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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ FAXINALENSES: IDENTIDADE ÉTNICA E POLÍTICA E A LUTA PELO RECONHECIMENTO SOCIAL CURITIBA 2014 EMANUEL MENIM

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

FAXINALENSES: IDENTIDADE ÉTNICA E POLÍTICA E A LUTA PELO

RECONHECIMENTO SOCIAL

CURITIBA

2014

EMANUEL MENIM

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EMANUEL MENIM

FAXINALENSES: IDENTIDADE ÉTNICA E POLÍTICA E A LUTA PELO

RECONHECIMENTO SOCIAL

Trabalho apresentado como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Sociologia no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Osvaldo Heller da Silva.

CURITIBA

2014

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Catalogação na publicação Fernanda Emanoéla Nogueira – CRB 9/1607

Biblioteca de Ciências Humanas e Educação - UFPR

Menim, Emanuel Faxinalenses : identidade étnica e política e a luta pelo reconhecimento

social / Emanuel Menim – Curitiba, 2014. 166 f. Orientador: Prof. Dr. Osvaldo Heller da Silva

Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Setor de Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná.

1. Movimentos sociais.2. Identidade étnica. 3. Faxinalenses. I.Título. CDD 303.4848162

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Aos meus amados Francielly Giachini Barbosa

Menim e Rafael Menim. As riquezas mais

preciosas que me foram dadas por Deus.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, em cuja presença vivo, por todas as coisas que me

tem feito e, pessoalmente, sem o qual certamente não haveria motivo para

realização deste trabalho. Não tenho dúvidas sobre o quanto Ele tem me

capacitado para realizar o trabalho científico. Agradeço aos meus pais, José

Menim e Maria Luiza Rocha Menim, por terem inesgotável paciência,

dedicação, amor, e pela eterna disponibilidade em me cuidar, aconselhar,

incentivar, assim como pelas inúmeras oportunidades que me proporcionaram

ao longo da vida.

Agradeço a Francielly Giachini Barbosa Menim, esposa, amiga,

companheira dedicada em todas as horas. Ela foi paciente ao ler meu trabalho

e sugerir mudanças e correções no conteúdo da dissertação.

Agradeço aos irmãos Eduardo, Júnior e Lúcia pela amizade de sempre.

Aos amigos Christian e Rafael do mestrado pelo companheirismo e pelas

viagens que fizemos juntos durante o curso. Aos amigos Dudson, Vinícius,

João, Bárbara, Rafael Gos e Francielly Wilke.

Agradeço aos meus mestres, a começar por Paulo Mello Garcias, meu

primeiro professor da UFPR quando cursei Ciências Econômicas, por quem fui

incentivado a não desistir nunca. Aos meus professores da graduação de

Ciências Sociais, da Pós-Graduação em Sociologia, e em especial a Osvaldo

Heller da Silva, por ter me dado a atenção e orientação necessárias para a

construção deste trabalho.

Agradeço com muita alegria aos moradores de Turvo, Boa Ventura do

São Roque e Pitanga, cidades que me receberam muito bem por todos os

lugares por onde passei. Em especial aos moradores do Faxinal Saudade

Santa Anita que, sem dúvida, são um povo muito hospitaleiro por quem guardo

imenso respeito e carinho. Obrigado aos que colaboraram com este estudo

cedendo seu tempo e conhecimento através das entrevistas e das conversas

informais. Muito obrigado, enfim, por terem enriquecido a pesquisa dando seus

pontos de vista e colaborando para a produção de conhecimento sobre a

questão dos faxinais no Paraná.

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Recebei a instrução e não o dinheiro.

Preferi a ciência ao fino ouro

Provérbios 8:10

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RESUMO

Esta pesquisa busca analisar aspectos da organização social e política que

ocorrem em três comunidades de faxinais na microrregião de Guarapuava,

interior do Paraná. As comunidades estudadas são Faxinal dos Kruger, Faxinal

dos Teles e, principalmente, o Faxinal Saudade Santa Anita onde, diferente

das outras duas comunidades, foi realizado um estudo de caso específico. No

primeiro capítulo os objetivos da discussão estão focados em entender os

principais pressupostos teóricos que envolvem a temática dos faxinais, ou seja,

parte das principais produções científicas sobre o assunto que vem sendo

elaboradas desde a década de 1980. Buscou-se, no segundo capítulo, através

das entrevistas, observações de campo, registros, retratar as condições para a

participação política das três comunidades faxinalenses em âmbito territorial

por meio do Programa Territórios da Cidadania Paraná Centro. No terceiro

capítulo há uma análise acerca das relações históricas e da luta pelo poder

simbólico no Faxinal Saudade Santa Anita através de um estudo de caso entre

seus membros. Durante o texto, analisa-se a força do movimento social e das

identidades sociais que operam na vida comunitária. Deste modo, investiga-se

a ação social por meio do movimento social dos faxinalenses, ou seja, da

Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses, ao mesmo tempo em que se

intenta compreender como esta organização se liga à participação política e à

construção de uma identidade faxinalense. A definição de quem é ou não

assim designado é complexa, e os conflitos não se dão sempre

conscientemente entre duas categorias antagônicas que se apresentam de

forma resoluta a favor ou contra essa identidade político-social. Ainda assim,

com o estudo de caso será possível perceber que tradições, práticas

costumeiras e questões ligadas à territorialidade trazem à luz conflitos

existentes no Faxinal Saudade Santa Anita, e essas questões se fazem

presente na discussão.

Palavras chave: faxinalenses, movimento social, identidade étnica

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ABSTRACT

This study aims at analyzing aspects of the social and political organization of

three faxinal communities in the Guarapuava microregion, countryside of

Paraná. The communities studied are Faxinal dos Kruger, Faxinal dos Teles

and, mainly, Faxinal Saudade Santa Anita, where, differently from the others, a

specific case study was conducted. In the first chapter the discussion is focused

on understanding the main concepts involving the faxinal issue, i.e., some of

the main studies on this subject which have been conducted since the eighties.

The second chapter presents, through interviews, field observations and

records, the conditions for the political participation of the three faxinal

communities in the territorial action field through the federal government

program “Territórios da Cidadania Paraná Centro”. The third chapter presents

an analysis of the historical relationships and the fight for symbolic power in

Faxinal Saudade Santa Anita, through a case study with its members.

Throughout the text, the strength of the social movement and social identities in

the community are analyzed. Thus, social action is investigated through the

social movement of the Faxinal people, named “Articulação Puxirão dos Povos

Faxinalenses”. At the same time, we aim to understand how this organization

connects with the political participation and the construction of an identity by the

Faxinal people. The definition of who is or not defined this way is rather

complex, and the conflicts do not always take place conciously between two

antagonistic groups, one being in favor and the other against this sociopolitical

identity. However, the case study will be able to show that traditions, everyday

practices and matters concerning territoriality bring up conflicts occuring in

Faxinal Saudade Santa Anita, and these questions are present in the

discussion.

Key words: faxinalenses, social movement, ethnic identity

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FIGURAS, MAPAS, IMAGENS, QUADRO

FIGURA 1 – LOCALIZAÇÃO DO TERRITÓRIO PARANÁ CENTRO .......... 82

MAPA 1 – TERRAS TRADICIONAIS E ASSENTAMENTOS NO

TERRITÓRIO PARANÁ CENTRO ................................................................

82

IMAGEM 1 – MATERIAL IMPRESSO DOS FAXINALENSES .................... 77

IMAGEM 2 – REUNIÃO ENTRE FAXINALENSES E O VEREADOR DO

MUNICÍPIO PARA DISCUTIR SOBRE A APLICAÇÃO DO ICMS

ECOLÓGICO ...............................................................................................

89

IMAGEM 3 – CRIAÇÃO EXTENSIVA DE ANIMAIS EM TERRENO

ABERTO .......................................................................................................

130

IMAGEM 4 – CRIAÇÃO EXTENSIVA DE ANIMAIS EM ESPAÇO

ABERTO, EM PASTOS COMUNS ..............................................................

130

IMAGEM 5 - DESMATAMENTO NO FAXINAL ............................................ 134

IMAGEM 6 – MATA-BURRO ....................................................................... 139

IMAGEM 7 - CEMITÉRIO DO FAXINAL SAUDADE SANTA ANITA ............ 141

IMAGEM 8 - DOCUMENTO DE DENÚNCIA DA APF ................................. 149

IMAGEM 9 – BOLETINS DE OCORRÊNCIA .............................................. 151

QUADRO 1 - DEMANDAS DOS FAXINALENSES E MOTIVOS PARA A

NÃO PARTICIPAÇÃO NA POLÍTICA TERRITORIAL .................................

101

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LISTA DE SIGLAS AGAECO – Associação dos Grupos de Agricultura Ecológica de Turvo

APF – Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses ARESUR – Áreas Especiais de Uso Regulamentado

CDB – Convenção sobre Diversidade Biológica COOPAFLORA – Cooperativa de Produtos Agroecológicos, Artesanais e

Florestais de Turvo EMATER – Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural

IAP – Instituto Ambiental do Paraná IAPAR – Instituto Agronômico do Paraná ICMS – Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços

IDH – Índice de Desenvolvimento Humano IEEP – Instituto Equipe de Educadores Populares INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma

Agrária ITCF – Instituto de Terras, Cartografia e Florestas MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário

MST – Movimento Dos Trabalhadores Sem Terra

OIT – Organização Internacional do Trabalho

ONG – Organização Não Governamental PAA – Programa de Aquisição de Alimentos

PBF – Programa Bolsa Família PCT – Povos e Comunidades Tradicionais PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar PNPCT – Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e

Comunidades Tradicionais PNRA – Plano Nacional de Reforma Agrária

PTC – Programa Territórios da Cidadania RDS – Reserva de Desenvolvimento Sustentável

SDT – Secretaria de desenvolvimento territorial SEAB – Secretaria de Agricultura e do Abastecimento do Paraná

SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micros e Pequenas Empresas SECRA – Secretaria de Estado Extraordinário de Coordenação da Reforma Agrária no Paraná TCPC – Território da Cidadania Paraná Centro

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UFPR – Universidade Federal do Paraná UNICENTRO – Universidade Estadual do Centro-Oeste

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................... 13

OBJETIVOS .............................................................................................. 27

JUSTIFICATIVA ........................................................................................ 27

METODOLOGIA ....................................................................................... 28

FUNDAMENTO TEÓRICO DO TRABALHO DE CAMPO: AGENTE

SOCIAL E A PRAXIOLOGIA NO PENSAMENTO DE BOURDIEU –

UMA ALTERNATIVA À CONTROVÉRSIA AGÊNCIA-ESTRUTURA .......

31

1 PRODUÇÃO CIENTÍFICA ACERCA DOS FAXINAIS: DO

DETERMINISMO DO OBJETO À CONSTRUÇÃO DO AGENTE

SOCIAL FAXINALENSE ..........................................................................

34

1.1 O SURGIMENTO DA TEMÁTICA DOS FAXINAIS NO CAMPO

CIENTÍFICO: A TEORIA DOS PESQUISADORES PIONEIROS –

CONCEITOS FUNDAMENTAIS ...............................................................

34

1.2 AS PRIMEIRAS OBRAS E O QUE DIZIAM OS TEÓRICOS DE 1980

..........................................................................................................

36

1.3 A INFLUÊNCIA E A LONGEVIDADE DA TEORIA DE 1980 – A

FORÇA DA HISTÓRIA PARA A CRISTALIZAÇÃO DO OBJETO

CIENTÍFICO .............................................................................................

40

1.4 ALGUMAS LIMITAÇÕES TEÓRICAS DOS PESQUISADORES

PIONEIROS ..............................................................................................

46

1.5 O CONTEXTO HISTÓRICO E INTELECTUAL DA DÉCADA DE

1980 COMO UM LIMITE AOS PIONEIROS QUE OS IMPEDIU DE

ENXERGAR O AGENTE SOCIAL DOS FAXINAIS ..................................

49

1.6 PRODUÇÃO INTELECTUAL E CRÍTICAS DA NOVA GERAÇÃO DE

PESQUISADORES SOBRE A OBRA DOS AUTORES CLÁSSICOS

....................................................................................................................

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2 CULTURA E IDENTIDADE ÉTNICA COMO SUPORTE PARA UM

NOVO MODELO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO..................................

69

2.1 DECLARAÇÕES E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS:

RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS DIFERENÇAS CULTURAIS E A

OPORTUNIDADE DE REALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES

TRADICIONAIS E DOS FAXINALENSES NO BRASIL ............................

73

2.2 A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DOS FAXINALENSES DO PARANÁ

CENTRO NO PROGRAMA TERRITÓRIOS DA CIDADANIA ..................

79

2.3 FAXINALENSES: A NECESSIDADE DE MAIOR VISIBILIDADE

SOCIAL .....................................................................................................

85

2.4 RELAÇÕES POLÍTICAS LOCAIS: A PERSPECTIVA DO

RECONHECIMENTO SOCIAL E CULTURAL DOS FAXINALENSES

...................................................................................................................

88

2.5 AS DEMANDAS DOS FAXINALENSES E AS PERSPECTIVAS

ACERCA DAS RELAÇÕES POLÍTICAS NO TCPC .................................

91

3 CONTEXTO HISTÓRICO DA FORMAÇÃO SOCIAL E ECONÔMICA

DO FAXINAL SAUDADE SANTA ANITA ...............................................

93

3.1 A OCUPAÇÃO SOCIAL DO FAXINAL SAUDADE SANTA ANITA NO

FINAL DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX .........................

104

3.2 TRANSFORMAÇÕES LOCAIS QUE ENGENDRARAM O

ENFRAQUECIMENTO DA ORGANIZAÇÃO SOCIAL TRADICIONAL NO

FAXINAL SAUDADE SANTA ANITA .................................................

113

3.3 ARESUR: UM RELEITURA NECESSÁRIA ......................................... 118

3.4 ESTUDO DE CASO ATUAL SOBRE O FAXINAL SAUDADE SANTA

ANITA: DESGASTES NAS RELAÇÕES SOCIAIS ENTRE AS FAMÍLIAS

COMO UM REFLEXO DAS EXIGÊNCIAS DA ARESUR ..........................

124

3.5 AS RELAÇÕES DE PODER ENTRE OS AGENTES SOCIAIS NO

FAXINAL SAUDADE SANTA ANITA ........................................................

135

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3.6 TRANSFORMAÇÕES NO FAXINAL SAUDADE SANTA ANITA NO

SÉCULO XXI: EMERGÊNCIA DOS CAPITAIS CULTURAL E POLÍTICO

COMO FATORES FUNDAMENTAIS PARA A DISTRIBUIÇÃO DO

PODER SIMBÓLICO NA COMUNIDADE .................................................

142

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................... 154

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................ 158

FONTES ................................................................................................... 163

ENTREVISTAS ......................................................................................... 163

LEGISLAÇÃO .......................................................................................... 165

INTERNET ................................................................................................ 166

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INTRODUÇÃO

Logo que ingressei no Programa de Pós Graduação de Sociologia da

Universidade Federal do Paraná (UFPR), recebi da parte do meu orientador,

Osvaldo Heller da Silva, a proposta para trabalhar com ele e seu grupo no

projeto de pesquisa intitulado “Avaliação do Programa Territórios da Cidadania

a partir da análise das ações implementadas no Território Paraná Centro, PR”.

Este projeto foi desenvolvido pela Universidade Federal do Paraná1 e

coordenado por Osvaldo. Aceitei prontamente o convite, pois, percebi que

havia diante de mim uma oportunidade excelente para desenvolver uma

pesquisa de grande importância com pesquisadores experientes e, ainda, a

conveniência de adquirir prática como pesquisador. Então, ao mesmo tempo

em que eu deveria produzir a dissertação também comporia o grupo que

produziria essa pesquisa mais ampla. E foi o que aconteceu.

Junto com essa proposta surgiu outra: mudar o local de minhas

observações e trabalho de campo – que até então ocorreriam no Faxinal do

Salso, em Quitandinha, PR – para a região do Paraná Centro, onde poderia

escolher um campo dentre 18 municípios e facilitar meus trabalhos referentes à

dissertação, pois aliaria essas tarefas com as viagens de campo que faria para

a pesquisa sobre os Territórios da Cidadania. A região é rica em territórios

tradicionais, e segundo a Nova Cartografia dos Povos e Comunidades

Tradicionais do Brasil2 existem, além dos grupos quilombolas e indígenas, 21

comunidades faxinalenses identificadas na região.

Minha tarefa mais importante foi pesquisar acerca das comunidades

tradicionais em relação à participação política no Colegiado do Território da

Cidadanai Paraná Centro (TCPC) cujas reuniões acontecem em Pitanga,

município que dista aproximadamente 90 km de Guarapuava. Dessa forma,

entre os meses de janeiro e julho estive viajando a fim de visitar essas

1O projeto foi realizado em parceria com a Universidade Federal do Pernambuco (UFPE).

Atendeu a uma demanda do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e foi financiado pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e a Agricultura (FAO). 2A Nova Cartografia dos Povos e comunidades tradicionais do Brasil é uma série de fascículos

que tem o objetivo de evidenciar a existência de diversas comunidades tradicionais através do seu mapeamento. Os faxinalenses protagonizaram cinco fascículos sobre regiões específicas. Além de um fascículo mais geral intitulado “Povos de Faxinal”, há ainda outros quatro: 1 – Faxinalenses: fé, conhecimentos tradicionais e práticas de cura; 2 –Faxinalenses no Setor Centro; 3 –Faxinalenses no Setor Sul; 4 –Faxinalenses no Setor Metropolitano de Curitiba.

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comunidades. Visitei três faxinais: Faxinal Saudade Santa Anita, em Turvo;

Faxinal dos Kruger, em Boa Ventura do São Roque; e Faxinal dos Teles, em

Pitanga. Visitei as duas comunidades quilombolas do território: Campina dos

Morenos, em Turvo; e Invernada Paiol de Telhas, em Guarapuava. Três

comunidades indígenas: Ivaí – etnia caingangue, de Manoel Ribas; Faxinal,

caingangues de Candido de Abreu; Marrecas, caingangues e guaranis de

Turvo. Essa pesquisa assim como toda pesquisa mais ampla foi concluída em

setembro de 2013, e será publicada em livro ainda em 2014.

A atual pesquisa se limita aos faxinalenses. Deste modo, no primeiro

capítulo serão analisadas as produções científicas acerca da temática dos

faxinais no Estado do Paraná desde a década de 1980 até os teóricos mais

atuais. O segundo capítulo busca perceber as transformações sociais que

envolvem a emergência das comunidades tradicionais e dos movimentos que

lhes são correspondentes e, ao mesmo tempo, analisa a participação política

dos faxinalenses no TCPC. Por fim, o último capítulo intenta compreender –

através de um estudo de caso realizado no Faxinal Saudade Santa Anita – a

ação dos faxinalenses, tanto os que estão organizados com a Articulação

Puxirão dos Povos Faxinalenses (APF), quanto os que não se alinham com a

APF por lançar mão de outro projeto político para a comunidade. Ao mesmo

tempo busca-se examinar de que maneira o projeto da APF está ligado à

construção de uma identidade faxinalense que corrobora as definições do

Estado sobre a organização social nos faxinais, e se apresenta como uma

identidade dentre outras possíveis no âmbito da comunidade. Os conflitos que

advém do fortaleciemento desse projeto político em detrimento do

enfraquecimento do outro projeto que não se alinha com a APF serão também

foco dessa discussão.

Os capítulos segundo e terceiro têm conteúdos que se distribuem em

teórico e empírico, onde o empirismo está mais evidente em relação ao

capítulo precedente. Para compor o segundo capítulo que diz respeito à

participação política dos faxinalenses no TCPC foram visitadas três

comunidades da região como já citado anteriormente. A escolha dessas

comunidades se deu porque duas delas – Saudade Santa Anita e os Kruguer –

estão num nível de organização política mais consistente com a APF, onde

parte de seus membros assumiu essa relação mais próxima e, por isso, são as

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únicas comunidades da região que são reconhecidas pelo Estado como Área

Especial de Uso Regulamentado (ARESUR), e têm direito aos recursos anuais

provenientes do ICMS ecológico. O Faxinal dos Teles vive a expectativa de ser

reconhecida como ARESUR, embora esteja em processo de organização

política ainda bastante incipiente, pois apenas conversas inaugurais foram

estabelecidas e há falta de acordos sobre o uso da terra entre seus membros,

o que impede o avanço nas negociações. Por esse motivo ela é uma

comunidade que representa grosso modo as demais da região que, em geral,

não estão em estado mais avançado de organização política do que ela.

Para o terceiro capítulo, cujo conteúdo é um estudo de caso, foi

escolhido o Faxinal Saudade Santa Anita. Isso porque houve acesso mais

constante e mais amplo à comunidade, o que facilitou uma imersão mais

adequada para o tipo de estudo proposto neste trabalho. A maior facilidade de

acesso ao grupo se deu em virtude dos trabalhos realizados em Turvo para

compor o projeto de pesquisa já mencionado sobre o TCPC desde 2012, e

finalizado em setembro de 2013. Nas cinco viagens feitas a campo, em todas

as ocasiões ficamos parte do tempo hospedados em Turvo, e em duas

ocasiões estive hospedado no faxinal, o que totalizou aproximadamente quinze

dias de trabalho. Pela maior qualidade do tempo investido para a compreensão

das relações sociais dessa comunidade é que ela foi escolhida para o estudo

de caso. Além disso, é a comunidade que foi reconhecida recentemente como

ARESUR e, portanto, os conflitos sociais parecem mais evidentes naquele

local.

Estudos acerca dos faxinais têm sido realizados desde a década de

1980. São produções que objetivam entender a história, o modo de vida

peculiar, a cultura, os conflitos, os direitos, as leis, dentre outros temas.

Contudo, são poucas as pesquisa que estão sendo produzida sobre o

movimento social dos faxinalenses. A APF os representa no sul do Brasil.

A definição do termo que os designa não é tarefa fácil. Pelo contrário, a

complexidade dela é onde residem inúmeros debates atuais sobre qual é o

modo de vida dos faxinalenses. Pode-se dizer, de modo introdutório como um

meio de fornecer uma imagem ao leitor – e para esboçar apenas algumas

características mais gerais que se pode encontrar em algumas comunidades –

que os faxinalenses são povos tradicionais que subsistem dos produtos da

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terra e da criação de animais. Sua formação social tem, por vezes, a

característica do criadouro comum, além do uso coletivo dos recursos hídricos

e florestais disponíveis em seus territórios. Em muitos casos, os animais,

propriedades privadas, são criados a solta e em espaços comuns. Apesar de

que uma comunidade de faxinal não viva de maneira idêntica a outra e que a

convivência em território comum varia bastante entre elas, há, em geral nestes

espaços, moradias cercadas em pequenas áreas de terras, lugar também dos

quintais onde exercem a policultura alimentar de subsistência que são

separadas do criadouro e compostas de verduras e frutas, além de plantas

medicinais e erva-mate. Fora do faxinal, no lugar a que muitos chamam de

terra de planta, ou, cultura, é onde se dá a plantação principalmente de feijão e

milho. Ocorre também, em alguns casos, a monocultura de soja ou fumo, que

são produtos que estão ligados diretamente ao mercado mais amplo. Assim,

um território composto e complexo que pode combinar uso comum de recursos

e apropriação privada da terra é característica que se pode encontrar nos

faxinais, embora essas não sejam as únicas possíveis de se verificar nestas

comunidades tradicionais.

A fim de reforçar a complexidade dessa definição, pode-se continuar a

explicação dizendo, em outras palavras, que faxinalense é, também, um termo

que foi popularizado a partir do 1º Encontro dos Povos de Faxinais, em 2005.

Ele diz respeito ao agente social dos Faxinais que mantém práticas e costumes

que são vistos como tradição, seja a criação dos animais a solta em pastos

comuns, e/ou o cultivo e consumo da erva-mate. Seja a prática dos mutirões

para o trabalho como a construção e reforma de cercas, e/ou a malha da erva-

mate, ou ainda outros trabalhos em que a ajuda mútua é costume popular

desde tempos passados, mas que ainda vigoram mesmo que ao longo do

tempo apresentem variações na forma em que práticas e costumes são

compartilhados. É, ao mesmo tempo, aquele que se reconhece como tal num

processo de autodefinição.

Sobre o que é ser faxinalense pode-se destacar a fala do morador de

um Faxinal:

Ser um faxinalense é a raiz. É a pessoa que nasceu lá no lugar, que tem as origens, o costume. Aquele povo que tem o mesmo costume, a mesma linguagem, vamos dizer assim. Pra mim, o faxinalense é isso. Aquela pessoa que é criada, que tem a raiz no faxinal (FAXINALENSE F, 2009).

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Percebe-se sobre a fala acima que o faxinalense não está detalhando os

costumes, mas apenas ressaltando o vínculo com o lugar, com a linguagem

que é comum aos moradores locais. É complexo o estabelecimento, ou a

delimitação do que é esse costume, ou a definição dessas tradições de

maneira sistemática e geral. Mais importante é dizer que costumes e tradições

variam conforme a comunidade e que estes aspectos não se limitam ao que é

homogêneo, e não se apresentam em todas as comunidades igualmente. Não

é possível afirmar que há um jeito faxinalense de viver que se repete em todas

as comunidades, pois há diferenças entre os hábitos e costumes se

comparadas duas comunidades. Isso implica dizer que há tradições, há formas

de fazer e organizar, de pensar e se expressar que são costumeiramente

praticadas, percebidas, aceitas, mas que não são rígidas e podem apresentar

variações dentro de uma mesma comunidade revelando o dinamismo das

práticas e costumes. Mas estes modos de operar não são idênticos entre todas

as comunidades faxinalenses, ou, pelo menos, não são forjadas como que por

uma diretriz, por exemplo. A tradição é o resultado específico da vida vivida em

cada comunidade e das relações sociais através do tempo. Ela se modifica,

não é estática.

Por isso, ao empregar-se o termo faxinalense se está referindo ao

agente social que vive no Faxinal, que mantêm certos costumes, e que tem

práticas específicas no seu modo de vida que o diferencia como grupo. Fala-se

de um povo tradicional que se consolida também através do movimento social

e que, em muitos casos, autodefine-se politicamente em torno de sua cultura e

territorialidade. Portanto, destaca-se ao mesmo tempo um agente que está em

processo de afirmação da sua identidade étnica, coletiva, política e que busca

a sua autonomia através das formas organizativas que reivindicam leis

específicas que lhe garantam direitos. Lança-se luz sobre um agente que luta

contra a invisibilidade social e para reinterpretar o conhecimento produzido

cientificamente sobre si, que o relegou de modo errôneo nas últimas décadas a

um modo de vida atrasado e com vias ao desaparecimento.

Entretanto, não se ignora que, de fato, o faxinalense também pode ser o

agente social que tem costumes e práticas que condizem com aquilo que é

visivelmente comum ao grupo, mas que não participa do movimento social dos

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faxinalenses. Ainda há casos em que a identificação é com o território, com

algumas práticas, com o sentido de pertencimento ao meio ambiente e à

sociedade local sem que haja necessariamente um compromentimento com as

mesmas causas, com um mesmo projeto polítco comum para o lugar.

A Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais

proporcionou aos faxinalenses que arguissem sobre a definição do Faxinal. A

seguir há em destaque duas dessas definições.

O faxinal, no nosso ponto de vista faxinalense são aquelas áreas onde nós vivemos, 70, 80 famílias, num uso coletivo. Onde todos usam as áreas protegendo o meio ambiente e ocupando com pequena criação, criação de porte alto também. Tem faxinal que tem pequena criação, que tem a lei, e a criação alta, tem os quatro fios de arame. Todos podem viver e não tem importância de limite de área de terra, ali a pessoa que tem 50 alqueire e outra tem 02 alqueire, um litro de chão, ela tem o mesmo potencial de criar os seus animais e ali sobreviver (KLOSTER, Faxinal dos Kruguer, 2006).

E: O faxinal é um povo que vive sua cultura segundo as suas tradições e uma coisa muito importante é o uso dos recursos naturais e da terra de forma coletiva, os faxinalenses não pensam em ter títulos da terra ou ter dívida e pretendem permanecer nessa cultura porque é uma herança que herdaram de seus pais e dos seus avós e por isso nós achamos importante permanecer essa vivência, permanecer essa vivência em comum com o uso da terra coletivo (SILVA, Faxinal dos Ribeiros, 2006).

Durante o primeiro encontro faxinalense das benzedeiras, curadores,

costureiras e parteiras, que aconteceu em setembro de 2008 no município de

Irati, Paraná, Roberto Martins de Souza, coordenador do projeto no sul do

país, expôs, antes do lançamento, os croquis desenhados à mão pelos

próprios moradores de cada comunidade. Roberto disse numa conversa

informal que acredita que a produção desse material é muito importante para

esse povo que agora está sendo identificado e reconhecido. Percebe-se

através das falas dos faxinalenses contidas nos diversos fascículos da Nova

Cartografia que esse trabalho deu a eles visibilidade social, instrumento

importante para a ação que grupos dentro das comunidades têm empreendido

na arena política.

Pra gente é importante porque precisa ser reconhecido. Muita gente nem sabia que existia essa comunidade, que a gente tinha esses costumes, e isso serve para o nosso reconhecimento, pra poder reivindicar mais coisas pra gente (FERREIRA, 2008, p.9).

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A APF é um movimento social com proposta política e história

específicas. A eclosão da APF se dá num cenário em que novas formas

organizativas reivindicam direitos territoriais devido, principalmente, ao um

momento histórico propício às manifestações das comunidades tradicionais,

sobretudo desde a regulamentação da Convenção 169 da OIT. Há, no

capítulo dois, uma discussão que evidencia esse momento peculiar para o

desenvolvimento da organização política das comunidades tradicionais.

Nessa esteira a APF é o movimento próprio de representação das

reivindicações dos faxinalenses.

É possível perceber que o conteúdo dos Encontros organizados pela

APF, assim como o conteúdo dos materiais produzidos também por ela,

visa dar corpo à construção do poder simbólico entre as comunidades de

faxinal. Bourdieu (1999) diz que o poder simbólico é uma forma de consagrar

e revelar o que existe, de distinguir grupos de outros grupos existentes. O

poder simbólico é uma forma de dar visibilidade às divisões sociais, é o

poder de realização dos grupos. É o conhecimento e reconhecimento das

diferenças existentes entre os modos de vida que inspiram lutas políticas

específicas.

Nesse sentido, sensível mudança no quadro das produções intelectuais

sobre os faxinais pôde-se sentir a partir de 2005, através do artigo de Löwen

Sahr intitulado: “Faxinalenses: Populações Tradicionais no bioma da Mata com

Araucária?” Nesse trabalho a autora buscou “os elementos de identificação dos

faxinais que os [permitissem] caracterizá-los como povos tradicionais e

territórios sociais” (2005, p. 53). A partir desse trabalho os faxinalenses

passaram a ser gradualmente reconhecidos e interpretados publicamente

como povos tradicionais, detentores de territórios tradicionais, pois houve uma

importante repercussão desse artigo em vários segmentos da sociedade

paranaense através de sua publicação pelo IAP nos anais do I Encontro dos

Povos de Faxinais, acontecido em Irati, Paraná no ano de 2005. Os

faxinalenses, a partir desse evento, também passaram a se identificar como

agentes da ação nos faxinais e, sobretudo, através da APF deram início ao

projeto que tinha como principal objetivo arrancá-los da invisibilidade social e

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destacá-los coletivamente em luta por seus direitos étnicos e coletivos, e com

vistas à construção de um agente atuante nos processos tanto de elaboração

como também de intervenção de políticas públicas. Estas metas continuam

sendo afirmadas pela APF.

No caso faxinalense, deve-se considerar que não é somente a prática da

criação de animais em pastos comuns, ou mesmo a ligação com o movimento

social que vai definir o indivíduo como sendo ou não faxinalense. A presente

pesquisa revela, em especial no estudo de caso realizado no Faxinal Saudade

Santa Anita, que no âmbito da comunidade tanto os que se identificam com a

APF, quanto os que não se agrupam politicamente com eles, consideram-se

vinculados e identificados com um modo de vida próprio dos faxinais – mesmo

que aqueles que não corroboram o projeto político da APF neguem que

tenham relação com a identidade faxinalense, sobretudo, porque o termo por

vezes remete aos moradores que se vinculam à proposta política da APF. Não

cabe ao pesquisador, entretanto, ditar e enquadrar quem é e quem não é

faxinalense, mas sim analisar a riqueza e a complexidade dessa questão. Esta

é uma das propostas dessa dissertação.

Autores clássicos que têm discutido a temática da identidade – Polak

(1992), Castells (2002) – já constataram que essa categoria de análise na

prática não ocorre de forma homogênea e muito menos harmônica. Definir a

identidade de um grupo também é se envolver no campo do conflito e da

heterogeneidade. Isto porque nem sempre é possível catalogar a identidade de

um grupo de maneira a encaixá-los todos numa mesma definição. Como se

evidencia na discussão acima nem todas as comunidades faxinalenses

preservam as mesmas práticas e costumes. E mesmo dentro de uma única

comunidade nem todos os seus membros preservam as mesmas práticas e

costumes. Por isso, identificar um agente como sendo ou não faxinalense é

tarefa a ser realizada de forma dialógica que envolve questões de

autodefinição e heterodefinição.

Castells afirma: “a construção de identidades vale-se da matéria-prima

fornecida pela história, geografia, instituições produtivas e reprodutivas, pela

memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos do poder e

revelações de cunho religioso” (CASTELLS, 2002, p. 23). Portanto, se esta

matéria-prima muda, as identificações também mudam. Assim, percebe-se que

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é na relação com o contexto que a identidade se constrói e reconstrói.

A identidade, ao mesmo tempo, é um termo comumente associado à

noção de cultura. Contudo, não se pode confundir as duas coisas, embora haja

uma evidente ligação entre elas. A cultura, por si mesma, não depende da

consciência de identidades culturais. Por outro lado, as identidades culturais

são extensões da cultura e agem sobre ela, manipulam-na conscientemente,

modificam-na se necessário. Então, enquanto a cultura se realiza por decurso

inconsciente, a identidade o faz de modo consciente (CUCHE, 2002, p. 176).

A forma como cada grupo se relaciona com o espaço comum, com o

trabalho – seja ele nas terras de planta ou não –, com os usos e costumes, ou

como se relacionam seus membros entre si são coisas distintas se comparadas

duas comunidades, mesmo que próximas geograficamente. Então, o

faxinalense se identifica como tal num processo de autodefinição. Quando uma

comunidade tem em seus membros – que por suas práticas particulares e

comuns, tanto econômicas, sociais, quanto culturais – um sentimento que os

une, e quando o indivíduo identifica no outro semelhanças referentes à origem,

costumes, tradições e práticas, é então que existe uma comunidade, ou o

sentimento de comunidade entre seus participantes. Portanto, como já

mencionado, não é necessariamente a cultura deste ou daquele produto da

terra, como a erva mate ou a criação de animais a solta, por exemplo, que

define as comunidades que são ou não faxinalenses, e sim os símbolos que

norteiam as relações compartilhadas no grupo, ou o projeto político do grupo,

assim como os traços comuns que os identificam uns com os outros dentro

deste grupo, além do reconhecimento das diferenças marcantes assumidas em

comparação aos de fora da comunidade, ou, anda, o reconhecimento da

distinição em relação àqueles que não compartilham suas práticas comuns

mais marcantes e valorizadas. Portanto, é o sentimento de pertença a uma

comunidade e de alteridade em relação aos outros, e não o encaixe em

categorias pré-determinadas que os define. É através das relações sociais das

quais participa que o faxinalense se representa. Touraine diz que

(...) o apelo à identidade apóia-se no recurso a um garante metassocial da ordem social, em especial a uma essência humana ou simplesmente à pertença a uma comunidade, definida por valores ou por um atributo natural ou ainda histórico. (...) O apelo à identidade torna-se um apelo, contra os papéis sociais, à vida, a liberdade, à criatividade. (...) o apelo individual ou coletivo à identidade é o

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reverso da vida social, enquanto esta é uma rede de relações, o espaço da identidade é ao mesmo tempo o dos indivíduos, das comunidades e dos Estados. (TOURAINE, 1996, p. 113 – 114)

Cada comunidade, em virtude da criatividade a que se refere Touraine,

tem suas características próprias, marcadas pelas suas vivências e sua

história, onde os costumes são passados de geração em geração e mesmo

que haja mudanças neles – pois não são estáticos, mas vivos – são estes

construídos socialmente e muitas vezes percebidos, ainda assim, como algo

que os diferencia dos que não participam das suas práticas comuns. Não

podem as comunidades de faxinais serem todas iguais, pois, apesar de alguns

traços mais ou menos comuns, não são todas a mesma comunidade, mas

várias delas espalhadas por vasto território.

Ora, ao mesmo tempo em que a identidade social inclui também exclui.

Essa é sua natureza. Como mencionado em Bourdieu, há uma distinção entre

as práticas, as relações operadas no grupo em comparação aos outros grupos.

Assim, a identidade inclui o conjunto das semelhanças internas de um grupo,

ou, a igualdade de um ponto de vista sobre qualquer matéria que lhes seja

compartilhada e selecionada como importante. Por outro lado, exclui os grupos

que pensam e agem de maneira diferente sobre o mesmo ponto de vista, e que

por isso não participam de suas práticas comuns. Isto é, para Cuche a

identidade cultural age no sentido de diferenciar a relação nós-eles. Funciona

para classificar, distinguir a cultura entre os grupos (CUCHE, 2002, p. 179).

Toda identificação é também uma forma de diferenciação e o que cria a

fronteira da identidade não é a diferença cultural e sim “a vontade de se

diferenciar e o uso de certos traços culturais como marcadores de sua

identidade específica” (CUCHE, 2002, p.200). Cuche dá argumentos para

pensar, no âmbito do presente trabalho, que entre os faxinalenses não há uma

cultura homogeneizada que os une, mas, além da prática de alguns costumes

comuns, há a vontade, a decisão de se diferenciar dos que detém hábitos

discordantes. O que reina entre as comunidades faxinalenses são suas

particularidades aceitas, reconhecidas e assumidas grupalmente em cada

comunidade. Uma consciente distinção que se estabelece entre suas práticas

de vida em contraponto ao modo de vida dos que não fazem parte do seu

grupo.

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Weber faz uma análise acerca das comunidades étnicas. Para o autor,

toda a comunidade é dotada da capacidade de gerar costumes e de encadear

a cada costume herdado “probabilidades diversas de vida, sobrevivência e

reprodução, tendo, portanto, função criadora, e isto, em certas circunstâncias,

de modo altamente eficaz” (WEBER, 1986, p. 269). O autor apontou aspectos

essenciais das relações e das ações fundamentadas etnicamente, onde a etnia

tem função política e a identidade étnica é construída por meio do

conhecimento de diferenças existentes entre grupos que expressam um

etnocentrismo (WEBER, 1986, p. 269).

Para Frederik Barth a identidade cultural, ou, identidade étnica, para ser

compreendida deve ultrapassar pontos de vistas predeterminados acerca de

elementos fundamentais como a gênese, a estrutura e a função dos grupos

(BARTH, 2011. P. 190). Por isso mesmo o autor assevera sobre a necessidade

de uma perspectiva que evite confundir as consequências das disposições

“ecológicas sobre o comportamento com os da tradição cultural, mas que

permita que se separem esses tais fatores e se investiguem os componentes

ecológicos, culturais e sociais criadores de diversidade” (BARTH, 2011, p. 193).

Assim, o autor define a identidade

como uma construção que se elabora em uma relação que opõe um grupo aos outros grupos com os quais está em contato. (...) Esta concepção permite ultrapassar a alternativa objetivismo/subjetivismo. Para Barth, deve-se tentar entender o fenômeno da identidade através da ordem das relações entre os grupos sociais. Para ele, a identidade é um modo de categorização utilizado pelos grupos para organizar suas trocas. Também, para definir a identidade de um grupo, o importante não é inventariar seus traços culturais distintivos, mas localizar aqueles que são utilizados pelos membros do grupo para afirmar e manter uma distinção cultural. Uma cultura particular não produz por si só uma identidade diferenciada: esta identidade resulta unicamente das interações entre os grupos e os procedimentos de diferenciação que eles utilizam em suas relações (CUCHE, 2002 p. 182).

Pollak, por sua vez, diz que o sentimento de identidade é "o sentido da

imagem de si, para si e para os outros. Isto é, a imagem que ela constrói e

apresenta aos outros e a si próprio." (POLLAK, 1992, p. 204). O autor entende

identidade como uma auto-representação, pois seria a construção do próprio

indivíduo da imagem de si para si e para os outros, e não uma imagem também

dos outros para si. Dessa forma, Pollak não atenta para uma

heteroidentidade/exo-identidade, o que é diferente da posição de Cuche

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(2002), que coloca a identidade como uma negociação entre a que é definida

por si e aquela que é definida pelos outros. Cuche (2002) discute sobre a

existência de uma construção e reconstrução constantes da identidade no

interior das trocas sociais.

Não há identidade em si, nem mesmo unicamente para si. A identidade existe sempre em relação a uma outra. Ou seja, identidade e alteridade são ligadas e estão em uma relação dialética. A identificação acompanha a diferenciação (CUCHE, 2002, p. 183)

A construção de uma identidade étnica reconhecida pelo Estado tem

sido uma tarefa empreendida pelas comunidades tradicionais no Brasil

atualmente, e pelo menos desde 2005 entre os faxinalenses. A autonomia para

a autodefinição do grupo é a novidade que diferencia a identidade que está em

prática, atualmente, daquela outra identificação pré-estabelecida e orientada

pelo Estado, que já foi praticada outrora. O país é rico em diversidade cultural

e o reconhecimento da identidade étnica como fator cultural por autodefinição

que engendra direitos coletivos tem sido vigorosamente demandada por povos

e comunidades tradicionais em todo o território nacional.

