprias dessa vertente literária, considerando, segundo

Coutinho (1970), que, para cada obra em particular estabelece-se um critério de valor

regionalista. Esse critério que diferencia o regionalismo de um Alencar e de um

Guimarães Rosa, por exemplo (só para citar nomes que delimitam fronteiras estéticas),

constitui a dinâmica da construção do termo. Uma obra regionalista é entendida, na

concepção de Coutinho (1970, p. 303) – enquanto comportamento estético – “[...]

enquanto a realidade literária se inspire e se ampare em um plano físico e social

determinados, que aparece como a sua contraface.”

Assim, a concepção de romance regionalista em Curral de Serras dar-se-á a

partir de uma percepção dos aspectos regionais presentes na obra – o que nos faz

aproximar a escrita de Alvina Gameiro de outros autores do período modernista

integrantes do chamado “romance de 30 no Nordeste”, considerando para tanto duas

características apontadas por José Hildebrando Dacanal (1986) para esse movimento

estético: a verossimilhança, a linguagem ‘filtrada’ dos personagens.

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3.1 O Regionalismo na ficção brasileira: percursos

E, se no que se vê ou no que se lê não se acha exatamente a paisagem esperada, a reação não tarda, assim como a sensação de que, ou aquilo não é tipicamente brasileiro, ou, bem mais inquietante, há um descompasso entre o que se define como Brasil e o que se vive como tal.

Flora Süssekind

Iniciando a discussão historiográfica sobre o Regionalismo literário, ressaltamos

que este surge, na literatura brasileira, como necessidade de afirmação identitária de um

país recém-independente, através da valorização de elementos que sustentassem essa

independência em relação a outros países, principalmente em relação à Portugal. Essa

literatura busca uma afirmação da brasilidade “por meio da diversidade, ou seja, pela

manutenção das diferenças peculiares de tipos e personagens”, como defende

Albuquerque (2009, p. 66) – embora alguns autores tenham tido mais dificuldades de

‘criar’ um quadro próprio que se tornasse o novo representante dessa estética que não

fosse aos moldes europeus. Isso se dava em decorrência da liberdade estética de cada

autor, que delimitava seu critério específico de regionalista, como cita Coutinho (1970),

analisando alguns autores que pertencem ao movimento.

Aqui salientamos o que esse crítico fala sobre José Lins do Rêgo, que, teria

demonstrado desarticulação entre natureza e homem, ao primar pela visualização

paisagística em detrimento dos tipos documentais. Alguns personagens não teriam

realidades em si mesmos, existindo somente em função da realidade, da situação de que

decorrem. “Tanto a visualização quanto a criação dos personagens ficaram demasiado

presos aos elementos singulares que marcavam a contraface nordestina” (COUTINHO,

1970, p. 304). O Regionalismo, sob essa ótica, não deve ser confundido com localismo;

mesmo que cada autor prime pela valorização do espaço, este não deve constituir um

elemento isolado nesse processo de elevação patriótica da região. Lúcia Miguel Pereira

(1973, p. 180) destaca que o regionalista entende o indivíduo

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[...] apenas como síntese do meio a que pertence, e na medida em que se desintegra da humanidade; visando de preferência ao grupo, busca nas personagens, não o que encerram de pessoal e relativamente livre, mas o que as liga ao seu ambiente, isolando-as assim de todas as criaturas estranhas àquele.

Neste sentido, convém trazer para a discussão sobre a temática, o que seria, no

período romântico, o caráter regionalista de uma obra. Ainda segundo Coutinho (1970,

p. 302) o Regionalismo é derivado do romance realista do século XIX “e cuja

diferenciação provinha de que as criações estivessem fortemente ligadas à presença de

uma unidade regional, fornecedora da matéria, das intrigas e das reações comuns dos

personagens.” Entendemos que esse conceito se aplica mais ao período pós-romantismo,

pois no período romântico a afirmação identitária nacional estava mais latente; nesse

período, o regionalismo ainda está muito preso “às tendências nacionalistas que

tomaram grande força entre nós a partir dos movimentos pela independência [...]”

(ALMEIDA, 1980, p. 13).

Dessa forma, é lícito pensar que a manifestação regionalista iniciada pelo

Romantismo, principalmente com Alencar, traz a baila o sujeito sertanejo, surgido ainda

com o indianismo e motivado pelo mesmo sentimento de orgulho nacionalista, já que a

manifestação romântica tencionava a valorização desse sujeito misto de brasileiro e

europeu como representante da nação. Assim, ainda de acordo com Almeida (ibidem),

“O sertanismo pode ser considerado, ainda que com certas restrições, como a primeira

forma de regionalismo na ficção brasileira.”

Esse novo sujeito, trazido por Alencar, é que será modelo desse período em que

a construção de uma identidade nacional se fazia necessária. Entretanto, como já foi

frisado, não constituía modelo autêntico, pois ainda estava em fase experimental essa

ideia de nacionalidade e os intelectuais, tomados pela euforia do momento, não

abarcavam a dimensão do trabalho a que se propunham. O próprio Alencar fez várias

tentativas no sentido de encontrar um herói que melhor representasse a nação brasileira.

Almeida (1980, p. 49) enfoca essa contribuição do autor cearense.

Na evolução do romance regionalista na literatura brasileira a contribuição marcante de Alencar faz-se através de O gaúcho e O sertanejo. Essas duas obras, sobretudo a última, mais profundamente radicada no meio regional, constituem etapas necessárias de transição entre o indianismo nacionalista de O guarani e o regionalismo particularista, já presente em Franklin Távora.

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Almeida (1980) ainda cita que, através do personagem Arnaldo, de O sertanejo,

“Alencar trabalha em cima de um tipo social com existência concreta, e procura

vinculá-lo sempre ao meio natural em que tem suas raízes”. (op, cit., p. 54). Vale

ressaltar que o romancista não se prende a destacar somente o cenário cearense como

pano de fundo de suas narrativas – o que lhe assegura o caráter de maior representante

intelectual do período. Essa variação de cenário utilizada pelo romancista se explicaria,

segundo Almeida (idem, p. 47), porque região implica a parte de um todo, o país como

tal, cabendo ao Regionalismo (que ele chama de strictu sensu) enfatizar os elementos

que não só diferenciariam, mas também caracterizariam a região em oposição às demais

ou mesmo à totalidade nacional.

É importante ainda frisar que nessa tentativa de representação nacional, de

promoção patriótica, de construção identitária, os intelectuais precisavam assumir uma

postura (ora como defensores ora como divulgadores) desse nacionalismo. Assim,

outros autores como Franklin Távora e Visconde de Taunay também contribuíram de

forma significativa para alcançar esse ideal nacionalista. Segundo observações de José

Aderaldo Castello (s/d), tanto esses dois autores quanto Bernardo Guimarães devem ser

apreciados como regionalistas. Este pela criação do romance romântico regionalista;

Taunay por se destacar como “observador seguro de tipos, costumes, hábitos, tradições,

psicologia e linguajar do caboclo ou caipira.” (op. cit. p. 50) e Távora por ser o escritor

da Escola de Recife que teria pertencido a uma fase predominantemente romântica e

posteriormente ter assumido “atitude de postura crítica ao romantismo”.

A partir dessa discussão, nossa proposta é situar o romance Curral de Serras

nesse critério regionalista, embora em termos de datas haja um distanciamento entre a

autora piauiense e os autores citados pela crítica; mas essa caracterização é válida pelo

embasamento teórico utilizado nesta pesquisa, como se percebe nos tópicos seguintes,

em que discorremos sobre o Regionalismo nordestino.

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3.2 O Regionalismo nordestino: a instituição de um discurso

Que é dos poetas do Nordeste que não cantam figuras do vigor ao mesmo tempo regional e humano [...]? Que é dos romancistas que não descobrem tais figuras de Dons Quixotes regionais? Dos biógrafos que não as revelam? Dos ensaístas que não as interpretam?

Manifesto regionalista, 1926

No Brasil, o movimento Regionalista de 1930 tem como marco inicial a

publicação de A bagaceira, de José Américo de Almeida (1928) – romance que refletia

e atacava o velho sistema da concentração latifundiária do Nordeste, que se mostrava

como uma das vigas da miséria da região, conforme ressalta Coutinho (1970). Esse foco

dado ao Nordeste, por José Américo, entretanto, não constitui característica inerente a

todo escritor regionalista, pois cada um tem autonomia para assumir diferentes pontos

de vista regionais, desde que primem pela essência da estética: a valorização da região

como fornecedora da matéria-prima para a elaboração de sua obra ficcional. O crítico

(op. cit., p. 326) ainda aponta que essas diferenças de enfoque, assumidas pelos

regionalistas, “não se baseiam simplesmente numa variação na seleção e tratamento de

detalhes ou numa maior ou menor ênfase em determinado aspecto”. Nessa visão crítica,

o romance de José Américo de Almeida constitui um outro marco: a instauração do

ciclo do romance nordestino. Com a publicação de A bagaceira, em 1928, “instala-se o

núcleo que será central ao desenvolvimento da temática e da posição perante a realidade

do que depois será chamado de o ciclo do romance nordestino” (COUTINHO, 1970, p.

279-80). Ainda nesse contexto, o crítico (op. cit., p. 326) afirma que

embora a geração de trinta englobe entre seus adeptos o famoso grupo de romancista do Nordeste reunido em torno da problemática da terra, motivo agora de meditação, aprofundamento e denúncia social, seus ficcionistas trazem para essa realidade concepções unânimes apenas na acusação da injustiça e desagregação humana.

Vários escritores se propuseram a fazer essa denúncia em seus romances e é

neste sentido que Candido (1989, p. 181) também sentencia que “os anos de 30 foram

de engajamento político, religioso e social no campo da cultura”. Assim, os autores,

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mesmo aqueles que não se manifestavam explicitamente a favor de uma consciência

ideológica ou os que não tinham consciência clara do fato, procuravam manifestar, na

sua obra, um “tipo de inserção ideológica, que dá contorno especial à fisionomia do

período” (ibidem). O regionalismo deveria estar entre as primeiras manifestações

literárias de um povo, marcando uma tomada de consciência, de acordo com Lúcia

Miguel Pereira (1973, p. 181), pois “neste caso, o elemento pitoresco, tão importante

nele, resultaria da identificação completa do escritor com seu meio, ao qual se prenderia

não só pela sensibilidade como pela inteligência”.

Assim, entendemos que escritores como José Américo de Almeida e Alvina

Gameiro, por exemplo, podem não se aproximarem na caracterização do espaço ou dos

personagens, ou mesmo na relação homem-natureza – não no sentido em que o faziam

os naturalistas, o meio influenciando o homem, mas no sentido mesmo de relação de

contato direto, como se ambos fossem personagens que dialogam no romance – mas há

aproximação em termos de consciência ideológica, pois inferimos, a partir da leitura de

Curral de Serras, que Gameiro teve essa tomada de consciência, principalmente se

observarmos que, neste romance, a natureza não é mero pano de fundo para a narrativa,

é um elemento importante para se compreender de que maneira, ao descrever o sertão

nordestino, a autora preserva os aspectos da estética regionalista. Essa observação é

válida porque, segundo Lúcia Miguel Pereira (1973, p. 183),

[...] tanto quanto o indianismo refletiu, ao lado do impulso romântico da época, a necessidade de auto-afirmação de um povo em lua-de-mel com a independência política e o desejo de sobrepor aos portugueses outro fator étnico da nossa formação, o sertanismo revela o anseio, num país onde a cultura é importada, de valorizar os elementos mais genuinamente nacionais.

É nesse contexto de valorização do nacional que entendemos outra assertiva de

Almeida (1980, p. 47): “nem é sertanista toda a ficção rural, nem o sertanismo é

monopólio romântico”, pois é possível enxergar o sertanejo sob um viés que ultrapassa

as fronteiras do Romantismo e ganha mais força no Modernismo, a partir da geração de

30. É com esses escritores que “o processo de tomada de consciência da realidade

regional como estímulo e substância da criação literária atinge a plena maturação,

particularmente no Nordeste” (idem, p. 15). Pereira (1973, p. 180) cita que há na atitude

do regionalista “alguma coisa da do turista ansioso por descobrir os encantos peculiares

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de cada lugar que visita, sempre pronto a extasiar-se ante as novidades e a enxergar-lhes

o alcance”.

A expectativa do escritor, disfarçado de turista, de certa forma, dá ao espaço

uma caracterização paisagística diferente do que realmente é – não só no sentido

ficcional –; cria-se uma nova imagem para não cair no elemento comum: o Nordeste

como a região de miséria, seca etc. Esse ponto é discutido por Albuquerque (2009) ao

considerar que, em algumas narrativas de viagem, a tensão estabelecida entre “arquivo

de imagens e enunciados” leva o turista a ter suas expectativas traídas, no que diz

respeito à visão que possuía da terra. Muito se falou em Nordeste como a região onde a

vida é mais difícil, onde o homem torna-se “um bom tipo para espetáculos de humor”.

Essa crítica feita pelo historiador seria em decorrência das más representações locais

feitas por alguns escritores que endossariam o discurso de vítima do nordestino e as

narrativas trairiam esse estado de vitimação exatamente porque algumas “parecem sem

sentido, tal a contradição que se estabelece no discurso, entre o visto e o previsto”

(idem, p. 58). Ainda se viaja pelo Nordeste procurando uma página de Euclides da

Cunha, com vegetação “enfezada, flores com cor de sangue das palmatórias e dos

cactos” (idem, p. 58). Esse Nordeste de contraste euclidiano, como o próprio historiador

define, é o que precisa ser reinventado através do discurso, pois “nem sempre o

enunciável se torna prática e nem toda prática é transformada em discurso”, finaliza

Albuquerque (2009, p. 59).

Essa construção discursiva de Nordeste proposta pelo historiador será retomada

em diversos momentos de nossa análise por considerarmos um aspecto relevante de

discussão, tomando por base a imagem da região retratada por vários escritores de

diferentes estilos, que se propuseram a uma abordagem literária, enfatizando um ou

vários aspectos regionais, que elevassem o espaço como elemento essencial no processo

de construção identitária. Isso porque, segundo Albuquerque (2009, p. 89),

O próprio regionalismo é visto como um elemento da nacionalidade brasileira, desde seus primórdios, quando as enormes distâncias autonomizam ‘focos genéticos de povoamento’ e a rivalidade entre as regiões teria seguido, lado a lado, a animosidade contra a metrópole. As regiões, no Brasil, se definiram, então, por histórias diferentes, grupos espirituais típicos; com usos, heróis e tradições convergentes.

Essas diferenças, apontadas pelo historiador, como definidoras de cada região,

são retratadas pela ficção como sendo os elementos diferenciadores das estéticas

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literárias; os autores regionalistas nordestinos, por exemplo, que primam pela

valorização da região, reforçam o caráter da construção histórica do Nordeste no sentido

de ressignificarem a identidade cultural regional. Para isso, re-escrevem o passado

histórico através de seus elementos caracterizadores, como a figura do beato, do

jagunço, do vaqueiro etc. Neste sentido, a geração de 30 pode ser considerada como a

representante de uma variação estética muito salutar, pois, de um lado, encontramos

alguns autores obstinados na ideia de denúncia social, do outro, os inovadores mais

preocupados com uma nova forma de dizer e fazer o Nordeste. Os romances escritos

nesse período retomavam tanto o regionalismo romântico – ao demonstrarem interesse

pela relação entre homem e espaço por ele habitado – como o Realismo do século XIX e

as relações sociais. Talvez resida aí a dificuldade em delimitar o que seria o romance de

30, segundo Dacanal (1986, p. 10).

