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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANAacute
DAVI RAUBACH TUCHTENHAGEN
INTERACcedilAtildeO NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
CURITIBA
2018
DAVI RAUBACH TUCHTENHAGEN
INTERACcedilAtildeO NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
Dissertaccedilatildeo apresentada ao curso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Muacutesica Setor de Artes Comunicaccedilatildeo e Design Universidade Federal do Paranaacute como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Muacutesica
Orientador Prof Dr Felipe de Almeida Ribeiro
CURITIBA
2018
Catalogaccedilatildeo na publicaccedilatildeo
Sistema de Bibliotecas UFPR
Biblioteca de Artes Comunicaccedilatildeo e Design Batel (AM)
(Elaborado por Sheila Barreto CRB9-1242)
Tuchtenhagen Davi Raubach
Interaccedilatildeo na muacutesica eletroacuacutestica mista Davi Raubach Tuchtenhagen -
Curitiba 2018
211 f
Orientador Prof Dr Felipe de Almeida Ribeiro
Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Muacutesica) - Setor de Artes Comunicaccedilatildeo e
Design da Universidade Federal do Paranaacute
1 Dissertaccedilotildees - Muacutesica 2 Muacutesica 3 Comissatildeo ITiacutetulo
CDD 780
UFPR
MINISTEacuteRIO OA EDUCACcedilAtildeO 8 E T 0 R ARTES COMUNICACcedilAtildeO E DESIGN UNIVERSIOADE FEDERAL OO PARANAacute P R Oacute -R amp TO R IA DE PESQUISA E POacuteS-GRADUACcedilAtildeO PROGRAM A DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO MUacuteSICA - 40D01016065R2
TER M O OE A PR O V A Ccedil Atilde O
Os m em bros da Bance Exam inadora designada pelo Colegiadcopy d o P rogram a de P oacutes-G raduaccedilatildeo em M UacuteSICA da Universidade
Federal d o Paranaacute foram conw cados pare realMar a arguiccedilatildeo da D issertaccedilatildeo d e M estrado d e D AVI RAIJBACH TUC HTENHAGEN
irrtitiaacuteada In te ra ccedilatilde o n a M uacute s ica E letroecsisU ca M is ta apos te rem inqu irido o a luno e rea lizado e avaliaccedilatildeo d o traD alto satildeo de
parecer pele sua b amp Ocirc ^ J k Ccedil X o ________ no rito d e defesa
A outorga d o titu lo d a m estre estaacute su je ila agrave tvomoi-ogaccedilocirco pelo colegkado ao a tendim ento d e todas as indicaccedilotildees e correccedilotildees
soiiciladas pela banca ao p leno alendim enlo dee demaradas regimentais do Programa d raquo Potildes-Gradueccedil5o
CURITIBA 06 d e Feverero de 2019
Avshador Interno ()
RUA CORONEL DJLCIacuteD IO 636 - CURITIBA - Pereneacute - E rasC E P 80420-170 - TeL (41) 3307-7306 - E-maif ufpr ppgmajsice copy gm ailcom
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo aos professores Clayton Mamedes Roseane Yampolschi e Mauriacutecio Dottori pelos
conhecimentos compartilhados e pelos diversos insights sobre minhas composiccedilotildees e sobre
minha pesquisa
Agradeccedilo aos colegas Valentina Daldegan e Eric Moreira pelos processos criativos
compartilhados
Agradeccedilo ao meu orientador Felipe de Almeida Ribeiro pelo incentivo e motivaccedilatildeo e por
propiciar a expansatildeo de minhas referecircncias
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal
de Niacutevel Superior - Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001
Agradeccedilo agrave CAPES agrave UFPR e ao Grupo de Pesquisa Muacutesica Nova
Agradeccedilo aos meus pais Vanda e Jorge por todo o apoio
Agradeccedilo a minha esposa Caroline Reichow pela cumplicidade e pelo cuidado
Agradeccedilo a Deus por estas pessoas
RESUMO
Esta pesquisa investiga a interaccedilatildeo na muacutesica que combina recursos eletroacuacutesticos e instrumentais numa performance - a muacutesica eletroacuacutestica mista Devido agrave presenccedila de tecnologias diversas na performance e composiccedilatildeo deste repertoacuterio ldquointeraccedilatildeordquo pode se referir agraves relaccedilotildees entre estes recursos tecnoloacutegicos e os performers Entretanto tambeacutem pode se referir agraves relaccedilotildees entre os sons que se nos apresentam na experiecircncia de escuta Distinguimos estes dois acircmbitos praacutetico-tecnoloacutegico e sonoro-morfoloacutegico e investigamos suas inter-relaccedilotildees a fim de focar no segundo Assim independentemente dos recursos tecnoloacutegicos utilizados investigamos as relaccedilotildees e interaccedilotildees entre eventos sonoros que como as notas de uma voz no contraponto tonal satildeo por um processo da escuta agrupados em camadas planos fluxos (WISHART 1996 BREGMAN 2004 2008) que por sua vez formam uma textura O principal problema desta pesquisa concerne agrave maneira como interagem estes fluxos na muacutesica eletroacuacutestica mista tendo em vista as particularidades relativas agrave uniatildeo dos meios instrumental e eletroacuacutestico Atraveacutes de uma revisatildeo bibliograacutefica levantamos ferramentas teoacutericas para investigar e descrever como se constituem se diferenciam se relacionam os fluxos sonoros entre si e como se relacionam com o aspecto visual da performance Anaacutelises de quatro peccedilas mistas aplicam as ferramentas levantadas a fim de verificar estrateacutegias especiacuteficas encontradas no repertoacuterio Aleacutem disso a experiecircncia do autor de compor duas peccedilas em interaccedilatildeo com a pesquisa eacute apresentada Esta pesquisa propotildee a distinccedilatildeo teoacuterica entre microtextura e macrotextura discute as teorias concernentes agrave interaccedilatildeo argumenta pela plausibilidade de considerar o aspecto visual como um elemento da textura em interaccedilatildeo com o que soa e evidencia a ambiguidade e a fluidez presentes nas relaccedilotildees sonoras e visuais deste repertoacuterio
Palavras-chave composiccedilatildeo interaccedilatildeo muacutesica eletroacuacutestica mista fluxos sonoros textura
ABSTRACT
This research investigates the interaction in music that combines electroacoustic and instrumental resources in a performance - mixed electroacoustic music Due to the presence of different technologies in the performance and composition of this repertoire ldquointeractionrdquo can refer to the relationships between performers and technologic resources Nevertheless it also can refer to the relationships between the sounds we perceive in the listening experience We distinguish these two ambits practical-technological and sound-morphological and investigate their interrelations in order to focus on the second one Then we investigate independently of the technological resources used the relationships and interactions between sound streams Through a listening process the sound events are grouped in layers plans or streams (WISHART 1996 BREGMAN 2004 2008) and constitute a texture the same way the notes are grouped in a voice in tonal counterpoint The main problem of this research concerns the way that these streams interact in mixed electroacoustic music considering its particularities We identify theoretic tools from a bibliographic revision to investigate and describe how the streams are constituted distinguished how they relate to each other and how they relate to the visual aspects of performance We apply these identified tools in the analysis of four mixed pieces in order to verify specific strategies found in the repertoire Moreover we present a personal experience of composing two pieces in interaction with the research This research proposes a theoretic distinction between micro-texture and macro-texture discusses the theories concerned to interaction argues about the plausibility to consider the visual aspect a textural element in interaction with sound and evidences the ambiguity and fluidity present in visual and sound relationships in this repertoire
Keywords composition interaction mixed electroacoustic music sound streams
LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES
FIGURA 1 - SYNCHRONISMSNO 10 (1992) DE MARIO DAVIDOVSKY (COMPASSOS
109-110) 22
FIGURA 2 - ESQUEMA DA PECcedilA A PIERRE DELL rsquoAZZURRO SILENZIO INQUIETUM
(1985) DE LUIGI NONO24
FIGURA 3 - COMPASSOS INICIAIS DE A PIERRE DELL rsquoAZZURRO SILENZIO
INQUIETUM (1985) DE LUIGI NONO25
FIGURA 4 - CONTEXTO DISCIPLINAR DA MUacuteSICA INTERATIVA 27
FIGURA 5 - EXCERTO DA PARTITURA DE JUPITER (1987) DE PHILIPPE MANOURY
29
FIGURA 6 - JANELA PRINCIPAL DO PATCH DE JUPITER (1987) DE PHILIPPE
MANOURY 30
FIGURA 7 - PROCESSO COMPOSICIONAL NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA 40
FIGURA 8 - REPRESENTACcedilAtildeO DOS ASPECTOS QUANTITATIVO E QUALITATIVO
DA TEXTURA 43
FIGURA 9 - ALGUMAS QUALIDADES DA TEXTURA 44
FIGURA 10 - DIAGRAMA DE QUATRO CONDICcedilOtildeES DA PERCEPCcedilAtildeO DE FLUXOS
AUDITIVOS DISTINTOS COM PADRAtildeO GALOPANTE H LH -H LH -H LH - 47
FIGURA 11 - POLIFONIA VIRTUAL NOS COMPASSOS 89 A 94 DA PARTITA NO 2 EM
REacute MENOR B W V 1004 DE J S BACH 47
FIGURA 12 - POLIFONIA VIRTUAL NOS COMPASSOS 121 A 123 DA PARTITA NO 2
EM REacute MENOR BW V 1004 DE J S BACH 48
FIGURA 13 - MELODIA DE TIMBRES NA ORQUESTRACcedilAtildeO DE WEBERN FUGA
(RICERCATA) NO 2 AU SD E M ldquoMUSIKALISCHENOPFER VON JOH SEB BACH 50
FIGURA 14 - EXEMPLO DE MACRO E MICROTEXTURA 53
FIGURA 15 - NIacuteVEIS DE ANAacuteLISE DA SONORIDADE55
FIGURA 16 - VETOR DE QUALIFICACcedilAtildeO DO GRAU DE OPOSICcedilAtildeO ESTRUTURAL
ENTRE UNIDADES SONORAS 56
FIGURA 17 - TELHAGEM DE ACORDO COM GUIGUE (2011)57
FIGURA 18 - SINTAGMA EM SYNCHRONIMS NO 10 (1992) DE MARIO
DAVIDOVSKY (COMPASSOS 271-272)57
FIGURA 19 - POLIFONIA DE SONORIDADES EM MOMENTO 23 DE ALMEIDA
PRADO 58
FIGURA 20 - a) REPRESENTACcedilAtildeO ESQUEMAacuteTICA DA REDE (LATTICE)
TRIDIMENSIONAL b) REPRESENTACcedilAtildeO ESQUEMAacuteTICA DE UM OBJETO
MUSICAL COMPLEXO SE MOVENDO NO CONTINUUM61
FIGURA 21 - DESENVOLVIMENTO DE UM FLUXO SEPARANDO EM OUTROS E
CONVERGINDO NOVAMENTE76
FIGURA 22 - DIVISAtildeO DE UM FLUXO EM OUTROS EM KONTAKTE (1958-60) DE
STOCKHAU SEN 77
FIGURA 23 - COMPASSOS INICIAIS DE MUSIC FOR FLUTE AND ISPW (1994) DE
CORT LIPPE 83
FIGURA 24 - MODELO DE ACcedilAtildeO-RESPOSTA DOS INSTRUMENTOS ACUacuteSTICOS90
FIGURA 25 - POSSIacuteVEIS RELACcedilOtildeES CONFUSAS NA PERCEPCcedilAtildeO DE ACcedilAtildeO-
RESPOSTA NO CONTEXTO DA MUacuteSICA MISTA90
FIGURA 26 - FUSAtildeO EM THREE VOICES (1982) DE MORTON FELDMAN
(COMPASSOS 15 A 18 DA PARTE B) 93
FIGURA 27 - EXCERTO DA PARTITURA DE APHASIA (2009) DE MARK
APPELBAUM 94
FIGURA 28 - ILUSTRACcedilAtildeO DE POSSIacuteVEIS COMPONENTES DA MACROTEXTURA
DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA103
FIGURA 29 - ACORDES-TIMBRE INICIAL E FINAL DA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE
DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN MURAIL107
FIGURA 30 - COMPASSOS INICIAIS TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS
(1982-3) DE TRISTAN MURAIL108
FIGURA 31 - COMPASSOS 11 A 13 DA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS
(1982-3) DE TRISTAN MURAIL110
FIGURA 32 - FLUXO DO CORNE INGLEcircS NA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE
DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN MURAIL111
FIGURA 33 - FLUXOS SONOROS NA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS
(1982-3) DE TRISTAN MURAIL (645 a 1006) 112
FIGURA 34 - RELACcedilAtildeO ENTRE DOIS FLUXOS EM DESINTEGRATIONS (1982-3)
SOBRE O QUADRO DE WISHART (1996) 113
FIGURA 35 - INIacuteCIO DA PARTE 1B DE STRANGE AUTUMN DE STEVEN KAZUO
TAKASUGI 117
FIGURA 36 - ILUSTRACcedilAtildeO DE BATIMENTOS ACCELERANDO E RITARDANDO NO
COMECcedilO DE IN MEMORIAM JO N HIGGINS128
FIGURA 37 - COMPASSOS 77-78 DE DOIS MOVIMENTOS PARA ACORDEAtildeO E PIANO
(2016) 135
FIGURA 38 - EXEMPLO DA UTILIZACcedilAtildeO DO TEXTO COMO SUBSTITUTO DE UMA
ESCRITA DE FIGURAS RIacuteTMICAS EM M EU TRECHO PREDILETO137
FIGURA 39 - VARIACcedilAtildeO MOTIacuteVICA A PARTIR DE UM FRAGMENTO TEXTUAL
(SISTEMAS 2 E 3)138
FIGURA 40 - DESLOCAMENTOS DE FLA UTA E FALA PARA O PRIMEIRO PLANO EM
CHAtildeO DE OUTONO 142
FIGURA 41 - RELACcedilOtildeES PRESENTES NOS PROGRAMAS DO PATCH143
FIGURA 42 - QUATRO MATERIAIS DE NASCER PEDRA MORRER NUVEM
(COMPASSOS 8 a 10)149
FIGURA 43 - COMPASSOS 39 a 54 TRANSICcedilAtildeO EM NASCER PEDRA MORRER
NUVEM (2018) 150
FIGURA 44 - COMPASSOS 55 a 60 TREcircS FLUXOS151
FIGURA 45 - COMPASSOS 67 a 71 INIacuteCIO DA SECcedilAtildeO FINAL 153
FIGURA 46 - COMPASSOS 89 a 93 BATIMENTOS153
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO14
2 A INTERACcedilAtildeO NO CONTEXTO DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
21
21 TEacuteCNICAS DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA21
211 Sons fixados em suporte 21
212 Eletrocircnica em Tempo Real e Sistemas Interativos24
22 QUERELA DOS TEMPOS E A ESTEacuteTICA DA INTERATIVIDADE 31
23 ENTRE TECNOLOGIA E MORFOLOGIA SONORA 36
3 A INTERACcedilAtildeO NO AcircMBITO SONORO-MORFOLOacuteGICO 42
31 VOZES E TEXTURA42
311 Textura42
312 Vozes sons segregados em fluxos auditivos 45
313 Orquestraccedilatildeo timbre (tone-color) e textura48
314 Microtextura e macrotextura52
32 AS SONORIDADES 53
321 Oposiccedilatildeo Adjacente e Segmentaccedilatildeo56
322 Polifonia de Sonoridades58
33 ldquoVOZESrdquo NO CONTEXTO ELETROACUacuteSTICO 59
331 O Continuum 60
332 O Gesto e textura 61
333 Camadas fluxos e planos 63
334 O caraacuteter misto da muacutesica mista64
34 FLUXOS SONOROS 67
341 Simultaneidades da micro eou da macrotextura68
342 Fusatildeo e contraste constituiccedilatildeo e segregaccedilatildeo de muacuteltiplos fluxos69
343 Relaccedilatildeo entre fluxos distintos 78
3431 Comportamento 78
3432 Contraponto 84
3433 Interaccedilatildeo gestual 86
35 O FLUXO VISUAL NA MUacuteSICA MISTA 89
36 TEXTURA NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA 99
4 DISCUSSAtildeO E ANAacuteLISES 104
104
114
120
120
123
127
134
136
144
145
145
146
148
155
165
173
174
177
184
DESINTEGRATIONS DE TRISTAN MURAIL
STRANGE AUTUMN DE STEVEN KAZUO TAKASUGI
MUSIC FOR SNARE DRUM AND COMPUTER DE CORT LIPPE
Instrumento(s) e computador e instrumento(s) e tape no trabalho de Cort Lippe
Music for Snare Drum and Computer
IN MEMORIAM JO N HIGGINS DE ALVIN LUCIER
SOBRE MEU PROCESSO COMPOSICIONAL
CHAtildeO DE OUTONO
Programa 1
Programa 2
Programa 3
Programa 4 e 5
NASCER PEDRA MORRER NUVEM
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
REFEREcircNCIAS
ANEXOS
ANEXO 1 - QUADROS DE MODELOS DE INTERACcedilAtildeO GESTUAL DE
PETRA BACHRATAacute (2010)
ANEXO 2 - PARTITURA DE CHAtildeO DE OUTONO
ANEXO 3 - PARTITURA DE NASCER PEDRA MORRER NUVEM
14
1 INTRODUCcedilAtildeO
Apoacutes a Segunda Guerra Mundial a utilizaccedilatildeo de recursos eletrocircnicos na muacutesica se
desenvolve em duas vertentes principais Na Franccedila a partir das iniciativas de Pierre
Schaeffer se desenvolvia a Musique Concrete na Radiodiffusion Teleacutevision Franccedilaise (RTF)
em Paris a partir de 1948 No mesmo periacuteodo por iniciativa de Herbert Eimert na Alemanha
se desenvolvia a Elektronische Musik no Norwestdeutcher Rundfunk (NWDR) em Colocircnia
Dentre os nomes da muacutesica concreta destaca-se Pierre Henry enquanto que do lado
eletrocircnico Karlheinz Stockhausen (MANNING 2004)1 Inicialmente estas duas vertentes se
diferenciavam fortemente Enquanto a vertente concreta fazia uso de sons gravados a vertente
eletrocircnica utilizava sons sintetizados no proacuteprio equipamento eletrocircnico Como consequecircncia
desta separaccedilatildeo se estabelece uma relaccedilatildeo dicotocircmica entre as duas teacutecnicas Esta relaccedilatildeo eacute
desafiada de maneira mais representativa na peccedila Gesang der Juumlnglinge (1955-56) de
Karlheinz Stockhausen A peccedila vai aleacutem desta dualidade ao combinar sons sintetizados com
gravaccedilotildees da voz de um adolescente (DIAS 2014 p 16-17) Como aponta Menezes (1996 p
40) ldquoPouco a pouco assistimos a uma afluecircncia cada vez mais abundante de sons concretos
no contexto da muacutesica eletrocircnica afluecircncia esta que criaraacute aliaacutes um precedente para a futura
emergecircncia da muacutesica eletroacuacutestica mistardquo
A uniatildeo de sons instrumentais ao vivo com sons eletrocircnicos surge no seio da
Elektronische M usik e apresentou no princiacutepio semelhante dicotomia Como afirma
Stockhausen
Neste sentido a muacutesica instrumental poderia existir ao lado da muacutesica eletrocircnica Em qualquer destas esferas deve-se trabalhar funcionalmente cada meio deve ser usado produtivamente geradores - gravadores de fita - alto-falantes devem produzir o que nenhum instrumentista seria capaz de tocar (e microfones deveriam ser deixados para repoacuterteres) partitura - inteacuterprete - instrumento devem produzir o que nenhum aparato eletrocircnico jamais seria capaz de gerar ou imitar ou repetir
[]Assim a muacutesica eletrocircnica e instrumental complementariam uma a outra se
moveriam mais e mais rapidamente para longe uma da outra - e somente assim despertam a esperanccedila de realmente se encontrarem em uma composiccedilatildeo de vez em quando
1 Aleacutem destas principais vertentes e tambeacutem relacionadas a elas eacute importante citar o Estuacutedio de Fonologia da Radiotelevisione Italiana (RAI) fundado em 1955 por Luciano Berio e Bruno Maderna em Milatildeo nos Estados Unidos as iniciativas de John Cage que jaacute em 1939 em sua peccedila Imaginary Landscape I utilizava recursos eletrocircnicos e a fundaccedilatildeo do Columbia-Princeton Electronic Music Center em 1958 Outros centros direcionados para esta muacutesica atualmente chamada eletroacuacutestica surgiram tambeacutem no Japatildeo e no Canadaacute (MANNING 2004)
15
As primeiras obras combinando muacutesica instrumental e eletrocircnica receberam suas primeiras performances em 1958 Precisamos encontrar as regras superiores de uma conexatildeo aleacutem do contraste - que representa o mais primitivo tipo de forma (STOCKHAU SEN 1961 p 67 traduccedilatildeo nossa2)
Esta uacuteltima frase sugere que o contraste entre os meios instrumental e eletroacuacutestico
era uma caracteriacutestica comum das primeiras peccedilas que os combinaram fato tambeacutem sugerido
pelos tiacutetulos de algumas obras como Musica su due Dimensione (1952-8) de Bruno Maderna
Differeacutences (1958-9) de Luciano Berio Rimes pour Diffeacuterentes Sources Sonores (1959) de
Henri Posseur por exemplo Ao mesmo tempo na citaccedilatildeo acima Stockhausen sustenta a
complementariedade da muacutesica instrumental e eletrocircnica Morgan (1991) aponta que a
resoluccedilatildeo de Stockhausen para a dicotomia eletrocircnico-instrumental ocorre especialmente em
meados de 1960 nas peccedilas Mikrophonie I (1964) Prozession (1967) and Kurzwellen (1968)
Laacute3 nas notas sobre Mikrophonie I (1964) Prozession (1967) e Kurzwellen (1968) pode-se ler do seu esforccedilo crescente para alcanccedilar uma total integraccedilatildeo dos dois tipos de muacutesica O princiacutepio baacutesico em todas estas peccedilas eacute usar os meios eletrocircnicos para transformar os eventos musicais iniciados pelos performers ao vivo o som final sendo o resultado de uma interaccedilatildeo eletrocircnica-instrumental (MORGAN 1991 p 200 grifo nosso traduccedilatildeo nossa4)
O ldquoesforccedilo por uma total integraccedilatildeo dos dois tipos de muacutesicardquo se coloca em oposiccedilatildeo
ao contraste inicial sobre o qual se baseavam as primeiras peccedilas para instrumentos e sons
eletrocircnicos Entretanto ao contraacuterio do que parece argumentar Morgan natildeo podemos
desconsiderar o sucesso da integraccedilatildeo alcanccedilado na produccedilatildeo anterior agrave deacutecada de 1960
especialmente em Kontakte (1958-1960) A peccedila puramente eletrocircnica utiliza sons que fazem
referecircncia a pele madeira e metal sua versatildeo mista para pianista e percussionista apresenta
2 Original ldquoIn this way instrumental music could exist alongside electronic music In either sphere one must work functionally each medium must be used productively generators - tape-recorders - loud-speakers must produce what no instrumentalist would be able to play (and microphones should be left to reporters) score - player - instrument must produce what no electronic apparatus would ever be able to generate or imitate or repeat []
Electronic and instrumental music would then complement each other would constantly move further and more rapidly away from each other - and only thereby awaken the hope of really meeting each other in a composition once in a while
The earliest works combining electronic and instrumental music received their first performances in 1958 We must find the superior laws of a connection beyond the contrast - which represents the most primitive kind of formrdquo (STOCKHAUSEN 1961 p 67)
3 Se refere ao terceiro volume de Texte que surge em 1971 e cobre os anos de 1963-704 Original ldquoThere in the notes on Mikrophonie I (1964) Prozession (1967) and Kurzwellen (1968) one reads
of his increasing efforts to achieve a total integration of the two types of music The basic principle in all these works is to use electronic means to transform the musical events initiated by live performers the final sound being the result of an electronic-instrumental interactionrdquo (MORGAN 1991 p 200)
16
uma preocupaccedilatildeo com a integraccedilatildeo com os sons eletrocircnicos evidenciada pela proacutepria
instrumentaccedilatildeo que inclui tambores (pele) woodblocks (madeira) e pratos (metal) por
exemplo
Colocado este desajuste consideremos ainda a citaccedilatildeo de Morgan (1991) para
observar o uso do termo interaccedilatildeo De acordo com o autor no caso da produccedilatildeo de
Stockhausen nos anos 1960 a ldquointegraccedilatildeo entre os dois tipos de muacutesicardquo acontece na
interaccedilatildeo entre recursos eletrocircnicos e instrumentos que compotildeem assim um uacutenico resultado
final Nesta concepccedilatildeo interaccedilatildeo se refere ao processo tecnoloacutegico que mistura os meios
instrumental e eletroacuacutestico e que se relaciona diretamente a um resultado sonoro
Entretanto esta relaccedilatildeo direta natildeo eacute uma constante ela normalmente varia de peccedila para peccedila
Natildeo haacute um paralelismo estaacutevel uma correspondecircncia clara entre processo tecnoloacutegico da
performance e o resultado sonoro Uma mesma interaccedilatildeo percebida num resultado sonoro
hipoteacutetico pode ser alcanccedilada por diferentes interaccedilotildees tecnoloacutegicas Em Mikrophonie I por
exemplo Stockhausen utiliza dois processos de produccedilatildeo sonora cada um com trecircs estaacutegios
trecircs muacutesicos trabalhando em paralelo o muacutesico que executa o tam-tam o microfonista e o
muacutesico que controla os filtros O compositor explica na partitura que
[] trecircs processos mutuamente dependentes mutuamente interativos e simultaneamente autocircnomos de estruturaccedilatildeo sonora estatildeo conectados uns com os outros os quais foram compostos como sincrocircnicos ou temporalmente independentes homofocircnicos ou em ateacute seis camadas polifocircnicas(STOCKHAUSEN 1973 p 9 traduccedilatildeo nossa5)
Entretanto como as relaccedilotildees entre estes estaacutegios do processo satildeo muito variaacuteveis
Stockhausen afirma ldquoE eu natildeo posso predizer como o resultado dessa interferecircncia vai soar
porque natildeo o sei ateacute ouvi-lordquo (STOCKHAUSEN 2009 p 75) Embora usando termos que
remontam a interaccedilatildeo entre vozes numa textura (polifonia por exemplo) o compositor estaacute
falando sobre um processo tecnoloacutegico da performance Por outro lado o resultado sonoro
ou como chamaremos o acircmbito sonoro-morfoloacutegico eacute pouco previsiacutevel Possivelmente ao
ouvir a peccedila percebemos duas camadas cada uma proveniente de cada processo com seus
trecircs estaacutegios e natildeo ouvimos as seis camadas do processo6 Assim enquanto a interaccedilatildeo nos
5 Original [] three mutually dependent mutually interacting and simultaneously autonomous processes of sound-structuring are connected with each other which were composed as synchronous or temporally independent homophonic or in up to six polyphonic layers (STOCKHAUSEN 1973 p 9)
6 Este exemplo aponta para a complexidade do fenocircmeno perceptivo da interaccedilatildeo a qual natildeo nos aprofundaremos neste trabalho
17
processos tecnoloacutegicos da performance se daacute em seis ldquocamadasrdquo a interaccedilatildeo percebida no
resultado sonoro pode ser entre duas camadas isso se for possiacutevel diferenciaacute-las
A interaccedilatildeo percebida no resultado sonoro diz respeito agraves relaccedilotildees de sincronia
independecircncia homofonia polifonia entre outras que se apresentam entre camadas distintas
Em trabalhos sobre estas relaccedilotildees na muacutesica eletroacuacutestica especialmente em (WISHART
1996) em vez de camadas (layers) o termo usado eacute fluxos (streams) Enquanto que camadas
se refere mais agrave textura e sua estratificaccedilatildeo independentemente de seu desenvolvimento no
tempo fluxos tem forte conotaccedilatildeo temporal A palavra do inglecircs stream carrega tambeacutem a
ideia de correnteza Estendendo esta metaacutefora ora pode tratar-se de um rio com uma
correnteza uacutenica ora eacute como um mar repleto de correntezas diferentes concorrentes e
interativas Por vezes a muacutesica apresenta um uacutenico fluxo por vezes uma seacuterie de fluxos que
concorrem e interagem convergem e divergem fundem e contrastam Tal ideia de interaccedilatildeo
como aspecto da disposiccedilatildeo (ou dissoluccedilatildeo) sonora em fluxos remonta agraves ideias pioneiras de
Edgard Varegravese Numa aula em 1936 Varegravese expotildee o seguinte pensamento
Quando novos instrumentos me permitirem escrever muacutesica como eu a concebo no lugar do contraponto linear o movimento das massas sonoras de planos intercambiantes seraacute claramente percebido Quando estas massas sonoras colidirem o fenocircmeno da penetraccedilatildeo ou repulsatildeo vai parecer acontecer Certas transmutaccedilotildees ocorrendo em certos planos pareceratildeo ser projetadas em outros planos movendo-se em diferentes velocidades e em diferentes acircngulos Natildeo haveraacute mais a velha concepccedilatildeo de melodia ou interaccedilatildeo [interplay] de melodias A obra inteira seraacute uma totalidade meloacutedica A obra inteira fluiraacute como flui um rio (VARESE 1966 p 11 traduccedilatildeo nossa7)
Varegravese denomina estas camadas ldquoplanos intercambiantesrdquo e ldquomassas sonorasrdquo e
imagina como poderiam interagir colidindo eou penetrando uma na outra repelindo uma agrave
outra fazendo com que uma transformaccedilatildeo em um plano apresente consequecircncias em outros
(ldquoser projetadasrdquo) Estas consequecircncias poderiam ser percebidas no caraacuteter cineacutetico
(ldquomovendo-se em diferentes velocidadesrdquo) e espacial (ldquoem diferentes acircngulosrdquo) destas
massas Tais caracteriacutesticas esteacuteticas satildeo apresentadas como opostas agrave ldquovelha concepccedilatildeo de
melodiardquo ou de ldquointeraccedilatildeo de melodiasrdquo Trata-se de uma concepccedilatildeo de massas sonoras
7 Original ldquoWhen new instruments allow me to write music as I conceive it taking the place of the linear counterpoint the movement of sound masses of shifting planes will be clearly perceived When these sound- masses collide the phenomena of penetration or repulsion will seem to occur Certain transmutations taking place on certain planes will seem to be projected onto other planes moving at different speeds and at different angles There will no longer be the old conception of melody or interplay of melodies The entire work will be a melodic totality The entire work will flow as a river flowsrdquo (VARESE e WEN-CHUNG 1966 p 11)
18
interativas que compotildeem uma totalidade (ldquomeloacutedicardquo) que flui ldquocomo flui um riordquo 8
Assim sendo esta pesquisa localiza-se no cenaacuterio geral da muacutesica eletroacuacutestica e
mais especificamente no contexto da muacutesica que une sons instrumentais ao vivo com sons
eletroacuacutesticos a chamada muacutesica eletroacuacutestica mista9 A interaccedilatildeo eacute palavra-chave neste
repertoacuterio e pode se referir entre outros agraves relaccedilotildees presentes (a) nos processos tecnoloacutegicos
da performance e (b) no acircmbito sonoro-morfoloacutegico (resultado sonoro) A segunda eacute a que
motiva esta pesquisa Reunimos e discutimos diversas perspectivas (BACHRATAacute 2010
MENEZES 2006 p 377-400 SMALLEY 1997 SOUZA 2010 WISHART 1996 entre
outros) que utilizam o termo interaccedilatildeo para tratar de relaccedilotildees sonoro-morfoloacutegicas
Entretanto a presente pesquisa apresenta um vieacutes proacuteprio Ela tem o objetivo de observar esta
interaccedilatildeo natildeo apenas no niacutevel dos eventos (nota a nota gesto a gesto) mas num niacutevel em que
estes eventos satildeo agrupados em categorias mais amplas Convencionalmente as notas satildeo
agrupadas em vozes Na muacutesica eletroacuacutestica os eventos sonoros podem ser agrupados em
camadas planos ou fluxos Com base em Wishart (1996) Bregman (2004 2008) e Guigue
(2011) a metaacutefora de fluxo seraacute a principal alternativa apresentada nesta pesquisa Embora
este conceito jaacute tenha sido explorado poucos estudos abordam a constituiccedilatildeo de tais
estruturas no repertoacuterio a que estamos nos direcionando Ao abordar a caracterizaccedilatildeo e a
interaccedilatildeo de fluxos distintos percebidos na experiecircncia de escuta10 da muacutesica eletroacuacutestica
mista busca-se preencher parte desta lacuna Nesta investigaccedilatildeo a pesquisa revisita e oferece
outras perspectivas para questotildees e conceitos sempre importantes para a composiccedilatildeo tais
8 Eacute interessante notar que embora Varegravese descreva caracteriacutesticas do resultado sonoro tudo isso seria possibilitado por ldquonovos instrumentosrdquo ou seja novos processos tecnoloacutegicos da performance juntando assim os dois acircmbitos que separamos inicialmente (tecnoloacutegico e sonoro-morfoloacutegico)
9 Existem outros termos para designar com mais ou menos restriccedilotildees teacutecnicas as possibilidades de muacutesica para instrumentos e sons eletroacuacutesticos musique mixte live electronic music interactive music Uma discussatildeo terminoloacutegica pode ser encontrada na introduccedilatildeo do livro Live Electronic Music (SALLIS et al 2018) Nas pesquisas brasileiras especialmente da UNeSp (GATI 2015 DIAS 2014 MENEZES 2006) o termo muacutesica eletroacuacutestica mista abarca qualquer muacutesica em que haacute a junccedilatildeo destes dois meios instrumental e eletroacuacutestico independentemente da tecnologia utilizada Assim eacute entendida tambeacutem nesta pesquisa
10 Tal delimitaccedilatildeo temaacutetica voltada para o que eacute percebido na experiecircncia da escuta natildeo deve ser entendida dentro de um paradigma que natildeo considera ldquomuacutesicardquo nada aleacutem do som Pelo contraacuterio esta pesquisa assume a compreensatildeo da muacutesica enquanto fato musical (NATTIEZ 1990 p 10-16) como uma atividade que inclui criaccedilatildeo performance (niacutevel poieacutetico) um rastro da criaccedilatildeo como a partitura a gravaccedilatildeo etc (niacutevel neutro) e recepccedilatildeo (niacutevel esteacutesico) E que estas funccedilotildees de compositor performer e ouvinte podem se mesclar em um uacutenico indiviacuteduo Entretanto por delimitaccedilatildeo do escopo o foco estaacute no niacutevel neutro no som resultante da criaccedilatildeo e da performance As representaccedilotildees graacuteficas deste som (e g espectrograma) ou de instruccedilotildees para obtecirc-lo (partitura) satildeo utilizadas na medida em que possibilitam ilustrar o aspecto sonoro Evidentemente natildeo estamos isentos aos outros niacuteveis acessamos o niacutevel neutro de uma perspectiva de recepccedilatildeo (niacutevel esteacutesico) ao mesmo tempo que enquanto pesquisador compositor estou interessado em estrateacutegias de que possa me valer no trabalho criativo (niacutevel poieacutetico) interesse que o leitor possivelmente compartilha
19
como vozes textura e contraponto de forma a dialogar com o contexto atual de produccedilatildeo
musical no qual o autor estaacute inserido11
As concepccedilotildees de interaccedilatildeo (a e b) satildeo abordadas no capiacutetulo 2 como preliminares agrave
discussatildeo principal da dissertaccedilatildeo que foca na interaccedilatildeo como uma relaccedilatildeo sonoro-
morfoloacutegica (b) Apresentamos neste capiacutetulo os principais processos tecnoloacutegicos utilizados
na muacutesica eletroacuacutestica mista abordamos a discussatildeo conhecida como ldquoquerela dos temposrdquo
e as relaccedilotildees entre processos tecnoloacutegicos e resultado sonoro
No capiacutetulo 3 satildeo abordados dois sentidos de uma mesma via Primeiramente
partindo destas reflexotildees do acircmbito eletroacuacutestico nos perguntamos qual seria o lugar da
interaccedilatildeo aparente no resultado sonoro na muacutesica puramente instrumental Posteriormente
tendo abordado os conceitos de voz textura (31) e sonoridade (32) nos perguntamos como
abordar o tema no contexto eletroacuacutestico Fazemos uma breve discussatildeo terminoloacutegica em
torno dos termos camadas fluxos e planos A ideia de fluxo sonoro eacute apresentada como a
principal alternativa para abordar o tema neste contexto (34) A constituiccedilatildeo e segregaccedilatildeo dos
fluxos satildeo abordadas principalmente atraveacutes da morfologia da interaccedilatildeo (MENEZES 2006
p 377-400) A relaccedilatildeo entre eles a partir das ideias de comportamento (SMALLEY 1997)
contraponto (WISHART 1996) e interaccedilatildeo gestual (BACHRATAacute 2010) No subcapiacutetulo 35
a importacircncia do aspecto visual na performance de muacutesica mista eacute avaliada E finalmente a
partir destes levantamentos apresentamos um esboccedilo do que pode ser a textura na muacutesica
eletroacuacutestica mista (36)
O capiacutetulo 4 apresenta anaacutelises de quatro peccedilas mistas feitas a partir das teorias
levantadas Os objetivos de tais anaacutelises satildeo
a) Identificar fluxos sonoros e visuais
b) Identificar relaccedilotildees entre eles
c) Apontar desenvolvimentos e transformaccedilotildees destas relaccedilotildees
Em certa transgressatildeo do modelo de escrita dos capiacutetulos anteriores em que buscou-se
um distanciamento do autor o capiacutetulo 5 explicita o pesquisador-compositor como
interferente delineador desta pesquisa imerso em seus proacuteprios processos criativos As peccedilas
Chatildeo de outono e Nascer pedra morrer nuvem compostas durante o mestrado satildeo abordadas
atraveacutes das teorias estudadas
Os anexos satildeo partituras gravaccedilotildees e patches ldquorastrosrdquo do processo criativo de duas
11 Esta espeacutecie de revisatildeo conceitual complementa a reflexatildeo sem invalidar os meacutetodos jaacute utilizados para descrever inter-relaccedilotildees (harmonia contraponto voz textura etc)
peccedilas compostas durante o mestrado Chatildeo de outono para flauta e sons eletrocircnicos e Nascer
pedra morrer nuvem para violatildeo e sons eletrocircnicos
20
2 A INTERACcedilAtildeO NO CONTEXTO DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
21
O termo interaccedilatildeo tem sido aplicado a diferentes relaccedilotildees presentes no fazer musical12
A que mais nos interessa neste trabalho eacute a relaccedilatildeo sonoro-morfoloacutegica entre os materiais que
se agrupam em fluxos sonoros na experiecircncia da escuta Entretanto eacute importante esclarecer
previamente a distinccedilatildeo entre dois usos do termo interaccedilatildeo no contexto da muacutesica mista
a) Aquele que se refere agraves questotildees tecnoloacutegicas da performance
b) Aquele que se refere agraves questotildees sonoro-morfoloacutegicas
Grosso m odo os aspectos sonoro-morfoloacutegicos concernem ao som e sua organizaccedilatildeo
e podem ser avaliados independentemente dos aspectos praacuteticos tecnoloacutegicos da performance
ou mesmo do processo de composiccedilatildeo13 Para elucidar a diferenccedila do tema interaccedilatildeo nestes
dois acircmbitos neste capiacutetulo as teacutecnicas da muacutesica mista (21) e as discussotildees sobre suas
vantagens e desvantagens para a performance e para composiccedilatildeo (22) satildeo apresentadas E
finalmente questionamos as intersecccedilotildees entre estes dois usos do termo interaccedilatildeo (23)
21 TEacuteCNICAS DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
Podemos classificar grosseiramente as teacutecnicas de performance de peccedilas mistas entre
aquelas que utilizam os sons eletroacuacutesticos fixados em suporte processados em tempo real
eou provenientes de um sistema interativo Estas teacutecnicas natildeo satildeo excludentes as peccedilas
podem fazer um uso misto delas
211 Sons fixados em suporte
A primeira teacutecnica utilizada para combinar instrumentos acuacutesticos e sons
eletroacuacutesticos usada principalmente a partir dos anos 1950 foi aquela em que estes sons satildeo
elaborados previamente em estuacutedio e fixados em um suporte tecnoloacutegico (fita magneacutetica -
tape CD ou disco riacutegido) para serem tocados no momento da performance Nesta teacutecnica eacute
importante considerar a coordenaccedilatildeo (sincronizada ou natildeo) entre os meios instrumental e
12 Um trabalho que avalia diferentes usos do termo eacute o de Mamedes (2016)13 O termo sound morphology eacute usado diversas vezes por Wishart (1996) e encontra forte relaccedilatildeo com a ideia de
espectro-morphology (SMALLEY 1997) A intenccedilatildeo eacute delinear analiticamente um campo em que possamos falar dos aspectos ouvidos da muacutesica sem nos ater a questotildees de produccedilatildeo sonora Este uso do termo natildeo deve ser confundido com a morfologia enquanto estudo da forma musical (periacuteodo frases seccedilotildees etc) ainda que se este estudo se voltasse tambeacutem para as micro-estruturas as duas concepccedilotildees poderiam se encontrar
22
eletroacuacutestico e quais satildeo os recursos utilizados na performance para estabelececirc-la Segundo
Schrader (1991) os compositores tentaram resolver os problemas de coordenaccedilatildeo entre
elementos ao vivo (instrumentais) e preacute-gravados com uma de quatro maneiras diferentes
1) O material eletroacuacutestico foi preacute-gravado mas eacute controlado em tempo real por um
performer Imaginary Landscape No 1 (1939) de John Cage Marginal Intersections (1951)
de Morton Feldman
2) O material eletroacuacutestico foi preacute-gravado e eacute alternado com a performance ao vivo
Deserts (1949-1954) de Edgard Varegravese Concerted Piece fo r Tape Recorder and Orchestra
(1960) de Otto Luening e Vladimir Ussachevsky
3) O material preacute-gravado natildeo coordena precisamente com os elementos ao vivo
Musica su due dimensione (1952 revisada em 1958) de Bruno Maderna
4) O performer deve seguir e sincronizar com o material preacute-gravado Capriccio fo r
violin and two sound tracks (1952) de Hank Badings Kontakte (1960) de Karlheinz
Stockhausen (SCHRADER 1991 p 93)
Deve-se acrescentar que o quarto modo de coordenaccedilatildeo pode acontecer com o auxiacutelio
de um ponto com metrocircnomo de uma regecircncia programada em tela de deixas dos sons
eletroacuacutesticos Na peccedila Synchronism no 10 (1992) para violatildeo e tape de Mario Davidovsky
eacute possiacutevel observar pontos em que a sincronia eacute facilitada por deixas da parte eletrocircnica (ver
Figura 1)
FIGURA 1 - SYNCHRONISMS NO 10 (1992) DE MARIO DAVIDOVSKY (COMPASSOS 109-110)Giusto
Guitar
liberamente J ) = J = 120m m p
mdash d r -h iplusmn -------------1 1 111 raquo 11 L = 1
Tape
9 -
atrade
ecirc
cue
urpm f
Repeat in any order until tape enters on C on beat three
FONTE Transcrito de Davidovsky (compositor) (1995)
Ding (apud SCHULZ 2010 p 27-29) apresenta outra classificaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo
com sons preacute-gravados em relaccedilatildeo agrave maneira com que o compositor lida com a sincronizaccedilatildeo
e a expressa na partitura A classificaccedilatildeo eacute extensiacutevel a outras instrumentaccedilotildees que natildeo piano
e sons preacute-gravados - tema de sua pesquisa Aleacutem disso mais de um tipo de sincronizaccedilatildeo
pode ser utilizado numa mesma peccedila As possibilidades satildeo
a) Riacutetmica independente com sincronizaccedilatildeo por seccedilotildees o instrumentista tem liberdade
para fazer variaccedilotildees temporais no acircmbito de cada seccedilatildeo atentando apenas para o iniacutecio e fim
delas O compositor pode indicar na partitura a minutagem e o inteacuterprete pode usar um
cronocircmetro para acompanhar a troca de seccedilotildees
b) Riacutetmica livre com sincronizaccedilatildeo relativa a partitura natildeo utiliza indicaccedilatildeo de
minutagem (sem necessidade de metrocircnomo) mas possui uma representaccedilatildeo graacutefica da parte
eletroacuacutestica e o inteacuterprete se guia por sinais (setas linhas etc) que indicam a relaccedilatildeo entre
os eventos preacute-gravados e os que executaraacute Esta estrateacutegia depende muito do estudo para
encontrar os pontos de sincronia com a parte eletroacuacutestica deixando os outros momentos
com uma liberdade riacutetmica maior para o inteacuterprete
c) Sincronizaccedilatildeo estrita com riacutetmica livre diferentemente da sincronizaccedilatildeo por seccedilotildees
esta geralmente exige sincronia de evento a evento ou de segundo a segundo A escrita riacutetmica
eacute flexiacutevel mas os pontos de sincronia satildeo indicados com a minutagem sendo imprescindiacutevel o
metrocircnomo no estudo destas peccedilas
d) Sincronizaccedilatildeo estrita a partir de meacutetrica fixa a sincronia acontece por uma escrita
riacutetmica precisa tanto dos eventos instrumentais quanto eletroacuacutesticos Pode apresentar
inclusive notaccedilotildees precisas de andamento accelerando e ritardando
Abaixo estatildeo alguns exemplos de peccedilas para instrumento(s) e sons fixados em suporte
que apresentam diferentes tipos de sincronizaccedilatildeo entre instrumento e suporte
Karlheinz Stockhausen Kontakte (1958-1960) para piano percussatildeo e tape
Luciano Berio Diffeacuterences (1959) para flauta harpa viola violoncelo e tape
Jean-Claude Risset Inharmonique (1977) para soprano e tape
Mario Davidovsky Synchronism No 9 (1988) para violino e sons eletrocircnicos
Flo Menezes Parcours de l rsquoentiteacute (1994) para flauta amplificada percussatildeo e sons
eletroacuacutesticos
Joatildeo Pedro Oliveira Mosaic (2010) para piano e sons eletrocircnicos
23
24
212 Eletrocircnica em Tempo Real e Sistemas Interativos
Outra maneira de combinar instrumento e sons eletroacuacutesticos usada principalmente a
partir de meados de 1960 eacute aquela que usa equipamentos eletrocircnicos para processar o som do
instrumento no momento da performance14 Haacute uma seacuterie de processamentos mais utilizados
entre eles delays harmonizers espacializadores filtros reverbs e moduladores por anel Tais
processos podem se apresentar de maneira fixa ou entatildeo serem controlados por um performer
ao vivo A figura 2 demonstra o esquema da peccedila A Pierre D ellrsquoAzzurro Silenzio Inquietum
(1985) para flauta contrabaixo clarinete contrabaixo e eletrocircnica em tempo real de Luigi
Nono
FONTE Nono (compositor) (1996)
Nesta peccedila a partitura conteacutem aleacutem de vaacuterias indicaccedilotildees preliminares sobre a
configuraccedilatildeo deste sistema uma pauta para controle da dinacircmica da parte eletrocircnica (ver
Figura 3)
14 Tal estrateacutegia se encontra na categoria mais ampla chamada live-electronics Isto porque live-electronics ou eletrocircnica em tempo real pode incluir performances com equipamentos eletrocircnicos mesmo na ausecircncia de instrumentos convencionais
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FIGURA 3 - COMPASSOS INICIAIS DE A PIERRE DELL rsquoAZZURRO SILENZIO INQUIETUM (1985) DE LUIGI NONO
J= 30 ca
Esta teacutecnica tem a caracteriacutestica de expandir a sonoridade instrumental a ponto de
falarmos em meta-instrumentos Ribeiro et al (2016) apontam que A Pierre se trata mais do
que uma peccedila para dois solistas de uma muacutesica eletroacuacutestica em que flauta e clarinete satildeo
abordados como geradores de som assim como o satildeo os osciladores e os geradores de ruiacutedo
Deve-se ressaltar que o resultado eletroacuacutestico dependeraacute em grande parte da
execuccedilatildeo da parte instrumental Por isso se espera do inteacuterprete que aleacutem de seu instrumento
domine tambeacutem as reaccedilotildees do sistema eletroacuacutestico Fabbriciani aponta este fato em relaccedilatildeo
agraves peccedilas de Nono
Nono sabia que para maximizar o potencial oferecido por essas teacutecnicas era necessaacuterio formar inteacuterpretes que pudessem interagir com o sistema eletrocircnico tatildeo sensivelmente quanto com seus proacuteprios instrumentos Era igualmente vital construir um entendimento entre os inteacuterpretes e os engenheiros de som de live-electronics Poderiacuteamos chamar isto de uma nova virtuosidade consistindo natildeo somente de velocidade teacutecnica mas de uma notaacutevel habilidade em produzir som com vaacuterios tons de cor nuances sutis e controle incomum da dinacircmica (FABBRICIANI apud RIBEIRO et al 2016 p 130)
Outros exemplos de peccedilas como eletrocircnica em tempo real satildeo
Karlheinz Stockhausen Mikrophonie I (1964) para tam-tam (2 instrumentistas) 2
microfones 2 filtros com potenciocircmetros e 4 pares de alto-falantes
Brian Ferneyhough Time and Motion Study I I (1976-7) para violoncelo e live-
electronics
Luigi Nono Das Atmende Klarsein (1981-2) para flauta baixo coro e live-electronics
Luciano Berio Altra Voce (1999) para mezzo soprano flauta em sol e live-
electronics
James Correa Vertiginous Rotation (2008) para violatildeo e live-electronics
Com o advento da tecnologia digital no final do seacuteculo XX passou-se a utilizar o
computador na muacutesica mista os processamentos podiam entatildeo ser feitos no domiacutenio do aacuteudio
digital Aleacutem disso o computador lida com outras informaccedilotildees uacuteteis para a muacutesica pois
podem representar paracircmetros musicais e agendar eventos musicais por exemplo Assim os
sistemas assumem tambeacutem o papel de controlar os processos em tempo real Aleacutem disso a
possibilidade de utilizar sons preacute-gravados integrados com processamento em tempo real
num hiacutebrido eacute consideravelmente facilitada Populariza-se o termo Computer Music e passa-
se entatildeo a chamar os sistemas usados para combinar sons instrumentais e eletroacuacutesticos em
tempo real de Sistemas Interativos de Muacutesica de Computador (traduccedilatildeo livre de Interactive
Computer Music Systems) (ROWE 1993) Como atualmente dizer que a muacutesica
eletroacuacutestica utiliza o computador eacute quase redundante o termo computer music
frequentemente traduzido por computaccedilatildeo musical embora ainda usado natildeo oferece grande
contribuiccedilatildeo para a caracterizaccedilatildeo do gecircnero (MENEZES 2006 p 355)
O contraacuterio acontece com o termo interativo O potencial do computador de interagir
de maneiras diversas com o humano motivou se chamar tais iniciativas de muacutesica interativa
Neste contexto o entendimento de interaccedilatildeo se refere agraves questotildees tecnoloacutegicas da
performance se coloca em contraposiccedilatildeo agrave natildeo-reaccedilatildeo da teacutecnica de sons fixados em suporte
bem como agrave ldquomerardquo reaccedilatildeo das propostas iniciais do live-electronics Nesta pesquisa estas
possibilidades (sons fixados em suporte live-electronics sistemas interativos) satildeo entendidas
como teacutecnicas distintas da muacutesica eletroacuacutestica mista natildeo como (sub-)gecircneros musicais
distintos
Os sistemas interativos tecircm sido estudados com diversas ecircnfases e por diferentes
disciplinas A Figura 4 demonstra o universo em que o desenvolvimento de tais sistemas se
encontra
26
27
FIGURA 4 - CONTEXTO DISCIPLINAR DA MUacuteSICA INTERATIVA
Music
ComputerScience
Engeneering Narrative
FONTE Transcrito de Whaley (2009)
Nossa pesquisa representa sobretudo a ponta musical da ilustraccedilatildeo e aborda os
aspectos de composiccedilatildeo e performance Eacute importante salientar que relacionadas aos sistemas
interativos se encontram as iniciativas dos Instrumentos Digitais (conf MONTEIRO 2012) e
dos Hiper-instrumentos - instrumentos mais ou menos convencionais incrementados com
sensores (conf MACHOVER 1992) - que natildeo seratildeo abordados nesta pesquisa
De acordo com Rowe (1993) ldquoSistemas interativos de muacutesica computacional satildeo
aqueles cujo comportamento muda em resposta a uma entrada musicalrdquo (natildeo paginado) O
autor concebe os sistemas interativos numa cadeia de processos em trecircs estaacutegios
a) recepccedilatildeo (Sensing) os dados satildeo coletados de controladores que lecircem informaccedilotildees
gestuais da performance
b) processamento (Processing) o computador lecirc e interpreta a informaccedilatildeo vinda dos
sensores e prepara os dados para a resposta
c) resposta (Response) o computador realiza uma saiacuteda musical
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Rowe classifica os sistemas em trecircs dimensotildees A primeira diferencia entre sistemas
guiados por partitura (score driven) daqueles guiados por performance (performance driven)
a) sistema guiado por partitura uma coleccedilatildeo de eventos predeterminados ou
fragmentos musicais armazenados satildeo combinados (sincronizados) com a entrada
musical (input) Assim o compositor pode trabalhar com categorias tradicionais de
tempo meacutetrica e andamento
b) sistema guiado por performance utiliza paracircmetros mais gerais da performance tais
como densidade e regularidade para determinar paracircmetros de saiacuteda Natildeo antecipa
nenhum evento especiacutefico como acontece naqueles guiados por partitura
A segunda dimensatildeo diferencia entre meacutetodo de resposta transformativo generativo e
sequenciado
a) meacutetodo de resposta transformativo transforma um material musical existente para
produzir variantes A relaccedilatildeo destas com o som original pode ser reconhecida ou
natildeo Este material pode ser armazenado ou como eacute frequente pode-se usar o input
da performance como material
b) meacutetodo de resposta generativo o material fonte eacute elementar ou fragmentaacuterio - por
exemplo escalas armazenadas ou conjuntos de duraccedilotildees O meacutetodo usa regras para
produzir o output Por exemplo ele pode sortear alturas de determinada escala ou
aplicar procedimentos seriais a um conjunto de duraccedilotildees permitidas
c) meacutetodo de resposta sequenciado utiliza fragmentos preacute-gravados em resposta ao
input em tempo real Pode-se variar paracircmetros na execuccedilatildeo destes fragmentos
como por exemplo velocidade de reproduccedilatildeo e envelope dinacircmico
A terceira dimensatildeo diferencia os paradigmas de instrumento e de inteacuterprete (player)
a) paradigma de instrumento os gestos da performance ao vivo satildeo analisados pelo
computador e determinam um output que expande a resposta instrumental normal
Se tocado por um uacutenico performer o resultado musical pode ser percebido como
solo
b) paradigma de inteacuterprete o sistema eacute concebido como um inteacuterprete artificial possui
uma presenccedila musical com comportamentos proacuteprios e pode variar o grau com que
acompanha ou natildeo seu parceiro humano Se tocado por um uacutenico performer o
resultado musical pode ser percebido como um duo
Esta dimensatildeo se aproxima de uma questatildeo distinta Enquanto que as outras se
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referiam agrave questotildees teacutecnicas do sistema sem chamar atenccedilatildeo para qualquer aspecto sonoro
que seria proveniente dele esta dimensatildeo que diferencia paradigma de instrumento e de
inteacuterprete aponta para um resultado musical decorrente A questatildeo apontada natildeo eacute apenas de
instrumentaccedilatildeo formaccedilatildeo mas de textura (solo ou duo) que eacute um aspecto percebido na
escuta eacute sonoro natildeo propriamente tecnoloacutegico15
Uma das primeiras peccedilas a utilizar sistema interativo eacute Jupiter (1987) para flauta e
eletrocircnica em tempo real de Philippe Manoury A peccedila realizada no Institut de Recherche et
Coordination AcoustiqueMusique (IRCAM) eacute a primeira a utilizar o Max programa criado
por Miller Puckette Faz uso tambeacutem do chamado seguidor de partitura (score follower) em
que o computador ldquoouverdquo a execuccedilatildeo do inteacuterprete e a compara com uma partitura virtual
armazenada O computador eacute programado para executar accedilotildees de processamento ou disparar
samples durante a performance em momentos agendados nesta partitura Assim o sistema de
Jupiter eacute guiado por partitura A Figura 5 apresenta um trecho da partitura do inteacuterprete e a
correspondecircncia dos eventos do computador nas pautas superiores
FIGURA 5 - EXCERTO DA PARTITURA DE JUPITER (1987) DE PHILIPPE MANOURY
Quanto ao meacutetodo de resposta o sistema eacute um misto de transformativo generativo e
sequenciado O sistema efetua transformaccedilotildees sobre um material (tanto a entrada ao vivo
quanto samples) - transformativo efetua a siacutentese sonora de acordo com uma seacuterie de
paracircmetros e regras preacute-estabelecidos - generativo possui um conjunto de amostras preacute-
gravadas que satildeo executadas e transformadas ao longo da peccedila - sequenciado
O sistema eacute concebido no paradigma de inteacuterprete Ainda que dependa de acompanhar
a performance e comparar com a partitura virtual o sistema tem uma presenccedila e
comportamento musical independente da parte instrumental A janela principal do patch
adaptado para PureData por Miller Puckette16 pode ser vista na Figura 6
15 Esta discussatildeo seraacute retomada em 22 e 2316 Disponiacutevel em lthttpmspucsdedupdrplatestfilesdocgt Acesso em 17 jan 2019
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FONTE Puckette (2018)
A mencionada partitura virtual eacute entretanto mais do que uma seacuterie de dados com a
qual a performance eacute comparada eacute um termo cunhado por Philippe Manoury que assim o
descreve
[] uma partitura virtual eacute uma representaccedilatildeo cujos paracircmetros constitutivos satildeo conhecidos previamente mas cuja manifestaccedilatildeo exata e concreta eacute sujeita a variaccedilatildeo Se tal coisa natildeo eacute conheciacutevel previamente eacute pela simples razatildeo de que haacute um certo grau de dependecircncia da performance que como temos visto conteacutem um grau de indeterminismo Entretanto eacute ainda possiacutevel conceber um sistema que inclua ambos os estados determinado e indeterminado alguns paracircmetros necessaacuterios para a criaccedilatildeo de sons sinteacuteticos podem ser fixados previamente enquanto que outros vatildeo derivar seus valores de uma anaacutelise em tempo real dos instrumentos no momento preciso da performance (e assim conteraacute um grau de indeterminaccedilatildeo) (MANOURY 2013 p 67-68 traduccedilatildeo nossa17)
17 Original ldquo[] a virtual score is a representation whose constituent parameters are known in advance but whose exact concrete manifestation is subject to variation If such a thing is unknowable in advance it is for the simple reason that there is some degree of dependence upon performance which as we have seen contains a degree of indeterminism Nonetheless it remains possible to conceive of a system which includes
31
Outros exemplos de peccedilas com sistemas interativos satildeo
Philippe Manoury Pluton (1988-89) para piano MIDI e eletrocircnica em tempo real
Pierre Boulez Anthegravemes 2 (1997) para violino e eletrocircnica em tempo real
Robert Rowe Cigar Smoke (2004) para clarinete e sistema musical interativo
Philippe Manoury Tensio (2010) para quarteto de cordas e eletrocircnica em tempo real18
22 QUERELA DOS TEMPOS E A ESTEacuteTICA DA INTERATIVIDADE
Querela dos tempos eacute como ficou conhecida a discussatildeo sobre as vantagens e
desvantagens da eletrocircnica em tempo real ou em tempo diferido na muacutesica mista (DIAS
2014 p 20) Esta distinccedilatildeo apresentada por Philippe Manoury considera a difusatildeo em tempo
real como aquela em que o material eletroacuacutestico eacute gerado durante a performance enquanto
que na difusatildeo em tempo diferido a parte eletroacuacutestica foi composta anteriormente em
estuacutedio e armazenada para ser executada na performance (DIAS 2014 p 20) Tal discussatildeo
seraacute abordada a seguir no acircmbito da performance e posteriormente da composiccedilatildeo
Existem alguns obstaacuteculos para a performance daquelas peccedilas em que os sons
eletroacuacutesticos satildeo fixados em suporte e satildeo disparados uma ou poucas vezes durante a
performance19 O principal deles se deve ao fato de que o material preacute-gravado jaacute estaacute todo
definido Se numa muacutesica de cacircmara para instrumentos acuacutesticos os inteacuterpretes podem fazer
decisotildees interpretativas em conjunto na muacutesica com o material preacute-gravado isto natildeo eacute
possiacutevel os sons foram fixados em suporte com um tempo imutaacutevel McNutt aponta que
ldquopara o inteacuterprete tocar com acompanhamento fixo eacute como trabalhar com o pior
acompanhador humano imaginaacutevel desatencioso inflexiacutevel natildeo responsivo e totalmente
surdordquo (McNUTT 2003 p 299 traduccedilatildeo nossa20)
both states determinate and indeterminate some parameters necessary for the creation of synthetic sounds may be fixed in advance whereas others will derive their values from a real-time analysis of instruments at the very moment of performance (and thus will contain a degree of indeterminacy)rdquo (MANOURY 2013 p 67-68)
18 Ao final deste subcapiacutetulo sobre as teacutecnicas e tecnologias da muacutesica mista cabe ressaltar ainda outros dois contextos em que a interaccedilatildeo humano-computador eacute estudada na composiccedilatildeo a interaccedilatildeo compositor- tecnologia (THOMASI 2016 RIBEIRO 2018) no contexto da arte sonora a interaccedilatildeo do espectador participante com a obra atraveacutes de meios tecnoloacutegicos
19 Os referidos obstaacuteculos natildeo seriam tatildeo relevantes para uma peccedila em que por exemplo fossem tocados durante a performance diversos sons preacute-gravados de curta duraccedilatildeo Este seria o caso de uma fronteira entre teacutecnicas em tempo real e teacutecnicas em tempo diferido
20 Original ldquoFor the player performing with fixed accompaniment is like working with the worst human accompanist imaginable inconsiderate inflexible unresponsive and utterly deafrdquo (McNUTT 2003 p 299)
32
O problema do tempo imutaacutevel eacute tambeacutem uma preocupaccedilatildeo para o compositor Pierre
Boulez que o apresenta da seguinte forma
O tempo de uma gravaccedilatildeo em fita magneacutetica natildeo eacute o tempo psicoloacutegico e sim o tempo cronoloacutegico por outro lado o tempo de um inteacuterprete - um regente ou um instrumentista - eacute psicoloacutegico e eacute praticamente impossiacutevel interconectar os doisrdquo (BOULEZ apud MISKALO 20 0921)
Schulz (2010 p 25) argumenta que tal especificidade de tempo imutaacutevel natildeo eacute
caracteriacutestica apenas da muacutesica mista mas aparece em peccedilas de outros gecircneros que exigem do
inteacuterprete um rigor interpretativo em relaccedilatildeo ao tempo (e g Musica Ricercata no 7 195153
de Gyorgy Ligeti) Neste sentido a autora defende que no estudo de peccedilas mistas com sons
preacute-gravados o inteacuterprete natildeo deve apenas acompanhar a minutagem e outras indicaccedilotildees
presentes na partitura mas se apropriar destes sons e antecipaacute-los De acordo com Schulz
o instrumentista parte do conteuacutedo sonoro preacute-gravado para desenvolver o estudo bem como sua performance em coerecircncia com a parte fixa Em outras palavras a velocidade as dinacircmicas os momentos de sincronia e de certo modo as escolhas interpretativas satildeo feitas a partir dos sons preacute-gravados (SCHULTZ 2010 p 26)
Aleacutem disso natildeo eacute porque satildeo preacute-gravados que natildeo houve certo tipo de performance
em estuacutedio (manipulaccedilotildees de faders e potenciocircmetros por exemplo) Trata-se entatildeo de
compreender esta ldquoperformancerdquo preacute-gravada (em tempo diferido) e pensar a performance a
partir dela
Stroppa (1999) tambeacutem aponta nesta direccedilatildeo
Um ou uma performer agrave vontade com um click track encontraraacute outros meios de expressar suas escolhas interpretativas Se a composiccedilatildeo eacute feita de certa maneira ningueacutem na audiecircncia perceberaacute qualquer estranheza temporal e a performance seraacute julgada tatildeo livre quanto usualmente (STROPPA 1999 p 43 traduccedilatildeo nossa22)
No acircmbito da composiccedilatildeo tal discussatildeo se apresenta com a crenccedila de que o tempo
imutaacutevel fixo do tape representaria um tempo riacutegido da composiccedilatildeo e que desta
configuraccedilatildeo jamais poderia resultar uma interaccedilatildeo bem-sucedida
21 BOULEZ in HAumlUSLER Josef Boulez on Reacutepons 198522 Original ldquoA performer at ease with a click track will find other ways to express his or her interpretive
choices If the composition is done in a certain way nobody in the audience will perceive any temporal awkwardness and the performance will be judged as free as usualrdquo(STROPPA 1999 p 43)
33
Notamos neste ponto que a discussatildeo adentra um espaccedilo que natildeo eacute apenas da
performance mas se refere ao resultado sonoro desta Nos referimos a este espaccedilo como
morfologia sonora natildeo apenas no que se refere agrave qualificaccedilatildeo de objetos sonoros como nos
estudos de Pierre Schaeffer (1988 p 219) mas simplesmente nos referindo ao objeto de
estudo de todas as teorias musicais Trata-se do que percebemos que soa e seus aspectos
organizaccedilatildeo de materiais paracircmetros musicais relaccedilatildeo entre os materiais agrupamento e
segregaccedilatildeo dos materiais etc
Se da perspectiva da performance o problema da interaccedilatildeo se referia agrave relaccedilatildeo
problemaacutetica entre performer e a preacute-gravaccedilatildeo da perspectiva da composiccedilatildeo esta situaccedilatildeo
performaacutetica teria consequecircncias diretas na morfologia sonora Este pensamento sustenta uma
consequecircncia inexoraacutevel do modo da interaccedilatildeo entre performer e maacutequina sobre o tempo
musical Isto eacute o resultado sonoro seria riacutegido devido agrave situaccedilatildeo de performance ser esta de
discrepacircncia de tempos (cronoloacutegico e psicoloacutegico) entre suporte e performer
Tal posiccedilatildeo tende a natildeo considerar o uso de sons fixados em suporte como uma
possibilidade para a muacutesica mista admitindo exclusivamente o processamento em tempo real
e os sistemas interativos Estas posturas exclusivistas satildeo questionadas por Menezes (2006) e
Stroppa (1999) De acordo com Menezes (2006 p 380)
[] eacute preciso reconhecer que a criacutetica de cunho bouleziano (a despeito do valor inestimaacutevel da obra interativa de Boulez) segundo a qual um tempo fixo sobre suporte jamais poderaacute converter-se em uma interaccedilatildeo organicamente bem-sucedida eacute a meu ver sem fundamento pois a eficaacutecia da interaccedilatildeo natildeo dependeraacute jamais do fato de os sons eletroacuacutesticos estarem ou natildeo fixados sobre algum suporte tecnoloacutegico e terem suas duraccedilotildees predeterminadas mas antes da elaboraccedilatildeo de tal interaccedilatildeo na proacutepria composiccedilatildeo de acordo com suas possibilidades morfoloacutegicas (grifo nosso)23
Ainda haacute aqueles que defendem o uso dos sons fixados argumentando que o estuacutedio
possibilita uma elaboraccedilatildeo mais cuidadosa dos materiais do que as possibilidades em tempo
real O compositor Jean-Claude Risset (In BRUMMER et al 2001 p 6) se alinha com esta
posiccedilatildeo
Embora eu ame instrumentos penso que a ldquosituaccedilatildeo neo-instrumentalrdquo com live electronics raramente alcanccedila o grau de sofisticaccedilatildeo de boas peccedilas de tape Os aspectos de tempo real satildeo em certa medida uma ilusatildeo Compor natildeo eacute uma
23 Em 23 este misto mal analisado que vincula sem cuidado tecnologia e morfologia eacute abordado novamente
34
atividade em tempo real requer se abstrair da tirania do tempo real Muacutesica composta para o meio de gravaccedilatildeo pode ser cuidadosamente composta e realizada24
A preservaccedilatildeo das peccedilas com sistemas interativos eacute tambeacutem uma questatildeo a ser levada
em conta Isso porque as tecnologias mudam softwares ficam desatualizados e as peccedilas se
tornam sucetiacuteveis de obsolescecircncia ou entatildeo necessitam de atualizaccedilatildeo sempre que sua
performance for menos possibilitada por causa da tecnologia Esta atualizaccedilatildeo eacute dispendiosa e
necessita de trabalho especializado como aponta Risset (In BRUMMER et al 2001 p 7)
ldquoum privileacutegio que natildeo pode ser extendido a muitos compositores nem a muitas peccedilasrdquo25
Evidentemente os suportes fixos tambeacutem apresentam problemas semelhantes como por
exemplo a deterioraccedilatildeo de fitas magneacuteticas26 Atualmente entretanto a atualizaccedilatildeo nestes
casos parece ser mais simples e menos dispendiosa
Por outro lado o computador tem possibilitado interaccedilotildees com o performer ao vivo
que embora natildeo pareccedilam possibilitar diferentes relaccedilotildees sonoras certamente representam uma
mudanccedila na praacutetica musical Guy Garnett (2001) em seu artigo The Aesthetics o f Interactive
Computer Music afirma que a interaccedilatildeo tem dois aspectos as accedilotildees do performer afetam a
saiacuteda do computador ou as accedilotildees do computador afetam a saiacuteda do performer O autor aborda
o que a performance humana traz para a muacutesica computacional Um dos argumentos em favor
da muacutesica interativa em oposiccedilatildeo agrave muacutesica puramente computacional ou tape eacute o fator da
interpretaccedilatildeo Uma vez fixada ouviremos sempre novamente a mesma interpretaccedilatildeo da peccedila
Evidentemente haacute maneiras de projetar diferentemente espacializar ao vivo etc Poreacutem de
acordo com o autor ainda assim ldquoa peccedila estaacute fixada em tantos de seus atributos que natildeo eacute
possiacutevel proporcionar uma nova interpretaccedilatildeo significativa Algueacutem poderia entatildeo considerar
a muacutesica eletroacuacutestica como a lsquomuseificaccedilatildeorsquo uacuteltima da arte musicalrdquo (GARNETT 2001 p
29 traduccedilatildeo nossa27) Segundo Garnett incluir a performance humana na muacutesica
computacional eacute uma maneira de se afastar do formalismo presente frequentemente em
24 ldquoAlthough I myself love the instruments I think the neo-instrumental situation with live electronics rarely reaches the degree of sophistication of good tape pieces The real-time aspects are to a certain extent a delusion Composing is not a real-time activity it requires abstracting oneself from the tyranny of real-time Music composed for the recording medium can be carefully composed and realizedrdquo (RISSET In BRUMMER et al 2001 p 6)
25 ldquoa privilege which cannot be extended to many composers and many piecesrdquo (RISSET In BRUMMER et al 2001 p 7)
26 No artigo Electroacoustic music studies and the danger of loss Marc Battier estuda a fundo este problema da perenidade da muacutesica eletroacuacutestica seus sistemas e suportes (BATTIER 2004)
27 Original ldquo[] the work is fixed in so many of its attributes that it is not possible to provide a significant new interpretation One could therefore come to consider electroacoustic music as the ultimate ldquomuseumificationrdquo of musical artrdquo (GARNETT 2001 p 29)
35
muacutesica computacional por exemplo nas composiccedilotildees algoriacutetmicas Para Garnett eacute tambeacutem
uma questatildeo de a muacutesica estar em harmonia coerente com as necessidades do seu tempo de
criaccedilatildeo e existecircncia Natildeo eacute apenas uma questatildeo esteacutetica mas tambeacutem poliacutetica ldquoeacute tambeacutem
uma avaliaccedilatildeo poliacutetica dirigida a uma mudanccedila na maneira com que pessoas pensam sobre
produzem e experienciam muacutesicardquo (GARNETT 2001 p 29 traduccedilatildeo nossa28) Neste sentido
Garnett aponta objetivos poliacuteticos e esteacuteticos globais
Da mesma forma atraveacutes de uma frente esteacutetica ligeiramente diferente mas tambeacutem fortemente associada com Adorno natildeo precisamos mais sequestrar a alta arte do popular De fato precisamos agora lsquodesmuseificarrsquo - em certo sentido popularizar - todas as artes que tecircm em sua crescente institucionalizaccedilatildeo se tornado cada vez mais isoladas de ciacuterculos mais amplos [broad contituencies] Isso naturalmente natildeo implica uma capitulaccedilatildeo para os banais e batidos valores de produccedilatildeo em massa da maioria da muacutesica popular Exatamente o contraacuterio Significa trazer as verdadeiras experiecircncias artiacutesticas de riqueza singularidade e profundidade e expressatildeo intelectual em contato mais proacuteximo com as realidades sociais do nosso contexto cultural atual Eacute importante injetar o artista - o compositor - de volta agrave cena cultural atual em vez de reforccedilar o isolamento institucionalizado atual Rejeitar este curso provavelmente soacute levaraacute agrave morte completa da muacutesica de arte como a conhecemos e agrave completa hegemonia de apenas os elementos mais banais da cultura popular desprovidos de qualquer conexatildeo com e portanto de qualquer benefiacutecio possiacutevel das - enormes realizaccedilotildees do passado (GARNETT 2001 p 30 traduccedilatildeo nossa29)
O autor salienta a importacircncia desta perspectiva ldquoA consanguinidade entre interaccedilatildeo
humana e valores humanistas eacute um importante elemento guia para o campo da muacutesica
interativa computacionalrdquo (GARNETT 2001 p 30 traduccedilatildeo nossa30)
Eacute preciso levar em conta que a argumentaccedilatildeo de Garnett se coloca em oposiccedilatildeo agrave
muacutesica puramente eletroacuacutestica especialmente algoriacutetmica que pode conduzir a um
formalismo indesejado de acordo com estes valores Seus argumentos satildeo principalmente em
favor do inteacuterprete instrumental inserido no contexto eletroacuacutestico
Se anteriormente o potencial do estuacutedio para a elaboraccedilatildeo minuciosa do material
eletroacuacutestico (preacute-gravado) foi ressaltado as questotildees propostas por Garnett se colocam no
28 Original ldquo[] it is also it is also a political valuation in that it is directed toward making a change in the way people think about produce and experience musicrdquo (GARNETT 2001 p 29)
29 Original ldquoIndeed we need now to lsquode-museumizersquo - in a certain sense to popularize - all of the arts which have in their increasing institutionalization become increasingly isolated from broad constituencies This does not of course imply a capitulation to the banal and trite mass production values of much popular music Exactly the opposite It means to bring the true artistic experiences of richness uniqueness and intellectual depth and expression into closer contact with the social realities of our present cultural context It is important to inject the artist - the composer - back into the current cultural scene rather than reinforcing the current institutionalized isolationrdquo (GARNETT 2001 p 30)
30 Original ldquoThe consanguinity between human interaction and humanist values is an important driving element for the field of interactive computer musicrdquo (GARNETT 2001 p 30)
36
outro lado da balanccedila pesando o potencial dos sistemas interativos em sua possibilidade de
reinterpretaccedilatildeo da parte eletroacuacutestica a cada execuccedilatildeo Um sistema hiacutebrido pode somar
algumas vantagens de ambas teacutecnicas Neste caso o sistema poderia em interaccedilatildeo com a
performance ao vivo disparar materiais preacute-gravados de maior ou menor duraccedilatildeo elaborados
minuciosamente em estuacutedio e ao mesmo tempo executar processamentos em tempo real
Implementamos um sistema semelhante na peccedila Chatildeo de outono (51)
23 ENTRE TECNOLOGIA E MORFOLOGIA SONORA
Considerando as questotildees relativas agrave performance da muacutesica mista com suporte
(modos de coordenaccedilatildeo tempo imutaacutevel estudo destas peccedilas) e brevemente as questotildees
relativas agrave composiccedilatildeo (por exemplo do tempo fixo vs tempo riacutegido) notamos as
interferecircncias entre estas aacutereas O raciociacutenio de que devido agraves contingecircncias tecnoloacutegicas dos
sons fixados em suporte a performance apresenta um tempo imutaacutevel que se reflete num
tempo riacutegido da composiccedilatildeo parece ser um misto mal analisado Este raciociacutenio se caracteriza
por transferir questotildees da aacuterea tecnoloacutegica da performance diretamente para o acircmbito sonoro-
morfoloacutegico da composiccedilatildeo Tecnologia e morfologia tecircm naturezas distintas e natildeo se pode
tomar uma pela outra apenas porque a terminologia eacute a mesma Isto eacute falamos de interaccedilatildeo
referindo-nos agrave interaccedilatildeo do performer com a tecnologia utilizada e falamos da interaccedilatildeo entre
elementos da morfologia sonora
Outros autores criticam esta confusatildeo Stroppa (1999) aponta a problemaacutetica da
associaccedilatildeo do ao vivo (live) com teacutecnicas em tempo real (STROPPA 1999) O autor sustenta
que o aspecto da vida na muacutesica (live) necessita algum tipo de interpretaccedilatildeo embora natildeo se
restrinja agrave presenccedila de muacutesicos num palco pode ser percebido numa gravaccedilatildeo por exemplo
(1999 p 62) Assim critica o pensamento errocircneo de que o tempo real dos sistemas
interativos garantiria certa vida (live)
[] natildeo haacute correlaccedilatildeo entre uma peccedila usando tecnologia interativa e a percepccedilatildeo de autecircntica interpretaccedilatildeo em muacutesica interaccedilatildeo natildeo eacute interpretaccedilatildeo pois a uacuteltima se idealmente implica a primeira eacute um fenocircmeno mais sutil e complexo [] A vida na muacutesica brota de repente quando algum tipo de comunicaccedilatildeo estaacute acontecendo entre o performer e o material eletrocircnico circundante entre os dois e o puacuteblico e naturalmente quando a peccedila eacute digna Se a eletrocircnica eacute uma fita modesta ou o
37
sistema interativo ldquomais inteligenterdquo essa eacute uma histoacuteria completamente diferente (STROPPA 1999 p 52)31
Stroppa separa portanto as questotildees tecnoloacutegicas referentes aos sistemas interativos
da questatildeo que cerca a percepccedilatildeo da vida na muacutesica (live) o que estaacute mais associado com o
acircmbito sonoro-morfoloacutegico ao qual estamos voltando nossa atenccedilatildeo nesta pesquisa
Simon Emmerson (2013) sustenta que na experiecircncia de escuta natildeo estamos tatildeo
interessados no ldquojogo de adivinhaccedilotildeesrdquo sobre quais foram as causas de determinado efeito
mas que ouvimos primariamente efeitos Este ponto se coloca em oposiccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de
que um sistema interativo deve buscar uma linearidade entre accedilatildeo e resposta semelhante aos
instrumentos acuacutesticos O autor contraria aqueles que argumentam que a cadeia causal
necessita ser reestabelecida para que haja uma interatividade significativa para o ouvinte De
acordo com Emmerson natildeo ouvimos a causa ouvimos o efeito Nesta abordagem eacute possiacutevel
observar que causa estaacute relacionada a questotildees tecnoloacutegicas (normalmente relacionada a
teacutecnicas de mapeamento) enquanto os efeitos satildeo de natureza sonora
Bachrataacute (2010) ao abordar a interaccedilatildeo gestual entre instrumentos acuacutesticos e sons
eletroacuacutesticos distingue interaccedilatildeo de interatividade A autora cita a definiccedilatildeo de
interatividade do EARS (ElectroAcoustic Research Site) ldquoInteratividade se refere
amplamente agrave interaccedilatildeo musical humano-computador ou interaccedilatildeo humano-humano mediada
por um computador ou possivelmente uma seacuterie de computadores conectados em rede que
estatildeo tambeacutem interagindo um com outrordquo32 De acordo com esta definiccedilatildeo ressalta a autora a
muacutesica para instrumento e sons fixados em suporte natildeo seria interativa embora quando
percebida auralmente a interaccedilatildeo esteja presente sem qualquer duacutevida (BACHRATAacute 2010 p
91) Esta diferenciaccedilatildeo estaacute relacionada com aquela que estamos apontando aqui Entretanto
os termos (interaccedilatildeo e interatividade) satildeo semelhantes e frequentemente utiliza-se interaccedilatildeo
para discursar sobre o que acima foi definido como interatividade Aleacutem do mais estas duas
palavras tecircm a mesma origem etimoloacutegica restando apenas a diferenccedila entre accedilatildeo e
31 ldquo[] there is no correlation between a piece using interactive technology and the perception of authentic interpretation in music interaction is not interpretation since the latter if it ideally implies the former is a much subtler and complex phenomenon [] Life in music sprouts suddenly when some kind of communication is going on between the performer and the surrounding electronic material between both of them and the audience and naturally when the piece is worth it Whether the electronics is a modest tape or the cleverest interactive system thats a completely different kettle of fishrdquo (STROPPA 1999 p 52)
32 Traduccedilatildeo do autor Original ldquoInteractivity refers broadly to human-computer musical interaction or humanshyhuman musical interaction that is mediated through a computer or possibly a series of networked computers that are also interacting with each otherrdquo (WEALE 2005)
38
atividade33 Optamos assim por diferenciar as questotildees tecnoloacutegicas da performance (nas
quais inclui-se a interatividade conforme definida acima) das questotildees sonoro-morfoloacutegicas a
interaccedilatildeo auralmente percebida de acordo com Bachrataacute (2010 p 91)
Por outro lado embora sejam de naturezas distintas com o devido cuidado eacute possiacutevel
analisar as relaccedilotildees entre estes dois acircmbitos Pode-se investigar como uma tecnologia
utilizada estaacute relacionada com uma morfologia sonora em determinado repertoacuterio Entretanto
estas relaccedilotildees natildeo parecem se dar de maneira determiniacutestica ou fataliacutestica pois estatildeo ligadas agraves
decisotildees criativas que muitas vezes tomam rumos contraacuterios agraves tendecircncias de uso de uma
ferramenta (vide as teacutecnicas estendidas dos instrumentos tradicionais) Assim a questatildeo
poderia ser sobre quais satildeo as possibilidades eou tendecircncias sonoro-morfoloacutegicas no uso de
determinada tecnologia
Menezes (2006) aponta tendecircncias das teacutecnicas em tempo real O autor argumenta que
estas permitem uma correlaccedilatildeo estreita com o gesto instrumental e sua metamorfose
eletroacuacutestica Entretanto estas teacutecnicas ldquoagem inexoraacutevel e exclusivamente em sentido
convergenterdquo (p 379) jaacute que estatildeo sempre ligadas a sua fonte instrumental e pouco fazem no
sentido divergente do contraste Eacute preciso considerar a que tipo de empreendimento o autor
se refere A impossibilidade da diferenccedila do contraste estaacute mais relacionada agraves teacutecnicas que
usam processamentos (tais como delays harmonizers entre outros) para transformar o som
instrumental ao vivo nunca se distanciando desta fonte sonora Entretanto como apresentado
em 212 haacute outras possibilidades em tempo real inclusive a de utilizar sons preacute-gravados
distintos dos instrumentais como germe de processos em tempo real Um exemplo eacute a peccedila
Vertiginous Rotation (2008) de James Correa34 Os sons do violatildeo e uma pequena amostra de
som de berimbau satildeo processados ao vivo e eacute possiacutevel observar momentos de consideraacutevel
contraste entre eletrocircnicos e violatildeo
A questatildeo das possibilidades ou tendecircncias sonoro-morfoloacutegicas de determinada
tecnologia tambeacutem tem sido levantada nos estudos da muacutesica eletroacuacutestica em geral Os
33 Esta discussatildeo poderia ir aleacutem se se lanccedilasse matildeo de referenciais de outras aacutereas A distinccedilatildeo entre interaccedilatildeo e interatividade eacute discutida no acircmbito da educaccedilatildeo a distacircncia no artigo (VALLE e BOHADANA 2012) A interaccedilatildeo acontece entre humanos enquanto a interatividade pode acontecer entre maacutequinas A interaccedilatildeo enquanto accedilatildeo entre humanos pode ser de fato uma metaacutefora mais adequada para a interaccedilatildeo entre elementos sonoros jaacute que estes ganham muitas vezes a funccedilatildeo o caraacuteter (de caracterizaccedilatildeo) de voz o que remonta agrave utilizaccedilatildeo da voz humana como instrumento e por sua vez a seu caraacuteter antropomoacuterfico Enquanto que interatividade pode ser mais adequado para as questotildees tecnoloacutegicas jaacute que se caracteriza por uma funccedilatildeo de instrumento ou inteacuterprete
34 Confira o viacutedeo do compositor explicando sua abordagem nesta peccedila lthttpswwwyoutubecomwatch v=dZfw 1WKF7eggt
39
estudos buscam compreender a relaccedilatildeo entre tecnologia e morfologia-sonora encarando o
compositor enquanto colaborador no desenvolvimento de tecnologias e recursos
eletroacuacutesticos (ZATTRA 2018) ou mesmo como luthier experimental (RIBEIRO 2018)
Tambeacutem relacionado a esta questatildeo estaacute o fato de que as teorias de anaacutelise de muacutesica
eletroacuacutestica partem da perspectiva do ouvinte e ignoram mais ou menos a tecnologia
envolvida Um exemplo eacute a Espectro-morfologia de Dennis Smalley (1997) Segundo o autor
eacute um sacrifiacutecio deixar de lado o desejo natural de desvendar os misteacuterios da produccedilatildeo sonora
eletroacuacutestica mas eacute necessaacuterio e loacutegico Smalley alerta para o que chama de escuta
tecnoloacutegica quando o ouvinte passa a perceber a tecnologia ou a teacutecnica responsaacutevel pela
muacutesica mais do que a proacutepria muacutesica De acordo com o autor ldquoIdealmente a tecnologia deve
ser transparente ou pelo menos a muacutesica precisa ser composta de tal maneira que as
qualidades de sua invenccedilatildeo superem qualquer tendecircncia a escutar primeiramente de uma
maneira tecnoloacutegicardquo (SMALLEY 1997 p 109)35
Menezes ao abordar a diferenccedila entre meios instrumental e eletroacuacutestico ressalta que
[ ] os elementos fundamentais de toda composiccedilatildeo musical independem em uacuteltima instacircncia (mas somente em uacuteltima) dos meios com os quais se compotildee uma obra elaboraccedilatildeo do material musical enquanto elementos miacutenimos e relacionais consciecircncia harmocircnica (em seu mais amplo sentido) elementos de conexatildeo entre as distintas ideacuteias musicais elaboraccedilatildeo de gestos musicais direcionalidades entreestados distintos de escuta conduccedilatildeo e transformaccedilatildeo do material musicalartesanato e detalhamento dos espectros variaccedilotildees etc satildeo aspectos que estatildeo aqueacutem e aleacutem dos meios composicionais per se ainda que com estes estabeleccedilam forte relaccedilatildeo dialeacutetica (MENeZeS 2006 p 379)
Estendendo esta ideia pode-se tambeacutem dizer que os elementos fundamentais da
composiccedilatildeo natildeo dependem da tecnologia utilizada - pensando aqui especialmente nas
teacutecnicas descritas em 21 - embora estabeleccedilam uma relaccedilatildeo dialeacutetica com ela
Esta relaccedilatildeo localiza o compositor especialmente o de muacutesica eletroacuacutestica numa
rede num emaranhado com suas ideias musicais e seus instrumentos (tecnologia) de tal forma
que a relaccedilatildeo entre esteacutetica e teacutecnica se torna nebulosa Ribeiro (2018) aponta trecircs fatores
significativos na composiccedilatildeo eletroacuacutestica
bull o compositor eacute o proacuteprio performer
35 Traduccedilatildeo proacutepria Original ldquoIdeally the technology should be transparent or at least the music needs to be composed in such a way that the qualities of its invention override any tendency to listen primarily in a technological mannerrdquo (SMALLEY 1997 p 109)
40
bull o instrumento eacute modular mutaacutevel e quase sempre com configuraccedilatildeo nova para cada obrabull a estrutura da obra se confunde com a construccedilatildeo do instrumento (p 176)
Assim Ribeiro concebe o processo composicional de muacutesica eletroacuacutestica
semelhante a um loop em que natildeo se pode separar facilmente as funccedilotildees tradicionais de
composiccedilatildeo instrumentaccedilatildeo e execuccedilatildeo
FIGURA 7 - PROCESSO COMPOSICIONAL NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA
Instrumento
FONTE Ribeiro (2018 p 117)
Desenvolver ideias para determinado instrumento e desenvolver instrumentos para
determinada ideia mais do que uma via de matildeo dupla parece ser um campo aberto Haacute
muitas possibilidades e neste loop em que se daacute o processo composicional elas podem ter
vaacuterias direccedilotildees Ideias que motivam o desenvolvimento de tecnologias como o caso da
Rotationstisch de Stockhausen instrumento para espacializaccedilatildeo (ver CHADABE 1997 p
41) ideias tecnoloacutegicas existentes que satildeo aproveitadas pelos compositores ou ainda
trabalhos em que o desenvolvimento de ideias musicais e o desenvolvimento tecnoloacutegico se
embricam de tal forma que natildeo se pode distinguir qual motiva qual se encontram numa rede
de relaccedilotildees e influecircncias
Por conveniecircncia de estudo a interaccedilatildeo que se refere agraves questotildees tecnoloacutegicas da
performance eacute distinguida daquela que se refere agraves questotildees sonoro-morfoloacutegicas percebidas
na escuta Eacute proacuteprio da pesquisa distinguir analisar (separar um todo em seus elementos
componentes) para num segundo momento sintetizar Esta siacutentese em especiacutefico natildeo seraacute o
foco de nossa pesquisa A investigaccedilatildeo das influecircncias da tecnologia sobre nossa percepccedilatildeo do
sonoro e mesmo para aleacutem dela eacute tema de pesquisas de Rodolfo Caesar O autor chama tal
influecircncia de marca tecnograacutefica
41
Atraveacutes dessa expressatildeo procuro salientar as marcas deixadas pelas diferentes tecnologias em suas diversas manifestaccedilotildees desde a mera percepccedilatildeo individual ateacute a cultura em geral Comecei a pensar sobre essa manifestaccedilatildeo de uma lsquosubjetivaccedilatildeo das tecnologiasrsquo ao me defrontar com a necessidade de exercer uma atenccedilatildeo criacutetica especificamente no acircmbito da muacutesica eletroacuacutestica quando importantes creacuteditos autorais dos programas computacionais empregados nas muacutesicas natildeo eram devidamente atribuiacutedos (CAESAR 2018)
Diferentemente a presente pesquisa se deteacutem agraves relaccedilotildees sonoro-morfoloacutegicas
percebidas na escuta independentemente das questotildees tecnoloacutegicas Este tema seraacute abordado
atraveacutes da revisatildeo de teorias pertinentes (capiacutetulo 3) anaacutelises (capiacutetulo 4) e relato de
experiecircncia composicional (capiacutetulo 5)
42
3 A INTERACcedilAtildeO NO AcircMBITO SONORO-MORFOLOacuteGICO
Tendo distinguido os dois acircmbitos em que se apresenta o tema da interaccedilatildeo na muacutesica
eletroacuacutestica mista (Capiacutetulo 2) neste capiacutetulo aprofundamos a discussatildeo sobre a interaccedilatildeo
relativa agrave morfologia sonora Neste acircmbito interaccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica proacutepria da textura
Numa textura polifocircnica por exemplo haacute uma interaccedilatildeo entre as diversas vozes A partir do
trabalho de Berry (1987) fazemos uma breve abordagem deste conceito na muacutesica
instrumental (31) Aleacutem disso incorporamos a ideia de sonoridade (GUIGUE 2011) para
abranger outras estruturas instrumentais que natildeo se enquadram como vozes (32) Esta
observacircncia das estruturas instrumentais natildeo necessita justificativa jaacute que estamos falando de
muacutesica para instrumentos e sons eletroacuacutesticos Entretanto podemos assumir
pressupostamente que a muacutesica eletroacuacutestica guardadas suas caracteriacutesticas exclusivas pode
apresentar estruturas semelhantes ou anaacutelogas agraves existentes no repertoacuterio instrumental As
particularidades da muacutesica eletroacuacutestica satildeo tambeacutem abordadas (33) a fim de inserir o tema
no contexto da pesquisa A ideia de fluxo sonoro permanece central embora neste contexto
seja possiacutevel tratar o tema por meio de outras metaacuteforas como camadas e planos (discutimos a
terminologia brevemente em 333) Abordamos tambeacutem o aspecto visual da performance de
muacutesica mista (35) E finalmente relacionamos os diversos conteuacutedos apresentados neste
capiacutetulo propondo um esboccedilo de uma textura da muacutesica mista (36)
31 VOZES E TEXTURA
311 Textura
A voz eacute certo som de um ser animado [que possui alma] porque nenhum dos inanimados dispotildee de voz Apenas por analogia se diz que estes usam a voz como por exemplo a flauta a lira e todos os outros seres inanimados que dispotildeem de altura duraccedilatildeo e articulaccedilatildeo pois a voz parece possuiacute-las (ARISTOacuteTELES 2010 p 85-86)
Na teoria musical a voz eacute um conceito que faz referecircncia ao uso musical da voz
humana Por analogia falamos em vozes mesmo quando satildeo tocadas por instrumentos As
vozes compotildeem uma textura na qual se relacionam de muitas maneiras Berry (1987) dedica
um capiacutetulo de sua obra agrave textura36 De acordo com o autor ldquoA textura da muacutesica consiste em
36 Note-se jaacute que textura na muacutesica instrumental tem uma acepccedilatildeo diferente de textura na muacutesica eletroacuacutestica No capiacutetulo 36 diferenciamos estas duas acepccedilotildees como macrotextura e microtextura respectivamente
43
seus componentes sonorosrdquo (BERRY 1987 p 184 traduccedilatildeo nossa37) Haacute um aspecto
quantitativo e outro qualitativo da textura O primeiro se refere ao nuacutemero de componentes
sonoros o segundo agrave interaccedilatildeo ou inter-relaccedilatildeo entre eles
Berry diferencia linha de voz A linha se refere agrave
ldquoqualquer componente textural no qual a relaccedilatildeo e a configuraccedilatildeo horizontal pode ser plausivelmente traccedilada como uma continuidade loacutegica - um estrato identificaacutevel na textura em algum dado niacutevelrdquo (BERRY 1987 p 192 traduccedilatildeo nossa38)
Jaacute a voz se refere agrave ldquouma linha que apresenta destacada independecircncia relativa ela
pode ser um complexo de linhas dobradas mas ela mesma natildeo eacute capaz de ser dobradardquo
(BERRY 1987 p 192-3 traduccedilatildeo nossa39) Assim uma textura monofocircnica (com uma uacutenica
voz) pode ser multi-linear (formada por vaacuterias linhas em dobramento - fagote e oboeacute com
dobramento de oitava por exemplo) A representaccedilatildeo de tais disposiccedilotildees pode ser vista na
Figura 8 Os nuacutemeros indicam as linhas (2 = mesma voz com dois instrumentos) As vozes satildeo
representadas verticalmente uma abaixo da outra
FIGURA 8 - REPRESENTACcedilAtildeO DOS ASPECTOS QUANTITATIVO E QUALITATIVO DA TEXTURA
1 1 1 1 2 2 41 1 1 1 2
1 1 1 1
Curva de qualidade (conforme condicionada por mushydanccedilas na independecircncia-interdependecircncia)
Curva de quantidade (nuacutemero-densidade)
FONTE Berry (1987 p 194-5 traduccedilatildeo nossa)
37 Original ldquoThe texture of music consists of its sounding components it is conditioned in part by the number of those components sounding in simultaneity or concurrence its qualities determined by the interactions interrelations and relative projections and substances of component lines or other component sounding factorsrdquo (BERRY 1987 p 184)
38 Original ldquo[] any textural component in which horizontal relation and configuration can plausibly be traced as a logical continuity - an identifiable stratum in the texture at some given levelrdquo (BERRY 1987 p 192)
39 Original ldquo[] a line having distinct relative independence it may thus be a complex of doubled lines but is not itself capable of doublingrdquo (BERRY 1987 p 192-3)
44
Aleacutem daqueles termos largamente usados para descrever a textura e que jaacute tem um
significado convencional estaacutevel (polifocircnico homofocircnico cordal dobramento espelhado
heterofocircnico sonoridade contrapontiacutestico monofocircnico) o autor propotildee outros Estes termos
tecircm por base trecircs paracircmetros considerados mais relevantes para a avaliaccedilatildeo das caracteriacutesticas
da textura ritmo (isto eacute padrotildees riacutetmicos) direccedilatildeo (da melodia) e conteuacutedo intervalar linear
(BERRY 1987 p 193) Uma escala que vai do simples para o complexo eacute usada em cada um
destes paracircmetros atraveacutes dos prefixos homo- hetero- e contra-40 Assim quanto ao ritmo a
relaccedilatildeo entre vozes distintas pode ser homorriacutetmica heterorritmica e contrarriacutetmica quanto agrave
direccedilatildeo homodirecional heterodirecional e contradirecional quanto ao conteuacutedo intervalar
homointervalar heterointervalar e contraintervalar A Figura 9 ilustra tais caracteriacutesticas
FIGURA 9 - ALGUMAS QUALIDADES DA TEXTURA
Relaccedilotildees nt niacutevel (nt ctntextt temptral) ilustrado
mhtmtrriacutetmict 3 5 htmtdirecitnal
mhetertrriacutetmict s er r ^ r r r 1
- hetertdirecitnal
3 ctntrarriacutetmictm m
ctntradirecitnal
it
^ r ni u tJsect rr
itmtintervalar
ietertintervalar
ctntraintervalar
FONTE Transcrito e traduzido de Berry (1987 p 194-5)
Nossa intenccedilatildeo em levantar tal classificaccedilatildeo e teorizaccedilatildeo da textura natildeo objetiva
incorporaacute-la prontamente em nossas anaacutelises antes cercar o tema da interaccedilatildeo desde a muacutesica
instrumental em suas especificidades
40 hetero- descreve diferenciaccedilotildees mais sutis enquanto contra- representa diferenccedilas mais draacutesticas
45
312 Vozes sons segregados em fluxos auditivos
A maneira como percebemos uma voz ou uma linha e como a diferenciamos de outras
eacute uma questatildeo importante na abordagem da textura As vozes satildeo normalmente diferenciadas
pela tessitura em que atuam (soprano contralto tenor e baixo por exemplo) e pelo timbre
(tone-color) enquanto identidade espectral associada a uma fonte instrumental (flauta
violino etc) Trevor Wishart (1996 p 23) ao tratar da noccedilatildeo convencional de instrumento
comenta que ldquoao menos conceitualmente um instrumento eacute uma fonte de timbre estaacutevel mas
de alturas variaacuteveis A funccedilatildeo essencial de um instrumento eacute manter o timbre estaacutevel e
articular o paracircmetro de alturasrdquo (traduccedilatildeo nossa41) Esta concepccedilatildeo de instrumento de timbre
estaacutevel garante o desenvolvimento de um fluxo instrumental (voz)42 associado a este timbre e
sua fonte sonora43 Wishart aponta que ldquoDe fato o conceito de fluxo [stream] instrumental eacute
talvez o que mais persiste no pensamento musical convencionalrdquo (1996 p 25)
O grupo de Albert Bregman da universidade McGill no Canadaacute pesquisa o tema da
Anaacutelise da Cena Auditiva que oferece vaacuterios pontos de contato com a percepccedilatildeo de vozes
distintas na muacutesica44 No artigo que compotildee a New Encyclopedia o f Neuroscience
(BREGMAN 2008) o autor resume
Numa situaccedilatildeo tiacutepica de escuta diferentes fontes acuacutesticas estatildeo ativas ao mesmo tempo Desta forma apenas a soma do seu espectro alcanccedilaraacute o ouvido do ouvinte Para padrotildees sonoros individuais serem reconhecidos - tais como aqueles chegando da voz humana numa mistura - a informaccedilatildeo auditoacuteria recebida tem de ser particionada e o subgrupo correto alocado para sons individuais de tal maneira que uma descriccedilatildeo acurada pode ser formada para cada um Este processo de agrupar e segregar dados sensoacuterios em representaccedilotildees mentais separadas chamadas fluxosauditoacuterios tem sido nomeada ldquoauditory scene analysisrdquo (ASA) por Bregman (1990)A formaccedilatildeo de fluxos auditoacuterios eacute o resultado de processos de agrupamento sequencial e simultacircneo O agrupamento sequencial conecta os dados sensoacuterios ao longo do tempo enquanto que o agrupamento simultacircneo seleciona dos dadoschegando no mesmo tempo aqueles componentes que satildeo provavelmente partes domesmo som (BREGMAN 2008 p 3 traduccedilatildeo nossa45)
41 Original [] an instrument is a source of stable timbre but variable pitch The essential function of aninstrument is to hold timbre stable and to articulate the pitch parameter (WISHART 1996 p 23)
42 Abordaremos a ideia de fluxo adiante43 Assim a voz se encontra convencionalmente associada agrave materialidade do instrumento ou suas famiacutelias
Observando por outro acircngulo ordinariamente as possibilidades tiacutembricas para cada voz se apresentam em valores discretos este ou aquele instrumento Esta eacute uma das dimensotildees da rede (lattice) de Wishart (1996) que seraacute abordada adiante
44 Os resultados das pesquisas de Bregman jaacute foram utilizados na composiccedilatildeo musical (Confira Frigatti Ferraz e Faria 2017)
45 Original ldquoIn a typical listening situation different acoustic sources are active at the same time Therefore only the sum of their spectra will reach the listenerrsquos ear For individual sound patterns to be recognized - such as those arriving from the human voice in a mixture - the incoming auditory information has to be
46
Desta forma a percepccedilatildeo de um fluxo auditivo (auditory stream) - em nosso caso
uma voz por enquanto - depende de processos cognitivos de agrupamento de dados
sensoacuterios De acordo com Bregman (2008 p 4) seus resultados manteacutem relaccedilatildeo com os
princiacutepios da Teoria da Gestalt como por exemplo o de agrupamento Segundo este
princiacutepio agrupamos elementos por proximidade similaridade boa continuaccedilatildeo e fato
comum De acordo com Roger Shepard (1999) ldquoOs princiacutepios de agrupamento nos permitem
separar o fluxo de informaccedilatildeo entrando em nosso sistema auditivo em sensaccedilotildees associadas
com objetos discretos pertencentes ao mundo externordquo (p 117) Baseado no princiacutepio de fato
comum eacute possiacutevel dizer que ldquose duas coisas estatildeo altamente correlacionadas eacute altamente
provaacutevel que emergiram de uma mesma fonte enquanto que se duas coisas satildeo assincrocircnicas
eacute provaacutevel que sejam associadas com dois objetos diferentesrdquo (p 117) Como os
componentes do timbre satildeo altamente correlacionados no som de um instrumento e
relativamente estaacuteveis como aponta Wishart na citaccedilatildeo acima (p 45) a tendecircncia eacute que os
sons deste instrumento constituam um fluxo Este aspecto tambeacutem aponta para a percepccedilatildeo de
uma uacutenica voz quando apresentada por vaacuterios instrumentos em dobramento Isto eacute agrupamos
os diversos sons sob uma mesma categoria uma voz porque estatildeo altamente correlacionados
especialmente em seu comeccedilo teacutermino e movimentos meloacutedicos
Outro princiacutepio importante eacute o de movimento aparente A Figura 10 mostra o
fenocircmeno da segregaccedilatildeo de fluxos num experimento de laboratoacuterio Duas notas (H e L) satildeo
tocadas em um padratildeo galopante H-L-H H-L-H etc O experimento evidencia a importacircncia
da separaccedilatildeo em frequecircncia e da velocidade quanto mais afastadas em frequecircncia as notas
estiverem ou quanto mais raacutepida a alternacircncia mais faacutecil seraacute percebecirc-las como fluxos
distintos
Quando por exemplo trecircs notas de alturas afastadas satildeo alternadas lento o suficiente
podemos perceber um padratildeo meloacutedico ou seja percebemos um movimento aparente que vai
de uma nota a outra Entretanto se a velocidade com que satildeo alternadas estas notas se torna
maior chega a um ponto em que natildeo percebemos uma melodia a ordem das trecircs notas se
torna irrelevante e comeccedilamos a ouvir a reiteraccedilatildeo de cada uma das notas como um fluxo
partitioned and the correct subset allocated to individual sounds so that an accurate description may be formed for each This process of grouping and segregating sensory data into separate mental representations called auditory streams has been named lsquoauditory scene analysisrsquo (ASA) by Bregman (1990) The formation of auditory streams is the result of processes of sequential and simultaneous grouping Sequential grouping connects sense data over time whereas simultaneous grouping selects from the data arriving at the same time those components that are probably parts of the same sound These two processes are not independent but can be discussed separately for conveniencerdquo (BREGMAN 1990 p 3)
47
separado (SHEPARD 1999 p 118) Este fenocircmeno explica a possibilidade de uma polifonia
virtual em que as notas intercaladas se agrupam em diferentes vozes devido agrave diferenccedila de
registro e ao tempo em que satildeo tocadas (ver Figura 11)
FIGURA 11 - POLIFONIA VIRTUAL NOS COMPASSOS 89 A 94 DA PARTITA NO 2 EM RE MENOR BWV 1004 DE J S BACH
P
FONTE Transcrito de BACH
48
Agraves vezes basta a separaccedilatildeo de registro (ou outra diferenciaccedilatildeo do material) para se
perceber ldquoduas vozesrdquo natildeo necessitando que seja raacutepida a alternacircncia entre elas A Figura 12
demonstra este caso em outro trecho da mesma partita de Bach Neste caso haacute tambeacutem
diferenciaccedilatildeo riacutetmica (padrotildees riacutetmicos diferentes) que corroboram com a segregaccedilatildeo de dois
fluxos
FIGURA 12 - POLIFONIA VIRTUAL NOS COMPASSOS 121 A 123 DA PARTITA NO 2 EM REacute MENOR BWV1004 DE J S BACH
m
FONTE Transcrito de BACH
Portanto o intervalo entre as notas de uma melodia a velocidade com que elas satildeo
tocadas bem como o timbre instrumental com que satildeo orquestradas satildeo importantes para a
caracterizaccedilatildeo e percepccedilatildeo do fluxo auditivo que na teoria musical chamamos voz Eacute possiacutevel
que mantendo-se as alturas numa relaccedilatildeo tempo-intervalo adequada para a percepccedilatildeo de uma
melodia e modificando o timbre ainda seja possiacutevel identificaacute-la como um uacutenico fluxo Isto
acontece na Klangfarbenmelodie (melodia de timbres) em que um uacutenico fluxo eacute distribuiacutedo
entre os instrumentos46
Os casos de polifonia virtual e de melodia de timbres satildeo exemplos de alternativas
ainda num contexto musical convencional agrave tendecircncia de um uacutenico instrumento constituir
uma uacutenica voz Na polifonia virtual um instrumento constitui vaacuterias vozes enquanto que na
melodia de timbres vaacuterios instrumentos constituem uma uacutenica voz
313 Orquestraccedilatildeo timbre (tone-color) e textura
Eacute importante salientar para a distinccedilatildeo de alguns conceitos que se relacionam e
convergem neste tema orquestraccedilatildeo timbre (tone-color) e textura
De acordo com Brian Simms (1996 p101) ldquoOrquestraccedilatildeo eacute a arte de realizar uma
ideia musical para um grupo esp eciacutefico de instrumentosrdquo Simms (1996 p 101-109) apresenta
uma seacuterie de transformaccedilotildees pelas quais passou a orquestraccedilatildeo nos uacuteltimos seacuteculos
No seacuteculo XIX o tipo de orquestraccedilatildeo dos compositores alematildees como Richard
Wagner privilegiava o uso de vaacuterios dos corais da orquestra sobre uma mesma voz Com estes
46 Este caso seraacute abordado em 313
vaacuterios dobramentos criava-se uma grande uniformidade tiacutembrica
Ao final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX ressalta-se por um lado Claude Debussy que
evitava dobramentos em passagens mais suaves mostrando preferecircncia pelo som puro do
instrumento solo Por outro lado Gustav Mahler que entre outras de suas inovaccedilotildees em
orquestraccedilatildeo usava subdivisotildees heterogecircneas da orquestra com poucos dobramentos para
evidenciar o conteuacutedo contrapontiacutestico
Nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX alguns compositores demonstraram uma
preferecircncia por pequenos grupos de cacircmara - Pierrot Lunaire (1912) de Arnold Schoenberg eacute
uma peccedila emblemaacutetica bem como L rsquohistoire du soldat (1918) de Igor Stravinsky Aleacutem disso
haacute a incorporaccedilatildeo da percussatildeo como elemento estrutural da composiccedilatildeo cuja peccedila simboacutelica
eacute Ionisation (1931) de Edgard Varegravese Deve-se acrescentar ainda a experimentaccedilatildeo com novos
sons por parte de americanos como Charles Ives Henry Cowell entre outros e a exploraccedilatildeo
de efeitos espaciais ao se dividir a orquestra em grupos que tocavam em lugares distintos do
espaccedilo de concerto
A abordagem de Simms daacute ecircnfase ao seacuteculo XX e trata da muacutesica eletroacuacutestica de
maneira independente destes conceitos satildeo capiacutetulos agrave parte Entretanto podemos levantar a
questatildeo de como os recursos eletroacuacutesticos se incorporaram a esta orquestraccedilatildeo na segunda
metade do seacuteculo XX e iniacutecio do XXI Nossa investigaccedilatildeo relaciona-se fortemente com esta
questatildeo entretanto por um vieacutes mais teoacuterico do que histoacuterico
Timbre enquanto tone-color eacute definido por Simms (1996 p 101) como ldquoa qualidade
distintiva de um som musicalrdquo Neste sentido a ideia de Klangfarbenmelodie se apresenta
como um dos principais desenvolvimentos Uma primeira acepccedilatildeo diz respeito agrave ideia original
de Schoenberg - a terceira peccedila (Farben) de suas Cinco Peccedilas para Orquestra op 16 (1909) eacute
um exemplo De acordo com o verbete do Grove Music Online (RUSHTON 2001) o timbre
(ou tone-color) pocircde ser concebido enquanto um paracircmetro estrutural o que possibilitou que
transformaccedilotildees tiacutembricas em uma uacutenica nota podiam ser percebidas como uma melodia Na
obra de Anton Webern haacute uma acepccedilatildeo distinta da melodia de timbres Uma mesma voz eacute
segmentada e cada segmento eacute tocado por um instrumento distinto Um exemplo
representativo eacute a sua orquestraccedilatildeo da Musikalischen Opfer de Bach A Figura 13 apresenta
um excerto da orquestraccedilatildeo de Webern
49
50
FIGURA 13 - MELODIA DE TIMBRES NA ORQUESTRACcedilAtildeO DE WEBERN FUGA (RICERCATA) NO 2 AUS DEM ldquoMUSIKALISCHEN OPFERrdquo VON JOH SEB BACH
Trombone (muted) Horn (muted) Tpt (muted) Horn
mpp mdash p
Horn Tpt and Harp Flute
Tromb pp pp
v gt Violin (muted)
m mp p
FONTE Transcrito de Simms (1996 p 111)
O uso estrutural do timbre (tone-color) eacute bastante desenvolvido no seacuteculo XX Varegravese
prenuncia numa aula em 1936 ldquoO papel da cor ou timbre seraacute completamente modificado de
ser incidental anedoacutetico sensual ou pitoresco ele se tornaraacute um agente de delineamento
como as diferentes cores num mapa separando diferentes aacutereas e uma parte integral da
formardquo (VARESE apud SIMMS 1996 p 112) Varegravese defendia uma liberaccedilatildeo do som que
seria possiacutevel por meio dos novos instrumentos (ver citaccedilatildeo na p 17) Em Poegraveme
eacutelectronique (1958) estas ideias tecircm um aacutepice que evidencia o desenvolvimento do uso do
timbre na muacutesica Aleacutem disso ressalta-se a fascinaccedilatildeo com o som por parte de compositores
como Morton Feldman que buscava uma muacutesica em que os sons existissem por si mesmos
independentemente das estruturas de construccedilatildeo da muacutesica O som seria natildeo apenas uma
memoacuteria mas existiriam por si mesmos Deve-se salientar a discordacircncia neste quesito Elliott
Carter por exemplo afirma
Tatildeo longe quanto a cor possa ir eu continuo acreditando que o real interesse da muacutesica estaacute na sua organizaccedilatildeo Eu natildeo acredito na novidade do som por seu proacuteprio interesse eacute sempre a coisa mais faacutecil a se alcanccedilar e perde seu interesse muito rapidamente (CARTER apud SIMMS 1996 p114 traduccedilatildeo nossa47)
47 Original ldquoAs far as color goes I still believe that the real interest of music lies in its organization I donrsquot believe in novelty of sound for its own sake that is always the easiest thing to bring off and loses its interest very quicklyrdquo (CARTER apud SIMMS 1996 p 114)
51
Abordar a discussatildeo em torno da cor e do timbre neste trabalho seria por demais
expansiacutevel Nos limitaremos a expocircr a explicaccedilatildeo de Rob Weale que demonstra a
problemaacutetica em torno da concepccedilatildeo de timbre
Timbre tem sido usado geralmente sem grande consistecircncia de significado para se referir vagamente agrave lsquocorrsquo de um som Tem sido frequentemente e incorretamente tratado como um lsquoparacircmetrorsquo discreto do som junto a outras facetas como a frequecircncia e altura A praacutetica de criaccedilatildeo e de pesquisa na muacutesica eletroacuacutestica tem revelado a natureza insatisfatoacuteria desta imprecisatildeo e aberto a noccedilatildeo para uma situaccedilatildeo muito mais complexa e variaacutevel onde o timbre existe em relaccedilotildees fraacutegeis e contiacutenuas com frequecircncia conteuacutedo espectral identidade socircnica e reconhecimento da fonte Isto leva para uma situaccedilatildeo onde em vaacuterios exemplos musicais eacute difiacutecil separar timbre do discurso musical geral (WEALE 2005 traduccedilatildeo nossa48)
Com esta complexidade em mente natildeo haveria tanta incongruecircncia como daacute a
entender Carter na citaccedilatildeo acima entre timbre e a organizaccedilatildeo da muacutesica
Textura segundo Simms (1996 p 102) ldquose refere ao agregado sonoro de linhas
acordes ou outros eventos audiacuteveis enquanto interagem uns com os outrosrdquo O autor descreve
o desenvolvimento da textura polifocircnica no seacuteculo XX Citaremos abaixo alguns fatos
importantes deste contexto
Para algumas texturas polifocircnicas muito complicadas a fim de deixar clara a
importacircncia de cada voz da textura Schoenberg e Berg utilizavam a notaccedilatildeo H para
Hauptstimme - voz principal e N para Nebenstimme - para voz secundaacuteria
O uso de texturas convencionais permaneceu mesmo com o uso de estruturas
harmocircnicas natildeo tradicionais Um exemplo satildeo as fugas de Paul Hindemith na obra Ludus
tonalis (1936)
A textura foi abordada de maneiras natildeo convencionais Varegravese e Cowell por exemplo
desenvolveram texturas compostas por massas sonoras diferentes daquelas compostas por
intervalos linhas e acordes
A obra de Webern tambeacutem se distancia das convencionais texturas homofocircnica e
polifocircnica Ela disfarccedila a textura polifocircnica atraveacutes de uma disposiccedilatildeo diferente dos
componentes Simms (1996 p 116) descreve a textura do iniacutecio da Op 21 de Webern
48 Original ldquoTimbre has generally been used without any great consistency of meaning to refer very loosely to the rsquocolourrsquo of a sound It has often and incorrectly been treated as a discrete rsquoparameterrsquo of sound along with other facets such as frequency and pitch Creative practice and research in electroacoustic music have revealed the unsatisfactory nature of this imprecision and opened up the notion to a much more complex and protean situation where timbre exists in fragile relationships and continua with frequency spectral content sonic identity and source recognition This leads to a situation where in many musical examples it is hard to separate timbre from the overall musical discourserdquo (WEALE 2005)
52
A textura consiste em vaacuterias linhas cada qual eacute feita descontiacutenua pela colocaccedilatildeo de pausas grandes saltos disjunccedilotildees no registro e raacutepidas mudanccedilas de cor Eacute de fato difiacutecil perceber qualquer linha no sentido tradicional a atenccedilatildeo do ouvinte eacute primeiramente atraiacuteda por uma seacuterie de sons ou intervalos individuais (traduccedilatildeo nossa49)
Este tipo de textura eacute chamada pontilhista por sua relaccedilatildeo com a teacutecnica de pintura em
que um conjunto de pontos com cores puras datildeo origem agraves formas Agrave distacircncia o mosaico de
pontos se mistura e proporciona perceber formas reconheciacuteveis Ligeti (apud SIMMS 1996
p 117) afirma que a esta fragmentaccedilatildeo da linha em Webern resulta numa textura global
Nesta natildeo haacute de fato um fluir musical trata-se de momentos individuais natildeo haacute de fato um
teacutermino a muacutesica daacute a impressatildeo de ldquouma parada no fluxo do tempordquo O ouvinte natildeo se ateacutem
a continuidades lineares mas a diferentes momentos isolados Este tipo de textura global foi
utilizada por muitos compositores apoacutes Webern como Ligeti Stockhausen e Boulez
Entretanto tamanha variedade na textura ironicamente poderia gerar a percepccedilatildeo de uma
continuidade da mesma coisa Assim estrateacutegias de controle destas texturas globais foram
desenvolvidas de maneira especial por Ligeti e Krzysztof Penderecki
As peccedilas Apparitions (1958-9) e Atmosphegraveres (1961) de Ligeti satildeo exemplos de
composiccedilotildees essencialmente texturais As texturas chegam a cinquenta vozes e satildeo
principalmente formadas por clusters cromaacuteticos ou figuras cromaacuteticas confusas formando
massas que interagem Simms (1996 p 119) comenta ldquoestas massas entatildeo interagem por
colisatildeo penetraccedilatildeo dissipaccedilatildeo mescla ou outros gestos vividamente dramaacuteticosrdquo50 (grifo
nosso) Esta concepccedilatildeo de textura estaacute mais proacutexima do repertoacuterio eletroacuacutestico como haacute de
se demonstrar
314 Microtextura e macrotextura
Eacute importante notar o caraacuteter micro a que foi levada esta textura percebida globalmente
A teacutecnica de Ligeti para a formaccedilatildeo destas massas eacute conhecida como micro-polifonia Isto eacute a
textura cujas mudanccedilas conforme Berry (1987 p 189) ldquoestatildeo frequentemente entre o que eacute
49 Original ldquoThe texture consists of several lines each of which is made discontinuous by the placement of rests large leaps disjunctions in register and rapid changes of color It is in fact difficult to perceive any lines in the traditional sense and the listenerrsquos attention is at first drawn to a mottled array of individual sounds or intervalsrdquo (SIMMS 1996 p 116)
50 Original ldquo[] and these masses then interact by collision penetration dissipation merging or other vividly dramatic gesturesrdquo (SIMMS 1996 p 119)
53
mais prontamente perceptiacutevel e apreciaacutevel na experiecircncia da muacutesicardquo51 neste caso eacute um
emaranhado de ldquomicro-vozesrdquo indistinguiacuteveis que formam uma massa Por outro lado a
proacutepria massa eacute ouvida de maneira semelhante agrave voz como uma camada como um fluxo
coerente Haacute assim em relaccedilatildeo agrave descriccedilatildeo da textura um deslocamento de percepccedilatildeo do
macro para o micro Parece existir uma demanda de escuta uma necessidade embora haja
uma liberdade subjetiva neste aspecto de adaptarmos nossa escuta aos eventos sonoros que se
apresentam a ela De todo modo o termo textura pode se referir a estas complexidades e
simultaneidades do niacutevel micro eou do niacutevel macro Um exerciacutecio imaginativo simploacuterio
pode elucidar estes dois niacuteveis Imaginemos uma massa orquestral tal qual as de Ligeti e a
ela sobreposta uma voz uma melodia cantada por uma soprano por exemplo Haacute uma
macrotextura que se refere a configuraccedilatildeo massa + voz (uma espeacutecie de melodia
acompanhada) e haacute uma microtextura que constitui a proacutepria massa A Figura 14 oferece uma
ilustraccedilatildeo deste exemplo
FIGURA 14 - EXEMPLO DE MACRO E MICROTEXTURA
Soprano (voz)
Orquestra (massa)
Y Macrotextura
FONTE o autor (2019)
Esta distinccedilatildeo eacute um esforccedilo teoacuterico e uma necessidade de nosso trabalho que decorre
da ausecircncia de tal distinccedilatildeo na bibliografia consultada Ela tem o objetivo de indicar neste
trabalho estas diferentes concepccedilotildees micro e macrotextura
32 AS SONORIDADES
Mesmo na muacutesica instrumental a noccedilatildeo de voz pode natildeo ser uma denominaccedilatildeo ideal
dependendo dos materiais e processos de composiccedilatildeo Este eacute o caso de muitas composiccedilotildees
51 Traduccedilatildeo nossa Original ldquoChanges in texture-surely quantitative changes but those involving textural qualities as well-are often among the most readily perceptible and appreciable in the experience of musicrdquo (BERRY 1987 p 189)
do seacuteculo XX como as supramencionadas Em alguns destes casos a ideia de sonoridade
conforme o modelo de Guigue (2011) pode ser mais apropriada Didier Guigue desenvolve
uma teoria analiacutetica da sonoridade especialmente voltada para a anaacutelise de peccedilas para piano
mas facilmente expansiacutevel para outras muacutesicas Uma sonoridade carrega o sentido de uma
unidade sonora composta formada por componentes de nuacutemero variaacutevel que satildeo combinados
e que interagem entre si Ela eacute um momento que pode ocupar qualquer medida temporal
desde um pequeno segmento ateacute uma peccedila inteira Ela eacute uma unidade da estruturaccedilatildeo musical
com potencial morfoloacutegico ldquoUma unidade sonora eacute consequentemente a siacutentese temporaacuteria
de um certo nuacutemero de componentes que agem e interagem em complementaridaderdquo
(GUIGUE 2011 p 50)
O modelo de Guigue apresenta dois niacuteveis O primeiro (niacutevel primaacuterio ou niacutevel 1) eacute
constituiacutedo por
bull coleccedilatildeo de cromas o autor usa o termo como sinocircnimo de classe de nota
bull particcedilatildeo se refere a distribuiccedilatildeo dos cromas na extensatildeo do(s) instrumento(s) em
pontos especiacuteficos e exclusivos em alturas absolutas
bull intensidade comumente chamada de dinacircmica
bull efeitos exoacutegenos efeitos que influenciam a produccedilatildeo concreta do som por exemplo o
pedal do piano
No niacutevel secundaacuterio os componentes podem ser de ordem morfoloacutegica52 quando para
serem analisados eacute preciso fazer a abstraccedilatildeo do fator tempo (conteuacutedo acrocircnico da unidade
sonora) ou de ordem cineacutetica quando satildeo avaliados levando em conta a distribuiccedilatildeo dos fatos
sonoros no tempo (componentes diacrocircnicos) Veja na Figura 15 a ilustraccedilatildeo do domiacutenio
morfoloacutegico e cineacutetico bem como os aspectos do primeiro niacutevel
Cada componente pode ser analisado em relaccedilatildeo a sua complexidade relativa O iacutendice
de complexidade relativa se refere a ldquoposiccedilatildeo que o componente analisado ocupa em dado
momento no vetor simplicidade-complexidaderdquo (GUIGUE 2011 p 52) sempre em relaccedilatildeo a
uma complexidade maacutexima paradigmaacutetica Por exemplo para expressar a complexidade
54
52 Note o leitor que aqui o termo morfoloacutegico estaacute posto em relaccedilatildeo ao dualismo entre os componentes que para serem analisados eacute necessaacuterio fazer a abstraccedilatildeo do fator tempo e aqueles que para serem analisados eacute imperativo considerar o fator tempo No caso de Smalley (1997) o termo morfologia do binocircmio espectro- morfologia se refere justamente ao oposto ou seja o desenvolvimento temporal das caracteriacutesticas espectrais (p 107) Neste trabalho entretanto quando nos referimos ao acircmbito sonoro-morfoloacutegico o estamos fazendo em oposiccedilatildeo aos aspectos de ordem praacutetica tecnoloacutegica da performance Assim os aspectos sonoro- morfoloacutegicos (da forma do som) concernem ao que percebemos que soa e sua organizaccedilatildeo
relativa do nuacutemero de fatos sonoros53 num determinado tempo o eixo ldquovaziordquo (simplicidade
maacutexima) - ldquosaturadordquo (complexidade maacutexima) deve ser utilizado
55
FIGURA 15 - NIVEIS DE ANALISE DA SONORIDADE
Niacutevel 2
Niacutevel 1
53 O autor designa fatos sonoros ldquoum nuacutemero qualquer de notas ou outros elementos organizando a sonoridade ocorrendo simultaneamente isto eacute na mesma posiccedilatildeo do tempordquo (GUIGUE 2011 p 51)
56
321 Oposiccedilatildeo Adjacente e Segmentaccedilatildeo
A articulaccedilatildeo entre as sonoridades se daacute por meio de rupturas de continuidade Se haacute
uma ruptura em um dos componentes que compotildeem a unidade supotildee-se que haacute uma ruptura
na continuidade sonora uma articulaccedilatildeo que daacute iniacutecio a uma nova unidade (p 68)54 Neste
caso falamos de um processo de segmentaccedilatildeo
Satildeo processos de transformaccedilatildeo dos componentes comuns agraves duas unidades
adjacentes que geram estas rupturas Assim eacute ainda necessaacuterio observar o nuacutemero de
componentes ativos no processo de transformaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao nuacutemero daqueles que se