Apesar das lutas que se intensificam na arena política nesse sentido,

ainda persiste a invisibilidade social desses povos. A autodefinição dos povos

tradicionais por meio de movimentos sociais tem sido utilizada com mais afinco

nos últimos anos com o objetivo de buscar direitos através de dispositivos

jurídicos que reconheçam a cultura, os territórios e modos de vida específicos

vivenciado por cada grupo social. O caráter cultural e étnico não pode mais ser

dissociado das atuações dessas comunidades. E é baseado nesses

pressupostos que se compreendem as comunidades tradicionais e os

faxinalenses.

A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e

Comunidades Tradicionais (PNPCT), a partir do Decreto Nº 6.040/2007 define

no artigo 3º o que são as comunidades tradicionais, o que são territórios

tradicionais e o que é o desenvovimento sustentável como a seguir:

Art. 3o Para os fins deste Decreto e do seu Anexo compreende-se

por: I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição;

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II - Territórios Tradicionais: os espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações; e III - Desenvolvimento Sustentável: o uso equilibrado dos recursos naturais, voltado para a melhoria da qualidade de vida da presente geração, garantindo as mesmas possibilidades para as gerações futuras.

A tradição aqui definida está simplificada, o que pode gerar certa

confusão. Mas a tradição a que essas comunidades reinvindicam possuir não

pode ser entendida como algo fixo, imutável, estável e, de fato, sua definção

está ligada ao costume que gera a prática. Por isso ela é viva e dinâmica. Erick

Hobsbawn diferencia tradição e costume atribuindo à primeira a característica

de invariabilidade, enquanto “o costume, nas sociedades tradicionais, tem a

dupla função de motor e volante. Não impede as inovações e pode mudar até

certo ponto (...)” (HOBSBAWN, 2012, p. 12, 13). O costume, segundo o autor:

Sua função é dar a qualquer mudança desejada (ou resistência à inovação) a sanção do precedente, continuidade histórica e direitos naturais conforme o expresso na história. Os estudiosos dos movimentos camponeses sabem que quando numa aldeia se reinvindicam terras ou direitos comuns “com base em costumes de tempos imemoriais” o que expressa não é um fato histórico, mas o equilíbrio de forças na luta constante da aldeia contra os senhores de terra ou contra outras aldeias. Os estudiosos do movimento operário inglês sabem que o “costume da classe” ou da profissão pode representar não uma tradição antiga, mas qualquer direito, mesmo recente, adquirido pelos operários na prática, que eles agora procuram ampliar ou defender através da sanção da pereneidade. O “costume” não pode se dar ao luxo de ser invariável, porque a vida não é assim nem mesmo nas sociedades tradicionais. O direito comum ou consuetudinário ainda exibe esta combinação de flexibilidade impícita e comprometimento formal com o passado (HOBSBAWN, 2012, p. 13).

Thompson (1998) corrobora essa ideia quando afirma que a tradição

está baseada em usos costumeiros e constantes de tempos imemoriais,

embora não atribua ao costume a qualidade de invariável.

No século XVIII o costume constituía a retórica de legitimação de quase todo o uso, prática ou direito reclamado. Por isso, o costume não codificado – e até mesmo o codificado – estavam em fluxo contínuo. Longe de exibir a permanência sugerida pela palavra “tradição”, o costume era um campo para a mudança e a disputa, uma arena na qual interesses opostos apresentavam reivindicações conflitantes (THOMPSON, 1998,p. 16, 17).

Historicamente, a questão central dos conflitos que acontecem nos

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Faxinais gira em torno da territorialidade. Há décadas que o modelo da

agricultura convencional e a mercantilização das terras avançam gradualmente

sobre os territórios faxinalenses, principalmente por meio das empresas do

agronegócio. Há também outro antagonista: o chacareiro. Na ótica dos

faxinalenses, chacareiros são pessoas que procuram um pedaço de terra e a

encontra em meio aos faxinais, seja para o lazer e ou descanso, seja para

empreender alguma forma de produção econômica, mas estes não

compreendem o modo de vida faxinalense e por isto cercam suas terras

diminuindo o território do faxinal, diminuindo a área de reprodução social e

econômica do povo tradicional. O chacareiro, sem dúvida, tem uma estratégia

interna própria, uma dinâmica política diferenciada da dinâmica faxinalense, e

os desacordos surgem por conta de práticas notóriamente distintas. Por isso é

recorrente o conflito entre faxinalenses e chacareiros. Igualmente danoso, no

sentido de gerar o enfraquecimento da coesão do grupo, são os

desentendimentos que ocorrem dentro do próprio faxinal entre os faxinalenses

que querem manter um modo tradicional de produção, muitas vezes ligado ao

criador comunitário, e os faxinalenses que querem individualizar o uso das

terras.

Este cenário de ameaça aos territórios tradicionais pelo avanço da

agricultura convencional e dos chacareiros, além dos desacordos entre os

moradores da comunidade sobre a continuidade dos pastos comuns foi, nas

últimas décadas, motor da ação para que em agosto de 2005 fosse realizado

em Irati, Paraná, o 1º Encontro dos Povos de Faxinais. Neste encontro a APF

surgiu como um movimento social que tem como proposta a valorização

cultural e social juntamente com o direito de existir dos faxinalenses, bem como

a luta pela terra e por um modelo sustentável de produção adaptado ao seu

modo de vida.

Há avanços conquistados pela APF em relação ao poder público

principalmente no reconhecimento de territorialidade específica por meio de leis

em diversas esferas. Há avanços também no âmbito organizacional, na

mobilização de novas comunidades de faxinais e na divulgação da Nova

Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil. Pela

mobilização social e pressão política os faxinalenses conquistaram a

identificação de sua territorialidade. Através do Decreto Federal 10.408/2006 e

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pela Lei Estadual 15.673/2007, os faxinalenses passaram a ser reconhecidos

pelo Estado como povos tradicionais de territorialidade tradicional. No entanto,

apesar dos avanços da APF, os conflitos continuam sendo, em grande medida,

os mesmos já relatados. Desta forma, o espaço físico de reprodução cultural

diminuiu drasticamente nos últimos anos.

OBJETIVOS

Há algumas perguntas chaves que norteiam esse trabalho e que estão

elencadas em ordem de acordo com o capítulo que foi produzido para

respondê-las.

1) Como o faxinalense passou na literatura científica desde o

determinismo do objeto até sua interpretação como agente nas últimas

décadas nos estudos acadêmicos? E quais são as limitações que se podem

encontrar nas principais produções científica sobre os faxinais?

2) Qual é o contexto histórico e social que permite a emergência da

mobilização política organizada das comunidades tradicionais, sobretudo,

dos faxinalenses no Brasil. E, sendo a organização política uma construção

social entre algumas comunidades de faxinal na microrregião de

Guarapauva, qual é a realidade da participação política dessas comunidades

em âmbito territorial, especificamente noTCPC?

3) Como ocorrem as relações de poder dentro da comunidade entre os

faxinalenses, e como as disputas pelo poder simbólico se dão nesse espaço?

JUSTIFICATIVA

Quando comecei a pesquisar sobre os faxinais senti a necessidade de

compreender os motivos sociais, culturais e políticos que evidenciaram as

demandas dos povos e comunidades tradicionais no Brasil. A pergunta com a

qual me deparava era sobre como se desenvolveu a organização de diversos

povos em torno dos direitos referentes à territorialidade, à identidade étnica e à

cultura? E qual foi o contexto histórico que proporcionou a formação de

movimentos de perspectivas tão amplas e de forte caráter político nas últimas

décadas?

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Compreendo que essa é uma das justificativas dessa pesquisa. Avançar

um pouco mais no entendimento dessas questões de modo a preencher

lacunas da investigação sociológica nesse campo.

A relevância desta pesquisa também é dada, sobretudo, pelo

aprofundamento do saber sociológico sobre o movimento social no campo,

mais especificamente entre os faxinalenses, e a resistência que eles exercem a

partir da noção de identidade étnica sobre os que demandam suas terras.

Examinar essas relações é fundamental para o entendimento da extensão e

eficácia da ação dos faxinalenses cuja reivindicação central é essa: dar

continuidade ao seu modo de vida tradicional sem perder suas terras e, se

possível, resgatá-las e até ampliá-las. É da terra que dependem os

faxinalenses para preservar seu modo de vida, sua cultura. Assim, acredito ser

também importante no presente estudo examinar a atuação da APF naquilo

que é parte de suas propostas, de seu projeto: a luta pela terra. E, por

conseguinte, analisar outros fatores que se impõem por meio dela.

METODOLOGIA

Para responder às perguntas elencadas acima a escolha foi – por força

do próprio objeto – pela pesquisa qualitativa. A partir de uma metodologia de

pesquisa empírica baseada nos fatos de observação se favoreceu o diálogo

com resultados de outros trabalhos empíricos sobre os faxinais realizados no

Paraná. A leitura dos principais trabalhos sobre a temática das últimas

décadas, as entrevistas de campo com agentes diversos, as fotografias, os

documentos da APF e dos faxinalenses locais, a participação de reuniões do

colegiado do TCPC, assim como a participação de festas e reuniões na

comunidade são alguns dos instrumentos que compõe os dados coletados no

campo.

Essa pesquisa qualitativa teve como característica a flexibilidade e a

adaptabilidade durante seu percurso, pois se demonstrou capaz de dar conta

de uma heterogeneidade de dados e de fazer conversar técnicas distintas de

coletas de dados, além de valorizar a observação do mundo empírico e a

exploração indutiva do campo observável concernente à pesquisa (Pires,

2008).

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Certamente algumas questões foram mais bem compreendidas no

universo de dimensões mais limitadas, no interior do próprio grupo e seus

vizinhos. Neste sentido, “a observação participante, a entrevista aberta e as

conversas espontâneas” (TREMBLAY, 2008, p. 27) também desempenharam

um papel primordial na coleta de dados. Estes foram, inicialmente, os

instrumentos que balizaram os levantamentos de dados no campo de

observações e possibilitaram perceber as dinâmicas sociais, econômicas,

culturais e familiares.

Tanto a análise da participação política dos três faxinais no TCPC bem

como o estudo de caso no Faxinal Saudade Santa Anita serviram como uma

espécie de amostra empírica das comunidades faxinalenses. Então, do ponto

de vista das observações que foram exploradas, destaca-se que a escolha

sobre a maneira de levantar parte dos dados para interpretar o objeto de

estudos foi a observação participante, a história de vida – que serviram como

ferramentas que permitiram de forma mais acurada obter uma compreensão de

certos fenômenos que dificilmente poderiam ser observados de outra maneira,

e onde essa amostra empírica se mostrou a forma mais apropriada para

interpretar o objeto (DESLAURIERS E KÉRISIT, 2008, p. 138-139). A

entrevista também foi amplamente utilizada para a coleta de informações,

assim como recursos visuais – fotografias, principalmente. (DESLAURIERS E

KÉRISIT, 2008, p. 140).

Em princípio à aplicação de questionários fechados, os resultados não

se mostraram eficientes porque as respostas eram bem limitadas. A partir

dessa constatação as entrevistas realizadas durante o restante da pesquisa

foram de questões abertas. Fazer entrevistas abertas possibilitou uma

conversa mais livre porque deixava o entrevistado mais interessado em contar

o que sabia. A voz do agente foi de grande importância para a construção do

conhecimento nos capítulos dois e três, e resgatá-la no campo foi um

instrumento que ampliou as formas possíveis de ouvir respostas às perguntas

colocadas inicialmente.

Portanto, para elaborar dois dos três capítulos sobressaltou a

importância dada à voz dos agentes, à fala daqueles que vivem no faxinal a fim

de compreender o sentido que dão às suas ações. Assim, no contexto da

vivência do faxinal foram entrevistados tanto pessoas ligadas à liderança das

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comunidades, como pessoas que participam dos projetos políticos locais, mas

não lideram. Igualmente entrevistamos pessoas que apoiam, mas não

participam. Também os concordantes e discordantes das práticas foram

ouvidos. Foi necessário ouvir o que os moradores dos faxinais compreendem

sobre a motivação para as práticas cotidianas, ou aquilo que entendem como

importante dessas práticas, ou, como percebem os símbolos que norteiam

suas relações. Neste ponto a discussão de Boaventura de Souza Santos foi de

grande apoio, pois o autor afirma que o senso comum é percebido como

evidente, transparente, e é superficial porque menospreza as estruturas que

transcendem a consciência, porém tem méritos em perceber a “profundidade

horizontal das relações conscientes entre pessoas e entre pessoas e coisas”

(SANTOS, 2003, p. 40).

O autor caracteriza o senso comum de forma alternativa porque busca

“salientar a positividade do senso comum, o seu contributo possível para um

projeto de emancipação cultural e social” (SANTOS, 2003, p. 41).

Há produções científicas que se referem aos movimentos sociais a partir

do ponto de vista das comunidades tradicionais – a tese de Souza (2010) é um

exemplo evidente, onde diversos saberes tradicionais como o manejo da terra,

a cultura de plantas medicinais e o uso que se faz delas, o tipo de organização

social que prioriza a solidariedade entre o grupo – para citar apenas alguns

exemplos que envolvem o modo de vida dessas comunidades – têm

contribuído para engendrar uma pesquisa que dialoga com o senso comum, e

que respeita a sua capacidade de interpretação da realidade.

Ainda assim, no campo escolhido, há a onerosa tarefa de lidar com os

reflexos da teoria sobre os faxinais que ainda está muito calcada no que foi

produzido há quase 30 anos. Alguns pesquisadores produziram obras

importantes, mas que agrilhoaram seus pares e a próprio entendimento do IAP

– cuja influência se percebe na lei da ARESUR – em pontos de vista que

precisam ser relativizados. Existe um número de conceitos sobre o tema que

precisam ser reformulados, repensados. Por isso, através do texto de Remi

Lenoir (1998) foi possível perceber a importância deste embate na parte em

que ele assevera ser ao sociólogo necessário confrontar discursos que

pendem para fundar o fenômeno que estuda como uma especialidade. Para o

autor “essa espécie de senso comum erudito emerge, muitas vezes, de

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disciplinas reconhecidas como científicas que encontram, nesse novo objeto de

estudo, uma nova aplicação” (LENOIR, 1998, p.98). Ele prossegue a análise na

página seguinte. “Tais discursos (...) constituem o principal obstáculo

encontrado pelo pesquisador para construir seu objeto, na medida em que

cooperam para delimitar o campo de pesquisa” (LENOIR, 1998, p.99).

Entretanto, algumas produções desde 2005 advogam no sentido da

necessidade de ultrapassar o paradigma que em certo sentido – que

descobriremos no decorrer do trabalho – ainda domina o campo intelectual

sobre os faxinais. Por isso, apesar de parte dele já ter sido superado pelas

pesquisas dos últimos anos, ainda há muito a ser feito.

FUNDAMENTO TEÓRICO DO TRABALHO DE CAMPO: AGENTE SOCIAL E

A PRAXIOLOGIA NO PENSAMENTO DE BOURDIEU – UMA ALTERNATIVA

À CONTROVÉRSIA AGÊNCIA-ESTRUTURA

No pensamento sociológico de Bourdieu, o indivíduo/coletivo da ação foi

nomeado de agente. Há um esforço intelectual profícuo no pensamento

sociológico do autor que o leva a ponderar, e de certo modo ultrapassar a

controvérsia contida na dicotomia estrutura e agência, denominadas de

abordagens objetivistas e subjetivistas – termos que ele define também por

fisicalismo e psicologismo – ou, igualmente, de estruturalista e

fenomenológica/construtivista (BOURDIEU, 2004, p. 150). O autor apresenta

esses dois modos distintos de conhecimento teórico que em comum se

contrapõe ao “conhecimento prático” (BOURDIEU, 2013, p. 43).

Pelo lado subjetivista, fenomenológico, o mundo social é interpretado

como composto a partir das “representações que deles se fazem os agentes”

(BOURDIEU, 2004, p. 150), através das quais o cientista social teria a

incumbência de “produzir uma explicação das explicações” (p. 150), o que

seria, em última análise, estar em “continuidade com o conhecimento de senso

comum, já que não passa de uma construção das construções” (p. 151).

Weber, Schütz, o interacionismo simbólico e a etnometodologia são exemplos

desse viés. O conceito de sujeito está próximo dessa definição.

Por outro lado, a abordagem objetivista se apresenta como uma

perspectiva onde as ações dos indivíduos são resultados de condicionamentos

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estruturais e, dessa forma, a ação do indivíduo, a experiência humana, tende a

reduzir-se a trocas simbólicas exercidas por atores que representam papéis

teatrais (BOURDIEU, 2013, p. 86). Durkheim é um autor representativo nesse

contexto, assim como correntes como o estruturalismo em Levi Strauss e

Althusser, e o funcional-estruturalismo desde Radcliffe Brown à Talcott

Parsons. O conceito de ator está mais próximo dessa definição. Bourdieu,

buscando reintroduzir o agente na teoria sociológica, critica:

O objetivismo que tem por objeto estabelecer regularidades objetivas (estruturas, leis, sistemas de relações etc.) independentes das consciências e das vontades individuais, introduz uma descontinuidade marcada entre o conhecimento erudito e o conhecimento prático, rejeitando ao estado de “racionalizações”, de “prenoções”, ou de “ideologias” as representações mais ou menos explícitas com as quais ele se arma. Ele recusa assim o projeto de identificar a ciência do mundo social a uma descrição da experiência pré-científica desse mundo ou, de modo mais preciso, reduzir a ciência social, como Schültz e a fenomenologia, a “construções do segundo grau, isto é, a construções das construções produzidas pelos atores no palco social”, ou como Garfinkel e a etnometodologia, a “relatórios dos relatórios” produzidos pelos agentes (BOURDIEU, 2013, p. 44, 45).

Como recurso para superar a dicotomia agência-estrutura, Bourdieu

procura estabelecer uma mediação a partir da elaboração do que seria uma

sociologia do conhecimento praxiológico, onde a ação não se reduz à

execução da regra, ou a obediência a ela. Os agentes sociais não se limitam a

autômatos como os relógios são em seu funcionamento. Pelo contrário, Eles

são ativos nos jogos, cujo sentido comanda as ações. A noção de habitus

como incorporação de experiências que permite ao agente sentir e interpretar o

mundo social torna-se central no seu modelo de ação social.

Sendo assim, ao mesmo tempo em que o agente é ativo a partir do

sentido do jogo, livrando-o assim do peso exclusivo e irrefutável das estruturas

sobre as ações, por outro lado o habitus, como sistema de disposições para a

prática, apresenta-se, em essência, de maneira objetiva, e diz respeito a

condutas regulares – embora a tendência a esse agir regular não tenha em sua

origem qualquer regra ou lei explícita, mas obedece a uma lógica prática

(BOURDIEU, 2004, p. 98). E dessa forma, esse conceito não libera o indivíduo

a uma ação descolada, sem compromisso com a interiorização das estruturas

do mundo social. Portanto, o autor consegue alçar a uma alternativa para a

dicotomia agência-estrutura explicitada na figura do sujeito e do ator, pois

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transcende “o subjetivismo [que] predispõe a reduzir as estruturas às

interações, [e] o objetivismo [que] tende a deduzir as ações e interações da

estrutura” (BOURDIEU, 2004, p.155, 156). Para o autor

A teoria da prática como prática evoca, contra o materialismo positivista, que os objetos de conhecimento são construídos, e não passivamente registrados e, contra o idealismo intelectualista, que o princípio dessa construção é o sistema das disposições estruturadas e estruturantes que se constitui na prática e que é sempre orientado para funções práticas. (...) Trata-se de escapar ao realismo da estrutura (...) sem recair, no entanto, no subjetivismo, totalmente incapaz de dar conta da necessidade do mundo social: para isso, é preciso retornar à prática, lugar da dialética do opus operatum e do modus operandi, dos produtos objetivados e dos produtos incorporados da prática histórica, das estruturas e dos habitus

(BOURDIEU, 2013, p. 86, 87).

Esses são os fundamentos teóricos utilizados para compreender as

ações que serão analisadas, haja vista ser o conceito de agente um ponto de

equilíbrio entre a dicotomia elementar do conhecimento sociológico, ou seja,

entre a noção de agência e de estrutura.

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1 PRODUÇÃO CIENTÍFICA ACERCA DOS FAXINAIS: DO

DETERMINISMO DO OBJETO À CONSTRUÇÃO DO AGENTE SOCIAL

FAXINALENSE

O objetivo desse capítulo é analisar, através de parte importante da

literatura disponível, a construção do agente organizado em movimento social

nos faxinais do Paraná. A discussão gira em torno da produção científica sobre

o tema desde a década de 1980, quando os primeiros pesquisadores

analisaram formas de organização social específicas existentes no interior dos

faxinais. A ideia central é demonstrar a importância e problematizar os limites

dessas obras para compreender as questões envolvidas. Igualmente

importante é analisar a nova linha de pesquisa que surgiu ao mesmo tempo em

que o movimento social dos faxinalenses, e que guarda diferenças do modelo

de análise dos primeiros pesquisadores. A nova geração de pesquisadores tem

o objetivo de compreender a ação dos agentes através do movimento social.

Ao mesmo tempo será tarefa desse capítulo analisar o papel dos agentes

intelectuais ligados ao movimento social.

A discussão se evidencia nesse trabalho por ser considerada importante

à compreensão adequada dos principais pontos incutidos nas obras dessas

duas gerações de pesquisadores no contexto de produção acadêmica nos

últimos 30 anos, e que revela as transformações sociais, políticas, históricas,

culturais do Brasil nesse mesmo período. Da mesma forma, o campo

intelectual sofreu transformações cruciais nessas três décadas.

1.1 O SURGIMENTO DA TEMÁTICA DOS FAXINAIS NO CAMPO

CIENTÍFICO: A TEORIA DOS PESQUISADORES PIONEIROS: CONCEITOS

FUNDAMENTAIS

No começo da década de 1980, dois autores se destacaram por

inaugurarem a produção científica sobre os faxinais. Horácio Martins de

Carvalho e ManYu Chang produziram obras que ainda hoje são utilizadas

como referência no assunto. Embora nos últimos anos haja surgido uma nova3

3 Desde 2005, quando a APF começou a organizar os moradores de faxinal em movimento

social, surgiram pesquisadores que têm uma nova perspectiva sobre o modo de vida nos faxinais. Roberto de Souza Martins é um dos mais destacados pesquisadores sobre o tema e

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linha de pesquisa que realiza a crítica ao modelo dos faxinais idealizado por

esses autores, não resta dúvida sobre a importância de seus trabalhos para

dar visibilidade aos moradores de faxinais e, concomitantemente, para

denunciar sua situação de expropriação de territórios e possível falência do

sistema de agricultura “camponesa4” que se instalara nos faxinais, devido a

diversos fatores como a instalação de indústrias madeireiras no interior do

Estado e a “modernização” da agricultura no Brasil.

É importante expor os principais conceitos que foram estabelecidos por

Carvalho (1984) e Chang (1985) e que posteriormente foram replicados pelos

demais pesquisadores até que surgisse a nova linha de pesquisa a partir de

2005. São eles distribuídos em termos como faxinal, sistema faxinal e criador

comunitário, que serão esclarecidos com base nestes dois autores.

O criador comunitário é também chamado de faxinal. No entanto, apesar

do uso aparentemente indistinto das palavras, há diferenças práticas entre

ambas. Para Carvalho:

O criador comunitário é uma forma de organização consuetudinária que se estabelece entre proprietários da terra para a sua utilização comunal tendo em vista a criação de animais. A área de um criador comunitário é constituída por várias parcelas de terras de distintos proprietários, formando, umas ao lado das outras, um espaço contínuo. (CARVALHO, 1984, p. 12)

Sobre faxinal o mesmo autor define:

Originalmente, fins do século passado (e ainda hoje), o faxinal se referia ao mato denso ou grosso, ou seja, a área de vegetação mais cerrada, se comparada com outras áreas às quais se denominava de mato ralo. No faxinal ocorria a presença das espécies florestais, pinheiro (araucária) e erva mate, além de apresentar razoáveis condições de pastagem natural. O faxinal era preservado para as práticas extrativistas da madeira (pinho) e da erva mate, além de servir de espaço para a criação extensiva e semi-extensiva de animais. As derrubadas de mato para a formação de lavouras eram realizadas em áreas onde se observava a presença do mato ralo, no qual não se verificava a ocorrência, ao menos intensiva, das espécies florestais acima assinaladas. (CARVALHO, 1984, p. 14, 15)

O termo “sistema faxinal” é explicado por Chang da seguinte forma:

O sistema faxinal (...) é uma forma de organização camponesa característica da região Centro-Sul do Paraná, cuja presença ainda

propõe um novo paradigma de análise sobre o assunto baseado na identidade étnica como elemento cultural e político. Essa nova linha de pesquisa será aqui chamada de “nova geração”, e Souza, em virtude da importânica que representa a essa nova geração, será o autor evidenciado nessa discussão. 4 Camponês era a categoria de análise utilizada pelos pesquisadores pioneiros. Quando for

usado esse termo se trata de uma referência àcategoria analisada por esses pesquisadores.

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se apresenta hoje de forma marcante. Sua formação está associada a um quadro de condicionantes físico-naturais da região e a um conjunto de fatores econômicos, políticos e sociais que remonta de forma indireta aos tempos da atividade pecuária dos Campos Gerais no século XVIII, e mais diretamente à atividade ervateira na região das matas mistas no século XIX. (...) o sistema faxinal apresenta também os seguintes componentes: produção animal – criação de animais domésticos para tração e consumo com destaque às espécies quina, suína, caprina, bovina e aves; produção agrícola – policultura alimentar de subsistência para abastecimento familiar e comercialização da parcela excedente, destacando as culturas de milho, feijão, arroz, batata e cebola; [também a] coleta da erva mate (...) desempenhando papel de renda complementar. (CHANG, 1985, p.1)

Assim, nestas produções científicas sobre os faxinais, bem como nas

que se seguiram até recentemente, quando há referência a criador comunitário

está-se falando de uma prática; à citação de faxinal fala-se de um lócus; e

quando se emprega o termo sistema faxinal quer-se dizer sobre a organização

que conflui as duas definições acima, ou seja, de certa prática em um

determinado local. Estas definições aparecerão, invariavelmente, nos textos

produzidos a partir da década de 1980 das três formas, visto que elas não se

contradizem, apenas se complementam. É o que se vê, por exemplo, na

dissertação de mestrado de Souza anos mais tarde, ou seja, a síntese dos

conceitos formulados por Carvalho nos seguintes termos:

(...) entende-se por criador comunitário um espaço físico constituído tendo por base uma relação social cuja finalidade é a organização comunitária. Já o faxinal é um espaço físico natural existente no interior do criador cuja delimitação é determinada pela presença de espécies vegetais de relevante interesse econômico, como também pela disponibilidade de forrageiras nativas que atendiam a pecuária mantida no sistema. (SOUZA, 2001, p. 30, 31)

Roberto Martins de Souza defendeu sua dissertação de mestrado na

Universidade Federal de Santa Maria, em 2001. Nessa época seu ponto de

vista acerca do tema estava muito ligado ao de Carvalho e Chang.

Posteriormente ele participou ativamente da nova linha de pesquisa

responsável pela crítica ao modelo dos primeiros pesquisadores.

1.2 AS PRIMEIRAS OBRAS E O QUE DIZIAM OS TEÓRICOS DE 1980

Os primeiros relatos sobre os povos de faxinais estão no trabalho de

Carvalho (1984), sobre o que ele denominou de uma crônica dos criadores

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comunitários do Faxinal do Rio do Couro, em Irati, Paraná, como também na

obra de Chang (1985), ambos pela ótica econômica e social do trabalho, sendo

o ponto de vista econômico o prevalecente. Sobre a desagregação do modo de

vida, alertam-nos para seu consequente desaparecimento no tempo e no

espaço a continuar o ritmo - até a época destas produções - dos

acontecimentos.

Em conjunto com as duas obras, completam-nas os escritos de Gevaerd

Filho (1986), em artigo publicado na “Revista de direito agrário e meio-

ambiente”, em que defende o direito à continuidade desse modo de

organização econômica rural e da necessidade de políticas públicas voltadas

ao atendimento das necessidades do pequeno agricultor. Gubert (1987),

também através de um artigo publicado pela mesma revista, aprofunda o tema

com um estudo de caso em região específica, isto é, no Faxinal da Barra dos

Andrade, em Rebouças, Paraná. Analisa a formação da comunidade estudada,

os conflitos advindos principalmente da migração gaúcha a partir da segunda

metade do século XX, e o consequente processo de desagregação dos

territórios e da cultura, alterando o estado de coisas até o momento de

conclusão de sua pesquisa. O dois autores, em comum acordo com as

previsões de Carvalho (1984) e Chang (1985), atentam para a iminente

eliminação do sistema faxinal.

Carvalho (1984), em seu trabalho sob o título “Da aventura à esperança:

a experiência auto-gestionária no uso comum da terra”, procurou descrever o

modo de vida dos camponeses residentes no Faxinal do Rio do Couro, em Irati,

Paraná, cuja exploração comunal das terras se manifestou através da criação

extensiva de animais em grandes áreas de pastos comuns, amparados em

uma agricultura de subsistência e no extrativismo da erva-mate e da madeira.

O autor demonstrou que a organização do criadouro comunitário estava

fundamentalmente ligada à economia do material empregado à necessária

separação entre os espaços de lavoura e do animal. Esta necessidade

engendrou aquilo a que Carvalho denominou de sociologia das cercas – regras

consuetudinárias baseada no costume de sua construção em puxirão5. O

trabalho coletivo para a construção das cercas, a extração e a malha da erva-

5 Segundo Carvalho (1984), puxirão é uma prática de ajuda mútua para a roçada do mato, para

as capinas e também para a construção e manutenção das cercas do criador comunitário.

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mate, a agricultura apoiada numa policultura de alimentos – muitas vezes para

subsistência – o uso comunal das terras para criação extensiva dos animais e,

através dos usos, costumes e da tradição nas relações cotidianas, ou seja, por

meio das normas consuetudinárias, foi possível a organização dos grupos

camponeses de variadas posses materiais e intelectuais com interesses

econômicos comuns.

Carvalho (1984) objetivou investigar as relações de produção que se

davam no criadouro comunitário demonstrando como as transformações

econômicas e sociais, ocorridas em virtude de políticas de desenvolvimento

que privilegiavam um modelo capitalista de produção no campo, são uma das

causas da intensificação do processo de desagregação do criador comunitário

a partir do aparecimento das serrarias. Ressalta-se que o autor anlaisou a

conjugação da produção para o mercado e apontou um sistema complexo e

capaz de responder a novos contextos.

Esta obra inaugurou os estudos científicos sobre os faxinais, ainda na

primeira metade da década de 1980. O trabalho, inicialmente, seria uma

monografia, mas acabou não sendo publicada. Veio ao conhecimento público a

partir da obra de Chang (1985), no ano seguinte. A autora se apropriou dos

conceitos elaborados a partir da pesquisa de campo de Carvalho (1984) para

dar sua contribuição científica sobre o tema, mantendo definições como

criadouro comunitário e a sociologia das cercas. Apesar disso, os autores se

diferenciam porque Carvalho fez um estudo de caso, enquanto Chang está

interessada em propor, a partir do estudo de Carvalho e de seu estudo, um

modelo geral de funcionamento da sociedade e economia dos faxinais.

Em sua dissertação de mestrado, Chang desenvolveu um trabalho

intitulado: “Sistema Faxinal - uma forma de organização camponesa em

desagregação no Centro-Sul do Paraná”. Este estudo vai mais longe ao

analisar a origem, ou seja, o processo de formação do sistema faxinal.

Também analisa os períodos de desagregação das bases do sistema de

produção em torno dos pastos comuns. A autora recorre à análise dos ciclos

econômicos que nos últimos séculos ocorreram no Paraná. Estes ciclos contém

parte da formação e desenvolvimento da agricultura paranaense, e trazem

evidências desde a gênese do sistema faxinal. Através do estudo da História

do Paraná, ela associa a formação dos faxinais à época da grande importância

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econômica conferida à erva-mate a partir do século XIX. Fica evidente, em seu

trabalho, que o mate é fundamental para a compreensão da consolidação do

sistema.

Chang (1985) contou que o sistema foi, principalmente a partir da fase

de consolidação, ameaçado constantemente por forças externas. O problema

advinha das pressões ocasionadas através da demanda de terras por

migrantes – possuidores de costumes distintos em relação ao modo de

organização e exploração da terra – ou da gradual e constante expropriação de

seus territórios através da implantação de uma forma de exploração mais

intensiva da terra, que visava o lucro do capital. Mudanças sensíveis no

sistema faxinal ocorreram quando se transformaram as relações de trabalho

nas regiões de criadouros, a partir das instalações das serrarias, portadoras de

motivos suficientes para impulsionar o processo de desagregação dos faxinais

no Estado. Deste modo, a pesquisa da autora se divide em dois contextos: por

um lado ela analisa as características mais gerais daquilo que ela denomina

por sistema faxinal, e por outro lado analisa as causas do processo de

desagregação desse sistema, atribuindo ao modelo de “modernização” da

agricultura incentivado por políticas públicas apoiadoras da produção

capitalista no campo, principalmente a partir de 1960, grande responsabilidade

pela desorganização do sistema.

Gevaerd Filho (1986), seguindo os passos de Carvalho (1984) e Chang

(1985), buscou traçar um perfil histórico e jurídico dos pastos comuns, ou

compáscuos, desde a Idade Antiga à Contemporânea. Discutiu a origem do

código civil português e brasileiro. Por fim, afirmou a possibilidade de

organização dos moradores de faxinais em torno dos direitos de reprodução

econômica e social, e da possibilidade de melhorar suas capacidades através

do apoio de políticas públicas. O autor reconheceu o intenso processo de

desagregação do modo de vida dos faxinais nas últimas décadas até meados

de 1980, e concluiu sobre a extinção do sistema faxinal em razão do completo

desprezo das formas de vida camponesas pelo Estado. Apesar disso,

asseverou sobre a possibilidade da criação de políticas públicas que

possibilitassem alternativas à sua continuidade, buscando a valorização e

manutenção de sua economia e modo de vida.

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No ano seguinte, em pesquisa específica no município de Rebouças,

Paraná, Gubert (1987), a partir do histórico da ocupação das terras

paranaenses, compreendeu que o esgotamento das terras disponíveis e a

valorização das terras férteis incidiram em pressão econômica sobre as terras

menos férteis do Estado, locais de criadouros comunitários. Além disso, houve

a migração massiva dos gaúchos em direção ao sul do Estado para a compra

das terras dentro e fora do espaço de criação comum. Os primeiros conflitos

aconteciam em virtude de os novos proprietários, que se estabeleciam dentro

dos criadouros, não aceitarem o cercamento das terras de lavoura, como era o

costume. Em meio aos constantes conflitos, a desorganização do criadouro

colaborou para sua substituição por lavouras mecanizadas. O autor também

analisou o faxinal ao se apropriar dos trabalhos de Carvalho (1984) e Chang

(1985). Contudo, construiu o artigo pelo enfoque econômico, social e político,

buscando em poucas linhas dar conta de uma gama complexa de fatores que

levaram à quase dissolução do criadouro na comunidade em estudo. Gubert

chamou a atenção para uma causa da desarticulação dos faxinais, isto é, as

relações de poder pouco favoráveis aos criadores na região. Para ele, a

política no município se mostrou desinteressada e insuficiente para evitar a

“falência” do sistema faxinal, haja vista outros interesses políticos relativos à

legitimação da “agricultura moderna” que agiram em sentido contrário à

manutenção dos faxinais.

1.3 A INFLUÊNCIA E A LONGEVIDADE DA TEORIA DE 1980: A FORÇA

DA HISTÓRIA PARA A CRISTALIZAÇÃO DO OBJETO CIENTÍFICO

Na década de 1990 poucos trabalhos científicos relevantes foram

realizados sobre os faxinais. Contudo, ganhou notoriedade o tema levantado e

debatido desde 1980 ao ponto de o IAP realizar pesquisas e levantamentos de

dados acerca dessas comunidades e de suas situações, desde então. Ainda

nos anos de 1990 foi promulgada o Decreto Estadual nº 3.446/97 para criar as

Áreas Especiais de Uso Regulamentado (ARESUR). Os artigos 1º e 2º

demonstram a influência dos estudos realizados pelos pioneiros, em especial

por Chang, como se pode ver a seguir:

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Art.1º - Ficam criadas no Estado do Paraná, as Áreas Especiais de Uso Regulamentado - ARESUR, abrangendo porções territoriais do Estado caracterizados pela existência do modo de produção denominado “Sistema Faxinal”, com os objetivos de criar condições para a melhoria da qualidade de vida das comunidades residentes e a manutenção do seu patrimônio cultural, conciliando as atividades agrosilvopastoris com a conservação ambiental, incluindo a proteção da Araucária angustifolia (pinheiro-do-paraná). § 1º - Entende-se por Sistema Faxinal: o sistema de produção camponês tradicional, característico da região Centro-Sul do Paraná, que tem como traço marcante o uso coletivo da terra para produção animal e a conservação ambiental. Fundamenta-se na integração de três componentes: a) produção animal coletiva, à solta, através dos criadouros comunitários; b) produção agrícola - policultura alimentar de subsistência para consumo e comercialização; c) extrativismo florestal de baixo impacto - manejo de erva-mate, araucária e outras espécies nativas (PARANÁ, 1997).

Sem dúvida a lei foi elaborada com base nos pressupostos teóricos de

Carvalho e, sobretudo, de Chang, haja vista usar suas definições, inclusive o

termo “sistema faxinal” da segunda autora. Este cenário proposto pela

ARESUR até hoje suscita debates ainda sem solução, pois, de fato, existem

diversas comunidades tradicionais que em virtude de não criarem mais animais

a solta não conseguem ser reconhecidas como ARESUR, embora sua

população se considere identificada com um modo de vida próprio, relacionado

ao faxinal. Este problema será mais bem discutido no capítulo posterior.

O Levantamento preliminar sobre o sistema faxinal no Estado do

Paraná, produzido pelo IAP em 2004, é outro belo exemplo do apego a esses

autores e da longevidade da teoria sobre a possibilidade de desaparecimento

dos faxinais, mesmo depois de passados vinte anos da monografia de

Carvalho (1984). Esse estudo constatou a existência de 44 comunidades de

faxinais no Paraná, destacando que 23 delas estavam classificadas como

regular, ruim ou péssima em relação ao estado de conservação do criadouro

comunitário, cercas coletivas e uso comunal da terra.

Pode-se constatar, com este levantamento, que ainda existe um número significativo de faxinais (44), no Paraná, que mantém o criadouro comunitário e outras características originais do sistema. Mas, ao mesmo tempo, faz-se necessário lembrar que houve diminuição da área destes faxinais e que a tendência está sendo esta, até talvez se acabarem por completo (IAP, 2004, p. 163).

Segue-se nitidamente a tendência suscitada por Carvalho (1984) e

Chang (1985) sobre o desaparecimento dos faxinais no Estado do Paraná.

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O trabalho de mestrado de Souza (2001) sobre o Faxinal Saudade

Santa Anita é destacado aqui para atestar que as ideias contidas nos trabalhos

dos pesquisadores pioneiros, além de influenciar a produção de leis, também

ultrapassaram a década de 1980 na produção de conhecimento. Souza,

através daquele estudo de caso, investigou as transformações sociais e

econômicas irrompidas no período compreendido entre o final do século XIX e

a década de 1990, asseverando que foi a partir de meados da década de 1940

que as indústrias madeireiras penetraram a região tornando-se marco

referencial do processo de desagregação do sistema faxinal ali constituído,

marcando o início do fim do projeto de autonomia dos agricultores camponeses

da região. Souza buscou ao longo do texto identificar as distintas estratégias

adotadas pelos camponeses do Faxinal – desde a sua formação até a fase da

expropriação de seus territórios – almejando encontrar as razões que

desorganizaram e faliram ali o sistema faxinal, bem como suas consequências

para o desenvolvimento da região. Todo esse conteúdo estava ancorado nos

pressupostos teóricos anteriores. Até então, nenhuma novidade sobre o tema

foi inserida no campo de debates, senão estudos de caso que davam conta de

corroborar a teoria, a essa altura já cristalizada no meio científico.

Apesar de certas e importantes limitações – que serão discutidas a

seguir – há de se ressaltar, certamente, grandes contribuições acadêmicas nos

trabalhos desses autores. Contribuíram com formulação de alternativas à

sobrevivência deste modo de vida ao inserir o debate no campo político, e ao

acirrar as disputas internas desse campo na evidente tentativa de criar um

novo ponto de vista que fosse favorável ao camponês, além de pressionar a

atuação governamental na elaboração e efetivação de políticas públicas ao

campesinato. Essas estratégias discursivas foram fundamentais para lhes dar

visibilidade política e social e, sobretudo, às comunidades de faxinais,

relegadas à errônea inexistência por tais políticas em nível estadual e nacional.