Não importa que o conceito de romance de 30 tenha sido e continue sendo usado de forma pouco rigorosa, que não se saiba exatamente seus limites ou, até que não possa ser claramente delimitado. O importante é que ele identifica um fato claramente constatável na evolução da ficção brasileira: nunca antes em período de tempo tão curto tantos autores haviam escrito obras tão próximas entre si.

Apesar da imprecisão do conceito apontada por Dacanal e ainda seguindo esse

raciocínio, a expressão romance de 30 permanece até hoje e “se pouco ajuda também

não complica”, frisa o autor. Independente do conceito, importa ressaltar que os autores

desse período enriqueceram a Literatura Brasileira e contribuíram com causas sociais.

Não só a estética é valorizada, mas também o espírito crítico dos autores. Através da

inovação em aproximar a linguagem literária à fala brasileira, “o povo encontra seu

lugar como personagem do romance” e deixa de ser mero observador para ingressar

como “participante coerente das coisas e de seus resultados”, analisa Pedro Paulo

Montenegro, em artigo intitulado O romance de 30 no Nordeste (1983, p. 14).

Passado esse momento de identificação com a ideia de denúncia social –

considerada a fase áurea do romance modernista – uma nova proposta surge com o

intuito de reiterar o discurso da geração anterior (desde o Romantismo). Seguindo a

mesma trajetória dos romancistas de 30, escritores contemporâneos se propõem a um

novo fazer literário em que a reinvenção da narrativa se faz presente. Almeida (1980, p.

15) assim discorre sobre essa manifestação:

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Após 1945 novas tendências se definem na evolução do regionalismo, merecendo destaque especial aquela que representa uma recuperação, pela narrativa, dos elementos míticos que tanto a haviam marcado em seus inícios no Romantismo, mas que progressivamente foram cedendo lugar a uma abordagem de tipo realista, voltada para a observação direta do meio sócio-cultural. Desta nova linha tornam-se expoentes mais notáveis Adonias Filho e Guimarães Rosa. A extensão e complexidade da obra destes e outros escritores recentes da tradição regionalista faz com que eles, por si sós, constituam tema para outro estudo [...].

Essa nova geração de escritores – surgida em um momento em que autores como

Jorge Amado, José Lins do Rego, entre outros ainda estão publicando suas narrativas –

tem como proposta a inovação literária através da linguagem, fazendo com que a prosa

convencional perca espaço para um novo modo de ficção. Neste cenário, há destaque

para o universo ficcional de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, pelo rompimento com

o convencionalismo dos regionalistas de 30. Tal inovação, conquanto possa causar

estranhamento, inaugura uma dizibilidade regional. De 1930 a 1945, a proposta da

literatura é voltada para a construção do espírito regionalista do romance. Assim, a

caracterização do homem regional se dá a partir do espaço ao qual, muitas vezes, ele é

aprisionado. Por isso, a ideia de construir um novo Nordeste, ou melhor, de instituir um

novo discurso sobre a região, tida como espaço natural (que fosse, ao mesmo tempo,

nacional e universal) e não apenas revelar as mazelas sociais de um lugar inóspito, de

pobreza e miséria. Dacanal (1986, p. 15) não vê com bons olhos esse otimismo do

Romance de 30; seria ingênuo, segundo ele, porque a “fé na possibilidade de apreender

o mundo, esta inocência para a qual não há clivagem entre o real e o racional, e vice-

versa, é um dos elementos característicos do romance de 30”.

Ressaltamos que, a despeito da utopia, alguns romancistas propõem um novo

olhar para a região Nordeste e, na construção discursiva desse novo espaço, dá uma

enorme contribuição para a compreensão do novo recorte dado à região, descrita,

segundo Albuquerque (2009, p. 79), como “uma espacialidade fundada historicamente,

originada por uma tradição de pensamento, uma imagística e textos que lhe deram

realidade e presença”. Assim, entendemos que o papel do romancista não é meramente

descrever o espaço, mas reconstruir uma imagem a partir de uma série de elementos

característicos desse espaço. Neste sentido, o romancista também volta o olhar para o

sujeito sertanejo, criado desde os primórdios do Romantismo para ser o representante da

nação brasileira. Esse sujeito, contudo, ganha um redirecionamento com a proposta do

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Romance de 30 em lançar um olhar crítico no sentido de instituir, através do discurso

literário, algo mais sério do que um otimismo ingênuo ao espaço onde estaria a base da

identidade nacional – a região Nordeste.

3.3 Curral de Serras e a construção discursiva de um espaço real

Desencontro sem termo a natureza fazia ali: secura de rachar pé, campeando duma banda da terra, doutro lado a fresca por molhado da corrente, alargada de muito naquele ponto.

Alvina Gameiro

Através do olhar lançado por Gameiro sobre o sertão nordestino, investigamos a

possibilidade de enxergar esse sertão para além do contexto da divisão geolinguística do

Brasil, bem como identificar a maneira como o Regionalismo literário é abordado pela

autora. Para tanto, é preciso retomar a delimitação do que poderia ser considerado

pertencente à estética regionalista, para então termos um embasamento teórico que

assegure nossa leitura. Segundo Lúcia Miguel Pereira (1973, p. 179), só pertence ao

Regionalismo

[...] as obras cujo fim primordial for a fixação de tipos, costumes e linguagens locais, cujo conteúdo perderia a significação sem esses elementos exteriores, e que se passem em ambientes onde os hábitos e estilos de vida se diferenciem dos que imprimem a civilização niveladora.

Considerando a assertiva, percebe-se que Curral de Serras, sob essa ótica, pode

ser considerado apto a assumir o papel de representante desse Regionalismo, pois prima

pela fixação da linguagem e dos costumes da gente do sertão. Ao trazer à tona o

sertanejo, com seus usos, costumes, linguagem própria, a autora reforça que esse sujeito

participa, como variante cultural, de uma cultura mais ampla, conforme assegura

Candido (1989).

Necessário se faz pontuar que, segundo Albuquerque (2009, p. 65-6), no

Regionalismo literário, há uma tentativa de “afirmar a brasilidade por meio da

diversidade, ou seja, pela manutenção das diferenças peculiares de tipos e personagens”.

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O discurso regionalista, entretanto, não mascara a verdade da região, ele a institui

(idem, p. 62), como se percebe no trecho do romance Curral de Serras, logo no início

da narrativa, em que o narrador dá mostras de sua trajetória: “Na beira da corrente,

matutava, espiando o viço do capinzal, bebedor daqueles frescos de orilha de riacho,

´inda com uma chave d’água já no fim de setembro, mês danado de seco”

(GAMEIRO, 1980, p. 9, grifo nosso). Percebe-se que a autora não cria uma nova

realidade para a região, ela a toma como base para a construção de sua estética,

considerando que a ficção regionalista pode ser tomada como termômetro para a

consciência do subdesenvolvimento, pelo caráter de generalidade e persistência,

conforme Candido (1989). A partir dessa ótica, ressaltamos o caráter regionalista do

romance de Gameiro, por percebermos essas particularidades citadas por Candido, e

isso é possível a partir de uma compreensão do macroespaço e da caracterização dos

personagens do romance.

Essa valorização dos elementos nacionais, na ficção gameriana, é observada na

presença da “cor local” (usando uma expressão gasta pela falta de outra que a substitua

a contento) do sertão nordestino apresentado pela autora em Curral de Serras. Gameiro

prima pela caracterização espacial, atribuindo ao romance um caráter regional.

Refletindo sobre esse aspecto em José de Alencar, Magalhães (2008, p. 214) afirma que

“é pintando poeticamente as particularidades de cada região que o autor pretende

compor um quadro que represente o Brasil, tanto na sua extensão territorial, quanto na

sua diversidade do Brasil cultural”. A mesma regra vale para Gameiro e sua

representação de sertão a partir de uma ótica que privilegia o sertanejo no seu modo de

vida e seus costumes.

[...] ia pegar vaquejada com uns poucos d’homens valentes em lida com gado brabo. Cada qual gastando capricho no puxado de sabedoria, por amostrar competência em labuta de vaqueiro. Dentro daquela tal animação, reinava sacudido entusiasmo: os aboios, só a gente ouvindo mesmo... tudo em categoria própria, diferençável cada um no meio dos outros. E além dos aboios sortidos, tinha mais bandão d’entôos de diversas versidades. (GAMEIRO, 1980, p. 245)

Embora o protagonista não seja vaqueiro, como já frisamos anteriormente, é

notória sua identificação com a profissão, haja vista seu discurso impregnado de poesia,

revelando-nos uma característica da autora, que é endossada por A.Tito Filho

(GAMEIRO, 1980, p. 8). Segundo ele, tanto na prosa quanto na poesia, a autora

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[...] concebeu uma obra animada do toque de artista verdadeira, e a escreveu com muito bem-querer, para fixar a terra, os tipos humanos, os costumes, os hábitos, os caracteres da gente perdida nos pequenos núcleos do mundo nordestino.

Essa era a função da obra regionalista, segundo Castello (s/d, p. 47): ser um

aspecto particular do romance social. E o verdadeiro romancista regionalista seria o que

“observa diretamente a paisagem e conhece ou colhe por meio de informações seguras

os fatos essenciais, tipos e tradições que constituirão o material de seu romance”.

Gameiro pinta um quadro da região Nordeste em suas particularidades descritivas sem,

entretanto, mascarar os problemas. Ao descrever a região, a romancista valoriza a

multiplicidade cultural local e reafirma a necessidade de se reconhecer essa região para

além de um contorno geográfico.

Outra informação importante a ser considerada acerca do Regionalismo,

segundo Pereira (1973, p. 184) é que “afeiçoando-se à simplicidade das cenas que

evocava, tirando grande efeito dos dialetos populares, o regionalismo buscou, de início

– embora nem sempre o conseguisse – uma certa ingenuidade de estilo”, superada

somente com a publicação de Os Sertões. Alguns autores, inspirados em Euclides,

faziam uma narrativa “forçosamente mais literária”, menos objetiva e mais

interpretativa. Em Curral de Serras, os sujeitos não falam muito; a maioria dos

personagens pode ser caracterizada, de acordo com o narrador, como sendo “gente

poupando fala”. É o narrador que tem o domínio do discurso. Isso faz com que os

demais personagens, mesmo Isabela, de posse desse discurso o utilizem de forma

comedida.

Neste sentido, consideramos, segundo Albuquerque (2009, p. 52), que o

surgimento de um novo Regionalismo, na década de vinte, aponta diferenças em relação

ao do século XIX. O Regionalismo “difuso e provinciano do século XIX” deu espaço a

um outro “que reflete as diferentes formas de se perceber e representar o espaço nas

diversas áreas do país”. Gameiro, em seu Curral de Serras, apresenta os contornos da

região sertaneja nordestina, refletindo as características primordiais para o reconstruir

desse espaço.

No que concerne ao critério regionalista, Pierre Brodin, citado por Coutinho

(1970, p. 302) assegura que

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É regionalista, a nosso ver, não toda obra que toma por quadro uma unidade regional, mas toda criação literária em que uma unidade regional, província, aldeia e vila é fielmente apresentada e tem um lugar pelo menos tão importante quanto aquele de um dos principais personagens imaginados pelo escritor (tradução livre nossa)10.

Assim, é lícito ressaltar que o espaço, no caso da narrativa regionalista, assume

tanta relevância quanto os protagonistas. Essa observação é valida para o romance

gameiriano, pois o protagonista, em seus momentos de introspecção, parece estabelecer

um diálogo com a natureza, como se percebe no trecho “[...] eu preguntando a capim

quantos palmos ele tinha e capim informando que boca de gado por ali não pastava,

fazendo estrago” (GAMEIRO, 1980, p. 9). No entanto, a importância que a autora dá ao

espaço não é só nesse sentido de contato homem-natureza, em forma de diálogo, mas na

dimensão espacial que o sertão nordestino, retratado no romance, adquire em relação à

ficção literária. Almeida (1980, p. 14-5) afirma:

Em termos de regionalismo, observa-se uma nítida proeminência nordestina [...]. Essa região, com efeito, por possuir marcadas peculiaridades de paisagem e cultura, assumiu sempre um papel destacado na evolução do que poderíamos denominar consciência regionalista na literatura brasileira.

Essa tomada de consciência em relação à estética regionalista, em Curral de

Serras constitui uma identificação da autora com a corrente literária da década de 30,

embora cronologicamente distante, já que o romance é escrito na década de 80. Como já

foi discutido anteriormente, os autores regionalistas buscavam uma instituição da região

Nordeste e, consequentemente, de seu personagens, no cenário nacional. Porém,

tamanha relevância dada ao espaço e ainda à caracterização dos personagens pode levar

a uma interpretação artificial do critério regionalista na obra ficcional. Segundo Pereira

(1973, p. 180),

[...] o regionalismo, pondo nas exterioridades e nas peculiaridades o seu acento tônico, erigindo estas em aspectos habituais e aquelas em manifestações únicas da personalidade, leva tão longe essa condensação que, devendo, por sua índole, ser simples e espontâneo, cai freqüentemente num artificialismo quase teatral: a língua, os

10

No original : Est régionaliste, à notre sens, non pas toute ouevre qui prend pour cadre une unité regionale, mais toute création littéraire dans laquele une unité régionale, province, hameau ou ville, est fidèlement représentée et tient une place au moins aussi importante que celle de l’un des principaux personnages imagines par l’écrivain.

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gestos, os sentimentos típicos demais emprestam às figuras aparências de atores.

É neste sentido que a crítica feita por Albuquerque (2009, p. 47) a alguns autores

regionalistas se fundamenta. Segundo o historiador, o problema residiria no fato de,

através de uma construção pelo avesso, estes Nordestes descritos ficarem presos “aos

mesmos temas, imagens e enunciados consagrados e cristalizados pelos discursos

tradicionalistas”. Talvez isso se deva ao aspecto da verossimilhança – apontada por

Dacanal (1986) como uma das características do romance de 30.

Considerando essa característica, observamos, através das descrições do sertão

nordestino feitas por Gameiro, uma visão de Nordeste reconstruído ficcionalmente pela

autora. Tal descrição se manifesta de uma maneira peculiar, como a que apresentamos a

seguir, tomando de empréstimo um poema de Carlos Pena, utilizado, como epígrafe do

livro Nordeste, de Gilberto Freyre, para quem a Região, metaforicamente, seria assim

descrita:

Um Nordeste /onde nunca deixa de haver/ uma mancha de água:/ um avanço de mar, um rio, um riacho/ o esverdeado de uma lagoa./ Onde a água faz da terra mais mole o que quer:/ inventa ilhas, desmancha istmos e cabos,/ altera a seu gosto a geografia convencional /dos compêndios11.

Poderíamos pensar essa imagem de Nordeste, divulgada por Freyre, e associá-la

àquela que se percebe no romance Curral de Serras, considerando que a autora não se

detém a representar uma região de seca e miséria ou a descrever o nordestino com suas

representações estereotipadas, como o “pau de arara”, a figura do “retirante” e do

“migrante”. Esse último até aparece na figura de Valente, mas essa é apenas uma das

identidades assumidas pelo narrador. Sua condição de migrante é antes um aspecto

passageiro, enquanto busca por seu irmão, pelo Nordeste afora.

Numa visão estigmatizada, o Nordeste é, muitas vezes, retratado como a região

da seca, caracterização compreensível, segundo Antunes (2002, p. 125-6), porque a seca

foi matriz, a identificação da região durante muito tempo. Esse discurso, historicamente,

11 Poema Um Nordeste, de Carlos Pena Filho, citado por Gilberto Freyre, como epígrafe em Nordeste. FREYRE, G. Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Brasil. 7 ed. revista. São Paulo: Global, 2004.