mantecircm passivos neste processo (p69) O autor entra assim na discussatildeo sobre repeticcedilatildeo e
variaccedilatildeo e propotildee uma escala que vai da repeticcedilatildeo agrave oposiccedilatildeo diametral passando pela
declinaccedilatildeo e variaccedilatildeo Declinaccedilotildees satildeo as variaccedilotildees em que o modelo referencial permanece
reconheciacutevel entretanto com pequenas diferenccedilas Por outro lado na oposiccedilatildeo diametral soacute eacute
possiacutevel falar do referencial pela sua ausecircncia Esta escala chamada Vetor de qualificaccedilatildeo do
grau de oposiccedilatildeo estrutural entre unidades sonoras eacute ilustrada na Figura 16
FIGURA 16 - VETOR DE QUALIFICACcedilAtildeO DO GRAU DE OPOSICcedilAtildeO ESTRUTURAL ENTRE UNIDAshyDES SONORAS
A B
repeticcedilotildees declinaccedilotildees
variaccedilotildeesoposiccediloes
a = modelo b ^ variaccedilatildeo paradigmaacuteticaA = domiacutenio de a (repeticcedilotildees ^ exatas variadas ^ declinaccedilotildees) B = domiacutenio de b (variaccedilotildees ^ oposiccedilotildees ^ oposiccedilatildeo diametral)
FONTE Transcrito de Guigue (2011 p 72)
As diferentes sonoridades podem ser articuladas tambeacutem atraveacutes de uma sonoridade
ldquopivocircrdquo ou com sobreposiccedilatildeo parcial de uma sobre a outra Guigue chama esta uacuteltima de
telhagem quando uma sonoridade comeccedila antes que a anterior termine (ver Figura 17)
a v b
54 O autor classifica tambeacutem os tipos de rupturas e o papel e a hierarquia dos componentes no que afetam estas rupturas (GUIGUE 2011 p 64-69)
57
FIGURA 17 - TELHAGEM DE ACORDO COM GUIGUE (2011)U44
O autor desenvolve tambeacutem o conceito de sintagma ldquoum sintagma eacute um conjugado
sequencial binaacuterio de unidades sendo que uma eacute determinante e outra determinadardquo (p 75)
A unidade determinada se define na reaccedilatildeo agrave determinante Esta reaccedilatildeo pode ter o caraacuteter de
ldquorespostardquo ldquoconsequecircnciardquo ou ldquocomplementordquo A ressonacircncia de um gesto uma nota ao
piano por exemplo eacute uma reaccedilatildeo como ldquoconsequecircnciardquo determinada pelo gesto
(determinante)5 Nos compassos 271-272 da Synchronisms no 10 de Mario Davidovsky eacute
possiacutevel demarcar o arpejo do violatildeo como determinante do ataque consecutivo da parte
eletroacuacutestica (determinada) principalmente por se tratar das mesmas alturas (Figura 18)
FIGURA 18 - SINTAGMA EM SYNCHRONIMSNO 10 (1992) DE MARIO DAVIDOVSKY (COMPASSOS
FONTE Transcrito de Davidovsky (compositor) (1995)
55 As ideias de causalidade de Smalley (1997) e de gatilho (triggering) de Wishart (1996) que seratildeo abordadas adiante apresentam estreita relaccedilatildeo com esta ideia de sintagma
58
322 Polifonia de Sonoridades
As sonoridades podem se apresentar dispostas em muacuteltiplos fluxos simultacircneos que se
desenvolvem em paralelo Diferentemente do processo de segmentaccedilatildeo (relacionado agrave
oposiccedilatildeo adjacente que diz respeito agraves articulaccedilotildees sucessivas das sonoridades) na
simultaneidade de fluxos distintos haveraacute um processo de segregaccedilatildeo56 em vaacuterias camadas
Esta polifonia de Sonoridades como denomina Guigue pode apresentar relaccedilotildees de
interdependecircncia das unidades sonoras O autor aponta a relaccedilatildeo espectral como a principal
dimensatildeo das possibilidades de interdependecircncia entre as unidades pois propicia em
potencial a fusatildeo entre unidades57
FIGURA 19 - POLIFONIA DE SONORIDADES EM MOMENTO 23 DE ALMEIDA PRADO
Raacutepido 8va~
Lento
i m mp p p
molto lento
i P P ip p p Calmor3n 3 r 3~i
ampt i
FONTE Transcrito de Guigue (2011 p 77)
Ao fim do capiacutetulo sobre sua proposta metodoloacutegica (p 47-81) Guigue apresenta uma
recapitulaccedilatildeo em que resume o processo de segregaccedilatildeo como segue
3
A Segregaccedilatildeo parte da constataccedilatildeo de que eacute possiacutevel dissociar sistematicamente as unidades em dois ou mais fluxos simultacircneos os quais conservam entre si ao longo do tempo tanto elementos de identificaccedilatildeo quanto de diferenciaccedilatildeo um dos fatores
56 Tanto fluxos como segregaccedilatildeo satildeo os termos utilizados por Guigue O autor aponta a psicologia da audiccedilatildeo como aacuterea de origem destes termos e cita o trabalho de Albert Bregman Auditory Scene Analysis
57 Fusatildeo e contraste satildeo tambeacutem os termos usados para articular a proposta de morfologia da interaccedilatildeo de Flo Menezes (2006 p 377-400) que seraacute apresentada adiante
59
mais frequentes de segregaccedilatildeo eacute a separaccedilatildeo estaacutevel entre vaacuterias regiotildees de alturas ou entre diversas configuraccedilotildees instrumentais (p 79)
Esta uacuteltima frase nos leva a pensar novamente nos jaacute abordados paracircmetros envolvidos
na percepccedilatildeo de um fluxo auditivo registro e timbre instrumental (p 46) Entretanto como
afirma Guigue este eacute ldquoum dos fatores mais frequentes de segregaccedilatildeordquo Existem outros fatores
passiacuteveis de diferenciar os fluxos e tambeacutem de os unir Embora os estudos da percepccedilatildeo
possam nos ajudar a explicar estes fatores esta explicaccedilatildeo eacute posterior agrave praacutetica e agrave
experimentaccedilatildeo que satildeo assim defendemos insubstituiacuteveis como recursos para avaliar
estrateacutegias de composiccedilatildeo Portanto buscaremos evidenciar estes paracircmetros no repertoacuterio
(capiacutetulo 4) e na praacutetica da composiccedilatildeo (capiacutetulo 5)
33 ldquoVOZESrdquo NO CONTEXTO ELETROACUacuteSTICO
As categorias apresentadas - voz e sonoridade - embora natildeo sejam tatildeo recorrentes na
muacutesica eletroacuacutestica natildeo satildeo completamente estranhas a ela A citada peccedila de Davidovsky
demonstra a possibilidade de pensar a parte eletroacuacutestica em categorias tradicionais Nesta
peccedila percebemos uma concepccedilatildeo tradicional de voz a escrita da parte eletroacuacutestica eacute
semelhante agrave escrita para o violatildeo haacute imitaccedilotildees entre os meios como se o eletroacuacutestico se
tratasse de um instrumento semelhante ao violatildeo Em outros casos temos uma duplicaccedilatildeo do
proacuteprio instrumento na parte eletroacuacutestica como eacute o caso de Dialogue de l rsquoombre double
(1985) para clarineta e fita magneacutetica de Pierre Boulez Neste exemplo o clarinetista faz uma
parte ao vivo em diaacutelogo com partes que foram preacute-gravadas preferencialmente por ele
mesmo
Entretanto o universo eletroacuacutestico abre espaccedilo para um continuum de possibilidades
natildeo amoldadas aos padrotildees instrumentais e musicais convencionais Este contexto admite
sons que fazem referecircncia a outras experiecircncias que natildeo apenas agrave voz humana
Smalley (2008) desenvolve os conceitos de Campos e Redes Indicativas para se referir
agraves relaccedilotildees entre a escuta de materiais sonoros em contextos musicais e a experiecircncia humana
em geral Na introduccedilatildeo de seu texto ele aponta trecircs categorias de sons para tentar delimitar o
amplo territoacuterio sonoro em potencial (1) aqueles sons captados da natureza ou da cultura pelo
microfone (2) sons criados para serem usados na muacutesica como os de instrumento e de canto
e (3) sons que por serem sintetizados ou fortemente transformados parecem distantes dos sons
60
familiares da natureza da cultura dos instrumentos ou do canto Os sons de ambas as
categorias podem fazer referecircncia a experiecircncias externas ao contexto da muacutesica
O termo ldquoindicativordquo significa que a manifestaccedilatildeo musical de um campo se refere ao mundo natildeo-sonoro ou indica experiecircncias relacionadas a ele Identificam-se nove campos Trecircs satildeo arquetiacutepicos gesto (gesture) fala (utterance) e comportamento (behaviour) Estes campos satildeo universais originais A fala humana e as consequecircncias do gesto forneceram tradicionalmente os modelos sonoros fundamentais para a muacutesica O campo-comportamento se ocupa das relaccedilotildees sonoras no espaccedilo e no tempo as quais podem ser consideradas anaacutelogas a certos modos de relaccedilatildeo humana as relaccedilotildees observadas entre coisas ou objetos ou a relaccedilotildees homem-objeto Os seis campos restantes satildeo energia movimento objetosubstacircncia ambiente visatildeo e espaccedilo (SMALLEY 2008 p 7)
O campo-ambiente eacute um exemplo de referecircncia pouco usual na muacutesica instrumental
mas muito recorrente na muacutesica eletroacuacutestica (por exemplo Presque rien No1 - le lever du
jour au bord de la mer (1967-70) de Luc Ferrari) E mesmo que se trate dos campos que
ldquoforneceram tradicionalmente os modelos sonoros fundamentais para a muacutesicardquo haacute outras
possibilidades sonoras que natildeo se adequam agrave estrutura conceitual na qual concebemos a
muacutesica instrumental do chamado periacuteodo da praacutetica comum
331 O Continuum
Em seu livro On Sonic Art (1996) Trevor Wishart critica o paradigma de escrita
musical que fundamenta a construccedilatildeo da muacutesica ocidental Esta escrita segundo o autor daacute
demasiada ecircnfase aos paracircmetros altura e duraccedilatildeo e considera-os por valores discretos (Doacute
Doacute sustenido Reacute etc Semiacutenima colcheia tercina etc) Ou seja relega a um lugar perifeacuterico
o continuum existente nestes paracircmetros Entre Doacute e Doacute sustenido haacute uma infinidade de
valores bem como entre as duraccedilotildees de semiacutenima e colcheia por exemplo A ecircnfase sobre
estes dois paracircmetros considerados por valores discretos cria uma rede bidimensional de
altura duraccedilatildeo O paracircmetro timbre eacute visto da mesma forma eacute tambeacutem apresentado em
valores discretos (instrumento 1 instrumento 2 etc) e compreende uma terceira dimensatildeo
(ver Figura 20a)
61
A criacutetica agrave rede concerne ao fato de que se nos concentrarmos apenas nela corremos o
risco de cair na armadilha mental de observar o mundo dos sons como se fosse dividido em
trecircs dimensotildees com valores discretos Pelo contraacuterio objetos musicais complexos para usar o
termo de Wishart movem-se num continuum (ver Figura 20b)
332 O Gesto e textura
De acordo com o autor a articulaccedilatildeo deste continuum se daacute atraveacutes do gesto Para
Wishart o gesto eacute a articulaccedilatildeo do continuum Na base desta ideia estaacute a concepccedilatildeo de que o
gesto intelectual-fisioloacutegico eacute traduzido em morfologia sonora e que inversamente a
morfologia sonora evidencia o gesto intelectual-fisioloacutegico Esta traduccedilatildeo se daacute por meio da
voz laringe ou pela associaccedilatildeo do movimento corporal com um instrumento No caso da voz
temos uma traduccedilatildeo mais direta sensitiva que natildeo apresenta intermediaacuterios Jaacute no caso dos
instrumentos temos normalmente uma mecacircnica intermediaacuteria socialmente construiacuteda que
impotildee as caracteriacutesticas da rede no proacuteprio instrumento seja atraveacutes de furos trastes teclas
etc Desta maneira a voz humana eacute a fonte imediata do gesto intelectual-fisioloacutegico e eacute um
importante modelo para o desenvolvimento das ideias de Wishart Os instrumentos de sopro
carregam tambeacutem de maneira mais sensitiva a informaccedilatildeo gestual embora possuam esta
mecacircnica intermediaacuteria pois a sua produccedilatildeo sonora estaacute intimamente ligada com a respiraccedilatildeo
62
fisioloacutegica
De maneira semelhante para Smalley (1997 p 111) gesto eacute uma ldquo trajetoacuteria de
energia-movimento que estimula o corpo sonador criando vida espectro-morfoloacutegicardquo
(traduccedilatildeo nossa58) Assim o processo gestual musical eacute taacutetil visual e aural mas aleacutem disso
tem relaccedilatildeo com as tensotildees e relaxamentos musculares com esforccedilo e resistecircncia assumindo
assim um caraacuteter proprioceptivo Por isso ldquoa produccedilatildeo sonora estaacute ligada a uma experiecircncia
sensoacuterio-motora e psicoloacutegica mais abrangenterdquo (SMALLEY 1997 p 111 traduccedilatildeo nossa59)
Assim podemos recuperar a atividade humana por traacutes de determinado som atraveacutes do que
Smalley denomina processo de referenciaccedilatildeo espectro-morfoloacutegica (spectromorphological
referralprocess) Na muacutesica eletroacuacutestica as referecircncias gestuais podem ser mais ou menos
evidentes Este aspecto eacute analisado pela noccedilatildeo de substituinte (gesture surrogacy) Sons cuja
origem podemos imaginar facilmente satildeo substituinte de primeira ordem aqueles que natildeo
guardam nenhuma relaccedilatildeo com gestos fiacutesicos conhecidos ou com alguma fonte sonora
conhecida satildeo substituintes de terceira ordem
Smalley (1997) apresenta o gesto como um de seus princiacutepios ao lado da textura60 A
noccedilatildeo de gesto neste caso tem a ver com impulsionar o tempo para frente ldquoAssim a muacutesica
gestual eacute governada por um senso de movimento para diante de linearidade de narratividaderdquo
(SMALLEY 1997 p113) Entretanto
Se eles [os gestos] se tornam muito esticados no tempo ou se evoluem muitolentamente perdemos a fisicalidade humana Parecemos cruzar uma fronteiraembaccedilada entre eventos numa escala humana e eventos numa escala mundana ambiental Ao mesmo haacute uma mudanccedila de foco da escuta - quanto mais lento o iacutempeto gestual direto tanto mais o ouvido procura se concentrar em detalhes internos (ateacute onde eles existam) Uma muacutesica que eacute primariamente textural assim se concentra na atividade interna agraves custas do iacutempeto antecipado (SMALLEY 1997 p 113-114 traduccedilatildeo nossa61)
58 Original ldquoA gesture is therefore an energy-motion trajectory which excites the sounding body creating spectromorphological liferdquo (SMALLEY 1997 p 111)
59 Original ldquo[] sound-making is linked to more comprehensive sensorimotor and psychological experiencerdquo (SMALLEY 1997 p 111)
60 Gesto eacute um termo bastante discutido na muacutesica eletroacuacutestica Embora hajam controveacutersias e perspectivas diferentes optamos por estes dois referenciais (SMALLEY 1997 WISHART 1996) pois satildeo suficientemente abrangentes para nossa abordagem da interaccedilatildeo como uma relaccedilatildeo entre fluxos distintos - tema desta pesquisa
61 Original ldquoIf they [gestures] become too stretched out in time or if become too slowly evolving we lose the human physicality We seem to cross a blurred border between events on a human scale and events on a more worldly environmental scale At the same time there is a change of listening focus - the slower the direct gestural impetus the more the ear seeks to concentrate on inner details (insofar as they exist) A music which is primarily textural then concentrates on internal activity at the expense of forward impetusrdquo (SMALLEY 1997 p 113-114)
63
Smalley aponta para a frequente mistura destes dois princiacutepios (gesto e textura62) ou
por uma mudanccedila de foco da escuta ou porque ambos estatildeo presentes concorrentemente num
equiliacutebrio colaborativo Pode-se entatildeo classificar o contexto como conduzido-por-gesto
[gesture-carried] ou conduzido-por-textura [texture-carried] (SMALLEY 1997 p 114) Nas
palavras do autor
Gestos individuais podem ter interiores texturais em cujo caso o movimento gestual molda [frames] a textura - estamos conscientes tanto do gesto quanto da textura embora o contorno gestual domine um exemplo de gesture-framing Por outro lado estruturas conduzidas-por-textura [texture-carried] nem sempre satildeo ambientes com interiores democraacuteticos onde cada (micro-) evento eacute igual e os indiviacuteduos satildeo subsumidos numa atividade coletiva Gestos podem se destacar da textura em um relevo de primeiro plano Este eacute um exemplo de texture-setting - a textura fornece um plano baacutesico no interior do qual os gestos agem (SMALLEY 1997 p 114 traduccedilatildeo nossa63)
Gesto e textura satildeo assim conceitos importantes na abordagem de nosso tema As
vozes satildeo constituiacutedas de notas em sequecircncia agrupadas (por um processo de percepccedilatildeo) num
fluxo auditivo Da mesma forma os gestos e texturas constituem as camadas planos ou fluxos
num contexto musical mais amplo como o eletroacuacutestico
333 Camadas fluxos e planos
Smalley (2008 p 7) denomina ldquocampo-comportamentordquo o que ldquose ocupa das relaccedilotildees
sonoras no espaccedilo e no tempo as quais podem ser consideradas anaacutelogas a certos modos de
relaccedilatildeo humana agraves relaccedilotildees observadas entre coisas ou objetos ou agraves relaccedilotildees homem-
objetordquo Estas relaccedilotildees sonoras podem ser analisadas evento a evento nota a nota gesto a
gesto ou podemos utilizar uma categoria agrave maneira da voz ou da sonoridade que comporte
agrupe uma seacuterie de sons caracteriacutesticos No universo eletroacuacutestico tal categoria pode ser
denominada camada plano oue fluxo
No verbete do EletroAcoustic Research Site (EARS) Rob Weale traz a seguinte
62 Esta concepccedilatildeo de textura estaacute mais proacutexima ao que chamamos microtextura (314) Retomaremos esta discussatildeo em 341
63 Original ldquoIndividual gestures can have textured interiors in which case gestural motion frames the texture - we are conscious of both gesture and texture although the gestural contour dominates an example of gesture-framing On the other hand texture-carried structures are not always environments with democratic interiors where every (micro-) event is equal and individuals are subsumed in collective activity Gestures can stand out in foreground relief from the texture This is an example of texture-setting - texture provides a basic framework within which individual gestures actrdquo (SMALLEY 1997 p 114)
64
consideraccedilatildeo sobre camada
Um conceito crescentemente usado para descrever obras eletroacuacutesticas nas quais lsquocamadasrsquo de som (ou tipos de sons) satildeo desenvolvidos ao longo de uma obra normalmente numa densidade que o ouvinte pode seguir cada camada Essa forma de pensamento horizontal pode ser vista como o equivalente de contraponto por exemplo na muacutesica renascentista (WEALE 2005 traduccedilatildeo nossa64)
Esta definiccedilatildeo comporta em parte o tema desta pesquisa entretanto a metaacutefora da
camada parece ter um caraacuteter atemporal acrocircnico - como se referia Guigue aos aspectos que
para serem analisados eacute necessaacuterio se fazer a abstraccedilatildeo do fator tempo (ver 32) Podemos
descrever determinado contexto musical como estratificado em camadas mas eacute menos
frequente encontrarmos descriccedilotildees do desenvolvimento destas camadas no tempo como
surgem como se relacionam como interagem como se mesclam uma agrave outra ou surgem uma
da outra Para estas questotildees a metaacutefora de fluxo se mostra mais adequada Enquanto a
camada se refere a estruturas mais estaacuteveis ldquosoacutelidasrdquo o fluxo se aplica a estruturas de forma
variaacutevel ldquoliacutequidasrdquo A metaacutefora do plano apresenta a preocupaccedilatildeo com a profundidade com a
perspectiva eacute uma metaacutefora mais espacial que diferencia aquilo que estaacute mais a frente do que
estaacute mais ao fundo
Estas terminologias entretanto ainda que venham a ser manifestas em artigos livros e
falas dos compositores tecircm sua origem na praacutetica musical seja da escuta ou da composiccedilatildeo
Tratam-se de metaacuteforas para explicar esta praacutetica e que tecircm suas limitaccedilotildees Haacute liacutequidos que
natildeo se misturam haacute camadas geoloacutegicas que se misturam existem planos superiores e
inferiores e natildeo apenas proacuteximos ou distantes Aleacutem disso a mesma estrutura pode ser
observada por meio de diferentes metaacuteforas - os termos mencionados natildeo satildeo excludentes
Neste sentido nossa abordagem natildeo consiste em oferecer um meacutetodo uacutenico e efetivo mas
oferece um caminho de reflexatildeo em torno destas categorias
334 O caraacuteter misto da muacutesica mista
Ao tratar da composiccedilatildeo com o som (sound composition) Wishart observa que ldquonossa
principal metaacutefora para a composiccedilatildeo musical precisa mudar de uma de arquitetura para uma
64 Original A concept used increasingly in describing electroacoustic work in which rsquolayersrsquo of sound (or sound types) are developed throughout a work normally at a density whereby the listener can follow each layer This form of horizontal thinking might be seen to be the equivalent of counterpoint in for example Renaissance music (WEALE 2005)
65
de quiacutemicardquo (WISHART 1994 p 12 traduccedilatildeo nossa65) Isto porque graccedilas agraves possibilidades
de siacutentese gravaccedilatildeo e processamento o compositor pode trabalhar com as caracteriacutesticas
internas dos sons
O som se torna um meio fluido e inteiramente maleaacutevel natildeo uma coleccedilatildeo de dados cuidadosamente aprimorada Escultura e quiacutemica mais do que linguagem ou [] matemaacutetica se tornam metaacuteforas apropriadas para o que o compositor pode fazer embora princiacutepios matemaacuteticos e fiacutesicos continuaratildeo a entrar fortemente no design tanto de ferramentas quanto de estruturas musicais66 (WISHART 1994 p 12)
A muacutesica que une os universos instrumental e eletroacuacutestico pode dialogar por um
lado com as estruturas solidificadas pela tradiccedilatildeo (como as notas de uma voz) por outro
mergulha neste contexto fluido da composiccedilatildeo com o som Isto evidencia o caraacuteter misto da
composiccedilatildeo mista Com histoacuterias e teacutecnicas distintas os meios instrumental e eletroacuacutestico
se misturam neste gecircnero Isto eacute perceptiacutevel tanto para o ouvinte que observa estes meios
fundirem e contrastarem quanto para o compositor que lida com um misto de teacutecnicas
provenientes de cada contexto (instrumental e eletroacuacutestico) que se interferem no fazer
composicional67
Num texto de 1979 Jon Appleton escreve sobre estilos e teacutecnicas composicionais da
muacutesica eletrocircnica em que expressa uma previsatildeo de natildeo-separaccedilatildeo destes meios
ldquoAlguns estilos satildeo uacutenicos agrave muacutesica eletrocircnica por causa da natureza do meio outros satildeo comuns agrave muacutesica instrumental Os dois meios continuam a criar possibilidades um para o outro e vatildeo sem duacutevida no final se tornar indistinguiacuteveisrdquo (p 104 traduccedilatildeo nossa68)
Se ainda natildeo alcanccedilamos este estaacutegio descrito por Appleton ao menos jaacute passamos por
uma inegaacutevel transformaccedilatildeo da atividade composicional causada pela experiecircncia em
estuacutedio69 Gati (2015) aponta que a partir de 1950
65 Original ldquo[] our principal methafor for music composition must change from one of architecture to one of chemistryrdquo (WISHART 1994 p 12)
66 Original ldquoSound becomes a fluid and entirely malleable medium not a carefully honed collection of givens Sculpture and chemistry rather than language or ire mathematics become appropriate metaphors for what a composer might do although mathematical and physical principals will still enter strongly into the design of both musical tools and musical structuresrdquo (WISHART 1994 p 12)
67 E tendo muitas vezes seu instrumento amplificado e difundido nos mesmos alto-falantes que difundem os sons eletroacuacutesticos tambeacutem o inteacuterprete percebe esta mistura
68 Original ldquoSome styles are unique to electronic music because of the nature of the medium others are common to instrumental music as well The two media continue to create possibilities for each other and will no doubt ultimately become indistinguishablerdquo (APPPELTON 1979 p 104)
69 Um caso sempre lembrado eacute o de Gyorgy Ligeti Suas composiccedilotildees posteriores agrave breve experiecircncia no estuacutedio de Colocircnia em 1957-8 evidenciam a influecircncia que esta exerceu sobre sua produccedilatildeo (DIAS 2014 p
66
[] estabeleceu-se uma verdadeira via de matildeo dupla entre a escritura instrumental e a eletroacuacutestica pela qual ambas se realimentam se influenciam Notadamente por meio da experiecircncia da muacutesica acusmaacutetica semearam-se de maneira mais intensa abordagens composicionais que tomavam os eventos sonoros em si seus contornos sua distribuiccedilatildeo e caracterizaccedilatildeo espectral como ponto de partida para a estruturaccedilatildeo musical (GATI 2015 p 22)
Esta ldquovia de matildeo duplardquo se evidencia na elaboraccedilatildeo composicional da muacutesica mista
Estaacute presente neste processo uma interaccedilatildeo entre elaboraccedilatildeo instrumental e eletroacuacutestica
cujas diferenccedilas devem ser consideradas
Menezes (2006) aponta que na muacutesica instrumental compor significa recompor o som
a partir de seus paracircmetros segmentados historicamente na escrita musical (o que chama de
decomposiccedilatildeo do som) O material musical resultante desta elaboraccedilatildeo de recomposiccedilatildeo
apresenta um caraacuteter relacional Por outro lado o material eletroacuacutestico mais do que
relacional deve ser constituiacutedo pelo compositor diferentemente da muacutesica instrumental Isto
eacute o compositor assume a proacutepria constituiccedilatildeo dos espectros Assim o material se apresenta
em duas faces com uma funccedilatildeo relacional e outra constitutiva De um lado a atividade
composicional de relacionar sons de outro a de constituir seus proacuteprios espectros
O processo de recomposiccedilatildeo do som por meio de seus paracircmetros na composiccedilatildeo
instrumental acontece por meio da escritura70 Na composiccedilatildeo eletroacuacutestica a ldquoelaboraccedilatildeo
escritural de suas estruturasrdquo natildeo estaacute ausente mas sim latente ou subjacente Trata-se de uma
escritura latente que ldquo[] tende a resgatar no seio da atividade eletroacuacutestica e de seu
confronto com o som bruto e concreto a abstraccedilatildeo tiacutepica da muacutesica instrumental e sua
histoacuteriardquo (MENEZES 2006 p 362) Ao mesmo tempo se coloca a percepccedilatildeo do caraacuteter
constitutivo do material de sua textura sonora que atenta para os aspectos da vida interna do
som ldquoA percepccedilatildeo relacional dos elementos estruturais eacute acompanhada por aquela destinada a
uma efetiva introspecccedilatildeo constitutiva dos espectrosrdquo (MENEZES 2006 p 362)
Estas duas percepccedilotildees (relacional e constitutiva) se diferenciam tambeacutem em relaccedilatildeo a
percepccedilatildeo do tempo O paradigma convencional da muacutesica instrumental neste aspecto eacute que
o som constitui o tempo musical priorizando assim a percepccedilatildeo dos ataques e a organizaccedilatildeo
meacutetrica e riacutetmica Jaacute a muacutesica eletroacuacutestica iraacute pelo contraacuterio considerar o som enquanto
89-192)70 O termo escritura se contrapotildee agrave escrita e eacute preferiacutevel segundo Menezes por ser ldquomais conotativo de um
processo compositivo e portanto mais proacuteximo ao contexto relativo agrave elaboraccedilatildeo [] em vez de meramente escrita mais condizente com o aspecto superficial e caracteroloacutegico (graacutefico) da apresentaccedilatildeo de um textordquo (MENEZES 1999 p 61)
67
fenocircmeno de textura e o tempo enquanto constituinte do espectro sonoro ldquoO som que era do
tempo cede passo assim ao tempo de cada somrdquo (MENEZES 2006 p 364)
Se por um lado Menezes aproxima a elaboraccedilatildeo composicional eletroacuacutestica da
instrumental atraveacutes do conceito de escritura latente por outro poderiacuteamos pensar na
possibilidade de aproximar a escritura instrumental da elaboraccedilatildeo eletroacuacutestica em sua
funccedilatildeo constitutiva dos sons Embora o autor afirme que a escritura instrumental ldquonatildeo permite
uma radical intervenccedilatildeo composicional na constituiccedilatildeo mesma dos sonsrdquo (MENEZES 2006
p 364) eacute possiacutevel pensar em intervenccedilotildees menos radicais ou ao menos numa analogia desta
intervenccedilatildeo Uma intervenccedilatildeo pouco radical eacute por exemplo o bisbigliando variaccedilotildees
tiacutembricas sobre uma mesma nota Como analogia assim como o compositor eletroacuacutestico
trabalha os aspectos constitutivos dos espectros o compositor instrumental pode tratar os sons
de cada instrumento como constituinte de um todo orquestral por exemplo Evidentemente a
elaboraccedilatildeo instrumental sempre apresentaraacute graus menores em relaccedilatildeo agrave eletroacuacutestica de
controle do movimento interno dos sons devido agraves suas contingecircncias de execuccedilatildeo mas isso
natildeo significa a impossibilidade de se tratar o som instrumental de maneira semelhante ou
anaacuteloga agrave elaboraccedilatildeo eletroacuacutestica
34 FLUXOS SONOROS
Diante deste contexto sonoro-morfoloacutegico interessa-nos compreender como se
constituem e diferenciam os fluxos sonoros na muacutesica eletroacuacutestica mista
Fluxos eacute uma traduccedilatildeo possiacutevel para streams termo presente em Wishart (1996)
Smalley (1997) em Guigue (2011) e em Bregman (2004 2008) Este uacuteltimo autor trata de
fluxos auditivos (auditory streams) Nesta aplicaccedilatildeo do termo a ideia de fluxo se relaciona
com um contiacutenuo recebimento de informaccedilotildees sonoras que satildeo segregadas num processo da
percepccedilatildeo Assim quando no ambiente em que estamos conseguimos distinguir sons
produzidos em fontes diferentes estaacute em accedilatildeo esta capacidade vital Outras pesquisas em
cogniccedilatildeo avanccedilam para a percepccedilatildeo de fluxos distintos ainda que a fonte sonora seja a mesma
como acontece por exemplo na polifonia latente (ver 31) Por outro lado como tentamos
demonstrar eacute possiacutevel perceber um uacutenico fluxo ainda que vaacuterias fontes sonoras estejam
envolvidas (Klangfarbenmelodie e a proacutepria praacutetica de dobramento na orquestraccedilatildeo) Guigue
(2011) adota este termo para se referir natildeo simplesmente a uma polifonia de vozes como
68
Shepard (1999) mas a uma polifonia de sonoridades As sonoridades podem se desenvolver
em muacuteltiplos fluxos simultacircneos Smalley (1997) utiliza uma variaccedilatildeo do termo (streaming)
para expressar um tipo especiacutefico de movimento da textura71
Streaming se refere a uma combinaccedilatildeo de camadas em movimento e implica algum tipo de diferenciaccedilatildeo entre as camadas seja atraveacutes de lacunas no espaccedilo espectral ou porque cada camada natildeo possui o mesmo conteuacutedo espectro-morfoloacutegico (Smalley 1997 p 117 traduccedilatildeo nossa)72
Semelhantemente o termo eacute tambeacutem empregado pelo autor em relaccedilatildeo agrave ocupaccedilatildeo do
espaccedilo espectral Streams - interstices eacute um dos qualificadores deste espaccedilo e se refere a ldquoa
estratificaccedilatildeo em camadas [the layering] do espaccedilo espectral em fluxos estreitos ou largos
separados por espaccedilos intervenientesrdquo (SMALLEY 1997 p 121 traduccedilatildeo nossa)73
Da mesma forma no EletroAcoustic Research Site (EARS) Rob Weale explica
streams
O termo eacute usado como uma ferramenta conceituai para a criaccedilatildeo e anaacutelise perceptual de texturas que apresentam lsquobandasrsquo claramente distinguiacuteveis de atividade socircnica dentro de um espectro global de possiacuteveis frequecircncias audiacuteveis (2005 traduccedilatildeo nossa74)
A separaccedilatildeo de fluxos em bandas de frequecircncias distintas favorece o processo de
segregaccedilatildeo Poreacutem assim como no caso da separaccedilatildeo das vozes em diferentes registros de
alturas este eacute um dos recursos para se alcanccedilar tal resultado uma das possibilidades para se
distinguir os fluxos Como aponta Smalley na citaccedilatildeo acima agraves vezes esta diferenciaccedilatildeo se daacute
por causa da diferenccedila de conteuacutedo espectro-morfoloacutegico
341 Simultaneidades da micro eou da macrotextura
As definiccedilotildees de Smalley e de Weale estatildeo fortemente direcionadas a questotildees da
71 A concepccedilatildeo de textura de Smalley foi abordada em 33272 Original ldquoStreaming refers to a combination of moving layers and implies some way of differentiating
between the layers either through gaps in spectral space or because each layer does not have the same spectromolphological contentrdquo (Smalley 1997 p 117)
73 Original ldquoStreams - interstices - the layering of spectral space into narrow or broad streams separated by intervening spacesrdquo (SMALLEY 1997 p 121)
74 Original ldquoThis term is used as a conceptual tool for the creation and perceptual analysis of textures that comprise of clearly distinguishable rsquobandsrsquo of sonic activity within the overall spectrum of possible available audible frequenciesrdquo (WEALE 2005 Disponiacutevel em httpearspierrecoupriefrspipphparticle99)
69
textura como a concebe Smalley a qual chamamos microtextura Entretanto podemos
questionar esta exclusividade Guigue (2011) por exemplo utiliza fluxos para se referir agraves
partes de uma polifonia de sonoridades que se enquadraria como uma macrotextura Wishart
(1996) utiliza o termo para indicar partes simultacircneas de um contraponto no continuum Estas
partes satildeo anaacutelogas a um fluxo instrumental convencional (voz soprano por exemplo) que
formam uma textura que quanto agrave sua dimensatildeo (micro-macro) se assemelha agrave muacutesica
convencional (macro) Claramente os fluxos em Wishart natildeo se limitam a partes de uma
textura (micro) como em Smalley (1997) Mais do que isso o autor sustenta que
De fato o conceito de fluxo [stream] instrumental eacute talvez o que mais persiste nopensamento musical convencional [] Mesmo num claacutessico estuacutedio de controle devoltagem era possiacutevel conceber uma composiccedilatildeo musical na qual um uacutenico fluxo de som desenvolvido possivelmente divergia em fluxos separados que poderiam ser separadamente articulados poderiam convergir novamente e continuar assim ateacute o final da peccedila (p 25 traduccedilatildeo nossa75)
Nesta citaccedilatildeo vemos as duas dimensotildees intercambiarem O ldquoconceito de fluxo
instrumentalrdquo que ldquopersiste no pensamento musical convencionalrdquo eacute parte de uma textura
deste pensamento comumente o que chamamos macrotextura (ver 31) Jaacute a ideia de uma
ldquocomposiccedilatildeo musical na qual um uacutenico fluxo de som desenvolvido possivelmente divergia
em fluxos separadosrdquo soacute parece ser possiacutevel se consideradas as caracteriacutesticas internas do som
(dimensatildeo micro) Podemos assim dizer que os fluxos podem cruzar esta fronteira entre
micro e macro e de fato estabelecer um continuum entre eles Eacute precisamente por isso que
caracteriacutesticas internas dos sons (micro) de um fluxo (macro) podem assumir um
protagonismo se separando deste fluxo inicial e dando origem a um segundo (macro) Isto
acontece nas peccedilas Kontakte de Stockhausen e Desintegrations de Murail abordadas adiante
(respectivamente em 342 e 41)
342 Fusatildeo e contraste constituiccedilatildeo e segregaccedilatildeo de muacuteltiplos fluxos
O dicionaacuterio Merriam-Webster traz entre outras as seguintes definiccedilotildees de stream
que podem servir de metaacuteforas para pensarmos os fluxos sonoros
75 Original ldquoIn fact the concept of the instrumental stream is perhaps the most persistent in conventional musical thought [] Even in the classical voltage control studio it was possible to conceive of a musical composition in which a single sound stream evolved possibly diverged into separate streams which might be separately articulated might reconverge and continue thus to the end of the piecerdquo (SMALLEY 1997 p 25)
70
1 um corpo de aacutegua corrente (tal como um rio ou coacuterrego) que flui na terra tambeacutem qualquer corpo fluido (tal como aacutegua ou gaacutes) 2 a uma sucessatildeo estaacutevel (como de palavras ou eventos) - manter um fluxo de conversa sem fim [] c uma procissatildeo de contiacutenuo movimento - um fluxo de traacutefego (STREAM 2019 traduccedilatildeo nossa76)
Desta definiccedilatildeo podemos reter duas caracteriacutesticas interdependentes de um fluxo a)
estabilidade relativa do que o compotildee - ldquosucessatildeo estaacutevelrdquo b) movimento contiacutenuo relativo
Satildeo interdependentes pois eacute preciso que haja uma estabilidade em pelo menos alguns
paracircmetros de determinados eventos sonoros para que percebamos a continuidade do fluxo
constituiacutedo por eles Tais aspectos remontam ao processo de segmentaccedilatildeo abordado por
Guigue (2011) (ver 321) Estas caracteriacutesticas excluem muitas texturas como a mencionada
de Webern que natildeo presam por uma continuidade de fluxos Entretanto mesmo nesse caso eacute
possiacutevel compreendecirc-la como um uacutenico fluxo com um aspecto global (a partir da p 51
apresentamos brevemente este aspecto da textura weberniana)
Para que diferenciemos um fluxo de outro eacute preciso que haja uma concorrecircncia outra
sucessatildeo estaacutevel com alguma diferenccedila em relaccedilatildeo ao conteuacutedo sonoro Para a distinccedilatildeo de
vozes um recurso recorrente eacute a utilizaccedilatildeo de instrumentos diferentes para cada voz
(diferenciaccedilatildeo por timbre enquanto tone-color) para os fluxos este fator tambeacutem deve ser
considerado Na muacutesica mista haacute uma distinccedilatildeo ldquoinstrumentalrdquo entre os meios instrumental e
eletroacuacutestico que sobressalta inicialmente Em seu artigo sobre a interaccedilatildeo entre estes dois
meios Souza (2010) faz uma possiacutevel distinccedilatildeo quanto ao mecanismo de produccedilatildeo sonora
para logo questionaacute-la do ponto de vista da percepccedilatildeo
ldquoNote-se que como ponto de partida a diferenccedila entre sons instrumentais e eletrocircnicos eacute tomada inicialmente ao peacute da letra sons instrumentais satildeo aqueles gerados por vibraccedilotildees mecacircnicas de instrumentos acuacutesticos enquanto sons eletrocircnicos satildeo gerados por circuitos eletrocircnicos analoacutegicos ou digitais tornados audiacuteveis por alto-falantes e amplificadores A seguir essa separaccedilatildeo quase tautoloacutegica eacute questionada no lado da percepccedilatildeordquo (SOUZA 2010 p 149)
Esta caracteriacutestica de produccedilatildeo sonora poderia nos fazer pensar cada meio -
instrumental e eletroacuacutestico - como responsaacutevel por um fluxo na muacutesica mista Entretanto
Souza salienta que
76 Traduccedilatildeo do autor Original ldquo 1) a body of running water (such as a river or brook) flowing on the earth also any body of flowing fluid (such as water or gas) 2) a a steady succession (as of words or events) - kept up an endless stream of chatter [ ] c a continuous moving procession - a stream of traficrdquo (STREAM 2019)
71
Do ponto de vista do ouvinte-receptor natildeo haacute propriedades intriacutensecas dos sons que permitam fazer uma separaccedilatildeo absoluta e inquestionaacutevel entre sons instrumentais e sons gerados eletronicamente ainda que em nosso imaginaacuterio tal separaccedilatildeo pudesse parecer evidente (SOUZA 2010 p 149)
Eacute preciso argumentar que a distinccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo sonora apresentada
inicialmente por Souza aponta para uma propriedade intriacutenseca dos sons a ser considerada O
som dos instrumentos (natildeo amplificados ou gravados) em sua maioria se projeta em
muacuteltiplas direccedilotildees enquanto que a projeccedilatildeo cocircnica dos alto-falantes (considerados
individualmente) se daacute numa direccedilatildeo apenas Alguns instrumentos apresentam uma projeccedilatildeo
direcional semelhante agrave dos alto-falantes - o trombone por exemplo Por outro lado satildeo raras
as tentativas que buscam imitar a projeccedilatildeo instrumental multidirecional atraveacutes de alto-
falantes77
Ainda assim o argumento de Souza eacute relevante ele desloca (assim como discutido em
23) a atenccedilatildeo teoacuterica de sobre as questotildees teacutecnicas (produccedilatildeo sonora) para atentar para a
percepccedilatildeo destes sons Do ponto de vista da percepccedilatildeo os sons gerados eletronicamente
podem apresentar o ldquoexatordquo som preacute-gravado de um instrumento e instrumentos podem
produzir sons natildeo-convencionais que podem ser confundidos com sons eletrocircnicos Assim
ainda que a distinccedilatildeo do tipo de mecanismo de produccedilatildeo sonora possa ser utilizada em favor
da separaccedilatildeo de fluxos ela natildeo determina exclusivamente a existecircncia de dois fluxos assim
como a exemplo da melodia de timbres o uso de dois instrumentos diferentes natildeo o faz na
muacutesica instrumental Pelo contraacuterio a fusatildeo dos dois meios num mesmo fluxo eacute um recurso
muito utilizado Para isso a amplificaccedilatildeo do instrumento eacute comumente empregada fazendo
com que haja maior semelhanccedila de projeccedilatildeo sonora dos dois meios78
A proposta de morfologia da interaccedilatildeo de Menezes pode ser uacutetil para abordar a
distinccedilatildeo de fluxos sonoros na muacutesica mista De acordo com o autor a interaccedilatildeo entre
instrumento e eletroacuacutestica acontece entre dois polos fusatildeo e contraste A fusatildeo eacute a absoluta
similaridade caracterizada por ldquotransferecircncias localizadas de caracteriacutesticas espectrais de uma
esfera de atuaccedilatildeo agrave outrardquo (MENEZES 2006 p 385) o contraste eacute a absoluta distinccedilatildeo
77 O Wave Field Synthesis desenvolvido no IRCAM eacute uma alternativa de projeccedilatildeo que vai nesta direccedilatildeo Confira o siacutetio do projeto lthttprechercheircamfrequipessallesWFS_WEBSITEIndex_wfs_sitehtmgt Deve-se mencionar tambeacutem os alto-falantes hemisfeacutericos desenvolvidos na Universidade de Princeton confira no endereccedilo lthttpmusic2princetonedudeloreanhistoryhtmlgt
78 Aleacutem disso os dois meios natildeo instituem apenas dois fluxos porque eacute possiacutevel haver muacuteltiplos fluxos no meio instrumental como tambeacutem muacuteltiplos fluxos no meio eletroacuacutestico
72
caracterizada pela ausecircncia destas transferecircncias Entre estes dois polos existem estaacutegios
transicionais de relativa similaridade e dissimilaridade
Em relaccedilatildeo a proveniecircncia sonora quanto mais lsquoconfusorsquo estiver o ouvinte em face daquilo que ouve tanto mais ele sentiraacute efetivamente integradas as partes constitutivas da obra mista os lsquodois planosrsquo pressupostamente independentes e unidos apenas por contingecircncias aos quais os criacuteticos da muacutesica mista faziam referecircncia passam a ser percebidos como um uacutenico plano essencialmente diagonal agraves linhas estanques da emissatildeo instrumental ou da difusatildeo puramente eletroacuacutestica a emissatildeo instrumental passa entatildeo a ser efetivamente potencializada no espaccedilo acuacutestico pelos recursos eletrocircnicos Ainda que de forma alguma hegemocircnico o estado de duacutevida traduz-se como um momento supremo da interaccedilatildeo (MENEZES 2006 p 385)
Assim na fusatildeo instrumento e sons eletroacuacutesticos compartilham o mesmo fluxo
estatildeo num ldquouacutenico planordquo ldquodiagonalrdquo aos dois meios enquanto que no contraste apresentam
fluxos distintos Este paradigma pode ser facilmente transposto para quaisquer meios se
considerarmos que fusatildeo e contraste se referem a (dis)semelhanccedila espectral de dois fluxos
distintos independentemente se instrumentais ou eletroacuacutesticos
Apesar da inegaacutevel importacircncia das caracteriacutesticas espectrais natildeo satildeo apenas elas que
estatildeo em jogo na fusatildeo e no contraste Menezes considera tambeacutem que a fusatildeo pode ser
alcanccedilada por outros meios Ao referir-se agrave estrateacutegia de utilizar apenas o som do instrumento
como base para a confecccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos ele aponta que
[] tal estrateacutegia estaacute longe de ser excludente as transferecircncias estruturais podem apoiar-se em aspectos outros que natildeo a coloraccedilatildeo (timbre) dos espectros tais como relaccedilotildees de identidade em frequecircncia em percurso espacial em comportamento dos perfis meloacutedicos e de massa em constituiccedilatildeo gestual dos sons (que podem identificar-se ateacute mesmo pela forma de tratamento aos quais se submetem) Ou seja ainda que seja mais condizente com a fusatildeo partir dos proacuteprios sons instrumentais para a elaboraccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos o uso de outras fontes sonoras natildeo implica necessariamente inviabilidade da fusatildeo e pode em contrapartida viabilizar a transiccedilatildeo que vai do fundido ao contrastado Seraacute pois pelo vieacutes de tal distinccedilatildeo relativa - apenas possiacutevel no caso de se utilizarem os mesmos sons instrumentais na elaboraccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos apoacutes inuacutemeros procedimentos de transformaccedilatildeo do material de partida - que a edificaccedilatildeo de toda uma gama de distanciamento tornar-se-aacute possiacutevel ateacute que se atinja o contraste mais evidente com ausecircncia de qualquer transferecircncia espectral (2006 p386)
Petra Bachrataacute (2010 p 89) oferece a seguinte perspectiva
Mas na nossa opiniatildeo fusatildeo e contraste em uma obra eletroacuacutestica mista podem ser percebidos tambeacutem no passar do tempo e podem ser demonstrados em exemplos de relaccedilotildees gestuais Por exemplo dois gestos podem ser similares ou diferentes
73
mesmo que se apresentem separados no tempo Nestes contextos noacutes podemos criar modelos de interaccedilatildeo entre gestos de acordo com sua organizaccedilatildeo no tempo - contrapontos mais ou menos complexos ou em relaccedilatildeo a outras caracteriacutesticas aleacutem da espectral tais como ritmo intensidade ou caracteriacutesticas mais semacircnticas como direccedilatildeo e energia (traduccedilatildeo nossa79)
O trabalho de Bachrataacute (2010) se fundamenta na concepccedilatildeo de gesto e aborda as
relaccedilotildees entre gestos instrumentais e eletroacuacutesticos A autora aborda o gesto por diferentes
perspectivas80 e propotildee uma categorizaccedilatildeo de acordo com os paracircmetros que cada uma
oferece Em nosso caso a ideia de fluxo tem maior importacircncia devido ao foco voltado para
questotildees mais amplas do que pontuais Um fluxo pode ser constituiacutedo de gestos De acordo
com Wishart ldquoo fluxo em evoluccedilatildeo [evolving stream] pode ser articulado gestualmenterdquo81
(WISHART 1996 p 117) E as caracteriacutesticas destes gestos determinaratildeo neste caso as
caracteriacutesticas que distinguiratildeo os fluxos sejam espectrais ou outras
Assim entendemos ser necessaacuterio estender a morfologia da interaccedilatildeo para incluir
outros aspectos aleacutem dos espectrais A fim de natildeo entrar nas particularidades de
parametrizaccedilatildeo do gesto seria suficiente acrescentar um termo e denominarmos de
transferecircncias espectro-morfoloacutegicas incluindo assim os aspectos do desenvolvimento das
caracteriacutesticas espectrais no tempo Afinal como afirma Smalley (1997) ldquoo espectro- natildeo
existe sem a -morfologia e vice-versardquo82 (p 107) Isto eacute o conteuacutedo espectral necessita se
constituir temporalmente assim como qualquer constituiccedilatildeo temporal necessita de um
conteuacutedo espectral Desta forma incluiacutemos como importantes para esta interaccedilatildeo outras
caracteriacutesticas espectro-morfoloacutegicas (ver Quadro 1)
79 Original ldquoBut in our opinion fusion and contrast in a mixed electroacoustic work may be perceived also as time passes and may be demonstrated on the examples of gesture relationships For example two gestures may be similar or different even separated in time In these contexts we may create models of interaction between gestures according to their organization over time - subtle or more complex counterpoints or in relation to other than spectral characteristics such as rhythm loudness or more semantic characteristics such as direction or energy Two gestures may closely relate or blend (lsquofusionrsquo) because of their similar rhythmical structure while having very different spectral characteristics increasing energy of one gesture may potentiate the onset of another one two gestures may relate with each other also through the direction in space such as convergent and divergent ways of interaction etcrdquo (BACHRATAacute 2010 p 89)
80 Entre outras perspectivas de Dennis Smalley - gesto como uma trajetoacuteria-energia-movimento de Trevor Wishart - gesto como articulaccedilatildeo do continuum do Laboratoire de Musique et Informatique in Marseille (MIM) - gesto como unidade temporal semioacutetica de Brian Ferneyhough - gesto e figura (BACHRATAacute 2010 p 123-141)
81 ldquoWhat we are now suggesting is that the evolving stream may be gesturally articulated and we may coordinate (or not) the gestures between the various parts in such a way as to create a viable contrapuntal structurerdquo (WISHART 1996 p 117)
82 ldquoThe spectro- cannot exist without the -morphology and vice versardquo (SMALLEY 1997 p 107)
QUADRO 1 - QUADRO DA MORFOLOGIA DA INTERACcedilAtildeO
74
fusatildeo
fusatildeo por virtualizaccedilatildeo (simulaccedilatildeo eletroacuacutestica do
instrumental)
similaridade absoluta
transferecircncias espectro-
fusatildeo por similaridademorfoloacutegicas localizadas
textural estado de duacutevida (confusatildeo)
transferecircncia natildeo-reflexiva
interferecircncia convergente transferecircncias espectro-
estaacutegios transicionais entre transferecircncia reflexiva morfoloacutegicas dinacircmicas
fusatildeo e contraste contaminaccedilatildeo direcional distinccedilatildeo e similaridadeinterferecircncia potencializadora relativas
interferecircncia natildeo-convergente
contraste por distinccedilatildeo textural
distinccedilatildeo absoluta
contraste contraste por silecircncio
estrutural
ausecircncia de transferecircncia espectro-morfoloacutegica
FONTE Adaptado de Menezes (2006 p 398) Acrescentamos o termo -morfoloacutegicas agrave ideia de transferecircnciasespectrais
Os estaacutegios transicionais estabelecem pontos em que os meios instrumental e
eletroacuacutestico podem estar mais proacuteximos da fusatildeo ou mais proacuteximos do contraste Menezes
expotildee estas possibilidades intermediaacuterias com base em exemplos de sua peccedila ATLAS
FOLISPELIS (1996-7) Natildeo repetiremos a explicaccedilatildeo de Menezes (2006 p 387-390) mas
faremos quando ausente em sua descriccedilatildeo uma generalizaccedilatildeo dos estaacutegios a partir de nossa
perspectiva
Transferecircncia natildeo-reflexiva ldquoa transmutaccedilatildeo de uma esfera de emissatildeo sonora agrave outra
eacute quase imperceptiacutevel Quando o ouvinte se daacute conta jaacute natildeo se trata mais de um som do
instrumento mas sim de sons eletroacuacutesticos que os envolvem no espaccedilo quadrifocircnicordquo
(Menezes 2006 p 390) Podemos inferir que tal transferecircncia seja possiacutevel no sentido
contraacuterio eletroacuacutestico-instrumental
Interferecircncia convergente Ainda que os meios (instrumental e eletroacuacutestico) possam
ser distinguidos um deles apresenta certa interferecircncia em relaccedilatildeo ao outro que pode ser
baseada em relaccedilotildees frequenciais por exemplo
Transferecircncia reflexiva ldquouma coisa nasce da outra eacute interagida pela estrutura que jaacute
estava em curso e pouco a pouco a integra e anula em suas proacuteprias inflexotildeesrdquo (MENEZES
2006 p 390) Num primeiro momento um dos meios ldquoespelhardquo o outro em seguida a
ldquoimagemrdquo espelhada ganha maiores proporccedilotildees ateacute que prepondera sobre a imagem inicial
Contaminaccedilatildeo direcional um dos meios muda em direccedilatildeo a algo que parece uma
transformaccedilatildeo dos sons do outro resultando numa maior ou menor fusatildeo O que eacute salientado
neste estaacutegio eacute o processo de transformaccedilatildeo de um dos meios passando do contraste para a
fusatildeo com o outro
Interferecircncia potencializadora um dos meios interfere e potencializa o outro Aquele
que interfere estaacute subordinado e apresenta materiais que parecem desdobramentos do outro
meio
Interferecircncia natildeo-convergente um dos meios realccedila e acentua aspectos do outro sem
que um se dilua no outro Trata-se nas palavras do autor de um ldquoapoio ancorado por uma
distinccedilatildeo relativardquo (MENEZES 2006 p 390)
A funccedilatildeo dos estaacutegios parece ser a de oferecer gradaccedilotildees entre fusatildeo e contraste
Entretanto da maneira como coloca Menezes mais do que estaacutegios tratam-se de movimentos
no interior do eixo fusatildeo-contraste que apresenta diversas gradaccedilotildees Este eixo poderia ser
explorado por outros movimentos natildeo inclusos nesta lista Para nossa abordagem seraacute
suficiente considerar que entre fusatildeo e contraste satildeo possiacuteveis gradaccedilotildees diversas e por
diversas aproximaccedilotildeesafastamentos espectro-morfoloacutegicos Aleacutem disso esta perspectiva
abrange fluxos independentemente se instrumentais ou eletroacuacutesticos Temos assim a
possibilidade de um fluxo se apresentar mais ou menos paralelo e dependente em relaccedilatildeo a
outro Isto eacute quanto mais transferecircncias espectro-morfoloacutegicas estatildeo presentes mais
aproximamos dois fluxos de uma fusatildeo da convergecircncia em apenas um uacutenico fluxo quanto
menos transferecircncias espectro-morfoloacutegicas mais distinguimos os dois fluxos como
independentes Assim os estaacutegios transicionais podem ser tambeacutem pensados como uma
gradaccedilatildeo um continuum relativo agrave independecircncia dos fluxos sonoros Isto se relaciona com
os apontamentos de Wishart (1996) sobre ser possiacutevel que um uacutenico fluxo se divida em outros
fluxos separados que podem ser desenvolvidos individualmente e convergir novamente num
soacute
[] era possiacutevel conceber uma composiccedilatildeo musical na qual um uacutenico fluxo de som desenvolvido possivelmente divergia em fluxos separados que poderiam ser
75
76
separadamente articulados poderiam convergir novamente e continuar assim ateacute o final da peccedila (p 25 traduccedilatildeo nossa83)
Nestes casos natildeo se trata de um ou outro fluxo sonoro fixo mas um que engendra
outro ou ainda outros que fundem em um ocupando assim regiotildees ambiacuteguas entre
independecircncia paralelismo e fusatildeo Wishart ilustra esta ideia (Figura 21)
FIGURA 21 - DESENVOLVIMENTO DE UM FLUXO SEPARANDO EM OUTROS E CONVERGINDO NOshyVAMENTE
bdquobdquoo i-i ~ gt1
FONTE Extraiacutedo de Wishart (1996 p 27)
Um exemplo desta concepccedilatildeo na muacutesica mista pode ser observado na peccedila Music fo r
Flute and ISPW (1994) de Cort Lippe Nas notas sobre a peccedila o compositor explica haver
pensado num continuum entre uma configuraccedilatildeo de duo e uma configuraccedilatildeo de solo-
extendido ldquoMusicalmente agraves vezes a parte do computador natildeo eacute separada da parte da flauta
mas serve mais para amplificar a flauta em muacuteltiplas dimensotildees e direccedilotildees enquanto no outro
extremo do continuum o computador tem sua proacutepria voz musical independenterdquo (LIPPE
traduccedilatildeo nossa84) De acordo com a tipologia que estamos empregando ora flauta e sons
eletroacuacutesticos constituem um uacutenico fluxo (solo-extendido) que decorre da fusatildeo entre eles
ora cada um desenvolve seu proacuteprio fluxo (duo) decorrente do contraste entre eles
Outro exemplo das nuances da separaccedilatildeo de fluxos distintos estaacute presente na peccedila
Kontakte (1958-1960) de Karlheinz Stockhausen Quando o compositor trata da
decomposiccedilatildeo do som o segundo dos seus quatro criteacuterios da muacutesica eletrocircnica
(STOCKHAUSEN 1989) demonstra que um som pode ser entendido como a soma de
componentes e que por meio de sua decomposiccedilatildeo estes componentes podem ser
desenvolvidos paralelamente85 Ele cita um trecho de Kontakte (aos 22 minutos
83 Original ldquo[] it was possible to conceive of a musical composition in which a single sound stream evolved possibly diverged into separate streams which might be separately articulated might reconverge and continue thus to the end of the piecerdquo
84 Original ldquoMusically the computer part is sometimes not separate from the flute part but serves rather to amplify the flute in multiple dimensions and directions while at the other extreme of the continuum the computer part has its own independent musical voicerdquo (LIPPE 1994)
85 Note o leitor que ldquocomponentesrdquo aqui tecircm outra acepccedilatildeo eles satildeo sonoros espectrais e natildeo paracircmetros como no modelo de Guigue (ver 32) e na apresentada recomposiccedilatildeo do som segundo Menezes Os componentes
77
aproximadamente) no qual acontece a decomposiccedilatildeo de um uacutenico som (ver Figura 22) O
compositor explica ldquoO som original eacute literalmente desintegrado nos seus seis componentes e
cada componente por sua vez eacute decomposto diante de nossos ouvidos nos seus ritmos
individuais de pulsosrdquo (p 97 traduccedilatildeo nossa86) A Figura 22 apresenta uma anaacutelise dos
pontos em que o fluxo inicial daacute origem a outros (marcados com um ciacuterculo) e tambeacutem de um
ponto em que haacute a fusatildeo de dois fluxos (marcado com um quadrado) ainda que este uacuteltimo
seja quase imperceptiacutevel devido agrave intensidade fraca dos dois fluxos
FIGURA 22 - DIVISAtildeO DE UM FLUXO EM OUTROS EM KONTAKTE (1958-60) DE STOCKHAUSEN
FONTE Extraiacutedo de Stockhausen (1966 p 25)
O compositor chama a atenccedilatildeo para o aspecto da percepccedilatildeo deste fenocircmeno ldquoE noacutes
vivemos exatamente a mesma transformaccedilatildeo que o som estaacute passando O som se divide em
seis e se noacutes queremos seguir todos os seis temos que nos tornar polifocircnicos seres
multicamadasrdquo (STOCKHAUSEN 1989 p 88 traduccedilatildeo nossa87) Apesar de o compositor
nesta abordagem de Stockhausen se aproximam sobretudo dos componentes da textura (31)86 Original The original sound is literally taken apart into its six components and each component in turn is
decomposing before our ears into its individual rhythm of pulses (STOCKHAUSEN 1989 p 97)87 Original ldquoAnd we live through exactly the same transformation that the sound is going through The sound
splits into six an if we want to follow all six we have to become polyphonic multilayered beignsrdquo (STOCKHAUSEN 1989 p 88)
falar em camadas podemos perceber o caraacuteter ldquoliacutequidordquo e por isso mais relacionado agrave ideia
de fluxo do seu procedimento trata-se de uma manipulaccedilatildeo das caracteriacutesticas internas dos
sons - dos seus componentes - e apresenta a dissoluccedilatildeo de um fluxo dando origem a outros
numa espeacutecie de ldquodivisatildeo de aacuteguasrdquo
Esta dissoluccedilatildeo eacute ainda mais dispersa quando observados os papeacuteis dos instrumentos
em relaccedilatildeo agrave parte eletrocircnica Por vezes haacute uma reafirmaccedilatildeo do mesmo fluxo por exemplo
tanto o percussionista quanto o pianista reiteram o trinado entre faacute e sol | presente na parte
eletrocircnica Entretanto por vezes os instrumentos apresentam desvios gestos que podem ser
agrupados em outro fluxo ou serem percebidos soltos Neste uacuteltimo caso de maneira
semelhante ao que acontece numa textura global (mencionada em 31) estes gestos natildeo satildeo
agrupados em fluxos
Em resumo os fluxos se estabelecem por uma estabilidade em suas caracteriacutesticas
espectro-morfoloacutegicas e se distinguem atraveacutes de diferenccedilas nestas caracteriacutesticas banda
espectral alturas timbre caracteriacutesticas gestuais localizaccedilatildeo espacial entre outras Na
muacutesica eletroacuacutestica mista natildeo haacute exclusivamente dois fluxos um instrumental e outro
eletroacuacutestico antes cada um destes meios pode apresentar muacuteltiplos fluxos como tambeacutem
podem compor juntos um uacutenico fluxo O eixo fusatildeo-contraste pode ser utilizado para observar
independecircncia e paralelismo entre fluxos distintos dando conta de regiotildees ambiacuteguas
343 Relaccedilatildeo entre fluxos distintos
A questatildeo subsequente e decorrente desta que cerca a constituiccedilatildeo e segregaccedilatildeo de
muacuteltiplos fluxos eacute aquela que busca identificar como estes fluxos se relacionam uns com os
outros As ideias de comportamento de Smalley (1997) contraponto de Wishart (1996) e
interaccedilatildeo gestual de Bachrataacute (2010) oferecem perspectivas importantes para esta abordagem
3431 Comportamento
Colocar sons distintos num mesmo contexto jaacute garante que algum tipo de relaccedilatildeo deva
existir entre eles Dennis Smalley usa o termo comportamento para discriminar tal relaccedilatildeo
78
entre espectro-morfologias88 Esta metaacutefora do comportamento tem por base a distinccedilatildeo de
Jean Jaques Nattiez (1990) entre referecircncias intriacutensecas e extriacutensecas da muacutesica (p 111-127)
As referecircncias intriacutensecas (intramusicais ou intermusicais) satildeo as que acontecem no acircmbito
de uma peccedila em particular (intra) ou em relaccedilatildeo a um universo musical mais amplo ao qual
ela pertence (inter) A observaccedilatildeo de um tema que volta a aparecer ao longo da peccedila eacute um
exemplo da muacutesica referenciando a si mesma (referecircncia intriacutenseca intramusical) Por outro
lado as referecircncias extriacutensecas estatildeo relacionadas a uma seacuterie de experiecircncias externas ao
contexto da muacutesica De acordo com Smalley (1997) as referecircncias comportamentais satildeo
extriacutensecas Isso significa que na experiecircncia da escuta associamos as relaccedilotildees percebidas
entre os sons com outras experiecircncias vividas Eacute isto que acontece por exemplo quando a
teoria musical usa metaacuteforas como a de ldquopergunta e respostardquo para descrever relaccedilotildees
musicais ou quando usa a metaacutefora do ldquosujeito e contra-sujeitordquo para descrever as relaccedilotildees
entre vozes na fuga Natildeo apenas na anaacutelise mas antes no processo composicional estas
metaacuteforas podem surgir A peccedila de Charles Ives The Unanswered Question (1908) apresenta
as referecircncias de pergunta e resposta no proacuteprio tiacutetulo
A muacutesica eletroacuacutestica devido agraves diversas possibilidades de conteuacutedo (sonoro) e
movimento das espectromorfologias apresenta um grande e variaacutevel repositoacuterio de
referecircncias extriacutensecas E se na muacutesica acusmaacutetica89 estas relaccedilotildees de comportamento satildeo
percebidas em relaccedilatildeo agraves espectromorfologias apenas na muacutesica mista elas satildeo percebidas
com uma forte influecircncia da relaccedilatildeo do performer visiacutevel e portador do gesto com a parte
acusmaacutetica (SMALLEY 1997 p 118) A accedilatildeo fiacutesica visual pode ser considerada uma
referecircncia extriacutenseca e pode estar associada agrave percepccedilatildeo de comportamentos sonoros
A perspectiva de referecircncias comportamentais extriacutensecas apresenta uma abertura de
interpretaccedilatildeo jaacute que determinado comportamento sonoro pode se referenciar a diferentes
experiecircncias vividas distintas para cada sujeito Esta abertura permite pensarmos em outras
referecircncias diferentes daquelas abstratas propostas por Smalley que possam enriquecer tanto
79
88 Espectromorfologia se refere ao desenvolvimento do espectro sonoro atraveacutes do tempo (SMALLEY 1997 p 207) Embora este termo englobe diferentes estruturas sonoras (gestos e texturas por exemplo) nesta pesquisa o foco estaacute sobre a relaccedilatildeo entre os fluxos sonoros Isto porque esta categoria favorece um pensamento global da peccedila natildeo voltado para localidades gestuais Os aspectos gestuais tambeacutem satildeo importantes e foram extensamente analisadas por Petra Bachrataacute (2010) trabalho que seraacute abordado em 3433 entretanto eles seratildeo aqui abordados em relaccedilatildeo aos fluxos sonoros conforme 34
89 Muacutesica acusmaacutetica eacute considerada aqui como aquela preacute-gravada e reproduzida atraveacutes de alto-falantes sem a presenccedila de um performer no palco (EMMERSON SMALLEY 2001)
80
a composiccedilatildeo quanto a anaacutelise Por exemplo ao tratarmos do fluxo visual abordaremos o
efeito ventriacuteloquo (35)
Tendo por base a ideia de que as referecircncias comportamentais satildeo extriacutensecas Smalley
(1997) apresenta sua metaacutefora numa tabela com termos que podem explicar os
comportamentos A apresentaccedilatildeo de Smalley parte de termos mais gerais para outros mais
especiacuteficos (respectivamente de cima para baixo no Quadro 2) Em termos gerais o
comportamento depende de duas oposiccedilotildees domiacuteniosubordinaccedilatildeo e conflitocoexistecircncia
QUADRO 2 - COMPORTAMENTO SEGUNDO SMALLEY
dominaccedilatildeosubordinaccedilatildeo conflitocoexi stecircnci a
igualdade - desigualdade
reaccedilatildeo - interaccedilatildeo - reciprocidade
atividade - passividade
atividade - inatividade
estabilidade - instabilidade
modos de relacionamento
coordenaccedilatildeo de movimento
(sincronizaccedilatildeo vertical)
frouxa mdash justa
(percepccedilatildeo de proximidade concordada)
passagem de movimento
(dimensatildeohorizontal)
voluntaacuteria - pressionada
(trajetoacuteria de energia e movimento)
i
causalidade
FONTE traduzido e adaptado de Smalley (1997)
O eixo domiacuteniosubordinaccedilatildeo estaacute relacionado agraves (des)igualdades entre as
espectromorfologias Smalley (2008 p 11) associa a este eixo trecircs maneiras interconectadas
de entender a ideia de primeiro plano (foreground) e plano de fundo (background) espectro-
morfologicamente espacialmente e indicativamente
A primeira se refere agraves caracteriacutesticas espectro-morfoloacutegicas que nos permitem
identificar o domiacutenio de uma espectro-morfologia sobre outra O autor cita forma dinacircmica
mudanccedilas na riqueza espectral rapidez do movimento espectral taxa de deslocamento
espacial entre outras como exemplos de caracteriacutesticas que podem manifestar o domiacutenio e
subordinaccedilatildeo entre espectro-morfologias Ele oferece ldquoum exemplo simples e oacutebviordquo
ldquomorfologias de impacto-ataque brilhantes e presentes superpostas a uma morfologia
81
sustentada relativamente distante e espectralmente inativardquo (SMALLEY 2008 p 11)
A segunda maneira de abordar a ideia de primeiro plano e plano de fundo -
espacialmente - estaacute relacionada sobretudo aos eixos proximidadedistacircncia e
mobilidadeimobilidade Uma espectro-morfologia pode dominar sobre outra por estar mais
proacutexima ou ser mais moacutevel A proximidadedistacircncia estaacute relacionada ao uso de
processamentos como reverberaccedilatildeo filtros e uso de sistema surround e pode ser uma
caracteriacutestica de diferenciaccedilatildeo de fluxos Este aspecto estaacute relacionado agrave composiccedilatildeo espacial
de muacuteltiplas camadas apontada por Stockhausen (2009)
ldquoConstruir profundidade espacial por sobreposiccedilatildeo de camadas nos permite compor perspectivas em som de muito perto a muito longe anaacutelogas ao modo como compomos camadas de melodia e harmonia no plano bidimensional da muacutesica tradicionalrdquo (STOCKHAUSEN 2009 p89)
Assim uma espectro-morfologia pode dominar sobre outra devido a este aspecto
espacial
A terceira maneira de abordar a ideia de primeiro plano e plano de fundo -
indicativamente - se refere ao impacto indicativo de um som Quando o som se refere
diretamente ou indica experiecircncias do mundo natildeo sonoro ele tende a dominar sobre outro
cuja referecircncia natildeo seja tatildeo direta Os sons da fala humana normalmente dominaratildeo sobre
outras espectro-morfologias Sons cuja fonte eacute reconhecida tambeacutem dominaratildeo sobre aqueles
de fonte natildeo reconhecida
O eixo conflitocoexistecircncia se refere agraves relaccedilotildees temporais do comportamento
Conflito indica uma tendecircncia competitiva entre os sons enquanto que a coexistecircncia indica
uma reciprocidade e confluecircncia Se os sons satildeo idecircnticos ou da mesma famiacutelia ainda que
haja assincronia e descontinuidade podemos percebecirc-los em um comportamento consensual
Para que haja conflito eacute preciso que haja ldquocontrastes simultacircneos ou sucessivos de
espectromorfologia cujas forma dinacircmica e atividade temporal reflitam um poderoso
deslocamentordquo (SMALLEY 2008 p 11) Ainda assim no caso em que este comportamento
conflitante estabelece um ldquomodus vivendi quase permanenterdquo eacute possiacutevel o perceber como
coexistente Isto eacute o comportamento conflitante pode se tornar coexistente se permanecer por
tempo suficiente Haacute tambeacutem a possibilidade de uma textura apresentar um comportamento
conflitante internamente enquanto que de um ponto de vista mais global apresenta coerecircncia
devido a alguma caracteriacutestica como o deslocamento espacial por exemplo Neste caso ldquoo
82
conflito interno estaacute [] disparatado com a coerecircncia coletivardquo (SMALLEY 2008 p 11)
Tais oposiccedilotildees (dominaccedilatildeosubordinaccedilatildeo e conflitocoexistecircncia) representam a base
para uma seacuterie de modos de relacionamento igualdade - desigualdade reaccedilatildeo - interaccedilatildeo -
reciprocidade atividade - passividade atividade - inatividade e estabilidade -
instabilidade Estes modos de relacionamento satildeo articulados vertical e horizontalmente -
duas dimensotildees temporais interativas A dimensatildeo horizontal eacute concernente agrave passagem de
movimento isto eacute como os fluxos em nosso caso passam de um contexto para outro Isto
pode acontecer de maneira voluntaacuteria ou pressionada (SMALLEY 1997 p 118) A dimensatildeo
vertical eacute concernente agrave coordenaccedilatildeo de movimento isto eacute como sincronizam ou natildeo os
eventos de cada fluxo Esta dimensatildeo se apresenta num continuum entre liberdade de
coordenaccedilatildeo justa (tight) e frouxa (loose)
ldquo[] haacute uma distacircncia extrema entre uma muacutesica muito justa talvez rigidamente controlada pontual homorriacutetmica e minimalista e associaccedilotildees muito relaxadas e maleaacuteveis encontradas em algumas muacutesicas eletroacuacutesticasrdquo (SMALLEY 1997 p 118 traduccedilatildeo nossa90)
Quando um evento parece ser a causa do seguinte ou a causa de uma modificaccedilatildeo em
um evento concorrente eacute possiacutevel perceber uma relaccedilatildeo de causalidade De acordo com
Smalley a causalidade ldquoocupa-se mais com um som agindo sobre outro seja causando a
ocorrecircncia de um segundo evento seja instigando a mudanccedila em um som que jaacute se
desenrolavardquo (SMALLEY 2008 p 11) A causalidade eacute mais presumida do que propriamente
conhecida natildeo haacute como comprovar que haacute causalidade com base no que vemos ou
experimentamos Mas presumimos esta causalidade porque os sons estatildeo temporalmente
proacuteximos O autor ainda aponta que ldquose o segundo evento responde espectro-
morfologicamente agrave interferecircncia ou ao impacto do primeiro evento a relaccedilatildeo causal seraacute
percebida ainda mais fortementerdquo (SMALLEY 2008 p 11)
Music fo r Flute and ISPW (1994) de Cort Lippe pode ser analisada a partir desta
perspectiva Na primeira seccedilatildeo da peccedila eacute possiacutevel observar dois fluxos que se intercalam na
parte da flauta Um eacute mais contiacutenuo e em dinacircmica piano o outro consiste em fortes ataques
que interrompem a continuidade do primeiro Neste caso o fator maior de diferenciaccedilatildeo dos
dois fluxos eacute a presenccedila dos sons eletroacuacutesticos Enquanto um fluxo eacute apenas instrumental o
90 Original ldquo[] there is an extreme distance between a very tight perhaps rigidly controlled punctual homorhythmic minimal music and the very relaxed malleable associations found in some electroacoustic musicrdquo (SMALLEY 1997 p 118)
83
outro eacute composto pela soma dos dois O fluxo forte eacute sincronizado com a parte do computador
e juntos formam um uacutenico fluxo Os dois fluxos piano e forte apresentam uma coordenaccedilatildeo
de movimento justa na dimensatildeo vertical e se intercalam subitamente numa passagem de
movimento pressionada mas natildeo parece haver relaccedilatildeo de causalidade entre eles Tambeacutem eacute
possiacutevel observar que o fluxo forte estabelece uma instabilidade sobre o fluxo piano mais
estaacutevel (modo de relacionamento) A relaccedilatildeo entre eles neste momento eacute de conflito
A oposiccedilatildeo dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo natildeo se apresenta muito claramente Poderiacuteamos
pensar que o forte domina o fraco por causa da maior intensidade entretanto se
considerarmos sua distribuiccedilatildeo no tempo poderiacuteamos dizer que o fraco domina pois sua
duraccedilatildeo eacute maior ele tecircm predominacircncia temporal Esta incerteza analiacutetica pode manifestar
uma ambiguidade musical mas tambeacutem aponta para um fator pouco contemplado na tabela de
Smalley o desenvolvimento das relaccedilotildees no tempo Isto porque conforme a muacutesica se
desenvolve percebemos que o fluxo forte comeccedila a preponderar e domina sobre o piano
(subordinado)
84
3432 Contraponto
O que estamos sugerindo agora eacute que o fluxo em evoluccedilatildeo [evolving stream] pode ser articulado gestualmente e podemos coordenar (ou natildeo) os gestos entre as vaacuterias partes de modo a criar uma estrutura contrapontiacutestica viaacutevel91 (WISHART 1996 p 117)
A partir do paradigma do continuum sonoro e atraveacutes do gesto (ver 331 e 332)
Wishart desenvolve sua teoria de contraponto Para o autor natildeo eacute suficiente apenas um
nuacutemero de fluxos sonoros Devemos perceber que haacute uma relaccedilatildeo de um com o outro ou que
eles interagem de alguma maneira durante o curso de do seu desenvolvimento individual No
contraponto baseado na rede isso envolve o ldquoir e virrdquo da coordenaccedilatildeo riacutetmica e da
consonacircncia harmocircnica na relaccedilatildeo entre as partes
Para se atingir uma estrutura contrapontiacutestica Wishart argumenta ser necessaacuterio dois
princiacutepios (1) um princiacutepio arquitetural que oferece pontos de referecircncia na progressatildeo
global do material musical Na muacutesica tonal isso corresponde agrave estrutura das tonalidades (o
retorno agrave tocircnica por exemplo eacute normalmente um marco) No continuum este princiacutepio
arquitetural seraacute o conceito de transformaccedilatildeo de uma aacuterea tiacutembrica ou sonoro-morfoloacutegica
em outra Podemos nos lembrar da fala de Varegravese ldquoO papel da cor ou timbre seraacute
completamente modificado [] ele se tornaraacute um agente de delineamento como as diferentes
cores num mapa separando diferentes aacutereas e uma parte integral da formardquo (VARESE apud
SIMMS 1996 p 112)
(2) Uma estrutura contrapontiacutestica tambeacutem precisa ter um princiacutepio dinacircmico que
determina a natureza do movimento No contraponto tonal isto estaacute relacionado ao ldquoir e virrdquo
(ebb and flow ) da coordenaccedilatildeo riacutetmica e ao ldquoir e virrdquo da consonacircncia-dissonacircncia harmocircnica
ou seja estaacute relacionado agrave maneira em que as notas numa parte individual estatildeo colocadas em
relaccedilatildeo agrave notas em outras partes No contraponto no continuum no lugar da consonacircncia-
dissonacircncia na progressatildeo harmocircnica Wishart propotildee a ideia de evoluccedilatildeo gestual e a
interaccedilatildeo entre os fluxos distintos
Estas duas dimensotildees (1 e 2) devem ser independentes uma da outra de acordo com o
autor O princiacutepio dinacircmico natildeo pode ser implicado pelo arquitetural satildeo dimensotildees
separadas
91 ldquoWhat we are now suggesting is that the evolving stream may be gesturally articulated and we may coordinate (or not) the gestures between the various parts in such a way as to create a viable contrapuntal structurerdquo (WISHART 1996 p 117)
O princiacutepio dinacircmico pode ser observado horizontalmente e verticalmente
Horizontalmente a sequecircncia de gestos numa linha particular seraacute determinada pela coerecircncia
expressiva (ou ausecircncia dela) nesta linha Isso determinaraacute
a) O tipo de gesto usado
b) A sequecircncia individual dos gestos
c) A meacutedia da atividade gestual
Na dimensatildeo vertical um paracircmetro importante eacute a taxa global de ocorrecircncia dos
gestos nas diferentes partes Evidentemente devido a nossa percepccedilatildeo se forem dois gestos
simultacircneos eles podem ser contados como um Ainda podemos considerar dentro de um
periacuteodo de tempo da peccedila
a) se os gestos nas diferentes partes satildeo similares (homogecircneos) ou se satildeo heterogecircneos
b) se os gestos parecem interagir uns com os outros ou se se comportam independentes
uns dos outros
A partir destas caracteriacutesticas (a e b) se estabelecem seis arqueacutetipos para a organizaccedilatildeo
vertical dos gestos
1) Paralelo (natildeo tem a ver com caracteriacutestica espectral estamos falando de estrutura
gestual)
2) Semi-paralelo as partes seguem a mesma loacutegica gestual mas natildeo sincronicamente
3) Independecircncia homogecircnea as partes se comportam independentemente
4) Independecircncia heterogecircnea quando os gestos satildeo heterogecircneos tambeacutem podem ser
independentes
5) Interativo especialmente relacionado agrave ligaccedilotildees causais ou imitativas entre as partes
6) De gatilho (triggering) quando um gesto de uma parte parece iniciar um evento ou
uma mudanccedila em uma outra parte de maneira minimamente clara
85
86
QUADRO 3 - ORGANIZACcedilAtildeO VERTICAL DOS GESTOS EM RELACcedilAtildeO AO PRINCIacutePIO DINAcircMICO
independente independecircncia independecircncia
Icircsemi-
paralelismointeraccedilatildeo
interativo paralelismo gatilho
similar
(homogecircneo) -dissimilar
(heterogecircneo)
FONTE Wishart (1996 p 26)
Wishart conclui que com esta ferramenta teoacuterica em sua experiecircncia
ldquo[] foi possiacutevel esquematizar a estrutura da densidade geral dos eventos na partitura e entatildeo compor a estrutura gestual de uma seccedilatildeo usando siacutembolos elementares [] e assim trabalhando a partir do plano global de timbre e desenvolvimento articulatoacuterio colocar na partitura [score] nos detalhes de cada evento sonoro individual em cada vozrdquo (WISHART 1996 p 123 traduccedilatildeo nossa92)
Finalmente eacute relevante salientar que apesar de Wishart ter desenvolvido estas ideias a
partir da experiecircncia de notaccedilatildeo de objetos sonoros complexos ele afirma que a validaccedilatildeo
uacuteltima de qualquer procedimento musical deve ser feita atraveacutes da natildeo-mediada e natildeo
prejudicial experiecircncia de escuta ldquoUma loacutegica baseada em escutar e trabalhar com os
materiais acuacutesticos [] eacute necessaacuteria quando abordamos o multi-dimensional continuum
aberto pelo aacuteudio (Sonic) digitalrdquo (WISHART 1996 p 126 traduccedilatildeo nossa93)
3433 Interaccedilatildeo gestual
Petra Bachrataacute (2010) investiga em sua tese o tema da interaccedilatildeo gestual A autora
percorre diferentes concepccedilotildees do gesto musical para evidenciar relaccedilotildees gestuais entre sons
instrumentais e eletroacuacutesticos gesto como movimento gesto como significado ( meaning)
92 Original ldquoIt was possible to lay out the structure of the overall density of events on the score then compose the gestural structure of a section using elementary symbols [] and then working from the overall plan of timbral and articulatory development score in the details of the individual sound-events in each voicerdquo (WISHART 1996 p 123)
93 Original ldquoA rationale based on listening to and working with acoustic materials [ ] will be needed when we approach the multi-dimensional continuum opened up by digital sonicsrdquo (WISHART 1996 p 126)
87
gesto como trajetoacuteria energia-movimento gesto como articulaccedilatildeo do continuum gesto e
unidades semioacuteticas temporais gesto e figura gesto e energia e finalmente gesto e notaccedilatildeo
A partir desta fundamentaccedilatildeo teoacuterica ela identifica descreve e classifica relacionamentos
gestuais interativos definindo modelos Todos os modelos de interaccedilatildeo gestual satildeo
identificados no repertoacuterio incluindo as peccedilas da proacutepria autora O primeiro grupo de
modelos se refere agrave interaccedilatildeo gestual baseada em aspectos elementares alturafrequecircncia
organizaccedilatildeo temporal envelope de intensidade e caracteriacutesticas tiacutembricas O segundo eacute
baseado no modelo tripartite de estrutura de um som (onset-continuant-termination) O
terceiro estaacute fundamentado na teoria de Wishart (1996) de contraponto O quarto se refere agrave
interaccedilatildeo gestual baseada em caracteriacutesticas espectro-morfoloacutegicas e semacircnticas de direccedilatildeo e
energia Finalmente a autora apresenta modelos espaciais de interaccedilatildeo gestual Anexo a esta
dissertaccedilatildeo estaacute a traduccedilatildeo do apecircndice de seu trabalho (ver Anexo 1) onde sintetiza os
modelos de interaccedilatildeo Natildeo estaacute no escopo de nosso trabalho fazer um detalhamento destes
modelos Em lugar disso intentamos demonstrar a compatibilidade desta abordagem com
aquela que estamos construindo ao redor da ideia de fluxos sonoros
Bacharataacute menciona a concepccedilatildeo de fluxo (stream) quando trata da interaccedilatildeo gestual
baseada em organizaccedilatildeo temporal Isto porque nesta categoria eacute um grupo de gestos que se
relaciona com outro grupo de gestos resultando num modo de interaccedilatildeo como o sincopado o
polirriacutetmico entre outros Natildeo seria possiacutevel por exemplo identificar polirritmia observando
apenas dois eventos Nesta necessidade de observar o agrupamento dos gestos Bachrataacute
aponta para a teoria de Bregman (1990) de fluxos auditivos A ldquointeraccedilatildeo por agrupamento
texturalrdquo apresenta uma relaccedilatildeo mais estreita com esta concepccedilatildeo ldquoInteraccedilatildeo por
agrupamento textural - interaccedilatildeo de padrotildees gestuais de duraccedilatildeoritmos aleatoacuterios ou
irregulares os quais ocorrem em diferentes camadas de sons - fluxos auditivosrdquo
(BACHRATAacute 2010 p 157 traduccedilatildeo nossa94)
O objetivo de sua pesquisa diga-se alcanccedilado minuciosamente era ldquo[] analisar
diferente tipos de relaccedilotildees interativas entre gestos musicais nas muacutesicas escritas para
instrumentos e sons eletroacuacutesticos a fim de estabelecer modelos especiacuteficos de interaccedilatildeo
[]rdquo (BACHRATAacute 2010 p 15 traduccedilatildeo nossa95) Natildeo se trata assim de entender estas
interaccedilotildees entre gestos na relaccedilatildeo com o contexto nem de observar o desenvolvimento desta
94 Original ldquoInteraction by textural grouping - interaction of irregular or random rhythmsdurational gestural patterns which occur in different layers of sounds - auditory streamsrdquo (BACHRATAacute 2010 p 157)
95 Original ldquo[] to analyze different kinds of interactive relationships between musical gestures in music written for instruments and electroacoustic sounds in order to establish specific models of interaction []rdquo
88
interaccedilatildeo ao longo de uma peccedila por exemplo A estas questotildees por outro lado se direciona
nossa investigaccedilatildeo Na praacutetica estas interaccedilotildees gestuais acontecem em determinados
contextos e se desenvolvem no tempo assim todos os modelos estatildeo de certa forma inseridos
numa organizaccedilatildeo temporal
Desta maneira eacute possiacutevel ver complementariedade nas abordagens Os fluxos a que
estamos nos referindo podem ser e satildeo comumente constituiacutedos de gestos Citando novamente
Wishart ldquoo fluxo em evoluccedilatildeo [evolving stream] pode ser articulado gestualmenterdquo96
(WISHART 1996 p 117) Os gestos de um interagem com gestos de outros fluxos da
mesma forma que no contraponto uma voz eacute constituiacuteda por notas que interagem com outras
notas de outras vozes A interaccedilatildeo gestual estaacute num niacutevel mais concreto mais proacuteximo da
superfiacutecie sonora analisada enquanto que fluxo eacute uma categoria mais abstrata de anaacutelise
Bachrataacute natildeo deixa de notar que seus resultados tecircm se estendido na sua produccedilatildeo
para outras instrumentaccedilotildees
A aplicaccedilatildeo de relacionamentos gestuais interativos tecircm sido generalizada natildeo apenas agraves minhas peccedilas que usam instrumentos e sons eletroacuacutesticos em combinaccedilatildeo mas tambeacutem a uma obra puramente eletroacuacutestica (acusmaacutetica) e peccedilas instrumentais sem eletrocircnicos (BACHRATAacute 2010 p 16 traduccedilatildeo nossa97)
Da mesma forma natildeo haacute propriedades intriacutensecas de um ou outro meio que impeccedilam
que estes modelos sejam aplicados em obras puramente instrumentais ou puramente
eletroacuacutesticas Esta caracteriacutestica extrapoladora dos resultados eacute recorrente em nossa leitura
As pesquisas que tecircm como tema a relaccedilatildeo instrumental-eletroacuacutestico no acircmbito sonoro-
morfoloacutegico acabam por encontrar relaccedilotildees que podem ser extrapoladas para uma relaccedilatildeo
instrumental-instrumental ou eletroacuacutestico-eletroacuacutestico Nossa leitura da Morfologia da
Interaccedilatildeo (MENEZES 2006 p 377-400) extrapolou fusatildeo e contraste para a aplicaccedilatildeo em
diferentes fluxos independentemente se instrumentais ou eletroacuacutesticos De modo
semelhante os modelos de interaccedilatildeo gestual de Bachrataacute podem ser aplicados aos diferentes
meios independentemente Isto eacute embora o iacutempeto inicial da pesquisa tenha sido investigar a
interaccedilatildeo entre sons instrumentais e eletroacuacutesticos especificamente os resultados
96 ldquoWhat we are now suggesting is that the evolving stream may be gesturally articulated and we may coordinate (or not) the gestures between the various parts in such a way as to create a viable contrapuntal structurerdquo (WISHART 1996 p 117)
97 Original ldquoThe application of interactive gestural relationships has been generalized not only to my works which use instrumental and electroacoustic sounds in combination but also to a pure electroacoustic (acousmatic) work and instrumental pieces without electronicsrdquo (BACHRATAacute 2010 p 16)
89
encontrados satildeo generalizaacuteveis Esta constataccedilatildeo sublinha a necessidade teoacuterica de uma
denominaccedilatildeo de uma terminologia para indicar os grupos de sons independentemente se
instrumentais eletroacuacutesticos ou uma mescla dos dois Fluxos vozes camadas ou planos satildeo
alternativas
35 O FLUXO VISUAL NA MUacuteSICA MISTA
No decorrer da pesquisa notamos que para a percepccedilatildeo da interaccedilatildeo era importante
considerar a visualidade da performance98 Embora para a escuta a distinccedilatildeo de mecanismo
de produccedilatildeo sonora acuacutestico-eletrocircnico natildeo seja tatildeo relevante (SOUZA 2010) ganha
importacircncia quando considerados os aspectos visuais da performance Isto porque as
vibraccedilotildees mecacircnicas nos instrumentos acuacutesticos satildeo produzidas por gestos fiacutesicos de um
performer (bater pinccedilar friccionar etc) e o som depende da relaccedilatildeo deste gesto fiacutesico com o
instrumento Por outro lado os sons produzidos nos circuitos eletrocircnicos podem ser
controlados de diferentes maneiras (potenciocircmetros mouse por algoritmos generativos etc)
e o som pode estar mais ou menos relacionado a este controle ou ainda natildeo haver controle
em tempo real consideraacutevel Neste sentido natildeo se trata apenas de uma questatildeo visual mas
estaacute em jogo um aprendizado das relaccedilotildees de accedilatildeo e resposta dos instrumentos Schrader
(1991) explica como essas relaccedilotildees satildeo apreendidas nos instrumentos acuacutesticos
A performance tradicional de muacutesica com instrumentos acuacutesticos tem se desenvolvido como uma extensatildeo da percepccedilatildeo de accedilatildeoresposta A accedilatildeo eacute percebida como visual e fiacutesica e a resposta que a acompanha eacute aural Assim algueacutem aprende que quando o percussionista bate no tiacutempano com uma baqueta resultaraacute num certo som A arte de ldquotocarrdquo um instrumento eacute aquela de criar uma seacuterie de associaccedilotildees significativas de accedilatildeoresposta O que eacute significativo eacute aprendido pela experiecircncia e os significados de uma performance instrumental acuacutestica satildeo geralmente apreendidos pelas pessoas num primeiro estaacutegio atraveacutes da experiecircncia de performances ao vivo ou filmadas (SCHRADER 1991 p 91-92 traduccedilatildeo nossa99)
98 O aspecto visual tem tambeacutem uma importacircncia para a percepccedilatildeo de processos tecnoloacutegicos envolvidos na performance O espectador-ouvinte pode inferir que accedilatildeo (visual) do performer estaacute controlando determinado som sintetizado por exemplo Embora possa haver convergecircncias este natildeo eacute o caso de nossa abordagem Estamos interessados em como o aspecto visual se relaciona com o sonoro independentemente do tipo de interaccedilatildeo tecnoloacutegica presente
99 Original ldquoThe traditional performance of music on acoustical instruments has developed as an extension of actionresponse perception The action is perceived as visual and physical and the accompanimental response is aural Thus one learns that when the percussionist strikes the tympana with a stick a certain sound will result The art of playing an instrument is that of creating a series of meaningful actionresponse associations What is meaningful is learned by experience and the meanings of acoustical instrumental performance are generally acquired by people at a very early stage through experiencing live filmed or videotaped performancesrdquo (SCHRADER 1991 p 91-92)
90
De acordo com o autor estes mecanismos de accedilatildeoresposta presentes nos instrumentos
acuacutesticos podem ser aparentes como no caso do violino ou implicados como no caso do
piano Assim poderiacuteamos ilustrar o modelo de instrumentos acuacutesticos da seguinte maneira
FIGURA 24 - MODELO DE ACcedilAtildeO-RESPOSTA DOS INSTRUMENTOS ACUacuteSTICOS
Accedilatildeo fiacutesica e visual Instrumento
FONTE o autor (2019)
Resposta aural
Na muacutesica que une instrumentos acuacutesticos com recursos eletroacuacutesticos esta
correspondecircncia newtoniana de accedilatildeo e reaccedilatildeo eacute modificada Haacute uma parte da experiecircncia
aural que natildeo eacute efeito da accedilatildeo fiacutesica e visual Essa situaccedilatildeo coloca o ouvinte-espectador numa
posiccedilatildeo de atentar para as relaccedilotildees entre accedilatildeo visual e resposta aural que podem ser
diferentes daquelas a que estaacute acostumado e que tambeacutem podem ser instaacuteveis Assim para a
muacutesica mista eacute possiacutevel esboccedilar um modelo diferente (Figura 25)
FIGURA 25 - POSSIacuteVEIS RELACcedilOtildeES CONFUSAS NA PERCEPCcedilAtildeO DE ACcedilAtildeO-RESPOSTA NO CONshyTEXTO DA MUacuteSICA MISTA
FONTE o autor (2019)
O que designei accedilatildeo invisiacutevel na figura acima se explica pelo processo de
referenciaccedilatildeo espectro-morfoloacutegica (spectromorphological referral process) da teoria de
Smalley (1997) ldquoQuando ouvimos espectromorfologias noacutes detectamos a humanidade por
traacutes delas ao deduzir atividade gestual referindo-nos atraveacutes do gesto agrave experiecircncia fisioloacutegica
e proprioceptiva em geralrdquo (p 111)100 A seta a) na figura 25 indica a possibilidade de
percebermos um som eletroacuacutestico como se tivesse sido produzido pela accedilatildeo fiacutesica e visual
do performer no instrumento A seta b) indica a possibilidade de percebermos que a resposta
100Traduccedilatildeo do autor Original ldquoWhen we hear spectromorphologies we detect the humanity behind them by deducing gestural activity referring back through gesture to proprioceptive and psychological experience in generalrdquo (SMALLEY 1997 p 111)
91
aural eletroacuacutestica parece uma variaccedilatildeo da resposta aural instrumental relaccedilatildeo comum no
emprego de processamentos do som ao vivo O quadrado gradiente indica que na percepccedilatildeo
da resposta aural natildeo eacute sempre possiacutevel uma clara distinccedilatildeo entre os meios conforme
demonstrado no subcapiacutetulo 34 A ilustraccedilatildeo apresenta apenas estas duas relaccedilotildees deixando
em aberto a possibilidade de outras
No artigo Muacutesica Eletroacuacutestica possibilidades esteacuteticas e escuta Cristina Dignart
aponta que esta situaccedilatildeo implica novos paradigmas de escuta musical ldquoO movimento gestual
instrumental sobre os sons permite um agenciamento atento ou intencional de certas
qualidades sonoras com a possibilidade de descobertas e surpresas de sonoridadesrdquo
(DIGNART 2010 p 63) Segundo a autora haacute uma ldquoreinterpretaccedilatildeo da escuta atrelada ao
gestordquo
Esta situaccedilatildeo remete agrave relaccedilatildeo interativa entre ouvinte e sons que propotildee Smalley
Segundo este autor a relaccedilatildeo interativa envolve
[] uma relaccedilatildeo ativa da parte do sujeito em explorar continuamente as qualidades e a estrutura do objeto Neste sentido pode ser vista como interativa Nenhuma expectativa preacute-formada eacute buscada pelo ouvinte A relaccedilatildeo interativa engloba a audiccedilatildeo estrutural as atitudes esteacuteticas em relaccedilatildeo agrave muacutesica e aos sons e o conceito de Schaeffer de audiccedilatildeo reduzida Eacute possiacutevel ter uma relaccedilatildeo interativa com qualquer som ainda que naturalmente alguns sons seratildeo mais frutiacuteferos do que outros (SMALLEY 2008 p 6)
Embora esta perspectiva esteja associada apenas com o som eacute possiacutevel considerar que
tal postura seja possiacutevel tambeacutem diante da relaccedilatildeo entre accedilatildeo visual e resposta aural Isto eacute o
ouvinte-espectador pode assumir uma relaccedilatildeo interativa101 natildeo apenas com os sons mas com a
performance como um todo incluindo seu aspecto fiacutesico e visual Esta postura interativa eacute
especialmente demandada desta performance que desafia o modelo de accedilatildeoresposta dos
instrumentos acuacutesticos
Tal situaccedilatildeo do ouvinte-espectador estaacute diretamente relacionada ao mencionado estado
de duacutevida (MENEZES 2006) Ao referir-se agraves suas proacuteprias realizaccedilotildees mistas Menezes
expressa
o ouvinte recai em constantes duacutevidas acerca da natureza daquilo que ouve se adveacutem do instrumento ou da emissatildeo eletroacuacutestica se se opera ao vivo uma dinamizaccedilatildeo espacial harmocircnica tiacutembrica e temporal da escritura instrumental ou
101Observe o leitor que o termo interaccedilatildeo aqui se aplica a outra relaccedilatildeo diferente daquelas diferenciadas no capiacutetulo 2 Esta relaccedilatildeo se aproxima das discussotildees sobre participaccedilatildeo do ldquoespectadorrdquo na arte em geral
92
se estaacute defronte de estruturas preacute-elaboradas em estuacutedio constituiacutedas a partir dos proacuteprios instrumentos ou a estes timbricamente correlatas (MENEZES apud MENEZES 2006 p 386)
Novamente o estado de duacutevida nesta citaccedilatildeo estaacute mais relacionado aos aspectos
sonoros poreacutem eacute evidente que podemos consideraacute-lo tambeacutem na relaccedilatildeo entre accedilatildeo visual e
resposta aural Isto porque a duacutevida em relaccedilatildeo a proveniecircncia do som pode se acentuar ou se
extinguir de acordo com o respaldo visual E ainda eacute possiacutevel que haja outros estados como o
engano por exemplo
O efeito McGurk eacute uma curiosidade sobre a percepccedilatildeo da fala que pode ilustrar o caso
do engano
O efeito McGurk ocorre quando o sinal visual de um fonema eacute dublado com um sinal acuacutestico de um fonema diferente Com pares audiovisuais especiacuteficos os observadores natildeo notam o conflito intermodal e frequentemente experienciam (ie ouvem) um fonema que natildeo corresponde ao verdadeiro sinal auditoacuterio (ALSIUS et al 2017 p 2 traduccedilatildeo nossa102)
Por exemplo se a imagem era a de algueacutem falando ldquobardquo mas dublado com o som desta
pessoa falando ldquogardquo os ouvintes poderiam ouvir ldquobardquo ou mesmo ldquobgardquo103 Natildeo eacute papel desta
pesquisa investigar o quanto tal efeito pode acontecer em relaccedilatildeo a outros tipos de percepccedilatildeo
sonora entretanto este exemplo aponta para a influecircncia que o estiacutemulo visual tem sobre a
escuta
A peccedila Three voices (1982) de Morton Feldman serve como um exemplo Esta peccedila
escrita para Joan La Barbara eacute concebida como um trio para uma voz - duas partes satildeo preacute-
gravadas (pela mesma inteacuterprete) e uma executada ao vivo As vozes apresentam materiais
semelhantes Quando acontece de coincidir ataques de uma voz preacute-gravada com a da
performance ao vivo haacute a fusatildeo104 Natildeo se trata apenas da fusatildeo de dois ou trecircs fluxos
sonoros mas da fusatildeo destes com o que denominei fluxo visual Em cerca de 7 minutos a
peccedila apresenta um momento de sincronia entre as trecircs vozes em que eacute possiacutevel observar tal
fusatildeo105 A Figura 26 apresenta a partitura referente a esta parte
102Original ldquoThe McGurk effect occurs when the visual signal of one phoneme is dubbed onto the acoustic signal of a different phoneme With specific audiovisual pairs the observers do not notice intermodal conflict and often experience (ie hear) a phoneme that does not match the actual auditory signalrdquo (ALSIUS et al 2017 p 2)
103Buscando por ldquoMcGurk effectrdquo o leitor encontraraacute viacutedeos demonstrando este efeito na internet104A fusatildeo natildeo acontece apenas pela sincronia mas por se tratarem do mesmo timbre de voz ou seja haacute
transferecircncia espectral105Confira a performance de Charlotte Mundy disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatch
v=eXGnS7bqJ8ogt Acesso em 17 jan 2019
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FIGURA 26 - FUSAO EM THREE VOICES (1982) DE MORTON FELDMAN (COMPASSOS 15 A 18 DA PARTE B)
Voice 1
Voice 2
Voice 3
mdashJmdash mdash ampmdash M mdashB r i
=-mdashsHivl
ei
ampL = uacute
mdash 1gtJsect j j
H u mdash laquoL
bull bull IG -------amp - W ----G
mdash bull bull------
e) a ei ei
bull
t
1
t
FONTE transcrito de Feldman (compositor) (1982)
Eacute importante notar o efeito desta fusatildeo natildeo apenas na escuta mas na experiecircncia da
performance que eacute tambeacutem vista uma impressatildeo possiacutevel eacute de que a cantora estaacute produzindo
as trecircs vozes ao vivo A relaccedilatildeo entre accedilatildeo da performer e resposta aural eacute instaacutevel nesta peccedila
Por vezes pode-se perceber a relaccedilatildeo convencional movimento corporal (boca respiraccedilatildeo
etc) agindo para produzir um som vocal No entanto quando o mesmo movimento parece
produzir trecircs sons vocais haacute uma reinterpretaccedilatildeo desta relaccedilatildeo
Truax (2005) aborda a questatildeo do visual na muacutesica eletroacuacutestica e questiona sobre a
influecircncia em questatildeo
No entanto mesmo dentro do mundo da muacutesica eletroacuacutestica estamos realmente livres da influecircncia visual Falamos de formas sonoras ou espectromorfologia (Smalley) e imagens sonoras (Wishart) O timbre eacute frequentemente descrito em termos visuais ou taacuteteis e talvez mais sutilmente muitas vezes nos referimos ao ldquoespaccedilo acuacutesticordquo mais por referecircncia ao espaccedilo visual do que a uma experiecircncia aural um tanto mais elusiva daquele espaccedilo Pode-se argumentar que tais referecircncias a formas imagens e espaccedilos natildeo precisam ser entendidas como visualmente tingidas mas na praacutetica acho que elas geralmente satildeo No entanto a neuropsicologia contemporacircnea em seu estudo do comportamento cerebral fornece evidecircncia de que todos os centros perceptivos estatildeo inter-relacionados e embora os fenocircmenos puramente auditivos possam ser localizados no coacutertex auditivo conexotildees estatildeo sempre sendo feitas a outros centros (TRUAX 2005 traduccedilatildeo nossa106)
Tendo distinguido este fluxo visual na performance mista e apontado o tipo e a
importacircncia de sua relaccedilatildeo com os fluxos sonoros interessa para esta pesquisa questionar qual
o potencial analiacutetico e composicional destes conceitos No caso da anaacutelise cabe ao analista
106Original ldquoYet even within the electroacoustic music world are we truly free of the visual influence We speak of sound shapes or spectromorphology (Smalley) and sound images (Wishart) Timbre is often described in visual or tactile terms and perhaps most subtly we often refer to acoustic space more by reference to visual space than to the somewhat more elusive aural experience of that space One could argue that such references to shapes images and spaces need not be understood as visually tinged but in practice I think they often are However contemporary neuropsychology in its study of brain behaviour provides evidence that all of the perceptive centres are inter-related and even though purely auditory phenomena can be localized to the auditory cortex connections are always being made to other centresrdquo (TRUAX 2005)
94
identificar a importacircncia deste fluxo numa experiecircncia de performance para decidir consideraacute-
lo ou natildeo Para o compositor uma opccedilatildeo eacute considerar este fluxo visual apenas como um fato
inerente agrave performance de muacutesica mista ou seja ainda que esteja consciente de tal fato natildeo o
utiliza como elemento estrutural em sua composiccedilatildeo Outra opccedilatildeo eacute pensaacute-lo como um
paracircmetro estrutural com potencial de ser trabalhado criativamente composto
Esta situaccedilatildeo de performance de relaccedilotildees variaacuteveis de accedilatildeo visual e resposta aural foi
explorada criativamente por alguns compositores A peccedila Aphasia (2009) para vocalista ou
ator (usando liacutengua de sinais) com tape de Mark Applebaum explora as possibilidades destas
relaccedilotildees107 A Figura 27 apresenta um trecho da partitura
Eacute possiacutevel perceber um paradigma de dependecircncia entre os fluxos visual e sonoro um
gesto estaacute sempre associado a um som como explica o compositor
O tape uma explosatildeo idiossincraacutetica de sons deformados e mutilados eacute composto exclusivamente de amostras vocais - todas cantadas por Isherwood e subsequentemente transformadas digitalmente Contra o pano de fundo desta narrativa de aacuteudio o cantor performa um elaborado conjunto de gestos de matildeo uma linguagem de sinais assiduamente coreografada Cada gesto eacute cuidadosamente sincronizado com o tape numa justa coordenaccedilatildeo riacutetmica (APPELBAUM traduccedilatildeo nossa108)
Podemos inferir que estes conceitos (relaccedilatildeo entre accedilatildeo visual e resposta aural fluxo
sonoro e visual) natildeo se apliquem apenas agrave performance de muacutesica mista mas tambeacutem a
107Confira a performance do proacuteprio compositor disponiacutevel em lthttpwebstanfordedu~applemkportfolio- works-aphasiahtmlgt
108Original ldquoThe tape an idiosyncratic explosion of warped and mangled sounds is made up exclusively of vocal samplesmdashall sung by Isherwood and subsequently transformed digitally Against the backdrop of this audio narrative the singer performs an elaborate set of hand gestures an assiduously choreographed sign language of sorts Each gesture is fastidiously synchronized to the tape in tight rhythmic coordinationrdquo (APPELBAUM)
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outros gecircneros que fazem uso de som em conjunto com imagem (viacutedeo-arte performance
teatro baleacute etc) Barry Truax comenta seu trabalho de mixed media em colaboraccedilatildeo com o
artista visual e compositor Theo Goldberg
Uma vez que Theo Goldberg tinha familiaridade tanto com artes visuais quanto com muacutesica e tinha pensado muito sobre sua possiacutevel correlaccedilatildeo (Goldberg amp Schrack1986) seu conselho a mim quando comeccedilou a colaboraccedilatildeo foi tratar os doiselementos como independentes ainda que derivados de uma ideia comum Tomei isso como significando que uma correlaccedilatildeo direta era desnecessaacuteria e que cada meio deveria se desenvolver de acordo com sua proacutepria loacutegica mas serem informados por uma ideia comum que era central ao trabalho O equiliacutebrio entre liberdade para cada meio mas coerecircncia entre eles sempre pareceu funcionar em cada colaboraccedilatildeo que empreendemos (TRUAX 2005 traduccedilatildeo nossa)109
Este paradigma pode ser descrito como independecircncia com coerecircncia Um paradigma
de relaccedilatildeo estaacutevel O argumento em questatildeo eacute de que ldquocada meio possui sua proacutepria loacutegicardquo e
por isso devem se manter independentes Entretanto podemos questionar se estes meios
realmente possuem loacutegicas distintas Para cada gecircnero (viacutedeo-arte cinema performance e
outros) teriacuteamos uma resposta e natildeo eacute nosso objetivo investigaacute-las precisamente Entretanto
podemos pontuar que mais do que inerecircncias dos meios o que eacute definitivo para tal
posicionamento relativo agrave relaccedilatildeo entre sonoro e visual eacute a decisatildeo esteacutetica do criador
Aphasia de Applebaum apresenta uma dependecircncia completa o trabalho de Truax e Goldberg
independecircncia com coerecircncia Aleacutem disso podemos pensar que este paradigma na relaccedilatildeo
entre sonoro e visual pode ser variaacutevel constituindo assim um paracircmetro passiacutevel de
transformaccedilotildees durante a peccedila Eacute o caso de Strange Autumn (2003-4) de Steven Kazuo
Takazugi que eacute analisada em 42
Em seu texto Why Theater or A Series o f Uninvited Guests (2016) Takasugi
demonstra que a ideia de teatro110 perpassa a muacutesica eletroacuacutestica desde aquela feita para
fones-de-ouvidos (gecircnero a que se dedicou por deacutecadas) ateacute aquela que inclui o inteacuterprete e
seu instrumento no palco
Primeiramente haacute um teatro imaginado cranial daquelas muacutesicas feitas para serem
ouvidas em fones-de-ouvido O autor explica
109OriginaL Since Theo Goldberg was familiar with both the visual arts and music and had thought a great dealabout their possible correlation (Goldberg amp Schrack 1986) his advice to me when we started collaborating was to treat the two elements as independent yet derived from a common idea I took this to mean that direct correlation was unnecessary and that each medium should develop according to its own logic but be informed by a common idea that was central to the work The balance between freedom for each medium but coherence between them always seemed to work in each collaboration we undertook (TRUAX 2005)
110Natildeo se refere ao gecircnero artiacutestico mas ao espaccedilo de apresentaccedilotildees
96
Pois somente nas profundezas mais escuras do espaccedilo projetado e imaginado os sons recuperam uma re-encarnaccedilatildeo quase visual como objetos fiacutesicos que entatildeo executam uma danccedila impossiacutevel em um salatildeo inexplicaacutevel e cranial e assim tornam- se suficientemente provocativos para incitar a imaginaccedilatildeo a criar ao lado real uma casa de espelhos um teatro imaginado (TAKASUGI 2016 natildeo paginado traduccedilatildeo nossa111)
Num outro estaacutegio trocando os fones individuais por alto-falantes comunitaacuterios temos
o teatro fiacutesico Como os alto-falantes natildeo satildeo performers visualmente atrativos baixa-se a
intensidade da luz numa espeacutecie de ldquodesculpas pela ausecircncia do visualrdquo (TAKASUGI 2016)
os alto-falantes desaparecem e o ouvinte eacute novamente deixado agrave sua proacutepria imaginaccedilatildeo
Um passo aleacutem e acompanhando o concerto eletroacuacutestico temos um instrumento no
palco um piano por exemplo Por momentos ele pode servir de referecircncia para os sons
ouvidos
O que eacute isso O instrumento fiacutesico como representaccedilatildeo conceitual Mas se algueacutem - mesmo que por breves instantes - assuma que os sons que ouve foram extraiacutedos do instrumento verdadeiro e factual em si natildeo eacute esse o momento de intrusatildeo de outro ldquohoacutespede natildeo convidadordquo Um impostor de tipos alegando sons que natildeo produziu E como ainda natildeo haacute agente humano nesse ato imaginado o instrumento como objeto assume um ar misterioso de presenccedila esteacutetica importacircncia significado (TAKASUGI 2016 traduccedilatildeo nossa112)
Mais um passo e temos o performer sentado ao piano mas ele natildeo toca nada enquanto
isso a muacutesica eletroacuacutestica eacute executada Seria o verdadeiro ator-impostor Neste caso ldquo []
com a presenccedila de um ser humano no palco o ritual de concertos ao vivo com toda a sua
etiqueta e deferecircncia a um inteacuterprete se materializou O teatro de um tipo exterior renasce
[]rdquo (TAKASUGI 2016 traduccedilatildeo nossa113)
Ainda um passo aleacutem e temos o performer que tocaraacute o piano Entretanto esta
bifurcaccedilatildeo inerente agrave junccedilatildeo de sons ao vivo e sons preacute-gravados carrega a possibilidade de o
performer ldquonatildeo tocar embora fingir tocarrdquo causando uma espeacutecie de efeito de
111 Original ldquoFor only in the darkest depths of ones projected imagined space did sounds regain a near visual re-embodiment as physical objects that then perform an impossible dance in an inexplicable cranial hall and thereby become sufficiently provocative to prompt the imagination to create alongside the real a house of mirrors an imagined theaterrdquo (TAKASUGI 2016)
112 Original ldquoWhat is it The physical instrument as conceptual representation But then if onemdasheven for the briefest of momentsmdashassumes that the sounds one hears as elicited from the true factual instrument itself is that not the moment of intrusion of yet another uninvited guest An imposter of sorts claiming sounds that it has not produced And as there is still no human agent in this imagined act the instrument as object takes on a mysterious air of aesthetic presence importance meaningrdquo (TAKASUGI 2016)
113 Original ldquo[] with the presence of a human on stage the live concert ritual with all its etiquette and deference to a performer has rematerialized Theater of an exterior type is reborn []rdquo (TAKASUGI 2016)
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ventriloquismo e uma confusatildeo de ldquoquem estaacute fazendo o querdquo Assim o autor registra ldquoO
teatro eacute uma orquestraccedilatildeo alternativamente uma heterofonia que se projetou explicitamente
no domiacutenio visualrdquo (TAKASUGI 2016 traduccedilatildeo nossa114)
Assim esta dissociaccedilatildeo da produccedilatildeo fiacutesica da muacutesica em relaccedilatildeo ao todo que soa se daacute
em graus variados imaginaccedilatildeo instrumento performer gesto fiacutesico Desta forma os artefatos
visuais antes presumidos da produccedilatildeo musical e que eram perifeacutericos a ela (viradas de
paacuteginas por exemplo) satildeo incluiacutedos
Consequentemente se a produccedilatildeo fiacutesica da muacutesica e seu labor foram dissociados em graus variados do todo que soa os artefatos gestuais outrora presumidos da produccedilatildeo musical - outrora estranhos ao empreendimento de fazer muacutesica - se levantam em revolta para se juntar ao jogo inflado do fato e ficccedilatildeo a interaccedilatildeo da verdade e da fraude Viradas de paacutegina olhares de deixas tempo batido com o peacute o cacircmbio de instrumentos duplicados o silenciar dos instrumentos o agradecimento do puacuteblico todos estes satildeo colocados em primeiro plano ensaiados estilizados atuados
E entatildeo o que a camada da performance ao vivo e do teatro contribui para aquele ldquopedaccedilo de fitardquo agora enterrado115 de amostras digitais se o equiliacutebrio entre as camadas cria uma confusatildeo implacaacutevel Ela ajuda a camada da ldquomuacutesica mortardquo a permanecer enterrada como uma percepccedilatildeo subconsciente mesmo que esteja soando sozinha em longas passagens Por isso permite um desvio dos olhos - os olhos internos propiciaram sua suspensatildeo da descrenccedila necessaacuteria a qualquer ficccedilatildeo - ao mesmo tempo em que os olhos fiacutesicos estatildeo bem abertos horrorizados com o que vecircem no palco Isso permite ao espectaacuteculo a sua sombra o seu efeito alienante Eacute assim que aquela presenccedila sombria como o uacuteltimo ldquoconvidado natildeo convidadordquo (agora ldquofantasmardquo) encontra acesso atraveacutes de uma porta dos fundos por assim dizer encontrada de surpresa No final haacute e natildeo haacute o playback Ele desaparece para se tornar mais uma presenccedila despercebida parte das paredes do local uma cortina ou uma porta vista mas natildeo observada
O teatro eacute um truque de maacutegica Eacute a distraccedilatildeo pela qual os mortos se levantam de maneira encoberta pungente desconhecida ou apenas vagamente sentida entre o ao vivo os vivos (TAKASUGI 2016 traduccedilatildeo nossa116)
114 Original ldquoTheater is an orchestration alternatively a heterophony which has projected itself explicitly into the visual domainrdquo (TAKASUGI 2016)
115 O autor brinca com a ideia de live e dead se os sons ao vivo satildeo considerados vivos (live) os sons preacute- gravados poderiam ser chamados de mortos (dead)
116 Original ldquoConsequently if musics physical production and its labor have been decoupled to varying degrees from the sounding whole the once-presumed gestural artifacts of musical production - previously extraneous to the enterprise of music making - rise up in revolt to join the inflated game of fact and fiction the interplay of truth and fraud Page turns cued glances time beat with the foot the exchange of doubling instruments the muting of instruments the acknowledgment of the audience all these become foregrounded rehearsed stylizedacted
And so what does the layering of live performance and theater accomplish for that now buried tape piece of digital samples if the balance among the layers creates a ruthless confusion It aids the layer of the dead music to remain buried as a subconscious perception even if it is sounding alone in long passages It therefore allows for an averting of the eyes - the inward eyes afforded their suspension of disbelief requisite of any fiction - at the same time when the actual physical eyes are wide aglare aghast by what they see on stage It allows the spectacle its shadow its alienation-effect It is how that shadowy presenceas the last uninvited guest (now ghost)finds access through a backdoor as it were met unawares In the end there is and there isnt the playback track It fades away to become yet another unnoticed presence part of the venues walls or a curtain or a doorseen but not watched
98
Diante deste texto eacute possiacutevel reter as seguintes ideias a ldquoconfusatildeo implacaacutevelrdquo se
apresenta natildeo apenas no reconhecimento da fonte sonora pela escuta mas na relaccedilatildeo entre
accedilatildeo visual e resposta aural artefatos antes perifeacutericos agrave performance como as viradas de
paacuteginas satildeo incluiacutedos como elementos relevantes da performance (justamente por causa da
relevacircncia da accedilatildeo visual) que os recorrentes sons do instrumento duplicados na parte
eletroacuacutestica possibilitam agrave confusatildeo adquirir um caraacuteter veridictoacuterio ldquodo fato e da ficccedilatildeo a
interaccedilatildeo da verdade e da frauderdquo
Para elucidar as relaccedilotildees deste uacuteltimo aspecto propomos articular a oposiccedilatildeo ser-
parecer instrumental117 Localizamos o instrumento presente no palco como central natildeo por
ser mais importante mas sim porque eacute em relaccedilatildeo ao som conhecido do instrumento cuja
performance eacute vista que podemos julgar por comparaccedilatildeo os outros Assim em relaccedilatildeo ao
som conhecido do instrumento as seguintes possibilidades podem ser esboccediladas
a) parece e eacute instrumental situaccedilatildeo comum em que percebemos a relaccedilatildeo entre accedilatildeo
visual de um performer em seu instrumento e ouvimos um resultado aural
correspondente
b) parece instrumental mas natildeo eacute situaccedilatildeo em que sons projetados pelos alto-falantes
satildeo semelhantes ou idecircnticos aos instrumentais mas natildeo tiveram sua origem no
instrumento ao vivo embora uma accedilatildeo visual possa induzir tal pensamento
c) natildeo parece nem eacute instrumental situaccedilatildeo em que sons eletroacuacutesticos satildeo distintos dos
instrumentais e haacute uma total discrepacircncia entre accedilatildeo visual e resultado aural (por
exemplo na mencionada Aphasia os sons nunca satildeo os da matildeo do performer)
d) eacute mas natildeo parece instrumental situaccedilatildeo que utiliza sons instrumentais incomuns
(algumas teacutecnicas estendidas por exemplo)
Entretanto como mencionado o ouvinte-espectador pode estar num estado de duacutevida
em que soacute percebe a aparecircncia e natildeo pode dizer ou natildeo tem interesse em dizer o que eacute e o
que natildeo eacute Aleacutem disso podemos lembrar do argumento de Emmerson (2013) o que ouvimos
eacute o efeito e a relaccedilatildeo causal eacute secundaacuteria natildeo eacute essencial para apreciar o conteuacutedo expressivo
da muacutesica (ver p 37)
Theater is a sleight of hand It is the distraction by which the dead rise covertly poignantly unbeknown or only vaguely sensed among the live the livingrdquo (TAKASUGI 2016)
117 Trata-se de uma transposiccedilatildeo da categoria da veridicccedilatildeo da semioacutetica greimasiana (GREIMAS COURTEacuteS 2012 p 532) ldquoA categoria da veridicccedilatildeo apresenta-se assim como o quadro em cujo interior se exerce a atividade cognitiva de natureza epistecircmica que com o auxiacutelio de diferentes programas modais visa a atingir uma posiccedilatildeo veridictoacuteria suscetiacutevel de ser sancionada por um juiacutezo epistecircmico definitivordquo (GREIMAS COURTEacuteS 2012 p 533)
Esta postura de Emmerson parece se aplicar mais facilmente a algumas peccedilas do que a
outras O caso de Steven Takasugi eacute um exemplo de exploraccedilatildeo criativa da relaccedilatildeo causal ou
seja ela chama nossa atenccedilatildeo para esta relaccedilatildeo e ldquojogardquo com ela tornando-a importante e natildeo
secundaacuteria Em Strange Autumn (2003-4)118 para recitantevocalista percussionista e
playback eletrocircnico o compositor explora a dissociaccedilatildeo e o teatro mencionados Pode-se
perceber uma relaccedilatildeo instaacutevel entre accedilatildeo fiacutesica-visual e resposta aural e que agraves vezes causam o
efeito ventriacuteloquo Por vezes o fluxo sonoro corresponde ao que vemos o inteacuterprete fazer
mas por vezes ele finge executar o que foi preacute-gravado Por vezes a palavra que finge dizer eacute
a mesma que ouvimos preacute-gravada por vezes eacute outra Assim o fluxo visual e os fluxos
sonoros convergem e divergem dinamicamente A relaccedilatildeo entre accedilatildeo fiacutesica e visual e sua
resposta aural eacute usada assim como um paracircmetro composicional explorado dentro deste
teatro
Ainda eacute preciso considerar que a exploraccedilatildeo de tais possibilidades se daacute normalmente
no encontro com outras aacutereas artiacutesticas como a performance a danccedila o teatro e o cinema Tal
interdisciplinaridade natildeo estaacute no escopo deste trabalho mas o leitor interessado acharaacute
subsiacutedios teoacutericos e praacuteticos nestas praacuteticas e em outras jaacute mescladas como por exemplo o
teatro musical
Este sub-capiacutetulo trata da emancipaccedilatildeo do aspecto visual Ele sempre existe ldquocoladordquo
ao som percute-se (por exemplo) para ouvir determinado som A imagem de algueacutem
percutindo e o som resultante estatildeo sempre estreitamente relacionados O que acontece na
muacutesica mista eacute um descolamento destes dois aspectos (visualidade e sonoridade) que eacute
inerente a ela Toda a muacutesica mista apresenta em maior ou menor grau este descolamento Isto
permite que se considere este aspecto visual um elemento da textura um fluxo visual
36 TEXTURA NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
Na muacutesica instrumental especialmente do periacuteodo da praacutetica comum como
apresentado em 31 textura se refere aos componentes que soam compreende um aspecto
quantitativo (quantos componentes soam em concorrecircncia) e um qualitativo (interaccedilotildees inter-