Tal “inexistência” política e social – em parte responsável pela expropriação

dos moradores de faxinais – foi denunciada de forma eficaz, sobretudo, pelas

mudanças na legislação brasileira a partir da constituição de 1988, e pelas

consequentes transformações no cenário econômico, político e social brasileiro

que reconheceram a diversidade dos modo de vida do campo e beneficiaram

gradualmente o agricultor familiar nas últimas décadas. Em relação às

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contribuições do debate inserido no campo político a partir das obras clássicas

sobre os faxinais em âmbito estadual podemos citar a ARESUR, apresentada

anteriormente, que possibilitou o uso da verba do ICMS Ecológico. Conforme

LöwenSahr:

Em 1997, após uma série de discussões e mobilizações, foi conquistado o reconhecimento formal da existência do modo de produção auto-sustentável do Sistema Faxinal. Através do Decreto Estadual n. 3.446/1997, o Governo do Paraná reconheceu a existência do Sistema Faxinal, e criou as Áreas Especiais de Uso Regulamentado (ARESUR), para categorizá-los e incluí-los no Sistema Estadual de Unidades de Conservação (PARANÁ, 1997). Os municípios que possuem Faxinais em seus territórios adquiriram o direito de receber, pela Lei do ICMS Ecológico (Lei Complementar n. 59/1991), um maior percentual na distribuição dos recursos do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) que são repassados pelo Estado. Atualmente, 20 dos 44 Faxinais remanescentes encontram-se cadastrados como ARESUR e recebem recursos do ICMS Ecológico. (2005, p. 44, 45)

É claro, a idealização dos ciclos econômicos como fonte explicativa do

processo de formação, consolidação e desagregação dos faxinais, cristalizou-

se de forma hegemônica na academia e na sociedade, assim como a

interiorização dos termos faxinal, criador comunitário, sistema faxinal. Em

suma, postas as categorias de análises, não houve contestações em relação a

elas senão apropriações, pelo menos até 2005.

Essas e outras questões serão mais bem exploradas adiante, quando

será exposta a crítica da nova geração de pesquisadores. Mas, fica claro que

as obras inaugurais da década de 80, a partir das quais outras produções

científicas buscaram se basear tomaram esse rumo na produção de

conhecimento.

A importância de Chang (1985), em especial, foi longeva por ter sido a

pesquisadora que buscou situar historicamente os faxinais no tempo e no

espaço. Ela estava interessada na região Centro Sul do Estado, nos municípios

em torno de Irati. Para realizar esse intento foi necessário analisar a história do

Paraná e identificar por meio dos seus ciclos econômicos as particularidades

que evidenciavam a formação, o desenvolvimento e o declínio da vida social

nessas matas específicas. Sua pesquisa foi tão importante e seu conteúdo tão

vigoroso que os demais pesquisadores que se interessaram pelo assunto

deram continuidade às ideias da autora acerca dos faxinais, especialmente às

definições gerais como o sistema faxinal, assim como a importância dos ciclos

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econômicos na determinação dos faxinais, inclusive seu prognóstico de

desaparecimento dos faxinais em virtude à forte e constante desagregação de

seus territórios e práticas. Portanto, produções posteriores – as já citadas obras

de Gevaerd, Gubert e Souza, e este apenas durante seu trabalho de mestrado

– giraram em torno de comprovar essa teoria através de estudos de caso, ou,

uma vez dada a questão como já considerada, apresentar a demanda por

assistência do Estado através de políticas públicas que viabilizassem a

continuidade desse modo de vida camponês que, em contrário, caminhava em

“vias de extinção”.

As análises de Chang foram contundentes, principalmente pela

introdução de um longo histórico dos faxinais, mesmo que ela tenha

interpretado a história desde a gênese até a desagregação do modo de vida

que desembocaria na sua “extinção” em virtude da “modernização” da

agricultura – que se tornara dominante. Essa foi uma ideia difícil de refutar,

haja vista estar aparentemente tão bem amparada na História do

desenvolvimento rural do Estado. A força da história pareceu tão marcante, tão

incontrolável e tão vivaz, que ninguém – senão uma nova geração de

pesquisadores que foram surgindo no campo duas décadas depois, e frente a

uma nova leitura da realidade – teve sequer um lampejo de contestação. A

história foi crucial para fundamentar aquela “escola de pensamento” sobre os

faxinais. Foi a abordagem histórica que evidenciou de maneira quase

incontestável o criador comum como fator preponderante na prática dos

faxinais, sem esquecer as atividades agrícola e extrativista formando um tripé

econômico.

Sobre a força da história, para Bloch ela é a “ciência dos homens, no

tempo” (BLOCH, 2001, p.55). isto quer dizer que a história deve se preocupar

com as relações sociais ao longo do tempo, com a ressalva de que este tempo

não é só o passado, mas ele se periodiza em futuro e presente também,

atestando o seu vigor como área do conhecimento.

Brandenburg (2010), neste sentido, acredita ser de fundamental

importância a história para aprofundar a análise dos elementos da organização

social no campo. Segundo o autor,

O tema da ruralidade não pode ser tratado sem que se recorra à história da ocupação do território, de suas formas sociais de produção e de organização social. No Brasil, a história da ocupação do território

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foi uma história de lutas e tensões sociais em que a grande propriedade, em certo sentido, foi a vencedora. No plano das lutas sociais poucas foram as situações em que os camponeses obtiveram vitória (BRANDENBURG, 2010, p. 417).

Há, sem dúvida, grande importância nessas produções, pois com elas

se têm a oportunidade de ampliar a visão da história e assim compreender

mais os desenvolvimentos dessa ou daquela questão social. Para Bourdieu, ao

sociólogo é indispensável recorrer à história.

Um dos instrumentos mais poderosos de ruptura é a história social dos problemas, dos objetos e dos instrumentos de pensamento, quer dizer, do trabalho social de construção de instrumentos, de construção da realidade social (...) que se realiza no próprio seio do mundo social, no seu conjunto, neste ou naquele campo especializado e, especialmente, no campo das ciências sociais. (BOURDIEU, 1998, p. 36)

É interessante observar que a sociologia está preocupada com o estudo

das relações entre a sociedade e suas instituições e, por isso, tem seus pontos

de encontro com a história. A sociologia histórica abre espaço para a reflexão

acerca dos conceitos de sociabilidade, cultura, e orienta a elaboração de temas

e problemas da contemporaneidade nos distintos campos das ciências

humanas. Da mesma forma como é possível sentir a importância da sociologia

para história, o contrário é verdadeiro. Bourdieu (1998) deixa isso claro na

afirmação acima. Os diálogos constante entre as áreas do conhecimento são

necessários e profícuos para o alargamento do conhecimento social.

Ressalta-se, desse modo, a importância que tem a História para

compreender o desenvolvimento da vida no campo e, em especial, do modo de

vida ocorrido no interior dos faxinais. A força do empreendimento de Chang

(1985) foi se debruçar sobre os pormenores do processo histórico regional a

fim de encontrar a formação dos criadouros comunitários e da sociabilidade

nos faxinais da região estudada. Com isso, os pesquisadores que deram

continuidade ao trabalho obtiveram uma boa noção histórica sobre o assunto.

Mas, é importante destacar que sem ressalvas construiu-se uma ideia de

faxinais atrelada de maneira indissociável ao criador comunitário. Entretanto,

faxinal e criador comunitário não são sinônimos, o que revela um equívoco

inicial que se cristalizou e mais tarde oportunizou a criação de leis direcionadas

nesse sentido, o que implicou em engessamento da definição dos faxinais e,

consequentemente, refletiu sobre a sociabilidade nos faxinais. Isso, pois, uma

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vez que uma comunidade, ou, parte dela queira ser reconhecida como faxinal e

consequentemente possa ter seu território considerado como ARESUR – o que

acarreta benefícios ancorados nas verbas do ICMS ecológico – esta deve se

amoldar à definição oficial do Estado sobre o que é ser um faxinal.

1.4 ALGUMAS LIMITAÇÕES TEÓRICAS DOS PESQUISADORES

PIONEIROS

Embora uma profunda reflexão seja possível a partir dos trabalhos dos

pioneiros, especialmente no tocante a história desses povos e sobre as

particularidades de cada estudo de caso, havia limitações nessas obras que

hoje são mais evidentes, dadas as transformações políticas e sociais no país

desde a redemocratização e a assimilação por parte da sociedade civil da

Constituição Federal de 1988. Também, no Brasil, houve um alargamento do

instrumental teórico utilizado para analisar a realidade social, e isso têm

contribuído para que as pesquisas sejam ainda mais diversificas e

constantemente atualizadas.

Uma dessas limitações mais pertinentes deixadas pelos pioneiros é a

forma como interpretavam os faxinais, ou seja, como se fossem “resquícios do

passado”, como uma forma de vida em “decadência” no meio rural e com vistas

a “desagregação do sistema”. O contraste do modo de vida nos faxinais para

esses autores era a agricultura modernizada – o que se costuma atualmente

chamar de agricultura convencional, isto é, aquela mecanizada, integrada ao

mercado e que visa o lucro – e, portanto, os agricultores dos faxinais em face

aos modernizados eram considerados “ultrapassados”. Deste modo, a maneira

de preservar esse tipo de organização rural seria através de políticas públicas

que visassem a valorização do modo de vida camponês. Caso contrário, eles

seriam expropriados por força do capital, e desapareceriam como forma de

vida no campo. Nota-se que a diferença para as propostas da nova linha de

pesquisa não tem sua expressão na negação da força e importância dada às

política públicas para realizar o intento da preservação dos faxinais, mas a

forma como essa políticas públicas deveriam ser atribuídas. Os pesquisadores

pioneiros dão pouca ênfase à possiblidade de organização dos moradores de

faxinais na direção da construção de suas demandas, enquanto a nova linha

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de pesquisa conclama a urgência da mobilização política das comunidades

com fundamento na identiddade étnica.

As repetidas aspas entre as palavras no parágrafo anterior servem para

demonstrar que os termos foram usados de forma errônea, preconceituosa, o

que revela limites nas análises destacadas, e por isso merecem ser

relativizadas.

Há, então, até aqui, pelo menos dois pontos de vistas que devem ser

relativizados. Em primeiro lugar, há a previsão – caso não haja uma ação

positiva do Estado – da gradual e ininterrupta desagregação da economia,

cultura e territórios até a inevitável falência do modo de vida tradicional nos

faxinais em virtude do avanço da agricultura mecanizada, que aparece como

fator desestabilizador do sistema. Mendonça (2013) observa sobre o assunto:

pode-se inferir a inadequação de um modelo dicotômico – que tenha por base noções como tradicional x moderno, ou antagonismos como população tradicional x expansão do capitalismo – para pensar as dinâmicas e a historicidade do sistema faxinal. (...) alugmas das pressuposições de Chang impedem que ela reconheça e desenvolva tal complexidade ao se referir ao presente. A historicidade reconhecida no processo de constituição e consolidação do sistema é negada quando, a partir do momento em que este atinge configuração semelhante à do modelo desenvolvido, qualquer mudança passa a ser interpretada como desagregação (transformação se apresenta como sinônimo de desestruturação - cf. 1988: 77). Desagregação esta inevitável, pois a autora, já no início do texto, afirma que a racionalidade da produção capitalista (que é pensada como dada e de expansão óbvia) definiria a propriedade e uso privado dos meios de produção como suposição básica. E, se é o uso comum que determina a inadequação do sistema à epxansão do capitalismo, o criadouro comum, que é apenas uma das características, passa a ser o aspecto fundamental - e, portanto, restrições ao criadouro comum se tornam sinônimo de fim do sistema (MENDONÇA, p. 68, 2013).

Além desse equívoco, em segundo lugar há a ideia de que por viverem

da agricultura familiar de subsistência que não se encaixa mecanicamente aos

moldes do capital, os povos de faxinais são “atrasados”, ou “resquício do

passado”. Essas ideias são contrapostas por outra: esse tipo de organização

social é dotada de uma dinâmica social própria. Seu modo de vida é atual e os

moradores dos faxinais são capazes de se adaptar continuamente às

transformações que o sistema econômico capitalista possa sofrer.

Alexander Chayanov defende esse ponto de vista. O autor tinha como

ponto central nos seus trabalhos o entendimento de que a unidade econômica

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familiar não assalariada operava numa lógica de funcionamento interno que a

distinguia do modo de produção hegemônico da agricultura convencional, que

objetiva o lucro do capital. O autor percebeu o fato ignorado por Kautsky e

Lenin: a inevitável continuidade destas formas de organização camponesas no

interior do sistema capitalista. A partir do início do século XX, na Rússia,

Chayanov iniciou um trabalho que levou décadas na busca de explicar o

modelo de organização das unidades familiares de produção não assalariadas,

estudando nelas a circulação de capital e riqueza, e a relação entre terra,

capital, trabalho e família, atentando para as consequências de seu modo de

vida na economia russa e mundial.

Mesmo que Chayanov estivesse falando da agricultura familiar na

Rússia, e que sua teoria tenha sido tomada como uma teoria geral acerca do

camponês que vive da agricultura de subsistência, esta discussão é relevante

para confirmar a posição contrária ao determinismo do objeto teorizado pelos

autores pioneiros que percebiam os faxinais como relegados ao

desaparecimento, justamente, por não poderem se adaptar ao modelo

econômico prevalecente. Maria de Nazaré Wanderley (1998) conta que

Chayanov elaborou “uma proposta teórica original de compreensão dos

processos internos de funcionamento das unidades familiares de produção na

agricultura” que “guarda, sob vários aspectos, uma atualidade surpreendente”

(WANDERLEY, p. 29, 30). O autor descreve a unidade familiar de produção

ligada de múltiplas formas à economia de mercado e submetida, de maneira

diversa, ao capital financeiro. Apesar de um evidente predomínio daquela

economia e deste capital na economia mundial, Chayanov (1981) diz:

de maneira nenhuma devemos entender sua aplicação a todos os fenômenos de nossa vida econômica. Não conseguiremos progredir no pensamento econômico unicamente com as categorias capitalistas, pois uma área muito vasta da vida econômica (a maior parte da esfera de produção agrária) baseia-se, não em uma forma capitalista, mas numa forma inteiramente diferente de unidade econômica familiar não assalarida

6. Esta unidade tem motivações

muito específicas para a atividade econômica, bem como uma concepção bastante específica de lucratividade. (1984, p. 134)

6 A expressão unidade econômica familiar não assalariada diz respeito “a exploração

econômica da família camponesa ou artesã que não emprega trabalhadores pagos, mas utiliza apenas o trabalho de seus membros” (CHAYANOV, 1981, p. 134).

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Lamarche (1998), em concordância com Chayanov, refere-se à

agricultura familiar como dotada de uma rica heterogeneidade, bem como de

uma ampla capacidade de se adaptar aos diversos ambientes históricos e

conjunturais, rejeitando, portanto, os teóricos de cunho capitalista e também os

marxistas que acreditavam no fim da agricultura familiar, ou, do campesinato

na modernidade. Para Lamarche (1998) é refutável a visão evolucionista

destes teóricos, e a agricultura familiar não pode ser entendida como uma

forma de vida residual, ou condenada ao desaparecimento, pois há nela uma

capacidade de adaptação, ou uma variedade de estratégias de adaptação que

não se acaba.

Chayanov fala que a agricultura não pode ser entendida como um setor

isolado, autônomo, mas ela tem uma integração dinâmica no “processo global

de acumulação do capital” (CHAYANOV apud WANDERLEY, 1998, p. 33). E é

a esta integração dinâmica de que fala Chayanov que parece se referir

Lamarche quando fala sobre a capacidade inesgotável de estratégias de

adaptação da agricultura familiar.

1.5 O CONTEXTO HISTÓRICO E INTELECTUAL DA DÉCADA DE 1980

COMO UM LIMITE AOS PIONEIROS QUE OS IMPEDIU DE ENXERGAR O

AGENTE SOCIAL DOS FAXINAIS

É notável que os pesquisadores pioneiros construíssem seus estudos

buscando soluções aos problemas do sistema faxinal alertando para

importância da elaboração de políticas públicas e pressionando a ação dessas

agências nesse sentido. Referências a programas do governo com vistas à

melhoria das condições da vida no campo são encontrados nestas obras.

Há uma clara intenção nas diretrizes da Secretaria [da Agricultura], não só de permitir como incentivar o pequeno produtor a se organizar livre e automaticamente para que, através de suas lutas e mobilizações, possam atingir melhores condições de produção e comercialização (CHANG, 1985, p. 85).

Chang faz uma citação sobre as ações do governo em curso. Geveard

Filho faz cobranças às ações governamentais na produção de políticas

públicas.

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É possível e, ao que tudo indica, aconselhável, que a experiência do sistema faxinal e dos compáscuos seja resgatada e, principalmente, valorizada como forma alternativa de desenvolvimento comunitário. A sua viabilização como modo rentável e válido de exploração comunitário e autogestionário de terra é factível e coerente. Milhares de pequenos agricultores e criadores seriam com isso beneficiados e o projeto que se destinasse a viabilização econômica dos faxinais poderia, por seu ineditismo e inevitável sucesso, servir como modelo para o aproveitamento de outras áreas que apresentam o mesmo grau de adequação a uma exploração agro-silvo-pastoril. Para que isso aconteça, contudo, é preciso que a atenção dos responsáveis pela condução e elaboração da política agropecuária do Estado seja despertada para a questão (1986, p. 66).

Apesar dessa preocupação sempre presente, parece que os moradores

de faxinais pelas suas características particulares, acabam simbolizando, ou

representando o camponês em geral. O faxinalense – termo que só emergiu no

século XXI – ainda não era percebido como tal. Era percebido, dentre outras

definições, como agricultor, camponês, criador, roceiro, lavrador. Os próprios

moradores de faxinais não se identificavam como faxinalenses, embora muitos

pudessem ter a clareza de que tinham um modo de vida diferenciado,

específico em relação aos demais produtores rurais.

Embora os conteúdos das pesquisas científicas nesses trabalhos

versassem sobre o fato da existência social do campesinato nos faxinais, os

autores ainda não os definiam como comunidades tradicionais, mas como

pequenos agricultores, ou camponeses. Apesar disso, é possível notar que há

uma identificação do agente nessas obras, sendo citadas suas agremiações, a

participação em associações de moradores.

A comunidade se acha relativamente organizada através de uma associação dos moradores, que tem encaminhado inúmeras reivindicações locais junto aos órgãos públicos municipais e estaduais (GUBERT, 1987, p. 34).

Mas, se por um lado os agentes existiam na realidade concreta em

alguns tipos de associações, por outro lado essa análise é notadamente

secundária nessas produções. É evidente que os pesquisadores pioneiros não

estavam preocupados em iluminar o agente dos faxinais, mas sim – e isso foi

fundamental para a formação intelectual sobre os faxinais nessa efervescente

fase de transformações políticas e sociais pelas quais o país passava – em

destacar a urgência de mudanças nas políticas públicas federais e, sobretudo,

estaduais no sentido de valorizar e manter o pequeno produtor no campo,

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revelando seus aspectos econômicos específicos e buscando uma forma

produtiva “mais racional” com vistas a viabilizar a vida camponesa para que,

apesar do contraste com a forma capitalista de exploração da terra, pudesse

haver continuidade desse modo de vida nos faxinais.

É possível dizer – como hipótese sobre o porquê não se destacou o

agente dos faxinais – que os pesquisadores pioneiros estivessem marcados,

em certa medida, pelos vínculos institucionais a que estavam inseridos, mas

principalmente pelo arcabouço teórico em evidência no país. Apesar de certa

liberdade na construção de sua obra, Carvalho estava, ao mesmo tempo,

prestando consultoria ao Instituto Agronômico do Paraná (IAPAR). Chang

trabalhava com pesquisas socioeconômicas no mesmo órgão. Gevaerd Filho e

Gubert estavam vinculados ao Instituto de Terras, Cartografia e Florestas

(ITCF)7, o primeiro como assessor jurídico e o segundo como agente desse

órgão. Dessa forma, o conteúdo dos seus trabalhos podem ter apresentado

reflexos das específicas relações sociais decorrentes da dependência

administrativa, maior ou menor, em relação aos órgãos aos quais estavam

vinculados como funcionários ou prestadores de serviços.

Apesar disso, é necessário destacar que havia no Paraná um ambiente

favorável à produção de conhecimento que enxergasse o pequeno produtor e

suas necessidades de diversas ordens. Os pesquisadores destacados acima

estavam de certa forma empenhados em denunciar o descaso do país para

com o campesinato e em promover o debate através da produção intelectual

por uma melhor condição de vida dos trabalhadores do campo. O governador

daquele período, José Richa, foi eleito pelo povo e era considerado opositor da

ditadura militar, o que pode ter contribuído para uma produção de

conhecimento mais independente da posição oficial do Estado.

Por um lado, há de se ressaltar o contexto histórico e político do país.

Nessa época o Brasil viveu os últimos anos de ditadura militar em meio a

graves problemas sociais. Ao mesmo tempo ganhou força movimentos políticos

que reivindicavam a redemocratização do país e, portanto, direcionavam os

debates na arena política nesse sentido. Depois de vinte anos vivendo sob o

regime militar (1964-1984), a população pôde escolher outra vez e

7 O ITCF foi incorporado pela Secretaria de Agricultura e do Abastecimento do Paraná (SEAB).

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gradualmente os seus governantes através do restabelecimento do sufrágio

universal no decorrer da década de 1980. No entanto, esse processo foi lento,

progressivo e controlado pelos mantenedores do sistema para que eles

mesmos não fossem lesados no retorno à democracia. Houve muita influência

de um contexto de pouca liberdade de expressão no país, e de produções

científicas encomendadas pelo Estado, por isso, de certo modo, direcionadas

em seus resultados.

Por outro lado, órgãos como IAPAR, ITCF e a Secretaria de Estado

Extraordinário de Coordenação da Reforma Agrária no Paraná (SECRA) –

além de outros em esfera estadual – em virtude dessas mudanças que

incidiram sobre o processo de abertura democrática, tiveram proporcionadas

lentamente a recuperação da produção intelectual e a relativa autonomia dos

órgãos do governo no sentido do debate em torno das questões concernentes

ao campesinato. Esses debates foram amplamente amparados por um lado,

em obras como as de Marx e Lênin, e por outro lado, nos textos versados

sobre a formação social e econômica brasileira como as publicações de Sérgio

Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Octavio Ianni, Paulo Sandroni, dentre

outros. Essas agências governamentais, que até a década de 1980 tinham

pequena participação na elaboração de políticas públicas em virtude da

predominância nessa área das agências federais, começaram a ganhar espaço

pelo menos na produção de conhecimento, de informações e de ações que

visavam construir políticas públicas que atendessem o pequeno produtor

paranaense.

É possível que esses autores estivessem interessados em trazer luz

sobre o problema social dos pequenos produtores e, sendo assim, não

pouparam esforços para construir um conhecimento fidedigno aos seus ideais

e com comprometimento sobre a causa pela qual se debruçavam. Assim, o que

produziram estavam de acordo com aquilo que podiam enxergar naquele

campo, sem se esquecerem de publicitar as demandas que se impunham por

força do contexto de onde emergia o objeto de estudos.

Mas, também é importante que não seja descartada a hipótese de que

essas relações políticas e administrativas, em conjunto com as posições dos

autores no interior das agências governamentais e somadas ao contexto social

e político brasileiro, podem ter resultado em graus diversos na limitação da

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autonomia dos autores na produção do conhecimento. E, dessa forma, é

possível que se tenha inibido a primazia do agente que tinha potencial para

lutar por suas próprias demandas. O agente foi, quase sempre, claramente um

aspecto não primordial das discussões.

Existiam também desde a década de 1960, embora com limitado apelo

popular, as lutas pela Reforma Agrária no Brasil. Durante os anos 1980 houve

um renascimento dessa luta e, Segundo Medeiros:

No final da década de 1970 e início dos anos 1980, surgiram novos personagens na luta fundiária, fruto da conjugação dos resultados do processo de modernização, da ruptura de relações sociais e de novos valores que passam a ser disseminados, em especial pela igreja. (...) Entre os novos personagens que não substituíram, mas se agregaram aos já existentes, estavam, entre outros, os “atingidos por barragens” (...), seringueiros que (...) resistiam à destruição dos seringais nativos e à sua substituição por pastagens; pequenos produtores, em especial no sul do Brasil, excluídos dos benefícios da modernização que ou perderam suas terras, ou percebiam que seus filhos dificilmente teriam acesso a esse bem e constituíram o contingente que acabou por conformar a identidade política de “sem-terra” (MEDEIROS, 2003, p. 30).

Novos atores surgiram para representar novas demandas e evidenciar

um agravamento da luta pela terra. Segundo Wagner (2004) os camponeses

que tinham um modo de vida baseado no uso diferenciado da terra em relação

ao modelo capitalista, a partir da década de 1980 voltaram a demonstrar força.

Grupos camponeses mobilizados em movimentos sociais rurais, através de

intensa pressão, lutaram pela reforma agrária em caráter de urgência. Como

consequência dessa luta, o I Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), de

1985, estabeleceu pré-condições para a discussão do problema da pertença

dos sistemas de uso comunal da terra e de sua importância econômica. O

PNRA engendrou veementes debates no meio político e intelectual brasileiro

sobre a chamada “Questão Agrária”. Antes disso, o tema já havia ganhado

visibilidade suficiente através de seus defensores no meio intelectual e político.

José de Souza Martins conclui que

Uma reforma agrária distributivista constituiria (...) uma proposta inexeqüível historicamente, como só pode ser qualquer proposta que advogue a reforma das contradições do capital sem atingir o capital e a contradição que expressa: a produção social e a apropriação privada da riqueza. O questionamento da propriedade fundiária, levado a efeito na prática de milhares de lavradores neste momento, leva-os, mesmo que não queiram, a encontrar pela frente o novo barão da terra, o grande capital nacional e multinacional. Já não há como separar o que o próprio capitalismo unificou: a terra e o capital; já não há como fazer para que a luta pela terra não seja uma luta

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contra o capital, contra a expropriação e a exploração que estão na sua essência (MARTINS, 1981, p. 177).

Quando se afirma que o instrumental teórico proporcionava pouca

abertura às análises no sentido da valorização do agente social nos faxinais,

entende-se que em parte é pelo fato da discussão sobre a “questão agrária” no

Brasil ser fortemente influenciada por teorias marxistas. Esta compreende a

história da humanidade como a história da luta de classes, portanto, os

movimentos sociais eram aqueles que atendiam reivindicações classistas.

Sendo assim, o pequeno produtor poderia ser representado por uma classe, e

os faxinalenses eram concebidos como componentes dessa classe, mas não

constituíam por si só uma classe. Nesse sentido, é possível que os pioneiros

não tenham percebido a oportunidade de classificá-los como agentes sociais

que pudessem ser representados como povos tradicionais, ou que pudessem

ser representados através de movimentos sociais organizados politicamente na

luta por direitos. Além do mais, mas não totalmente, o movimento social de

parcelas específicas da sociedade no Brasil era pouco difundido, e mesmo o

Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) era algo novo surgido em

meados da década de 1980.

Em relação ao direito à territorialidade, há pelo menos duas discussões

importantes. Em primeiro lugar, havia descaso em relação às definições dos

pastos comuns no Brasil. Conforme Gevaerd Filho (1986), o código civil

brasileiro de 1916 – que foi substituído apenas pelo atual código civil brasileiro

em 2002 – ainda definia os pastos comuns como compáscuos. O autor

destacou que esse código era formado por conta de ligações históricas, a partir

do código civil português, sendo, portanto, uma derivação dele. Afirma que em

ambos havia o descaso dos legisladores com a questão dos pastos comuns.

Sobre as razões desse descaso, o autor demonstrou a influência do Direito

Romano a partir do século XIV em Portugal, época em que os portugueses iam

à Itália buscar nas universidades esse conhecimento para aplicá-lo às leis

gerais do direito em seu país. Como o Direito Romano era direcionado ao

subsídio legal de um modo de produção específico, não fazia referência aos

pastos comuns senão sumariamente pelo desinteresse que essa prática

representava para o sistema que a legislação afirmava. De semelhante modo,

também os países que de lá tiraram a inspiração para seus códigos civis

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procediam em relação aos já marginalizados pastos comuns localizados em

seus domínios.

Para além da falta de reconhecimento dos pastos comuns, apenas a

partir da Constituição Federal de 1988 é que foram definidas as terras

tradicionalmente ocupadas, embora apenas as terras indígenas e quilombolas

estivessem aí incluídas. Porém, com debates engendrados por Almeida (1989),

a questão se tornou importante para uma redefinição das terras

tradicionalmente ocupadas e de população tradicional. Por conseguinte, foi

decisiva a discussão para os faxinalenses anos mais tarde.

É possível, então, argumentar que houvesse uma carência

paradigmática à época das produções da década de 1980 de um instrumental

teórico, jurídico e político que permitisse enxergar os faxinalenses como povos

e comunidades tradicionais, ou que permitisse de forma amplamente

direcionada e clara entendê-los como potencialmente capazes de organizar um

movimento social em sua defesa. No entanto, apesar dos movimentos sociais

no Brasil terem em sua maioria, à época, um caráter classista, muitas obras

estavam sendo produzidas sobre os movimentos sociais que iluminavam um

novo ator8 em formação na sociedade. Alain Touraine, por exemplo, estava

desde a década de 1960 discutindo alguns títulos de suas obras, como a

Sociologie de l’action (1965), A sociedade post-industrial (1970), ou O

retorno do actor (1984). Embora essas obras não estivessem falando sobre

povos tradicionais especificamente, discutiram os movimentos sociais de

uma ótica que ultrapassou as representações de classe, e que até

desmistificou esta visão dos clássicos.

8Aqui se utiliza o termo ator ao invés de agente. O agente é o conceito de Bourdieu que define

o faxinalense nesse trabalho. Todavia, a nova geração de pesquisadores caracteriza o faxinalense por agente, ator ou sujeito e, por isso, o termo surge aqui. O termo ator diz respeito a uma concepção acerca da agência, da ação humana, que se diferencia daquela compreendida pelo termo “classe”, que é uma categoria de análise comumente associada à Marx e às várias correntes marxistas. Esse conceito reintroduzido nas Ciências Sociais por Touraine era pouco utilizado no Brasil. Grosso modo, o conceito de ator está muito próximo do conceito de sujeito, que mais tarde Touraine assumirá em sua obra. E isso porque o ator se define em sua obra como aspiração e como ação por transformações sociais profundas e de caráter emancipatório, fundamentado em sua identidade cultural, em constante contraposição ao modelo societário hegemônico. E se apresenta não necessariamente de forma coletiva, haja vista a individualidade ser inerente ao conceito de ator social em sua obra. Dessa forma, entende-se que já havia sido publicada na década de 1980 uma teoria que se apresentava como alternativa à categoria classe, contudo, pouco era conhecida ou utilizada e, assim, o modelo teórico dominante influenciou a produção científica brasileira.

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Os actores da sociologia clássica são apenas definidos como sendo favoráveis ao progresso ou opondo-se a ele. (...) A historiografia associada a esta concepção da sociedade (...) conferiu uma importância central à idéia de progresso, à formação da sociedade moderna e dos Estados Nacionais. E isto, passando pouco a pouco de uma inspiração romântica, confiante perante a vontade criadora dos indivíduos e das nações, a uma visão menos dinâmica, em que o estado da infra-estrutura determina a situação das forças políticas e das representações culturais. O actor, primeiro ocultado pela lenda dos séculos, é depois esmagado pelo determinismo econômico (TOURAINE, 1984, p. 19).

Touraine propôs uma interpretação da sociologia baseada na ação do

ator. As críticas à construção sociológica clássica em sua obra vão contra os

determinismos históricos e econômicos e definem uma nova abordagem da

sociedade que enxerga o ator em constante conflito pela tomada da direção de

sua história. Touraine define uma nova representação da vida social.

[A] sociologia clássica (...) reduzia a análise da acção social à procura da posição do actor no sistema. A sociologia da acção recusa esta explicação do actor pelo sistema. Pelo contrário, vê em toda a situação o resultado das relações entre actores, definidas pelas suas orientações culturais e pelos conflitos sociais. Se dá uma importância decisiva à noção de movimento social, é porque este não constitui uma resposta a uma situação, mas sim o questionamento da relação de dominação que permite a um actor – a que podemos chamar classe dirigente – gerir os principais recursos culturais disponíveis. Não basta, e é mesmo perigoso, falar de determinismos sociais, pois o actor individual, ao mesmo tempo que é condicionado por uma situação, participa na produção desta situação (TOURAINE, 1984, p. 26).

Sobre a relação dos atores sociais descrita por Touraine, é conveniente

dizer que o ator dos faxinais só é faxinalense por que através das relações

sociais em que se insere se autodefine como tal, e, portanto, assume suas

orientações culturais e se dispõe a encarar os conflitos sociais aos quais está

exposto ao se identificar dessa forma. Para Almeida

é o limite destas relações sociais que tem definido este povo e não o conteúdo da condição de faxinalense. Na medida em que os agentes sociais que vivem e trabalham nos chamados faxinais utilizam a identidade de faxinalense para se autodefinir ou para categorizar-se a si mesmo e a outros com fins de interação, formam movimentos no sentido político-organizativo (ALMEIDA, 2009, p. 5).

É possível entender, destacando as obras de Touraine, que ao mesmo

tempo em que as obras clássicas sobre os faxinais estavam sendo produzidas,

já havia no meio acadêmico uma discussão relevante sobre o ator social e a

possibilidade de uma nova posição deste ator na realidade concreta que

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contradizia àquela proposta pela produção intelectual sobre os faxinais. Ora,

ainda no final da década de 1980, esta possibilidade ganha um força motriz na

Constituição de 1988, e o instrumental teórico conta com a fundamental obra

de Almeida (1989) sobre as terras tradicionalmente ocupadas. A Constituição

de 1988, segundo Almeida (1989), redefiniu o conceito de populações

tradicionais e se antes eram percebidas como um sistema atrasado, um

resíduo, um vestígio do passado, a partir de 1988 o tradicional ganhou

dimensão política de identidades coletivas, dotado de capital de relações

políticas, apoiado em um fator étnico. A identidade étnica passou a indicar

identidades objetivadas em movimentos sociais.

Embora os debates existissem, vários autores que seguiram as

produções sobre os faxinais continuaram sistematicamente a distanciar do

tema central o agente do faxinal na reconstrução desses espaços de

reprodução social. As pesquisas ainda estavam atreladas às ideias dos

pioneiros de modo que mesmo com novas contribuições e com a ampliação do

conhecimento sobre as causas da formação e desagregação dos faxinais, e

mesmo com os novos estudos de caso, pouco era proposto em termos de

novidade no sentido de iluminar o agente social da ação nos faxinais. O

determinismo do objeto impregnou as obras sobre o tema e manteve

escondido o agente que nunca passava a ser objeto central das produções. O

destaque era dado ao papel desempenhado pelos antagonistas nas

transformações que geravam ou estavam por gerar a falência do sistema.

1.6 PRODUÇÃO INTELECTUAL E CRÍTICAS DA NOVA GERAÇÃO DE

PESQUISADORES SOBRE A OBRA DOS AUTORES CLÁSSICOS

Um novo olhar sobre a temática dos faxinais engendrou críticas à

produção intelectual elaborada desde os pioneiros. Uma nova linha de

pesquisa aqui tratada por nova geração é assim chamada porque surge no

momento de construção política do faxinalense, e está ligada a uma corrente

teórica interessada no movimento social dessas comunidades tradicionais. Ou

seja, ela destoa do trabalho dos pioneiros por enxergar nos moradores de

faxinais os agentes da ação com um viés político emancipatório, dotados de

demandas a serem pleiteadas com base na identidade étnica, e em práticas

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socioprodutivas similares, relações de sociabilidade e modo de vida e territórios

considerados tradicionais. As produções focam na luta dos faxinalenses

através do movimento social.

Observa-se a emergência dos “povos dos faxinais” como grupo portador de identidade. Esse “novo” elemento se constitui num revigoramento do “sistema faxinal”. Longe da ideia da sua extinção, esse grupos constróem o seu presente como tempo de conquistas, posicionando-se como sujeitos ativos de todo o processo (SHIRIASHI NETO, 2009, p. 25).

Sobre o período de organização do movimento social – 2005 a 2009 –

características marcantes, na ótica de Almeida (2009) se devem a dois fatores:

de um lado a consolidação das formas organizativas em torno de categorias de autodefinição e, de outro lado, a um intenso processo de mobilização e de organização política dos faxinalenses em torno de direitos territoriais. Podem ser destacados neste processo a afirmação identitária coletiva e a autonomia organizativa militantemente construída pelos que vivem nos faxinais. Suas conquistas podem ser traduzidas, de modo resumido, pelo atendimento de reivindicações convertidas em leis estaduais e municipais. (...). Na medida em que os agentes sociais que vivem e trabalham nos chamados faxinais utilizam a identidade de faxinalense para se autodefinir ou para categorizar-se a si mesmo e a outros com fins de interação, formam movimentos no sentido político-organizativo (ALMEIDA, 2009, p. 5).

Bertussi afirma a necessidade de compreender a territorialidade e a

tradicionalidade dos faxinais, ao mesmo tempo em que se busca compreender

a existência de um identidade étnica.

O surgimento da organização de representação dos povos de faxinais é decorrente dos inúmeros conflitos por eles encarados. Embora a tônica seja a da disputa, principalmente fundiária, ainda há duas questões acerca da realidade desses povos que vieram a público com a formação do movimento social: a territorialidade particular coadunada com a tradicionalidade da ocupação da terra e o fortalecimento de uma identidade étnica. O presente trabalho visa abrir alguns caminhos para a melhor compreensão da territorialidade e da identidade étnica desses povos (BERTUSSI, 2009, p. 153).

Não se quer dizer com nova linha de pesquisa senão que muitos

pesquisadores produziram obras voltadas para evidenciar o potencial criador

do agente social tradicional no Brasil. Quilombolas, indígenas, ilhéus,

pescadores artesanais, faxinalenses, quebradeiras de cocos, cipozeiras, dentre

outros povos tradicionais estiveram no cerne da questão de muitos trabalhos

acadêmicos e na capa e conteúdo de vários livros técnicos e científicos.

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O livro Terras de Faxinal (2009), organizado por Alfredo Wagner Berno

de Almeida e Roberto Martins de Souza, exemplifica o que se quer dizer

quando mencionado os termos “linha de pesquisa”, e “nova geração”. Nesse

livro, há diversos autores e artigos, e a maioria deles está interessada em

promover o caráter de luta dos faxinalenses em torno de suas demandas

sociais e direitos, principalmente, sobre o território.

Roberto Martins de Souza também defendeu sua tese de doutorado sob

o título: “Na luta pela terra nascemos faxinalenses: uma reinterpretação do

campo intelectual de debates sobre os faxinais”. Ele e outros pesquisadores –

que participaram com artigos no livro Terras de Faxinal – Alfredo Wagner

Berno de Almeida, Joaquim Shiraishi Neto, e Mayra Lafoz Bertussi são alguns

dos componentes da nova geração de pesquisadores. Não se quer afirmar de

modo algum que essa linha de pesquisa tenha uma organização central. É

possível perceber, inclusive, que não há um consenso epistemológico, teórico,

político e metodológico entre eles.

Há, de forma marcante por parte desses autores, a identificação dos

povos tradicionais como grupos autônomos, e em luta pela sua emancipação,

por seus direitos, ou seja, não há mais apenas a denúncia de suas mazelas e

precariedades sociais, e nem se limitam a reclamar políticas públicas para

evitar a extinção desses grupos sociais. Inclusive não se fala sobre extinção,

mas sobre permanência e contínuo desenvolvimento das forças produtivas

faxinalenses por conta da organização social e política, apesar do

reconhecimento dos perigos enfrentados nos faxinais face aos grupos que

vivenciam formas de uso da terra que se pautam no modelo do agronegócio,

ou, que se baseiam em outras formas de produção capitalista que não visam o

uso comum dos recursos naturais como fazem os faxinalenses. Entretanto,

para esses pesquisadores, o destaque está na valorização desses povos como

agentes da ação em seus territórios, povos que estão se identificando,

reconhecendo-se, e praticando a ação política em favor da sua emancipação

como seres humanos.

É importante expor o conteúdo das obras dos pesquisadores da década

de 1980 que são criticados a partir, sobretudo, mas não exclusivamente, dos

trabalhos de Souza. Subdividiu-se aqui a crítica em três pontas, ou seja:

economicismo, evolucionismo e determinismo. A partir desses pontos,

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procurou-se nas obras dos pioneiros o conteúdo que deu lugar a essa crítica. O

texto a seguir é uma interpretação em forma de um diálogo entre a obra dos

pioneiros e a crítica do autor. Por fim, será evidenciada no texto de Porto

(2013) uma análise sobre a obra recente de Souza, principal autor da nova

geração.

Através da breve apresentação das produções científicas dos

pesquisadores pioneiros realizada até aqui, foi possível perceber o viés

econômico predominante em seus conteúdos. Almeida, ao escrever sobre os

povos e comunidades tradicionais, salientou que “há uma visão economicista

que prevalece e precisa ser relativizada” (ALMEIDA, 2009, p. 10), o que revela

ser tal visão há tempos construída e reproduzida. Os motivos de formação,

consolidação e desagregação do sistema faxinal parecem ter sido focados por

esse ponto de vista.

O criador comunitário vai se originar com o desenvolvimento das áreas de lavoura. Na época, início do século, havia a alternativa de se cercar tais áreas para se evitar a presença de animais. Mas, o crescimento das áreas de lavoura determinou o processo inverso, ou seja, cercar as áreas de pastoreio. Assim, a idéia básica do criador comunitário se apoiará em dois elementos: separar as áreas de pastagem das de lavoura e economizar material para se fazer a cerca (CARVALHO, 1984, p. 16).

O autor continuou mais adiante em sua análise onde afirmou que

o tripé econômico representado pelo extrativismo (madeira e erva-mate), lavoura e criação de animais se interrelacionam para manter funcionando o criador comunitário (CARVALHO, 1984, p. 37).

A origem do criadouro comunitário, para Carvalho, estabeleceu-se,

dentre outros motivos, por causa da economia de materiais para a construção e

manutenção das cercas. Também destacou outros fatores econômicos que

viabilizaram o funcionamento das relações sociais, como o extrativismo, a

lavoura e a pecuária.

Na análise de Chang (1985) há a percepção de que

o surgimento e a consolidação do sistema faxinal estão intimamente ligados à economia ervateira, a qual foi o principal responsável em conferir ao sistema o caráter coletivo, consubstanciada sob a forma de criadouro comum. (...) o sistema faxinal [é também] uma manifestação das relações capitalistas de produção, embora não específica. (...) a análise sobre a desagregação do sistema evidenciou que as relações especificamente capitalistas de produção vêm deslocar as relações anteriores, na medida em que as forças capitalistas avançam sobre o campo. O modelo de desenvolvimento dos anos 60 e particularmente o modelo da modernização agrícola têm sido as duas referências fundamentais para compreender o

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processo de transformações ocorrido no sistema faxinal (CHANG, 1985, p. I).