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tem servido para mascarar “uma estrutura social de exploração e miséria independente

do fenômeno da estiagem, tanto no tempo (pois existe antes e depois dele), como no

espaço (pois ocorre em locais onde este não acontece)”.

Assim, convém destacar, de acordo com as indicações de Albuquerque (2009, p.

60), a importância de se considerar a emergência de um novo Regionalismo “que

extrapola as fronteiras dos Estados, que busca o agrupamento em torno de um espaço

maior, diante de todas as mudanças que estavam destruindo as espacialidades

tradicionais”. De acordo com essa assertiva, não se pensa mais o sertão nordestino como

a região desprovida de aspectos positivos, uma região onde o progresso ainda não

chegou; pensa-se o Nordeste, ao contrário, em sua multiplicidade de “vidas, histórias,

práticas e costumes” (idem, p. 78).

Pode-se dizer que Gameiro, em Curral de Serras, leva em conta essa

multiplicidade, pois, de acordo com A. Tito Filho, a autora “fotografou” a linguagem do

caipira, do matuto e “[...] oferece mais ao leitor: um correto glossário, de natureza

explicativa, tão íntegro quanto a ciência que a autora tem do material lingüístico

estudado”. (GAMEIRO, op. cit. p. 8). Infere-se que, ciente do seu “laboratório

linguístico” a autora tem a preocupação em estabelecer contato entre o real e o ficcional,

pois, ao trazer para o conhecimento do público leitor, o glossário, em que aponta os

significados de palavras desconhecidas do público leigo, demonstra conhecimento da

importância de seu papel como romancista e, ao mesmo tempo, ultrapassa as fronteiras

do campo linguístico. Nesse glossário, não estão presentes só as palavras ‘inventadas’

para o discurso do sertanejo, como abrancaçado (o mesmo que esbranquiçado), ou

convinhável (conveniente), mas também palavras que sofreram evolução fonética ou

semântica, como cristengo (forma antiquada. O mesmo que cristão), ou ainda

expressões que se perderam no tempo, mas que se reavivam na memória do leitor, assim

que este entra em contato com a narrativa. Há ainda aquelas que são próprias do

sertanejo, como defende a autora; como exemplo, temos a expressão fazer nos cascos o

cavalo (linguajar sertanejo; equivalente a ganhar a dianteira, ir adiante, marchar à

frente, dar seguimento ao caminho. Figuradamente, significa prosseguir com a festa ou

a conversa, continuar o assunto)12.

A obra de Alvina Gameiro, principalmente Curral de Serras, O livro de contos

sobre o sertão (prosa) e Chico vaqueiro do meu Piauí (poesia) constituem, por assim

12 Todos esses significados estão de acordo com o glossário constante no final do livro Curral de Serras.

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dizer, um convite para interpretar o sertão nordestino traçado pela ficção da autora.

Elogiando a obra de Gameiro, principalmente este último livro de poesia, José Américo

de Almeida, tece o seguinte comentário, constante nas páginas finais de Curral de

Serras (GAMEIRO, 1980, p. 227):

A poesia não morre por sua variedade. Quando parece esterelizar-se adquire uma doçura como a sua. Temos nossas fontes nordestinas de criação. A questão é o tratamento que se dá a esses símbolos. Não lhe falta a magia poética. Quanto mais simples mais atraente se revela a face oculta. É por isso que a poesia popular está recuperando o seu prestigio. Francamente, li com alegria o seu belo poema Chico Vaqueiro do meu Piauí (grifo no original).

Essa impressão que se apodera do autor confirma o fazer poético de Gameiro e

reitera o discurso de que “o Nordeste é uma produção imagético-discursiva formada a

partir de uma sensibilidade”. (ALBUQUERQUE, 2009, p. 62). Lançar um olhar poético

sobre a região não quer dizer historicizá-la menos ou que Alvina prime por um

paisagismo descritivo local, produzindo os tais Nordestes vistos pelo avesso, citado por

Albuquerque. Antes, é uma visão de quem descreve o Nordeste como uma “região que,

para se vê e dizer, precisaria arte” (idem, p. 101).

No que diz respeito ao caráter regionalista do romance Curral de Serras,

inúmeros são os elementos que o comprovam. Optamos, porém, por nos deter em dois

pontos básicos: a reconstrução do espaço e a caracterização do sertanejo. Entretanto,

outro ponto é crucial para o reconhecimento do romance nessa estética: a linguagem.

Esta, porém, já foi discutida em capítulo anterior, portanto, aqui será mencionada

apenas quando necessário.

Ao descrever o Nordeste brasileiro por onde o personagem central circula,

Gameiro demonstra ser conhecedora não só do cenário, mas também dos traços

característicos da identidade sertaneja. Ela dá a Valente a responsabilidade sobre essa

descrição paisagística. No momento em que o rapaz chega à fazenda de Isabela, o leitor

já é apresentado a uma imagem do Nordeste, seguindo a trajetória do protagonista.

Acompanhando a narrativa, contornamos boa parte do Nordeste, através do mapa

ficcional traçado por Gameiro e apresentado pelo narrador.

[...] sou cearense [...]. Por causa de qu’eu me achava em Brejo Santo, nos confins do Ceará, trabalhando de caixeiro [...] quando chegou na cidade um pelotão da Polícia, caçando cabra sarrudo, matador de um

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político de importância [...]. do dinheiro arrecebido comprei porção de remédio e me ataquei pelo mundo, vendendo medicamentos. Entrei no sertão vizinho, Estado de Pernambuco, subindo ramo de serra. Fiz pouca demora em Exu, donde fui cavaleando no rumo de Araripina [...]. Deixei de lado a estrada, qu’espirra em Uricuri [...]. Daquele ponto, ganhei chão, em rumo que vai bater na vila de Jataí, a pois, ia cortar por desvio e entrar na mesma estrada a caminho de Petrolina [...]. Entonces, eu passava o São Francisco e metia o cavalo a dentro, neste mundão de meu Deus. Bebia água num veio, quando topei o portador com encomenda de agregado. (GAMEIRO, 1980, p. 21).

Toda essa narrativa era a explicação dada por Valente a Isabela para contar sua

trajetória até topar com seu Pulquério e ser chamado a segui-lo rumo à fazenda da

mulher. Esse trecho dá ao leitor a impressão de estar diante de um mapa real,

acompanhando a andança do protagonista. Essa descrição minuciosa beira o pictórico e

instaura, de certa forma, uma problemática: uma possibilidade de imagem original. É

difícil, depois dessa descrição, aceitar que o cenário é puramente ficcional, mas o leitor

precisa se convencer de que o narrado é uma história imaginária, mas sem pensar que o

autor esteja mentindo, como alerta Eco (1994), para as regras do pacto ficcional. “A

obra de ficção nos encerra nas fronteiras de seu mundo e, de uma forma ou de outra, nos

faz levá-lo a sério” (idem, p. 84). A autora não pretende criar um campo de batalha

entre o mundo real e o ficcional, nem induzir o leitor a acreditar na história do

protagonista, mas, ainda assim, somos levados a considerar válido o discurso do

narrador.

Observamos certo sentimento saudosista marcando a narração de Valente e essa

veia sentimental é perceptível sempre que o personagem precisa dar explicações de seu

passado de andança livre pelo sertão nordestino. O Nordeste aparece, em muitos

momentos em Curral de Serras, como o “espaço da saudade”, apontado por

Albuquerque (2009). Uma saudade não só individual como também coletiva “de quem

se percebe perdendo pedaços queridos de seu ser, dos territórios que construiu para si”

(idem, p. 78). No trecho a seguir, em que as reflexões de compadre Conrado (a presença

da ancestralidade no romance) sobre a triste história do protagonista, percebemos

novamente esse saudosismo marcando a narração.

Estes Amorim, Nhonhô, meu filho, são a gente de sinhá Agripina, todos fazendeiros dos quatro costados, vindo daqueles tempos tão velhos, que a cidade nem vila era, mas só povoação conhecida por Malhada do Jatobá, com capelinha de São Joao Batista. Foi lá que

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vosmecês tomaram batismo, por gratidão de nhor Luciano, qu’esta fazenda Muçambê, com boa semente de gado, foi presente dos troncos velhos donde vêm os dois irmãos, padrinhos de vosmecês. (GAMEIRO, 1980, p. 158).

É interessante reforçar que a oralidade é uma marca constante na narrativa de

Curral de Serras. No trecho, anteriormente transcrito, o personagem busca, através da

memória, reconstruir um passado, para assim dar explicações de um presente. Isso

endossa a afirmativa de Coutinho (1970) sobre o discurso regionalista. Segundo o

crítico, esse discurso “não pode ser reduzido a enunciação de sujeitos individuais, de

sujeitos fundantes, mas sim a sujeitos instituintes”. (op. cit. p. 62). São esses os sujeitos

que escrevem a história do sertão nordestino. Os sujeitos que se reinventam, pela ótica

de Albuquerque – mesmo em momento de desidentificação com a memória nacional e

regional, como diz Rago (ALBUQUERQUE, 2009, p. 34), citando Pierre Nora – e que

são capazes de representar essa “nova forma de dizer e ver o regional, que abre caminho

para novas formas de sentir e de conhecer”.

É neste sentido que nosso trabalho encontra respaldo nas discussões de

Albuquerque, por considerarmos que Alvina Gameiro abre caminho para essa nova

forma de ver, dizer e conhecer o Nordeste. Através da leitura de Curral de Serras,

temos uma noção de como a Região foi instituída histórica, social e culturalmente.

Assim, pelo discurso dos personagens, o enfoque regionalista vem à tona,

ressignificando a imagem do sertão nordestino, bem como reforçando a proposta

ideológica do movimento literário, citada no início dessa discussão.

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4 O HERÓI SERTANEJO E A QUESTÃO IDENTITÁRIA

Nenhum povo vive sem uma teoria de si mesmo. Se não tem uma antropologia que a proveja, improvisa-se e difunde-a no folclore.

Darcy Ribeiro

Antes de partirmos para o desenvolvimento da ideia acerca do processo de

construção identitária do sertanejo, no romance Curral de Serras, julgamos necessário

fazer um recorte teórico da discussão em torno da temática identidade, cujo conceito,

em ciências humanas, ganha dimensão a partir dos anos de 1960, com a passagem do

conceito de identidade individual para o coletivo (identidade cultural) e no âmbito

literário, ganha força com as ‘literaturas minorizadas’, quando estas recusam o

estereótipo de ‘literaturas periféricas, desconexas e marginais’ e reivindicam um

estatuto autônomo no interior do campo instituído, segundo Zilá Bernd (1992).

Essas literaturas emergentes são fundamentais para a elaboração de um conceito

ainda maior: o de identidade nacional, que, nascida como ficção, tem como desafio o de

convencimento, para se consolidar e se concretizar numa realidade (BAUMAN, 2005).

A partir desse conceito, surge a necessidade de se entender e até reinventar outros

conceitos, como, por exemplo, os de identidade nordestina e identidade sertaneja, nossa

proposta de estudo.

Hall (2003) aponta que compreender a questão identitária passa pela noção de

sujeito e aponta três concepções diferentes de identidade para cada um. Para o sujeito do

Iluminismo, que é centrado, unificado, dotado da capacidade de razão, ‘o centro

essencial do eu era a identidade de uma pessoa’; para o sujeito sociológico, que reflete a

complexidade do mundo moderno, a identidade é formada na interação entre o eu e a

sociedade. Já o sujeito pós-moderno não tem uma identidade fixa e sim móvel. E essa

mobilidade dá ao sujeito a possibilidade de descentramento. Tomando o protagonista de

Curral de Serras como exemplo, infere-se que, diante do caráter de mobilidade e não

fixidez do conceito de identidade, a sua se constrói na medida em que retoma o passado,

para relatar a seu interlocutor sua trajetória. Sua identificação como sujeito sertanejo se

dá a partir de uma desconstrução da ideia romântica de herói, bem como através das

múltiplas identidades assumidas durante seu percurso narrativo. Neste sentido, podemos

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situar o personagem Valente, em alguns momentos, como um sujeito dentro dos moldes

sociológicos – entendido aqui, segundo Hall (2003, p. 11) como um sujeito que reflete

“a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo

interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente”, mas formado na “relação com

‘outras pessoas importantes para ele’, que mediavam para os sujeitos os valores,

sentidos e símbolos” (id. ibid). Nessa concepção sociológica, Hall (2003, p. 11) enfoca

que o sujeito não perdeu o núcleo ou essência interior, seu ‘eu real’, “mas este é

formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as

identidades que esses mundos oferecem”. Assim, entende-se a construção identitária do

protagonista do romance, a partir de sua trajetória pelo sertão nordestino, ora

identificando-se como pertencente ao mundo onde chegara, ora diferenciando-se dos

demais sujeitos.

Bauman (2005, p. 36) aponta que “‘identificar-se com...’ significa dar abrigo a

um destino desconhecido que não se pode influenciar, muito menos controlar”. Ao

chegar à fazenda de Isabela, Valente assume papéis que o tornam representante de uma

esfera cultural mais ampla, tornando-o assim, um sujeito múltiplo, embora apresente

características que lhe parecem inerentes, tornando-se, com isso, mais difícil uma

definição de sujeito segundo a classificação de Hall, embora nossa análise prime por

abordar a identidade marcada pela diferença, de acordo com a concepção de Woodward

(2009). Assim, ser sertanejo é se reconhecer como tal a partir da existência do outro.

Ser sertanejo, sob essa ótica, seria não ser litorâneo, considerando, de acordo

com Moraes (2006) o termo sertão como a representação de “territórios do interior,

afastados da costa” (op. cit. p. 21). Entendo essa dualidade sertão / litoral como as

partes que constituem distintamente o Brasil – cenários muitas vezes tomados como

referências de discursos sobre a Nação, conforme cita Sousa (1997).

Dentro desse contexto, cumpre notar a importância do sertanejo na construção

da identidade nacional, como um sujeito essencial nesse processo, embora na descoberta

de sertão como um traço distintivo, o sertanejo passe a ser visto com uma visão negativa

por sua inferioridade, seja ela racial, cultural ou histórica, segundo a análise de Guillen

(2002). Essa ótica negativa do sertanejo se fez mais presente, talvez, desde o impacto

causado pela publicação de Os sertões, de Euclides da Cunha, em que a elite intelectual

tomou conhecimento do “outro da nação, o sertanejo rude e forte” (idem, p. 108).

A pesquisadora lembra que a população sertaneja é vista ora como habitante de

um lugar inóspito ora como representante maior da “gênese da brasilidade” porque o

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sertão aparece como um conceito plural: mesmo apresentado como “um lugar inóspito,

onde a vida é difícil porque se trata de terra pouco povoada, agreste” (ibidem, p. 108), é,

porém “habitada por gente brava e destemida: o heróico sertanejo” (id ibid). Esse é o

foco que se dá à imagem de sertão no romance Curral de Serras; a descrição não tende

ao negativismo ou ao historicismo estereotipado, como acontece em muitas narrativas

ficcionais que usam o sertão como pano de fundo; antes é um olhar que, “configurando

os contornos internos do espaço-Brasil, confirma a diferença e conclui que a sociedade

nacional não se horizontalizou por igual” (SOUSA, 1997, p. 36).

Compreender a identidade a partir da diferença, do reconhecimento do outro, é

definir o conceito de uma forma “não-essencialista”, segundo Woodward (2009).

Assim, parece-nos mais apropriado usar o conceito de identidade sertaneja como “uma

construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo”

(SILVA, 2009, p. 96) e não dentro de uma perspectiva essencialista que defende a ideia

de fixidez da identidade, que, ainda segundo Silva (idem, p. 97),

[...] é instável, contraditória, fragmentada, inconsciente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação. A identidade tem estreitas conexões com relações de poder. (sem grifo no original).