relaccedilotildees e outros fatores de seus componentes) (BERRY 1987 184) No verbete textura do
118 Confira a performance de Mark Knoop Serge Vuille e Newton Armstrong disponiacutevel em lthttpsyoutube1y_kunv2kUogt Acesso em 17 jan 2019
99
100
EARS Rob Weale (2005) explica a noccedilatildeo na muacutesica instrumental e na muacutesica eletroacuacutestica
No seu sentido mais geral o termo eacute frequentemente usado de um modo altamente inconsistente Eacute de muitas maneiras usado para descrever recursos instrumentais e vocais utilizados sinocircnimos de timbre e sonoridade densidade vertical e construccedilatildeo de vozes e partes espaccedilamento de intervalos dentro de acordes e a natureza monofocircnica homofocircnica heterofocircnica polifocircnica e construccedilotildees musicais contrapontiacutesticas
Na muacutesica eletroacuacutestica eacute um termo altamente uacutetil na descriccedilatildeo do caraacuteter de sons e vaacuterios niacuteveis estruturais de sequecircncias de sons em termos de seu comportamento geral e detalhes e padrotildees internos119
Podemos questionar tal inconsistecircncia apontada por Weale na utilizaccedilatildeo do termo ldquono
seu sentido mais geralrdquo O fato de o termo abarcar coisas distintas e variadas natildeo
necessariamente signifique uma inconsistecircncia no seu uso De fato textura envolve todos os
aspectos apontados entretanto isso natildeo significa que seu uso eacute inconsistente e sim que
textura eacute uma questatildeo complexa Isto eacute estamos tratando de complexidades simultaneidades
e ambiguidades Eacute preciso um esforccedilo teoacuterico para tranccedilar esta textura com tantos aspectos e
ainda outros se somarmos os eletroacuacutesticos
A fim de lidar com este espaccedilo teoacuterico no acircmbito deste trabalho articulamos as
categorias de macro e microtextura (ver 31) A concepccedilatildeo de textura na muacutesica
eletroacuacutestica apresentada por Weale assemelha-se ao que denominamos microtextura -
iniciativas texturais a partir do pontilhismo de Webern ateacute as massas de Ligeti e Penderecki
(ver 314)
Em nosso levantamento bibliograacutefico natildeo encontramos menccedilatildeo quando tratando da
muacutesica eletroacuacutestica ao que chamamos macrotextura Entretanto quando nesta pesquisa
nos deparamos com a questatildeo da interaccedilatildeo na muacutesica mista (considerando apenas as questotildees
sonoro-morfoloacutegicas) eacute exatamente com esta ideia que lidamos Berry (1987 p 189) enfatiza
que ldquomudanccedilas na textura - certamente mudanccedilas quantitativas mas tambeacutem aquelas
envolvendo qualidades da textura - estatildeo frequentemente entre o que eacute mais prontamente
perceptiacutevel e apreciaacutevel na experiecircncia da muacutesicardquo120 Entendemos que o mesmo acontece na
119 Traduccedilatildeo nossa Original ldquoIn its most general musical sense the term is frequently used in a highly inconsistent fashion It is variously used to describe vocal and instrumental resources employed synonymous with timbre and sonority vertical density and construction of voices and parts interval spacing within chords and the nature of monophonic homophonic heterophonic polyphonic and contrapuntal musical constructions In electroacoustic music texture is a highly useful term in describing the character of sounds and various structural levels of sequences of sounds in terms of their overall behaviour and internal details and patterningsrdquo (WEALE 2005)
120 Traduccedilatildeo nossa Original ldquoChanges in texture-surely quantitative changes but those involving textural qualities as well-are often among the most readily perceptible and appreciable in the experience of musicrdquo
101
muacutesica mista ou mesmo na muacutesica puramente eletroacuacutestica Tendo em vista o levantamento
feito neste capiacutetulo uma recuperaccedilatildeo desta concepccedilatildeo de textura - numa dimensatildeo macro -
parece ser importante para a teoria da muacutesica eletroacuacutestica em geral
Aleacutem disso durante a pesquisa nos deparamos com a importacircncia do aspecto visual
para a percepccedilatildeo da performance da muacutesica mista Esta importacircncia eacute tamanha que alguns
compositores consideram este aspecto mais que apenas uma inerecircncia ou um ldquoparasitardquo da
performance mas o incorporam como um elemento da textura Assim eacute possiacutevel falarmos de
um fluxo visual na textura da muacutesica mista (ver 35)
A macrotextura da muacutesica eletroacuacutestica mista seria assim constituiacuteda por seus
componentes sonoros e visuais sejam melhor descritos por vozes sonoridades camadas
fluxos ou planos121 e ainda por seus (sub)componentes gestos microtexturas linhas gratildeos
eventos etc Permanece ainda a importacircncia da quantidade dos componentes e da qualidade
de sua relaccedilatildeo Quanto agrave quantidade os mesmos recursos de Berry (1987) poderiam ser
usados
a) Os fluxos satildeo representados com uma sequecircncia horizontal de nuacutemeros que indicam a
quantidade dos componentes de cada fluxo (ver Figura 8)
b) Uma curva indica em seu eixo vertical a quantidade de fluxos ao longo do tempo (ver
uacuteltima curva da Figura 8)
Quanto agrave qualidade nosso trabalho apontou os recursos teoacutericos do comportamento
contraponto e interaccedilatildeo gestual (343) Resumidamente
a) O comportamento (SMALLEY 1997) possibilita a articulaccedilatildeo de dois pares de
oposiccedilatildeo dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo e conflito-coexistecircncia que se manifestam em
modos de relacionamento como por exemplo inatividade-atividade Os fluxos podem
apresentar relaccedilotildees de causalidade Esta abordagem descritiva foca sobretudo no
significado das relaccedilotildees122
a) Uma estrutura contrapontiacutestica (WISHART 1996) necessita um princiacutepio arquitetural
e um princiacutepio dinacircmico O primeiro constitui-se de aacutereas sonoro-morfoloacutegicas o
segundo tem um aspecto horizontal e outro de organizaccedilatildeo vertical dos gestos
presentes nos fluxos Este uacuteltimo pode ser vizualisado em dois eixos homogecircneo-
(BERRY 1987 p 189)121 Para facilitar a exposiccedilatildeo das ideias tomaremos fluxo como um termo padratildeo embora dependendo do caso
a estrutura possa ser melhor descrita por algumas das alternativas apontadas122 Haacute inclusive relaccedilatildeo com estudos da significaccedilatildeo as oposiccedilotildees baacutesicas (domiacutenio-subordinaccedilatildeo por
exemplo) estatildeo presentes na articulaccedilatildeo do niacutevel fundamental do percurso gerativo do sentido (GREIMAS 2012 p 474-475)
heterogecircneo e interativo-independente (ver Quadro 3)
a) Os modelos de interaccedilatildeo de Bachrataacute (2010) possibilitam a identificaccedilatildeo de interaccedilotildees
gestuais classificadas de acordo com concepccedilotildees diferentes de gesto
Eacute interessante notar como no decorrer do texto passamos a utilizar a palavra relaccedilatildeo
mais do que interaccedilatildeo Isto se deve ao fato de que interaccedilatildeo como apontam diversos
dicionaacuterios pressupotildee uma reciprocidade Esta accedilatildeo reciacuteproca nem sempre se estabelece
ainda que possamos falar que haja algum tipo de relaccedilatildeo Referindo-nos a vozes e textura
falamos de interaccedilatildeo inter-relaccedilatildeo e outras descriccedilotildees qualitativas tratando de sonoridades
falamos em relaccedilotildees de interdependecircncia tratando de fluxos sonoros utilizamos o conceito de
comportamento123 (SMALLEY 2008) contraponto (WISHART 1996) e interaccedilatildeo gestual
(BACHRATAacute 2010) Os dois primeiros apresentam recursos para tratar de maior ou menor
interaccedilatildeo Para Wishart por exemplo interaccedilatildeo eacute um dos modos com que os fluxos podem se
relacionar na dimensatildeo vertical
A Figura 28 condensa nossa abordagem a fim de ilustrar as possibilidades da
macrotextura na muacutesica eletroacuacutestica mista
Como um adendo cabe salientar a importacircncia das mudanccedilas de textura para a
delimitaccedilatildeo da forma Sem adentrar a discussatildeo deste termo consideremos genericamente os
aspectos formais como aqueles relativos agrave estrutura de seccedilotildees ou ao percurso por diferentes
momentos de uma peccedila Mudanccedilas texturais podem evidenciar estes diferentes momentos
Algumas implicaccedilotildees formais do estudo da textura ficaratildeo evidentes em nossas anaacutelises
(capiacutetulo 4) e nas experiecircncias composicionais (capiacutetulo 5)
102
123 Novamente os conceitos desenvolvidos por Smalley (1997) satildeo aplicaacuteveis agrave quaisquer niacuteveis estruturais O autor salienta que ldquoencontrar o niacutevel ou dimensatildeo temporal lsquocertarsquo para aplicar os atributos destes conceitos deve permanecer sendo uma decisatildeo do perceptor [perceiver]rdquo (p 114 traduccedilatildeo nossa) Em nossa abordagem aplicamos sobre a ideia de fluxo sonoro
103
FIGURA 28 - ILUSTRACcedilAtildeO DE POSSIacuteVEIS COMPONENTES DA MACROTEXTURA DA MUacuteSICA ELE-
TROACUacute STIC A MISTA
P l a n o s
1TC a m a d a s
ITF l u x o s
I IcircV o z e s
^ - J J7b T H m r rffx R lt RaacutepidoS o n o n d a d e s
ITFluxo visual
C o m p o n e n t e s
Cada uma destas categorias aleacutem de ser formadacomposta por eventos gestos gratildeos notas etc pode ser formada por microtexturas ( SljjpEacute ) exceto a voz
Uacute gt Q T T R e l a ccedil otilde e s
bull de comportamento (SMALLEY 1996 2008)bull contrapontiacutesticas (WISHART 1996)bull de interaccedilatildeo gestual (BACHRATAacute 2010)
FONTE o autor (2019)
104
4 DISCUSSAtildeO E ANAacuteLISES
Direcionados por estas reflexotildees teoacutericas analisaremos trechos de trecircs peccedilas mistas
Estas foram escolhidas visando uma representaccedilatildeo das teacutecnicas de instrumento(s) e sons
eletrocircnicos fixados em suporte instrumento(s) e eletrocircnica em tempo real (live electronics)
instrumento(s) e sistema interativo abordadas no capiacutetulo 21 Esta representatividade natildeo
tem como motivaccedilatildeo evidenciar diferenccedilas na configuraccedilatildeo e desenvolvimento de fluxos
sonoros pelo contraacuterio como apresentado em 23 pensamos que as questotildees sonoro-
morfoloacutegicas devem ser tomadas independentemente da teacutecnicatecnologia envolvida Assim
a escolha de peccedilas de diferentes teacutecnicas tem a funccedilatildeo de evidenciar que o pensamento
musical discutido pode ser aplicado em todas elas As anaacutelises tecircm como objetivos destacar a
presenccedila de fluxos distintos a maneira como se relacionam uns com os outros e a importacircncia
formal destas relaccedilotildees
Devido agrave proacutepria ldquoliquidezrdquo tanto das metaacuteforas utilizadas quanto dos proacuteprios
elementos musicais a potencialidade de ambiguidades e muacuteltiplas interpretaccedilotildees eacute expandida
Portanto natildeo se tratam de explicaccedilotildees fechadas das peccedilas mas de olhares e perspectivas que
podem ser uacuteteis para o entendimento geral da muacutesica mista tanto na atividade teoacuterica e
analiacutetica quanto composicional
41 DESINTEGRATIONS DE TRISTAN MURAIL
Desintegrations (1982-3) comissionada pelo IRCAM e primeiramente executada pelo
Ensemble InterContemporain em 1983 foi escrita para 17 instrumentos e sons sintetizados
por computador fixados em suporte Do ponto de vista da relaccedilatildeo com a tecnologia o regente
eacute o performer que assume a tarefa de sincronia com a parte eletrocircnica preacute-elaborada Murail
utiliza uma faixa de cliques que o regente deve ouvir atraveacutes de fones-de-ouvido abertos124 O
compositor salienta que a parte fixa ldquodeve estar em perfeita sincronizaccedilatildeo daiacute a necessidade
de lsquocliquesrsquo sincronizadores que o regente deve seguirrdquo125 (p 6) Os cliques satildeo usados apenas
em momentos estrateacutegicos especialmente no comeccedilo de cada seccedilatildeo Considerando a
classificaccedilatildeo de Ding (apud SCHULZ 2010 p 27-29) (ver 211) a peccedila apresenta uma
124 Os fones-de-ouvido abertos natildeo isolam os sons externos neste caso os sons instrumentais e eletrocircnicos que o regente precisa ouvir
125 Original ldquoIt should be in perfect synchronization hence the necessity of synchronisings ldquoclicksrdquo that the conductor must followrdquo (MURAIL 2004 p 6)
105
sincronizaccedilatildeo estrita a partir de meacutetrica fixa ou seja a sincronia acontece por uma escrita
riacutetmica precisa tanto dos eventos instrumentais quanto eletroacuacutesticos No que se refere agrave
relaccedilatildeo com a tecnologia na performance uma anaacutelise da ldquointeraccedilatildeordquo com os sons fixados
poderia abordar questotildees mais pontuais de sincronia (deixas presentes nos sons eletrocircnicos
por exemplo) questotildees de equiliacutebrio de intensidade entre instrumentos e eletrocircnicos entre
outras Nossa anaacutelise por outro lado se direciona agraves relaccedilotildees sonoro-morfoloacutegicas e busca
identificar na peccedila alguns aspectos jaacute abordados no capiacutetulo 3 o sintagma (GUIGUE 2011) o
princiacutepio arquitetural (WISHART 1996) a divisatildeo dos fluxos entre outros
No texto introdutoacuterio da partitura o compositor indica que todo o material usado tem
origem em anaacutelises decomposiccedilotildees e reconstruccedilotildees de espectros harmocircnicos ou inarmocircnicos
(MURAIL 2004 p 6) Estes espectros satildeo em sua maioria de sons graves do piano de
instrumentos da famiacutelia dos metais e de violoncelo Alguns dos procedimentos espectrais satildeo
explicitados
- fracionamento apenas uma regiatildeo de um espectro eacute utilizada (por exemplo os sons de sino no comeccedilo obtidos pelo fracionamento de sons de piano)- filtragem certos elementos componentes satildeo exagerados ou suprimidos- exploraccedilatildeo espectral movimento no interior de um som os elementos que o compotildeem satildeo ouvidos um apoacutes o outro o timbre se torna melodia (por exemplo a terceira seccedilatildeo sons de sinos pequenos surgem a partir de uma desintegraccedilatildeo dos timbres da clarineta e da flauta)- criaccedilatildeo de espectro inarmocircnico Aqueles que satildeo lineares satildeo feitos adicionando-se ou subtraindo-se frequecircncias (por uma analogia com a modulaccedilatildeo por anel ou de frequecircncia) os lsquonatildeo-linearesrsquo satildeo feitos pelo remodelamento [twisting] de um espectro ou pela descriccedilatildeo de um curva de frequecircncia (por exemplo a penuacuteltima seccedilatildeo - um remodelamento gradual de um som grave de trombone) (MURAIL 2004 p 6 traduccedilatildeo nossa126)
Estes procedimentos satildeo aplicados tanto na parte instrumental quanto na parte
eletrocircnica O compositor explica em poucas frases o tipo de relaccedilatildeo entre estes meios
126 Original ldquo Several types of spectrum treatment are used in this piece- fractioning one region only of a spectrum is used (eg bells sound at the beginning obtained by fractioning piano sounds)- filterings certain component elements are exaggerated or toned down- spectral exploration movement within a sound the component elements are heard one after the other the timbre becoming melody (eg 3rd section - sounds of small bells arising from the disintegration of clarinet and flute timbres)- creation of inharmonic spectra Thos that are linear are made by adding or substracting frequencies (by analogy with ring or frequency modulation) the lsquonon-linearrsquo are made by twisting a spectrum or by describing a frequency curve (eg penultimate section - the gradual twisting of a low trombone sound)rdquo (MURAIL 2004 p 6)
106
Haacute portanto uma origem comum para ambos tape e instrumentos sendo sua relaccedilatildeo uma de complementariedade Frequentemente o tape exagera o caraacuteter dos instrumentos difrata ou desintegra seu timbre ou amplifica os efeitos orquestrais127 (MURAIL 2004 p 6)
Esta origem comum e a consequente relaccedilatildeo de complementariedade apontam para
uma tendecircncia de que os fluxos se componham pela soma por uma relativa fusatildeo dos meios
instrumental e eletrocircnico De fato este eacute o paradigma mais presente na peccedila Entretanto isto
natildeo significa que natildeo se apresentem muacuteltiplos fluxos cuja interaccedilatildeo possa ser analisada
apenas que preponderantemente estes fluxos satildeo compostos por sons instrumentais e
eletrocircnicos em conjunccedilatildeo
O computador natildeo tenta entretanto qualquer simulaccedilatildeo direta dos instrumentos em questatildeo Antes eacute uma questatildeo de usar certos espectros como analogias estruturais para todo o conteuacutedo de alturas da obra (seja nos instrumentos ou na fita) e tambeacutem para gerar suas formas de grande escala Isso garante que os sons do computador e os que estatildeo na fita tenham uma unidade comum que garante que eles mantenham uma unidade orgacircnica audiacutevel um com o outro - de fato o grau com que os sons gravados e instrumentais se fundem durante o trabalho eacute incomumente consistente tendo em vista a tecnologia de seu tempo (ANDERSON 1996 traduccedilatildeo nossa128)
Murail explica que existem sete seccedilotildees estaacutegios diferentes na peccedila e que a mudanccedila
de um estaacutegio para outro acontece por uma ldquotransformaccedilatildeo-transiccedilatildeo ou pela liberaccedilatildeo
[unleashing] de um lsquoefeito thresholdrsquordquo (p 6) Cada estaacutegio passa por uma transformaccedilatildeo na
sua base harmocircnica de um espectro harmocircnico para um inarmocircnico ou vice-versa Isso cria
nas palavras do compositor ldquomovimentos de sombras e luz acompanhados por movimentos
de agitaccedilatildeo crescente ou decrescente de ordenaccedilatildeo ou desordenaccedilatildeo riacutetmicardquo 129 (MURAIL
2004 p 6)
Harmonia e timbre se distinguem muito pouco neste contexto e satildeo aspectos
fundamentais na construccedilatildeo da forma musical em Desintegrations Anthony Cornicello (2000)
127 Original ldquoThere is therefore one origin for both tape and instruments their relationship being one of complementarity Often the tape exaggerates the character of the instruments diffracts or disintegrates their timbre or amplifies the orchestral effects It should be in perfect synchronization hence the necessity of synchronizing ldquoclicksrdquo that the conductor must followrdquo (MURAIL 2004 p 6)
128 Original ldquoThe computer does not however attempt any direct simulation of the instruments concerned Rather it is a question of using certain spectra as structural analogies for the entire pitch content of the work (whether on instruments or tape) and likewise to generate its large-scale forms This ensures that the computer sounds and those on tape have a common unity which ensures that they maintain an audible organic unity the one with the other - indeed the extent to witch taped and instrumental sounds fuse and blend throughout the work is unusually consistent not least given the technology of the timerdquo (ANDERSON 1996)
129 Original ldquoThis creates movements of shade and light accompanied by movements of increasing or decreasing agitation of rhythmic ordering or disorderingrdquo (MURAIL 2004 p 6)
apresenta uma anaacutelise do desenvolvimento de acordes-timbre e sua influecircncia sobre a
estrutura da peccedila suas frases e cadecircncias tanto no acircmbito de cada seccedilatildeo quanto da peccedila como
um todo Nossa anaacutelise abordaraacute a terceira seccedilatildeo que comeccedila aos 645 e dura cerca de 320
A Figura 29 apresenta os acordes-timbre de comeccedilo e de fim desta seccedilatildeo de acordo com
Cornicello
FIGURA 29 - ACORDES-TIMBRE INICIAL E FINAL DA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN MURAIL
trade mdashbull-----------------k-
107
FONTE Extraiacutedo de Cornicello (2000 p 70)
Assim sendo fica claro o direcionamento de um espectro harmocircnico para um
inarmocircnico nesta seccedilatildeo Apenas por este aspecto jaacute eacute possiacutevel perceber a ldquotransformaccedilatildeo de
uma aacuterea tiacutembrica ou sonoro-morfoloacutegica em outrardquo (ver 343) caracterizando assim um
princiacutepio arquitetural da seccedilatildeo Este princiacutepio pode ser melhor analisado se considerarmos
tambeacutem outros aspectos das aacutereas sonoro-morfoloacutegicas da seccedilatildeo Ao menos quatro aacutereas
podem ser identificadas Tal identificaccedilatildeo eacute expressa a seguir de maneira geral tendo em vista
o aspecto praacutetico e natildeo essencialmente descritivo Satildeo elas na ordem em que surgem na peccedila
a) ataques agudos e ressonacircncias
b) ressonacircncias filtradas
c) melodia do corne inglecircs
d) atividade riacutetmica das cordas
Cada uma das aacutereas sonoro-morfoloacutegicas elencadas surge a partir da anterior Como
veremos isso se daacute pela derivaccedilatildeo ou decomposiccedilatildeo de um fluxo em outros Tal abordagem
destoa em parte da perspectiva de Wishart que em nossa leitura previa um princiacutepio
arquitetural comum a todos os fluxos tal qual as tonalidades eram comuns agraves vozes no
contraponto tradicional (WISHART 1996 p 116-117) No caso desta terceira seccedilatildeo a aacuterea
tiacutembrica ou seja o conteuacutedo harmocircnico-tiacutembrico representa um uacutenico princiacutepio arquitetural
geral entretanto dentro deste princiacutepio comum outros elementos caracterizam aacutereas sonoro-
morfoloacutegicas distintas
No primeiro momento desta seccedilatildeo Murail trabalha com a exploraccedilatildeo espectral
conforme indica em sua descriccedilatildeo dos procedimentos espectrais (p 105) desdobrando no
tempo os componentes do espectro Na nota de programa da peccedila Anderson apresenta a
seguinte descriccedilatildeo do primeiro momento da seccedilatildeo III ldquodensas nuvens de sonoridades como
de sino agudas derivadas da desintegraccedilatildeo dos espectros da flauta e da clarineta descem para
revelar sua origem instrumentalrdquo (ANDERSON 1996 traduccedilatildeo nossa130) A desintegraccedilatildeo dos
timbres da clarineta e da flauta eacute distribuiacuteda entre piano crotales glockenspiel e sons
eletrocircnicos formando gestos compostos de notas agudas curtas mas ressonantes que satildeo
ritmicamente ativas na primeira parte do gesto restando apenas sua ressonacircncia na segunda
parte A Figura 30 mostra os dois gestos iniciais desta seccedilatildeo
FIGURA 30 - COMPASSOS INICIAIS TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN MURAIL
108
FONTE Extraiacutedo de Murail (2004 p 29)
Podemos observar a sucessatildeo destes gestos como um fluxo isso se deve
principalmente agrave estabilidade do seu conteuacutedo espectral Evidentemente poderiacuteamos focar a
130 Original ldquoIII - dense clouds of high bell-like sonorities derived from the disintegration of flute and clarinet spectra descend to reveal their instrumental origin - a harmonic spectrum upon F (with the fundamental missing) evolves through flowing melodic figures on the English horn highlighting successive components of the spectra - the music drifts towards inharmonyrdquo (ANDERSON 1996)
atenccedilatildeo sobre os aspectos internos deste fluxo distinguindo uma dinacircmica interna dos seus
componentes abordando esta microtextura Entretanto nosso foco estaacute num niacutevel mais amplo
de agrupamento de acircmbito mais geral do que chamamos macrotextura
A configuraccedilatildeo bipartida destes gestos remonta agrave ideia de sintagma de Guigue (ver
321) Os ataques constituem a parte determinante do sintagma enquanto a ressonacircncia
constitui a parte determinada Ambas as partes do gesto satildeo desenvolvidas caracterizando o
que Wishart chama evoluccedilatildeo gestual Inicialmente esta evoluccedilatildeo gestual acontece por uma
expansatildeo temporal da parte determinante
A partir do quinto gesto (compassos 11 a 13 da seccedilatildeo) a parte determinada apresenta
um novo material um som eletrocircnico longo proveniente do espectro do laacute3 da flauta mas
sem a fundamental somado ao proacuteprio laacute3 na flauta sustentado que comeccedila dal niente e
termina al niente (Figura 31) A partir tambeacutem deste ponto a parte determinante do gesto
seguinte comeccedila a entrar antes do teacutermino da parte determinada do gesto anterior Estes
fatores colaboram para a percepccedilatildeo de um novo fluxo que comeccedila a se estabelecer
A parte determinada antes apenas uma consequecircncia da determinante agora engendra
um novo fluxo sonoro independente Neste quinto gesto cada parte deste sintagma que
inicialmente constituiacutea um uacutenico fluxo eacute desenvolvida de modo a se formarem dois fluxos
distintos A proacutepria ideia de sintagma natildeo se sustenta completamente deste momento em
diante pois natildeo haacute mais uma clara relaccedilatildeo de consequecircncia Natildeo satildeo mais os ataques que
determinam as ressonacircncias mas estas tomam um rumo proacuteprio independente daqueles
Este ponto de mudanccedila de surgimento de um segundo fluxo pode ser entendido pela
metaacutefora do gatilho quando um gesto de uma parte parece iniciar um evento ou uma mudanccedila
em uma outra parte de maneira minimamente clara O gesto de ataques agudos parece iniciar
causar o gesto de ressonacircncia filtrada do novo fluxo A ideia de reaccedilatildeo do sintagma de gatilho
e de causalidade respectivamente de Guigue (2011) Wishart (1996) e Smalley (2008 1997)
se relacionam estreitamente Entretanto devemos diferenciar a preocupaccedilatildeo descritiva de
cada ideia O sintagma natildeo se refere apenas a relaccedilotildees entre fluxos distintos como eacute o caso do
gatilho de Wishart Tampouco a causalidade tem apenas este foco Esta ldquoocupa-se mais com
um som agindo sobre outro seja causando a ocorrecircncia de um segundo evento seja
instigando a mudanccedila em um som que jaacute se desenrolavardquo (SMALLEY 2008 p 11) As trecircs
no entanto coincidem na explicaccedilatildeo deste ponto de Desintegrations
109
110
FIGURA 31 - COMPASSOS 11 A 13 DA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISshy
TAN MURAIL
FONTE Extraiacutedo de Murail (2004 p 30)
De modo semelhante a outra aacuterea sonoro-morfoloacutegica (melodia do corne inglecircs) surge
do interior deste fluxo de ressonacircncias filtradas A Figura 32 apresenta a entrada da melodia
do corne inglecircs
111
FIGURA 32 - FLUXO DO CORNE INGLEcircS NA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS ( 1982-3) DE
TRISTAN MURAIL
FONTE Extraiacutedo de Murail (2004 p 34 grifo nosso)
A aacuterea morfoloacutegica nomeada anteriormente atividade riacutetmica das cordas surge como
uma resposta agrave melodia do corne inglecircs no compasso 47 desta seccedilatildeo Neste ponto a melodia
do corne inglecircs estaacute distribuiacuteda entre sons eletrocircnicos corne inglecircs e fagote A atividade
riacutetmica das cordas em resposta daacute origem a um novo fluxo o uacutenico cujos sons eletrocircnicos
natildeo participam conjuntamente - ao menos isso natildeo eacute explicitado na partitura nem evidente na
escuta da gravaccedilatildeo131 Antes deste ponto as cordas compunham tambeacutem o fluxo de
ressonacircncias filtradas Assim embora apresentem ali uma resposta agrave melodia do corne inglecircs
tecircm sua origem no fluxo no qual se inseriam anteriormente
O desenvolvimento dos fluxos nesta seccedilatildeo eacute ilustrado abaixo na Figura 33 A linha
preta representa a continuidade dos fluxos mas desconsidera sua importante transformaccedilatildeo
Esta natildeo soacute eacute importante porque representa um processo um desenvolvimento dos materiais
mas porque a mudanccedila dos materiais que compotildeem os fluxos representa tambeacutem a mudanccedila
131 A anaacutelise se baseou na gravaccedilatildeo de Ensemble l rsquoItineacuteraire sob a regecircncia de Yves Prin
112
da relaccedilatildeo entre eles
FIGURA 33 - FLUXOS SONOROS NA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN
MURAIL (645 a 1006)
FONTE o autor (2019)
No momento 1 podemos perceber um domiacutenio dos ataques agudos sobre as
ressonacircncias Conforme estas desenvolvem-se num novo fluxo (ressonacircncias filtradas) esta
relaccedilatildeo perde sua forccedila Isto acontece devido a uma diminuiccedilatildeo da densidade riacutetmica132 do
primeiro e uma acumulaccedilatildeo dinacircmica somada ao aumento da densidade harmocircnica do
segundo A diminuiccedilatildeo da densidade riacutetmica eacute evidente e progressiva num primeiro momento
mas deve-se ressalvar uma retomada da alta densidade nos compassos 31 a 33 desta seccedilatildeo
antes da entrada do corne inglecircs Trata-se de um desvio da ldquolinearidaderdquo com que diminuiacutea o
nuacutemero de ataques agudos133 Assim haacute uma transformaccedilatildeo na relaccedilatildeo domiacuteniosubordinaccedilatildeo
destes dois primeiros fluxos em sentido contraacuterio Ataques agudos vatildeo do domiacutenio para um
natildeo-domiacutenio e as ressonacircncias da subordinaccedilatildeo para uma natildeo-subordinaccedilatildeo Sob a metaacutefora
dos planos podemos afirmar que haacute um deslocamento do primeiro plano para um plano de
fundo dos ataques agudos134 Por outro lado as ressonacircncias se deslocam do plano de fundo
para um primeiro plano ao ponto de darem origem agrave melodia do corne inglecircs
A dualidade gestotextura como entendida por Smalley (ver 332) tambeacutem se
apresenta na relaccedilatildeo destes fluxos O primeiro eacute composto por gestos enquanto o segundo
tem um caraacuteter textural Esta constataccedilatildeo tem relaccedilatildeo com o eixo conflitocoexistecircncia que
demarca as relaccedilotildees temporais do campo comportamento Os dois fluxos competem
temporalmente (conflito) num primeiro momento haacute uma intercalaccedilatildeo entre ataques agudos e
132 Nuacutemero de ataques por tempo133 Este evento dos compassos 31 a 33 marca tambeacutem a entrada das cordas com maior presenccedila nesta seccedilatildeo134 Este deslocamento soacute iraacute se concretizar efetivamente apoacutes os mencionados compassos 31 a 33 e a entrada do
corne inglecircs mas a tendecircncia de ir para o plano de fundo se mostra jaacute neste primeiro momento
113
ressonacircncias filtradas A medida em que se desenvolvem passam a confluir em coexistecircncia
Isto aponta tambeacutem para uma coordenaccedilatildeo de movimento que passa de um estado mais justo
para outro mais frouxo Desta perspectiva analiacutetica (SMALLEY 1997) estas relaccedilotildees
concernem agrave atividade-inatividade dos fluxos (modo de relacionamento) E da mesma forma
haacute um movimento contraacuterio em relaccedilatildeo agraves mudanccedilas os ataques agudos mudam da atividade
em direccedilatildeo agrave inatividade (vide a diminuiccedilatildeo da densidade riacutetmica) enquanto que as
ressonacircncias filtradas partem da inatividade em direccedilatildeo agrave atividade Este uacuteltimo
direcionamento tem seu aacutepice no desmembramento seguinte do interior das ressonacircncias
filtradas surge a melodia do corne inglecircs mais ativa e gestual em comparaccedilatildeo agrave textura
anterior das ressonacircncias
A tabela de Wishart apresentada em 343 oferece um meio graacutefico para pensar estas
mudanccedilas no tipo de relaccedilatildeo entre os fluxos A figura 34 apresenta a relaccedilatildeo entre os fluxos
ataques agudos e ressonacircncias filtradas no primeiro momento da seccedilatildeo em questatildeo
FIGURA 34 - RELACcedilAtildeO ENTRE DOIS FLUXOS EM DESINTEGRATIONS (1982-3) SOBRE O QUADRO DE WISHART (1996)
independente
Icirc
interativo
similar dissimilar
(homogecircneo) (heterogecircneo)
FONTE o autor (2019)
Os dois fluxos satildeo similares inicialmente (ponto a na Figura 34) pois um eacute a
ressonacircncia do outro possuem as mesmas frequecircncias Mas porque natildeo estatildeo sincronizados
natildeo eacute completa a homogeneidade Os fluxos se diferenciam espectralmente conforme se
desenvolvem (ponto b) mas ainda guardam a relaccedilatildeo de interaccedilatildeo (gatilho) posteriormente
perdem esta relaccedilatildeo e se mantecircm independentes e heterogecircneos (c)
As notas sobre a peccedila no siacutetio do compositor apresentam a seguinte descriccedilatildeo do
Momento 2
independecircncia c 1independecircncia
semi-paralelismo interaccedilatildeo
paralelismoa
b gatilho
114
- um espectro harmocircnico sobre faacute (com a fundamental ausente) evolui atraveacutes de figuras meloacutedicas fluiacutedas no corne inglecircs destacando componentes sucessivos do espectro (ANDERSON 1996 traduccedilatildeo nossa135)
Neste momento os dois fluxos anteriores embora ainda presentes se deslocam para
um plano de fundo enquanto a melodia do corne inglecircs assume o primeiro plano Este fluxo
natildeo eacute composto apenas pelos sons de corne inglecircs mas por ele somado aos sons eletrocircnicos e
agraves vezes ao fagote Ele domina sobre os outros dois Os fluxos decorrem independentemente
todos no processo de transformaccedilatildeo para um espectro inarmocircnico No momento 3 conforme a
descriccedilatildeo no site do compositor se daacute a conclusatildeo deste processo ldquoa muacutesica desliza para a
inarmoniardquo (traduccedilatildeo nossa136)
As observaccedilotildees analiacuteticas apontadas podem ao menos indicar a importacircncia do
desenvolvimento dos fluxos para a percepccedilatildeo de aspectos formais desta seccedilatildeo Uma anaacutelise
que fatiasse a seccedilatildeo em trechos natildeo daria conta das nuances de derivaccedilatildeo de um trecho a partir
de outro o que foi evidenciado por nossa anaacutelise Uma anaacutelise que observasse a
transformaccedilatildeo harmocircnico-tiacutembrica da seccedilatildeo veria possivelmente uma uacutenica estrutura
passando de um espectro harmocircnico para um inarmocircnico sem considerar o desmembramento
apontado Natildeo se trata de desmerecer estas importantes perspectivas antes de sublinhar a
singularidade da perspectiva aqui apresentada
42 STRANGE AUTUMN DE STEVEN KAZUO TAKASUGI
Strange Autumn (2003-4) eacute uma peccedila com forte caraacuteter de teatro musical para
recitante-vocalista percussionista amplificaccedilatildeo eletrocircnica e playback gravado Note-se nesta
descriccedilatildeo de instrumentaccedilatildeo copiada da partitura que a amplificaccedilatildeo eletrocircnica eacute encarada
como um elemento essencial em peacute de igualdade com os performers Isso se deve
principalmente agrave exploraccedilatildeo de sons de baixa projeccedilatildeo como microssons vocais (recitante-
vocalista) e sons de folhas de caderno (percussionista) Por consequecircncia o papel do
engenheiro de som a quem tambeacutem orientaccedilotildees satildeo dirigidas na partitura eacute de fundamental
importacircncia
A sincronizaccedilatildeo entre sons eletrocircnicos e instrumentais se daacute atraveacutes de um click track
que ambos os performers devem ouvir em seus fones-de-ouvido Esta faixa possui cliques a
135 Original ldquo- a harmonic spectrum upon F (with the fundamental missing) evolves through flowing melodic figures on the English horn highlighting successive components of the spectrardquo (ANDERSON 1996)
136 Original ldquothe music drifts towards inharmonyrdquo (ANDERSON 1996)
115
cada segundo bem como uma indicaccedilatildeo verbal a cada cinco segundos Eacute disponibilizada uma
versatildeo alternativa em que apenas a indicaccedilatildeo verbal estaacute presente (sem cliques)
No texto em que trata de uma performance da peccedila Takasugi menciona um sistema de
live electronics
Os live electronics foram projetados por Michael Acker da SWR Experimentalstudio em Freiburg Consistia em geral em um setup de alto-falantes de oito canais controlado pelo Matrix-Mixer do Experimentalstudio regulando a espacializaccedilatildeo o processamento ao vivo e o playback preacute-gravado incluindo espacializaccedilatildeo com o Halaphon o processador de efeitos Eventide Orville como um fragmentador fonecircmico patches de MaxMSP para siacutentese cruzada e patches jitter bem como uma unidade de reverberaccedilatildeo Vale a pena notar que a configuraccedilatildeo dos alto-falantes de oito canais tem duas sub-estruturas distintas a estrutura espacial completa de oito canais com oito faixas distintas e um a estrutura esteacutereo de dois canais que utiliza tanto os dois quanto os quatro alto-falantes frontais mais proacuteximos dos performers no palco com apenas duas faixas (esquerda e direita) distintas Estes dois espaccedilos satildeo designados como ldquotempestaderdquo (8-faixas) e ldquopalcordquo (2-faixas) respectivamente (TAKASUGI 2006 p 4 traduccedilatildeo nossa137)
Esta configuraccedilatildeo se refere a uma performance especiacutefica em que se apresenta um
modelo misto das opccedilotildees apresentadas em 21 A partitura e o material a que tivemos acesso
diretamente com o compositor entretanto apresenta uma versatildeo em que os sons eletrocircnicos
satildeo preacute-gravados em uma faixa em esteacutereo mas que deve ser projetada em sistema octafocircnico
ou no miacutenimo quadrafocircnico (canal da esquerda para alto-falantes agrave esquerda e canal da direita
para alto-falantes agrave direita)
O compositor explora os mundos do preacute-gravado e do ao vivo de maneira anaacuteloga a
um livro de poemas em ediccedilatildeo biliacutengue Em seu texto ele questiona se ldquouma traduccedilatildeo pode
ser mais lsquooriginalrsquo que a original isto eacute se pode possuir alguma qualidade que aparentemente
precede o originalrdquo (TAKASUGI 2006 p 5) Com tal metaacutefora Takasugi explora o preacute-
gravado e o ao vivo
Uma vez que tanto a recitaccedilatildeo ao vivo quanto a preacute-gravada satildeo transmitidas pelos mesmos alto-falantes haacute uma ambiguumlidade de que tudo ao vivo poderia ser preacute- gravado e tudo preacute-gravado poderia ser ao vivo Isso permite uma incompatibilidade
137 Original ldquoThe live electronics were designed by Michael Acker of SWRrsquos Experimentalstudio in Freiburg This consisted generally of an eight-channel speaker setup controlled by the Experimentalstudiorsquos MatrixshyMixer regulating spatialization live processing and pre-recorded playback including halaphon spatialization the Eventide Orville Effects Processor as a phonemic fragmenter MaxMSP patches for cross-synthesis and jitter patches as well as a reverberation unit It is worth noting that the eight-channel speaker setup has two distinct sub-structures the full eight-channel spatial structure with eight distinct tracks and a two-channel stereo structure that utilizes either the front two or front four speakers closest to the performers on stage with only two (left and right) distinct tracks These two spaces are designated as lsquostormrsquo (8-track) and lsquostagersquo (2-track) respectivelyrdquo (TAKASUGI 2006 p 4)
116
potencialmente catastroacutefica entre a localizaccedilatildeo do agente sinal ao vivo (aqui os laacutebios do recitante) e a atual localizaccedilatildeo percebida do sinal no espaccedilo (TAKASUGI 2006 p 5 traduccedilatildeo nossa138)
Esta ambiguidade que se estabelece faz com que natildeo haja uma divisatildeo expliacutecita entre o
mundo ao vivo e o preacute-gravado Alguns sons que foram preacute-gravados parecem vir do recitante
devido a uma sincronizaccedilatildeo labial Por outro lado o recitante deve executar sons vocais com
cortes exagerados proacuteprios dos sons preacute-gravados Assim os mundos preacute-gravado e ao vivo
espelham um ao outro assegurando nas palavras do compositor ldquouma confusatildeo consistenterdquo
(TAKASUGI 2006 p 5) Esta confusatildeo se impotildee agrave percepccedilatildeo de fluxos sonoros distintos
Natildeo eacute possiacutevel traccedilar uma linha clara que separe sons do palco (projetados tambeacutem pelos alto-
falantes) e sons preacute-gravados em fluxos separados pelo contraacuterio eacute em conjunto que eles
formam os fluxos Estes se colocam em relaccedilatildeo ao aspecto visual da performance E esta
relaccedilatildeo eacute o objeto desta anaacutelise Portanto natildeo nos interessa analisar o surgimento dos fluxos e
suas derivaccedilotildees - anaacutelise que provavelmente se mostraria frutiacutefera Nossa intenccedilatildeo eacute apontar
relaccedilotildees instaacuteveis que o fluxo visual estabelece com os fluxos sonoros
Neste contexto percebemos a possibilidade do uso das metaacuteforas de plano e de fluxo
como adequadas Percebemos planos distintos em relaccedilatildeo agrave distacircncia com que se apresentam
os sons mais perto ou mais longe Entretanto percebemos fluxos distintos quando somando
a este aspecto outras caracteriacutesticas sonoro-morfoloacutegicas satildeo consideradas especialmente seu
aspecto referencial sons vocais sons de objetos sons de mosca voando etc Por motivos
praacuteticos mais do que descritivos nomearemos os fluxos de acordo com estas referecircncias
Recorde o leitor que a percepccedilatildeo da fonte sonora que pode corresponder mais ou menos agrave
verdadeira fonte eacute um aspecto importante para a percepccedilatildeo de um fluxo auditivo
A peccedila baseia-se em poemas biliacutengues de Weiland Hoban e se divide em duas partes
Parte 1a Leaf-wort Parte 1b Blatt-word Parte 2 Interiors Der Wuumlrfel Die Zweibel (The
Etching) Nossa anaacutelise abordaraacute a parte 1b que vai dos 240 aos 450139 A Figura 35
apresenta um excerto da partitura do iniacutecio desta seccedilatildeo
138 Original ldquoSince both live and pre-recorded recitation transmit from the same speakers there is an ambiguity that everything live could be pre-recorded and everything pre-recorded could be live This allows for a potentially catastrophic mismatch between the location of the live signal agent (here the lips of the reciter) and the actual perceived location of the signal in the spacerdquo (TAKASUGI 2006 p 5)
139 O trecho compreende de cerca de 3rsquo30rdquo a cerca 5rsquo30rdquo do viacutedeo da performance de Mark Knoop Serge Vuille e Newton Armstrong utilizado para anaacutelise Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatch v= 1y_kunv2kUoampt= 132sgt
FIGURA 35 - INiCIO DA PARTE 1B DE STRANGE AUTUMN DE STEVEN KAZUO TAKASUGI
PART lb BLATT-WORDBlatt-word
2 - 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49Tape-Storm
Tape-Stage
Reciter
117
Perc
2 - 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59Tape-Storm
Tape-Stage
Reciter
Perc
FONTE TAKASUGI (2016)
Esta peccedila apresenta diversos modos de execuccedilatildeo para ambos os performers O texto
sobre linha tracejada para o recitante deve ser lido sem respiraccedilatildeo nenhum som vocal deve
ser ouvido exceto quando destacados com fundo cinza Neste caso as palavras satildeo faladas
normalmente O compositor tambeacutem utiliza a notaccedilatildeo (z) para identificar partes em que
nenhum som eacute emitido apenas eacute feita uma sincronizaccedilatildeo labial Da parte do performer este
modo eacute apenas visual
O princiacutepio arquitetural (WISHART 1996) desta seccedilatildeo apresenta duas aacutereas sonoro-
morfoloacutegicas cada uma delas prepondera em uma das duas partes em que se divide a seccedilatildeo A
primeira apresenta sons mais relacionados ao recitante (fragmentos da leitura entre outros)
enquanto que a segunda apresenta sons relacionados ao percussionista (sons de folhas) Haacute
uma transiccedilatildeo dos 347 aos 413 os movimentos do percussionista intensificam mas
continua a leitura do texto pelo recitante Apoacutes este periacuteodo o recitante congela ldquoFREEZErdquo
expressa a partitura isto eacute nenhuma atividade
Em relaccedilatildeo aos fluxos sonoros se apresenta o fluxo visual os performers no palco Na
(ldquoFLIES ldquo)word-leaf auf der Seite auf which das Wort-Blatt sich dreht indem ich die Seiten durchblaumltte-word-leaf auf der Seite auf which das Wort-Blatt sich dr ht indem ich die Seiten durchblaumltte-
(grasp top page only)
L H 1RH euromdash
Hold turned ( 76 1 77)Hoidcorner
LOu 11 1
Defaultresting
lsquoFLIESrdquoBlatt-word the leaf treeless on welchem the
(gray higlighted words are normally voiced and take precedence over other instructions)
Blatt-word the leaf treelessf articulate recitation lsquolsquowithout breathing rsquo
on welchem theDo not pop b s ps
andfrsquos
Computation BookldquoAs i f still conducting a Japanese tea ceremony rsquo RH
) 7 6 I 7 7(grasp top page only)
118
primeira parte da seccedilatildeo foram encontrados seis tipos de correspondecircncia entre o fluxo visual
do recitante140 e os fluxos sonoros
A accedilatildeo visual do recitante parece produzir uma reaccedilatildeo aural do(s) fluxo(s)
a) sons vocaisleitura 1 (perto)
b) sons de objetos
c) leitura 2 (longe)
d) sons vocaisleitura (perto) e sons de objetos
e) sons vocaisleitura 1 (perto) e leitura 2 (longe)
f) ou pode se apresentar independente de qualquer fluxo sonoro
O Quadro 4 apresenta uma ilustraccedilatildeo dos tipos de relaccedilatildeo entre fluxo visual e sonoro
no trecho analisado Esta figura natildeo representa uma linha do tempo mas dois momentos nos
140 Neste trecho a accedilatildeo visual do percussionista natildeo estaacute diretamente relacionada a nenhum fluxo sonoro
119
quais as relaccedilotildees expressas na tabela se apresentam em ordem diversa Por exemplo a relaccedilatildeo
c) acontece diversas vezes na primeira parte
A voz ao vivo do recitante se confunde com uma leitura preacute-gravada e pode ser
categorizada no fluxo leitura 2 (longe) Este fluxo eacute composto por ambos sons preacute-gravados e
sons ao vivo Identificar as relaccedilotildees destes dois componentes no interior do fluxo natildeo eacute tatildeo
importante para nossa anaacutelise Para nosso objetivo eacute suficiente designaacute-lo como um fluxo
sonoro e apontar a relaccedilatildeo ocasional com o visual
Note-se que a relaccedilatildeo entre os fluxos e sua presenccedilaausecircncia tecircm o potencial de
articular a forma da peccedila Neste trecho (parte 1b) podemos distinguir dois momentos O
primeiro apresenta uma relaccedilatildeo mais variaacutevel do visual do recitante com os diversos fluxos
sonoros No segundo haacute uma preponderacircncia da relaccedilatildeo entre o visual do recitante e a leitura
2 (longe) A atividade dos sons de folhas ausente no primeiro momento eacute outro aspecto que
colabora para tal subdivisatildeo Aleacutem disso no primeiro momento o percussionista apresenta
uma accedilatildeo visual que natildeo corresponde diretamente a som algum no segundo sua accedilatildeo visual
se relaciona por uma interaccedilatildeo inexata com estes sons de folha
Este efeito em que ora a accedilatildeo visual corresponde a um evento sonoro natural ou
convencionalmente ligado a ela ora a outro evento ora a nenhum evento o compositor
chama de duplicaccedilatildeo estranha (strange doubling) Efeito-ventriacuteloquo (ventriloque effect) e
sincronizaccedilatildeo labial (lip-sync) estatildeo associados a esta duplicaccedilatildeo
Ainda inerente agrave proacutepria premissa desse meio musical bifurcado [ao vivo e preacute- gravado] no entanto estaacute a ideia central de natildeo tocar embora fingindo tocar Consequentemente o deslocamento espacial do som virtual em relaccedilatildeo ao agente ao vivo propotildee um tipo de efeito de ventriloquismo E se esse conceito de sincronizaccedilatildeo labial eacute levado um passo adiante um gesto ao vivo que ambos fingem tocar e ainda tenha se tornado destacado da sua funccedilatildeo translativa convida o proacuteximo de nossos lsquoconvidados natildeo convidadosrsquo Este eacute o estranho momento de erro de traduccedilatildeo entre a sincronizaccedilatildeo labial ao vivo ou falsa duplicaccedilatildeo e sua reproduccedilatildeo preacute-gravada Entre uma desassociaccedilatildeo quase imperceptiacutevel e uma separaccedilatildeo grotescamente exagerada um vasto jogo de confusatildeo trazido pela ambiguidade de ldquoquem estaacute fazendo o quecircrdquo eacute criado Essa incerteza eacute ainda mais exacerbada por causa dos alto-falantes ocultos atraacutes do puacuteblico criando ainda outra camada de erro de percepccedilatildeo uma ainda mais estranha duplicaccedilatildeo embora intermitente e assim propositalmente imprevisiacutevel E no entanto a duplicaccedilatildeo remete agraves suas raiacutezes no acuacutemulo de interpretaccedilotildees e representaccedilotildees verticais O teatro eacute uma orquestraccedilatildeo alternativamente uma heterofonia que se projetou explicitamente no domiacutenio visual141 (TAKASUGI 2006 natildeo paginado)
141 Original ldquoStill inherent in the very premise of this bifurcated musical medium however is the core idea of not playing though pretending to play Consequently the spatial displacement of virtual sound and live agent proposes a ventriloquism-effect of sorts And if this concept of lip- syncing is taken one step further a live gesture that both pretends to play and yet has also become detached from its translative function solicits
120
O principal objetivo desta anaacutelise de Strange Autumn eacute argumentar sobre a
importacircncia do aspecto visual na muacutesica mista Natildeo como um aspecto teatral puramente - o
que nos levaria agrave outra pesquisa - mas como um aspecto inerente ao tocar executar haacute uma
relaccedilatildeo causal entre accedilatildeo visual e reaccedilatildeo aural que pode ser explorada criativamente a ponto
de pensarmos o fluxo visual mais ou menos independente do sonoro como um componente
da textura
43 M USICFOR SNARE DRUMAND COMPUTER DE CORT LIPPE
Entre as peccedilas elencadas no siacutetio do compositor Cort Lippe encontram-se um conjunto
para instrumento e computador e algumas peccedilas para instrumento e sons fixados em suporte
(tape) aleacutem de outras puramente instrumentais ou eletroacuacutesticas Para a maioria das peccedilas o
compositor disponibiliza notas de programa uma pequena explicaccedilatildeo sobre questotildees teacutecnicas
e esteacuteticas O conteuacutedo destas notas eacute interessante para a discussatildeo levantada em 23
especialmente no que concerne agrave diferenccedila com que expotildee questotildees de interaccedilatildeo entre os
meios instrumental e eletroacuacutestico Por isso antes de abordarmos Music fo r Snare Drum and
Computer (2007) apresentaremos uma reflexatildeo em torno das notas de programa de Cort
Lippe atentando para a diferenccedila entre duas categorias de peccedilas aquelas para instrumento e
computador e aquelas para instrumento e sons preacute-gravados
431 Instrumento(s) e computador e instrumento(s) e tape no trabalho de Cort Lippe
Para todas as peccedilas para instrumento e computador Lippe oferece uma explicaccedilatildeo
comum ainda que o texto seja diferente para cada uma As notas sobre a peccedila para caixa clara
e computador traz a seguinte observaccedilatildeo ldquoA relaccedilatildeo entre instrumento e computador se move
the next of our uninvited guest This is the strange moment of mistranslation between live lip-syncing or false doubling and its pre- recorded playback Between a just-noticeable decoupling and a grotesquely exaggerated departure a vast play of confusion brought on by the ambiguity of who is doing what is created This uncertainty is further exacerbated by hidden loudspeakers from the rear of the audience creating yet another layer of perceptual misdirection a further strange doubling though intermittent and thereby purposefully unpredictable And yet doubling refers back to its roots in the accumulation of vertical interpretations and representations Theater is an orchestration alternatively a heterophony which has projected itself explicitly into the visual domainrdquo (TAKASUGI 2006)
121
num continuum entre os polos de um solo extendido e um duordquo142 (LIPPE 2007) Nas notas
sobre a Music fo r Tenor Steel Pan and Computer (2011) haacute algumas outras informaccedilotildees
Musicalmente a parte do computador agraves vezes natildeo eacute separada da parte do pan e serve para amplificar o pan em muacuteltiplas dimensotildees e direccedilotildees enquanto que no outro extremo do continuum a parte do computador tem sua proacutepria voz musical independente Estas relaccedilotildees solosuo existem simultaneamente ainda tem um certo niacutevel de ambiguidade teacutecnica e musical Muito parecido com a performance de muacutesica de cacircmara em que a expressividade individual agraves vezes se destina a servir ao todo e em outros momentos tem uma influecircncia individual fundamental sobre todo o grupo [ensemble] as relaccedilotildees musicais entre o performer e o computador satildeo fundamentais para os resultados musicais (LIPPE 2011 traduccedilatildeo nossa143)
Nas notas sobre Music fo r Sextet and Computer (1993) expressa de outra maneira ldquoA
relaccedilatildeo entre a eletrocircnica e as partes instrumentais varia sobre um continuum entre texturas
fundidas (transcendentais) e separadas form ais)rdquo144 (LIPPE 1993) E acrescenta ldquoEnquanto
isso trabalhar com computadores me faz questionar a linha tecircnue que agraves vezes separa muacutesica
e efeitos especiaisrdquo145 (LIPPE 1993) Esta frase aponta para uma discussatildeo pertinente em
relaccedilatildeo aos processamentos eletrocircnicos em tempo real Ela estaacute relacionada com a tendecircncia
de que com estas ferramentas a relaccedilatildeo entre instrumento e sons eletroacuacutesticos se restrinja a
um efeito sobre o som instrumental de maneira semelhante ao efeito de reverberaccedilatildeo por
exemplo
O trabalho de Lippe com instrumentos e computador portanto se encontra na fronteira
destas duas categorias por um lado os efeitos especiais que estendem o som instrumental
gerando texturas fundidas por outro a ldquomuacutesicardquo isto eacute uma parte eletroacuacutestica
independente Mas entre estes dois ldquoterritoacuteriosrdquo existe um espaccedilo de fronteira de
ambiguidade um continuum entre estes dois polos no qual se move a relaccedilatildeo entre
instrumentos e sons eletroacuacutesticos Esta relaccedilatildeo pode ocupar tambeacutem dois pontos deste
142 Original ldquoThe instrumentcomputer relationship moves on a continuum between the poles of an extended solo and a duordquo (LIPPE 2007)
143 Original ldquoMusically the computer part is at times not separate from the pan part and serves to amplify the pan in multiple dimensions and directions while at the other extreme of the continuum the computer part has its own independent musical voice These soloduo relationships exist simultaneously yet have a certain level of musical and technical ambiguity Much like chamber music playing in which individual expressivity sometimes is meant to serve the whole and at other times has a fundamental individual influence on the entire ensemble the musical relationships between the performer and computer are fundamental to the musical resultsrdquo (LIPPE 2011)
144 Original ldquoThe relationship between the electronics and the instrumental parts ranges on a continuum between fused (transcendental) and separate (formal) texturesrdquo (LIPPE 1993)
145 Original ldquoMeanwhile working with computers keeps me questioning the fine line that sometimes separates music and special effectsrdquo (LIPPE 1993)
122
continuum Isto eacute a funccedilatildeo do computador pode ser estender o som instrumental e ao mesmo
tempo apresentar sua proacutepria ldquovoz musical independenterdquo
Nas peccedilas para instrumento e sons preacute-gravados as notas tambeacutem trazem um elemento
comum Na nota sobre Music fo r Harp and Tape (1990) escreve
A relaccedilatildeo instrumentomaacutequina eacute inteiramente simbioacutetica - o instrumento e a parte preacute-gravada satildeo iguais no diaacutelogo musical Agraves vezes uma parte [instrumental ou eletroacuacutestica] pode dominar mas na estrutura formal geral um duo estaacute impliacutecito146 (LIPPE 1990)
As notas da Music fo r Bass Clarinet and Tape (1989) trazem o seguinte
A seccedilatildeo de abertura eacute um diaacutelogo entre instrumento e sons preacute-gravados [tape] e eacuteseguida por uma seccedilatildeo na qual a parte do dos sons preacute-gravados domina Isto emtroca abre espaccedilo para um solo de clarineta baixo enquanto na quarta seccedilatildeo os sons preacute-gravados satildeo dominados pela clarineta Na seccedilatildeo final o instrumento e os sons preacute-gravados estatildeo novamente mais equilibrados - reminiscecircncia da seccedilatildeo de abertura147 (LIPPE 1989)
Enquanto que as notas sobre as peccedilas para instrumento e computador valem-se do eixo
dependecircncia-independecircncia entre estes aquelas sobre as peccedilas para instrumento e sons preacute-
gravados utilizam o eixo dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo para tratar da relaccedilatildeo entre estes Nas
primeiras natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo significativa com explicitar estruturas formais da peccedila ao
passo que nas segundas a explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre instrumento e sons preacute-gravados se daacute
atraveacutes de uma explicitaccedilatildeo das diferentes seccedilotildees Isto eacute a relaccedilatildeo entre a parte instrumental e
a parte preacute-gravada eacute um dos elementos responsaacuteveis pela articulaccedilatildeo de seccedilotildees na forma
geral da peccedila
Embora tendo feito esta diferenciaccedilatildeo no caso de Music fo r Harp and Tape a ideia de
sons processados em tempo real e sons preacute-gravados se confundem Isto porque o compositor
produziu a parte preacute-gravada a partir de processamento em tempo real
Isso levanta a hipoacutetese de que na praacutetica de Lippe as diferenccedilas esteacuteticas tenham
relaccedilatildeo com as diferenccedilas tecnoloacutegicas Embora independecircncia-dependecircncia e dominaccedilatildeo-
146 Original ldquoThe instrumentmachine relationship is entirely symbioticmdash the instrument and tape are equals in the musical dialogue At times one part may dominate but in the overall formal structure a duo is implicitrdquo (LIPPE 1990)
147 Original ldquoThe opening section is a dialogue between the instrument and tape and is followed by a section in which the tape part dominates This in turn gives way to a bass clarinet solo while in the fourth section the tape part is dominated by the clarinet In the final section the instrument and tape are again somewhat equal - reminiscent of the opening sectionrdquo (LIPPE 1989)
subordinaccedilatildeo possam se referir de maneira diferente agraves mesmas relaccedilotildees haacute uma diferenccedila
crucial na maneira com que o compositor expressa estas relaccedilotildees nestes dois tipos de teacutecnicas
As notas sobre as peccedilas para instrumento e sons preacute-gravados natildeo trazem a ideia de um solo
extendido A ideia mais proacutexima a este extremo do continuum seria a de relaccedilatildeo simbioacutetica
(Music fo r Harp and Tape) em que os dois meios se beneficiam Esta noccedilatildeo eacute trazida na peccedila
que se vale de processamento em tempo real para criar o tape As outras peccedilas para
instrumento e tape parecem partir de um contraste ainda maior que esta relaccedilatildeo simbioacutetica a
ideia eacute de diaacutelogo (portanto entre duas entidades diferentes)148
Se estas constataccedilotildees podem ser extrapoladas para a experiecircncia dos compositores em
geral podemos levantar a hipoacutetese de que trabalhando com processamentos em tempo real da
parte instrumental partimos da fusatildeo Isto eacute a relaccedilatildeo mais faacutecil a primeira que pode vir agrave
mente eacute que a parte eletroacuacutestica funcione como uma extensatildeo da parte instrumental
Evidentemente natildeo decidimos sempre pelo que primeiro nos vem agrave mente trata-se aqui de
apontar uma primeira tendecircncia Por outro lado o processo de composiccedilatildeo dos sons preacute-
gravados se daacute mais ou menos independentemente da parte instrumental A primeira ideia a
vir agrave mente pode natildeo ser a de uma extensatildeo da parte instrumental mas da instituiccedilatildeo de uma
parte paralela com conteuacutedo sonoro proacuteprio
432 Music fo r Snare Drum and Computer
Na peccedila para caixa clara e computador consideraremos dois fluxos um instrumental e
outro eletroacuacutestico Embora pudesse haver dois ou mais fluxos instrumentais ou
eletroacuacutesticos natildeo identificamos tal segregaccedilatildeo em nossa anaacutelise Nos deteremos nos seis
minutos iniciais da peccedila (duas primeiras paacuteginas da partitura) Um aspecto primordial em
nossa anaacutelise seraacute a noccedilatildeo de gatilho (WISHART 1996) e de causalidade (SMALLEY 1997)
A atividade do computador depende fortemente da atividade instrumental de modo que a
independecircncia que a parte eletroacuacutestica conquista aos poucos manteacutem ainda que agraves vezes
menos claramente a caracteriacutestica de gatilho em relaccedilatildeo agrave parte instrumental A parte
instrumental aciona o gatilho que daacute iniacutecio aos eventos eletrocircnicos Isso se deve agrave maneira
com que o compositor trabalha a parte do computador Nas notas de programa ele explica
123
148 Natildeo devemos descartar a hipoacutetese de que isso se deva a um diferente posicionamento esteacutetico relacionado mais agrave fase do compositor do que agrave tecnologia utilizada
124
A parte eletrocircnica foi criada nos Estuacutedios de Muacutesica Computacional Hiller da Universidade em Buffalo Nova York usando MaxMSP Tecnicamente o computador rastreia paracircmetros da performance da caixa clara e usa esta informaccedilatildeo para influenciar e manipular continuamente a saiacuteda sonora do computador por afetar diretamente a siacutentese digital e algoritmos composicionais em tempo real Os algoritmos de siacutentese digital focam no processamento espectral no domiacutenio da frequecircncia e inclui filtragem delayrealimentaccedilatildeo feedback] espacializaccedilatildeo fotografias timbrais [timbral snapshot] siacutentese cruzada reduccedilatildeoaumento de ruiacutedo e reordenaccedilatildeo de componentes de canais individuais de FFT149 (LIPPE 2007)
Um dos paracircmetros rastreados (tracked) mais evidentes eacute o envelope de amplitude da
performance da caixa
Na maior parte do tempo o iniacutecio dos eventos eletroacuacutesticos estaacute vinculado ao iniacutecio
do som instrumental Como apontado em 31 ldquose duas coisas estatildeo altamente correlacionadas
eacute altamente provaacutevel que emergiram de uma mesma fonte enquanto que se duas coisas satildeo
assincrocircnicas eacute provaacutevel que sejam associadas com dois objetos diferentesrdquo (SHEPARD
1999 p 117) Instrumento e sons eletrocircnicos estatildeo altamente correlacionados nesta peccedila A
correlaccedilatildeocoordenaccedilatildeo dos ataques eacute constante Isso representa uma forccedila em direccedilatildeo agrave
fusatildeo O recurso que diferenciaraacute os dois fluxos em direccedilatildeo ao contraste eacute o restante do
envelope (decaimento sustentaccedilatildeo e relaxamento)
O trecho analisado compreende 16 programas do sistema interativo com um uso
variado dos diferentes paracircmetros rastreados Uma investigaccedilatildeo do patch do Max poderia
trazer mais dados referentes ao rastreio e mapeamento de paracircmetros e isso por sua vez nos
proporcionaria pensar em outras relaccedilotildees musicais entre estes dois fluxos Entretanto como
ficaraacute evidente o eixo atividade-inatividade eacute um dos aspectos mais importantes da relaccedilatildeo
entre os fluxos e para abordaacute-lo focaremos sobre o paracircmetro do envelope Temos
consciecircncia de que esta posiccedilatildeo natildeo abrange uma seacuterie de aspectos relevantes da peccedila
(processamentos espectrais por exemplo) que estatildeo envolvidos em interessantes relaccedilotildees
entre os fluxos Entretanto o objetivo da nossa anaacutelise seraacute apenas demonstrar o aspecto mais
evidente da relaccedilatildeo entre eles
Num primeiro momento (programas 1 e 2) o envelope da parte eletrocircnica estaacute
correlacionado ao envelope da caixa Posteriormente o computador estende a sustentaccedilatildeo nos
149Original ldquoThe electronic part was created at the Hiller Computer Music Studios of the University at Buffalo New York using MaxMsp Technically the computer tracks parameters of the snare drum performance and uses this information to continuously influence and manipulate the computer sound output by directly affecting digital synthesis and compositional algorithms in real-time The digital synthesis algorithms focus on spectral processing in the frequency domain and include filtering delayfeedback spatialization timbral snapshots cross-synthesis noise reductionenhancement and component reordering of individual FFT channelsrdquo (LIPPE 2007)
programas 3 e 4 se tornando mais independente Entretanto mesmo quando alcanccedila uma
diferenciaccedilatildeo - ldquosua proacutepria voz musicalrdquo - por causa dos diferentes envelopes o programa
continua rastreando cada ataque e mudando algo (conteuacutedo espectral por exemplo) neste
fluxo eletrocircnico que continua
No programa 5 a parte eletrocircnica volta a um envelope semelhante ao da caixa se
aproximando da ideia de efeito novamente O programa 6 apresenta o mesmo material do 5
com o acreacutescimo de um material mais grave de envelope independente que surge nos
momentos de pausa da caixa O programa 7 apresenta novas sonoridades eletroacuacutesticas que
se tornam mais independentes no programa 8 Do programa 9 ao 16 acontece um crescendo
na parte eletroacuacutestica Uma intensificaccedilatildeo tanto da dinacircmica como tambeacutem da independecircncia
deste fluxo em relaccedilatildeo ao instrumental O programa 16 representa um primeiro aacutepice da peccedila
Assim embora neste trecho analisado a relaccedilatildeo entre os fluxos se mova no eixo
dependecircncia-independecircncia mantemos a sensaccedilatildeo de dependecircncia da parte eletroacuacutestica em
relaccedilatildeo agrave instrumental mesmo quando se distancia desta em diversos paracircmetros
Os fluxos apresentam o que foi abordado em 343 como modo de relacionamento de
atividade-inatividade (SMALLEY 1997) A relaccedilatildeo entre eles se daacute pela maior ou menor
atividade de cada fluxo Anotaccedilotildees sobre a pauta indicam a importacircncia deste paracircmetro
Abaixo (Quadro 5) listamos as indicaccedilotildees presentes no trecho em questatildeo Os programas 1 e
2 natildeo apresentam indicaccedilotildees sobre atividade por isso supomos uma atividade regular A
atividade da parte eletroacuacutestica estaacute apenas impliacutecita nestas indicaccedilotildees da partitura
entretanto na tabela abaixo indicamos sua atividade por comparaccedilatildeo atraveacutes da escuta da
gravaccedilatildeo disponiacutevel no siacutetio do compositor150
125
150 Temos tambeacutem na memoacuteria a performance desta peccedila pelo UM2UO que presenciamos no Simpoacutesio Muacutesica Nova 2018 em Curitiba
126
QUADRO 5 - ATIVIDADE DOS FLUXOS INSTRUMENTAL E ELETROACUacuteSTICO EM MUSIC FOR
SNAREDRUMAND COMPUTER DE CORT LIPPE (6 MINUTOS INICIAIS)
p Sons instrumentais(indicaccedilotildees de Lippe na partitura com exceccedilatildeo dos programas 1 e 2 que satildeo anaacutelises nossas)
Sons eletrocircnicos(anaacutelise nossa)
1 Atividade regular inativo mdashgt menos ativo
2 Atividade regular menos ativo
3 ldquopoco a poco mais ativordquo =
4 ldquosubito menos ativordquo ldquopermitir a sustentaccedilatildeo do computadorrdquo ldquoraquooco a poco menos ativo (deixar o computador desaparecer [fade|) mais ativo
5 ldquosubito mais ativordquo ldquopoco a poco mais ativo =
6 ldquosempre ativo (ouccedila o computador)rdquo =
7 ldquosempre ouccedila o computador) poco a poco menos ativo e pausas longasrdquo =
8 ldquo(sempre ouccedila o computador) poco a poco menos ativo e pausas longasrdquo mais ativo
9 ldquo(sempre ouccedila o computador) poco a poco menos ativo e pausas longasrdquo mais ativo
10 ldquonatildeo ativordquo mais ativo
11 ldquonatildeo ativordquo mais ativo
12 ldquopoco a poco levemente mais ativordquo mais ativo
13 ldquosempre poco a poco levemente mais ativordquo ldquo(ritmos algo regulares)rdquo =
14 ldquosempre poco a poco mais ativordquo ldquo(poco a poco ritmos mais regulares)rdquo =
15 ldquosempre poco a poco mais e mais ativordquo ldquo(poco a poco ritmos mais regulares)rdquo
=
16 ldquoatividade maacuteximardquo =P = programas
FONTE Lippe (2007) e anaacutelise do autor (2019)
A fim de visualizar esta relaccedilatildeo de outra maneira atribuiacutemos um valor relativo de
atividade sendo 0 = natildeo ativo e 5 = atividade maacutexima Obtemos assim uma representaccedilatildeo
visual da relaccedilatildeo entre os fluxos no modo de relacionamento atividade-inatividade
GRAacuteFICO 1 - ATIVIDADE DE DOIS FLUXOS (INSTRUMENTAL E ELETRO ACUacuteSTICO) EM MUSIC
FOR SNARE DRUMAND COMPUTER DE CORT LIPPE (6 MINUTOS INICIAIS)
5
4
bullS 3cd T3
o1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
Programas
FONTE o autor (2019)
Sons instrumentais Sons eletrocircnicos
Ao observarmos o graacutefico natildeo eacute difiacutecil imaginarmos uma partitura tornando possiacutevel
assim fazer uma analogia com o movimento entre vozes distintas paralelo obliacutequo e
contraacuterio Em vez da direccedilatildeo dos movimentos intervalares de cada voz observamos a direccedilatildeo
dos movimentos no eixo atividade-inatividade de cada fluxo
44 IN MEMORJAM JO N HIGGINS DE ALVIN LUCIER
In Memoriam Jon Higgins (1984) para Clarineta em laacute e oscilador eacute a primeira peccedila
de Alvin Lucier para instrumento solo e gerador de ondas puras A peccedila consiste num
glissando ascendente de 20 minutos do oscilador que varre a tessitura da clarineta sofrendo
interferecircncia perioacutedica por esta O glissando ascende um semitom a cada 30 segundos O
clarinete toca uma nota durante um minuto (agraves vezes duas de 30 segundos) e pausa durante 30
segundos As frequecircncias fundamentais das notas do clarinete se encontram proacuteximas agraves
frequecircncias do oscilador e por isso causam o fenocircmeno de batimento Este fenocircmeno eacute criado
a partir da interaccedilatildeo entre sons da clarineta e sons do oscilador Assim nossa anaacutelise objetiva
demonstrar o desenvolvimento dos batimentos ao longo da peccedila e seus consequentes aspectos
interativos De um lado abordamos questotildees sonoro-morfoloacutegicas de interferecircncia e gesto de
outro as questotildees da performance fazendo uma analogia com sistemas interativos
Batimento eacute um fenocircmeno acuacutestico que ocorre quando duas ou mais frequecircncias estatildeo
proacuteximas Uma variaccedilatildeo perioacutedica de amplitude (batimento) eacute causada pelas interferecircncias
construtivas e destrutivas entre as duas ondas A frequecircncia de batimento eacute igual agrave diferenccedila
entre as duas frequecircncias (LOY 2006) Por exemplo o primeiro intervalo da peccedila eacute uma
segunda menor em que o clarinete toca um Reacute (cerca de 73 Hz) e o oscilador eacute um Doacute
sustenido (cerca de 69 Hz) portanto a frequecircncia de batimento eacute igual a cerca de 4 Hz A nota
da clarineta eacute constante natildeo muda sua frequecircncia fundamental A frequecircncia do oscilador
sobe ateacute alcanccedilar o uniacutessono com a clarineta diminuindo assim a diferenccedila entre as
frequecircncias e portanto diminuindo a frequecircncia de batimento que vai de 4 Hz para 0 Hz o
que poderiacuteamos chamar de um ritardando
127
128
FIGURA 36 - ILUSTRACcedilAO DE BATIMENTOS ACCELERANDO E RJTARDANDO NO COMECcedilO DE INMEMORIAM JON HIGGINS
A Clarinet(Sounds a minor third
lower than written)
Oscillator(Actual sounds) I
Intervals 1 u (-1)(semitones u = unison)__________________________________________________________________
X T ----------------------0 rdquo 30rdquo
tixT---------------- --- rdquo 1rsquo 1 rsquo 30rdquo
W W W VAAAWritardando accelerando
FONTE o autor (2019)
Dois paracircmetros satildeo diretamente associados nesta relaccedilatildeo (micro)intervalo e ritmo
Nas palavras do compositor ldquoO fenocircmeno do batimento acuacutestico a ideia de que o ritmo pode
ser criado pela afinaccedilatildeo Eu gosto muito desta ideiardquo151
Devemos considerar que um semitom natildeo eacute sempre o mesmo intervalo no domiacutenio da
frequecircncia Por exemplo em comparaccedilatildeo com o primeiro intervalo da peccedila o uacuteltimo tambeacutem
de um semitom eacute tambeacutem o intervalo entre o Doacute sustenido (554 Hz) e o Reacute (587 Hz) A
diferenccedila entre as frequecircncias no primeiro intervalo era de 4 Hz neste uacuteltimo eacute de 33 Hz
Assim para um ldquomesmordquo semitom diferentes frequecircncias de batimentos satildeo possiacuteveis Como
a peccedila tem uma direcionalidade contiacutenua para o agudo a diferenccedila entre as frequecircncias
aumenta conforme vatildeo para um registro mais agudo de maneira que eacute possiacutevel perceber um
accelerando ao longo da peccedila Assim outros dois paracircmetros satildeo associados ritmo e registro
Algumas caracteriacutesticas perceptuais dos batimentos satildeo importantes para entendermos
a complexidade que se instaura nestes materiais e processos superficialmente simples (1)
Quando a frequecircncia de batimento diferenccedila entre as duas frequecircncias eacute menor do que cerca
de 15 Hz percebemos elas como uma uacutenica - a meacutedia das duas frequecircncias com uma variaccedilatildeo
de amplitude os batimentos (LOY 2006 p 174) No primeiro intervalo por exemplo entre
69 Hz e 73 Hz ouvimos uma uacutenica frequecircncia de 71 Hz com um batimento de 4 Hz Neste
caso (ateacute cerca de 15 Hz) a frequecircncia de batimento eacute muito lenta para o percebermos como
altura percebemos suas oscilaccedilotildees individuais como ritmo (2) Quando a frequecircncia de
batimento eacute maior que cerca de 50 Hz as oscilaccedilotildees satildeo muito raacutepidas para serem percebidas
151 ldquoThe phenomenon of acoustical beating the idea that rhythm can be created by tuning I like that idea a lotrdquo Disponiacutevel em lthttpalvin-lucier-filmcomhigginshtmlgt Acesso em 12 jan 2019
129
individualmente assim percebemos as duas frequecircncias como duas alturas e a frequecircncia de
batimento pode ser interpretada como uma terceira altura chamada diference tone Entretanto
(3) se a frequecircncia de batimento estiver entre 15 Hz e 50 Hz aproximadamente152 por um lado
as oscilaccedilotildees satildeo muito raacutepidas para as ouvirmos como ritmo por outro as frequecircncias estatildeo
muito proacuteximas para distinguirmos duas alturas Assim nesta faixa os batimentos soam
rugosos O Graacutefico 2 mostra o desenvolvimento dos batimentos ao longo da peccedila de Lucier
Diferentemente da partitura o Graacutefico 2 demonstra importantes aspectos da percepccedilatildeo
da peccedila de Lucier especialmente o comportamento alternante entre os paradigmas de
batimento riacutetmico (ateacute 15 Hz) rugoso (entre 15 Hz e 50 Hz) e harmocircnico (acima de 50 Hz)
Devido ao direcionamento para o registro agudo e o consequente aumento da diferenccedila entre
as frequecircncias vemos a peccedila se desenvolver progressivamente partindo do primeiro
paradigma em direccedilatildeo a incorporaccedilatildeo mais substancial do segundo e do terceiro
GRAacuteFICO 2 - DESENVOLVIMENTO DOS BATIMENTOS EM IN MEMORIAM JON HIGGINS DE ALVIN LUCIER
FONTE Transcrito de (LUCIER 1987) e analisado pelo autor (2019)
O fenocircmeno de batimentos causado por interferecircncias de uma onda sobre outra eacute por
152 Esta faixa de 15 Hz a 50 Hz aproximadamente eacute chamada banda criacutetica ldquoFor a given frequency the critical band is the smallest band of frequencies around it which activate the same part of the Basilar Membranerdquo (TRUAX 1999 Critical Band) ldquoThe roughness only disappears at a frequency separation equal to the critical bandwidth (about one third of an octave)rdquo (LOY 2006 p180)
si soacute uma interaccedilatildeo entre as ondas Neste caso se reflete numa interaccedilatildeo entre os fluxos
sonoros do oscilador e da clarineta Um dos aspectos mais importantes desta interaccedilatildeo eacute a
fusatildeo e o contraste (MENEZES 2006) que neste caso devem ser interpretados de maneira
peculiar devido aos efeitos psicoacuacutesticos envolvidos Apresentamos abaixo uma escala da
fusatildeo ao contraste presente nesta peccedila
bull Uniacutessono similaridade causando o estado de duacutevida Existe a transferecircncia de
caracteriacutestica espectral (frequecircncia fundamental) Natildeo se trata de uma similaridade
absoluta pois alguns fatos corroboram com a distinccedilatildeo clarineta natildeo eacute amplificada e
estaacute separada espacialmente do alto-falante por exemplo
bull Batimentos ateacute 15 Hz a fusatildeo acontece por dois fatores a frequecircncia ouvida eacute apenas
uma (a meacutedia entre as duas fundamentais) e instrumento e oscilador apresentam o
mesmo envelope de amplitude - o proacuteprio efeito de batimento
bull Batimentos de 15 a 50 Hz estaacutegio confuso com rugosidade na qual a condiccedilatildeo de
duacutevida proacutepria da fusatildeo estaacute se dissolvendo
bull Quando a diferenccedila entre fundamentais eacute maior que 50 Hz existe fusatildeo e relativo
contraste As duas frequecircncias estatildeo afastadas o suficiente para diferenciarmos a
clarineta do oscilador (relativo contraste) poreacutem as duas frequecircncias causam na escuta
no miacutenimo uma terceira frequecircncia (difference tone) O estado de duacutevida se estabelece
pois natildeo sabemos se esta frequecircncia ldquofantasmardquo vem da clarineta ou do oscilador De
fato nem de um nem de outro mas da interaccedilatildeo entre os dois
bull Pausa da clarineta contraste
Esta abordagem sobre fusatildeo e contraste explica a importacircncia do uniacutessono como o
momento de maior integraccedilatildeo um ponto convergente no qual o estado de duacutevida em relaccedilatildeo agrave
fonte sonora eacute evidente Como explica Menezes (2006 p 387) ldquoAinda que de forma alguma
hegemocircnico o estado de duacutevida traduz-se como momento supremo da interaccedilatildeordquo
No momento da performance o aspecto da integraccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo das fontes
sonoras eacute afetado pela disposiccedilatildeo do instrumentista e do alto-falante no palco O uacutenico alto-
falante que toca a parte do oscilador deve ficar agrave direita e o clarinetista agrave esquerda Esta
separaccedilatildeo ajuda a diferenciarmos as duas fontes e os dois fluxos sonoros E torna ainda mais
interessante os momentos de fusatildeo devido agrave estranha impossibilidade de se fazer a
diferenciaccedilatildeo em uma situaccedilatildeo em que isso seria simples
O ritmo em In Memoriam Jon Higgins natildeo surge por accedilatildeo individual de cada parte
130
(clarineta e oscilador) mas pela sua interaccedilatildeo Enquanto o glissando do oscilador eacute
continuamente ascendente as notas da clarineta satildeo estaacuteveis se manteacutem por 30 ou 60
segundos Assim a cada entrada da clarineta daacute-se iniacutecio a um gesto que consiste em
movimentos obliacutequos As duas frequecircncias se aproximam e se afastam causando batimentos
em accelerando e em rallentando respectivamente Estes movimentos podem ser
visualizados no Graacutefico 2 Da esquerda para a direita a linha preta ascendente representa um
accelerando enquanto que a descendente representa um rallentando Aleacutem disso eacute possiacutevel
perceber uma progressatildeo geral destes gestos Haacute uma expansatildeo da diferenccedila entre as
frequecircncias em Hz embora em semitons esta distacircncia se repete (maior intervalo eacute de 3
semitons) o que significa um aumento da frequecircncia maior dos gestos de accelerando e
rallentando
Estes gestos de batimentos estatildeo inseridos dentro do enorme glissando que sobe de
maneira quase imperceptiacutevel Assim podemos entender uma estrutura hieraacuterquica em que o
glissando de 20 minutos compreende uma estrutura de um niacutevel superior high-level
(SMALLEY 1997) enquanto que as interferecircncias perioacutedicas podem ser entendidas como de
um niacutevel inferior (low-level) A interaccedilatildeo acontece tambeacutem entre estes dois niacuteveis da estrutura
hieraacuterquica O niacutevel inferior altera o niacutevel superior Novamente estamos diante de uma
relaccedilatildeo de causalidade
Gestos como este do oscilador desafiam a percepccedilatildeo devido a sua dimensatildeo seu lento
desenvolvimento Como aponta Smalley (1997 p 113-114) ldquo[] haacute uma mudanccedila de foco
da escuta - quanto mais lento o iacutempeto gestual direto tanto mais o ouvido procura se
concentrar em detalhes internos []rdquo153 Podemos dizer assim que a peccedila de Lucier nos
convida para concentrarmos nos detalhes internos do som tais como variaccedilatildeo de amplitude
variaccedilatildeo micro-intervalar e fenocircmeno de difference tone
Os aspectos tecnoloacutegicos e praacuteticos da performance tambeacutem fomentam reflexotildees A
parte do oscilador eacute definida previamente e eacute difundida por um uacutenico alto-falante no momento
da performance Neste sentido a peccedila funciona como uma peccedila para instrumento e sons
fixados em suporte O performer precisa sincronizar com a parte do oscilador para isso
Lucier admite o uso de um afinador cromaacutetico para que o performer possa localizar a
frequecircncia do oscilador Embora entendamos este aspecto fixo do oscilador eacute preciso
considerar que o fenocircmeno de batimentos eacute um processo acuacutestico que acontece sobre ele e eacute
153Original ldquo[] there is a change of listening focus - the slower the direct gestural impetus the more the ear seeks to concentrate on inner details []rdquo (SMALLEY 1997 p 113-114)
131
controlado pelo clarinetista em tempo real Eacute um tipo de sistema interativo De acordo com
Rowe (1993) os sistemas interativos de computaccedilatildeo musical ldquosatildeo aqueles cujo
comportamento muda em resposta a uma entrada musicalrdquo (natildeo paginado) Estas mudanccedilas de
comportamento acontecem devido a uma programaccedilatildeo que estabelece ldquoleisrdquo relaccedilotildees entre a
entrada musical e a saiacuteda musical Na peccedila de Lucier satildeo as leis (psico)acuacutesticas que
estabelecem essa relaccedilatildeo Assim a parte do oscilador ldquomudardquo em resposta agraves notas da
clarineta de acordo com uma relaccedilatildeo acuacutestica presente no fenocircmeno de batimentos
(interferecircncias construtivas e destrutivas) Poderiacuteamos considerar tal configuraccedilatildeo de relaccedilotildees
um sistema interativo acuacutestico
Em conclusatildeo foi possiacutevel nesta anaacutelise identificar certas relaccedilotildees referentes a
interaccedilatildeo tanto como uma questatildeo sonoro-morfoloacutegica (batimentos fusatildeo e contraste gestos
interativos) quanto tecnoloacutegica da performance (relaccedilatildeo do performer com o oscilador preacute-
gravado) Abaixo sumarizamos as relaccedilotildees identificadas
a) Relaccedilatildeo direta entre intervalos e ritmo (frequecircncia de batimento) produzida pelo
fenocircmeno de batimentos
b) Relaccedilatildeo entre registro e frequecircncia de batimento quanto mais para o agudo o registro
mais acelerados satildeo os batimentos
c) Relaccedilatildeo de causalidade os gestos da clarineta causam mudanccedilas no enorme gesto do
oscilador Esta relaccedilatildeo natildeo eacute apenas sonoro-morfoloacutegica mas tambeacutem tecnoloacutegica
praacutetica da performance
Identificar este tipo de relaccedilotildees parece ser um caminho metodoloacutegico importante para
futuros estudos sobre interaccedilatildeo Elas abrem espaccedilo para um estudo natildeo limitado apenas agraves
relaccedilotildees entre performer e tecnologia mas apto para considerar relaccedilotildees em outros acircmbitos
como o sonoro e acuacutestico (aqui abordados) o visual (abordado em 42) o espacial o teatral
entre outros
132
133
5 SOBRE MEU PROCESSO COMPOSICIONAL
Em 2012 meu primeiro ano no curso de Bacharelado em Muacutesica - Composiccedilatildeo na
cidade de Pelotas - RS acontecia o primeiro Festival Latino-americano de Muacutesica
Contemporacircnea de Pelotas organizado pelo NuMC - Nuacutecleo de Muacutesica Contemporacircnea da
UFPel Na ocasiatildeo ouvi pela primeira vez o que se pode denominar muacutesica eletroacuacutestica
mista Entre as peccedilas deste gecircnero estavam Mosaic (2010) de Joatildeo Pedro Oliveira e Infinito
Silecircncio (2012) de Rogeacuterio Constante Levo a experiecircncia de presenciar a performance
destas peccedilas como uma das mais significativas no contato inicial com o universo da muacutesica de
concerto dos seacuteculos XX e XXI Os sons traccedilavam caminhos diversos entre os alto-falantes o
instrumento e minha imaginaccedilatildeo Se apresentava a mim talvez inconsciente disso no
momento um universo sonoro interativo de constituiccedilatildeo e dissoluccedilatildeo de camadas distintas
de interferecircncias e relaccedilotildees complexas entre materiais Some-se a isto o aspecto (in)visiacutevel da
performance visiacutevel e fiacutesica nos movimentos do performer imaginada ou referenciada quanto
aos sons acusmaacuteticos
Minha produccedilatildeo composicional durante a graduaccedilatildeo apresentou um direcionamento agrave
exploraccedilatildeo de tais caracteriacutesticas De fato uma de minhas primeiras peccedilas a ser apresentada
foi uma peccedila para piano e sons eletrocircnicos em que jaacute apareciam iniciativas natildeo eacute preciso
dizer ingecircnuas de fusatildeo e interaccedilatildeo entre gestos dos dois meios (instrumental e
eletroacuacutestico) Estas caracteriacutesticas interativas migravam sem esforccedilo para o pensamento
puramente instrumental o que seria facilmente demonstraacutevel em outras composiccedilotildees como
Ensaio I (2016) Peccedila para acordeatildeo e sons eletrocircnicos (2016) e tambeacutem em Dois
movimentos para acordeatildeo e piano (2016) que gerou o trabalho de conclusatildeo de curso
(TUCHTENHAGEN 2017) Neste uacuteltimo caso busquei na semioacutetica greimasiana154 modelos
teoacutericos para entender os materiais seu desenvolvimento suas relaccedilotildees e interaccedilotildees tanto no
processo de composiccedilatildeo quanto na anaacutelise posterior Um exemplo simples que ilustra o
interesse em questatildeo eacute aquele em que haacute uma transferecircncia de notas do acordeatildeo para o piano
(Figura 37) Esta transferecircncia acontece de tal forma que o piano interrompe a nota sustentada
do acordeatildeo para fazer soar a sua Este interromper eacute um exemplo destas caracteriacutesticas
interativas em que estava e continuo interessado aleacutem deste interferecircncias causalidades e
outras relaccedilotildees se manifestaram posteriormente
154 Aleacutem da teoria de Algirdas Julien Greimas baseei-me em trabalhos mais recentes como A Muacutesica de Hermeto Pascoal Uma abordagem Semioacutetica (ARRAIS 2006)
134
FIGURA 37 - COMPASSOS 77-78 DE DOIS MOVIMENTOS PARA ACORDEAtildeO E PIANO (2016)Grave (J = c 3 2 )
FONTE Tuchtenhagen (2017)
O interesse por estas caracteriacutesticas interativas continuou na submissatildeo do projeto de
mestrado nesta instituiccedilatildeo Inicialmente o projeto propunha estabelecer relaccedilotildees parameacutetricas
entre sons instrumentais e eletroacuacutesticos por meio de um sistema interativo Natildeo se dirigia
apenas ao estudo dos recursos tecnoloacutegicos do sistema mas tambeacutem agraves relaccedilotildees sonoras visto
que determinado paracircmetro instrumental estaria por meio de uma regra mais ou menos
variaacutevel relacionado a um paracircmetro eletroacuacutestico155 Esta proposta inicial foi modificada no
sentido de tratar menos das questotildees tecnoloacutegicas e mais das sonoro-morfoloacutegicas Atraveacutes da
revisatildeo bibliograacutefica expandiram-se as possibilidades para aleacutem de relaccedilotildees parameacutetricas e
para aleacutem da mencionada interrupccedilatildeo Destas expansotildees destaca-se a possibilidade de
agrupamentos dos eventos sonoros em fluxos distintos que interagem entre si
Durante o mestrado mantive a atividade composicional em paralelo ao trabalho
teoacuterico e analiacutetico Esta dinacircmica de pesquisa possibilitou experimentar os aspectos teoacutericos
na praacutetica composicional bem como levantar a partir da praacutetica questionamentos e
explicaccedilotildees teoacutericas Assim a composiccedilatildeo pode ser vista como parte do meacutetodo de pesquisa
teoacuterica e a teoria pesquisada como parte do meacutetodo de composiccedilatildeo
155 Tal ideia existe em Reacutepons (1984) de Pierre Boulez em que a velocidade de espacializaccedilatildeo de determinado som processado estaacute diretamente relacionada agrave intensidade com que determinado solista executa sua parte Satildeo seis solistas o som de cada um eacute processado e a espacializaccedilatildeo deste som processado acontece de acordo com esta regra
135
Este relato pessoal tem a funccedilatildeo de frisar que a pesquisa estaacute imbricada com o
pesquisador Ela se direciona a meus interesses artiacutesticos desde a graduaccedilatildeo e se deu em
paralelo agrave minha praacutetica composicional Trata-se de uma abordagem pessoal Possivelmente
ela encontre ressonacircncia em outros em seus proacuteprios interesses artiacutesticos e teoacutericos
O olhar sobre as peccedilas de outros compositores cumpriu o objetivo de elucidar a
maneira como eacute possiacutevel perceber as relaccedilotildees entre as partes portanto num niacutevel esteacutesico
(NATTIEZ 1990) Jaacute o olhar analiacutetico sobre minhas composiccedilotildees pretende apontar no niacutevel
poieacutetico como lidei com as relaccedilotildees entre fluxos sonoros156
51 CHAtildeO DE OUTONO
Chatildeo de Outono157 eacute uma peccedila para flauta e sons eletrocircnicos composta no contexto da
disciplina Toacutepicos em Composiccedilatildeo e Esteacutetica da poacutes-graduaccedilatildeo em muacutesica da UFPR O
processo criativo abrangeu um periacuteodo no acircmbito da disciplina (de abril a julho de 2017) com
performance ao final do semestre158 e outro periacuteodo (de revisatildeo) de fevereiro a abril de 2018
com performance no concerto Muacutesica Contemporacircnea Brasileira no dia 11 de abril de 2018
na Sala de Atos do SESC Paccedilo da Liberdade O processo criativo se deu em colaboraccedilatildeo com
a flautista e colega da disciplina (doutoranda) Valentina Daldegan Durante o primeiro
periacuteodo eu participava tambeacutem de aulas de composiccedilatildeo com o professor Clayton Mamedes
numa disciplina da graduaccedilatildeo onde pude trabalhar esta peccedila Meu orientador tambeacutem
acompanhava o processo de composiccedilatildeo e aleacutem disso o professor Mauriacutecio Dottori fez
alguns comentaacuterios que foram importantes na revisatildeo da peccedila Este contexto evidencia o
caraacuteter interpessoal do processo criativo
A peccedila estaacute baseada no poema homocircnimo de Mario Quintana
Chatildeo de outono
Ao longo das pedras irregulares do calccedilamento passam ventando umas pobres folhas amarelas em pacircnico perseguidas de perto por um convite de enterro sinistro
156 Os anexos mencionados no texto a seguir estatildeo disponiacuteveis em lthttpsdrivegooglecomopen id=1Fyt 16u4m5OwtHVfz 1BkxWkOx104OoNyWgt
157 Gravaccedilatildeo da estreacuteia disponiacutevel em lthttpssounddoudcomdaviraubachchaodeoutonogtViacutedeo da estreacuteia disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=l3-ULyfGk2kgtGravaccedilatildeo da segunda performance disponiacutevel em lthttpssounddoudcomdaviraubachchao-de-outonogt Acesso em 18 jan 2019
158 Concerto de encerramento da disciplina Electroacoustic live (or dead) realizado no dia 18 de julho de 2018 no TeUNI - Teatro Experimental da UFPR
136
tatalando aos pulos cada vez mais perto as duas asas tarjadas de negro (QUINTANA 2012 p 77)
A primeira intenccedilatildeo composicional era utilizar a sonoridade da leitura do poema como
um material Eu jaacute havia explorado algo semelhante no experimento Meu Trecho Predileto
(2016) para violatildeo e acordeatildeo sobre outro poema de Mario Quintana Cada nota ou acorde eacute
vinculado a uma siacutelaba Os performers natildeo devem ler o texto em voz alta (exceto ao final)
mas tocam conforme seria a leitura ou seja a leitura mental do texto determina ritmo
acentuaccedilatildeo nuances de dinacircmica e andamento (ver Figura 38) Reutilizar esta teacutecnica numa
peccedila para flauta trazia um interesse a mais pela possibilidade de os sons de fala e de flauta
serem mesclados Eles seriam dois instrumentos associados produzindo som a partir do
mesmo focirclego Isto direcionou o processo para uma exploraccedilatildeo da fronteira entre fala e flauta
FIGURA 38 - EXEMPLO DA UTILIZACcedilAtildeO DO TEXTO COMO SUBSTITUTO DE UMA ESCRITA DE FIGURAS RIacuteTMICAS EM MEU TRECHO PREDILETO
FONTE O autor (2016)
Uma segunda intenccedilatildeo se relacionava mais diretamente ao tema desta pesquisa em sua
concepccedilatildeo inicial construir um sistema interativo em que se estabelecesse relaccedilotildees de
interdependecircncia entre paracircmetros da parte instrumental e eletroacuacutestica Isto foi feito a partir
do sinal da flauta captado ao vivo rastreando (tracking) sua amplitude A fim de facilitar a
diferenciaccedilatildeo de amplitude e tambeacutem por um efeito visual optei por utilizar aleacutem do
microfone de bocal um microfone de controle relativamente afastado da flautista A partitura
indica movimentos de aproximaccedilatildeo e afastamento em relaccedilatildeo a este microfone causando
respectivamente maior e menor amplitude no sinal de aacuteudio Tal sistema foi realizado no
software PureData159 (Pd) utilizando o objeto [env~]
Ainda outra intenccedilatildeo dizia respeito agrave estabilidade morfoloacutegica dos elementos (COSTA
2009)160 Buscava um equiliacutebrio entre elementos estritos e flexiacuteveis na composiccedilatildeo
Diferentemente de trabalhar com uma meacutetrica fixa ou mesmo com a utilizaccedilatildeo de metrocircnomo
para o performer - o que jaacute havia feito na Peccedila para acordeatildeo e sons eletrocircnicos (2016) dei
preferecircncia por uma maior liberdade de interpretaccedilatildeo Desta forma o sistema foi concebido
com cinco programas que necessitam ser sucessivamente ativados durante a performance
Cada um deles tem um comportamento em relaccedilatildeo agrave amplitude do sinal da flauta e natildeo haacute a
necessidade de sincronizar eventos exceto na troca dos programas Aleacutem disso a proacutepria
exploraccedilatildeo do texto se apresentou como um oacutetimo meio de desenvolver elementos especiacuteficos
mas sem a necessidade de serem escritos de uma maneira estrita Isto eacute o tempo de leitura e
outros paracircmetros associados a ela poderiam variar de uma performance para outra Ainda
assim o uso do texto garante certa invariacircncia161 nas proporccedilotildees riacutetmicas e acentuaccedilotildees
possibilitando inclusive o tratamento motiacutevico de um fragmento textual (ver Figura 39)
137
FIGURA 39 - VARIACcedilAtildeO MOTIVICA A PARTIR DE UM FRAGMENTO TEXTUAL (SISTEMAS 2 E 3)
~PPP
FONTE O autor (2018)
A exploraccedilatildeo da fronteira entre a fala e a flauta comeccedilou com anotaccedilotildees neste modelo
de uma nota para cada siacutelaba Inicialmente exploramos (compositor e inteacuterprete) basicamente
trecircs modos de articular fala e flauta (1) voz falada normalmente (2) voz sussurrada (ambas
em posiccedilatildeo ordinaacuteria e tentando fazer soar a flauta com a fala) e (3) leitura mental (usada em
159 Patch disponiacutevel em lthttpsdrivegooglecomopenid=1Fyt16u4m5OwtHVfz1BkxWkOx104OoNyWgt160 Este interesse em particular foi explorado num trabalho apresentado no XXVIII Congresso da ANPPOM
(TUCHTENHAGEN DALDEGAN 2018)161 Costa resume ldquotudo aquilo que a cada apresentaccedilatildeo da peccedila deve do ponto de vista do projeto
composicional levando-se em consideraccedilatildeo todas as suas etapas repetir-se de alguma maneira requer o que chamo de estrateacutegia de invariacircnciardquo (COSTA 2009 p48)
Meu Trecho Predileto Figura 38) Verificamos nos encontros iniciais que a fala normal
ativava pouco o som da flauta devido agrave diferenccedila destas duas atividades Combinar a voz com
sopro direcionado significava deformar a voz ou relegar a flauta a uma muito pequena
ressonacircncia Em ambos os casos acontecia de haver um bloqueio do ar nas consoantes
oclusivas (por exemplo ldquomrdquo ou ldquonrdquo) Aleacutem disso a voz predominava de maneira geral
(especialmente em intensidade) sobre a flauta Por estes motivos flauta e voz falada se
distanciavam eram fluxos completamente distintos Embora fosse uma opccedilatildeo natildeo nos
pareceu uma relaccedilatildeo sonoro-morfoloacutegica interessante no momento devido agrave intenccedilatildeo de
explorar a fronteira a ambiguidade entre elas Com a voz sussurrada chegaacutevamos mais
proacuteximos desta intenccedilatildeo As consoantes oclusivas continuavam incontornaacuteveis mas havia um
maior equiliacutebrio entre a intensidade do sussurro e a da flauta daiacute decorreu o direcionamento
de privilegiar a voz sussurrada Uma soluccedilatildeo encontrada para a voz falada foi utilizaacute-la
cobrindo o bocal mesma posiccedilatildeo da teacutecnica tongue ram162 o que tornava possiacutevel a
alternacircncia com esta teacutecnica de maneira suacutebita A utilizaccedilatildeo do tongue ram combinada aos
cliques de chaves foi uma sugestatildeo da inteacuterprete Ela executava a teacutecnica rapidamente como
na peccedila Come Vengono Prodotti Gli Incantesimi (1985) de Salvatore Sciarrino a qual havia
tocado Outra abordagem foi a de uma fala com as vogais omitidas permanecendo apenas as
consoantes que teriam a funccedilatildeo de ataque do som da flauta Neste modo a compreensatildeo do
texto eacute dificultada Isto era positivo jaacute que a fala estava sendo descontextualizada de sua
funccedilatildeo ordinaacuteria de articulaccedilatildeo da linguagem verbal para um lugar sonoro agraves vezes ocupando
um entre-lugar
Deste processo de exploraccedilatildeo inicial resultaram cinco modos de articulaccedilatildeo entre fala
e flauta
1) leitura mental os sons satildeo tocados no tempo e ritmo como seriam lidas as siacutelabas
para a qual se notou o texto em estilo tachado
2) voz sussurrada omitindo as vogais quase ininteligiacutevel as consoantes satildeo responsaacuteveis
pela articulaccedilatildeo dos sons da flauta para a qual se utilizou a notaccedilatildeo do texto com as
vogais em subscrito
3) voz sussurrada eacute executada com forccedila ofegante para que ative tambeacutem os sons da
flauta para a qual se utilizou a notaccedilatildeo do texto sublinhado
4) voz falada dentro do bocal para a qual se notou o texto dentro de caixas
162 Tongue ram teacutecnica executada cobrindo o porta-laacutebio da flauta com a boca e fechando rapidamente apassagem de ar com a liacutengua gerando assim um ataque percussivo
138
139
5) voz entoada sem altura determinada notada com cabeccedila de nota quadrada fora da
pauta163
Existe uma gama de possibilidades em relaccedilatildeo agrave leitura do texto Isso trazia a
preocupaccedilatildeo de que outros inteacuterpretes optassem por maneiras de ler o texto natildeo previstas ou
desconectadas com a proposta Nos ensaios era possiacutevel ler o texto com a inteacuterprete para
oferecer alguma referecircncia Na partitura optei por definir uma escala de termos referentes ao
andamento da fala que vai de lento (15 a 3 siacutelabas por segundo) a mais raacutepido possiacutevel
A parte eletroacuacutestica foi pensada a partir destas sonoridades da fala Basicamente dois
materiais satildeo articulados A um chamo assovios a outro folhas A confecccedilatildeo do som de
assovios teve o seguinte processo
a) gravaccedilatildeo tanto por mim quanto por Valentina deste assovio com som de ldquossrdquo com
pouco fluxo de ar e com a boca em forma de ldquourdquo
b) filtragem O plugin ReaFir do software Reaper foi usado com a funccedilatildeo de subtrair
perfis construiacutedos com a proacutepria amostra
c) montagens com os sons resultantes do processamento sobreposiccedilatildeo transposiccedilatildeo
reversatildeo entre outras
A confecccedilatildeo do som de folhas passou por
a) gravaccedilatildeo do poema sussurrado por mim e por Valentina
b) gravaccedilatildeo do poema sussurrado por Valentina na flauta - ativando o reacute mais grave da
flauta em doacute
c) gravaccedilatildeo de cliques de chaves e tongue-ram
d) processamento (granulaccedilatildeo) destas gravaccedilotildees no software Cecilia5164
e) montagens com os sons resultantes sobreposiccedilatildeo transposiccedilatildeo reversatildeo entre outras
Assovios e folhas se constituem por ateacute cinco faixas165 resultantes deste processo de
confecccedilatildeo que ficam tocando em loop embora agraves vezes sem soar A amplitude da flauta
determina qual deles soaraacute Se acima de determinado valor limite ( treshold) soam as folhas
por exemplo se abaixo deste valor soam os assovios Este eacute o funcionamento do primeiro
programa Um esquema dos programas pode ser visto na Figura 41 extraiacuteda da partitura
Consideraremos dois fluxos da macrotextura nesta peccedila instrumental (flauta-fala) e
163 Para mais detalhes da notaccedilatildeo confira a partitura (Anexo 2)164 Cecilia5 eacute um software livre mantido pelaAjax Sound Studio httpajaxsoundstudiocomsoftware165 Dentro da pasta geral do patch (ldquochaodeoutono_raubachrdquo) haacute uma pasta ldquoaudiordquo onde estatildeo as faixas que
compotildeem os sons de assovios e de folhas bem como outras que satildeo executadas durante a peccedila O leitor poderaacute ouviacute-las se desejar Eacute tambeacutem possiacutevel simular a performance com o patch Isto pode ser feito com o proacuteprio microfone do computador Neste caso utilize fones-de-ouvido para evitar a realimentaccedilatildeo
eletroacuacutestico Cada um deles apresenta componentes que tambeacutem podem ser abordados
como fluxos Por exemplo a parte eletroacuacutestica dos assovios eacute constituiacuteda por cinco faixas
distintas entretanto estas faixas natildeo podem ser percebidas individualmente com facilidade
Elas formam uma microtextura O mesmo acontece com as folhas
Tambeacutem na parte instrumental eacute possiacutevel identificar dois principais componentes
internos flauta e fala No pensamento composicional a diferenciaccedilatildeo deles eacute relativamente
clara Haacute uma notaccedilatildeo para a fala e outra para a flauta Entretanto postos em accedilatildeo
simultaneamente estes dois componentes internos que satildeo tambeacutem fluxos apresentam forte
interdependecircncia o que gera uma ambiguidade uma confusatildeo sobre o que ou quando eacute flauta
e o que ou quando eacute fala166
Aleacutem dos ataques tradicionais satildeo os ataques da fala que geram som na flauta Haacute
uma ambiguidade na percepccedilatildeo de um ataque tradicional e um ataque proveniente do texto
No primeiro trecho da Figura 39 baseado no texto ldquoao longo das pedrasrdquo as siacutelabas ldquoaordquo e
ldquolon-rdquo devem ser apenas mentalizadas A flauta eacute executada por ataques ordinaacuterios com som
eoacutelio Entretanto nas siacutelabas seguintes - ldquo-go das pe-drasrdquo o modo de fala eacute sussurrado mas
omitindo as vogais Das primeiras duas siacutelabas (ldquoao lon-rdquo) para as seguintes (ldquo-go das peshy
drasrdquo) haacute uma mudanccedila de foco da percepccedilatildeo que passa do som da flauta para o som da fala
embora apoacutes a entrada da fala ainda soe a flauta Haacute um deslocamento na percepccedilatildeo de qual
dos fluxos estaacute em primeiro plano Tendo em mente a terceira maneira de abordar a ideia de
primeiro plano e plano de fundo (p 81) a fala por seu caraacuteter fortemente indicativo costuma
se sobrepor a qualquer outro som A Figura 40 ilustra estes deslocamentos A curva sobre as
duas linhas da tabela (flauta e fala) indica em linhas gerais qual dos dois estaacute em primeiro
plano
140
166 Eacute possiacutevel que haja um pensamento em fluxos na composiccedilatildeo isto eacute como estrateacutegia composicional que natildeo se faz tatildeo claro ou mesmo natildeo eacute identificaacutevel na escuta Entretanto imagino ser recomendaacutevel questionar os resultados sonoros desta estrateacutegia Haacute o risco de o compositor cair num formalismo em que pense que as estrateacutegias composicionais justificam a muacutesica quando como acreditamos soacute a experiecircncia subjetiva da escuta o faraacute
141
FIGURA 40 - DESLOCAMENTOS DE FLAUTA E FALA PARA O PRIMEIRO PLANO EM CHAO DE OUTONO
Flauta
Indica qual dos fluxos estaacute em 1deg plano
6
iacute
tempo de falanormal__
igtv $ t|laquo
c ^ j W W W V V V W
T(bisbigliando)
gt bull(]Ao l0n - g0 das peP mP
^ ---frullato
dr_
(Sistema 2)ppp
t | v (bull )
mp
(Sistema 12)
FONTE O autor (2019)
142
Os cinco programas do patch satildeo brevemente explicados na Figura 41
FIGURA 41 - RELACcedilOtildeES PRESENTES NOS PROGRAMAS DO PATCH
A parte eletroacuacutestica estaacute dividida em 5 programas que devem ser ativados de acordo com as indicaccedilotildees na partitura Os programas constituem-se basicamente de sons preacute-gravados que tecircm sua amplitude e espacializaccedilatildeo determinadas em tempo real por uma relaccedilatildeo com a amplitude da flauta captada pelo microfone de controle Dessa forma pode-se resumir o comportamento dos programas da seguinte maneira
P1 Flauta EletroacuacutesticaP ^ sons de ldquoassoviosrdquo
^ sons de ldquofolhasrdquo
P2 Flauta EletroacuacutesticaP ^ sons de ldquofolhasrdquo
f ^ sons de ldquoassoviosrdquo
P3 Flauta EletroacuacutesticaP ^ nada
f ^ sons de tongue-ramNeste programa tambeacutem haacute uma camada eletroacuacutestica independente (sons como ldquorasgosrdquo) que determina aespacializaccedilatildeo da flauta
Eletroacuacutestica FlautaP ^ espacializaccedilatildeo estaacutetica
^ espacializaccedilatildeo em movimento
P4 Eletroacuacutestica independente sons de ldquofolhasrdquo
P5 Eletroacuacutestica independente sons de ldquoassoviosrdquo
FONTE O autor (2018)
Todos os programas tecircm tambeacutem uma faixa que soa no momento de sua ativaccedilatildeo
independentemente da amplitude da flauta e se relaciona interage com a nota tocada pela
flauta no momento167 Estas notas satildeo marcas estruturais da peccedila Inicialmente havia a
intenccedilatildeo de rastreaacute-las a fim de ativar os programas automaticamente Este recurso foi
experimentado e relativamente bem-sucedido Seria uma vantagem caso algum inteacuterprete
quisesse executar a peccedila sem o auxiacutelio de um performer especiacutefico para a difusatildeo
eletroacuacutestica Entretanto no caso de nossas performances eu necessitava estar presente para
167 Na pasta ldquoaudiordquo satildeo as seguintes faixas programa 2 ldquonoteFwavrdquo 3 ldquonoteDwavrdquo 4 ldquonoteP4wavrdquo 5 ldquoassobiofinalwavrdquo
143
diversas configuraccedilotildees do aparato eletroacuacutestico Por isso decidi eliminar tal recurso do patch
e assumir a funccedilatildeo de trocar os programas
511 Programa 1
A peccedila comeccedila com um crescendo da parte eletroacuacutestica solo (assovios)
evidenciando sua independecircncia em relaccedilatildeo agrave flauta-fala - assim nomearemos o conjunto que
representa o meio instrumental na peccedila A flauta-fala comeccedila incorporando o mesmo assovio
preacute-gravado com o qual funde e a medida que apresenta atividade com intensidade suficiente
para disparar o ldquogatilhordquo no patch a parte eletroacuacutestica responde com atividades de folhas
Aleacutem disso a espacializaccedilatildeo168 destas folhas acontece tambeacutem numa relaccedilatildeo com a amplitude
da flauta-fala quanto mais forte mais distante do centro da sala soam as folhas Este
movimento de afastamento das folhas eacute progressivo foi suavizado utilizando o objeto [line]
do Pd Os assovios por outro lado estatildeo fixos em sua localizaccedilatildeo de projeccedilatildeo na sala
Os materiais da parte instrumental tambeacutem podem ser agrupados nestas duas
categorias (assovio e folhas) e podem fundir ou contrastar com a parte eletroacuacutestica Ambos
fusatildeo e contraste estatildeo longe de serem absolutos O Quadro 6 apresenta possiacuteveis relaccedilotildees de
fusatildeo e contraste baseadas na Morfologia da interaccedilatildeo de Menezes (2006)
QUADRO 6 - FUSAtildeO E CONTRASTE NO PRIMEIRO PROGRAMA DE CHAtildeO DE OUTONO
Fusatildeo relativa Contraste relativo
Fluxo instrumental Assovios Folhas Folhas Assovios
Fluxo eletroacuacutestica Assovios Folhas Assovios Folhas
FONTE o autor (2019)
Quando a atividade da flauta-fala apresenta um material semelhante ao das folhas
acontece relativa fusatildeo Podemos enquadrar esta interaccedilatildeo na categoria de Bachrataacute (2010)
interaccedilatildeo por reproduccedilatildeo tiacutembrica ldquoo timbre do gesto eletroacuacutestico eacute um tipo de reproduccedilatildeo
do timbre do instrumento (usando sons instrumentais gravados pouco manipulados)rdquo
(BACHRATAacute 2010 p 167 traduccedilatildeo nossa169)
Por vezes um material de flauta-fala semelhante aos assovios devido a sua
168 O patch estaacute programado com duas opccedilotildees de difusatildeo esteacutereo e quadrafocircnico169 Original ldquothe timbre of electroacoustic gesture is a kind of reproduction of the timbre of the instrument
(using slightly manipulated recorded instrumental sound)rdquo (BACHRATAacute 2010 p 167)
intensidade dispararaacute sons de folhas causando relativo contraste Assim embora haja uma
regra invariaacutevel que relaciona a intensidade da flauta-fala com o material eletroacuacutestico isso
natildeo significa invariabilidade no eixo fusatildeo-contraste entre estes dois fluxos
Assim no programa 1 apresenta-se um fluxo independente (assovios) embora a
flauta-fala dialogue com ele atraveacutes do som de ldquossrdquo e outro dependente e homogecircneo com a
flauta o das folhas (ver representaccedilatildeo destas relaccedilotildees no Quadro 7) Eacute importante tambeacutem
notar que a flauta-fala e as folhas apresentam um caraacuteter fortemente gestual (incluindo o gesto
visual de aproximaccedilatildeo e afastamento do microfone) enquanto que o fluxo assovios eacute
primariamente textural170
512 Programa 2
O segundo programa inverte a relaccedilatildeo da intensidade da flauta-fala com a resposta
eletroacuacutestica Quando a intensidade da flauta ultrapassa o valor limite natildeo satildeo os sons de
folhas mas os de assovios que vecircm a tona A mesma relaccedilatildeo inversa afeta a espacializaccedilatildeo
Natildeo satildeo os mesmos sons do primeiro programa haacute uma variaccedilatildeo - especialmente a utilizaccedilatildeo
de um harmonizador sobre as amostras do primeiro
Na relaccedilatildeo entre fala e flauta haacute um tensionamento Busquei especialmente no
momento de revisatildeo apoacutes a primeira performance explorar mais a relaccedilatildeo entre o som do ldquorrdquo
como em ldquoperseguidasrdquo com o frullato da flauta O terceiro excerto da Figura 40 representa
um exemplo desta exploraccedilatildeo Haacute tambeacutem a inserccedilatildeo discreta do material de tongue-rams
associado a cliques de chaves Este eacute o principal material durante a accedilatildeo do programa
seguinte
513 Programa 3
Nos programas anteriores a intensidade da flauta-fala afetava o que soava (materiais)
e como soavam (espacializaccedilatildeo) os sons eletroacuacutesticos No terceiro programa o inverso
acontece a intensidade dos sons eletroacuacutesticos preacute-gravados afeta a espacializaccedilatildeo da flauta-
fala Um novo material eletroacuacutestico eacute incorporado o chamaremos rasgos171 Ele soa como
novidade ainda que seja proveniente de processamento dos sons de cliques de chaves jaacute
170 Gesto e textura (SMALLEY 1997) foram abordados em 332171 Na pasta ldquoaudiordquo do patch eacute a faixa ldquoclicks3wavrdquo
144
utilizados O patch rastreia a amplitude destes rasgos e quando esta ultrapassa determinado
valor limite o som da flauta-fala ao vivo eacute espacializado pela sala tal qual satildeo as folhas no
primeiro programa
Outro novo material eletroacuacutestico eacute incorporado neste programa Ele eacute composto por
sons processados (granulaccedilotildees e transposiccedilotildees para o grave) de tongue-rams Este material
vecircm a tona pelo mesmo processo de rastreamento da amplitude da flauta configurando
assim uma relaccedilatildeo de gatilho (WISHART 1996)
Os tongue-rams incorporados esparsamente jaacute no segundo programa preponderam
neste terceiro e alternam com a voz falada e tambeacutem com uma atividade mais idiomaacutetica da
flauta Isto significa uma alternacircncia entre modos de execuccedilatildeo cobrindo o bocal e posiccedilatildeo
ordinaacuteria que carrega uma forccedila visual Assim os gestos que surgem nesta alternacircncia se datildeo
neste ldquoabrir e fecharrdquo do som da flauta-fala expandindo e diminuindo o registro espectral
como um filtro em associaccedilatildeo com o gesto visual Quase como a alternacircncia entre a
percepccedilatildeo do som dentro drsquoaacutegua e fora dela
514 Programa 4 e 5
O quarto e o quinto programa natildeo apresentam relaccedilotildees parameacutetricas com o sinal da
flauta-fala O quarto foi inserido apoacutes a revisatildeo dura poucos segundos e serve como uma
conexatildeo entre o terceiro e o final Ele se constitui basicamente pelo que estamos chamando de
fo lhas Por outro lado o quinto programa consiste em sons de assovios semelhantes aos
iniciais
Uma ilustraccedilatildeo da relaccedilatildeo entre a parte instrumental e a eletroacuacutestica durante a peccedila
pode ser vista na Figura 41
145
146
QUADRO 7 - RELACcedilOtildeES ENTRE FLUXOS SONOROS EM CHAO DE OUTONO
03O75
O03OultDs
P1
Assovios
F2 F3 F4 F5
Folhas
RasgosTongue-ramsAmostra de iniacutecio de cada programa
o o
Flauta-fala S mdash J - S mdash J- AEspacializaccedilatildeo da flauta-fala
A seta indica uma relaccedilatildeo de ldquogatilhordquo (WISHART 1996) indica uma reaccedilatildeo de outro fluxo agravequele do qual ela parte A ausecircncia dela significa independecircncia dos fluxos
FONTE o autor (2019)
Eacute preciso lembrar que as relaccedilotildees de gatilho (WISHART 1996) que acontecem a partir
do rastreamento da amplitude da flauta-fala satildeo muitas vezes associadas ao movimento
corporal da performer ao se aproximar do microfone de controle Esta eacute uma exploraccedilatildeo
incipiente do aspecto visual mencionado em 35 O movimento estabelece uma relaccedilatildeo com a
resposta eletroacuacutestica o que oferece uma referecircncia gestual para o resultado sonoro Ele estaacute
notado na partitura atraveacutes dos ciacuterculos com setas (ver Figura 39) No viacutedeo da primeira
performance172 eacute possiacutevel ver como foi esta primeira experiecircncia Em alguns momentos
mesmo sem se aproximar a resposta eletroacuacutestica surgia Isto natildeo era um problema estava
previsto Entretanto em alguns momentos a indicaccedilatildeo de se aproximar estava sobre um
material em dinacircmica piano (som de ldquossrdquo) que natildeo ativava a resposta eletroacuacutestica Neste
caso avaliando posteriormente como ouvinte haacute a tendecircncia de continuar escutando o
resultado eletroacuacutestico como decorrente desta aproximaccedilatildeo ainda que seja na praacutetica
completamente independente
Natildeo houve muito rigor na aplicaccedilatildeo deste rastreamento de amplitude o que foi
intencional Todas as variaacuteveis assim satildeo flexibilidades da performance tipo do microfone
distacircncia do microfone movimento da performer valor limite (threshold) do patch Natildeo era
desejado que a cada gesto da flauta-fala houvesse uma reaccedilatildeo eletroacuacutestica Esta reaccedilatildeo era
( )
172 Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=l3-ULyfGk2kgt Acesso em 18 jan 2019
147
e de fato foi imprevisiacutevel
52 NASCER PEDRA MORRER NUVEM
Ergui a gola do sobretudo desci a aba do chapeacuteu ateacute perto dos olhos e troquei as dependecircncias do hotel pelas da cerraccedilatildeo Satolep estava apropriadamente decorada para minha festa solitaacuteria As coisas geometrizadas pelo frio mostravam-se volaacuteteis Linhas rigorosas agrave luz do dia eram agora ausecircncia de contornos Fazer trinta anos eraperder-me no nevoeiro tendo em vista a concretude da cidade ou o contraacuterio Umcatildeo flutuava atraacutes de uma charrete que passava O granito do meio-fio corria ao meu lado agraves vezes reluzente em sua umidade agraves vezes dissipado em vapor luminoso um outro catildeo de pedra e de nuvem catildeo de alguma mitologia condenado a nascer e morrer indefinidamente Nascer pedra e morrer nuvem Nascer nuvem e morrer pedra Trinta anos Soprei velinhas imaginaacuterias e minha alma revuloteou diante de mim (RAMIL 2008)
A peccedila Nascer pedra morrer nuvem (2018) para violatildeo e sons eletrocircnicos foi
composta para o violonista Eric Moreira no periacuteodo de maio a novembro de 2018 quando foi
estreada no SESC Paccedilo da Liberdade em Curitiba-PR no dia 22 O texto de Ramil (2008)
descreve imagens que tenho internalizadas e que ocupavam minha mente enquanto
compunha Trata-se de um reflexo da cidade de Pelotas (Satolep) Reencontrei este texto
durante o processo composicional Ele natildeo cumpriu funccedilatildeo estrateacutegica na composiccedilatildeo apenas
foi um pensamento presente que deu nome a peccedila
Dois aspectos direcionaram o processo criativo O primeiro se refere ao tema desta
pesquisa o interesse de explorar a textura em fluxos distintos e aspectos ambiacuteguos (fusatildeo
dissoluccedilatildeo contraste etc) e interativos (causalidades gatilhos) da relaccedilatildeo entre eles O
segundo era de ordem praacutetica trabalhar com sons fixados em suporte a fim de facilitar
possiacuteveis futuras performances Uma vez que natildeo eacute necessaacuterio um conhecimento de softwares
especiacuteficos o proacuteprio performer pode dar iniacutecio aos sons eletroacuacutesticos Aleacutem disso a
utilizaccedilatildeo de uma projeccedilatildeo em esteacutereo tambeacutem facilita a montagem da performance
Em conversas preacutevias agrave composiccedilatildeo o violonista jaacute havia demonstrado certa
preferecircncia por um tipo de sincronizaccedilatildeo como o da peccedila Synchronisms no 10 de Mario
Davidovsky Esta peccedila utiliza sons fixados em suporte e se vale de deixas eletroacuacutesticas que
facilitam entradas e sincronizaccedilotildees precisas do violonista A peccedila de Davidovsky foi uma
referecircncia importante neste processo criativo
O iniacutecio de Nascer pedra morrer nuvem apresenta quatro tipos de materiais
a) harmocircnicos naturais
148
b) campanella teacutecnica de instrumentos de cordas pinccediladas em que se utilizam cordas
soltas em movimentos escalares fazendo com que estas ressoem mais como pequenos
sinos (significado do termo em italiano)
c) frequecircncia contiacutenua foi composta a partir da gravaccedilatildeo de uma corda solta do violatildeo
omitindo-se o ataque justapondo repeticcedilotildees (com crossfades) da parte sustentada
(sustain) transpondo e criando glissandos posteriormente
d) sons percussivos compostos a partir de gravaccedilotildees do ataque ordinaacuterio (unha pinccedilando
a corda abafada por exemplo) e outros materiais percussivos173
A frequecircncia contiacutenua e a atividade do violatildeo (campanella e harmocircnicos) podem ser
percebidas como fluxos que se relacionam por similaridade de frequecircncias fundindo quando
alcanccedilam frequecircncias muito proacuteximas como na nota Reacute dos compassos 9 e 10 (ver Figura 42)
Os sons percussivos compotildeem um fluxo mais complexo pois tratam-se de sons mais
heterogecircneos entre si No momento inicial este fluxo eacute composto por eventos esparsos174 Ele
apresenta pouca relaccedilatildeo com os outros exceto por sincronias ocasionais175 e relaccedilatildeo tiacutembrica
com os ataques do violatildeo
FIGURA 42 - QUATRO MATERIAIS DE NASCER PEDRA MORRER NUVEM (COMPASSOS 8 a 10)
harmocircnicos
I frequecircncia contiacutenua
sonspercussivos
Fonte O autor 2019
O direcionamento de partir desta aacuterea sonoro-morfoloacutegica com preponderacircncia de
sons harmocircnicos (campanella harmocircnicos frequecircncia contiacutenua) para outra com maior
presenccedila de sons inarmocircnicos176 (ataques percussivos e outros materiais) movia a composiccedilatildeo
173 O compasso 56 apresenta alguns dos materiais usados na composiccedilatildeo destes sons percussivos eletroacuacutesticos (ver Figura 44) Trata-se da combinaccedilatildeo de duas atividades (1) percutir com polpa dos dedos da md ldquoaleatoriamenterdquo sobre o tampo o mais raacutepido possiacutevel e (2) rasgueado de me com cordas abafadas pela md com vaacuterios dedos em defasagem e usando as 6 cordas (som percussivo granular)
174 Eles natildeo estatildeo completamente indicados na partitura optei por indicar apenas os eventos que representassem um recurso de sincronia deixas para o inteacuterprete
175 Estes foram os principais sons usados como deixas (ver som percussivo no compasso 9 - Figura 42)176 A distinccedilatildeo de harmonicidade e inarmonicidade eacute abordada por Smalley (1997 p 120)
(atividade composicional) Um recurso para executar tal direcionamento foi utilizar sons
ldquoresiduaisrdquo inerentes agrave execuccedilatildeo do violatildeo o mencionado ataque da unha pinccedilando a corda e
aleacutem disso o ruiacutedo dos dedos deslizando sobre as cordas quando muda-se a posiccedilatildeo177 Este
uacuteltimo eacute incorporado progressivamente ateacute que alcanccedila um momento de transiccedilatildeo (compasso s
40 a 55 ver Figura 43) Neste momento haacute uma baixa atividade harmocircnica que permanece
constante e ao mesmo tempo uma intensificaccedilatildeo dos sons provenientes do deslizar dos dedos
sobre as cordas que por praticidade chamaremos ruiacutedo das cordas