A autora (1985) descreveu o sistema faxinal como indissociável às

relações puramente econômicas que guiaram ao desenvolvimento autômato de

sua história, desde seu surgimento à fase de desagregação. Em concordância,

Gubert coloca que

O criador comunitário vem a ser uma área grande de terra, (...) florestada e cercada em todo o seu perímetro, encravada entre as áreas de lavoura que, por razões históricas e econômicas se concentrou nos vales (GUBERT, 1986, p. 38).

É nítido, verificadas as análises da origem do criadouro comunitário e de

sua formação econômica e social, bem como o processo de desarticulação

desse sistema, que a interpretação dos autores pioneiros reduz o campo social

ao campo econômico. Nesse sentido, os criadores comunitários existem e

sofrem alterações em consequência das transformações ocorridas na esfera da

atividade econômica dominante e das pressões advindas dela. É como se os

ciclos econômicos estivessem determinando essas transformações sem levar

em conta que eles, moradores dos faxinais que mantém o modo de vida

tradicional, estão reagindo desde as primeiras associações. Assim, a razão

econômica capitalista tende a limitar o agente dos faxinais a espectador dos

movimentos econômicos, com poucas condições de agir na determinação de

seus destinos.

A longevidade dessas definições pode ser comprovada pelas marcas

deixadas nos trabalhos posteriores sobre o tema dos faxinais. Na dissertação

intitulada A contribuição de florestas de araucárias para a sustentabilidade dos

sistemas faxinais, defendida em 2005, encontra-se o seguinte:

Para compreendermos (...) a origem dos sistemas faxinais, faz-se necessário o retorno ao início da formação econômica do Paraná, consubstanciados nos diversos ciclos econômicos, e no quadro geral das diversas forças econômicas e sociais que contribuíram para a formação das organizações rurais do tipo Sistema Faxinal (SILVA 2005, p. 33).

Silva (2005, p. 30), por falta de grandes trabalhos que ressaltassem a

formação do sistema faxinal, fez uso na ocasião da monografia de Carvalho

(1984) e da dissertação de Chang (1985), obras produzidas há duas décadas.

Ora, a tríade, “gênese, consolidação, desagregação” do sistema faxinal

pode ser interpretada como uma linha evolutiva da história, levando a

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compreender os ciclos econômicos – e as alterações na economia e sociedade

ocorridas no Estado do Paraná – como responsáveis pela formação desse

sistema de organização produtiva. Sobre isto Souza assevera:

Guardando fortes semelhanças com a abordagem teórica utilizada por Carvalho, Chang pautará sua discussão sobre os faxinais numa perspectiva histórica em conformidade com as etapas de um desenvolvimento linear, evolutivo e contínuo, onde tal modalidade tradicional de “uso coletivo da terra” constitui-se e desagrega-se gradativamente, sempre tendendo a fragmentar-se, de modo descensional (SOUZA, 2009, p. 43).

O evolucionismo destacado toma a aparência de verdade, e por isso

segue sem maiores análises, críticas, questionamentos ou mudanças sensíveis

nas posteriores produções científicas até, pelo menos, 2005. Vemos em Chang

a ênfase dada aos ciclos econômicos.

A análise dos ciclos econômicos ocorridos no Paraná, ao longo dos séculos, seus auges e declínios, muito nos auxiliou na interpretação do processo evolutivo dos faxinais; suas primeiras conformações, seus estágios de desenvolvimento e de sua eventual desagregação em decorrência da adoção de uma nova estratégia de desenvolvimento rural a partir de meados dos anos 60 (CHANG, 1985, p. 4, 5).

Duas décadas mais tarde surgem critica à interpretação de Chang.

Seu esquema analítico abrange as transformações na economia paranaense buscando sua “origem”, assim como, as razões de seu “término”, correlacionando às fases deste sistema – gênese, consolidação e desagregação – aos ciclos econômicos predominantes no Paraná. Tal esforço de interpretação historicista estabelece uma continuidade e um sentido uniforme as diversas fases do “sistema faxinal”, associando a presença de condições favoráveis a sua “formação” durante as fases iniciais do desenvolvimento da economia do Paraná, remetendo, portanto, esta modalidade de uso comum a uma referência estática e imutável ao longo do tempo, como resultado de condições históricas passadas, onde as fases anteriores ao desenvolvimento do capitalismo agrário permitiam as condições para o seu surgimento (SOUZA, 2009, p. 43).

E:

o procedimento que procura o conceito na “origem” ou “gênese” relacionado às distinas formas de organização social, não passa impunemente, pois fica subentendido que a categoria jurídica está relacionada às formas organizativas consideradas mais “atrasadas”. Em outras palavras, o esforço teórico empreendido fica “refém” do próprio procedimento utilizado. Afinal, as “categorias jurídicas” que poderiam explicar as situações observadas encontram-se praticamente à margem do direito, que se “moderniza” com a edição do Código Civil de 1916 (SHIRIASHI NETO, 2009, p. 23).

Ademais, o caráter evolutivo na análise dos faxinais engendrou um

discurso científico de cunho determinista em que a constante desagregação do

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sistema faxinal desembocaria, a continuar o ritmo vigente do avanço da

agricultura convencional sobre seus territórios, na sua inevitável extinção.

Portanto, esse modo de vida podia ser visto como algo que pertencia ao

passado, pois no presente as configurações políticas, sociais e econômicas

não podiam mais garantir sua existência. Exemplo claro pode ser visto em

Chang, que previu o fim do sistema faxinal e se aventurou a estipular uma data

para tal acontecimento.

cremos que podemos sugerir que, se mantido esse ritmo de transformação analisado e desenvolvido nesse trabalho, cremos que dentro de 10 a 12 anos, o sistema faxinal não mais fará parte do setor produtivo rural do Paraná, e sim será lembrado, como parte da história da agricultura desse Estado (CHANG, 1985, p. 189).

Gevaerd Filho corroborou a ideia de Chang ao acreditar igualmente na

extinção do sistema, salvo uma mudança na postura governamental que viesse

a agir em sentido contrário, ou seja, no sentido de manutenção da forma de

vida.

é inevitável concluir que o sistema faxinal não chegou as vias de extinção de forma natural e espontânea, mas foi condenado a extinção a partir de uma postura governamental de consciente abandono e descaso (GEVAERD FILHO, 1986, p. 66).

Gubert, apesar de discutir questões relacionadas a necessidade de

manejo mais racional dos animais e da preservação do faxinal às futuras

gerações, atentou para a eliminação do sistema.

Concluímos que o faxinal deva ser preservado, manejado e enriquecido, em benefício desta e das novas gerações, pois são muitas as conseqüências, previsíveis e imprevisíveis, que advirão de sua próxima, e infelizmente tão próxima eliminação (GUBERT, 1987, p. 36).

Contudo, para Almeida (1989) as interpretações econômicas brasileiras

baseiam-se no uso capitalista das terras e por isso dão, erroneamente, como

“atrasados” e “fadados ao desaparecimento” o sistema de uso comum das

terras, que é interpretado como “forma residual”, “sobrevivente do sistema

feudal”, de um modo de produção que parece mais um “vestígio do passado”.

Isso porque ela é um sistema considerado como um empecilho à expansão

capitalista no campo, um impedimento às negociações do mercado de terras.

determinados autores vem tratando o “sistema faxinal” como se estivesse em “processo de desagregação”. Tais análise, eivadas de pré-noções , dificultam uma compreensão mais rigorosa da questão, pois atribuem o “atraso” do sistema , a sua incompatibilidade ao

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desenvolvimento da agricultura no Estado do Paraná, que se “moderniza” (SHIRIASHI NETO, 2009, p. 25).

Souza conclui sobre o determinismo:

as interpretações teóricas clássicas elaboradas na década de 80 pela reflexão acadêmica (...) induzem a ilidir a diversidade cultural e a ação dos sujeitos, definindo e vinculando sua existência e “extinção” como ação única e controlada pelos sucessivos “ciclos econômicos” presentes no Paraná, e, posteriormente, da “moderna agricultura”. A legitimação da noção de “sistema faxinal” ao mesmo tempo que trouxe uma realidade agrária a tona, evidenciando suas especificidades, condenou-a ao desaparecimento pela “desagregação” (SOUZA, 2009, p. 45).

As perspectivas analisadas até aqui – a evolutiva, a economicista e a

adoção de determinismos a partir duma leitura que apontava a tendência ao

desaparecimento do sistema faxinal – guiaram quase a totalidade do

conhecimento produzido desde Carvalho até os dias atuais. Tal leitura relegou

ao plano secundário os grupos sociais. Parece que à roda da história era

amplamente possível o movimento no sentido da desagregação do sistema,

mas pouco possível ocorrer ação no sentido contrário, ou seja, na direção da

mobilização dos agentes sociais dos faxinais com vistas à luta pela

manutenção de seus territórios, pela conquista de direitos, pela valorização do

modo de vida, dentre outras reivindicações.

Há, ainda, uma análise sobre as obras desse tema, e em sequência, a

obra de Souza que precisa ser realizada. Em 2013 foi lançado o livro

“Memórias dos povos do campo no Paraná – Centro Sul”, organizado por

Liliana Porto, Jeferson de Oliveira Salles, e Sônia Maria dos Santos Marques. A

publicação diz respeito a uma coletânea de artigos que tem como objetivo

retirar “da invisibilidade a memória, o cotidiano, e os modos de vida de

comunidades tradicionais, quilombolas, posseiros e faxinalenses, no estado do

Paraná” (GEDIEL, 2013, p. 7).

O artigo de Porto é intitulado de “Uma reflexão sobre os faxinais: meio-

ambiente, sistema produtivo, identidades políticas, formas tradicionais de ser e

viver“. Há uma discussão em torno da produção científica desde Carvalho,

Chang, Gevaerd e Gubert onde Porto destaca a importância desses primeiros

trabalhos em relação à força das definições sobre os faxinais, em especial

sobre o modo de produção nas comunidades, e que orientou as produções de

pesquisas e as produções jurídicas sobre o tema. Ela destaca a criação do

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Decreto Estadual Nº 3.446/97 que cria as Áreas Especiais de Uso

Regulamentado – ARESUR, além de levantamentos sobre os faxinais ainda

existentes no estado. Também destaca que aquelas produções iniciais

influenciaram “a discussão do movimento social sobre a caracterização dos

faxinais, a construção de uma identidade faxinalense e a elaboração de um

mapeamento concorrente àqueles dos órgãos estatais” (PORTO, 2013, p. 64).

Aqui cabe ressaltar um diálogo importante. Não foi apenas a produção

científica dos pioneiros em conjunto com a ARESUR que serviram como

propulsores da organização do movimento social. Foi também o dispositivo da

lei, ou seja, a aprovação – no ano de 2.002 pelo Governo brasileiro – da

Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho que propiciou um

ambiente favorável ao desenvolvimento de movimentos sociais de diversas

comunidades tradicionais. O movimento dos faxinalenses, por sua vez, pautou-

se inicialmente nas definições conceituais anteriormente elaboradas por

Carvalho e, sobretudo, Chang. Posteriormente o movimento tem buscado se

desvincilhar delas para elaborar uma definição dada pelos próprios

faxinalenses, descolando-se assim das limitações que as primeiras definições

abarcavam.

Destaca-se a importância dos trabalhos mais recentes de Souza, que

contribuiram de forma considerável com o movimento social, principalmente por

propor uma reinterpretação, uma ressignificação dos termos que envolvem o

tema de forma a reelaborar as definições dos primeiros pesquisadores e assim

readequar tais definições às demandas hodiernas. O autor (2010) quer livrar os

faxinalenses dos grilhões da falsa homogeneidade prevista em lei – esta

influenciada como destacado anteriormente nos escritos dos primeiros

pesquisadores, principalmente Chang (1985) – que limitam sua caracterização

à existência dos criadouros comunitários. Assim, a definição sobre faxinais é

descrita por Souza como a seguir:

terras tradicionalmente ocupadas que designam situações onde a produção familiar, de acordo com suas possibilidades, variavelmente combinam apropriação privada e comum dos recursos naturais, tendo o controle e uso dos recursos considerados comuns à existência física e social – especialmente pastagens naturais, cursos d’água e recursos florestais –, e exercido de maneira livre e aberta de acordo com normas específicas consensualmente definidas por grupos de pequenos criadores e agricultores que, circunstancialmente, denominam suas áreas de uso comum por expressões locais, a saber: “criador comum aberto”, “criador comum cercado”, “criador

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criação alta” e “mangueirão”, presentes no Sul do Brasil (SOUZA, 2010, p. 15-16).

Desse modo se destacou como instrumento para contrapor às definições

anteriores uma ação que levou faxinalenses e pesquisadores a fazer um novo

levantamento dos faxinais existentes no Paraná. O mapeamento realizado com

base nas novas definições – flexibilizadas e relativizadas em relação às

definições da década de 80 que vigoravam, até então, intocadas – revelou a

existência de 227 comunidades de faxinais, e não apenas as 44 como afirmava

o levantamento preliminar realizado pelo IAP em 2004.

Apesar das importantes contribuições da nova geração de

pesquisadores ressaltadas até aqui, há de se destacar limitações nessas

obras. Souza foi articulador político e assessor da APF. Seu nome consta na

maioria dos materiais produzidos pela APF desde 2005. O “Projeto Nova

Cartografia Social dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil” foi

coordenado por Wagner, Shiraishi, Souza, dentre outros pesquisadores. Há

diversas relações desses autores com as causas dos povos e comunidades

tradicionais no Brasil. O engajamento político com as comunidades tradicionais

por parte desses autores e as específicas relações que desenvolveram ao

longo da formação do movimento social de comunidades tradicionais levou

alguns desses autores, sobretudo, Wagner, Souza e Shiraishi Neto, a um olhar

crítico sobre as relações concernentes a esses povos que opôs suas

comunidades aos antagonistas, que podem se apresentar sob a forma do

Estado legitimador das formas capitalistas de produção, das leis que não

enxergam o pluralismo da sociedade, ou do avanço do agronegócio sobre os

territórios tradicionais. Essa perspectiva, de certa forma, simplifica a questão e

limita o diálogo com a diversidade de relações possíveis, pois mesmo que haja

políticas e práticas discordantes entre os faxinalenses e outros grupos, isso

não representam somente uma simples dicotomia entre projetos políticos

irreconciliáveis. A realidade e os conflitos são muito mais complexos.

Porto (2013) aponta reflexões relevantes sobre os trabalhos de Souza,

das quais aponta que

ao final Souza restringe sua perspectiva de faxinal à existência de alguma forma de criadouro à solta e com caráter, mesmo que relativo, de uso comum. Assim, embora afirme a importância de aspectos identitários e socioculturais para uma perspectiva mais ampla dos

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“povos dos faxinais”, termina refém de limitações colocadas pelos trabalhos anteriores (...). Acrescente-se, ainda, que as categorias selecionadas, e que orientam o processo de mapeamento (na medida em que os faxinais são registrados a partir de sua classificação em uma das formas de criadouro citadas), trazem consigo uma perspectiva que remete ao evolucionismo e à desagregação do sistema questionados pelo autor. Em outras palavras, o “criador comum aberto” é tomado como o “modelo original”, que sofre modificações a partir de conflitos e pressões com seus “antagonistas”, e a partir de então se transforma nas demais configurações de criador. Em outras palavras, mesmo não sendo cada um dos tipos visto como uma etapa – pois é possível passar diretamente do tipo 1 ao tipo 3 ou 4 – existe um modelo “original”, o “criador comum aberto” (PORTO, 2013, p. 74).

A reinvindicação da existência de comunidades de faxinais sem

necessariamente haver a prática de criadoros comuns é uma das pautas desse

trabalho no terceiro capítulo, onde se evidencia uma discussão acerca dos

limites da ARESUR que prejudicam o avanço de comunidades na luta pela

preservação das práticas tradicionais e da proteção ambiental nos moldes de

territórios tradicionais com vistas à sustentabilidade. Ao mesmo tempo

impulsiona o conflito dentro da comunidade entre moradores que discordam

acerca do melhor projeto político para a comunidade, colocando grupos em

embate pelo poder de decidir sobre a organização local.

Porto (2013) também aponta a existência daquela dicotomia quando

analisa a obra de Souza (2010). Esta oposição, para a autora, expressa uma

continuidade das limitações já contidas na obra de Chang (1985). Trata-se da

ideia da existência faxinalenses em oposição a “antagonistas”, o que para a

autora acarreta uma simplificação dos grupos e a atribuição de valor

relacionada a eles também se torna simplificada, bem como seus conflitos que

perdem em complexidade. Assim, ela entende que desde Chang existe uma

minimização da complexidade envolvida nos conflitos que ocorrem nos faxinais

em virtude de uma simplificação dos grupos como destacado. Porto prossegue:

Para concluir, afirmo a importância de um estudo mais aprofundado de grupos rurais que se autodenominam faxinais – sua religiosidade, sociabilidade, relação com o território e o meio-ambiente, estratégias políticas de luta pela terra, bases da construção de sua identidade. Reconhecendo que a autodenominação de um grupo como faxinal, ou de seus membros como faxinalenses, abrange questões mais amplas que apenas um uso comum do território para criação animal ou um sistema produtivo (PORTO, 2013, p. 75).

O que se pôde demonstrar até aqui é que as obras dos pioneiros, longe

de serem completas e dotadas de conclusões eternas, foram propulsoras de

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novas discussões naquele contexto que foram empreendidas até o limite.

Desta forma, nos últimos anos e através da nova geração de pesquisadores foi

possível avançar ao que já havia sido construído, no sentido de relativizar

conceitos e preencher lacunas. Mas, a nova geração de pesquisadores que fez

uma crítica contundente aos pioneiros também é passível de crítica, e também

não é dotada de conclusões eternas e não deve se cristalizar na academia,

mas engendrar novos debates como aquele realizado no trabalho de Porto

(2013) e também aqui evidenciado.

A discussão sobre a possibilidade de avanços e sobre as continuidades

desse debate teórico será realizada nos próximos capítulos em face ao estudo

de campo realizado no Território da Cidadania Paraná Centro (TCPC), e

através dos estudos realizados no Faxinal Saudade Santa Anita, Faxinal dos

Kruguer, e Faxinal dos Teles, situados nos municípios de Turvo, Boa Ventura

do São Roque, e Pitanga, respectivamente.

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2 CULTURA COMO SUPORTE PARA UM NOVO MODELO JURÍDICO

CONTEMPORÂNEO

A noção de cultura no pensamento social moderno sempre engendrou

inúmeros e acirrados debates na modernidade. Sua definição esteve

constantemente cercada por ambiguidades e reiterados desacordos,

sobretudo, quanto sua aplicação à realidades diversas. Essa noção é imanente

à reflexão das ciências sociais, e transcende desse modo o entendimento da

humanidade que se limita a disposições biológicas, abrindo espaço para a

consideração da diversidade onde o homem, em essência, aparece como um

ser cultural.

Bourdieu deu um tratamento ao conceito de cultura pelo viés

antropológico ao recorrer a outro conceito, ou seja, ao habitus, sobre o qual

conclui:

são sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, ou seja, como princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins e o domínio expresso das operações necessárias para alcança-los, objetivamente “reguladas” e “regulares” sem em nada ser o produto da obediência a algumas regras e, sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizadora de um maestro (BOURDIEU, 2013, p. 87).

O habitus distingue a classe ou o grupo social pelas condições

diferenciadas que vivencia em relação aos outros, e atua como a objetivação

da memória coletiva num sentido que reproduz uma ligação entre as

sucessivas gerações acerca de suas aquisições culturais que possibilita a

permanência do grupo em suas características interiorizadas. Essa ação não é

necessariamente consciente – o que não anula sua eficácia. O habitus, desse

modo, propicia ao indivíduo tanto as orientações acerca do espaço social, bem

como as práticas adotadas em conformidade com sua filiação social

(BOURDIEU, 2013, p. 90). Bourdieu, todavia, não define o habitus de modo

rígido, nem assume que ele atua mecanicamente sobre as representações e

ações dos indivíduos, determinando assim a reprodução social. Pelo contrário,

modificações são possíveis e variações no habitus demonstram que a trajetória

social do grupo ou do indivíduo é levada em consideração, pois, de fato, há

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aquisições relevantes de experiências relativas à mobilidade social interiorizada

através das gerações que atuam nesse sentido (BOURDIEU, 2013, p. 90).

A noção de cultura se apresenta, durante o século XX, como

fundamental para a construção de um novo modelo jurídico contemporâneo.

Historicamente a condução da sociedade pela lógica liberal baseada na livre

regulação do mercado não foi capaz de atender aos anseios de emancipação

humana. Por outro lado, a extrema esquerda esteve no pós-guerra mais

empenhada “em denunciar a dominação e falar em nome de vítimas que

estariam privadas do sentido de sua situação” (TOURAINE, 1999, p. 7),

deixando assim a revolução, muitas vezes, para cumprir papel de oratória. Com

efeito, a notável crise dos modelos liberal e socialista se descortinou pouco a

pouco durante a Guerra Fria.

E foi nos primeiros anos após a Segunda Guerra que os direitos do

homem se manifestaram para além da esfera nacional, quando pela primeira

vez na história buscou representar todos os povos (BOBBIO, 1992, p. 49).

Entretanto, a política dos direitos humanos no pós-guerra representava os

grandes interesses econômicos e políticos dos principais países capitalistas. A

concepção de direito nesse cenário, de fato, não foi suficiente para atender

demandas reivindicadas pela diversidade de grupos que compõe a sociedade.

Não respeitou as diferenças entre os grupos porque se baseou numa política

de universalidade que serviu para aprofundar as crises existentes.

A marca ocidental, ou melhor, ocidental-liberal do discurso dominante dos direitos humanos pode ser facilmente identificada em muitos exemplos: na Declaração Universal de 1948, elaborada sem a participação da maioria dos povos do mundo; no reconhecimento exclusivo de direitos individuais, com a única exceção do direito coletivo à autodeterminação, o qual, no entanto, foi restringido aos povos subjugados pelo colonialismo europeu; na prioridade concedida aos direitos civis e políticos sobre os direitos econômicos, sociais e culturais e no reconhecimento do direito de propriedade como o primeiro e, durante muitos anos, o único direito econômico (SANTOS, 2001, p. 17).

Por isso, a fim de promover mudanças no paradigma das políticas dos

direitos humanos, estabeleceram-se lutas de cunho anticapitalista que se

espalharam em todo o mundo a partir de organizações diversas com o objetivo,

sobretudo, de defender grupos oprimidos pelas políticas hegemônicas dos

Estados. Essas ações ganharam força principalmente na década de 1970. É

sobre esse período que se refere Touraine acerca do retorno dos atores à cena

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social para empreender lutas pela direção da sua historicidade. Discursos e

práticas que valorizavam o aspecto cultural se expandiram ao mesmo tempo

em que se elaboraram propostas de direitos humanos cuja concepção não

ocidental era imperativa. O caminho para a transformação gradual dessa

política foi aberto a partir de “diálogos interculturais de direitos humanos”

(SANTOS, 2001, p. 18). E a política dos direitos humanos passou a ser, em

certo sentido, simbolizado como uma reinvenção da linguagem emancipatória,

conclamada para ocupar o lugar que antes pertencia ao socialismo (SANTOS,

2001, p. 7).

Mas essa ligação não se dá de modo mecânico, simples. Apesar de se

avolumar os debates dessas políticas entre diversos países democráticos, há

ainda grandes variações na forma como elas são conduzidas. Ainda persistem

discriminações e a negação dos direitos para muitos povos que se identificam a

partir de uma cultura diferenciada, peculiar. Subsiste a falta de reconhecimento

de grupos e minorias, principalmente as portadoras de identidade étnica e que

demandam autonomia sobre práticas e territórios específicos. Persiste, ainda,

uma grande dificuldade em especificar o local e o global nas políticas dos

direitos humanos. Por isso é importante identificar em quais condições os

direitos humanos de fato podem servir como uma política progressista e

emancipatória. Há pelo menos três questões complexas apresentadas por

SANTOS (2001) e que podem servir para obstaculizar sua realização:

Primeira questão: a tensão entre regulação social e emancipação social.

Se antes eram opostos agora se apresentam sob um duplo, pois passam por

crises concomitantes e se alimentam uma da outra. Ao mesmo tempo em que a

política dos direitos humanos busca ultrapassar essa crise, está presa a ela

(SANTOS, 2001, p. 8).

Segunda questão: há uma tensão entre o Estado e a sociedade civil.

Esta se realiza por meio de regulação e de leis que fluem da relação com o

Estado. Mas, os direitos humanos primeiro surgiram de lutas entre a sociedade

civil e o Estado – visto nesse contexto atuando como opositor da emancipação

social – pelo estabelecimento dos direitos civis e políticos. Por outro lado, a

conquista dos direitos econômicos, sociais, culturais, etc., foi garantida pelo

Estado, colocando-o, nesse período, como principal promotor dos direitos

humanos (SANTOS, 2001, p. 8, 9).

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Terceira questão: a tensão entre o Estado-nação e a globalização. A

regulação social e o projeto emancipatório devem operar em âmbito local ou

global? Pois, enquanto as lutas em torno dessa questão atuam na esfera local,

nacional, os pressupostos culturais se impõem à política dos direitos humanos

e, deste modo, ela recai sobre uma política cultural e se modela nesse sentido,

isto é, no sentido da valorização das particularidades, da alteridade, da

especificidade, da localidade, das fronteiras. Sendo assim, é preciso inquerir

como é possível que essa política seja ao mesmo tempo cultural e global

(SANTOS, 2001, p. 9).

Contudo, houve uma sensível mudança no paradigma jurídico no sentido

de dar reconhecimento ao caráter pluralista e multiétnico das sociedades. Na

América Latina os dispositivos jurídicos têm-se modificado nessa direção. A

orientação política no Brasil está em acordo com a tendência internacional e

por isso tem buscado reconhecer a diversidade de identidades culturais através

da criação de leis e promover a continuidade da pluralidade cultural através de

políticas específicas. Essas transformações oportunizam a formação de um

campo jurídico específico que é o do direito étnico fundamentado na cultura

(NETO, 2007, p. 26 - 29).

Nessa esteira o multiculturalismo – como movimento de orientação e

reivindicações de direitos pautados pela diversidade cultural que tem se

colocado como modelo representativo das mudanças jurídicas nas últimas

décadas – aparece em contraposição às ideias assimilacionistas orientadas

pelo paradigma cultural anglo-saxônico, onde as ideias circulam em torno da

integração cultural entre os grupos e da fluidificação das diversidades em

identidade una. No Brasil a ideologia do “mito da democracia racial”, em

Gilberto Freyre, assim como a do “homem cordial”, em Sérgio Buarque de

Holanda, teve fundamento nas ideias assimilacionistas. O multiculturalismo,

pelo contrário, é o modelo que admite que grupos distintos se realizem,

permaneçam e se desenvolvam em suas culturas, dando lugar a uma

pluralidade de vozes que devem ser ouvidas a fim de que se realize a

diversidade de modo a enriquecer o conhecimento humano do ponto de vista

cultural (LIMA, 1997, p. 263 - 265).

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2.1 DECLARAÇÕES E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS:

RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS DIFERENÇAS CULTURAIS E A

OPORTUNIDADE DE REALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS E

DOS FAXINALENSES NO BRASIL

Há no direito um caráter universal e abstrato que o apresenta como um

“projeto global de sociedade” (BOURDIEU, 2001, p. 107). E persiste, embora

cada vez com força menos intensa, a crença arraigada à interpretação do

direito de que o sistema jurídico seja portador de uma “completude”, ou seja,

considera-se o sistema como isento de falhas, pois toda e qualquer situação

encontra guarida na ordem jurídica existente (SHIRAISHI NETO, 2009, p. 21).

Essa tendência revela na realidade um descaso com as particularidades locais,

e o desprezo da pluralidade como noção básica da sociedade.

No contexto da década de 1970 e 1980, no Brasil, o espaço rural e a

agricultura sofreram transformações profundas e constantes. De modo

intensivo, porém parcial e setorizado, o processo de modernização da

agricultura proporcionou o relativo esvaziamento populacional e imprimiu

dinâmicas socioeconômicas e ambientais distintas daquelas até então

comumente praticadas. No contexto desse processo parcela considerável dos

agricultores – tanto os que foram excluídos do modelo de modernização quanto

os que puderam permanecer na agricultura – organizaram ações de conteúdo

contestatório, construíram movimentos de reação ou oposição ao modelo e

seus efeitos. “É nesse âmbito de contraposição ao modelo modernizador que

surgem as ações e propostas de modelos de desenvolvimento sustentável para

a agricultura e para o meio rural” no Brasil (FERREIRA; ZANONI, 1998, p. 20).

Ou seja, evidenciou-se gradualmente a demanda de parcela da população

brasileira pela construção de um direito dotado de um olhar capaz de

transcender a lógica jurídica imposta pelo capital, e na aspiração desses povos

de sair da invisibilidade social a qual o direito praticado no país naquele

período lhes proporcionava.

Uma das consequências desses esquemas universais e abstratos no âmbito do direito foi a criação de “ficções jurídicas”, como a do “sujeito de direito”, que se encontra destituído de suas raízes profundas. A primazia da forma em detrimento do conteúdo tem levado os “sujeitos de direito” a uma espécie de invisibilidade, destituindo-os de quaisquer elementos que possam qualificá-los, o

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que leva à perda de suas especificidades enquanto tal (SHIRAISHI NETO, 2007, p. 34, 35).

Há, entretanto, a integração de “novas dimensões e conteúdo

explicitados nas Declarações e Convenções Internacionais [que ilumina] um

novo modus operandi, cuja força motriz conduz a uma reflexão acerca das

estruturas do direito” (SHIRAISHI NETO, 2007, p. 35). Isto é, tem ocorrido uma

dilatação dos fundamentos da noção de sujeito de direito, que passou a ser

definido com mais qualidade, fato que cedeu lugar a que se incluam povos e

comunidades tradicionais nos dispositivos internacionais relativos às políticas

de direitos humanos. Dessa forma, a noção de coletividade passou a integrar

as Declarações e Convenções Internacionais.

As Declarações são princípios jurídicos que “orientam instrumentos e

ações” (SHIRAISHI NETO, 2007, p. 36). As Convenções são tratados que

engendram deveres e que por isso submetem as nações no ordenamento

internacional, sendo responsáveis por impor sanções caso necessário. O Brasil

corrobora os tratados jurídicos mediante sua promulgação.

Há na atualidade um grande “repertório de instrumentos jurídicos

internacionais que se ocupam em reconhecer e promover a diversidade

cultural” (SHIRAISHI NETO, 2007, p. 37). O Decreto nº 80.978 de 12 de

dezembro de 1977 promulgou no Brasil a Convenção Relativa à Proteção do

Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, de 1972, e “representou um marco

jurídico desse processo” (SHIRAISHI NETO, 2007, p 37) que não só

possibilitou a diferenciação entre patrimônio cultural e natural, mas ao mesmo

tempo destacou o mérito que há nesses bens com respeito ao

desenvolvimento humano e social.

Os debates acerca dos fundamentos do pluralismo jurídico envolvem a

tarefa de relativizar a compreensão de completude do sistema a partir do

reconhecimento de circunstâncias não consideradas pelo direito. Esta situação

se apresenta como uma estratégia para introduzir o pluralismo jurídico no

debate acerca da democracia pluralista, que diz respeito a um “princípio

consagrado na Constituição Federal de 1988” (SHIRAISHI NETO, 2009, p. 21,

22). Sem dúvida, a existência de povos e comunidades tradicionais na

condição de grupos sociais portadores de identidade étnica “apresenta como

desafio inicial o rompimento com os esquemas tradicionais do direito e a sua

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vinculação com as discussões jurídicas mais atualizadas” (SHIRAISHI NETO,

2009, p. 24).

As comunidades tradicionais no Brasil têm avançado num processo de

reconhecimento jurídico-formal desde a formulação da atual Constituição

Federal de 1988. Em princípio, no texto constitucional, foram consideradas as

“terras tradicionalmente ocupadas” (ALMEIDA, 2004) como aquelas

pertencentes aos grupos indígenas e aos quilombolas. Contudo, desde a

década de 1980, sindicatos, movimentos sociais, associações e entidades

diversas de representação de outros povos – além dos representantes dos

indígenas e quilombolas – têm empreendido lutas no sentido do

reconhecimento legal do uso comum da terra e de recursos naturais

indispensáveis à continuidade de modos de vida tradicionais e específicos

(ALMEIDA, 2007, p. 9, 10).

Essas instituições, fundamentalmente políticas, alicerçam-se em

demandas de ordens étnica, cultural e territorial, e buscam fortalecer uma

identidade coletiva calcada em reivindicações distintivas mediante o Estado. O

reconhecimento de seus direitos territoriais são os mais destacados nessa

arena, onde os grupos se fundamentam na identidade étnica e a partir delas

desenvolvem uma consciência cultural fundamentada em seus costumes e

práticas comuns – fator determinante que os diferenciam dos demais povos

que não compartilham de seus hábitos e práticas costumeiras (ALMEIDA,

2007, p. 12).

As pressões advindas das exigências dessas diversas instituições

fortaleceram as lutas das comunidades tradicionais no Brasil. Pela eficiência

das manifestações foi aprovada a Convenção 169 da OIT9 pelo Governo

brasileiro em 2002, através do Decreto Legislativo nº 143, ratificada em 1989.

Essa Convenção trata de reconhecer os elementos de autoidentificação como

fundamentais para o sentido da ação dos movimentos sociais dirigidos por

termos étnicos e pelo surgimento de novas identidades coletivas. Também

assevera acerca do reconhecimento dos direitos de propriedade, bem como de

posse de terras aos povos que tradicionalmente as ocupam, e que assim

queiram continuar. Além disso,

9Organização Internacional do Trabalho.

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A ratificação da Convenção 169 não apenas reforça instrumentos de redefinição da política agrária, mas também favorece a aplicação da política ambiental e de políticas étnicas, reforçando os termos de implementação de um outro dispositivo transnacional, qual seja, a Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB (...) (ALMEIDA, 2007, p. 10).

As lutas e debates se intensificaram em meio às várias instituições

representativas dos povos tradicionais e nos órgãos governamentais. O

resultado da efervescência dessas discussões foi a instituição do Decreto nº

6.040 de 7 de fevereiro de 2007, ou seja, a Política Nacional de

Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais

(PNPCT), cujo objetivo é a promoção do desenvolvimento sustentável e de

reconhecimento dos direitos territoriais, sociais, ambientais, culturais e

econômicos dos povos e comunidades tradicionais, bem como o estímulo ao

respeito e valorização de suas identidades coletivas e formas de organização

específicas.

Desde 2005 parte dos faxinalenses têm se organizado em movimento

social com a APF. Dessa mobilização muitos materiais de formação e apoio

foram produzidos. Suas ações têm sido empreendidas no sentido de

conscientizar e mobilizar os faxinalenses em torno de seus direitos. E por isso

os materiais são recheados de referências às leis estaduais e federais que vêm

de encontro aos interesses dessas comunidades e que amparam suas práticas

tradicionais e permanência em territórios considerados tradicionais.

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Imagem 1: Material10

impresso dos faxinalenses. Acervo próprio.

As leis são apresentadas, referenciadas e discutidas nesses e em outros

materiais, gerando conhecimento dos direitos étnicos e culturais. As lutas

empreendidas pelo movimento social no sentido de ser resguardada a vontade

dos grupos em se diferenciar do “outro”, e de ter a sua diferença étnica

reconhecida, refletiu na promulgação de uma Lei Estadual do Paraná que vem

sendo reiteradamente divulgada nesses materiais:

Art. 3º Será reconhecida a identidade faxinalense pela autodefinição, mediante Declaração de Auto-reconhecimento Faxinalense, que será atestado pelo órgão estadual que trata de assuntos fundiários, sendo outorgado Certidão de Auto-reconhecimento.” (PARANÁ, 2007).

Ao se identificar como faxinalense, o agente social negocia novos

elementos constituintes de sua identidade, pois, reforça para si e para os

outros traços que antes apenas faziam parte do seu cotidiano, mas que a partir

deste momento tornam-se vitrines para outrem. E essa condição foi percebida

nas entrevistas pela fala dos faxinalenses: eles, que antes tinham sua cultura

vista como atrasada, atualmente, em contrate com esta visão, entendem-se e

10

Os materiais são referentes ao primeiro, segundo e terceiro Encontro Estadual dos Faxinalenses e mais duas cartilhas sobre o movimento social e sobre o ARESUR.

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se defendem como praticantes de uma cultura tradicional, como pode se ver no

depoimento a seguir.

Eu acho que objetivo é termos o reconhecimento lá fora, não por ser um povo atrasado, mas sim por ser um povo que luta, um povo que está adiante deste povo que ignora (...) um povo que se fosse atrasado não tinha preservado o meio-ambiente que tá degradado hoje, não por causa dos faxinais, mas sim por causa dos agronegócios (FAXINALENSE H, 2009).

A estratégia política tem sido a de afirmação da capacidade de

preservação ambiental pelos faxinalenses. Por isso, nos últimos anos os

faxinalenses aceleraram o processo de reconhecimento de seus territórios e do

direito a permanência e reprodução de seu modo de vida e cultura. Também

reconheceram suas diferenças em relação aos de fora da comunidade, ou seja,

suas práticas tradicionais. Sobre este aspecto Wagner diz que

A tradição é produto de uma criação, de uma mobilização coletiva. Aquilo que é tradicional está ligado a um processo de mobilização que consegue, por assim dizer, impor uma outra modalidade de acesso à terra, uma outra modalidade de acesso aos recursos naturais (2004, p. 29).

O faxinalense está reconstruindo a identidade étnica, principalmente

através da valorização desta identidade, e a partir do reconhecimento e

fortalecimento da tradição que se pauta pelos costumes e práticas comuns ao

grupo. Portanto, é possível entender o processo de produção, circulação e

apropriação do material sobre este povo, por um lado, como um recurso de

preservação e de manutenção de uma identidade faxinalense, e, por outro,

como um recurso de construção de uma identidade étnica idealizada, que visa

a luta pelo reconhecimento social de sua existência e o reconhecimento legal

de suas práticas e territorialização. Estes materiais operam no mesmo sentido

dos Encontros dos Povos Faxinalenses, e, ao mesmo tempo, ambos operam

como um recurso à reprodução dinâmica das tradições que valorizam as

práticas e os costumes das comunidades em conformidade com o interesse

coletivo.

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2.2 A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DOS FAXINALENSES DO PARANÁ

CENTRO NO PROGRAMA TERRITÓRIOS DA CIDADANIA

Participação política. Para fins dessa dissertação se entende que “a

participação facilita o crescimento da consciência crítica da população,

fortalece seu poder de reivindicação e a prepara para adquirir mais poder na

sociedade” (BORDENAVE, 1983, p.12). Participação é o oposto da

marginalização, desta forma participar é incluir, é fazer parte, tomar parte. E no

caso da participação política, se trata de tomar parte por meio da intervenção

em “lutas sociais, econômicas e políticas de seu tempo” (BORDENAVE, 1983,

p.24).

Contudo, é possível pensar como a resistência pode se dar por processo

de não participação, como será possível verificar no próximo capítulo através

da não participação de grupos moradores de faxinais com as ações do

movimento social que se organiza na comunidade.

Segundo Bobbio há diferentes tipos de participação que se graduam

desde a simples presença até os ativismos dos agentes que se envolvem

numa questão política.

“O ideal democrático supõe cidadãos atentos à evolução da coisa pública, informados dos acontecimentos políticos, ao corrente dos principais problemas, capazes de escolher entre as diversas alternativas apresentadas pelas forças políticas e fortemente interessados em formas diretas ou indiretas de participação” (BOBBIO, 1998, p.889)

O autor relata que atualmente a participação política ativa é muito baixa,

e para que tal ocorra são necessários dois quesitos principais. O primeiro deles

diz respeito à criação de um ambiente que estruture ou dê ocasião para que tal

participação ocorra, e neste item há de se chamar a atenção para a

importância da mobilização e recrutamento de seus membros atuantes. O outro

quesito pauta-se na motivação onde estímulos são oferecidos para que haja

empolgação e continuidade dos participantes. Com base nesses pressupostos

serão analisadas as condições de participação política dos faxinalenses na

política territorial.

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O Programa Territórios11 da Cidadania (PTC) foi criado por meio do

Decreto de 25/02/2008, posteriormente alterado pelo Decreto de 25/03/2009. A

finalidade dessa política é fomentar e aligeirar o sobrepujamento tanto da

pobreza como das desigualdades sociais no meio rural – que englobam

concomitantemente as questões de gênero, raça e etnia – através da

construção de políticas públicas ao mesmo tempo territorializadas e integradas,

cuja promoção à participação popular encontra-se no cerne de sua formatação.

Para balizar esses territórios – são 120 ao todo no país – foram selecionados

critérios especiais de relevância econômica e social. Portanto, compõem os

territórios as regiões que concentram municípios com menor Índice de

Desenvolvimento Humano (IDH), com capacidade reduzida de dinamismo

econômico, com maior incidência de agricultores familiares e de assentados da

reforma agrária, e com a presença mais numerosa de comunidades

tradicionais, além de ser destacada a maior ocorrência de beneficiários do

Programa Bolsa Família (PBF).