Essas relações de poder, em Curral de Serras, podem ser relacionadas à figura

de Isabela, que, de certa forma, representa o outro na construção identitária de Valente.

Assim, dentro dessa perspectiva, estabelece-se o EU e o OUTRO no processo

identitário. Considerando esse outro como sendo o diferente, e que se expressa, segundo

Silva (2009, p. 97), “[...] por meio de muitas dimensões. O outro é o outro gênero, o

outro é a cor diferente, o outro é a outra sexualidade, o outro é a outra raça, o outro é a

outra nacionalidade, o outro é o corpo diferente”.

A ambivalência EU/OUTRO, no romance, pode também ser associada à imagem

sertão/litoral, no sentido de entender, a partir de Darcy Ribeiro (1995, p. 448), o que

seria a população sertaneja, na formação do povo brasileiro:

[...] um tipo particular de população com uma subcultura própria, a sertaneja, marcada por sua especialização ao pastoreio, por sua dispersão espacial e por traços característicos identificáveis no modo de vida, na organização da família, na estruturação do poder, na

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vestimenta típica, nos folguedos estacionais, na dieta, na culinária, na visão de mundo e numa religiosidade propensa ao messianismo.

A identificação através dos traços característicos, em oposição a outros povos,

constitui um aspecto importante na formação do povo e isso é perceptível no romance

Curral de Serras. Ao focalizar os aspectos constituintes da identidade cultural sertaneja,

Gameiro nos direciona também para a necessidade de compreender e desconstruir

alguns estereótipos desse sertanejo, por vezes, apontado como um sujeito sem cultura,

largado nos ermos do sertão, outras, tido como alguém que tem uma subcultura própria

(RIBEIRO, 1995), mas que tem um perfil quixotesco – usando uma expressão de

Joaquim Ribeiro (1997) – o que, segundo ele, seria o mesmo que dizer que o sertanejo,

quando não se coloca como transgressor, possui excelentes virtudes cavalheirescas,

como se percebe pelo comportamento do protagonista do romance em análise: “– Deus

me livre dum papel deste! Não sou homem de atreviduras. Nunca andei tomando

gosto com alguém do meu igual, que direi em refranzear com a pessoa da senhora...”

(GAMEIRO, 1980, p. 63, sem grifo no original).

Essa caracterização do protagonista nos permite fazer um paralelo entre este e

outros sertanejos representados na ficção, como, por exemplo, o de Euclides da Cunha,

visto por Albuquerque (2009) como um “paulista” isolado no sertão. Essa observação

não se faz no sentido de dizer que um é mais sertanejo que o outro, mas no sentido de

entender, segundo o historiador (ALBUQUERQUE, 2009, p. 67), que “o tema sertão

serve para os intelectuais nacionalistas lançarem uma crítica a toda a cultura de

importação, à subserviência litorânea, aos padrões culturais externos” e ainda perceber a

relação de alteridade na construção da identidade do sujeito. O que, segundo Arruda

(1998, p. 42), se explica pela Antropologia: “A construção do outro e do mesmo são

indissociáveis” e ainda que essa construção “acontece como na dança, em que um

parceiro precisa conjugar seus movimentos aos de seu par para poder seguir a música”

(id ibid). Neste sentido, entende-se que alteridade não é “uma construção definitiva”,

pois, segundo ele, ela se dilui e evolui no tempo.

Tal como a alteridade, a identidade também não é fixa e se constrói a partir de

um coletivo, segundo os estudos culturais. Castells (1999, p. 22), por exemplo,

referindo-se aos sujeitos sociais, diz que a identidade é um processo que constrói

significado “com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos

culturais inter-relacionados, o(s) qual(is) prevalece(m) sobre outras fontes de

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significado”. Assim, entendemos que as representações da cultura sertaneja em Curral

de Serras, tanto na linguagem – carregada de marcas da oralidade, quanto nas

descrições paisagísticas e dos costumes da gente do sertão, constituem elementos

imprescindíveis para essa (re)construção identitária, porque “a formação da identidade

ocorre também nos níveis ‘local’ e pessoal”, segundo Woodward (2009, p. 28).

O tornar-se sertanejo pode ser também determinado, muitas vezes, pelo olhar do

outro. Dessa forma, é lícito falar de identidade sertaneja através de uma relação de

alteridade sertão/litoral, baseado tanto em Souza (1997) – que apresenta o sertão como

um recorte visto por um narrador do litoral – como em Albuquerque (2009), cujas

metáforas abrem o pensamento para as ambivalências. E, se é possível pensar em

metáforas no discurso historiográfico, é mais possível ainda usá-las para (re)direcionar

nosso olhar sobre o sertanejo, que, segundo esse discurso, se “inventa” como nordestino

à medida que vai “inventando” o Nordeste.

Com essa discussão sobre identidade, surge a questão da estereotipia – cuja

observação se faz presente em nossa análise, por apontarmos a construção identitária do

sujeito sertanejo a partir de uma visão desconstrucionista e não engessada, acabada,

como se pode pensar sobre o sertão nordestino. Assim, partindo do conceito de

estereotipia como sendo “um modo de representação complexo, ambivalente e

contraditório, ansioso na mesma proporção em que é afirmativo” (BHABHA, 2007, p.

110), e aplicando o conceito ao sertão, e, consequentemente, ao sertanejo, traçados no

romance Curral de Serras, percebe-se que não há visão negativa sobre esses elementos,

mas uma imagem que se constrói na interação com o outro, reiterando a assertiva de que

o ‘pertencer’ e o ‘ser’ não tem solidez nem são garantias para toda a vida; são

negociáveis e revogáveis, segundo os pressupostos teóricos de Bauman (2005).

Albuquerque Jr. (2009, p. 30) define a estereotipia, no sentido de entender a

(re)invenção do Nordeste, como sendo um discurso assertivo e repetitivo. Segundo o

historiador, “é uma fala arrogante [...] fruto de uma voz segura e autossuficiente que se

arroga o direito de dizer o que é o outro em poucas palavras”. Seguindo essa lógica,

entende-se que “o estereótipo não é apenas um olhar ou uma fala torta, mentirosa. O

estereótipo é um olhar e uma fala produtiva” (id ibid) porque cria uma realidade para

quem o toma como objeto. No que diz respeito ao Nordeste brasileiro, Albuquerque

defende que a estereotipia se dá pela necessidade de afirmação do povo do Sul e

também é criada pelos próprios nordestinos quando estes se colocam em situação de

inferioridade. Neste sentido, essa visão estereotipada passa pela nossa concepção de

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nordestino e é uma discussão necessária, para se compreender uma questão proposta

pelo historiador: “Que masoquismo é esse que faz nos orgulharmos dessa

discriminação, que faz aceitarmos felizes o lugar de derrotados, de vencidos?” (idem, p.

31).

Infere-se, com isso, que o nordestino é visto, nesse contexto, como um desvio de

olhar e tal qual o Nordeste é uma invenção das relações de poder e do saber (id ibid), e

combater essa discriminação não significa simplesmente inverter a direção do discurso,

mas ressignificar tal abordagem discursiva. E isso é encontrado em Curral de Serras,

pois Gameiro nos apresenta uma região possível de ser reiventada e reinterpretada pela

ótica da construção/desconstrução da identidade sertaneja nordestina.

A estereotipia, nesse discurso do Nordeste e de sertão, entretanto, não é de todo

negativa, pois, ao lançar um olhar torto para o sertanejo nordestino, a população

litorânea ajuda na construção de sua identidade, a partir da concepção de que identidade

se forma na diferença, sendo esta “um elemento central dos sistemas classificatórios por

meio dos quais os significados são produzidos” (WOODWARD, 2009, p. 67).

Outra consideração a ser feita acerca da identidade é que ela se constrói a partir

de um coletivo, como define Stuart Hall (2003) e que é preciso uma crise, um

deslocamento de algo que se julgava fixo, “pela experiência da dúvida e da incerteza”,

para que esta se torne uma questão; assim, poderíamos apontar que a identidade do

sertanejo é construída, ao se estabelecer um paralelo entre a gente do sertão e a do

litoral. Darcy Ribeiro (1995) aponta que a sociedade sertaneja do interior distanciou-se

não só espacial, mas também social e culturalmente da gente litorânea, estabelecendo-se

uma defasagem que as opõe como se fossem povos distintos. Essa oposição faz com que

a identidade do sertanejo passe a ser focalizada como questão, como sugerem os estudos

culturais.

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4.1 Isabela x Valente: desconstruindo papéis, igualando sujeitos, construindo identidades

Ai! O amor, Nhonhô, meu filho, é obra d’um encantamento, que se decanta em feitiço...

Alvina Gameiro

Nossa análise da construção identitária do sujeito sertanejo, no romance Curral

de Serras, toma como base o casal protagonista Isabela e Valente, considerando não só

as características particulares de cada um, mas, principalmente, o que é comum aos

dois, como a condição de igualdade entre eles. Percebe-se, pelo comportamento dos

protagonistas que os papéis sociais normalmente atribuídos aos sexos, no romance, não

chegam a sofrer inversão, mas uma desconstrução, pois gera uma espécie de igualdade

entre os sujeitos masculinos e femininos. A mulher não vive em condição subalterna,

ela enfrenta desafios e parece agir com mais (ou tanta) objetividade quanto o homem.

Isabela é uma mulher destemida, quase com características de coronel do sertão – o que

seria explicado, segundo o narrador, por conta da própria história de vida da

personagem. Tendo perdido a família quando ainda era muito jovem, pouco tempo

depois de o avô ter lutado junto com beato Conselheiro, na guerra de Canudos, Isabela

teve que aprender a demarcar seu território e, acima de tudo, aprender a se defender e

não permitir ‘atrevimentos’ para com sua pessoa.

De acordo com Schpun (2002, p. 179), “em posição de poder, uma mulher tem

nos homens seus interlocutores e iguais – sejam eles subordinados, aliados, rivais,

inimigos ou traidores”. Essa reflexão feita por Schpun13 acerca de Memorial de Maria

Moura (1992) nos reporta ao comportamento da personagem feminina de Curral de

Serras. “[...] mulher valente, despachada nem ver macho[...]” (GAMEIRO, 1980, p.

100). Vale ressaltar que a autoridade de Isabela decorre não só do seu caráter, mas,

sobretudo do poder econômico de que é detentora. Ela é a “patroa” e isso lhe assegura o

direito de estabelecer as fronteiras em sua fazenda. “Isabela, magistral tipo nordestino,

se incorporará às mais notáveis figuras femininas da criação literária brasileira”, ressalta

13 A autora reflete sobre a personagem Maria Moura, de Rachel de Queiroz e a possível aproximação da protagonista com Elizabeth I, rainha da Inglaterra, uma das três pessoas para quem o romance Memorial de Maria Moura seria dedicado.

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A. Tito Filho (GAMEIRO, 1980, p. 8). Pelo caráter forte e guerreio da personagem

feminina de Curral de Serras, podemos associá-la a outras guerreiras das páginas do

romance nordestino, como as de Rachel de Queiroz, por exemplo. E, neste caso,

especialmente, encontramos semelhanças entre Isabela e Maria Moura.

Isabela talvez seja mais um “lampião de saias” – usando a expressão de Chiapini

(2002) atribuída a algumas personagens femininas de Rachel de Queiroz – embora não

se transfigure de homem para impor respeito. Sua autoridade não diminui com os trajes

que usa – até porque o narrador praticamente não nos dá informações sobre os aspectos

físicos de Isabela. Observamos que a personagem feminina de Curral de Serras

reivindica a identidade de mulher de poder e não uma identidade de homem. Schupan

(2002, p. 183) discorre sobre essa reivindicação feminina da personagem Maria Moura,

mas é uma característica bem aplicável a Isabela, pois essa identidade lhe rende o

direito de propriedade sobre tudo e todos na fazenda – situação que muito incomodava o

rapaz recém-chegado.

E eu sem descobrir o misteiro de que a dona fazia uso, por trazer o ror de homens em sistema de caparoeira. Labutavam era d’escravos, sem saídos de lamúria, mas sem gasto de alegria, e o trabalho no firme correndo em marcha batida, sem engrazar divertimento. (GAMEIRO, 1980, p. 45).

Infere-se com o trecho que, de posse do poder, a dona da fazenda não hesita em

tratar a todos como seus súditos e essa é a mola propulsora da narrativa, porque é a

partir dos mandos de Isabela que se inicia uma luta interna do narrador. Inicialmente ele

se questiona o porquê do comportamento passivo dos moradores, depois descobre

atitudes que condenariam a moça; paralelo a isso, descobre encantos que a redimem. A

luta passa, então, a ser uma guerra de egos travada entre o casal. Determinada, a mulher

tenta, a todo custo, conquistar amor e confiança de Valente, mas este se esquiva, por

considerar que a mulher teria más intenções em relação a ele.

O causo daquela dona, embrulhada num misteiro, dava parecenças duma estória, qu’eu em menino escuitei, da boca de minha vó: era uma bruxa perversa figurando encantação, no corpo duma donzela por demais afermosentada, que seduzia os mancebos, só por despenhar os pobres lá no fundo dum buraco, e ter gosto de ficar judiando deles. (idem, p. 45).

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Essa comparação de Isabela a uma personagem má do imaginário infantil nos

autoriza a enxergar um certo medo também no rapaz; só que, no caso dele, não seria

medo de sofrer castigo físico – prática comum incorporada às normas da fazenda,

conforme ela já deixara claro – mas receio de envolvimento. Prova disso é que ele

mesmo declara não encarar Isabela, não a olhava; e isso leva o leitor a não obter um

perfil físico da personagem feminina. “Sem poisar a vista nela, eu sabia que a dona me

reparava, a pois, o miolo do sentido do falatório inteirinho era direto pra mim.”

(GAMEIRO, 1980, p. 38).

Isso é um aspecto interessante a se observar no romance: não há descrições

físicas da personagem feminina. Essa característica de Gameiro a aproxima de Rachel

de Queiroz no sentido de descrever a personagem “mais no pensamento e na ação do

que fisicamente” (SCHUPAN, 2002, p. 173). Somente a descrição da cena em que os

protagonistas acertam o serviço na fazenda é que nos dá algum detalhe da moça.

Na direção do rumo, esticou o braço no firme, e amostrou a palma da mão, formando berço p’ra chave. Entonces, vi peça perfeita de carne moça rosada, debaixo da pele branca: a mulher ‘inda era nova, que mão é traste coscuvilheiro, p’ra informar idade alheia. (GAMEIRO, 1980, p. 23, grifo nosso).

Inferimos, pelo trecho, que a dona da fazenda era uma mulher branca e nova,

mas não ficamos sabendo mais nada sobre seu aspecto físico, pois o narrador repete a

todo tempo que evitava olhar para a patroa: “[...] nunca minha vista pendia p’r’o rosto

dela, por via de garantir mais agonia, maior sede no começo do xodó. E, também, não

me dava gosto de me pôr assuntando o recado dos olhos dela p’r’os meus.”

(GAMEIRO, 1980, p. 37). Essa declaração comprova a assertiva de que o medo que o

rapaz sentia era de que algum sentimento pudesse crescer entre eles.

Curiosamente, não se tem informações sobre a escolaridade de Isabela; sabe-se

que ele herdara a fazenda da família e, com ela, todas as responsabilidades

administrativas. Mora no casarão da fazenda, com a avó (dona Filó) e os empregados,

dentre estes, Sinhá Balbina, ambas ainda do tempo do avô. Sua história de vida é triste,

como percebemos no relato de seu Pulquério.