FIGURA 43 - COMPASSOS 39 a 54 TRANSICcedilAtildeO EM NASCER PEDRA MORRER NUVEM (2018)
149
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FONTE O autor (2018)
Tal transiccedilatildeo evidencia o princiacutepio arquitetural (WISHART 1996) Haacute uma
diminuiccedilatildeo da presenccedila harmocircnica diminuiccedilatildeo da duraccedilatildeo dos arpejos do violatildeo de sua
177 Estes sons satildeo notados com uma cabeccedila de nota em forma de barra (ver Figura 43)
u
intensidade (dinacircmica) e da frequecircncia contiacutenua na parte eletroacuacutestica Por outro lado haacute
um aumento da duraccedilatildeo do ruiacutedo das cordas No comeccedilo desta transiccedilatildeo este ruiacutedo eacute
executado apenas pelo violatildeo Posteriormente a parte eletroacuacutestica repete multiplica
expande esses sons ateacute que preencham toda a textura Se utilizarmos a categoria atividade-
inatividade (SMALLEY 1997) nesta anaacutelise veremos um movimento contraacuterio entre
atividade dos fluxos harmocircnicos (descendente) e atividade dos fluxos inarmocircnicos
(ascendente)
No momento seguinte a esta transiccedilatildeo os sons percussivos satildeo explorados tambeacutem na
parte do violatildeo Satildeo combinadas duas teacutecnicas (1) percutir com polpa dos dedos da matildeo
direita (m d) ldquoaleatoriamenterdquo sobre o tampo o mais raacutepido possiacutevel (4 na Figura 44) e (2)
rasgueado de matildeo esquerda (m e) com cordas abafadas pela md com vaacuterios dedos em
defasagem e usando as 6 cordas (som percussivo granular) (5 na Figura 44) Somados aos
sons percussivos eletroacuacutesticos estes sons instrumentais fundem num uacutenico fluxo que
chamaremos de pedras Esta fusatildeo natildeo decorre tanto da similaridade espectral quanto da
sincronizaccedilatildeo de iniacutecio e teacutermino da atividade
FIGURA 44 - COMPASSOS 55 a 60 TREcircS FLUXOS
150
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FONTE O autor (2018)
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3
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Na parte eletroacuacutestica utilizei tambeacutem a gravaccedilatildeo de sons das cordas tocadas acima
da pestana do violatildeo Este material apresenta similaridade de ataque com as teacutecnicas
executadas pelo violatildeo neste momento entretanto apresentam conteuacutedos frequenciais (notas
agudas) ausentes nestas teacutecnicas A confusatildeo desta fusatildeo (quem estaacute fazendo o que) eacute
acentuada pela imprevisibilidade do resultado sonoro das teacutecnicas mencionadas e a alta
densidade de pequenos eventos tanto do meio instrumental quanto do eletroacuacutestico Este
fluxo de pedras existe independentemente daquele do ruiacutedo das cordas e interage com ele em
relaccedilotildees de causalidade (SMALLEY 1997)
A causalidade eacute evidente pois as pedras datildeo iniacutecio aos ruiacutedos das cordas (compasso
56) e datildeo fim a eles (compasso 58) como se o ligassem e desligassem (ver Figura 44) Mas
esta relaccedilatildeo eacute tambeacutem flexibilizada no compasso 60 quando o fluxo de pedras natildeo interfere
sobre o fluxo de ruiacutedo das cordas (ver Figura 44) Enquanto estes dois fluxos interagem haacute
concorrentemente um fluxo de harmocircnicos independente resquiacutecios da seccedilatildeo passada eou
pressaacutegios da seccedilatildeo final
A uacuteltima seccedilatildeo que aliaacutes foi a primeira a ser composta retoma a aacuterea sonoro-
morfoloacutegica harmocircnica inicial sem a presenccedila das interrupccedilotildees de sons percussivos Estaacute
presente um fluxo muito discreto de estalos (ver picos isolados no sonograma da Figura 45)
que natildeo afetam a preponderacircncia dos sons harmocircnicos Os materiais que compotildeem esta aacuterea
harmocircnica satildeo diferentes dos iniciais natildeo haacute a continuidade da semicolcheia haacute uma
presenccedila maior de harmocircnicos naturais e a parte eletroacuacutestica natildeo apresenta glissandos
amplos
Nesta seccedilatildeo os fluxos estatildeo estruturados em vozes A voz composta por notas tocadas
ordinariamente eacute a mais linear embora haja certa confusatildeo devido agrave proximidade da voz de
harmocircnicos e alguns cruzamentos entre elas A parte eletrocircnica daacute corpo agrave ressonacircncia de
algumas notas soando ora como uma extensatildeo da parte instrumental ora como uma
frequecircncia independente (ver Figura 45)
151
152
FONTE O autor (2019)
O final da peccedila propotildee uma interaccedilatildeo que estava latente nesta relaccedilatildeo entre os
materiais Tanto no comeccedilo quanto nesta seccedilatildeo final a parte eletroacuacutestica eacute articulada num
niacutevel microtonal com frequecircncias muito proacuteximas e glissandos Ao final busquei explicitar
este aspecto utilizando o bend no violatildeo com repeticcedilatildeo de notas e fazendo algo semelhante na
frequecircncia contiacutenua da parte eletroacuacutestica Dando mais tempo para o efeito neste final
tornou-se mais faacutecil perceber os batimentos como em In Memoriam Jon Higgins de Lucier
(analisada em 44) A Figura 46 apresenta os uacuteltimos compassos da peccedila
FIGURA 46 - COMPASSOS 89 a 93 BATIMENTOS
V
E
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Fonte O autor (2019)
Resumidamente o princiacutepio arquitetural (WISHART 1996) da peccedila consiste no
percurso ilustrado no Quadro 8 Apesar de a representaccedilatildeo lembrar outras que apresentamos
ela natildeo se refere aos fluxos e suas relaccedilotildees Trata-se de um mapeamento da presenccedila das
aacutereas sonoro-morfoloacutegicas da peccedila Estas podem estar presentes em fluxos quaisquer embora
estejamos conscientes de que nesta peccedila trabalhamos com os materiais em fluxos distintos e
isso faz com que haja certa coincidecircncia entre aacutereas sonoro-morfoloacutegicas e fluxos
153
QUADRO 8 - REPRESENTACcedilAtildeO DO PRINCIacutePIO ARQUITETURAL DE NASCER PEDRA MORRER NUshyVEM
Compassos 1 a 52 53 a 64 65 a 93
Qriir bomiAcirciiirrr bulluUiio iiqiiiiuiiiCcedilUo
Sons inarmocircnicos mdash _ _ _
Fonte O autor (2019)
Tal articulaccedilatildeo entre aacutereas sonoro-morfoloacutegicas eacute de fato uma articulaccedilatildeo formal Ela
evidencia a mencionada previsatildeo de Varegravese de que o timbre poderia se tornar ldquoum agente de
delineamento como as diferentes cores num mapa separando diferentes aacutereas e uma parte
integral da formardquo (VARESE apud SIMMS 1996 p 112)
154
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Nosso trabalho comeccedilou separando e aproximando dois acircmbitos distintos tecnoloacutegico
e sonoro-morfoloacutegico Interaccedilatildeo na muacutesica mista se refere agraves relaccedilotildees entre um performer e
um aparato tecnoloacutegico e ao mesmo tempo se refere agraves relaccedilotildees que os sons instrumentais e
ou eletroacuacutesticos mantecircm uns com os outros178 O caso de um sistema interativo que capta
um paracircmetro da performance e estabelece uma relaccedilatildeo direta com uma transformaccedilatildeo do
som captado eacute um exemplo no qual os acircmbitos distinguidos se impactam mutuamente Um
procedimento tecnoloacutegico de interaccedilatildeo daacute origem a relaccedilotildees sonoras interativas e estas
possivelmente suscitaram aquele Entretanto os impactos de um acircmbito sobre outro natildeo satildeo
generalizaacuteveis Uma mesma relaccedilatildeo sonora interativa pode existir ainda que natildeo se valha de
uma tecnologia interativa
Tendo em vista a impossibilidade de afirmaccedilotildees categoacutericas quanto agraves
correspondecircncias entre estes dois acircmbitos a questatildeo da preferecircncia por esta ou aquela teacutecnica
mais ou menos interativa (tecnologicamente) permanece particular O compositor poderaacute
seguir recomendaccedilotildees de outro mais experiente ou experimentar por si mesmo as vantagens e
desvantagens das teacutecnicas e tecnologias De nossa perspectiva esta querela dos tempos eacute
particular a cada compositor e a cada processo criativo A teacutecnica em tempo diferido oferece
ao compositor facilidade para modelar detalhar e introduzir contraste nos materiais
eletroacuacutesticos as teacutecnicas em tempo real oferecem facilidade para criar materiais
eletroacuacutesticos que fundem com e expandem o som instrumental Contudo ambos os
objetivos podem ser alcanccedilados com ambas as teacutecnicas As duas teacutecnicas se confundem
quando o sistema interativo em tempo real se vale de materiais preacute-gravados ou quando os
sons preacute-gravados mudam em tempo real por alguma accedilatildeo instrumental (por exemplo In
memorian Jon Higgins de Alvin Lucier) Em minha atividade composicional considero que
um sistema interativo que se valha de sons preacute-gravados aleacutem do som captado ao vivo eacute uma
opccedilatildeo mais interessante do que as excludentes Esta opccedilatildeo hiacutebrida une as vantagens de ambas
as teacutecnicas Implementei esta opccedilatildeo no patch de Chatildeo de outono de minha autoria
Um sistema interativo oferece agrave muacutesica eletroacuacutestica uma relaccedilatildeo com o performer
humano que carrega caracteriacutesticas humanas para a muacutesica como argumenta Garnett (ver p
178 No Capiacutetulo 2 nos ocupamos de separar e aproximar estes dois acircmbitos Os autores que fundamentaram esta investigaccedilatildeo foram Schrader (1991) Schulz (2010) Ribeiro et al (2016) Rowe (1993) Menezes (2006) Whaley (2009) Dias (2014) Stroppa (1999) Brummer et al (2001) Garnett (2001) Simon Emmerson (2013) Bachrataacute (2010) Smalley (1997) Ribeiro (2018) e Caesar (2018)
34) Ainda que as partes eletroacuacutesticas preacute-gravadas sejam fruto de uma performance em
estuacutedio e carreguem assim caracteriacutesticas humanas a relaccedilatildeo de performance centrada no
performer humano em palco eacute uma posiccedilatildeo mais explicitadora destes valores humanistas Esta
discussatildeo se insere numa discussatildeo maior e que provavelmente cresceraacute ainda mais nos
proacuteximos anos aquela que discute a relaccedilatildeo entre humano e maacutequina tanto do ponto de vista
teacutecnico quanto de uma perspectiva filosoacutefica e eacutetica O reflexo desta discussatildeo geral seraacute
provavelmente visto nas discussotildees musicais concernentes agrave muacutesica eletroacuacutestica mista e
outras iniciativas de arte com sons que implementam recursos como a inteligecircncia artificial
Desvencilhando-nos desta querela inicial podemos atentar de maneira especial para as
relaccedilotildees e interaccedilotildees sonoras presentes na muacutesica eletroacuacutestica mista A interaccedilatildeo neste
acircmbito analiacutetico natildeo eacute exclusividade da muacutesica mista embora nela se encontre muito
evidenciada Haacute por exemplo interaccedilatildeo entre vozes numa textura puramente instrumental e
tambeacutem entre gestos na muacutesica puramente eletroacuacutestica Na muacutesica mista haacute a soma e a
multiplicaccedilatildeo das possibilidades de relaccedilotildees instrumentais com as possibilidades de relaccedilotildees
eletroacuacutesticas Haacute relaccedilotildees e interaccedilotildees entre os sons dos diferentes meios envolvidos
Assim falar de interaccedilatildeo na muacutesica mista considerando apenas estes dois grupos de sons - os
instrumentais e os eletroacuacutesticos - eacute uma simplificaccedilatildeo da complexidade que nela se
apresenta Primeiramente porque estes grupos de sons natildeo satildeo tatildeo separados como eacute possiacutevel
crer - sons eletroacuacutesticos podem ser a exata reproduccedilatildeo de um som instrumental ou apenas
um efeito sobre o som instrumental Os dois trabalhos que abordam especificamente a
interaccedilatildeo na muacutesica mista o artigo de Menezes (2006 p 377-400) e a tese de Bachrataacute
(2010) baseiam-se especialmente nesta separaccedilatildeo entre sons instrumentais e sons
eletroacuacutesticos Embora estes estudos tenham resultados muito relevantes acreditamos que a
teoria precisa relativizar esta separaccedilatildeo baseada no fisiologismo teacutecnico e tecnoloacutegico Os
sons podem ser agrupados em fluxos independentemente de sua produccedilatildeo ter sido mecacircnica
ou eletromecacircnica (circuito - altofalante) Eacute preciso entatildeo atentar para como na experiecircncia
da escuta agrupamos os sons
Neste sentido a psicologia da audiccedilatildeo explica que segregamos o todo sonoro que
chega aos nossos ouvidos em fluxos auditivos distintos Esta segregaccedilatildeo acontece por
aspectos dos sons a correlaccedilatildeo entre iniacutecio e teacutermino dos componentes sonoros a diferenccedila
de localizaccedilatildeo espacial registro espectral entre outros Assim podemos distinguir sons que
vecircm de uma pessoa falando daqueles provenientes de um eletrodomeacutestico por exemplo Os
155
sons de cada um deles satildeo agrupados em fluxos auditivos distintos (BREGMAN 2004 2008
SHEPARD 1999)
Esta explicaccedilatildeo guarda relaccedilatildeo com a maneira como tradicionalmente distinguimos
partes simultacircneas de um todo musical Em muacutesica o termo usado para expressar a
complexidade das simultaneidades eacute textura Ela eacute formada por linhas e vozes simultacircneas
(fluxos auditivos) que interagem umas com as outras Para que identifiquemos uma destas
vozes e a diferenciemos de outra eacute preciso que haja continuidade nas caracteriacutesticas dos sons
que a compotildeem especialmente eou tradicionalmente timbre registro e sincronia de iniacutecio e
fim dos sons (SHEPARD 1999)
Aleacutem da voz um fluxo auditivo pode ser constituiacutedo de uma sonoridade Guigue
(2011) apresenta a ideia de sonoridade e a possibilidade de uma polifonia de sonoridades
Uma sonoridade eacute caracterizada por diversos aspectos como coleccedilatildeo de cromas particcedilatildeo
intensidade entre outros A principal diferenccedila em relaccedilatildeo a ideia de voz eacute que a sonoridade
pode se apresentar uma apoacutes a outra A voz eacute uma explicaccedilatildeo da segregaccedilatildeo da textura em
planos simultacircneos a sonoridade eacute propriamente uma textura Entretanto haacute a possibilidade
de uma polifonia de sonoridades o que seria desta forma uma textura de texturas Assim a
ideia de textura carrega em potencial um caraacuteter como o dos fractais
Esta concepccedilatildeo natildeo eacute estranha ao repertoacuterio do seacuteculo XX e tem seu fundamento na
ideia de uma textura de efeito global presente em obras de Anton Webern (Sinfonia Op 21
por exemplo) (SIMMS 1996) Este efeito global de uma textura em que natildeo atentamos para
vozes em desenvolvimento individual e linear mas sim para um todo resultante foi muito
explorado por compositores durante o seacuteculo XX Podemos lembrar das massas sonoras de
Ligeti (Atmospheres por exemplo) formadas por muitas linhas em uma micro-polifonia Em
Xenakis eacute possiacutevel perceber a simultaneidade de massas distintas (Pithoprakta por exemplo)
Estas texturas que formam massas quando sobrepostas soam simultaneamente instaurando
uma outra textura A primeira indica a configuraccedilatildeo de elementos do niacutevel micro enquanto
que a segunda indica uma configuraccedilatildeo destas microtexturas numa macrotextura A
concepccedilatildeo que integra estas duas ideias de textura natildeo foi identificada em nossas referecircncias
bibliograacuteficas Elas estatildeo presente separadamente se esta ou aquela depende do repertoacuterio agrave
que se estaacute se referindo Em nenhuma de nossas leituras sobre muacutesica eletroacuacutestica o termo
textura indicava o aspecto macro Na espectro-morfologia de Smalley (1997) por exemplo
textura contrapotildee gesto e se refere a uma continuidade sonora que assume um caraacuteter de
156
157
proporccedilotildees ambientais em oposiccedilatildeo agraves proporccedilotildees humanas do gesto Por conta destas
proporccedilotildees tendemos a prestar mais atenccedilatildeo aos detalhes internos do som Citamos
novamente o autor
Ao mesmo tempo haacute uma mudanccedila de foco da escuta - quanto mais lento o iacutempeto gestual direto tanto mais o ouvido procura se concentrar em detalhes internos (ateacute onde eles existam) Uma muacutesica que eacute primariamente textural assim se concentra na atividade interna agraves custas do iacutempeto antecipado179 (SMALLEY 1997 p 113shy114 traduccedilatildeo nossa)
Ao tratar de comportamento Smalley salienta que a metaacutefora pode ser aplicada entre
outros exemplos a um grupo de texturas (SMALLEY 1997 p 118) Ora se pensamos uma
textura de maneira anaacuteloga a uma voz este ldquogrupo de texturasrdquo representa uma configuraccedilatildeo
semelhante a que nos referimos no exemplo de Xenakis uma textura de texturas Para
diferenciar estes dois tipos de texturas nos referimos a microtextura e macrotextura Esta
nomenclatura eacute menos uma proposta teoacuterica a ser replicada do que um meio de indicar
diferentes acepccedilotildees no acircmbito deste trabalho unicamente Assim como exemplos eacute possiacutevel
haver uma macrotextura em que haja fluxos texturais (microtexturas) que soam
simultaneamente e ainda uma macrotextura em que haja um fluxo textural que soa
simultaneamente a outro gestual por exemplo
Portanto demonstramos assim que ao nos referirmos agrave interaccedilatildeo neste acircmbito
sonoro-morfoloacutegico eacute preciso considerar qual niacutevel estrutural estamos analisando Pode haver
interaccedilatildeo entre elementos que compotildeem as microtexturas como tambeacutem entre aqueles que
compotildeem a macrotextura Nosso interesse analiacutetico voltou-se sobretudo agrave macrotextura
aquela que eacute primeiro e mais facilmente percebida No caso de nossa anaacutelise de
Desintegration (41) por exemplo o fluxo que denominamos ataques agudos e ressonacircncias
era formado por gestos texturais Entretanto nos bastou compreendecirc-lo como um fluxo e
investigamos sua relaccedilatildeo com os outros Natildeo atentamos para a interaccedilatildeo entre os ataques
presentes no interior deste fluxo os diferentes timbres destes ataques etc nos interessava
mais o aspecto da macrotextura
Quando Guigue (2011 p 47-81) trata da polifonia de sonoridades salienta para a
segregaccedilatildeo do todo sonoro em fluxos distintos O uso deste termo como explicita o autor estaacute
179 Original ldquoAt the same time there is a change of listening focus - the slower the direct gestural impetus the more the ear seeks to concentrate on inner details (insofar as they exist) A music which is primarily textural then concentrates on internal activity at the expense of forward impetusrdquo (SMALLEY 1997 p 113-114)
intimamente relacionado agrave teoria da psicologia da audiccedilatildeo especialmente dos estudos de
Albert Bregman Tendo por base esta teoria entendemos que a ideia de fluxo eacute uma opccedilatildeo
interessante para indicar qualquer tipo de agrupamento de sons sucessivos que apresentam
continuidade em um miacutenimo de aspectos e podem se diferenciar de outro agrupamento
semelhantemente definido Em Wishart (1996) anterior aos estudos de Bregman fluxo
(stream) eacute uma maneira de pensar a separaccedilatildeo das simultaneidades de uma maneira menos
enrijecida e mais flexiacutevel liacutequida Os fluxos podem se dissolver um no outro Neste sentido
consideramos um termo adequado para se referir a muitos dos processos sonoros
eletroacuacutesticos que habitam regiotildees ambiacuteguas fronteiriccedilas e menos definidas Evidentemente
a anaacutelise pode se valer de outras terminologias como planos massas e camadas de acordo
com a intenccedilatildeo analiacutetica com vista agravequilo que se quer demonstrar O fluxo daacute conta de
ambiguidades dissoluccedilotildees fusotildees e contrastes progressivos A camada expressa a separaccedilatildeo
permanente pouco variaacutevel O plano indica a existecircncia de transparecircncias o primeiro plano
natildeo oculta o segundo plano e haacute movimentos de aproximaccedilotildees e distanciamentos em relaccedilatildeo
ao ouvinte Aliaacutes talvez estes movimentos atravessam os planos sejam proacuteprios de uma
espeacutecie de fluxo transversal A massa eacute um tipo especiacutefico de camada fluxo ou plano ela eacute
sempre textural Ainda assim a denominaccedilatildeo fluxo parece se adaptar mais facilmente a
diferentes situaccedilotildees Ele pode se apresentar estaacutevel como a camada pode estar emcruzar por
planos distintos pode ser uma massa Estas asserccedilotildees natildeo visam agrave definiccedilatildeo das
terminologias e carecem de exemplos e especificidades - algumas das quais foram exploradas
em nossa pesquisa Mas elas satildeo interpretaccedilotildees do que foi observado na teoria na anaacutelise e
na composiccedilatildeo
Os estudos cognitivos mencionados (BREGMAN 2004 2008 SHEPARD 1999)
bem como outros recursos teoacutericos da muacutesica (BERRY 1987 MENEZES 2006) nos ajudam
a pensar a distinccedilatildeo dos fluxos e a identificar caracteriacutesticas de separaccedilatildeo fusatildeo e
ambiguidades intermediaacuterias Entretanto haacute um outro aspecto que natildeo diz respeito apenas agraves
caracteriacutesticas sonoras mas tambeacutem a como as relacionamos com outras experiecircncias As
relaccedilotildees satildeo concebidas por um processo de referenciaccedilatildeo extriacutenseca (NATTIEZ 1990) Por
ouvir determinada relaccedilatildeo sonora nos referenciamos a experiecircncias externas agrave muacutesica Daiacute
podemos falar de comportamento dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo conflito-coexistecircncia sujeito e
contra-sujeito entre outros
A abordagem de Smalley (1997) sobre o comportamento oferece categorias que se
158
mostraram relevantes nas anaacutelises Os pares de oposiccedilatildeo domiacuteniosubordinaccedilatildeo e
conflitocoexistecircncia foram os principais recursos utilizados desta teoria Foram articulados
atraveacutes do modo de relacionamento atividade-inatividade tanto na anaacutelise de Desintegrations
de Murail quanto de Music fo r Snare Drum and Computer de Lippe Na peccedila de Lippe foi
possiacutevel representar o movimento dos fluxos em relaccedilatildeo a este eixo (atividade-inatividade) o
que evidenciou relaccedilotildees entre os fluxos neste paracircmetro movimento paralelo obliacutequo e
contraacuterio
Nossa anaacutelise de Desintegrations explorou tambeacutem os conceitos de Wishart (1996) A
transformaccedilatildeo harmocircnico-tiacutembrica da seccedilatildeo foi entendida como o princiacutepio arquitetural da
seccedilatildeo Entretanto algumas aacutereas sonoro-morfoloacutegicas dissimilares se mostram inseridas nesta
transformaccedilatildeo Neste sentido nossa anaacutelise tomou um rumo diferente da proposta de Wishart
que previa que estas aacutereas sonoro-morfoloacutegicas abarcassem todos os fluxos (como as
tonalidades abarcam todas as vozes) Extendendo a comparaccedilatildeo de Wishart com o tonalismo
poderiacuteamos dizer que eacute como se a peccedila fosse politonal Isto eacute as aacutereas sonoro-morfoloacutegicas
distintas encontram-se sobrepostas em muitos momentos Por isso foi possiacutevel entendecirc-las
cada uma como constituidoras de um fluxo Cada fluxo deriva do anterior partindo de uma
dependecircncia homogecircnea ou interativa inicial e indo para a independecircncia Esta eacute basicamente
a articulaccedilatildeo da dimensatildeo vertical do princiacutepio dinacircmico O quadro de Wishart (Quadro 3) foi
explorado como um graacutefico em duas dimensotildees para expressar a relaccedilatildeo de dois fluxos
iniciais (ver Figura 34) Na observaccedilatildeo da peccedila Nascer pedra morrer nuvem (52) os fluxos
tambeacutem se mostraram atrelados agraves aacutereas sonoro-morfoloacutegicas Eles carregam caracteriacutesticas
sonoras - que eacute tambeacutem o que os diferenciam - que delimitam estas aacutereas por sua maior
presenccedila ou ausecircncia
Na anaacutelise de Strange Autumn de Takasugi nos preocupamos em demonstrar a
plausibilidade de um fluxo visual conforme apontado em 35 Prezamos por apontar as
relaccedilotildees identificadas observando o mencionado viacutedeo da performance natildeo nos detendo a
particularidades das relaccedilotildees entre os fluxos ou de seus componentes internos Foi possiacutevel
identificar correspondecircncias variadas entre o fluxo visual e os fluxos sonoros Ressalta-se
neste aspecto trecircs possibilidades (1) a possibilidade de a accedilatildeo visual ser associada a um
resultado aural que esperamos ouvir Por exemplo quando o recitante abre a boca como se
falasse ldquoardquo e ouvimos o som correspondente - ldquoardquo Por outro lado (2) a accedilatildeo visual pode natildeo
corresponder a este tipo de expectativa causando assim um efeito de ventriloquismo uma
159
duplicaccedilatildeo estranha devido agrave sincronizaccedilatildeo labial (TAKASUGI 2016) por exemplo
quando o recitante articula como se falasse ldquolerdquo (da palavra leaves) e ouvimos em vez do som
esperado um som percussivo vagamente semelhante a um mecanismo de uma maacutequina de
escrever Aleacutem disso (3) a accedilatildeo visual pode ser independente e natildeo corresponder a qualquer
som Aspectos visuais tambeacutem foram apontados em Chatildeo de outono (51) Entretanto na
composiccedilatildeo da peccedila natildeo houve a preocupaccedilatildeo de considerar este aspecto um elemento da
textura Esta possibilidade me atrai pois faz com que tudo faccedila parte da peccedila olhares passos
viradas de paacuteginas etc E aleacutem disso se relaciona com esta questatildeo inerente agrave muacutesica
eletroacuacutestica a ambiguidade de percepccedilatildeo da produccedilatildeo e da fonte sonora Possivelmente
explorarei tais recursos visuais em composiccedilotildees futuras
Nossa abordagem sobre a obra de Cort Lippe buscou identificar com base nas notas
de programa das peccedilas peculiaridades e diferenccedilas entre os trabalhos com instrumentos e
sons fixados em suporte e aqueles com instrumentos e sistema interativo Apontamos a
tendecircncia de nas peccedilas que fazem uso de sons fixados em suporte os meios instrumental e
eletroacuacutestico serem concebidos com relativo contraste num diaacutelogo Nas peccedilas que fazem
uso de sistemas interativos a tendecircncia eacute de conceber estes dois meios numa maior fusatildeo
Music fo r Snare Drum and Computer se enquadra nesta segunda categoria Ainda assim foi
possiacutevel observar relativo contraste alcanccedilado especialmente por um processo de afastamento
da parte eletroacuacutestica em relaccedilatildeo agrave parte instrumental por meio de processamentos de maior
interferecircncia
Na anaacutelise de In Memoriam Jon Higgins destacamos a interaccedilatildeo em tempo real
baseada natildeo num sistema interativo mas num fenocircmeno (psico)acuacutestico - os batimentos
Devido a este fenocircmeno fusatildeo e contraste (MENEZES 2006) acontecem de maneira peculiar
nesta peccedila Apontamos tambeacutem as relaccedilotildees diretas e inversas entre paracircmetros como por
exemplo entre registro e frequecircncia de batimentos
Alguns conteuacutedos foram levantados como referenciais no Capiacutetulo 3 e natildeo foram
retomados ou natildeo ganharam grandes proporccedilotildees nas anaacutelises ou na composiccedilatildeo
caracteriacutesticas de relaccedilotildees entre vozes (BERRY 1987) questotildees de orquestraccedilatildeo (SIMMS
1996) aspectos da teoria de Guigue como a oposiccedilatildeo adjacente e a segmentaccedilatildeo (GUIGUE
2011) modelos de interaccedilatildeo de Bachrataacute (2010) e possivelmente outros Entretanto mais do
que pragmaacutetico o Capiacutetulo 3 eacute uma discussatildeo sobre a abordagem de uma macrotextura da
muacutesica eletroacuacutestica Ele natildeo apenas eacute um preacute-requisito dos capiacutetulos 4 e 5 mas sustenta a si
160
mesmo na funccedilatildeo de abrir e explorar esta discussatildeo Estes conteuacutedos foram importantes para
tratar da questatildeo central da pesquisa ldquo[] a caracterizaccedilatildeo e a interaccedilatildeo de fluxos distintos
percebidos na experiecircncia de escuta []rdquo (p 18) As anaacutelises dos capiacutetulos 4 e 5 objetivaram
trazer a teoria para um acircmbito da plausibilidade praacutetica apelando natildeo apenas para a
razoabilidade das ideias mas para a verificaccedilatildeo aural de suas possibilidades Neste sentido
nas anaacutelises natildeo tentamos incluir todos os recursos teoacutericos mas evidenciar as constituiccedilotildees e
interaccedilotildees nos valendo apenas daqueles que a partir da escuta nos pareciam mais adequados
O capiacutetulo 5 levou a discussatildeo para um acircmbito pessoal A atividade composicional natildeo
foi um ldquofluxordquo independente da pesquisa mas interagiu com ela A pesquisa por sua vez
surgiu de interesses composicionais e foi continuamente alimentado por eles Esta interaccedilatildeo
entre compor e pesquisar eacute o que faz esta pesquisa ser diferente de uma pesquisa em teoria e
anaacutelise A anaacutelise das peccedilas neste capiacutetulo se confundem com um memorial descritivo pois o
pesquisador natildeo eacute apenas o analista mas tambeacutem o compositor Os objetivos da pesquisa que
concerniam agrave constituiccedilatildeo e interaccedilatildeo de fluxos mais ou menos distintos eram tambeacutem
objetivos composicionais entretanto a metodologia foi distinta o pesquisar articulou a teoria
o compor os sons
Na anaacutelise de Chatildeo de outono foi possiacutevel notar uma estreita relaccedilatildeo entre
configuraccedilatildeo do sistema interativo e relaccedilotildees entre fluxos distintos A principal relaccedilatildeo
apontada foi de gatilho (WISHART 1996) que eacute neste caso tanto uma caracteriacutestica sonoro-
morfoloacutegica como um aspecto praacutetico-tecnoloacutegico da performance Na anaacutelise de Nascer
pedra morrer nuvem evidenciou-se a possibilidade de muacuteltiplos fluxos nos dois meios o
meio instrumental apresenta ateacute trecircs fluxos simultacircneos por exemplo
Tanto nas anaacutelises de Desintegrations Strange Autumn e Music fo r Snare Drum and
Computer quanto na abordagem das proacuteprias peccedilas Chatildeo de outono e Nascer pedra morrer
nuvem a investigaccedilatildeo dos fluxos sonoros apresentou implicaccedilotildees formais No capiacutetulo 4
analisamos apenas uma seccedilatildeo de cada peccedila entretanto no interior destas seccedilotildees foi possiacutevel
observar desenvolvimentos mudanccedilas responsaacuteveis por particionar (mais ou menos
claramente) o percurso musical Estas mudanccedilas estavam atreladas a desenvolvimentos e
mudanccedilas na macrotextura A investigaccedilatildeo da macrotextura do desenvolvimento de fluxos
sonoros da sua dominaccedilatildeo sobre ou sua subordinaccedilatildeo a outros fluxos das aacutereas sonoro-
morfoloacutegicas que manifestam ofereceu uma perspectiva dinacircmica da forma Em
Desintegrations e em Nascer pedra morrer nuvem notamos fluxos diretamente relacionados
161
com as aacutereas sonoro-morfoloacutegicas (WISHART 1996) que estes manifestam Aleacutem disso
notamos transiccedilotildees mais ou menos graduais de uma aacuterea para a seguinte devido ao
desenvolvimento de fluxos sonoros Em Strange Autumn a presenccedila e ausecircncia de elementos
texturais segmenta a seccedilatildeo analisada em duas partes Em Music fo r Snare Drum and
Computer as relaccedilotildees oscilantes de atividade-inatividade delineiam um percurso para a seccedilatildeo
Estas anaacutelises evidenciaram uma estreita relaccedilatildeo entre a textura e os aspectos formais das
peccedilas
Questotildees mais especiacuteficas das particularidades da diferenciaccedilatildeo entre os fluxos
tambeacutem podem ser abordadas em pesquisas futuras Isto eacute pode-se abordar quais satildeo os
paracircmetros aleacutem dos mencionados que nos permitem diferenciar os fluxos qual a forccedila que
eles tecircm nesta diferenciaccedilatildeo quais combinaccedilotildees de paracircmetros podem ser usados na
diferenciaccedilatildeo etc Ainda outra questatildeo eacute se os demais recursos da spectro-morfologia
(SMALLEY 1997) aleacutem daqueles utilizados nesta pesquisa (atividade-inatividade e
harmonicidade-inarmonicidade) podem cumprir esta funccedilatildeo de diferenciar os fluxos
processos de crescimento e de movimento movimentos de textura (microtextura) espaccedilo
espectral e densidade e espaccedilo-morfologia
Tendo observado que no eixo atividade-inatividade eacute possiacutevel analisar os movimentos
(paralelo obliacutequo e contraacuterio) de um fluxo (432) em relaccedilatildeo a outro podemos especular se o
mesmo natildeo seria possiacutevel em outros eixos (que descrevem aspectos ou paracircmetros) como
harmonicidade-inarmonicidade densidade de eventos ou inclusive aqueles que decorrem da
parametrizaccedilatildeo de algum aspecto particular em determinada peccedila Isto eacute pensar a interaccedilatildeo
entre os fluxos como uma relaccedilatildeo parameacutetrica Esta seria uma perspectiva quase matemaacutetica
passiacutevel de ser expressa em graacuteficos como fizemos na anaacutelise de Music fo r Snare Drum and
Computer (432) e provavelmente mais proacutexima da implementaccedilatildeo em recursos tecnoloacutegicos
- mapeamentos e outros procedimentos Ao mesmo tempo eacute preciso considerar que mesmo
que as relaccedilotildees sejam abordadas nestes termos elas fazem referecircncia a experiecircncias externas
agrave muacutesica As referecircncias comportamentais satildeo extriacutensecas (SMALLEY 1997) Isto eacute
baseando-nos numa relaccedilatildeo parameacutetrica (intramusical) dificilmente poderemos identificar
dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo ou conflito-coexistecircncia para isso eacute preciso fazermos referecircncia a
experiecircncias externas que se aproximem de alguma maneira do que estamos ouvindo
Esta pesquisa foi uma exploraccedilatildeo das possiacuteveis relaccedilotildees no interior da textura da
muacutesica eletroacuacutestica mista Por um lado buscou-se modelos teoacutericos para a concepccedilatildeo de
162
uma textura neste contexto por outro investigou-se no proacuteprio ato criativo musical
estrateacutegias de estruturaccedilatildeo desenvolvimento e interaccedilatildeo dos elementos da textura Nesta
segunda investigaccedilatildeo de ordem mais praacutetica optou-se por uma maior liberdade A exploraccedilatildeo
de relaccedilotildees texturais - constituir fluxos e colocaacute-los em interaccedilatildeo - na composiccedilatildeo natildeo foi
sistematizada Ainda que os dois processos tenham se influenciado mutuamente agrave
composiccedilatildeo reservou-se a liberdade em coerecircncia com a concepccedilatildeo pessoal de que ela tem
sua proacutepria origem caminho e destino e que eles satildeo artiacutesticos antes de serem cientiacuteficos
163
164
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ANEXOS
Anexo 1 Quadros de modelos de interaccedilatildeo gestual de Petra Bachrataacute (2010)
Anexo 2 Partitura de Chatildeo de outono (2017-8)
Anexo 3 Partitura de Nascer pedra morrer nuvem (2018)
Outros anexos gravaccedilotildees viacutedeos e patch disponiacuteveis em
lthttpsdrivegooglecomopenid=1Fyt16u4m5OwtHVfz1BkxWkOx104OoNyWgt
173
ANEXO 1 - QUADROS DE MODELOS DE INTERACcedilAtildeO GESTUAL DE PETRA
BACHRATAacute (2010)
I Modelos elementares de interaccedilatildeo gestual
A Interaccedilatildeo gestual por similaridade ou diferenccedila de alturafrequecircncia
1 Fusatildeo pela mescla de alturafrequecircncia idecircntica - interaccedilatildeo unissocircnica2 Fusatildeo por similaridade de frequecircncia
Fusatildeo no registro grave Fusatildeo no registro meacutedio Fusatildeo no registro agudo
3 Contraste por distinccedilatildeo de frequecircncia4 Interaccedilatildeo por flutuaccedilatildeo de bandas frequenciais5 Interaccedilatildeo baseada em ruiacutedo
C Interaccedilatildeo gestual por trajetoacuteria de intensidade1 Interaccedilatildeo crescendo2 Interaccedilatildeo decrescendo3 Interaccedilatildeo por intersecccedilotildees e cruzamentos (crossovers) em trajetoacuterias de intensidade4 Combinaccedilatildeo dos modelos anteriores
B Interaccedilatildeo gestual baseada em organizaccedilatildeo temporal
1 Interaccedilatildeo sincrocircnicaRegular- uniriacutetmica
Irregular- sincopada
2 Interaccedilatildeo assincrocircnicaRegularIrregularPoliriacutetmica
3 Interaccedilatildeo temporal proporcional por reduccedilatildeo ou multiplicaccedilatildeo de duraccedilatildeo ou padratildeo temporal4 Interaccedilatildeo por agrupamento textural5 Interaccedilatildeo atemporal6 Surrealismo socircnico temporal
D Interaccedilatildeo gestual de acordo com ascaracteriacutesticas tiacutembricas (similaridadediferenccedila)
1 Fusatildeo tiacutembricaInteraccedilatildeo por reproduccedilatildeo tiacutembrica Interaccedilatildeo por derivaccedilatildeo tiacutembrica Interaccedilatildeo por associaccedilatildeo tiacutembrica
2 Contraste tiacutembricoInteraccedilatildeo por dissociaccedilatildeo tiacutembrica
174
II Interaccedilatildeo gestual baseada no modelo tripartite de estrutura (onset-continuant-termination)
1 Interaccedilatildeo por ataque2 Interaccedilatildeo por iteraccedilatildeo3 Interaccedilatildeo por ressonacircncia (ataque-decaimento)4 Interaccedilatildeo por ressonacircncia invertida (ataque-decaimento invertido)5 Combinaccedilatildeo de interaccedilatildeo por ressonacircncia e por ressonacircncia invertida6 Interaccedilatildeo cadencial - interaccedilatildeo por terminaccedilatildeo gradual7 Interaccedilatildeo por cross-fading
III Interaccedilatildeo gestual contrapontiacutestica
1 Interaccedilatildeo repetitiva2 Interaccedilatildeo imitativa3 Interaccedilatildeo canocircnica4 Interaccedilatildeo canocircnica com loop5 Interaccedilatildeo proporcional
RitmoAlturaRitmo e altura
6 Contraponto entre gestos homogecircneos7 Contraponto entre gestos heterogecircneos8 Interaccedilatildeo de gatilho (triggering)
Interaccedilatildeo de gatilho pela potenciaccedilatildeo entre morfologias Interaccedilatildeo de gatilho por transformaccedilatildeo tiacutembrica
9 Contraponto pela divisatildeo do gesto
175
IV Interaccedilatildeo gestual baseada em caracteriacutesticas semacircntico-morfoloacutegicas
Direccedilatildeoa Direccedilatildeo de movimento no campo da altura
Interaccedilatildeo linearpor direccedilatildeo similar de movimento
- ascendente- descendente- plano
por direccedilatildeo diferente de movimento- convergente- divergente- reciacuteproco
Interaccedilatildeo curvilinearInteraccedilatildeo por manipulaccedilatildeo da direccedilatildeo no campo da altura
por contraccedilatildeo por expansatildeo
Interaccedilatildeo cecircntrica pericentral centriacutepeta centriacutefuga
EnergiaInteraccedilatildeo por energia constantemantida Interaccedilatildeo por aumento de energia Interaccedilatildeo por diminuiccedilatildeo de energia Interaccedilatildeo por energia transformadaconvertida Combinaccedilatildeo dos modelos anteriores
b Direccedilatildeo enquanto evoluccedilatildeo do tempo - direccedilatildeo no campo das duraccedilotildees
Interaccedilatildeo por velocidade constante Interaccedilatildeo por velocidade irregular Interaccedilatildeo por aceleraccedilatildeo Interaccedilatildeo por desaceleraccedilatildeo Tipos combinadosInteraccedilatildeo por aceleraccedilatildeo-desaceleraccedilatildeo Interaccedilatildeo por desaceleraccedilatildeo-aceleraccedilatildeo Interaccedilatildeo pela manipulaccedilatildeo (espicharcontrair) do tempopor contraccedilatildeo por expansatildeo
176
V Modelos espaciais de interaccedilatildeo gestual
10 Relaccedilatildeo independentemente11 Relaccedilatildeo interativa12 Relaccedilatildeo de gatilho (triggering)
FONTE Bachrataacute (2010 apecircndice traduccedilatildeo nossa)
ANEXO 2 - PARTITURA DE CHAtildeO DE OUTONO
177
Chatildeo de outonopara flauta e sons eletrocircnicos 2017-8Davi Raubach
Notas de Performance
F l a u t a
Ritmo e andamento estatildeo notados de trecircs maneiras1) Determinada com andamento e figuras riacutetmicas
J = c 54TN
gt )s s _
PP PP
2) Indeterminada (natildeo proporcional) livre (bisbigliando)c^WWWWWWWWVWWWWVVWVWWW
1]V ( bull ) --------d n s
mp
3) Determinada pelo tempo de fala deve-se tocar no ritmo com que satildeo ou seriam lidas as siacutelabas
tempo de falanormal
IT
- a e l e n -
Pg o c L s
Apenas como referecircncia pode-se considerar15 a 3 siacutelabas por segundo 3 a 4 siacutelabas por segundo5 a 7 siacutelabas por segundo mais raacutepido possiacutevel
lento normal raacutepidomais raacutep poss
(bull)s s
Assovio agudo feito com o som de ldquossrdquo boca em forma de ldquourdquo na posiccedilatildeo da nota indicada Deve-se variar o assovio livremente
tf 6
O microfone deve ficar agrave direita do (a) performer direcionado para a extremidade da flauta e em paralelo a ela O(a) performer deve fazer movimentos de aproximaccedilatildeo e afastamento em relaccedilatildeo ao microfone conforme a seguinte notaccedilatildeo
afastado do microfone
t f proacuteximo ao microfone
- A linha pontilhada entre os siacutembolos indica um movimento mais progressivo de afastamento ou aproximaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao microfone- Este movimento natildeo deve ser feito por passos mas apenas com o movimento do corpo especialmente o movimento de rotaccedilatildeo Deve-se buscar uma organicidade e certa expressividade no movimento corporal
p a - m - ccedil o
- Texto sublinhado sussurrar o texto junto agrave flauta na posiccedilatildeo indicada Para um resultado eficiente o sussurrar deve ser relativamente forte e com pressatildeo de ar suficiente para ativar ainda que sutilmente as alturas indicadas A imagem de algueacutem ofegante ilustra uma opccedilatildeo- Quando houver mais de uma nota para uma mesma siacutelaba deve-se fazer a primeira nota junto ao ataque da siacutelaba e as proacuteximas o mais raacutepido possiacutevel
A 1 ---N bull
0
M
Ecirc
y amp raquo1 1
0 ------
ra o 1 HH a s mdash r e d bull nL ao i r mdash r e - f uuml u - a
-mp f mp
Texto tachado o texto natildeo eacute falado Deve-se tocar as alturas no ritmo de uma leitura mental do texto Aleacutem do ritmo a acentuaccedilatildeo pode ser definida de acordo com essa leitura
Texto com vogais em subscrto omitir as vogais As notas devem ser ativadas apenas com o ataque das consoantes semelhante ao sussurrado
(4) mais proacuteximo
CU-
-tomdashm e n
mp[Texto dentro da caixa] falar normalmente o texto na posiccedilatildeo indicada Sempre dentro do bocal
HEI dentro do bocal posiccedilatildeo ordinaacuteria fora do bocal
slap tongue pizzicato
key click
0 key click com nota
tongue-ramPode ser feito tanto expirando quando inspirando
r ar
Cabeccedila de nota triangular som de ar com pouco som de nota Quando necessaacuterio eacute indicada a duraccedilatildeo acima da pauta
nota com ar
E l e t r o a c uacute s t i c a
O patch foi feito em PureData versatildeo 048 mas deve funcionar normalmente em versotildees superiores
A parte eletroacuacutestica estaacute dividida em 5 programas que devem ser ativados de acordo com as indicaccedilotildees na partitura Os programas constituem-se basicamente de sons preacute-gravados que tem sua amplitude e espacializaccedilatildeo determinadas em tempo real por uma relaccedilatildeo com a amplitude da flauta captada pelo microfone de controle Dessa forma pode-se resumir o comportamento dos programas da seguinte maneira
P 1 Flauta EletroacuacutesticaP ^ sons de assobios
f ^ sons de folhas
P 2 FlautaPf
Eletroacuacutesticasons de folhas
sons de assobios
P 3 Flauta EletroacuacutesticaP ^ nada
f ^ sons de tongue-ramNeste programa tambeacutem haacute uma camada eletroacuacutestica independente (sons como ldquorasgosrdquo) que determina a espacializaccedilatildeo da flauta
Eletroacuacutesticap - -
Flautaespacializaccedilatildeo estaacutetica
espacializaccedilatildeo em movimento
P 4 Eletroacuacutestica independente sons de folhas
P 5 Eletroacuacutestica independente sons de assobios
J = C 50 $ = c 400) (muito flexiacutevel oscilando andamento)
long (apenas[^l key clicks)
[ s i n i s t r o
- A linha preta indica que deve-se manter a textura contida na caixa (repeticcedilotildees de notas com articulaccedilatildeo tongue-ram key clicks e com alturas natildeo determinadas)- A linha tracejada indica que quando tiver de falar durante esta textura naturalmente o (a) performer deixaraacute de fazer tongue-ram mas continuaraacute a executar os key clicks
+ + + +
T
Chatildeo de outonoPara Valentina D aldegan
TFlauta
Eletroacuacutestica
p i
6
SS
Davi Raubach
TsJ = c 54
Ttempo de fala
lento C
-------------------------------------------Ucirc0)------------------------- 1 0 ) ------------------------ rj ) (0) V
s s SS__________________ sub
PP W PPa o l o n g o -
PPP
dTS TS
d
bi 6
TS
V t v 0 0 gt0 0 ------l deg n - g o d aS P e
P o f
0 0 (gtdiams) raquoltbull)0d r as s s
- PP
()SS
p
L n g 0 d as p e - d r a s
(bull)s s
6t
^ $ |]l
tempo de fala normal___
mdash gt mdash ----- mdash dtempo defala
-vwwvww (bisbigliando) mais raacutep poss____________C^rvvvvvvvwwvwvwvwwwwvvw^^wv ____
STraquo 0A e r l bdquo n - g bdquo d as p e
p m p
gt (tiw- flv ()frullato
d rd r s
TSJ mdash c 54 lt^|raquoWWWWVWWw
i r r e g u l a r e s
f f
tempo de fala n o rm a l [ZI-
subito
- T h T
(j) + (j)------------------- L l i i raquo L
V laquo7
v (yuml )-------------------------- L j i t w ---------------------------------- ^gt
gtf U | gt X
of f f _ S S _ SS__p - pp - f f mdash d o c a l - p a
m e n
P2mp
6 d A - d
IumlSt t = p as - s am v e n - t a n _ d 0 u m a s p o
AfL) b r ___
f f
Ocirc ^ mdash
6 J = C 54(J) TS
mdash pound----- --------yen t mdash mdash r f -------- ^ --------VS ~^ subito
----- V - rsquo J------frullato
h r
PP n f
CEI
(bull) (bull)[ZI
mfo
m p
l h as _
m c om p
a m a r e l a s e m p acirc n i c o frullato
f t gt f mdashs e g u i - d a s p e r s e g u i d a s d e
P fc o n
P3
TRCEI sempre
J mdash C 50 (J = c 400) (muito flexiacutevel oscilando andamento)
long (apenaskey clicks)
X xinregulares y
t a t a l a n d o J 1 p u l o s ]
CEI
T
2
tempo de fala raacutepido
p a s - s agrave m v e n t a n - d o a o s p u mdash l b s p a s s a m v e n - t a n - d o
laquotf mdashmdash t f t f ntf f f itjfa s d u - a s mdash a s - a s t a r - j a - d a s d e n e - g r o
f f f laquotf lt f flaquo t f mP P
a s d u a s a s a s t a r i a -
IT]rd a s d e n e g r o
- P
+
Tshort
7 A A[ t a t a l a n d o j [ a o s p u l o s |
^ srEcirc atilde bdquo1 f
[ m a i s p e r t o ] (a s d u a s a s a s ) s h [subito
- f f f
I [ t a r j a d a s ) [ s h
f f
(S )
ATf f f pp
J = c 54
SSp
voz
f
h m - atilde
t JP4 P5
3
ANEXO 3 - PARTITURA DE NASCER PEDRA MORRER NUVEM
184
Nascer pedra morrer nuvempara violatildeo e sons eletrocircnicos 2018Davi Raubach
p a ra E ric M ore ira
nascer pedra morrer nuvem2018
D avi R au b ach
J = 52 iacute
IViolatildeo
Electronics
f p p p p m f
f t --------- ^
)11 ^ mdash - -- P ----------------------------------
Eacute EumlJ ^ p J j r J 1
- 32
m
I
=Jj iacuteV
E
H j r J pound4p o o
0 ^ o m f mp f
H
6
s
15
V
iacute o reg
iEacute laquo ij p iPf = Ir
)
r ^ 7 |
^ reg jiacutep H4 J 1 mdash |-
^ mp f mvi4 _ l----- 1 1 1 1 1 1
reg-------------
p
EIcirc
mdash ^ mdash ldquo ---------------------------------mdash ^ ---------------------------------------- raquo mdash
mdash ^ mdash mdash ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
r i i - - T - s
) Repetir livremente ateacute a entrada da deixa eletroacuacutestica
1
21____1 f 0 _ ------1----1----1----1------- 1------- 1------- ------- 1------- ------- 1---- dr-
--- f f f f f f 6 f 1 f f f f f f bull r iaiiA[fiiiffint im 4 6 mdash mdash5 8 88 lt2 V
lt m f m p
p p p f
deixa
^ s c f i -E8
) Ruiacutedo das cordas raspar lateral do polegar eou parte da md sobre as cordas 6 5 e 4 com movimentos curtos Cada semicolcheia indica dois movimentos (para um lado e para outro) cada movimento corresponde a um a fusa
) Ruiacutedo das cordas raspar polpa do(s) dedo(s) da me em direccedilatildeo agrave casa XII
2
36
V jiT
3 + 2t i j a - j j ^ j r v r j r v r j r 3
amp4
m fp p p
o
o o o
L V sempre gt 0 0
V
laquo H P- f ^ = - p p ^ = ^ f
5 + 5 16 7 7
me
fs f
7 7 f
s f
7 7 7 f f
f8
) Here starts a cross fade section The notes articulated convencionaly fade out quite gradually and the noise of the fingers scraping the strings fade in
3
V
32f f
L32 1 lt-32-1f f
p p p
r 7 i i CU (L32lsquo lsquo32l
f f
50 reg n reg n
V
32f f
^ 32
f f
54
V
7 md
- n u u u u u u u u u
o u O U O U U H O i S O U -
56
V
6 (md)
E
a m i u a m u i
8va-
Iacute ~ 7 - ---------------- ------------- 1^ - -------------------fj
74)g
6
5)
7
p
m p
m m m m
iacute 7f
7 1m f
r u a f f 1 p =
4) Percutir com polpa dos dedos (e unhas) da md aleatoriam ente sobre o tampo o mais raacutepido possiacutevel
5) Rasqueado de me com cordas abafadas pela md com vaacuterios dedos em defasagem e usando as 6 cordas (som percussivo granular)
6) Equilibrar a intensidade dos dois sons a percussatildeo sobre o tampo deve soar na mesma intensidade que o rasgueado em direccedilatildeo a um a fusatildeo entre os dois
4
(md)mp
59
V
E
mp8vat
J 1 18 m f
m trnitm r m m m m mf
7 pound
J L BJ
8va-
m lt s f
uuml Lrm f
U L L f It uuml L JT
8
-A--1
va---
jppp
V
E
LV8va- -
laquo 4reg
J f iacute5 ^ -
p p p f - 32
E
IacuteP
7) Ruiacutedo de cordas Movimentos esparsos lentos e irregulares das duas matildeos
5
LV sempre (possible)f mp
f (3 r
68
Vbull 0 mdash mdash
mp etc C IV
reg iacute J
i r r p l =
VS
LJ ----- 4 r - r
i - 14 i r i 14 1 mp mp m p etc
C VII
73
V
C IV
6
t laquo
t P
copy
A 3 ltJip - r 3
_ r 3^ r32^ (6
^ hr raquo2 v ------- - 2 -^r mdash raquo f- -------- 4 - - mdash r iacute
lt4(S
mdash rsquo ------- -laquol
p mdash f ^ r mdash i
euro8--------- ----------- 1------- -----------------4 1 1 A ------------- 1--------- f ------ Ip mdash mdash 1mdash 1
C VII C V
C XII
C XII
78
VtT
p-i plaquo - Ur t J raquo r
f i p g
C VII
1 7
C V
C IX
pp
C IV
reg reg reg reg
83 fl f t s ---------^ j 0 tlJ i i f ltV L 3 4 r r r J |l
i t
raquo r r i t j r ^ mdashr i
v t h i t r r 1 1 - r [ j = M8 ^ reg ^ reg reg
7 7 copy ^
C V
v t - t t r - r r J g LAgrave
^ PS Pp mdash prego o
I esperar fim do tape
o
8) Nos casos de um bloco que m istura harmocircnicos e notas naturais ambos devem soar com mesma intensidade
6
DAVI RAUBACH TUCHTENHAGEN
INTERACcedilAtildeO NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
Dissertaccedilatildeo apresentada ao curso de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Muacutesica Setor de Artes Comunicaccedilatildeo e Design Universidade Federal do Paranaacute como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Muacutesica
Orientador Prof Dr Felipe de Almeida Ribeiro
CURITIBA
2018
Catalogaccedilatildeo na publicaccedilatildeo
Sistema de Bibliotecas UFPR
Biblioteca de Artes Comunicaccedilatildeo e Design Batel (AM)
(Elaborado por Sheila Barreto CRB9-1242)
Tuchtenhagen Davi Raubach
Interaccedilatildeo na muacutesica eletroacuacutestica mista Davi Raubach Tuchtenhagen -
Curitiba 2018
211 f
Orientador Prof Dr Felipe de Almeida Ribeiro
Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Muacutesica) - Setor de Artes Comunicaccedilatildeo e
Design da Universidade Federal do Paranaacute
1 Dissertaccedilotildees - Muacutesica 2 Muacutesica 3 Comissatildeo ITiacutetulo
CDD 780
UFPR
MINISTEacuteRIO OA EDUCACcedilAtildeO 8 E T 0 R ARTES COMUNICACcedilAtildeO E DESIGN UNIVERSIOADE FEDERAL OO PARANAacute P R Oacute -R amp TO R IA DE PESQUISA E POacuteS-GRADUACcedilAtildeO PROGRAM A DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO MUacuteSICA - 40D01016065R2
TER M O OE A PR O V A Ccedil Atilde O
Os m em bros da Bance Exam inadora designada pelo Colegiadcopy d o P rogram a de P oacutes-G raduaccedilatildeo em M UacuteSICA da Universidade
Federal d o Paranaacute foram conw cados pare realMar a arguiccedilatildeo da D issertaccedilatildeo d e M estrado d e D AVI RAIJBACH TUC HTENHAGEN
irrtitiaacuteada In te ra ccedilatilde o n a M uacute s ica E letroecsisU ca M is ta apos te rem inqu irido o a luno e rea lizado e avaliaccedilatildeo d o traD alto satildeo de
parecer pele sua b amp Ocirc ^ J k Ccedil X o ________ no rito d e defesa
A outorga d o titu lo d a m estre estaacute su je ila agrave tvomoi-ogaccedilocirco pelo colegkado ao a tendim ento d e todas as indicaccedilotildees e correccedilotildees
soiiciladas pela banca ao p leno alendim enlo dee demaradas regimentais do Programa d raquo Potildes-Gradueccedil5o
CURITIBA 06 d e Feverero de 2019
Avshador Interno ()
RUA CORONEL DJLCIacuteD IO 636 - CURITIBA - Pereneacute - E rasC E P 80420-170 - TeL (41) 3307-7306 - E-maif ufpr ppgmajsice copy gm ailcom
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo aos professores Clayton Mamedes Roseane Yampolschi e Mauriacutecio Dottori pelos
conhecimentos compartilhados e pelos diversos insights sobre minhas composiccedilotildees e sobre
minha pesquisa
Agradeccedilo aos colegas Valentina Daldegan e Eric Moreira pelos processos criativos
compartilhados
Agradeccedilo ao meu orientador Felipe de Almeida Ribeiro pelo incentivo e motivaccedilatildeo e por
propiciar a expansatildeo de minhas referecircncias
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal
de Niacutevel Superior - Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001
Agradeccedilo agrave CAPES agrave UFPR e ao Grupo de Pesquisa Muacutesica Nova
Agradeccedilo aos meus pais Vanda e Jorge por todo o apoio
Agradeccedilo a minha esposa Caroline Reichow pela cumplicidade e pelo cuidado
Agradeccedilo a Deus por estas pessoas
RESUMO
Esta pesquisa investiga a interaccedilatildeo na muacutesica que combina recursos eletroacuacutesticos e instrumentais numa performance - a muacutesica eletroacuacutestica mista Devido agrave presenccedila de tecnologias diversas na performance e composiccedilatildeo deste repertoacuterio ldquointeraccedilatildeordquo pode se referir agraves relaccedilotildees entre estes recursos tecnoloacutegicos e os performers Entretanto tambeacutem pode se referir agraves relaccedilotildees entre os sons que se nos apresentam na experiecircncia de escuta Distinguimos estes dois acircmbitos praacutetico-tecnoloacutegico e sonoro-morfoloacutegico e investigamos suas inter-relaccedilotildees a fim de focar no segundo Assim independentemente dos recursos tecnoloacutegicos utilizados investigamos as relaccedilotildees e interaccedilotildees entre eventos sonoros que como as notas de uma voz no contraponto tonal satildeo por um processo da escuta agrupados em camadas planos fluxos (WISHART 1996 BREGMAN 2004 2008) que por sua vez formam uma textura O principal problema desta pesquisa concerne agrave maneira como interagem estes fluxos na muacutesica eletroacuacutestica mista tendo em vista as particularidades relativas agrave uniatildeo dos meios instrumental e eletroacuacutestico Atraveacutes de uma revisatildeo bibliograacutefica levantamos ferramentas teoacutericas para investigar e descrever como se constituem se diferenciam se relacionam os fluxos sonoros entre si e como se relacionam com o aspecto visual da performance Anaacutelises de quatro peccedilas mistas aplicam as ferramentas levantadas a fim de verificar estrateacutegias especiacuteficas encontradas no repertoacuterio Aleacutem disso a experiecircncia do autor de compor duas peccedilas em interaccedilatildeo com a pesquisa eacute apresentada Esta pesquisa propotildee a distinccedilatildeo teoacuterica entre microtextura e macrotextura discute as teorias concernentes agrave interaccedilatildeo argumenta pela plausibilidade de considerar o aspecto visual como um elemento da textura em interaccedilatildeo com o que soa e evidencia a ambiguidade e a fluidez presentes nas relaccedilotildees sonoras e visuais deste repertoacuterio
Palavras-chave composiccedilatildeo interaccedilatildeo muacutesica eletroacuacutestica mista fluxos sonoros textura
ABSTRACT
This research investigates the interaction in music that combines electroacoustic and instrumental resources in a performance - mixed electroacoustic music Due to the presence of different technologies in the performance and composition of this repertoire ldquointeractionrdquo can refer to the relationships between performers and technologic resources Nevertheless it also can refer to the relationships between the sounds we perceive in the listening experience We distinguish these two ambits practical-technological and sound-morphological and investigate their interrelations in order to focus on the second one Then we investigate independently of the technological resources used the relationships and interactions between sound streams Through a listening process the sound events are grouped in layers plans or streams (WISHART 1996 BREGMAN 2004 2008) and constitute a texture the same way the notes are grouped in a voice in tonal counterpoint The main problem of this research concerns the way that these streams interact in mixed electroacoustic music considering its particularities We identify theoretic tools from a bibliographic revision to investigate and describe how the streams are constituted distinguished how they relate to each other and how they relate to the visual aspects of performance We apply these identified tools in the analysis of four mixed pieces in order to verify specific strategies found in the repertoire Moreover we present a personal experience of composing two pieces in interaction with the research This research proposes a theoretic distinction between micro-texture and macro-texture discusses the theories concerned to interaction argues about the plausibility to consider the visual aspect a textural element in interaction with sound and evidences the ambiguity and fluidity present in visual and sound relationships in this repertoire
Keywords composition interaction mixed electroacoustic music sound streams
LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES
FIGURA 1 - SYNCHRONISMSNO 10 (1992) DE MARIO DAVIDOVSKY (COMPASSOS
109-110) 22
FIGURA 2 - ESQUEMA DA PECcedilA A PIERRE DELL rsquoAZZURRO SILENZIO INQUIETUM
(1985) DE LUIGI NONO24
FIGURA 3 - COMPASSOS INICIAIS DE A PIERRE DELL rsquoAZZURRO SILENZIO
INQUIETUM (1985) DE LUIGI NONO25
FIGURA 4 - CONTEXTO DISCIPLINAR DA MUacuteSICA INTERATIVA 27
FIGURA 5 - EXCERTO DA PARTITURA DE JUPITER (1987) DE PHILIPPE MANOURY
29
FIGURA 6 - JANELA PRINCIPAL DO PATCH DE JUPITER (1987) DE PHILIPPE
MANOURY 30
FIGURA 7 - PROCESSO COMPOSICIONAL NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA 40
FIGURA 8 - REPRESENTACcedilAtildeO DOS ASPECTOS QUANTITATIVO E QUALITATIVO
DA TEXTURA 43
FIGURA 9 - ALGUMAS QUALIDADES DA TEXTURA 44
FIGURA 10 - DIAGRAMA DE QUATRO CONDICcedilOtildeES DA PERCEPCcedilAtildeO DE FLUXOS
AUDITIVOS DISTINTOS COM PADRAtildeO GALOPANTE H LH -H LH -H LH - 47
FIGURA 11 - POLIFONIA VIRTUAL NOS COMPASSOS 89 A 94 DA PARTITA NO 2 EM
REacute MENOR B W V 1004 DE J S BACH 47
FIGURA 12 - POLIFONIA VIRTUAL NOS COMPASSOS 121 A 123 DA PARTITA NO 2
EM REacute MENOR BW V 1004 DE J S BACH 48
FIGURA 13 - MELODIA DE TIMBRES NA ORQUESTRACcedilAtildeO DE WEBERN FUGA
(RICERCATA) NO 2 AU SD E M ldquoMUSIKALISCHENOPFER VON JOH SEB BACH 50
FIGURA 14 - EXEMPLO DE MACRO E MICROTEXTURA 53
FIGURA 15 - NIacuteVEIS DE ANAacuteLISE DA SONORIDADE55
FIGURA 16 - VETOR DE QUALIFICACcedilAtildeO DO GRAU DE OPOSICcedilAtildeO ESTRUTURAL
ENTRE UNIDADES SONORAS 56
FIGURA 17 - TELHAGEM DE ACORDO COM GUIGUE (2011)57
FIGURA 18 - SINTAGMA EM SYNCHRONIMS NO 10 (1992) DE MARIO
DAVIDOVSKY (COMPASSOS 271-272)57
FIGURA 19 - POLIFONIA DE SONORIDADES EM MOMENTO 23 DE ALMEIDA
PRADO 58
FIGURA 20 - a) REPRESENTACcedilAtildeO ESQUEMAacuteTICA DA REDE (LATTICE)
TRIDIMENSIONAL b) REPRESENTACcedilAtildeO ESQUEMAacuteTICA DE UM OBJETO
MUSICAL COMPLEXO SE MOVENDO NO CONTINUUM61
FIGURA 21 - DESENVOLVIMENTO DE UM FLUXO SEPARANDO EM OUTROS E
CONVERGINDO NOVAMENTE76
FIGURA 22 - DIVISAtildeO DE UM FLUXO EM OUTROS EM KONTAKTE (1958-60) DE
STOCKHAU SEN 77
FIGURA 23 - COMPASSOS INICIAIS DE MUSIC FOR FLUTE AND ISPW (1994) DE
CORT LIPPE 83
FIGURA 24 - MODELO DE ACcedilAtildeO-RESPOSTA DOS INSTRUMENTOS ACUacuteSTICOS90
FIGURA 25 - POSSIacuteVEIS RELACcedilOtildeES CONFUSAS NA PERCEPCcedilAtildeO DE ACcedilAtildeO-
RESPOSTA NO CONTEXTO DA MUacuteSICA MISTA90
FIGURA 26 - FUSAtildeO EM THREE VOICES (1982) DE MORTON FELDMAN
(COMPASSOS 15 A 18 DA PARTE B) 93
FIGURA 27 - EXCERTO DA PARTITURA DE APHASIA (2009) DE MARK
APPELBAUM 94
FIGURA 28 - ILUSTRACcedilAtildeO DE POSSIacuteVEIS COMPONENTES DA MACROTEXTURA
DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA103
FIGURA 29 - ACORDES-TIMBRE INICIAL E FINAL DA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE
DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN MURAIL107
FIGURA 30 - COMPASSOS INICIAIS TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS
(1982-3) DE TRISTAN MURAIL108
FIGURA 31 - COMPASSOS 11 A 13 DA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS
(1982-3) DE TRISTAN MURAIL110
FIGURA 32 - FLUXO DO CORNE INGLEcircS NA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE
DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN MURAIL111
FIGURA 33 - FLUXOS SONOROS NA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS
(1982-3) DE TRISTAN MURAIL (645 a 1006) 112
FIGURA 34 - RELACcedilAtildeO ENTRE DOIS FLUXOS EM DESINTEGRATIONS (1982-3)
SOBRE O QUADRO DE WISHART (1996) 113
FIGURA 35 - INIacuteCIO DA PARTE 1B DE STRANGE AUTUMN DE STEVEN KAZUO
TAKASUGI 117
FIGURA 36 - ILUSTRACcedilAtildeO DE BATIMENTOS ACCELERANDO E RITARDANDO NO
COMECcedilO DE IN MEMORIAM JO N HIGGINS128
FIGURA 37 - COMPASSOS 77-78 DE DOIS MOVIMENTOS PARA ACORDEAtildeO E PIANO
(2016) 135
FIGURA 38 - EXEMPLO DA UTILIZACcedilAtildeO DO TEXTO COMO SUBSTITUTO DE UMA
ESCRITA DE FIGURAS RIacuteTMICAS EM M EU TRECHO PREDILETO137
FIGURA 39 - VARIACcedilAtildeO MOTIacuteVICA A PARTIR DE UM FRAGMENTO TEXTUAL
(SISTEMAS 2 E 3)138
FIGURA 40 - DESLOCAMENTOS DE FLA UTA E FALA PARA O PRIMEIRO PLANO EM
CHAtildeO DE OUTONO 142
FIGURA 41 - RELACcedilOtildeES PRESENTES NOS PROGRAMAS DO PATCH143
FIGURA 42 - QUATRO MATERIAIS DE NASCER PEDRA MORRER NUVEM
(COMPASSOS 8 a 10)149
FIGURA 43 - COMPASSOS 39 a 54 TRANSICcedilAtildeO EM NASCER PEDRA MORRER
NUVEM (2018) 150
FIGURA 44 - COMPASSOS 55 a 60 TREcircS FLUXOS151
FIGURA 45 - COMPASSOS 67 a 71 INIacuteCIO DA SECcedilAtildeO FINAL 153
FIGURA 46 - COMPASSOS 89 a 93 BATIMENTOS153
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO14
2 A INTERACcedilAtildeO NO CONTEXTO DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
21
21 TEacuteCNICAS DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA21
211 Sons fixados em suporte 21
212 Eletrocircnica em Tempo Real e Sistemas Interativos24
22 QUERELA DOS TEMPOS E A ESTEacuteTICA DA INTERATIVIDADE 31
23 ENTRE TECNOLOGIA E MORFOLOGIA SONORA 36
3 A INTERACcedilAtildeO NO AcircMBITO SONORO-MORFOLOacuteGICO 42
31 VOZES E TEXTURA42
311 Textura42
312 Vozes sons segregados em fluxos auditivos 45
313 Orquestraccedilatildeo timbre (tone-color) e textura48
314 Microtextura e macrotextura52
32 AS SONORIDADES 53
321 Oposiccedilatildeo Adjacente e Segmentaccedilatildeo56
322 Polifonia de Sonoridades58
33 ldquoVOZESrdquo NO CONTEXTO ELETROACUacuteSTICO 59
331 O Continuum 60
332 O Gesto e textura 61
333 Camadas fluxos e planos 63
334 O caraacuteter misto da muacutesica mista64
34 FLUXOS SONOROS 67
341 Simultaneidades da micro eou da macrotextura68
342 Fusatildeo e contraste constituiccedilatildeo e segregaccedilatildeo de muacuteltiplos fluxos69
343 Relaccedilatildeo entre fluxos distintos 78
3431 Comportamento 78
3432 Contraponto 84
3433 Interaccedilatildeo gestual 86
35 O FLUXO VISUAL NA MUacuteSICA MISTA 89
36 TEXTURA NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA 99
4 DISCUSSAtildeO E ANAacuteLISES 104
104
114
120
120
123
127
134
136
144
145
145
146
148
155
165
173
174
177
184
DESINTEGRATIONS DE TRISTAN MURAIL
STRANGE AUTUMN DE STEVEN KAZUO TAKASUGI
MUSIC FOR SNARE DRUM AND COMPUTER DE CORT LIPPE
Instrumento(s) e computador e instrumento(s) e tape no trabalho de Cort Lippe
Music for Snare Drum and Computer
IN MEMORIAM JO N HIGGINS DE ALVIN LUCIER
SOBRE MEU PROCESSO COMPOSICIONAL
CHAtildeO DE OUTONO
Programa 1
Programa 2
Programa 3
Programa 4 e 5
NASCER PEDRA MORRER NUVEM
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
REFEREcircNCIAS
ANEXOS
ANEXO 1 - QUADROS DE MODELOS DE INTERACcedilAtildeO GESTUAL DE
PETRA BACHRATAacute (2010)
ANEXO 2 - PARTITURA DE CHAtildeO DE OUTONO
ANEXO 3 - PARTITURA DE NASCER PEDRA MORRER NUVEM
14
1 INTRODUCcedilAtildeO
Apoacutes a Segunda Guerra Mundial a utilizaccedilatildeo de recursos eletrocircnicos na muacutesica se
desenvolve em duas vertentes principais Na Franccedila a partir das iniciativas de Pierre
Schaeffer se desenvolvia a Musique Concrete na Radiodiffusion Teleacutevision Franccedilaise (RTF)
em Paris a partir de 1948 No mesmo periacuteodo por iniciativa de Herbert Eimert na Alemanha
se desenvolvia a Elektronische Musik no Norwestdeutcher Rundfunk (NWDR) em Colocircnia
Dentre os nomes da muacutesica concreta destaca-se Pierre Henry enquanto que do lado
eletrocircnico Karlheinz Stockhausen (MANNING 2004)1 Inicialmente estas duas vertentes se
diferenciavam fortemente Enquanto a vertente concreta fazia uso de sons gravados a vertente
eletrocircnica utilizava sons sintetizados no proacuteprio equipamento eletrocircnico Como consequecircncia
desta separaccedilatildeo se estabelece uma relaccedilatildeo dicotocircmica entre as duas teacutecnicas Esta relaccedilatildeo eacute
desafiada de maneira mais representativa na peccedila Gesang der Juumlnglinge (1955-56) de
Karlheinz Stockhausen A peccedila vai aleacutem desta dualidade ao combinar sons sintetizados com
gravaccedilotildees da voz de um adolescente (DIAS 2014 p 16-17) Como aponta Menezes (1996 p
40) ldquoPouco a pouco assistimos a uma afluecircncia cada vez mais abundante de sons concretos
no contexto da muacutesica eletrocircnica afluecircncia esta que criaraacute aliaacutes um precedente para a futura
emergecircncia da muacutesica eletroacuacutestica mistardquo
A uniatildeo de sons instrumentais ao vivo com sons eletrocircnicos surge no seio da
Elektronische M usik e apresentou no princiacutepio semelhante dicotomia Como afirma
Stockhausen
Neste sentido a muacutesica instrumental poderia existir ao lado da muacutesica eletrocircnica Em qualquer destas esferas deve-se trabalhar funcionalmente cada meio deve ser usado produtivamente geradores - gravadores de fita - alto-falantes devem produzir o que nenhum instrumentista seria capaz de tocar (e microfones deveriam ser deixados para repoacuterteres) partitura - inteacuterprete - instrumento devem produzir o que nenhum aparato eletrocircnico jamais seria capaz de gerar ou imitar ou repetir
[]Assim a muacutesica eletrocircnica e instrumental complementariam uma a outra se
moveriam mais e mais rapidamente para longe uma da outra - e somente assim despertam a esperanccedila de realmente se encontrarem em uma composiccedilatildeo de vez em quando
1 Aleacutem destas principais vertentes e tambeacutem relacionadas a elas eacute importante citar o Estuacutedio de Fonologia da Radiotelevisione Italiana (RAI) fundado em 1955 por Luciano Berio e Bruno Maderna em Milatildeo nos Estados Unidos as iniciativas de John Cage que jaacute em 1939 em sua peccedila Imaginary Landscape I utilizava recursos eletrocircnicos e a fundaccedilatildeo do Columbia-Princeton Electronic Music Center em 1958 Outros centros direcionados para esta muacutesica atualmente chamada eletroacuacutestica surgiram tambeacutem no Japatildeo e no Canadaacute (MANNING 2004)
15
As primeiras obras combinando muacutesica instrumental e eletrocircnica receberam suas primeiras performances em 1958 Precisamos encontrar as regras superiores de uma conexatildeo aleacutem do contraste - que representa o mais primitivo tipo de forma (STOCKHAU SEN 1961 p 67 traduccedilatildeo nossa2)
Esta uacuteltima frase sugere que o contraste entre os meios instrumental e eletroacuacutestico
era uma caracteriacutestica comum das primeiras peccedilas que os combinaram fato tambeacutem sugerido
pelos tiacutetulos de algumas obras como Musica su due Dimensione (1952-8) de Bruno Maderna
Differeacutences (1958-9) de Luciano Berio Rimes pour Diffeacuterentes Sources Sonores (1959) de
Henri Posseur por exemplo Ao mesmo tempo na citaccedilatildeo acima Stockhausen sustenta a
complementariedade da muacutesica instrumental e eletrocircnica Morgan (1991) aponta que a
resoluccedilatildeo de Stockhausen para a dicotomia eletrocircnico-instrumental ocorre especialmente em
meados de 1960 nas peccedilas Mikrophonie I (1964) Prozession (1967) and Kurzwellen (1968)
Laacute3 nas notas sobre Mikrophonie I (1964) Prozession (1967) e Kurzwellen (1968) pode-se ler do seu esforccedilo crescente para alcanccedilar uma total integraccedilatildeo dos dois tipos de muacutesica O princiacutepio baacutesico em todas estas peccedilas eacute usar os meios eletrocircnicos para transformar os eventos musicais iniciados pelos performers ao vivo o som final sendo o resultado de uma interaccedilatildeo eletrocircnica-instrumental (MORGAN 1991 p 200 grifo nosso traduccedilatildeo nossa4)
O ldquoesforccedilo por uma total integraccedilatildeo dos dois tipos de muacutesicardquo se coloca em oposiccedilatildeo
ao contraste inicial sobre o qual se baseavam as primeiras peccedilas para instrumentos e sons
eletrocircnicos Entretanto ao contraacuterio do que parece argumentar Morgan natildeo podemos
desconsiderar o sucesso da integraccedilatildeo alcanccedilado na produccedilatildeo anterior agrave deacutecada de 1960
especialmente em Kontakte (1958-1960) A peccedila puramente eletrocircnica utiliza sons que fazem
referecircncia a pele madeira e metal sua versatildeo mista para pianista e percussionista apresenta
2 Original ldquoIn this way instrumental music could exist alongside electronic music In either sphere one must work functionally each medium must be used productively generators - tape-recorders - loud-speakers must produce what no instrumentalist would be able to play (and microphones should be left to reporters) score - player - instrument must produce what no electronic apparatus would ever be able to generate or imitate or repeat []
Electronic and instrumental music would then complement each other would constantly move further and more rapidly away from each other - and only thereby awaken the hope of really meeting each other in a composition once in a while
The earliest works combining electronic and instrumental music received their first performances in 1958 We must find the superior laws of a connection beyond the contrast - which represents the most primitive kind of formrdquo (STOCKHAUSEN 1961 p 67)
3 Se refere ao terceiro volume de Texte que surge em 1971 e cobre os anos de 1963-704 Original ldquoThere in the notes on Mikrophonie I (1964) Prozession (1967) and Kurzwellen (1968) one reads
of his increasing efforts to achieve a total integration of the two types of music The basic principle in all these works is to use electronic means to transform the musical events initiated by live performers the final sound being the result of an electronic-instrumental interactionrdquo (MORGAN 1991 p 200)
16
uma preocupaccedilatildeo com a integraccedilatildeo com os sons eletrocircnicos evidenciada pela proacutepria
instrumentaccedilatildeo que inclui tambores (pele) woodblocks (madeira) e pratos (metal) por
exemplo
Colocado este desajuste consideremos ainda a citaccedilatildeo de Morgan (1991) para
observar o uso do termo interaccedilatildeo De acordo com o autor no caso da produccedilatildeo de
Stockhausen nos anos 1960 a ldquointegraccedilatildeo entre os dois tipos de muacutesicardquo acontece na
interaccedilatildeo entre recursos eletrocircnicos e instrumentos que compotildeem assim um uacutenico resultado
final Nesta concepccedilatildeo interaccedilatildeo se refere ao processo tecnoloacutegico que mistura os meios
instrumental e eletroacuacutestico e que se relaciona diretamente a um resultado sonoro
Entretanto esta relaccedilatildeo direta natildeo eacute uma constante ela normalmente varia de peccedila para peccedila
Natildeo haacute um paralelismo estaacutevel uma correspondecircncia clara entre processo tecnoloacutegico da
performance e o resultado sonoro Uma mesma interaccedilatildeo percebida num resultado sonoro
hipoteacutetico pode ser alcanccedilada por diferentes interaccedilotildees tecnoloacutegicas Em Mikrophonie I por
exemplo Stockhausen utiliza dois processos de produccedilatildeo sonora cada um com trecircs estaacutegios
trecircs muacutesicos trabalhando em paralelo o muacutesico que executa o tam-tam o microfonista e o
muacutesico que controla os filtros O compositor explica na partitura que
[] trecircs processos mutuamente dependentes mutuamente interativos e simultaneamente autocircnomos de estruturaccedilatildeo sonora estatildeo conectados uns com os outros os quais foram compostos como sincrocircnicos ou temporalmente independentes homofocircnicos ou em ateacute seis camadas polifocircnicas(STOCKHAUSEN 1973 p 9 traduccedilatildeo nossa5)
Entretanto como as relaccedilotildees entre estes estaacutegios do processo satildeo muito variaacuteveis
Stockhausen afirma ldquoE eu natildeo posso predizer como o resultado dessa interferecircncia vai soar
porque natildeo o sei ateacute ouvi-lordquo (STOCKHAUSEN 2009 p 75) Embora usando termos que
remontam a interaccedilatildeo entre vozes numa textura (polifonia por exemplo) o compositor estaacute
falando sobre um processo tecnoloacutegico da performance Por outro lado o resultado sonoro
ou como chamaremos o acircmbito sonoro-morfoloacutegico eacute pouco previsiacutevel Possivelmente ao
ouvir a peccedila percebemos duas camadas cada uma proveniente de cada processo com seus
trecircs estaacutegios e natildeo ouvimos as seis camadas do processo6 Assim enquanto a interaccedilatildeo nos
5 Original [] three mutually dependent mutually interacting and simultaneously autonomous processes of sound-structuring are connected with each other which were composed as synchronous or temporally independent homophonic or in up to six polyphonic layers (STOCKHAUSEN 1973 p 9)
6 Este exemplo aponta para a complexidade do fenocircmeno perceptivo da interaccedilatildeo a qual natildeo nos aprofundaremos neste trabalho
17
processos tecnoloacutegicos da performance se daacute em seis ldquocamadasrdquo a interaccedilatildeo percebida no
resultado sonoro pode ser entre duas camadas isso se for possiacutevel diferenciaacute-las
A interaccedilatildeo percebida no resultado sonoro diz respeito agraves relaccedilotildees de sincronia
independecircncia homofonia polifonia entre outras que se apresentam entre camadas distintas
Em trabalhos sobre estas relaccedilotildees na muacutesica eletroacuacutestica especialmente em (WISHART
1996) em vez de camadas (layers) o termo usado eacute fluxos (streams) Enquanto que camadas
se refere mais agrave textura e sua estratificaccedilatildeo independentemente de seu desenvolvimento no
tempo fluxos tem forte conotaccedilatildeo temporal A palavra do inglecircs stream carrega tambeacutem a
ideia de correnteza Estendendo esta metaacutefora ora pode tratar-se de um rio com uma
correnteza uacutenica ora eacute como um mar repleto de correntezas diferentes concorrentes e
interativas Por vezes a muacutesica apresenta um uacutenico fluxo por vezes uma seacuterie de fluxos que
concorrem e interagem convergem e divergem fundem e contrastam Tal ideia de interaccedilatildeo
como aspecto da disposiccedilatildeo (ou dissoluccedilatildeo) sonora em fluxos remonta agraves ideias pioneiras de
Edgard Varegravese Numa aula em 1936 Varegravese expotildee o seguinte pensamento
Quando novos instrumentos me permitirem escrever muacutesica como eu a concebo no lugar do contraponto linear o movimento das massas sonoras de planos intercambiantes seraacute claramente percebido Quando estas massas sonoras colidirem o fenocircmeno da penetraccedilatildeo ou repulsatildeo vai parecer acontecer Certas transmutaccedilotildees ocorrendo em certos planos pareceratildeo ser projetadas em outros planos movendo-se em diferentes velocidades e em diferentes acircngulos Natildeo haveraacute mais a velha concepccedilatildeo de melodia ou interaccedilatildeo [interplay] de melodias A obra inteira seraacute uma totalidade meloacutedica A obra inteira fluiraacute como flui um rio (VARESE 1966 p 11 traduccedilatildeo nossa7)
Varegravese denomina estas camadas ldquoplanos intercambiantesrdquo e ldquomassas sonorasrdquo e
imagina como poderiam interagir colidindo eou penetrando uma na outra repelindo uma agrave
outra fazendo com que uma transformaccedilatildeo em um plano apresente consequecircncias em outros
(ldquoser projetadasrdquo) Estas consequecircncias poderiam ser percebidas no caraacuteter cineacutetico
(ldquomovendo-se em diferentes velocidadesrdquo) e espacial (ldquoem diferentes acircngulosrdquo) destas
massas Tais caracteriacutesticas esteacuteticas satildeo apresentadas como opostas agrave ldquovelha concepccedilatildeo de
melodiardquo ou de ldquointeraccedilatildeo de melodiasrdquo Trata-se de uma concepccedilatildeo de massas sonoras
7 Original ldquoWhen new instruments allow me to write music as I conceive it taking the place of the linear counterpoint the movement of sound masses of shifting planes will be clearly perceived When these sound- masses collide the phenomena of penetration or repulsion will seem to occur Certain transmutations taking place on certain planes will seem to be projected onto other planes moving at different speeds and at different angles There will no longer be the old conception of melody or interplay of melodies The entire work will be a melodic totality The entire work will flow as a river flowsrdquo (VARESE e WEN-CHUNG 1966 p 11)
18
interativas que compotildeem uma totalidade (ldquomeloacutedicardquo) que flui ldquocomo flui um riordquo 8
Assim sendo esta pesquisa localiza-se no cenaacuterio geral da muacutesica eletroacuacutestica e
mais especificamente no contexto da muacutesica que une sons instrumentais ao vivo com sons
eletroacuacutesticos a chamada muacutesica eletroacuacutestica mista9 A interaccedilatildeo eacute palavra-chave neste
repertoacuterio e pode se referir entre outros agraves relaccedilotildees presentes (a) nos processos tecnoloacutegicos
da performance e (b) no acircmbito sonoro-morfoloacutegico (resultado sonoro) A segunda eacute a que
motiva esta pesquisa Reunimos e discutimos diversas perspectivas (BACHRATAacute 2010
MENEZES 2006 p 377-400 SMALLEY 1997 SOUZA 2010 WISHART 1996 entre
outros) que utilizam o termo interaccedilatildeo para tratar de relaccedilotildees sonoro-morfoloacutegicas
Entretanto a presente pesquisa apresenta um vieacutes proacuteprio Ela tem o objetivo de observar esta
interaccedilatildeo natildeo apenas no niacutevel dos eventos (nota a nota gesto a gesto) mas num niacutevel em que
estes eventos satildeo agrupados em categorias mais amplas Convencionalmente as notas satildeo
agrupadas em vozes Na muacutesica eletroacuacutestica os eventos sonoros podem ser agrupados em
camadas planos ou fluxos Com base em Wishart (1996) Bregman (2004 2008) e Guigue
(2011) a metaacutefora de fluxo seraacute a principal alternativa apresentada nesta pesquisa Embora
este conceito jaacute tenha sido explorado poucos estudos abordam a constituiccedilatildeo de tais
estruturas no repertoacuterio a que estamos nos direcionando Ao abordar a caracterizaccedilatildeo e a
interaccedilatildeo de fluxos distintos percebidos na experiecircncia de escuta10 da muacutesica eletroacuacutestica
mista busca-se preencher parte desta lacuna Nesta investigaccedilatildeo a pesquisa revisita e oferece
outras perspectivas para questotildees e conceitos sempre importantes para a composiccedilatildeo tais
8 Eacute interessante notar que embora Varegravese descreva caracteriacutesticas do resultado sonoro tudo isso seria possibilitado por ldquonovos instrumentosrdquo ou seja novos processos tecnoloacutegicos da performance juntando assim os dois acircmbitos que separamos inicialmente (tecnoloacutegico e sonoro-morfoloacutegico)
9 Existem outros termos para designar com mais ou menos restriccedilotildees teacutecnicas as possibilidades de muacutesica para instrumentos e sons eletroacuacutesticos musique mixte live electronic music interactive music Uma discussatildeo terminoloacutegica pode ser encontrada na introduccedilatildeo do livro Live Electronic Music (SALLIS et al 2018) Nas pesquisas brasileiras especialmente da UNeSp (GATI 2015 DIAS 2014 MENEZES 2006) o termo muacutesica eletroacuacutestica mista abarca qualquer muacutesica em que haacute a junccedilatildeo destes dois meios instrumental e eletroacuacutestico independentemente da tecnologia utilizada Assim eacute entendida tambeacutem nesta pesquisa
10 Tal delimitaccedilatildeo temaacutetica voltada para o que eacute percebido na experiecircncia da escuta natildeo deve ser entendida dentro de um paradigma que natildeo considera ldquomuacutesicardquo nada aleacutem do som Pelo contraacuterio esta pesquisa assume a compreensatildeo da muacutesica enquanto fato musical (NATTIEZ 1990 p 10-16) como uma atividade que inclui criaccedilatildeo performance (niacutevel poieacutetico) um rastro da criaccedilatildeo como a partitura a gravaccedilatildeo etc (niacutevel neutro) e recepccedilatildeo (niacutevel esteacutesico) E que estas funccedilotildees de compositor performer e ouvinte podem se mesclar em um uacutenico indiviacuteduo Entretanto por delimitaccedilatildeo do escopo o foco estaacute no niacutevel neutro no som resultante da criaccedilatildeo e da performance As representaccedilotildees graacuteficas deste som (e g espectrograma) ou de instruccedilotildees para obtecirc-lo (partitura) satildeo utilizadas na medida em que possibilitam ilustrar o aspecto sonoro Evidentemente natildeo estamos isentos aos outros niacuteveis acessamos o niacutevel neutro de uma perspectiva de recepccedilatildeo (niacutevel esteacutesico) ao mesmo tempo que enquanto pesquisador compositor estou interessado em estrateacutegias de que possa me valer no trabalho criativo (niacutevel poieacutetico) interesse que o leitor possivelmente compartilha
19
como vozes textura e contraponto de forma a dialogar com o contexto atual de produccedilatildeo
musical no qual o autor estaacute inserido11
As concepccedilotildees de interaccedilatildeo (a e b) satildeo abordadas no capiacutetulo 2 como preliminares agrave
discussatildeo principal da dissertaccedilatildeo que foca na interaccedilatildeo como uma relaccedilatildeo sonoro-
morfoloacutegica (b) Apresentamos neste capiacutetulo os principais processos tecnoloacutegicos utilizados
na muacutesica eletroacuacutestica mista abordamos a discussatildeo conhecida como ldquoquerela dos temposrdquo
e as relaccedilotildees entre processos tecnoloacutegicos e resultado sonoro
No capiacutetulo 3 satildeo abordados dois sentidos de uma mesma via Primeiramente
partindo destas reflexotildees do acircmbito eletroacuacutestico nos perguntamos qual seria o lugar da
interaccedilatildeo aparente no resultado sonoro na muacutesica puramente instrumental Posteriormente
tendo abordado os conceitos de voz textura (31) e sonoridade (32) nos perguntamos como
abordar o tema no contexto eletroacuacutestico Fazemos uma breve discussatildeo terminoloacutegica em
torno dos termos camadas fluxos e planos A ideia de fluxo sonoro eacute apresentada como a
principal alternativa para abordar o tema neste contexto (34) A constituiccedilatildeo e segregaccedilatildeo dos
fluxos satildeo abordadas principalmente atraveacutes da morfologia da interaccedilatildeo (MENEZES 2006
p 377-400) A relaccedilatildeo entre eles a partir das ideias de comportamento (SMALLEY 1997)
contraponto (WISHART 1996) e interaccedilatildeo gestual (BACHRATAacute 2010) No subcapiacutetulo 35
a importacircncia do aspecto visual na performance de muacutesica mista eacute avaliada E finalmente a
partir destes levantamentos apresentamos um esboccedilo do que pode ser a textura na muacutesica
eletroacuacutestica mista (36)
O capiacutetulo 4 apresenta anaacutelises de quatro peccedilas mistas feitas a partir das teorias
levantadas Os objetivos de tais anaacutelises satildeo
a) Identificar fluxos sonoros e visuais
b) Identificar relaccedilotildees entre eles
c) Apontar desenvolvimentos e transformaccedilotildees destas relaccedilotildees
Em certa transgressatildeo do modelo de escrita dos capiacutetulos anteriores em que buscou-se
um distanciamento do autor o capiacutetulo 5 explicita o pesquisador-compositor como
interferente delineador desta pesquisa imerso em seus proacuteprios processos criativos As peccedilas
Chatildeo de outono e Nascer pedra morrer nuvem compostas durante o mestrado satildeo abordadas
atraveacutes das teorias estudadas
Os anexos satildeo partituras gravaccedilotildees e patches ldquorastrosrdquo do processo criativo de duas
11 Esta espeacutecie de revisatildeo conceitual complementa a reflexatildeo sem invalidar os meacutetodos jaacute utilizados para descrever inter-relaccedilotildees (harmonia contraponto voz textura etc)
peccedilas compostas durante o mestrado Chatildeo de outono para flauta e sons eletrocircnicos e Nascer
pedra morrer nuvem para violatildeo e sons eletrocircnicos
20
2 A INTERACcedilAtildeO NO CONTEXTO DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
21
O termo interaccedilatildeo tem sido aplicado a diferentes relaccedilotildees presentes no fazer musical12
A que mais nos interessa neste trabalho eacute a relaccedilatildeo sonoro-morfoloacutegica entre os materiais que
se agrupam em fluxos sonoros na experiecircncia da escuta Entretanto eacute importante esclarecer
previamente a distinccedilatildeo entre dois usos do termo interaccedilatildeo no contexto da muacutesica mista
a) Aquele que se refere agraves questotildees tecnoloacutegicas da performance
b) Aquele que se refere agraves questotildees sonoro-morfoloacutegicas
Grosso m odo os aspectos sonoro-morfoloacutegicos concernem ao som e sua organizaccedilatildeo
e podem ser avaliados independentemente dos aspectos praacuteticos tecnoloacutegicos da performance
ou mesmo do processo de composiccedilatildeo13 Para elucidar a diferenccedila do tema interaccedilatildeo nestes
dois acircmbitos neste capiacutetulo as teacutecnicas da muacutesica mista (21) e as discussotildees sobre suas
vantagens e desvantagens para a performance e para composiccedilatildeo (22) satildeo apresentadas E
finalmente questionamos as intersecccedilotildees entre estes dois usos do termo interaccedilatildeo (23)
21 TEacuteCNICAS DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
Podemos classificar grosseiramente as teacutecnicas de performance de peccedilas mistas entre
aquelas que utilizam os sons eletroacuacutesticos fixados em suporte processados em tempo real
eou provenientes de um sistema interativo Estas teacutecnicas natildeo satildeo excludentes as peccedilas
podem fazer um uso misto delas
211 Sons fixados em suporte
A primeira teacutecnica utilizada para combinar instrumentos acuacutesticos e sons
eletroacuacutesticos usada principalmente a partir dos anos 1950 foi aquela em que estes sons satildeo
elaborados previamente em estuacutedio e fixados em um suporte tecnoloacutegico (fita magneacutetica -
tape CD ou disco riacutegido) para serem tocados no momento da performance Nesta teacutecnica eacute
importante considerar a coordenaccedilatildeo (sincronizada ou natildeo) entre os meios instrumental e
12 Um trabalho que avalia diferentes usos do termo eacute o de Mamedes (2016)13 O termo sound morphology eacute usado diversas vezes por Wishart (1996) e encontra forte relaccedilatildeo com a ideia de
espectro-morphology (SMALLEY 1997) A intenccedilatildeo eacute delinear analiticamente um campo em que possamos falar dos aspectos ouvidos da muacutesica sem nos ater a questotildees de produccedilatildeo sonora Este uso do termo natildeo deve ser confundido com a morfologia enquanto estudo da forma musical (periacuteodo frases seccedilotildees etc) ainda que se este estudo se voltasse tambeacutem para as micro-estruturas as duas concepccedilotildees poderiam se encontrar
22
eletroacuacutestico e quais satildeo os recursos utilizados na performance para estabelececirc-la Segundo
Schrader (1991) os compositores tentaram resolver os problemas de coordenaccedilatildeo entre
elementos ao vivo (instrumentais) e preacute-gravados com uma de quatro maneiras diferentes
1) O material eletroacuacutestico foi preacute-gravado mas eacute controlado em tempo real por um
performer Imaginary Landscape No 1 (1939) de John Cage Marginal Intersections (1951)
de Morton Feldman
2) O material eletroacuacutestico foi preacute-gravado e eacute alternado com a performance ao vivo
Deserts (1949-1954) de Edgard Varegravese Concerted Piece fo r Tape Recorder and Orchestra
(1960) de Otto Luening e Vladimir Ussachevsky
3) O material preacute-gravado natildeo coordena precisamente com os elementos ao vivo
Musica su due dimensione (1952 revisada em 1958) de Bruno Maderna
4) O performer deve seguir e sincronizar com o material preacute-gravado Capriccio fo r
violin and two sound tracks (1952) de Hank Badings Kontakte (1960) de Karlheinz
Stockhausen (SCHRADER 1991 p 93)
Deve-se acrescentar que o quarto modo de coordenaccedilatildeo pode acontecer com o auxiacutelio
de um ponto com metrocircnomo de uma regecircncia programada em tela de deixas dos sons
eletroacuacutesticos Na peccedila Synchronism no 10 (1992) para violatildeo e tape de Mario Davidovsky
eacute possiacutevel observar pontos em que a sincronia eacute facilitada por deixas da parte eletrocircnica (ver
Figura 1)
FIGURA 1 - SYNCHRONISMS NO 10 (1992) DE MARIO DAVIDOVSKY (COMPASSOS 109-110)Giusto
Guitar
liberamente J ) = J = 120m m p
mdash d r -h iplusmn -------------1 1 111 raquo 11 L = 1
Tape
9 -
atrade
ecirc
cue
urpm f
Repeat in any order until tape enters on C on beat three
FONTE Transcrito de Davidovsky (compositor) (1995)
Ding (apud SCHULZ 2010 p 27-29) apresenta outra classificaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo
com sons preacute-gravados em relaccedilatildeo agrave maneira com que o compositor lida com a sincronizaccedilatildeo
e a expressa na partitura A classificaccedilatildeo eacute extensiacutevel a outras instrumentaccedilotildees que natildeo piano
e sons preacute-gravados - tema de sua pesquisa Aleacutem disso mais de um tipo de sincronizaccedilatildeo
pode ser utilizado numa mesma peccedila As possibilidades satildeo
a) Riacutetmica independente com sincronizaccedilatildeo por seccedilotildees o instrumentista tem liberdade
para fazer variaccedilotildees temporais no acircmbito de cada seccedilatildeo atentando apenas para o iniacutecio e fim
delas O compositor pode indicar na partitura a minutagem e o inteacuterprete pode usar um
cronocircmetro para acompanhar a troca de seccedilotildees
b) Riacutetmica livre com sincronizaccedilatildeo relativa a partitura natildeo utiliza indicaccedilatildeo de
minutagem (sem necessidade de metrocircnomo) mas possui uma representaccedilatildeo graacutefica da parte
eletroacuacutestica e o inteacuterprete se guia por sinais (setas linhas etc) que indicam a relaccedilatildeo entre
os eventos preacute-gravados e os que executaraacute Esta estrateacutegia depende muito do estudo para
encontrar os pontos de sincronia com a parte eletroacuacutestica deixando os outros momentos
com uma liberdade riacutetmica maior para o inteacuterprete
c) Sincronizaccedilatildeo estrita com riacutetmica livre diferentemente da sincronizaccedilatildeo por seccedilotildees
esta geralmente exige sincronia de evento a evento ou de segundo a segundo A escrita riacutetmica
eacute flexiacutevel mas os pontos de sincronia satildeo indicados com a minutagem sendo imprescindiacutevel o
metrocircnomo no estudo destas peccedilas
d) Sincronizaccedilatildeo estrita a partir de meacutetrica fixa a sincronia acontece por uma escrita
riacutetmica precisa tanto dos eventos instrumentais quanto eletroacuacutesticos Pode apresentar
inclusive notaccedilotildees precisas de andamento accelerando e ritardando
Abaixo estatildeo alguns exemplos de peccedilas para instrumento(s) e sons fixados em suporte
que apresentam diferentes tipos de sincronizaccedilatildeo entre instrumento e suporte
Karlheinz Stockhausen Kontakte (1958-1960) para piano percussatildeo e tape
Luciano Berio Diffeacuterences (1959) para flauta harpa viola violoncelo e tape
Jean-Claude Risset Inharmonique (1977) para soprano e tape
Mario Davidovsky Synchronism No 9 (1988) para violino e sons eletrocircnicos
Flo Menezes Parcours de l rsquoentiteacute (1994) para flauta amplificada percussatildeo e sons
eletroacuacutesticos
Joatildeo Pedro Oliveira Mosaic (2010) para piano e sons eletrocircnicos
23
24
212 Eletrocircnica em Tempo Real e Sistemas Interativos
Outra maneira de combinar instrumento e sons eletroacuacutesticos usada principalmente a
partir de meados de 1960 eacute aquela que usa equipamentos eletrocircnicos para processar o som do
instrumento no momento da performance14 Haacute uma seacuterie de processamentos mais utilizados
entre eles delays harmonizers espacializadores filtros reverbs e moduladores por anel Tais
processos podem se apresentar de maneira fixa ou entatildeo serem controlados por um performer
ao vivo A figura 2 demonstra o esquema da peccedila A Pierre D ellrsquoAzzurro Silenzio Inquietum
(1985) para flauta contrabaixo clarinete contrabaixo e eletrocircnica em tempo real de Luigi
Nono
FONTE Nono (compositor) (1996)
Nesta peccedila a partitura conteacutem aleacutem de vaacuterias indicaccedilotildees preliminares sobre a
configuraccedilatildeo deste sistema uma pauta para controle da dinacircmica da parte eletrocircnica (ver
Figura 3)
14 Tal estrateacutegia se encontra na categoria mais ampla chamada live-electronics Isto porque live-electronics ou eletrocircnica em tempo real pode incluir performances com equipamentos eletrocircnicos mesmo na ausecircncia de instrumentos convencionais
25
FIGURA 3 - COMPASSOS INICIAIS DE A PIERRE DELL rsquoAZZURRO SILENZIO INQUIETUM (1985) DE LUIGI NONO
J= 30 ca
Esta teacutecnica tem a caracteriacutestica de expandir a sonoridade instrumental a ponto de
falarmos em meta-instrumentos Ribeiro et al (2016) apontam que A Pierre se trata mais do
que uma peccedila para dois solistas de uma muacutesica eletroacuacutestica em que flauta e clarinete satildeo
abordados como geradores de som assim como o satildeo os osciladores e os geradores de ruiacutedo
Deve-se ressaltar que o resultado eletroacuacutestico dependeraacute em grande parte da
execuccedilatildeo da parte instrumental Por isso se espera do inteacuterprete que aleacutem de seu instrumento
domine tambeacutem as reaccedilotildees do sistema eletroacuacutestico Fabbriciani aponta este fato em relaccedilatildeo
agraves peccedilas de Nono
Nono sabia que para maximizar o potencial oferecido por essas teacutecnicas era necessaacuterio formar inteacuterpretes que pudessem interagir com o sistema eletrocircnico tatildeo sensivelmente quanto com seus proacuteprios instrumentos Era igualmente vital construir um entendimento entre os inteacuterpretes e os engenheiros de som de live-electronics Poderiacuteamos chamar isto de uma nova virtuosidade consistindo natildeo somente de velocidade teacutecnica mas de uma notaacutevel habilidade em produzir som com vaacuterios tons de cor nuances sutis e controle incomum da dinacircmica (FABBRICIANI apud RIBEIRO et al 2016 p 130)
Outros exemplos de peccedilas como eletrocircnica em tempo real satildeo
Karlheinz Stockhausen Mikrophonie I (1964) para tam-tam (2 instrumentistas) 2
microfones 2 filtros com potenciocircmetros e 4 pares de alto-falantes
Brian Ferneyhough Time and Motion Study I I (1976-7) para violoncelo e live-
electronics
Luigi Nono Das Atmende Klarsein (1981-2) para flauta baixo coro e live-electronics
Luciano Berio Altra Voce (1999) para mezzo soprano flauta em sol e live-
electronics
James Correa Vertiginous Rotation (2008) para violatildeo e live-electronics
Com o advento da tecnologia digital no final do seacuteculo XX passou-se a utilizar o
computador na muacutesica mista os processamentos podiam entatildeo ser feitos no domiacutenio do aacuteudio
digital Aleacutem disso o computador lida com outras informaccedilotildees uacuteteis para a muacutesica pois
podem representar paracircmetros musicais e agendar eventos musicais por exemplo Assim os
sistemas assumem tambeacutem o papel de controlar os processos em tempo real Aleacutem disso a
possibilidade de utilizar sons preacute-gravados integrados com processamento em tempo real
num hiacutebrido eacute consideravelmente facilitada Populariza-se o termo Computer Music e passa-
se entatildeo a chamar os sistemas usados para combinar sons instrumentais e eletroacuacutesticos em
tempo real de Sistemas Interativos de Muacutesica de Computador (traduccedilatildeo livre de Interactive
Computer Music Systems) (ROWE 1993) Como atualmente dizer que a muacutesica
eletroacuacutestica utiliza o computador eacute quase redundante o termo computer music
frequentemente traduzido por computaccedilatildeo musical embora ainda usado natildeo oferece grande
contribuiccedilatildeo para a caracterizaccedilatildeo do gecircnero (MENEZES 2006 p 355)
O contraacuterio acontece com o termo interativo O potencial do computador de interagir
de maneiras diversas com o humano motivou se chamar tais iniciativas de muacutesica interativa
Neste contexto o entendimento de interaccedilatildeo se refere agraves questotildees tecnoloacutegicas da
performance se coloca em contraposiccedilatildeo agrave natildeo-reaccedilatildeo da teacutecnica de sons fixados em suporte
bem como agrave ldquomerardquo reaccedilatildeo das propostas iniciais do live-electronics Nesta pesquisa estas
possibilidades (sons fixados em suporte live-electronics sistemas interativos) satildeo entendidas
como teacutecnicas distintas da muacutesica eletroacuacutestica mista natildeo como (sub-)gecircneros musicais
distintos
Os sistemas interativos tecircm sido estudados com diversas ecircnfases e por diferentes
disciplinas A Figura 4 demonstra o universo em que o desenvolvimento de tais sistemas se
encontra
26
27
FIGURA 4 - CONTEXTO DISCIPLINAR DA MUacuteSICA INTERATIVA
Music
ComputerScience
Engeneering Narrative
FONTE Transcrito de Whaley (2009)
Nossa pesquisa representa sobretudo a ponta musical da ilustraccedilatildeo e aborda os
aspectos de composiccedilatildeo e performance Eacute importante salientar que relacionadas aos sistemas
interativos se encontram as iniciativas dos Instrumentos Digitais (conf MONTEIRO 2012) e
dos Hiper-instrumentos - instrumentos mais ou menos convencionais incrementados com
sensores (conf MACHOVER 1992) - que natildeo seratildeo abordados nesta pesquisa
De acordo com Rowe (1993) ldquoSistemas interativos de muacutesica computacional satildeo
aqueles cujo comportamento muda em resposta a uma entrada musicalrdquo (natildeo paginado) O
autor concebe os sistemas interativos numa cadeia de processos em trecircs estaacutegios
a) recepccedilatildeo (Sensing) os dados satildeo coletados de controladores que lecircem informaccedilotildees
gestuais da performance
b) processamento (Processing) o computador lecirc e interpreta a informaccedilatildeo vinda dos
sensores e prepara os dados para a resposta
c) resposta (Response) o computador realiza uma saiacuteda musical
28
Rowe classifica os sistemas em trecircs dimensotildees A primeira diferencia entre sistemas
guiados por partitura (score driven) daqueles guiados por performance (performance driven)
a) sistema guiado por partitura uma coleccedilatildeo de eventos predeterminados ou
fragmentos musicais armazenados satildeo combinados (sincronizados) com a entrada
musical (input) Assim o compositor pode trabalhar com categorias tradicionais de
tempo meacutetrica e andamento
b) sistema guiado por performance utiliza paracircmetros mais gerais da performance tais
como densidade e regularidade para determinar paracircmetros de saiacuteda Natildeo antecipa
nenhum evento especiacutefico como acontece naqueles guiados por partitura
A segunda dimensatildeo diferencia entre meacutetodo de resposta transformativo generativo e
sequenciado
a) meacutetodo de resposta transformativo transforma um material musical existente para
produzir variantes A relaccedilatildeo destas com o som original pode ser reconhecida ou
natildeo Este material pode ser armazenado ou como eacute frequente pode-se usar o input
da performance como material
b) meacutetodo de resposta generativo o material fonte eacute elementar ou fragmentaacuterio - por
exemplo escalas armazenadas ou conjuntos de duraccedilotildees O meacutetodo usa regras para
produzir o output Por exemplo ele pode sortear alturas de determinada escala ou
aplicar procedimentos seriais a um conjunto de duraccedilotildees permitidas
c) meacutetodo de resposta sequenciado utiliza fragmentos preacute-gravados em resposta ao
input em tempo real Pode-se variar paracircmetros na execuccedilatildeo destes fragmentos
como por exemplo velocidade de reproduccedilatildeo e envelope dinacircmico
A terceira dimensatildeo diferencia os paradigmas de instrumento e de inteacuterprete (player)
a) paradigma de instrumento os gestos da performance ao vivo satildeo analisados pelo
computador e determinam um output que expande a resposta instrumental normal
Se tocado por um uacutenico performer o resultado musical pode ser percebido como
solo
b) paradigma de inteacuterprete o sistema eacute concebido como um inteacuterprete artificial possui
uma presenccedila musical com comportamentos proacuteprios e pode variar o grau com que
acompanha ou natildeo seu parceiro humano Se tocado por um uacutenico performer o
resultado musical pode ser percebido como um duo
Esta dimensatildeo se aproxima de uma questatildeo distinta Enquanto que as outras se
29
referiam agrave questotildees teacutecnicas do sistema sem chamar atenccedilatildeo para qualquer aspecto sonoro
que seria proveniente dele esta dimensatildeo que diferencia paradigma de instrumento e de
inteacuterprete aponta para um resultado musical decorrente A questatildeo apontada natildeo eacute apenas de
instrumentaccedilatildeo formaccedilatildeo mas de textura (solo ou duo) que eacute um aspecto percebido na
escuta eacute sonoro natildeo propriamente tecnoloacutegico15
Uma das primeiras peccedilas a utilizar sistema interativo eacute Jupiter (1987) para flauta e
eletrocircnica em tempo real de Philippe Manoury A peccedila realizada no Institut de Recherche et
Coordination AcoustiqueMusique (IRCAM) eacute a primeira a utilizar o Max programa criado
por Miller Puckette Faz uso tambeacutem do chamado seguidor de partitura (score follower) em
que o computador ldquoouverdquo a execuccedilatildeo do inteacuterprete e a compara com uma partitura virtual
armazenada O computador eacute programado para executar accedilotildees de processamento ou disparar
samples durante a performance em momentos agendados nesta partitura Assim o sistema de
Jupiter eacute guiado por partitura A Figura 5 apresenta um trecho da partitura do inteacuterprete e a
correspondecircncia dos eventos do computador nas pautas superiores
FIGURA 5 - EXCERTO DA PARTITURA DE JUPITER (1987) DE PHILIPPE MANOURY
Quanto ao meacutetodo de resposta o sistema eacute um misto de transformativo generativo e
sequenciado O sistema efetua transformaccedilotildees sobre um material (tanto a entrada ao vivo
quanto samples) - transformativo efetua a siacutentese sonora de acordo com uma seacuterie de
paracircmetros e regras preacute-estabelecidos - generativo possui um conjunto de amostras preacute-
gravadas que satildeo executadas e transformadas ao longo da peccedila - sequenciado
O sistema eacute concebido no paradigma de inteacuterprete Ainda que dependa de acompanhar
a performance e comparar com a partitura virtual o sistema tem uma presenccedila e
comportamento musical independente da parte instrumental A janela principal do patch
adaptado para PureData por Miller Puckette16 pode ser vista na Figura 6
15 Esta discussatildeo seraacute retomada em 22 e 2316 Disponiacutevel em lthttpmspucsdedupdrplatestfilesdocgt Acesso em 17 jan 2019
30
FONTE Puckette (2018)
A mencionada partitura virtual eacute entretanto mais do que uma seacuterie de dados com a
qual a performance eacute comparada eacute um termo cunhado por Philippe Manoury que assim o
descreve
[] uma partitura virtual eacute uma representaccedilatildeo cujos paracircmetros constitutivos satildeo conhecidos previamente mas cuja manifestaccedilatildeo exata e concreta eacute sujeita a variaccedilatildeo Se tal coisa natildeo eacute conheciacutevel previamente eacute pela simples razatildeo de que haacute um certo grau de dependecircncia da performance que como temos visto conteacutem um grau de indeterminismo Entretanto eacute ainda possiacutevel conceber um sistema que inclua ambos os estados determinado e indeterminado alguns paracircmetros necessaacuterios para a criaccedilatildeo de sons sinteacuteticos podem ser fixados previamente enquanto que outros vatildeo derivar seus valores de uma anaacutelise em tempo real dos instrumentos no momento preciso da performance (e assim conteraacute um grau de indeterminaccedilatildeo) (MANOURY 2013 p 67-68 traduccedilatildeo nossa17)
17 Original ldquo[] a virtual score is a representation whose constituent parameters are known in advance but whose exact concrete manifestation is subject to variation If such a thing is unknowable in advance it is for the simple reason that there is some degree of dependence upon performance which as we have seen contains a degree of indeterminism Nonetheless it remains possible to conceive of a system which includes
31
Outros exemplos de peccedilas com sistemas interativos satildeo
Philippe Manoury Pluton (1988-89) para piano MIDI e eletrocircnica em tempo real
Pierre Boulez Anthegravemes 2 (1997) para violino e eletrocircnica em tempo real
Robert Rowe Cigar Smoke (2004) para clarinete e sistema musical interativo
Philippe Manoury Tensio (2010) para quarteto de cordas e eletrocircnica em tempo real18
22 QUERELA DOS TEMPOS E A ESTEacuteTICA DA INTERATIVIDADE
Querela dos tempos eacute como ficou conhecida a discussatildeo sobre as vantagens e
desvantagens da eletrocircnica em tempo real ou em tempo diferido na muacutesica mista (DIAS
2014 p 20) Esta distinccedilatildeo apresentada por Philippe Manoury considera a difusatildeo em tempo
real como aquela em que o material eletroacuacutestico eacute gerado durante a performance enquanto
que na difusatildeo em tempo diferido a parte eletroacuacutestica foi composta anteriormente em
estuacutedio e armazenada para ser executada na performance (DIAS 2014 p 20) Tal discussatildeo
seraacute abordada a seguir no acircmbito da performance e posteriormente da composiccedilatildeo
Existem alguns obstaacuteculos para a performance daquelas peccedilas em que os sons
eletroacuacutesticos satildeo fixados em suporte e satildeo disparados uma ou poucas vezes durante a
performance19 O principal deles se deve ao fato de que o material preacute-gravado jaacute estaacute todo
definido Se numa muacutesica de cacircmara para instrumentos acuacutesticos os inteacuterpretes podem fazer
decisotildees interpretativas em conjunto na muacutesica com o material preacute-gravado isto natildeo eacute
possiacutevel os sons foram fixados em suporte com um tempo imutaacutevel McNutt aponta que
ldquopara o inteacuterprete tocar com acompanhamento fixo eacute como trabalhar com o pior
acompanhador humano imaginaacutevel desatencioso inflexiacutevel natildeo responsivo e totalmente
surdordquo (McNUTT 2003 p 299 traduccedilatildeo nossa20)
both states determinate and indeterminate some parameters necessary for the creation of synthetic sounds may be fixed in advance whereas others will derive their values from a real-time analysis of instruments at the very moment of performance (and thus will contain a degree of indeterminacy)rdquo (MANOURY 2013 p 67-68)
18 Ao final deste subcapiacutetulo sobre as teacutecnicas e tecnologias da muacutesica mista cabe ressaltar ainda outros dois contextos em que a interaccedilatildeo humano-computador eacute estudada na composiccedilatildeo a interaccedilatildeo compositor- tecnologia (THOMASI 2016 RIBEIRO 2018) no contexto da arte sonora a interaccedilatildeo do espectador participante com a obra atraveacutes de meios tecnoloacutegicos
19 Os referidos obstaacuteculos natildeo seriam tatildeo relevantes para uma peccedila em que por exemplo fossem tocados durante a performance diversos sons preacute-gravados de curta duraccedilatildeo Este seria o caso de uma fronteira entre teacutecnicas em tempo real e teacutecnicas em tempo diferido
20 Original ldquoFor the player performing with fixed accompaniment is like working with the worst human accompanist imaginable inconsiderate inflexible unresponsive and utterly deafrdquo (McNUTT 2003 p 299)
32
O problema do tempo imutaacutevel eacute tambeacutem uma preocupaccedilatildeo para o compositor Pierre
Boulez que o apresenta da seguinte forma
O tempo de uma gravaccedilatildeo em fita magneacutetica natildeo eacute o tempo psicoloacutegico e sim o tempo cronoloacutegico por outro lado o tempo de um inteacuterprete - um regente ou um instrumentista - eacute psicoloacutegico e eacute praticamente impossiacutevel interconectar os doisrdquo (BOULEZ apud MISKALO 20 0921)
Schulz (2010 p 25) argumenta que tal especificidade de tempo imutaacutevel natildeo eacute
caracteriacutestica apenas da muacutesica mista mas aparece em peccedilas de outros gecircneros que exigem do
inteacuterprete um rigor interpretativo em relaccedilatildeo ao tempo (e g Musica Ricercata no 7 195153
de Gyorgy Ligeti) Neste sentido a autora defende que no estudo de peccedilas mistas com sons
preacute-gravados o inteacuterprete natildeo deve apenas acompanhar a minutagem e outras indicaccedilotildees
presentes na partitura mas se apropriar destes sons e antecipaacute-los De acordo com Schulz
o instrumentista parte do conteuacutedo sonoro preacute-gravado para desenvolver o estudo bem como sua performance em coerecircncia com a parte fixa Em outras palavras a velocidade as dinacircmicas os momentos de sincronia e de certo modo as escolhas interpretativas satildeo feitas a partir dos sons preacute-gravados (SCHULTZ 2010 p 26)
Aleacutem disso natildeo eacute porque satildeo preacute-gravados que natildeo houve certo tipo de performance
em estuacutedio (manipulaccedilotildees de faders e potenciocircmetros por exemplo) Trata-se entatildeo de
compreender esta ldquoperformancerdquo preacute-gravada (em tempo diferido) e pensar a performance a
partir dela
Stroppa (1999) tambeacutem aponta nesta direccedilatildeo
Um ou uma performer agrave vontade com um click track encontraraacute outros meios de expressar suas escolhas interpretativas Se a composiccedilatildeo eacute feita de certa maneira ningueacutem na audiecircncia perceberaacute qualquer estranheza temporal e a performance seraacute julgada tatildeo livre quanto usualmente (STROPPA 1999 p 43 traduccedilatildeo nossa22)
No acircmbito da composiccedilatildeo tal discussatildeo se apresenta com a crenccedila de que o tempo
imutaacutevel fixo do tape representaria um tempo riacutegido da composiccedilatildeo e que desta
configuraccedilatildeo jamais poderia resultar uma interaccedilatildeo bem-sucedida
21 BOULEZ in HAumlUSLER Josef Boulez on Reacutepons 198522 Original ldquoA performer at ease with a click track will find other ways to express his or her interpretive
choices If the composition is done in a certain way nobody in the audience will perceive any temporal awkwardness and the performance will be judged as free as usualrdquo(STROPPA 1999 p 43)
33
Notamos neste ponto que a discussatildeo adentra um espaccedilo que natildeo eacute apenas da
performance mas se refere ao resultado sonoro desta Nos referimos a este espaccedilo como
morfologia sonora natildeo apenas no que se refere agrave qualificaccedilatildeo de objetos sonoros como nos
estudos de Pierre Schaeffer (1988 p 219) mas simplesmente nos referindo ao objeto de
estudo de todas as teorias musicais Trata-se do que percebemos que soa e seus aspectos
organizaccedilatildeo de materiais paracircmetros musicais relaccedilatildeo entre os materiais agrupamento e
segregaccedilatildeo dos materiais etc
Se da perspectiva da performance o problema da interaccedilatildeo se referia agrave relaccedilatildeo
problemaacutetica entre performer e a preacute-gravaccedilatildeo da perspectiva da composiccedilatildeo esta situaccedilatildeo
performaacutetica teria consequecircncias diretas na morfologia sonora Este pensamento sustenta uma
consequecircncia inexoraacutevel do modo da interaccedilatildeo entre performer e maacutequina sobre o tempo
musical Isto eacute o resultado sonoro seria riacutegido devido agrave situaccedilatildeo de performance ser esta de
discrepacircncia de tempos (cronoloacutegico e psicoloacutegico) entre suporte e performer
Tal posiccedilatildeo tende a natildeo considerar o uso de sons fixados em suporte como uma
possibilidade para a muacutesica mista admitindo exclusivamente o processamento em tempo real
e os sistemas interativos Estas posturas exclusivistas satildeo questionadas por Menezes (2006) e
Stroppa (1999) De acordo com Menezes (2006 p 380)
[] eacute preciso reconhecer que a criacutetica de cunho bouleziano (a despeito do valor inestimaacutevel da obra interativa de Boulez) segundo a qual um tempo fixo sobre suporte jamais poderaacute converter-se em uma interaccedilatildeo organicamente bem-sucedida eacute a meu ver sem fundamento pois a eficaacutecia da interaccedilatildeo natildeo dependeraacute jamais do fato de os sons eletroacuacutesticos estarem ou natildeo fixados sobre algum suporte tecnoloacutegico e terem suas duraccedilotildees predeterminadas mas antes da elaboraccedilatildeo de tal interaccedilatildeo na proacutepria composiccedilatildeo de acordo com suas possibilidades morfoloacutegicas (grifo nosso)23
Ainda haacute aqueles que defendem o uso dos sons fixados argumentando que o estuacutedio
possibilita uma elaboraccedilatildeo mais cuidadosa dos materiais do que as possibilidades em tempo
real O compositor Jean-Claude Risset (In BRUMMER et al 2001 p 6) se alinha com esta
posiccedilatildeo
Embora eu ame instrumentos penso que a ldquosituaccedilatildeo neo-instrumentalrdquo com live electronics raramente alcanccedila o grau de sofisticaccedilatildeo de boas peccedilas de tape Os aspectos de tempo real satildeo em certa medida uma ilusatildeo Compor natildeo eacute uma
23 Em 23 este misto mal analisado que vincula sem cuidado tecnologia e morfologia eacute abordado novamente
34
atividade em tempo real requer se abstrair da tirania do tempo real Muacutesica composta para o meio de gravaccedilatildeo pode ser cuidadosamente composta e realizada24
A preservaccedilatildeo das peccedilas com sistemas interativos eacute tambeacutem uma questatildeo a ser levada
em conta Isso porque as tecnologias mudam softwares ficam desatualizados e as peccedilas se
tornam sucetiacuteveis de obsolescecircncia ou entatildeo necessitam de atualizaccedilatildeo sempre que sua
performance for menos possibilitada por causa da tecnologia Esta atualizaccedilatildeo eacute dispendiosa e
necessita de trabalho especializado como aponta Risset (In BRUMMER et al 2001 p 7)
ldquoum privileacutegio que natildeo pode ser extendido a muitos compositores nem a muitas peccedilasrdquo25
Evidentemente os suportes fixos tambeacutem apresentam problemas semelhantes como por
exemplo a deterioraccedilatildeo de fitas magneacuteticas26 Atualmente entretanto a atualizaccedilatildeo nestes
casos parece ser mais simples e menos dispendiosa
Por outro lado o computador tem possibilitado interaccedilotildees com o performer ao vivo
que embora natildeo pareccedilam possibilitar diferentes relaccedilotildees sonoras certamente representam uma
mudanccedila na praacutetica musical Guy Garnett (2001) em seu artigo The Aesthetics o f Interactive
Computer Music afirma que a interaccedilatildeo tem dois aspectos as accedilotildees do performer afetam a
saiacuteda do computador ou as accedilotildees do computador afetam a saiacuteda do performer O autor aborda
o que a performance humana traz para a muacutesica computacional Um dos argumentos em favor
da muacutesica interativa em oposiccedilatildeo agrave muacutesica puramente computacional ou tape eacute o fator da
interpretaccedilatildeo Uma vez fixada ouviremos sempre novamente a mesma interpretaccedilatildeo da peccedila
Evidentemente haacute maneiras de projetar diferentemente espacializar ao vivo etc Poreacutem de
acordo com o autor ainda assim ldquoa peccedila estaacute fixada em tantos de seus atributos que natildeo eacute
possiacutevel proporcionar uma nova interpretaccedilatildeo significativa Algueacutem poderia entatildeo considerar
a muacutesica eletroacuacutestica como a lsquomuseificaccedilatildeorsquo uacuteltima da arte musicalrdquo (GARNETT 2001 p
29 traduccedilatildeo nossa27) Segundo Garnett incluir a performance humana na muacutesica
computacional eacute uma maneira de se afastar do formalismo presente frequentemente em
24 ldquoAlthough I myself love the instruments I think the neo-instrumental situation with live electronics rarely reaches the degree of sophistication of good tape pieces The real-time aspects are to a certain extent a delusion Composing is not a real-time activity it requires abstracting oneself from the tyranny of real-time Music composed for the recording medium can be carefully composed and realizedrdquo (RISSET In BRUMMER et al 2001 p 6)
25 ldquoa privilege which cannot be extended to many composers and many piecesrdquo (RISSET In BRUMMER et al 2001 p 7)
26 No artigo Electroacoustic music studies and the danger of loss Marc Battier estuda a fundo este problema da perenidade da muacutesica eletroacuacutestica seus sistemas e suportes (BATTIER 2004)
27 Original ldquo[] the work is fixed in so many of its attributes that it is not possible to provide a significant new interpretation One could therefore come to consider electroacoustic music as the ultimate ldquomuseumificationrdquo of musical artrdquo (GARNETT 2001 p 29)
35
muacutesica computacional por exemplo nas composiccedilotildees algoriacutetmicas Para Garnett eacute tambeacutem
uma questatildeo de a muacutesica estar em harmonia coerente com as necessidades do seu tempo de
criaccedilatildeo e existecircncia Natildeo eacute apenas uma questatildeo esteacutetica mas tambeacutem poliacutetica ldquoeacute tambeacutem
uma avaliaccedilatildeo poliacutetica dirigida a uma mudanccedila na maneira com que pessoas pensam sobre
produzem e experienciam muacutesicardquo (GARNETT 2001 p 29 traduccedilatildeo nossa28) Neste sentido
Garnett aponta objetivos poliacuteticos e esteacuteticos globais
Da mesma forma atraveacutes de uma frente esteacutetica ligeiramente diferente mas tambeacutem fortemente associada com Adorno natildeo precisamos mais sequestrar a alta arte do popular De fato precisamos agora lsquodesmuseificarrsquo - em certo sentido popularizar - todas as artes que tecircm em sua crescente institucionalizaccedilatildeo se tornado cada vez mais isoladas de ciacuterculos mais amplos [broad contituencies] Isso naturalmente natildeo implica uma capitulaccedilatildeo para os banais e batidos valores de produccedilatildeo em massa da maioria da muacutesica popular Exatamente o contraacuterio Significa trazer as verdadeiras experiecircncias artiacutesticas de riqueza singularidade e profundidade e expressatildeo intelectual em contato mais proacuteximo com as realidades sociais do nosso contexto cultural atual Eacute importante injetar o artista - o compositor - de volta agrave cena cultural atual em vez de reforccedilar o isolamento institucionalizado atual Rejeitar este curso provavelmente soacute levaraacute agrave morte completa da muacutesica de arte como a conhecemos e agrave completa hegemonia de apenas os elementos mais banais da cultura popular desprovidos de qualquer conexatildeo com e portanto de qualquer benefiacutecio possiacutevel das - enormes realizaccedilotildees do passado (GARNETT 2001 p 30 traduccedilatildeo nossa29)
O autor salienta a importacircncia desta perspectiva ldquoA consanguinidade entre interaccedilatildeo
humana e valores humanistas eacute um importante elemento guia para o campo da muacutesica
interativa computacionalrdquo (GARNETT 2001 p 30 traduccedilatildeo nossa30)
Eacute preciso levar em conta que a argumentaccedilatildeo de Garnett se coloca em oposiccedilatildeo agrave
muacutesica puramente eletroacuacutestica especialmente algoriacutetmica que pode conduzir a um
formalismo indesejado de acordo com estes valores Seus argumentos satildeo principalmente em
favor do inteacuterprete instrumental inserido no contexto eletroacuacutestico
Se anteriormente o potencial do estuacutedio para a elaboraccedilatildeo minuciosa do material
eletroacuacutestico (preacute-gravado) foi ressaltado as questotildees propostas por Garnett se colocam no
28 Original ldquo[] it is also it is also a political valuation in that it is directed toward making a change in the way people think about produce and experience musicrdquo (GARNETT 2001 p 29)
29 Original ldquoIndeed we need now to lsquode-museumizersquo - in a certain sense to popularize - all of the arts which have in their increasing institutionalization become increasingly isolated from broad constituencies This does not of course imply a capitulation to the banal and trite mass production values of much popular music Exactly the opposite It means to bring the true artistic experiences of richness uniqueness and intellectual depth and expression into closer contact with the social realities of our present cultural context It is important to inject the artist - the composer - back into the current cultural scene rather than reinforcing the current institutionalized isolationrdquo (GARNETT 2001 p 30)
30 Original ldquoThe consanguinity between human interaction and humanist values is an important driving element for the field of interactive computer musicrdquo (GARNETT 2001 p 30)
36
outro lado da balanccedila pesando o potencial dos sistemas interativos em sua possibilidade de