Ministérios diversos participam do PTC, e sua gestão está dividida entre

as esferas federal, estadual e territorial. O funcionamento dessa política se dá

por meio de uma Matriz de Ações apresentada pelo Governo Federal e que

passa aos Colegiados Territoriais onde há averiguação, ajustamento, e

proposições qualitativas. O plano de execução resultante desse processo

advém das discussões realizadas no território acerca das propostas iniciais, e

que gera o empenho por parte do Governo Federal a partir da execução das

ações segundo as decisões de cada território. O PTC tem como espaço de

representação e participação popular o Colegiado Territorial – foro de debates

onde se torna evidente os grupos sociais e forças municipais atuantes para a

tomada de decisões acerca das políticas territoriais. A ideia central do PTC é

romper com as políticas ortodoxas, ou seja, criar uma nova forma de

governança que transcenda a esfera municipal, e que tenha em seu bojo a

eficácia no combate às mazelas sociais dos territórios mais vulneráveis nos

aspectos econômicos e sociais. No Brasil essa é uma iniciativa pioneira e de

11

O Estado assume uma definição para o termo território – enquanto espaço de relações de poder – que diverge das definições heurísticas atuais e mais importantes da geografia. Para o primeiro, território se define de forma instrumental, como uma alternativa crucial aos processos de desenvolvimento. Para Haesbaert (2004, p. 91) o território é definido como “um espaço delimitado e controlado, através do qual se exerce um determinado poder, muitas vezes – mas não exclusivamente – relacionado ao poder político do Estado”.

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certo modo incipiente. Seu funcionamento, bem como seus resultados, ainda

estão sendo estudados.

O Território da Cidadania Paraná Centro (TCPC) envolve 15.045,50 Km²

de área cujo espaço é constituído por 18 municípios: Altamira do Paraná, Boa

Ventura de São Roque, Campina do Simão, Cândido de Abreu, Guarapuava,

Iretama, Laranjal, Manoel Ribas, Mato Rico, Nova Cantu, Nova Tebas, Palmital,

Pitanga, Rio Branco do Ivaí, Roncador, Rosário do Ivaí, Santa Maria do Oeste

e Turvo. A população total do território é de 341.696 habitantes, sendo 108.788

vivendo na área rural – 31,84% do total – dos quais 23.167 são agricultores

familiares, 2.040 são famílias assentadas. O IDH médio é 0,73 (fonte:

http://sit.mda.gov.br).

FIGURA 01 – Localização do Território Paraná Centro. Fonte: Favaro, 2011.

Iniciou-se a política territorial como “Território Paraná Centro” no ano de

2003. Mas, a partir de 2008 transformou-se e se intitulou “Território da

Cidadania Paraná Centro”, constituindo através do Ministério do

Desenvolvimento Agrário (MDA) uma unidade de planejamento territorial.

No TCPC há a identificação de três territórios indígenas, duas

comunidades quilombolas, vinte e um faxinais e trinta e um assentamentos de

reforma agrária, conforme o Mapa 1.

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MAPA 1 – Terras Tradicionais e Assentamentos no Território Paraná Centro. Fonte: ITCG (2010). Organização: FAVARO (2011).

No TCPC há diversos grupos faxinalenses, quilombolas e indígenas que

são reconhecidos como povos e comunidades tradicionais (PCT´s). Em tese,

eles têm prioridade no atendimento de demandas pelo "Programa Territórios da

Cidadania" (PTC), cujo objetivo primordial é o desenvolvimento

socioeconômico da região a partir da efetivação de ações que privilegiem os

agricultores familiares e com um olhar voltado para a valorização cultural dos

povos. O Decreto de 25 de fevereiro de 2008, que institui o Programa

Territórios da Cidadania, no item IV prevê a inclusão e integração produtiva das

populações pobres e dos segmentos sociais mais vulneráveis, tais como

trabalhadoras rurais, quilombolas, indígenas e povos tradicionais (BRASIL,

2008).

Diversas avaliações sobre o funcionamento das politicas territoriais

assinalam um avanço promovido por esse modelo de debate e ação política

que visa o desenvolvimento rural em comparação ao modelo tradicional,

limitado ao município. Contudo, essas mesmas análises sinalizam igualmente

niquices, omissões, falhas na condução e implantação dessas políticas que

ainda persistem. Tal fato levanta a interrogação sobre a ulterior conjuntura para

a permanência do modelo em face à cultura política brasileira arraigada no

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localismo, em politicas setorializadas. Não há um marco legal exclusivo que

rege as políticas territoriais, o que revela sua incipiência e baixo grau de

institucionalização. Por consequência, há maiores embaraços que servem de

obstáculos à ação social e ao curso histórico do desenvolvimento rural

(NIEDERLE; GRISA, 2013; LEITE, 2011; FAVARETO, 2012).

A aprendizagem como um fator importante na experiência de condução

de políticas públicas em nível territorial pode ser percebida como uma

vantagem atribuída ao novo paradigma. Contudo, a principal mudança que a

nova forma de governança pode promover é a conscientização da sociedade

acerca da importância de se construir uma nova cultura institucional de

participação política, que pode incidir modificações sobre normas, valores,

práticas e comportamentos que venham a demandar novos procedimentos

democráticos.

O afloramento das políticas de desenvolvimento territorial aponta o

surgimento de um novo modelo de governança que corrobora a demanda por

alargamento da comunicação entre grupos sociais distintos. O ajustamento do

Estado e Sociedade Civil no que se refere à administração dos assuntos

públicos fundamentado na formação de arranjos organizacionais

dissemelhantes é característica desse modelo – que busca a formação de

espaços públicos por meio dos quais os agentes cotejam projetos e

orientações de desenvolvimento, além de possibilitar a construção de uma

institucionalidade renovada cuja tarefa é legitimar formatos de relações

políticas que estão em desenvolvimento.

O estabelecimento da participação e a consequente parceria na

estruturação da ação pública assoalham a autoridade conferida ao foro de

convenção social, sobretudo, aos Colegiados Territoriais, que se

transformaram em espaços pertinentes das lutas que tem por objetivo captar

recursos públicos. Os colegiados são igualmente campos de “lutas por

reconhecimento” empreendido pelos grupos sociais que lá se representam e

que de outra forma teriam pouco ou nenhum acesso ao Estado (Honneth,

2003). Tais lutas evidenciam novas concepções que interrogam as instituições

constituídas e reivindicam a disposição de compromissos políticos que sirvam

como sustentáculos dos processos de desenvolvimento (NIEDERLE; GRISA,

2013).

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A discussão que se evidencia a partir de agora pesa sobre a perícia das

políticas de desenvolvimento territorial em estimular mudanças significativas na

forma de conduzir a política e no grau de comprometimento referente à

emergência de novas relações de poder nos territórios.

Existe uma questão central no reconhecimento das comunidades

tradicionais no Brasil. No artigo 6º da Convenção 169 da OIT, promulgada pelo

Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, há um compromisso do governo

brasileiro em promover os meios para que as comunidades tradicionais que

tenham interesse em tomar parte das decisões em quaisquer níveis no campo

legislativo e administrativo possam fazê-lo. As letras b e c do referido artigo são

bastante conclusivas sobre o papel do governo:

b) estabelecer os meios pelos quais esses povos possam participar livremente, pelo menos na mesma proporção que os demais segmentos da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições eletivas e órgãos administrativos e de outra natureza, responsáveis por políticas e programas que lhes digam respeito; c) criar os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas desses povos e, nos devidos casos, proporcionar os necessários recursos para este fim. (BRASIL, 2004)

Parte da pesquisa de campo foi realizada com o intuito de responder as

seguintes questões: i) como o grupo gestor do TCPC lidou com a

responsabilidade de incluir os povos tradicionais nas discussões do colegiado

no sentido dado ao artigo 6º da convenção 169 da OIT? E quais são as

condições encontradas entre os povos tradicionais na atualidade que

possibilitem a sua participação/inclusão nas discussões do colegiado? Eles

apresentam condições de concorrer aos recursos específicos do Ministério do

Desenvolvimento Agrário (MDA) que possam ser aplicados para o

desenvolvimento social, econômico, e ou cultural em suas comunidades?

Esta discussão é resultado de pesquisa realizada entre os meses de

janeiro a julho de 2013 nos municípios de Turvo, Boa Ventura do São Roque e

Pitanga. Para a coleção de dados foi necessário ouvir a fala de alguns dos

gestores da política territorial, ouvir membros das comunidades faxinalenses e

funcionários públicos que de alguma forma têm envolvimento com essas

comunidades. O objetivo é explicitar as demandas dos faxinalenses para

demonstrar que elas existem, apesar do desconhecimento de tais

necessidades por parte dos gestores do TCPC. Outro objetivo é apresentar os

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motivos da ausência à participação por parte dos faxinalenses nos espaços de

decisão política no território. Igualmente importante é evidenciar as

perspectivas e expectativas dos tradicionais e dos gestores acerca das

possibilidades de participação/inclusão de tais comunidades nas políticas

territoriais. Por fim, analisar as limitações do TCPC em atender às expectativas

sobre sua ação nesse campo.

Das comunidades faxinalenses foram selecionadas três das vinte e uma

mapeadas na região. Isso porque apenas duas delas estão organizadas de fato

em nível mais avançado com a Articulação Puxirão dos Povos Faxinalense

(APF), e somente duas delas são reconhecidas como Área Especial de Uso

Regulamentado (ARESUR). A outra comunidade selecionada diz respeito a um

grupo de sete famílias que está incipiente no processo de

autorreconhecimento, e que busca por meio da APF consolidar seu território

como ARESUR. Dessa forma temos uma comunidade que representa as

demais que estão aproximadamente no mesmo estágio de organização com o

movimento social e com a luta pelo reconhecimento jurídico e social.

O trabalho de campo consistiu na participação de algumas reuniões do

colegiado territorial que aconteceram em Pitanga, município sede dos debates

acerca do TCPC na região; visitas às comunidades tradicionais e entrevistas

com seus principais líderes; entrevistas com gestores públicos, sejam de

prefeituras ou territoriais que atuam no Paraná Centro.

2.3 FAXINALENSES – A NECESSIDADE DE MAIOR VISIBILIDADE

SOCIAL

Segundo a conclusão do mapeamento dos povos de faxinais12,

iniciado a partir de 2005, há, no território Paraná Centro, aproximadamente 705

famílias de faxinalenses que compõem 21 comunidades distribuídas entre os

municípios de Boa Ventura do São Roque, Campina do Simão, Guarapuava,

Mato Rico, Pitanga e Turvo.

Turvo é o município com maior número de faxinais, pois conta com

dez comunidades. Segundo Fávaro (2014) apenas seis comunidades em todo

12

O resultado dessa pesquisa foi divulgado no artigo de Roberto de Souza Martins, intitulado Mapeamento social dos faxinais no Paraná, publicado no livro Terras de Faxinal, 2009.

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o território têm um número igual ou superior a cinquenta famílias. No município

de Turvo se localizam: o Faxinal Saudade Santa Anita (62 famílias), Faxinal

dos Carriel (52), Comunidade Joaquim Costa (60) e Ilha da Bandeira (50). Em

Boa Ventura do São Roque está o Faxinal dos Viana (50) e em Campina do

Simão, o Faxinal dos Araras (60). Destes faxinais, apenas o Saudade Santa

Anita continua organizado com a APF.

Em relação às políticas do TCPC com maior relevância entre os

faxinalenses pode-se destacar o Programa Bolsa Família, que é uma fonte de

renda muitíssimo comum, assim como o Programa Luz Para Todos. Há, em

alguns casos, famílias que têm contratos de fornecimento para o Programa

Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Outra fonte de renda deriva das

aposentadorias rurais – as quais são bastante comuns. Contudo, em geral, os

faxinalenses são produtores de subsistência. Milho, feijão, legumes, frutas,

verduras, leite, ovos e carne – principalmente de suíno, mas de frango e de boi

também, mesmo que em menor quantidade. Essa é a variedade de alimentos

que produzem para sustento aqueles que são mais abastados. Além disso, há

os excedentes dessa produção que são dispostos para troca ou venda.

Dentre os faxinalenses pesquisados, nota-se que algumas famílias

conseguem desenvolver um sistema diversificado de atividades, envolvendo

uma importante produção para autoconsumo, de modo que as compras

realizadas são pequenas e se resumem ao sal, arroz, trigo, fermento e poucos

outros itens de consumo doméstico. Além disso, há produção de ervas

medicinais, a qual colabora com uma renda média de R$ 300,00 a 600,00

mensais e a produção leiteira (o leite recolhido dentre os produtores da

comunidade vai para armazenagem em tanque comum fornecido pelo laticínio,

que dispõe de um funcionário para buscar o produto a cada dois dias).

Também há produção de panificados, os quais são consumidos e fornecidos

para o PNAE, aumentando a renda familiar.

Mas essa situação não representa a maioria dos faxinalenses. Há

muitos em situação precária de reprodução social. Suas demandas envolvem

desde a construção de banheiros com chuveiro elétrico e vaso sanitário, até a

reforma de cercas e a ampliação de seus territórios a fim de aumentar as suas

possibilidades de produzir uma renda adequada à subsistência familiar.

Portanto, não é raro que haja faxinalenses que não dão conta do sustento

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familiar dentro da comunidade e precisam encontrar outras formas de ganhar a

vida, sobretudo empregando-se nas cidades através do comércio ou do

funcionalismo público nas prefeituras. Há ainda aqueles que ganham a vida na

construção civil, ou os que trabalham nas terras de proprietários mais

abastados que contratam mão-de-obra assalariada. Muitos faxinalenses que

não conseguem continuar sobrevivendo de suas próprias terras e produtos

dentro do faxinal são aqueles que acabam indo embora devido à pressão

econômica.

Nas suas relações econômicas locais, os faxinalenses vendem diversos

produtos alimentícios desde erva-mate até carne suína, que são os excedentes

da produção. Esses produtos raramente são disponibilizados nos mercados,

mas são procurados em suas casas, o que fomenta os mecanismos de venda

direta.

Problemas socioambientais são recorrentes nos faxinais, que sofrem

pressão do agronegócio, das prefeituras e dos chacareiros. Conflitos pelo

acesso aos recursos, naturais ou não, são comuns em todo o território.

Fechos13, desmatamentos, nascentes contaminadas ou destruídas e estradas

inacessíveis são problemas que geram frequentemente conflitos em todas as

comunidades (FÁVARO, 2014).

Com os produtores de soja, eucalipto, pinus, pecuária de corte, pecuária

leiteira, fumo (em todos os municípios em que há faxinal) sofrem pelo

encurtamento de seus espaços de reprodução sociocultural e econômico, pela

agressão ao meio ambiente – notadamente o desmatamento, e a

contaminação das nascentes (FÁVARO, 2014).

Com a prefeitura de Pitanga sofrem pelo não reconhecimento de sua

cultura e territorialidade particulares e por terem negada a criação de leis

municipais que prestem suporte às leis estadual e federal que os reconhecem14

(FÁVARO, 2014).

13

Fechos são cercas feitas de arames de 8 a 12 fios, ou telas, que são colocadas em volta de toda uma propriedade dentro do faxinal, e que pertence a um morador que não respeita o modo de vida faxinalense. A ideia dos fechos éevitar o livre trânsito dos animais, principalmente os suínos. Os fechos diminuem o espaço de reprodução animal e causa conflitos nos faxinais entre seus moradores por conta disso. Dentro de um faxinal os acordos comunitários regulamentam o uso dos fechos, que élimitado a uma parcela da terra, mas nunca a sua totalidade. 14

Lei estadual: 15673/2007; Lei federal: Decreto 6040/2007. Ambas reconhecem os faxinais e sua territorialidade específica.

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E com os chacareiros (Campina do Simão e Guarapuava) porque

também não reconhecem os faxinalenses e, principalmente, porque não

respeitam os acordos comunitários que vigoram dentro das comunidades

tradicionais sobre os usos dos espaços destinados a criação dos animais, ou

acerca das áreas de preservação ambiental (FÁVARO, 2014).

2.4 RELAÇÕES POLÍTICAS LOCAIS – A PERSPECTIVA DO

RECONHECIMENTO SOCIAL E CULTURAL DOS FAXINALENSES

Em relação à participação social no território, a principal interlocução

acontece com as prefeituras municipais, sobretudo naqueles municípios que já

reconheceram o território do faxinal como ARESUR. A criação dessas áreas,

formalmente registradas15, possibilita uma forma de defesa dos seus territórios

e a proteção dos recursos naturais necessários para a manutenção do seu

modo de vida. O diálogo atual entre alguns grupos e o poder público diz

respeito à aplicação dos recursos oriundos do ICMS ecológico16 previsto às

ARESUR. Este recurso é proveniente do governo estadual, mas administrado

pelas prefeituras, que não são obrigadas a aplicar todo o recurso no faxinal,

mas que devem reservar uma parte a elas.

As discussões nesse sentido atualmente acontecem em Turvo, onde a

ARESUR foi reconhecida recentemente e o primeiro recurso anual do ICMS

ecológico chegou à prefeitura. Estivemos presentes com aproximadamente

vinte moradores do Faxinal Saudade Santa Anita quando se reuniram, em

janeiro de 2013, para discutir como aplicar os recursos em seu território e como

dialogar com a prefeitura acerca do valor a ser investido na unidade de

conservação. O acordo construído prevê que, após definirem projetos para

esse fim, haverá nova reunião com o poder público local para tratar das

possibilidades de financiamento.

15

O Decreto Estadual N.º3.446/97 criou as Áreas Especiais de Uso Regulamentado (ARESUR) para os territórios de faxinais no Estado do Paraná. 16

O ICMS Ecológico funciona como um incentivo para os municípios continuarem investindo na preservação ambiental, ao mesmo tempo em que serve como uma fonte de renda importante para muitos municípios e comunidades beneficiadas atuando, desta forma, como um grande instrumento de fomento ao desenvolvimento sustentável. O Paranáfoi o primeiro estado brasileiro a instituir o ICMS Ecológico. A comunidade que éreconhecida como ARESUR recebe o incentivo do governo Federal via município, e parte desse recurso éaplicado na comunidade com vistas àmanutenção do desenvolvimento sustentável.

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IMAGEM 2: Reunião entre faxinalenses e o vereador (próximo à porta de bermuda azul) do município e que mora no Saudade Santa Anita. Fonte: Camila Furtado, 2013.

Recentemente o faxinalense falou sobre o curso dessa discussão no

município:

A conjuntura politica do município é outra [em relação a discussão iniciada em 2013]. O prefeito Marcos foi cassado e entrou outro. Mas de qualquer forma o recurso estaria vindo só a partir de 2014. No mandato passado fizemos um plano de aplicação do recurso, o qual ficou muito bom no papel. Este ano já foi depositado na conta da prefeitura o ICMS [ecológico], mas como o prefeito atual está perdido, estamos com uma agenda formada para cobrar a aplicação nas prioridades e emergências da comunidade (O faxinalense B., 2014).

Essas discussões também estão em curso no município de Boa Ventura

de São Roque, pelo Faxinal dos Kruger, que é ARESUR desde 1999. Lá existe

um caso curioso, pois foram considerados ARESUR pelo reconhecimento e

cadastramento sigiloso da prefeitura que queria acessar os recursos do ICMS

ecológico, mas sem repassar aos Kruger. A partir do momento em que os

faxinalenses descobriram a trama, iniciaram as discussões com a prefeitura

para que o devido destino ao recurso fosse alcançado. Os Kruger venceram e,

afinal, desde o ano 2000 têm direito ao ICMS ecológico.

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A prefeitura de Boa Ventura do São Roque gasta o dinheiro com a

compra de materiais de construção – que segundo os moradores do Faxinal

dos Kruger têm valores superfaturados – mas não fornece mão de obra, a qual

deve ser contrapartida dos faxinalenses. Em média, o recurso anual se

aproxima dos R$ 100.000,00 no município que tem uma única unidade de

conservação, mas no último ano foi aplicada, segundo os faxinalenses, uma

parte pequena da quantia total, isto é, cerca de R$ 20.000,00 na comunidade.

O restante ficou com a prefeitura e os faxinalenses não sabem o que foi feito

com ele. Muitas vezes o recurso é aplicado em melhorias que são obrigação da

própria prefeitura e que, portanto, o valor para a efetivação das obras não

deveria partir do ICMS ecológico. É o caso de melhoramentos de estradas,

pontes e mata-burros17. O recurso da ARESUR deveria ser destinado a ações

de preservação ambiental e desenvolvimento sustentável.

As relações mais comuns com a prefeitura, então, envolvem o

reconhecimento e apoio para o cadastramento dos territórios de faxinais como

ARESUR, bem como pelo destino dos recursos do ICMS ecológico. Mas,

também há muitos faxinalenses que demandam a criação de leis municipais

que corroborem as leis estadual e federal, como relatado anteriormente. Dessa

forma, muitos conflitos causados pelos moradores que são contra os

faxinalenses não encontrariam respaldo no poder público local.

Essas demandas, apesar de locais, poderiam ser discutidas no

colegiado territorial já que envolvem faxinais de vários municípios do território.

A articulação dessas demandas no fórum territorial daria maior expressividade

e prioridade na agenda pública para esse grupo social específico.

17

Mata-burros são pontes vazadas que podem ser feitas de madeiras ou concreto. Elas são construídas em pontos estratégicos do território e têm a intenção de impor limites àlivre pastagem dos animais. A ideia éimpedir a passagem deles para além daquele ponto, evitando que evadam para muito longe e se percam, ou que invadam terras de plantas de agricultores que estão fora do faxinal e que por isso não estão incluídos nos acordos comunitários e, portanto, não provém para si cercas adequadas para barrar a entrada dos animais. Ou seja, éum instrumento que objetiva evitar o extravio dos animais e os conflitos com outros moradores em virtude da invasão de suas terras pelos animais do faxinal.

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91

2.5 AS DEMANDAS DOS FAXINALENSES E AS PERSPECTIVAS

ACERCA DAS RELAÇÕES POLÍTICAS NO TCPC

A organização dos povos faxinalenses desde os últimos dois anos passa

por uma fase de reestruturação e escassez de recursos materiais e de recursos

humanos, segundo a ótica de um dos líderes estaduais do movimento social

dos faxinalense, Hamilton José da Silva. Para ele, o reflexo disso pode ser

notado pelos obstáculos encontrados entre os faxinalenses em relação às suas

próprias demandas sociais. Essa situação evidencia um motivo para a

ausência dos faxinalenses em lutas políticas que não sejam específicas para

eles.

Como ilustração deste contexto, veja-se o caso de uma família que

pertencia ao Faxinal dos Kruger, de Boa Ventura de São Roque, que expõe as

atuais fragilidades da organização social desse grupo. O faxinalense

recentemente perdeu uma renda proveniente de recursos destinados ao

incentivo da mobilização dos faxinalenses em movimento social. O término da

bolsa-auxílio lhe tirou a possibilidade do continuar militando em tempo integral

e o obrigou a procurar trabalho fora da comunidade, porque quando militava

não tinha tempo de cuidar da sua terra e de sua produção de subsistência.

Atualmente reside com a família em Pitanga, onde trabalha em uma fábrica.

Outro líder, este do Faxinal Saudade Santa Anita, em Turvo, encontrou-se na

mesma condição ao perder sua bolsa-auxílio e se viu obrigado a deixar o

faxinal para viver com sua família em Irati, onde trabalha como vendedor.

As relações políticas da APF em nível territorial são poucas.

Praticamente não são solicitados às reuniões e são poucos os que estão

cientes do que acontece no território, ou o que se discute nas reuniões. A

maioria desconhece por completo as políticas territoriais. Os raros que

participaram das reuniões do colegiado foram como representantes de outros

grupos, como a AGAECO18 ou o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de

Pitanga, por exemplo, mas não como representantes dos faxinalenses. Um

líder do movimento social no estado e membro do faxinal em Boa Ventura do

São Roque diz nunca ter sido convidado e afirma que a APF não foi convidada

18

Associação dos Grupos Ecológicos de Turvo.

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92

como movimento a participar. Outro líder no mesmo município conta que foi

convidado – o que revela uma comunicação precária entre eles – mas diz que

tem dificuldades de se deslocar. Esses são problemas bem marcados pelos

faxinalenses: desconhecimento da existência das políticas, desconhecimento

sobre o funcionamento das mesmas, dificuldades de transporte e

impossibilidade de deixar o trabalho no meio de semana para participar das

reuniões.

Dessa forma, a participação nas reuniões do colegiado pelos

faxinalenses, ou dos faxinalenses que estejam lá para representar a

comunidade tradicional não ocorre. Não existe participação e, por isso, não

houve possibilidade de empreender projetos que os beneficiassem

diretamente.

A principal demanda faxinalense envolve o reconhecimento de suas

terras. Eles desejam ampliar seus espaços de reprodução social e cultural que

foram historicamente perdidos. Mas, sobretudo, querem conservar os espaços

atuais e dar condições a esses territórios de serem resgatados como lugar de

preservação ambiental, de desenvolvimento sustentável e de reprodução do

modo de vida que caracteriza suas tradições. Essa é a bandeira do movimento

social que os representa. A ARESUR é fundamental nesse processo, mas as

dificuldades de cadastramento dessas áreas são grandes empecilhos ao

atendimento das demandas dos faxinais no Estado.

Até o momento não houve, por parte daqueles que implantaram e

desenvolvem as políticas concernentes ao território Paraná Centro, um esforço

suficiente para integrar os faxinalenses em seus espaços de discussão. Nas

comunidades visitadas poucas pessoas têm conhecimento sobre a política

territorial. Os faxinalenses, por sua vez, além do desconhecimento, precisam

lidar atualmente com a precariedade da atuação da APF, o que acarreta certa

desorganização nas comunidades. Eles não participam por diversos motivos,

mas, na verdade, são poucas as pessoas entre os faxinalenses que teriam

condições de representatividade e capacitação suficiente para elaborar um

projeto que possa ser apresentado com potencial para atendimento de suas

demandas pela política territorial. Isto é um fato, porém relativo: nas instâncias

mais locais há demandas encaminhadas para o poder público. Fica evidente,

portanto, um limite da política territorial relacionado à dificuldade de organizar

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um processo de mobilização que leve as comunidades a encaminhar suas

demandas.

Outra carência explicitada pelos faxinalenses, para além da questão da

terra e da delimitação das condições para o recebimento do ICMS ecológico, é

a de se viabilizar assistência técnica e extensão rural de qualidade, com

agentes capacitados para compreender o potencial de cada comunidade. A

atuação da EMATER19 é de fundamental importância para o desenvolvimento

territorial, e em especial para os povos tradicionais. A falta de formação técnica

dos agricultores aliada à escassez da assistência técnica − que inexiste ou é

precária, tanto pela exiguidade de técnicos como pela visão de assistência

incompatível com a realidade dos faxinalenses − são percebidas como

entraves diretos para desenvolvimento das comunidades. Seria fundamental

que tais demandas pudessem ser intermediadas pela política territorial cuja

chancela e reconhecimento poderia favorecê-los na disputa por recursos.

Nas diversas entrevistas que tivemos com os moradores das

comunidades pesquisadas foi possível perceber através de suas falas que, de

fato, apesar do interesse crucial na construção de uma estrutura que possibilite

o desenvolvimento econômico local a partir de agroindústrias que se adaptem

às aspirações e vocações que ali podem ser encontradas, há também,

concomitantemente, grande interesse em outro tipo de estrutura, ou seja,

aquela que viabilize a permanência do jovem no campo. Sem dúvida, a

primeira estrutura – a econômica – por si só pode engendrar mudanças de

grande importância por meio da criação de postos de trabalho formais ou

informais que atuem para a geração de renda e, portanto, para a maior

probabilidade de enraizamento do homem, e em especial, do jovem no campo.

Por outro lado, há a demanda de uma política educacional voltada para

a cultura local, que possa, para além da oferta de cursos direcionados às

práticas produtivas peculiares àquela sociedade, valorizar a vida dos jovens

que vivenciam no meio rural, e que cultivam esse modo de vida específico. Há

muito interesse na construção de instituições como a Casa Familiar Rural nas

proximidades dos faxinais. Igualmente importante é a demanda para

construção de espaços de lazer – como campos de futebol, quadras

19

Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural.

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poliesportivas, clubes que promovam bailes, festas e demais atividades –

dentro da comunidade e que sejam atrativos aos jovens que dessa forma

ficariam menos interessados em buscar tais recursos fora dela, e que por isso

tenderiam a valorizar sua própria comunidade como local de reprodução da

vida com plena capacidade de satisfazer suas necessidades.

O Faxinalenses X (2013) é um dos líderes de um dos faxinais, vinculado

à APF. Ele participou por dois anos nas reuniões do território como um dos

representantes da AGAECO e, portanto, entre os faxinalenses é uma das raras

pessoas que conheceu a mecânica das discussões e os resultados delas

dentro do território. Segundo o entrevistado, a AGAECO apresentou várias

demandas que não foram aprovadas. Por exemplo, houve um projeto de

construção de uma central de comercialização no Turvo, um tipo de armazém

solidário que proporcionaria espaço para a venda das mercadorias locais

produzidas pelos agricultores familiares. Contudo, apesar de apresentarem o

projeto e de haver recursos, este foi destinado a outro investimento: a

construção do abatedouro em Pitanga, que é uma das benfeitorias que ainda

não está em funcionamento e que tem apresentado diversos problemas que

estão inviabilizando a obra. Apresentaram a necessidade de comprar um

caminhão, e da mesma forma não tiveram êxito. O Faxinalense X (2013)

entende que esses benefícios propiciados pelos recursos federais “ficam

circulando entre as prefeituras devido às relações que estas mantêm entre si,

onde um privilegia o outro”, e dessa forma não abrem espaço para o

atendimento de outras demandas em que grupos como a AGAECO ou os

faxinalenses possam ser contemplados. Para ele, as propostas que se

aprovam já estão acertadas e o grupo que coordena e domina as reuniões é

muito fechado. Ele cita a própria EMATER para afirmar que as demandas

apresentadas por esse órgão são ouvidas, mas que seu viés é sempre

produtivista, voltado exclusivamente para agricultores inseridos nas principais

cadeias produtivas. Ademais, as prefeituras e seus representantes não

simpatizam com as práticas da agroecologia e muito menos do extrativismo,

características comumente encontradas nos faxinais.

O Faxinalense X (2013) ressalta que a participação de pequenos grupos

como o dos faxinais ou a AGAECO serve mais para legitimar o espaço de

discussão das políticas do que para ouvir ou atender suas necessidades

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específicas. Por isso são convidados. É uma forma de, pelo menos no papel,

apresentar uma pluralidade de povos representados nas instâncias territoriais.

Assim, tentar ocupar esses espaços a fim de demandar recursos para

investimento nos faxinais é gastar muita energia que, ao fim e ao cabo, não

traz nenhum retorno. Desse modo, ele acredita que somente se a política

territorial conseguisse atender a toda a diversidade do território é que seria

considerada importante. Mas, gastar os recursos disponíveis para comprar

carros para as prefeituras que servem para "bater na estrada" gera pouca

mudança para as comunidades e para o agricultor familiar e, sobretudo, não

gera o desenvolvimento da região, questão central da política. Ademais,

investir apenas em cadeias produtivas como a do leite ou a das plantas

medicinais muitas vezes não é o suficiente para manter o agricultor familiar, e

principalmente o jovem no campo.

Ainda no que tange às principais demandas de agricultores ligados aos

faxinais, nota-se que as estradas necessitam com urgência de melhorias que

permitam o acesso e transporte de pessoas e de mercadorias. A construção de

pequenas agroindústrias também seria de grande importância, como

abatedouros, agroindústrias de erva mate e de plantas medicinais através das

quais proporcionaria uma valorização do trabalho do campo e da agricultura

familiar, além de gerar emprego e renda.

Um mediador social presente no TCPC destaca:

“Veja que [...] do ponto de vista da política da SDT [Secretaria de Desenvolvimento Territorial], fica muito claro que você tem que olhar as várias dimensões econômicas do sistema rural, além da cultura, etc. Mas tudo que vem, vem muito forte tingido do componente econômico.” (Técnico, ONG, Guarapuava, 2013).

Em outras palavras, segundo o entrevistado é evidente que, apesar das

diretrizes da política contemplarem também a dimensão cultural, na prática não

é esse o aspecto priorizado na hora de decidir como e onde aplicar os

recursos.

No Faxinal dos Kruger, em Boa Ventura do São Roque, reunimos um

grupo de faxinalenses para discutir seus problemas e demandas. Os homens e

mulheres ali reunidos falaram sobre o completo desconhecimento acerca das

reuniões que acontecem em Pitanga e que envolvem a elaboração das

políticas do território. Todos, exceto o Faxinalense Y (2013) que é o líder da

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comunidade, desconhecem o assunto. Ele contou que foi convidado a

participar das reuniões e acredita que elas servem para discutir políticas

públicas que venham a contribuir com o desenvolvimento social e econômico

do agricultor familiar. Em contradição com outros relatos de pesquisadores e

faxinalenses, diz que eles, como povos tradicionais, têm uma cadeira para

participar das reuniões, mas ainda não participaram. Com efeito, não possuem

uma cadeira no colegiado. Empecilhos à participação são explicitados como a

falta de tempo, a distância e a dificuldade de transporte, fatores nem sempre

considerados como os obstáculos mais significativos pelos que são de fora da

comunidade:

“[...] um pouco é uma desculpa para não ir, mas não é uma desculpa intencional (...). Problema de transporte? Eu vejo isso como dificuldade. Eu acho que tem recurso para isso e falta conhecimento de como fazer. E falta compreensão do significado dessa ida lá (na reunião). Eu acho que falta essa compreensão por parte dos faxinalenses até porque eu acho que existe um esforço de algumas organizações para trabalhar com os faxinalenses, até por conta das políticas de apoio aos faxinalenses, às comunidades indígenas e tal. Mas, eu não sei, eu vou afirmar, mas não sei se essas organizações que estão trabalhando com essas comunidades inserem e veem como importante inserir esse tema no trabalho que fazem com eles. Assim, inclusive várias vezes transferimos alguns encontros com os faxinalenses [...]. A gente percebe que o trabalho que eles fazem que épositivo nesse aspecto é tentar reavivar a cultura deles, valorizar essa cultura, trazer de volta elementos que eles podem estar utilizando da cultura deles, do modo de ser, fazer e pensar deles. Esse modo de fazer, pensar, que é cultural, não tem nenhum vínculo com o colegiado.” (Técnico, ONG, Guarapuava)

Essa fala representa bem uma resposta padrão dada pelos

representantes das prefeituras, da EMATER e de outras organizações

envolvidas na política territorial. Parece um pensamento consolidado de que as

comunidades tradicionais têm outros compromissos que são realizados através

de instâncias particulares que agem no sentido de resolver problemas

relacionados à defesa de sua cultura, e nada mais. Não há uma compreensão

de que seja importante criar espaços dentro do TCPC que provoquem a

participação das comunidades tradicionais. Suas demandas não encontram

abrigo nas discussões do território porque não há, por parte de seus gestores,

nenhuma inclinação para envolvê-los como grupos prioritários e capazes de se

inserir em discussões concernentes à formatação da política que ali se

desenvolve. A atitude é sempre a de encarar essas comunidades como “peixe

fora d´água”, como foi ressaltado pelo entrevistado anteriormente.

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Quando indagados sobre quais seriam as necessidades da comunidade,

os faxinalenses dos Kruger responderam que é importante para eles que haja

investimento na capacitação das mulheres como a costura para a produção de

roupas íntimas, pois esta é uma coisa que se pode fazer em casa, ou nas

proximidades, e daria oportunidade às mulheres de terem uma renda. Elas já

produziram tapetes, mas a renda extraída dessa atividade é irrisória, por isso

acreditam que são as roupas íntimas que podem gerar uma renda adequada

para as mulheres que certamente contribuirá para a elevação da renda familiar

e consequentemente para a qualidade de vida. Mas, não adianta dar curso de

costura e não ensinar a produzir com vistas à comercialização dos produtos.

Como são criadores de porcos experientes sugerem também

investimentos para a implementação de uma pequena indústria de carnes e de

linguiças, assim como a construção de um espaço que sirva de lugar para

armazenar os produtos.

Também destacaram a educação do campo, com a existência de

professores preparados para “falar a língua do faxinalense”, a fim de ensinar os

alunos sobre a importância do seu modo de vida, e que estes possam receber

uma educação que os prepare para dar continuidade à vida no faxinal.

Igualmente, notam a necessidade de gerar renda para os jovens, porque, caso

contrário, eles vão embora para a cidade. Cita-se, nesse sentido, a instalação

de pequenas agroindústrias no modelo de cooperativas para a erva-mate, para

a costura e para processamento de derivados de carnes.

As demandas continuam. Para o Faxinalense W (2013) uma cooperativa

de erva-mate seria um bom começo. Seria necessária a instalação de uma

estrutura que levasse o produto até o processo final, além de um caminhão

para o transporte. Através de um “barbaquá”20 completo se teria condições de

realizar a produção, o que resultaria na agregação de valor sobre o produto

que hoje é pouco porque é vendido sem empreender o processo para

transformá-lo em produto finalizado e pronto para o consumo. Assim seria

possível transportar com seus próprios recursos o produto empacotado para

20

Os produtores de erva-mate adotavam na sua fabricação o "Barbaquá", um sistema constituído de um carijó–armação de varas em que se suspendem os ramos da erva-mate –, um estrado de madeira em que eram depositados os feixes de erva para a secagem sobre a boca de um túnel que conduzia o calor produzido por uma fornalha, e onde permanecia por aproximadamente vinte horas para a completa torrefação das folhas. A seguir passavam para a cancha perfurada para processar a moagem das folhas de erva através de tração animal.

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comercializar. Mas é necessário que sejam capacitados para a concorrência,

para saberem inserir esses produtos no mercado. Isso geraria inclusive renda

extra para aqueles que não têm erva mate, mas que poderiam ajudar no

processo que vai do faxinal ao mercado.

Entende também que as plantas medicinais precisam igualmente de

investimento para o comércio. Por isso é oportuno pôr em prática a instalação

de secadores dentro das comunidades que têm potencial produtivo nesse

sentido. A COOPAFLORA21, segundo ele, tem estrutura muito precária que não

permite ao produtor tirar o melhor proveito da terra. Ele explica que, se dois

litros de chão forem plantados com orégano, por exemplo, a cada dois meses

proporcionará uma colheita de R$ 600,00. Mas por causa de problemas

estruturais da COOPAFLORA, esse processo fica comprometido, pois há

demora em realizar a colheita, o que acarreta atraso do novo plantio e a perda

potencial de renda. Além disso, são relatados problemas com o pagamento,

sobretudo, atrasos.

A agroecologia igualmente precisa de investimentos. A estrutura

adequada para essa prática deve ser viabilizada com a atuação de técnicos,

questão indispensável para o desenvolvimento econômico nos faxinais. A partir

disso teriam condições para participar com mais facilidade do PNAE e do

Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), por exemplo. Os técnicos, além

do mais, poderiam auxiliar, instruir e capacitar os produtores a lidar com a parte

burocrática com vistas à efetivação dos contratos referentes a esses

programas.

Questionado sobre a importância de intercâmbios com o SEBRAE22, um

dos faxinalenses entrevistados entende que é válida a parceria no sentido da

possibilidade dos técnicos orientá-los em relação às questões que

desconhecem sobre o processo produtivo. Crê que é fundamental ter um

acompanhamento que os capacite às realizações produtivas e comerciais que

anseiam conquistar, pois atualmente não só carecem de capital econômico

como também de conhecimentos suficientes para esse tipo de

empreendimento.

21

Indústria nascida em 2006 de uma ONG –Instituto Agroflorestal (IAF)–localizada em Turvo. Compra plantas medicinais dos produtores da região e processa os produtos para negociar no mercado mais amplo. 22

Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas.

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É evidente que a industrialização dos produtos é um terreno novo para

os faxinalenses, mas nem por isso eles temem investir nessa área e, pelo

contrário, estão dispostos a entrar no mercado e apresentar mercadorias

competitivas. Contudo, faltam demasiados conhecimentos técnicos para tanto,

que podem ser percebidos em toda a fala, sobretudo quando solicitam um

barbaquá completo, que se trata de um engenho obsoleto. É evidente que

precisam de assistência técnica que os conduza desde o projeto inicial até a

implantação e pleno funcionamento de qualquer indústria que por lá possa se

instalar.

O Faxinalense K (2013), líder do faxinal em Pitanga, tinha poucas

informações para contribuir, pois apesar de conhecer a política do território

nunca foi convidado a participar enquanto faxinalense. Entretanto, no início de

formação do grupo gestor participou como representante do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Pitanga por dois anos. Segundo ele, a falta da

discussão da reforma agrária impediu que seguisse com as discussões de

forma mais ampliada. Sendo assim, ele entende que sua ausência às reuniões

se justifica porque não consegue vislumbrar meios de as demandas dos

faxinalenses que ele representa serem atendidas pelas políticas e seus

recursos ali vigentes. Interessante citar que o Faxinal de Pitanga conta com

sete famílias que estão há pouco tempo mobilizadas com a APF e na

expectativa de serem reconhecidos como faxinalenses. O interesse maior e as

energias dispostas estão sendo focadas no reconhecimento do faxinal e,

consequentemente, deste como ARESUR com vistas ao acesso ao ICMS

ecológico.

Contudo, o Faxinalense K (2013) acredita que vai participar ainda em

2013 das reuniões do Colegiado, mas tem poucas perspectivas quanto ao

potencial das demandas de quaisquer comunidades faxinalenses serem

contempladas, pois entende que os recursos ali disputados já estão

direcionados para setores da sociedade que se identificam com as iniciativas

ligadas à agroindústria, ou seja, privilegia agricultores que já se familiarizam

com tais iniciativas há mais tempo que eles.

Visitamos e conversamos com diversos moradores de faxinais, mas

foram suas lideranças quem mais se manifestaram para exprimir uma visão

geral das necessidades, das perspectivas e das impressões dos faxinalenses

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da região, haja vista serem os líderes locais e, em alguns casos, estaduais da

APF e, portanto, com uma trajetória mais ligada às políticas públicas ao longo

do tempo. Além disto, como em outras realidades de grupos sociais, são os

que mais adquiriram a prática de falar com os deforada comunidade. No

entanto, nas conversas informais com os demais moradores, sentiu-se a

concordância com as demandas expressas pelas lideranças, mas com um total

desconhecimento da política territorial.