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Em antes, quando bati espinhaço cá, a patroa era menina e nhor Elpídio Abaraíba devia andar bem pela roda dos setenta anos, porém, ‘inda era muito espertinho e bem regulado do juízo. Em despois dele, quem reinava era seu Servusdei, que foi rebento sobrado dos filhos machos do Branco acabados, como já informei a vosmecê, na guerra do Santo Conselheiro. A pois sim, a d.Isabela, com mais um irmão que tinha, é filha de seu Servusdei; a mãe dela, d. Esponina, morreu de parto do dito menino, de nome Doroteu [...]. (GAMEIRO, 1980, p. 99).

A história de vida de Isabela, contada pelo vaqueiro da fazenda, faz com que

tracemos um perfil da personagem feminina, baseado em sua história e justificado pela

carga de responsabilidade assumida desde cedo. Essas informações sobre a vida de

Isabela são pertinentes para justificar o espírito justiceiro da moça, bom como para

entendermos seu processo de construção identitária. Salientamos que ela teve

praticamente toda a família morta em um massacre, como se percebe no trecho:

Ninguém sobrou p’ra contar como se forjou a questão do causo. Concluídos se tirou que o Corujão, devendo qualquer malfairo, esfaqueou seu Evaristo. Seu Servusdei achou ruim e quis impor disciplina, aí, também comeu faca; veio o pobre do meninote, tentando socorrer o pai e morreu do mesmo jeito. Bem ali, o cafuz deu fé da moça, já de arma engatilhada, certinho no rumo dele, e fez menção d’avançar, mas recebeu pronto, exato, lá nele, de justo, bem no tampão da cabeça, um furo que deu passagem pr’a valer mais nada não. (GAMEIRO, 1980, p. 100).

Diante do assassinato do pai e do irmão, a moça resolve vingar-lhes a morte e

isso passa a ser a lei maior em sua fazenda. Desse massacre, sobram os avós (Elpídio e

Filó), mas o avô não resiste muito tempo e Isabela, então toma as rédeas da fazenda. Já,

no enterro, demonstra esvaziamento dos bons sentimentos:

A Branca, com os olhos inchados, sem verter pingo de choro, entalou qualquer soluço com a boca apertando raivas e ali, guardada em silêncio, tinha uma cara feral, à moda d’assustar gente. Nhor Elpídio Abaraíba s’acamou foi duma vez. Chorou mágoa até morrer. Mas também, naquele ponto de velhez, duas bordundadas assim rudes, era porção por demais... Sinhá Filó agüentou os golpes [...]. Hoje, coitada, s’acha prestando pr’a coisa nenhuma, como vosmecê, seu Valente, mesmo viu. Mas aquilo é peça-do-reino [...]. Pr’a ela, fique o senhor sabendo, a noiva de vosmecê puxou não! Nem teve legado das qualidades do pai e do avô. De nhor Elpídio Abaraíba ela só herdou a energia da vontade, que, quando quer, quer mesmo, e em espois de dizer não, não volta palavra atrás... (GAMEIRO, 1980, p. 101, grifo nosso).

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Isabela parece ter herdado algumas características do avô, e uma delas seria a

importância da decisão tomada. O avô teria deixado suas terras “só por mor d’escuitar a

beleza das pregações e receber benção daquele homem santificado que atendia pelo

nome de Bom Jesus Conselheiro, ou também por Beato Conselheiro.” (GAMEIRO,

1980, p. 75) e isso o tornara defensor do Beato, já que os soldados do governo queriam

a morte do santo. “Era que se dava o começo d’ensangrenta guerra santa” (ibidem).

Isabela torna-se uma mulher decidida, firme, mas humana – o que, talvez, imponha o

respeito dos moradores da fazenda.

A pois saiba o senhor, qu’ela é mulher destemida, dura de ser, que nem pau-ferro, amostrando por ror de vezes coração desapiedoso... Mas esta de inhaca de sujo?! Qual o que! Lá isso não! Ela é mulher de respeito, possui todo o recato da decência. Afianço com justeza no dizer, qu’esta gente orgulhosa de nhor Elpídio Abaraíba tem honor correndo no sangue por alta fidalguia. É povo de todo o siso na cabeça e honra na palavra empenhada. Eu tenho cá minhas raivas, mas porém não altero a verdade, qu’é uma só [...]. (GAMEIRO, 1980, p. 99, grifo nosso).

Essa aparente complexidade identitária de Isabela é justificável graças a sua

sina, como já destacamos em trechos anteriores. Ainda muito jovem, recebeu obrigação

sobre a fazenda e precisava mantê-la em bom estado de funcionamento, em respeito a

memória do avô. O Branco (nhor Elpídio era assim chamado na fazenda; da mesma

forma que Isabela era chamada de Branca) avô da moça, então, abandonando suas terras

para acompanhar o Beato, teve que fugir para Pernambuco, fugindo dos soldados do

exército e, como não teve mais jeito de voltar, a sorte deu-lhe de presente uma fazenda

abandonada, com todas as garantias de uma vida amparada pela riqueza material. E, não

havendo quem reclamasse posse da tal fazenda, a família inteira foi trazida para o Vão-

da-Cumbuca, como relatou seu Pulquério ao narrador. Isabela, uma das únicas

sobreviventes da família de nhor Elpídio Abaraíba, herda não só a fazenda, mas todo o

caráter lutador do avô – assim descrito pelo narrador:

O Branco, sempre calado, desfazendo qualquer queixa, pelejava pr’a viver com a gente dele trazida, demonstrando na coragem, firmitude de coração e força bruta dos muques, a febre d’homem de prol, que responde pelos feitos, no tope de madeira de lei, que não bambeia, não verga, nem tem meio de rachar nas unhas de temporal, por mais rude que pareça. (GAMEIRO, 1980, p. 76).

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Isabela é o retrato da mulher forte, destemida e guerreira. No entanto, isso não

lhe tira o romantismo sobre a possibilidade de viver uma história de amor. Suas versões

ora se complementam ora se entrechocam e seu caráter decorre exatamente dessa

multiplicidade de personalidade; através de um olhar avesso, é difícil imaginar algum

traço de bons sentimentos na moça, mas esta traz em si não uma identidade fixa de

coronel do sertão ou de um jagunço, mas uma identidade múltipla de mulher que

carrega em si o desejo de amar e ser amada e, quem sabe, até protegida? A moça

apaixona-se pelo forasteiro e tenta, a todo custo, seduzi-lo. É interessante ressaltar que

ela se aproveita de sua condição de dona da situação para impor o amor de Valente.

[...] tendo aprendido meu nome, daqui por diante, eu ‘tou mandando, me chame mesmo Isabela. É privilégio que dou só a vosmecê e a ninguém mais nesta fazenda, em tirante minha avó. Entendeu bem, seu Rogato? Também assim vou tomar uso de chamar vosmecê, que o nome de Valente deixo p’ra gasto dos outros. (GAMIERO, 1980, p. 34, grifo nosso).

O rapaz aceitava tudo como se fosse o mero cumprimento de um dever, por

conta de sua condição de empregado da fazenda. No entanto, descobrir o nome da

patroa só lhe causa desconforto dobrado porque é o momento em que ele ouve a avó da

moça confundi-lo com um certo Lino (exatamente o nome de seu irmão desaparecido).

Depois de ouvir o nome do irmão e desconfiar de sua morte, Valente alega febre, para

não ficar na presença da patroa, mas é em vão, porque ela passa a cuidar pessoalmente

dele, velando-lhe o sono. Percebendo sua melhora, ela o convida a voltar a frequentar

sua casa – ao que ele, inutilmente, reluta, tentando alegar mudança nos hábitos da casa

por conta do desajuste de horários dos dois. Mais uma vez a autoridade de Isabela

resolve tudo:

- [...] tenho ciência das coisas e acho do meu dever não servir d’empalhação... Vosmecê janta no cedo, eu, porém, só deixo o trabalho já quase noite fechada ... É o causo de preguntar: por amor de que desmudar o costume qu’é dum uso provindo de longes tempos? É p’ra senhora curtir fome m’esperando todo dia até boquinha da noite? - Vosmecê me convenceu. Verdade dita, pois não! O juízo do senhor costura ponderação no mais fino dos remates... Mesmo assim, dou jeito em tudo: o horário ‘tá mudado. Feche a loja às quatro horas e dali até as cinco sobra o tempo carecido de voltar lá do banhado, se arrumar, chegando certo, quando a janta for p’ra mesa. (GAMEIRO, 1980, p. 37, grifo nosso).

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Iniciado o namoro entre os dois, em meio ao desasossego do rapaz, as

desconfianças da moça surgem. Valente tenta encarar racionalmente os fatos, pois sentia

necessidade de ‘dobrar’ a mulher, de acabar com sua empáfia e, de certa forma, salvar

os moradores da fazenda daquela autoridade desmedida. Seria capaz de matá-la, fosse o

caso:

Daquela tarde pr’a frente, tive de comer na sala, isto é, pegava a janta, a pois o almoço ia na loja. Espois d’engolir bocada, aturava uma aquelança espichada, qu’era nem ver farsa de palhaço no papel de namorante. Porém, nunca minha vista pendia p’r’o rosto dela, por via de garantir mais agonia, maior sede no começo do xodó. E, também, não me dava gosto de me pôr assuntando o recado dos olhos dela p’r’os meus. (idem, p. 37).

Isabela representava para Valente toda a sorte de desgraças: teria matado o

irmão; trazia todos os moradores debaixo de sua autoridade; determinava o

comportamento das pessoas; impunha o silêncio e o respeito em suas terras e, acima de

tudo, queria mandar nos sentimentos do rapaz. Esse era o grande entrave na vida do

protagonista: “Era sozinho, no meu quarto, que ficava me benzendo, m‘entregando a

todo santo, p’ra me livrar do rabicho d’encanto que a dona possuía e tentava me

arrastar.” (idem, 51). A possibilidade de amar Isabela o atormentava e ele continuava

evitando um encontro de olhares, talvez por medo. Esta reclamava dessa atitude fugidia;

desconfiava de que o rapaz tivesse um amor guardado no peito, pelo semblante triste

que tinha e também pela dispersão. A moça achava que ele carregava saudade de um

amor distante e, desde que o ouvira tocar gaita, seus ciúmes aumentam e o ela ordena

que ele passe a tocar também em sua casa.

É instigante o comportamento de Isabela, tanto para o narrador, como para o

próprio leitor. Ela passava das atividades reservadas aos homens ao embalo dos

namorados. Rendido ao amor, Valente dá uma trégua à luta contra os sentimentos e,

finalmente, entrega-se aos encantos da mulher.

Aí eu olhei pr’a ela, sem dar conta do que fazia e ficamos os dois confrontes, pegando sério comprido, sem querer mais acabar. Fiquei de boca arriada, areadinho de todo. Me botei estruvinhado com o encanto da mulher e a possança do quebranto que morava naquele rosto. [..]. Já tinha visto olhos pretos, enfeitando outras mulheres, mas nunca como o denegrido e toda a afeição dum poço, morada duma mãe-d’água, com machado m’esperando ... o pretume dava susto,

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talqualzinho o fundo dum bismo, chamando a gente pr’a morte [...]. (GAMEIRO, 1980, p. 57)

Tudo leva a crer que o impasse do casal estaria resolvido, com o ajuste do

matrimônio, antes unilateral e que reinaria a paz entre eles, pois tudo se definiria de

forma pacífica. Essa impressão também reina na fazenda. Conhecedores do enlace

matrimonial próximo, os moradores sentem uma leveza na alma a ponto de tudo ganhar

mais vida. Valente passa a ser coroado como o herói da fazenda, por ter sido capaz de

fazer Isabela abandonar o luto pelo ex-marido e permitir que o silêncio ceda espaço ao

assovio em suas terras.

Observamos que o rapaz não apresenta as características de cangaceiro, é, antes,

um sujeito capaz de se adaptar a uma sociedade sertaneja, regida por leis próprias, em

uma fazenda onde o patriarcalismo cede lugar aos mandos de uma mulher, cuja força

demarca as fronteiras em uma sociedade que foge a estratificação. Chegara a um lugar

estranho, fora recebido com regalias, ganha o amor, o respeito e a confiança da patroa;

dá mostras de todo o seu valor como sertanejo e, ainda, casa-se com a mulher,

demonstrando “[...] o caráter intrínseco das relações de poder, ligando homens e

mulheres em toda sua complexidade” (CHIAPINI, 2002, p. 167), assim como a

“fragilidade das situações de ruptura, as ambigüidades profundas” (ibidem) na relação

envolvendo a particularidade do relacionamento conturbado dos dois.

Chiapini (2002, p. 170), destacando alguns estudos feitos por mulheres acerca da

obra de Rachel de Queiroz14, nos autoriza a pensar algumas dessas críticas em favor de

Curral de Serras. A mais pertinente seria a falta de um final feliz. “As mulheres fortes,

que buscam a liberdade, seja pelas letras seja pelas armas, ficam sozinhas, sem marido

[...]”. Isabela não faz a opção pelo poder, em detrimento de uma história de amor; ao

contrário, ela quer viver uma história de amor e usa todo o seu poder para conquistar a

pessoa amada, e pretende, sim, distribuir na mesma proporção amor e poder; delimitar a

fronteira entre o amor e as leis em sua fazenda, mesmo sem consciência de que isso lhe

renderia a solidão – preço pago por grande parte das heroínas fortes da literatura

brasileira.

O perfeito entendimento do final de Curral de Serras é Chiapini (2002, p. 173)

que também nos dá: “[...] a desconstrução discreta mas firme de mitos, preconceitos e

14 A autora cita, dentre outras, Heloisa Buarque de Holanda e seu trabalho sobre as matriarcas de Rachel de Queiroz.

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expectativas (como o final feliz que poderíamos esperar, do rapto da donzela pelo

sertanejo forte), ou a crítica que se enuncia mais nos silêncios para o leitor concluir do

que nas palavras.” O narrador não sabe, ao certo, o final da mulher amada; o leitor

também não. É exatamente esse silêncio, que rompe as cercas da fazenda de Isabela e

ganha corpo no espaço da narrativa, que leva o protagonista a questionar sua atitude.

Teria mesmo matado a mulher que tanto amava? Essa inquietação intensifica o caráter

paradoxal dos personagens, no romance Curral de Serras. Inicialmente, havia uma

disputa de poder entre o casal – nenhum dos dois tinha interesse em ceder aos caprichos

do outro; o amor faz com que eles ultrapassem essa barreira, mas não abandonam de

todo suas características particulares. Em Isabela, por exemplo, a imposição de sua

pessoa, na condição de dona da fazenda era sua marca registrada, e isso é perpetuado.

Mesmo que a narrativa dê superioridade a Isabela, ainda assim, há

predominância do olhar masculino sobre a figura feminina (não esqueçamos de que é

Valente o detentor do discurso ficcional), demonstrado no final do romance, que é

pessimista em relação à mulher. Apesar de todo caráter transgressor de Isabela,

rompendo as barreiras do cangaço e se pondo em pé de igualdade com os cangaceiros,

não é sua autoridade que predomina. Sua última aparição é no casamento. A partir desse

fato, há espaço apenas para o personagem masculino narrar sua sina, demonstrando que

o heroísmo do romance não se apresenta na força física dos personagens, mas sim na

representação identitária do casal, como os representantes maiores da sertanidade de

Gameiro. Depois do casamento, rompe-se o contato físico do casal, mas talvez não

rompa o amor, pelo menos da parte do rapaz que afirma viver uma morte em vida, após

a separação. É possível também imaginar que o amor não tenha abandonado Isabela e

inferimos isso pelo interesse do filho em conhecer o pai e ouvir sua versão dos fatos.