reinterpretaccedilatildeo da parte eletroacuacutestica a cada execuccedilatildeo Um sistema hiacutebrido pode somar
algumas vantagens de ambas teacutecnicas Neste caso o sistema poderia em interaccedilatildeo com a
performance ao vivo disparar materiais preacute-gravados de maior ou menor duraccedilatildeo elaborados
minuciosamente em estuacutedio e ao mesmo tempo executar processamentos em tempo real
Implementamos um sistema semelhante na peccedila Chatildeo de outono (51)
23 ENTRE TECNOLOGIA E MORFOLOGIA SONORA
Considerando as questotildees relativas agrave performance da muacutesica mista com suporte
(modos de coordenaccedilatildeo tempo imutaacutevel estudo destas peccedilas) e brevemente as questotildees
relativas agrave composiccedilatildeo (por exemplo do tempo fixo vs tempo riacutegido) notamos as
interferecircncias entre estas aacutereas O raciociacutenio de que devido agraves contingecircncias tecnoloacutegicas dos
sons fixados em suporte a performance apresenta um tempo imutaacutevel que se reflete num
tempo riacutegido da composiccedilatildeo parece ser um misto mal analisado Este raciociacutenio se caracteriza
por transferir questotildees da aacuterea tecnoloacutegica da performance diretamente para o acircmbito sonoro-
morfoloacutegico da composiccedilatildeo Tecnologia e morfologia tecircm naturezas distintas e natildeo se pode
tomar uma pela outra apenas porque a terminologia eacute a mesma Isto eacute falamos de interaccedilatildeo
referindo-nos agrave interaccedilatildeo do performer com a tecnologia utilizada e falamos da interaccedilatildeo entre
elementos da morfologia sonora
Outros autores criticam esta confusatildeo Stroppa (1999) aponta a problemaacutetica da
associaccedilatildeo do ao vivo (live) com teacutecnicas em tempo real (STROPPA 1999) O autor sustenta
que o aspecto da vida na muacutesica (live) necessita algum tipo de interpretaccedilatildeo embora natildeo se
restrinja agrave presenccedila de muacutesicos num palco pode ser percebido numa gravaccedilatildeo por exemplo
(1999 p 62) Assim critica o pensamento errocircneo de que o tempo real dos sistemas
interativos garantiria certa vida (live)
[] natildeo haacute correlaccedilatildeo entre uma peccedila usando tecnologia interativa e a percepccedilatildeo de autecircntica interpretaccedilatildeo em muacutesica interaccedilatildeo natildeo eacute interpretaccedilatildeo pois a uacuteltima se idealmente implica a primeira eacute um fenocircmeno mais sutil e complexo [] A vida na muacutesica brota de repente quando algum tipo de comunicaccedilatildeo estaacute acontecendo entre o performer e o material eletrocircnico circundante entre os dois e o puacuteblico e naturalmente quando a peccedila eacute digna Se a eletrocircnica eacute uma fita modesta ou o
37
sistema interativo ldquomais inteligenterdquo essa eacute uma histoacuteria completamente diferente (STROPPA 1999 p 52)31
Stroppa separa portanto as questotildees tecnoloacutegicas referentes aos sistemas interativos
da questatildeo que cerca a percepccedilatildeo da vida na muacutesica (live) o que estaacute mais associado com o
acircmbito sonoro-morfoloacutegico ao qual estamos voltando nossa atenccedilatildeo nesta pesquisa
Simon Emmerson (2013) sustenta que na experiecircncia de escuta natildeo estamos tatildeo
interessados no ldquojogo de adivinhaccedilotildeesrdquo sobre quais foram as causas de determinado efeito
mas que ouvimos primariamente efeitos Este ponto se coloca em oposiccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de
que um sistema interativo deve buscar uma linearidade entre accedilatildeo e resposta semelhante aos
instrumentos acuacutesticos O autor contraria aqueles que argumentam que a cadeia causal
necessita ser reestabelecida para que haja uma interatividade significativa para o ouvinte De
acordo com Emmerson natildeo ouvimos a causa ouvimos o efeito Nesta abordagem eacute possiacutevel
observar que causa estaacute relacionada a questotildees tecnoloacutegicas (normalmente relacionada a
teacutecnicas de mapeamento) enquanto os efeitos satildeo de natureza sonora
Bachrataacute (2010) ao abordar a interaccedilatildeo gestual entre instrumentos acuacutesticos e sons
eletroacuacutesticos distingue interaccedilatildeo de interatividade A autora cita a definiccedilatildeo de
interatividade do EARS (ElectroAcoustic Research Site) ldquoInteratividade se refere
amplamente agrave interaccedilatildeo musical humano-computador ou interaccedilatildeo humano-humano mediada
por um computador ou possivelmente uma seacuterie de computadores conectados em rede que
estatildeo tambeacutem interagindo um com outrordquo32 De acordo com esta definiccedilatildeo ressalta a autora a
muacutesica para instrumento e sons fixados em suporte natildeo seria interativa embora quando
percebida auralmente a interaccedilatildeo esteja presente sem qualquer duacutevida (BACHRATAacute 2010 p
91) Esta diferenciaccedilatildeo estaacute relacionada com aquela que estamos apontando aqui Entretanto
os termos (interaccedilatildeo e interatividade) satildeo semelhantes e frequentemente utiliza-se interaccedilatildeo
para discursar sobre o que acima foi definido como interatividade Aleacutem do mais estas duas
palavras tecircm a mesma origem etimoloacutegica restando apenas a diferenccedila entre accedilatildeo e
31 ldquo[] there is no correlation between a piece using interactive technology and the perception of authentic interpretation in music interaction is not interpretation since the latter if it ideally implies the former is a much subtler and complex phenomenon [] Life in music sprouts suddenly when some kind of communication is going on between the performer and the surrounding electronic material between both of them and the audience and naturally when the piece is worth it Whether the electronics is a modest tape or the cleverest interactive system thats a completely different kettle of fishrdquo (STROPPA 1999 p 52)
32 Traduccedilatildeo do autor Original ldquoInteractivity refers broadly to human-computer musical interaction or humanshyhuman musical interaction that is mediated through a computer or possibly a series of networked computers that are also interacting with each otherrdquo (WEALE 2005)
38
atividade33 Optamos assim por diferenciar as questotildees tecnoloacutegicas da performance (nas
quais inclui-se a interatividade conforme definida acima) das questotildees sonoro-morfoloacutegicas a
interaccedilatildeo auralmente percebida de acordo com Bachrataacute (2010 p 91)
Por outro lado embora sejam de naturezas distintas com o devido cuidado eacute possiacutevel
analisar as relaccedilotildees entre estes dois acircmbitos Pode-se investigar como uma tecnologia
utilizada estaacute relacionada com uma morfologia sonora em determinado repertoacuterio Entretanto
estas relaccedilotildees natildeo parecem se dar de maneira determiniacutestica ou fataliacutestica pois estatildeo ligadas agraves
decisotildees criativas que muitas vezes tomam rumos contraacuterios agraves tendecircncias de uso de uma
ferramenta (vide as teacutecnicas estendidas dos instrumentos tradicionais) Assim a questatildeo
poderia ser sobre quais satildeo as possibilidades eou tendecircncias sonoro-morfoloacutegicas no uso de
determinada tecnologia
Menezes (2006) aponta tendecircncias das teacutecnicas em tempo real O autor argumenta que
estas permitem uma correlaccedilatildeo estreita com o gesto instrumental e sua metamorfose
eletroacuacutestica Entretanto estas teacutecnicas ldquoagem inexoraacutevel e exclusivamente em sentido
convergenterdquo (p 379) jaacute que estatildeo sempre ligadas a sua fonte instrumental e pouco fazem no
sentido divergente do contraste Eacute preciso considerar a que tipo de empreendimento o autor
se refere A impossibilidade da diferenccedila do contraste estaacute mais relacionada agraves teacutecnicas que
usam processamentos (tais como delays harmonizers entre outros) para transformar o som
instrumental ao vivo nunca se distanciando desta fonte sonora Entretanto como apresentado
em 212 haacute outras possibilidades em tempo real inclusive a de utilizar sons preacute-gravados
distintos dos instrumentais como germe de processos em tempo real Um exemplo eacute a peccedila
Vertiginous Rotation (2008) de James Correa34 Os sons do violatildeo e uma pequena amostra de
som de berimbau satildeo processados ao vivo e eacute possiacutevel observar momentos de consideraacutevel
contraste entre eletrocircnicos e violatildeo
A questatildeo das possibilidades ou tendecircncias sonoro-morfoloacutegicas de determinada
tecnologia tambeacutem tem sido levantada nos estudos da muacutesica eletroacuacutestica em geral Os
33 Esta discussatildeo poderia ir aleacutem se se lanccedilasse matildeo de referenciais de outras aacutereas A distinccedilatildeo entre interaccedilatildeo e interatividade eacute discutida no acircmbito da educaccedilatildeo a distacircncia no artigo (VALLE e BOHADANA 2012) A interaccedilatildeo acontece entre humanos enquanto a interatividade pode acontecer entre maacutequinas A interaccedilatildeo enquanto accedilatildeo entre humanos pode ser de fato uma metaacutefora mais adequada para a interaccedilatildeo entre elementos sonoros jaacute que estes ganham muitas vezes a funccedilatildeo o caraacuteter (de caracterizaccedilatildeo) de voz o que remonta agrave utilizaccedilatildeo da voz humana como instrumento e por sua vez a seu caraacuteter antropomoacuterfico Enquanto que interatividade pode ser mais adequado para as questotildees tecnoloacutegicas jaacute que se caracteriza por uma funccedilatildeo de instrumento ou inteacuterprete
34 Confira o viacutedeo do compositor explicando sua abordagem nesta peccedila lthttpswwwyoutubecomwatch v=dZfw 1WKF7eggt
39
estudos buscam compreender a relaccedilatildeo entre tecnologia e morfologia-sonora encarando o
compositor enquanto colaborador no desenvolvimento de tecnologias e recursos
eletroacuacutesticos (ZATTRA 2018) ou mesmo como luthier experimental (RIBEIRO 2018)
Tambeacutem relacionado a esta questatildeo estaacute o fato de que as teorias de anaacutelise de muacutesica
eletroacuacutestica partem da perspectiva do ouvinte e ignoram mais ou menos a tecnologia
envolvida Um exemplo eacute a Espectro-morfologia de Dennis Smalley (1997) Segundo o autor
eacute um sacrifiacutecio deixar de lado o desejo natural de desvendar os misteacuterios da produccedilatildeo sonora
eletroacuacutestica mas eacute necessaacuterio e loacutegico Smalley alerta para o que chama de escuta
tecnoloacutegica quando o ouvinte passa a perceber a tecnologia ou a teacutecnica responsaacutevel pela
muacutesica mais do que a proacutepria muacutesica De acordo com o autor ldquoIdealmente a tecnologia deve
ser transparente ou pelo menos a muacutesica precisa ser composta de tal maneira que as
qualidades de sua invenccedilatildeo superem qualquer tendecircncia a escutar primeiramente de uma
maneira tecnoloacutegicardquo (SMALLEY 1997 p 109)35
Menezes ao abordar a diferenccedila entre meios instrumental e eletroacuacutestico ressalta que
[ ] os elementos fundamentais de toda composiccedilatildeo musical independem em uacuteltima instacircncia (mas somente em uacuteltima) dos meios com os quais se compotildee uma obra elaboraccedilatildeo do material musical enquanto elementos miacutenimos e relacionais consciecircncia harmocircnica (em seu mais amplo sentido) elementos de conexatildeo entre as distintas ideacuteias musicais elaboraccedilatildeo de gestos musicais direcionalidades entreestados distintos de escuta conduccedilatildeo e transformaccedilatildeo do material musicalartesanato e detalhamento dos espectros variaccedilotildees etc satildeo aspectos que estatildeo aqueacutem e aleacutem dos meios composicionais per se ainda que com estes estabeleccedilam forte relaccedilatildeo dialeacutetica (MENeZeS 2006 p 379)
Estendendo esta ideia pode-se tambeacutem dizer que os elementos fundamentais da
composiccedilatildeo natildeo dependem da tecnologia utilizada - pensando aqui especialmente nas
teacutecnicas descritas em 21 - embora estabeleccedilam uma relaccedilatildeo dialeacutetica com ela
Esta relaccedilatildeo localiza o compositor especialmente o de muacutesica eletroacuacutestica numa
rede num emaranhado com suas ideias musicais e seus instrumentos (tecnologia) de tal forma
que a relaccedilatildeo entre esteacutetica e teacutecnica se torna nebulosa Ribeiro (2018) aponta trecircs fatores
significativos na composiccedilatildeo eletroacuacutestica
bull o compositor eacute o proacuteprio performer
35 Traduccedilatildeo proacutepria Original ldquoIdeally the technology should be transparent or at least the music needs to be composed in such a way that the qualities of its invention override any tendency to listen primarily in a technological mannerrdquo (SMALLEY 1997 p 109)
40
bull o instrumento eacute modular mutaacutevel e quase sempre com configuraccedilatildeo nova para cada obrabull a estrutura da obra se confunde com a construccedilatildeo do instrumento (p 176)
Assim Ribeiro concebe o processo composicional de muacutesica eletroacuacutestica
semelhante a um loop em que natildeo se pode separar facilmente as funccedilotildees tradicionais de
composiccedilatildeo instrumentaccedilatildeo e execuccedilatildeo
FIGURA 7 - PROCESSO COMPOSICIONAL NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA
Instrumento
FONTE Ribeiro (2018 p 117)
Desenvolver ideias para determinado instrumento e desenvolver instrumentos para
determinada ideia mais do que uma via de matildeo dupla parece ser um campo aberto Haacute
muitas possibilidades e neste loop em que se daacute o processo composicional elas podem ter
vaacuterias direccedilotildees Ideias que motivam o desenvolvimento de tecnologias como o caso da
Rotationstisch de Stockhausen instrumento para espacializaccedilatildeo (ver CHADABE 1997 p
41) ideias tecnoloacutegicas existentes que satildeo aproveitadas pelos compositores ou ainda
trabalhos em que o desenvolvimento de ideias musicais e o desenvolvimento tecnoloacutegico se
embricam de tal forma que natildeo se pode distinguir qual motiva qual se encontram numa rede
de relaccedilotildees e influecircncias
Por conveniecircncia de estudo a interaccedilatildeo que se refere agraves questotildees tecnoloacutegicas da
performance eacute distinguida daquela que se refere agraves questotildees sonoro-morfoloacutegicas percebidas
na escuta Eacute proacuteprio da pesquisa distinguir analisar (separar um todo em seus elementos
componentes) para num segundo momento sintetizar Esta siacutentese em especiacutefico natildeo seraacute o
foco de nossa pesquisa A investigaccedilatildeo das influecircncias da tecnologia sobre nossa percepccedilatildeo do
sonoro e mesmo para aleacutem dela eacute tema de pesquisas de Rodolfo Caesar O autor chama tal
influecircncia de marca tecnograacutefica
41
Atraveacutes dessa expressatildeo procuro salientar as marcas deixadas pelas diferentes tecnologias em suas diversas manifestaccedilotildees desde a mera percepccedilatildeo individual ateacute a cultura em geral Comecei a pensar sobre essa manifestaccedilatildeo de uma lsquosubjetivaccedilatildeo das tecnologiasrsquo ao me defrontar com a necessidade de exercer uma atenccedilatildeo criacutetica especificamente no acircmbito da muacutesica eletroacuacutestica quando importantes creacuteditos autorais dos programas computacionais empregados nas muacutesicas natildeo eram devidamente atribuiacutedos (CAESAR 2018)
Diferentemente a presente pesquisa se deteacutem agraves relaccedilotildees sonoro-morfoloacutegicas
percebidas na escuta independentemente das questotildees tecnoloacutegicas Este tema seraacute abordado
atraveacutes da revisatildeo de teorias pertinentes (capiacutetulo 3) anaacutelises (capiacutetulo 4) e relato de
experiecircncia composicional (capiacutetulo 5)
42
3 A INTERACcedilAtildeO NO AcircMBITO SONORO-MORFOLOacuteGICO
Tendo distinguido os dois acircmbitos em que se apresenta o tema da interaccedilatildeo na muacutesica
eletroacuacutestica mista (Capiacutetulo 2) neste capiacutetulo aprofundamos a discussatildeo sobre a interaccedilatildeo
relativa agrave morfologia sonora Neste acircmbito interaccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica proacutepria da textura
Numa textura polifocircnica por exemplo haacute uma interaccedilatildeo entre as diversas vozes A partir do
trabalho de Berry (1987) fazemos uma breve abordagem deste conceito na muacutesica
instrumental (31) Aleacutem disso incorporamos a ideia de sonoridade (GUIGUE 2011) para
abranger outras estruturas instrumentais que natildeo se enquadram como vozes (32) Esta
observacircncia das estruturas instrumentais natildeo necessita justificativa jaacute que estamos falando de
muacutesica para instrumentos e sons eletroacuacutesticos Entretanto podemos assumir
pressupostamente que a muacutesica eletroacuacutestica guardadas suas caracteriacutesticas exclusivas pode
apresentar estruturas semelhantes ou anaacutelogas agraves existentes no repertoacuterio instrumental As
particularidades da muacutesica eletroacuacutestica satildeo tambeacutem abordadas (33) a fim de inserir o tema
no contexto da pesquisa A ideia de fluxo sonoro permanece central embora neste contexto
seja possiacutevel tratar o tema por meio de outras metaacuteforas como camadas e planos (discutimos a
terminologia brevemente em 333) Abordamos tambeacutem o aspecto visual da performance de
muacutesica mista (35) E finalmente relacionamos os diversos conteuacutedos apresentados neste
capiacutetulo propondo um esboccedilo de uma textura da muacutesica mista (36)
31 VOZES E TEXTURA
311 Textura
A voz eacute certo som de um ser animado [que possui alma] porque nenhum dos inanimados dispotildee de voz Apenas por analogia se diz que estes usam a voz como por exemplo a flauta a lira e todos os outros seres inanimados que dispotildeem de altura duraccedilatildeo e articulaccedilatildeo pois a voz parece possuiacute-las (ARISTOacuteTELES 2010 p 85-86)
Na teoria musical a voz eacute um conceito que faz referecircncia ao uso musical da voz
humana Por analogia falamos em vozes mesmo quando satildeo tocadas por instrumentos As
vozes compotildeem uma textura na qual se relacionam de muitas maneiras Berry (1987) dedica
um capiacutetulo de sua obra agrave textura36 De acordo com o autor ldquoA textura da muacutesica consiste em
36 Note-se jaacute que textura na muacutesica instrumental tem uma acepccedilatildeo diferente de textura na muacutesica eletroacuacutestica No capiacutetulo 36 diferenciamos estas duas acepccedilotildees como macrotextura e microtextura respectivamente
43
seus componentes sonorosrdquo (BERRY 1987 p 184 traduccedilatildeo nossa37) Haacute um aspecto
quantitativo e outro qualitativo da textura O primeiro se refere ao nuacutemero de componentes
sonoros o segundo agrave interaccedilatildeo ou inter-relaccedilatildeo entre eles
Berry diferencia linha de voz A linha se refere agrave
ldquoqualquer componente textural no qual a relaccedilatildeo e a configuraccedilatildeo horizontal pode ser plausivelmente traccedilada como uma continuidade loacutegica - um estrato identificaacutevel na textura em algum dado niacutevelrdquo (BERRY 1987 p 192 traduccedilatildeo nossa38)
Jaacute a voz se refere agrave ldquouma linha que apresenta destacada independecircncia relativa ela
pode ser um complexo de linhas dobradas mas ela mesma natildeo eacute capaz de ser dobradardquo
(BERRY 1987 p 192-3 traduccedilatildeo nossa39) Assim uma textura monofocircnica (com uma uacutenica
voz) pode ser multi-linear (formada por vaacuterias linhas em dobramento - fagote e oboeacute com
dobramento de oitava por exemplo) A representaccedilatildeo de tais disposiccedilotildees pode ser vista na
Figura 8 Os nuacutemeros indicam as linhas (2 = mesma voz com dois instrumentos) As vozes satildeo
representadas verticalmente uma abaixo da outra
FIGURA 8 - REPRESENTACcedilAtildeO DOS ASPECTOS QUANTITATIVO E QUALITATIVO DA TEXTURA
1 1 1 1 2 2 41 1 1 1 2
1 1 1 1
Curva de qualidade (conforme condicionada por mushydanccedilas na independecircncia-interdependecircncia)
Curva de quantidade (nuacutemero-densidade)
FONTE Berry (1987 p 194-5 traduccedilatildeo nossa)
37 Original ldquoThe texture of music consists of its sounding components it is conditioned in part by the number of those components sounding in simultaneity or concurrence its qualities determined by the interactions interrelations and relative projections and substances of component lines or other component sounding factorsrdquo (BERRY 1987 p 184)
38 Original ldquo[] any textural component in which horizontal relation and configuration can plausibly be traced as a logical continuity - an identifiable stratum in the texture at some given levelrdquo (BERRY 1987 p 192)
39 Original ldquo[] a line having distinct relative independence it may thus be a complex of doubled lines but is not itself capable of doublingrdquo (BERRY 1987 p 192-3)
44
Aleacutem daqueles termos largamente usados para descrever a textura e que jaacute tem um
significado convencional estaacutevel (polifocircnico homofocircnico cordal dobramento espelhado
heterofocircnico sonoridade contrapontiacutestico monofocircnico) o autor propotildee outros Estes termos
tecircm por base trecircs paracircmetros considerados mais relevantes para a avaliaccedilatildeo das caracteriacutesticas
da textura ritmo (isto eacute padrotildees riacutetmicos) direccedilatildeo (da melodia) e conteuacutedo intervalar linear
(BERRY 1987 p 193) Uma escala que vai do simples para o complexo eacute usada em cada um
destes paracircmetros atraveacutes dos prefixos homo- hetero- e contra-40 Assim quanto ao ritmo a
relaccedilatildeo entre vozes distintas pode ser homorriacutetmica heterorritmica e contrarriacutetmica quanto agrave
direccedilatildeo homodirecional heterodirecional e contradirecional quanto ao conteuacutedo intervalar
homointervalar heterointervalar e contraintervalar A Figura 9 ilustra tais caracteriacutesticas
FIGURA 9 - ALGUMAS QUALIDADES DA TEXTURA
Relaccedilotildees nt niacutevel (nt ctntextt temptral) ilustrado
mhtmtrriacutetmict 3 5 htmtdirecitnal
mhetertrriacutetmict s er r ^ r r r 1
- hetertdirecitnal
3 ctntrarriacutetmictm m
ctntradirecitnal
it
^ r ni u tJsect rr
itmtintervalar
ietertintervalar
ctntraintervalar
FONTE Transcrito e traduzido de Berry (1987 p 194-5)
Nossa intenccedilatildeo em levantar tal classificaccedilatildeo e teorizaccedilatildeo da textura natildeo objetiva
incorporaacute-la prontamente em nossas anaacutelises antes cercar o tema da interaccedilatildeo desde a muacutesica
instrumental em suas especificidades
40 hetero- descreve diferenciaccedilotildees mais sutis enquanto contra- representa diferenccedilas mais draacutesticas
45
312 Vozes sons segregados em fluxos auditivos
A maneira como percebemos uma voz ou uma linha e como a diferenciamos de outras
eacute uma questatildeo importante na abordagem da textura As vozes satildeo normalmente diferenciadas
pela tessitura em que atuam (soprano contralto tenor e baixo por exemplo) e pelo timbre
(tone-color) enquanto identidade espectral associada a uma fonte instrumental (flauta
violino etc) Trevor Wishart (1996 p 23) ao tratar da noccedilatildeo convencional de instrumento
comenta que ldquoao menos conceitualmente um instrumento eacute uma fonte de timbre estaacutevel mas
de alturas variaacuteveis A funccedilatildeo essencial de um instrumento eacute manter o timbre estaacutevel e
articular o paracircmetro de alturasrdquo (traduccedilatildeo nossa41) Esta concepccedilatildeo de instrumento de timbre
estaacutevel garante o desenvolvimento de um fluxo instrumental (voz)42 associado a este timbre e
sua fonte sonora43 Wishart aponta que ldquoDe fato o conceito de fluxo [stream] instrumental eacute
talvez o que mais persiste no pensamento musical convencionalrdquo (1996 p 25)
O grupo de Albert Bregman da universidade McGill no Canadaacute pesquisa o tema da
Anaacutelise da Cena Auditiva que oferece vaacuterios pontos de contato com a percepccedilatildeo de vozes
distintas na muacutesica44 No artigo que compotildee a New Encyclopedia o f Neuroscience
(BREGMAN 2008) o autor resume
Numa situaccedilatildeo tiacutepica de escuta diferentes fontes acuacutesticas estatildeo ativas ao mesmo tempo Desta forma apenas a soma do seu espectro alcanccedilaraacute o ouvido do ouvinte Para padrotildees sonoros individuais serem reconhecidos - tais como aqueles chegando da voz humana numa mistura - a informaccedilatildeo auditoacuteria recebida tem de ser particionada e o subgrupo correto alocado para sons individuais de tal maneira que uma descriccedilatildeo acurada pode ser formada para cada um Este processo de agrupar e segregar dados sensoacuterios em representaccedilotildees mentais separadas chamadas fluxosauditoacuterios tem sido nomeada ldquoauditory scene analysisrdquo (ASA) por Bregman (1990)A formaccedilatildeo de fluxos auditoacuterios eacute o resultado de processos de agrupamento sequencial e simultacircneo O agrupamento sequencial conecta os dados sensoacuterios ao longo do tempo enquanto que o agrupamento simultacircneo seleciona dos dadoschegando no mesmo tempo aqueles componentes que satildeo provavelmente partes domesmo som (BREGMAN 2008 p 3 traduccedilatildeo nossa45)
41 Original [] an instrument is a source of stable timbre but variable pitch The essential function of aninstrument is to hold timbre stable and to articulate the pitch parameter (WISHART 1996 p 23)
42 Abordaremos a ideia de fluxo adiante43 Assim a voz se encontra convencionalmente associada agrave materialidade do instrumento ou suas famiacutelias
Observando por outro acircngulo ordinariamente as possibilidades tiacutembricas para cada voz se apresentam em valores discretos este ou aquele instrumento Esta eacute uma das dimensotildees da rede (lattice) de Wishart (1996) que seraacute abordada adiante
44 Os resultados das pesquisas de Bregman jaacute foram utilizados na composiccedilatildeo musical (Confira Frigatti Ferraz e Faria 2017)
45 Original ldquoIn a typical listening situation different acoustic sources are active at the same time Therefore only the sum of their spectra will reach the listenerrsquos ear For individual sound patterns to be recognized - such as those arriving from the human voice in a mixture - the incoming auditory information has to be
46
Desta forma a percepccedilatildeo de um fluxo auditivo (auditory stream) - em nosso caso
uma voz por enquanto - depende de processos cognitivos de agrupamento de dados
sensoacuterios De acordo com Bregman (2008 p 4) seus resultados manteacutem relaccedilatildeo com os
princiacutepios da Teoria da Gestalt como por exemplo o de agrupamento Segundo este
princiacutepio agrupamos elementos por proximidade similaridade boa continuaccedilatildeo e fato
comum De acordo com Roger Shepard (1999) ldquoOs princiacutepios de agrupamento nos permitem
separar o fluxo de informaccedilatildeo entrando em nosso sistema auditivo em sensaccedilotildees associadas
com objetos discretos pertencentes ao mundo externordquo (p 117) Baseado no princiacutepio de fato
comum eacute possiacutevel dizer que ldquose duas coisas estatildeo altamente correlacionadas eacute altamente
provaacutevel que emergiram de uma mesma fonte enquanto que se duas coisas satildeo assincrocircnicas
eacute provaacutevel que sejam associadas com dois objetos diferentesrdquo (p 117) Como os
componentes do timbre satildeo altamente correlacionados no som de um instrumento e
relativamente estaacuteveis como aponta Wishart na citaccedilatildeo acima (p 45) a tendecircncia eacute que os
sons deste instrumento constituam um fluxo Este aspecto tambeacutem aponta para a percepccedilatildeo de
uma uacutenica voz quando apresentada por vaacuterios instrumentos em dobramento Isto eacute agrupamos
os diversos sons sob uma mesma categoria uma voz porque estatildeo altamente correlacionados
especialmente em seu comeccedilo teacutermino e movimentos meloacutedicos
Outro princiacutepio importante eacute o de movimento aparente A Figura 10 mostra o
fenocircmeno da segregaccedilatildeo de fluxos num experimento de laboratoacuterio Duas notas (H e L) satildeo
tocadas em um padratildeo galopante H-L-H H-L-H etc O experimento evidencia a importacircncia
da separaccedilatildeo em frequecircncia e da velocidade quanto mais afastadas em frequecircncia as notas
estiverem ou quanto mais raacutepida a alternacircncia mais faacutecil seraacute percebecirc-las como fluxos
distintos
Quando por exemplo trecircs notas de alturas afastadas satildeo alternadas lento o suficiente
podemos perceber um padratildeo meloacutedico ou seja percebemos um movimento aparente que vai
de uma nota a outra Entretanto se a velocidade com que satildeo alternadas estas notas se torna
maior chega a um ponto em que natildeo percebemos uma melodia a ordem das trecircs notas se
torna irrelevante e comeccedilamos a ouvir a reiteraccedilatildeo de cada uma das notas como um fluxo
partitioned and the correct subset allocated to individual sounds so that an accurate description may be formed for each This process of grouping and segregating sensory data into separate mental representations called auditory streams has been named lsquoauditory scene analysisrsquo (ASA) by Bregman (1990) The formation of auditory streams is the result of processes of sequential and simultaneous grouping Sequential grouping connects sense data over time whereas simultaneous grouping selects from the data arriving at the same time those components that are probably parts of the same sound These two processes are not independent but can be discussed separately for conveniencerdquo (BREGMAN 1990 p 3)
47
separado (SHEPARD 1999 p 118) Este fenocircmeno explica a possibilidade de uma polifonia
virtual em que as notas intercaladas se agrupam em diferentes vozes devido agrave diferenccedila de
registro e ao tempo em que satildeo tocadas (ver Figura 11)
FIGURA 11 - POLIFONIA VIRTUAL NOS COMPASSOS 89 A 94 DA PARTITA NO 2 EM RE MENOR BWV 1004 DE J S BACH
P
FONTE Transcrito de BACH
48
Agraves vezes basta a separaccedilatildeo de registro (ou outra diferenciaccedilatildeo do material) para se
perceber ldquoduas vozesrdquo natildeo necessitando que seja raacutepida a alternacircncia entre elas A Figura 12
demonstra este caso em outro trecho da mesma partita de Bach Neste caso haacute tambeacutem
diferenciaccedilatildeo riacutetmica (padrotildees riacutetmicos diferentes) que corroboram com a segregaccedilatildeo de dois
fluxos
FIGURA 12 - POLIFONIA VIRTUAL NOS COMPASSOS 121 A 123 DA PARTITA NO 2 EM REacute MENOR BWV1004 DE J S BACH
m
FONTE Transcrito de BACH
Portanto o intervalo entre as notas de uma melodia a velocidade com que elas satildeo
tocadas bem como o timbre instrumental com que satildeo orquestradas satildeo importantes para a
caracterizaccedilatildeo e percepccedilatildeo do fluxo auditivo que na teoria musical chamamos voz Eacute possiacutevel
que mantendo-se as alturas numa relaccedilatildeo tempo-intervalo adequada para a percepccedilatildeo de uma
melodia e modificando o timbre ainda seja possiacutevel identificaacute-la como um uacutenico fluxo Isto
acontece na Klangfarbenmelodie (melodia de timbres) em que um uacutenico fluxo eacute distribuiacutedo
entre os instrumentos46
Os casos de polifonia virtual e de melodia de timbres satildeo exemplos de alternativas
ainda num contexto musical convencional agrave tendecircncia de um uacutenico instrumento constituir
uma uacutenica voz Na polifonia virtual um instrumento constitui vaacuterias vozes enquanto que na
melodia de timbres vaacuterios instrumentos constituem uma uacutenica voz
313 Orquestraccedilatildeo timbre (tone-color) e textura
Eacute importante salientar para a distinccedilatildeo de alguns conceitos que se relacionam e
convergem neste tema orquestraccedilatildeo timbre (tone-color) e textura
De acordo com Brian Simms (1996 p101) ldquoOrquestraccedilatildeo eacute a arte de realizar uma
ideia musical para um grupo esp eciacutefico de instrumentosrdquo Simms (1996 p 101-109) apresenta
uma seacuterie de transformaccedilotildees pelas quais passou a orquestraccedilatildeo nos uacuteltimos seacuteculos
No seacuteculo XIX o tipo de orquestraccedilatildeo dos compositores alematildees como Richard
Wagner privilegiava o uso de vaacuterios dos corais da orquestra sobre uma mesma voz Com estes
46 Este caso seraacute abordado em 313
vaacuterios dobramentos criava-se uma grande uniformidade tiacutembrica
Ao final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX ressalta-se por um lado Claude Debussy que
evitava dobramentos em passagens mais suaves mostrando preferecircncia pelo som puro do
instrumento solo Por outro lado Gustav Mahler que entre outras de suas inovaccedilotildees em
orquestraccedilatildeo usava subdivisotildees heterogecircneas da orquestra com poucos dobramentos para
evidenciar o conteuacutedo contrapontiacutestico
Nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX alguns compositores demonstraram uma
preferecircncia por pequenos grupos de cacircmara - Pierrot Lunaire (1912) de Arnold Schoenberg eacute
uma peccedila emblemaacutetica bem como L rsquohistoire du soldat (1918) de Igor Stravinsky Aleacutem disso
haacute a incorporaccedilatildeo da percussatildeo como elemento estrutural da composiccedilatildeo cuja peccedila simboacutelica
eacute Ionisation (1931) de Edgard Varegravese Deve-se acrescentar ainda a experimentaccedilatildeo com novos
sons por parte de americanos como Charles Ives Henry Cowell entre outros e a exploraccedilatildeo
de efeitos espaciais ao se dividir a orquestra em grupos que tocavam em lugares distintos do
espaccedilo de concerto
A abordagem de Simms daacute ecircnfase ao seacuteculo XX e trata da muacutesica eletroacuacutestica de
maneira independente destes conceitos satildeo capiacutetulos agrave parte Entretanto podemos levantar a
questatildeo de como os recursos eletroacuacutesticos se incorporaram a esta orquestraccedilatildeo na segunda
metade do seacuteculo XX e iniacutecio do XXI Nossa investigaccedilatildeo relaciona-se fortemente com esta
questatildeo entretanto por um vieacutes mais teoacuterico do que histoacuterico
Timbre enquanto tone-color eacute definido por Simms (1996 p 101) como ldquoa qualidade
distintiva de um som musicalrdquo Neste sentido a ideia de Klangfarbenmelodie se apresenta
como um dos principais desenvolvimentos Uma primeira acepccedilatildeo diz respeito agrave ideia original
de Schoenberg - a terceira peccedila (Farben) de suas Cinco Peccedilas para Orquestra op 16 (1909) eacute
um exemplo De acordo com o verbete do Grove Music Online (RUSHTON 2001) o timbre
(ou tone-color) pocircde ser concebido enquanto um paracircmetro estrutural o que possibilitou que
transformaccedilotildees tiacutembricas em uma uacutenica nota podiam ser percebidas como uma melodia Na
obra de Anton Webern haacute uma acepccedilatildeo distinta da melodia de timbres Uma mesma voz eacute
segmentada e cada segmento eacute tocado por um instrumento distinto Um exemplo
representativo eacute a sua orquestraccedilatildeo da Musikalischen Opfer de Bach A Figura 13 apresenta
um excerto da orquestraccedilatildeo de Webern
49
50
FIGURA 13 - MELODIA DE TIMBRES NA ORQUESTRACcedilAtildeO DE WEBERN FUGA (RICERCATA) NO 2 AUS DEM ldquoMUSIKALISCHEN OPFERrdquo VON JOH SEB BACH
Trombone (muted) Horn (muted) Tpt (muted) Horn
mpp mdash p
Horn Tpt and Harp Flute
Tromb pp pp
v gt Violin (muted)
m mp p
FONTE Transcrito de Simms (1996 p 111)
O uso estrutural do timbre (tone-color) eacute bastante desenvolvido no seacuteculo XX Varegravese
prenuncia numa aula em 1936 ldquoO papel da cor ou timbre seraacute completamente modificado de
ser incidental anedoacutetico sensual ou pitoresco ele se tornaraacute um agente de delineamento
como as diferentes cores num mapa separando diferentes aacutereas e uma parte integral da
formardquo (VARESE apud SIMMS 1996 p 112) Varegravese defendia uma liberaccedilatildeo do som que
seria possiacutevel por meio dos novos instrumentos (ver citaccedilatildeo na p 17) Em Poegraveme
eacutelectronique (1958) estas ideias tecircm um aacutepice que evidencia o desenvolvimento do uso do
timbre na muacutesica Aleacutem disso ressalta-se a fascinaccedilatildeo com o som por parte de compositores
como Morton Feldman que buscava uma muacutesica em que os sons existissem por si mesmos
independentemente das estruturas de construccedilatildeo da muacutesica O som seria natildeo apenas uma
memoacuteria mas existiriam por si mesmos Deve-se salientar a discordacircncia neste quesito Elliott
Carter por exemplo afirma
Tatildeo longe quanto a cor possa ir eu continuo acreditando que o real interesse da muacutesica estaacute na sua organizaccedilatildeo Eu natildeo acredito na novidade do som por seu proacuteprio interesse eacute sempre a coisa mais faacutecil a se alcanccedilar e perde seu interesse muito rapidamente (CARTER apud SIMMS 1996 p114 traduccedilatildeo nossa47)
47 Original ldquoAs far as color goes I still believe that the real interest of music lies in its organization I donrsquot believe in novelty of sound for its own sake that is always the easiest thing to bring off and loses its interest very quicklyrdquo (CARTER apud SIMMS 1996 p 114)
51
Abordar a discussatildeo em torno da cor e do timbre neste trabalho seria por demais
expansiacutevel Nos limitaremos a expocircr a explicaccedilatildeo de Rob Weale que demonstra a
problemaacutetica em torno da concepccedilatildeo de timbre
Timbre tem sido usado geralmente sem grande consistecircncia de significado para se referir vagamente agrave lsquocorrsquo de um som Tem sido frequentemente e incorretamente tratado como um lsquoparacircmetrorsquo discreto do som junto a outras facetas como a frequecircncia e altura A praacutetica de criaccedilatildeo e de pesquisa na muacutesica eletroacuacutestica tem revelado a natureza insatisfatoacuteria desta imprecisatildeo e aberto a noccedilatildeo para uma situaccedilatildeo muito mais complexa e variaacutevel onde o timbre existe em relaccedilotildees fraacutegeis e contiacutenuas com frequecircncia conteuacutedo espectral identidade socircnica e reconhecimento da fonte Isto leva para uma situaccedilatildeo onde em vaacuterios exemplos musicais eacute difiacutecil separar timbre do discurso musical geral (WEALE 2005 traduccedilatildeo nossa48)
Com esta complexidade em mente natildeo haveria tanta incongruecircncia como daacute a
entender Carter na citaccedilatildeo acima entre timbre e a organizaccedilatildeo da muacutesica
Textura segundo Simms (1996 p 102) ldquose refere ao agregado sonoro de linhas
acordes ou outros eventos audiacuteveis enquanto interagem uns com os outrosrdquo O autor descreve
o desenvolvimento da textura polifocircnica no seacuteculo XX Citaremos abaixo alguns fatos
importantes deste contexto
Para algumas texturas polifocircnicas muito complicadas a fim de deixar clara a
importacircncia de cada voz da textura Schoenberg e Berg utilizavam a notaccedilatildeo H para
Hauptstimme - voz principal e N para Nebenstimme - para voz secundaacuteria
O uso de texturas convencionais permaneceu mesmo com o uso de estruturas
harmocircnicas natildeo tradicionais Um exemplo satildeo as fugas de Paul Hindemith na obra Ludus
tonalis (1936)
A textura foi abordada de maneiras natildeo convencionais Varegravese e Cowell por exemplo
desenvolveram texturas compostas por massas sonoras diferentes daquelas compostas por
intervalos linhas e acordes
A obra de Webern tambeacutem se distancia das convencionais texturas homofocircnica e
polifocircnica Ela disfarccedila a textura polifocircnica atraveacutes de uma disposiccedilatildeo diferente dos
componentes Simms (1996 p 116) descreve a textura do iniacutecio da Op 21 de Webern
48 Original ldquoTimbre has generally been used without any great consistency of meaning to refer very loosely to the rsquocolourrsquo of a sound It has often and incorrectly been treated as a discrete rsquoparameterrsquo of sound along with other facets such as frequency and pitch Creative practice and research in electroacoustic music have revealed the unsatisfactory nature of this imprecision and opened up the notion to a much more complex and protean situation where timbre exists in fragile relationships and continua with frequency spectral content sonic identity and source recognition This leads to a situation where in many musical examples it is hard to separate timbre from the overall musical discourserdquo (WEALE 2005)
52
A textura consiste em vaacuterias linhas cada qual eacute feita descontiacutenua pela colocaccedilatildeo de pausas grandes saltos disjunccedilotildees no registro e raacutepidas mudanccedilas de cor Eacute de fato difiacutecil perceber qualquer linha no sentido tradicional a atenccedilatildeo do ouvinte eacute primeiramente atraiacuteda por uma seacuterie de sons ou intervalos individuais (traduccedilatildeo nossa49)
Este tipo de textura eacute chamada pontilhista por sua relaccedilatildeo com a teacutecnica de pintura em
que um conjunto de pontos com cores puras datildeo origem agraves formas Agrave distacircncia o mosaico de
pontos se mistura e proporciona perceber formas reconheciacuteveis Ligeti (apud SIMMS 1996
p 117) afirma que a esta fragmentaccedilatildeo da linha em Webern resulta numa textura global
Nesta natildeo haacute de fato um fluir musical trata-se de momentos individuais natildeo haacute de fato um
teacutermino a muacutesica daacute a impressatildeo de ldquouma parada no fluxo do tempordquo O ouvinte natildeo se ateacutem
a continuidades lineares mas a diferentes momentos isolados Este tipo de textura global foi
utilizada por muitos compositores apoacutes Webern como Ligeti Stockhausen e Boulez
Entretanto tamanha variedade na textura ironicamente poderia gerar a percepccedilatildeo de uma
continuidade da mesma coisa Assim estrateacutegias de controle destas texturas globais foram
desenvolvidas de maneira especial por Ligeti e Krzysztof Penderecki
As peccedilas Apparitions (1958-9) e Atmosphegraveres (1961) de Ligeti satildeo exemplos de
composiccedilotildees essencialmente texturais As texturas chegam a cinquenta vozes e satildeo
principalmente formadas por clusters cromaacuteticos ou figuras cromaacuteticas confusas formando
massas que interagem Simms (1996 p 119) comenta ldquoestas massas entatildeo interagem por
colisatildeo penetraccedilatildeo dissipaccedilatildeo mescla ou outros gestos vividamente dramaacuteticosrdquo50 (grifo
nosso) Esta concepccedilatildeo de textura estaacute mais proacutexima do repertoacuterio eletroacuacutestico como haacute de
se demonstrar
314 Microtextura e macrotextura
Eacute importante notar o caraacuteter micro a que foi levada esta textura percebida globalmente
A teacutecnica de Ligeti para a formaccedilatildeo destas massas eacute conhecida como micro-polifonia Isto eacute a
textura cujas mudanccedilas conforme Berry (1987 p 189) ldquoestatildeo frequentemente entre o que eacute
49 Original ldquoThe texture consists of several lines each of which is made discontinuous by the placement of rests large leaps disjunctions in register and rapid changes of color It is in fact difficult to perceive any lines in the traditional sense and the listenerrsquos attention is at first drawn to a mottled array of individual sounds or intervalsrdquo (SIMMS 1996 p 116)
50 Original ldquo[] and these masses then interact by collision penetration dissipation merging or other vividly dramatic gesturesrdquo (SIMMS 1996 p 119)
53
mais prontamente perceptiacutevel e apreciaacutevel na experiecircncia da muacutesicardquo51 neste caso eacute um
emaranhado de ldquomicro-vozesrdquo indistinguiacuteveis que formam uma massa Por outro lado a
proacutepria massa eacute ouvida de maneira semelhante agrave voz como uma camada como um fluxo
coerente Haacute assim em relaccedilatildeo agrave descriccedilatildeo da textura um deslocamento de percepccedilatildeo do
macro para o micro Parece existir uma demanda de escuta uma necessidade embora haja
uma liberdade subjetiva neste aspecto de adaptarmos nossa escuta aos eventos sonoros que se
apresentam a ela De todo modo o termo textura pode se referir a estas complexidades e
simultaneidades do niacutevel micro eou do niacutevel macro Um exerciacutecio imaginativo simploacuterio
pode elucidar estes dois niacuteveis Imaginemos uma massa orquestral tal qual as de Ligeti e a
ela sobreposta uma voz uma melodia cantada por uma soprano por exemplo Haacute uma
macrotextura que se refere a configuraccedilatildeo massa + voz (uma espeacutecie de melodia
acompanhada) e haacute uma microtextura que constitui a proacutepria massa A Figura 14 oferece uma
ilustraccedilatildeo deste exemplo
FIGURA 14 - EXEMPLO DE MACRO E MICROTEXTURA
Soprano (voz)
Orquestra (massa)
Y Macrotextura
FONTE o autor (2019)
Esta distinccedilatildeo eacute um esforccedilo teoacuterico e uma necessidade de nosso trabalho que decorre
da ausecircncia de tal distinccedilatildeo na bibliografia consultada Ela tem o objetivo de indicar neste
trabalho estas diferentes concepccedilotildees micro e macrotextura
32 AS SONORIDADES
Mesmo na muacutesica instrumental a noccedilatildeo de voz pode natildeo ser uma denominaccedilatildeo ideal
dependendo dos materiais e processos de composiccedilatildeo Este eacute o caso de muitas composiccedilotildees
51 Traduccedilatildeo nossa Original ldquoChanges in texture-surely quantitative changes but those involving textural qualities as well-are often among the most readily perceptible and appreciable in the experience of musicrdquo (BERRY 1987 p 189)
do seacuteculo XX como as supramencionadas Em alguns destes casos a ideia de sonoridade
conforme o modelo de Guigue (2011) pode ser mais apropriada Didier Guigue desenvolve
uma teoria analiacutetica da sonoridade especialmente voltada para a anaacutelise de peccedilas para piano
mas facilmente expansiacutevel para outras muacutesicas Uma sonoridade carrega o sentido de uma
unidade sonora composta formada por componentes de nuacutemero variaacutevel que satildeo combinados
e que interagem entre si Ela eacute um momento que pode ocupar qualquer medida temporal
desde um pequeno segmento ateacute uma peccedila inteira Ela eacute uma unidade da estruturaccedilatildeo musical
com potencial morfoloacutegico ldquoUma unidade sonora eacute consequentemente a siacutentese temporaacuteria
de um certo nuacutemero de componentes que agem e interagem em complementaridaderdquo
(GUIGUE 2011 p 50)
O modelo de Guigue apresenta dois niacuteveis O primeiro (niacutevel primaacuterio ou niacutevel 1) eacute
constituiacutedo por
bull coleccedilatildeo de cromas o autor usa o termo como sinocircnimo de classe de nota
bull particcedilatildeo se refere a distribuiccedilatildeo dos cromas na extensatildeo do(s) instrumento(s) em
pontos especiacuteficos e exclusivos em alturas absolutas
bull intensidade comumente chamada de dinacircmica
bull efeitos exoacutegenos efeitos que influenciam a produccedilatildeo concreta do som por exemplo o
pedal do piano
No niacutevel secundaacuterio os componentes podem ser de ordem morfoloacutegica52 quando para
serem analisados eacute preciso fazer a abstraccedilatildeo do fator tempo (conteuacutedo acrocircnico da unidade
sonora) ou de ordem cineacutetica quando satildeo avaliados levando em conta a distribuiccedilatildeo dos fatos
sonoros no tempo (componentes diacrocircnicos) Veja na Figura 15 a ilustraccedilatildeo do domiacutenio
morfoloacutegico e cineacutetico bem como os aspectos do primeiro niacutevel
Cada componente pode ser analisado em relaccedilatildeo a sua complexidade relativa O iacutendice
de complexidade relativa se refere a ldquoposiccedilatildeo que o componente analisado ocupa em dado
momento no vetor simplicidade-complexidaderdquo (GUIGUE 2011 p 52) sempre em relaccedilatildeo a
uma complexidade maacutexima paradigmaacutetica Por exemplo para expressar a complexidade
54
52 Note o leitor que aqui o termo morfoloacutegico estaacute posto em relaccedilatildeo ao dualismo entre os componentes que para serem analisados eacute necessaacuterio fazer a abstraccedilatildeo do fator tempo e aqueles que para serem analisados eacute imperativo considerar o fator tempo No caso de Smalley (1997) o termo morfologia do binocircmio espectro- morfologia se refere justamente ao oposto ou seja o desenvolvimento temporal das caracteriacutesticas espectrais (p 107) Neste trabalho entretanto quando nos referimos ao acircmbito sonoro-morfoloacutegico o estamos fazendo em oposiccedilatildeo aos aspectos de ordem praacutetica tecnoloacutegica da performance Assim os aspectos sonoro- morfoloacutegicos (da forma do som) concernem ao que percebemos que soa e sua organizaccedilatildeo
relativa do nuacutemero de fatos sonoros53 num determinado tempo o eixo ldquovaziordquo (simplicidade
maacutexima) - ldquosaturadordquo (complexidade maacutexima) deve ser utilizado
55
FIGURA 15 - NIVEIS DE ANALISE DA SONORIDADE
Niacutevel 2
Niacutevel 1
53 O autor designa fatos sonoros ldquoum nuacutemero qualquer de notas ou outros elementos organizando a sonoridade ocorrendo simultaneamente isto eacute na mesma posiccedilatildeo do tempordquo (GUIGUE 2011 p 51)
56
321 Oposiccedilatildeo Adjacente e Segmentaccedilatildeo
A articulaccedilatildeo entre as sonoridades se daacute por meio de rupturas de continuidade Se haacute
uma ruptura em um dos componentes que compotildeem a unidade supotildee-se que haacute uma ruptura
na continuidade sonora uma articulaccedilatildeo que daacute iniacutecio a uma nova unidade (p 68)54 Neste
caso falamos de um processo de segmentaccedilatildeo
Satildeo processos de transformaccedilatildeo dos componentes comuns agraves duas unidades
adjacentes que geram estas rupturas Assim eacute ainda necessaacuterio observar o nuacutemero de
componentes ativos no processo de transformaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao nuacutemero daqueles que se
mantecircm passivos neste processo (p69) O autor entra assim na discussatildeo sobre repeticcedilatildeo e
variaccedilatildeo e propotildee uma escala que vai da repeticcedilatildeo agrave oposiccedilatildeo diametral passando pela
declinaccedilatildeo e variaccedilatildeo Declinaccedilotildees satildeo as variaccedilotildees em que o modelo referencial permanece
reconheciacutevel entretanto com pequenas diferenccedilas Por outro lado na oposiccedilatildeo diametral soacute eacute
possiacutevel falar do referencial pela sua ausecircncia Esta escala chamada Vetor de qualificaccedilatildeo do
grau de oposiccedilatildeo estrutural entre unidades sonoras eacute ilustrada na Figura 16
FIGURA 16 - VETOR DE QUALIFICACcedilAtildeO DO GRAU DE OPOSICcedilAtildeO ESTRUTURAL ENTRE UNIDAshyDES SONORAS
A B
repeticcedilotildees declinaccedilotildees
variaccedilotildeesoposiccediloes
a = modelo b ^ variaccedilatildeo paradigmaacuteticaA = domiacutenio de a (repeticcedilotildees ^ exatas variadas ^ declinaccedilotildees) B = domiacutenio de b (variaccedilotildees ^ oposiccedilotildees ^ oposiccedilatildeo diametral)
FONTE Transcrito de Guigue (2011 p 72)
As diferentes sonoridades podem ser articuladas tambeacutem atraveacutes de uma sonoridade
ldquopivocircrdquo ou com sobreposiccedilatildeo parcial de uma sobre a outra Guigue chama esta uacuteltima de
telhagem quando uma sonoridade comeccedila antes que a anterior termine (ver Figura 17)
a v b
54 O autor classifica tambeacutem os tipos de rupturas e o papel e a hierarquia dos componentes no que afetam estas rupturas (GUIGUE 2011 p 64-69)
57
FIGURA 17 - TELHAGEM DE ACORDO COM GUIGUE (2011)U44
O autor desenvolve tambeacutem o conceito de sintagma ldquoum sintagma eacute um conjugado
sequencial binaacuterio de unidades sendo que uma eacute determinante e outra determinadardquo (p 75)
A unidade determinada se define na reaccedilatildeo agrave determinante Esta reaccedilatildeo pode ter o caraacuteter de
ldquorespostardquo ldquoconsequecircnciardquo ou ldquocomplementordquo A ressonacircncia de um gesto uma nota ao
piano por exemplo eacute uma reaccedilatildeo como ldquoconsequecircnciardquo determinada pelo gesto
(determinante)5 Nos compassos 271-272 da Synchronisms no 10 de Mario Davidovsky eacute
possiacutevel demarcar o arpejo do violatildeo como determinante do ataque consecutivo da parte
eletroacuacutestica (determinada) principalmente por se tratar das mesmas alturas (Figura 18)
FIGURA 18 - SINTAGMA EM SYNCHRONIMSNO 10 (1992) DE MARIO DAVIDOVSKY (COMPASSOS
FONTE Transcrito de Davidovsky (compositor) (1995)
55 As ideias de causalidade de Smalley (1997) e de gatilho (triggering) de Wishart (1996) que seratildeo abordadas adiante apresentam estreita relaccedilatildeo com esta ideia de sintagma
58
322 Polifonia de Sonoridades
As sonoridades podem se apresentar dispostas em muacuteltiplos fluxos simultacircneos que se
desenvolvem em paralelo Diferentemente do processo de segmentaccedilatildeo (relacionado agrave
oposiccedilatildeo adjacente que diz respeito agraves articulaccedilotildees sucessivas das sonoridades) na
simultaneidade de fluxos distintos haveraacute um processo de segregaccedilatildeo56 em vaacuterias camadas
Esta polifonia de Sonoridades como denomina Guigue pode apresentar relaccedilotildees de
interdependecircncia das unidades sonoras O autor aponta a relaccedilatildeo espectral como a principal
dimensatildeo das possibilidades de interdependecircncia entre as unidades pois propicia em
potencial a fusatildeo entre unidades57
FIGURA 19 - POLIFONIA DE SONORIDADES EM MOMENTO 23 DE ALMEIDA PRADO
Raacutepido 8va~
Lento
i m mp p p
molto lento
i P P ip p p Calmor3n 3 r 3~i
ampt i
FONTE Transcrito de Guigue (2011 p 77)
Ao fim do capiacutetulo sobre sua proposta metodoloacutegica (p 47-81) Guigue apresenta uma
recapitulaccedilatildeo em que resume o processo de segregaccedilatildeo como segue
3
A Segregaccedilatildeo parte da constataccedilatildeo de que eacute possiacutevel dissociar sistematicamente as unidades em dois ou mais fluxos simultacircneos os quais conservam entre si ao longo do tempo tanto elementos de identificaccedilatildeo quanto de diferenciaccedilatildeo um dos fatores
56 Tanto fluxos como segregaccedilatildeo satildeo os termos utilizados por Guigue O autor aponta a psicologia da audiccedilatildeo como aacuterea de origem destes termos e cita o trabalho de Albert Bregman Auditory Scene Analysis
57 Fusatildeo e contraste satildeo tambeacutem os termos usados para articular a proposta de morfologia da interaccedilatildeo de Flo Menezes (2006 p 377-400) que seraacute apresentada adiante
59
mais frequentes de segregaccedilatildeo eacute a separaccedilatildeo estaacutevel entre vaacuterias regiotildees de alturas ou entre diversas configuraccedilotildees instrumentais (p 79)
Esta uacuteltima frase nos leva a pensar novamente nos jaacute abordados paracircmetros envolvidos
na percepccedilatildeo de um fluxo auditivo registro e timbre instrumental (p 46) Entretanto como
afirma Guigue este eacute ldquoum dos fatores mais frequentes de segregaccedilatildeordquo Existem outros fatores
passiacuteveis de diferenciar os fluxos e tambeacutem de os unir Embora os estudos da percepccedilatildeo
possam nos ajudar a explicar estes fatores esta explicaccedilatildeo eacute posterior agrave praacutetica e agrave
experimentaccedilatildeo que satildeo assim defendemos insubstituiacuteveis como recursos para avaliar
estrateacutegias de composiccedilatildeo Portanto buscaremos evidenciar estes paracircmetros no repertoacuterio
(capiacutetulo 4) e na praacutetica da composiccedilatildeo (capiacutetulo 5)
33 ldquoVOZESrdquo NO CONTEXTO ELETROACUacuteSTICO
As categorias apresentadas - voz e sonoridade - embora natildeo sejam tatildeo recorrentes na
muacutesica eletroacuacutestica natildeo satildeo completamente estranhas a ela A citada peccedila de Davidovsky
demonstra a possibilidade de pensar a parte eletroacuacutestica em categorias tradicionais Nesta
peccedila percebemos uma concepccedilatildeo tradicional de voz a escrita da parte eletroacuacutestica eacute
semelhante agrave escrita para o violatildeo haacute imitaccedilotildees entre os meios como se o eletroacuacutestico se
tratasse de um instrumento semelhante ao violatildeo Em outros casos temos uma duplicaccedilatildeo do
proacuteprio instrumento na parte eletroacuacutestica como eacute o caso de Dialogue de l rsquoombre double
(1985) para clarineta e fita magneacutetica de Pierre Boulez Neste exemplo o clarinetista faz uma
parte ao vivo em diaacutelogo com partes que foram preacute-gravadas preferencialmente por ele
mesmo
Entretanto o universo eletroacuacutestico abre espaccedilo para um continuum de possibilidades
natildeo amoldadas aos padrotildees instrumentais e musicais convencionais Este contexto admite
sons que fazem referecircncia a outras experiecircncias que natildeo apenas agrave voz humana
Smalley (2008) desenvolve os conceitos de Campos e Redes Indicativas para se referir
agraves relaccedilotildees entre a escuta de materiais sonoros em contextos musicais e a experiecircncia humana
em geral Na introduccedilatildeo de seu texto ele aponta trecircs categorias de sons para tentar delimitar o
amplo territoacuterio sonoro em potencial (1) aqueles sons captados da natureza ou da cultura pelo
microfone (2) sons criados para serem usados na muacutesica como os de instrumento e de canto
e (3) sons que por serem sintetizados ou fortemente transformados parecem distantes dos sons
60
familiares da natureza da cultura dos instrumentos ou do canto Os sons de ambas as
categorias podem fazer referecircncia a experiecircncias externas ao contexto da muacutesica
O termo ldquoindicativordquo significa que a manifestaccedilatildeo musical de um campo se refere ao mundo natildeo-sonoro ou indica experiecircncias relacionadas a ele Identificam-se nove campos Trecircs satildeo arquetiacutepicos gesto (gesture) fala (utterance) e comportamento (behaviour) Estes campos satildeo universais originais A fala humana e as consequecircncias do gesto forneceram tradicionalmente os modelos sonoros fundamentais para a muacutesica O campo-comportamento se ocupa das relaccedilotildees sonoras no espaccedilo e no tempo as quais podem ser consideradas anaacutelogas a certos modos de relaccedilatildeo humana as relaccedilotildees observadas entre coisas ou objetos ou a relaccedilotildees homem-objeto Os seis campos restantes satildeo energia movimento objetosubstacircncia ambiente visatildeo e espaccedilo (SMALLEY 2008 p 7)
O campo-ambiente eacute um exemplo de referecircncia pouco usual na muacutesica instrumental
mas muito recorrente na muacutesica eletroacuacutestica (por exemplo Presque rien No1 - le lever du
jour au bord de la mer (1967-70) de Luc Ferrari) E mesmo que se trate dos campos que
ldquoforneceram tradicionalmente os modelos sonoros fundamentais para a muacutesicardquo haacute outras
possibilidades sonoras que natildeo se adequam agrave estrutura conceitual na qual concebemos a
muacutesica instrumental do chamado periacuteodo da praacutetica comum
331 O Continuum
Em seu livro On Sonic Art (1996) Trevor Wishart critica o paradigma de escrita
musical que fundamenta a construccedilatildeo da muacutesica ocidental Esta escrita segundo o autor daacute
demasiada ecircnfase aos paracircmetros altura e duraccedilatildeo e considera-os por valores discretos (Doacute
Doacute sustenido Reacute etc Semiacutenima colcheia tercina etc) Ou seja relega a um lugar perifeacuterico
o continuum existente nestes paracircmetros Entre Doacute e Doacute sustenido haacute uma infinidade de
valores bem como entre as duraccedilotildees de semiacutenima e colcheia por exemplo A ecircnfase sobre
estes dois paracircmetros considerados por valores discretos cria uma rede bidimensional de
altura duraccedilatildeo O paracircmetro timbre eacute visto da mesma forma eacute tambeacutem apresentado em
valores discretos (instrumento 1 instrumento 2 etc) e compreende uma terceira dimensatildeo
(ver Figura 20a)
61
A criacutetica agrave rede concerne ao fato de que se nos concentrarmos apenas nela corremos o
risco de cair na armadilha mental de observar o mundo dos sons como se fosse dividido em
trecircs dimensotildees com valores discretos Pelo contraacuterio objetos musicais complexos para usar o
termo de Wishart movem-se num continuum (ver Figura 20b)
332 O Gesto e textura
De acordo com o autor a articulaccedilatildeo deste continuum se daacute atraveacutes do gesto Para
Wishart o gesto eacute a articulaccedilatildeo do continuum Na base desta ideia estaacute a concepccedilatildeo de que o
gesto intelectual-fisioloacutegico eacute traduzido em morfologia sonora e que inversamente a
morfologia sonora evidencia o gesto intelectual-fisioloacutegico Esta traduccedilatildeo se daacute por meio da
voz laringe ou pela associaccedilatildeo do movimento corporal com um instrumento No caso da voz
temos uma traduccedilatildeo mais direta sensitiva que natildeo apresenta intermediaacuterios Jaacute no caso dos
instrumentos temos normalmente uma mecacircnica intermediaacuteria socialmente construiacuteda que
impotildee as caracteriacutesticas da rede no proacuteprio instrumento seja atraveacutes de furos trastes teclas
etc Desta maneira a voz humana eacute a fonte imediata do gesto intelectual-fisioloacutegico e eacute um
importante modelo para o desenvolvimento das ideias de Wishart Os instrumentos de sopro
carregam tambeacutem de maneira mais sensitiva a informaccedilatildeo gestual embora possuam esta
mecacircnica intermediaacuteria pois a sua produccedilatildeo sonora estaacute intimamente ligada com a respiraccedilatildeo
62
fisioloacutegica
De maneira semelhante para Smalley (1997 p 111) gesto eacute uma ldquo trajetoacuteria de
energia-movimento que estimula o corpo sonador criando vida espectro-morfoloacutegicardquo
(traduccedilatildeo nossa58) Assim o processo gestual musical eacute taacutetil visual e aural mas aleacutem disso
tem relaccedilatildeo com as tensotildees e relaxamentos musculares com esforccedilo e resistecircncia assumindo
assim um caraacuteter proprioceptivo Por isso ldquoa produccedilatildeo sonora estaacute ligada a uma experiecircncia
sensoacuterio-motora e psicoloacutegica mais abrangenterdquo (SMALLEY 1997 p 111 traduccedilatildeo nossa59)
Assim podemos recuperar a atividade humana por traacutes de determinado som atraveacutes do que
Smalley denomina processo de referenciaccedilatildeo espectro-morfoloacutegica (spectromorphological
referralprocess) Na muacutesica eletroacuacutestica as referecircncias gestuais podem ser mais ou menos
evidentes Este aspecto eacute analisado pela noccedilatildeo de substituinte (gesture surrogacy) Sons cuja
origem podemos imaginar facilmente satildeo substituinte de primeira ordem aqueles que natildeo
guardam nenhuma relaccedilatildeo com gestos fiacutesicos conhecidos ou com alguma fonte sonora
conhecida satildeo substituintes de terceira ordem
Smalley (1997) apresenta o gesto como um de seus princiacutepios ao lado da textura60 A
noccedilatildeo de gesto neste caso tem a ver com impulsionar o tempo para frente ldquoAssim a muacutesica
gestual eacute governada por um senso de movimento para diante de linearidade de narratividaderdquo
(SMALLEY 1997 p113) Entretanto
Se eles [os gestos] se tornam muito esticados no tempo ou se evoluem muitolentamente perdemos a fisicalidade humana Parecemos cruzar uma fronteiraembaccedilada entre eventos numa escala humana e eventos numa escala mundana ambiental Ao mesmo haacute uma mudanccedila de foco da escuta - quanto mais lento o iacutempeto gestual direto tanto mais o ouvido procura se concentrar em detalhes internos (ateacute onde eles existam) Uma muacutesica que eacute primariamente textural assim se concentra na atividade interna agraves custas do iacutempeto antecipado (SMALLEY 1997 p 113-114 traduccedilatildeo nossa61)
58 Original ldquoA gesture is therefore an energy-motion trajectory which excites the sounding body creating spectromorphological liferdquo (SMALLEY 1997 p 111)
59 Original ldquo[] sound-making is linked to more comprehensive sensorimotor and psychological experiencerdquo (SMALLEY 1997 p 111)
60 Gesto eacute um termo bastante discutido na muacutesica eletroacuacutestica Embora hajam controveacutersias e perspectivas diferentes optamos por estes dois referenciais (SMALLEY 1997 WISHART 1996) pois satildeo suficientemente abrangentes para nossa abordagem da interaccedilatildeo como uma relaccedilatildeo entre fluxos distintos - tema desta pesquisa
61 Original ldquoIf they [gestures] become too stretched out in time or if become too slowly evolving we lose the human physicality We seem to cross a blurred border between events on a human scale and events on a more worldly environmental scale At the same time there is a change of listening focus - the slower the direct gestural impetus the more the ear seeks to concentrate on inner details (insofar as they exist) A music which is primarily textural then concentrates on internal activity at the expense of forward impetusrdquo (SMALLEY 1997 p 113-114)
63
Smalley aponta para a frequente mistura destes dois princiacutepios (gesto e textura62) ou
por uma mudanccedila de foco da escuta ou porque ambos estatildeo presentes concorrentemente num
equiliacutebrio colaborativo Pode-se entatildeo classificar o contexto como conduzido-por-gesto
[gesture-carried] ou conduzido-por-textura [texture-carried] (SMALLEY 1997 p 114) Nas
palavras do autor
Gestos individuais podem ter interiores texturais em cujo caso o movimento gestual molda [frames] a textura - estamos conscientes tanto do gesto quanto da textura embora o contorno gestual domine um exemplo de gesture-framing Por outro lado estruturas conduzidas-por-textura [texture-carried] nem sempre satildeo ambientes com interiores democraacuteticos onde cada (micro-) evento eacute igual e os indiviacuteduos satildeo subsumidos numa atividade coletiva Gestos podem se destacar da textura em um relevo de primeiro plano Este eacute um exemplo de texture-setting - a textura fornece um plano baacutesico no interior do qual os gestos agem (SMALLEY 1997 p 114 traduccedilatildeo nossa63)
Gesto e textura satildeo assim conceitos importantes na abordagem de nosso tema As
vozes satildeo constituiacutedas de notas em sequecircncia agrupadas (por um processo de percepccedilatildeo) num
fluxo auditivo Da mesma forma os gestos e texturas constituem as camadas planos ou fluxos
num contexto musical mais amplo como o eletroacuacutestico
333 Camadas fluxos e planos
Smalley (2008 p 7) denomina ldquocampo-comportamentordquo o que ldquose ocupa das relaccedilotildees
sonoras no espaccedilo e no tempo as quais podem ser consideradas anaacutelogas a certos modos de
relaccedilatildeo humana agraves relaccedilotildees observadas entre coisas ou objetos ou agraves relaccedilotildees homem-
objetordquo Estas relaccedilotildees sonoras podem ser analisadas evento a evento nota a nota gesto a
gesto ou podemos utilizar uma categoria agrave maneira da voz ou da sonoridade que comporte
agrupe uma seacuterie de sons caracteriacutesticos No universo eletroacuacutestico tal categoria pode ser
denominada camada plano oue fluxo
No verbete do EletroAcoustic Research Site (EARS) Rob Weale traz a seguinte
62 Esta concepccedilatildeo de textura estaacute mais proacutexima ao que chamamos microtextura (314) Retomaremos esta discussatildeo em 341
63 Original ldquoIndividual gestures can have textured interiors in which case gestural motion frames the texture - we are conscious of both gesture and texture although the gestural contour dominates an example of gesture-framing On the other hand texture-carried structures are not always environments with democratic interiors where every (micro-) event is equal and individuals are subsumed in collective activity Gestures can stand out in foreground relief from the texture This is an example of texture-setting - texture provides a basic framework within which individual gestures actrdquo (SMALLEY 1997 p 114)
64
consideraccedilatildeo sobre camada
Um conceito crescentemente usado para descrever obras eletroacuacutesticas nas quais lsquocamadasrsquo de som (ou tipos de sons) satildeo desenvolvidos ao longo de uma obra normalmente numa densidade que o ouvinte pode seguir cada camada Essa forma de pensamento horizontal pode ser vista como o equivalente de contraponto por exemplo na muacutesica renascentista (WEALE 2005 traduccedilatildeo nossa64)
Esta definiccedilatildeo comporta em parte o tema desta pesquisa entretanto a metaacutefora da
camada parece ter um caraacuteter atemporal acrocircnico - como se referia Guigue aos aspectos que
para serem analisados eacute necessaacuterio se fazer a abstraccedilatildeo do fator tempo (ver 32) Podemos
descrever determinado contexto musical como estratificado em camadas mas eacute menos
frequente encontrarmos descriccedilotildees do desenvolvimento destas camadas no tempo como
surgem como se relacionam como interagem como se mesclam uma agrave outra ou surgem uma
da outra Para estas questotildees a metaacutefora de fluxo se mostra mais adequada Enquanto a
camada se refere a estruturas mais estaacuteveis ldquosoacutelidasrdquo o fluxo se aplica a estruturas de forma
variaacutevel ldquoliacutequidasrdquo A metaacutefora do plano apresenta a preocupaccedilatildeo com a profundidade com a
perspectiva eacute uma metaacutefora mais espacial que diferencia aquilo que estaacute mais a frente do que
estaacute mais ao fundo
Estas terminologias entretanto ainda que venham a ser manifestas em artigos livros e
falas dos compositores tecircm sua origem na praacutetica musical seja da escuta ou da composiccedilatildeo
Tratam-se de metaacuteforas para explicar esta praacutetica e que tecircm suas limitaccedilotildees Haacute liacutequidos que
natildeo se misturam haacute camadas geoloacutegicas que se misturam existem planos superiores e
inferiores e natildeo apenas proacuteximos ou distantes Aleacutem disso a mesma estrutura pode ser
observada por meio de diferentes metaacuteforas - os termos mencionados natildeo satildeo excludentes
Neste sentido nossa abordagem natildeo consiste em oferecer um meacutetodo uacutenico e efetivo mas
oferece um caminho de reflexatildeo em torno destas categorias
334 O caraacuteter misto da muacutesica mista
Ao tratar da composiccedilatildeo com o som (sound composition) Wishart observa que ldquonossa
principal metaacutefora para a composiccedilatildeo musical precisa mudar de uma de arquitetura para uma
64 Original A concept used increasingly in describing electroacoustic work in which rsquolayersrsquo of sound (or sound types) are developed throughout a work normally at a density whereby the listener can follow each layer This form of horizontal thinking might be seen to be the equivalent of counterpoint in for example Renaissance music (WEALE 2005)
65
de quiacutemicardquo (WISHART 1994 p 12 traduccedilatildeo nossa65) Isto porque graccedilas agraves possibilidades
de siacutentese gravaccedilatildeo e processamento o compositor pode trabalhar com as caracteriacutesticas
internas dos sons
O som se torna um meio fluido e inteiramente maleaacutevel natildeo uma coleccedilatildeo de dados cuidadosamente aprimorada Escultura e quiacutemica mais do que linguagem ou [] matemaacutetica se tornam metaacuteforas apropriadas para o que o compositor pode fazer embora princiacutepios matemaacuteticos e fiacutesicos continuaratildeo a entrar fortemente no design tanto de ferramentas quanto de estruturas musicais66 (WISHART 1994 p 12)
A muacutesica que une os universos instrumental e eletroacuacutestico pode dialogar por um
lado com as estruturas solidificadas pela tradiccedilatildeo (como as notas de uma voz) por outro
mergulha neste contexto fluido da composiccedilatildeo com o som Isto evidencia o caraacuteter misto da
composiccedilatildeo mista Com histoacuterias e teacutecnicas distintas os meios instrumental e eletroacuacutestico
se misturam neste gecircnero Isto eacute perceptiacutevel tanto para o ouvinte que observa estes meios
fundirem e contrastarem quanto para o compositor que lida com um misto de teacutecnicas
provenientes de cada contexto (instrumental e eletroacuacutestico) que se interferem no fazer
composicional67
Num texto de 1979 Jon Appleton escreve sobre estilos e teacutecnicas composicionais da
muacutesica eletrocircnica em que expressa uma previsatildeo de natildeo-separaccedilatildeo destes meios
ldquoAlguns estilos satildeo uacutenicos agrave muacutesica eletrocircnica por causa da natureza do meio outros satildeo comuns agrave muacutesica instrumental Os dois meios continuam a criar possibilidades um para o outro e vatildeo sem duacutevida no final se tornar indistinguiacuteveisrdquo (p 104 traduccedilatildeo nossa68)
Se ainda natildeo alcanccedilamos este estaacutegio descrito por Appleton ao menos jaacute passamos por
uma inegaacutevel transformaccedilatildeo da atividade composicional causada pela experiecircncia em
estuacutedio69 Gati (2015) aponta que a partir de 1950
65 Original ldquo[] our principal methafor for music composition must change from one of architecture to one of chemistryrdquo (WISHART 1994 p 12)
66 Original ldquoSound becomes a fluid and entirely malleable medium not a carefully honed collection of givens Sculpture and chemistry rather than language or ire mathematics become appropriate metaphors for what a composer might do although mathematical and physical principals will still enter strongly into the design of both musical tools and musical structuresrdquo (WISHART 1994 p 12)
67 E tendo muitas vezes seu instrumento amplificado e difundido nos mesmos alto-falantes que difundem os sons eletroacuacutesticos tambeacutem o inteacuterprete percebe esta mistura
68 Original ldquoSome styles are unique to electronic music because of the nature of the medium others are common to instrumental music as well The two media continue to create possibilities for each other and will no doubt ultimately become indistinguishablerdquo (APPPELTON 1979 p 104)
69 Um caso sempre lembrado eacute o de Gyorgy Ligeti Suas composiccedilotildees posteriores agrave breve experiecircncia no estuacutedio de Colocircnia em 1957-8 evidenciam a influecircncia que esta exerceu sobre sua produccedilatildeo (DIAS 2014 p
66
[] estabeleceu-se uma verdadeira via de matildeo dupla entre a escritura instrumental e a eletroacuacutestica pela qual ambas se realimentam se influenciam Notadamente por meio da experiecircncia da muacutesica acusmaacutetica semearam-se de maneira mais intensa abordagens composicionais que tomavam os eventos sonoros em si seus contornos sua distribuiccedilatildeo e caracterizaccedilatildeo espectral como ponto de partida para a estruturaccedilatildeo musical (GATI 2015 p 22)
Esta ldquovia de matildeo duplardquo se evidencia na elaboraccedilatildeo composicional da muacutesica mista
Estaacute presente neste processo uma interaccedilatildeo entre elaboraccedilatildeo instrumental e eletroacuacutestica
cujas diferenccedilas devem ser consideradas
Menezes (2006) aponta que na muacutesica instrumental compor significa recompor o som
a partir de seus paracircmetros segmentados historicamente na escrita musical (o que chama de
decomposiccedilatildeo do som) O material musical resultante desta elaboraccedilatildeo de recomposiccedilatildeo
apresenta um caraacuteter relacional Por outro lado o material eletroacuacutestico mais do que
relacional deve ser constituiacutedo pelo compositor diferentemente da muacutesica instrumental Isto
eacute o compositor assume a proacutepria constituiccedilatildeo dos espectros Assim o material se apresenta
em duas faces com uma funccedilatildeo relacional e outra constitutiva De um lado a atividade
composicional de relacionar sons de outro a de constituir seus proacuteprios espectros
O processo de recomposiccedilatildeo do som por meio de seus paracircmetros na composiccedilatildeo
instrumental acontece por meio da escritura70 Na composiccedilatildeo eletroacuacutestica a ldquoelaboraccedilatildeo
escritural de suas estruturasrdquo natildeo estaacute ausente mas sim latente ou subjacente Trata-se de uma
escritura latente que ldquo[] tende a resgatar no seio da atividade eletroacuacutestica e de seu
confronto com o som bruto e concreto a abstraccedilatildeo tiacutepica da muacutesica instrumental e sua
histoacuteriardquo (MENEZES 2006 p 362) Ao mesmo tempo se coloca a percepccedilatildeo do caraacuteter
constitutivo do material de sua textura sonora que atenta para os aspectos da vida interna do
som ldquoA percepccedilatildeo relacional dos elementos estruturais eacute acompanhada por aquela destinada a
uma efetiva introspecccedilatildeo constitutiva dos espectrosrdquo (MENEZES 2006 p 362)
Estas duas percepccedilotildees (relacional e constitutiva) se diferenciam tambeacutem em relaccedilatildeo a
percepccedilatildeo do tempo O paradigma convencional da muacutesica instrumental neste aspecto eacute que
o som constitui o tempo musical priorizando assim a percepccedilatildeo dos ataques e a organizaccedilatildeo
meacutetrica e riacutetmica Jaacute a muacutesica eletroacuacutestica iraacute pelo contraacuterio considerar o som enquanto
89-192)70 O termo escritura se contrapotildee agrave escrita e eacute preferiacutevel segundo Menezes por ser ldquomais conotativo de um
processo compositivo e portanto mais proacuteximo ao contexto relativo agrave elaboraccedilatildeo [] em vez de meramente escrita mais condizente com o aspecto superficial e caracteroloacutegico (graacutefico) da apresentaccedilatildeo de um textordquo (MENEZES 1999 p 61)
67
fenocircmeno de textura e o tempo enquanto constituinte do espectro sonoro ldquoO som que era do
tempo cede passo assim ao tempo de cada somrdquo (MENEZES 2006 p 364)
Se por um lado Menezes aproxima a elaboraccedilatildeo composicional eletroacuacutestica da
instrumental atraveacutes do conceito de escritura latente por outro poderiacuteamos pensar na
possibilidade de aproximar a escritura instrumental da elaboraccedilatildeo eletroacuacutestica em sua
funccedilatildeo constitutiva dos sons Embora o autor afirme que a escritura instrumental ldquonatildeo permite
uma radical intervenccedilatildeo composicional na constituiccedilatildeo mesma dos sonsrdquo (MENEZES 2006
p 364) eacute possiacutevel pensar em intervenccedilotildees menos radicais ou ao menos numa analogia desta
intervenccedilatildeo Uma intervenccedilatildeo pouco radical eacute por exemplo o bisbigliando variaccedilotildees
tiacutembricas sobre uma mesma nota Como analogia assim como o compositor eletroacuacutestico
trabalha os aspectos constitutivos dos espectros o compositor instrumental pode tratar os sons
de cada instrumento como constituinte de um todo orquestral por exemplo Evidentemente a
elaboraccedilatildeo instrumental sempre apresentaraacute graus menores em relaccedilatildeo agrave eletroacuacutestica de
controle do movimento interno dos sons devido agraves suas contingecircncias de execuccedilatildeo mas isso
natildeo significa a impossibilidade de se tratar o som instrumental de maneira semelhante ou
anaacuteloga agrave elaboraccedilatildeo eletroacuacutestica
34 FLUXOS SONOROS
Diante deste contexto sonoro-morfoloacutegico interessa-nos compreender como se
constituem e diferenciam os fluxos sonoros na muacutesica eletroacuacutestica mista
Fluxos eacute uma traduccedilatildeo possiacutevel para streams termo presente em Wishart (1996)
Smalley (1997) em Guigue (2011) e em Bregman (2004 2008) Este uacuteltimo autor trata de
fluxos auditivos (auditory streams) Nesta aplicaccedilatildeo do termo a ideia de fluxo se relaciona
com um contiacutenuo recebimento de informaccedilotildees sonoras que satildeo segregadas num processo da
percepccedilatildeo Assim quando no ambiente em que estamos conseguimos distinguir sons
produzidos em fontes diferentes estaacute em accedilatildeo esta capacidade vital Outras pesquisas em
cogniccedilatildeo avanccedilam para a percepccedilatildeo de fluxos distintos ainda que a fonte sonora seja a mesma
como acontece por exemplo na polifonia latente (ver 31) Por outro lado como tentamos
demonstrar eacute possiacutevel perceber um uacutenico fluxo ainda que vaacuterias fontes sonoras estejam
envolvidas (Klangfarbenmelodie e a proacutepria praacutetica de dobramento na orquestraccedilatildeo) Guigue
(2011) adota este termo para se referir natildeo simplesmente a uma polifonia de vozes como
68
Shepard (1999) mas a uma polifonia de sonoridades As sonoridades podem se desenvolver
em muacuteltiplos fluxos simultacircneos Smalley (1997) utiliza uma variaccedilatildeo do termo (streaming)
para expressar um tipo especiacutefico de movimento da textura71
Streaming se refere a uma combinaccedilatildeo de camadas em movimento e implica algum tipo de diferenciaccedilatildeo entre as camadas seja atraveacutes de lacunas no espaccedilo espectral ou porque cada camada natildeo possui o mesmo conteuacutedo espectro-morfoloacutegico (Smalley 1997 p 117 traduccedilatildeo nossa)72
Semelhantemente o termo eacute tambeacutem empregado pelo autor em relaccedilatildeo agrave ocupaccedilatildeo do
espaccedilo espectral Streams - interstices eacute um dos qualificadores deste espaccedilo e se refere a ldquoa
estratificaccedilatildeo em camadas [the layering] do espaccedilo espectral em fluxos estreitos ou largos
separados por espaccedilos intervenientesrdquo (SMALLEY 1997 p 121 traduccedilatildeo nossa)73
Da mesma forma no EletroAcoustic Research Site (EARS) Rob Weale explica
streams
O termo eacute usado como uma ferramenta conceituai para a criaccedilatildeo e anaacutelise perceptual de texturas que apresentam lsquobandasrsquo claramente distinguiacuteveis de atividade socircnica dentro de um espectro global de possiacuteveis frequecircncias audiacuteveis (2005 traduccedilatildeo nossa74)
A separaccedilatildeo de fluxos em bandas de frequecircncias distintas favorece o processo de
segregaccedilatildeo Poreacutem assim como no caso da separaccedilatildeo das vozes em diferentes registros de
alturas este eacute um dos recursos para se alcanccedilar tal resultado uma das possibilidades para se
distinguir os fluxos Como aponta Smalley na citaccedilatildeo acima agraves vezes esta diferenciaccedilatildeo se daacute
por causa da diferenccedila de conteuacutedo espectro-morfoloacutegico
341 Simultaneidades da micro eou da macrotextura
As definiccedilotildees de Smalley e de Weale estatildeo fortemente direcionadas a questotildees da
71 A concepccedilatildeo de textura de Smalley foi abordada em 33272 Original ldquoStreaming refers to a combination of moving layers and implies some way of differentiating
between the layers either through gaps in spectral space or because each layer does not have the same spectromolphological contentrdquo (Smalley 1997 p 117)
73 Original ldquoStreams - interstices - the layering of spectral space into narrow or broad streams separated by intervening spacesrdquo (SMALLEY 1997 p 121)
74 Original ldquoThis term is used as a conceptual tool for the creation and perceptual analysis of textures that comprise of clearly distinguishable rsquobandsrsquo of sonic activity within the overall spectrum of possible available audible frequenciesrdquo (WEALE 2005 Disponiacutevel em httpearspierrecoupriefrspipphparticle99)
69
textura como a concebe Smalley a qual chamamos microtextura Entretanto podemos
questionar esta exclusividade Guigue (2011) por exemplo utiliza fluxos para se referir agraves
partes de uma polifonia de sonoridades que se enquadraria como uma macrotextura Wishart
(1996) utiliza o termo para indicar partes simultacircneas de um contraponto no continuum Estas
partes satildeo anaacutelogas a um fluxo instrumental convencional (voz soprano por exemplo) que
formam uma textura que quanto agrave sua dimensatildeo (micro-macro) se assemelha agrave muacutesica
convencional (macro) Claramente os fluxos em Wishart natildeo se limitam a partes de uma
textura (micro) como em Smalley (1997) Mais do que isso o autor sustenta que
De fato o conceito de fluxo [stream] instrumental eacute talvez o que mais persiste nopensamento musical convencional [] Mesmo num claacutessico estuacutedio de controle devoltagem era possiacutevel conceber uma composiccedilatildeo musical na qual um uacutenico fluxo de som desenvolvido possivelmente divergia em fluxos separados que poderiam ser separadamente articulados poderiam convergir novamente e continuar assim ateacute o final da peccedila (p 25 traduccedilatildeo nossa75)
Nesta citaccedilatildeo vemos as duas dimensotildees intercambiarem O ldquoconceito de fluxo
instrumentalrdquo que ldquopersiste no pensamento musical convencionalrdquo eacute parte de uma textura
deste pensamento comumente o que chamamos macrotextura (ver 31) Jaacute a ideia de uma
ldquocomposiccedilatildeo musical na qual um uacutenico fluxo de som desenvolvido possivelmente divergia
em fluxos separadosrdquo soacute parece ser possiacutevel se consideradas as caracteriacutesticas internas do som
(dimensatildeo micro) Podemos assim dizer que os fluxos podem cruzar esta fronteira entre
micro e macro e de fato estabelecer um continuum entre eles Eacute precisamente por isso que
caracteriacutesticas internas dos sons (micro) de um fluxo (macro) podem assumir um
protagonismo se separando deste fluxo inicial e dando origem a um segundo (macro) Isto
acontece nas peccedilas Kontakte de Stockhausen e Desintegrations de Murail abordadas adiante
(respectivamente em 342 e 41)
342 Fusatildeo e contraste constituiccedilatildeo e segregaccedilatildeo de muacuteltiplos fluxos
O dicionaacuterio Merriam-Webster traz entre outras as seguintes definiccedilotildees de stream
que podem servir de metaacuteforas para pensarmos os fluxos sonoros
75 Original ldquoIn fact the concept of the instrumental stream is perhaps the most persistent in conventional musical thought [] Even in the classical voltage control studio it was possible to conceive of a musical composition in which a single sound stream evolved possibly diverged into separate streams which might be separately articulated might reconverge and continue thus to the end of the piecerdquo (SMALLEY 1997 p 25)
70
1 um corpo de aacutegua corrente (tal como um rio ou coacuterrego) que flui na terra tambeacutem qualquer corpo fluido (tal como aacutegua ou gaacutes) 2 a uma sucessatildeo estaacutevel (como de palavras ou eventos) - manter um fluxo de conversa sem fim [] c uma procissatildeo de contiacutenuo movimento - um fluxo de traacutefego (STREAM 2019 traduccedilatildeo nossa76)
Desta definiccedilatildeo podemos reter duas caracteriacutesticas interdependentes de um fluxo a)
estabilidade relativa do que o compotildee - ldquosucessatildeo estaacutevelrdquo b) movimento contiacutenuo relativo
Satildeo interdependentes pois eacute preciso que haja uma estabilidade em pelo menos alguns
paracircmetros de determinados eventos sonoros para que percebamos a continuidade do fluxo
constituiacutedo por eles Tais aspectos remontam ao processo de segmentaccedilatildeo abordado por
Guigue (2011) (ver 321) Estas caracteriacutesticas excluem muitas texturas como a mencionada
de Webern que natildeo presam por uma continuidade de fluxos Entretanto mesmo nesse caso eacute
possiacutevel compreendecirc-la como um uacutenico fluxo com um aspecto global (a partir da p 51
apresentamos brevemente este aspecto da textura weberniana)
Para que diferenciemos um fluxo de outro eacute preciso que haja uma concorrecircncia outra
sucessatildeo estaacutevel com alguma diferenccedila em relaccedilatildeo ao conteuacutedo sonoro Para a distinccedilatildeo de
vozes um recurso recorrente eacute a utilizaccedilatildeo de instrumentos diferentes para cada voz
(diferenciaccedilatildeo por timbre enquanto tone-color) para os fluxos este fator tambeacutem deve ser
considerado Na muacutesica mista haacute uma distinccedilatildeo ldquoinstrumentalrdquo entre os meios instrumental e
eletroacuacutestico que sobressalta inicialmente Em seu artigo sobre a interaccedilatildeo entre estes dois
meios Souza (2010) faz uma possiacutevel distinccedilatildeo quanto ao mecanismo de produccedilatildeo sonora
para logo questionaacute-la do ponto de vista da percepccedilatildeo
ldquoNote-se que como ponto de partida a diferenccedila entre sons instrumentais e eletrocircnicos eacute tomada inicialmente ao peacute da letra sons instrumentais satildeo aqueles gerados por vibraccedilotildees mecacircnicas de instrumentos acuacutesticos enquanto sons eletrocircnicos satildeo gerados por circuitos eletrocircnicos analoacutegicos ou digitais tornados audiacuteveis por alto-falantes e amplificadores A seguir essa separaccedilatildeo quase tautoloacutegica eacute questionada no lado da percepccedilatildeordquo (SOUZA 2010 p 149)
Esta caracteriacutestica de produccedilatildeo sonora poderia nos fazer pensar cada meio -
instrumental e eletroacuacutestico - como responsaacutevel por um fluxo na muacutesica mista Entretanto
Souza salienta que
76 Traduccedilatildeo do autor Original ldquo 1) a body of running water (such as a river or brook) flowing on the earth also any body of flowing fluid (such as water or gas) 2) a a steady succession (as of words or events) - kept up an endless stream of chatter [ ] c a continuous moving procession - a stream of traficrdquo (STREAM 2019)
71
Do ponto de vista do ouvinte-receptor natildeo haacute propriedades intriacutensecas dos sons que permitam fazer uma separaccedilatildeo absoluta e inquestionaacutevel entre sons instrumentais e sons gerados eletronicamente ainda que em nosso imaginaacuterio tal separaccedilatildeo pudesse parecer evidente (SOUZA 2010 p 149)
Eacute preciso argumentar que a distinccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo sonora apresentada
inicialmente por Souza aponta para uma propriedade intriacutenseca dos sons a ser considerada O
som dos instrumentos (natildeo amplificados ou gravados) em sua maioria se projeta em
muacuteltiplas direccedilotildees enquanto que a projeccedilatildeo cocircnica dos alto-falantes (considerados
individualmente) se daacute numa direccedilatildeo apenas Alguns instrumentos apresentam uma projeccedilatildeo
direcional semelhante agrave dos alto-falantes - o trombone por exemplo Por outro lado satildeo raras
as tentativas que buscam imitar a projeccedilatildeo instrumental multidirecional atraveacutes de alto-
falantes77
Ainda assim o argumento de Souza eacute relevante ele desloca (assim como discutido em
23) a atenccedilatildeo teoacuterica de sobre as questotildees teacutecnicas (produccedilatildeo sonora) para atentar para a
percepccedilatildeo destes sons Do ponto de vista da percepccedilatildeo os sons gerados eletronicamente
podem apresentar o ldquoexatordquo som preacute-gravado de um instrumento e instrumentos podem
produzir sons natildeo-convencionais que podem ser confundidos com sons eletrocircnicos Assim
ainda que a distinccedilatildeo do tipo de mecanismo de produccedilatildeo sonora possa ser utilizada em favor
da separaccedilatildeo de fluxos ela natildeo determina exclusivamente a existecircncia de dois fluxos assim
como a exemplo da melodia de timbres o uso de dois instrumentos diferentes natildeo o faz na
muacutesica instrumental Pelo contraacuterio a fusatildeo dos dois meios num mesmo fluxo eacute um recurso
muito utilizado Para isso a amplificaccedilatildeo do instrumento eacute comumente empregada fazendo
com que haja maior semelhanccedila de projeccedilatildeo sonora dos dois meios78
A proposta de morfologia da interaccedilatildeo de Menezes pode ser uacutetil para abordar a
distinccedilatildeo de fluxos sonoros na muacutesica mista De acordo com o autor a interaccedilatildeo entre
instrumento e eletroacuacutestica acontece entre dois polos fusatildeo e contraste A fusatildeo eacute a absoluta
similaridade caracterizada por ldquotransferecircncias localizadas de caracteriacutesticas espectrais de uma
esfera de atuaccedilatildeo agrave outrardquo (MENEZES 2006 p 385) o contraste eacute a absoluta distinccedilatildeo
77 O Wave Field Synthesis desenvolvido no IRCAM eacute uma alternativa de projeccedilatildeo que vai nesta direccedilatildeo Confira o siacutetio do projeto lthttprechercheircamfrequipessallesWFS_WEBSITEIndex_wfs_sitehtmgt Deve-se mencionar tambeacutem os alto-falantes hemisfeacutericos desenvolvidos na Universidade de Princeton confira no endereccedilo lthttpmusic2princetonedudeloreanhistoryhtmlgt
78 Aleacutem disso os dois meios natildeo instituem apenas dois fluxos porque eacute possiacutevel haver muacuteltiplos fluxos no meio instrumental como tambeacutem muacuteltiplos fluxos no meio eletroacuacutestico
72
caracterizada pela ausecircncia destas transferecircncias Entre estes dois polos existem estaacutegios
transicionais de relativa similaridade e dissimilaridade
Em relaccedilatildeo a proveniecircncia sonora quanto mais lsquoconfusorsquo estiver o ouvinte em face daquilo que ouve tanto mais ele sentiraacute efetivamente integradas as partes constitutivas da obra mista os lsquodois planosrsquo pressupostamente independentes e unidos apenas por contingecircncias aos quais os criacuteticos da muacutesica mista faziam referecircncia passam a ser percebidos como um uacutenico plano essencialmente diagonal agraves linhas estanques da emissatildeo instrumental ou da difusatildeo puramente eletroacuacutestica a emissatildeo instrumental passa entatildeo a ser efetivamente potencializada no espaccedilo acuacutestico pelos recursos eletrocircnicos Ainda que de forma alguma hegemocircnico o estado de duacutevida traduz-se como um momento supremo da interaccedilatildeo (MENEZES 2006 p 385)
Assim na fusatildeo instrumento e sons eletroacuacutesticos compartilham o mesmo fluxo
estatildeo num ldquouacutenico planordquo ldquodiagonalrdquo aos dois meios enquanto que no contraste apresentam
fluxos distintos Este paradigma pode ser facilmente transposto para quaisquer meios se
considerarmos que fusatildeo e contraste se referem a (dis)semelhanccedila espectral de dois fluxos
distintos independentemente se instrumentais ou eletroacuacutesticos
Apesar da inegaacutevel importacircncia das caracteriacutesticas espectrais natildeo satildeo apenas elas que
estatildeo em jogo na fusatildeo e no contraste Menezes considera tambeacutem que a fusatildeo pode ser
alcanccedilada por outros meios Ao referir-se agrave estrateacutegia de utilizar apenas o som do instrumento
como base para a confecccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos ele aponta que
[] tal estrateacutegia estaacute longe de ser excludente as transferecircncias estruturais podem apoiar-se em aspectos outros que natildeo a coloraccedilatildeo (timbre) dos espectros tais como relaccedilotildees de identidade em frequecircncia em percurso espacial em comportamento dos perfis meloacutedicos e de massa em constituiccedilatildeo gestual dos sons (que podem identificar-se ateacute mesmo pela forma de tratamento aos quais se submetem) Ou seja ainda que seja mais condizente com a fusatildeo partir dos proacuteprios sons instrumentais para a elaboraccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos o uso de outras fontes sonoras natildeo implica necessariamente inviabilidade da fusatildeo e pode em contrapartida viabilizar a transiccedilatildeo que vai do fundido ao contrastado Seraacute pois pelo vieacutes de tal distinccedilatildeo relativa - apenas possiacutevel no caso de se utilizarem os mesmos sons instrumentais na elaboraccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos apoacutes inuacutemeros procedimentos de transformaccedilatildeo do material de partida - que a edificaccedilatildeo de toda uma gama de distanciamento tornar-se-aacute possiacutevel ateacute que se atinja o contraste mais evidente com ausecircncia de qualquer transferecircncia espectral (2006 p386)
Petra Bachrataacute (2010 p 89) oferece a seguinte perspectiva
Mas na nossa opiniatildeo fusatildeo e contraste em uma obra eletroacuacutestica mista podem ser percebidos tambeacutem no passar do tempo e podem ser demonstrados em exemplos de relaccedilotildees gestuais Por exemplo dois gestos podem ser similares ou diferentes
73
mesmo que se apresentem separados no tempo Nestes contextos noacutes podemos criar modelos de interaccedilatildeo entre gestos de acordo com sua organizaccedilatildeo no tempo - contrapontos mais ou menos complexos ou em relaccedilatildeo a outras caracteriacutesticas aleacutem da espectral tais como ritmo intensidade ou caracteriacutesticas mais semacircnticas como direccedilatildeo e energia (traduccedilatildeo nossa79)
O trabalho de Bachrataacute (2010) se fundamenta na concepccedilatildeo de gesto e aborda as
relaccedilotildees entre gestos instrumentais e eletroacuacutesticos A autora aborda o gesto por diferentes
perspectivas80 e propotildee uma categorizaccedilatildeo de acordo com os paracircmetros que cada uma
oferece Em nosso caso a ideia de fluxo tem maior importacircncia devido ao foco voltado para
questotildees mais amplas do que pontuais Um fluxo pode ser constituiacutedo de gestos De acordo
com Wishart ldquoo fluxo em evoluccedilatildeo [evolving stream] pode ser articulado gestualmenterdquo81
(WISHART 1996 p 117) E as caracteriacutesticas destes gestos determinaratildeo neste caso as
caracteriacutesticas que distinguiratildeo os fluxos sejam espectrais ou outras
Assim entendemos ser necessaacuterio estender a morfologia da interaccedilatildeo para incluir
outros aspectos aleacutem dos espectrais A fim de natildeo entrar nas particularidades de
parametrizaccedilatildeo do gesto seria suficiente acrescentar um termo e denominarmos de
transferecircncias espectro-morfoloacutegicas incluindo assim os aspectos do desenvolvimento das
caracteriacutesticas espectrais no tempo Afinal como afirma Smalley (1997) ldquoo espectro- natildeo
existe sem a -morfologia e vice-versardquo82 (p 107) Isto eacute o conteuacutedo espectral necessita se
constituir temporalmente assim como qualquer constituiccedilatildeo temporal necessita de um
conteuacutedo espectral Desta forma incluiacutemos como importantes para esta interaccedilatildeo outras
caracteriacutesticas espectro-morfoloacutegicas (ver Quadro 1)
79 Original ldquoBut in our opinion fusion and contrast in a mixed electroacoustic work may be perceived also as time passes and may be demonstrated on the examples of gesture relationships For example two gestures may be similar or different even separated in time In these contexts we may create models of interaction between gestures according to their organization over time - subtle or more complex counterpoints or in relation to other than spectral characteristics such as rhythm loudness or more semantic characteristics such as direction or energy Two gestures may closely relate or blend (lsquofusionrsquo) because of their similar rhythmical structure while having very different spectral characteristics increasing energy of one gesture may potentiate the onset of another one two gestures may relate with each other also through the direction in space such as convergent and divergent ways of interaction etcrdquo (BACHRATAacute 2010 p 89)
80 Entre outras perspectivas de Dennis Smalley - gesto como uma trajetoacuteria-energia-movimento de Trevor Wishart - gesto como articulaccedilatildeo do continuum do Laboratoire de Musique et Informatique in Marseille (MIM) - gesto como unidade temporal semioacutetica de Brian Ferneyhough - gesto e figura (BACHRATAacute 2010 p 123-141)
81 ldquoWhat we are now suggesting is that the evolving stream may be gesturally articulated and we may coordinate (or not) the gestures between the various parts in such a way as to create a viable contrapuntal structurerdquo (WISHART 1996 p 117)
82 ldquoThe spectro- cannot exist without the -morphology and vice versardquo (SMALLEY 1997 p 107)
QUADRO 1 - QUADRO DA MORFOLOGIA DA INTERACcedilAtildeO
74
fusatildeo
fusatildeo por virtualizaccedilatildeo (simulaccedilatildeo eletroacuacutestica do
instrumental)
similaridade absoluta
transferecircncias espectro-
fusatildeo por similaridademorfoloacutegicas localizadas
textural estado de duacutevida (confusatildeo)
transferecircncia natildeo-reflexiva
interferecircncia convergente transferecircncias espectro-
estaacutegios transicionais entre transferecircncia reflexiva morfoloacutegicas dinacircmicas
fusatildeo e contraste contaminaccedilatildeo direcional distinccedilatildeo e similaridadeinterferecircncia potencializadora relativas
interferecircncia natildeo-convergente
contraste por distinccedilatildeo textural
distinccedilatildeo absoluta
contraste contraste por silecircncio
estrutural
ausecircncia de transferecircncia espectro-morfoloacutegica
FONTE Adaptado de Menezes (2006 p 398) Acrescentamos o termo -morfoloacutegicas agrave ideia de transferecircnciasespectrais
Os estaacutegios transicionais estabelecem pontos em que os meios instrumental e
eletroacuacutestico podem estar mais proacuteximos da fusatildeo ou mais proacuteximos do contraste Menezes
expotildee estas possibilidades intermediaacuterias com base em exemplos de sua peccedila ATLAS
FOLISPELIS (1996-7) Natildeo repetiremos a explicaccedilatildeo de Menezes (2006 p 387-390) mas
faremos quando ausente em sua descriccedilatildeo uma generalizaccedilatildeo dos estaacutegios a partir de nossa
perspectiva
Transferecircncia natildeo-reflexiva ldquoa transmutaccedilatildeo de uma esfera de emissatildeo sonora agrave outra
eacute quase imperceptiacutevel Quando o ouvinte se daacute conta jaacute natildeo se trata mais de um som do
instrumento mas sim de sons eletroacuacutesticos que os envolvem no espaccedilo quadrifocircnicordquo
(Menezes 2006 p 390) Podemos inferir que tal transferecircncia seja possiacutevel no sentido
contraacuterio eletroacuacutestico-instrumental
Interferecircncia convergente Ainda que os meios (instrumental e eletroacuacutestico) possam
ser distinguidos um deles apresenta certa interferecircncia em relaccedilatildeo ao outro que pode ser
baseada em relaccedilotildees frequenciais por exemplo
Transferecircncia reflexiva ldquouma coisa nasce da outra eacute interagida pela estrutura que jaacute
estava em curso e pouco a pouco a integra e anula em suas proacuteprias inflexotildeesrdquo (MENEZES
2006 p 390) Num primeiro momento um dos meios ldquoespelhardquo o outro em seguida a
ldquoimagemrdquo espelhada ganha maiores proporccedilotildees ateacute que prepondera sobre a imagem inicial
Contaminaccedilatildeo direcional um dos meios muda em direccedilatildeo a algo que parece uma
transformaccedilatildeo dos sons do outro resultando numa maior ou menor fusatildeo O que eacute salientado
neste estaacutegio eacute o processo de transformaccedilatildeo de um dos meios passando do contraste para a
fusatildeo com o outro
Interferecircncia potencializadora um dos meios interfere e potencializa o outro Aquele
que interfere estaacute subordinado e apresenta materiais que parecem desdobramentos do outro
meio
Interferecircncia natildeo-convergente um dos meios realccedila e acentua aspectos do outro sem
que um se dilua no outro Trata-se nas palavras do autor de um ldquoapoio ancorado por uma
distinccedilatildeo relativardquo (MENEZES 2006 p 390)
A funccedilatildeo dos estaacutegios parece ser a de oferecer gradaccedilotildees entre fusatildeo e contraste
Entretanto da maneira como coloca Menezes mais do que estaacutegios tratam-se de movimentos
no interior do eixo fusatildeo-contraste que apresenta diversas gradaccedilotildees Este eixo poderia ser
explorado por outros movimentos natildeo inclusos nesta lista Para nossa abordagem seraacute
suficiente considerar que entre fusatildeo e contraste satildeo possiacuteveis gradaccedilotildees diversas e por
diversas aproximaccedilotildeesafastamentos espectro-morfoloacutegicos Aleacutem disso esta perspectiva
abrange fluxos independentemente se instrumentais ou eletroacuacutesticos Temos assim a
possibilidade de um fluxo se apresentar mais ou menos paralelo e dependente em relaccedilatildeo a
outro Isto eacute quanto mais transferecircncias espectro-morfoloacutegicas estatildeo presentes mais
aproximamos dois fluxos de uma fusatildeo da convergecircncia em apenas um uacutenico fluxo quanto
menos transferecircncias espectro-morfoloacutegicas mais distinguimos os dois fluxos como
independentes Assim os estaacutegios transicionais podem ser tambeacutem pensados como uma
gradaccedilatildeo um continuum relativo agrave independecircncia dos fluxos sonoros Isto se relaciona com
os apontamentos de Wishart (1996) sobre ser possiacutevel que um uacutenico fluxo se divida em outros
fluxos separados que podem ser desenvolvidos individualmente e convergir novamente num
soacute
[] era possiacutevel conceber uma composiccedilatildeo musical na qual um uacutenico fluxo de som desenvolvido possivelmente divergia em fluxos separados que poderiam ser
75
76
separadamente articulados poderiam convergir novamente e continuar assim ateacute o final da peccedila (p 25 traduccedilatildeo nossa83)
Nestes casos natildeo se trata de um ou outro fluxo sonoro fixo mas um que engendra
outro ou ainda outros que fundem em um ocupando assim regiotildees ambiacuteguas entre
independecircncia paralelismo e fusatildeo Wishart ilustra esta ideia (Figura 21)
FIGURA 21 - DESENVOLVIMENTO DE UM FLUXO SEPARANDO EM OUTROS E CONVERGINDO NOshyVAMENTE
bdquobdquoo i-i ~ gt1
FONTE Extraiacutedo de Wishart (1996 p 27)
Um exemplo desta concepccedilatildeo na muacutesica mista pode ser observado na peccedila Music fo r
Flute and ISPW (1994) de Cort Lippe Nas notas sobre a peccedila o compositor explica haver
pensado num continuum entre uma configuraccedilatildeo de duo e uma configuraccedilatildeo de solo-
extendido ldquoMusicalmente agraves vezes a parte do computador natildeo eacute separada da parte da flauta
mas serve mais para amplificar a flauta em muacuteltiplas dimensotildees e direccedilotildees enquanto no outro
extremo do continuum o computador tem sua proacutepria voz musical independenterdquo (LIPPE
traduccedilatildeo nossa84) De acordo com a tipologia que estamos empregando ora flauta e sons
eletroacuacutesticos constituem um uacutenico fluxo (solo-extendido) que decorre da fusatildeo entre eles
ora cada um desenvolve seu proacuteprio fluxo (duo) decorrente do contraste entre eles
Outro exemplo das nuances da separaccedilatildeo de fluxos distintos estaacute presente na peccedila
Kontakte (1958-1960) de Karlheinz Stockhausen Quando o compositor trata da
decomposiccedilatildeo do som o segundo dos seus quatro criteacuterios da muacutesica eletrocircnica
(STOCKHAUSEN 1989) demonstra que um som pode ser entendido como a soma de
componentes e que por meio de sua decomposiccedilatildeo estes componentes podem ser
desenvolvidos paralelamente85 Ele cita um trecho de Kontakte (aos 22 minutos
83 Original ldquo[] it was possible to conceive of a musical composition in which a single sound stream evolved possibly diverged into separate streams which might be separately articulated might reconverge and continue thus to the end of the piecerdquo
84 Original ldquoMusically the computer part is sometimes not separate from the flute part but serves rather to amplify the flute in multiple dimensions and directions while at the other extreme of the continuum the computer part has its own independent musical voicerdquo (LIPPE 1994)
85 Note o leitor que ldquocomponentesrdquo aqui tecircm outra acepccedilatildeo eles satildeo sonoros espectrais e natildeo paracircmetros como no modelo de Guigue (ver 32) e na apresentada recomposiccedilatildeo do som segundo Menezes Os componentes
77
aproximadamente) no qual acontece a decomposiccedilatildeo de um uacutenico som (ver Figura 22) O
compositor explica ldquoO som original eacute literalmente desintegrado nos seus seis componentes e
cada componente por sua vez eacute decomposto diante de nossos ouvidos nos seus ritmos
individuais de pulsosrdquo (p 97 traduccedilatildeo nossa86) A Figura 22 apresenta uma anaacutelise dos
pontos em que o fluxo inicial daacute origem a outros (marcados com um ciacuterculo) e tambeacutem de um
ponto em que haacute a fusatildeo de dois fluxos (marcado com um quadrado) ainda que este uacuteltimo
seja quase imperceptiacutevel devido agrave intensidade fraca dos dois fluxos
FIGURA 22 - DIVISAtildeO DE UM FLUXO EM OUTROS EM KONTAKTE (1958-60) DE STOCKHAUSEN
FONTE Extraiacutedo de Stockhausen (1966 p 25)
O compositor chama a atenccedilatildeo para o aspecto da percepccedilatildeo deste fenocircmeno ldquoE noacutes
vivemos exatamente a mesma transformaccedilatildeo que o som estaacute passando O som se divide em
seis e se noacutes queremos seguir todos os seis temos que nos tornar polifocircnicos seres
multicamadasrdquo (STOCKHAUSEN 1989 p 88 traduccedilatildeo nossa87) Apesar de o compositor
nesta abordagem de Stockhausen se aproximam sobretudo dos componentes da textura (31)86 Original The original sound is literally taken apart into its six components and each component in turn is
decomposing before our ears into its individual rhythm of pulses (STOCKHAUSEN 1989 p 97)87 Original ldquoAnd we live through exactly the same transformation that the sound is going through The sound
splits into six an if we want to follow all six we have to become polyphonic multilayered beignsrdquo (STOCKHAUSEN 1989 p 88)
falar em camadas podemos perceber o caraacuteter ldquoliacutequidordquo e por isso mais relacionado agrave ideia
de fluxo do seu procedimento trata-se de uma manipulaccedilatildeo das caracteriacutesticas internas dos
sons - dos seus componentes - e apresenta a dissoluccedilatildeo de um fluxo dando origem a outros
numa espeacutecie de ldquodivisatildeo de aacuteguasrdquo
Esta dissoluccedilatildeo eacute ainda mais dispersa quando observados os papeacuteis dos instrumentos
em relaccedilatildeo agrave parte eletrocircnica Por vezes haacute uma reafirmaccedilatildeo do mesmo fluxo por exemplo
tanto o percussionista quanto o pianista reiteram o trinado entre faacute e sol | presente na parte
eletrocircnica Entretanto por vezes os instrumentos apresentam desvios gestos que podem ser
agrupados em outro fluxo ou serem percebidos soltos Neste uacuteltimo caso de maneira
semelhante ao que acontece numa textura global (mencionada em 31) estes gestos natildeo satildeo
agrupados em fluxos
Em resumo os fluxos se estabelecem por uma estabilidade em suas caracteriacutesticas
espectro-morfoloacutegicas e se distinguem atraveacutes de diferenccedilas nestas caracteriacutesticas banda
espectral alturas timbre caracteriacutesticas gestuais localizaccedilatildeo espacial entre outras Na
muacutesica eletroacuacutestica mista natildeo haacute exclusivamente dois fluxos um instrumental e outro
eletroacuacutestico antes cada um destes meios pode apresentar muacuteltiplos fluxos como tambeacutem
podem compor juntos um uacutenico fluxo O eixo fusatildeo-contraste pode ser utilizado para observar
independecircncia e paralelismo entre fluxos distintos dando conta de regiotildees ambiacuteguas
343 Relaccedilatildeo entre fluxos distintos
A questatildeo subsequente e decorrente desta que cerca a constituiccedilatildeo e segregaccedilatildeo de
muacuteltiplos fluxos eacute aquela que busca identificar como estes fluxos se relacionam uns com os
outros As ideias de comportamento de Smalley (1997) contraponto de Wishart (1996) e
interaccedilatildeo gestual de Bachrataacute (2010) oferecem perspectivas importantes para esta abordagem
3431 Comportamento
Colocar sons distintos num mesmo contexto jaacute garante que algum tipo de relaccedilatildeo deva
existir entre eles Dennis Smalley usa o termo comportamento para discriminar tal relaccedilatildeo
78
entre espectro-morfologias88 Esta metaacutefora do comportamento tem por base a distinccedilatildeo de
Jean Jaques Nattiez (1990) entre referecircncias intriacutensecas e extriacutensecas da muacutesica (p 111-127)
As referecircncias intriacutensecas (intramusicais ou intermusicais) satildeo as que acontecem no acircmbito
de uma peccedila em particular (intra) ou em relaccedilatildeo a um universo musical mais amplo ao qual
ela pertence (inter) A observaccedilatildeo de um tema que volta a aparecer ao longo da peccedila eacute um
exemplo da muacutesica referenciando a si mesma (referecircncia intriacutenseca intramusical) Por outro
lado as referecircncias extriacutensecas estatildeo relacionadas a uma seacuterie de experiecircncias externas ao
contexto da muacutesica De acordo com Smalley (1997) as referecircncias comportamentais satildeo
extriacutensecas Isso significa que na experiecircncia da escuta associamos as relaccedilotildees percebidas
entre os sons com outras experiecircncias vividas Eacute isto que acontece por exemplo quando a
teoria musical usa metaacuteforas como a de ldquopergunta e respostardquo para descrever relaccedilotildees
musicais ou quando usa a metaacutefora do ldquosujeito e contra-sujeitordquo para descrever as relaccedilotildees
entre vozes na fuga Natildeo apenas na anaacutelise mas antes no processo composicional estas
metaacuteforas podem surgir A peccedila de Charles Ives The Unanswered Question (1908) apresenta
as referecircncias de pergunta e resposta no proacuteprio tiacutetulo
A muacutesica eletroacuacutestica devido agraves diversas possibilidades de conteuacutedo (sonoro) e
movimento das espectromorfologias apresenta um grande e variaacutevel repositoacuterio de
referecircncias extriacutensecas E se na muacutesica acusmaacutetica89 estas relaccedilotildees de comportamento satildeo
percebidas em relaccedilatildeo agraves espectromorfologias apenas na muacutesica mista elas satildeo percebidas
com uma forte influecircncia da relaccedilatildeo do performer visiacutevel e portador do gesto com a parte
acusmaacutetica (SMALLEY 1997 p 118) A accedilatildeo fiacutesica visual pode ser considerada uma
referecircncia extriacutenseca e pode estar associada agrave percepccedilatildeo de comportamentos sonoros
A perspectiva de referecircncias comportamentais extriacutensecas apresenta uma abertura de
interpretaccedilatildeo jaacute que determinado comportamento sonoro pode se referenciar a diferentes
experiecircncias vividas distintas para cada sujeito Esta abertura permite pensarmos em outras
referecircncias diferentes daquelas abstratas propostas por Smalley que possam enriquecer tanto
79
88 Espectromorfologia se refere ao desenvolvimento do espectro sonoro atraveacutes do tempo (SMALLEY 1997 p 207) Embora este termo englobe diferentes estruturas sonoras (gestos e texturas por exemplo) nesta pesquisa o foco estaacute sobre a relaccedilatildeo entre os fluxos sonoros Isto porque esta categoria favorece um pensamento global da peccedila natildeo voltado para localidades gestuais Os aspectos gestuais tambeacutem satildeo importantes e foram extensamente analisadas por Petra Bachrataacute (2010) trabalho que seraacute abordado em 3433 entretanto eles seratildeo aqui abordados em relaccedilatildeo aos fluxos sonoros conforme 34
89 Muacutesica acusmaacutetica eacute considerada aqui como aquela preacute-gravada e reproduzida atraveacutes de alto-falantes sem a presenccedila de um performer no palco (EMMERSON SMALLEY 2001)
80
a composiccedilatildeo quanto a anaacutelise Por exemplo ao tratarmos do fluxo visual abordaremos o
efeito ventriacuteloquo (35)
Tendo por base a ideia de que as referecircncias comportamentais satildeo extriacutensecas Smalley
(1997) apresenta sua metaacutefora numa tabela com termos que podem explicar os
comportamentos A apresentaccedilatildeo de Smalley parte de termos mais gerais para outros mais
especiacuteficos (respectivamente de cima para baixo no Quadro 2) Em termos gerais o
comportamento depende de duas oposiccedilotildees domiacuteniosubordinaccedilatildeo e conflitocoexistecircncia
QUADRO 2 - COMPORTAMENTO SEGUNDO SMALLEY
dominaccedilatildeosubordinaccedilatildeo conflitocoexi stecircnci a
igualdade - desigualdade
reaccedilatildeo - interaccedilatildeo - reciprocidade
atividade - passividade
atividade - inatividade
estabilidade - instabilidade
modos de relacionamento
coordenaccedilatildeo de movimento
(sincronizaccedilatildeo vertical)
frouxa mdash justa
(percepccedilatildeo de proximidade concordada)
passagem de movimento
(dimensatildeohorizontal)
voluntaacuteria - pressionada
(trajetoacuteria de energia e movimento)
i
causalidade
FONTE traduzido e adaptado de Smalley (1997)
O eixo domiacuteniosubordinaccedilatildeo estaacute relacionado agraves (des)igualdades entre as
espectromorfologias Smalley (2008 p 11) associa a este eixo trecircs maneiras interconectadas
de entender a ideia de primeiro plano (foreground) e plano de fundo (background) espectro-
morfologicamente espacialmente e indicativamente
A primeira se refere agraves caracteriacutesticas espectro-morfoloacutegicas que nos permitem
identificar o domiacutenio de uma espectro-morfologia sobre outra O autor cita forma dinacircmica
mudanccedilas na riqueza espectral rapidez do movimento espectral taxa de deslocamento
espacial entre outras como exemplos de caracteriacutesticas que podem manifestar o domiacutenio e
subordinaccedilatildeo entre espectro-morfologias Ele oferece ldquoum exemplo simples e oacutebviordquo
ldquomorfologias de impacto-ataque brilhantes e presentes superpostas a uma morfologia
81
sustentada relativamente distante e espectralmente inativardquo (SMALLEY 2008 p 11)
A segunda maneira de abordar a ideia de primeiro plano e plano de fundo -
espacialmente - estaacute relacionada sobretudo aos eixos proximidadedistacircncia e
mobilidadeimobilidade Uma espectro-morfologia pode dominar sobre outra por estar mais
proacutexima ou ser mais moacutevel A proximidadedistacircncia estaacute relacionada ao uso de
processamentos como reverberaccedilatildeo filtros e uso de sistema surround e pode ser uma
caracteriacutestica de diferenciaccedilatildeo de fluxos Este aspecto estaacute relacionado agrave composiccedilatildeo espacial
de muacuteltiplas camadas apontada por Stockhausen (2009)
ldquoConstruir profundidade espacial por sobreposiccedilatildeo de camadas nos permite compor perspectivas em som de muito perto a muito longe anaacutelogas ao modo como compomos camadas de melodia e harmonia no plano bidimensional da muacutesica tradicionalrdquo (STOCKHAUSEN 2009 p89)
Assim uma espectro-morfologia pode dominar sobre outra devido a este aspecto
espacial
A terceira maneira de abordar a ideia de primeiro plano e plano de fundo -
indicativamente - se refere ao impacto indicativo de um som Quando o som se refere
diretamente ou indica experiecircncias do mundo natildeo sonoro ele tende a dominar sobre outro
cuja referecircncia natildeo seja tatildeo direta Os sons da fala humana normalmente dominaratildeo sobre
outras espectro-morfologias Sons cuja fonte eacute reconhecida tambeacutem dominaratildeo sobre aqueles
de fonte natildeo reconhecida
O eixo conflitocoexistecircncia se refere agraves relaccedilotildees temporais do comportamento
Conflito indica uma tendecircncia competitiva entre os sons enquanto que a coexistecircncia indica
uma reciprocidade e confluecircncia Se os sons satildeo idecircnticos ou da mesma famiacutelia ainda que
haja assincronia e descontinuidade podemos percebecirc-los em um comportamento consensual
Para que haja conflito eacute preciso que haja ldquocontrastes simultacircneos ou sucessivos de
espectromorfologia cujas forma dinacircmica e atividade temporal reflitam um poderoso
deslocamentordquo (SMALLEY 2008 p 11) Ainda assim no caso em que este comportamento
conflitante estabelece um ldquomodus vivendi quase permanenterdquo eacute possiacutevel o perceber como
coexistente Isto eacute o comportamento conflitante pode se tornar coexistente se permanecer por
tempo suficiente Haacute tambeacutem a possibilidade de uma textura apresentar um comportamento
conflitante internamente enquanto que de um ponto de vista mais global apresenta coerecircncia
devido a alguma caracteriacutestica como o deslocamento espacial por exemplo Neste caso ldquoo
82
conflito interno estaacute [] disparatado com a coerecircncia coletivardquo (SMALLEY 2008 p 11)
Tais oposiccedilotildees (dominaccedilatildeosubordinaccedilatildeo e conflitocoexistecircncia) representam a base
para uma seacuterie de modos de relacionamento igualdade - desigualdade reaccedilatildeo - interaccedilatildeo -
reciprocidade atividade - passividade atividade - inatividade e estabilidade -
instabilidade Estes modos de relacionamento satildeo articulados vertical e horizontalmente -
duas dimensotildees temporais interativas A dimensatildeo horizontal eacute concernente agrave passagem de
movimento isto eacute como os fluxos em nosso caso passam de um contexto para outro Isto
pode acontecer de maneira voluntaacuteria ou pressionada (SMALLEY 1997 p 118) A dimensatildeo
vertical eacute concernente agrave coordenaccedilatildeo de movimento isto eacute como sincronizam ou natildeo os
eventos de cada fluxo Esta dimensatildeo se apresenta num continuum entre liberdade de
coordenaccedilatildeo justa (tight) e frouxa (loose)
ldquo[] haacute uma distacircncia extrema entre uma muacutesica muito justa talvez rigidamente controlada pontual homorriacutetmica e minimalista e associaccedilotildees muito relaxadas e maleaacuteveis encontradas em algumas muacutesicas eletroacuacutesticasrdquo (SMALLEY 1997 p 118 traduccedilatildeo nossa90)
Quando um evento parece ser a causa do seguinte ou a causa de uma modificaccedilatildeo em
um evento concorrente eacute possiacutevel perceber uma relaccedilatildeo de causalidade De acordo com
Smalley a causalidade ldquoocupa-se mais com um som agindo sobre outro seja causando a
ocorrecircncia de um segundo evento seja instigando a mudanccedila em um som que jaacute se
desenrolavardquo (SMALLEY 2008 p 11) A causalidade eacute mais presumida do que propriamente
conhecida natildeo haacute como comprovar que haacute causalidade com base no que vemos ou
experimentamos Mas presumimos esta causalidade porque os sons estatildeo temporalmente
proacuteximos O autor ainda aponta que ldquose o segundo evento responde espectro-
morfologicamente agrave interferecircncia ou ao impacto do primeiro evento a relaccedilatildeo causal seraacute
percebida ainda mais fortementerdquo (SMALLEY 2008 p 11)
Music fo r Flute and ISPW (1994) de Cort Lippe pode ser analisada a partir desta
perspectiva Na primeira seccedilatildeo da peccedila eacute possiacutevel observar dois fluxos que se intercalam na
parte da flauta Um eacute mais contiacutenuo e em dinacircmica piano o outro consiste em fortes ataques