As demandas das comunidades tradicionais, bem como os motivos da

ausência desses povos nas reuniões do colegiado podem ser resumidas no

quadro a seguir:

comunidades faxinalenses

Demandas apontadas pelos

faxinalenses

Motivos da não participação nas

reuniões do colegiado

Faxinal dos

Krueger

Geração de renda para as mulheres e para os jovens; atividades que proporcionem a diversão e a permanência dos jovens no campo; capacitação das mulheres para a produção de confecções; estrutura para uma pequena indústria de confecções; implementação de pequena indústria de carnes e linguiças; instalação de uma pequena indústria de erva-mate; parceria com o SEBRAE para capacitação e integração dessas indústrias ao mercado; educação do campo de qualidade e voltada para a cultura faxinalense; melhorias nas estradas; investimentos na capacitação para a prática da agroecologia;

Desconhecem o funcionamento e os motivos da política territorial e das reuniões do colegiado. Nunca receberam uma visita de algum gestor ou articulador político para maiores esclarecimentos. Há dificuldades de transporte em virtude dos custos e da distância (aproximadamente 70 km).

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Faxinal Saudade

Santa Anita

A principal demanda: ampliação de seus espaços de reprodução social historicamente expropriados; a valorização de sua cultura e de sua economia; a criação de espaços de lazer dentro da comunidade para a permanência do jovem no faxinal para dar continuidade ao modo de vida; escola do campo que ofereça educação étnica e cultural faxinalense; construção de uma Casa Familiar Rural na comunidade; transportes para os jovens que estudam na cidade (20 km de distância da comunidade); Comunicação (sinal de internet e celular); melhorias nas estradas.

Os mesmos motivos do Faxinal dos Kruger. A distância entre a comunidade e o local das reuniões do colegiado são ainda maiores.

Faxinal dos

Telles

Reconhecimento do faxinal como Área Especial de Uso Regulamento (ARESUR), e por meio disso acessar o recurso estadual do ICMS ecológico para aplicar na comunidade através da Prefeitura de Pitanga.

Não acreditam que possam ter suas demandas atendidas pelo colegiado. Não foram convidados a participar das reuniões. Faltam-lhes esclarecimentos acerca do funcionamento das políticas e motivos das reuniões do colegiado.

QUADRO 1 – demandas dos faxinalenses e motivos para a não participação na política territorial

Foi notável, através da pesquisa de campo, a falta de acesso das

comunidades faxinalenses aos recursos de investimentos da política territorial

oriundos, principalmente, do MDA. Este ministério disponibiliza recursos anuais

mediante elaboração de projetos pelas partes interessadas e que são

submetidos publicamente nas reuniões do colegiado à apreciação e,

consequentemente, à aprovação ou não dos tais projetos. Estes são referentes

às obras e ou beneficiamentos de estruturas de produção visando o

desenvolvimento econômico e social de partes da população do território,

elevando o nível de integração dos municípios nesses aspectos. Esses

projetos também podem ser de ordem cultural ou para melhoria de estruturas

públicas que desenvolvam a qualidade de vida da população.

As comunidades tradicionais não são desprezíveis em número na

região, mas apesar disso sua participação continua sendo inexistente nas

reuniões do colegiado. Há muitos motivos elencados para essa ausência, mas

tudo indica que os problemas são de ordem estrutural do próprio Território

Paraná Centro. Não quer dizer com isso que as comunidades tradicionais não

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têm ideias para projetos ou demandas claras, mas estão muito desinformados

sobre o funcionamento do PTC e sobre as atividades do colegiado.

Nas comunidades visitadas durante o trabalho de campo foi possível

perceber uma demanda em comum: a necessidade de capacitação técnica

para a produção, mas, sobretudo para a elaboração de projetos com vistas à

captação de recursos. Essa é uma demanda séria, e sua importância pode ser

mais bem compreendida quando se depara com o fato de que nenhuma

comunidade tradicional, inclusive as comunidades indígenas e quilombolas do

TCPC, apesar das boas ideias, tem quaisquer projetos elaborados, ou seja,

não há nada escrito, posto no papel. É necessário um olhar de entidades

sociais que possam sanar essa necessidade. A assistência técnica ao

agricultor familiar deve passar também por essa questão tão cara.

O atendimento às demandas das comunidades tradicionais é destacado

como prioridade da política territorial e como pressuposto básico da escolha da

região como Território da Cidadania. Contudo, as comunidades tradicionais

não têm sido ouvidas em suas demandas, e sua não participação nas reuniões

do colegiado revela a ausência de espaços mais que apenas legítimos, mas,

funcionais para a inclusão desses povos às arenas de elaborações e decisões

das políticas públicas no Brasil.

A desinformação dessas comunidades opera como um sintoma da falta

de planejamento do TCPC com vistas a uma boa execução de inclusão da

diversidade dos povos do território nas discussões acerca das políticas

públicas no Paraná Centro. A região é grande e envolve 18 municípios. Não há

estrutura de pessoal e de recursos financeiros à divulgação necessária para

alcançar a maioria da população. As propagandas veiculadas às rádios locais

não foram suficientes. A ausência de recursos humanos capacitados para

informar a população sobre a política territorial gerou em partes a ineficiência

do TCPC, e isso porque não foi capaz de engendrar a participação popular de

povos relevantes política e culturalmente na região. Desse modo, além da falta

de estrutura é possível pensar que há questões políticas em jogo que vão além

da incapacidade de fornecer informações e esclarecimentos sobre a

participação. Que ultrapassam a incapacidade em fornecer os meios

suficientes para a inclusão das comunidades tradicionais nessa política.

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Contudo, não foi possível avançar na comprovação dessa hipótese nesse

estudo.

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3 CONTEXTO HISTÓRICO DA FORMAÇÃO SOCIAL E ECONÔMICA

DO FAXINAL SAUDADE SANTA ANITA

A história do Paraná, não raro, foi contada pelo ponto de vista do

desenvolvimento da economia e, por isso, atrelada aos denominados ciclos

econômicos que vão desde a lavra do ouro, passando pelo tropeirismo,

seguido pela fase ervateira, depois pela madeireira e, enfim, pela

modernização da agricultura e da indústria e seus desdobramentos

principalmente a partir da segunda metade do século XX.

É este o fio condutor da contextualização histórica na dissertação de

mestrado de Chang23 (1985). Ela buscou através dos ciclos econômicos do

Paraná compreender a formação do modo de vida nos faxinais, bem como

desvendar os motivos para o desenvolvimento e declínio desse tipo de

organização rural no interior do Estado. O conteúdo de sua obra, embora

importante em muitos aspectos, evidencia uma agricultura refém das

transformações econômicas e sociais gestadas a partir da grande produção e

das políticas de fomento a ela atreladas que deixa o agricultor familiar como

folha ao vento, flutuando ao sabor das intempéries das políticas de

desenvolvimento dos grandes negócios que a cada passo relega o agricultor

familiar a um futuro incerto e ameaçador. Essa visão, além de negar a

criatividade e o vigor da ação desse agricultor em prol da defesa de suas

demandas e espaços de reprodução social, econômica e cultural – como a que

se vê atualmente através do movimento social dos faxinalenses – também

deixa passar um aspecto importante da pequena produção, que é a de estar

integrada ao capital em menor ou maior grau e, portanto, integrada ao mercado

e a sociedade local com inesgotável capacidade de adaptação às mais

variadas transformações econômicas e sociais. Através do mercado o capital

se relaciona com o excedente do produtor assimilando-o e definindo o que o

pequeno produtor produz.

Por outro lado, embora não seja desprezível também não é abundante a

produção científica que se encontra sobre a economia dos produtores

familiares da agricultura, daqueles que vivem no nível de subsistência, ou

23

A produção intelectual de Chang sobre os faxinais foi discutida com mais intensidade no primeiro capítulo.

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daqueles que contribuem desde a miúda até a boa medida com a produção

voltada ao abastecimento do mercado interno, a exemplo da diversidade de

meios de vida e produtivos que se pode encontrar nos faxinais e em outras

comunidades tradicionais no Brasil.

É comum em autores como Caio Prado Júnior e Celso Furtado encontrar

textos que contam o desenvolvimento da agricultura brasileira de exportação,

desde a produção do açúcar à do café. Os desenvolvimentos históricos da

economia agroexportadora brasileira desembocaram nos últimos anos num

período de economia de commodities. Todavia, alguns historiadores têm

trilhado por outro caminho na produção de conhecimento acerca da agricultura

no Brasil que abre outra perspectiva para a compreensão de parte obscura da

nossa história, ou seja, da história da pequena produção, dos pequenos

proprietários, da agricultura de subsistência que, inevitavelmente, há muito

nunca deixou de existir no Brasil. Entender de forma interdisciplinar a produção

regional voltada para o abastecimento do mercado interno, bem como as

transformações gestadas no Paraná a partir de uma concepção de

modernização da produção é de grande importância para a compreensão da

relação entre a história social, a sociologia, a economia, a política, a geografia

e a cultura que incidem sobre as mentalidades humanas que dão forma ao

conjunto das relações que se pretende estudar. Contribui de igual modo para a

percepção da invisibilidade do tema desde a produção de conhecimento até os

debates políticos e midiáticos atuais.

Santos demonstra que durante parte da história, sobretudo durante o

século XVIII até pelo menos o terceiro quartel do XIX, o sistema agroalimentar

paranaense era débil, portanto, crônica a situação de carestia, escassez,

penúria, cujas causas eram encontradas nos métodos rudimentares da prática

agrícola, na ausência de estradas de rodagem para o escoamento de produção

que tornasse o comércio mais eficaz, além do desequilíbrio entre a produção

do setor comercial exportador e o de subsistência. Aliás, Santos destaca que

esse era um problema geral do Brasil, isto é, o abastecimento do mercado

interno era dependente das importações (SANTOS, 2001, p.16, 17). Contudo,

há teses que comprovam que a agricultura de subsistência abastecia o

mercado colonial com os produtos alimentícios comercializados internamente

nos séculos XVI e XII (FRAGOSO, 1998).

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No contexto histórico da Revolução Industrial do século XIX, países

capitalizados e industrializados eram centrais na economia mundial. O Brasil,

recém-independente de Portugal, integrava o mercado internacional como país

periférico, agroexportador, e importador de produtos básicos e artigos de luxo.

É evidente que o Brasil tornou-se livre do período colonial para adentrar no

período neocolonial. A necessidade de modernizar o país requeria mudanças

importantes, como a abolição da escravatura e a importação de mão-de-obra

livre, assim como um novo ordenamento jurídico sobre a questão da

propriedade e uso da terra (NADALIN, 2001, p. 56 - 59).

Nesse contexto, foi na gestão do Presidente Provincial Lamenha Lins

que um projeto político de desenvolvimento e modernização regional foi

executado a fim de superar a limitação de ordem econômico-social, mesmo

que com ações realizadas gradualmente. Dois pontos sobressaltavam a essa

política, isto é, a abolição paulatina da escravatura, e o fomento à imigração

europeia. Estes fatos impulsionaram o desejado desenvolvimento – gradual e

forçosamente – pois contribuíram com a política provincial em virtude de

satisfazer a demanda evidente por mão-de-obra livre, o que consequentemente

ocasionou o aumento populacional e igualmente a procura por alimentos.

Desta forma, os pilares para o estabelecimento de um mercado interno mais

consistente, e menos dependente, foram lançados. Contudo, não é possível

compreender esse processo de modernização da economia do Estado senão

desde a economia tradicional de subsistência. A superação do desequilíbrio na

economia paranaense está diretamente ligada à formação da estrutura

agroalimentar. E esta é considerada ponto obrigatório da passagem do estágio

economicamente menos desenvolvido para o mais desenvolvido nesse

processo histórico (SANTOS, 2001, p. 17).

O período de transição da mão-de-obra escrava para o trabalho livre se

deu desde 1860. Este processo foi parte de um projeto de desenvolvimento e

modernização do Paraná em consonância com a política imperial. Apesar da

tendência mundial da substituição do trabalho escravo pelo livre, o Brasil foi um

dos últimos países a, de fato, usar de modo hegemônico o trabalhador livre.

Dessa forma, ainda no século XIX foram lançados os fundamentos da força de

trabalho rural no Paraná, sendo o imigrante um desses componentes, tendo

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principalmente o caboclo e o negro, inegavelmente, como participantes ativos

dos desenvolvimentos na produção rural paranaense.

A ocupação do espaço rural no Turvo se deu a partir do último quartel do

século XIX. Há duas versões sobre os pioneiros a se instalarem na região. Por

um lado, Marcondes (1996) relata sobre a chegada, em 1877, de José Cipriano

de Campos que veio de Palmeirinha, hoje distrito de Guarapuava, e com sua

família fez morada no lugar que mais tarde foi nomeado e ainda persiste como

Saudade Velha, e que é assim chamado por ser reconhecido como o primeiro

lugar da região a ser povoado.

Por outro lado há evidências da presença de negros que se instalaram

na localidade que ficou conhecida como Comunidade dos Negros, ou

Curitibinha dos Pretos, ou ainda, Campina dos Morenos. As sete famílias que

ainda residem na comunidade são descendentes dos negros outrora

escravizados que fugiram de seus senhores e se apropriaram de determinada

área de terra desde o século XIX. Eles têm o conhecimento de sua história

através da tradição oral, pois sempre ouviram relatos de seus antepassados

que se contavam como “negros fugidos”, como a própria moradora nos

informou. Atualmente os moradores locais se autoidentificam como quilombolas

e receberam certificado24 pela Fundação Palmares que reconhece suas

propriedades como terras quilombolas.

Há também informações não confirmadas “em registros cartoriais ou

fontes históricas [que] se referem à existência de grandes áreas de terras,

conhecidas por sesmarias, que ocupavam as áreas de sertão até o fim do

século XIX” (SOUZA, 2001, p. 42)25. Além disso, havia grandes áreas de terras

devolutas, o que dava ao Estado o controle da quase totalidade das terras da

região.

Contudo, há consenso que dentre os primeiros moradores a se

instalarem no faxinal no final do século XIX estão os caboclos, que

convencionalmente se entende como os luso-brasileiros, isto é, homens e

24

Fomos incumbidos – Gilmar Moreira do Amaral e eu no papel de pesquisadores da UFPR na Avaliação do Programa Territórios da Cidadania – de lhes entregar no final da tarde do dia 1ºde maio de 2013 este certificado que nos foi confiado por Dona Ana Maria durante nossa visita naquela manhã à Comunidade Invernada Paiol de Telhas, em Guarapuava. 25

Roberto Martins de Souza fez uma análise histórica e sociológica acerca dessa comunidade Saudade Santa Anita em sua dissertação de mestrado defendida em 2001. Esse trabalho continua sendo a melhor fonte histórica para pesquisadores que se interessam em estudar esta comunidade.

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mulheres gerados da prática da miscigenação ocorrida por gerações

principalmente entre portugueses e indígenas. O entrevistado Gilmar Moreira

do Amaral26 atesta que “os caboclos já estavam aqui antes dos imigrantes

italianos, polacos, alemães e russos chegarem. Numa época em que só havia

picadas no meio da mata. Os sobrenomes são mais de origem portuguesa: M.,

F., O., F2., R., M2.” (AMARAL, 2013).

Aqui cabe ressaltar a importância da cultura cabocla para a formação do

faxinal Saudade Santa Anita como um modo de vida embasado num sistema

produtivo comum. Atualmente ainda é possível sentir a tensão na relação entre

o caboclo e o migrante europeu na comunidade. Tensão que é, portanto,

histórica.

Em geral na literatura o destaque à formação dos modos de viver e de

trabalhar na agricultura foi atribuído à força e cultura do imigrante, como é

possível perceber nas frases a seguir retiradas do livro Um Brasil diferente de

Wilson Martins: “o que se observa em conjunto é a preferência por linhas

arquitetônicas europeias” (MARTINS, 1989, p.2); “a alimentação sofreu a

influência da culinária europeia” (MARTINS, 1989, p.3); “O tipo físico do

homem sulino apresenta notáveis sinais de cruzamento de sangues europeus”

(MARTINS, 1989, p.3); “civilização construída pelo grupo, que partiu do arado,

da carroça de quatro rodas, e não do fuzil e do cavalo. Civilização que é

comercial desde os seus primeiros dias” (MARTINS, 1989, p.10).

Pode-se observar o mesmo teor de uma superioridade cultural europeia

na formação social paranaense através dos poemas de Brasil Pinheiro

Machado quando ressalta:

Onde em vez do caboclo meio bronze mulato Andassem polacos fazendo barganhas de porco e plantando mandioca (MACHADO, 2001, p.23).

Ou ainda:

O polaquinho O russinho O alemãozinho O italianinho

26

O entrevistado é nascido e criado no Faxinal Saudade Santa Anita e se considera faxinalense. Atualmente é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografia na UNICENTRO em Guarapuava. Atua como pesquisador e articulador político. Compôs pela UFPR o grupo de pesquisas “Avaliação do Programa Territórios da Cidadania a partir da Análise das Ações Implementadas no Território Paraná Centro, PR”.

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Nascido ali... (Machado, 2001, p. 25).

Contudo, ao contrário do que algumas elites paranaenses gostariam que

se pensasse – como se vê no livro um Brasil diferente que evidencia o

imigrante europeu e esquece o caboclo, o índio e o negro – não há como

refutar a importância dos trabalhadores de outras etnias para a produção

comercial e de subsistência na história do estado. Os autores acima

destacados, que ressaltaram o papel do imigrante europeu na colonização e no

desenvolvimento econômico paranaense, fazem parte de uma intelectualidade

regional que fundou uma corrente conhecida como “paranismo”. Nesta linha,

combatendo as ideias de democracia racial27 na formação brasileira, estes na

maioria das vezes não consideraram a participação de outros povos nesta

empreitada. Hoje estas ideias já foram veementemente combatidas pela

historiografia (SZWAKO, 2009) e a presente pesquisa também se delineia no

sentido de salientar a presença e participação intensa do caboclo no

desenvolvimento econômico paranaense e mais especificamente nos faxinais

e, sobretudo, no Faxinal Saudade Santa Anita.

É importante fazer um resgate do elemento caboclo, pois ele compõe de

modo fundamental nossa história tantas vezes escondida, negada, excluída.

Reintroduzir o caboclo na produção intelectual é revelar um país miscigenado

e, portanto, multicultural, cercado de contradições e de violências contra a

diversidade cultural. No caso da cultura cabocla sua riqueza é incontestável e

as inter-relações com a cultura dos imigrantes e migrantes europeus implicam

as trocas culturais entre as etnias.

Sobre a cultura cabocla é possível afirmar:

A base associativa cabocla é a família “ampla” que inclui o compadrio. Seu sistema de produção e de organização do trabalho se orienta pela lógica da subsistência dessa família. Nos primeiros tempos de sua autonomia, em geral em terras devolutas, viviam da caça, da pesca, de coletas e de extrativismo (erva-mate e madeira). Aos poucos desenvolveram um sistema integrando extrativismo, pecuária e agricultura, conhecido como faxinal, combinado com a técnica de pousio. Aos poucos também expandem a atividade suinícola (pelo sistema conhecido como de roças de mato ou de clareira), a atividade pecuária do leite e a ampliação do extrativismo da madeira e da erva-mate, vendida in natura aos “castelhanos”, ou “cancheada” para o mercado local ou regional (GEHLEN, 1998, p. 67).

27

Ideia muito difundida no meio intelectual brasileiro contida no livro Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, escrito em 1933.

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Em fins do terceiro quartel do século XIX uma picada foi aberta no meio

da mata com destino a Turvo e arredores com o objetivo de transcender as

fronteiras de regiões já povoadas, e por onde as famílias dos pioneiros

colonizadores partiram para adquirir terras do governo. Isso aconteceu de certa

forma como consequência do declínio em todo o estado das atividades

baseada no tropeirismo. Assim, fazendeiros falidos, ex-agregados, e famílias

com pouca ou nenhuma terra partiram para as matas com o intuito de

conquistar novos territórios, o que engendrou um processo de colonização

local. Desde Guarapuava por lá chegaram muitas famílias. M1., B., L., M2., R.,

P., e M3., “entre outras, todas de origem luso-brasileira (...) no período de 1870

e 1900” (SOUZA, 2001, p. 43).

Não havia atividade econômica relevante comercialmente, senão a

negociação de porcos. Portanto, os que por lá chegaram encontraram na

criação extensiva de animais as condições para a sobrevivência. Porcos a solta

faziam parte da paisagem comum e eram criados dessa forma por causa da

facilidade de encontrarem alimentos por conta própria no meio da mata, o que

diminuía a necessidade de dar o trato ao animal. Assim, a partir da percepção

da importância econômica desse modo de produção animal, gradualmente se

formou o criador comunitário28. Basicamente, então, a economia local girava

em torno da comercialização das tropas de suínos. As relações de trabalho

eram entre os maiores posseiros e os poucos agregados que mantinham laços

de compadrio num sistema onde os mais descapitalizados – pois desde o início

da colonização local já existia a diferenciação social baseada na propriedade

da terra – exerciam o papel de subserviência. A criação de gado e a agricultura

de subsistência somava-se a economia mais fundamental para as famílias da

região, além do miúdo comércio que engendrava. Completava o cenário inicial

dessas relações a prática entre os moradores locais da separação, por um

lado, das terras de planta, e por outro, das terras de criação, onde as terras de

planta eram cercadas – o que deixava aos animais bastante espaço livre para

buscar alimentos. Assim, entrou-se em consenso acerca do funcionamento

28

As áreas selecionadas para organizar o criador comunitário eram aquelas que tinham pinheiros e erva-mate em abundância, além de pastagens naturais –essas terras eram consideradas mais fracas para o plantio. Onde havia floresta com diversidade de árvores era lugar propício e preferido para a lavoura, haja vista as terras serem mais férteis (SOUZA, 2001, p. 44).

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produtivo no faxinal, que à época abrangia aproximadamente 1/3 do atual

município. Posteriormente a extração da erva-mate também ajudou a compor a

economia local (SOUZA, 2001, p. 43, 44).

Ainda na primeira metade do século XX, entre 1920 e 1940, chegaram

famílias vindas de Imbituva, que eram de origem polonesa e russa-alemã: T. e

P. Também as que vieram de Canoinhas, que eram de origem alemã: S. e S. A

chegada dessas famílias marcou o início de uma transformação nas relações

produtivas no local. Isso porque essas famílias compraram terras dentro do

faxinal por preços módicos, e haja vista o caboclo não ter o costume de possuir

bastante terra além daquela que necessitava. A partir da chegada dos

migrantes ficaram evidentes formas distintas do uso da terra, pois estes

queriam adquirir muitas terras com vistas à produção voltada ao mercado

(SOUZA, 2001, p. 46, 47). Por outro lado, o caboclo desenvolvia uma relação

diferente com a terra, o que revela uma cultura particular distinta das demais

culturas que ali se agregaram. Essas relações diferenciadas se impuseram

sobremaneira ao local e definiram posições no jogo de poder baseado no

capital mais importante: a posse da terra. Nesse interim, o decurso histórico na

comunidade gradualmente se orientou no sentido de prevalecer a lógica dos

agentes capitalizados na organização do faxinal, por um lado, e na

subserviência dos menos capitalizados e dos descapitalizados. Gilmar explica

as relações sociais emergidas do processo de ocupação do território

asseverando que o caboclo

É um pessoal que sempre morou no meio da mata, sempre fez roça de toco, plantou só pra sobrevivência e muitas vezes serviu só de mão-de-obra pra todo um sistema econômico que vinha crescendo pro interior do Paraná. Os caboclos já viviam na terra, mas nunca tiveram titulação das terras. Isso é comum na região. Acontece em Turvo, no Pinhão que tem faxinal e posseiros. A cultura cabocla nunca foi apegada à questão burocrática de se ter um documento pra comprovar que a terra era dele. Ele tava aqui hoje, mas de repente aparecia um quinhão de terra há 20, 30, 50 km e eles partiam pra lá abrindo picada no meio da mata em busca de um lugar pra viver. Eu acho que os caboclos não tinham noção do valor da terra a não ser como valor de uso. O valor da terra era o da subsistência. Por isso alguns não tinham parada. Eles plantavam e criavam pra sobreviver. O excedente, coisa pouco comum, eles usavam pra troca ou venda. Mas a noção da propriedade privada foi se estabelecendo a partir da chegada dos imigrantes. Ainda que o uso das terras no faxinal fosse em partes de uso comum, os imigrantes vieram com a titulação da terra oficializada pelo Estado. Por isso eles vieram pra cá. Pra ocupar a terra. Hoje os caboclos que têm terras - mesmo sem a titulação - têm minifúndio. Terras muito pequenas que não dá a sobrevivência (AMARAL, 2013).

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Essa situação prevalece na comunidade em questão. O município de

Turvo tem buscado desde o ano de 2012 oficializar a propriedade das terras

ocupadas com ações de regularização fundiária através de incentivos do

governo estadual. Contudo, a exclusão dos caboclos como titulares de

propriedades continua a persistir como um fato histórico. Não houve mudanças

significativas mesmo com as tentativas da prefeitura em parceria com o estado.

Nesse sentido não é difícil corroborar com a afirmação de que “o caboclo, na

sua trajetória de nômade/pioneiro, enfrentou o índio, os fazendeiros e os

colonos, mas nunca conseguiu transformar suas possessões em propriedades”

(GEHLEN, 1998, p. 69).

Da experiência vivida pelos caboclos aliada aos conhecimentos

adquiridos pelos migrantes europeus houve uma reorganização social no

faxinal. Por um lado, a produção de subsistência baseada no modo de criar

animais a solta e de plantar entre cercas já era fruto da consolidação das

práticas caboclas. Por outro lado, os migrantes haviam introduzido uma

produção agrícola mais intensiva – sobretudo do milho – e a ocupação

sistemática das terras visando produção de alimentos e de animais para a

subsistência e comercialização. Nesse contexto a economia paranaense

vivenciava a queda do preço e consequentemente da produção da erva-mate,

produto de exportação, e a ascensão do preço e da produção dos suínos,

produto para o abastecimento do mercado interno. Além disso, o aumento na

demanda pelo abastecimento interno de alimentos ocorreu ao mesmo tempo

em que houve melhorias nas estradas para o transporte de pessoas e

mercadorias. Essas condições favoráveis possibilitaram, gradualmente, uma

reorganização do ambiente da comunidade onde as grandes áreas de

plantações foram se estabelecendo longe das casas e os pequenos roçados

permaneceram próximos. O processo de mudanças não se fez do dia para

noite, mas lentamente no decurso de quase duas décadas desde a chegada

das famílias de migrantes europeus. Aconteceu que nesse período – entre

1920 e 1935 – mudou-se a prática exclusiva de criar à solta e a criação

cercada passou a vigorar em parte do faxinal. O objetivo dessa prática era

facilitar o trabalho do safrista de porco. Contudo, essa nova racionalização do

espaço não fez os caboclos abdicarem de suas práticas anteriores. Ficou

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evidente, entretanto, que já não era possível que caboclos e migrantes

mantivessem o mesmo ritmo de produção. Apesar disso, o criador comunitário

estava estabelecido e seu funcionamento estava fundamentado em normas

consuetudinárias, em práticas de solidariedade elaboradas e vividas entre os

moradores. E isso sem esquecer que a necessidade de mão-de-obra para os

diversos trabalhos realizados dentro do faxinal era imperativo para que os

moradores mais pobres permanecessem vivendo na comunidade. (SOUZA,

2001, p. 48 - 50).

os criadores comunitários se sustentavam sobre três pontos: a propriedade da terra, a construção da cerca e o zelo da mesma. A propriedade da terra significava patrimônio, que neste contexto equivalia a capital. A construção da cerca implicava mão-de-obra e principalmente em material, já o zelo da cerca implicava principalmente em mão-de-obra. (...) O conjunto dessas normas [era] de natureza consuetudinária. (...) a participação dentro de um criador comunitário se não garantia a estabilidade econômica dos moradores mais descapitalizados, pelo menos os possibilitava a segurança alimentar e sua condição de morador mesmo que agregado. (...) os laços comunitários e mesmo os interesses em manter mão-de-obra à disposição não permitiam a exclusão do sistema do grupamento menos favorecido socialmente (SOUZA, p. 54, 56, 57).

Transformações importantes aconteceram no faxinal desde seus

primórdios, contudo “as normas do criador comunitário permaneceram valendo

como força de lei até meados da década de 60” (SOUZA, 2001, p. 59).

3.1 TRANSFORMAÇÕES LOCAIS QUE ENGENDRARAM O

ENFRAQUECIMENTO DA ORGANIZAÇÃO SOCIAL TRADICIONAL NO

FAXINAL SAUDADE SANTA ANITA

Segundo Chang (1985), a organização tradicional do faxinal foi

ameaçada constantemente por forças externas. O problema advinha das

pressões ocasionadas através da demanda de terras por migrantes –

possuidores de costumes distintos em relação ao modo de organização e

exploração da terra, como relatado no caso do Faxinal Saudade Santa Anita –

e da gradual e constante expropriação de seus territórios e costumes através

da implantação de uma forma de exploração mais intensiva da terra, que visa o

lucro do capital. Contudo, mudanças sensíveis na organização do faxinal

ocorreram quando se transformaram as relações de trabalho nas regiões de

criatórios a partir das instalações das serrarias, portadoras de motivos

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suficientes para impulsionar o processo de desagregação dos faxinais no

Estado. Deste modo, o foco das pesquisas da autora está na análise das

causas do processo de desagregação do faxinal, atribuindo ao modelo de

“modernização” da agricultura incentivado por políticas públicas –

principalmente a partir de 1960 – grandes responsabilidades pela

desorganização do sistema.

As serrarias, em geral, tiveram fecunda participação na desorganização

das comunidades de faxinal por causa da exploração dos pinheiros.

Sendo a serraria uma atividade nômade, não se integra na região onde está estabelecida. Esgotada a floresta, a serraria é transferida para outro lugar e forma, em torno de si, um núcleo populacional característico, com dezenas de casas para operários, mercado, farmácia, etc., tudo pertencendo à companhia exploradora. Caracterizam-se os trabalhadores pelo baixo nível de vida, fruto deste sistema. Por se encontrarem, na maioria, as serrarias na “boca do sertão”, 20 ou 50 km distantes de um centro populacional regularmente desenvolvido, os salários, a segurança do trabalho, as horas extras etc., estão longe da fiscalização do Ministério do Trabalho, ocorrendo frequentemente a exploração desumana de sua mão de obra. A serraria deixa, por onde passa, uma região devastada, sem ter contribuído para a fixação duradoura da população. (WACHOVICZ, 1977, p. 136)

SOUZA (2001) tratou especificamente desse tema através de um estudo

de caso no Faxinal Saudade Santa Anita, onde o autor investigou as

transformações sociais e econômicas que ali ocorreram no período

compreendido entre o final do século XIX e a década de 1990, asseverando

que foi a partir de meados da década de 1940 que as indústrias madeireiras

penetraram a região tornando-se marco referencial do processo de

desagregação da organização do faxinal ali constituído, marcando o início do

fim do projeto de autonomia dos agricultores camponeses29 dessa região.

Souza buscou identificar as distintas estratégias adotadas pelos moradores do

Faxinal – desde a sua formação até a fase da expropriação de seus territórios

– almejando encontrar as razões que desorganizaram o faxinal, bem como

suas consequências para o desenvolvimento da região.

No final da década de 1940 o Centro Sul do Paraná já havia sido

explorado por esse segmento da indústria e novas fontes de matéria prima se

encontravam no interior da microrregião de Guarapuava. O crescimento da

29

Neste caso, camponês é o termo assumido por Souza na construção de seu trabalho de dissertação.

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estrutura viária desde a segunda década do século XX possibilitou o transporte

de pessoas e mercadorias, e mais tarde atraiu a indústria madereira para a

exploração da enorme reserva de árvores que ainda havia no Estado,

sobretudo o pinheiro e a imbuia. A comunidade que já estava bem estruturada

e funcionando através de seus costumes de plantar e criar foi surpreendida

pela emergência da indústria daquele segmento, o que trouxe drásticas

transformações no cenário natural e social na região (SOUZA, 2001, p. 59, 60).

Por um lado, a chegada das madeireiras anunciava novas oportunidades

de ganhos rápidos e de ofertas de emprego. Dessa forma era fácil e

compreensível para o proprietário das árvores que se vendesse o abundante

produto com vistas a uma renda extra. A demanda por alimentos aumentou e

consequentemente gerou uma comercialização em alta e, portanto, a

necessidade de aumento da produção para abastecer o acréscimo de

população no local por causa da atividade dessa indústria. Além disso, havia a

oportunidade de empregar-se nas serrarias, fato que proporcionava uma renda

fixa regular que nem sempre a lavoura e a criação podiam proporcionar

(SOUZA, 2001, p. 61).

Por outro lado,

tão logo estabelecia-se a serraria, rupturas iam surgindo no sistema transformando a lógica interna com relação ao uso da terra e organização do trabalho e da produção. A exploração da madeira (...) pouco contribuía para a ocupação do solo, uma vez que as comanhias madereiras no início de sua atuação não adquiriam terras, e sim árvores, e quando o faziam, as revendiam logo após a extração da madeira (...). Os pequenos núcleos populacionais atrelados às serrarias deslocavam-se após o esgotamento da floresta. (...) A forma extremamente depredatória da exploração da madeireira, que visava unicamente o lucro rápido, exauria gradualmente as matas, as quais eram de grande serventia para a subsistência da população (...). Os grandes proprietários de terra, após a retirada das madeiras, vendiam ou arrendavam as terras (SOUZA, 2001, p. 62).

E a atividade madeireira demandou melhoramento nas estradas, o que,

de fato, aconteceu. A melhoria dessa estrutura estimulou a produção dos

moradores locais que apresentou crescimento por meio de sua integração ao

mercado mais amplo. Essa guinada na produção favoreceu a que “a produção

agrícola e a produção animal no sistema faxinal cada vez mais se [afastasse]

do nível de subsistência e [passasse] a visar mais o mercado interno regional”

(SOUZA, 2001, p. 63).

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Na década de 1970 já havia diminuído sensívelmente as atividades da

indústria madeireira em virtude do esgotamento de matérias-primas. E cedeu

espaço para a atividade de reflorestamento. Essa nova atividade reduziu de

forma marcante o espaço de lavoura dos moradores da comunidade (SOUZA,

2001. p. 64).

É preciso dizer que nem todos os moradores locais venderam todo o seu

estoque de árvores. A prática do manejo racional da mata continuou a existir,

principalmente entre os que continuaram a produção agrícola e pecuária.

Contudo, devido às atividades da indústria madeireira, à peste suína30 e ao

grande incêncio31 de 1965 houve contributos importantes ao enfraquecimento

das práticas da antiga organização do faxinal. A ausência de madeira em

várias propriedades do faxinal enfraqueceu a manutenção das cercas pela

parte mais descapitalizada da comunidade. Dessa forma, iniciou-se um

“processo de desintegração do sistema a partir da quebra de algumas relações

de sociabilidade instituídas pelas condições históricas, avançando mais tarde

para o descuido e muitas vezes descumprimento das normas consuetudinárias”

(SOUZA, 2001, p. 66 - 68).

Além dessas transformações agudas na organização social e econômica

da comunidade, houve a chegada de novos proprietários no território de uso

comum para produzir de um modo diferente: através da tecnificação da

produção. Com isso, evidenciou-se o incentivo à produção mecanizada através

da fase que comumente é conhecida como a de “modernização da

agricultura”32 no estado. A produção mecanizada respondeu a uma

necessidade factual: o declínio da produtividade da terra, pois o manejo que

usava o pousio vai gradualmente esgotando a força da terra e torna a produção

ineficiente. Ora, a emergência da mecanização na comunidade permitiu aos

30

No final da década de 1940 a peste suína assolou a comunidade. As causas não são conhecidas e nem divulgadas, mas existe a hipótese dada pelos próprios moradores de que a instalação das indústrias madeireiras gerou um desequilíbrio natural que afetou a criação. 31

O mais danoso incêndio registrado no Paraná. Atingiu 1/5 das terras do Estado e causou seríssimos danos àbiodiversidade do bioma (SOUZA, 2001, p. 68). 32

Creio que o termo agricultura convencional seja mais preciso do que o termo modernização da agricultura. Contudo, amplo material bibliográfico pesquisado se refere a esse processo como o de modernização da agricultura. Colocá-lo entre aspas tem o sentido de destacá-lo como termo impreciso e preconceituoso, haja vista o modo tradicional de produção agrícola e pecuária não ser atrasado, ultrapassado e nem pertencente ao passado. Pelo contrário, ele compõe o moderno e, portanto, não pode ser diferenciado da forma convencional de produção –aquela que émecanizada –pelo termo que também o designa, isto é, tanto um quanto o outro são modernos, mas distintos na forma.

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agricultores mais capitalizados e empreendedores não só a produção de

lavouras mais eficientes, mas também a criação de animais fechados com mais

qualidade. Neste ponto as fragilidades da organização do faxinal se

acentuaram pela independência que alguns produtores alcançam em relação à

organização tradicional. Ficou claro que se agravaram as diferenças de

interesses, sobretudo econômicos, e tornaram irreconciliáveis as permanências

em sua totalidade de práticas comuns. Além do mais, a atuação de grandes

empresas de carne, como a Sadia e a Perdigão, tornaram anunciadamente a

prática da criação suína fechada em mangueirões mais adequada do que a

criação extensiva de animais (SOUZA, 2001, p. 76 – 79).

A resistência contra o êxodo rural pôde ser vista através da permanência

precária do uso da terra no sistema de pousio e na continuidade da criação a

solta, mesmo que de forma mais restrita, pois nesse interim a diminuição do

grande faxinal33 já era drástica. Continuar a prática de criação extensiva de

porcos sempre significou para o produtor ganhar com o baixo custo do trato

animal e a possibilidade do pequeno proprietário ter espaço para a pecuária.

Por isso a prática não se extinguiu. Em 2001, quando Souza finalizou a

pesquisa, a população do faxinal era de aproximadamente 90 famílias em 360

alqueires de terra vivendo as práticas, mesmo que de forma mais precária, da

organização tradicional do faxinal. Em 2013 a pesquisa atual constatou que há

60 famílias que ainda vivem no faxinal em menos de 300 alqueires, e que pelo

menos metade delas ainda tem interesse de permanecer com as práticas

tradicionais de criação extensiva dos animais.

3.2 ARESUR: UMA RELEITURA NECESSÁRIA

Apesar da exposição desse histórico que revela fases importantes da

formação, desenvolvimento e decadência da estrutura física e social do faxinal

no Turvo, Roberto Martins de Souza (2010) acredita que essa leitura que ele

fez na sua dissertação em 2001 da história do faxinal esteve muito apegada à

teoria de Carvalho e, especialmente, de Chang. Ele atribuiu aos autores um

esforço que obteve êxito em atrelar o surgimento, desenvolvimento e declínio

33

O Grande Faxinaléconsiderado todo o espaço inicial consagrado àorganização do faxinal que abarcava 1/3 do território do atual município de Turvo.

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do sistema faxinal aos ciclos econômicos do Paraná e, sendo assim, como

vimos no capítulo primeiro, essa teoria se disseminou no meio acadêmico

como dotado de força científica incontestável, o que acabou influenciando toda

a produção de conhecimento por pelo menos duas décadas, além de

influenciar a criação de leis e as definições essenciais acerca dos faxinais que

ainda estão em vigor.

Souza (2010) criticou diversas produções anteriores à concepção do

morador de faxinal como faxinalense, isto é, como agente do movimento social.

Isso porque os autores daquelas obras não enxergaram de modo algum o

faxinalense, mas sim o camponês como categoria, como classe social.

Naquelas obras o peso maior foi dado às formas de produção e ao meio

ambiente. Faxinal só podia existir se possuíssem aquelas características bem

definidas. Souza (2010) buscou interpretar o faxinalense, e não apenas o

faxinal. O faxinalense deve ser reconhecido pelo critério de autodefinição, e por

isso o autor defendeu o conceito de identidade étnica. Ser faxinalense é mais

do que aquilo do que foi concebido pelos teóricos anteriores.

Mas, oficialmente, o faxinalense é definido como aquele que está

vivendo em conformidade com aquilo que o Estado do Paraná através da

ARESUR entende como sendo o faxinalense. E a ARESUR se baseia nos

estudos realizados por aqueles pesquisadores pioneiros. Quando um território

é reconhecido como ARESUR o município tem o direito de receber o ICMS

Ecológico, que é um recurso oriundo do Governo do Estado para que a

prefeitura invista parte dele na comunidade. O recurso, em parte, também é

utilizado pela prefeitura em outros setores do município como bem entender

seus representantes.

Hamilton José da Silva34, um dos líderes da APF no Paraná, falou que

dificilmente os faxinalenses poderiam continuar suas práticas se não houvesse

recursos que possibilitassem a permanência em sua cultura. Ele assevera:

É justamente porque há uma esperança nessas políticas que ainda existem pessoas tentando manter esse modo de vida. Eu sempre digo assim: organizar uma comunidade pra manter o sistema, sem olhar lá na frente? O que nós queremos? Só manter pra manter, é

34

Luís e eu visitamos a casa do Amilton, em Pinhão/PR no mês de Janeiro. A entrevista envolveu três interesses: 1) perscrutar sobre a participação dos povos tradicionais no Território da Cidadania para a pesquisa que desenvolvemos junto ao CERU; 2) Para o Luís o interesse também era compor seu trabalho de monografia da graduação de Ciências Sociais; para mim interessava ao mesmo tempo investigar para o presente trabalho.