O casal Valente e Isabela é a representação dos heróis sertanejos de Gameiro,

em Curral de Serras. O homem mostra-se destemido, como se vê no trecho, a seguir,

em que ele comenta com Isabela que irá defendê-la: “Se acertou casar comigo, tem

homem den´de´casa e também fora, p´ra fazer frente à questão de defender vosmecê”.

(GAMEIRO, 1980, p. 91). A mulher, por sua vez, não aceita que desafiem sua

autoridade: “O respeito nestas terras é sagrada obrigação, seu Valente. S’alguém tenta

passar do limite, recebe ensino tão bruto que não dá p’ra desanembrar nunca mais...”

(idem, p. 87). Pelo fato de o romance apresentar o ponto de vista do narrador-

protagonista, a imagem que se tem dos personagens é construída unilateralmente e isso

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tende a uma visão distorcida do próprio conceito de identidade, que, dessa forma,

absorveria a ideia de fixidez, de unificação, tão debatidas pelos estudos culturais.

4.2 O imaginário de sertão em Curral de Serras

O deserto é perto,/ o sertão, distante. No deserto, a morte,/ no sertão, a sorte.

O deserto é porto,/o sertão, estação. O deserto é uno,/ e o sertão são vários.

J. Nêumane Pinto

A compreensão dos aspectos identitários do sertanejo gameriano se dá tanto a

partir do comportamento dos personagens escolhidos como recorte: Isabela e Valente,

vistos no romance como sujeitos capazes de representarem o sertão descrito pela autora,

como a partir do próprio espaço do romance. Neste sentido, importa a maneira como o

signo pictórico é retratado por Alvina Gameiro em Curral de serras. Acompanhando as

descrições paisagísticas do espaço imaginado como sertão, encontram-se imagens com

forte expressividade, pois a projeção espacial de sertão se dá num ‘espaço/tempo’ em

que as potencialidades humanas são realçadas, dentre outras maneiras, pelo olhar

poético da autora, o que talvez se justifique pela sua veia artística de pintora.

Vale ressaltar o referente de sertão utilizado neste trabalho, considerando,

segundo os pressupostos de Candice Vidal e Sousa (1997, p. 51), de que há dois tipos de

sertão: “sertão como morada de uma gente singular – sociedade sertaneja – e sertão

como deserto – extensão geográfica não-ocupada.”. Utilizamos o termo mais no

primeiro sentido: como espaço que abriga essa ‘gente singular’, pois nos interessa,

sobretudo, identificar a construção do sertanejo a partir da compreensão do espaço por

ele habitado. É interessante ressaltar como esse espaço é construído por cada autor, seja

ele um sociógrafo ou um literato. O fato é que todos os autores que propõem uma ideia

de Brasil confirmam a existência de uma sociedade sertaneja e isso seria perceptível a

partir das abordagens contrastivas dos modos de vida costeiro e interiorano, conforme

indica Sousa. “De modo geral, os dizeres sobre o sertão enumeram atributos do homem

e da terra, fazendo valer a impressão de que o sertão só se entende enquanto habitat

social, na relação estreita entre natureza e sociedade” (idem, p. 51).

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É importante pensar nessa relação homem/espaço habitado, mas de forma a

entender como ambos influenciam e contribuem para o processo de construção da

identidade nacional. Guillen (2002, P. 109-110) sentencia que:

Na relação que se estabelece entre o espaço geográfico e o homem que o habita podem-se identificar duas perspectivas que centram foco nas contribuições do sertão para a construção da nacionalidade. Uma perspectiva romântica buscou construir uma imagem do sertanejo como símbolo da nacionalidade, enquanto uma perspectiva regionalista preocupava-se com as contribuições desse homem sertanejo [...].

Como discutimos anteriormente, o papel desse representante da brasilidade

ganha dimensões outras quando se mudo o foco. O Romantismo precisava definir um

herói para a Nação e o sertanejo foi o eleito para essa representação (embora ainda

assumisse uma roupagem europeizada); já em contexto mais realista, a contribuição do

sertanejo passava a ser a preocupação maior do escritor. Assim, cabe à literatura

preencher as lacunas deixadas pela representação histórica, etnográfica, sociográfica, etc

no processo de consolidação de identidade nacional. Essa contribuição seria possível,

segundo Bernd (1992, p. 75-6) porque o texto literário, como integrante do discurso

social “[...] será um dos mediadores privilegiados do processo de afirmação e de

consolidação da consciência nacional, devido a sua própria especificidade que é a de

conter em si mesmo uma infinidade de discurso como o histórico, o político, o

filosófico, etc.” e, neste sentido, contribuiria para o desaparecimento de um ‘eu’

individual em favor de um ‘nós’ coletivo.

Em Curral de Serras, o narrador fala em nome de um coletivo, a população

sertaneja, habitante de um espaço maior na representação nacional: o sertão.

Salientando a importância da literatura nesse processo de construção discursiva, Sousa

(1997, p. 52) considera que “fazer o Brasil intelectualmente inclui a passagem

obrigatória pela região do território onde é o sertão”. É assim com os romances

regionalistas em que os autores abordam os aspectos locais sob a ótica do caráter mítico

de origem da construção nacional. Assim, aspectos específicos de um lugar são

apresentados nessas narrativas como sendo elementos próprios não só de um local, mas

também de uma cultura.

Por isso, percebemos em Curral de Serras, que, no contexto ambiental, há

descrições dos lugares cuja beleza só existe para quem tem uma relação direta com os

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elementos da natureza, como é o caso do protagonista do romance que, em vários

momentos, descreve os cenários em seus pormenores como se os conhecesse a fundo:

Doutor, o senhor já viu um brejo mesmo de raça, parido em chapada bruta, arrodeado de sombra, ataviado de maria-mole, cheinho de palmeiras de pés mergulhados nágua fria, qualhadinha de buriti maduro? Pode guardar a certeza, tem beleza p’ra cativo! A pois enche as vistas da gente e não esvazia mais nunca (GAMEIRO, 1980, p. 12).

Nesse trecho, em que o protagonista descreve poeticamente um brejo, tem-se

uma imagem plástica do lugar. Candido (2009, p. 27) aponta que uma descrição, seja ela

paisagística, de um animal ou de objetos quaisquer pode resultar em “prosa de arte”,

mas isso acontece na ficção “somente quando a paisagem ou o animal [...] se ‘animam’

e se humanizam através da imaginação pessoal”. O espaço do romance parece ganhar

mais vida na fala do narrador porque, ao fazer essas descrições, ele, de certa forma,

compartilha com o lugar suas experiências e vivências, como se segredasse algo à

natureza, estabelecendo com ela um contato direto. Essa relação é perceptível em vários

momentos do romance, como no excerto a seguir:

Larguei vista no derredor, procurando, e vi. ´Tava lá, falando no afastado, descobrindo cama de brejo adonde inhuma se aninha, o montão de palmas verdes: buritizal de porte afirma, p’ra quem quiser confirmar, que finca pé no molhado, faz procissão com andor d’água e se abana com leque grande, o maior que palmeira pode gerar, por amor de gastar na cara de qualquer verão enfesado (GAMEIRO, 1980, p. 12, grifo nosso).

Aqui se percebe uma personificação da natureza, quando o narrador descreve a

imagem das palmas verdes do buritizal – a palmeira que faz procissão e se abana com

leque grande e ainda afirma isso para quem quiser confirmar. A seguir, tem-se a mesma

impressão de que o contato estabelecido com a natureza se dá numa ótica de quem é

conhecedor dos pormenores locais, inferência que se faz pelo trecho em que o narrador

se refere ao lugar que, inicialmente, ele achara esquisito.

Apurei mais os sentidos, passando o visto p’ra caixa do miolo: em tirante o brejo, agasalhado numa baixa, no amparo duns pés de creoli, araçá e goiabeiras além do buritizal, o resto tocando frente, era chapadão de areia frouxa, esbranquiçada, mal coberto de capim seco e morada de pequizeiros entanguidos, canelas-de-ema

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sapecadas, cajuís quase deitados bracejando pelo chão, araticuns desfolhados, com um ou outro fruitinho encardido, touceiras ralinhas de tucum, mangabeiras rastejando ou espetadas em garras de mandacaru e muita macambira botando vermelho na serra amolada das línguas (GAMEIRO, 1980, p. 12-3, sem grifos no original).

Através dessas descrições, intensifica-se a visão do imaginário de sertão

retratado por Gameiro. Percebe-se que sertão e vida são elementos que se entrelaçam no

romance. Nos cenários descritos, não há aproximação da ideia de morte ou de

sobrevida, por conta da seca ou das dificuldades vitais do lugar, por conta do período de

estiagem, embora essa seja a imagem comum na imaginação de muita gente. Fala-se em

sertão e tem-se uma visão de um lugar onde a vida é mais difícil. No romance, ao

contrário, mesmo ao fazer referência ao período da seca, a autora não define o sertão

como sendo um lugar de miséria e pobreza. O narrador nos apresenta, em linguagem

poética, uma descrição bastante peculiar dos espaços observados por ele. A explicação

para esse detalhamento paisagístico, segundo Sousa (1997, p. 28), seria essa:

A situação de um narrador que comunga do mesmo espaço nacional de seu objeto descritivo impõe compromissos distintos daqueles vividos pelo narrador com olhares de completo estrangeiro para uma região distante no espaço e na afetividade ou no sentimento patriótico.

O narrador de Curral de Serras parece alguém que, realmente, comunga do

espaço descrito; sua visão não é de quem narra acontecimentos vivenciados pelos

outros, mas sim de quem relata impressões próprias de um observador que aprendeu a

identificar e a diferenciar cada signo da natureza. E isso é mostrado no romance como

uma verdade na qual o leitor precisa acreditar, pois o contato com o mundo ficcional faz

com que elementos do mundo real se percam em interpretações, segundo Eco (1994).

De acordo com o teórico, no campo ficcional, referências que são próprias ao mundo

real às vezes parecem “tão intimamente ligadas que, depois de passar algum tempo no

mundo do romance e de misturar elementos ficcionais com referências à realidade,

como se deve, o leitor já não sabe muito bem onde está” (op. cit. p. 131).

É neste sentido que há tendência a confundir o discurso ficcional com o real; as

representações do mundo real são tão precisas que, mesmo que se imaginem ou se

reconheçam os elementos presentes no cenário paisagístico do sertão, cada obra de

ficção parece retratá-los de uma maneira particular, pois, nesse retrato, vai impressa a

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marca estilística do autor. Tanto no trecho do romance, citado anteriormente, quanto no

transcrito a seguir, verificam-se alguns elementos caracterizadores do sertão, como os

que se encontram destacados, mas, ainda assim, alguns leitores são levados a investigar

se tais elementos realmente compõem o cenário sertanejo nordestino. Isso se daria,

segundo Eco (1994, p. 91), porque “os leitores precisam saber uma porção de coisas a

respeito do mundo real para presumi-lo como o pano de fundo correto do plano

ficcional”. É como se o leitor duvidasse do discurso do autor, por conta do caráter

ficcional da obra, principalmente quando se trata de narrativa em primeira pessoa, em

que as subjetividades povoam as impressões do narrador. A fala de Valente já

demonstra um conjunto de vivências, do qual as interpretações são resultados de sua

consciência de sertanejo retratada por ele próprio e sem interferência de outros.

‘Inda gastamos pedaço comprido de chão até a morraria crescer de vez. Ali, cheirando o enrochado, demos d’enfrentar subida dificultosa. O guia [...] começou apor fazer arrodeio [...] assubindo pequenos degraus aterrados, adonde macambira, xiquexique, croata, cabeça-de –frade e rabo-de-raposa molestavam montadas (GAMEIRO, 1980, p. 15, grifo nosso).

Desde o início da narrativa já se tem uma visão geográfica local, embora o leitor

continue investigando o valor de verdade do que está sendo descrito. Essa empreitada

silenciosa talvez seja necessária para que se reconheçam as possíveis regras válidas para

o mundo da ficção narrativa. Se elas existem, é preciso que se entenda que “[...] os

mundos ficcionais são parasitas do mundo real. Não existe nenhuma regra relativa ao

número de elementos ficcionais aceitáveis numa obra” (ECO, 1994, p. 89). Entendido

que o narrador do romance pretende tão somente expor sua ‘verdade’ sobre a realidade

dos locais conhecido por ele, cabe ao leitor avaliar, como verdadeiro ou falso, seu

pronunciamento (idem, p. 124) acerca das descrições paisagísticas locais, como a

transcrita a seguir.

Já transmontados, respirando o quente dos baixos, reparei coisinha bonita, tetéia mimosa, largada no tempo, obsequiadeira p’ra um qualquer vivente, que de tão doces favores carecesse. Era o mimo duma fontezinha arroiada dum joelho de pedra, ensaiando quedinha de nada e saindo logo no macio de trote requebrilhando, pelo escavo de barro branco, leitoso, que ia acamando, agasalhando a bichinha, por levar ela p’ra se perder não sei adonde. Lá naquele olho d’água, molhamos a goela, a cara e deixamos as montarias beber a fartar (GAMEIRO, 1980, p. 15-6).

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Se há, realmente, fontes d’água no sertão nordestino ou se tem a beleza como a

descrita pelo personagem Valente, são possibilidades interpretativas que não se esgotam

com um único olhar. Também não está em jogo, em nossa análise, o valor de verdade

do discurso do narrador, mas sim a compreensão espacial do sertão, no discurso literário

da autora – o que é possível, segundo Sousa (1997), se o imaginário coletivo for tomado

como elemento desencadeador. Ainda, segundo ela, o sertão é o lugar projetado pelo

narrador que se encontra no litoral. Em Curral de Serras, entretanto, a projeção se dá

diferente, pois o narrador se encontra no próprio sertão, o que reforça a assertiva de que

olhar o sertão, a partir de um outro polo geográfico, estigmatiza sua caracterização,

pois, de acordo com as indicações da historiadora (SOUSA, 1997, p. 27), “[...]

remontando apenas o produto final da descrição – o retrato final do Brasil –, salta-se por

sobre a etapa que direciona tanto para onde olhar quanto para o modo de ver e registrar

aquilo que se mira.” Cada etapa de construção deveria ser levada em conta, seguindo

essa orientação, a fim de se evitar uma classificação distorcida da região.

Neste sentido, a distinção entre as regiões litorâneas e o sertão constitui a gênese

da brasilidade, segundo essa leitura, reiterando o caráter de construção da identidade

como um processo construído da ambivalência EU e o OUTRO. Guillen (2002, p. 105),

salientando a importância de Capistrano de Abreu em “qualquer discussão que

privilegie a construção histórica do sertão”, sentencia que a compreensão do processo

de construção da identidade nacional precisa percorrer “os passos trilhados pelo

pensamento social brasileiro em torno do sertão” (ibidem). Sousa (1997, p. 39) tem

uma visão interessante sobre essa dualidade sertão e litoral:

[...] o litoral é o espaço conhecido – para o leitor e para o sociógrafo –, enquanto o incógnito está adiante, lá, naqueles lugares-sertão. Análises que realizam um movimento pendular entre o familiar e o estranho dentro de um mesmo país, repetindo a incômoda e persistente constatação de que o Brasil não (re)conhece o Brasil ou, em linguagem geografizada, o país de cá não (re)conhece o país de lá.

Assim, entendemos apontar o espaço imaginado como sertão, no romance,

conforme Moraes (2006, p. 17), no sentido de considerar as possibilidades de avaliação

tanto positivas quanto negativas, pois “no imaginário social, por sertão se referem traços

geográficos, demográficos e culturais que deixam entrever múltiplos sertões e não

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apenas um”. Interessa salientar que a compreensão dessa multiplicidade só é possível a

partir de um redirecionamento de olhar, inclusive no intuito de se entender o próprio

sertanejo, cujos hábitos remetem “para questões de ordem política que desafiam o

contrato social” (idem, p. 25). Em Curral de serras, esse desafiar é perceptível no modo

de viver dos moradores da fazenda de Isabela, onde a lei do mais forte ainda predomina.