que interrompem a continuidade do primeiro Neste caso o fator maior de diferenciaccedilatildeo dos
dois fluxos eacute a presenccedila dos sons eletroacuacutesticos Enquanto um fluxo eacute apenas instrumental o
90 Original ldquo[] there is an extreme distance between a very tight perhaps rigidly controlled punctual homorhythmic minimal music and the very relaxed malleable associations found in some electroacoustic musicrdquo (SMALLEY 1997 p 118)
83
outro eacute composto pela soma dos dois O fluxo forte eacute sincronizado com a parte do computador
e juntos formam um uacutenico fluxo Os dois fluxos piano e forte apresentam uma coordenaccedilatildeo
de movimento justa na dimensatildeo vertical e se intercalam subitamente numa passagem de
movimento pressionada mas natildeo parece haver relaccedilatildeo de causalidade entre eles Tambeacutem eacute
possiacutevel observar que o fluxo forte estabelece uma instabilidade sobre o fluxo piano mais
estaacutevel (modo de relacionamento) A relaccedilatildeo entre eles neste momento eacute de conflito
A oposiccedilatildeo dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo natildeo se apresenta muito claramente Poderiacuteamos
pensar que o forte domina o fraco por causa da maior intensidade entretanto se
considerarmos sua distribuiccedilatildeo no tempo poderiacuteamos dizer que o fraco domina pois sua
duraccedilatildeo eacute maior ele tecircm predominacircncia temporal Esta incerteza analiacutetica pode manifestar
uma ambiguidade musical mas tambeacutem aponta para um fator pouco contemplado na tabela de
Smalley o desenvolvimento das relaccedilotildees no tempo Isto porque conforme a muacutesica se
desenvolve percebemos que o fluxo forte comeccedila a preponderar e domina sobre o piano
(subordinado)
84
3432 Contraponto
O que estamos sugerindo agora eacute que o fluxo em evoluccedilatildeo [evolving stream] pode ser articulado gestualmente e podemos coordenar (ou natildeo) os gestos entre as vaacuterias partes de modo a criar uma estrutura contrapontiacutestica viaacutevel91 (WISHART 1996 p 117)
A partir do paradigma do continuum sonoro e atraveacutes do gesto (ver 331 e 332)
Wishart desenvolve sua teoria de contraponto Para o autor natildeo eacute suficiente apenas um
nuacutemero de fluxos sonoros Devemos perceber que haacute uma relaccedilatildeo de um com o outro ou que
eles interagem de alguma maneira durante o curso de do seu desenvolvimento individual No
contraponto baseado na rede isso envolve o ldquoir e virrdquo da coordenaccedilatildeo riacutetmica e da
consonacircncia harmocircnica na relaccedilatildeo entre as partes
Para se atingir uma estrutura contrapontiacutestica Wishart argumenta ser necessaacuterio dois
princiacutepios (1) um princiacutepio arquitetural que oferece pontos de referecircncia na progressatildeo
global do material musical Na muacutesica tonal isso corresponde agrave estrutura das tonalidades (o
retorno agrave tocircnica por exemplo eacute normalmente um marco) No continuum este princiacutepio
arquitetural seraacute o conceito de transformaccedilatildeo de uma aacuterea tiacutembrica ou sonoro-morfoloacutegica
em outra Podemos nos lembrar da fala de Varegravese ldquoO papel da cor ou timbre seraacute
completamente modificado [] ele se tornaraacute um agente de delineamento como as diferentes
cores num mapa separando diferentes aacutereas e uma parte integral da formardquo (VARESE apud
SIMMS 1996 p 112)
(2) Uma estrutura contrapontiacutestica tambeacutem precisa ter um princiacutepio dinacircmico que
determina a natureza do movimento No contraponto tonal isto estaacute relacionado ao ldquoir e virrdquo
(ebb and flow ) da coordenaccedilatildeo riacutetmica e ao ldquoir e virrdquo da consonacircncia-dissonacircncia harmocircnica
ou seja estaacute relacionado agrave maneira em que as notas numa parte individual estatildeo colocadas em
relaccedilatildeo agrave notas em outras partes No contraponto no continuum no lugar da consonacircncia-
dissonacircncia na progressatildeo harmocircnica Wishart propotildee a ideia de evoluccedilatildeo gestual e a
interaccedilatildeo entre os fluxos distintos
Estas duas dimensotildees (1 e 2) devem ser independentes uma da outra de acordo com o
autor O princiacutepio dinacircmico natildeo pode ser implicado pelo arquitetural satildeo dimensotildees
separadas
91 ldquoWhat we are now suggesting is that the evolving stream may be gesturally articulated and we may coordinate (or not) the gestures between the various parts in such a way as to create a viable contrapuntal structurerdquo (WISHART 1996 p 117)
O princiacutepio dinacircmico pode ser observado horizontalmente e verticalmente
Horizontalmente a sequecircncia de gestos numa linha particular seraacute determinada pela coerecircncia
expressiva (ou ausecircncia dela) nesta linha Isso determinaraacute
a) O tipo de gesto usado
b) A sequecircncia individual dos gestos
c) A meacutedia da atividade gestual
Na dimensatildeo vertical um paracircmetro importante eacute a taxa global de ocorrecircncia dos
gestos nas diferentes partes Evidentemente devido a nossa percepccedilatildeo se forem dois gestos
simultacircneos eles podem ser contados como um Ainda podemos considerar dentro de um
periacuteodo de tempo da peccedila
a) se os gestos nas diferentes partes satildeo similares (homogecircneos) ou se satildeo heterogecircneos
b) se os gestos parecem interagir uns com os outros ou se se comportam independentes
uns dos outros
A partir destas caracteriacutesticas (a e b) se estabelecem seis arqueacutetipos para a organizaccedilatildeo
vertical dos gestos
1) Paralelo (natildeo tem a ver com caracteriacutestica espectral estamos falando de estrutura
gestual)
2) Semi-paralelo as partes seguem a mesma loacutegica gestual mas natildeo sincronicamente
3) Independecircncia homogecircnea as partes se comportam independentemente
4) Independecircncia heterogecircnea quando os gestos satildeo heterogecircneos tambeacutem podem ser
independentes
5) Interativo especialmente relacionado agrave ligaccedilotildees causais ou imitativas entre as partes
6) De gatilho (triggering) quando um gesto de uma parte parece iniciar um evento ou
uma mudanccedila em uma outra parte de maneira minimamente clara
85
86
QUADRO 3 - ORGANIZACcedilAtildeO VERTICAL DOS GESTOS EM RELACcedilAtildeO AO PRINCIacutePIO DINAcircMICO
independente independecircncia independecircncia
Icircsemi-
paralelismointeraccedilatildeo
interativo paralelismo gatilho
similar
(homogecircneo) -dissimilar
(heterogecircneo)
FONTE Wishart (1996 p 26)
Wishart conclui que com esta ferramenta teoacuterica em sua experiecircncia
ldquo[] foi possiacutevel esquematizar a estrutura da densidade geral dos eventos na partitura e entatildeo compor a estrutura gestual de uma seccedilatildeo usando siacutembolos elementares [] e assim trabalhando a partir do plano global de timbre e desenvolvimento articulatoacuterio colocar na partitura [score] nos detalhes de cada evento sonoro individual em cada vozrdquo (WISHART 1996 p 123 traduccedilatildeo nossa92)
Finalmente eacute relevante salientar que apesar de Wishart ter desenvolvido estas ideias a
partir da experiecircncia de notaccedilatildeo de objetos sonoros complexos ele afirma que a validaccedilatildeo
uacuteltima de qualquer procedimento musical deve ser feita atraveacutes da natildeo-mediada e natildeo
prejudicial experiecircncia de escuta ldquoUma loacutegica baseada em escutar e trabalhar com os
materiais acuacutesticos [] eacute necessaacuteria quando abordamos o multi-dimensional continuum
aberto pelo aacuteudio (Sonic) digitalrdquo (WISHART 1996 p 126 traduccedilatildeo nossa93)
3433 Interaccedilatildeo gestual
Petra Bachrataacute (2010) investiga em sua tese o tema da interaccedilatildeo gestual A autora
percorre diferentes concepccedilotildees do gesto musical para evidenciar relaccedilotildees gestuais entre sons
instrumentais e eletroacuacutesticos gesto como movimento gesto como significado ( meaning)
92 Original ldquoIt was possible to lay out the structure of the overall density of events on the score then compose the gestural structure of a section using elementary symbols [] and then working from the overall plan of timbral and articulatory development score in the details of the individual sound-events in each voicerdquo (WISHART 1996 p 123)
93 Original ldquoA rationale based on listening to and working with acoustic materials [ ] will be needed when we approach the multi-dimensional continuum opened up by digital sonicsrdquo (WISHART 1996 p 126)
87
gesto como trajetoacuteria energia-movimento gesto como articulaccedilatildeo do continuum gesto e
unidades semioacuteticas temporais gesto e figura gesto e energia e finalmente gesto e notaccedilatildeo
A partir desta fundamentaccedilatildeo teoacuterica ela identifica descreve e classifica relacionamentos
gestuais interativos definindo modelos Todos os modelos de interaccedilatildeo gestual satildeo
identificados no repertoacuterio incluindo as peccedilas da proacutepria autora O primeiro grupo de
modelos se refere agrave interaccedilatildeo gestual baseada em aspectos elementares alturafrequecircncia
organizaccedilatildeo temporal envelope de intensidade e caracteriacutesticas tiacutembricas O segundo eacute
baseado no modelo tripartite de estrutura de um som (onset-continuant-termination) O
terceiro estaacute fundamentado na teoria de Wishart (1996) de contraponto O quarto se refere agrave
interaccedilatildeo gestual baseada em caracteriacutesticas espectro-morfoloacutegicas e semacircnticas de direccedilatildeo e
energia Finalmente a autora apresenta modelos espaciais de interaccedilatildeo gestual Anexo a esta
dissertaccedilatildeo estaacute a traduccedilatildeo do apecircndice de seu trabalho (ver Anexo 1) onde sintetiza os
modelos de interaccedilatildeo Natildeo estaacute no escopo de nosso trabalho fazer um detalhamento destes
modelos Em lugar disso intentamos demonstrar a compatibilidade desta abordagem com
aquela que estamos construindo ao redor da ideia de fluxos sonoros
Bacharataacute menciona a concepccedilatildeo de fluxo (stream) quando trata da interaccedilatildeo gestual
baseada em organizaccedilatildeo temporal Isto porque nesta categoria eacute um grupo de gestos que se
relaciona com outro grupo de gestos resultando num modo de interaccedilatildeo como o sincopado o
polirriacutetmico entre outros Natildeo seria possiacutevel por exemplo identificar polirritmia observando
apenas dois eventos Nesta necessidade de observar o agrupamento dos gestos Bachrataacute
aponta para a teoria de Bregman (1990) de fluxos auditivos A ldquointeraccedilatildeo por agrupamento
texturalrdquo apresenta uma relaccedilatildeo mais estreita com esta concepccedilatildeo ldquoInteraccedilatildeo por
agrupamento textural - interaccedilatildeo de padrotildees gestuais de duraccedilatildeoritmos aleatoacuterios ou
irregulares os quais ocorrem em diferentes camadas de sons - fluxos auditivosrdquo
(BACHRATAacute 2010 p 157 traduccedilatildeo nossa94)
O objetivo de sua pesquisa diga-se alcanccedilado minuciosamente era ldquo[] analisar
diferente tipos de relaccedilotildees interativas entre gestos musicais nas muacutesicas escritas para
instrumentos e sons eletroacuacutesticos a fim de estabelecer modelos especiacuteficos de interaccedilatildeo
[]rdquo (BACHRATAacute 2010 p 15 traduccedilatildeo nossa95) Natildeo se trata assim de entender estas
interaccedilotildees entre gestos na relaccedilatildeo com o contexto nem de observar o desenvolvimento desta
94 Original ldquoInteraction by textural grouping - interaction of irregular or random rhythmsdurational gestural patterns which occur in different layers of sounds - auditory streamsrdquo (BACHRATAacute 2010 p 157)
95 Original ldquo[] to analyze different kinds of interactive relationships between musical gestures in music written for instruments and electroacoustic sounds in order to establish specific models of interaction []rdquo
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interaccedilatildeo ao longo de uma peccedila por exemplo A estas questotildees por outro lado se direciona
nossa investigaccedilatildeo Na praacutetica estas interaccedilotildees gestuais acontecem em determinados
contextos e se desenvolvem no tempo assim todos os modelos estatildeo de certa forma inseridos
numa organizaccedilatildeo temporal
Desta maneira eacute possiacutevel ver complementariedade nas abordagens Os fluxos a que
estamos nos referindo podem ser e satildeo comumente constituiacutedos de gestos Citando novamente
Wishart ldquoo fluxo em evoluccedilatildeo [evolving stream] pode ser articulado gestualmenterdquo96
(WISHART 1996 p 117) Os gestos de um interagem com gestos de outros fluxos da
mesma forma que no contraponto uma voz eacute constituiacuteda por notas que interagem com outras
notas de outras vozes A interaccedilatildeo gestual estaacute num niacutevel mais concreto mais proacuteximo da
superfiacutecie sonora analisada enquanto que fluxo eacute uma categoria mais abstrata de anaacutelise
Bachrataacute natildeo deixa de notar que seus resultados tecircm se estendido na sua produccedilatildeo
para outras instrumentaccedilotildees
A aplicaccedilatildeo de relacionamentos gestuais interativos tecircm sido generalizada natildeo apenas agraves minhas peccedilas que usam instrumentos e sons eletroacuacutesticos em combinaccedilatildeo mas tambeacutem a uma obra puramente eletroacuacutestica (acusmaacutetica) e peccedilas instrumentais sem eletrocircnicos (BACHRATAacute 2010 p 16 traduccedilatildeo nossa97)
Da mesma forma natildeo haacute propriedades intriacutensecas de um ou outro meio que impeccedilam
que estes modelos sejam aplicados em obras puramente instrumentais ou puramente
eletroacuacutesticas Esta caracteriacutestica extrapoladora dos resultados eacute recorrente em nossa leitura
As pesquisas que tecircm como tema a relaccedilatildeo instrumental-eletroacuacutestico no acircmbito sonoro-
morfoloacutegico acabam por encontrar relaccedilotildees que podem ser extrapoladas para uma relaccedilatildeo
instrumental-instrumental ou eletroacuacutestico-eletroacuacutestico Nossa leitura da Morfologia da
Interaccedilatildeo (MENEZES 2006 p 377-400) extrapolou fusatildeo e contraste para a aplicaccedilatildeo em
diferentes fluxos independentemente se instrumentais ou eletroacuacutesticos De modo
semelhante os modelos de interaccedilatildeo gestual de Bachrataacute podem ser aplicados aos diferentes
meios independentemente Isto eacute embora o iacutempeto inicial da pesquisa tenha sido investigar a
interaccedilatildeo entre sons instrumentais e eletroacuacutesticos especificamente os resultados
96 ldquoWhat we are now suggesting is that the evolving stream may be gesturally articulated and we may coordinate (or not) the gestures between the various parts in such a way as to create a viable contrapuntal structurerdquo (WISHART 1996 p 117)
97 Original ldquoThe application of interactive gestural relationships has been generalized not only to my works which use instrumental and electroacoustic sounds in combination but also to a pure electroacoustic (acousmatic) work and instrumental pieces without electronicsrdquo (BACHRATAacute 2010 p 16)
89
encontrados satildeo generalizaacuteveis Esta constataccedilatildeo sublinha a necessidade teoacuterica de uma
denominaccedilatildeo de uma terminologia para indicar os grupos de sons independentemente se
instrumentais eletroacuacutesticos ou uma mescla dos dois Fluxos vozes camadas ou planos satildeo
alternativas
35 O FLUXO VISUAL NA MUacuteSICA MISTA
No decorrer da pesquisa notamos que para a percepccedilatildeo da interaccedilatildeo era importante
considerar a visualidade da performance98 Embora para a escuta a distinccedilatildeo de mecanismo
de produccedilatildeo sonora acuacutestico-eletrocircnico natildeo seja tatildeo relevante (SOUZA 2010) ganha
importacircncia quando considerados os aspectos visuais da performance Isto porque as
vibraccedilotildees mecacircnicas nos instrumentos acuacutesticos satildeo produzidas por gestos fiacutesicos de um
performer (bater pinccedilar friccionar etc) e o som depende da relaccedilatildeo deste gesto fiacutesico com o
instrumento Por outro lado os sons produzidos nos circuitos eletrocircnicos podem ser
controlados de diferentes maneiras (potenciocircmetros mouse por algoritmos generativos etc)
e o som pode estar mais ou menos relacionado a este controle ou ainda natildeo haver controle
em tempo real consideraacutevel Neste sentido natildeo se trata apenas de uma questatildeo visual mas
estaacute em jogo um aprendizado das relaccedilotildees de accedilatildeo e resposta dos instrumentos Schrader
(1991) explica como essas relaccedilotildees satildeo apreendidas nos instrumentos acuacutesticos
A performance tradicional de muacutesica com instrumentos acuacutesticos tem se desenvolvido como uma extensatildeo da percepccedilatildeo de accedilatildeoresposta A accedilatildeo eacute percebida como visual e fiacutesica e a resposta que a acompanha eacute aural Assim algueacutem aprende que quando o percussionista bate no tiacutempano com uma baqueta resultaraacute num certo som A arte de ldquotocarrdquo um instrumento eacute aquela de criar uma seacuterie de associaccedilotildees significativas de accedilatildeoresposta O que eacute significativo eacute aprendido pela experiecircncia e os significados de uma performance instrumental acuacutestica satildeo geralmente apreendidos pelas pessoas num primeiro estaacutegio atraveacutes da experiecircncia de performances ao vivo ou filmadas (SCHRADER 1991 p 91-92 traduccedilatildeo nossa99)
98 O aspecto visual tem tambeacutem uma importacircncia para a percepccedilatildeo de processos tecnoloacutegicos envolvidos na performance O espectador-ouvinte pode inferir que accedilatildeo (visual) do performer estaacute controlando determinado som sintetizado por exemplo Embora possa haver convergecircncias este natildeo eacute o caso de nossa abordagem Estamos interessados em como o aspecto visual se relaciona com o sonoro independentemente do tipo de interaccedilatildeo tecnoloacutegica presente
99 Original ldquoThe traditional performance of music on acoustical instruments has developed as an extension of actionresponse perception The action is perceived as visual and physical and the accompanimental response is aural Thus one learns that when the percussionist strikes the tympana with a stick a certain sound will result The art of playing an instrument is that of creating a series of meaningful actionresponse associations What is meaningful is learned by experience and the meanings of acoustical instrumental performance are generally acquired by people at a very early stage through experiencing live filmed or videotaped performancesrdquo (SCHRADER 1991 p 91-92)
90
De acordo com o autor estes mecanismos de accedilatildeoresposta presentes nos instrumentos
acuacutesticos podem ser aparentes como no caso do violino ou implicados como no caso do
piano Assim poderiacuteamos ilustrar o modelo de instrumentos acuacutesticos da seguinte maneira
FIGURA 24 - MODELO DE ACcedilAtildeO-RESPOSTA DOS INSTRUMENTOS ACUacuteSTICOS
Accedilatildeo fiacutesica e visual Instrumento
FONTE o autor (2019)
Resposta aural
Na muacutesica que une instrumentos acuacutesticos com recursos eletroacuacutesticos esta
correspondecircncia newtoniana de accedilatildeo e reaccedilatildeo eacute modificada Haacute uma parte da experiecircncia
aural que natildeo eacute efeito da accedilatildeo fiacutesica e visual Essa situaccedilatildeo coloca o ouvinte-espectador numa
posiccedilatildeo de atentar para as relaccedilotildees entre accedilatildeo visual e resposta aural que podem ser
diferentes daquelas a que estaacute acostumado e que tambeacutem podem ser instaacuteveis Assim para a
muacutesica mista eacute possiacutevel esboccedilar um modelo diferente (Figura 25)
FIGURA 25 - POSSIacuteVEIS RELACcedilOtildeES CONFUSAS NA PERCEPCcedilAtildeO DE ACcedilAtildeO-RESPOSTA NO CONshyTEXTO DA MUacuteSICA MISTA
FONTE o autor (2019)
O que designei accedilatildeo invisiacutevel na figura acima se explica pelo processo de
referenciaccedilatildeo espectro-morfoloacutegica (spectromorphological referral process) da teoria de
Smalley (1997) ldquoQuando ouvimos espectromorfologias noacutes detectamos a humanidade por
traacutes delas ao deduzir atividade gestual referindo-nos atraveacutes do gesto agrave experiecircncia fisioloacutegica
e proprioceptiva em geralrdquo (p 111)100 A seta a) na figura 25 indica a possibilidade de
percebermos um som eletroacuacutestico como se tivesse sido produzido pela accedilatildeo fiacutesica e visual
do performer no instrumento A seta b) indica a possibilidade de percebermos que a resposta
100Traduccedilatildeo do autor Original ldquoWhen we hear spectromorphologies we detect the humanity behind them by deducing gestural activity referring back through gesture to proprioceptive and psychological experience in generalrdquo (SMALLEY 1997 p 111)
91
aural eletroacuacutestica parece uma variaccedilatildeo da resposta aural instrumental relaccedilatildeo comum no
emprego de processamentos do som ao vivo O quadrado gradiente indica que na percepccedilatildeo
da resposta aural natildeo eacute sempre possiacutevel uma clara distinccedilatildeo entre os meios conforme
demonstrado no subcapiacutetulo 34 A ilustraccedilatildeo apresenta apenas estas duas relaccedilotildees deixando
em aberto a possibilidade de outras
No artigo Muacutesica Eletroacuacutestica possibilidades esteacuteticas e escuta Cristina Dignart
aponta que esta situaccedilatildeo implica novos paradigmas de escuta musical ldquoO movimento gestual
instrumental sobre os sons permite um agenciamento atento ou intencional de certas
qualidades sonoras com a possibilidade de descobertas e surpresas de sonoridadesrdquo
(DIGNART 2010 p 63) Segundo a autora haacute uma ldquoreinterpretaccedilatildeo da escuta atrelada ao
gestordquo
Esta situaccedilatildeo remete agrave relaccedilatildeo interativa entre ouvinte e sons que propotildee Smalley
Segundo este autor a relaccedilatildeo interativa envolve
[] uma relaccedilatildeo ativa da parte do sujeito em explorar continuamente as qualidades e a estrutura do objeto Neste sentido pode ser vista como interativa Nenhuma expectativa preacute-formada eacute buscada pelo ouvinte A relaccedilatildeo interativa engloba a audiccedilatildeo estrutural as atitudes esteacuteticas em relaccedilatildeo agrave muacutesica e aos sons e o conceito de Schaeffer de audiccedilatildeo reduzida Eacute possiacutevel ter uma relaccedilatildeo interativa com qualquer som ainda que naturalmente alguns sons seratildeo mais frutiacuteferos do que outros (SMALLEY 2008 p 6)
Embora esta perspectiva esteja associada apenas com o som eacute possiacutevel considerar que
tal postura seja possiacutevel tambeacutem diante da relaccedilatildeo entre accedilatildeo visual e resposta aural Isto eacute o
ouvinte-espectador pode assumir uma relaccedilatildeo interativa101 natildeo apenas com os sons mas com a
performance como um todo incluindo seu aspecto fiacutesico e visual Esta postura interativa eacute
especialmente demandada desta performance que desafia o modelo de accedilatildeoresposta dos
instrumentos acuacutesticos
Tal situaccedilatildeo do ouvinte-espectador estaacute diretamente relacionada ao mencionado estado
de duacutevida (MENEZES 2006) Ao referir-se agraves suas proacuteprias realizaccedilotildees mistas Menezes
expressa
o ouvinte recai em constantes duacutevidas acerca da natureza daquilo que ouve se adveacutem do instrumento ou da emissatildeo eletroacuacutestica se se opera ao vivo uma dinamizaccedilatildeo espacial harmocircnica tiacutembrica e temporal da escritura instrumental ou
101Observe o leitor que o termo interaccedilatildeo aqui se aplica a outra relaccedilatildeo diferente daquelas diferenciadas no capiacutetulo 2 Esta relaccedilatildeo se aproxima das discussotildees sobre participaccedilatildeo do ldquoespectadorrdquo na arte em geral
92
se estaacute defronte de estruturas preacute-elaboradas em estuacutedio constituiacutedas a partir dos proacuteprios instrumentos ou a estes timbricamente correlatas (MENEZES apud MENEZES 2006 p 386)
Novamente o estado de duacutevida nesta citaccedilatildeo estaacute mais relacionado aos aspectos
sonoros poreacutem eacute evidente que podemos consideraacute-lo tambeacutem na relaccedilatildeo entre accedilatildeo visual e
resposta aural Isto porque a duacutevida em relaccedilatildeo a proveniecircncia do som pode se acentuar ou se
extinguir de acordo com o respaldo visual E ainda eacute possiacutevel que haja outros estados como o
engano por exemplo
O efeito McGurk eacute uma curiosidade sobre a percepccedilatildeo da fala que pode ilustrar o caso
do engano
O efeito McGurk ocorre quando o sinal visual de um fonema eacute dublado com um sinal acuacutestico de um fonema diferente Com pares audiovisuais especiacuteficos os observadores natildeo notam o conflito intermodal e frequentemente experienciam (ie ouvem) um fonema que natildeo corresponde ao verdadeiro sinal auditoacuterio (ALSIUS et al 2017 p 2 traduccedilatildeo nossa102)
Por exemplo se a imagem era a de algueacutem falando ldquobardquo mas dublado com o som desta
pessoa falando ldquogardquo os ouvintes poderiam ouvir ldquobardquo ou mesmo ldquobgardquo103 Natildeo eacute papel desta
pesquisa investigar o quanto tal efeito pode acontecer em relaccedilatildeo a outros tipos de percepccedilatildeo
sonora entretanto este exemplo aponta para a influecircncia que o estiacutemulo visual tem sobre a
escuta
A peccedila Three voices (1982) de Morton Feldman serve como um exemplo Esta peccedila
escrita para Joan La Barbara eacute concebida como um trio para uma voz - duas partes satildeo preacute-
gravadas (pela mesma inteacuterprete) e uma executada ao vivo As vozes apresentam materiais
semelhantes Quando acontece de coincidir ataques de uma voz preacute-gravada com a da
performance ao vivo haacute a fusatildeo104 Natildeo se trata apenas da fusatildeo de dois ou trecircs fluxos
sonoros mas da fusatildeo destes com o que denominei fluxo visual Em cerca de 7 minutos a
peccedila apresenta um momento de sincronia entre as trecircs vozes em que eacute possiacutevel observar tal
fusatildeo105 A Figura 26 apresenta a partitura referente a esta parte
102Original ldquoThe McGurk effect occurs when the visual signal of one phoneme is dubbed onto the acoustic signal of a different phoneme With specific audiovisual pairs the observers do not notice intermodal conflict and often experience (ie hear) a phoneme that does not match the actual auditory signalrdquo (ALSIUS et al 2017 p 2)
103Buscando por ldquoMcGurk effectrdquo o leitor encontraraacute viacutedeos demonstrando este efeito na internet104A fusatildeo natildeo acontece apenas pela sincronia mas por se tratarem do mesmo timbre de voz ou seja haacute
transferecircncia espectral105Confira a performance de Charlotte Mundy disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatch
v=eXGnS7bqJ8ogt Acesso em 17 jan 2019
93
FIGURA 26 - FUSAO EM THREE VOICES (1982) DE MORTON FELDMAN (COMPASSOS 15 A 18 DA PARTE B)
Voice 1
Voice 2
Voice 3
mdashJmdash mdash ampmdash M mdashB r i
=-mdashsHivl
ei
ampL = uacute
mdash 1gtJsect j j
H u mdash laquoL
bull bull IG -------amp - W ----G
mdash bull bull------
e) a ei ei
bull
t
1
t
FONTE transcrito de Feldman (compositor) (1982)
Eacute importante notar o efeito desta fusatildeo natildeo apenas na escuta mas na experiecircncia da
performance que eacute tambeacutem vista uma impressatildeo possiacutevel eacute de que a cantora estaacute produzindo
as trecircs vozes ao vivo A relaccedilatildeo entre accedilatildeo da performer e resposta aural eacute instaacutevel nesta peccedila
Por vezes pode-se perceber a relaccedilatildeo convencional movimento corporal (boca respiraccedilatildeo
etc) agindo para produzir um som vocal No entanto quando o mesmo movimento parece
produzir trecircs sons vocais haacute uma reinterpretaccedilatildeo desta relaccedilatildeo
Truax (2005) aborda a questatildeo do visual na muacutesica eletroacuacutestica e questiona sobre a
influecircncia em questatildeo
No entanto mesmo dentro do mundo da muacutesica eletroacuacutestica estamos realmente livres da influecircncia visual Falamos de formas sonoras ou espectromorfologia (Smalley) e imagens sonoras (Wishart) O timbre eacute frequentemente descrito em termos visuais ou taacuteteis e talvez mais sutilmente muitas vezes nos referimos ao ldquoespaccedilo acuacutesticordquo mais por referecircncia ao espaccedilo visual do que a uma experiecircncia aural um tanto mais elusiva daquele espaccedilo Pode-se argumentar que tais referecircncias a formas imagens e espaccedilos natildeo precisam ser entendidas como visualmente tingidas mas na praacutetica acho que elas geralmente satildeo No entanto a neuropsicologia contemporacircnea em seu estudo do comportamento cerebral fornece evidecircncia de que todos os centros perceptivos estatildeo inter-relacionados e embora os fenocircmenos puramente auditivos possam ser localizados no coacutertex auditivo conexotildees estatildeo sempre sendo feitas a outros centros (TRUAX 2005 traduccedilatildeo nossa106)
Tendo distinguido este fluxo visual na performance mista e apontado o tipo e a
importacircncia de sua relaccedilatildeo com os fluxos sonoros interessa para esta pesquisa questionar qual
o potencial analiacutetico e composicional destes conceitos No caso da anaacutelise cabe ao analista
106Original ldquoYet even within the electroacoustic music world are we truly free of the visual influence We speak of sound shapes or spectromorphology (Smalley) and sound images (Wishart) Timbre is often described in visual or tactile terms and perhaps most subtly we often refer to acoustic space more by reference to visual space than to the somewhat more elusive aural experience of that space One could argue that such references to shapes images and spaces need not be understood as visually tinged but in practice I think they often are However contemporary neuropsychology in its study of brain behaviour provides evidence that all of the perceptive centres are inter-related and even though purely auditory phenomena can be localized to the auditory cortex connections are always being made to other centresrdquo (TRUAX 2005)
94
identificar a importacircncia deste fluxo numa experiecircncia de performance para decidir consideraacute-
lo ou natildeo Para o compositor uma opccedilatildeo eacute considerar este fluxo visual apenas como um fato
inerente agrave performance de muacutesica mista ou seja ainda que esteja consciente de tal fato natildeo o
utiliza como elemento estrutural em sua composiccedilatildeo Outra opccedilatildeo eacute pensaacute-lo como um
paracircmetro estrutural com potencial de ser trabalhado criativamente composto
Esta situaccedilatildeo de performance de relaccedilotildees variaacuteveis de accedilatildeo visual e resposta aural foi
explorada criativamente por alguns compositores A peccedila Aphasia (2009) para vocalista ou
ator (usando liacutengua de sinais) com tape de Mark Applebaum explora as possibilidades destas
relaccedilotildees107 A Figura 27 apresenta um trecho da partitura
Eacute possiacutevel perceber um paradigma de dependecircncia entre os fluxos visual e sonoro um
gesto estaacute sempre associado a um som como explica o compositor
O tape uma explosatildeo idiossincraacutetica de sons deformados e mutilados eacute composto exclusivamente de amostras vocais - todas cantadas por Isherwood e subsequentemente transformadas digitalmente Contra o pano de fundo desta narrativa de aacuteudio o cantor performa um elaborado conjunto de gestos de matildeo uma linguagem de sinais assiduamente coreografada Cada gesto eacute cuidadosamente sincronizado com o tape numa justa coordenaccedilatildeo riacutetmica (APPELBAUM traduccedilatildeo nossa108)
Podemos inferir que estes conceitos (relaccedilatildeo entre accedilatildeo visual e resposta aural fluxo
sonoro e visual) natildeo se apliquem apenas agrave performance de muacutesica mista mas tambeacutem a
107Confira a performance do proacuteprio compositor disponiacutevel em lthttpwebstanfordedu~applemkportfolio- works-aphasiahtmlgt
108Original ldquoThe tape an idiosyncratic explosion of warped and mangled sounds is made up exclusively of vocal samplesmdashall sung by Isherwood and subsequently transformed digitally Against the backdrop of this audio narrative the singer performs an elaborate set of hand gestures an assiduously choreographed sign language of sorts Each gesture is fastidiously synchronized to the tape in tight rhythmic coordinationrdquo (APPELBAUM)
95
outros gecircneros que fazem uso de som em conjunto com imagem (viacutedeo-arte performance
teatro baleacute etc) Barry Truax comenta seu trabalho de mixed media em colaboraccedilatildeo com o
artista visual e compositor Theo Goldberg
Uma vez que Theo Goldberg tinha familiaridade tanto com artes visuais quanto com muacutesica e tinha pensado muito sobre sua possiacutevel correlaccedilatildeo (Goldberg amp Schrack1986) seu conselho a mim quando comeccedilou a colaboraccedilatildeo foi tratar os doiselementos como independentes ainda que derivados de uma ideia comum Tomei isso como significando que uma correlaccedilatildeo direta era desnecessaacuteria e que cada meio deveria se desenvolver de acordo com sua proacutepria loacutegica mas serem informados por uma ideia comum que era central ao trabalho O equiliacutebrio entre liberdade para cada meio mas coerecircncia entre eles sempre pareceu funcionar em cada colaboraccedilatildeo que empreendemos (TRUAX 2005 traduccedilatildeo nossa)109
Este paradigma pode ser descrito como independecircncia com coerecircncia Um paradigma
de relaccedilatildeo estaacutevel O argumento em questatildeo eacute de que ldquocada meio possui sua proacutepria loacutegicardquo e
por isso devem se manter independentes Entretanto podemos questionar se estes meios
realmente possuem loacutegicas distintas Para cada gecircnero (viacutedeo-arte cinema performance e
outros) teriacuteamos uma resposta e natildeo eacute nosso objetivo investigaacute-las precisamente Entretanto
podemos pontuar que mais do que inerecircncias dos meios o que eacute definitivo para tal
posicionamento relativo agrave relaccedilatildeo entre sonoro e visual eacute a decisatildeo esteacutetica do criador
Aphasia de Applebaum apresenta uma dependecircncia completa o trabalho de Truax e Goldberg
independecircncia com coerecircncia Aleacutem disso podemos pensar que este paradigma na relaccedilatildeo
entre sonoro e visual pode ser variaacutevel constituindo assim um paracircmetro passiacutevel de
transformaccedilotildees durante a peccedila Eacute o caso de Strange Autumn (2003-4) de Steven Kazuo
Takazugi que eacute analisada em 42
Em seu texto Why Theater or A Series o f Uninvited Guests (2016) Takasugi
demonstra que a ideia de teatro110 perpassa a muacutesica eletroacuacutestica desde aquela feita para
fones-de-ouvidos (gecircnero a que se dedicou por deacutecadas) ateacute aquela que inclui o inteacuterprete e
seu instrumento no palco
Primeiramente haacute um teatro imaginado cranial daquelas muacutesicas feitas para serem
ouvidas em fones-de-ouvido O autor explica
109OriginaL Since Theo Goldberg was familiar with both the visual arts and music and had thought a great dealabout their possible correlation (Goldberg amp Schrack 1986) his advice to me when we started collaborating was to treat the two elements as independent yet derived from a common idea I took this to mean that direct correlation was unnecessary and that each medium should develop according to its own logic but be informed by a common idea that was central to the work The balance between freedom for each medium but coherence between them always seemed to work in each collaboration we undertook (TRUAX 2005)
110Natildeo se refere ao gecircnero artiacutestico mas ao espaccedilo de apresentaccedilotildees
96
Pois somente nas profundezas mais escuras do espaccedilo projetado e imaginado os sons recuperam uma re-encarnaccedilatildeo quase visual como objetos fiacutesicos que entatildeo executam uma danccedila impossiacutevel em um salatildeo inexplicaacutevel e cranial e assim tornam- se suficientemente provocativos para incitar a imaginaccedilatildeo a criar ao lado real uma casa de espelhos um teatro imaginado (TAKASUGI 2016 natildeo paginado traduccedilatildeo nossa111)
Num outro estaacutegio trocando os fones individuais por alto-falantes comunitaacuterios temos
o teatro fiacutesico Como os alto-falantes natildeo satildeo performers visualmente atrativos baixa-se a
intensidade da luz numa espeacutecie de ldquodesculpas pela ausecircncia do visualrdquo (TAKASUGI 2016)
os alto-falantes desaparecem e o ouvinte eacute novamente deixado agrave sua proacutepria imaginaccedilatildeo
Um passo aleacutem e acompanhando o concerto eletroacuacutestico temos um instrumento no
palco um piano por exemplo Por momentos ele pode servir de referecircncia para os sons
ouvidos
O que eacute isso O instrumento fiacutesico como representaccedilatildeo conceitual Mas se algueacutem - mesmo que por breves instantes - assuma que os sons que ouve foram extraiacutedos do instrumento verdadeiro e factual em si natildeo eacute esse o momento de intrusatildeo de outro ldquohoacutespede natildeo convidadordquo Um impostor de tipos alegando sons que natildeo produziu E como ainda natildeo haacute agente humano nesse ato imaginado o instrumento como objeto assume um ar misterioso de presenccedila esteacutetica importacircncia significado (TAKASUGI 2016 traduccedilatildeo nossa112)
Mais um passo e temos o performer sentado ao piano mas ele natildeo toca nada enquanto
isso a muacutesica eletroacuacutestica eacute executada Seria o verdadeiro ator-impostor Neste caso ldquo []
com a presenccedila de um ser humano no palco o ritual de concertos ao vivo com toda a sua
etiqueta e deferecircncia a um inteacuterprete se materializou O teatro de um tipo exterior renasce
[]rdquo (TAKASUGI 2016 traduccedilatildeo nossa113)
Ainda um passo aleacutem e temos o performer que tocaraacute o piano Entretanto esta
bifurcaccedilatildeo inerente agrave junccedilatildeo de sons ao vivo e sons preacute-gravados carrega a possibilidade de o
performer ldquonatildeo tocar embora fingir tocarrdquo causando uma espeacutecie de efeito de
111 Original ldquoFor only in the darkest depths of ones projected imagined space did sounds regain a near visual re-embodiment as physical objects that then perform an impossible dance in an inexplicable cranial hall and thereby become sufficiently provocative to prompt the imagination to create alongside the real a house of mirrors an imagined theaterrdquo (TAKASUGI 2016)
112 Original ldquoWhat is it The physical instrument as conceptual representation But then if onemdasheven for the briefest of momentsmdashassumes that the sounds one hears as elicited from the true factual instrument itself is that not the moment of intrusion of yet another uninvited guest An imposter of sorts claiming sounds that it has not produced And as there is still no human agent in this imagined act the instrument as object takes on a mysterious air of aesthetic presence importance meaningrdquo (TAKASUGI 2016)
113 Original ldquo[] with the presence of a human on stage the live concert ritual with all its etiquette and deference to a performer has rematerialized Theater of an exterior type is reborn []rdquo (TAKASUGI 2016)
97
ventriloquismo e uma confusatildeo de ldquoquem estaacute fazendo o querdquo Assim o autor registra ldquoO
teatro eacute uma orquestraccedilatildeo alternativamente uma heterofonia que se projetou explicitamente
no domiacutenio visualrdquo (TAKASUGI 2016 traduccedilatildeo nossa114)
Assim esta dissociaccedilatildeo da produccedilatildeo fiacutesica da muacutesica em relaccedilatildeo ao todo que soa se daacute
em graus variados imaginaccedilatildeo instrumento performer gesto fiacutesico Desta forma os artefatos
visuais antes presumidos da produccedilatildeo musical e que eram perifeacutericos a ela (viradas de
paacuteginas por exemplo) satildeo incluiacutedos
Consequentemente se a produccedilatildeo fiacutesica da muacutesica e seu labor foram dissociados em graus variados do todo que soa os artefatos gestuais outrora presumidos da produccedilatildeo musical - outrora estranhos ao empreendimento de fazer muacutesica - se levantam em revolta para se juntar ao jogo inflado do fato e ficccedilatildeo a interaccedilatildeo da verdade e da fraude Viradas de paacutegina olhares de deixas tempo batido com o peacute o cacircmbio de instrumentos duplicados o silenciar dos instrumentos o agradecimento do puacuteblico todos estes satildeo colocados em primeiro plano ensaiados estilizados atuados
E entatildeo o que a camada da performance ao vivo e do teatro contribui para aquele ldquopedaccedilo de fitardquo agora enterrado115 de amostras digitais se o equiliacutebrio entre as camadas cria uma confusatildeo implacaacutevel Ela ajuda a camada da ldquomuacutesica mortardquo a permanecer enterrada como uma percepccedilatildeo subconsciente mesmo que esteja soando sozinha em longas passagens Por isso permite um desvio dos olhos - os olhos internos propiciaram sua suspensatildeo da descrenccedila necessaacuteria a qualquer ficccedilatildeo - ao mesmo tempo em que os olhos fiacutesicos estatildeo bem abertos horrorizados com o que vecircem no palco Isso permite ao espectaacuteculo a sua sombra o seu efeito alienante Eacute assim que aquela presenccedila sombria como o uacuteltimo ldquoconvidado natildeo convidadordquo (agora ldquofantasmardquo) encontra acesso atraveacutes de uma porta dos fundos por assim dizer encontrada de surpresa No final haacute e natildeo haacute o playback Ele desaparece para se tornar mais uma presenccedila despercebida parte das paredes do local uma cortina ou uma porta vista mas natildeo observada
O teatro eacute um truque de maacutegica Eacute a distraccedilatildeo pela qual os mortos se levantam de maneira encoberta pungente desconhecida ou apenas vagamente sentida entre o ao vivo os vivos (TAKASUGI 2016 traduccedilatildeo nossa116)
114 Original ldquoTheater is an orchestration alternatively a heterophony which has projected itself explicitly into the visual domainrdquo (TAKASUGI 2016)
115 O autor brinca com a ideia de live e dead se os sons ao vivo satildeo considerados vivos (live) os sons preacute- gravados poderiam ser chamados de mortos (dead)
116 Original ldquoConsequently if musics physical production and its labor have been decoupled to varying degrees from the sounding whole the once-presumed gestural artifacts of musical production - previously extraneous to the enterprise of music making - rise up in revolt to join the inflated game of fact and fiction the interplay of truth and fraud Page turns cued glances time beat with the foot the exchange of doubling instruments the muting of instruments the acknowledgment of the audience all these become foregrounded rehearsed stylizedacted
And so what does the layering of live performance and theater accomplish for that now buried tape piece of digital samples if the balance among the layers creates a ruthless confusion It aids the layer of the dead music to remain buried as a subconscious perception even if it is sounding alone in long passages It therefore allows for an averting of the eyes - the inward eyes afforded their suspension of disbelief requisite of any fiction - at the same time when the actual physical eyes are wide aglare aghast by what they see on stage It allows the spectacle its shadow its alienation-effect It is how that shadowy presenceas the last uninvited guest (now ghost)finds access through a backdoor as it were met unawares In the end there is and there isnt the playback track It fades away to become yet another unnoticed presence part of the venues walls or a curtain or a doorseen but not watched
98
Diante deste texto eacute possiacutevel reter as seguintes ideias a ldquoconfusatildeo implacaacutevelrdquo se
apresenta natildeo apenas no reconhecimento da fonte sonora pela escuta mas na relaccedilatildeo entre
accedilatildeo visual e resposta aural artefatos antes perifeacutericos agrave performance como as viradas de
paacuteginas satildeo incluiacutedos como elementos relevantes da performance (justamente por causa da
relevacircncia da accedilatildeo visual) que os recorrentes sons do instrumento duplicados na parte
eletroacuacutestica possibilitam agrave confusatildeo adquirir um caraacuteter veridictoacuterio ldquodo fato e da ficccedilatildeo a
interaccedilatildeo da verdade e da frauderdquo
Para elucidar as relaccedilotildees deste uacuteltimo aspecto propomos articular a oposiccedilatildeo ser-
parecer instrumental117 Localizamos o instrumento presente no palco como central natildeo por
ser mais importante mas sim porque eacute em relaccedilatildeo ao som conhecido do instrumento cuja
performance eacute vista que podemos julgar por comparaccedilatildeo os outros Assim em relaccedilatildeo ao
som conhecido do instrumento as seguintes possibilidades podem ser esboccediladas
a) parece e eacute instrumental situaccedilatildeo comum em que percebemos a relaccedilatildeo entre accedilatildeo
visual de um performer em seu instrumento e ouvimos um resultado aural
correspondente
b) parece instrumental mas natildeo eacute situaccedilatildeo em que sons projetados pelos alto-falantes
satildeo semelhantes ou idecircnticos aos instrumentais mas natildeo tiveram sua origem no
instrumento ao vivo embora uma accedilatildeo visual possa induzir tal pensamento
c) natildeo parece nem eacute instrumental situaccedilatildeo em que sons eletroacuacutesticos satildeo distintos dos
instrumentais e haacute uma total discrepacircncia entre accedilatildeo visual e resultado aural (por
exemplo na mencionada Aphasia os sons nunca satildeo os da matildeo do performer)
d) eacute mas natildeo parece instrumental situaccedilatildeo que utiliza sons instrumentais incomuns
(algumas teacutecnicas estendidas por exemplo)
Entretanto como mencionado o ouvinte-espectador pode estar num estado de duacutevida
em que soacute percebe a aparecircncia e natildeo pode dizer ou natildeo tem interesse em dizer o que eacute e o
que natildeo eacute Aleacutem disso podemos lembrar do argumento de Emmerson (2013) o que ouvimos
eacute o efeito e a relaccedilatildeo causal eacute secundaacuteria natildeo eacute essencial para apreciar o conteuacutedo expressivo
da muacutesica (ver p 37)
Theater is a sleight of hand It is the distraction by which the dead rise covertly poignantly unbeknown or only vaguely sensed among the live the livingrdquo (TAKASUGI 2016)
117 Trata-se de uma transposiccedilatildeo da categoria da veridicccedilatildeo da semioacutetica greimasiana (GREIMAS COURTEacuteS 2012 p 532) ldquoA categoria da veridicccedilatildeo apresenta-se assim como o quadro em cujo interior se exerce a atividade cognitiva de natureza epistecircmica que com o auxiacutelio de diferentes programas modais visa a atingir uma posiccedilatildeo veridictoacuteria suscetiacutevel de ser sancionada por um juiacutezo epistecircmico definitivordquo (GREIMAS COURTEacuteS 2012 p 533)
Esta postura de Emmerson parece se aplicar mais facilmente a algumas peccedilas do que a
outras O caso de Steven Takasugi eacute um exemplo de exploraccedilatildeo criativa da relaccedilatildeo causal ou
seja ela chama nossa atenccedilatildeo para esta relaccedilatildeo e ldquojogardquo com ela tornando-a importante e natildeo
secundaacuteria Em Strange Autumn (2003-4)118 para recitantevocalista percussionista e
playback eletrocircnico o compositor explora a dissociaccedilatildeo e o teatro mencionados Pode-se
perceber uma relaccedilatildeo instaacutevel entre accedilatildeo fiacutesica-visual e resposta aural e que agraves vezes causam o
efeito ventriacuteloquo Por vezes o fluxo sonoro corresponde ao que vemos o inteacuterprete fazer
mas por vezes ele finge executar o que foi preacute-gravado Por vezes a palavra que finge dizer eacute
a mesma que ouvimos preacute-gravada por vezes eacute outra Assim o fluxo visual e os fluxos
sonoros convergem e divergem dinamicamente A relaccedilatildeo entre accedilatildeo fiacutesica e visual e sua
resposta aural eacute usada assim como um paracircmetro composicional explorado dentro deste
teatro
Ainda eacute preciso considerar que a exploraccedilatildeo de tais possibilidades se daacute normalmente
no encontro com outras aacutereas artiacutesticas como a performance a danccedila o teatro e o cinema Tal
interdisciplinaridade natildeo estaacute no escopo deste trabalho mas o leitor interessado acharaacute
subsiacutedios teoacutericos e praacuteticos nestas praacuteticas e em outras jaacute mescladas como por exemplo o
teatro musical
Este sub-capiacutetulo trata da emancipaccedilatildeo do aspecto visual Ele sempre existe ldquocoladordquo
ao som percute-se (por exemplo) para ouvir determinado som A imagem de algueacutem
percutindo e o som resultante estatildeo sempre estreitamente relacionados O que acontece na
muacutesica mista eacute um descolamento destes dois aspectos (visualidade e sonoridade) que eacute
inerente a ela Toda a muacutesica mista apresenta em maior ou menor grau este descolamento Isto
permite que se considere este aspecto visual um elemento da textura um fluxo visual
36 TEXTURA NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
Na muacutesica instrumental especialmente do periacuteodo da praacutetica comum como
apresentado em 31 textura se refere aos componentes que soam compreende um aspecto
quantitativo (quantos componentes soam em concorrecircncia) e um qualitativo (interaccedilotildees inter-
relaccedilotildees e outros fatores de seus componentes) (BERRY 1987 184) No verbete textura do
118 Confira a performance de Mark Knoop Serge Vuille e Newton Armstrong disponiacutevel em lthttpsyoutube1y_kunv2kUogt Acesso em 17 jan 2019
99
100
EARS Rob Weale (2005) explica a noccedilatildeo na muacutesica instrumental e na muacutesica eletroacuacutestica
No seu sentido mais geral o termo eacute frequentemente usado de um modo altamente inconsistente Eacute de muitas maneiras usado para descrever recursos instrumentais e vocais utilizados sinocircnimos de timbre e sonoridade densidade vertical e construccedilatildeo de vozes e partes espaccedilamento de intervalos dentro de acordes e a natureza monofocircnica homofocircnica heterofocircnica polifocircnica e construccedilotildees musicais contrapontiacutesticas
Na muacutesica eletroacuacutestica eacute um termo altamente uacutetil na descriccedilatildeo do caraacuteter de sons e vaacuterios niacuteveis estruturais de sequecircncias de sons em termos de seu comportamento geral e detalhes e padrotildees internos119
Podemos questionar tal inconsistecircncia apontada por Weale na utilizaccedilatildeo do termo ldquono
seu sentido mais geralrdquo O fato de o termo abarcar coisas distintas e variadas natildeo
necessariamente signifique uma inconsistecircncia no seu uso De fato textura envolve todos os
aspectos apontados entretanto isso natildeo significa que seu uso eacute inconsistente e sim que
textura eacute uma questatildeo complexa Isto eacute estamos tratando de complexidades simultaneidades
e ambiguidades Eacute preciso um esforccedilo teoacuterico para tranccedilar esta textura com tantos aspectos e
ainda outros se somarmos os eletroacuacutesticos
A fim de lidar com este espaccedilo teoacuterico no acircmbito deste trabalho articulamos as
categorias de macro e microtextura (ver 31) A concepccedilatildeo de textura na muacutesica
eletroacuacutestica apresentada por Weale assemelha-se ao que denominamos microtextura -
iniciativas texturais a partir do pontilhismo de Webern ateacute as massas de Ligeti e Penderecki
(ver 314)
Em nosso levantamento bibliograacutefico natildeo encontramos menccedilatildeo quando tratando da
muacutesica eletroacuacutestica ao que chamamos macrotextura Entretanto quando nesta pesquisa
nos deparamos com a questatildeo da interaccedilatildeo na muacutesica mista (considerando apenas as questotildees
sonoro-morfoloacutegicas) eacute exatamente com esta ideia que lidamos Berry (1987 p 189) enfatiza
que ldquomudanccedilas na textura - certamente mudanccedilas quantitativas mas tambeacutem aquelas
envolvendo qualidades da textura - estatildeo frequentemente entre o que eacute mais prontamente
perceptiacutevel e apreciaacutevel na experiecircncia da muacutesicardquo120 Entendemos que o mesmo acontece na
119 Traduccedilatildeo nossa Original ldquoIn its most general musical sense the term is frequently used in a highly inconsistent fashion It is variously used to describe vocal and instrumental resources employed synonymous with timbre and sonority vertical density and construction of voices and parts interval spacing within chords and the nature of monophonic homophonic heterophonic polyphonic and contrapuntal musical constructions In electroacoustic music texture is a highly useful term in describing the character of sounds and various structural levels of sequences of sounds in terms of their overall behaviour and internal details and patterningsrdquo (WEALE 2005)
120 Traduccedilatildeo nossa Original ldquoChanges in texture-surely quantitative changes but those involving textural qualities as well-are often among the most readily perceptible and appreciable in the experience of musicrdquo
101
muacutesica mista ou mesmo na muacutesica puramente eletroacuacutestica Tendo em vista o levantamento
feito neste capiacutetulo uma recuperaccedilatildeo desta concepccedilatildeo de textura - numa dimensatildeo macro -
parece ser importante para a teoria da muacutesica eletroacuacutestica em geral
Aleacutem disso durante a pesquisa nos deparamos com a importacircncia do aspecto visual
para a percepccedilatildeo da performance da muacutesica mista Esta importacircncia eacute tamanha que alguns
compositores consideram este aspecto mais que apenas uma inerecircncia ou um ldquoparasitardquo da
performance mas o incorporam como um elemento da textura Assim eacute possiacutevel falarmos de
um fluxo visual na textura da muacutesica mista (ver 35)
A macrotextura da muacutesica eletroacuacutestica mista seria assim constituiacuteda por seus
componentes sonoros e visuais sejam melhor descritos por vozes sonoridades camadas
fluxos ou planos121 e ainda por seus (sub)componentes gestos microtexturas linhas gratildeos
eventos etc Permanece ainda a importacircncia da quantidade dos componentes e da qualidade
de sua relaccedilatildeo Quanto agrave quantidade os mesmos recursos de Berry (1987) poderiam ser
usados
a) Os fluxos satildeo representados com uma sequecircncia horizontal de nuacutemeros que indicam a
quantidade dos componentes de cada fluxo (ver Figura 8)
b) Uma curva indica em seu eixo vertical a quantidade de fluxos ao longo do tempo (ver
uacuteltima curva da Figura 8)
Quanto agrave qualidade nosso trabalho apontou os recursos teoacutericos do comportamento
contraponto e interaccedilatildeo gestual (343) Resumidamente
a) O comportamento (SMALLEY 1997) possibilita a articulaccedilatildeo de dois pares de
oposiccedilatildeo dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo e conflito-coexistecircncia que se manifestam em
modos de relacionamento como por exemplo inatividade-atividade Os fluxos podem
apresentar relaccedilotildees de causalidade Esta abordagem descritiva foca sobretudo no
significado das relaccedilotildees122
a) Uma estrutura contrapontiacutestica (WISHART 1996) necessita um princiacutepio arquitetural
e um princiacutepio dinacircmico O primeiro constitui-se de aacutereas sonoro-morfoloacutegicas o
segundo tem um aspecto horizontal e outro de organizaccedilatildeo vertical dos gestos
presentes nos fluxos Este uacuteltimo pode ser vizualisado em dois eixos homogecircneo-
(BERRY 1987 p 189)121 Para facilitar a exposiccedilatildeo das ideias tomaremos fluxo como um termo padratildeo embora dependendo do caso
a estrutura possa ser melhor descrita por algumas das alternativas apontadas122 Haacute inclusive relaccedilatildeo com estudos da significaccedilatildeo as oposiccedilotildees baacutesicas (domiacutenio-subordinaccedilatildeo por
exemplo) estatildeo presentes na articulaccedilatildeo do niacutevel fundamental do percurso gerativo do sentido (GREIMAS 2012 p 474-475)
heterogecircneo e interativo-independente (ver Quadro 3)
a) Os modelos de interaccedilatildeo de Bachrataacute (2010) possibilitam a identificaccedilatildeo de interaccedilotildees
gestuais classificadas de acordo com concepccedilotildees diferentes de gesto
Eacute interessante notar como no decorrer do texto passamos a utilizar a palavra relaccedilatildeo
mais do que interaccedilatildeo Isto se deve ao fato de que interaccedilatildeo como apontam diversos
dicionaacuterios pressupotildee uma reciprocidade Esta accedilatildeo reciacuteproca nem sempre se estabelece
ainda que possamos falar que haja algum tipo de relaccedilatildeo Referindo-nos a vozes e textura
falamos de interaccedilatildeo inter-relaccedilatildeo e outras descriccedilotildees qualitativas tratando de sonoridades
falamos em relaccedilotildees de interdependecircncia tratando de fluxos sonoros utilizamos o conceito de
comportamento123 (SMALLEY 2008) contraponto (WISHART 1996) e interaccedilatildeo gestual
(BACHRATAacute 2010) Os dois primeiros apresentam recursos para tratar de maior ou menor
interaccedilatildeo Para Wishart por exemplo interaccedilatildeo eacute um dos modos com que os fluxos podem se
relacionar na dimensatildeo vertical
A Figura 28 condensa nossa abordagem a fim de ilustrar as possibilidades da
macrotextura na muacutesica eletroacuacutestica mista
Como um adendo cabe salientar a importacircncia das mudanccedilas de textura para a
delimitaccedilatildeo da forma Sem adentrar a discussatildeo deste termo consideremos genericamente os
aspectos formais como aqueles relativos agrave estrutura de seccedilotildees ou ao percurso por diferentes
momentos de uma peccedila Mudanccedilas texturais podem evidenciar estes diferentes momentos
Algumas implicaccedilotildees formais do estudo da textura ficaratildeo evidentes em nossas anaacutelises
(capiacutetulo 4) e nas experiecircncias composicionais (capiacutetulo 5)
102
123 Novamente os conceitos desenvolvidos por Smalley (1997) satildeo aplicaacuteveis agrave quaisquer niacuteveis estruturais O autor salienta que ldquoencontrar o niacutevel ou dimensatildeo temporal lsquocertarsquo para aplicar os atributos destes conceitos deve permanecer sendo uma decisatildeo do perceptor [perceiver]rdquo (p 114 traduccedilatildeo nossa) Em nossa abordagem aplicamos sobre a ideia de fluxo sonoro
103
FIGURA 28 - ILUSTRACcedilAtildeO DE POSSIacuteVEIS COMPONENTES DA MACROTEXTURA DA MUacuteSICA ELE-
TROACUacute STIC A MISTA
P l a n o s
1TC a m a d a s
ITF l u x o s
I IcircV o z e s
^ - J J7b T H m r rffx R lt RaacutepidoS o n o n d a d e s
ITFluxo visual
C o m p o n e n t e s
Cada uma destas categorias aleacutem de ser formadacomposta por eventos gestos gratildeos notas etc pode ser formada por microtexturas ( SljjpEacute ) exceto a voz
Uacute gt Q T T R e l a ccedil otilde e s
bull de comportamento (SMALLEY 1996 2008)bull contrapontiacutesticas (WISHART 1996)bull de interaccedilatildeo gestual (BACHRATAacute 2010)
FONTE o autor (2019)
104
4 DISCUSSAtildeO E ANAacuteLISES
Direcionados por estas reflexotildees teoacutericas analisaremos trechos de trecircs peccedilas mistas
Estas foram escolhidas visando uma representaccedilatildeo das teacutecnicas de instrumento(s) e sons
eletrocircnicos fixados em suporte instrumento(s) e eletrocircnica em tempo real (live electronics)
instrumento(s) e sistema interativo abordadas no capiacutetulo 21 Esta representatividade natildeo
tem como motivaccedilatildeo evidenciar diferenccedilas na configuraccedilatildeo e desenvolvimento de fluxos
sonoros pelo contraacuterio como apresentado em 23 pensamos que as questotildees sonoro-
morfoloacutegicas devem ser tomadas independentemente da teacutecnicatecnologia envolvida Assim
a escolha de peccedilas de diferentes teacutecnicas tem a funccedilatildeo de evidenciar que o pensamento
musical discutido pode ser aplicado em todas elas As anaacutelises tecircm como objetivos destacar a
presenccedila de fluxos distintos a maneira como se relacionam uns com os outros e a importacircncia
formal destas relaccedilotildees
Devido agrave proacutepria ldquoliquidezrdquo tanto das metaacuteforas utilizadas quanto dos proacuteprios
elementos musicais a potencialidade de ambiguidades e muacuteltiplas interpretaccedilotildees eacute expandida
Portanto natildeo se tratam de explicaccedilotildees fechadas das peccedilas mas de olhares e perspectivas que
podem ser uacuteteis para o entendimento geral da muacutesica mista tanto na atividade teoacuterica e
analiacutetica quanto composicional
41 DESINTEGRATIONS DE TRISTAN MURAIL
Desintegrations (1982-3) comissionada pelo IRCAM e primeiramente executada pelo
Ensemble InterContemporain em 1983 foi escrita para 17 instrumentos e sons sintetizados
por computador fixados em suporte Do ponto de vista da relaccedilatildeo com a tecnologia o regente
eacute o performer que assume a tarefa de sincronia com a parte eletrocircnica preacute-elaborada Murail
utiliza uma faixa de cliques que o regente deve ouvir atraveacutes de fones-de-ouvido abertos124 O
compositor salienta que a parte fixa ldquodeve estar em perfeita sincronizaccedilatildeo daiacute a necessidade
de lsquocliquesrsquo sincronizadores que o regente deve seguirrdquo125 (p 6) Os cliques satildeo usados apenas
em momentos estrateacutegicos especialmente no comeccedilo de cada seccedilatildeo Considerando a
classificaccedilatildeo de Ding (apud SCHULZ 2010 p 27-29) (ver 211) a peccedila apresenta uma
124 Os fones-de-ouvido abertos natildeo isolam os sons externos neste caso os sons instrumentais e eletrocircnicos que o regente precisa ouvir
125 Original ldquoIt should be in perfect synchronization hence the necessity of synchronisings ldquoclicksrdquo that the conductor must followrdquo (MURAIL 2004 p 6)
105
sincronizaccedilatildeo estrita a partir de meacutetrica fixa ou seja a sincronia acontece por uma escrita
riacutetmica precisa tanto dos eventos instrumentais quanto eletroacuacutesticos No que se refere agrave
relaccedilatildeo com a tecnologia na performance uma anaacutelise da ldquointeraccedilatildeordquo com os sons fixados
poderia abordar questotildees mais pontuais de sincronia (deixas presentes nos sons eletrocircnicos
por exemplo) questotildees de equiliacutebrio de intensidade entre instrumentos e eletrocircnicos entre
outras Nossa anaacutelise por outro lado se direciona agraves relaccedilotildees sonoro-morfoloacutegicas e busca
identificar na peccedila alguns aspectos jaacute abordados no capiacutetulo 3 o sintagma (GUIGUE 2011) o
princiacutepio arquitetural (WISHART 1996) a divisatildeo dos fluxos entre outros
No texto introdutoacuterio da partitura o compositor indica que todo o material usado tem
origem em anaacutelises decomposiccedilotildees e reconstruccedilotildees de espectros harmocircnicos ou inarmocircnicos
(MURAIL 2004 p 6) Estes espectros satildeo em sua maioria de sons graves do piano de
instrumentos da famiacutelia dos metais e de violoncelo Alguns dos procedimentos espectrais satildeo
explicitados
- fracionamento apenas uma regiatildeo de um espectro eacute utilizada (por exemplo os sons de sino no comeccedilo obtidos pelo fracionamento de sons de piano)- filtragem certos elementos componentes satildeo exagerados ou suprimidos- exploraccedilatildeo espectral movimento no interior de um som os elementos que o compotildeem satildeo ouvidos um apoacutes o outro o timbre se torna melodia (por exemplo a terceira seccedilatildeo sons de sinos pequenos surgem a partir de uma desintegraccedilatildeo dos timbres da clarineta e da flauta)- criaccedilatildeo de espectro inarmocircnico Aqueles que satildeo lineares satildeo feitos adicionando-se ou subtraindo-se frequecircncias (por uma analogia com a modulaccedilatildeo por anel ou de frequecircncia) os lsquonatildeo-linearesrsquo satildeo feitos pelo remodelamento [twisting] de um espectro ou pela descriccedilatildeo de um curva de frequecircncia (por exemplo a penuacuteltima seccedilatildeo - um remodelamento gradual de um som grave de trombone) (MURAIL 2004 p 6 traduccedilatildeo nossa126)
Estes procedimentos satildeo aplicados tanto na parte instrumental quanto na parte
eletrocircnica O compositor explica em poucas frases o tipo de relaccedilatildeo entre estes meios
126 Original ldquo Several types of spectrum treatment are used in this piece- fractioning one region only of a spectrum is used (eg bells sound at the beginning obtained by fractioning piano sounds)- filterings certain component elements are exaggerated or toned down- spectral exploration movement within a sound the component elements are heard one after the other the timbre becoming melody (eg 3rd section - sounds of small bells arising from the disintegration of clarinet and flute timbres)- creation of inharmonic spectra Thos that are linear are made by adding or substracting frequencies (by analogy with ring or frequency modulation) the lsquonon-linearrsquo are made by twisting a spectrum or by describing a frequency curve (eg penultimate section - the gradual twisting of a low trombone sound)rdquo (MURAIL 2004 p 6)
106
Haacute portanto uma origem comum para ambos tape e instrumentos sendo sua relaccedilatildeo uma de complementariedade Frequentemente o tape exagera o caraacuteter dos instrumentos difrata ou desintegra seu timbre ou amplifica os efeitos orquestrais127 (MURAIL 2004 p 6)
Esta origem comum e a consequente relaccedilatildeo de complementariedade apontam para
uma tendecircncia de que os fluxos se componham pela soma por uma relativa fusatildeo dos meios
instrumental e eletrocircnico De fato este eacute o paradigma mais presente na peccedila Entretanto isto
natildeo significa que natildeo se apresentem muacuteltiplos fluxos cuja interaccedilatildeo possa ser analisada
apenas que preponderantemente estes fluxos satildeo compostos por sons instrumentais e
eletrocircnicos em conjunccedilatildeo
O computador natildeo tenta entretanto qualquer simulaccedilatildeo direta dos instrumentos em questatildeo Antes eacute uma questatildeo de usar certos espectros como analogias estruturais para todo o conteuacutedo de alturas da obra (seja nos instrumentos ou na fita) e tambeacutem para gerar suas formas de grande escala Isso garante que os sons do computador e os que estatildeo na fita tenham uma unidade comum que garante que eles mantenham uma unidade orgacircnica audiacutevel um com o outro - de fato o grau com que os sons gravados e instrumentais se fundem durante o trabalho eacute incomumente consistente tendo em vista a tecnologia de seu tempo (ANDERSON 1996 traduccedilatildeo nossa128)
Murail explica que existem sete seccedilotildees estaacutegios diferentes na peccedila e que a mudanccedila
de um estaacutegio para outro acontece por uma ldquotransformaccedilatildeo-transiccedilatildeo ou pela liberaccedilatildeo
[unleashing] de um lsquoefeito thresholdrsquordquo (p 6) Cada estaacutegio passa por uma transformaccedilatildeo na
sua base harmocircnica de um espectro harmocircnico para um inarmocircnico ou vice-versa Isso cria
nas palavras do compositor ldquomovimentos de sombras e luz acompanhados por movimentos
de agitaccedilatildeo crescente ou decrescente de ordenaccedilatildeo ou desordenaccedilatildeo riacutetmicardquo 129 (MURAIL
2004 p 6)
Harmonia e timbre se distinguem muito pouco neste contexto e satildeo aspectos
fundamentais na construccedilatildeo da forma musical em Desintegrations Anthony Cornicello (2000)
127 Original ldquoThere is therefore one origin for both tape and instruments their relationship being one of complementarity Often the tape exaggerates the character of the instruments diffracts or disintegrates their timbre or amplifies the orchestral effects It should be in perfect synchronization hence the necessity of synchronizing ldquoclicksrdquo that the conductor must followrdquo (MURAIL 2004 p 6)
128 Original ldquoThe computer does not however attempt any direct simulation of the instruments concerned Rather it is a question of using certain spectra as structural analogies for the entire pitch content of the work (whether on instruments or tape) and likewise to generate its large-scale forms This ensures that the computer sounds and those on tape have a common unity which ensures that they maintain an audible organic unity the one with the other - indeed the extent to witch taped and instrumental sounds fuse and blend throughout the work is unusually consistent not least given the technology of the timerdquo (ANDERSON 1996)
129 Original ldquoThis creates movements of shade and light accompanied by movements of increasing or decreasing agitation of rhythmic ordering or disorderingrdquo (MURAIL 2004 p 6)
apresenta uma anaacutelise do desenvolvimento de acordes-timbre e sua influecircncia sobre a
estrutura da peccedila suas frases e cadecircncias tanto no acircmbito de cada seccedilatildeo quanto da peccedila como
um todo Nossa anaacutelise abordaraacute a terceira seccedilatildeo que comeccedila aos 645 e dura cerca de 320
A Figura 29 apresenta os acordes-timbre de comeccedilo e de fim desta seccedilatildeo de acordo com
Cornicello
FIGURA 29 - ACORDES-TIMBRE INICIAL E FINAL DA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN MURAIL
trade mdashbull-----------------k-
107
FONTE Extraiacutedo de Cornicello (2000 p 70)
Assim sendo fica claro o direcionamento de um espectro harmocircnico para um
inarmocircnico nesta seccedilatildeo Apenas por este aspecto jaacute eacute possiacutevel perceber a ldquotransformaccedilatildeo de
uma aacuterea tiacutembrica ou sonoro-morfoloacutegica em outrardquo (ver 343) caracterizando assim um
princiacutepio arquitetural da seccedilatildeo Este princiacutepio pode ser melhor analisado se considerarmos
tambeacutem outros aspectos das aacutereas sonoro-morfoloacutegicas da seccedilatildeo Ao menos quatro aacutereas
podem ser identificadas Tal identificaccedilatildeo eacute expressa a seguir de maneira geral tendo em vista
o aspecto praacutetico e natildeo essencialmente descritivo Satildeo elas na ordem em que surgem na peccedila
a) ataques agudos e ressonacircncias
b) ressonacircncias filtradas
c) melodia do corne inglecircs
d) atividade riacutetmica das cordas
Cada uma das aacutereas sonoro-morfoloacutegicas elencadas surge a partir da anterior Como
veremos isso se daacute pela derivaccedilatildeo ou decomposiccedilatildeo de um fluxo em outros Tal abordagem
destoa em parte da perspectiva de Wishart que em nossa leitura previa um princiacutepio
arquitetural comum a todos os fluxos tal qual as tonalidades eram comuns agraves vozes no
contraponto tradicional (WISHART 1996 p 116-117) No caso desta terceira seccedilatildeo a aacuterea
tiacutembrica ou seja o conteuacutedo harmocircnico-tiacutembrico representa um uacutenico princiacutepio arquitetural
geral entretanto dentro deste princiacutepio comum outros elementos caracterizam aacutereas sonoro-
morfoloacutegicas distintas
No primeiro momento desta seccedilatildeo Murail trabalha com a exploraccedilatildeo espectral
conforme indica em sua descriccedilatildeo dos procedimentos espectrais (p 105) desdobrando no
tempo os componentes do espectro Na nota de programa da peccedila Anderson apresenta a
seguinte descriccedilatildeo do primeiro momento da seccedilatildeo III ldquodensas nuvens de sonoridades como
de sino agudas derivadas da desintegraccedilatildeo dos espectros da flauta e da clarineta descem para
revelar sua origem instrumentalrdquo (ANDERSON 1996 traduccedilatildeo nossa130) A desintegraccedilatildeo dos
timbres da clarineta e da flauta eacute distribuiacuteda entre piano crotales glockenspiel e sons
eletrocircnicos formando gestos compostos de notas agudas curtas mas ressonantes que satildeo
ritmicamente ativas na primeira parte do gesto restando apenas sua ressonacircncia na segunda
parte A Figura 30 mostra os dois gestos iniciais desta seccedilatildeo
FIGURA 30 - COMPASSOS INICIAIS TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN MURAIL
108
FONTE Extraiacutedo de Murail (2004 p 29)
Podemos observar a sucessatildeo destes gestos como um fluxo isso se deve
principalmente agrave estabilidade do seu conteuacutedo espectral Evidentemente poderiacuteamos focar a
130 Original ldquoIII - dense clouds of high bell-like sonorities derived from the disintegration of flute and clarinet spectra descend to reveal their instrumental origin - a harmonic spectrum upon F (with the fundamental missing) evolves through flowing melodic figures on the English horn highlighting successive components of the spectra - the music drifts towards inharmonyrdquo (ANDERSON 1996)
atenccedilatildeo sobre os aspectos internos deste fluxo distinguindo uma dinacircmica interna dos seus
componentes abordando esta microtextura Entretanto nosso foco estaacute num niacutevel mais amplo
de agrupamento de acircmbito mais geral do que chamamos macrotextura
A configuraccedilatildeo bipartida destes gestos remonta agrave ideia de sintagma de Guigue (ver
321) Os ataques constituem a parte determinante do sintagma enquanto a ressonacircncia
constitui a parte determinada Ambas as partes do gesto satildeo desenvolvidas caracterizando o
que Wishart chama evoluccedilatildeo gestual Inicialmente esta evoluccedilatildeo gestual acontece por uma
expansatildeo temporal da parte determinante
A partir do quinto gesto (compassos 11 a 13 da seccedilatildeo) a parte determinada apresenta
um novo material um som eletrocircnico longo proveniente do espectro do laacute3 da flauta mas
sem a fundamental somado ao proacuteprio laacute3 na flauta sustentado que comeccedila dal niente e
termina al niente (Figura 31) A partir tambeacutem deste ponto a parte determinante do gesto
seguinte comeccedila a entrar antes do teacutermino da parte determinada do gesto anterior Estes
fatores colaboram para a percepccedilatildeo de um novo fluxo que comeccedila a se estabelecer
A parte determinada antes apenas uma consequecircncia da determinante agora engendra
um novo fluxo sonoro independente Neste quinto gesto cada parte deste sintagma que
inicialmente constituiacutea um uacutenico fluxo eacute desenvolvida de modo a se formarem dois fluxos
distintos A proacutepria ideia de sintagma natildeo se sustenta completamente deste momento em
diante pois natildeo haacute mais uma clara relaccedilatildeo de consequecircncia Natildeo satildeo mais os ataques que
determinam as ressonacircncias mas estas tomam um rumo proacuteprio independente daqueles
Este ponto de mudanccedila de surgimento de um segundo fluxo pode ser entendido pela
metaacutefora do gatilho quando um gesto de uma parte parece iniciar um evento ou uma mudanccedila
em uma outra parte de maneira minimamente clara O gesto de ataques agudos parece iniciar
causar o gesto de ressonacircncia filtrada do novo fluxo A ideia de reaccedilatildeo do sintagma de gatilho
e de causalidade respectivamente de Guigue (2011) Wishart (1996) e Smalley (2008 1997)
se relacionam estreitamente Entretanto devemos diferenciar a preocupaccedilatildeo descritiva de
cada ideia O sintagma natildeo se refere apenas a relaccedilotildees entre fluxos distintos como eacute o caso do
gatilho de Wishart Tampouco a causalidade tem apenas este foco Esta ldquoocupa-se mais com
um som agindo sobre outro seja causando a ocorrecircncia de um segundo evento seja
instigando a mudanccedila em um som que jaacute se desenrolavardquo (SMALLEY 2008 p 11) As trecircs
no entanto coincidem na explicaccedilatildeo deste ponto de Desintegrations
109
110
FIGURA 31 - COMPASSOS 11 A 13 DA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISshy
TAN MURAIL
FONTE Extraiacutedo de Murail (2004 p 30)
De modo semelhante a outra aacuterea sonoro-morfoloacutegica (melodia do corne inglecircs) surge
do interior deste fluxo de ressonacircncias filtradas A Figura 32 apresenta a entrada da melodia
do corne inglecircs
111
FIGURA 32 - FLUXO DO CORNE INGLEcircS NA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS ( 1982-3) DE
TRISTAN MURAIL
FONTE Extraiacutedo de Murail (2004 p 34 grifo nosso)
A aacuterea morfoloacutegica nomeada anteriormente atividade riacutetmica das cordas surge como
uma resposta agrave melodia do corne inglecircs no compasso 47 desta seccedilatildeo Neste ponto a melodia
do corne inglecircs estaacute distribuiacuteda entre sons eletrocircnicos corne inglecircs e fagote A atividade
riacutetmica das cordas em resposta daacute origem a um novo fluxo o uacutenico cujos sons eletrocircnicos
natildeo participam conjuntamente - ao menos isso natildeo eacute explicitado na partitura nem evidente na
escuta da gravaccedilatildeo131 Antes deste ponto as cordas compunham tambeacutem o fluxo de
ressonacircncias filtradas Assim embora apresentem ali uma resposta agrave melodia do corne inglecircs
tecircm sua origem no fluxo no qual se inseriam anteriormente
O desenvolvimento dos fluxos nesta seccedilatildeo eacute ilustrado abaixo na Figura 33 A linha
preta representa a continuidade dos fluxos mas desconsidera sua importante transformaccedilatildeo
Esta natildeo soacute eacute importante porque representa um processo um desenvolvimento dos materiais
mas porque a mudanccedila dos materiais que compotildeem os fluxos representa tambeacutem a mudanccedila
131 A anaacutelise se baseou na gravaccedilatildeo de Ensemble l rsquoItineacuteraire sob a regecircncia de Yves Prin
112
da relaccedilatildeo entre eles
FIGURA 33 - FLUXOS SONOROS NA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN
MURAIL (645 a 1006)
FONTE o autor (2019)
No momento 1 podemos perceber um domiacutenio dos ataques agudos sobre as
ressonacircncias Conforme estas desenvolvem-se num novo fluxo (ressonacircncias filtradas) esta
relaccedilatildeo perde sua forccedila Isto acontece devido a uma diminuiccedilatildeo da densidade riacutetmica132 do
primeiro e uma acumulaccedilatildeo dinacircmica somada ao aumento da densidade harmocircnica do
segundo A diminuiccedilatildeo da densidade riacutetmica eacute evidente e progressiva num primeiro momento
mas deve-se ressalvar uma retomada da alta densidade nos compassos 31 a 33 desta seccedilatildeo
antes da entrada do corne inglecircs Trata-se de um desvio da ldquolinearidaderdquo com que diminuiacutea o
nuacutemero de ataques agudos133 Assim haacute uma transformaccedilatildeo na relaccedilatildeo domiacuteniosubordinaccedilatildeo
destes dois primeiros fluxos em sentido contraacuterio Ataques agudos vatildeo do domiacutenio para um
natildeo-domiacutenio e as ressonacircncias da subordinaccedilatildeo para uma natildeo-subordinaccedilatildeo Sob a metaacutefora
dos planos podemos afirmar que haacute um deslocamento do primeiro plano para um plano de
fundo dos ataques agudos134 Por outro lado as ressonacircncias se deslocam do plano de fundo
para um primeiro plano ao ponto de darem origem agrave melodia do corne inglecircs
A dualidade gestotextura como entendida por Smalley (ver 332) tambeacutem se
apresenta na relaccedilatildeo destes fluxos O primeiro eacute composto por gestos enquanto o segundo
tem um caraacuteter textural Esta constataccedilatildeo tem relaccedilatildeo com o eixo conflitocoexistecircncia que
demarca as relaccedilotildees temporais do campo comportamento Os dois fluxos competem
temporalmente (conflito) num primeiro momento haacute uma intercalaccedilatildeo entre ataques agudos e
132 Nuacutemero de ataques por tempo133 Este evento dos compassos 31 a 33 marca tambeacutem a entrada das cordas com maior presenccedila nesta seccedilatildeo134 Este deslocamento soacute iraacute se concretizar efetivamente apoacutes os mencionados compassos 31 a 33 e a entrada do
corne inglecircs mas a tendecircncia de ir para o plano de fundo se mostra jaacute neste primeiro momento
113
ressonacircncias filtradas A medida em que se desenvolvem passam a confluir em coexistecircncia
Isto aponta tambeacutem para uma coordenaccedilatildeo de movimento que passa de um estado mais justo
para outro mais frouxo Desta perspectiva analiacutetica (SMALLEY 1997) estas relaccedilotildees
concernem agrave atividade-inatividade dos fluxos (modo de relacionamento) E da mesma forma
haacute um movimento contraacuterio em relaccedilatildeo agraves mudanccedilas os ataques agudos mudam da atividade
em direccedilatildeo agrave inatividade (vide a diminuiccedilatildeo da densidade riacutetmica) enquanto que as
ressonacircncias filtradas partem da inatividade em direccedilatildeo agrave atividade Este uacuteltimo
direcionamento tem seu aacutepice no desmembramento seguinte do interior das ressonacircncias
filtradas surge a melodia do corne inglecircs mais ativa e gestual em comparaccedilatildeo agrave textura
anterior das ressonacircncias
A tabela de Wishart apresentada em 343 oferece um meio graacutefico para pensar estas
mudanccedilas no tipo de relaccedilatildeo entre os fluxos A figura 34 apresenta a relaccedilatildeo entre os fluxos
ataques agudos e ressonacircncias filtradas no primeiro momento da seccedilatildeo em questatildeo
FIGURA 34 - RELACcedilAtildeO ENTRE DOIS FLUXOS EM DESINTEGRATIONS (1982-3) SOBRE O QUADRO DE WISHART (1996)
independente
Icirc
interativo
similar dissimilar
(homogecircneo) (heterogecircneo)
FONTE o autor (2019)
Os dois fluxos satildeo similares inicialmente (ponto a na Figura 34) pois um eacute a
ressonacircncia do outro possuem as mesmas frequecircncias Mas porque natildeo estatildeo sincronizados
natildeo eacute completa a homogeneidade Os fluxos se diferenciam espectralmente conforme se
desenvolvem (ponto b) mas ainda guardam a relaccedilatildeo de interaccedilatildeo (gatilho) posteriormente
perdem esta relaccedilatildeo e se mantecircm independentes e heterogecircneos (c)
As notas sobre a peccedila no siacutetio do compositor apresentam a seguinte descriccedilatildeo do
Momento 2
independecircncia c 1independecircncia
semi-paralelismo interaccedilatildeo
paralelismoa
b gatilho
114
- um espectro harmocircnico sobre faacute (com a fundamental ausente) evolui atraveacutes de figuras meloacutedicas fluiacutedas no corne inglecircs destacando componentes sucessivos do espectro (ANDERSON 1996 traduccedilatildeo nossa135)
Neste momento os dois fluxos anteriores embora ainda presentes se deslocam para
um plano de fundo enquanto a melodia do corne inglecircs assume o primeiro plano Este fluxo
natildeo eacute composto apenas pelos sons de corne inglecircs mas por ele somado aos sons eletrocircnicos e
agraves vezes ao fagote Ele domina sobre os outros dois Os fluxos decorrem independentemente
todos no processo de transformaccedilatildeo para um espectro inarmocircnico No momento 3 conforme a
descriccedilatildeo no site do compositor se daacute a conclusatildeo deste processo ldquoa muacutesica desliza para a
inarmoniardquo (traduccedilatildeo nossa136)
As observaccedilotildees analiacuteticas apontadas podem ao menos indicar a importacircncia do
desenvolvimento dos fluxos para a percepccedilatildeo de aspectos formais desta seccedilatildeo Uma anaacutelise
que fatiasse a seccedilatildeo em trechos natildeo daria conta das nuances de derivaccedilatildeo de um trecho a partir
de outro o que foi evidenciado por nossa anaacutelise Uma anaacutelise que observasse a
transformaccedilatildeo harmocircnico-tiacutembrica da seccedilatildeo veria possivelmente uma uacutenica estrutura
passando de um espectro harmocircnico para um inarmocircnico sem considerar o desmembramento
apontado Natildeo se trata de desmerecer estas importantes perspectivas antes de sublinhar a
singularidade da perspectiva aqui apresentada
42 STRANGE AUTUMN DE STEVEN KAZUO TAKASUGI
Strange Autumn (2003-4) eacute uma peccedila com forte caraacuteter de teatro musical para
recitante-vocalista percussionista amplificaccedilatildeo eletrocircnica e playback gravado Note-se nesta
descriccedilatildeo de instrumentaccedilatildeo copiada da partitura que a amplificaccedilatildeo eletrocircnica eacute encarada
como um elemento essencial em peacute de igualdade com os performers Isso se deve
principalmente agrave exploraccedilatildeo de sons de baixa projeccedilatildeo como microssons vocais (recitante-
vocalista) e sons de folhas de caderno (percussionista) Por consequecircncia o papel do
engenheiro de som a quem tambeacutem orientaccedilotildees satildeo dirigidas na partitura eacute de fundamental
importacircncia
A sincronizaccedilatildeo entre sons eletrocircnicos e instrumentais se daacute atraveacutes de um click track
que ambos os performers devem ouvir em seus fones-de-ouvido Esta faixa possui cliques a
135 Original ldquo- a harmonic spectrum upon F (with the fundamental missing) evolves through flowing melodic figures on the English horn highlighting successive components of the spectrardquo (ANDERSON 1996)
136 Original ldquothe music drifts towards inharmonyrdquo (ANDERSON 1996)
115
cada segundo bem como uma indicaccedilatildeo verbal a cada cinco segundos Eacute disponibilizada uma
versatildeo alternativa em que apenas a indicaccedilatildeo verbal estaacute presente (sem cliques)
No texto em que trata de uma performance da peccedila Takasugi menciona um sistema de
live electronics
Os live electronics foram projetados por Michael Acker da SWR Experimentalstudio em Freiburg Consistia em geral em um setup de alto-falantes de oito canais controlado pelo Matrix-Mixer do Experimentalstudio regulando a espacializaccedilatildeo o processamento ao vivo e o playback preacute-gravado incluindo espacializaccedilatildeo com o Halaphon o processador de efeitos Eventide Orville como um fragmentador fonecircmico patches de MaxMSP para siacutentese cruzada e patches jitter bem como uma unidade de reverberaccedilatildeo Vale a pena notar que a configuraccedilatildeo dos alto-falantes de oito canais tem duas sub-estruturas distintas a estrutura espacial completa de oito canais com oito faixas distintas e um a estrutura esteacutereo de dois canais que utiliza tanto os dois quanto os quatro alto-falantes frontais mais proacuteximos dos performers no palco com apenas duas faixas (esquerda e direita) distintas Estes dois espaccedilos satildeo designados como ldquotempestaderdquo (8-faixas) e ldquopalcordquo (2-faixas) respectivamente (TAKASUGI 2006 p 4 traduccedilatildeo nossa137)
Esta configuraccedilatildeo se refere a uma performance especiacutefica em que se apresenta um
modelo misto das opccedilotildees apresentadas em 21 A partitura e o material a que tivemos acesso
diretamente com o compositor entretanto apresenta uma versatildeo em que os sons eletrocircnicos
satildeo preacute-gravados em uma faixa em esteacutereo mas que deve ser projetada em sistema octafocircnico
ou no miacutenimo quadrafocircnico (canal da esquerda para alto-falantes agrave esquerda e canal da direita
para alto-falantes agrave direita)
O compositor explora os mundos do preacute-gravado e do ao vivo de maneira anaacuteloga a
um livro de poemas em ediccedilatildeo biliacutengue Em seu texto ele questiona se ldquouma traduccedilatildeo pode
ser mais lsquooriginalrsquo que a original isto eacute se pode possuir alguma qualidade que aparentemente
precede o originalrdquo (TAKASUGI 2006 p 5) Com tal metaacutefora Takasugi explora o preacute-
gravado e o ao vivo
Uma vez que tanto a recitaccedilatildeo ao vivo quanto a preacute-gravada satildeo transmitidas pelos mesmos alto-falantes haacute uma ambiguumlidade de que tudo ao vivo poderia ser preacute- gravado e tudo preacute-gravado poderia ser ao vivo Isso permite uma incompatibilidade
137 Original ldquoThe live electronics were designed by Michael Acker of SWRrsquos Experimentalstudio in Freiburg This consisted generally of an eight-channel speaker setup controlled by the Experimentalstudiorsquos MatrixshyMixer regulating spatialization live processing and pre-recorded playback including halaphon spatialization the Eventide Orville Effects Processor as a phonemic fragmenter MaxMSP patches for cross-synthesis and jitter patches as well as a reverberation unit It is worth noting that the eight-channel speaker setup has two distinct sub-structures the full eight-channel spatial structure with eight distinct tracks and a two-channel stereo structure that utilizes either the front two or front four speakers closest to the performers on stage with only two (left and right) distinct tracks These two spaces are designated as lsquostormrsquo (8-track) and lsquostagersquo (2-track) respectivelyrdquo (TAKASUGI 2006 p 4)
116
potencialmente catastroacutefica entre a localizaccedilatildeo do agente sinal ao vivo (aqui os laacutebios do recitante) e a atual localizaccedilatildeo percebida do sinal no espaccedilo (TAKASUGI 2006 p 5 traduccedilatildeo nossa138)
Esta ambiguidade que se estabelece faz com que natildeo haja uma divisatildeo expliacutecita entre o
mundo ao vivo e o preacute-gravado Alguns sons que foram preacute-gravados parecem vir do recitante
devido a uma sincronizaccedilatildeo labial Por outro lado o recitante deve executar sons vocais com
cortes exagerados proacuteprios dos sons preacute-gravados Assim os mundos preacute-gravado e ao vivo
espelham um ao outro assegurando nas palavras do compositor ldquouma confusatildeo consistenterdquo
(TAKASUGI 2006 p 5) Esta confusatildeo se impotildee agrave percepccedilatildeo de fluxos sonoros distintos
Natildeo eacute possiacutevel traccedilar uma linha clara que separe sons do palco (projetados tambeacutem pelos alto-
falantes) e sons preacute-gravados em fluxos separados pelo contraacuterio eacute em conjunto que eles
formam os fluxos Estes se colocam em relaccedilatildeo ao aspecto visual da performance E esta
relaccedilatildeo eacute o objeto desta anaacutelise Portanto natildeo nos interessa analisar o surgimento dos fluxos e
suas derivaccedilotildees - anaacutelise que provavelmente se mostraria frutiacutefera Nossa intenccedilatildeo eacute apontar
relaccedilotildees instaacuteveis que o fluxo visual estabelece com os fluxos sonoros
Neste contexto percebemos a possibilidade do uso das metaacuteforas de plano e de fluxo
como adequadas Percebemos planos distintos em relaccedilatildeo agrave distacircncia com que se apresentam
os sons mais perto ou mais longe Entretanto percebemos fluxos distintos quando somando
a este aspecto outras caracteriacutesticas sonoro-morfoloacutegicas satildeo consideradas especialmente seu
aspecto referencial sons vocais sons de objetos sons de mosca voando etc Por motivos
praacuteticos mais do que descritivos nomearemos os fluxos de acordo com estas referecircncias
Recorde o leitor que a percepccedilatildeo da fonte sonora que pode corresponder mais ou menos agrave
verdadeira fonte eacute um aspecto importante para a percepccedilatildeo de um fluxo auditivo
A peccedila baseia-se em poemas biliacutengues de Weiland Hoban e se divide em duas partes
Parte 1a Leaf-wort Parte 1b Blatt-word Parte 2 Interiors Der Wuumlrfel Die Zweibel (The
Etching) Nossa anaacutelise abordaraacute a parte 1b que vai dos 240 aos 450139 A Figura 35
apresenta um excerto da partitura do iniacutecio desta seccedilatildeo
138 Original ldquoSince both live and pre-recorded recitation transmit from the same speakers there is an ambiguity that everything live could be pre-recorded and everything pre-recorded could be live This allows for a potentially catastrophic mismatch between the location of the live signal agent (here the lips of the reciter) and the actual perceived location of the signal in the spacerdquo (TAKASUGI 2006 p 5)
139 O trecho compreende de cerca de 3rsquo30rdquo a cerca 5rsquo30rdquo do viacutedeo da performance de Mark Knoop Serge Vuille e Newton Armstrong utilizado para anaacutelise Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatch v= 1y_kunv2kUoampt= 132sgt
FIGURA 35 - INiCIO DA PARTE 1B DE STRANGE AUTUMN DE STEVEN KAZUO TAKASUGI
PART lb BLATT-WORDBlatt-word
2 - 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49Tape-Storm
Tape-Stage
Reciter
117
Perc
2 - 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59Tape-Storm
Tape-Stage
Reciter
Perc
FONTE TAKASUGI (2016)
Esta peccedila apresenta diversos modos de execuccedilatildeo para ambos os performers O texto
sobre linha tracejada para o recitante deve ser lido sem respiraccedilatildeo nenhum som vocal deve
ser ouvido exceto quando destacados com fundo cinza Neste caso as palavras satildeo faladas
normalmente O compositor tambeacutem utiliza a notaccedilatildeo (z) para identificar partes em que
nenhum som eacute emitido apenas eacute feita uma sincronizaccedilatildeo labial Da parte do performer este
modo eacute apenas visual
O princiacutepio arquitetural (WISHART 1996) desta seccedilatildeo apresenta duas aacutereas sonoro-
morfoloacutegicas cada uma delas prepondera em uma das duas partes em que se divide a seccedilatildeo A
primeira apresenta sons mais relacionados ao recitante (fragmentos da leitura entre outros)
enquanto que a segunda apresenta sons relacionados ao percussionista (sons de folhas) Haacute
uma transiccedilatildeo dos 347 aos 413 os movimentos do percussionista intensificam mas
continua a leitura do texto pelo recitante Apoacutes este periacuteodo o recitante congela ldquoFREEZErdquo
expressa a partitura isto eacute nenhuma atividade
Em relaccedilatildeo aos fluxos sonoros se apresenta o fluxo visual os performers no palco Na
(ldquoFLIES ldquo)word-leaf auf der Seite auf which das Wort-Blatt sich dreht indem ich die Seiten durchblaumltte-word-leaf auf der Seite auf which das Wort-Blatt sich dr ht indem ich die Seiten durchblaumltte-
(grasp top page only)
L H 1RH euromdash
Hold turned ( 76 1 77)Hoidcorner
LOu 11 1
Defaultresting
lsquoFLIESrdquoBlatt-word the leaf treeless on welchem the
(gray higlighted words are normally voiced and take precedence over other instructions)
Blatt-word the leaf treelessf articulate recitation lsquolsquowithout breathing rsquo
on welchem theDo not pop b s ps
andfrsquos
Computation BookldquoAs i f still conducting a Japanese tea ceremony rsquo RH
) 7 6 I 7 7(grasp top page only)
118
primeira parte da seccedilatildeo foram encontrados seis tipos de correspondecircncia entre o fluxo visual
do recitante140 e os fluxos sonoros
A accedilatildeo visual do recitante parece produzir uma reaccedilatildeo aural do(s) fluxo(s)
a) sons vocaisleitura 1 (perto)
b) sons de objetos
c) leitura 2 (longe)
d) sons vocaisleitura (perto) e sons de objetos
e) sons vocaisleitura 1 (perto) e leitura 2 (longe)
f) ou pode se apresentar independente de qualquer fluxo sonoro
O Quadro 4 apresenta uma ilustraccedilatildeo dos tipos de relaccedilatildeo entre fluxo visual e sonoro
no trecho analisado Esta figura natildeo representa uma linha do tempo mas dois momentos nos
140 Neste trecho a accedilatildeo visual do percussionista natildeo estaacute diretamente relacionada a nenhum fluxo sonoro
119
quais as relaccedilotildees expressas na tabela se apresentam em ordem diversa Por exemplo a relaccedilatildeo
c) acontece diversas vezes na primeira parte
A voz ao vivo do recitante se confunde com uma leitura preacute-gravada e pode ser
categorizada no fluxo leitura 2 (longe) Este fluxo eacute composto por ambos sons preacute-gravados e
sons ao vivo Identificar as relaccedilotildees destes dois componentes no interior do fluxo natildeo eacute tatildeo
importante para nossa anaacutelise Para nosso objetivo eacute suficiente designaacute-lo como um fluxo
sonoro e apontar a relaccedilatildeo ocasional com o visual
Note-se que a relaccedilatildeo entre os fluxos e sua presenccedilaausecircncia tecircm o potencial de
articular a forma da peccedila Neste trecho (parte 1b) podemos distinguir dois momentos O
primeiro apresenta uma relaccedilatildeo mais variaacutevel do visual do recitante com os diversos fluxos
sonoros No segundo haacute uma preponderacircncia da relaccedilatildeo entre o visual do recitante e a leitura
2 (longe) A atividade dos sons de folhas ausente no primeiro momento eacute outro aspecto que
colabora para tal subdivisatildeo Aleacutem disso no primeiro momento o percussionista apresenta
uma accedilatildeo visual que natildeo corresponde diretamente a som algum no segundo sua accedilatildeo visual
se relaciona por uma interaccedilatildeo inexata com estes sons de folha
Este efeito em que ora a accedilatildeo visual corresponde a um evento sonoro natural ou
convencionalmente ligado a ela ora a outro evento ora a nenhum evento o compositor
chama de duplicaccedilatildeo estranha (strange doubling) Efeito-ventriacuteloquo (ventriloque effect) e
sincronizaccedilatildeo labial (lip-sync) estatildeo associados a esta duplicaccedilatildeo
Ainda inerente agrave proacutepria premissa desse meio musical bifurcado [ao vivo e preacute- gravado] no entanto estaacute a ideia central de natildeo tocar embora fingindo tocar Consequentemente o deslocamento espacial do som virtual em relaccedilatildeo ao agente ao vivo propotildee um tipo de efeito de ventriloquismo E se esse conceito de sincronizaccedilatildeo labial eacute levado um passo adiante um gesto ao vivo que ambos fingem tocar e ainda tenha se tornado destacado da sua funccedilatildeo translativa convida o proacuteximo de nossos lsquoconvidados natildeo convidadosrsquo Este eacute o estranho momento de erro de traduccedilatildeo entre a sincronizaccedilatildeo labial ao vivo ou falsa duplicaccedilatildeo e sua reproduccedilatildeo preacute-gravada Entre uma desassociaccedilatildeo quase imperceptiacutevel e uma separaccedilatildeo grotescamente exagerada um vasto jogo de confusatildeo trazido pela ambiguidade de ldquoquem estaacute fazendo o quecircrdquo eacute criado Essa incerteza eacute ainda mais exacerbada por causa dos alto-falantes ocultos atraacutes do puacuteblico criando ainda outra camada de erro de percepccedilatildeo uma ainda mais estranha duplicaccedilatildeo embora intermitente e assim propositalmente imprevisiacutevel E no entanto a duplicaccedilatildeo remete agraves suas raiacutezes no acuacutemulo de interpretaccedilotildees e representaccedilotildees verticais O teatro eacute uma orquestraccedilatildeo alternativamente uma heterofonia que se projetou explicitamente no domiacutenio visual141 (TAKASUGI 2006 natildeo paginado)
141 Original ldquoStill inherent in the very premise of this bifurcated musical medium however is the core idea of not playing though pretending to play Consequently the spatial displacement of virtual sound and live agent proposes a ventriloquism-effect of sorts And if this concept of lip- syncing is taken one step further a live gesture that both pretends to play and yet has also become detached from its translative function solicits
120
O principal objetivo desta anaacutelise de Strange Autumn eacute argumentar sobre a
importacircncia do aspecto visual na muacutesica mista Natildeo como um aspecto teatral puramente - o
que nos levaria agrave outra pesquisa - mas como um aspecto inerente ao tocar executar haacute uma
relaccedilatildeo causal entre accedilatildeo visual e reaccedilatildeo aural que pode ser explorada criativamente a ponto
de pensarmos o fluxo visual mais ou menos independente do sonoro como um componente
da textura
43 M USICFOR SNARE DRUMAND COMPUTER DE CORT LIPPE
Entre as peccedilas elencadas no siacutetio do compositor Cort Lippe encontram-se um conjunto
para instrumento e computador e algumas peccedilas para instrumento e sons fixados em suporte
(tape) aleacutem de outras puramente instrumentais ou eletroacuacutesticas Para a maioria das peccedilas o
compositor disponibiliza notas de programa uma pequena explicaccedilatildeo sobre questotildees teacutecnicas
e esteacuteticas O conteuacutedo destas notas eacute interessante para a discussatildeo levantada em 23
especialmente no que concerne agrave diferenccedila com que expotildee questotildees de interaccedilatildeo entre os
meios instrumental e eletroacuacutestico Por isso antes de abordarmos Music fo r Snare Drum and
Computer (2007) apresentaremos uma reflexatildeo em torno das notas de programa de Cort
Lippe atentando para a diferenccedila entre duas categorias de peccedilas aquelas para instrumento e
computador e aquelas para instrumento e sons preacute-gravados
431 Instrumento(s) e computador e instrumento(s) e tape no trabalho de Cort Lippe
Para todas as peccedilas para instrumento e computador Lippe oferece uma explicaccedilatildeo
comum ainda que o texto seja diferente para cada uma As notas sobre a peccedila para caixa clara
e computador traz a seguinte observaccedilatildeo ldquoA relaccedilatildeo entre instrumento e computador se move
the next of our uninvited guest This is the strange moment of mistranslation between live lip-syncing or false doubling and its pre- recorded playback Between a just-noticeable decoupling and a grotesquely exaggerated departure a vast play of confusion brought on by the ambiguity of who is doing what is created This uncertainty is further exacerbated by hidden loudspeakers from the rear of the audience creating yet another layer of perceptual misdirection a further strange doubling though intermittent and thereby purposefully unpredictable And yet doubling refers back to its roots in the accumulation of vertical interpretations and representations Theater is an orchestration alternatively a heterophony which has projected itself explicitly into the visual domainrdquo (TAKASUGI 2006)
121
num continuum entre os polos de um solo extendido e um duordquo142 (LIPPE 2007) Nas notas
sobre a Music fo r Tenor Steel Pan and Computer (2011) haacute algumas outras informaccedilotildees
Musicalmente a parte do computador agraves vezes natildeo eacute separada da parte do pan e serve para amplificar o pan em muacuteltiplas dimensotildees e direccedilotildees enquanto que no outro extremo do continuum a parte do computador tem sua proacutepria voz musical independente Estas relaccedilotildees solosuo existem simultaneamente ainda tem um certo niacutevel de ambiguidade teacutecnica e musical Muito parecido com a performance de muacutesica de cacircmara em que a expressividade individual agraves vezes se destina a servir ao todo e em outros momentos tem uma influecircncia individual fundamental sobre todo o grupo [ensemble] as relaccedilotildees musicais entre o performer e o computador satildeo fundamentais para os resultados musicais (LIPPE 2011 traduccedilatildeo nossa143)
Nas notas sobre Music fo r Sextet and Computer (1993) expressa de outra maneira ldquoA
relaccedilatildeo entre a eletrocircnica e as partes instrumentais varia sobre um continuum entre texturas
fundidas (transcendentais) e separadas form ais)rdquo144 (LIPPE 1993) E acrescenta ldquoEnquanto
isso trabalhar com computadores me faz questionar a linha tecircnue que agraves vezes separa muacutesica
e efeitos especiaisrdquo145 (LIPPE 1993) Esta frase aponta para uma discussatildeo pertinente em
relaccedilatildeo aos processamentos eletrocircnicos em tempo real Ela estaacute relacionada com a tendecircncia
de que com estas ferramentas a relaccedilatildeo entre instrumento e sons eletroacuacutesticos se restrinja a
um efeito sobre o som instrumental de maneira semelhante ao efeito de reverberaccedilatildeo por
exemplo
O trabalho de Lippe com instrumentos e computador portanto se encontra na fronteira
destas duas categorias por um lado os efeitos especiais que estendem o som instrumental
gerando texturas fundidas por outro a ldquomuacutesicardquo isto eacute uma parte eletroacuacutestica
independente Mas entre estes dois ldquoterritoacuteriosrdquo existe um espaccedilo de fronteira de
ambiguidade um continuum entre estes dois polos no qual se move a relaccedilatildeo entre
instrumentos e sons eletroacuacutesticos Esta relaccedilatildeo pode ocupar tambeacutem dois pontos deste
142 Original ldquoThe instrumentcomputer relationship moves on a continuum between the poles of an extended solo and a duordquo (LIPPE 2007)
143 Original ldquoMusically the computer part is at times not separate from the pan part and serves to amplify the pan in multiple dimensions and directions while at the other extreme of the continuum the computer part has its own independent musical voice These soloduo relationships exist simultaneously yet have a certain level of musical and technical ambiguity Much like chamber music playing in which individual expressivity sometimes is meant to serve the whole and at other times has a fundamental individual influence on the entire ensemble the musical relationships between the performer and computer are fundamental to the musical resultsrdquo (LIPPE 2011)
144 Original ldquoThe relationship between the electronics and the instrumental parts ranges on a continuum between fused (transcendental) and separate (formal) texturesrdquo (LIPPE 1993)
145 Original ldquoMeanwhile working with computers keeps me questioning the fine line that sometimes separates music and special effectsrdquo (LIPPE 1993)
122
continuum Isto eacute a funccedilatildeo do computador pode ser estender o som instrumental e ao mesmo
tempo apresentar sua proacutepria ldquovoz musical independenterdquo
Nas peccedilas para instrumento e sons preacute-gravados as notas tambeacutem trazem um elemento
comum Na nota sobre Music fo r Harp and Tape (1990) escreve
A relaccedilatildeo instrumentomaacutequina eacute inteiramente simbioacutetica - o instrumento e a parte preacute-gravada satildeo iguais no diaacutelogo musical Agraves vezes uma parte [instrumental ou eletroacuacutestica] pode dominar mas na estrutura formal geral um duo estaacute impliacutecito146 (LIPPE 1990)
As notas da Music fo r Bass Clarinet and Tape (1989) trazem o seguinte
A seccedilatildeo de abertura eacute um diaacutelogo entre instrumento e sons preacute-gravados [tape] e eacuteseguida por uma seccedilatildeo na qual a parte do dos sons preacute-gravados domina Isto emtroca abre espaccedilo para um solo de clarineta baixo enquanto na quarta seccedilatildeo os sons preacute-gravados satildeo dominados pela clarineta Na seccedilatildeo final o instrumento e os sons preacute-gravados estatildeo novamente mais equilibrados - reminiscecircncia da seccedilatildeo de abertura147 (LIPPE 1989)
Enquanto que as notas sobre as peccedilas para instrumento e computador valem-se do eixo
dependecircncia-independecircncia entre estes aquelas sobre as peccedilas para instrumento e sons preacute-
gravados utilizam o eixo dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo para tratar da relaccedilatildeo entre estes Nas
primeiras natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo significativa com explicitar estruturas formais da peccedila ao
passo que nas segundas a explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre instrumento e sons preacute-gravados se daacute
atraveacutes de uma explicitaccedilatildeo das diferentes seccedilotildees Isto eacute a relaccedilatildeo entre a parte instrumental e
a parte preacute-gravada eacute um dos elementos responsaacuteveis pela articulaccedilatildeo de seccedilotildees na forma
geral da peccedila
Embora tendo feito esta diferenciaccedilatildeo no caso de Music fo r Harp and Tape a ideia de
sons processados em tempo real e sons preacute-gravados se confundem Isto porque o compositor
produziu a parte preacute-gravada a partir de processamento em tempo real
Isso levanta a hipoacutetese de que na praacutetica de Lippe as diferenccedilas esteacuteticas tenham
relaccedilatildeo com as diferenccedilas tecnoloacutegicas Embora independecircncia-dependecircncia e dominaccedilatildeo-
146 Original ldquoThe instrumentmachine relationship is entirely symbioticmdash the instrument and tape are equals in the musical dialogue At times one part may dominate but in the overall formal structure a duo is implicitrdquo (LIPPE 1990)
147 Original ldquoThe opening section is a dialogue between the instrument and tape and is followed by a section in which the tape part dominates This in turn gives way to a bass clarinet solo while in the fourth section the tape part is dominated by the clarinet In the final section the instrument and tape are again somewhat equal - reminiscent of the opening sectionrdquo (LIPPE 1989)
subordinaccedilatildeo possam se referir de maneira diferente agraves mesmas relaccedilotildees haacute uma diferenccedila
crucial na maneira com que o compositor expressa estas relaccedilotildees nestes dois tipos de teacutecnicas
As notas sobre as peccedilas para instrumento e sons preacute-gravados natildeo trazem a ideia de um solo
extendido A ideia mais proacutexima a este extremo do continuum seria a de relaccedilatildeo simbioacutetica
(Music fo r Harp and Tape) em que os dois meios se beneficiam Esta noccedilatildeo eacute trazida na peccedila
que se vale de processamento em tempo real para criar o tape As outras peccedilas para
instrumento e tape parecem partir de um contraste ainda maior que esta relaccedilatildeo simbioacutetica a
ideia eacute de diaacutelogo (portanto entre duas entidades diferentes)148
Se estas constataccedilotildees podem ser extrapoladas para a experiecircncia dos compositores em
geral podemos levantar a hipoacutetese de que trabalhando com processamentos em tempo real da
parte instrumental partimos da fusatildeo Isto eacute a relaccedilatildeo mais faacutecil a primeira que pode vir agrave
mente eacute que a parte eletroacuacutestica funcione como uma extensatildeo da parte instrumental
Evidentemente natildeo decidimos sempre pelo que primeiro nos vem agrave mente trata-se aqui de
apontar uma primeira tendecircncia Por outro lado o processo de composiccedilatildeo dos sons preacute-
gravados se daacute mais ou menos independentemente da parte instrumental A primeira ideia a
vir agrave mente pode natildeo ser a de uma extensatildeo da parte instrumental mas da instituiccedilatildeo de uma
parte paralela com conteuacutedo sonoro proacuteprio
432 Music fo r Snare Drum and Computer
Na peccedila para caixa clara e computador consideraremos dois fluxos um instrumental e
outro eletroacuacutestico Embora pudesse haver dois ou mais fluxos instrumentais ou
eletroacuacutesticos natildeo identificamos tal segregaccedilatildeo em nossa anaacutelise Nos deteremos nos seis
minutos iniciais da peccedila (duas primeiras paacuteginas da partitura) Um aspecto primordial em
nossa anaacutelise seraacute a noccedilatildeo de gatilho (WISHART 1996) e de causalidade (SMALLEY 1997)
A atividade do computador depende fortemente da atividade instrumental de modo que a
independecircncia que a parte eletroacuacutestica conquista aos poucos manteacutem ainda que agraves vezes
menos claramente a caracteriacutestica de gatilho em relaccedilatildeo agrave parte instrumental A parte
instrumental aciona o gatilho que daacute iniacutecio aos eventos eletrocircnicos Isso se deve agrave maneira
com que o compositor trabalha a parte do computador Nas notas de programa ele explica
123
148 Natildeo devemos descartar a hipoacutetese de que isso se deva a um diferente posicionamento esteacutetico relacionado mais agrave fase do compositor do que agrave tecnologia utilizada
124
A parte eletrocircnica foi criada nos Estuacutedios de Muacutesica Computacional Hiller da Universidade em Buffalo Nova York usando MaxMSP Tecnicamente o computador rastreia paracircmetros da performance da caixa clara e usa esta informaccedilatildeo para influenciar e manipular continuamente a saiacuteda sonora do computador por afetar diretamente a siacutentese digital e algoritmos composicionais em tempo real Os algoritmos de siacutentese digital focam no processamento espectral no domiacutenio da frequecircncia e inclui filtragem delayrealimentaccedilatildeo feedback] espacializaccedilatildeo fotografias timbrais [timbral snapshot] siacutentese cruzada reduccedilatildeoaumento de ruiacutedo e reordenaccedilatildeo de componentes de canais individuais de FFT149 (LIPPE 2007)
Um dos paracircmetros rastreados (tracked) mais evidentes eacute o envelope de amplitude da
performance da caixa
Na maior parte do tempo o iniacutecio dos eventos eletroacuacutesticos estaacute vinculado ao iniacutecio
do som instrumental Como apontado em 31 ldquose duas coisas estatildeo altamente correlacionadas
eacute altamente provaacutevel que emergiram de uma mesma fonte enquanto que se duas coisas satildeo
assincrocircnicas eacute provaacutevel que sejam associadas com dois objetos diferentesrdquo (SHEPARD
1999 p 117) Instrumento e sons eletrocircnicos estatildeo altamente correlacionados nesta peccedila A
correlaccedilatildeocoordenaccedilatildeo dos ataques eacute constante Isso representa uma forccedila em direccedilatildeo agrave
fusatildeo O recurso que diferenciaraacute os dois fluxos em direccedilatildeo ao contraste eacute o restante do
envelope (decaimento sustentaccedilatildeo e relaxamento)
O trecho analisado compreende 16 programas do sistema interativo com um uso
variado dos diferentes paracircmetros rastreados Uma investigaccedilatildeo do patch do Max poderia
trazer mais dados referentes ao rastreio e mapeamento de paracircmetros e isso por sua vez nos
proporcionaria pensar em outras relaccedilotildees musicais entre estes dois fluxos Entretanto como
ficaraacute evidente o eixo atividade-inatividade eacute um dos aspectos mais importantes da relaccedilatildeo
entre os fluxos e para abordaacute-lo focaremos sobre o paracircmetro do envelope Temos
consciecircncia de que esta posiccedilatildeo natildeo abrange uma seacuterie de aspectos relevantes da peccedila
(processamentos espectrais por exemplo) que estatildeo envolvidos em interessantes relaccedilotildees
entre os fluxos Entretanto o objetivo da nossa anaacutelise seraacute apenas demonstrar o aspecto mais
evidente da relaccedilatildeo entre eles
Num primeiro momento (programas 1 e 2) o envelope da parte eletrocircnica estaacute
correlacionado ao envelope da caixa Posteriormente o computador estende a sustentaccedilatildeo nos
149Original ldquoThe electronic part was created at the Hiller Computer Music Studios of the University at Buffalo New York using MaxMsp Technically the computer tracks parameters of the snare drum performance and uses this information to continuously influence and manipulate the computer sound output by directly affecting digital synthesis and compositional algorithms in real-time The digital synthesis algorithms focus on spectral processing in the frequency domain and include filtering delayfeedback spatialization timbral snapshots cross-synthesis noise reductionenhancement and component reordering of individual FFT channelsrdquo (LIPPE 2007)
programas 3 e 4 se tornando mais independente Entretanto mesmo quando alcanccedila uma
diferenciaccedilatildeo - ldquosua proacutepria voz musicalrdquo - por causa dos diferentes envelopes o programa
continua rastreando cada ataque e mudando algo (conteuacutedo espectral por exemplo) neste
fluxo eletrocircnico que continua
No programa 5 a parte eletrocircnica volta a um envelope semelhante ao da caixa se
aproximando da ideia de efeito novamente O programa 6 apresenta o mesmo material do 5
com o acreacutescimo de um material mais grave de envelope independente que surge nos
momentos de pausa da caixa O programa 7 apresenta novas sonoridades eletroacuacutesticas que
se tornam mais independentes no programa 8 Do programa 9 ao 16 acontece um crescendo
na parte eletroacuacutestica Uma intensificaccedilatildeo tanto da dinacircmica como tambeacutem da independecircncia
deste fluxo em relaccedilatildeo ao instrumental O programa 16 representa um primeiro aacutepice da peccedila
Assim embora neste trecho analisado a relaccedilatildeo entre os fluxos se mova no eixo
dependecircncia-independecircncia mantemos a sensaccedilatildeo de dependecircncia da parte eletroacuacutestica em
relaccedilatildeo agrave instrumental mesmo quando se distancia desta em diversos paracircmetros
Os fluxos apresentam o que foi abordado em 343 como modo de relacionamento de
atividade-inatividade (SMALLEY 1997) A relaccedilatildeo entre eles se daacute pela maior ou menor
atividade de cada fluxo Anotaccedilotildees sobre a pauta indicam a importacircncia deste paracircmetro
Abaixo (Quadro 5) listamos as indicaccedilotildees presentes no trecho em questatildeo Os programas 1 e
2 natildeo apresentam indicaccedilotildees sobre atividade por isso supomos uma atividade regular A
atividade da parte eletroacuacutestica estaacute apenas impliacutecita nestas indicaccedilotildees da partitura
entretanto na tabela abaixo indicamos sua atividade por comparaccedilatildeo atraveacutes da escuta da
gravaccedilatildeo disponiacutevel no siacutetio do compositor150
125
150 Temos tambeacutem na memoacuteria a performance desta peccedila pelo UM2UO que presenciamos no Simpoacutesio Muacutesica Nova 2018 em Curitiba
126
QUADRO 5 - ATIVIDADE DOS FLUXOS INSTRUMENTAL E ELETROACUacuteSTICO EM MUSIC FOR
SNAREDRUMAND COMPUTER DE CORT LIPPE (6 MINUTOS INICIAIS)
p Sons instrumentais(indicaccedilotildees de Lippe na partitura com exceccedilatildeo dos programas 1 e 2 que satildeo anaacutelises nossas)
Sons eletrocircnicos(anaacutelise nossa)
1 Atividade regular inativo mdashgt menos ativo
2 Atividade regular menos ativo
3 ldquopoco a poco mais ativordquo =
4 ldquosubito menos ativordquo ldquopermitir a sustentaccedilatildeo do computadorrdquo ldquoraquooco a poco menos ativo (deixar o computador desaparecer [fade|) mais ativo
5 ldquosubito mais ativordquo ldquopoco a poco mais ativo =
6 ldquosempre ativo (ouccedila o computador)rdquo =
7 ldquosempre ouccedila o computador) poco a poco menos ativo e pausas longasrdquo =
8 ldquo(sempre ouccedila o computador) poco a poco menos ativo e pausas longasrdquo mais ativo
9 ldquo(sempre ouccedila o computador) poco a poco menos ativo e pausas longasrdquo mais ativo
10 ldquonatildeo ativordquo mais ativo
11 ldquonatildeo ativordquo mais ativo
12 ldquopoco a poco levemente mais ativordquo mais ativo
13 ldquosempre poco a poco levemente mais ativordquo ldquo(ritmos algo regulares)rdquo =
14 ldquosempre poco a poco mais ativordquo ldquo(poco a poco ritmos mais regulares)rdquo =
15 ldquosempre poco a poco mais e mais ativordquo ldquo(poco a poco ritmos mais regulares)rdquo
=
16 ldquoatividade maacuteximardquo =P = programas
FONTE Lippe (2007) e anaacutelise do autor (2019)
A fim de visualizar esta relaccedilatildeo de outra maneira atribuiacutemos um valor relativo de
atividade sendo 0 = natildeo ativo e 5 = atividade maacutexima Obtemos assim uma representaccedilatildeo
visual da relaccedilatildeo entre os fluxos no modo de relacionamento atividade-inatividade
GRAacuteFICO 1 - ATIVIDADE DE DOIS FLUXOS (INSTRUMENTAL E ELETRO ACUacuteSTICO) EM MUSIC
FOR SNARE DRUMAND COMPUTER DE CORT LIPPE (6 MINUTOS INICIAIS)
5
4
bullS 3cd T3
o1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
Programas
FONTE o autor (2019)
Sons instrumentais Sons eletrocircnicos
Ao observarmos o graacutefico natildeo eacute difiacutecil imaginarmos uma partitura tornando possiacutevel
assim fazer uma analogia com o movimento entre vozes distintas paralelo obliacutequo e
contraacuterio Em vez da direccedilatildeo dos movimentos intervalares de cada voz observamos a direccedilatildeo
dos movimentos no eixo atividade-inatividade de cada fluxo
44 IN MEMORJAM JO N HIGGINS DE ALVIN LUCIER
In Memoriam Jon Higgins (1984) para Clarineta em laacute e oscilador eacute a primeira peccedila
de Alvin Lucier para instrumento solo e gerador de ondas puras A peccedila consiste num
glissando ascendente de 20 minutos do oscilador que varre a tessitura da clarineta sofrendo
interferecircncia perioacutedica por esta O glissando ascende um semitom a cada 30 segundos O
clarinete toca uma nota durante um minuto (agraves vezes duas de 30 segundos) e pausa durante 30
segundos As frequecircncias fundamentais das notas do clarinete se encontram proacuteximas agraves
frequecircncias do oscilador e por isso causam o fenocircmeno de batimento Este fenocircmeno eacute criado
a partir da interaccedilatildeo entre sons da clarineta e sons do oscilador Assim nossa anaacutelise objetiva
demonstrar o desenvolvimento dos batimentos ao longo da peccedila e seus consequentes aspectos
interativos De um lado abordamos questotildees sonoro-morfoloacutegicas de interferecircncia e gesto de
outro as questotildees da performance fazendo uma analogia com sistemas interativos
Batimento eacute um fenocircmeno acuacutestico que ocorre quando duas ou mais frequecircncias estatildeo
proacuteximas Uma variaccedilatildeo perioacutedica de amplitude (batimento) eacute causada pelas interferecircncias
construtivas e destrutivas entre as duas ondas A frequecircncia de batimento eacute igual agrave diferenccedila
entre as duas frequecircncias (LOY 2006) Por exemplo o primeiro intervalo da peccedila eacute uma
segunda menor em que o clarinete toca um Reacute (cerca de 73 Hz) e o oscilador eacute um Doacute
sustenido (cerca de 69 Hz) portanto a frequecircncia de batimento eacute igual a cerca de 4 Hz A nota
da clarineta eacute constante natildeo muda sua frequecircncia fundamental A frequecircncia do oscilador
sobe ateacute alcanccedilar o uniacutessono com a clarineta diminuindo assim a diferenccedila entre as
frequecircncias e portanto diminuindo a frequecircncia de batimento que vai de 4 Hz para 0 Hz o
que poderiacuteamos chamar de um ritardando
127
128
FIGURA 36 - ILUSTRACcedilAO DE BATIMENTOS ACCELERANDO E RJTARDANDO NO COMECcedilO DE INMEMORIAM JON HIGGINS
A Clarinet(Sounds a minor third
lower than written)
Oscillator(Actual sounds) I
Intervals 1 u (-1)(semitones u = unison)__________________________________________________________________
X T ----------------------0 rdquo 30rdquo
tixT---------------- --- rdquo 1rsquo 1 rsquo 30rdquo
W W W VAAAWritardando accelerando
FONTE o autor (2019)
Dois paracircmetros satildeo diretamente associados nesta relaccedilatildeo (micro)intervalo e ritmo
Nas palavras do compositor ldquoO fenocircmeno do batimento acuacutestico a ideia de que o ritmo pode
ser criado pela afinaccedilatildeo Eu gosto muito desta ideiardquo151
Devemos considerar que um semitom natildeo eacute sempre o mesmo intervalo no domiacutenio da
frequecircncia Por exemplo em comparaccedilatildeo com o primeiro intervalo da peccedila o uacuteltimo tambeacutem
de um semitom eacute tambeacutem o intervalo entre o Doacute sustenido (554 Hz) e o Reacute (587 Hz) A