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que nem os caras dizem, é manter a miséria. Eu tenho medo de falar isso, eu não gosto de falar isso. Se for pra organizar a comunidade faxinalense pra manter do jeito que tá não compensa, então que se acabe de vez e parta pra outra. Só vale a pena olhando pra frente. Se a gente se organizar a gente pega o território de volta. Se a gente se organizar a gente cadastra e pega dinheiro do estado pra investir aqui, e coloca uma infraestrutura que seja pra uso da comunidade, pra poder melhorar a comunidade. Agora, o governo do estado tá simplesmente mantendo sou faxinalense por ser, não dá. Não faz nem sentido porque cai naquela que os caras acusam: a miséria. Eu sou muito pé no chão e realista, mas as comunidades faxinalenses estão hoje assim. Se não houver uma intervenção bem radical – e daí o estado é muito devagar com isso, tanto o estado do Paraná como o nacional – elas caminham pra terminar mesmo. Hoje, do jeito que tá, elas caminham pra daqui a dez anos não ter mais. Quer dizer, não tem mais solução. A única esperança é que venham recursos do estado para manter os faxinais preservando o meio ambiente e preservando essa cultura que é de sustentabilidade (SILVA, 2013).

Nessa fala percebemos duas coisas: em primeiro lugar que há o

entendimento de que as comunidades faxinalenses dependem para sua

continuidade que seus territórios sejam reconhecidos como ARESUR para

receber por meio disso os recursos oriundos do ICMS Ecológico. Esse

entendimento corrobora com o conhecimento produzido e as reinvindicações

levantadas pelos pesquisadores pioneiros da década de 1980. Em segundo

lugar, é possível observar que mesmo a fala de um líder estadual dos

faxinalenses está focada na possibilidade de desagregação, cuja perspectiva

aqueles autores clássicos já haviam destacado. Essa fala revela uma

incoerência de discurso, sobretudo, porque é reinvidicação dos faxinalenses

uma reinterpretação das definições pretéritas para que a ARESUR se adeque

às presentes demandas faxinalenses. Dessa forma, termos como sistema

faxinal deveriam ser superados, e as ideias como a da possiblidade de

extinção surpreendem em permanecer, sobretudo, porque em teses os estudos

da nova geração revelam um agente ativo em luta por seus direitos e por seus

interesses, portanto, impõe-se uma representação dos povos de faxinais que

difere daquele “camponês” suprimido pela estrutura econômica que se alinha

com a forma capitalista de produção que não respeita territórios e modo e vida

tradicinonais. Apesar disso, outro eixo da argumentação do Hamilton é o da

preservação ambiental, o que converge as reivindicações em aspectos

alinhados com a PNPCT que destaca a necessidade da preservação e

sustentabilidade nas comunidades tradicionais.

A ARESUR define o faxinal da seguinte forma:

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§ 1º - Entende-se por Sistema Faxinal: o sistema de produção camponês tradicional, característico da região Centro-Sul do Paraná, que tem como traço marcante o uso coletivo da terra para produção animal e a conservação ambiental. Fundamenta-se na integração de três componentes: a) produção animal coletiva, à solta, através dos criadouros comunitários; b) produção agrícola - policultura alimentar de subsistência para consumo e comercialização; c) extrativismo florestal de baixo impacto – manejo de erva-mate, araucária e outras espécies nativas (PARANÁ, 1997).

Observa-se claramente uma limitação à prática oficial dos faxinalenses

pelas leis que corroboram determinada prática, mas sem nenhuma referência à

legitimidade de grupos que fujam às características acima descritas. Ora,

sendo assim, para que uma comunidade possa ser considerada faxinalense –

um povo tradicional detentor de território tradicional – precisa passar pelo crivo

das leis que identificam e oficialmente têm o poder de declarar tal povo e

território dessa forma, e isso tendo como referência as definições teorizadas

pelos pesquisadores da década de 1980, sobretudo, Chang. Isso significa que

a autodefinição tem um poder limitado, pois se um grupo se autodefine

faxinalense, mas não tem uma vivência de uso coletivo de terras para a criação

extensiva de animais fica frágil, pois não terá o reconhecimento da ARESUR e,

consequentemente, não terá recursos do ICMS Ecológico para a sua

manutenção, preservação e desenvolvimento.

Foi sobre essa questão que Souza (2010) manifestou preocupação. Se

o principal fundamento para se reconhecer uma comunidade tradicional é a

autodefinição baseada na identidade étnica, e isso inclui os faxinalenses, então

a ARESUR deve ter esse critério como fundamento para reconhecer uma

comunidade, e não simplesmente aspectos relacionados a práticas específicas.

Contudo, como já salientado em Porto (2013), Souza (2010) contribui para a

continuidade dessa perspectiva.

Se a única maneira de reconhecer uma ARESUR – e, portanto, um

faxinal e, por conseguinte, os faxinalenses – for pela evidência da criação à

solta de animais em espaços comuns, ou pelo uso comum da terra, a

existência das matas no Paraná e das formas de vida no interior delas ficará

restrita ao que já foi reconhecido como APA e ARESUR, ou seja, ficará restrita

aos poucos faxinais reconhecidos e às áreas de preservação no Litoral do

Paraná, além de poucos outros espaços preservados no Estado.

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Hamilton é muito claro quando fala sobre o verdadeiro valor que os

faxinalenses têm social e culturalmente e que vai muito além de uma prática

específica de criação de animais em espaços comuns.

O que tem de valor é esse olhar cultural muito presente, muito ainda na prática de preservação. Da preservação do meio onde vive, de todo o ambiente. No Paraná só tem 4% de florestas. Não sei se vocês sabiam disso, mas 96% já foi embora, a soja já levou. Essa grande tecnologia [risos]... Acabou. Só 4%, e onde que tá? Nos faxinais e aí na serra do mar, na Mata Atlântica, onde estão as florestas. Na região mais sul do estado. No oeste e no norte do estado, eu conheço pouco, mas até onde eu sei não tem mais nada. Tá tudo indo embora pegando daqui de Laranjeiras pra cima, de Pitanga pra cá, sabe. Pegando Prudentópolis, Ponta Grossa, afunilando pro sul, União da Vitória, essa região toda é onde tá esses 4%. E aí você pergunta, qual é a marca mais forte nossa? É, sem dúvida, essa questão da preservação. Agora, tem uma coisa: nós não vivemos só de preservação. Hoje ela não garante mais o que ela garantia lá atrás porque foi muito invadida. Não tem mais erva-mate como tinha, não tem mais pinhão como tinha (...) (SILVA, 2013).

Em um momento posterior, ou seja, dez anos depois da ARESUR a

PNPCT redefiniu os povos tradicionais como a seguir.

(...) compreende-se por: I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (BRASIL, 2007).

Apesar da compreensão do Estado brasileiro acerca das comunidades

tradicionais pelo viés da autodefinição, o IAP continua definindo em seu site os

faxinalenses como a seguir:

FAXINAL: terras tradicionalmente ocupadas para uso comum de pastagens e florestas que designam situações em que a produção familiar, de acordo com suas possibilidades, combina apropriação privada e comum dos recursos naturais. O controle e uso dos recursos – especialmente, pastagens nativas, água, produtos florestais madeiráveis e não madeiráveis –, considerados essenciais à existência física e social, é exercido de maneira livre e aberta conforme normas específicas, consensualmente definidas pelo grupo social, denominadas acordos comunitários. São comuns ao sistema faxinal diversas expressões locais, a saber: “criador comum aberto”, “criador comum cercado”, “criador de criação alta” e “mangueirão”. Estas áreas são/serão devidamente identificadas pelos grupos sociais locais devendo ser protegidas conforme legalmente previsto (Constituição Brasileira, no que concerne ao patrimônio cultural, Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT -, promulgada pelo Decreto Federal 5.051, de 19 de abril de 2004, Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, promulgada pelo Decreto Federal 5.753, de 12 de abril de 2006, Decreto Federal 6.040, de 7 de fevereiro de 2007).

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IDENTIDADE FAXINALENSE: Segundo a Lei 15.673, de 13/11/2007, entende-se por identidade faxinalense a manifestação consciente de grupos sociais pela sua condição de existência, caracterizada pelo seu modo de viver, que se dá pelo uso comum das terras tradicionalmente ocupadas, conciliando as atividades agrossilvipastoris com a conservação ambiental, segundo suas práticas sociais tradicionais, visando a manutenção de sua reprodução física, social e cultural (IAP, 2014).

Souza (2010, p. 24) deseja redefinir, reclassificar os faxinalenses com

vistas no agente social e, por isso, em princípio não limita sua existência a

determinadas características de espaços físicos e de práticas “congeladas” no

tempo. Porém, não consegue, no final das contas, deixar de relacionar a

existência de faxinalenses sem a perspectiva da prática da criação de animais,

seja a solta em pastos comuns ou com uma variação dessa forma. Segundo

Porto

ao final Souza restringe sua perspectiva de faxinal à existência de alguma forma de criadouro à solta e com caráter, mesmo que relativo, de uso comum. Assim, embora afirme a importância de aspectos identitários e socioculturais para uma perspectiva mais ampla dos “povos dos faxinais”, termina refém de limitações colocadas pelos trabalhos anteriores (...) (PORTO, 2013, p. 74)

Atualmente, onde não há as práticas de criador comum não se pode

fazer a organização, ou, pelo menos, ela não tem força porque faltam recursos

financeiros em virtude de que as leis ainda se orientam por definições

pretéritas, e por isso não reconhece diversas comunidades que se autodefinem

faxinalenses.

Souza (2010, p. 24) destacou a importância de uma nova fase que se

impõe entre os faxinalenses como um período necessário à desconstrução da

evidência do desaparecimento de sua existência. Por isso tem sido importante

um processo de desconstrução, reconstrução e compreensão desse fenômeno

sociológico, ou seja, das comunidades tradicionais e, nesse caso, dos

faxinalenses. É necessário redefinir os conceitos que envolvem essas

comunidades tradicionais para avançar em relação a autodeterminação

conjunta dos faxinalenses e ao mesmo tempo que compreeende e respeita a

diversidade cultural e organizativa de cada comunidade.

A definição do IAP destacada acima é uma tentativa de se amoldar às

demais definições, em especial àquela oficial do Estado brasileiro que se

baseia na definição da OIT. Contudo, apesar disso, o IAP ainda agrilhoa a

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autodefinição do faxinalense ao uso coletivo do território, e às práticas do uso

coletivo da terra e da criação de animais, seja fechada ou aberta. O maior

problema dessa insistência conceitual é a forma como a ARESUR reflete sobre

as relações sociais nas comunidades faxinalenses. E isso será discutido a

seguir, embora não seja o maior problema percebido. O grande problema é o

obstáculo que gera para a definição de novos territórios como ARESUR.

Numa das falas anteriores se destaca a importância dos faxinalenses

para a preservação das matas existentes em seus territórios. O valor dessas

comunidades tradicionais é crucial para a manutenção de parte significativa

das florestas paranaenses. Contudo, é necessário que se encontre uma

estratégia inteligente para que se alarguem as definições sobre faxinalense e

faxinal para que mais comunidades que preservam as matas e que têm o

interesse de assumir a identidade faxinalense, ou, as que já o fizeram mas não

lograram êxito devido às estreitas limitações para o reconhecimento de uma

ARESUR, também possam receber o recurso e assim terem condições de dar

continuidade ao modo de vida nos faxinais com vista ao desenvolvimento

sustentável e à preservação ambiental.

Não se quer dizer, em hipótese alguma, que uma comunidade de

faxinalenses não possa se identificar da forma como é previsto pela ARESUR

atualmente. Mas, é evidente que essa definição não deveria ser a única

possível, pois, ela limita a prática e o reconhecimento das comunidades e,

desse modo, diminui a possibilidade de que mais comunidades sejam

preservadas a partir da autodefinição. A autodefinição se torna relevante

quando engendra, através dos recursos financeiros do Estado, o potencial de

continuidade do modo de vida, da cultura e, por conseguinte, da preservação

ambiental.

No subitem posterior serão evidenciados os motivos dos faxinalenses do

Saudade Santa Anita para a continuidade da criação de porcos à solta. Os

motivos são plausíveis, sem dúvida, e estão atendendo às necessidades da

continuidade do modo de vida, da cultura e da preservação ambiental da

comunidade. Porém, segundo Hamilton (2013), há comunidades que não

conseguem se amoldar às expectativas da ARESRUR, e dessa forma,

reivindica-se uma reelaboração da lei que esteja em acordo com as leis

federais. E, ainda, é necessário que sejam flexibilizadas as definições da

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ARESUR a fim de atender mais comunidades e, dessa forma, proporcionar a

preservação de mais espaços que sem os recursos do ICMS Ecológico

apresentam grandes dificuldades de produção e reprodução de suas práticas.

3.3 ESTUDO DE CASO ATUAL SOBRE O FAXINAL SAUDADE SANTA

ANITA: DESGASTES NAS RELAÇÕES SOCIAIS ENTRE AS FAMÍLIAS

COMO UM REFLEXO DAS EXIGÊNCIAS DA ARESUR.

Nessa parte do trabalho o destaque será concedido à voz do agente

social do Faxinal Saudade Santa Anita e revelará a história dos conflitos que se

manifestam com destaque à criação extensiva de animais. Contudo, não se

quer com isso defender essa ou aquela opinião, senão apresentá-las e, em

momento oportuno, discuti-las de modo mais apropriado.

O Faxinalense P. A., morador do faxinal há mais de 30 anos diz que em

princípio estava a favor da ARESUR, pois se identificou com a proposta. Ele

mesmo, quando chegou à comunidade, contava com pouco recurso e, apesar

disso, no faxinal qualquer pessoa nessa condição podia se instalar no lugar e

ser aceito normalmente. A maioria das pessoas ainda hoje não possui

documentação regularizada da terra. Poucos podem pagar pela

documentação. Isso facilitou a instalação desse faxinalense, porque comprou o

direito de usar a terra, embora ela não seja regularizada. Com pouca terra já se

tinha condições de viver, porque havia bastante trabalho e a criação extensiva

de animais em pastos comuns possibilitava um bom reforço na alimentação e

nos pequenos negócios para os que não tinham muitas posses. Em princípio, o

Faxinalense P. A. ajudou a tirar ervas para os vizinhos, a quebrar milho e a

trabalhar na lavoura de outros proprietários como jornaleiro. Trabalhou pouco

tempo assim e logo apareceu uma oportunidade de trabalhar para o município.

Então, ele passou a atuar como funcionário público na própria comunidade e a

cuidar de sua propriedade.

O Faxinalense P.A conta que antes havia muitos animais soltos –

cabritos, gados, cavalos, porcos. Na década de 1980 alguns proprietários

maiores já estavam começando a fechar os animais grandes com quatro fios.

Os porcos continuaram soltos. Mas, o faxinal foi diminuindo gradualmente por

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causa dos fechos, embora nunca tenha terminado. Os proprietários que

mantiveram a criação à solta foram prejudicados.

Nós também tínhamos porco solto, e vacas também. Alguns moradores começaram a prejudicar nossos animais. Judiavam das vacas jogando água fervendo. Os animais vinham feridos para casa. Os porcos viraram alvo de confusão porque muitos vizinhos que não queriam mais criar animais à solta acabavam ferindo os animais para punir os donos que continuavam com a prática da criação à solta. (O Faxinalense P. A., 2013).

Há muitas reclamações por partes do grupo discordante sobre a criação

extensiva de animais em pastos comuns abertos e, de fato, o porco tem sido o

motivo principal relatado pelos moradores acerca dos desencontros de opinião

no faxinal. Há diversos inconvenientes que se manifestam no cotidiano, como o

exposto a seguir por outra moradora que revela motivos particulares para

deixar de criar porcos soltos:

Os porcos vinham dormir debaixo da casa. Às vezes tinha reza do círculo bíblico na nossa casa e os porcos começavam a brigar lá debaixo. Subia a poeira pra cima. Soltavam pum e brigavam. As visitas caiam na risada (risos). Parecia brincadeira de criança. E paravam de rezar. Que tipo de reza virava isso, então? Não tinha condições. Não dá pra conviver bem no meio de porco. Daí fui fechando em roda da casa, fui fazendo cerca (A Faxinalense V., 2013).

Esse relato é apenas um dos diversos outros ouvidos no trabalho de

campo que estigmatizam a criação de porco a solta como “um mal a ser

superado” na comunidade. Outra moradora apresentou seus motivos que a

levaram a rejeitar a ARESUR.

O nosso problema não é com a mata, com a preservação da mata, mas é com o porco. Não queremos porco solto porque dá muita briga. Se a maioria não quer porco, não crie porco. Pega a verba [ICMS Ecológico] pra fazer outra coisa. Alguma coisa que sirva pra unir a comunidade. Ah, mas o símbolo do faxinal é porco. Então, põe um porco numa placa ali e deixa. (risos). Que não incomode ninguém. Porque que nós não quisemos? Nós fazemos até quatro mil bruto por mês de leite com as vacas. Os porcos não vendem mais. A fiscalização tá em cima. Então, porque que eles ainda teimam com porco? (A Faxinalense E. S., 2013).

Esse depoimento deixa claro que muitos moradores não entendem essa

prática da criação extensiva de animais como fator componente de uma projeto

político que lhes interesse. Para eles o projeto mais importante deve ser a

atividade econômica que traga maior margem de lucro à família. São

visivelmente projetos distintos.

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Outro morador do faxinal disse não aceitar que a prática da criação

extensiva de animais continue porque quer utilizar a terra de modo

individualizado, sem espaços comuns para pastos por causa da inimizade que

os porcos soltos podem gerar entre os vizinhos.

Não somos contra o faxinal porque aqui sempre foi um faxinal e não criamos inimizade com ninguém. Mas queremos preservar o nosso espaço como está. Se alguém vier aqui querer abrir nossa cerca, ai vai ser diferente. Porque teve outro caso aqui de um proprietário que tava fechando sua terra e chegou a polícia e não deixou fechar. Imagine! Quando que a polícia vai mandar no que é meu? Não tem jeito! Isso a gente não vai aceitar, não! Mas, por enquanto para nós ainda não deu problema. Mas, teve outros casos aí que foi feio o conflito. Mas, o problema com porco sempre existiu. Não é uma novidade trazida pelos faxinalenses (O Faxinalense G.. 2013).

O Faxinalense G. disse ser faxinalense porque vive no faxinal, criou-se

lá e tem uma identificação com aquela terra e com a vida naquele meio

ambiente, mas não concorda com as exigências que, segundo ele, estão sendo

impostas na comunidade sem o consentimento de todos.

Eu não concordo que as pessoas queiram mandar nas coisas dos outros. Os mais velhos que eram do faxinal se foram, então ficou outros mais novos, e ainda entrou outras pessoas. Genro, nora, e vai mudando as ideias. As ideias hoje não combinam e dá muito confronto. No começo todos concordavam com a ideia [da ARESUR], mas hoje não concordam. O problema é o porco solto, porque invadem as plantações e comem a produção da gente. E as crias dos outros comem a comida, o sal que a gente põe pra nossas criações. Isso dá confusão, e não dá certo. E se o bicho não tem ganhado um trato certo, então vai fuçar em qualquer lugar em que tenha comida e destrói tudo o que encontra pela frente. Também tem o problema de roubar as criações, pois quando o bicho vai pra longe de casa e consegue passar pelo mata-burro os outros pegam o bicho e vai pra panela deles. Daí não compensa criar à solta (O Faxinalense G., 2013).

Apesar dessa diferença de opinião acerca da forma de criar os animais,

ele e sua família podem também ser considerados faxinalenses por

autodefinição haja vista há muito pertencerem e se identificarem com o faxinal,

ainda serem criadores, extraírem erva-mate, produzirem para a subsistência e

usarem os excedentes para pequenos negócios.

A maioria do nosso é faxinal, nem roçado não é. É tudo tapado. É mato que a gente nem mexeu. Então a gente é a favor de preservar. Temos as águas aqui e preservamos tudo o que temos. Mas, não sou a favor de eles dizerem como a gente deve dirigir nossa propriedade. Cada um cuida do seu. As pessoas não pensam todas iguais aqui (A Faxinalense T., 2014).

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Para essa moradora do faxinal os tempos mudaram, são outros, e por

isso ela acredita que não é possível permanecer com o modelo de vida que ela

entende como representante de outro momento da sociedade local. As

questões que geram desavenças entre as famílias são justamente porque parte

da comunidade quer ter o direito ao uso de suas propriedades de forma

sustentável, mas de acordo com práticas individualizadas e não coletivas. Ela

assevera:

A briga maior é que tem muita gente proprietário de pequeno porte que tá se beneficiando do que tem mais terreno. Mas isso sempre foi assim. Porque desde os primeiros proprietários havia acordos para deixar aberto pra uso comum. Sempre teve proprietário maior e o menor. Mas, depois que vai aumentando a população e mudando os proprietários, as coisas mudam também (A faxinalense T., 2013).

Mas, apesar desses moradores se autodefinirem como faxinalenses, de

acordo com a lei suas práticas não estão em conformidade com as práticas

valorizadas pelos faxinalenses que se conformam, ou buscam se conformar à

ARESUR, e estes são os que estão organizados com a APF. O Faxinalense G.

não encontra guarida nas práticas mais importantes e nos anseios dos

faxinalenses ligados à APF na comunidade. Ele continua

Eu crio porco, mas cercado dentro do meu terreno. Já tive confusão com os vizinhos e já tive prejuízo. Não quero mais criar solto. Esses tempos, quando quis fechar, comprei palanques e fechei. De repente mexeram de novo com o assunto e uma maioria que tava a favor caiu tudo fora. E daí virou uma polêmica. Se fosse uma coisa combinada tava bom. Mas daí gente de fora começou a dizer que não vamos poder vender terreno, não vamos poder mandar. E começaram com um monte de asneiras. E explicar pra gente que é meio cabeçudo não é fácil, né? E pensavam que a turma ia tirar lucro em cima [através do ICMS Ecológico], iam ganhar dinheiro. Mas, não. Esse recurso aí é só pra manter o faxinal aqui e poder ter o animal solto (O Faxinalense G., 2013).

Fica evidente uma divisão bem marcada na comunidade. Por um lado

estão os que não se identificam politicamente com os faxinalenses ligados à

APF por terem, sobretudo, um ponto de vista diverso em relação ao uso da

terra. Por outro lado, estão os que estão organizados com o movimento social

e assumem essa identidade política de acordo com as exigências da lei que

determina, em parte, o que é um faxinal e quais são as práticas faxinalenses.

Sobre essa distinção dentro da comunidade pode-se perceber que

Tem gente que tem um micro sistema faxinal nas suas terras. Ele tem o animal solto dentro do seu terreno, preserva o meio ambiente, mas não tem mais a característica de criador comum porque não

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compartilha o terreno dele com o vizinho, por isso não está incorporado à comunidade de modo mais amplo, ou seja, não compactua com toda a prática. Mas, grosso modo, ainda tem características do sistema. Muitas práticas culturais continuam as mesmas, e as práticas econômicas diferem só na questão da criação à solta em espaço comum. Será que não são faxinalenses também? Mas esse, por não partilhar do criadouro comum acaba sendo marginalizado por aqueles que estão organizados, e que são mais politizados, e que por isso estão interessados em manter o sistema tradicional e resgatar a prática entre os vizinhos. O próprio termo "faxinalense" diz respeito a uma identidade política. É claro que quando o morador do faxinal não concorda com o porco a solta, mas ainda assim se diz faxinalenses, isso significa que para ele esse termo tem um peso cultural. Mas num sentido mais amplo, ou seja, na luta contra o agronegócio, contra o desmatamento, contra a monocultura, o peso determinante é o político (AMARAL, 2013).

No Faxinal Saudade Santa Anita há um embate entre projetos políticos

irreconciliáveis. Destaca-se a diferença entre duas formas de se identificar

como faxinalense, e essas duas formas dão lugar a dois grupos que revelam a

complexidade que a diversidade de uma identidade pode apresentar. Neste

caso um exclui o projeto político do outro. Os faxinalenses mobilizados com a

APF estão agindo de acordo com as normas estabelecidas oficialmente, e

dessa forma ganham espaço dentro da comunidade pela força da lei. A lei

relfete sobre a ação dos que querem se organizar oficialmente como faxinal a

se conformar com o modelo da ARESUR que define os faxinalenses pelo

sistema faxinal – e consequentemente pela prática do uso coletivo dos

territórios – e, sendo assim, reflete ao mesmo tempo sobre a descaracterização

das relações sociais, econômicas e culturais engendrando conflitos na

comunidade.

Há coisas curiosas relatadas no Saudade. Por exemplo, a maioria dos

entrevistados fala sobre o porco à solta como um transmissor de doença em

potencial. Não poupam comentários sobre o perigo desse tipo de prática para a

comunidade local.

A minha preocupação é com o porco que fica solto. Porque se tem um boi, ou um cavalo morto de peste no meio do mato, o porco vai e come tudo. Mas e a qualidade da carne desse porco, como é que fica? Se fechar pra limpar uns 80, 100 dias, aí dá, mas nem sempre se faz assim. Agora, aqui eu sei o que o meu porco come, porque ele fica fechado (A Faxinalense T., 2013).

Ou

Se a pessoa tem os animais soltos no seu espaço e esses animais comem o cadáver de um animal que morreu de alguma doença contagiosa, esse é um problema particular dessa família. Ela vai consumir o animal e assumir os riscos. Mas se isso acontece no

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território comum vira um problema social. Não tem como controlar os prejuízos (O Faxinalense P. A., 2013).

E ainda

Um problema grave é que o animal solto fica exposto às contaminações. Por exemplo, aconteceu um fato que não é raro na comunidade onde uma vaca morreu de alguma doença e os porcos comeram o corpo do animal até a carcaça. Levaram dias para consumir o animal que chegou a feder muito. Isso expõe os animais a um risco de contaminação muito grande e que pode trazer doenças às pessoas que consomem a carne desse animal (A Faxinalense V, 2013).

Mas, questionados sobre evidências para essas preocupações, ou seja,

se existe algum caso sobre alguém que teve doença ou foi prejudicado pelo

consumo de animais contaminados, então, as respostas eram também

unânimes.

Não. Não que eu saiba. O maior problema é que se corre o risco. Nós ficamos preocupados. E, além disso, são as brigas entre os vizinhos. E criar a solto corre o risco de perder os bichos porque roubam, e se não der o trato bem certinho os bichos vão embora e não se encontram eles mais (A Faxinalense T, 2013).

A inquietação existe, sem dúvida, mas não há casos conhecidos que

possam corroborar, de fato, a preocupação. Percebe-se também que os

moradores que não compactuam com a criação a solta dos porcos ainda tem

um entendimento acerca do assunto. Eles conhecem parte das leis e

reconhecem isso, mesmo que à força e por evidências demasiado marcantes

para serem ignoradas. Quando perguntado a um morador sobre se aquela

comunidade era um faxinal, ele respondeu que não era. Mas sua esposa

rapidamente retrucou:

Mas é lógico que é. Pois toda a vida foi. Eles [os faxinalenses organizados com a APF] ganharam a questão por causa disso. Porque aqui onde nós moramos é faxinal. Eles ganharam a questão por causa disso. Porque daí tinha os terrenos de lavoura e tudo era terreno de cultura lá fora. E a gente morava aqui no faxinal onde criava os animais soltos. Eu morava na outra comunidade, a Saudade São Roque e lá era faxinal também. Tudo aqui era faxinal (A Faxinalense V., 2013).

Em suma, há famílias que vivem no faxinal, reconhecem aquele espaço

como faxinal, e são a favor da manutenção das matas e do uso sustentável

delas, mas são contra a criação a solta dos porcos. Eles são a favor de

individualizar as terras, mesmo que as conservando em suas características

tradicionais de matas pertencentes a uma Área de Proteção Ambiental.

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Imagem 3: criação extensiva de animais em terreno aberto. As cercas ali estão em volta da casa do criador. Essa área permanece cercada para a plantação de hortas e frutas. Fonte: Acervo próprio, 2013.

Imagem 4: criação extensiva de animais em espaço aberto, em pastos comuns. Essa imagem é representativa de um cenário comum no Faxinal Saudade Santa Anita. Fonte: Acervo próprio, 2013.

A postura política diferenciada dessas famílias os levam, em alguns

casos, ao desconhecimento acerca das leis e do funcionamento do faxinal que

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é reconhecido como ARESUR. Isto porque a comunidade reconhecida como

ARESUR deve funcionar em conformidade com os acordos comunitários

elaborados por parte da comunidade, sem que seja necessário o consenso do

todo. Oficialmente – por causa das exigências do Estado ao reconhecimento

de uma ARESUR, o que é objeto das críticas aqui levantadas – é necessário a

existência da criação animal comum em espaços privados abertos ou

fechados. Desse modo, a elaboração do acordo comunitário é discutida na

comunidade e, se não houver acordo, uma comissão responsável deve

estabelecer, por exemplo, o tanto do território particular de cada um que deve

ficar aberto para a pastagem animal. No Faxinal Saudade Santa Anita as

desavenças sobre essas regulamentações impedem o diálogo entre as partes,

mas parte do grupo organizado com a APF está discutindo essa porcentagem

do território particular que deve permanecer aberto para o uso comum, isto é,

para a criação animal. Não houve conclusão sobre o caso até o término da

pesquisa em 2013.

Apesar disso, em conversa com um morador que é contra a ARESUR

sobre a obrigatoriedade da adequação de seu território a esse modelo, ele

respondeu: “Não, na minha terra não, porque eu fechei bem antes aqui, e

minha terra é pouca” (O Faxinalense G., 2013). Apesar do desconhecimento, o

Faxinalense G. estará incluído nas normas do acordo comunitário e deverá

respeitá-las sob pena de fiscalização e multa aplicada pelo IAP.

Em conversa com outra moradora sobre a verba do ICMS ecológico que

deveria ser aplicada na comunidade, ela reclamou: “Nós mantemos o mato e a

verba muito grande que vem, vem pra eles. Porque pra eles tá pra vir tela,

caixa de abelha e pra nós não vem nada. Nós que preservamos e eles que

ganham” (A Faxinalense E. S., 2013). Contudo, após uma rápida explicação

sobre o destino do recurso – que é a compra de materiais para a manutenção

das cercas em toda a comunidade que é ARESUR, inclusive para os que não

concordam com a prática da criação à solta de suínos – ela desconversou e

falou sobre outras questões pessoais que levam ao desentendimento com os

faxinalenses.

Foi perguntado: há perspectiva de que no futuro – quando o recurso do

ICMS Ecológico for aplicado para reforçar as cercas com telas de aço e

palanques de concreto, e em consequência a invasão dos bichos na lavoura

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cessarem, ou rarearem – as brigas e cisões sejam apaziguadas? As respostas

variam entre a descrença, a rejeição e a confiança.

Eu tenho dúvida. Será que vai ser possível apaziguar os conflitos das famílias aqui? Eu penso que quando eu me aposentar, que será no final do ano, vou morar na cidade e preservar aqui. Venho de carro pra cuidar das coisas aqui, mas quero morar na cidade, longe da confusão. Mas acho que pode melhorar pra eles, talvez. Mas não posso responder sobre alguma coisa que tá lá na frente. É tipo São Tomé, né. É ver pra crer. Pode ser bom (O Faxinalense P. A., 2013).

Ou:

Não sei... se eles quiserem pôr no deles... mas, no nosso a gente não aceita. Se fosse fazer eu ia deixar o meu fechado, separado. Eu não deixaria uma parte aberta porque tenho pouca terra e planto erva. Então, não quero porco entrando e estragando erva (O Faxinalense O. S., 2013).

E ainda

Eu acho que dá sim. Pra não ter mais desunião, acho que as cercas bem feitinhas podem resolver. Acho que o que passou, passou em relação às confusões por causa de bicho. Pensando daqui pra frente vai melhorar. Pra nós também. Se vem arrumar as cercas, com certeza que as criações não vão incomodar mais. (...) Eu tô lembrando bem. Já foi falado. Você fica nervoso [falando pro esposo], mas não esqueça que já foi decidido. Agora concorde ou não concorde nós tamos dentro de um faxinal [reconhecido como ARESUR]. Agora não tem mais saída. Agora se a gente não concordar é ruim pra quem? (A Faxinalense V., 2013).

Os faxinalenses vinculados a APF, por outro lado, acreditam que a

manutenção das cercas podem resolver os problemas mais agudos que hoje

incomodam a comunidade. Por isso, em janeiro do ano passado, acompanhei

junto com outros pesquisadores35 uma reunião da comissão da APF local com

o atual vereador eleito pela comunidade, o Faxinalense T. S., que é morador

do Faxinal e proprietário de um mercado dentro do Saudade. A reunião, que

aconteceu na casa de outra faxinalense, foi para discutir sobre a aplicação do

recurso na comunidade ainda em 2013. Ficou acertado que os faxinalenses da

APF local elaborariam um projeto que mensurasse as necessidades com

materiais para a construção de cercas. O vereador ficou responsável por

intermediar a questão junto à câmara legislativa local.

A importância do porco para a subsistência familiar, segundo

faxinalenses da APF entrevistados, é inegável. O modo de vida está amparado

35

Nesta ocasião estávamos em três pesquisadores: Luís, Camila e eu. Além dos interesses já relatados anteriormente em nota de rodapé, havia também o interesse da Camila em pesquisar para seu TCC na graduação de Nutrição, na UFPR.

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nessa prática. Depoimentos como os que estão expostos a seguir são comuns

entre as famílias que tem a criação extensiva de animais como projeto político:

A gente carneia também pra banha. Você fecha o porco, trata de noventa a cem dias pra limpar e, se quiser a banha, usa esse tempo pra engordar o bichinho. Aí você carneia. O porco gordo dá três latas de banha. Então a banha você não vai precisar por um ano, um ano e pouco. Aí o que você faz? Pega os leitões menores, e dois deles dá pro mês. E hoje você tem freezer, geladeira. Depois que veio a luz se tornou mais fácil pra você guardar carne. Antes era só no charque e na carne em lata (O Faxinalense A, 2013).

E ainda:

Com o nosso modo de vida a gente usa bem pouco o mercado. Se quisesse até substituía, basta ter outros hábitos alimentares e substituía bastante coisa. Aqui a gente produz praticamente tudo o que precisa. O porco dá a carne, a banha, um lucro na venda, e o mais grosso a gente planta nas hortas e nas terras de planta. Tem feijão, milho, verdura, legume, fruta... (O Faxinalense B, 2013).

Sobre a criação extensiva de animais, os faxinalenses da APF entendem

que se trata de uma prática tradicional da vida comunitária no Faxinal Saudade

Santa Anita. E não é uma prática que deve ser abandonada, mas pelo

contrário, incentivada a sua continuidade. Isso porque ainda há moradores que

têm pouca terra para fazer uma horta e ao mesmo tempo ter criação de suínos.

Os pastos comuns abertos garantem que esses moradores também possam ter

a criação para auxiliar a subsistência e até uma renda extra nos pequenos

negócios. Sobre a importância do porco para a subsistência familiar, o

faxinalense conclui.

Nós não estamos pensando em ser individual. Nós queremos ser um coletivo. Mesmo que nós temos uma área, aqui o que não tem pode criar também. A posse da terra não impede os que não têm a posse de ter sua criaçãozinha lá compartilhando nosso terreno. E tem esse pessoal que não quer o porco solto, ele é contra porque ele quer ser individual. Ele pensa: eu tenho e não tô preocupado com quem não tem. Aqui a questão é individualizar ou manter comunitária. E a nossa luta é manter comunitária (O Faxinalense A., 2013).

Além disso, os faxinalenses da APF acreditam que essa forma de

criação de animais ajuda a cuidar do meio ambiente, pois uma vez que parte

do território particular deve ficar aberta para dar lugar à pastagem comum, o

proprietário tem menos chances de desmatar aquela área dentro do faxinal e,

além disso, qualquer proprietário de terras ali dentro terá empecilhos de fazer

valer outra vontade que não seja aquela oficializada nos acordos comunitários

regulamentada pela lei.

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Reclamaram tanto do porco e começaram a perguntar: mas por que não ser carneiro, então, que é mais fácil de trabalhar com ele? Por que não ser outra criação? Aí nós pensamos: se tirar o porco você tira o uso comum da terra, o uso coletivo. Hoje aqui tem quatro fios que seguram vaca e cavalo, mas o porco circula. Se não tem o porco fica muito frágil pra daí plantar o pinus, de começar a gradear e plantar o milho, feijão, soja, eucalipto, passar veneno. Então, se não tem o porco a estrutura ambiental pode ruir. O porco é a grande sacada. Nós quase caímos nessa. Quem consegue manter os recursos naturais preservados e o uso comum é o porco. Se não tem o porco os caras passam veneno, plantam pinus, derrubam, plantam soja, plantam eucalipto. (...) Então, hoje quem fiscaliza é o porco. Por que estão matando os porcos? Eles querem acabar com os porcos por causa disso (O faxinalense B., 2013).

Apesar disso, os desmatamentos no Faxinal ainda estão sendo

praticados. Principalmente porque se vende terras para produtores que vêm de

fora e que não respeitam aquele espaço conforme a cultura dos faxinalenses.

Contudo, muitos moradores creem que com o reconhecimento da ARESUR na

comunidade isso pode mudar. O desmatamento é uma reclamação de ambos

os lados, ou seja, de toda a comunidade.

A imagem a seguir revela uma área no meio do faxinal que foi

desmatada para a plantação de soja. Segundo os moradores não é a falta de

denúncias ao IAP que permite a impunidade desses proprietários, mas uma

fiscalização pífia e corrupta.

Imagem 5. Ao fundo, em meio às árvores, aparece uma área verde clara. Diz respeito ao desmatamento dentro do faxinal para a plantação de soja. Fonte: Acervo próprio, 2013.

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O grandão por ele ter dinheiro pode tudo. O IAP entra no dinheiro deles. E eles derrubam mato. E nós não podemos fazer. Os coitadinhos que têm pouca terra ficam sofrendo pra tirar o fruto da terra sem desmatar (A Faxinalense E. S., 2013).

No Faxinal Saudade Santa Anita a criação extensiva de animais é

importante porque demarca todo o território como um lugar diferenciado, que

tende a funcionar com base em leis específicas e que por isso é local de

respeito à natureza e preservação ao meio ambiente. A ARESUR é uma “Área

Especial de Uso Regulamentado”, e a obrigação dos seus moradores é com a

continuidade de uma consciência que gera a prática do manejo sustentável dos

recursos naturais daquele espaço. Não significa que o morador não possa

fazer uso da natureza, pois a ARESUR não é caracterizada por uma natureza

intocável, e que deve ser preservada sem que haja qualquer ação humana,

mas um espaço onde os recursos naturais devem ser usados conscientemente

com vistas ao desenvolvimento sustentável da biodiversidade local.

A gente tem que ocupar a natureza. Que nem uma casa. Você tendo uma árvore ali, você é obrigado a fazer uma casa, uma estrebaria, uma cerca, então, vai usar aquela árvore. E é isso, também, que os órgãos não enxergam, que a gente precisa da natureza pra sobrevivência nessa área. Você tendo a madeira na tua propriedade, você ir lá na serralheria comprar pinos, eucalipto. Aquilo é uma porcaria, não vai aguentar nada. É tratado, não aguenta. Mas a gente cuida da natureza e não derruba árvore a não ser as que já estão velhas e que de qualquer forma vão cair e apodrecer. Mas, a gente sempre planta também. Faz o uso equilibrado (O Faxinalense S., 2013).

A compreensão do faxinalense está de acordo com PNPCT acerca do

desenvolvimento sustentável que é definido pelo “uso equilibrado dos recursos

naturais, voltado para a melhoria da qualidade de vida da presente geração,

garantindo as mesmas possibilidades para as gerações futuras” (BRASIL,

2007).

3.4 AS RELAÇÕES DE PODER ENTRE OS AGENTES SOCIAIS NO

FAXINAL SAUDADE SANTA ANITA

No Saudade a maioria das famílias tem relação de parentesco entre si.

São filhos, netos, irmãos, sobrinhos, primos, ou seja, tem o laço consanguíneo,

ou, ainda, relações de compadrio. Tais ligações se formaram ao longo da

história do Faxinal do Turvo. Como destacado anteriormente, as primeiras

famílias a se instalarem no faxinal eram compostas por caboclos cuja maior

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parte não tinha o costume de cercar os espaços e cujo valor mais importante

da terra era o de uso. Assim, a terra era importante na medida em que dava à

família a subsistência.

Nas décadas iniciais do século XX algumas famílias de migrantes

europeus chegaram ao lugar e ocuparam as terras, mas baseados numa lógica

diferenciada, onde a terra passou a ter um valor de troca também, mas não

apenas no sentido da comercialização dela. Isso porque a propriedade da

terra, além da produção com vistas ao lucro, serviu também como um fator de

diferenciação social, onde aquele que detinha maior propriedade também

possuía maior importância na comunidade pela posse do capital econômico.

Esse capital se fazia representar em igual intensidade como poder simbólico,

sobretudo, porque as famílias que chegaram ao Saudade com a posse da

terra, através da compra, também ganharam o status de famílias mais

importantes e mais influentes na comunidade.

Dentre as famílias que detinham a propriedade da terra houve uma que

se destacou entre as demais pela intensidade com que trabalhou com vistas ao

lucro e à ampliação do patrimônio. As famílias S.36se tornaram grandes

proprietárias de terras dentro do faxinal e ganharam respeito na mesma

proporção do seu trabalho e suas conquistas. Eles ajudaram a organizar o

faxinal, principalmente na construção de cercas, na convocação dos puxirões e

na contratação de mãos-de-obra para trabalhos remunerados que aconteciam

em suas terras. Na esfera da produção econômica e da organização dos

trabalhos no faxinal as famílias S. estiveram sempre presentes como grupo

influente, como a vanguarda da comunidade. Por outro lado, as demais

famílias, em especial a dos caboclos, não aparecem na história que se ouve

entre os mais velhos da comunidade que não são caboclos.