Viver no campo e para o campo é atividade comumente relacionada ao sertanejo, muitas

vezes julgada a única forma de sobrevivência, a única vocação – tese combatida por

Gameiro, no romance, ao dotar o protagonista de um caráter desconstrucionista dessa

visão limitada de sertanejo.

Ressaltamos o papel do sertanejo, desde o Romantismo – considerando que

nesse período reinava uma exaltação mítico-heróica de um tipo regional, o índio – como

o de um representante da Nação. Como cada autor estabelece ou rompe fronteiras,

levamos em consideração a fala de Almeida (1980, p.35), no que diz respeito ao sujeito

sertanejo.

O sertanejo tinha a seu favor vários elementos que o recomendavam para a função. Via de regra é um mestiço do branco com o índio (não com o negro, raro nas áreas mais pobres do sertão), resultado de um processo de cruzamento étnico cujas origens se perdem nos primeiros tempos da colônia. Metaforicamente poder-se-ia afirmar que o sertanejo é o descendente direto de Peri e Ceci, de Martim e Iracema. Vivendo em regiões isoladas, sem grande contato com os centros litorâneos, tem evolução cultural relativamente autônoma, por isso mesmo mais ‘autêntica’ (no sentido em que o nacionalismo romântico e Alencar concebiam o problema da autenticidade no campo da cultura, ou seja, como fidelidade às tradições, aos costumes, à linguagem e à própria natureza do Brasil).

Esse sertanejo apontado por Almeida é o que se encontra nos romances da era

alencariana, que tinha por função ser o representante da Nação que reclamava para si

uma fixação identitária. Mas não podemos deixar de concordar que essa evolução

cultural “autônoma” e “mais autêntica” desse sujeito é verificável ainda em personagens

mais modernos, como o protagonista de Curral de Serras. Ainda na visão de Almeida

(idem, p. 35),

Esse problema da autenticidade cultural ganha relevo particular no período, não só em função da aspiração nacionalista crescente, como de um fenômeno cujas linhas começam a se definir melhor em meados do século XIX e que será de suma importância na gênese do

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sertanismo: o sentimento de ameaça aos valores tradicionais, provocado pela penetração cada vez mais intensa da influência estrangeira no Brasil de então.

Neste sentido, percebemos que, na tentativa de combater essa onda de invasão

estrangeira – talvez até para romper com a visão de herói aos moldes europeus –, o

herói sertanejo começa a surgir com uma nova perspectiva: o herói romântico cede

lugar a esse outro representante da nacionalidade, conforme registra Alceu Amoroso,

citado por Almeida (1980, p. 34): “À proporção que o índio, enquanto potencial de

expressão mítico-heróica começa a se esgotar, um outro tipo humano entra em cena: o

sertanejo, o homem do interior, das regiões pouco afetadas pelo contato externo”. A

presença desse novo herói sertanejo marca um aspecto importante na literatura brasileira

e também acentua uma característica de Gameiro, que é essencial para a discussão da

construção identitária: a valorização do sujeito sertanejo. Sousa (1997, p. 57) defende

que, na construção do universo sertanejo, os autores tomam como referência a atividade

dos vaqueiros e isso é perceptível em vários textos que abordem essa temática.

A presença do vaqueiro em Curral de Serras se dá de duas formas: a primeira

delas seria a vivência do narrador em relação à atividade do campo e a outra seria a

figura do vaqueiro da fazenda – aquele que lida diretamente com o gado e o campo.

Interessante observar que, ao abordar essas duas vertentes do sujeito sertanejo no

romance, a autora não os diferencia e nem os apresenta como sujeitos idealizados. Ela

se propõe a romper com uma visão estigmatizada do herói e o faz ao inverter, de certa

forma, os papéis do casal de protagonistas.

4.3 Traços representativos da cultura sertaneja em Curral de Serras

Quem se aventura nos dentros desta solidão, traz é motivo possante na garupa...

Alvina Gameiro

Como a narrativa de Curral de Serras contempla o macroespaço do sertão

nordestino, a partir da visão do narrador, muitos aspectos da cultura sertaneja são, por

ele, abordados. Neste tópico tencionamos abordá-los sob o enfoque dos estudos

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culturais, no sentido de entender como esses elementos contribuem para a construção da

identidade do sujeito sertanejo. Desses traços podemos citar a religiosidade: o domingo

na fazenda, o ritual do casamento feito por pai-manequinho; os costumes regionais,

como o hábito de dormir na rede, de sentar na varanda depois do jantar, de tomar banho

de riacho; e o ritual da morte (as rezas, o funeral).

O narrador dá ao leitor a oportunidade de visualizar situações tipicamente

relacionadas à cultura local, salientando o ambiente em que os personagens atuam, no

intuito de “revelar as intenções regionalistas” da autora “ao procurar captar e traduzir a

situação da terra e do homem”, no espaço nordestino. Essa leitura feita pela

pesquisadora Stela Viana (2004) a respeito de Chão de meu Deus de Fontes Ibiapina

nos remete ao que Gameiro faz em Curral de Serras. Ao dar a posse do discurso ao

narrador, a autora o autoriza a ressignificar conceitos sobre o local.

Interessa-nos, aqui, não estabelecer critérios para o conceito de cultura – seja na

literatura ou outras artes – mas discorrer sobre o modo como os aspectos culturais são

dispostos no romance de Gameiro e de que forma eles constituem elementos

representativos na formação do povo brasileiro, especialmente o nordestino. Partindo do

principio da amplitude do tema, não discutiremos como o conceito de cultura se

consolidou nas Ciências Sociais ou mesmo na Antropologia. Faremos apenas recortes

teóricos dos autores que se dedicam ao tema, para desenvolver a proposta de mostrar

quais os elementos culturais são perceptíveis no romance analisado. Inicialmente,

tomamos a ‘síntese original’ da representação de cultura, apontada por Denis Cuche

(2004, p. 19):

Cada cultura é dotada de um “estilo” particular que se exprime através da língua, das crenças, dos costumes, também da arte, mas não apenas desta maneira. Este estilo, este “espírito” próprio a cada cultura influi sobre o comportamento dos indivíduos.

A partir dessa concepção, entende-se o quanto esses elementos (crenças,

costumes etc), apontados por Cuche, são cruciais para o entendimento da manifestação

cultural nordestina em Curral de Serras e ainda o quanto isso remete a uma tradição

cultural. No que diz respeito à religiosidade, percebe-se que tanto a dona quanto os

moradores da fazenda respeitam a obrigação religiosa, principalmente a dominical.

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Na chegada do domingo, a vida tomava alterado: quando o sol ganhava pé, s’alevantando duas braças, os moradores do lugar s’enfeixavam num bando só, no alto do patamar, bem na entrada da varanda, por mor de responder reza, que, lá na sombra das telhas, a Branca ia puxando. Primeiro tiravam o terço, espois uma ladainha, o bendito-louvado-seja, ‘inda outros gungunados qu’eu desconhecia de todo. Acabadas as orações, tudo se metia em fila p’ra beijar umas poucas de imagens, que siá Gorgonha e outras pretas seguravam. (GAMEIRO, 1980, p. 30).

Esse aspecto religioso é bem pertinente em Curral de Serras e é marcado,

sobretudo, por um sincretismo. Aos domingos, Isabela puxava a reza, como se percebe

no trecho acima, para os moradores acompanharem, mas tinha em sua fazenda um Pai-

de-Santo, com quem mantinha um contato muito próximo. Sendo este o responsável

pelo ritual de seu casamento com Valente. A cerimônia dera-se na fazenda, sob o olhar

atento dos moradores e é assim descrita pelo narrador:

O velho achou de riscar na terra dois signos-salomão bem grandes, emendados de parelha, e mandou eu me pôr no meio dum e ela ficar no outro, mas não desenlaçando as mãos. Silêncio governando tudo, a não ser os estalos da fogueira, que até o vento trancou fala. Aí, a voz do burundangueiro, numa linguagem africana entremeada com a nossa, abriu o cerimonial de feição tão esquisita, qu’eu nunca tinha ouvido nem falar, invocando uma entidade invisível pr’a presidir a função. (GAMEIRO, 1980, p. 122).

O dia do casamento, motivo de festa na fazenda, é um dos momentos mais

precisos para exemplificação de como as manifestações culturais se fazem presentes no

romance e ainda como são passadas de geração a geração.

Como tudo neste mundo tem sempre uma vez e hora, o casamento chegou naquele dia de São João Batista do ano de mil novecentos e trinta e um, caído numa sexta-feira, com lua quarto crescente, retardada pr’amostrar clarão no céu. Em desne duns poucos de dias em antes, um movimento geral alastrava arrumação, pr’a garbo daquela festa, puxada a gosto e capricho. Já tinham matado boi, carneiro, bode, porco, peru, capão e o cheiro de bolo assado, no baita forno de barro, enchia o fôlego do vento.

[...] Reparei dos homens forcejarem dentro dalguma animação, tanto que seu Juventino assobiava no acompanho duma chula, de toda desconhecida pr’a gasto dos meus ouvidos, que seu Eugeniano puxava letra cantarolada em pedaços [...]. (GAMEIRO, 1980, p. 119-20).

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Pelas descrições detalhadas dos preparativos do casamento, percebe-se que é

realmente um motivo de festa para todos. Os moradores, antes silenciosos, que

trabalhavam em sistema de escravidão, como relata o narrador, no início do enredo, se

desdobram para ajustar os últimos detalhes e o fazem com prazer, como se infere pela

cantiga puxada pelo morador. A fazenda ganha um novo colorido com o ajuste do

matrimônio da patroa com o rapaz que todos passaram a respeitar, pela valentia que

carregava até no nome.

Ainda, a partir do ritual do casamento, inferimos que a religiosidade não se faz

presente apenas nos ritos cristãos, como a obediência ao primeiro mandamento da Igreja

de guardar domingos e festas, mas também nos rituais pagãos, pois a fé é o elemento

principal do povo. Assim, crendices populares e ensinamentos cristãos trilham o mesmo

caminho da fé. É interessante observar que o casamento acontece em dia-santo e a

celebração foi efetuada por um pai-de-santo que invoca ao terreiro a presença de

santidades pagãs para testemunharem o enlace. Em determinado momento da

celebração, o “bruxo” pede que o casal fique de frente para a igreja onde foram

batizados, a fim de que as bênçãos do batismo fossem renovadas pela “Corte dos

Orixás”. Para finalizar a cerimônia, o casal ainda passa “tição de fogo em nome de São

João, São Pedro e todos os santos da corte do céu e da terra” (GAMEIRO, 1980, p. 128-

9) como testemunho final do momento que estavam vivendo. São essas práticas que

constituem a religião, segundo Durkheim (1978, p. 63), e não somente a dualidade do

sagrado e do profano. “A religião consiste não só em crenças, mas também em práticas,

ou rituais e cerimônias”.

A festa segue toda a tradição temporal e local. Os convidados acompanham,

atentamente, o ritual religioso e aguardam o momento de participarem efetivamente da

celebração. “Foi entonces que deram começo aos parabéns e vivas, ‘inda mais, a

respeitosos beija-mãos”. (GAMEIRO, p. 124). A festança estava declarada (embora sem

música) e o povo aproveitava para se fartar de “tanto de-comer caprichado e bebidas à

vontade”, como relata o narrador. Encerrados os comes-e-bebes, inicia-se outro ritual: a

consumação do casamento, o que, para Valente, representava um chamado para a morte.

Foi nessa hora apertada, daquelas de se contar quantas pintas couro de onça viva contém, que cavaquei minha coragem, buscando todo sereno pr’a estampa do meu rosto, a pois, lá nos dentros do peito o coração se alarmava, puxando reza da forte p’ra desempenho do sacrifício, já suspenso por um fio, por causa que a razão ali, firme,

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porfiava desesperada, brindando todo e qualquer quebranto, que pudesse me arrastar embebedado, p’ra varrer de meu juízo o passo doloroso de ser. (GAMEIRO, 1980, p. 124).

Para o rapaz, a celebração do casamento representava um ritual fúnebre. A

certeza de que a morte se aproximava o atormentava a tal ponto que evitava olhar para a

mulher durante a festa, pois tinha a impressão de que ela usava mortalha em vez de

vestido de noiva. Ainda assim, segue todos os padrões tradicionais da ocasião, conforme

orientação de Isabela.

Ela apontou porta aberta, com entrada p’r’outro cômodo, adiantando que lá ficava meu canto, igualzinho àquele dela. Adonde eu podia trocar de roupa e me pôr à minha vontade. Achou de prevenir também que a dormida era em separado, p’ra esconder um do outro certas coisinhas da natureza, que davam de matar o encanto do casamento ou esfriar o amor de nós dois. A pois, assim, é qu’ela foi ensinada, e era por sistema tal que os antigos se regiam. Acertado, entonces, ficava de carecer pedir licença p’ra um entrar nos resguardos do outro. E, naquela noite primeira, me fornecia permissão, se me aprouvesse, d’eu, em despois de trocar o fato, voltar ali, p’ra me deitar pedacinho com ela. (GAMEIRO, 1980, p. 124, grifo nosso).

Valente obedece mais uma vez às ordens da mulher e aguarda seu chamado.

Cumprindo com a ‘obrigação’ de marido, entrega-se aos apelos do amor – momento do

qual guardaria apenas lembranças: “[...] o que se passou naquela cama deixou gosto p’ra

encher uma vida de nembrança, pr’a deitar rama enflorada nas quatro estações do ano;

em qualidade de tirar meu apetite de me deitar com outra mulher [...]”. (idem, p. 125).

Percebemos, em todas essas descrições, que tudo segue uma tradição: os preparativos

do casamento, a celebração e até o idílio, ressaltando, com isso, que os traços da cultura

local acompanham toda a vida do protagonista.

É interessante observar que, no que se refere ao romance do casal, é sempre

Isabela a detentora do poder; é a vontade dela que prevalece. Neste sentido, ela

representaria, diante dos moradores da fazenda, a “classe dominante”, explicada,

segundo Cuche (2004, p. 145) como sendo aquela “dotada de uma espécie de

superioridade intrínseca ou mesmo de uma força de difusão que viria de sua própria

‘essência’ e que permitiria que ela dominasse ‘naturalmente’ as outras culturas”. É

assim a personagem feminina de Curral de Serras. Seu caráter dominante sobre os

moradores é identificado naturalmente porque é espontânea sua capacidade de

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determinar o que é permitido e proibido em sua fazenda e em sua vida. Os moradores

seriam, então, sob essa ótica, os representantes de uma classe dominada.

Valente e os demais moradores da fazenda não devem questionar as leis da

patroa, pois seus caprichos são a única ordem a ser obedecida. Morar em Vão-da-

Cumbuca representava pertencer a um grupo cujos valores eram determinados pelo

poder de uma mulher e, neste sentido, essa interação entre os moradores, através da

obediência às normas locais, constituiria também um elemento definidor da identidade

cultural sertaneja no romance. Ressaltamos, porém, que essa identificação do povo nos

remete mais ao conceito de identidade cultural do que de cultura. Noções que, segundo

Cuche (2004, p. 176), não devem ser confundidas.

[...] a cultura pode existir sem consciência de identidade, ao passo que as estratégias de identidade podem manipular e até modificar uma cultura que não terá então quase nada em comum com o que ela era anteriormente. A cultura depende em grande parte de processos inconscientes. A identidade remete a uma norma de vinculação, necessariamente consciente, baseada em oposições simbólicas.