diferenccedila entre as frequecircncias no primeiro intervalo era de 4 Hz neste uacuteltimo eacute de 33 Hz
Assim para um ldquomesmordquo semitom diferentes frequecircncias de batimentos satildeo possiacuteveis Como
a peccedila tem uma direcionalidade contiacutenua para o agudo a diferenccedila entre as frequecircncias
aumenta conforme vatildeo para um registro mais agudo de maneira que eacute possiacutevel perceber um
accelerando ao longo da peccedila Assim outros dois paracircmetros satildeo associados ritmo e registro
Algumas caracteriacutesticas perceptuais dos batimentos satildeo importantes para entendermos
a complexidade que se instaura nestes materiais e processos superficialmente simples (1)
Quando a frequecircncia de batimento diferenccedila entre as duas frequecircncias eacute menor do que cerca
de 15 Hz percebemos elas como uma uacutenica - a meacutedia das duas frequecircncias com uma variaccedilatildeo
de amplitude os batimentos (LOY 2006 p 174) No primeiro intervalo por exemplo entre
69 Hz e 73 Hz ouvimos uma uacutenica frequecircncia de 71 Hz com um batimento de 4 Hz Neste
caso (ateacute cerca de 15 Hz) a frequecircncia de batimento eacute muito lenta para o percebermos como
altura percebemos suas oscilaccedilotildees individuais como ritmo (2) Quando a frequecircncia de
batimento eacute maior que cerca de 50 Hz as oscilaccedilotildees satildeo muito raacutepidas para serem percebidas
151 ldquoThe phenomenon of acoustical beating the idea that rhythm can be created by tuning I like that idea a lotrdquo Disponiacutevel em lthttpalvin-lucier-filmcomhigginshtmlgt Acesso em 12 jan 2019
129
individualmente assim percebemos as duas frequecircncias como duas alturas e a frequecircncia de
batimento pode ser interpretada como uma terceira altura chamada diference tone Entretanto
(3) se a frequecircncia de batimento estiver entre 15 Hz e 50 Hz aproximadamente152 por um lado
as oscilaccedilotildees satildeo muito raacutepidas para as ouvirmos como ritmo por outro as frequecircncias estatildeo
muito proacuteximas para distinguirmos duas alturas Assim nesta faixa os batimentos soam
rugosos O Graacutefico 2 mostra o desenvolvimento dos batimentos ao longo da peccedila de Lucier
Diferentemente da partitura o Graacutefico 2 demonstra importantes aspectos da percepccedilatildeo
da peccedila de Lucier especialmente o comportamento alternante entre os paradigmas de
batimento riacutetmico (ateacute 15 Hz) rugoso (entre 15 Hz e 50 Hz) e harmocircnico (acima de 50 Hz)
Devido ao direcionamento para o registro agudo e o consequente aumento da diferenccedila entre
as frequecircncias vemos a peccedila se desenvolver progressivamente partindo do primeiro
paradigma em direccedilatildeo a incorporaccedilatildeo mais substancial do segundo e do terceiro
GRAacuteFICO 2 - DESENVOLVIMENTO DOS BATIMENTOS EM IN MEMORIAM JON HIGGINS DE ALVIN LUCIER
FONTE Transcrito de (LUCIER 1987) e analisado pelo autor (2019)
O fenocircmeno de batimentos causado por interferecircncias de uma onda sobre outra eacute por
152 Esta faixa de 15 Hz a 50 Hz aproximadamente eacute chamada banda criacutetica ldquoFor a given frequency the critical band is the smallest band of frequencies around it which activate the same part of the Basilar Membranerdquo (TRUAX 1999 Critical Band) ldquoThe roughness only disappears at a frequency separation equal to the critical bandwidth (about one third of an octave)rdquo (LOY 2006 p180)
si soacute uma interaccedilatildeo entre as ondas Neste caso se reflete numa interaccedilatildeo entre os fluxos
sonoros do oscilador e da clarineta Um dos aspectos mais importantes desta interaccedilatildeo eacute a
fusatildeo e o contraste (MENEZES 2006) que neste caso devem ser interpretados de maneira
peculiar devido aos efeitos psicoacuacutesticos envolvidos Apresentamos abaixo uma escala da
fusatildeo ao contraste presente nesta peccedila
bull Uniacutessono similaridade causando o estado de duacutevida Existe a transferecircncia de
caracteriacutestica espectral (frequecircncia fundamental) Natildeo se trata de uma similaridade
absoluta pois alguns fatos corroboram com a distinccedilatildeo clarineta natildeo eacute amplificada e
estaacute separada espacialmente do alto-falante por exemplo
bull Batimentos ateacute 15 Hz a fusatildeo acontece por dois fatores a frequecircncia ouvida eacute apenas
uma (a meacutedia entre as duas fundamentais) e instrumento e oscilador apresentam o
mesmo envelope de amplitude - o proacuteprio efeito de batimento
bull Batimentos de 15 a 50 Hz estaacutegio confuso com rugosidade na qual a condiccedilatildeo de
duacutevida proacutepria da fusatildeo estaacute se dissolvendo
bull Quando a diferenccedila entre fundamentais eacute maior que 50 Hz existe fusatildeo e relativo
contraste As duas frequecircncias estatildeo afastadas o suficiente para diferenciarmos a
clarineta do oscilador (relativo contraste) poreacutem as duas frequecircncias causam na escuta
no miacutenimo uma terceira frequecircncia (difference tone) O estado de duacutevida se estabelece
pois natildeo sabemos se esta frequecircncia ldquofantasmardquo vem da clarineta ou do oscilador De
fato nem de um nem de outro mas da interaccedilatildeo entre os dois
bull Pausa da clarineta contraste
Esta abordagem sobre fusatildeo e contraste explica a importacircncia do uniacutessono como o
momento de maior integraccedilatildeo um ponto convergente no qual o estado de duacutevida em relaccedilatildeo agrave
fonte sonora eacute evidente Como explica Menezes (2006 p 387) ldquoAinda que de forma alguma
hegemocircnico o estado de duacutevida traduz-se como momento supremo da interaccedilatildeordquo
No momento da performance o aspecto da integraccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo das fontes
sonoras eacute afetado pela disposiccedilatildeo do instrumentista e do alto-falante no palco O uacutenico alto-
falante que toca a parte do oscilador deve ficar agrave direita e o clarinetista agrave esquerda Esta
separaccedilatildeo ajuda a diferenciarmos as duas fontes e os dois fluxos sonoros E torna ainda mais
interessante os momentos de fusatildeo devido agrave estranha impossibilidade de se fazer a
diferenciaccedilatildeo em uma situaccedilatildeo em que isso seria simples
O ritmo em In Memoriam Jon Higgins natildeo surge por accedilatildeo individual de cada parte
130
(clarineta e oscilador) mas pela sua interaccedilatildeo Enquanto o glissando do oscilador eacute
continuamente ascendente as notas da clarineta satildeo estaacuteveis se manteacutem por 30 ou 60
segundos Assim a cada entrada da clarineta daacute-se iniacutecio a um gesto que consiste em
movimentos obliacutequos As duas frequecircncias se aproximam e se afastam causando batimentos
em accelerando e em rallentando respectivamente Estes movimentos podem ser
visualizados no Graacutefico 2 Da esquerda para a direita a linha preta ascendente representa um
accelerando enquanto que a descendente representa um rallentando Aleacutem disso eacute possiacutevel
perceber uma progressatildeo geral destes gestos Haacute uma expansatildeo da diferenccedila entre as
frequecircncias em Hz embora em semitons esta distacircncia se repete (maior intervalo eacute de 3
semitons) o que significa um aumento da frequecircncia maior dos gestos de accelerando e
rallentando
Estes gestos de batimentos estatildeo inseridos dentro do enorme glissando que sobe de
maneira quase imperceptiacutevel Assim podemos entender uma estrutura hieraacuterquica em que o
glissando de 20 minutos compreende uma estrutura de um niacutevel superior high-level
(SMALLEY 1997) enquanto que as interferecircncias perioacutedicas podem ser entendidas como de
um niacutevel inferior (low-level) A interaccedilatildeo acontece tambeacutem entre estes dois niacuteveis da estrutura
hieraacuterquica O niacutevel inferior altera o niacutevel superior Novamente estamos diante de uma
relaccedilatildeo de causalidade
Gestos como este do oscilador desafiam a percepccedilatildeo devido a sua dimensatildeo seu lento
desenvolvimento Como aponta Smalley (1997 p 113-114) ldquo[] haacute uma mudanccedila de foco
da escuta - quanto mais lento o iacutempeto gestual direto tanto mais o ouvido procura se
concentrar em detalhes internos []rdquo153 Podemos dizer assim que a peccedila de Lucier nos
convida para concentrarmos nos detalhes internos do som tais como variaccedilatildeo de amplitude
variaccedilatildeo micro-intervalar e fenocircmeno de difference tone
Os aspectos tecnoloacutegicos e praacuteticos da performance tambeacutem fomentam reflexotildees A
parte do oscilador eacute definida previamente e eacute difundida por um uacutenico alto-falante no momento
da performance Neste sentido a peccedila funciona como uma peccedila para instrumento e sons
fixados em suporte O performer precisa sincronizar com a parte do oscilador para isso
Lucier admite o uso de um afinador cromaacutetico para que o performer possa localizar a
frequecircncia do oscilador Embora entendamos este aspecto fixo do oscilador eacute preciso
considerar que o fenocircmeno de batimentos eacute um processo acuacutestico que acontece sobre ele e eacute
153Original ldquo[] there is a change of listening focus - the slower the direct gestural impetus the more the ear seeks to concentrate on inner details []rdquo (SMALLEY 1997 p 113-114)
131
controlado pelo clarinetista em tempo real Eacute um tipo de sistema interativo De acordo com
Rowe (1993) os sistemas interativos de computaccedilatildeo musical ldquosatildeo aqueles cujo
comportamento muda em resposta a uma entrada musicalrdquo (natildeo paginado) Estas mudanccedilas de
comportamento acontecem devido a uma programaccedilatildeo que estabelece ldquoleisrdquo relaccedilotildees entre a
entrada musical e a saiacuteda musical Na peccedila de Lucier satildeo as leis (psico)acuacutesticas que
estabelecem essa relaccedilatildeo Assim a parte do oscilador ldquomudardquo em resposta agraves notas da
clarineta de acordo com uma relaccedilatildeo acuacutestica presente no fenocircmeno de batimentos
(interferecircncias construtivas e destrutivas) Poderiacuteamos considerar tal configuraccedilatildeo de relaccedilotildees
um sistema interativo acuacutestico
Em conclusatildeo foi possiacutevel nesta anaacutelise identificar certas relaccedilotildees referentes a
interaccedilatildeo tanto como uma questatildeo sonoro-morfoloacutegica (batimentos fusatildeo e contraste gestos
interativos) quanto tecnoloacutegica da performance (relaccedilatildeo do performer com o oscilador preacute-
gravado) Abaixo sumarizamos as relaccedilotildees identificadas
a) Relaccedilatildeo direta entre intervalos e ritmo (frequecircncia de batimento) produzida pelo
fenocircmeno de batimentos
b) Relaccedilatildeo entre registro e frequecircncia de batimento quanto mais para o agudo o registro
mais acelerados satildeo os batimentos
c) Relaccedilatildeo de causalidade os gestos da clarineta causam mudanccedilas no enorme gesto do
oscilador Esta relaccedilatildeo natildeo eacute apenas sonoro-morfoloacutegica mas tambeacutem tecnoloacutegica
praacutetica da performance
Identificar este tipo de relaccedilotildees parece ser um caminho metodoloacutegico importante para
futuros estudos sobre interaccedilatildeo Elas abrem espaccedilo para um estudo natildeo limitado apenas agraves
relaccedilotildees entre performer e tecnologia mas apto para considerar relaccedilotildees em outros acircmbitos
como o sonoro e acuacutestico (aqui abordados) o visual (abordado em 42) o espacial o teatral
entre outros
132
133
5 SOBRE MEU PROCESSO COMPOSICIONAL
Em 2012 meu primeiro ano no curso de Bacharelado em Muacutesica - Composiccedilatildeo na
cidade de Pelotas - RS acontecia o primeiro Festival Latino-americano de Muacutesica
Contemporacircnea de Pelotas organizado pelo NuMC - Nuacutecleo de Muacutesica Contemporacircnea da
UFPel Na ocasiatildeo ouvi pela primeira vez o que se pode denominar muacutesica eletroacuacutestica
mista Entre as peccedilas deste gecircnero estavam Mosaic (2010) de Joatildeo Pedro Oliveira e Infinito
Silecircncio (2012) de Rogeacuterio Constante Levo a experiecircncia de presenciar a performance
destas peccedilas como uma das mais significativas no contato inicial com o universo da muacutesica de
concerto dos seacuteculos XX e XXI Os sons traccedilavam caminhos diversos entre os alto-falantes o
instrumento e minha imaginaccedilatildeo Se apresentava a mim talvez inconsciente disso no
momento um universo sonoro interativo de constituiccedilatildeo e dissoluccedilatildeo de camadas distintas
de interferecircncias e relaccedilotildees complexas entre materiais Some-se a isto o aspecto (in)visiacutevel da
performance visiacutevel e fiacutesica nos movimentos do performer imaginada ou referenciada quanto
aos sons acusmaacuteticos
Minha produccedilatildeo composicional durante a graduaccedilatildeo apresentou um direcionamento agrave
exploraccedilatildeo de tais caracteriacutesticas De fato uma de minhas primeiras peccedilas a ser apresentada
foi uma peccedila para piano e sons eletrocircnicos em que jaacute apareciam iniciativas natildeo eacute preciso
dizer ingecircnuas de fusatildeo e interaccedilatildeo entre gestos dos dois meios (instrumental e
eletroacuacutestico) Estas caracteriacutesticas interativas migravam sem esforccedilo para o pensamento
puramente instrumental o que seria facilmente demonstraacutevel em outras composiccedilotildees como
Ensaio I (2016) Peccedila para acordeatildeo e sons eletrocircnicos (2016) e tambeacutem em Dois
movimentos para acordeatildeo e piano (2016) que gerou o trabalho de conclusatildeo de curso
(TUCHTENHAGEN 2017) Neste uacuteltimo caso busquei na semioacutetica greimasiana154 modelos
teoacutericos para entender os materiais seu desenvolvimento suas relaccedilotildees e interaccedilotildees tanto no
processo de composiccedilatildeo quanto na anaacutelise posterior Um exemplo simples que ilustra o
interesse em questatildeo eacute aquele em que haacute uma transferecircncia de notas do acordeatildeo para o piano
(Figura 37) Esta transferecircncia acontece de tal forma que o piano interrompe a nota sustentada
do acordeatildeo para fazer soar a sua Este interromper eacute um exemplo destas caracteriacutesticas
interativas em que estava e continuo interessado aleacutem deste interferecircncias causalidades e
outras relaccedilotildees se manifestaram posteriormente
154 Aleacutem da teoria de Algirdas Julien Greimas baseei-me em trabalhos mais recentes como A Muacutesica de Hermeto Pascoal Uma abordagem Semioacutetica (ARRAIS 2006)
134
FIGURA 37 - COMPASSOS 77-78 DE DOIS MOVIMENTOS PARA ACORDEAtildeO E PIANO (2016)Grave (J = c 3 2 )
FONTE Tuchtenhagen (2017)
O interesse por estas caracteriacutesticas interativas continuou na submissatildeo do projeto de
mestrado nesta instituiccedilatildeo Inicialmente o projeto propunha estabelecer relaccedilotildees parameacutetricas
entre sons instrumentais e eletroacuacutesticos por meio de um sistema interativo Natildeo se dirigia
apenas ao estudo dos recursos tecnoloacutegicos do sistema mas tambeacutem agraves relaccedilotildees sonoras visto
que determinado paracircmetro instrumental estaria por meio de uma regra mais ou menos
variaacutevel relacionado a um paracircmetro eletroacuacutestico155 Esta proposta inicial foi modificada no
sentido de tratar menos das questotildees tecnoloacutegicas e mais das sonoro-morfoloacutegicas Atraveacutes da
revisatildeo bibliograacutefica expandiram-se as possibilidades para aleacutem de relaccedilotildees parameacutetricas e
para aleacutem da mencionada interrupccedilatildeo Destas expansotildees destaca-se a possibilidade de
agrupamentos dos eventos sonoros em fluxos distintos que interagem entre si
Durante o mestrado mantive a atividade composicional em paralelo ao trabalho
teoacuterico e analiacutetico Esta dinacircmica de pesquisa possibilitou experimentar os aspectos teoacutericos
na praacutetica composicional bem como levantar a partir da praacutetica questionamentos e
explicaccedilotildees teoacutericas Assim a composiccedilatildeo pode ser vista como parte do meacutetodo de pesquisa
teoacuterica e a teoria pesquisada como parte do meacutetodo de composiccedilatildeo
155 Tal ideia existe em Reacutepons (1984) de Pierre Boulez em que a velocidade de espacializaccedilatildeo de determinado som processado estaacute diretamente relacionada agrave intensidade com que determinado solista executa sua parte Satildeo seis solistas o som de cada um eacute processado e a espacializaccedilatildeo deste som processado acontece de acordo com esta regra
135
Este relato pessoal tem a funccedilatildeo de frisar que a pesquisa estaacute imbricada com o
pesquisador Ela se direciona a meus interesses artiacutesticos desde a graduaccedilatildeo e se deu em
paralelo agrave minha praacutetica composicional Trata-se de uma abordagem pessoal Possivelmente
ela encontre ressonacircncia em outros em seus proacuteprios interesses artiacutesticos e teoacutericos
O olhar sobre as peccedilas de outros compositores cumpriu o objetivo de elucidar a
maneira como eacute possiacutevel perceber as relaccedilotildees entre as partes portanto num niacutevel esteacutesico
(NATTIEZ 1990) Jaacute o olhar analiacutetico sobre minhas composiccedilotildees pretende apontar no niacutevel
poieacutetico como lidei com as relaccedilotildees entre fluxos sonoros156
51 CHAtildeO DE OUTONO
Chatildeo de Outono157 eacute uma peccedila para flauta e sons eletrocircnicos composta no contexto da
disciplina Toacutepicos em Composiccedilatildeo e Esteacutetica da poacutes-graduaccedilatildeo em muacutesica da UFPR O
processo criativo abrangeu um periacuteodo no acircmbito da disciplina (de abril a julho de 2017) com
performance ao final do semestre158 e outro periacuteodo (de revisatildeo) de fevereiro a abril de 2018
com performance no concerto Muacutesica Contemporacircnea Brasileira no dia 11 de abril de 2018
na Sala de Atos do SESC Paccedilo da Liberdade O processo criativo se deu em colaboraccedilatildeo com
a flautista e colega da disciplina (doutoranda) Valentina Daldegan Durante o primeiro
periacuteodo eu participava tambeacutem de aulas de composiccedilatildeo com o professor Clayton Mamedes
numa disciplina da graduaccedilatildeo onde pude trabalhar esta peccedila Meu orientador tambeacutem
acompanhava o processo de composiccedilatildeo e aleacutem disso o professor Mauriacutecio Dottori fez
alguns comentaacuterios que foram importantes na revisatildeo da peccedila Este contexto evidencia o
caraacuteter interpessoal do processo criativo
A peccedila estaacute baseada no poema homocircnimo de Mario Quintana
Chatildeo de outono
Ao longo das pedras irregulares do calccedilamento passam ventando umas pobres folhas amarelas em pacircnico perseguidas de perto por um convite de enterro sinistro
156 Os anexos mencionados no texto a seguir estatildeo disponiacuteveis em lthttpsdrivegooglecomopen id=1Fyt 16u4m5OwtHVfz 1BkxWkOx104OoNyWgt
157 Gravaccedilatildeo da estreacuteia disponiacutevel em lthttpssounddoudcomdaviraubachchaodeoutonogtViacutedeo da estreacuteia disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=l3-ULyfGk2kgtGravaccedilatildeo da segunda performance disponiacutevel em lthttpssounddoudcomdaviraubachchao-de-outonogt Acesso em 18 jan 2019
158 Concerto de encerramento da disciplina Electroacoustic live (or dead) realizado no dia 18 de julho de 2018 no TeUNI - Teatro Experimental da UFPR
136
tatalando aos pulos cada vez mais perto as duas asas tarjadas de negro (QUINTANA 2012 p 77)
A primeira intenccedilatildeo composicional era utilizar a sonoridade da leitura do poema como
um material Eu jaacute havia explorado algo semelhante no experimento Meu Trecho Predileto
(2016) para violatildeo e acordeatildeo sobre outro poema de Mario Quintana Cada nota ou acorde eacute
vinculado a uma siacutelaba Os performers natildeo devem ler o texto em voz alta (exceto ao final)
mas tocam conforme seria a leitura ou seja a leitura mental do texto determina ritmo
acentuaccedilatildeo nuances de dinacircmica e andamento (ver Figura 38) Reutilizar esta teacutecnica numa
peccedila para flauta trazia um interesse a mais pela possibilidade de os sons de fala e de flauta
serem mesclados Eles seriam dois instrumentos associados produzindo som a partir do
mesmo focirclego Isto direcionou o processo para uma exploraccedilatildeo da fronteira entre fala e flauta
FIGURA 38 - EXEMPLO DA UTILIZACcedilAtildeO DO TEXTO COMO SUBSTITUTO DE UMA ESCRITA DE FIGURAS RIacuteTMICAS EM MEU TRECHO PREDILETO
FONTE O autor (2016)
Uma segunda intenccedilatildeo se relacionava mais diretamente ao tema desta pesquisa em sua
concepccedilatildeo inicial construir um sistema interativo em que se estabelecesse relaccedilotildees de
interdependecircncia entre paracircmetros da parte instrumental e eletroacuacutestica Isto foi feito a partir
do sinal da flauta captado ao vivo rastreando (tracking) sua amplitude A fim de facilitar a
diferenciaccedilatildeo de amplitude e tambeacutem por um efeito visual optei por utilizar aleacutem do
microfone de bocal um microfone de controle relativamente afastado da flautista A partitura
indica movimentos de aproximaccedilatildeo e afastamento em relaccedilatildeo a este microfone causando
respectivamente maior e menor amplitude no sinal de aacuteudio Tal sistema foi realizado no
software PureData159 (Pd) utilizando o objeto [env~]
Ainda outra intenccedilatildeo dizia respeito agrave estabilidade morfoloacutegica dos elementos (COSTA
2009)160 Buscava um equiliacutebrio entre elementos estritos e flexiacuteveis na composiccedilatildeo
Diferentemente de trabalhar com uma meacutetrica fixa ou mesmo com a utilizaccedilatildeo de metrocircnomo
para o performer - o que jaacute havia feito na Peccedila para acordeatildeo e sons eletrocircnicos (2016) dei
preferecircncia por uma maior liberdade de interpretaccedilatildeo Desta forma o sistema foi concebido
com cinco programas que necessitam ser sucessivamente ativados durante a performance
Cada um deles tem um comportamento em relaccedilatildeo agrave amplitude do sinal da flauta e natildeo haacute a
necessidade de sincronizar eventos exceto na troca dos programas Aleacutem disso a proacutepria
exploraccedilatildeo do texto se apresentou como um oacutetimo meio de desenvolver elementos especiacuteficos
mas sem a necessidade de serem escritos de uma maneira estrita Isto eacute o tempo de leitura e
outros paracircmetros associados a ela poderiam variar de uma performance para outra Ainda
assim o uso do texto garante certa invariacircncia161 nas proporccedilotildees riacutetmicas e acentuaccedilotildees
possibilitando inclusive o tratamento motiacutevico de um fragmento textual (ver Figura 39)
137
FIGURA 39 - VARIACcedilAtildeO MOTIVICA A PARTIR DE UM FRAGMENTO TEXTUAL (SISTEMAS 2 E 3)
~PPP
FONTE O autor (2018)
A exploraccedilatildeo da fronteira entre a fala e a flauta comeccedilou com anotaccedilotildees neste modelo
de uma nota para cada siacutelaba Inicialmente exploramos (compositor e inteacuterprete) basicamente
trecircs modos de articular fala e flauta (1) voz falada normalmente (2) voz sussurrada (ambas
em posiccedilatildeo ordinaacuteria e tentando fazer soar a flauta com a fala) e (3) leitura mental (usada em
159 Patch disponiacutevel em lthttpsdrivegooglecomopenid=1Fyt16u4m5OwtHVfz1BkxWkOx104OoNyWgt160 Este interesse em particular foi explorado num trabalho apresentado no XXVIII Congresso da ANPPOM
(TUCHTENHAGEN DALDEGAN 2018)161 Costa resume ldquotudo aquilo que a cada apresentaccedilatildeo da peccedila deve do ponto de vista do projeto
composicional levando-se em consideraccedilatildeo todas as suas etapas repetir-se de alguma maneira requer o que chamo de estrateacutegia de invariacircnciardquo (COSTA 2009 p48)
Meu Trecho Predileto Figura 38) Verificamos nos encontros iniciais que a fala normal
ativava pouco o som da flauta devido agrave diferenccedila destas duas atividades Combinar a voz com
sopro direcionado significava deformar a voz ou relegar a flauta a uma muito pequena
ressonacircncia Em ambos os casos acontecia de haver um bloqueio do ar nas consoantes
oclusivas (por exemplo ldquomrdquo ou ldquonrdquo) Aleacutem disso a voz predominava de maneira geral
(especialmente em intensidade) sobre a flauta Por estes motivos flauta e voz falada se
distanciavam eram fluxos completamente distintos Embora fosse uma opccedilatildeo natildeo nos
pareceu uma relaccedilatildeo sonoro-morfoloacutegica interessante no momento devido agrave intenccedilatildeo de
explorar a fronteira a ambiguidade entre elas Com a voz sussurrada chegaacutevamos mais
proacuteximos desta intenccedilatildeo As consoantes oclusivas continuavam incontornaacuteveis mas havia um
maior equiliacutebrio entre a intensidade do sussurro e a da flauta daiacute decorreu o direcionamento
de privilegiar a voz sussurrada Uma soluccedilatildeo encontrada para a voz falada foi utilizaacute-la
cobrindo o bocal mesma posiccedilatildeo da teacutecnica tongue ram162 o que tornava possiacutevel a
alternacircncia com esta teacutecnica de maneira suacutebita A utilizaccedilatildeo do tongue ram combinada aos
cliques de chaves foi uma sugestatildeo da inteacuterprete Ela executava a teacutecnica rapidamente como
na peccedila Come Vengono Prodotti Gli Incantesimi (1985) de Salvatore Sciarrino a qual havia
tocado Outra abordagem foi a de uma fala com as vogais omitidas permanecendo apenas as
consoantes que teriam a funccedilatildeo de ataque do som da flauta Neste modo a compreensatildeo do
texto eacute dificultada Isto era positivo jaacute que a fala estava sendo descontextualizada de sua
funccedilatildeo ordinaacuteria de articulaccedilatildeo da linguagem verbal para um lugar sonoro agraves vezes ocupando
um entre-lugar
Deste processo de exploraccedilatildeo inicial resultaram cinco modos de articulaccedilatildeo entre fala
e flauta
1) leitura mental os sons satildeo tocados no tempo e ritmo como seriam lidas as siacutelabas
para a qual se notou o texto em estilo tachado
2) voz sussurrada omitindo as vogais quase ininteligiacutevel as consoantes satildeo responsaacuteveis
pela articulaccedilatildeo dos sons da flauta para a qual se utilizou a notaccedilatildeo do texto com as
vogais em subscrito
3) voz sussurrada eacute executada com forccedila ofegante para que ative tambeacutem os sons da
flauta para a qual se utilizou a notaccedilatildeo do texto sublinhado
4) voz falada dentro do bocal para a qual se notou o texto dentro de caixas
162 Tongue ram teacutecnica executada cobrindo o porta-laacutebio da flauta com a boca e fechando rapidamente apassagem de ar com a liacutengua gerando assim um ataque percussivo
138
139
5) voz entoada sem altura determinada notada com cabeccedila de nota quadrada fora da
pauta163
Existe uma gama de possibilidades em relaccedilatildeo agrave leitura do texto Isso trazia a
preocupaccedilatildeo de que outros inteacuterpretes optassem por maneiras de ler o texto natildeo previstas ou
desconectadas com a proposta Nos ensaios era possiacutevel ler o texto com a inteacuterprete para
oferecer alguma referecircncia Na partitura optei por definir uma escala de termos referentes ao
andamento da fala que vai de lento (15 a 3 siacutelabas por segundo) a mais raacutepido possiacutevel
A parte eletroacuacutestica foi pensada a partir destas sonoridades da fala Basicamente dois
materiais satildeo articulados A um chamo assovios a outro folhas A confecccedilatildeo do som de
assovios teve o seguinte processo
a) gravaccedilatildeo tanto por mim quanto por Valentina deste assovio com som de ldquossrdquo com
pouco fluxo de ar e com a boca em forma de ldquourdquo
b) filtragem O plugin ReaFir do software Reaper foi usado com a funccedilatildeo de subtrair
perfis construiacutedos com a proacutepria amostra
c) montagens com os sons resultantes do processamento sobreposiccedilatildeo transposiccedilatildeo
reversatildeo entre outras
A confecccedilatildeo do som de folhas passou por
a) gravaccedilatildeo do poema sussurrado por mim e por Valentina
b) gravaccedilatildeo do poema sussurrado por Valentina na flauta - ativando o reacute mais grave da
flauta em doacute
c) gravaccedilatildeo de cliques de chaves e tongue-ram
d) processamento (granulaccedilatildeo) destas gravaccedilotildees no software Cecilia5164
e) montagens com os sons resultantes sobreposiccedilatildeo transposiccedilatildeo reversatildeo entre outras
Assovios e folhas se constituem por ateacute cinco faixas165 resultantes deste processo de
confecccedilatildeo que ficam tocando em loop embora agraves vezes sem soar A amplitude da flauta
determina qual deles soaraacute Se acima de determinado valor limite ( treshold) soam as folhas
por exemplo se abaixo deste valor soam os assovios Este eacute o funcionamento do primeiro
programa Um esquema dos programas pode ser visto na Figura 41 extraiacuteda da partitura
Consideraremos dois fluxos da macrotextura nesta peccedila instrumental (flauta-fala) e
163 Para mais detalhes da notaccedilatildeo confira a partitura (Anexo 2)164 Cecilia5 eacute um software livre mantido pelaAjax Sound Studio httpajaxsoundstudiocomsoftware165 Dentro da pasta geral do patch (ldquochaodeoutono_raubachrdquo) haacute uma pasta ldquoaudiordquo onde estatildeo as faixas que
compotildeem os sons de assovios e de folhas bem como outras que satildeo executadas durante a peccedila O leitor poderaacute ouviacute-las se desejar Eacute tambeacutem possiacutevel simular a performance com o patch Isto pode ser feito com o proacuteprio microfone do computador Neste caso utilize fones-de-ouvido para evitar a realimentaccedilatildeo
eletroacuacutestico Cada um deles apresenta componentes que tambeacutem podem ser abordados
como fluxos Por exemplo a parte eletroacuacutestica dos assovios eacute constituiacuteda por cinco faixas
distintas entretanto estas faixas natildeo podem ser percebidas individualmente com facilidade
Elas formam uma microtextura O mesmo acontece com as folhas
Tambeacutem na parte instrumental eacute possiacutevel identificar dois principais componentes
internos flauta e fala No pensamento composicional a diferenciaccedilatildeo deles eacute relativamente
clara Haacute uma notaccedilatildeo para a fala e outra para a flauta Entretanto postos em accedilatildeo
simultaneamente estes dois componentes internos que satildeo tambeacutem fluxos apresentam forte
interdependecircncia o que gera uma ambiguidade uma confusatildeo sobre o que ou quando eacute flauta
e o que ou quando eacute fala166
Aleacutem dos ataques tradicionais satildeo os ataques da fala que geram som na flauta Haacute
uma ambiguidade na percepccedilatildeo de um ataque tradicional e um ataque proveniente do texto
No primeiro trecho da Figura 39 baseado no texto ldquoao longo das pedrasrdquo as siacutelabas ldquoaordquo e
ldquolon-rdquo devem ser apenas mentalizadas A flauta eacute executada por ataques ordinaacuterios com som
eoacutelio Entretanto nas siacutelabas seguintes - ldquo-go das pe-drasrdquo o modo de fala eacute sussurrado mas
omitindo as vogais Das primeiras duas siacutelabas (ldquoao lon-rdquo) para as seguintes (ldquo-go das peshy
drasrdquo) haacute uma mudanccedila de foco da percepccedilatildeo que passa do som da flauta para o som da fala
embora apoacutes a entrada da fala ainda soe a flauta Haacute um deslocamento na percepccedilatildeo de qual
dos fluxos estaacute em primeiro plano Tendo em mente a terceira maneira de abordar a ideia de
primeiro plano e plano de fundo (p 81) a fala por seu caraacuteter fortemente indicativo costuma
se sobrepor a qualquer outro som A Figura 40 ilustra estes deslocamentos A curva sobre as
duas linhas da tabela (flauta e fala) indica em linhas gerais qual dos dois estaacute em primeiro
plano
140
166 Eacute possiacutevel que haja um pensamento em fluxos na composiccedilatildeo isto eacute como estrateacutegia composicional que natildeo se faz tatildeo claro ou mesmo natildeo eacute identificaacutevel na escuta Entretanto imagino ser recomendaacutevel questionar os resultados sonoros desta estrateacutegia Haacute o risco de o compositor cair num formalismo em que pense que as estrateacutegias composicionais justificam a muacutesica quando como acreditamos soacute a experiecircncia subjetiva da escuta o faraacute
141
FIGURA 40 - DESLOCAMENTOS DE FLAUTA E FALA PARA O PRIMEIRO PLANO EM CHAO DE OUTONO
Flauta
Indica qual dos fluxos estaacute em 1deg plano
6
iacute
tempo de falanormal__
igtv $ t|laquo
c ^ j W W W V V V W
T(bisbigliando)
gt bull(]Ao l0n - g0 das peP mP
^ ---frullato
dr_
(Sistema 2)ppp
t | v (bull )
mp
(Sistema 12)
FONTE O autor (2019)
142
Os cinco programas do patch satildeo brevemente explicados na Figura 41
FIGURA 41 - RELACcedilOtildeES PRESENTES NOS PROGRAMAS DO PATCH
A parte eletroacuacutestica estaacute dividida em 5 programas que devem ser ativados de acordo com as indicaccedilotildees na partitura Os programas constituem-se basicamente de sons preacute-gravados que tecircm sua amplitude e espacializaccedilatildeo determinadas em tempo real por uma relaccedilatildeo com a amplitude da flauta captada pelo microfone de controle Dessa forma pode-se resumir o comportamento dos programas da seguinte maneira
P1 Flauta EletroacuacutesticaP ^ sons de ldquoassoviosrdquo
^ sons de ldquofolhasrdquo
P2 Flauta EletroacuacutesticaP ^ sons de ldquofolhasrdquo
f ^ sons de ldquoassoviosrdquo
P3 Flauta EletroacuacutesticaP ^ nada
f ^ sons de tongue-ramNeste programa tambeacutem haacute uma camada eletroacuacutestica independente (sons como ldquorasgosrdquo) que determina aespacializaccedilatildeo da flauta
Eletroacuacutestica FlautaP ^ espacializaccedilatildeo estaacutetica
^ espacializaccedilatildeo em movimento
P4 Eletroacuacutestica independente sons de ldquofolhasrdquo
P5 Eletroacuacutestica independente sons de ldquoassoviosrdquo
FONTE O autor (2018)
Todos os programas tecircm tambeacutem uma faixa que soa no momento de sua ativaccedilatildeo
independentemente da amplitude da flauta e se relaciona interage com a nota tocada pela
flauta no momento167 Estas notas satildeo marcas estruturais da peccedila Inicialmente havia a
intenccedilatildeo de rastreaacute-las a fim de ativar os programas automaticamente Este recurso foi
experimentado e relativamente bem-sucedido Seria uma vantagem caso algum inteacuterprete
quisesse executar a peccedila sem o auxiacutelio de um performer especiacutefico para a difusatildeo
eletroacuacutestica Entretanto no caso de nossas performances eu necessitava estar presente para
167 Na pasta ldquoaudiordquo satildeo as seguintes faixas programa 2 ldquonoteFwavrdquo 3 ldquonoteDwavrdquo 4 ldquonoteP4wavrdquo 5 ldquoassobiofinalwavrdquo
143
diversas configuraccedilotildees do aparato eletroacuacutestico Por isso decidi eliminar tal recurso do patch
e assumir a funccedilatildeo de trocar os programas
511 Programa 1
A peccedila comeccedila com um crescendo da parte eletroacuacutestica solo (assovios)
evidenciando sua independecircncia em relaccedilatildeo agrave flauta-fala - assim nomearemos o conjunto que
representa o meio instrumental na peccedila A flauta-fala comeccedila incorporando o mesmo assovio
preacute-gravado com o qual funde e a medida que apresenta atividade com intensidade suficiente
para disparar o ldquogatilhordquo no patch a parte eletroacuacutestica responde com atividades de folhas
Aleacutem disso a espacializaccedilatildeo168 destas folhas acontece tambeacutem numa relaccedilatildeo com a amplitude
da flauta-fala quanto mais forte mais distante do centro da sala soam as folhas Este
movimento de afastamento das folhas eacute progressivo foi suavizado utilizando o objeto [line]
do Pd Os assovios por outro lado estatildeo fixos em sua localizaccedilatildeo de projeccedilatildeo na sala
Os materiais da parte instrumental tambeacutem podem ser agrupados nestas duas
categorias (assovio e folhas) e podem fundir ou contrastar com a parte eletroacuacutestica Ambos
fusatildeo e contraste estatildeo longe de serem absolutos O Quadro 6 apresenta possiacuteveis relaccedilotildees de
fusatildeo e contraste baseadas na Morfologia da interaccedilatildeo de Menezes (2006)
QUADRO 6 - FUSAtildeO E CONTRASTE NO PRIMEIRO PROGRAMA DE CHAtildeO DE OUTONO
Fusatildeo relativa Contraste relativo
Fluxo instrumental Assovios Folhas Folhas Assovios
Fluxo eletroacuacutestica Assovios Folhas Assovios Folhas
FONTE o autor (2019)
Quando a atividade da flauta-fala apresenta um material semelhante ao das folhas
acontece relativa fusatildeo Podemos enquadrar esta interaccedilatildeo na categoria de Bachrataacute (2010)
interaccedilatildeo por reproduccedilatildeo tiacutembrica ldquoo timbre do gesto eletroacuacutestico eacute um tipo de reproduccedilatildeo
do timbre do instrumento (usando sons instrumentais gravados pouco manipulados)rdquo
(BACHRATAacute 2010 p 167 traduccedilatildeo nossa169)
Por vezes um material de flauta-fala semelhante aos assovios devido a sua
168 O patch estaacute programado com duas opccedilotildees de difusatildeo esteacutereo e quadrafocircnico169 Original ldquothe timbre of electroacoustic gesture is a kind of reproduction of the timbre of the instrument
(using slightly manipulated recorded instrumental sound)rdquo (BACHRATAacute 2010 p 167)
intensidade dispararaacute sons de folhas causando relativo contraste Assim embora haja uma
regra invariaacutevel que relaciona a intensidade da flauta-fala com o material eletroacuacutestico isso
natildeo significa invariabilidade no eixo fusatildeo-contraste entre estes dois fluxos
Assim no programa 1 apresenta-se um fluxo independente (assovios) embora a
flauta-fala dialogue com ele atraveacutes do som de ldquossrdquo e outro dependente e homogecircneo com a
flauta o das folhas (ver representaccedilatildeo destas relaccedilotildees no Quadro 7) Eacute importante tambeacutem
notar que a flauta-fala e as folhas apresentam um caraacuteter fortemente gestual (incluindo o gesto
visual de aproximaccedilatildeo e afastamento do microfone) enquanto que o fluxo assovios eacute
primariamente textural170
512 Programa 2
O segundo programa inverte a relaccedilatildeo da intensidade da flauta-fala com a resposta
eletroacuacutestica Quando a intensidade da flauta ultrapassa o valor limite natildeo satildeo os sons de
folhas mas os de assovios que vecircm a tona A mesma relaccedilatildeo inversa afeta a espacializaccedilatildeo
Natildeo satildeo os mesmos sons do primeiro programa haacute uma variaccedilatildeo - especialmente a utilizaccedilatildeo
de um harmonizador sobre as amostras do primeiro
Na relaccedilatildeo entre fala e flauta haacute um tensionamento Busquei especialmente no
momento de revisatildeo apoacutes a primeira performance explorar mais a relaccedilatildeo entre o som do ldquorrdquo
como em ldquoperseguidasrdquo com o frullato da flauta O terceiro excerto da Figura 40 representa
um exemplo desta exploraccedilatildeo Haacute tambeacutem a inserccedilatildeo discreta do material de tongue-rams
associado a cliques de chaves Este eacute o principal material durante a accedilatildeo do programa
seguinte
513 Programa 3
Nos programas anteriores a intensidade da flauta-fala afetava o que soava (materiais)
e como soavam (espacializaccedilatildeo) os sons eletroacuacutesticos No terceiro programa o inverso
acontece a intensidade dos sons eletroacuacutesticos preacute-gravados afeta a espacializaccedilatildeo da flauta-
fala Um novo material eletroacuacutestico eacute incorporado o chamaremos rasgos171 Ele soa como
novidade ainda que seja proveniente de processamento dos sons de cliques de chaves jaacute
170 Gesto e textura (SMALLEY 1997) foram abordados em 332171 Na pasta ldquoaudiordquo do patch eacute a faixa ldquoclicks3wavrdquo
144
utilizados O patch rastreia a amplitude destes rasgos e quando esta ultrapassa determinado
valor limite o som da flauta-fala ao vivo eacute espacializado pela sala tal qual satildeo as folhas no
primeiro programa
Outro novo material eletroacuacutestico eacute incorporado neste programa Ele eacute composto por
sons processados (granulaccedilotildees e transposiccedilotildees para o grave) de tongue-rams Este material
vecircm a tona pelo mesmo processo de rastreamento da amplitude da flauta configurando
assim uma relaccedilatildeo de gatilho (WISHART 1996)
Os tongue-rams incorporados esparsamente jaacute no segundo programa preponderam
neste terceiro e alternam com a voz falada e tambeacutem com uma atividade mais idiomaacutetica da
flauta Isto significa uma alternacircncia entre modos de execuccedilatildeo cobrindo o bocal e posiccedilatildeo
ordinaacuteria que carrega uma forccedila visual Assim os gestos que surgem nesta alternacircncia se datildeo
neste ldquoabrir e fecharrdquo do som da flauta-fala expandindo e diminuindo o registro espectral
como um filtro em associaccedilatildeo com o gesto visual Quase como a alternacircncia entre a
percepccedilatildeo do som dentro drsquoaacutegua e fora dela
514 Programa 4 e 5
O quarto e o quinto programa natildeo apresentam relaccedilotildees parameacutetricas com o sinal da
flauta-fala O quarto foi inserido apoacutes a revisatildeo dura poucos segundos e serve como uma
conexatildeo entre o terceiro e o final Ele se constitui basicamente pelo que estamos chamando de
fo lhas Por outro lado o quinto programa consiste em sons de assovios semelhantes aos
iniciais
Uma ilustraccedilatildeo da relaccedilatildeo entre a parte instrumental e a eletroacuacutestica durante a peccedila
pode ser vista na Figura 41
145
146
QUADRO 7 - RELACcedilOtildeES ENTRE FLUXOS SONOROS EM CHAO DE OUTONO
03O75
O03OultDs
P1
Assovios
F2 F3 F4 F5
Folhas
RasgosTongue-ramsAmostra de iniacutecio de cada programa
o o
Flauta-fala S mdash J - S mdash J- AEspacializaccedilatildeo da flauta-fala
A seta indica uma relaccedilatildeo de ldquogatilhordquo (WISHART 1996) indica uma reaccedilatildeo de outro fluxo agravequele do qual ela parte A ausecircncia dela significa independecircncia dos fluxos
FONTE o autor (2019)
Eacute preciso lembrar que as relaccedilotildees de gatilho (WISHART 1996) que acontecem a partir
do rastreamento da amplitude da flauta-fala satildeo muitas vezes associadas ao movimento
corporal da performer ao se aproximar do microfone de controle Esta eacute uma exploraccedilatildeo
incipiente do aspecto visual mencionado em 35 O movimento estabelece uma relaccedilatildeo com a
resposta eletroacuacutestica o que oferece uma referecircncia gestual para o resultado sonoro Ele estaacute
notado na partitura atraveacutes dos ciacuterculos com setas (ver Figura 39) No viacutedeo da primeira
performance172 eacute possiacutevel ver como foi esta primeira experiecircncia Em alguns momentos
mesmo sem se aproximar a resposta eletroacuacutestica surgia Isto natildeo era um problema estava
previsto Entretanto em alguns momentos a indicaccedilatildeo de se aproximar estava sobre um
material em dinacircmica piano (som de ldquossrdquo) que natildeo ativava a resposta eletroacuacutestica Neste
caso avaliando posteriormente como ouvinte haacute a tendecircncia de continuar escutando o
resultado eletroacuacutestico como decorrente desta aproximaccedilatildeo ainda que seja na praacutetica
completamente independente
Natildeo houve muito rigor na aplicaccedilatildeo deste rastreamento de amplitude o que foi
intencional Todas as variaacuteveis assim satildeo flexibilidades da performance tipo do microfone
distacircncia do microfone movimento da performer valor limite (threshold) do patch Natildeo era
desejado que a cada gesto da flauta-fala houvesse uma reaccedilatildeo eletroacuacutestica Esta reaccedilatildeo era
( )
172 Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=l3-ULyfGk2kgt Acesso em 18 jan 2019
147
e de fato foi imprevisiacutevel
52 NASCER PEDRA MORRER NUVEM
Ergui a gola do sobretudo desci a aba do chapeacuteu ateacute perto dos olhos e troquei as dependecircncias do hotel pelas da cerraccedilatildeo Satolep estava apropriadamente decorada para minha festa solitaacuteria As coisas geometrizadas pelo frio mostravam-se volaacuteteis Linhas rigorosas agrave luz do dia eram agora ausecircncia de contornos Fazer trinta anos eraperder-me no nevoeiro tendo em vista a concretude da cidade ou o contraacuterio Umcatildeo flutuava atraacutes de uma charrete que passava O granito do meio-fio corria ao meu lado agraves vezes reluzente em sua umidade agraves vezes dissipado em vapor luminoso um outro catildeo de pedra e de nuvem catildeo de alguma mitologia condenado a nascer e morrer indefinidamente Nascer pedra e morrer nuvem Nascer nuvem e morrer pedra Trinta anos Soprei velinhas imaginaacuterias e minha alma revuloteou diante de mim (RAMIL 2008)
A peccedila Nascer pedra morrer nuvem (2018) para violatildeo e sons eletrocircnicos foi
composta para o violonista Eric Moreira no periacuteodo de maio a novembro de 2018 quando foi
estreada no SESC Paccedilo da Liberdade em Curitiba-PR no dia 22 O texto de Ramil (2008)
descreve imagens que tenho internalizadas e que ocupavam minha mente enquanto
compunha Trata-se de um reflexo da cidade de Pelotas (Satolep) Reencontrei este texto
durante o processo composicional Ele natildeo cumpriu funccedilatildeo estrateacutegica na composiccedilatildeo apenas
foi um pensamento presente que deu nome a peccedila
Dois aspectos direcionaram o processo criativo O primeiro se refere ao tema desta
pesquisa o interesse de explorar a textura em fluxos distintos e aspectos ambiacuteguos (fusatildeo
dissoluccedilatildeo contraste etc) e interativos (causalidades gatilhos) da relaccedilatildeo entre eles O
segundo era de ordem praacutetica trabalhar com sons fixados em suporte a fim de facilitar
possiacuteveis futuras performances Uma vez que natildeo eacute necessaacuterio um conhecimento de softwares
especiacuteficos o proacuteprio performer pode dar iniacutecio aos sons eletroacuacutesticos Aleacutem disso a
utilizaccedilatildeo de uma projeccedilatildeo em esteacutereo tambeacutem facilita a montagem da performance
Em conversas preacutevias agrave composiccedilatildeo o violonista jaacute havia demonstrado certa
preferecircncia por um tipo de sincronizaccedilatildeo como o da peccedila Synchronisms no 10 de Mario
Davidovsky Esta peccedila utiliza sons fixados em suporte e se vale de deixas eletroacuacutesticas que
facilitam entradas e sincronizaccedilotildees precisas do violonista A peccedila de Davidovsky foi uma
referecircncia importante neste processo criativo
O iniacutecio de Nascer pedra morrer nuvem apresenta quatro tipos de materiais
a) harmocircnicos naturais
148
b) campanella teacutecnica de instrumentos de cordas pinccediladas em que se utilizam cordas
soltas em movimentos escalares fazendo com que estas ressoem mais como pequenos
sinos (significado do termo em italiano)
c) frequecircncia contiacutenua foi composta a partir da gravaccedilatildeo de uma corda solta do violatildeo
omitindo-se o ataque justapondo repeticcedilotildees (com crossfades) da parte sustentada
(sustain) transpondo e criando glissandos posteriormente
d) sons percussivos compostos a partir de gravaccedilotildees do ataque ordinaacuterio (unha pinccedilando
a corda abafada por exemplo) e outros materiais percussivos173
A frequecircncia contiacutenua e a atividade do violatildeo (campanella e harmocircnicos) podem ser
percebidas como fluxos que se relacionam por similaridade de frequecircncias fundindo quando
alcanccedilam frequecircncias muito proacuteximas como na nota Reacute dos compassos 9 e 10 (ver Figura 42)
Os sons percussivos compotildeem um fluxo mais complexo pois tratam-se de sons mais
heterogecircneos entre si No momento inicial este fluxo eacute composto por eventos esparsos174 Ele
apresenta pouca relaccedilatildeo com os outros exceto por sincronias ocasionais175 e relaccedilatildeo tiacutembrica
com os ataques do violatildeo
FIGURA 42 - QUATRO MATERIAIS DE NASCER PEDRA MORRER NUVEM (COMPASSOS 8 a 10)
harmocircnicos
I frequecircncia contiacutenua
sonspercussivos
Fonte O autor 2019
O direcionamento de partir desta aacuterea sonoro-morfoloacutegica com preponderacircncia de
sons harmocircnicos (campanella harmocircnicos frequecircncia contiacutenua) para outra com maior
presenccedila de sons inarmocircnicos176 (ataques percussivos e outros materiais) movia a composiccedilatildeo
173 O compasso 56 apresenta alguns dos materiais usados na composiccedilatildeo destes sons percussivos eletroacuacutesticos (ver Figura 44) Trata-se da combinaccedilatildeo de duas atividades (1) percutir com polpa dos dedos da md ldquoaleatoriamenterdquo sobre o tampo o mais raacutepido possiacutevel e (2) rasgueado de me com cordas abafadas pela md com vaacuterios dedos em defasagem e usando as 6 cordas (som percussivo granular)
174 Eles natildeo estatildeo completamente indicados na partitura optei por indicar apenas os eventos que representassem um recurso de sincronia deixas para o inteacuterprete
175 Estes foram os principais sons usados como deixas (ver som percussivo no compasso 9 - Figura 42)176 A distinccedilatildeo de harmonicidade e inarmonicidade eacute abordada por Smalley (1997 p 120)
(atividade composicional) Um recurso para executar tal direcionamento foi utilizar sons
ldquoresiduaisrdquo inerentes agrave execuccedilatildeo do violatildeo o mencionado ataque da unha pinccedilando a corda e
aleacutem disso o ruiacutedo dos dedos deslizando sobre as cordas quando muda-se a posiccedilatildeo177 Este
uacuteltimo eacute incorporado progressivamente ateacute que alcanccedila um momento de transiccedilatildeo (compasso s
40 a 55 ver Figura 43) Neste momento haacute uma baixa atividade harmocircnica que permanece
constante e ao mesmo tempo uma intensificaccedilatildeo dos sons provenientes do deslizar dos dedos
sobre as cordas que por praticidade chamaremos ruiacutedo das cordas
FIGURA 43 - COMPASSOS 39 a 54 TRANSICcedilAtildeO EM NASCER PEDRA MORRER NUVEM (2018)
149
39
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UJJUJJUJJUJJUMUM-
FONTE O autor (2018)
Tal transiccedilatildeo evidencia o princiacutepio arquitetural (WISHART 1996) Haacute uma
diminuiccedilatildeo da presenccedila harmocircnica diminuiccedilatildeo da duraccedilatildeo dos arpejos do violatildeo de sua
177 Estes sons satildeo notados com uma cabeccedila de nota em forma de barra (ver Figura 43)
u
intensidade (dinacircmica) e da frequecircncia contiacutenua na parte eletroacuacutestica Por outro lado haacute
um aumento da duraccedilatildeo do ruiacutedo das cordas No comeccedilo desta transiccedilatildeo este ruiacutedo eacute
executado apenas pelo violatildeo Posteriormente a parte eletroacuacutestica repete multiplica
expande esses sons ateacute que preencham toda a textura Se utilizarmos a categoria atividade-
inatividade (SMALLEY 1997) nesta anaacutelise veremos um movimento contraacuterio entre
atividade dos fluxos harmocircnicos (descendente) e atividade dos fluxos inarmocircnicos
(ascendente)
No momento seguinte a esta transiccedilatildeo os sons percussivos satildeo explorados tambeacutem na
parte do violatildeo Satildeo combinadas duas teacutecnicas (1) percutir com polpa dos dedos da matildeo
direita (m d) ldquoaleatoriamenterdquo sobre o tampo o mais raacutepido possiacutevel (4 na Figura 44) e (2)
rasgueado de matildeo esquerda (m e) com cordas abafadas pela md com vaacuterios dedos em
defasagem e usando as 6 cordas (som percussivo granular) (5 na Figura 44) Somados aos
sons percussivos eletroacuacutesticos estes sons instrumentais fundem num uacutenico fluxo que
chamaremos de pedras Esta fusatildeo natildeo decorre tanto da similaridade espectral quanto da
sincronizaccedilatildeo de iniacutecio e teacutermino da atividade
FIGURA 44 - COMPASSOS 55 a 60 TREcircS FLUXOS
150
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FONTE O autor (2018)
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3
E
Na parte eletroacuacutestica utilizei tambeacutem a gravaccedilatildeo de sons das cordas tocadas acima
da pestana do violatildeo Este material apresenta similaridade de ataque com as teacutecnicas
executadas pelo violatildeo neste momento entretanto apresentam conteuacutedos frequenciais (notas
agudas) ausentes nestas teacutecnicas A confusatildeo desta fusatildeo (quem estaacute fazendo o que) eacute
acentuada pela imprevisibilidade do resultado sonoro das teacutecnicas mencionadas e a alta
densidade de pequenos eventos tanto do meio instrumental quanto do eletroacuacutestico Este
fluxo de pedras existe independentemente daquele do ruiacutedo das cordas e interage com ele em
relaccedilotildees de causalidade (SMALLEY 1997)
A causalidade eacute evidente pois as pedras datildeo iniacutecio aos ruiacutedos das cordas (compasso
56) e datildeo fim a eles (compasso 58) como se o ligassem e desligassem (ver Figura 44) Mas
esta relaccedilatildeo eacute tambeacutem flexibilizada no compasso 60 quando o fluxo de pedras natildeo interfere
sobre o fluxo de ruiacutedo das cordas (ver Figura 44) Enquanto estes dois fluxos interagem haacute
concorrentemente um fluxo de harmocircnicos independente resquiacutecios da seccedilatildeo passada eou
pressaacutegios da seccedilatildeo final
A uacuteltima seccedilatildeo que aliaacutes foi a primeira a ser composta retoma a aacuterea sonoro-
morfoloacutegica harmocircnica inicial sem a presenccedila das interrupccedilotildees de sons percussivos Estaacute
presente um fluxo muito discreto de estalos (ver picos isolados no sonograma da Figura 45)
que natildeo afetam a preponderacircncia dos sons harmocircnicos Os materiais que compotildeem esta aacuterea
harmocircnica satildeo diferentes dos iniciais natildeo haacute a continuidade da semicolcheia haacute uma
presenccedila maior de harmocircnicos naturais e a parte eletroacuacutestica natildeo apresenta glissandos
amplos
Nesta seccedilatildeo os fluxos estatildeo estruturados em vozes A voz composta por notas tocadas
ordinariamente eacute a mais linear embora haja certa confusatildeo devido agrave proximidade da voz de
harmocircnicos e alguns cruzamentos entre elas A parte eletrocircnica daacute corpo agrave ressonacircncia de
algumas notas soando ora como uma extensatildeo da parte instrumental ora como uma
frequecircncia independente (ver Figura 45)
151
152
FONTE O autor (2019)
O final da peccedila propotildee uma interaccedilatildeo que estava latente nesta relaccedilatildeo entre os
materiais Tanto no comeccedilo quanto nesta seccedilatildeo final a parte eletroacuacutestica eacute articulada num
niacutevel microtonal com frequecircncias muito proacuteximas e glissandos Ao final busquei explicitar
este aspecto utilizando o bend no violatildeo com repeticcedilatildeo de notas e fazendo algo semelhante na
frequecircncia contiacutenua da parte eletroacuacutestica Dando mais tempo para o efeito neste final
tornou-se mais faacutecil perceber os batimentos como em In Memoriam Jon Higgins de Lucier
(analisada em 44) A Figura 46 apresenta os uacuteltimos compassos da peccedila
FIGURA 46 - COMPASSOS 89 a 93 BATIMENTOS
V
E
| nTN TN
TNesperar fim do tape
t e
Fonte O autor (2019)
Resumidamente o princiacutepio arquitetural (WISHART 1996) da peccedila consiste no
percurso ilustrado no Quadro 8 Apesar de a representaccedilatildeo lembrar outras que apresentamos
ela natildeo se refere aos fluxos e suas relaccedilotildees Trata-se de um mapeamento da presenccedila das
aacutereas sonoro-morfoloacutegicas da peccedila Estas podem estar presentes em fluxos quaisquer embora
estejamos conscientes de que nesta peccedila trabalhamos com os materiais em fluxos distintos e
isso faz com que haja certa coincidecircncia entre aacutereas sonoro-morfoloacutegicas e fluxos
153
QUADRO 8 - REPRESENTACcedilAtildeO DO PRINCIacutePIO ARQUITETURAL DE NASCER PEDRA MORRER NUshyVEM
Compassos 1 a 52 53 a 64 65 a 93
Qriir bomiAcirciiirrr bulluUiio iiqiiiiuiiiCcedilUo
Sons inarmocircnicos mdash _ _ _
Fonte O autor (2019)
Tal articulaccedilatildeo entre aacutereas sonoro-morfoloacutegicas eacute de fato uma articulaccedilatildeo formal Ela
evidencia a mencionada previsatildeo de Varegravese de que o timbre poderia se tornar ldquoum agente de
delineamento como as diferentes cores num mapa separando diferentes aacutereas e uma parte
integral da formardquo (VARESE apud SIMMS 1996 p 112)
154
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Nosso trabalho comeccedilou separando e aproximando dois acircmbitos distintos tecnoloacutegico
e sonoro-morfoloacutegico Interaccedilatildeo na muacutesica mista se refere agraves relaccedilotildees entre um performer e
um aparato tecnoloacutegico e ao mesmo tempo se refere agraves relaccedilotildees que os sons instrumentais e
ou eletroacuacutesticos mantecircm uns com os outros178 O caso de um sistema interativo que capta
um paracircmetro da performance e estabelece uma relaccedilatildeo direta com uma transformaccedilatildeo do
som captado eacute um exemplo no qual os acircmbitos distinguidos se impactam mutuamente Um
procedimento tecnoloacutegico de interaccedilatildeo daacute origem a relaccedilotildees sonoras interativas e estas
possivelmente suscitaram aquele Entretanto os impactos de um acircmbito sobre outro natildeo satildeo
generalizaacuteveis Uma mesma relaccedilatildeo sonora interativa pode existir ainda que natildeo se valha de
uma tecnologia interativa
Tendo em vista a impossibilidade de afirmaccedilotildees categoacutericas quanto agraves
correspondecircncias entre estes dois acircmbitos a questatildeo da preferecircncia por esta ou aquela teacutecnica
mais ou menos interativa (tecnologicamente) permanece particular O compositor poderaacute
seguir recomendaccedilotildees de outro mais experiente ou experimentar por si mesmo as vantagens e
desvantagens das teacutecnicas e tecnologias De nossa perspectiva esta querela dos tempos eacute
particular a cada compositor e a cada processo criativo A teacutecnica em tempo diferido oferece
ao compositor facilidade para modelar detalhar e introduzir contraste nos materiais
eletroacuacutesticos as teacutecnicas em tempo real oferecem facilidade para criar materiais
eletroacuacutesticos que fundem com e expandem o som instrumental Contudo ambos os
objetivos podem ser alcanccedilados com ambas as teacutecnicas As duas teacutecnicas se confundem
quando o sistema interativo em tempo real se vale de materiais preacute-gravados ou quando os
sons preacute-gravados mudam em tempo real por alguma accedilatildeo instrumental (por exemplo In
memorian Jon Higgins de Alvin Lucier) Em minha atividade composicional considero que
um sistema interativo que se valha de sons preacute-gravados aleacutem do som captado ao vivo eacute uma
opccedilatildeo mais interessante do que as excludentes Esta opccedilatildeo hiacutebrida une as vantagens de ambas
as teacutecnicas Implementei esta opccedilatildeo no patch de Chatildeo de outono de minha autoria
Um sistema interativo oferece agrave muacutesica eletroacuacutestica uma relaccedilatildeo com o performer
humano que carrega caracteriacutesticas humanas para a muacutesica como argumenta Garnett (ver p
178 No Capiacutetulo 2 nos ocupamos de separar e aproximar estes dois acircmbitos Os autores que fundamentaram esta investigaccedilatildeo foram Schrader (1991) Schulz (2010) Ribeiro et al (2016) Rowe (1993) Menezes (2006) Whaley (2009) Dias (2014) Stroppa (1999) Brummer et al (2001) Garnett (2001) Simon Emmerson (2013) Bachrataacute (2010) Smalley (1997) Ribeiro (2018) e Caesar (2018)
34) Ainda que as partes eletroacuacutesticas preacute-gravadas sejam fruto de uma performance em
estuacutedio e carreguem assim caracteriacutesticas humanas a relaccedilatildeo de performance centrada no
performer humano em palco eacute uma posiccedilatildeo mais explicitadora destes valores humanistas Esta
discussatildeo se insere numa discussatildeo maior e que provavelmente cresceraacute ainda mais nos
proacuteximos anos aquela que discute a relaccedilatildeo entre humano e maacutequina tanto do ponto de vista
teacutecnico quanto de uma perspectiva filosoacutefica e eacutetica O reflexo desta discussatildeo geral seraacute
provavelmente visto nas discussotildees musicais concernentes agrave muacutesica eletroacuacutestica mista e
outras iniciativas de arte com sons que implementam recursos como a inteligecircncia artificial
Desvencilhando-nos desta querela inicial podemos atentar de maneira especial para as
relaccedilotildees e interaccedilotildees sonoras presentes na muacutesica eletroacuacutestica mista A interaccedilatildeo neste
acircmbito analiacutetico natildeo eacute exclusividade da muacutesica mista embora nela se encontre muito
evidenciada Haacute por exemplo interaccedilatildeo entre vozes numa textura puramente instrumental e
tambeacutem entre gestos na muacutesica puramente eletroacuacutestica Na muacutesica mista haacute a soma e a
multiplicaccedilatildeo das possibilidades de relaccedilotildees instrumentais com as possibilidades de relaccedilotildees
eletroacuacutesticas Haacute relaccedilotildees e interaccedilotildees entre os sons dos diferentes meios envolvidos
Assim falar de interaccedilatildeo na muacutesica mista considerando apenas estes dois grupos de sons - os
instrumentais e os eletroacuacutesticos - eacute uma simplificaccedilatildeo da complexidade que nela se
apresenta Primeiramente porque estes grupos de sons natildeo satildeo tatildeo separados como eacute possiacutevel
crer - sons eletroacuacutesticos podem ser a exata reproduccedilatildeo de um som instrumental ou apenas
um efeito sobre o som instrumental Os dois trabalhos que abordam especificamente a
interaccedilatildeo na muacutesica mista o artigo de Menezes (2006 p 377-400) e a tese de Bachrataacute
(2010) baseiam-se especialmente nesta separaccedilatildeo entre sons instrumentais e sons
eletroacuacutesticos Embora estes estudos tenham resultados muito relevantes acreditamos que a
teoria precisa relativizar esta separaccedilatildeo baseada no fisiologismo teacutecnico e tecnoloacutegico Os
sons podem ser agrupados em fluxos independentemente de sua produccedilatildeo ter sido mecacircnica
ou eletromecacircnica (circuito - altofalante) Eacute preciso entatildeo atentar para como na experiecircncia
da escuta agrupamos os sons
Neste sentido a psicologia da audiccedilatildeo explica que segregamos o todo sonoro que
chega aos nossos ouvidos em fluxos auditivos distintos Esta segregaccedilatildeo acontece por
aspectos dos sons a correlaccedilatildeo entre iniacutecio e teacutermino dos componentes sonoros a diferenccedila
de localizaccedilatildeo espacial registro espectral entre outros Assim podemos distinguir sons que
vecircm de uma pessoa falando daqueles provenientes de um eletrodomeacutestico por exemplo Os
155
sons de cada um deles satildeo agrupados em fluxos auditivos distintos (BREGMAN 2004 2008
SHEPARD 1999)
Esta explicaccedilatildeo guarda relaccedilatildeo com a maneira como tradicionalmente distinguimos
partes simultacircneas de um todo musical Em muacutesica o termo usado para expressar a
complexidade das simultaneidades eacute textura Ela eacute formada por linhas e vozes simultacircneas
(fluxos auditivos) que interagem umas com as outras Para que identifiquemos uma destas
vozes e a diferenciemos de outra eacute preciso que haja continuidade nas caracteriacutesticas dos sons
que a compotildeem especialmente eou tradicionalmente timbre registro e sincronia de iniacutecio e
fim dos sons (SHEPARD 1999)
Aleacutem da voz um fluxo auditivo pode ser constituiacutedo de uma sonoridade Guigue
(2011) apresenta a ideia de sonoridade e a possibilidade de uma polifonia de sonoridades
Uma sonoridade eacute caracterizada por diversos aspectos como coleccedilatildeo de cromas particcedilatildeo
intensidade entre outros A principal diferenccedila em relaccedilatildeo a ideia de voz eacute que a sonoridade
pode se apresentar uma apoacutes a outra A voz eacute uma explicaccedilatildeo da segregaccedilatildeo da textura em
planos simultacircneos a sonoridade eacute propriamente uma textura Entretanto haacute a possibilidade
de uma polifonia de sonoridades o que seria desta forma uma textura de texturas Assim a
ideia de textura carrega em potencial um caraacuteter como o dos fractais
Esta concepccedilatildeo natildeo eacute estranha ao repertoacuterio do seacuteculo XX e tem seu fundamento na
ideia de uma textura de efeito global presente em obras de Anton Webern (Sinfonia Op 21
por exemplo) (SIMMS 1996) Este efeito global de uma textura em que natildeo atentamos para
vozes em desenvolvimento individual e linear mas sim para um todo resultante foi muito
explorado por compositores durante o seacuteculo XX Podemos lembrar das massas sonoras de
Ligeti (Atmospheres por exemplo) formadas por muitas linhas em uma micro-polifonia Em
Xenakis eacute possiacutevel perceber a simultaneidade de massas distintas (Pithoprakta por exemplo)
Estas texturas que formam massas quando sobrepostas soam simultaneamente instaurando
uma outra textura A primeira indica a configuraccedilatildeo de elementos do niacutevel micro enquanto
que a segunda indica uma configuraccedilatildeo destas microtexturas numa macrotextura A
concepccedilatildeo que integra estas duas ideias de textura natildeo foi identificada em nossas referecircncias
bibliograacuteficas Elas estatildeo presente separadamente se esta ou aquela depende do repertoacuterio agrave
que se estaacute se referindo Em nenhuma de nossas leituras sobre muacutesica eletroacuacutestica o termo
textura indicava o aspecto macro Na espectro-morfologia de Smalley (1997) por exemplo
textura contrapotildee gesto e se refere a uma continuidade sonora que assume um caraacuteter de
156
157
proporccedilotildees ambientais em oposiccedilatildeo agraves proporccedilotildees humanas do gesto Por conta destas
proporccedilotildees tendemos a prestar mais atenccedilatildeo aos detalhes internos do som Citamos
novamente o autor
Ao mesmo tempo haacute uma mudanccedila de foco da escuta - quanto mais lento o iacutempeto gestual direto tanto mais o ouvido procura se concentrar em detalhes internos (ateacute onde eles existam) Uma muacutesica que eacute primariamente textural assim se concentra na atividade interna agraves custas do iacutempeto antecipado179 (SMALLEY 1997 p 113shy114 traduccedilatildeo nossa)
Ao tratar de comportamento Smalley salienta que a metaacutefora pode ser aplicada entre
outros exemplos a um grupo de texturas (SMALLEY 1997 p 118) Ora se pensamos uma
textura de maneira anaacuteloga a uma voz este ldquogrupo de texturasrdquo representa uma configuraccedilatildeo
semelhante a que nos referimos no exemplo de Xenakis uma textura de texturas Para
diferenciar estes dois tipos de texturas nos referimos a microtextura e macrotextura Esta
nomenclatura eacute menos uma proposta teoacuterica a ser replicada do que um meio de indicar
diferentes acepccedilotildees no acircmbito deste trabalho unicamente Assim como exemplos eacute possiacutevel
haver uma macrotextura em que haja fluxos texturais (microtexturas) que soam
simultaneamente e ainda uma macrotextura em que haja um fluxo textural que soa
simultaneamente a outro gestual por exemplo
Portanto demonstramos assim que ao nos referirmos agrave interaccedilatildeo neste acircmbito
sonoro-morfoloacutegico eacute preciso considerar qual niacutevel estrutural estamos analisando Pode haver
interaccedilatildeo entre elementos que compotildeem as microtexturas como tambeacutem entre aqueles que
compotildeem a macrotextura Nosso interesse analiacutetico voltou-se sobretudo agrave macrotextura
aquela que eacute primeiro e mais facilmente percebida No caso de nossa anaacutelise de
Desintegration (41) por exemplo o fluxo que denominamos ataques agudos e ressonacircncias
era formado por gestos texturais Entretanto nos bastou compreendecirc-lo como um fluxo e
investigamos sua relaccedilatildeo com os outros Natildeo atentamos para a interaccedilatildeo entre os ataques
presentes no interior deste fluxo os diferentes timbres destes ataques etc nos interessava
mais o aspecto da macrotextura
Quando Guigue (2011 p 47-81) trata da polifonia de sonoridades salienta para a
segregaccedilatildeo do todo sonoro em fluxos distintos O uso deste termo como explicita o autor estaacute
179 Original ldquoAt the same time there is a change of listening focus - the slower the direct gestural impetus the more the ear seeks to concentrate on inner details (insofar as they exist) A music which is primarily textural then concentrates on internal activity at the expense of forward impetusrdquo (SMALLEY 1997 p 113-114)
intimamente relacionado agrave teoria da psicologia da audiccedilatildeo especialmente dos estudos de
Albert Bregman Tendo por base esta teoria entendemos que a ideia de fluxo eacute uma opccedilatildeo
interessante para indicar qualquer tipo de agrupamento de sons sucessivos que apresentam
continuidade em um miacutenimo de aspectos e podem se diferenciar de outro agrupamento
semelhantemente definido Em Wishart (1996) anterior aos estudos de Bregman fluxo
(stream) eacute uma maneira de pensar a separaccedilatildeo das simultaneidades de uma maneira menos
enrijecida e mais flexiacutevel liacutequida Os fluxos podem se dissolver um no outro Neste sentido
consideramos um termo adequado para se referir a muitos dos processos sonoros
eletroacuacutesticos que habitam regiotildees ambiacuteguas fronteiriccedilas e menos definidas Evidentemente
a anaacutelise pode se valer de outras terminologias como planos massas e camadas de acordo
com a intenccedilatildeo analiacutetica com vista agravequilo que se quer demonstrar O fluxo daacute conta de
ambiguidades dissoluccedilotildees fusotildees e contrastes progressivos A camada expressa a separaccedilatildeo
permanente pouco variaacutevel O plano indica a existecircncia de transparecircncias o primeiro plano
natildeo oculta o segundo plano e haacute movimentos de aproximaccedilotildees e distanciamentos em relaccedilatildeo
ao ouvinte Aliaacutes talvez estes movimentos atravessam os planos sejam proacuteprios de uma
espeacutecie de fluxo transversal A massa eacute um tipo especiacutefico de camada fluxo ou plano ela eacute
sempre textural Ainda assim a denominaccedilatildeo fluxo parece se adaptar mais facilmente a
diferentes situaccedilotildees Ele pode se apresentar estaacutevel como a camada pode estar emcruzar por
planos distintos pode ser uma massa Estas asserccedilotildees natildeo visam agrave definiccedilatildeo das
terminologias e carecem de exemplos e especificidades - algumas das quais foram exploradas
em nossa pesquisa Mas elas satildeo interpretaccedilotildees do que foi observado na teoria na anaacutelise e
na composiccedilatildeo
Os estudos cognitivos mencionados (BREGMAN 2004 2008 SHEPARD 1999)
bem como outros recursos teoacutericos da muacutesica (BERRY 1987 MENEZES 2006) nos ajudam
a pensar a distinccedilatildeo dos fluxos e a identificar caracteriacutesticas de separaccedilatildeo fusatildeo e
ambiguidades intermediaacuterias Entretanto haacute um outro aspecto que natildeo diz respeito apenas agraves
caracteriacutesticas sonoras mas tambeacutem a como as relacionamos com outras experiecircncias As
relaccedilotildees satildeo concebidas por um processo de referenciaccedilatildeo extriacutenseca (NATTIEZ 1990) Por
ouvir determinada relaccedilatildeo sonora nos referenciamos a experiecircncias externas agrave muacutesica Daiacute
podemos falar de comportamento dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo conflito-coexistecircncia sujeito e
contra-sujeito entre outros
A abordagem de Smalley (1997) sobre o comportamento oferece categorias que se
158
mostraram relevantes nas anaacutelises Os pares de oposiccedilatildeo domiacuteniosubordinaccedilatildeo e
conflitocoexistecircncia foram os principais recursos utilizados desta teoria Foram articulados
atraveacutes do modo de relacionamento atividade-inatividade tanto na anaacutelise de Desintegrations
de Murail quanto de Music fo r Snare Drum and Computer de Lippe Na peccedila de Lippe foi
possiacutevel representar o movimento dos fluxos em relaccedilatildeo a este eixo (atividade-inatividade) o
que evidenciou relaccedilotildees entre os fluxos neste paracircmetro movimento paralelo obliacutequo e
contraacuterio
Nossa anaacutelise de Desintegrations explorou tambeacutem os conceitos de Wishart (1996) A
transformaccedilatildeo harmocircnico-tiacutembrica da seccedilatildeo foi entendida como o princiacutepio arquitetural da
seccedilatildeo Entretanto algumas aacutereas sonoro-morfoloacutegicas dissimilares se mostram inseridas nesta
transformaccedilatildeo Neste sentido nossa anaacutelise tomou um rumo diferente da proposta de Wishart
que previa que estas aacutereas sonoro-morfoloacutegicas abarcassem todos os fluxos (como as
tonalidades abarcam todas as vozes) Extendendo a comparaccedilatildeo de Wishart com o tonalismo
poderiacuteamos dizer que eacute como se a peccedila fosse politonal Isto eacute as aacutereas sonoro-morfoloacutegicas
distintas encontram-se sobrepostas em muitos momentos Por isso foi possiacutevel entendecirc-las
cada uma como constituidoras de um fluxo Cada fluxo deriva do anterior partindo de uma
dependecircncia homogecircnea ou interativa inicial e indo para a independecircncia Esta eacute basicamente
a articulaccedilatildeo da dimensatildeo vertical do princiacutepio dinacircmico O quadro de Wishart (Quadro 3) foi
explorado como um graacutefico em duas dimensotildees para expressar a relaccedilatildeo de dois fluxos
iniciais (ver Figura 34) Na observaccedilatildeo da peccedila Nascer pedra morrer nuvem (52) os fluxos
tambeacutem se mostraram atrelados agraves aacutereas sonoro-morfoloacutegicas Eles carregam caracteriacutesticas
sonoras - que eacute tambeacutem o que os diferenciam - que delimitam estas aacutereas por sua maior
presenccedila ou ausecircncia
Na anaacutelise de Strange Autumn de Takasugi nos preocupamos em demonstrar a
plausibilidade de um fluxo visual conforme apontado em 35 Prezamos por apontar as
relaccedilotildees identificadas observando o mencionado viacutedeo da performance natildeo nos detendo a
particularidades das relaccedilotildees entre os fluxos ou de seus componentes internos Foi possiacutevel
identificar correspondecircncias variadas entre o fluxo visual e os fluxos sonoros Ressalta-se
neste aspecto trecircs possibilidades (1) a possibilidade de a accedilatildeo visual ser associada a um
resultado aural que esperamos ouvir Por exemplo quando o recitante abre a boca como se
falasse ldquoardquo e ouvimos o som correspondente - ldquoardquo Por outro lado (2) a accedilatildeo visual pode natildeo
corresponder a este tipo de expectativa causando assim um efeito de ventriloquismo uma
159
duplicaccedilatildeo estranha devido agrave sincronizaccedilatildeo labial (TAKASUGI 2016) por exemplo
quando o recitante articula como se falasse ldquolerdquo (da palavra leaves) e ouvimos em vez do som
esperado um som percussivo vagamente semelhante a um mecanismo de uma maacutequina de
escrever Aleacutem disso (3) a accedilatildeo visual pode ser independente e natildeo corresponder a qualquer
som Aspectos visuais tambeacutem foram apontados em Chatildeo de outono (51) Entretanto na
composiccedilatildeo da peccedila natildeo houve a preocupaccedilatildeo de considerar este aspecto um elemento da
textura Esta possibilidade me atrai pois faz com que tudo faccedila parte da peccedila olhares passos
viradas de paacuteginas etc E aleacutem disso se relaciona com esta questatildeo inerente agrave muacutesica
eletroacuacutestica a ambiguidade de percepccedilatildeo da produccedilatildeo e da fonte sonora Possivelmente
explorarei tais recursos visuais em composiccedilotildees futuras
Nossa abordagem sobre a obra de Cort Lippe buscou identificar com base nas notas
de programa das peccedilas peculiaridades e diferenccedilas entre os trabalhos com instrumentos e
sons fixados em suporte e aqueles com instrumentos e sistema interativo Apontamos a
tendecircncia de nas peccedilas que fazem uso de sons fixados em suporte os meios instrumental e
eletroacuacutestico serem concebidos com relativo contraste num diaacutelogo Nas peccedilas que fazem
uso de sistemas interativos a tendecircncia eacute de conceber estes dois meios numa maior fusatildeo
Music fo r Snare Drum and Computer se enquadra nesta segunda categoria Ainda assim foi
possiacutevel observar relativo contraste alcanccedilado especialmente por um processo de afastamento
da parte eletroacuacutestica em relaccedilatildeo agrave parte instrumental por meio de processamentos de maior
interferecircncia
Na anaacutelise de In Memoriam Jon Higgins destacamos a interaccedilatildeo em tempo real
baseada natildeo num sistema interativo mas num fenocircmeno (psico)acuacutestico - os batimentos
Devido a este fenocircmeno fusatildeo e contraste (MENEZES 2006) acontecem de maneira peculiar
nesta peccedila Apontamos tambeacutem as relaccedilotildees diretas e inversas entre paracircmetros como por
exemplo entre registro e frequecircncia de batimentos
Alguns conteuacutedos foram levantados como referenciais no Capiacutetulo 3 e natildeo foram
retomados ou natildeo ganharam grandes proporccedilotildees nas anaacutelises ou na composiccedilatildeo
caracteriacutesticas de relaccedilotildees entre vozes (BERRY 1987) questotildees de orquestraccedilatildeo (SIMMS
1996) aspectos da teoria de Guigue como a oposiccedilatildeo adjacente e a segmentaccedilatildeo (GUIGUE
2011) modelos de interaccedilatildeo de Bachrataacute (2010) e possivelmente outros Entretanto mais do
que pragmaacutetico o Capiacutetulo 3 eacute uma discussatildeo sobre a abordagem de uma macrotextura da
muacutesica eletroacuacutestica Ele natildeo apenas eacute um preacute-requisito dos capiacutetulos 4 e 5 mas sustenta a si
160
mesmo na funccedilatildeo de abrir e explorar esta discussatildeo Estes conteuacutedos foram importantes para
tratar da questatildeo central da pesquisa ldquo[] a caracterizaccedilatildeo e a interaccedilatildeo de fluxos distintos
percebidos na experiecircncia de escuta []rdquo (p 18) As anaacutelises dos capiacutetulos 4 e 5 objetivaram
trazer a teoria para um acircmbito da plausibilidade praacutetica apelando natildeo apenas para a
razoabilidade das ideias mas para a verificaccedilatildeo aural de suas possibilidades Neste sentido
nas anaacutelises natildeo tentamos incluir todos os recursos teoacutericos mas evidenciar as constituiccedilotildees e
interaccedilotildees nos valendo apenas daqueles que a partir da escuta nos pareciam mais adequados
O capiacutetulo 5 levou a discussatildeo para um acircmbito pessoal A atividade composicional natildeo
foi um ldquofluxordquo independente da pesquisa mas interagiu com ela A pesquisa por sua vez
surgiu de interesses composicionais e foi continuamente alimentado por eles Esta interaccedilatildeo
entre compor e pesquisar eacute o que faz esta pesquisa ser diferente de uma pesquisa em teoria e
anaacutelise A anaacutelise das peccedilas neste capiacutetulo se confundem com um memorial descritivo pois o
pesquisador natildeo eacute apenas o analista mas tambeacutem o compositor Os objetivos da pesquisa que
concerniam agrave constituiccedilatildeo e interaccedilatildeo de fluxos mais ou menos distintos eram tambeacutem
objetivos composicionais entretanto a metodologia foi distinta o pesquisar articulou a teoria
o compor os sons
Na anaacutelise de Chatildeo de outono foi possiacutevel notar uma estreita relaccedilatildeo entre
configuraccedilatildeo do sistema interativo e relaccedilotildees entre fluxos distintos A principal relaccedilatildeo
apontada foi de gatilho (WISHART 1996) que eacute neste caso tanto uma caracteriacutestica sonoro-
morfoloacutegica como um aspecto praacutetico-tecnoloacutegico da performance Na anaacutelise de Nascer
pedra morrer nuvem evidenciou-se a possibilidade de muacuteltiplos fluxos nos dois meios o
meio instrumental apresenta ateacute trecircs fluxos simultacircneos por exemplo
Tanto nas anaacutelises de Desintegrations Strange Autumn e Music fo r Snare Drum and
Computer quanto na abordagem das proacuteprias peccedilas Chatildeo de outono e Nascer pedra morrer
nuvem a investigaccedilatildeo dos fluxos sonoros apresentou implicaccedilotildees formais No capiacutetulo 4
analisamos apenas uma seccedilatildeo de cada peccedila entretanto no interior destas seccedilotildees foi possiacutevel
observar desenvolvimentos mudanccedilas responsaacuteveis por particionar (mais ou menos
claramente) o percurso musical Estas mudanccedilas estavam atreladas a desenvolvimentos e
mudanccedilas na macrotextura A investigaccedilatildeo da macrotextura do desenvolvimento de fluxos
sonoros da sua dominaccedilatildeo sobre ou sua subordinaccedilatildeo a outros fluxos das aacutereas sonoro-
morfoloacutegicas que manifestam ofereceu uma perspectiva dinacircmica da forma Em
Desintegrations e em Nascer pedra morrer nuvem notamos fluxos diretamente relacionados
161
com as aacutereas sonoro-morfoloacutegicas (WISHART 1996) que estes manifestam Aleacutem disso
notamos transiccedilotildees mais ou menos graduais de uma aacuterea para a seguinte devido ao
desenvolvimento de fluxos sonoros Em Strange Autumn a presenccedila e ausecircncia de elementos
texturais segmenta a seccedilatildeo analisada em duas partes Em Music fo r Snare Drum and
Computer as relaccedilotildees oscilantes de atividade-inatividade delineiam um percurso para a seccedilatildeo
Estas anaacutelises evidenciaram uma estreita relaccedilatildeo entre a textura e os aspectos formais das
peccedilas
Questotildees mais especiacuteficas das particularidades da diferenciaccedilatildeo entre os fluxos
tambeacutem podem ser abordadas em pesquisas futuras Isto eacute pode-se abordar quais satildeo os
paracircmetros aleacutem dos mencionados que nos permitem diferenciar os fluxos qual a forccedila que
eles tecircm nesta diferenciaccedilatildeo quais combinaccedilotildees de paracircmetros podem ser usados na
diferenciaccedilatildeo etc Ainda outra questatildeo eacute se os demais recursos da spectro-morfologia
(SMALLEY 1997) aleacutem daqueles utilizados nesta pesquisa (atividade-inatividade e
harmonicidade-inarmonicidade) podem cumprir esta funccedilatildeo de diferenciar os fluxos
processos de crescimento e de movimento movimentos de textura (microtextura) espaccedilo
espectral e densidade e espaccedilo-morfologia
Tendo observado que no eixo atividade-inatividade eacute possiacutevel analisar os movimentos
(paralelo obliacutequo e contraacuterio) de um fluxo (432) em relaccedilatildeo a outro podemos especular se o
mesmo natildeo seria possiacutevel em outros eixos (que descrevem aspectos ou paracircmetros) como
harmonicidade-inarmonicidade densidade de eventos ou inclusive aqueles que decorrem da
parametrizaccedilatildeo de algum aspecto particular em determinada peccedila Isto eacute pensar a interaccedilatildeo
entre os fluxos como uma relaccedilatildeo parameacutetrica Esta seria uma perspectiva quase matemaacutetica
passiacutevel de ser expressa em graacuteficos como fizemos na anaacutelise de Music fo r Snare Drum and
Computer (432) e provavelmente mais proacutexima da implementaccedilatildeo em recursos tecnoloacutegicos
- mapeamentos e outros procedimentos Ao mesmo tempo eacute preciso considerar que mesmo
que as relaccedilotildees sejam abordadas nestes termos elas fazem referecircncia a experiecircncias externas
agrave muacutesica As referecircncias comportamentais satildeo extriacutensecas (SMALLEY 1997) Isto eacute
baseando-nos numa relaccedilatildeo parameacutetrica (intramusical) dificilmente poderemos identificar
dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo ou conflito-coexistecircncia para isso eacute preciso fazermos referecircncia a
experiecircncias externas que se aproximem de alguma maneira do que estamos ouvindo
Esta pesquisa foi uma exploraccedilatildeo das possiacuteveis relaccedilotildees no interior da textura da
muacutesica eletroacuacutestica mista Por um lado buscou-se modelos teoacutericos para a concepccedilatildeo de
162
uma textura neste contexto por outro investigou-se no proacuteprio ato criativo musical
estrateacutegias de estruturaccedilatildeo desenvolvimento e interaccedilatildeo dos elementos da textura Nesta
segunda investigaccedilatildeo de ordem mais praacutetica optou-se por uma maior liberdade A exploraccedilatildeo
de relaccedilotildees texturais - constituir fluxos e colocaacute-los em interaccedilatildeo - na composiccedilatildeo natildeo foi
sistematizada Ainda que os dois processos tenham se influenciado mutuamente agrave
composiccedilatildeo reservou-se a liberdade em coerecircncia com a concepccedilatildeo pessoal de que ela tem
sua proacutepria origem caminho e destino e que eles satildeo artiacutesticos antes de serem cientiacuteficos
163
164
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172
ANEXOS
Anexo 1 Quadros de modelos de interaccedilatildeo gestual de Petra Bachrataacute (2010)
Anexo 2 Partitura de Chatildeo de outono (2017-8)
Anexo 3 Partitura de Nascer pedra morrer nuvem (2018)
Outros anexos gravaccedilotildees viacutedeos e patch disponiacuteveis em
lthttpsdrivegooglecomopenid=1Fyt16u4m5OwtHVfz1BkxWkOx104OoNyWgt
173
ANEXO 1 - QUADROS DE MODELOS DE INTERACcedilAtildeO GESTUAL DE PETRA
BACHRATAacute (2010)
I Modelos elementares de interaccedilatildeo gestual
A Interaccedilatildeo gestual por similaridade ou diferenccedila de alturafrequecircncia
1 Fusatildeo pela mescla de alturafrequecircncia idecircntica - interaccedilatildeo unissocircnica2 Fusatildeo por similaridade de frequecircncia
Fusatildeo no registro grave Fusatildeo no registro meacutedio Fusatildeo no registro agudo
3 Contraste por distinccedilatildeo de frequecircncia4 Interaccedilatildeo por flutuaccedilatildeo de bandas frequenciais5 Interaccedilatildeo baseada em ruiacutedo
C Interaccedilatildeo gestual por trajetoacuteria de intensidade1 Interaccedilatildeo crescendo2 Interaccedilatildeo decrescendo3 Interaccedilatildeo por intersecccedilotildees e cruzamentos (crossovers) em trajetoacuterias de intensidade4 Combinaccedilatildeo dos modelos anteriores
B Interaccedilatildeo gestual baseada em organizaccedilatildeo temporal
1 Interaccedilatildeo sincrocircnicaRegular- uniriacutetmica
Irregular- sincopada
2 Interaccedilatildeo assincrocircnicaRegularIrregularPoliriacutetmica
3 Interaccedilatildeo temporal proporcional por reduccedilatildeo ou multiplicaccedilatildeo de duraccedilatildeo ou padratildeo temporal4 Interaccedilatildeo por agrupamento textural5 Interaccedilatildeo atemporal6 Surrealismo socircnico temporal
D Interaccedilatildeo gestual de acordo com ascaracteriacutesticas tiacutembricas (similaridadediferenccedila)
1 Fusatildeo tiacutembricaInteraccedilatildeo por reproduccedilatildeo tiacutembrica Interaccedilatildeo por derivaccedilatildeo tiacutembrica Interaccedilatildeo por associaccedilatildeo tiacutembrica
2 Contraste tiacutembricoInteraccedilatildeo por dissociaccedilatildeo tiacutembrica
174
II Interaccedilatildeo gestual baseada no modelo tripartite de estrutura (onset-continuant-termination)
1 Interaccedilatildeo por ataque2 Interaccedilatildeo por iteraccedilatildeo3 Interaccedilatildeo por ressonacircncia (ataque-decaimento)4 Interaccedilatildeo por ressonacircncia invertida (ataque-decaimento invertido)5 Combinaccedilatildeo de interaccedilatildeo por ressonacircncia e por ressonacircncia invertida6 Interaccedilatildeo cadencial - interaccedilatildeo por terminaccedilatildeo gradual7 Interaccedilatildeo por cross-fading
III Interaccedilatildeo gestual contrapontiacutestica
1 Interaccedilatildeo repetitiva2 Interaccedilatildeo imitativa3 Interaccedilatildeo canocircnica4 Interaccedilatildeo canocircnica com loop5 Interaccedilatildeo proporcional
RitmoAlturaRitmo e altura
6 Contraponto entre gestos homogecircneos7 Contraponto entre gestos heterogecircneos8 Interaccedilatildeo de gatilho (triggering)
Interaccedilatildeo de gatilho pela potenciaccedilatildeo entre morfologias Interaccedilatildeo de gatilho por transformaccedilatildeo tiacutembrica
9 Contraponto pela divisatildeo do gesto
175
IV Interaccedilatildeo gestual baseada em caracteriacutesticas semacircntico-morfoloacutegicas
Direccedilatildeoa Direccedilatildeo de movimento no campo da altura
Interaccedilatildeo linearpor direccedilatildeo similar de movimento
- ascendente- descendente- plano
por direccedilatildeo diferente de movimento- convergente- divergente- reciacuteproco
Interaccedilatildeo curvilinearInteraccedilatildeo por manipulaccedilatildeo da direccedilatildeo no campo da altura
por contraccedilatildeo por expansatildeo
Interaccedilatildeo cecircntrica pericentral centriacutepeta centriacutefuga
EnergiaInteraccedilatildeo por energia constantemantida Interaccedilatildeo por aumento de energia Interaccedilatildeo por diminuiccedilatildeo de energia Interaccedilatildeo por energia transformadaconvertida Combinaccedilatildeo dos modelos anteriores
b Direccedilatildeo enquanto evoluccedilatildeo do tempo - direccedilatildeo no campo das duraccedilotildees
Interaccedilatildeo por velocidade constante Interaccedilatildeo por velocidade irregular Interaccedilatildeo por aceleraccedilatildeo Interaccedilatildeo por desaceleraccedilatildeo Tipos combinadosInteraccedilatildeo por aceleraccedilatildeo-desaceleraccedilatildeo Interaccedilatildeo por desaceleraccedilatildeo-aceleraccedilatildeo Interaccedilatildeo pela manipulaccedilatildeo (espicharcontrair) do tempopor contraccedilatildeo por expansatildeo
176
V Modelos espaciais de interaccedilatildeo gestual
10 Relaccedilatildeo independentemente11 Relaccedilatildeo interativa12 Relaccedilatildeo de gatilho (triggering)
FONTE Bachrataacute (2010 apecircndice traduccedilatildeo nossa)
ANEXO 2 - PARTITURA DE CHAtildeO DE OUTONO
177
Chatildeo de outonopara flauta e sons eletrocircnicos 2017-8Davi Raubach
Notas de Performance
F l a u t a
Ritmo e andamento estatildeo notados de trecircs maneiras1) Determinada com andamento e figuras riacutetmicas
J = c 54TN
gt )s s _
PP PP
2) Indeterminada (natildeo proporcional) livre (bisbigliando)c^WWWWWWWWVWWWWVVWVWWW
1]V ( bull ) --------d n s
mp
3) Determinada pelo tempo de fala deve-se tocar no ritmo com que satildeo ou seriam lidas as siacutelabas
tempo de falanormal
IT
- a e l e n -
Pg o c L s
Apenas como referecircncia pode-se considerar15 a 3 siacutelabas por segundo 3 a 4 siacutelabas por segundo5 a 7 siacutelabas por segundo mais raacutepido possiacutevel
lento normal raacutepidomais raacutep poss
(bull)s s
Assovio agudo feito com o som de ldquossrdquo boca em forma de ldquourdquo na posiccedilatildeo da nota indicada Deve-se variar o assovio livremente
tf 6
O microfone deve ficar agrave direita do (a) performer direcionado para a extremidade da flauta e em paralelo a ela O(a) performer deve fazer movimentos de aproximaccedilatildeo e afastamento em relaccedilatildeo ao microfone conforme a seguinte notaccedilatildeo
afastado do microfone
t f proacuteximo ao microfone
- A linha pontilhada entre os siacutembolos indica um movimento mais progressivo de afastamento ou aproximaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao microfone- Este movimento natildeo deve ser feito por passos mas apenas com o movimento do corpo especialmente o movimento de rotaccedilatildeo Deve-se buscar uma organicidade e certa expressividade no movimento corporal
p a - m - ccedil o
- Texto sublinhado sussurrar o texto junto agrave flauta na posiccedilatildeo indicada Para um resultado eficiente o sussurrar deve ser relativamente forte e com pressatildeo de ar suficiente para ativar ainda que sutilmente as alturas indicadas A imagem de algueacutem ofegante ilustra uma opccedilatildeo- Quando houver mais de uma nota para uma mesma siacutelaba deve-se fazer a primeira nota junto ao ataque da siacutelaba e as proacuteximas o mais raacutepido possiacutevel
A 1 ---N bull
0
M
Ecirc
y amp raquo1 1
0 ------
ra o 1 HH a s mdash r e d bull nL ao i r mdash r e - f uuml u - a
-mp f mp
Texto tachado o texto natildeo eacute falado Deve-se tocar as alturas no ritmo de uma leitura mental do texto Aleacutem do ritmo a acentuaccedilatildeo pode ser definida de acordo com essa leitura
Texto com vogais em subscrto omitir as vogais As notas devem ser ativadas apenas com o ataque das consoantes semelhante ao sussurrado
(4) mais proacuteximo
CU-
-tomdashm e n
mp[Texto dentro da caixa] falar normalmente o texto na posiccedilatildeo indicada Sempre dentro do bocal
HEI dentro do bocal posiccedilatildeo ordinaacuteria fora do bocal
slap tongue pizzicato
key click
0 key click com nota
tongue-ramPode ser feito tanto expirando quando inspirando
r ar
Cabeccedila de nota triangular som de ar com pouco som de nota Quando necessaacuterio eacute indicada a duraccedilatildeo acima da pauta
nota com ar
E l e t r o a c uacute s t i c a
O patch foi feito em PureData versatildeo 048 mas deve funcionar normalmente em versotildees superiores
A parte eletroacuacutestica estaacute dividida em 5 programas que devem ser ativados de acordo com as indicaccedilotildees na partitura Os programas constituem-se basicamente de sons preacute-gravados que tem sua amplitude e espacializaccedilatildeo determinadas em tempo real por uma relaccedilatildeo com a amplitude da flauta captada pelo microfone de controle Dessa forma pode-se resumir o comportamento dos programas da seguinte maneira
P 1 Flauta EletroacuacutesticaP ^ sons de assobios
f ^ sons de folhas
P 2 FlautaPf
Eletroacuacutesticasons de folhas
sons de assobios
P 3 Flauta EletroacuacutesticaP ^ nada
f ^ sons de tongue-ramNeste programa tambeacutem haacute uma camada eletroacuacutestica independente (sons como ldquorasgosrdquo) que determina a espacializaccedilatildeo da flauta
Eletroacuacutesticap - -
Flautaespacializaccedilatildeo estaacutetica
espacializaccedilatildeo em movimento
P 4 Eletroacuacutestica independente sons de folhas
P 5 Eletroacuacutestica independente sons de assobios
J = C 50 $ = c 400) (muito flexiacutevel oscilando andamento)
long (apenas[^l key clicks)
[ s i n i s t r o
- A linha preta indica que deve-se manter a textura contida na caixa (repeticcedilotildees de notas com articulaccedilatildeo tongue-ram key clicks e com alturas natildeo determinadas)- A linha tracejada indica que quando tiver de falar durante esta textura naturalmente o (a) performer deixaraacute de fazer tongue-ram mas continuaraacute a executar os key clicks
+ + + +
T
Chatildeo de outonoPara Valentina D aldegan
TFlauta
Eletroacuacutestica
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J mdash C 50 (J = c 400) (muito flexiacutevel oscilando andamento)
long (apenaskey clicks)
X xinregulares y
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2
tempo de fala raacutepido
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3
ANEXO 3 - PARTITURA DE NASCER PEDRA MORRER NUVEM
184
Nascer pedra morrer nuvempara violatildeo e sons eletrocircnicos 2018Davi Raubach
p a ra E ric M ore ira
nascer pedra morrer nuvem2018
D avi R au b ach
J = 52 iacute
IViolatildeo
Electronics
f p p p p m f
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mdash ^ mdash mdash ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
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) Repetir livremente ateacute a entrada da deixa eletroacuacutestica
1
21____1 f 0 _ ------1----1----1----1------- 1------- 1------- ------- 1------- ------- 1---- dr-
--- f f f f f f 6 f 1 f f f f f f bull r iaiiA[fiiiffint im 4 6 mdash mdash5 8 88 lt2 V
lt m f m p
p p p f
deixa
^ s c f i -E8
) Ruiacutedo das cordas raspar lateral do polegar eou parte da md sobre as cordas 6 5 e 4 com movimentos curtos Cada semicolcheia indica dois movimentos (para um lado e para outro) cada movimento corresponde a um a fusa
) Ruiacutedo das cordas raspar polpa do(s) dedo(s) da me em direccedilatildeo agrave casa XII
2
36
V jiT
3 + 2t i j a - j j ^ j r v r j r v r j r 3
amp4
m fp p p
o
o o o
L V sempre gt 0 0
V
laquo H P- f ^ = - p p ^ = ^ f
5 + 5 16 7 7
me
fs f
7 7 f
s f
7 7 7 f f
f8
) Here starts a cross fade section The notes articulated convencionaly fade out quite gradually and the noise of the fingers scraping the strings fade in
3
V
32f f
L32 1 lt-32-1f f
p p p
r 7 i i CU (L32lsquo lsquo32l
f f
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V
32f f
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54
V
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56
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74)g
6
5)
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p
m p
m m m m
iacute 7f
7 1m f
r u a f f 1 p =
4) Percutir com polpa dos dedos (e unhas) da md aleatoriam ente sobre o tampo o mais raacutepido possiacutevel
5) Rasqueado de me com cordas abafadas pela md com vaacuterios dedos em defasagem e usando as 6 cordas (som percussivo granular)
6) Equilibrar a intensidade dos dois sons a percussatildeo sobre o tampo deve soar na mesma intensidade que o rasgueado em direccedilatildeo a um a fusatildeo entre os dois
4
(md)mp
59
V
E
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J 1 18 m f
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U L L f It uuml L JT
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V
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J f iacute5 ^ -
p p p f - 32
E
IacuteP
7) Ruiacutedo de cordas Movimentos esparsos lentos e irregulares das duas matildeos
5
LV sempre (possible)f mp
f (3 r
68
Vbull 0 mdash mdash
mp etc C IV
reg iacute J
i r r p l =
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LJ ----- 4 r - r
i - 14 i r i 14 1 mp mp m p etc
C VII
73
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C XII
C XII
78
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C VII
1 7
C V
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7 7 copy ^
C V
v t - t t r - r r J g LAgrave
^ PS Pp mdash prego o
I esperar fim do tape
o
8) Nos casos de um bloco que m istura harmocircnicos e notas naturais ambos devem soar com mesma intensidade
6
Catalogaccedilatildeo na publicaccedilatildeo
Sistema de Bibliotecas UFPR
Biblioteca de Artes Comunicaccedilatildeo e Design Batel (AM)
(Elaborado por Sheila Barreto CRB9-1242)
Tuchtenhagen Davi Raubach
Interaccedilatildeo na muacutesica eletroacuacutestica mista Davi Raubach Tuchtenhagen -
Curitiba 2018
211 f
Orientador Prof Dr Felipe de Almeida Ribeiro
Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Muacutesica) - Setor de Artes Comunicaccedilatildeo e
Design da Universidade Federal do Paranaacute
1 Dissertaccedilotildees - Muacutesica 2 Muacutesica 3 Comissatildeo ITiacutetulo
CDD 780
UFPR
MINISTEacuteRIO OA EDUCACcedilAtildeO 8 E T 0 R ARTES COMUNICACcedilAtildeO E DESIGN UNIVERSIOADE FEDERAL OO PARANAacute P R Oacute -R amp TO R IA DE PESQUISA E POacuteS-GRADUACcedilAtildeO PROGRAM A DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO MUacuteSICA - 40D01016065R2
TER M O OE A PR O V A Ccedil Atilde O
Os m em bros da Bance Exam inadora designada pelo Colegiadcopy d o P rogram a de P oacutes-G raduaccedilatildeo em M UacuteSICA da Universidade
Federal d o Paranaacute foram conw cados pare realMar a arguiccedilatildeo da D issertaccedilatildeo d e M estrado d e D AVI RAIJBACH TUC HTENHAGEN
irrtitiaacuteada In te ra ccedilatilde o n a M uacute s ica E letroecsisU ca M is ta apos te rem inqu irido o a luno e rea lizado e avaliaccedilatildeo d o traD alto satildeo de
parecer pele sua b amp Ocirc ^ J k Ccedil X o ________ no rito d e defesa
A outorga d o titu lo d a m estre estaacute su je ila agrave tvomoi-ogaccedilocirco pelo colegkado ao a tendim ento d e todas as indicaccedilotildees e correccedilotildees
soiiciladas pela banca ao p leno alendim enlo dee demaradas regimentais do Programa d raquo Potildes-Gradueccedil5o
CURITIBA 06 d e Feverero de 2019
Avshador Interno ()
RUA CORONEL DJLCIacuteD IO 636 - CURITIBA - Pereneacute - E rasC E P 80420-170 - TeL (41) 3307-7306 - E-maif ufpr ppgmajsice copy gm ailcom
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo aos professores Clayton Mamedes Roseane Yampolschi e Mauriacutecio Dottori pelos
conhecimentos compartilhados e pelos diversos insights sobre minhas composiccedilotildees e sobre
minha pesquisa
Agradeccedilo aos colegas Valentina Daldegan e Eric Moreira pelos processos criativos
compartilhados
Agradeccedilo ao meu orientador Felipe de Almeida Ribeiro pelo incentivo e motivaccedilatildeo e por
propiciar a expansatildeo de minhas referecircncias
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal
de Niacutevel Superior - Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001
Agradeccedilo agrave CAPES agrave UFPR e ao Grupo de Pesquisa Muacutesica Nova
Agradeccedilo aos meus pais Vanda e Jorge por todo o apoio
Agradeccedilo a minha esposa Caroline Reichow pela cumplicidade e pelo cuidado
Agradeccedilo a Deus por estas pessoas
RESUMO
Esta pesquisa investiga a interaccedilatildeo na muacutesica que combina recursos eletroacuacutesticos e instrumentais numa performance - a muacutesica eletroacuacutestica mista Devido agrave presenccedila de tecnologias diversas na performance e composiccedilatildeo deste repertoacuterio ldquointeraccedilatildeordquo pode se referir agraves relaccedilotildees entre estes recursos tecnoloacutegicos e os performers Entretanto tambeacutem pode se referir agraves relaccedilotildees entre os sons que se nos apresentam na experiecircncia de escuta Distinguimos estes dois acircmbitos praacutetico-tecnoloacutegico e sonoro-morfoloacutegico e investigamos suas inter-relaccedilotildees a fim de focar no segundo Assim independentemente dos recursos tecnoloacutegicos utilizados investigamos as relaccedilotildees e interaccedilotildees entre eventos sonoros que como as notas de uma voz no contraponto tonal satildeo por um processo da escuta agrupados em camadas planos fluxos (WISHART 1996 BREGMAN 2004 2008) que por sua vez formam uma textura O principal problema desta pesquisa concerne agrave maneira como interagem estes fluxos na muacutesica eletroacuacutestica mista tendo em vista as particularidades relativas agrave uniatildeo dos meios instrumental e eletroacuacutestico Atraveacutes de uma revisatildeo bibliograacutefica levantamos ferramentas teoacutericas para investigar e descrever como se constituem se diferenciam se relacionam os fluxos sonoros entre si e como se relacionam com o aspecto visual da performance Anaacutelises de quatro peccedilas mistas aplicam as ferramentas levantadas a fim de verificar estrateacutegias especiacuteficas encontradas no repertoacuterio Aleacutem disso a experiecircncia do autor de compor duas peccedilas em interaccedilatildeo com a pesquisa eacute apresentada Esta pesquisa propotildee a distinccedilatildeo teoacuterica entre microtextura e macrotextura discute as teorias concernentes agrave interaccedilatildeo argumenta pela plausibilidade de considerar o aspecto visual como um elemento da textura em interaccedilatildeo com o que soa e evidencia a ambiguidade e a fluidez presentes nas relaccedilotildees sonoras e visuais deste repertoacuterio
Palavras-chave composiccedilatildeo interaccedilatildeo muacutesica eletroacuacutestica mista fluxos sonoros textura
ABSTRACT
This research investigates the interaction in music that combines electroacoustic and instrumental resources in a performance - mixed electroacoustic music Due to the presence of different technologies in the performance and composition of this repertoire ldquointeractionrdquo can refer to the relationships between performers and technologic resources Nevertheless it also can refer to the relationships between the sounds we perceive in the listening experience We distinguish these two ambits practical-technological and sound-morphological and investigate their interrelations in order to focus on the second one Then we investigate independently of the technological resources used the relationships and interactions between sound streams Through a listening process the sound events are grouped in layers plans or streams (WISHART 1996 BREGMAN 2004 2008) and constitute a texture the same way the notes are grouped in a voice in tonal counterpoint The main problem of this research concerns the way that these streams interact in mixed electroacoustic music considering its particularities We identify theoretic tools from a bibliographic revision to investigate and describe how the streams are constituted distinguished how they relate to each other and how they relate to the visual aspects of performance We apply these identified tools in the analysis of four mixed pieces in order to verify specific strategies found in the repertoire Moreover we present a personal experience of composing two pieces in interaction with the research This research proposes a theoretic distinction between micro-texture and macro-texture discusses the theories concerned to interaction argues about the plausibility to consider the visual aspect a textural element in interaction with sound and evidences the ambiguity and fluidity present in visual and sound relationships in this repertoire
Keywords composition interaction mixed electroacoustic music sound streams
LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES
FIGURA 1 - SYNCHRONISMSNO 10 (1992) DE MARIO DAVIDOVSKY (COMPASSOS
109-110) 22
FIGURA 2 - ESQUEMA DA PECcedilA A PIERRE DELL rsquoAZZURRO SILENZIO INQUIETUM
(1985) DE LUIGI NONO24
FIGURA 3 - COMPASSOS INICIAIS DE A PIERRE DELL rsquoAZZURRO SILENZIO
INQUIETUM (1985) DE LUIGI NONO25
FIGURA 4 - CONTEXTO DISCIPLINAR DA MUacuteSICA INTERATIVA 27
FIGURA 5 - EXCERTO DA PARTITURA DE JUPITER (1987) DE PHILIPPE MANOURY
29
FIGURA 6 - JANELA PRINCIPAL DO PATCH DE JUPITER (1987) DE PHILIPPE
MANOURY 30
FIGURA 7 - PROCESSO COMPOSICIONAL NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA 40
FIGURA 8 - REPRESENTACcedilAtildeO DOS ASPECTOS QUANTITATIVO E QUALITATIVO
DA TEXTURA 43
FIGURA 9 - ALGUMAS QUALIDADES DA TEXTURA 44
FIGURA 10 - DIAGRAMA DE QUATRO CONDICcedilOtildeES DA PERCEPCcedilAtildeO DE FLUXOS
AUDITIVOS DISTINTOS COM PADRAtildeO GALOPANTE H LH -H LH -H LH - 47
FIGURA 11 - POLIFONIA VIRTUAL NOS COMPASSOS 89 A 94 DA PARTITA NO 2 EM
REacute MENOR B W V 1004 DE J S BACH 47
FIGURA 12 - POLIFONIA VIRTUAL NOS COMPASSOS 121 A 123 DA PARTITA NO 2
EM REacute MENOR BW V 1004 DE J S BACH 48
FIGURA 13 - MELODIA DE TIMBRES NA ORQUESTRACcedilAtildeO DE WEBERN FUGA
(RICERCATA) NO 2 AU SD E M ldquoMUSIKALISCHENOPFER VON JOH SEB BACH 50
FIGURA 14 - EXEMPLO DE MACRO E MICROTEXTURA 53
FIGURA 15 - NIacuteVEIS DE ANAacuteLISE DA SONORIDADE55
FIGURA 16 - VETOR DE QUALIFICACcedilAtildeO DO GRAU DE OPOSICcedilAtildeO ESTRUTURAL
ENTRE UNIDADES SONORAS 56
FIGURA 17 - TELHAGEM DE ACORDO COM GUIGUE (2011)57
FIGURA 18 - SINTAGMA EM SYNCHRONIMS NO 10 (1992) DE MARIO
DAVIDOVSKY (COMPASSOS 271-272)57
FIGURA 19 - POLIFONIA DE SONORIDADES EM MOMENTO 23 DE ALMEIDA
PRADO 58
FIGURA 20 - a) REPRESENTACcedilAtildeO ESQUEMAacuteTICA DA REDE (LATTICE)
TRIDIMENSIONAL b) REPRESENTACcedilAtildeO ESQUEMAacuteTICA DE UM OBJETO
MUSICAL COMPLEXO SE MOVENDO NO CONTINUUM61
FIGURA 21 - DESENVOLVIMENTO DE UM FLUXO SEPARANDO EM OUTROS E
CONVERGINDO NOVAMENTE76
FIGURA 22 - DIVISAtildeO DE UM FLUXO EM OUTROS EM KONTAKTE (1958-60) DE
STOCKHAU SEN 77
FIGURA 23 - COMPASSOS INICIAIS DE MUSIC FOR FLUTE AND ISPW (1994) DE
CORT LIPPE 83
FIGURA 24 - MODELO DE ACcedilAtildeO-RESPOSTA DOS INSTRUMENTOS ACUacuteSTICOS90
FIGURA 25 - POSSIacuteVEIS RELACcedilOtildeES CONFUSAS NA PERCEPCcedilAtildeO DE ACcedilAtildeO-
RESPOSTA NO CONTEXTO DA MUacuteSICA MISTA90
FIGURA 26 - FUSAtildeO EM THREE VOICES (1982) DE MORTON FELDMAN
(COMPASSOS 15 A 18 DA PARTE B) 93
FIGURA 27 - EXCERTO DA PARTITURA DE APHASIA (2009) DE MARK
APPELBAUM 94
FIGURA 28 - ILUSTRACcedilAtildeO DE POSSIacuteVEIS COMPONENTES DA MACROTEXTURA
DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA103
FIGURA 29 - ACORDES-TIMBRE INICIAL E FINAL DA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE
DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN MURAIL107
FIGURA 30 - COMPASSOS INICIAIS TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS
(1982-3) DE TRISTAN MURAIL108
FIGURA 31 - COMPASSOS 11 A 13 DA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS
(1982-3) DE TRISTAN MURAIL110
FIGURA 32 - FLUXO DO CORNE INGLEcircS NA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE
DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN MURAIL111
FIGURA 33 - FLUXOS SONOROS NA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS
(1982-3) DE TRISTAN MURAIL (645 a 1006) 112
FIGURA 34 - RELACcedilAtildeO ENTRE DOIS FLUXOS EM DESINTEGRATIONS (1982-3)
SOBRE O QUADRO DE WISHART (1996) 113
FIGURA 35 - INIacuteCIO DA PARTE 1B DE STRANGE AUTUMN DE STEVEN KAZUO
TAKASUGI 117
FIGURA 36 - ILUSTRACcedilAtildeO DE BATIMENTOS ACCELERANDO E RITARDANDO NO
COMECcedilO DE IN MEMORIAM JO N HIGGINS128
FIGURA 37 - COMPASSOS 77-78 DE DOIS MOVIMENTOS PARA ACORDEAtildeO E PIANO
(2016) 135
FIGURA 38 - EXEMPLO DA UTILIZACcedilAtildeO DO TEXTO COMO SUBSTITUTO DE UMA
ESCRITA DE FIGURAS RIacuteTMICAS EM M EU TRECHO PREDILETO137
FIGURA 39 - VARIACcedilAtildeO MOTIacuteVICA A PARTIR DE UM FRAGMENTO TEXTUAL
(SISTEMAS 2 E 3)138
FIGURA 40 - DESLOCAMENTOS DE FLA UTA E FALA PARA O PRIMEIRO PLANO EM
CHAtildeO DE OUTONO 142
FIGURA 41 - RELACcedilOtildeES PRESENTES NOS PROGRAMAS DO PATCH143
FIGURA 42 - QUATRO MATERIAIS DE NASCER PEDRA MORRER NUVEM
(COMPASSOS 8 a 10)149
FIGURA 43 - COMPASSOS 39 a 54 TRANSICcedilAtildeO EM NASCER PEDRA MORRER
NUVEM (2018) 150
FIGURA 44 - COMPASSOS 55 a 60 TREcircS FLUXOS151
FIGURA 45 - COMPASSOS 67 a 71 INIacuteCIO DA SECcedilAtildeO FINAL 153
FIGURA 46 - COMPASSOS 89 a 93 BATIMENTOS153
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO14
2 A INTERACcedilAtildeO NO CONTEXTO DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
21
21 TEacuteCNICAS DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA21
211 Sons fixados em suporte 21
212 Eletrocircnica em Tempo Real e Sistemas Interativos24
22 QUERELA DOS TEMPOS E A ESTEacuteTICA DA INTERATIVIDADE 31
23 ENTRE TECNOLOGIA E MORFOLOGIA SONORA 36
3 A INTERACcedilAtildeO NO AcircMBITO SONORO-MORFOLOacuteGICO 42
31 VOZES E TEXTURA42
311 Textura42
312 Vozes sons segregados em fluxos auditivos 45
313 Orquestraccedilatildeo timbre (tone-color) e textura48
314 Microtextura e macrotextura52
32 AS SONORIDADES 53
321 Oposiccedilatildeo Adjacente e Segmentaccedilatildeo56
322 Polifonia de Sonoridades58
33 ldquoVOZESrdquo NO CONTEXTO ELETROACUacuteSTICO 59
331 O Continuum 60
332 O Gesto e textura 61
333 Camadas fluxos e planos 63
334 O caraacuteter misto da muacutesica mista64
34 FLUXOS SONOROS 67
341 Simultaneidades da micro eou da macrotextura68
342 Fusatildeo e contraste constituiccedilatildeo e segregaccedilatildeo de muacuteltiplos fluxos69
343 Relaccedilatildeo entre fluxos distintos 78
3431 Comportamento 78
3432 Contraponto 84
3433 Interaccedilatildeo gestual 86
35 O FLUXO VISUAL NA MUacuteSICA MISTA 89
36 TEXTURA NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA 99
4 DISCUSSAtildeO E ANAacuteLISES 104
104
114
120
120
123
127
134
136
144
145
145
146
148
155
165
173
174
177
184
DESINTEGRATIONS DE TRISTAN MURAIL
STRANGE AUTUMN DE STEVEN KAZUO TAKASUGI
MUSIC FOR SNARE DRUM AND COMPUTER DE CORT LIPPE
Instrumento(s) e computador e instrumento(s) e tape no trabalho de Cort Lippe
Music for Snare Drum and Computer
IN MEMORIAM JO N HIGGINS DE ALVIN LUCIER
SOBRE MEU PROCESSO COMPOSICIONAL
CHAtildeO DE OUTONO
Programa 1
Programa 2
Programa 3
Programa 4 e 5
NASCER PEDRA MORRER NUVEM
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
REFEREcircNCIAS
ANEXOS
ANEXO 1 - QUADROS DE MODELOS DE INTERACcedilAtildeO GESTUAL DE
PETRA BACHRATAacute (2010)
ANEXO 2 - PARTITURA DE CHAtildeO DE OUTONO
ANEXO 3 - PARTITURA DE NASCER PEDRA MORRER NUVEM
14
1 INTRODUCcedilAtildeO
Apoacutes a Segunda Guerra Mundial a utilizaccedilatildeo de recursos eletrocircnicos na muacutesica se
desenvolve em duas vertentes principais Na Franccedila a partir das iniciativas de Pierre
Schaeffer se desenvolvia a Musique Concrete na Radiodiffusion Teleacutevision Franccedilaise (RTF)
em Paris a partir de 1948 No mesmo periacuteodo por iniciativa de Herbert Eimert na Alemanha
se desenvolvia a Elektronische Musik no Norwestdeutcher Rundfunk (NWDR) em Colocircnia
Dentre os nomes da muacutesica concreta destaca-se Pierre Henry enquanto que do lado
eletrocircnico Karlheinz Stockhausen (MANNING 2004)1 Inicialmente estas duas vertentes se
diferenciavam fortemente Enquanto a vertente concreta fazia uso de sons gravados a vertente
eletrocircnica utilizava sons sintetizados no proacuteprio equipamento eletrocircnico Como consequecircncia
desta separaccedilatildeo se estabelece uma relaccedilatildeo dicotocircmica entre as duas teacutecnicas Esta relaccedilatildeo eacute
desafiada de maneira mais representativa na peccedila Gesang der Juumlnglinge (1955-56) de
Karlheinz Stockhausen A peccedila vai aleacutem desta dualidade ao combinar sons sintetizados com
gravaccedilotildees da voz de um adolescente (DIAS 2014 p 16-17) Como aponta Menezes (1996 p
40) ldquoPouco a pouco assistimos a uma afluecircncia cada vez mais abundante de sons concretos
no contexto da muacutesica eletrocircnica afluecircncia esta que criaraacute aliaacutes um precedente para a futura
emergecircncia da muacutesica eletroacuacutestica mistardquo
A uniatildeo de sons instrumentais ao vivo com sons eletrocircnicos surge no seio da
Elektronische M usik e apresentou no princiacutepio semelhante dicotomia Como afirma
Stockhausen
Neste sentido a muacutesica instrumental poderia existir ao lado da muacutesica eletrocircnica Em qualquer destas esferas deve-se trabalhar funcionalmente cada meio deve ser usado produtivamente geradores - gravadores de fita - alto-falantes devem produzir o que nenhum instrumentista seria capaz de tocar (e microfones deveriam ser deixados para repoacuterteres) partitura - inteacuterprete - instrumento devem produzir o que nenhum aparato eletrocircnico jamais seria capaz de gerar ou imitar ou repetir
[]Assim a muacutesica eletrocircnica e instrumental complementariam uma a outra se
moveriam mais e mais rapidamente para longe uma da outra - e somente assim despertam a esperanccedila de realmente se encontrarem em uma composiccedilatildeo de vez em quando
1 Aleacutem destas principais vertentes e tambeacutem relacionadas a elas eacute importante citar o Estuacutedio de Fonologia da Radiotelevisione Italiana (RAI) fundado em 1955 por Luciano Berio e Bruno Maderna em Milatildeo nos Estados Unidos as iniciativas de John Cage que jaacute em 1939 em sua peccedila Imaginary Landscape I utilizava recursos eletrocircnicos e a fundaccedilatildeo do Columbia-Princeton Electronic Music Center em 1958 Outros centros direcionados para esta muacutesica atualmente chamada eletroacuacutestica surgiram tambeacutem no Japatildeo e no Canadaacute (MANNING 2004)
15
As primeiras obras combinando muacutesica instrumental e eletrocircnica receberam suas primeiras performances em 1958 Precisamos encontrar as regras superiores de uma conexatildeo aleacutem do contraste - que representa o mais primitivo tipo de forma (STOCKHAU SEN 1961 p 67 traduccedilatildeo nossa2)
Esta uacuteltima frase sugere que o contraste entre os meios instrumental e eletroacuacutestico
era uma caracteriacutestica comum das primeiras peccedilas que os combinaram fato tambeacutem sugerido
pelos tiacutetulos de algumas obras como Musica su due Dimensione (1952-8) de Bruno Maderna
Differeacutences (1958-9) de Luciano Berio Rimes pour Diffeacuterentes Sources Sonores (1959) de
Henri Posseur por exemplo Ao mesmo tempo na citaccedilatildeo acima Stockhausen sustenta a
complementariedade da muacutesica instrumental e eletrocircnica Morgan (1991) aponta que a
resoluccedilatildeo de Stockhausen para a dicotomia eletrocircnico-instrumental ocorre especialmente em
meados de 1960 nas peccedilas Mikrophonie I (1964) Prozession (1967) and Kurzwellen (1968)
Laacute3 nas notas sobre Mikrophonie I (1964) Prozession (1967) e Kurzwellen (1968) pode-se ler do seu esforccedilo crescente para alcanccedilar uma total integraccedilatildeo dos dois tipos de muacutesica O princiacutepio baacutesico em todas estas peccedilas eacute usar os meios eletrocircnicos para transformar os eventos musicais iniciados pelos performers ao vivo o som final sendo o resultado de uma interaccedilatildeo eletrocircnica-instrumental (MORGAN 1991 p 200 grifo nosso traduccedilatildeo nossa4)
O ldquoesforccedilo por uma total integraccedilatildeo dos dois tipos de muacutesicardquo se coloca em oposiccedilatildeo
ao contraste inicial sobre o qual se baseavam as primeiras peccedilas para instrumentos e sons
eletrocircnicos Entretanto ao contraacuterio do que parece argumentar Morgan natildeo podemos
desconsiderar o sucesso da integraccedilatildeo alcanccedilado na produccedilatildeo anterior agrave deacutecada de 1960
especialmente em Kontakte (1958-1960) A peccedila puramente eletrocircnica utiliza sons que fazem
referecircncia a pele madeira e metal sua versatildeo mista para pianista e percussionista apresenta
2 Original ldquoIn this way instrumental music could exist alongside electronic music In either sphere one must work functionally each medium must be used productively generators - tape-recorders - loud-speakers must produce what no instrumentalist would be able to play (and microphones should be left to reporters) score - player - instrument must produce what no electronic apparatus would ever be able to generate or imitate or repeat []
Electronic and instrumental music would then complement each other would constantly move further and more rapidly away from each other - and only thereby awaken the hope of really meeting each other in a composition once in a while
The earliest works combining electronic and instrumental music received their first performances in 1958 We must find the superior laws of a connection beyond the contrast - which represents the most primitive kind of formrdquo (STOCKHAUSEN 1961 p 67)
3 Se refere ao terceiro volume de Texte que surge em 1971 e cobre os anos de 1963-704 Original ldquoThere in the notes on Mikrophonie I (1964) Prozession (1967) and Kurzwellen (1968) one reads
of his increasing efforts to achieve a total integration of the two types of music The basic principle in all these works is to use electronic means to transform the musical events initiated by live performers the final sound being the result of an electronic-instrumental interactionrdquo (MORGAN 1991 p 200)
16
uma preocupaccedilatildeo com a integraccedilatildeo com os sons eletrocircnicos evidenciada pela proacutepria
instrumentaccedilatildeo que inclui tambores (pele) woodblocks (madeira) e pratos (metal) por
exemplo
Colocado este desajuste consideremos ainda a citaccedilatildeo de Morgan (1991) para
observar o uso do termo interaccedilatildeo De acordo com o autor no caso da produccedilatildeo de
Stockhausen nos anos 1960 a ldquointegraccedilatildeo entre os dois tipos de muacutesicardquo acontece na
interaccedilatildeo entre recursos eletrocircnicos e instrumentos que compotildeem assim um uacutenico resultado
final Nesta concepccedilatildeo interaccedilatildeo se refere ao processo tecnoloacutegico que mistura os meios
instrumental e eletroacuacutestico e que se relaciona diretamente a um resultado sonoro
Entretanto esta relaccedilatildeo direta natildeo eacute uma constante ela normalmente varia de peccedila para peccedila
Natildeo haacute um paralelismo estaacutevel uma correspondecircncia clara entre processo tecnoloacutegico da
performance e o resultado sonoro Uma mesma interaccedilatildeo percebida num resultado sonoro
hipoteacutetico pode ser alcanccedilada por diferentes interaccedilotildees tecnoloacutegicas Em Mikrophonie I por
exemplo Stockhausen utiliza dois processos de produccedilatildeo sonora cada um com trecircs estaacutegios
trecircs muacutesicos trabalhando em paralelo o muacutesico que executa o tam-tam o microfonista e o
muacutesico que controla os filtros O compositor explica na partitura que
[] trecircs processos mutuamente dependentes mutuamente interativos e simultaneamente autocircnomos de estruturaccedilatildeo sonora estatildeo conectados uns com os outros os quais foram compostos como sincrocircnicos ou temporalmente independentes homofocircnicos ou em ateacute seis camadas polifocircnicas(STOCKHAUSEN 1973 p 9 traduccedilatildeo nossa5)
Entretanto como as relaccedilotildees entre estes estaacutegios do processo satildeo muito variaacuteveis
Stockhausen afirma ldquoE eu natildeo posso predizer como o resultado dessa interferecircncia vai soar
porque natildeo o sei ateacute ouvi-lordquo (STOCKHAUSEN 2009 p 75) Embora usando termos que
remontam a interaccedilatildeo entre vozes numa textura (polifonia por exemplo) o compositor estaacute
falando sobre um processo tecnoloacutegico da performance Por outro lado o resultado sonoro
ou como chamaremos o acircmbito sonoro-morfoloacutegico eacute pouco previsiacutevel Possivelmente ao
ouvir a peccedila percebemos duas camadas cada uma proveniente de cada processo com seus
trecircs estaacutegios e natildeo ouvimos as seis camadas do processo6 Assim enquanto a interaccedilatildeo nos
5 Original [] three mutually dependent mutually interacting and simultaneously autonomous processes of sound-structuring are connected with each other which were composed as synchronous or temporally independent homophonic or in up to six polyphonic layers (STOCKHAUSEN 1973 p 9)
6 Este exemplo aponta para a complexidade do fenocircmeno perceptivo da interaccedilatildeo a qual natildeo nos aprofundaremos neste trabalho
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processos tecnoloacutegicos da performance se daacute em seis ldquocamadasrdquo a interaccedilatildeo percebida no
resultado sonoro pode ser entre duas camadas isso se for possiacutevel diferenciaacute-las
A interaccedilatildeo percebida no resultado sonoro diz respeito agraves relaccedilotildees de sincronia
independecircncia homofonia polifonia entre outras que se apresentam entre camadas distintas
Em trabalhos sobre estas relaccedilotildees na muacutesica eletroacuacutestica especialmente em (WISHART
1996) em vez de camadas (layers) o termo usado eacute fluxos (streams) Enquanto que camadas
se refere mais agrave textura e sua estratificaccedilatildeo independentemente de seu desenvolvimento no
tempo fluxos tem forte conotaccedilatildeo temporal A palavra do inglecircs stream carrega tambeacutem a
ideia de correnteza Estendendo esta metaacutefora ora pode tratar-se de um rio com uma
correnteza uacutenica ora eacute como um mar repleto de correntezas diferentes concorrentes e