Aqui é faxinal desde os tempos dos avós. Porque eles chegaram aqui, diz que abriram picada à cortadeira, era uma mata densa que não entrava nada. Era só mata, então eles entraram, abriram a picada pra fazer as estradas, pra fazer casa pra morar, e de lá pra cá

36

Chegaram à comunidade na segunda década do século XX. Em princípio era família S., mas que em poucos anos originaram outras famílias também S. Portanto, usa-se nesse trabalho o termo no plural para designá-los Famílias S. E isso, embora se entenda que a ação, em geral, é tomada em diversas situações como a de um grupo familiar, uma grande família. Apesar desse entendimento há algumas dissidências, principalmente através do casamento das mulheres S. com homens representantes de outras famílias. Além disso, há os homens da família S. que detém poucas terras e por isso se alinham com os faxinalenses da APF pelas vantagens que o modo de vida proporciona aos pequenos proprietários.

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foi crescendo a família. Essa foi a família dos S. e dos M. A família dos M. veio mais depois. Os tios que vieram mais depois. Já no documento de terra tem o faxinal e a cultura. Na cultura você planta milho, feijão. Faxinal é pra morar e criar criação. Desde o tempo do primeiro documento de terra já saiu o faxinal registrado. Aqui eram oitocentos alqueires. Com o passar do tempo foi diminuindo. Agora tá no máximo em trezentos alqueires. Então, foi no inicio do século XX ainda quando vieram. Quando chegaram aqui não tinha morador nenhum. Eles foram os primeiros a morar, abrir uma picada no meio da mata (A Faxinalense C

37., 2013).

Através das falas como essa é possível perceber que a população de

migrantes europeus não considerava os caboclos como famílias

representativas da história do faxinal porque não utilizavam a terra com a lógica

de cercamento, de posse legal, nem de produtividade com vistas ao lucro.

Assim, à medida que as famílias chegavam às terras e imprimiam

gradualmente sua lógica, ao mesmo tempo se colocavam como famílias

importantes e, de fato, tinham as demais famílias como agregados dos seus

trabalhos, ou seja, como mão-de-obra para atender suas necessidades

produtivas. Com isso, não viam os caboclos como concorrentes naquele

espaço, mas como vizinhos necessários, sobretudo, para as relações

econômicas.

Não houve na relação entre as famílias na época da "colonização" desavenças marcantes. Não houve resistência por parte dos caboclos em relação à ocupação da terra pelos imigrantes. A relação destes com os caboclos sempre foi tranquila porque os caboclos são muito pacíficos. O que existe é um certo preconceito para com o caboclo. Os que tinham a titulação da terra tratavam os caboclos como se fossem inferiores, porque não tinham a propriedade da terra, e porque não trabalhavam visando a acumulação, ou porque só os viam como mão-de-obra pra eles. Ainda hoje existe muito de um sistema de trabalho que se assemelha ao feudal. O proprietário tem quatro, cinco famílias morando na sua terra que trabalham pra ele e não ganham nada além da sobrevivência. Aqui no Turvo e na região do Ivaí isso ainda existe. No faxinal tem, mas é muito pouco. Mas no passado tinha mais. Nos anos 60, 70 era comum. Os caboclos serviram de mão-de-obra pra eles e essa relação se deu de forma tranquila no sentido de que não há nenhum caso de contestação que seja conhecida. Nada houve em contrário ao domínio dos proprietários que virasse história. Mas isso não surpreende porque o caboclo nunca vai entrar pra história. Já não tá na história hoje porque sempre foi visto só como mão-de-obra (AMARAL, 2013).

Apesar disso, há os que reconhecem a existência das famílias de

caboclos no local quando são questionados, mas sempre diferenciando a

relação entre as lógicas de produção. “Já tinha caboclo morando nas terras,

37

A faxinalense C. É consanguínea da família S., mas casou-se com um homem que veio de fora da comunidade, e assim formou a família K.

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mas não existiam cercas, eles não lidavam com cercas. O criador era em

comunidade feito pelo nosso avô” (Faxinalense O. S., 2013). Percebe-se que o

Faxinalense O. S. ignora que o faxinal já funcionava com a criação extensiva

de animais em pastos comuns antes da chegada da família S.

Esse predomínio das famílias de maiores proprietários se consolidou no

faxinal de modo que gradualmente se fez sentir em todos os setores da

comunidade. O destaque das famílias S. foi e ainda é grande na comunidade.

Em princípio sua influência estava bem disseminada no setor econômico, onde

além de serem os maiores proprietários de terras também eram os que mais

podiam empregar os vizinhos. Contudo, pelo menos até os anos de 1970, em

outros setores da comunidade – escola, igreja, associações – o poder estava

distribuído entre as diversas famílias. Na segunda metade da década de

setenta o faxinal ainda não tinha divisões nomeadas, mas a partir daí dividiu-se

e deu lugar a três Saudades: Santa Anita, São Roque e Forquilha.

Ainda nessa época a liderança da igreja católica, que estava situada na

Forquilha, variava entre os membros das famílias T., G., M., P., que já tinham

tradição na organização da comunidade em relação às atividades religiosas há

tempos. Contudo, no final daquela década ocorreu a mudança do local da

igreja. Segundo a história de alguns entrevistados, a igreja mudou de lugar

porque a família S. desejava ter a instituição mais perto de seus domínios.

Nunca houve um motivo que a comunidade entendesse como plausível para a

mudança da igreja.

deslocaram os prédios de influência da comunidade para perto dos S. Aí é possível perceber a importância do vereador, pois o colégio foi mudado em 1997. A igreja foi no início da década de 80, se não me engano. As instalações da igreja antiga eram boas. A desculpa da mudança é porque tinha um bar perto. Mas mudaram de lugar e hoje tem um bar lá perto. Então, não faz sentido o argumento. Foi mudado o local por influência dos S. para que eles fizessem como queriam. Mas, também porque ninguém se opôs. Provavelmente o padre tinha relações com a família. Ganhou uma igreja nova e em troca estreitou as relações com a família S. ao mesmo tempo em que fortaleceu eles (O faxinalense D, 2013).

Essa questão fica bem clara quando um proprietário de terras

pertencente às famílias S. – e que se opõe aos faxinalenses ligados à APF –

disse o que pensa em relação às novas regulamentações acerca do território.

Nós que chegamos primeiro é que sabemos como é que foi. Outro dia o [faxinalense] E. veio aqui me explicar como é que era no tempo do meu falecido avô. Eu perguntei pra ele: mas é você que é o neto ou

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sou eu? (...) Fica quieto que eu sei te explicar como é que nós formamos aqui. Eu ajudei a fazer. E naquele tempo tinha união. Hoje não tem. Nós abandonamos as reuniões [dos faxinalenses da APF] porque só ficávamos nervosos. O fiscal só apoiava eles. E nós que éramos os donos, nada. Eles só herdaram terras aí. Nós também herdamos, mas meus pais, meus tios, pagaram as terras à custa dos porcos que vendíamos. A gente ia tocando porco a pé pra Curitiba, andandinho. Também tinha a lavoura e o gado que a gente lidava pra comprar terreno (O Faxinalense O. S., 2013).

Questionado sobre qual é a família mais importante no faxinal, ele

respondeu:

Os S. As terras eram nossas. Nós que formamos. Eles foram casando com nossas primas e herdando terra, e daí quiseram mandar em nós porque nós deixamos de cair [brigar] porque não vale a pena. Mas nós, já faz mais de dez anos, deixamos de criar porco e viramos pra leite. Daí o prefeito começou a apoiar eles, os vagabundos. Daí eles começaram a por os mata-burros. E quando aqui era criador nem existia isso aí. Era só portão (O Faxinalense O. S., 2013).

Imagem 6: Mata-burro construído numa das entradas do Faxinal Saudade Santa Anita. A construção dos mata-burros surgiu há pouco tempo na comunidade. Serve de limitação à pastagem animal e evita que os bichos evadam à comunidade e se percam. Fonte: Acervo próprio, 2013.

Essas falas são representativas do pensamento das famílias S. no

faxinal. Sem dúvida, há as mulheres dessa família que se casaram com

homens da família M., T., K., entre outras, que estão seguindo a linha de

pensamento e ação dos maridos, que em geral não têm o histórico das famílias

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S. e que por isso são citados na fala anterior como aqueles que herdaram as

terras sem comprá-las. Porém, evidente, essas relações são bem complexas.

O faxinalense S., por exemplo, é filho de um membro das famílias S., portanto,

representa essas famílias. Contudo, está vinculado à APF. O faxinalense

explica:

Os S. foram mais importantes porque construíram sua história ali como proprietários legais da terra. Os T. também tinham titulação, mas eram proprietários menores. Estes inclusive chegaram a trabalhar para os S. Hoje, dos que estão mais engajados com a APF e que o chefe de família é S. são no máximo duas famílias. O faxinalense S. deve ter entre 15 ou 20 alqueires. São os pequenos que se assumem faxinalenses (O Faxinalense D, 2013).

Essa diferenciação entre o status das famílias no faxinal pode ser

percebido em diversas esferas da vida em comunidade. Os relatos a seguir

demonstram essas implicações nas diversas instituições de influência e

explicam como se deu essas relações no Faxinal Saudade Santa Anita.

Havia a tensão que a gente vivia na escola com os S. Eles eram os grandões e se impunham sobre a gente. Mas eu acho que um pouco também porque a gente se sentia inferior porque eles sempre tiveram status de famílias grandes. Mas, a gente sentia que éramos bem excluídos. Eles diziam: Ah, você é um negrinho. Você não tem valor. Não dava pra ter muita amizade com os S. Era bem clara na escola a separação. Quem era S. pra cá, quem não era ficava pra lá. Antes a escola ficava numa área que era central para várias comunidades. Depois resolveram mudar a escola e ela foi ser construída perto dos S. Isso dificultou o acesso à escola pelas outras comunidades, e isolou a população que estava mais próxima dessa área central. Mas essa população que perdeu a facilidade de chegar até a escola era uma população de caboclos, não tinha importância pra eles (O Faxinalense D, 2013).

Depois da divisão da comunidade em três Saudades parece que as

relações de poder que interessavam às famílias S. ganharam um novo impulso

e transcenderam a esfera econômica para outras instituições de influência na

comunidade. Assim, as lideranças dos S. que já haviam se estabelecido nas

escolas se avolumaram também na igreja. A mudança da igreja e,

posteriormente, da escola para a área de influência das famílias S. demonstra

que havia um interesse em concentrar as decisões naquele lugar onde o poder

delas já estava consolidado, pelo menos, economicamente. Desse modo, as

famílias G., T., M., P., que antes ocuparam esses espaços foram deixadas de

lado. Muitos se sentiram magoados e passaram a frequentar a igreja em outra

comunidade, mesmo que a distância dificultasse essa mudança. Da mesma

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forma muitos fiéis que estavam nas comunidades vizinhas ficaram distantes da

nova igreja, e também deixaram de frequentá-la.

Desde então [a mudança do local da igreja], os presidentes da igreja sempre foram S., o vereador é S., os professores são S. Se não for S. é casado com S. O professor K., é um caso a parte. Hoje é que tem um presidente da igreja que não é S., mas é um cara que veio de fora. Veja os vereadores. Agora é o T. S., mas antes foi o H. S. por três ou quatro mandatos. Além disso, tem a evidência do cemitério, onde os túmulos maiores são da família S. Isso mostra a força deles aqui. Esse domínio vai desde a igreja, às escolas, à câmara municipal, até o cemitério. (O Faxinalense D., 2013).

Imagem 7: Cemitério do Faxinal Saudade Santa Anita. Ao fundo os jazigos maiores pertencem à família S. Fonte: Acervo próprio, 2013.

Em princípio o capital econômico foi estruturado através da posse das

propriedades e do controle e distribuição do trabalho aos agregados. A seguir o

poder da família se expandiu com vistas ao poder simbólico. Isto é, a ocupação

dos postos de influência na comunidade como a igreja e a escola, assim como

o deslocamento dessas instituições para um local mais apropriado onde o

controle das decisões é operado pelas famílias S. Essas relações de poder

fazem parte da história da ascensão dos S., que desde a chegada ao Faxinal

não parou de expandir seu predomínio na comunidade.

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3.5 TRANSFORMAÇÕES NO FAXINAL SAUDADE SANTA ANITA NO

SÉCULO XXI: EMERGÊNCIA DOS CAPITAIS CULTURAL E POLÍTICO COMO

FATORES FUNDAMENTAIS PARA A DISTRIBUIÇÃO DO PODER

SIMBÓLICO NA COMUNIDADE

O capital econômico das famílias S. garantiu a concentração do poder

simbólico e permitiu que parte importante da organização do faxinal fosse

realizada segundo seus interesses. Houve um predomínio político dessas

familias que permitiu que a determinação dos regulamentos fosse

majoritariamente orientada pelos conteúdos por elas demandados. Isso,

evidentemente, não quer dizer que não houve fatores externos que estivessem

impulsionando, ou pressionando as mudanças e as reorganizações dentro da

comunidade.

não tem como analisar a comunidade per se. Os conflitos internos são resultados de algo mais amplo, como a modernização da agricultura, o avanço do agronegócio, a diminuição do faxinal. Tudo isso acontece porque são as ideias que vem de fora e atingem o modo de vida que é diferente do modelo dominante, e ocasiona no faxinal a tentativa de se amoldar ao modelo hegemônico para não se acabar com o que tem – o que é sempre um risco –, e isso implica também na saída dos jovens da comunidade, ou na obrigatoriedade de se conformar a lei, como a ARESUR que define como as pessoas tem que viver naquele espaço, e as pessoas tem que se conformar para não perder o pouco que restou (AMARAL, 2013).

Corrobora a fala acima o conteúdo dos capítulos anteriores que ilumina

fatores externos que influenciam as ações dentro do faxinal. As famílias S.,

como detentoras desses capitais – econômico e simbólico – têm em virtude

disso o poder de comunicar dentro da comunidade. Não é a toa que buscaram

ocupar os postos de influência como as escolas e as igrejas, assim como as

associações de agricultores, de moradores. É porque ocupando esses postos

puderam cristalizar a legitimidade de suas demandas, a importância de suas

ideias, e tornar por longo tempo irrefutável seu domínio.

Há diversas formas de manter o domínio. Uma delas é manter os postos

de influência ocupados por pessoas que pensam segundo um padrão aceitável

por aqueles que dominam. Isso foi feito insistentemente pelos S. A igreja que

mudou sua estrutura para o reduto dos S. se deslocou duma área que antes

estava mais próxima dos caboclos e que era dirigida por famílias de caboclos.

Tirou-se um instrumento de influência das mãos daqueles que poderiam

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pensar diferente deles. A mesma coisa acontece com a escola que foi

deslocada para mais próximo de seus domínios. Ainda hoje a escola conta com

funcionários que estão pensando, comunicando e seguindo o padrão imposto

pelas famílias S. Contam-se diversas histórias de pessoas que foram

contratadas para trabalhar no posto de saúde ou na escola, mas que por

pertencerem às famílias que são faxinalenses vinculados à APF, foram

pressionadas de tal forma que a única alternativa que restava era deixar o

emprego, tão insuportável se tornava a convivência no trabalho pela pressão

imposta pelos faxinalenses não vinculados à APF. Estes têm outro projeto

político local, ou seja, são contra o criador comum e valorizam a

individualização do território. Este posicionamento corrobora o projeto político

das famílias S.. O jogo aí representado é o do monopólio da opinião que se

estabelece pelos privilégios que manter essa opinião acarreta, que em última

instância é a permanência pacífica no trabalho. Para quem deseja ocupar um

cargo de influência naquela comunidade deve ser claramente aliado, nunca

oponente. Deve-se destacar que as pessoas consideradas indesejadas por

essa estratégia política das Famílias S. e que ocupavam os postos, não

estavam lá para fazer oposição, mas para trabalhar. Sobre essa questão

Bourdieu esclarece.

não basta notar que as relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre, relações de poder que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidos nessas relações e que, como o dom ou o potlatch, podem permitir acumular poder simbólico. É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os “sistemas simbólicos” cumprem a função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a “domesticação dos dominados” (BOURDIEU, 2002, p. 11).

Através das diversas histórias contadas pelso moradores do faxinal, fica

evidente o quanto o domínio dos dominantes se exerceu e se exerce através

do preconceito e da discriminação, que estão presentes nas relações sociais

no Faxinal ha muitas décadas. Os caboclos, por exemplo, são estigmatizados38

38

O conceito de Goffman (1988) é pertinente aqui. Os caboclos têm imposta sobre si uma marca moral deformada que é assim percebida e reforçada pelos outros e, que em muitos

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como grupo de segunda categoria, desvalorizados, e por isso são tidos como

incapazes de empreender qualqur tipo de ação que venha a ser considerada

importante na comunidade. Esse pensamento está consolidado na mentalidade

de parte da comunidade, sejam membros das famílas S., ou não, caboclos ou

não. Esse pensamento está consolidado principalmente na consciência

daqueles que exerceram liderança no passado e que influenciaram os que

ainda exercem essa influência, em especial, as famílias S.. Ao conversar com

as pessoas no faxinal parece que o domínio histórico das famílias S. faz parte

de um processo “natural”. Poucas pessoas realmente refletiram sobre a disputa

de poder dentro daquela sociedade. O fato, mesmo quando houve disputa,

sempre foi latente.

Acho que quanto à família S. pra muitos é isso. Os S. foram levados muito no status de família grande. Eu falo porque eu também tenho sangue S., pois minha mãe é S. Eles foram sempre levados numa forma assim, em que dominavam os espaços. E agora quando surge um novo personagem que foge das mãos deles, porque é outro sujeito [o entrevistado se refere ao faxinalense ligado à APF]... isso gera muito conflito. Porque se você for ver a história deles, eles é que são os donos do Saudade, porque o Saudade foi fundado por eles. Mas, eles não enxergam que antes disso já estava o pai do W., os M., os P., mas aí vem aquela ideia preconceituosa de que caboclo não conta, caboclo é vadio, é pé-rapado, é vagabundo (O faxinalense B., 2013).

O predomínio das famílias S. só foi ameaçado pela emergência de um

novo fator que gerou, em princípio, um desequilíbrio na comunidade, ou seja,

um grupo que com força de lei se impôs gradualmente através do capital

cultural reivindicando autoridade sobre a organização do lugar e, desta forma,

conflitou com o poder habitual. No começo do século XXI as informações sobre

a ARESUR chegaram à comunidade. A assinatura do abaixo-assinado que

reivindicava reconhecimento à comunidade como ARESUR encontrou uma

comunidade que desfrutava de uma boa relação, portanto, a ARESUR foi uma

boa nova que animou a muitos. Contudo, se no início a maioria concordara

com a ideia, posteriormente as discordâncias começaram a aparecer.

Quando foi pensado em fazer o abaixo-assinado de reconhecimento 90% do pessoal assinou. Depois que deu uma parada no processo eu não sei bem o que se passou na cabeça do pessoal. Acho que eles pararam e se perguntaram: quem que tá na frente dessa organização? Daí viram que não era S., e que foram os outros que começaram. Aí o vereador da comunidade na época que era da

casos, é aceita e reconhecida por eles mesmos. Essa marca moral os coloca em posição inferior na distribuição de status na comuniade.

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família S. já puxou o pessoal e disse: Olha, nós não podemos dar lado pra esses outros crescerem mais do que nós... (O Faxinalense A., 2013).

Ou:

Porque pra eles as lideranças eram aquelas figuras que todo mundo conhecia. Era o presidente da igreja, era o presidente da Associação. Pra eles a liderança ficava concentrada nesse grupinho. Mas, então, quando a gente começou com outra forma, outra visão de organização social, de trabalhar com agroecologia, defender o faxinal, aí eles viram que começou a surgir novas lideranças que não eram reconhecidas naquele meio ali, daquele espaço que acabava concentrando as decisões. Então, acabou aparecendo os K., os T., os G., e esse pessoal começou a organizar reuniões, organizar encontros. Antes aquelas famílias organizavam tudo e sempre estavam por dentro de tudo porque eram as lideranças. A partir daí, se eles quisessem ficar por dentro de tudo o que acontecia tinham que participar também das reuniões que não eram organizadas por eles. Alguns não participavam porque estavam envolvidos com outra lógica. O V. S., por exemplo, mexia com venenos, e estava mais ligado a outra lógica de produção que não tinha ligação com a agroecologia. Mas, alguns mais pequenos vinham participar com a gente no começo. Não é porque era da família S. que os caras eram contra. Só que no meio do caminho foi muito influenciado, principalmente pelo antigo vereador e, também, por outros (O faxinalense B., 2013).

E ainda:

É visível que as brigas dentro da comunidade têm relação com uma disputa de poder entre as famílias. As lideranças que são mais atuantes e defendem o sistema faxinal [ligados à APF] não são S. É isso que provoca um conflito maior. Não tanto pelo faxinal, mas pela configuração das famílias que encabeçam a luta faxinalense, ou seja, por não ser os S. que estão na liderança. Talvez, se conversarem com as pessoas sobre o assunto, elas não percebam isso. Mas, é isso o que acontece. A gente percebe quando os S. chegam no sindicato e reclamam: Tá uma bagunça lá no criador. São os K. que ficam louqueando. Ou dizem: ah, é coisa dos T. De certa forma eles estão dizendo: Ah, o problema é causado por eles. Não somos nós. Nós somos S., nós não fazemos bagunça. São eles que estão fazendo confusão. Então dá pra perceber que ainda existe isso. Mas a gente não vê os K. e os T. falando o mesmo dos S. (...) o sistema de muitos S. é um modo de vida faxinalense, mas, agora tudo o que for relacionado aos faxinalenses [da APF] ele vai ser contra porque virou uma disputa por poder dentro da comunidade (AMARAL, 2013).

Os conflitos se avolumaram na comunidade em torno da questão da

ARESUR e do porco. Muitas intrigas e desavenças vieram à tona nesse

período e continuam, embora menos densas, até o término da pesquisa de

campo, em 2013. Antes das disputas mais acirradas já havia disputas pelo

poder, mas eram latentes. Muitas pessoas acham que porque não havia

conflitos aparentes não havia disputas por poder no lugar. O entrevistado

acertadamente destacou que “talvez, se conversarem com as pessoas sobre o

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assunto, elas não percebam isso. Mas, é isso o que acontece” (AMARAL,

2013). A faxinalense C. fala sobre sua impressão e demonstra certa confusão

sobre o que realmente aconteceu:

nós nunca fomos de entrar no jogo de provocação deles. A gente nunca gostou de falar mal deles. E a gente tá até agora meio sem entender qual é a deles, porque não querem se assumir faxinalenses [como os vinculados à APF], mas criam até mais porco solto do que nós. Então, nós não entendemos muito bem qual é a briga deles, se é de verdade contra os porcos ou se é de verdade contra nós (A faxinalenses C., 2013).

Em princípio, quando o grupo de faxinalenses da APF estava se

fortalecendo em torno de um capital cultural que lhes proporcionava uma

identidade étnica, portanto, política, as condições no faxinal para que eles se

expressassem eram estreitas para eles. Seus espaços foram encurtados

dentro da igreja, e suas práticas e qualificações pessoais foram desdenhadas

pelos seus antagonistas. Houve inúmeros comentários que tinham o objetivo

de diminuí-los, e as várias instituições de influência na comunidade tonravam

públicas ideias pejorativas contra eles.

Eles jogavam contra nós os médicos, enfermeiros, professores, diretores, padre, ou seja, todas essas pessoas que se falarem parece que tem força de lei. Em todos esses espaços a gente levava bordoada. Às vezes, na missa, a padre louco chegava e o sermão era pra nós. Ele falava que porco não é de Deus, se cuide com porco. Daí num outro dia um pessoal da gente foi perguntar pro padre porque que ele foi falar aquilo e ficaram debatendo com o padre. Daí surgiu o boato que o pessoal foi querer bater no padre. Mas, na verdade eles foram falar pro padre que já que ele era de fora não devia vir com julgamento sobre os costumes da comunidade (O faxinalense B., 2013).

E:

Eles diziam que a gente era um grupinho menor que ia morrer de fome porque passamos pra agroecologia. Pra evitar falatório a gente tinha que fazer as coisas escondido. Então, às vezes, de noite, a gente pegava um cabresto com parte de ir procurar um cavalo no mato pra, na verdade, a gente ir numa reunião na casa de algum. Isso porque a gente era chamado de um grupo menor que era criticado, e que não ia dar em nada (O faxinalense A., 2013).

No contexto da luta pelo poder Bourdieu insere a noção de estratégia

como produto do senso prático, como sentido do jogo que é histórico desde a

infância. O autor compreende que “o sentido do jogo (...) se distribui de

maneira desigual, tanto numa sociedade quanto numa equipe” (BOURDIEU,

2004, p. 81). Foi isso que aconteceu no Faxinal Saudade Santa Anita. A

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distribuição do poder foi sempre desigual. Por isso as estratégias do jogo

estavam desequilibradas no início a favor das Famílias S.. Foi necessário o

empreendimento da luta pelos faxinalenses da APF para tentar equilibrar o

jogo. As estratégias utilizadas pelos faxinalenses da APF sempre encontravam

uma oposição na família S. O antigo vereador, H. S., fazia o papel de

articulador da oposição.

O vereador foi quem influenciou a comunidade e conseguiu levar muita gente pro lado dele. Ele tinha grande poder de influência, pois ele saía candidato toda a comunidade votava nele. Ele se elegeu três ou quatro mandatos seguidos (A faxinalense C., 2013).

E

Pois, foi o pessoal de maior poder aquisitivo que quando viu já tava numa situação que podia perder a liderança pra esse grupo menor que não era S. Apesar disso, tem muita gente que não é S. que também é contra e até encabeçou abaixo-assinado pra acabar o criador. É complexo. Mas, talvez, muita gente foi influenciada pelo vereador que é S. Ele fez uma articulação contra nós que quando ele sabia que ia ter uma reunião ele corria de moto por aí tudo avisando o pessoal e fazendo uma outra versão que não era aquela que nós queríamos passar (O faxinalense A., 2013).

Não resta dúvida, como mencionado, de que a emergência do um novo

projeto político no faxinal evidenciou um conflito que estava parcialmente

oculto. Contudo, os faxinalenses da APF ganharam espaço em virtude da

coesão do grupo. As reuniões frequentes fortaleceram-no em torno de

objetivos comuns.

A gente tentou falar todo mundo a mesma língua. A gente combinava de não cair nas provocações e não caía. A gente combinava de ir na justiça fazer B. O. [boletim de ocorrência] e fazia. Não deixava de fazer. O motivo das conquistas foi manter o grupo unido. Qualquer coisa que estava acontecendo a gente reunia o pessoal e conversava. Às vezes eram três reuniões por mês. (...) A gente teve muitas audiências com a juíza em Guarapuava. A gente fazia um Termo Circunstanciado e já ia direcionado e com data marcada pra audiência. A gente teve muita reunião e puxirão, mas no começo não tinha muito mais estratégias. Era denunciar. Mas, nada muito refinado. A gente queria na verdade era ser reconhecido aqui pela nossa cultura. E a gente ficou um grupo bom, mas limitado, porque chegou um ponto que não tinha mais diálogo, eles não aceitavam a proposta. (...) E teve uma época aqui dentro que o agronegócio estava em alta, era a soja, monocultura, e integração do porco com a Sadia, e a gente não conseguia conversar com o pessoal. Tudo muito individualizado (O faxinalense B., 2013).

Os vizinhos se sentiram ameaçados, principalmente, pelas novas

configurações que o grupo da APF foi tomando através de seus

posicionamentos em relação ao espaço, que desde a ideia de transformar

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aquela comunidade em ARESUR passou gradualmente a ser organizado

conforme as necessidades e demandas de um grupo que anteriormente não

tinha voz ativa, pois, dispersos como criadores comuns não mobilizados não

conseguiam elaborar uma demanda efetiva que mudasse a situação adversa e,

portanto, não eram ouvidos.

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Imagem 8 : página inicial de um documento extenso da APF denunciando vários representantes da família S. por violações ao meio ambiente e a cultura local. Além disso, presta informações sobre o modo de vida e as leis que regulamentam o faxinal e a cultura faxinalense. A APF reiteradamente assessorou os faxinalenses do Saudade. Fonte: Acervo próprio, 2013.

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O conhecimento das leis levou ao fortalecimento do grupo da APF, e ao

acirramento dos conflitos entre os grupos que evidenciaram interesses

distintos. Por conseguinte, os faxinalenses da APF passaram a ser ouvidos,

conseguindo em muitos casos impor suas demandas. A organização da

comunidade paulatinamente deixou de estar concentrada nas mãos das

famílias S. O grupo coeso foi atuante, e interessado em participar da ação na

comunidade. Assim, atuaram desde a organização de festas até no reforço por

meios legais das normas que regulamentam as relações na comunidade,

demonstrando assim a força do grupo.

A gente organizou uma festa aqui na comunidade que foi muito grande, chamada de Feira da Comunhão da Partilha. Daí eles pensaram: como é que um grupinho desses conseguiu organizar isso? A festa começou com 200, 300 pessoas aqui no Saudade e, nas últimas vezes, reunia até 5 mil pessoas. Então, começou a mostrar que esse grupinho era muito mais forte do que eles pensavam. Foi a partir daí que ficou mais visível quem era a favor e quem era contra as ideias que estavam crescendo na comunidade (O faxinalense B., 2013). A nossa estratégia pra fazer valer a nossa cultura sobre os contra foi denunciar. Quando mataram uns cabritos aqui dentro a gente tentou conversar, mas a gente viu que não tinha conversa, não tinha diálogo. Então, a gente foi na justiça e registramos o primeiro B. O. Na audiência o cara teve que deixar um cheque de 450 [reais] na mesa pra pagar os danos. Depois disso foi uma carrada de B. O. A notícia se espalhou e daí o pessoal já não queria matar mais (O faxinalense A., 2013). No dia da audiência pública um pessoal falou que queria o faxinal, mas não queria o porco solto. Aí o funcionário do IAP perguntou: como sem o porco, se o porco é a bandeira do faxinal? Eles não tinham o que argumentar. E gente dizendo que é contra o porco tendo porco. É difícil quem não tenha porco (A Faxinalense C., 2013).

E ainda:

Teve reunião na própria prefeitura onde nós que defendíamos a agroecologia e o porco solto comparecemos e eles apareceram com um grupo deles também pra lutar contra. O promotor perguntou se eles eram faxinalenses e eles disseram que eram contra nossas ideias. Aí o promotor disse: então vocês não podem participar da reunião. Aí eles começaram a perceber que a própria lei estava favorável a nós (O Faxinalense E., 2013).

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Imagem 9: Excertos de alguns boletins de ocorrências registrados pelos faxinalenses durante os conflitos na comunidade. Fonte: Acervo próprio, 2013.

O conhecimento das leis e uma consciência de organização em

movimento social, todas estas coisas incidiram sobre a coesão do grupo,

alterando as relações sociais, as relações de poder no Faxinal Saudade Santa

Anita e, inclusive, no município, pois, as relações com o poder público também

sofreram mudanças.

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Os conflitos são decorrentes também da noção, isto é, do sentimento de

que se desrespeitou uma hierarquia que já estava posta, consolidada na

comunidade. As famílias S. e os que se alinham com elas viram ameaçado o

seu controle pelo grupo da APF que se sobrepôs ao que era costumeiro na

comunidade. A liderança que anteriormente dominou o faxinal não pôde mais

exercer seu poder sem restrições marcantes, ou seja, restringiu o seu poder e

autoridade aos regulamentos dos acordos comunitários, que em partes ainda

está sendo elaborado. Há agora certo equilíbrio de forças. O capital cultural,

político, favoreceu a existência de um poder simbólico aos faxinalenses da

APF, que agora disputa com o capital econômico da família S. esse poder. Esta

é uma novidade que tem transformado as relações na comunidade.

A gente não quer subir no salto porque temos lei. Não usamos a lei para ficar por cima. Não vamos sair da posição de oprimidos para opressores. Isso é muito do ser humano. Mas, nós lembramos esses dias numa conversa o quanto a gente sofreu. Padre que quando a gente pisava na igreja olhava atravessado pra gente, excluíam a gente. Daí depois vinha com parte de rezar por nós porque não íamos à igreja. A gente que passava por mau. A gente passou por patinho feio aí na comunidade. A gente chegou a celebrar a missa entre nós mesmos no domingo, porque nós temos muito a metodologia da pastoral. Então, fazíamos a leitura popular da Bíblia e trazíamos para a nossa realidade. A Bíblia é muito rica sobre as primeiras comunidades cristãs, como que elas viviam, a questão organizativa quando tinha conflitos onde eles se reuniam a partir de grupos de dez, quinze. Então, a gente fazia essa leitura e contextualizava pra nós. Aí, quando ia à igreja aquela leitura conflitava porque era uma visão fundamentalista... Deus está dentro da igreja, mas não tá no meio do povo, na cultura, na natureza, nessa comunhão. E o faxinal é muita comunhão, é muita partilha. Acho que a mística da pastoral manteve a gente, agregou o grupo. (...) Mas, a nossa ideia agora é trazer novamente as discussões do recurso do ICMS Ecológico e socializar as informações na comunidade. A ideia é trazer as pessoas, agregar elas. Queremos unir e pacificar. Porque senão a gente não vai conseguir viver em comunidade com muito conflito (O faxinalense B., 2013).

Com isto, percebe-se que o projeto político da APF na região trouxe

conscientização dos direitos ao grupo, principalmente no que se refere à

organização do território, que foi tomada gradualmente como responsabilidade

dos que representam politicamente esse projeto. Além disso, as estratégias

adotadas por esses representantes foram determinantes para que o jogo de

poder no território fosse minimamente equilibrado no decorrer das disputas. As

sucessivas derrotas dos faxinalenses não vinculados à APF frente aos

faxinalenses da APF e ao poder público, assim como a determinação do

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território como ARESRUR trazem luz sobre o poder simbólico proporcionado

pela mobilização política com a APF, e dão a dimensão do equilíbrio na luta

pelo poder. Isso porque as famílias S. não estão mais à frente da igreja, mas

continuam ocupando espaços importantes na comunidade, e continuam sendo

as famílias mais prósperas. Contudo, estão dentro da ARESUR, e essa

situação acaba por distribuir o poder no faxinal entre os dois projetos políticos

instituídos na comunidade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um dos principais objetivos deste trabalho dissertativo foi perceber a

construção do faxinalense como agente social na literatura e dar continuidade

a esta concepção atentando para a voz e para a participação deste agente na

sua atuação política. Para alcançar tal propósito rastreou-se toda a literatura

inaugural sobre a temática produzida na década de 1980, onde os autores

tiveram grande importância no sentido de dar visibilidade à temática

relacionada ao faxinal e à necessidade de políticas públicas atreladas a ele. No

entanto, tais proposições, apesar de marcarem época e se tornarem

importantes referências para o campo de estudos que se criava, também

estavam sujeitas a limitações. Dentro de seus enquadramentos havia uma

visão economicista a partir da qual se prognosticava o fim do sistema faxinal –

sistema concebido pelos autores como atrasado, embora nunca se

problematizasse esse conceito.

Reitera-se que a construção do conhecimento científico é dinâmica e

sempre em vias de reformulações. Assim, a nova geração que se debruçou nos

estudos relacionados ao faxinal, buscou olhar e dar vistas ao faxinalense como

o agente que por meio do movimento social tornou-se atuante nas suas lutas

por reconhecimento e direitos relacionados ao seu modo de vida tradicional e,

ao mesmo tempo, preocupado com a preservação ambiental.

Buscou-se perceber neste trabalho como o novo modelo jurídico

contemporâneo que se instala reivindica um olhar mais aguçado para a

diversidade de grupos pluralistas e multiétnicos que compõem a sociedade ao

invés de olhar somente para demandas universalizantes. Esta mudança de

paradigma se pautou principalmente na apreciação da cultura e na identidade

como critérios de definição. E foi no interior destas mudanças que as

comunidades faxinalenses buscaram construir uma identidade étnica que os

diferenciava e reconhecia suas particularidades como povos tradicionais.

A reafirmação e a construção da identidade faxinalense foi

também uma reação ao processo de modernização que se instaurou nos

faxinais, e que trouxe consequências socioeconômicas e ambientais que

desestabilizaram as práticas e costumes tradicionais destes povos. Diante

disso, começou um processo de contestação das novas práticas que

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envolveram questões de ordem territorial, de costumes ou práticas comuns.

Esse processo fortaleceu as comunidades tradicionais de tal forma que

proporcionou para parte dos faxinalenses a organização política através do

movimento social a partir de 2005.

No bojo desse enfoque para as comunidades tradicionais este trabalho

deparou-se com os esforços, não sem limitações, do Programa Territórios da

Cidadania no sentido de promover o desenvolvimento socioeconômico destas

regiões a partir da efetivação de ações que privilegiem os agricultores

familiares e com um olhar voltado para a valorização cultural dos povos. Essa

questão é importante para os faxinalenses. Muitas demandas estão ligadas a

itens da cultura, como a educação do campo, ou a necessidade de buscar

estratégias para manter o jovem no campo. Mas há outras questões que

também se destacam. Além da busca de reconhecimento por meio da

identificação, há dificuldades para a fomentação de renda, problemas

socioambientais e muitas vezes a necessidade de sair do faxinal para

sobreviver. Foi possível perceber nessa relação política territorial – por meio do

trabalho de campo – o quanto ainda é necessário avançar para que a inclusão

desses povos nas políticas públicas mais amplas possa transcender o papel e

se tornar uma realidade. O PTC privilegia setores da sociedade que estão mais

integrados ao mercado, e o fator econômico é prevalecente na hora que se

escolhe bancar um projeto. Assim, a questão cultural fica em segundo plano.

Fora da política territorial o eco das reclamações faxinalenses da APF

surtiu seus efeitos. Na legislação conseguiram reconhecimento e conquistas.

Também conseguiram, em muitas comunidades, a classificação de seu

território como ARESUR e o consequente ganho dos recursos do ICMS

Ecológico para a manutenção de seus territórios e seu modo de vida. Mas é

importante destacar que tais conquistas não vieram sem suas incoerências

como no caso das omissões no repasse do recurso, como ainda ocorre nos

faxinal dos Kruger. Ou mesmo nas dificuldades colocadas pelas prefeituras no

momento de reconhecer estas comunidades como ARESUR, evidenciando aí a

falta de respaldo do poder público local para a cultura e o modo de vida dos

faxinalenses.

A etapa final da pesquisa afunilou-se com um trabalho pontual de campo

no Faxinal Saudade Santa Anita no município de Turvo. Conflitos com agentes

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externos e internos foram evidenciados nesta comunidade. Internamente

constatou-se uma disputa de poderes entre aqueles que já estavam

estabelecidos econômica e simbolicamente e, por outro lado, aqueles que

representam um novo poder cultural e político que se estabeleceu com os

faxinalenses identificados politicamente com a APF. Os conflitos externos

ocorreram diante das transformações sofridas no faxinal e da gradual e

constante expropriação de seus territórios e costumes através da implantação

de uma forma de exploração mais intensiva da terra, que visou o lucro do

capital, e com a chegada de novos proprietários no território de uso comum

para produzir de um modo diferente: através da tecnificação da produção.

O olhar para a realidade faxinalense por meio da pesquisa de campo

constatou uma limitação que precisa ser superada nas legislações que regem e

definem o faxinalense. O texto dissertativo mostrou nesta etapa não só uma

constatação, mas também um tom de denúncia para que novas formulações

legislativas possam alargar e flexibilizar suas definições. Novas defninições

podem servir para que outras comunidades ou mesmo outras categorias de

agentes que hoje encontram-se excluídos da identificação como faxinalense e

de seus territórios como faxinal possam ser inseridos. Dessa forma, também

contribui para a preservação das poucas matas ainda existentes no Paraná.

O fechamento da dissertação buscou dar completude àquilo que se

propôs deste o início, a saber: dar voz ao agente faxinalense. Desta forma,

inúmeras entrevistas constituíram o texto de forma a representar a

configuração do faxinal Saudade Santa Anita diante de seus conflitos e suas

conquistas.

Sem dúvida essa dissertação não está completa, pois há ausências que

podem ser sentidas. Não foi possível fazer um levantamento de dados

socioeconômicos na comunidade para obter uma visão mais aprofundada das

condições de vida deste povo no que tange a economia, principalmente, sobre

o potencial para a continuidade e o melhoramento da produção – assim como

outras possibilidades que objetivem inserí-los futuramente no mercado mais

amplo de modo mais dinâmico e constante e que, ao mesmo tempo, resguarde

seu modo de vida tradicional. Essas demandas foram apresentadas por parte

dos faxinalenses entrevistados e suas reivindicações constam no capítulo dois.

Também não foi possível verificar a quantidade de animais que estão vivendo

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no criatório, ou procurar saber qual o tamanho das propriedades pertencentes

a cada família, seja as que pertencem às famílias S., ou às famílias dos

caboclos, ou às demais famílias.

Também não foi possível levantar informações sobre o equilíbiro ou não

da população de bichos em relação à quantidade de espaço físico

disponibilizado à criação animal. Esse levantamento pode auxiliar na análise de

problemas ambientais iminentes, em especial, em relação à renoavação das

espécies florestais características daquele meio ambiente. Essas são lacunas a

serem preenchidas por novas pesquisas.

Contudo, foi possível avançar acerca da percepção sobre os

faxinalenses e a identidade étnica pela autodefinição, entendendo que ela pode

ser assumida por um grupo ou não, dependendo de seus interesses políticos e

da expectativa de cada grupo em adquirir vantagens a partir do

autorreconhecimento. É também importante que continuem sendo estudadas

as razões da recusa de parte dos moradores de faxinal pela autodefinição, e a

examinar a recusa de faxinalenses ao projeto político da APF.

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