Assim entendido, o elemento cultural seriam os costumes da fazenda (o cultivo

do campo, as rezas aos domingos etc), a partir do qual a identidade cultural dos

moradores se constituiria.

Outro elemento representativo dessa cultura seriam as crendices populares nos

remédios caseiros. Valente mesmo se apresenta como um sujeito conhecedor desses

remédios e põe em prática esse conhecimento ao atender pedido da patroa para curar sua

avó. E também quando, antes de chegar à Fazenda, cura um homem que encontra ferido,

em uma de suas andanças pelo sertão nordestino.

[...] fui achar um homem muito ferido por ação de dois balanços, um bem no rego da virilha e outro, raspando a cara, tinha levado uma parte da orelha. O homem queimava em febre [...] dei água p’ra ele beber; dei meizinha logo despois; passei tintura de iodo derredor dos ferimentos; fiz curativo na orelha e na estrada que a bala esfolou na cara; atufei um algodão embebido em bálsamo, qu’é ver santo remédio, lá no furo da virilha. (GAMEIRO, 1980, p. 52-3).

Observamos que os costumes do sertanejo são expressos através das descrições

locais. Por onde o narrador passa, ele se depara com situações que o impelem para a

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observação desses aspectos, pois participa com outros indivíduos de um grupo social

local determinado pela força que os mantém ligados a uma mesma cultura, reforçando a

assertiva de que a explicação de um costume popular só seria possível a partir da

compreensão do contexto cultural, como define Cuche (2004). Assim, é lícito afirmar

que só compreendemos os costumes do sertanejo de Curral de Serras, quando o

narrador entra em contato com o local de onde o elemento cultural faz parte.

No que diz respeito aos costumes, ressaltamos o hábito de dormir na rede, de

tomar banho no riacho e de sentar na varanda depois do jantar, observando a chuva, ou

mesmo ouvindo alguma cantoria, ou ainda, simplesmente, proseando (que é costume

maior do povo sertanejo). O destaque da rede de dormir nos é dado pelo narrador que,

em vários momentos, se refere a um embalo na rede, como momento de sossego e

tranquilidade: “[...] fiquei esparramado na rede, aguardando o chamado da dona da

casa.” (GAMEIRO, 1980, p. 19). “Qual o quê! Aguardava o chamado da mulher, mas

era m’embalando na rede, no bem-bom do descansado.” (ibidem). “Com o pé rente à

parede, eu ia empurrando a rede, na arte de m’embalar, fabricando serenata pr’a mim

mesmo me adormecer”. (idem, p. 31)

Quanto aos banhos no riacho, estes são praticados somente por Valente e, talvez,

por outros homens do local. Não há referência de alguma mulher que o praticasse. O

narrador sempre se referia a esse momento do ‘banhado’ como um ritual que precisava

ser respeitado, e o riacho sempre aparecia com um santuário, onde não se pode penetrar

sem permissão.

Há outros elementos que merecem destaque nesse processo de construção

identitária do sertanejo, observados no romance Curral de Serras, como o costume de

ficar na varanda, depois do jantar, prática muito comum na fazenda de Isabela. Desde

que Valente passa a frequentar os jantares em sua casa, ela sempre o convida a ficarem

algum tempo na varanda, principalmente quando havia a presença da chuva, trazendo

poesia ao sertão.

Jantamos naquela tarde, com sombras fazendo escuro. Eu me assentava na mesa fora do meu natural e, por mais qu’empregasse força, m’espetava em tesidão. Queria falar. Não falava, por não achar o que dizer. Olhar p’ra ela, não olhava, temendo pegar de novo o aturdido valente e o embasbacamento que m assaltou lá no riacho. (GAMEIRO, 1980, p. 57).

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A varanda tem uma representação muito grande no romance, pois ela passa a

ser aliada no relacionamento do casal. É na varanda que o namoro inicia. É lá onde

Valente, encantado com Isabela, faz-lhe um elogio: “Deus quando fez vosmecê gastou

fortuna de galas e prendas d’embalezado, que não sei como sobrou embelecos uns

qualquer, p’ras outras mulheres do mundo...” (GAMEIRO, 1980, p. 58). Esse momento

aconteceu depois da chegada da chuva, reforçando o quanto esta inspirava os moradores

do sertão. Na perspectiva pós-colonial, a varanda tem uma representação fronteiriça, de

acordo com Malouf, (apud BONNICI, 2005, p. 60): “As varandas são terras de

ninguém, zonas de fronteiras, que, por um lado, mantém contato com a casa e suas

atividades, e, por outro, estão abertas para a rua e as vastas áreas desconhecidas”. Neste

sentido, a varanda da casa de Isabela estabelece a fronteira entre seu mundo e o resto da

fazenda. É interessante pensar na varanda com uma metáfora entre a proteção e o

desconhecido, a divisa entre a casa e o exterior. Bonnici (2005, p. 60) assim conclui

essa discussão:

[...] como a varanda é uma zona de contacto, ela é também a metonímia da transculturação onde o nativo e o estrangeiro se encontram. O espaço interior e o espaço exterior interagem e se influenciam: portanto, é o lugar onde um transforma o outro. É um lugar perigoso onde a transculturação acontece.

Para melhor entender esse conceito, ressaltaríamos que Isabela representaria o

nativo e Valente o estrangeiro. Assim, a presença desse desconhecido desencadearia a

crise identitária da moça, pois esta teria seu ‘reino’ ameaçado pela presença do estranho

e, assim, passaria a repensar seu papel de dona da fazenda e até mesmo seu caráter, para

então reconstruir sua identidade a partir da diferença de personalidade entre ela e o

rapaz.

Finalmente, citamos como o ritual da morte preserva alguns valores encontrados

até hoje nas sociedades mais afastadas da zona urbana. Em terras de jagunço, a morte

parece ser o resultado do ‘ajuste de contas’, do ‘lavar a honra’ com sangue. No entanto,

não se dá de forma impensada. A morte não pode ser traiçoeira, pois rompe com os

princípios do sertão: “Não mato um homem desprevenido. Desgosto de traição, nem

que seja com um cachorro da marca daquele capanga. Mato o homem, d. Isabela, dentro

de todo dereito dele defender a vida, se p’ra tanto tiver fôlego.” (GAMEIRO, 1980, p.

90). Era essa, segundo o protagonista, a postura do matador. Ninguém deveria ser morto

sem saber por que razão estava sendo.

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O próprio narrador foi sujeito agente e quase paciente da morte. Em uma de

suas andanças, topa com uma família de canibais, mas consegue escapar e justifica

porque não poderia ter morrido na armadilha da mulher que o atraíra para a morte:

“Repare só o Doutor, como é que pode um sujeito cair num precipício e morrer em tão

horrível condição, sem prazo nem de rezar, sendo comido dereitinho...” (GAMEIRO,

1980, p. 109-10). Mais uma vez o elemento da religiosidade se faz presente. A morte

também pede reza para encomendar a alma do defunto: as mulheres puxam ladainhas às

vezes tão sofridas que até os homens choram. “Seu Valente, moço de Deus! Que dia de

finados foi aquele, fabricado no meio do ano... Cargas de choro no largado. E tristeza

nem se fala no desmarcado do tamanho...” (idem, p. 100). Era a descrição do enterro da

família de Isabela, morta quase toda em uma chacina. Seu Pulquério diz ter sido um

momento muito triste, por causa da entoada de comadre Geminiana, que tinha “voz

fanha, choramingada, tremeleando pelos altos, no acocho duma lástima tão doída, que

foi redobrando o choro até dos machos encruados.” (idem, p. 101).

Percebemos, com essa discussão, que os traços característicos da cultura

sertaneja no romance Curral de Serras podem ser observados a partir do olhar lançado

sobre a própria região Nordeste, contornada pelo narrador. Intensificando assim que, de

certa forma, é o espaço cultural que modela a identidade do sertanejo, a partir de sua

identificação com o meio do qual faz parte.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desbravar o sertão nordestino – traçado por Alvina Gameiro, em Curral de

Serras – a convite do narrador, é reconstruir uma imagem discursiva da Região, muitas

vezes, tratada como um lugar de miséria e pobreza, inclusive no campo ficcional. Neste

sentido, podemos dizer que a romancista fideliza o espaço imaginado como sertão, ao

criar um narrador tipicamente nordestino para relatar sua história de vida, assegurando

ao romance o caráter de regionalista, conforme os pressupostos teóricos utilizados nesta

pesquisa.

Considerando o enredo do romance, é interessante ressaltar como o narrador se

aproveita da condição de ‘dono’ do discurso para assumir uma postura confortável sobre

a narrativa. É o seu ponto de vista que predomina, pois é através de suas lembranças que

os fatos são narrados, embora tente ordená-los da maneira mais linear possível. Assim, a

história contada, sob a perspectiva do protagonista, deixa muitas lacunas na narrativa,

principalmente sobre a personagem feminina Isabela, cooptando o leitor para tomar

partido, em favor do rapaz. Em suas descrições, a dona da fazenda é uma mulher cruel,

que segue as leis do sertão, sobretudo no que se refere ao respeito pelo patrão. Em sua

fazenda não se permitiam ‘atreviduras’, e traições eram resolvidas com morte – como

aconteceu com o ex-marido de Isabela. Entretanto, tal crime e outros comportamentos

da patroa são perdoados, não só pelo narrador, mas também por outros moradores, que

tinham certa admiração pela mulher que conseguiu estabelecer e impor as leis em suas

terras.

Essa atitude da moça em reivindicar papel de mulher poderosa incomodava

Valente, que se mostrava um conhecedor das leis e costumes do sertão; e encontrar um

lugar dominado por uma mulher que trazia todos os moradores em regime de escravidão

é uma possibilidade de pensar o poder feminino numa sociedade onde a inversão de

valores se faz presente. Assim, é lícito falar em uma abordagem de sertão feita pela

autora, a partir de uma revisão do que representaria esse termo.

A partir da leitura do romance Curral de Serras, inferimos que a compreensão

do termo sertão, dentro da perspectiva literária de Alvina Gameiro, é possível, graças a

um redirecionamento do olhar tanto para o espaço imaginado como sertão, quanto para

o próprio sertanejo, identificando-se, assim, a possibilidade de desconstruir uma

possível imagem estigmatizada do lugar. Interessante observar que essa ‘fotografia’ do

Nordeste capturada pela lente do narrador apresenta uma região para além dos

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contornos geográficos; o sertão representado em Curral de Serras é, antes, uma

identificação, uma construção da ideia de nação – entendido nação como uma grande

família em que as diferenças e identificações constituem a base para a construção da

identidade sertaneja.

A pesquisa constatou que, no sertão de Gameiro, os elementos da cultura

sertaneja são preservados e valorizados: o respeito à natureza, a valorização da

religiosidade, as festas, enfim, os costumes de um modo geral. Outro elemento que

chamou atenção na obra foi a presença do coronelismo, representado por Isabela, a

detentora do poder no lugar onde toda a história se passa. Essa fazenda ganha o nome de

Curral de Serras, dado pelo narrador. Considerando a postura dominadora de Isabela,

em querer tratar a todos os moradores sob sua ‘guarda’, como se fossem gado, o nome

curral, nesse contexto, seria pertinente, pois seria uma representação analógica de como

a mulher queria manter seus moradores. Essa percepção faz com que o narrador se sinta

incomodado com a situação e resolva combater os mandos absurdos da mulher e essa

luta é uma das chaves para o processo de construção identitária do casal protagonista.

Para atingir o objetivo geral da pesquisa – identificar o processo de construção

identitária do sertanejo em Curral de Serras – a investigação tomou como referência o

casal protagonista do romance (Valente e Isabela), por considerar o processo de

construção identitária na ambivalência EU e o OUTRO e também nas diferenças, como

apontam Woodward (2009) e Silva (idem). Assim, a pesquisa ganhou respaldo nessas

teorias, pois é a partir da percepção das diferenças estabelecidas entre Isabela e Valente,

que a identidade de ambos se firma. Essas diferenças, no entanto, não invalidam as

características comuns a ambos: a força, a garra, a coragem, a perseverança, e o respeito

aos valores culturais do sertão. Esse último elemento constitui um dado importante no

processo de construção identitária dos sujeitos sertanejos do romance, pois tanto os

protagonistas quanto os demais personagens tinham uma formação humanística muito

sólida e isso era passado de geração a geração.

A pesquisa também tomou como base analítica a linguagem do romance –

considerada por nós, com base em Hudinilson Urbano (2000), como outro elemento

peculiar de construção identitária. Tomando a concepção de linguagem não só como um

meio autônomo de comunicação, mas também e, sobretudo, como instrumento de

interação social, segundo Urbano, entendemos que o aspecto de língua falada de Curral

de Serras assegura ao romance um caráter de verossimilhança, pois aproxima os seres

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ficcionais a sujeitos reais do sertão nordestino. Assim, é a partir da linguagem do

romance que se identifica o sujeito sertanejo de Gameiro.

Um dos objetivos específicos da pesquisa era demonstrar o caráter regionalista

do romance analisado, e essa percepção se deu a partir do pressuposto de que uma obra

regionalista seria aquela encarregada de representar um espaço regional sem mascarar

suas características próprias. Alvina Gameiro não cria novas realidades para o sertão

nordestino nem cria um personagem idealizado para representar esse sertão. Os

sertanejos do romance são nordestinos e se reconhecem como tal, de acordo com

Albuquerque Jr. (2009), na medida em que reinventam o Nordeste. Podemos dizer que

Gameiro, dando posse do discurso a Valente, dá a ele a liberdade de traçar o mapa

ficcional do espaço retratado em Curral de Serras, e o leitor segue esse mapa,

acompanhando a rota do narrador. Nesse processo de desbravamento do sertão

nordestino, a imagem discursiva do Nordeste ganha relevo, pois o narrador é, ao mesmo

tempo, um viajante e um morador; e, como tal, tem conhecimento de particularidades

que definem os contornos da Região. Valente é piauiense, do sul do Estado e passa boa

parte da vida morando em Pernambuco, na fazenda de Isabela, mas até estabelecer

pouso na fazenda, envereda por caminhos do Ceará e da Bahia.

Os personagens que retratam o sertão, no romance, são sujeitos a partir dos quais

se pode inferir uma série de questionamentos acerca de alguns discursos estereotipados,

pois, numa visão estigmatizada do sertanejo, este é, algumas vezes, visto como alguém

que não acompanhou o progresso, que ficou à margem da construção do país – o que é

discutível, segundo os postulados de autores nos quais buscamos subsidio teórico em

nossa análise. No entanto, os personagens de Curral de Serras não são sujeitos com

essa visão limitada. O casal protagonista - Valente e Isabela – é formado por sujeitos

que aprenderam a demarcar seus territórios, por conta das necessidades. São sujeitos

moldáveis e ajustáveis, reiterando os pressupostos teóricos de que a identidade não é

fixa e sim construída.

Através de uma narrativa simples em termos de linearidade, Curral de Serras

oferece, entretanto, um leque muito amplo de possibilidades analíticas. Escolhemos

abordar a construção da identidade sertaneja, dentro de uma perspectiva cultural,

baseada nos elementos apresentados pelo próprio romance: os protagonistas – a partir

dos quais reiteramos o discurso de construção identitária na diferença – e a linguagem –

um dos elementos culturais do sertanejo abordados no romance, que são essenciais para

demarcação dos conceitos próprios dos Estudos Culturais; e através dos quais se torna

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possível repensar conceitos acerca do que seria o sujeito sertanejo, dentro dessa

perspectiva, e ainda a forma como se estabelece o processo de construção identitária

desse sujeito.

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