interativas Por vezes a muacutesica apresenta um uacutenico fluxo por vezes uma seacuterie de fluxos que
concorrem e interagem convergem e divergem fundem e contrastam Tal ideia de interaccedilatildeo
como aspecto da disposiccedilatildeo (ou dissoluccedilatildeo) sonora em fluxos remonta agraves ideias pioneiras de
Edgard Varegravese Numa aula em 1936 Varegravese expotildee o seguinte pensamento
Quando novos instrumentos me permitirem escrever muacutesica como eu a concebo no lugar do contraponto linear o movimento das massas sonoras de planos intercambiantes seraacute claramente percebido Quando estas massas sonoras colidirem o fenocircmeno da penetraccedilatildeo ou repulsatildeo vai parecer acontecer Certas transmutaccedilotildees ocorrendo em certos planos pareceratildeo ser projetadas em outros planos movendo-se em diferentes velocidades e em diferentes acircngulos Natildeo haveraacute mais a velha concepccedilatildeo de melodia ou interaccedilatildeo [interplay] de melodias A obra inteira seraacute uma totalidade meloacutedica A obra inteira fluiraacute como flui um rio (VARESE 1966 p 11 traduccedilatildeo nossa7)
Varegravese denomina estas camadas ldquoplanos intercambiantesrdquo e ldquomassas sonorasrdquo e
imagina como poderiam interagir colidindo eou penetrando uma na outra repelindo uma agrave
outra fazendo com que uma transformaccedilatildeo em um plano apresente consequecircncias em outros
(ldquoser projetadasrdquo) Estas consequecircncias poderiam ser percebidas no caraacuteter cineacutetico
(ldquomovendo-se em diferentes velocidadesrdquo) e espacial (ldquoem diferentes acircngulosrdquo) destas
massas Tais caracteriacutesticas esteacuteticas satildeo apresentadas como opostas agrave ldquovelha concepccedilatildeo de
melodiardquo ou de ldquointeraccedilatildeo de melodiasrdquo Trata-se de uma concepccedilatildeo de massas sonoras
7 Original ldquoWhen new instruments allow me to write music as I conceive it taking the place of the linear counterpoint the movement of sound masses of shifting planes will be clearly perceived When these sound- masses collide the phenomena of penetration or repulsion will seem to occur Certain transmutations taking place on certain planes will seem to be projected onto other planes moving at different speeds and at different angles There will no longer be the old conception of melody or interplay of melodies The entire work will be a melodic totality The entire work will flow as a river flowsrdquo (VARESE e WEN-CHUNG 1966 p 11)
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interativas que compotildeem uma totalidade (ldquomeloacutedicardquo) que flui ldquocomo flui um riordquo 8
Assim sendo esta pesquisa localiza-se no cenaacuterio geral da muacutesica eletroacuacutestica e
mais especificamente no contexto da muacutesica que une sons instrumentais ao vivo com sons
eletroacuacutesticos a chamada muacutesica eletroacuacutestica mista9 A interaccedilatildeo eacute palavra-chave neste
repertoacuterio e pode se referir entre outros agraves relaccedilotildees presentes (a) nos processos tecnoloacutegicos
da performance e (b) no acircmbito sonoro-morfoloacutegico (resultado sonoro) A segunda eacute a que
motiva esta pesquisa Reunimos e discutimos diversas perspectivas (BACHRATAacute 2010
MENEZES 2006 p 377-400 SMALLEY 1997 SOUZA 2010 WISHART 1996 entre
outros) que utilizam o termo interaccedilatildeo para tratar de relaccedilotildees sonoro-morfoloacutegicas
Entretanto a presente pesquisa apresenta um vieacutes proacuteprio Ela tem o objetivo de observar esta
interaccedilatildeo natildeo apenas no niacutevel dos eventos (nota a nota gesto a gesto) mas num niacutevel em que
estes eventos satildeo agrupados em categorias mais amplas Convencionalmente as notas satildeo
agrupadas em vozes Na muacutesica eletroacuacutestica os eventos sonoros podem ser agrupados em
camadas planos ou fluxos Com base em Wishart (1996) Bregman (2004 2008) e Guigue
(2011) a metaacutefora de fluxo seraacute a principal alternativa apresentada nesta pesquisa Embora
este conceito jaacute tenha sido explorado poucos estudos abordam a constituiccedilatildeo de tais
estruturas no repertoacuterio a que estamos nos direcionando Ao abordar a caracterizaccedilatildeo e a
interaccedilatildeo de fluxos distintos percebidos na experiecircncia de escuta10 da muacutesica eletroacuacutestica
mista busca-se preencher parte desta lacuna Nesta investigaccedilatildeo a pesquisa revisita e oferece
outras perspectivas para questotildees e conceitos sempre importantes para a composiccedilatildeo tais
8 Eacute interessante notar que embora Varegravese descreva caracteriacutesticas do resultado sonoro tudo isso seria possibilitado por ldquonovos instrumentosrdquo ou seja novos processos tecnoloacutegicos da performance juntando assim os dois acircmbitos que separamos inicialmente (tecnoloacutegico e sonoro-morfoloacutegico)
9 Existem outros termos para designar com mais ou menos restriccedilotildees teacutecnicas as possibilidades de muacutesica para instrumentos e sons eletroacuacutesticos musique mixte live electronic music interactive music Uma discussatildeo terminoloacutegica pode ser encontrada na introduccedilatildeo do livro Live Electronic Music (SALLIS et al 2018) Nas pesquisas brasileiras especialmente da UNeSp (GATI 2015 DIAS 2014 MENEZES 2006) o termo muacutesica eletroacuacutestica mista abarca qualquer muacutesica em que haacute a junccedilatildeo destes dois meios instrumental e eletroacuacutestico independentemente da tecnologia utilizada Assim eacute entendida tambeacutem nesta pesquisa
10 Tal delimitaccedilatildeo temaacutetica voltada para o que eacute percebido na experiecircncia da escuta natildeo deve ser entendida dentro de um paradigma que natildeo considera ldquomuacutesicardquo nada aleacutem do som Pelo contraacuterio esta pesquisa assume a compreensatildeo da muacutesica enquanto fato musical (NATTIEZ 1990 p 10-16) como uma atividade que inclui criaccedilatildeo performance (niacutevel poieacutetico) um rastro da criaccedilatildeo como a partitura a gravaccedilatildeo etc (niacutevel neutro) e recepccedilatildeo (niacutevel esteacutesico) E que estas funccedilotildees de compositor performer e ouvinte podem se mesclar em um uacutenico indiviacuteduo Entretanto por delimitaccedilatildeo do escopo o foco estaacute no niacutevel neutro no som resultante da criaccedilatildeo e da performance As representaccedilotildees graacuteficas deste som (e g espectrograma) ou de instruccedilotildees para obtecirc-lo (partitura) satildeo utilizadas na medida em que possibilitam ilustrar o aspecto sonoro Evidentemente natildeo estamos isentos aos outros niacuteveis acessamos o niacutevel neutro de uma perspectiva de recepccedilatildeo (niacutevel esteacutesico) ao mesmo tempo que enquanto pesquisador compositor estou interessado em estrateacutegias de que possa me valer no trabalho criativo (niacutevel poieacutetico) interesse que o leitor possivelmente compartilha
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como vozes textura e contraponto de forma a dialogar com o contexto atual de produccedilatildeo
musical no qual o autor estaacute inserido11
As concepccedilotildees de interaccedilatildeo (a e b) satildeo abordadas no capiacutetulo 2 como preliminares agrave
discussatildeo principal da dissertaccedilatildeo que foca na interaccedilatildeo como uma relaccedilatildeo sonoro-
morfoloacutegica (b) Apresentamos neste capiacutetulo os principais processos tecnoloacutegicos utilizados
na muacutesica eletroacuacutestica mista abordamos a discussatildeo conhecida como ldquoquerela dos temposrdquo
e as relaccedilotildees entre processos tecnoloacutegicos e resultado sonoro
No capiacutetulo 3 satildeo abordados dois sentidos de uma mesma via Primeiramente
partindo destas reflexotildees do acircmbito eletroacuacutestico nos perguntamos qual seria o lugar da
interaccedilatildeo aparente no resultado sonoro na muacutesica puramente instrumental Posteriormente
tendo abordado os conceitos de voz textura (31) e sonoridade (32) nos perguntamos como
abordar o tema no contexto eletroacuacutestico Fazemos uma breve discussatildeo terminoloacutegica em
torno dos termos camadas fluxos e planos A ideia de fluxo sonoro eacute apresentada como a
principal alternativa para abordar o tema neste contexto (34) A constituiccedilatildeo e segregaccedilatildeo dos
fluxos satildeo abordadas principalmente atraveacutes da morfologia da interaccedilatildeo (MENEZES 2006
p 377-400) A relaccedilatildeo entre eles a partir das ideias de comportamento (SMALLEY 1997)
contraponto (WISHART 1996) e interaccedilatildeo gestual (BACHRATAacute 2010) No subcapiacutetulo 35
a importacircncia do aspecto visual na performance de muacutesica mista eacute avaliada E finalmente a
partir destes levantamentos apresentamos um esboccedilo do que pode ser a textura na muacutesica
eletroacuacutestica mista (36)
O capiacutetulo 4 apresenta anaacutelises de quatro peccedilas mistas feitas a partir das teorias
levantadas Os objetivos de tais anaacutelises satildeo
a) Identificar fluxos sonoros e visuais
b) Identificar relaccedilotildees entre eles
c) Apontar desenvolvimentos e transformaccedilotildees destas relaccedilotildees
Em certa transgressatildeo do modelo de escrita dos capiacutetulos anteriores em que buscou-se
um distanciamento do autor o capiacutetulo 5 explicita o pesquisador-compositor como
interferente delineador desta pesquisa imerso em seus proacuteprios processos criativos As peccedilas
Chatildeo de outono e Nascer pedra morrer nuvem compostas durante o mestrado satildeo abordadas
atraveacutes das teorias estudadas
Os anexos satildeo partituras gravaccedilotildees e patches ldquorastrosrdquo do processo criativo de duas
11 Esta espeacutecie de revisatildeo conceitual complementa a reflexatildeo sem invalidar os meacutetodos jaacute utilizados para descrever inter-relaccedilotildees (harmonia contraponto voz textura etc)
peccedilas compostas durante o mestrado Chatildeo de outono para flauta e sons eletrocircnicos e Nascer
pedra morrer nuvem para violatildeo e sons eletrocircnicos
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2 A INTERACcedilAtildeO NO CONTEXTO DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
21
O termo interaccedilatildeo tem sido aplicado a diferentes relaccedilotildees presentes no fazer musical12
A que mais nos interessa neste trabalho eacute a relaccedilatildeo sonoro-morfoloacutegica entre os materiais que
se agrupam em fluxos sonoros na experiecircncia da escuta Entretanto eacute importante esclarecer
previamente a distinccedilatildeo entre dois usos do termo interaccedilatildeo no contexto da muacutesica mista
a) Aquele que se refere agraves questotildees tecnoloacutegicas da performance
b) Aquele que se refere agraves questotildees sonoro-morfoloacutegicas
Grosso m odo os aspectos sonoro-morfoloacutegicos concernem ao som e sua organizaccedilatildeo
e podem ser avaliados independentemente dos aspectos praacuteticos tecnoloacutegicos da performance
ou mesmo do processo de composiccedilatildeo13 Para elucidar a diferenccedila do tema interaccedilatildeo nestes
dois acircmbitos neste capiacutetulo as teacutecnicas da muacutesica mista (21) e as discussotildees sobre suas
vantagens e desvantagens para a performance e para composiccedilatildeo (22) satildeo apresentadas E
finalmente questionamos as intersecccedilotildees entre estes dois usos do termo interaccedilatildeo (23)
21 TEacuteCNICAS DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
Podemos classificar grosseiramente as teacutecnicas de performance de peccedilas mistas entre
aquelas que utilizam os sons eletroacuacutesticos fixados em suporte processados em tempo real
eou provenientes de um sistema interativo Estas teacutecnicas natildeo satildeo excludentes as peccedilas
podem fazer um uso misto delas
211 Sons fixados em suporte
A primeira teacutecnica utilizada para combinar instrumentos acuacutesticos e sons
eletroacuacutesticos usada principalmente a partir dos anos 1950 foi aquela em que estes sons satildeo
elaborados previamente em estuacutedio e fixados em um suporte tecnoloacutegico (fita magneacutetica -
tape CD ou disco riacutegido) para serem tocados no momento da performance Nesta teacutecnica eacute
importante considerar a coordenaccedilatildeo (sincronizada ou natildeo) entre os meios instrumental e
12 Um trabalho que avalia diferentes usos do termo eacute o de Mamedes (2016)13 O termo sound morphology eacute usado diversas vezes por Wishart (1996) e encontra forte relaccedilatildeo com a ideia de
espectro-morphology (SMALLEY 1997) A intenccedilatildeo eacute delinear analiticamente um campo em que possamos falar dos aspectos ouvidos da muacutesica sem nos ater a questotildees de produccedilatildeo sonora Este uso do termo natildeo deve ser confundido com a morfologia enquanto estudo da forma musical (periacuteodo frases seccedilotildees etc) ainda que se este estudo se voltasse tambeacutem para as micro-estruturas as duas concepccedilotildees poderiam se encontrar
22
eletroacuacutestico e quais satildeo os recursos utilizados na performance para estabelececirc-la Segundo
Schrader (1991) os compositores tentaram resolver os problemas de coordenaccedilatildeo entre
elementos ao vivo (instrumentais) e preacute-gravados com uma de quatro maneiras diferentes
1) O material eletroacuacutestico foi preacute-gravado mas eacute controlado em tempo real por um
performer Imaginary Landscape No 1 (1939) de John Cage Marginal Intersections (1951)
de Morton Feldman
2) O material eletroacuacutestico foi preacute-gravado e eacute alternado com a performance ao vivo
Deserts (1949-1954) de Edgard Varegravese Concerted Piece fo r Tape Recorder and Orchestra
(1960) de Otto Luening e Vladimir Ussachevsky
3) O material preacute-gravado natildeo coordena precisamente com os elementos ao vivo
Musica su due dimensione (1952 revisada em 1958) de Bruno Maderna
4) O performer deve seguir e sincronizar com o material preacute-gravado Capriccio fo r
violin and two sound tracks (1952) de Hank Badings Kontakte (1960) de Karlheinz
Stockhausen (SCHRADER 1991 p 93)
Deve-se acrescentar que o quarto modo de coordenaccedilatildeo pode acontecer com o auxiacutelio
de um ponto com metrocircnomo de uma regecircncia programada em tela de deixas dos sons
eletroacuacutesticos Na peccedila Synchronism no 10 (1992) para violatildeo e tape de Mario Davidovsky
eacute possiacutevel observar pontos em que a sincronia eacute facilitada por deixas da parte eletrocircnica (ver
Figura 1)
FIGURA 1 - SYNCHRONISMS NO 10 (1992) DE MARIO DAVIDOVSKY (COMPASSOS 109-110)Giusto
Guitar
liberamente J ) = J = 120m m p
mdash d r -h iplusmn -------------1 1 111 raquo 11 L = 1
Tape
9 -
atrade
ecirc
cue
urpm f
Repeat in any order until tape enters on C on beat three
FONTE Transcrito de Davidovsky (compositor) (1995)
Ding (apud SCHULZ 2010 p 27-29) apresenta outra classificaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo
com sons preacute-gravados em relaccedilatildeo agrave maneira com que o compositor lida com a sincronizaccedilatildeo
e a expressa na partitura A classificaccedilatildeo eacute extensiacutevel a outras instrumentaccedilotildees que natildeo piano
e sons preacute-gravados - tema de sua pesquisa Aleacutem disso mais de um tipo de sincronizaccedilatildeo
pode ser utilizado numa mesma peccedila As possibilidades satildeo
a) Riacutetmica independente com sincronizaccedilatildeo por seccedilotildees o instrumentista tem liberdade
para fazer variaccedilotildees temporais no acircmbito de cada seccedilatildeo atentando apenas para o iniacutecio e fim
delas O compositor pode indicar na partitura a minutagem e o inteacuterprete pode usar um
cronocircmetro para acompanhar a troca de seccedilotildees
b) Riacutetmica livre com sincronizaccedilatildeo relativa a partitura natildeo utiliza indicaccedilatildeo de
minutagem (sem necessidade de metrocircnomo) mas possui uma representaccedilatildeo graacutefica da parte
eletroacuacutestica e o inteacuterprete se guia por sinais (setas linhas etc) que indicam a relaccedilatildeo entre
os eventos preacute-gravados e os que executaraacute Esta estrateacutegia depende muito do estudo para
encontrar os pontos de sincronia com a parte eletroacuacutestica deixando os outros momentos
com uma liberdade riacutetmica maior para o inteacuterprete
c) Sincronizaccedilatildeo estrita com riacutetmica livre diferentemente da sincronizaccedilatildeo por seccedilotildees
esta geralmente exige sincronia de evento a evento ou de segundo a segundo A escrita riacutetmica
eacute flexiacutevel mas os pontos de sincronia satildeo indicados com a minutagem sendo imprescindiacutevel o
metrocircnomo no estudo destas peccedilas
d) Sincronizaccedilatildeo estrita a partir de meacutetrica fixa a sincronia acontece por uma escrita
riacutetmica precisa tanto dos eventos instrumentais quanto eletroacuacutesticos Pode apresentar
inclusive notaccedilotildees precisas de andamento accelerando e ritardando
Abaixo estatildeo alguns exemplos de peccedilas para instrumento(s) e sons fixados em suporte
que apresentam diferentes tipos de sincronizaccedilatildeo entre instrumento e suporte
Karlheinz Stockhausen Kontakte (1958-1960) para piano percussatildeo e tape
Luciano Berio Diffeacuterences (1959) para flauta harpa viola violoncelo e tape
Jean-Claude Risset Inharmonique (1977) para soprano e tape
Mario Davidovsky Synchronism No 9 (1988) para violino e sons eletrocircnicos
Flo Menezes Parcours de l rsquoentiteacute (1994) para flauta amplificada percussatildeo e sons
eletroacuacutesticos
Joatildeo Pedro Oliveira Mosaic (2010) para piano e sons eletrocircnicos
23
24
212 Eletrocircnica em Tempo Real e Sistemas Interativos
Outra maneira de combinar instrumento e sons eletroacuacutesticos usada principalmente a
partir de meados de 1960 eacute aquela que usa equipamentos eletrocircnicos para processar o som do
instrumento no momento da performance14 Haacute uma seacuterie de processamentos mais utilizados
entre eles delays harmonizers espacializadores filtros reverbs e moduladores por anel Tais
processos podem se apresentar de maneira fixa ou entatildeo serem controlados por um performer
ao vivo A figura 2 demonstra o esquema da peccedila A Pierre D ellrsquoAzzurro Silenzio Inquietum
(1985) para flauta contrabaixo clarinete contrabaixo e eletrocircnica em tempo real de Luigi
Nono
FONTE Nono (compositor) (1996)
Nesta peccedila a partitura conteacutem aleacutem de vaacuterias indicaccedilotildees preliminares sobre a
configuraccedilatildeo deste sistema uma pauta para controle da dinacircmica da parte eletrocircnica (ver
Figura 3)
14 Tal estrateacutegia se encontra na categoria mais ampla chamada live-electronics Isto porque live-electronics ou eletrocircnica em tempo real pode incluir performances com equipamentos eletrocircnicos mesmo na ausecircncia de instrumentos convencionais
25
FIGURA 3 - COMPASSOS INICIAIS DE A PIERRE DELL rsquoAZZURRO SILENZIO INQUIETUM (1985) DE LUIGI NONO
J= 30 ca
Esta teacutecnica tem a caracteriacutestica de expandir a sonoridade instrumental a ponto de
falarmos em meta-instrumentos Ribeiro et al (2016) apontam que A Pierre se trata mais do
que uma peccedila para dois solistas de uma muacutesica eletroacuacutestica em que flauta e clarinete satildeo
abordados como geradores de som assim como o satildeo os osciladores e os geradores de ruiacutedo
Deve-se ressaltar que o resultado eletroacuacutestico dependeraacute em grande parte da
execuccedilatildeo da parte instrumental Por isso se espera do inteacuterprete que aleacutem de seu instrumento
domine tambeacutem as reaccedilotildees do sistema eletroacuacutestico Fabbriciani aponta este fato em relaccedilatildeo
agraves peccedilas de Nono
Nono sabia que para maximizar o potencial oferecido por essas teacutecnicas era necessaacuterio formar inteacuterpretes que pudessem interagir com o sistema eletrocircnico tatildeo sensivelmente quanto com seus proacuteprios instrumentos Era igualmente vital construir um entendimento entre os inteacuterpretes e os engenheiros de som de live-electronics Poderiacuteamos chamar isto de uma nova virtuosidade consistindo natildeo somente de velocidade teacutecnica mas de uma notaacutevel habilidade em produzir som com vaacuterios tons de cor nuances sutis e controle incomum da dinacircmica (FABBRICIANI apud RIBEIRO et al 2016 p 130)
Outros exemplos de peccedilas como eletrocircnica em tempo real satildeo
Karlheinz Stockhausen Mikrophonie I (1964) para tam-tam (2 instrumentistas) 2
microfones 2 filtros com potenciocircmetros e 4 pares de alto-falantes
Brian Ferneyhough Time and Motion Study I I (1976-7) para violoncelo e live-
electronics
Luigi Nono Das Atmende Klarsein (1981-2) para flauta baixo coro e live-electronics
Luciano Berio Altra Voce (1999) para mezzo soprano flauta em sol e live-
electronics
James Correa Vertiginous Rotation (2008) para violatildeo e live-electronics
Com o advento da tecnologia digital no final do seacuteculo XX passou-se a utilizar o
computador na muacutesica mista os processamentos podiam entatildeo ser feitos no domiacutenio do aacuteudio
digital Aleacutem disso o computador lida com outras informaccedilotildees uacuteteis para a muacutesica pois
podem representar paracircmetros musicais e agendar eventos musicais por exemplo Assim os
sistemas assumem tambeacutem o papel de controlar os processos em tempo real Aleacutem disso a
possibilidade de utilizar sons preacute-gravados integrados com processamento em tempo real
num hiacutebrido eacute consideravelmente facilitada Populariza-se o termo Computer Music e passa-
se entatildeo a chamar os sistemas usados para combinar sons instrumentais e eletroacuacutesticos em
tempo real de Sistemas Interativos de Muacutesica de Computador (traduccedilatildeo livre de Interactive
Computer Music Systems) (ROWE 1993) Como atualmente dizer que a muacutesica
eletroacuacutestica utiliza o computador eacute quase redundante o termo computer music
frequentemente traduzido por computaccedilatildeo musical embora ainda usado natildeo oferece grande
contribuiccedilatildeo para a caracterizaccedilatildeo do gecircnero (MENEZES 2006 p 355)
O contraacuterio acontece com o termo interativo O potencial do computador de interagir
de maneiras diversas com o humano motivou se chamar tais iniciativas de muacutesica interativa
Neste contexto o entendimento de interaccedilatildeo se refere agraves questotildees tecnoloacutegicas da
performance se coloca em contraposiccedilatildeo agrave natildeo-reaccedilatildeo da teacutecnica de sons fixados em suporte
bem como agrave ldquomerardquo reaccedilatildeo das propostas iniciais do live-electronics Nesta pesquisa estas
possibilidades (sons fixados em suporte live-electronics sistemas interativos) satildeo entendidas
como teacutecnicas distintas da muacutesica eletroacuacutestica mista natildeo como (sub-)gecircneros musicais
distintos
Os sistemas interativos tecircm sido estudados com diversas ecircnfases e por diferentes
disciplinas A Figura 4 demonstra o universo em que o desenvolvimento de tais sistemas se
encontra
26
27
FIGURA 4 - CONTEXTO DISCIPLINAR DA MUacuteSICA INTERATIVA
Music
ComputerScience
Engeneering Narrative
FONTE Transcrito de Whaley (2009)
Nossa pesquisa representa sobretudo a ponta musical da ilustraccedilatildeo e aborda os
aspectos de composiccedilatildeo e performance Eacute importante salientar que relacionadas aos sistemas
interativos se encontram as iniciativas dos Instrumentos Digitais (conf MONTEIRO 2012) e
dos Hiper-instrumentos - instrumentos mais ou menos convencionais incrementados com
sensores (conf MACHOVER 1992) - que natildeo seratildeo abordados nesta pesquisa
De acordo com Rowe (1993) ldquoSistemas interativos de muacutesica computacional satildeo
aqueles cujo comportamento muda em resposta a uma entrada musicalrdquo (natildeo paginado) O
autor concebe os sistemas interativos numa cadeia de processos em trecircs estaacutegios
a) recepccedilatildeo (Sensing) os dados satildeo coletados de controladores que lecircem informaccedilotildees
gestuais da performance
b) processamento (Processing) o computador lecirc e interpreta a informaccedilatildeo vinda dos
sensores e prepara os dados para a resposta
c) resposta (Response) o computador realiza uma saiacuteda musical
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Rowe classifica os sistemas em trecircs dimensotildees A primeira diferencia entre sistemas
guiados por partitura (score driven) daqueles guiados por performance (performance driven)
a) sistema guiado por partitura uma coleccedilatildeo de eventos predeterminados ou
fragmentos musicais armazenados satildeo combinados (sincronizados) com a entrada
musical (input) Assim o compositor pode trabalhar com categorias tradicionais de
tempo meacutetrica e andamento
b) sistema guiado por performance utiliza paracircmetros mais gerais da performance tais
como densidade e regularidade para determinar paracircmetros de saiacuteda Natildeo antecipa
nenhum evento especiacutefico como acontece naqueles guiados por partitura
A segunda dimensatildeo diferencia entre meacutetodo de resposta transformativo generativo e
sequenciado
a) meacutetodo de resposta transformativo transforma um material musical existente para
produzir variantes A relaccedilatildeo destas com o som original pode ser reconhecida ou
natildeo Este material pode ser armazenado ou como eacute frequente pode-se usar o input
da performance como material
b) meacutetodo de resposta generativo o material fonte eacute elementar ou fragmentaacuterio - por
exemplo escalas armazenadas ou conjuntos de duraccedilotildees O meacutetodo usa regras para
produzir o output Por exemplo ele pode sortear alturas de determinada escala ou
aplicar procedimentos seriais a um conjunto de duraccedilotildees permitidas
c) meacutetodo de resposta sequenciado utiliza fragmentos preacute-gravados em resposta ao
input em tempo real Pode-se variar paracircmetros na execuccedilatildeo destes fragmentos
como por exemplo velocidade de reproduccedilatildeo e envelope dinacircmico
A terceira dimensatildeo diferencia os paradigmas de instrumento e de inteacuterprete (player)
a) paradigma de instrumento os gestos da performance ao vivo satildeo analisados pelo
computador e determinam um output que expande a resposta instrumental normal
Se tocado por um uacutenico performer o resultado musical pode ser percebido como
solo
b) paradigma de inteacuterprete o sistema eacute concebido como um inteacuterprete artificial possui
uma presenccedila musical com comportamentos proacuteprios e pode variar o grau com que
acompanha ou natildeo seu parceiro humano Se tocado por um uacutenico performer o
resultado musical pode ser percebido como um duo
Esta dimensatildeo se aproxima de uma questatildeo distinta Enquanto que as outras se
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referiam agrave questotildees teacutecnicas do sistema sem chamar atenccedilatildeo para qualquer aspecto sonoro
que seria proveniente dele esta dimensatildeo que diferencia paradigma de instrumento e de
inteacuterprete aponta para um resultado musical decorrente A questatildeo apontada natildeo eacute apenas de
instrumentaccedilatildeo formaccedilatildeo mas de textura (solo ou duo) que eacute um aspecto percebido na
escuta eacute sonoro natildeo propriamente tecnoloacutegico15
Uma das primeiras peccedilas a utilizar sistema interativo eacute Jupiter (1987) para flauta e
eletrocircnica em tempo real de Philippe Manoury A peccedila realizada no Institut de Recherche et
Coordination AcoustiqueMusique (IRCAM) eacute a primeira a utilizar o Max programa criado
por Miller Puckette Faz uso tambeacutem do chamado seguidor de partitura (score follower) em
que o computador ldquoouverdquo a execuccedilatildeo do inteacuterprete e a compara com uma partitura virtual
armazenada O computador eacute programado para executar accedilotildees de processamento ou disparar
samples durante a performance em momentos agendados nesta partitura Assim o sistema de
Jupiter eacute guiado por partitura A Figura 5 apresenta um trecho da partitura do inteacuterprete e a
correspondecircncia dos eventos do computador nas pautas superiores
FIGURA 5 - EXCERTO DA PARTITURA DE JUPITER (1987) DE PHILIPPE MANOURY
Quanto ao meacutetodo de resposta o sistema eacute um misto de transformativo generativo e
sequenciado O sistema efetua transformaccedilotildees sobre um material (tanto a entrada ao vivo
quanto samples) - transformativo efetua a siacutentese sonora de acordo com uma seacuterie de
paracircmetros e regras preacute-estabelecidos - generativo possui um conjunto de amostras preacute-
gravadas que satildeo executadas e transformadas ao longo da peccedila - sequenciado
O sistema eacute concebido no paradigma de inteacuterprete Ainda que dependa de acompanhar
a performance e comparar com a partitura virtual o sistema tem uma presenccedila e
comportamento musical independente da parte instrumental A janela principal do patch
adaptado para PureData por Miller Puckette16 pode ser vista na Figura 6
15 Esta discussatildeo seraacute retomada em 22 e 2316 Disponiacutevel em lthttpmspucsdedupdrplatestfilesdocgt Acesso em 17 jan 2019
30
FONTE Puckette (2018)
A mencionada partitura virtual eacute entretanto mais do que uma seacuterie de dados com a
qual a performance eacute comparada eacute um termo cunhado por Philippe Manoury que assim o
descreve
[] uma partitura virtual eacute uma representaccedilatildeo cujos paracircmetros constitutivos satildeo conhecidos previamente mas cuja manifestaccedilatildeo exata e concreta eacute sujeita a variaccedilatildeo Se tal coisa natildeo eacute conheciacutevel previamente eacute pela simples razatildeo de que haacute um certo grau de dependecircncia da performance que como temos visto conteacutem um grau de indeterminismo Entretanto eacute ainda possiacutevel conceber um sistema que inclua ambos os estados determinado e indeterminado alguns paracircmetros necessaacuterios para a criaccedilatildeo de sons sinteacuteticos podem ser fixados previamente enquanto que outros vatildeo derivar seus valores de uma anaacutelise em tempo real dos instrumentos no momento preciso da performance (e assim conteraacute um grau de indeterminaccedilatildeo) (MANOURY 2013 p 67-68 traduccedilatildeo nossa17)
17 Original ldquo[] a virtual score is a representation whose constituent parameters are known in advance but whose exact concrete manifestation is subject to variation If such a thing is unknowable in advance it is for the simple reason that there is some degree of dependence upon performance which as we have seen contains a degree of indeterminism Nonetheless it remains possible to conceive of a system which includes
31
Outros exemplos de peccedilas com sistemas interativos satildeo
Philippe Manoury Pluton (1988-89) para piano MIDI e eletrocircnica em tempo real
Pierre Boulez Anthegravemes 2 (1997) para violino e eletrocircnica em tempo real
Robert Rowe Cigar Smoke (2004) para clarinete e sistema musical interativo
Philippe Manoury Tensio (2010) para quarteto de cordas e eletrocircnica em tempo real18
22 QUERELA DOS TEMPOS E A ESTEacuteTICA DA INTERATIVIDADE
Querela dos tempos eacute como ficou conhecida a discussatildeo sobre as vantagens e
desvantagens da eletrocircnica em tempo real ou em tempo diferido na muacutesica mista (DIAS
2014 p 20) Esta distinccedilatildeo apresentada por Philippe Manoury considera a difusatildeo em tempo
real como aquela em que o material eletroacuacutestico eacute gerado durante a performance enquanto
que na difusatildeo em tempo diferido a parte eletroacuacutestica foi composta anteriormente em
estuacutedio e armazenada para ser executada na performance (DIAS 2014 p 20) Tal discussatildeo
seraacute abordada a seguir no acircmbito da performance e posteriormente da composiccedilatildeo
Existem alguns obstaacuteculos para a performance daquelas peccedilas em que os sons
eletroacuacutesticos satildeo fixados em suporte e satildeo disparados uma ou poucas vezes durante a
performance19 O principal deles se deve ao fato de que o material preacute-gravado jaacute estaacute todo
definido Se numa muacutesica de cacircmara para instrumentos acuacutesticos os inteacuterpretes podem fazer
decisotildees interpretativas em conjunto na muacutesica com o material preacute-gravado isto natildeo eacute
possiacutevel os sons foram fixados em suporte com um tempo imutaacutevel McNutt aponta que
ldquopara o inteacuterprete tocar com acompanhamento fixo eacute como trabalhar com o pior
acompanhador humano imaginaacutevel desatencioso inflexiacutevel natildeo responsivo e totalmente
surdordquo (McNUTT 2003 p 299 traduccedilatildeo nossa20)
both states determinate and indeterminate some parameters necessary for the creation of synthetic sounds may be fixed in advance whereas others will derive their values from a real-time analysis of instruments at the very moment of performance (and thus will contain a degree of indeterminacy)rdquo (MANOURY 2013 p 67-68)
18 Ao final deste subcapiacutetulo sobre as teacutecnicas e tecnologias da muacutesica mista cabe ressaltar ainda outros dois contextos em que a interaccedilatildeo humano-computador eacute estudada na composiccedilatildeo a interaccedilatildeo compositor- tecnologia (THOMASI 2016 RIBEIRO 2018) no contexto da arte sonora a interaccedilatildeo do espectador participante com a obra atraveacutes de meios tecnoloacutegicos
19 Os referidos obstaacuteculos natildeo seriam tatildeo relevantes para uma peccedila em que por exemplo fossem tocados durante a performance diversos sons preacute-gravados de curta duraccedilatildeo Este seria o caso de uma fronteira entre teacutecnicas em tempo real e teacutecnicas em tempo diferido
20 Original ldquoFor the player performing with fixed accompaniment is like working with the worst human accompanist imaginable inconsiderate inflexible unresponsive and utterly deafrdquo (McNUTT 2003 p 299)
32
O problema do tempo imutaacutevel eacute tambeacutem uma preocupaccedilatildeo para o compositor Pierre
Boulez que o apresenta da seguinte forma
O tempo de uma gravaccedilatildeo em fita magneacutetica natildeo eacute o tempo psicoloacutegico e sim o tempo cronoloacutegico por outro lado o tempo de um inteacuterprete - um regente ou um instrumentista - eacute psicoloacutegico e eacute praticamente impossiacutevel interconectar os doisrdquo (BOULEZ apud MISKALO 20 0921)
Schulz (2010 p 25) argumenta que tal especificidade de tempo imutaacutevel natildeo eacute
caracteriacutestica apenas da muacutesica mista mas aparece em peccedilas de outros gecircneros que exigem do
inteacuterprete um rigor interpretativo em relaccedilatildeo ao tempo (e g Musica Ricercata no 7 195153
de Gyorgy Ligeti) Neste sentido a autora defende que no estudo de peccedilas mistas com sons
preacute-gravados o inteacuterprete natildeo deve apenas acompanhar a minutagem e outras indicaccedilotildees
presentes na partitura mas se apropriar destes sons e antecipaacute-los De acordo com Schulz
o instrumentista parte do conteuacutedo sonoro preacute-gravado para desenvolver o estudo bem como sua performance em coerecircncia com a parte fixa Em outras palavras a velocidade as dinacircmicas os momentos de sincronia e de certo modo as escolhas interpretativas satildeo feitas a partir dos sons preacute-gravados (SCHULTZ 2010 p 26)
Aleacutem disso natildeo eacute porque satildeo preacute-gravados que natildeo houve certo tipo de performance
em estuacutedio (manipulaccedilotildees de faders e potenciocircmetros por exemplo) Trata-se entatildeo de
compreender esta ldquoperformancerdquo preacute-gravada (em tempo diferido) e pensar a performance a
partir dela
Stroppa (1999) tambeacutem aponta nesta direccedilatildeo
Um ou uma performer agrave vontade com um click track encontraraacute outros meios de expressar suas escolhas interpretativas Se a composiccedilatildeo eacute feita de certa maneira ningueacutem na audiecircncia perceberaacute qualquer estranheza temporal e a performance seraacute julgada tatildeo livre quanto usualmente (STROPPA 1999 p 43 traduccedilatildeo nossa22)
No acircmbito da composiccedilatildeo tal discussatildeo se apresenta com a crenccedila de que o tempo
imutaacutevel fixo do tape representaria um tempo riacutegido da composiccedilatildeo e que desta
configuraccedilatildeo jamais poderia resultar uma interaccedilatildeo bem-sucedida
21 BOULEZ in HAumlUSLER Josef Boulez on Reacutepons 198522 Original ldquoA performer at ease with a click track will find other ways to express his or her interpretive
choices If the composition is done in a certain way nobody in the audience will perceive any temporal awkwardness and the performance will be judged as free as usualrdquo(STROPPA 1999 p 43)
33
Notamos neste ponto que a discussatildeo adentra um espaccedilo que natildeo eacute apenas da
performance mas se refere ao resultado sonoro desta Nos referimos a este espaccedilo como
morfologia sonora natildeo apenas no que se refere agrave qualificaccedilatildeo de objetos sonoros como nos
estudos de Pierre Schaeffer (1988 p 219) mas simplesmente nos referindo ao objeto de
estudo de todas as teorias musicais Trata-se do que percebemos que soa e seus aspectos
organizaccedilatildeo de materiais paracircmetros musicais relaccedilatildeo entre os materiais agrupamento e
segregaccedilatildeo dos materiais etc
Se da perspectiva da performance o problema da interaccedilatildeo se referia agrave relaccedilatildeo
problemaacutetica entre performer e a preacute-gravaccedilatildeo da perspectiva da composiccedilatildeo esta situaccedilatildeo
performaacutetica teria consequecircncias diretas na morfologia sonora Este pensamento sustenta uma
consequecircncia inexoraacutevel do modo da interaccedilatildeo entre performer e maacutequina sobre o tempo
musical Isto eacute o resultado sonoro seria riacutegido devido agrave situaccedilatildeo de performance ser esta de
discrepacircncia de tempos (cronoloacutegico e psicoloacutegico) entre suporte e performer
Tal posiccedilatildeo tende a natildeo considerar o uso de sons fixados em suporte como uma
possibilidade para a muacutesica mista admitindo exclusivamente o processamento em tempo real
e os sistemas interativos Estas posturas exclusivistas satildeo questionadas por Menezes (2006) e
Stroppa (1999) De acordo com Menezes (2006 p 380)
[] eacute preciso reconhecer que a criacutetica de cunho bouleziano (a despeito do valor inestimaacutevel da obra interativa de Boulez) segundo a qual um tempo fixo sobre suporte jamais poderaacute converter-se em uma interaccedilatildeo organicamente bem-sucedida eacute a meu ver sem fundamento pois a eficaacutecia da interaccedilatildeo natildeo dependeraacute jamais do fato de os sons eletroacuacutesticos estarem ou natildeo fixados sobre algum suporte tecnoloacutegico e terem suas duraccedilotildees predeterminadas mas antes da elaboraccedilatildeo de tal interaccedilatildeo na proacutepria composiccedilatildeo de acordo com suas possibilidades morfoloacutegicas (grifo nosso)23
Ainda haacute aqueles que defendem o uso dos sons fixados argumentando que o estuacutedio
possibilita uma elaboraccedilatildeo mais cuidadosa dos materiais do que as possibilidades em tempo
real O compositor Jean-Claude Risset (In BRUMMER et al 2001 p 6) se alinha com esta
posiccedilatildeo
Embora eu ame instrumentos penso que a ldquosituaccedilatildeo neo-instrumentalrdquo com live electronics raramente alcanccedila o grau de sofisticaccedilatildeo de boas peccedilas de tape Os aspectos de tempo real satildeo em certa medida uma ilusatildeo Compor natildeo eacute uma
23 Em 23 este misto mal analisado que vincula sem cuidado tecnologia e morfologia eacute abordado novamente
34
atividade em tempo real requer se abstrair da tirania do tempo real Muacutesica composta para o meio de gravaccedilatildeo pode ser cuidadosamente composta e realizada24
A preservaccedilatildeo das peccedilas com sistemas interativos eacute tambeacutem uma questatildeo a ser levada
em conta Isso porque as tecnologias mudam softwares ficam desatualizados e as peccedilas se
tornam sucetiacuteveis de obsolescecircncia ou entatildeo necessitam de atualizaccedilatildeo sempre que sua
performance for menos possibilitada por causa da tecnologia Esta atualizaccedilatildeo eacute dispendiosa e
necessita de trabalho especializado como aponta Risset (In BRUMMER et al 2001 p 7)
ldquoum privileacutegio que natildeo pode ser extendido a muitos compositores nem a muitas peccedilasrdquo25
Evidentemente os suportes fixos tambeacutem apresentam problemas semelhantes como por
exemplo a deterioraccedilatildeo de fitas magneacuteticas26 Atualmente entretanto a atualizaccedilatildeo nestes
casos parece ser mais simples e menos dispendiosa
Por outro lado o computador tem possibilitado interaccedilotildees com o performer ao vivo
que embora natildeo pareccedilam possibilitar diferentes relaccedilotildees sonoras certamente representam uma
mudanccedila na praacutetica musical Guy Garnett (2001) em seu artigo The Aesthetics o f Interactive
Computer Music afirma que a interaccedilatildeo tem dois aspectos as accedilotildees do performer afetam a
saiacuteda do computador ou as accedilotildees do computador afetam a saiacuteda do performer O autor aborda
o que a performance humana traz para a muacutesica computacional Um dos argumentos em favor
da muacutesica interativa em oposiccedilatildeo agrave muacutesica puramente computacional ou tape eacute o fator da
interpretaccedilatildeo Uma vez fixada ouviremos sempre novamente a mesma interpretaccedilatildeo da peccedila
Evidentemente haacute maneiras de projetar diferentemente espacializar ao vivo etc Poreacutem de
acordo com o autor ainda assim ldquoa peccedila estaacute fixada em tantos de seus atributos que natildeo eacute
possiacutevel proporcionar uma nova interpretaccedilatildeo significativa Algueacutem poderia entatildeo considerar
a muacutesica eletroacuacutestica como a lsquomuseificaccedilatildeorsquo uacuteltima da arte musicalrdquo (GARNETT 2001 p
29 traduccedilatildeo nossa27) Segundo Garnett incluir a performance humana na muacutesica
computacional eacute uma maneira de se afastar do formalismo presente frequentemente em
24 ldquoAlthough I myself love the instruments I think the neo-instrumental situation with live electronics rarely reaches the degree of sophistication of good tape pieces The real-time aspects are to a certain extent a delusion Composing is not a real-time activity it requires abstracting oneself from the tyranny of real-time Music composed for the recording medium can be carefully composed and realizedrdquo (RISSET In BRUMMER et al 2001 p 6)
25 ldquoa privilege which cannot be extended to many composers and many piecesrdquo (RISSET In BRUMMER et al 2001 p 7)
26 No artigo Electroacoustic music studies and the danger of loss Marc Battier estuda a fundo este problema da perenidade da muacutesica eletroacuacutestica seus sistemas e suportes (BATTIER 2004)
27 Original ldquo[] the work is fixed in so many of its attributes that it is not possible to provide a significant new interpretation One could therefore come to consider electroacoustic music as the ultimate ldquomuseumificationrdquo of musical artrdquo (GARNETT 2001 p 29)
35
muacutesica computacional por exemplo nas composiccedilotildees algoriacutetmicas Para Garnett eacute tambeacutem
uma questatildeo de a muacutesica estar em harmonia coerente com as necessidades do seu tempo de
criaccedilatildeo e existecircncia Natildeo eacute apenas uma questatildeo esteacutetica mas tambeacutem poliacutetica ldquoeacute tambeacutem
uma avaliaccedilatildeo poliacutetica dirigida a uma mudanccedila na maneira com que pessoas pensam sobre
produzem e experienciam muacutesicardquo (GARNETT 2001 p 29 traduccedilatildeo nossa28) Neste sentido
Garnett aponta objetivos poliacuteticos e esteacuteticos globais
Da mesma forma atraveacutes de uma frente esteacutetica ligeiramente diferente mas tambeacutem fortemente associada com Adorno natildeo precisamos mais sequestrar a alta arte do popular De fato precisamos agora lsquodesmuseificarrsquo - em certo sentido popularizar - todas as artes que tecircm em sua crescente institucionalizaccedilatildeo se tornado cada vez mais isoladas de ciacuterculos mais amplos [broad contituencies] Isso naturalmente natildeo implica uma capitulaccedilatildeo para os banais e batidos valores de produccedilatildeo em massa da maioria da muacutesica popular Exatamente o contraacuterio Significa trazer as verdadeiras experiecircncias artiacutesticas de riqueza singularidade e profundidade e expressatildeo intelectual em contato mais proacuteximo com as realidades sociais do nosso contexto cultural atual Eacute importante injetar o artista - o compositor - de volta agrave cena cultural atual em vez de reforccedilar o isolamento institucionalizado atual Rejeitar este curso provavelmente soacute levaraacute agrave morte completa da muacutesica de arte como a conhecemos e agrave completa hegemonia de apenas os elementos mais banais da cultura popular desprovidos de qualquer conexatildeo com e portanto de qualquer benefiacutecio possiacutevel das - enormes realizaccedilotildees do passado (GARNETT 2001 p 30 traduccedilatildeo nossa29)
O autor salienta a importacircncia desta perspectiva ldquoA consanguinidade entre interaccedilatildeo
humana e valores humanistas eacute um importante elemento guia para o campo da muacutesica
interativa computacionalrdquo (GARNETT 2001 p 30 traduccedilatildeo nossa30)
Eacute preciso levar em conta que a argumentaccedilatildeo de Garnett se coloca em oposiccedilatildeo agrave
muacutesica puramente eletroacuacutestica especialmente algoriacutetmica que pode conduzir a um
formalismo indesejado de acordo com estes valores Seus argumentos satildeo principalmente em
favor do inteacuterprete instrumental inserido no contexto eletroacuacutestico
Se anteriormente o potencial do estuacutedio para a elaboraccedilatildeo minuciosa do material
eletroacuacutestico (preacute-gravado) foi ressaltado as questotildees propostas por Garnett se colocam no
28 Original ldquo[] it is also it is also a political valuation in that it is directed toward making a change in the way people think about produce and experience musicrdquo (GARNETT 2001 p 29)
29 Original ldquoIndeed we need now to lsquode-museumizersquo - in a certain sense to popularize - all of the arts which have in their increasing institutionalization become increasingly isolated from broad constituencies This does not of course imply a capitulation to the banal and trite mass production values of much popular music Exactly the opposite It means to bring the true artistic experiences of richness uniqueness and intellectual depth and expression into closer contact with the social realities of our present cultural context It is important to inject the artist - the composer - back into the current cultural scene rather than reinforcing the current institutionalized isolationrdquo (GARNETT 2001 p 30)
30 Original ldquoThe consanguinity between human interaction and humanist values is an important driving element for the field of interactive computer musicrdquo (GARNETT 2001 p 30)
36
outro lado da balanccedila pesando o potencial dos sistemas interativos em sua possibilidade de
reinterpretaccedilatildeo da parte eletroacuacutestica a cada execuccedilatildeo Um sistema hiacutebrido pode somar
algumas vantagens de ambas teacutecnicas Neste caso o sistema poderia em interaccedilatildeo com a
performance ao vivo disparar materiais preacute-gravados de maior ou menor duraccedilatildeo elaborados
minuciosamente em estuacutedio e ao mesmo tempo executar processamentos em tempo real
Implementamos um sistema semelhante na peccedila Chatildeo de outono (51)
23 ENTRE TECNOLOGIA E MORFOLOGIA SONORA
Considerando as questotildees relativas agrave performance da muacutesica mista com suporte
(modos de coordenaccedilatildeo tempo imutaacutevel estudo destas peccedilas) e brevemente as questotildees
relativas agrave composiccedilatildeo (por exemplo do tempo fixo vs tempo riacutegido) notamos as
interferecircncias entre estas aacutereas O raciociacutenio de que devido agraves contingecircncias tecnoloacutegicas dos
sons fixados em suporte a performance apresenta um tempo imutaacutevel que se reflete num
tempo riacutegido da composiccedilatildeo parece ser um misto mal analisado Este raciociacutenio se caracteriza
por transferir questotildees da aacuterea tecnoloacutegica da performance diretamente para o acircmbito sonoro-
morfoloacutegico da composiccedilatildeo Tecnologia e morfologia tecircm naturezas distintas e natildeo se pode
tomar uma pela outra apenas porque a terminologia eacute a mesma Isto eacute falamos de interaccedilatildeo
referindo-nos agrave interaccedilatildeo do performer com a tecnologia utilizada e falamos da interaccedilatildeo entre
elementos da morfologia sonora
Outros autores criticam esta confusatildeo Stroppa (1999) aponta a problemaacutetica da
associaccedilatildeo do ao vivo (live) com teacutecnicas em tempo real (STROPPA 1999) O autor sustenta
que o aspecto da vida na muacutesica (live) necessita algum tipo de interpretaccedilatildeo embora natildeo se
restrinja agrave presenccedila de muacutesicos num palco pode ser percebido numa gravaccedilatildeo por exemplo
(1999 p 62) Assim critica o pensamento errocircneo de que o tempo real dos sistemas
interativos garantiria certa vida (live)
[] natildeo haacute correlaccedilatildeo entre uma peccedila usando tecnologia interativa e a percepccedilatildeo de autecircntica interpretaccedilatildeo em muacutesica interaccedilatildeo natildeo eacute interpretaccedilatildeo pois a uacuteltima se idealmente implica a primeira eacute um fenocircmeno mais sutil e complexo [] A vida na muacutesica brota de repente quando algum tipo de comunicaccedilatildeo estaacute acontecendo entre o performer e o material eletrocircnico circundante entre os dois e o puacuteblico e naturalmente quando a peccedila eacute digna Se a eletrocircnica eacute uma fita modesta ou o
37
sistema interativo ldquomais inteligenterdquo essa eacute uma histoacuteria completamente diferente (STROPPA 1999 p 52)31
Stroppa separa portanto as questotildees tecnoloacutegicas referentes aos sistemas interativos
da questatildeo que cerca a percepccedilatildeo da vida na muacutesica (live) o que estaacute mais associado com o
acircmbito sonoro-morfoloacutegico ao qual estamos voltando nossa atenccedilatildeo nesta pesquisa
Simon Emmerson (2013) sustenta que na experiecircncia de escuta natildeo estamos tatildeo
interessados no ldquojogo de adivinhaccedilotildeesrdquo sobre quais foram as causas de determinado efeito
mas que ouvimos primariamente efeitos Este ponto se coloca em oposiccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de
que um sistema interativo deve buscar uma linearidade entre accedilatildeo e resposta semelhante aos
instrumentos acuacutesticos O autor contraria aqueles que argumentam que a cadeia causal
necessita ser reestabelecida para que haja uma interatividade significativa para o ouvinte De
acordo com Emmerson natildeo ouvimos a causa ouvimos o efeito Nesta abordagem eacute possiacutevel
observar que causa estaacute relacionada a questotildees tecnoloacutegicas (normalmente relacionada a
teacutecnicas de mapeamento) enquanto os efeitos satildeo de natureza sonora
Bachrataacute (2010) ao abordar a interaccedilatildeo gestual entre instrumentos acuacutesticos e sons
eletroacuacutesticos distingue interaccedilatildeo de interatividade A autora cita a definiccedilatildeo de
interatividade do EARS (ElectroAcoustic Research Site) ldquoInteratividade se refere
amplamente agrave interaccedilatildeo musical humano-computador ou interaccedilatildeo humano-humano mediada
por um computador ou possivelmente uma seacuterie de computadores conectados em rede que
estatildeo tambeacutem interagindo um com outrordquo32 De acordo com esta definiccedilatildeo ressalta a autora a
muacutesica para instrumento e sons fixados em suporte natildeo seria interativa embora quando
percebida auralmente a interaccedilatildeo esteja presente sem qualquer duacutevida (BACHRATAacute 2010 p
91) Esta diferenciaccedilatildeo estaacute relacionada com aquela que estamos apontando aqui Entretanto
os termos (interaccedilatildeo e interatividade) satildeo semelhantes e frequentemente utiliza-se interaccedilatildeo
para discursar sobre o que acima foi definido como interatividade Aleacutem do mais estas duas
palavras tecircm a mesma origem etimoloacutegica restando apenas a diferenccedila entre accedilatildeo e
31 ldquo[] there is no correlation between a piece using interactive technology and the perception of authentic interpretation in music interaction is not interpretation since the latter if it ideally implies the former is a much subtler and complex phenomenon [] Life in music sprouts suddenly when some kind of communication is going on between the performer and the surrounding electronic material between both of them and the audience and naturally when the piece is worth it Whether the electronics is a modest tape or the cleverest interactive system thats a completely different kettle of fishrdquo (STROPPA 1999 p 52)
32 Traduccedilatildeo do autor Original ldquoInteractivity refers broadly to human-computer musical interaction or humanshyhuman musical interaction that is mediated through a computer or possibly a series of networked computers that are also interacting with each otherrdquo (WEALE 2005)
38
atividade33 Optamos assim por diferenciar as questotildees tecnoloacutegicas da performance (nas
quais inclui-se a interatividade conforme definida acima) das questotildees sonoro-morfoloacutegicas a
interaccedilatildeo auralmente percebida de acordo com Bachrataacute (2010 p 91)
Por outro lado embora sejam de naturezas distintas com o devido cuidado eacute possiacutevel
analisar as relaccedilotildees entre estes dois acircmbitos Pode-se investigar como uma tecnologia
utilizada estaacute relacionada com uma morfologia sonora em determinado repertoacuterio Entretanto
estas relaccedilotildees natildeo parecem se dar de maneira determiniacutestica ou fataliacutestica pois estatildeo ligadas agraves
decisotildees criativas que muitas vezes tomam rumos contraacuterios agraves tendecircncias de uso de uma
ferramenta (vide as teacutecnicas estendidas dos instrumentos tradicionais) Assim a questatildeo
poderia ser sobre quais satildeo as possibilidades eou tendecircncias sonoro-morfoloacutegicas no uso de
determinada tecnologia
Menezes (2006) aponta tendecircncias das teacutecnicas em tempo real O autor argumenta que
estas permitem uma correlaccedilatildeo estreita com o gesto instrumental e sua metamorfose
eletroacuacutestica Entretanto estas teacutecnicas ldquoagem inexoraacutevel e exclusivamente em sentido
convergenterdquo (p 379) jaacute que estatildeo sempre ligadas a sua fonte instrumental e pouco fazem no
sentido divergente do contraste Eacute preciso considerar a que tipo de empreendimento o autor
se refere A impossibilidade da diferenccedila do contraste estaacute mais relacionada agraves teacutecnicas que
usam processamentos (tais como delays harmonizers entre outros) para transformar o som
instrumental ao vivo nunca se distanciando desta fonte sonora Entretanto como apresentado
em 212 haacute outras possibilidades em tempo real inclusive a de utilizar sons preacute-gravados
distintos dos instrumentais como germe de processos em tempo real Um exemplo eacute a peccedila
Vertiginous Rotation (2008) de James Correa34 Os sons do violatildeo e uma pequena amostra de
som de berimbau satildeo processados ao vivo e eacute possiacutevel observar momentos de consideraacutevel
contraste entre eletrocircnicos e violatildeo
A questatildeo das possibilidades ou tendecircncias sonoro-morfoloacutegicas de determinada
tecnologia tambeacutem tem sido levantada nos estudos da muacutesica eletroacuacutestica em geral Os
33 Esta discussatildeo poderia ir aleacutem se se lanccedilasse matildeo de referenciais de outras aacutereas A distinccedilatildeo entre interaccedilatildeo e interatividade eacute discutida no acircmbito da educaccedilatildeo a distacircncia no artigo (VALLE e BOHADANA 2012) A interaccedilatildeo acontece entre humanos enquanto a interatividade pode acontecer entre maacutequinas A interaccedilatildeo enquanto accedilatildeo entre humanos pode ser de fato uma metaacutefora mais adequada para a interaccedilatildeo entre elementos sonoros jaacute que estes ganham muitas vezes a funccedilatildeo o caraacuteter (de caracterizaccedilatildeo) de voz o que remonta agrave utilizaccedilatildeo da voz humana como instrumento e por sua vez a seu caraacuteter antropomoacuterfico Enquanto que interatividade pode ser mais adequado para as questotildees tecnoloacutegicas jaacute que se caracteriza por uma funccedilatildeo de instrumento ou inteacuterprete
34 Confira o viacutedeo do compositor explicando sua abordagem nesta peccedila lthttpswwwyoutubecomwatch v=dZfw 1WKF7eggt
39
estudos buscam compreender a relaccedilatildeo entre tecnologia e morfologia-sonora encarando o
compositor enquanto colaborador no desenvolvimento de tecnologias e recursos
eletroacuacutesticos (ZATTRA 2018) ou mesmo como luthier experimental (RIBEIRO 2018)
Tambeacutem relacionado a esta questatildeo estaacute o fato de que as teorias de anaacutelise de muacutesica
eletroacuacutestica partem da perspectiva do ouvinte e ignoram mais ou menos a tecnologia
envolvida Um exemplo eacute a Espectro-morfologia de Dennis Smalley (1997) Segundo o autor
eacute um sacrifiacutecio deixar de lado o desejo natural de desvendar os misteacuterios da produccedilatildeo sonora
eletroacuacutestica mas eacute necessaacuterio e loacutegico Smalley alerta para o que chama de escuta
tecnoloacutegica quando o ouvinte passa a perceber a tecnologia ou a teacutecnica responsaacutevel pela
muacutesica mais do que a proacutepria muacutesica De acordo com o autor ldquoIdealmente a tecnologia deve
ser transparente ou pelo menos a muacutesica precisa ser composta de tal maneira que as
qualidades de sua invenccedilatildeo superem qualquer tendecircncia a escutar primeiramente de uma
maneira tecnoloacutegicardquo (SMALLEY 1997 p 109)35
Menezes ao abordar a diferenccedila entre meios instrumental e eletroacuacutestico ressalta que
[ ] os elementos fundamentais de toda composiccedilatildeo musical independem em uacuteltima instacircncia (mas somente em uacuteltima) dos meios com os quais se compotildee uma obra elaboraccedilatildeo do material musical enquanto elementos miacutenimos e relacionais consciecircncia harmocircnica (em seu mais amplo sentido) elementos de conexatildeo entre as distintas ideacuteias musicais elaboraccedilatildeo de gestos musicais direcionalidades entreestados distintos de escuta conduccedilatildeo e transformaccedilatildeo do material musicalartesanato e detalhamento dos espectros variaccedilotildees etc satildeo aspectos que estatildeo aqueacutem e aleacutem dos meios composicionais per se ainda que com estes estabeleccedilam forte relaccedilatildeo dialeacutetica (MENeZeS 2006 p 379)
Estendendo esta ideia pode-se tambeacutem dizer que os elementos fundamentais da
composiccedilatildeo natildeo dependem da tecnologia utilizada - pensando aqui especialmente nas
teacutecnicas descritas em 21 - embora estabeleccedilam uma relaccedilatildeo dialeacutetica com ela
Esta relaccedilatildeo localiza o compositor especialmente o de muacutesica eletroacuacutestica numa
rede num emaranhado com suas ideias musicais e seus instrumentos (tecnologia) de tal forma
que a relaccedilatildeo entre esteacutetica e teacutecnica se torna nebulosa Ribeiro (2018) aponta trecircs fatores
significativos na composiccedilatildeo eletroacuacutestica
bull o compositor eacute o proacuteprio performer
35 Traduccedilatildeo proacutepria Original ldquoIdeally the technology should be transparent or at least the music needs to be composed in such a way that the qualities of its invention override any tendency to listen primarily in a technological mannerrdquo (SMALLEY 1997 p 109)
40
bull o instrumento eacute modular mutaacutevel e quase sempre com configuraccedilatildeo nova para cada obrabull a estrutura da obra se confunde com a construccedilatildeo do instrumento (p 176)
Assim Ribeiro concebe o processo composicional de muacutesica eletroacuacutestica
semelhante a um loop em que natildeo se pode separar facilmente as funccedilotildees tradicionais de
composiccedilatildeo instrumentaccedilatildeo e execuccedilatildeo
FIGURA 7 - PROCESSO COMPOSICIONAL NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA
Instrumento
FONTE Ribeiro (2018 p 117)
Desenvolver ideias para determinado instrumento e desenvolver instrumentos para
determinada ideia mais do que uma via de matildeo dupla parece ser um campo aberto Haacute
muitas possibilidades e neste loop em que se daacute o processo composicional elas podem ter
vaacuterias direccedilotildees Ideias que motivam o desenvolvimento de tecnologias como o caso da
Rotationstisch de Stockhausen instrumento para espacializaccedilatildeo (ver CHADABE 1997 p
41) ideias tecnoloacutegicas existentes que satildeo aproveitadas pelos compositores ou ainda
trabalhos em que o desenvolvimento de ideias musicais e o desenvolvimento tecnoloacutegico se
embricam de tal forma que natildeo se pode distinguir qual motiva qual se encontram numa rede
de relaccedilotildees e influecircncias
Por conveniecircncia de estudo a interaccedilatildeo que se refere agraves questotildees tecnoloacutegicas da
performance eacute distinguida daquela que se refere agraves questotildees sonoro-morfoloacutegicas percebidas
na escuta Eacute proacuteprio da pesquisa distinguir analisar (separar um todo em seus elementos
componentes) para num segundo momento sintetizar Esta siacutentese em especiacutefico natildeo seraacute o
foco de nossa pesquisa A investigaccedilatildeo das influecircncias da tecnologia sobre nossa percepccedilatildeo do
sonoro e mesmo para aleacutem dela eacute tema de pesquisas de Rodolfo Caesar O autor chama tal
influecircncia de marca tecnograacutefica
41
Atraveacutes dessa expressatildeo procuro salientar as marcas deixadas pelas diferentes tecnologias em suas diversas manifestaccedilotildees desde a mera percepccedilatildeo individual ateacute a cultura em geral Comecei a pensar sobre essa manifestaccedilatildeo de uma lsquosubjetivaccedilatildeo das tecnologiasrsquo ao me defrontar com a necessidade de exercer uma atenccedilatildeo criacutetica especificamente no acircmbito da muacutesica eletroacuacutestica quando importantes creacuteditos autorais dos programas computacionais empregados nas muacutesicas natildeo eram devidamente atribuiacutedos (CAESAR 2018)
Diferentemente a presente pesquisa se deteacutem agraves relaccedilotildees sonoro-morfoloacutegicas
percebidas na escuta independentemente das questotildees tecnoloacutegicas Este tema seraacute abordado
atraveacutes da revisatildeo de teorias pertinentes (capiacutetulo 3) anaacutelises (capiacutetulo 4) e relato de
experiecircncia composicional (capiacutetulo 5)
42
3 A INTERACcedilAtildeO NO AcircMBITO SONORO-MORFOLOacuteGICO
Tendo distinguido os dois acircmbitos em que se apresenta o tema da interaccedilatildeo na muacutesica
eletroacuacutestica mista (Capiacutetulo 2) neste capiacutetulo aprofundamos a discussatildeo sobre a interaccedilatildeo
relativa agrave morfologia sonora Neste acircmbito interaccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica proacutepria da textura
Numa textura polifocircnica por exemplo haacute uma interaccedilatildeo entre as diversas vozes A partir do
trabalho de Berry (1987) fazemos uma breve abordagem deste conceito na muacutesica
instrumental (31) Aleacutem disso incorporamos a ideia de sonoridade (GUIGUE 2011) para
abranger outras estruturas instrumentais que natildeo se enquadram como vozes (32) Esta
observacircncia das estruturas instrumentais natildeo necessita justificativa jaacute que estamos falando de
muacutesica para instrumentos e sons eletroacuacutesticos Entretanto podemos assumir
pressupostamente que a muacutesica eletroacuacutestica guardadas suas caracteriacutesticas exclusivas pode
apresentar estruturas semelhantes ou anaacutelogas agraves existentes no repertoacuterio instrumental As
particularidades da muacutesica eletroacuacutestica satildeo tambeacutem abordadas (33) a fim de inserir o tema
no contexto da pesquisa A ideia de fluxo sonoro permanece central embora neste contexto
seja possiacutevel tratar o tema por meio de outras metaacuteforas como camadas e planos (discutimos a
terminologia brevemente em 333) Abordamos tambeacutem o aspecto visual da performance de
muacutesica mista (35) E finalmente relacionamos os diversos conteuacutedos apresentados neste
capiacutetulo propondo um esboccedilo de uma textura da muacutesica mista (36)
31 VOZES E TEXTURA
311 Textura
A voz eacute certo som de um ser animado [que possui alma] porque nenhum dos inanimados dispotildee de voz Apenas por analogia se diz que estes usam a voz como por exemplo a flauta a lira e todos os outros seres inanimados que dispotildeem de altura duraccedilatildeo e articulaccedilatildeo pois a voz parece possuiacute-las (ARISTOacuteTELES 2010 p 85-86)
Na teoria musical a voz eacute um conceito que faz referecircncia ao uso musical da voz
humana Por analogia falamos em vozes mesmo quando satildeo tocadas por instrumentos As
vozes compotildeem uma textura na qual se relacionam de muitas maneiras Berry (1987) dedica
um capiacutetulo de sua obra agrave textura36 De acordo com o autor ldquoA textura da muacutesica consiste em
36 Note-se jaacute que textura na muacutesica instrumental tem uma acepccedilatildeo diferente de textura na muacutesica eletroacuacutestica No capiacutetulo 36 diferenciamos estas duas acepccedilotildees como macrotextura e microtextura respectivamente
43
seus componentes sonorosrdquo (BERRY 1987 p 184 traduccedilatildeo nossa37) Haacute um aspecto
quantitativo e outro qualitativo da textura O primeiro se refere ao nuacutemero de componentes
sonoros o segundo agrave interaccedilatildeo ou inter-relaccedilatildeo entre eles
Berry diferencia linha de voz A linha se refere agrave
ldquoqualquer componente textural no qual a relaccedilatildeo e a configuraccedilatildeo horizontal pode ser plausivelmente traccedilada como uma continuidade loacutegica - um estrato identificaacutevel na textura em algum dado niacutevelrdquo (BERRY 1987 p 192 traduccedilatildeo nossa38)
Jaacute a voz se refere agrave ldquouma linha que apresenta destacada independecircncia relativa ela
pode ser um complexo de linhas dobradas mas ela mesma natildeo eacute capaz de ser dobradardquo
(BERRY 1987 p 192-3 traduccedilatildeo nossa39) Assim uma textura monofocircnica (com uma uacutenica
voz) pode ser multi-linear (formada por vaacuterias linhas em dobramento - fagote e oboeacute com
dobramento de oitava por exemplo) A representaccedilatildeo de tais disposiccedilotildees pode ser vista na
Figura 8 Os nuacutemeros indicam as linhas (2 = mesma voz com dois instrumentos) As vozes satildeo
representadas verticalmente uma abaixo da outra
FIGURA 8 - REPRESENTACcedilAtildeO DOS ASPECTOS QUANTITATIVO E QUALITATIVO DA TEXTURA
1 1 1 1 2 2 41 1 1 1 2
1 1 1 1
Curva de qualidade (conforme condicionada por mushydanccedilas na independecircncia-interdependecircncia)
Curva de quantidade (nuacutemero-densidade)
FONTE Berry (1987 p 194-5 traduccedilatildeo nossa)
37 Original ldquoThe texture of music consists of its sounding components it is conditioned in part by the number of those components sounding in simultaneity or concurrence its qualities determined by the interactions interrelations and relative projections and substances of component lines or other component sounding factorsrdquo (BERRY 1987 p 184)
38 Original ldquo[] any textural component in which horizontal relation and configuration can plausibly be traced as a logical continuity - an identifiable stratum in the texture at some given levelrdquo (BERRY 1987 p 192)
39 Original ldquo[] a line having distinct relative independence it may thus be a complex of doubled lines but is not itself capable of doublingrdquo (BERRY 1987 p 192-3)
44
Aleacutem daqueles termos largamente usados para descrever a textura e que jaacute tem um
significado convencional estaacutevel (polifocircnico homofocircnico cordal dobramento espelhado
heterofocircnico sonoridade contrapontiacutestico monofocircnico) o autor propotildee outros Estes termos
tecircm por base trecircs paracircmetros considerados mais relevantes para a avaliaccedilatildeo das caracteriacutesticas
da textura ritmo (isto eacute padrotildees riacutetmicos) direccedilatildeo (da melodia) e conteuacutedo intervalar linear
(BERRY 1987 p 193) Uma escala que vai do simples para o complexo eacute usada em cada um
destes paracircmetros atraveacutes dos prefixos homo- hetero- e contra-40 Assim quanto ao ritmo a
relaccedilatildeo entre vozes distintas pode ser homorriacutetmica heterorritmica e contrarriacutetmica quanto agrave
direccedilatildeo homodirecional heterodirecional e contradirecional quanto ao conteuacutedo intervalar
homointervalar heterointervalar e contraintervalar A Figura 9 ilustra tais caracteriacutesticas
FIGURA 9 - ALGUMAS QUALIDADES DA TEXTURA
Relaccedilotildees nt niacutevel (nt ctntextt temptral) ilustrado
mhtmtrriacutetmict 3 5 htmtdirecitnal
mhetertrriacutetmict s er r ^ r r r 1
- hetertdirecitnal
3 ctntrarriacutetmictm m
ctntradirecitnal
it
^ r ni u tJsect rr
itmtintervalar
ietertintervalar
ctntraintervalar
FONTE Transcrito e traduzido de Berry (1987 p 194-5)
Nossa intenccedilatildeo em levantar tal classificaccedilatildeo e teorizaccedilatildeo da textura natildeo objetiva
incorporaacute-la prontamente em nossas anaacutelises antes cercar o tema da interaccedilatildeo desde a muacutesica
instrumental em suas especificidades
40 hetero- descreve diferenciaccedilotildees mais sutis enquanto contra- representa diferenccedilas mais draacutesticas
45
312 Vozes sons segregados em fluxos auditivos
A maneira como percebemos uma voz ou uma linha e como a diferenciamos de outras
eacute uma questatildeo importante na abordagem da textura As vozes satildeo normalmente diferenciadas
pela tessitura em que atuam (soprano contralto tenor e baixo por exemplo) e pelo timbre
(tone-color) enquanto identidade espectral associada a uma fonte instrumental (flauta
violino etc) Trevor Wishart (1996 p 23) ao tratar da noccedilatildeo convencional de instrumento
comenta que ldquoao menos conceitualmente um instrumento eacute uma fonte de timbre estaacutevel mas
de alturas variaacuteveis A funccedilatildeo essencial de um instrumento eacute manter o timbre estaacutevel e
articular o paracircmetro de alturasrdquo (traduccedilatildeo nossa41) Esta concepccedilatildeo de instrumento de timbre
estaacutevel garante o desenvolvimento de um fluxo instrumental (voz)42 associado a este timbre e
sua fonte sonora43 Wishart aponta que ldquoDe fato o conceito de fluxo [stream] instrumental eacute
talvez o que mais persiste no pensamento musical convencionalrdquo (1996 p 25)
O grupo de Albert Bregman da universidade McGill no Canadaacute pesquisa o tema da
Anaacutelise da Cena Auditiva que oferece vaacuterios pontos de contato com a percepccedilatildeo de vozes
distintas na muacutesica44 No artigo que compotildee a New Encyclopedia o f Neuroscience
(BREGMAN 2008) o autor resume
Numa situaccedilatildeo tiacutepica de escuta diferentes fontes acuacutesticas estatildeo ativas ao mesmo tempo Desta forma apenas a soma do seu espectro alcanccedilaraacute o ouvido do ouvinte Para padrotildees sonoros individuais serem reconhecidos - tais como aqueles chegando da voz humana numa mistura - a informaccedilatildeo auditoacuteria recebida tem de ser particionada e o subgrupo correto alocado para sons individuais de tal maneira que uma descriccedilatildeo acurada pode ser formada para cada um Este processo de agrupar e segregar dados sensoacuterios em representaccedilotildees mentais separadas chamadas fluxosauditoacuterios tem sido nomeada ldquoauditory scene analysisrdquo (ASA) por Bregman (1990)A formaccedilatildeo de fluxos auditoacuterios eacute o resultado de processos de agrupamento sequencial e simultacircneo O agrupamento sequencial conecta os dados sensoacuterios ao longo do tempo enquanto que o agrupamento simultacircneo seleciona dos dadoschegando no mesmo tempo aqueles componentes que satildeo provavelmente partes domesmo som (BREGMAN 2008 p 3 traduccedilatildeo nossa45)
41 Original [] an instrument is a source of stable timbre but variable pitch The essential function of aninstrument is to hold timbre stable and to articulate the pitch parameter (WISHART 1996 p 23)
42 Abordaremos a ideia de fluxo adiante43 Assim a voz se encontra convencionalmente associada agrave materialidade do instrumento ou suas famiacutelias
Observando por outro acircngulo ordinariamente as possibilidades tiacutembricas para cada voz se apresentam em valores discretos este ou aquele instrumento Esta eacute uma das dimensotildees da rede (lattice) de Wishart (1996) que seraacute abordada adiante
44 Os resultados das pesquisas de Bregman jaacute foram utilizados na composiccedilatildeo musical (Confira Frigatti Ferraz e Faria 2017)
45 Original ldquoIn a typical listening situation different acoustic sources are active at the same time Therefore only the sum of their spectra will reach the listenerrsquos ear For individual sound patterns to be recognized - such as those arriving from the human voice in a mixture - the incoming auditory information has to be
46
Desta forma a percepccedilatildeo de um fluxo auditivo (auditory stream) - em nosso caso
uma voz por enquanto - depende de processos cognitivos de agrupamento de dados
sensoacuterios De acordo com Bregman (2008 p 4) seus resultados manteacutem relaccedilatildeo com os
princiacutepios da Teoria da Gestalt como por exemplo o de agrupamento Segundo este
princiacutepio agrupamos elementos por proximidade similaridade boa continuaccedilatildeo e fato
comum De acordo com Roger Shepard (1999) ldquoOs princiacutepios de agrupamento nos permitem
separar o fluxo de informaccedilatildeo entrando em nosso sistema auditivo em sensaccedilotildees associadas
com objetos discretos pertencentes ao mundo externordquo (p 117) Baseado no princiacutepio de fato
comum eacute possiacutevel dizer que ldquose duas coisas estatildeo altamente correlacionadas eacute altamente
provaacutevel que emergiram de uma mesma fonte enquanto que se duas coisas satildeo assincrocircnicas
eacute provaacutevel que sejam associadas com dois objetos diferentesrdquo (p 117) Como os
componentes do timbre satildeo altamente correlacionados no som de um instrumento e
relativamente estaacuteveis como aponta Wishart na citaccedilatildeo acima (p 45) a tendecircncia eacute que os
sons deste instrumento constituam um fluxo Este aspecto tambeacutem aponta para a percepccedilatildeo de
uma uacutenica voz quando apresentada por vaacuterios instrumentos em dobramento Isto eacute agrupamos
os diversos sons sob uma mesma categoria uma voz porque estatildeo altamente correlacionados
especialmente em seu comeccedilo teacutermino e movimentos meloacutedicos
Outro princiacutepio importante eacute o de movimento aparente A Figura 10 mostra o
fenocircmeno da segregaccedilatildeo de fluxos num experimento de laboratoacuterio Duas notas (H e L) satildeo
tocadas em um padratildeo galopante H-L-H H-L-H etc O experimento evidencia a importacircncia
da separaccedilatildeo em frequecircncia e da velocidade quanto mais afastadas em frequecircncia as notas
estiverem ou quanto mais raacutepida a alternacircncia mais faacutecil seraacute percebecirc-las como fluxos
distintos
Quando por exemplo trecircs notas de alturas afastadas satildeo alternadas lento o suficiente
podemos perceber um padratildeo meloacutedico ou seja percebemos um movimento aparente que vai
de uma nota a outra Entretanto se a velocidade com que satildeo alternadas estas notas se torna
maior chega a um ponto em que natildeo percebemos uma melodia a ordem das trecircs notas se
torna irrelevante e comeccedilamos a ouvir a reiteraccedilatildeo de cada uma das notas como um fluxo
partitioned and the correct subset allocated to individual sounds so that an accurate description may be formed for each This process of grouping and segregating sensory data into separate mental representations called auditory streams has been named lsquoauditory scene analysisrsquo (ASA) by Bregman (1990) The formation of auditory streams is the result of processes of sequential and simultaneous grouping Sequential grouping connects sense data over time whereas simultaneous grouping selects from the data arriving at the same time those components that are probably parts of the same sound These two processes are not independent but can be discussed separately for conveniencerdquo (BREGMAN 1990 p 3)
47
separado (SHEPARD 1999 p 118) Este fenocircmeno explica a possibilidade de uma polifonia
virtual em que as notas intercaladas se agrupam em diferentes vozes devido agrave diferenccedila de
registro e ao tempo em que satildeo tocadas (ver Figura 11)
FIGURA 11 - POLIFONIA VIRTUAL NOS COMPASSOS 89 A 94 DA PARTITA NO 2 EM RE MENOR BWV 1004 DE J S BACH
P
FONTE Transcrito de BACH
48
Agraves vezes basta a separaccedilatildeo de registro (ou outra diferenciaccedilatildeo do material) para se
perceber ldquoduas vozesrdquo natildeo necessitando que seja raacutepida a alternacircncia entre elas A Figura 12
demonstra este caso em outro trecho da mesma partita de Bach Neste caso haacute tambeacutem
diferenciaccedilatildeo riacutetmica (padrotildees riacutetmicos diferentes) que corroboram com a segregaccedilatildeo de dois
fluxos
FIGURA 12 - POLIFONIA VIRTUAL NOS COMPASSOS 121 A 123 DA PARTITA NO 2 EM REacute MENOR BWV1004 DE J S BACH
m
FONTE Transcrito de BACH
Portanto o intervalo entre as notas de uma melodia a velocidade com que elas satildeo
tocadas bem como o timbre instrumental com que satildeo orquestradas satildeo importantes para a
caracterizaccedilatildeo e percepccedilatildeo do fluxo auditivo que na teoria musical chamamos voz Eacute possiacutevel
que mantendo-se as alturas numa relaccedilatildeo tempo-intervalo adequada para a percepccedilatildeo de uma
melodia e modificando o timbre ainda seja possiacutevel identificaacute-la como um uacutenico fluxo Isto
acontece na Klangfarbenmelodie (melodia de timbres) em que um uacutenico fluxo eacute distribuiacutedo
entre os instrumentos46
Os casos de polifonia virtual e de melodia de timbres satildeo exemplos de alternativas
ainda num contexto musical convencional agrave tendecircncia de um uacutenico instrumento constituir
uma uacutenica voz Na polifonia virtual um instrumento constitui vaacuterias vozes enquanto que na
melodia de timbres vaacuterios instrumentos constituem uma uacutenica voz
313 Orquestraccedilatildeo timbre (tone-color) e textura
Eacute importante salientar para a distinccedilatildeo de alguns conceitos que se relacionam e
convergem neste tema orquestraccedilatildeo timbre (tone-color) e textura
De acordo com Brian Simms (1996 p101) ldquoOrquestraccedilatildeo eacute a arte de realizar uma
ideia musical para um grupo esp eciacutefico de instrumentosrdquo Simms (1996 p 101-109) apresenta
uma seacuterie de transformaccedilotildees pelas quais passou a orquestraccedilatildeo nos uacuteltimos seacuteculos
No seacuteculo XIX o tipo de orquestraccedilatildeo dos compositores alematildees como Richard
Wagner privilegiava o uso de vaacuterios dos corais da orquestra sobre uma mesma voz Com estes
46 Este caso seraacute abordado em 313
vaacuterios dobramentos criava-se uma grande uniformidade tiacutembrica
Ao final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX ressalta-se por um lado Claude Debussy que
evitava dobramentos em passagens mais suaves mostrando preferecircncia pelo som puro do
instrumento solo Por outro lado Gustav Mahler que entre outras de suas inovaccedilotildees em
orquestraccedilatildeo usava subdivisotildees heterogecircneas da orquestra com poucos dobramentos para
evidenciar o conteuacutedo contrapontiacutestico
Nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX alguns compositores demonstraram uma
preferecircncia por pequenos grupos de cacircmara - Pierrot Lunaire (1912) de Arnold Schoenberg eacute
uma peccedila emblemaacutetica bem como L rsquohistoire du soldat (1918) de Igor Stravinsky Aleacutem disso
haacute a incorporaccedilatildeo da percussatildeo como elemento estrutural da composiccedilatildeo cuja peccedila simboacutelica
eacute Ionisation (1931) de Edgard Varegravese Deve-se acrescentar ainda a experimentaccedilatildeo com novos
sons por parte de americanos como Charles Ives Henry Cowell entre outros e a exploraccedilatildeo
de efeitos espaciais ao se dividir a orquestra em grupos que tocavam em lugares distintos do
espaccedilo de concerto
A abordagem de Simms daacute ecircnfase ao seacuteculo XX e trata da muacutesica eletroacuacutestica de
maneira independente destes conceitos satildeo capiacutetulos agrave parte Entretanto podemos levantar a
questatildeo de como os recursos eletroacuacutesticos se incorporaram a esta orquestraccedilatildeo na segunda
metade do seacuteculo XX e iniacutecio do XXI Nossa investigaccedilatildeo relaciona-se fortemente com esta
questatildeo entretanto por um vieacutes mais teoacuterico do que histoacuterico
Timbre enquanto tone-color eacute definido por Simms (1996 p 101) como ldquoa qualidade
distintiva de um som musicalrdquo Neste sentido a ideia de Klangfarbenmelodie se apresenta
como um dos principais desenvolvimentos Uma primeira acepccedilatildeo diz respeito agrave ideia original
de Schoenberg - a terceira peccedila (Farben) de suas Cinco Peccedilas para Orquestra op 16 (1909) eacute
um exemplo De acordo com o verbete do Grove Music Online (RUSHTON 2001) o timbre
(ou tone-color) pocircde ser concebido enquanto um paracircmetro estrutural o que possibilitou que
transformaccedilotildees tiacutembricas em uma uacutenica nota podiam ser percebidas como uma melodia Na
obra de Anton Webern haacute uma acepccedilatildeo distinta da melodia de timbres Uma mesma voz eacute
segmentada e cada segmento eacute tocado por um instrumento distinto Um exemplo
representativo eacute a sua orquestraccedilatildeo da Musikalischen Opfer de Bach A Figura 13 apresenta
um excerto da orquestraccedilatildeo de Webern
49
50
FIGURA 13 - MELODIA DE TIMBRES NA ORQUESTRACcedilAtildeO DE WEBERN FUGA (RICERCATA) NO 2 AUS DEM ldquoMUSIKALISCHEN OPFERrdquo VON JOH SEB BACH
Trombone (muted) Horn (muted) Tpt (muted) Horn
mpp mdash p
Horn Tpt and Harp Flute
Tromb pp pp
v gt Violin (muted)
m mp p
FONTE Transcrito de Simms (1996 p 111)
O uso estrutural do timbre (tone-color) eacute bastante desenvolvido no seacuteculo XX Varegravese
prenuncia numa aula em 1936 ldquoO papel da cor ou timbre seraacute completamente modificado de
ser incidental anedoacutetico sensual ou pitoresco ele se tornaraacute um agente de delineamento
como as diferentes cores num mapa separando diferentes aacutereas e uma parte integral da
formardquo (VARESE apud SIMMS 1996 p 112) Varegravese defendia uma liberaccedilatildeo do som que
seria possiacutevel por meio dos novos instrumentos (ver citaccedilatildeo na p 17) Em Poegraveme
eacutelectronique (1958) estas ideias tecircm um aacutepice que evidencia o desenvolvimento do uso do
timbre na muacutesica Aleacutem disso ressalta-se a fascinaccedilatildeo com o som por parte de compositores
como Morton Feldman que buscava uma muacutesica em que os sons existissem por si mesmos
independentemente das estruturas de construccedilatildeo da muacutesica O som seria natildeo apenas uma
memoacuteria mas existiriam por si mesmos Deve-se salientar a discordacircncia neste quesito Elliott
Carter por exemplo afirma
Tatildeo longe quanto a cor possa ir eu continuo acreditando que o real interesse da muacutesica estaacute na sua organizaccedilatildeo Eu natildeo acredito na novidade do som por seu proacuteprio interesse eacute sempre a coisa mais faacutecil a se alcanccedilar e perde seu interesse muito rapidamente (CARTER apud SIMMS 1996 p114 traduccedilatildeo nossa47)
47 Original ldquoAs far as color goes I still believe that the real interest of music lies in its organization I donrsquot believe in novelty of sound for its own sake that is always the easiest thing to bring off and loses its interest very quicklyrdquo (CARTER apud SIMMS 1996 p 114)
51
Abordar a discussatildeo em torno da cor e do timbre neste trabalho seria por demais
expansiacutevel Nos limitaremos a expocircr a explicaccedilatildeo de Rob Weale que demonstra a
problemaacutetica em torno da concepccedilatildeo de timbre
Timbre tem sido usado geralmente sem grande consistecircncia de significado para se referir vagamente agrave lsquocorrsquo de um som Tem sido frequentemente e incorretamente tratado como um lsquoparacircmetrorsquo discreto do som junto a outras facetas como a frequecircncia e altura A praacutetica de criaccedilatildeo e de pesquisa na muacutesica eletroacuacutestica tem revelado a natureza insatisfatoacuteria desta imprecisatildeo e aberto a noccedilatildeo para uma situaccedilatildeo muito mais complexa e variaacutevel onde o timbre existe em relaccedilotildees fraacutegeis e contiacutenuas com frequecircncia conteuacutedo espectral identidade socircnica e reconhecimento da fonte Isto leva para uma situaccedilatildeo onde em vaacuterios exemplos musicais eacute difiacutecil separar timbre do discurso musical geral (WEALE 2005 traduccedilatildeo nossa48)
Com esta complexidade em mente natildeo haveria tanta incongruecircncia como daacute a
entender Carter na citaccedilatildeo acima entre timbre e a organizaccedilatildeo da muacutesica
Textura segundo Simms (1996 p 102) ldquose refere ao agregado sonoro de linhas
acordes ou outros eventos audiacuteveis enquanto interagem uns com os outrosrdquo O autor descreve
o desenvolvimento da textura polifocircnica no seacuteculo XX Citaremos abaixo alguns fatos
importantes deste contexto
Para algumas texturas polifocircnicas muito complicadas a fim de deixar clara a
importacircncia de cada voz da textura Schoenberg e Berg utilizavam a notaccedilatildeo H para
Hauptstimme - voz principal e N para Nebenstimme - para voz secundaacuteria
O uso de texturas convencionais permaneceu mesmo com o uso de estruturas
harmocircnicas natildeo tradicionais Um exemplo satildeo as fugas de Paul Hindemith na obra Ludus
tonalis (1936)
A textura foi abordada de maneiras natildeo convencionais Varegravese e Cowell por exemplo
desenvolveram texturas compostas por massas sonoras diferentes daquelas compostas por
intervalos linhas e acordes
A obra de Webern tambeacutem se distancia das convencionais texturas homofocircnica e
polifocircnica Ela disfarccedila a textura polifocircnica atraveacutes de uma disposiccedilatildeo diferente dos
componentes Simms (1996 p 116) descreve a textura do iniacutecio da Op 21 de Webern
48 Original ldquoTimbre has generally been used without any great consistency of meaning to refer very loosely to the rsquocolourrsquo of a sound It has often and incorrectly been treated as a discrete rsquoparameterrsquo of sound along with other facets such as frequency and pitch Creative practice and research in electroacoustic music have revealed the unsatisfactory nature of this imprecision and opened up the notion to a much more complex and protean situation where timbre exists in fragile relationships and continua with frequency spectral content sonic identity and source recognition This leads to a situation where in many musical examples it is hard to separate timbre from the overall musical discourserdquo (WEALE 2005)
52
A textura consiste em vaacuterias linhas cada qual eacute feita descontiacutenua pela colocaccedilatildeo de pausas grandes saltos disjunccedilotildees no registro e raacutepidas mudanccedilas de cor Eacute de fato difiacutecil perceber qualquer linha no sentido tradicional a atenccedilatildeo do ouvinte eacute primeiramente atraiacuteda por uma seacuterie de sons ou intervalos individuais (traduccedilatildeo nossa49)
Este tipo de textura eacute chamada pontilhista por sua relaccedilatildeo com a teacutecnica de pintura em
que um conjunto de pontos com cores puras datildeo origem agraves formas Agrave distacircncia o mosaico de
pontos se mistura e proporciona perceber formas reconheciacuteveis Ligeti (apud SIMMS 1996
p 117) afirma que a esta fragmentaccedilatildeo da linha em Webern resulta numa textura global
Nesta natildeo haacute de fato um fluir musical trata-se de momentos individuais natildeo haacute de fato um
teacutermino a muacutesica daacute a impressatildeo de ldquouma parada no fluxo do tempordquo O ouvinte natildeo se ateacutem
a continuidades lineares mas a diferentes momentos isolados Este tipo de textura global foi
utilizada por muitos compositores apoacutes Webern como Ligeti Stockhausen e Boulez
Entretanto tamanha variedade na textura ironicamente poderia gerar a percepccedilatildeo de uma
continuidade da mesma coisa Assim estrateacutegias de controle destas texturas globais foram
desenvolvidas de maneira especial por Ligeti e Krzysztof Penderecki
As peccedilas Apparitions (1958-9) e Atmosphegraveres (1961) de Ligeti satildeo exemplos de
composiccedilotildees essencialmente texturais As texturas chegam a cinquenta vozes e satildeo
principalmente formadas por clusters cromaacuteticos ou figuras cromaacuteticas confusas formando
massas que interagem Simms (1996 p 119) comenta ldquoestas massas entatildeo interagem por
colisatildeo penetraccedilatildeo dissipaccedilatildeo mescla ou outros gestos vividamente dramaacuteticosrdquo50 (grifo
nosso) Esta concepccedilatildeo de textura estaacute mais proacutexima do repertoacuterio eletroacuacutestico como haacute de
se demonstrar
314 Microtextura e macrotextura
Eacute importante notar o caraacuteter micro a que foi levada esta textura percebida globalmente
A teacutecnica de Ligeti para a formaccedilatildeo destas massas eacute conhecida como micro-polifonia Isto eacute a
textura cujas mudanccedilas conforme Berry (1987 p 189) ldquoestatildeo frequentemente entre o que eacute
49 Original ldquoThe texture consists of several lines each of which is made discontinuous by the placement of rests large leaps disjunctions in register and rapid changes of color It is in fact difficult to perceive any lines in the traditional sense and the listenerrsquos attention is at first drawn to a mottled array of individual sounds or intervalsrdquo (SIMMS 1996 p 116)
50 Original ldquo[] and these masses then interact by collision penetration dissipation merging or other vividly dramatic gesturesrdquo (SIMMS 1996 p 119)
53
mais prontamente perceptiacutevel e apreciaacutevel na experiecircncia da muacutesicardquo51 neste caso eacute um
emaranhado de ldquomicro-vozesrdquo indistinguiacuteveis que formam uma massa Por outro lado a
proacutepria massa eacute ouvida de maneira semelhante agrave voz como uma camada como um fluxo
coerente Haacute assim em relaccedilatildeo agrave descriccedilatildeo da textura um deslocamento de percepccedilatildeo do
macro para o micro Parece existir uma demanda de escuta uma necessidade embora haja
uma liberdade subjetiva neste aspecto de adaptarmos nossa escuta aos eventos sonoros que se
apresentam a ela De todo modo o termo textura pode se referir a estas complexidades e
simultaneidades do niacutevel micro eou do niacutevel macro Um exerciacutecio imaginativo simploacuterio
pode elucidar estes dois niacuteveis Imaginemos uma massa orquestral tal qual as de Ligeti e a
ela sobreposta uma voz uma melodia cantada por uma soprano por exemplo Haacute uma
macrotextura que se refere a configuraccedilatildeo massa + voz (uma espeacutecie de melodia
acompanhada) e haacute uma microtextura que constitui a proacutepria massa A Figura 14 oferece uma
ilustraccedilatildeo deste exemplo
FIGURA 14 - EXEMPLO DE MACRO E MICROTEXTURA
Soprano (voz)
Orquestra (massa)
Y Macrotextura
FONTE o autor (2019)
Esta distinccedilatildeo eacute um esforccedilo teoacuterico e uma necessidade de nosso trabalho que decorre
da ausecircncia de tal distinccedilatildeo na bibliografia consultada Ela tem o objetivo de indicar neste
trabalho estas diferentes concepccedilotildees micro e macrotextura
32 AS SONORIDADES
Mesmo na muacutesica instrumental a noccedilatildeo de voz pode natildeo ser uma denominaccedilatildeo ideal
dependendo dos materiais e processos de composiccedilatildeo Este eacute o caso de muitas composiccedilotildees
51 Traduccedilatildeo nossa Original ldquoChanges in texture-surely quantitative changes but those involving textural qualities as well-are often among the most readily perceptible and appreciable in the experience of musicrdquo (BERRY 1987 p 189)
do seacuteculo XX como as supramencionadas Em alguns destes casos a ideia de sonoridade
conforme o modelo de Guigue (2011) pode ser mais apropriada Didier Guigue desenvolve
uma teoria analiacutetica da sonoridade especialmente voltada para a anaacutelise de peccedilas para piano
mas facilmente expansiacutevel para outras muacutesicas Uma sonoridade carrega o sentido de uma
unidade sonora composta formada por componentes de nuacutemero variaacutevel que satildeo combinados
e que interagem entre si Ela eacute um momento que pode ocupar qualquer medida temporal
desde um pequeno segmento ateacute uma peccedila inteira Ela eacute uma unidade da estruturaccedilatildeo musical
com potencial morfoloacutegico ldquoUma unidade sonora eacute consequentemente a siacutentese temporaacuteria
de um certo nuacutemero de componentes que agem e interagem em complementaridaderdquo
(GUIGUE 2011 p 50)
O modelo de Guigue apresenta dois niacuteveis O primeiro (niacutevel primaacuterio ou niacutevel 1) eacute
constituiacutedo por
bull coleccedilatildeo de cromas o autor usa o termo como sinocircnimo de classe de nota
bull particcedilatildeo se refere a distribuiccedilatildeo dos cromas na extensatildeo do(s) instrumento(s) em
pontos especiacuteficos e exclusivos em alturas absolutas
bull intensidade comumente chamada de dinacircmica
bull efeitos exoacutegenos efeitos que influenciam a produccedilatildeo concreta do som por exemplo o
pedal do piano
No niacutevel secundaacuterio os componentes podem ser de ordem morfoloacutegica52 quando para
serem analisados eacute preciso fazer a abstraccedilatildeo do fator tempo (conteuacutedo acrocircnico da unidade
sonora) ou de ordem cineacutetica quando satildeo avaliados levando em conta a distribuiccedilatildeo dos fatos
sonoros no tempo (componentes diacrocircnicos) Veja na Figura 15 a ilustraccedilatildeo do domiacutenio
morfoloacutegico e cineacutetico bem como os aspectos do primeiro niacutevel
Cada componente pode ser analisado em relaccedilatildeo a sua complexidade relativa O iacutendice
de complexidade relativa se refere a ldquoposiccedilatildeo que o componente analisado ocupa em dado
momento no vetor simplicidade-complexidaderdquo (GUIGUE 2011 p 52) sempre em relaccedilatildeo a
uma complexidade maacutexima paradigmaacutetica Por exemplo para expressar a complexidade
54
52 Note o leitor que aqui o termo morfoloacutegico estaacute posto em relaccedilatildeo ao dualismo entre os componentes que para serem analisados eacute necessaacuterio fazer a abstraccedilatildeo do fator tempo e aqueles que para serem analisados eacute imperativo considerar o fator tempo No caso de Smalley (1997) o termo morfologia do binocircmio espectro- morfologia se refere justamente ao oposto ou seja o desenvolvimento temporal das caracteriacutesticas espectrais (p 107) Neste trabalho entretanto quando nos referimos ao acircmbito sonoro-morfoloacutegico o estamos fazendo em oposiccedilatildeo aos aspectos de ordem praacutetica tecnoloacutegica da performance Assim os aspectos sonoro- morfoloacutegicos (da forma do som) concernem ao que percebemos que soa e sua organizaccedilatildeo
relativa do nuacutemero de fatos sonoros53 num determinado tempo o eixo ldquovaziordquo (simplicidade
maacutexima) - ldquosaturadordquo (complexidade maacutexima) deve ser utilizado
55
FIGURA 15 - NIVEIS DE ANALISE DA SONORIDADE
Niacutevel 2
Niacutevel 1
53 O autor designa fatos sonoros ldquoum nuacutemero qualquer de notas ou outros elementos organizando a sonoridade ocorrendo simultaneamente isto eacute na mesma posiccedilatildeo do tempordquo (GUIGUE 2011 p 51)
56
321 Oposiccedilatildeo Adjacente e Segmentaccedilatildeo
A articulaccedilatildeo entre as sonoridades se daacute por meio de rupturas de continuidade Se haacute
uma ruptura em um dos componentes que compotildeem a unidade supotildee-se que haacute uma ruptura
na continuidade sonora uma articulaccedilatildeo que daacute iniacutecio a uma nova unidade (p 68)54 Neste
caso falamos de um processo de segmentaccedilatildeo
Satildeo processos de transformaccedilatildeo dos componentes comuns agraves duas unidades
adjacentes que geram estas rupturas Assim eacute ainda necessaacuterio observar o nuacutemero de
componentes ativos no processo de transformaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao nuacutemero daqueles que se
mantecircm passivos neste processo (p69) O autor entra assim na discussatildeo sobre repeticcedilatildeo e
variaccedilatildeo e propotildee uma escala que vai da repeticcedilatildeo agrave oposiccedilatildeo diametral passando pela
declinaccedilatildeo e variaccedilatildeo Declinaccedilotildees satildeo as variaccedilotildees em que o modelo referencial permanece
reconheciacutevel entretanto com pequenas diferenccedilas Por outro lado na oposiccedilatildeo diametral soacute eacute
possiacutevel falar do referencial pela sua ausecircncia Esta escala chamada Vetor de qualificaccedilatildeo do
grau de oposiccedilatildeo estrutural entre unidades sonoras eacute ilustrada na Figura 16
FIGURA 16 - VETOR DE QUALIFICACcedilAtildeO DO GRAU DE OPOSICcedilAtildeO ESTRUTURAL ENTRE UNIDAshyDES SONORAS
A B
repeticcedilotildees declinaccedilotildees
variaccedilotildeesoposiccediloes
a = modelo b ^ variaccedilatildeo paradigmaacuteticaA = domiacutenio de a (repeticcedilotildees ^ exatas variadas ^ declinaccedilotildees) B = domiacutenio de b (variaccedilotildees ^ oposiccedilotildees ^ oposiccedilatildeo diametral)
FONTE Transcrito de Guigue (2011 p 72)
As diferentes sonoridades podem ser articuladas tambeacutem atraveacutes de uma sonoridade
ldquopivocircrdquo ou com sobreposiccedilatildeo parcial de uma sobre a outra Guigue chama esta uacuteltima de
telhagem quando uma sonoridade comeccedila antes que a anterior termine (ver Figura 17)
a v b
54 O autor classifica tambeacutem os tipos de rupturas e o papel e a hierarquia dos componentes no que afetam estas rupturas (GUIGUE 2011 p 64-69)
57
FIGURA 17 - TELHAGEM DE ACORDO COM GUIGUE (2011)U44
O autor desenvolve tambeacutem o conceito de sintagma ldquoum sintagma eacute um conjugado
sequencial binaacuterio de unidades sendo que uma eacute determinante e outra determinadardquo (p 75)
A unidade determinada se define na reaccedilatildeo agrave determinante Esta reaccedilatildeo pode ter o caraacuteter de
ldquorespostardquo ldquoconsequecircnciardquo ou ldquocomplementordquo A ressonacircncia de um gesto uma nota ao
piano por exemplo eacute uma reaccedilatildeo como ldquoconsequecircnciardquo determinada pelo gesto
(determinante)5 Nos compassos 271-272 da Synchronisms no 10 de Mario Davidovsky eacute
possiacutevel demarcar o arpejo do violatildeo como determinante do ataque consecutivo da parte
eletroacuacutestica (determinada) principalmente por se tratar das mesmas alturas (Figura 18)
FIGURA 18 - SINTAGMA EM SYNCHRONIMSNO 10 (1992) DE MARIO DAVIDOVSKY (COMPASSOS
FONTE Transcrito de Davidovsky (compositor) (1995)
55 As ideias de causalidade de Smalley (1997) e de gatilho (triggering) de Wishart (1996) que seratildeo abordadas adiante apresentam estreita relaccedilatildeo com esta ideia de sintagma
58
322 Polifonia de Sonoridades
As sonoridades podem se apresentar dispostas em muacuteltiplos fluxos simultacircneos que se
desenvolvem em paralelo Diferentemente do processo de segmentaccedilatildeo (relacionado agrave
oposiccedilatildeo adjacente que diz respeito agraves articulaccedilotildees sucessivas das sonoridades) na
simultaneidade de fluxos distintos haveraacute um processo de segregaccedilatildeo56 em vaacuterias camadas
Esta polifonia de Sonoridades como denomina Guigue pode apresentar relaccedilotildees de
interdependecircncia das unidades sonoras O autor aponta a relaccedilatildeo espectral como a principal
dimensatildeo das possibilidades de interdependecircncia entre as unidades pois propicia em
potencial a fusatildeo entre unidades57
FIGURA 19 - POLIFONIA DE SONORIDADES EM MOMENTO 23 DE ALMEIDA PRADO
Raacutepido 8va~
Lento
i m mp p p
molto lento
i P P ip p p Calmor3n 3 r 3~i
ampt i
FONTE Transcrito de Guigue (2011 p 77)
Ao fim do capiacutetulo sobre sua proposta metodoloacutegica (p 47-81) Guigue apresenta uma
recapitulaccedilatildeo em que resume o processo de segregaccedilatildeo como segue
3
A Segregaccedilatildeo parte da constataccedilatildeo de que eacute possiacutevel dissociar sistematicamente as unidades em dois ou mais fluxos simultacircneos os quais conservam entre si ao longo do tempo tanto elementos de identificaccedilatildeo quanto de diferenciaccedilatildeo um dos fatores
56 Tanto fluxos como segregaccedilatildeo satildeo os termos utilizados por Guigue O autor aponta a psicologia da audiccedilatildeo como aacuterea de origem destes termos e cita o trabalho de Albert Bregman Auditory Scene Analysis
57 Fusatildeo e contraste satildeo tambeacutem os termos usados para articular a proposta de morfologia da interaccedilatildeo de Flo Menezes (2006 p 377-400) que seraacute apresentada adiante
59
mais frequentes de segregaccedilatildeo eacute a separaccedilatildeo estaacutevel entre vaacuterias regiotildees de alturas ou entre diversas configuraccedilotildees instrumentais (p 79)
Esta uacuteltima frase nos leva a pensar novamente nos jaacute abordados paracircmetros envolvidos
na percepccedilatildeo de um fluxo auditivo registro e timbre instrumental (p 46) Entretanto como
afirma Guigue este eacute ldquoum dos fatores mais frequentes de segregaccedilatildeordquo Existem outros fatores
passiacuteveis de diferenciar os fluxos e tambeacutem de os unir Embora os estudos da percepccedilatildeo
possam nos ajudar a explicar estes fatores esta explicaccedilatildeo eacute posterior agrave praacutetica e agrave
experimentaccedilatildeo que satildeo assim defendemos insubstituiacuteveis como recursos para avaliar
estrateacutegias de composiccedilatildeo Portanto buscaremos evidenciar estes paracircmetros no repertoacuterio
(capiacutetulo 4) e na praacutetica da composiccedilatildeo (capiacutetulo 5)
33 ldquoVOZESrdquo NO CONTEXTO ELETROACUacuteSTICO
As categorias apresentadas - voz e sonoridade - embora natildeo sejam tatildeo recorrentes na
muacutesica eletroacuacutestica natildeo satildeo completamente estranhas a ela A citada peccedila de Davidovsky
demonstra a possibilidade de pensar a parte eletroacuacutestica em categorias tradicionais Nesta
peccedila percebemos uma concepccedilatildeo tradicional de voz a escrita da parte eletroacuacutestica eacute
semelhante agrave escrita para o violatildeo haacute imitaccedilotildees entre os meios como se o eletroacuacutestico se
tratasse de um instrumento semelhante ao violatildeo Em outros casos temos uma duplicaccedilatildeo do
proacuteprio instrumento na parte eletroacuacutestica como eacute o caso de Dialogue de l rsquoombre double
(1985) para clarineta e fita magneacutetica de Pierre Boulez Neste exemplo o clarinetista faz uma
parte ao vivo em diaacutelogo com partes que foram preacute-gravadas preferencialmente por ele
mesmo
Entretanto o universo eletroacuacutestico abre espaccedilo para um continuum de possibilidades
natildeo amoldadas aos padrotildees instrumentais e musicais convencionais Este contexto admite
sons que fazem referecircncia a outras experiecircncias que natildeo apenas agrave voz humana
Smalley (2008) desenvolve os conceitos de Campos e Redes Indicativas para se referir
agraves relaccedilotildees entre a escuta de materiais sonoros em contextos musicais e a experiecircncia humana
em geral Na introduccedilatildeo de seu texto ele aponta trecircs categorias de sons para tentar delimitar o
amplo territoacuterio sonoro em potencial (1) aqueles sons captados da natureza ou da cultura pelo
microfone (2) sons criados para serem usados na muacutesica como os de instrumento e de canto
e (3) sons que por serem sintetizados ou fortemente transformados parecem distantes dos sons
60
familiares da natureza da cultura dos instrumentos ou do canto Os sons de ambas as
categorias podem fazer referecircncia a experiecircncias externas ao contexto da muacutesica
O termo ldquoindicativordquo significa que a manifestaccedilatildeo musical de um campo se refere ao mundo natildeo-sonoro ou indica experiecircncias relacionadas a ele Identificam-se nove campos Trecircs satildeo arquetiacutepicos gesto (gesture) fala (utterance) e comportamento (behaviour) Estes campos satildeo universais originais A fala humana e as consequecircncias do gesto forneceram tradicionalmente os modelos sonoros fundamentais para a muacutesica O campo-comportamento se ocupa das relaccedilotildees sonoras no espaccedilo e no tempo as quais podem ser consideradas anaacutelogas a certos modos de relaccedilatildeo humana as relaccedilotildees observadas entre coisas ou objetos ou a relaccedilotildees homem-objeto Os seis campos restantes satildeo energia movimento objetosubstacircncia ambiente visatildeo e espaccedilo (SMALLEY 2008 p 7)
O campo-ambiente eacute um exemplo de referecircncia pouco usual na muacutesica instrumental
mas muito recorrente na muacutesica eletroacuacutestica (por exemplo Presque rien No1 - le lever du
jour au bord de la mer (1967-70) de Luc Ferrari) E mesmo que se trate dos campos que
ldquoforneceram tradicionalmente os modelos sonoros fundamentais para a muacutesicardquo haacute outras
possibilidades sonoras que natildeo se adequam agrave estrutura conceitual na qual concebemos a
muacutesica instrumental do chamado periacuteodo da praacutetica comum
331 O Continuum
Em seu livro On Sonic Art (1996) Trevor Wishart critica o paradigma de escrita
musical que fundamenta a construccedilatildeo da muacutesica ocidental Esta escrita segundo o autor daacute
demasiada ecircnfase aos paracircmetros altura e duraccedilatildeo e considera-os por valores discretos (Doacute
Doacute sustenido Reacute etc Semiacutenima colcheia tercina etc) Ou seja relega a um lugar perifeacuterico
o continuum existente nestes paracircmetros Entre Doacute e Doacute sustenido haacute uma infinidade de
valores bem como entre as duraccedilotildees de semiacutenima e colcheia por exemplo A ecircnfase sobre
estes dois paracircmetros considerados por valores discretos cria uma rede bidimensional de
altura duraccedilatildeo O paracircmetro timbre eacute visto da mesma forma eacute tambeacutem apresentado em
valores discretos (instrumento 1 instrumento 2 etc) e compreende uma terceira dimensatildeo
(ver Figura 20a)
61
A criacutetica agrave rede concerne ao fato de que se nos concentrarmos apenas nela corremos o
risco de cair na armadilha mental de observar o mundo dos sons como se fosse dividido em
trecircs dimensotildees com valores discretos Pelo contraacuterio objetos musicais complexos para usar o
termo de Wishart movem-se num continuum (ver Figura 20b)
332 O Gesto e textura
De acordo com o autor a articulaccedilatildeo deste continuum se daacute atraveacutes do gesto Para
Wishart o gesto eacute a articulaccedilatildeo do continuum Na base desta ideia estaacute a concepccedilatildeo de que o
gesto intelectual-fisioloacutegico eacute traduzido em morfologia sonora e que inversamente a
morfologia sonora evidencia o gesto intelectual-fisioloacutegico Esta traduccedilatildeo se daacute por meio da
voz laringe ou pela associaccedilatildeo do movimento corporal com um instrumento No caso da voz
temos uma traduccedilatildeo mais direta sensitiva que natildeo apresenta intermediaacuterios Jaacute no caso dos
instrumentos temos normalmente uma mecacircnica intermediaacuteria socialmente construiacuteda que
impotildee as caracteriacutesticas da rede no proacuteprio instrumento seja atraveacutes de furos trastes teclas
etc Desta maneira a voz humana eacute a fonte imediata do gesto intelectual-fisioloacutegico e eacute um
importante modelo para o desenvolvimento das ideias de Wishart Os instrumentos de sopro
carregam tambeacutem de maneira mais sensitiva a informaccedilatildeo gestual embora possuam esta
mecacircnica intermediaacuteria pois a sua produccedilatildeo sonora estaacute intimamente ligada com a respiraccedilatildeo
62
fisioloacutegica
De maneira semelhante para Smalley (1997 p 111) gesto eacute uma ldquo trajetoacuteria de
energia-movimento que estimula o corpo sonador criando vida espectro-morfoloacutegicardquo
(traduccedilatildeo nossa58) Assim o processo gestual musical eacute taacutetil visual e aural mas aleacutem disso
tem relaccedilatildeo com as tensotildees e relaxamentos musculares com esforccedilo e resistecircncia assumindo
assim um caraacuteter proprioceptivo Por isso ldquoa produccedilatildeo sonora estaacute ligada a uma experiecircncia
sensoacuterio-motora e psicoloacutegica mais abrangenterdquo (SMALLEY 1997 p 111 traduccedilatildeo nossa59)
Assim podemos recuperar a atividade humana por traacutes de determinado som atraveacutes do que
Smalley denomina processo de referenciaccedilatildeo espectro-morfoloacutegica (spectromorphological
referralprocess) Na muacutesica eletroacuacutestica as referecircncias gestuais podem ser mais ou menos
evidentes Este aspecto eacute analisado pela noccedilatildeo de substituinte (gesture surrogacy) Sons cuja
origem podemos imaginar facilmente satildeo substituinte de primeira ordem aqueles que natildeo
guardam nenhuma relaccedilatildeo com gestos fiacutesicos conhecidos ou com alguma fonte sonora
conhecida satildeo substituintes de terceira ordem
Smalley (1997) apresenta o gesto como um de seus princiacutepios ao lado da textura60 A
noccedilatildeo de gesto neste caso tem a ver com impulsionar o tempo para frente ldquoAssim a muacutesica
gestual eacute governada por um senso de movimento para diante de linearidade de narratividaderdquo
(SMALLEY 1997 p113) Entretanto
Se eles [os gestos] se tornam muito esticados no tempo ou se evoluem muitolentamente perdemos a fisicalidade humana Parecemos cruzar uma fronteiraembaccedilada entre eventos numa escala humana e eventos numa escala mundana ambiental Ao mesmo haacute uma mudanccedila de foco da escuta - quanto mais lento o iacutempeto gestual direto tanto mais o ouvido procura se concentrar em detalhes internos (ateacute onde eles existam) Uma muacutesica que eacute primariamente textural assim se concentra na atividade interna agraves custas do iacutempeto antecipado (SMALLEY 1997 p 113-114 traduccedilatildeo nossa61)
58 Original ldquoA gesture is therefore an energy-motion trajectory which excites the sounding body creating spectromorphological liferdquo (SMALLEY 1997 p 111)
59 Original ldquo[] sound-making is linked to more comprehensive sensorimotor and psychological experiencerdquo (SMALLEY 1997 p 111)
60 Gesto eacute um termo bastante discutido na muacutesica eletroacuacutestica Embora hajam controveacutersias e perspectivas diferentes optamos por estes dois referenciais (SMALLEY 1997 WISHART 1996) pois satildeo suficientemente abrangentes para nossa abordagem da interaccedilatildeo como uma relaccedilatildeo entre fluxos distintos - tema desta pesquisa
61 Original ldquoIf they [gestures] become too stretched out in time or if become too slowly evolving we lose the human physicality We seem to cross a blurred border between events on a human scale and events on a more worldly environmental scale At the same time there is a change of listening focus - the slower the direct gestural impetus the more the ear seeks to concentrate on inner details (insofar as they exist) A music which is primarily textural then concentrates on internal activity at the expense of forward impetusrdquo (SMALLEY 1997 p 113-114)
63
Smalley aponta para a frequente mistura destes dois princiacutepios (gesto e textura62) ou
por uma mudanccedila de foco da escuta ou porque ambos estatildeo presentes concorrentemente num
equiliacutebrio colaborativo Pode-se entatildeo classificar o contexto como conduzido-por-gesto
[gesture-carried] ou conduzido-por-textura [texture-carried] (SMALLEY 1997 p 114) Nas
palavras do autor
Gestos individuais podem ter interiores texturais em cujo caso o movimento gestual molda [frames] a textura - estamos conscientes tanto do gesto quanto da textura embora o contorno gestual domine um exemplo de gesture-framing Por outro lado estruturas conduzidas-por-textura [texture-carried] nem sempre satildeo ambientes com interiores democraacuteticos onde cada (micro-) evento eacute igual e os indiviacuteduos satildeo subsumidos numa atividade coletiva Gestos podem se destacar da textura em um relevo de primeiro plano Este eacute um exemplo de texture-setting - a textura fornece um plano baacutesico no interior do qual os gestos agem (SMALLEY 1997 p 114 traduccedilatildeo nossa63)
Gesto e textura satildeo assim conceitos importantes na abordagem de nosso tema As
vozes satildeo constituiacutedas de notas em sequecircncia agrupadas (por um processo de percepccedilatildeo) num
fluxo auditivo Da mesma forma os gestos e texturas constituem as camadas planos ou fluxos
num contexto musical mais amplo como o eletroacuacutestico
333 Camadas fluxos e planos
Smalley (2008 p 7) denomina ldquocampo-comportamentordquo o que ldquose ocupa das relaccedilotildees
sonoras no espaccedilo e no tempo as quais podem ser consideradas anaacutelogas a certos modos de
relaccedilatildeo humana agraves relaccedilotildees observadas entre coisas ou objetos ou agraves relaccedilotildees homem-
objetordquo Estas relaccedilotildees sonoras podem ser analisadas evento a evento nota a nota gesto a
gesto ou podemos utilizar uma categoria agrave maneira da voz ou da sonoridade que comporte
agrupe uma seacuterie de sons caracteriacutesticos No universo eletroacuacutestico tal categoria pode ser
denominada camada plano oue fluxo
No verbete do EletroAcoustic Research Site (EARS) Rob Weale traz a seguinte
62 Esta concepccedilatildeo de textura estaacute mais proacutexima ao que chamamos microtextura (314) Retomaremos esta discussatildeo em 341
63 Original ldquoIndividual gestures can have textured interiors in which case gestural motion frames the texture - we are conscious of both gesture and texture although the gestural contour dominates an example of gesture-framing On the other hand texture-carried structures are not always environments with democratic interiors where every (micro-) event is equal and individuals are subsumed in collective activity Gestures can stand out in foreground relief from the texture This is an example of texture-setting - texture provides a basic framework within which individual gestures actrdquo (SMALLEY 1997 p 114)
64
consideraccedilatildeo sobre camada
Um conceito crescentemente usado para descrever obras eletroacuacutesticas nas quais lsquocamadasrsquo de som (ou tipos de sons) satildeo desenvolvidos ao longo de uma obra normalmente numa densidade que o ouvinte pode seguir cada camada Essa forma de pensamento horizontal pode ser vista como o equivalente de contraponto por exemplo na muacutesica renascentista (WEALE 2005 traduccedilatildeo nossa64)
Esta definiccedilatildeo comporta em parte o tema desta pesquisa entretanto a metaacutefora da
camada parece ter um caraacuteter atemporal acrocircnico - como se referia Guigue aos aspectos que
para serem analisados eacute necessaacuterio se fazer a abstraccedilatildeo do fator tempo (ver 32) Podemos
descrever determinado contexto musical como estratificado em camadas mas eacute menos
frequente encontrarmos descriccedilotildees do desenvolvimento destas camadas no tempo como
surgem como se relacionam como interagem como se mesclam uma agrave outra ou surgem uma
da outra Para estas questotildees a metaacutefora de fluxo se mostra mais adequada Enquanto a
camada se refere a estruturas mais estaacuteveis ldquosoacutelidasrdquo o fluxo se aplica a estruturas de forma
variaacutevel ldquoliacutequidasrdquo A metaacutefora do plano apresenta a preocupaccedilatildeo com a profundidade com a
perspectiva eacute uma metaacutefora mais espacial que diferencia aquilo que estaacute mais a frente do que
estaacute mais ao fundo
Estas terminologias entretanto ainda que venham a ser manifestas em artigos livros e
falas dos compositores tecircm sua origem na praacutetica musical seja da escuta ou da composiccedilatildeo
Tratam-se de metaacuteforas para explicar esta praacutetica e que tecircm suas limitaccedilotildees Haacute liacutequidos que
natildeo se misturam haacute camadas geoloacutegicas que se misturam existem planos superiores e
inferiores e natildeo apenas proacuteximos ou distantes Aleacutem disso a mesma estrutura pode ser
observada por meio de diferentes metaacuteforas - os termos mencionados natildeo satildeo excludentes
Neste sentido nossa abordagem natildeo consiste em oferecer um meacutetodo uacutenico e efetivo mas
oferece um caminho de reflexatildeo em torno destas categorias
334 O caraacuteter misto da muacutesica mista
Ao tratar da composiccedilatildeo com o som (sound composition) Wishart observa que ldquonossa
principal metaacutefora para a composiccedilatildeo musical precisa mudar de uma de arquitetura para uma
64 Original A concept used increasingly in describing electroacoustic work in which rsquolayersrsquo of sound (or sound types) are developed throughout a work normally at a density whereby the listener can follow each layer This form of horizontal thinking might be seen to be the equivalent of counterpoint in for example Renaissance music (WEALE 2005)
65
de quiacutemicardquo (WISHART 1994 p 12 traduccedilatildeo nossa65) Isto porque graccedilas agraves possibilidades
de siacutentese gravaccedilatildeo e processamento o compositor pode trabalhar com as caracteriacutesticas
internas dos sons
O som se torna um meio fluido e inteiramente maleaacutevel natildeo uma coleccedilatildeo de dados cuidadosamente aprimorada Escultura e quiacutemica mais do que linguagem ou [] matemaacutetica se tornam metaacuteforas apropriadas para o que o compositor pode fazer embora princiacutepios matemaacuteticos e fiacutesicos continuaratildeo a entrar fortemente no design tanto de ferramentas quanto de estruturas musicais66 (WISHART 1994 p 12)
A muacutesica que une os universos instrumental e eletroacuacutestico pode dialogar por um
lado com as estruturas solidificadas pela tradiccedilatildeo (como as notas de uma voz) por outro
mergulha neste contexto fluido da composiccedilatildeo com o som Isto evidencia o caraacuteter misto da
composiccedilatildeo mista Com histoacuterias e teacutecnicas distintas os meios instrumental e eletroacuacutestico
se misturam neste gecircnero Isto eacute perceptiacutevel tanto para o ouvinte que observa estes meios
fundirem e contrastarem quanto para o compositor que lida com um misto de teacutecnicas
provenientes de cada contexto (instrumental e eletroacuacutestico) que se interferem no fazer
composicional67
Num texto de 1979 Jon Appleton escreve sobre estilos e teacutecnicas composicionais da
muacutesica eletrocircnica em que expressa uma previsatildeo de natildeo-separaccedilatildeo destes meios
ldquoAlguns estilos satildeo uacutenicos agrave muacutesica eletrocircnica por causa da natureza do meio outros satildeo comuns agrave muacutesica instrumental Os dois meios continuam a criar possibilidades um para o outro e vatildeo sem duacutevida no final se tornar indistinguiacuteveisrdquo (p 104 traduccedilatildeo nossa68)
Se ainda natildeo alcanccedilamos este estaacutegio descrito por Appleton ao menos jaacute passamos por
uma inegaacutevel transformaccedilatildeo da atividade composicional causada pela experiecircncia em
estuacutedio69 Gati (2015) aponta que a partir de 1950
65 Original ldquo[] our principal methafor for music composition must change from one of architecture to one of chemistryrdquo (WISHART 1994 p 12)
66 Original ldquoSound becomes a fluid and entirely malleable medium not a carefully honed collection of givens Sculpture and chemistry rather than language or ire mathematics become appropriate metaphors for what a composer might do although mathematical and physical principals will still enter strongly into the design of both musical tools and musical structuresrdquo (WISHART 1994 p 12)
67 E tendo muitas vezes seu instrumento amplificado e difundido nos mesmos alto-falantes que difundem os sons eletroacuacutesticos tambeacutem o inteacuterprete percebe esta mistura
68 Original ldquoSome styles are unique to electronic music because of the nature of the medium others are common to instrumental music as well The two media continue to create possibilities for each other and will no doubt ultimately become indistinguishablerdquo (APPPELTON 1979 p 104)
69 Um caso sempre lembrado eacute o de Gyorgy Ligeti Suas composiccedilotildees posteriores agrave breve experiecircncia no estuacutedio de Colocircnia em 1957-8 evidenciam a influecircncia que esta exerceu sobre sua produccedilatildeo (DIAS 2014 p
66
[] estabeleceu-se uma verdadeira via de matildeo dupla entre a escritura instrumental e a eletroacuacutestica pela qual ambas se realimentam se influenciam Notadamente por meio da experiecircncia da muacutesica acusmaacutetica semearam-se de maneira mais intensa abordagens composicionais que tomavam os eventos sonoros em si seus contornos sua distribuiccedilatildeo e caracterizaccedilatildeo espectral como ponto de partida para a estruturaccedilatildeo musical (GATI 2015 p 22)
Esta ldquovia de matildeo duplardquo se evidencia na elaboraccedilatildeo composicional da muacutesica mista
Estaacute presente neste processo uma interaccedilatildeo entre elaboraccedilatildeo instrumental e eletroacuacutestica
cujas diferenccedilas devem ser consideradas
Menezes (2006) aponta que na muacutesica instrumental compor significa recompor o som
a partir de seus paracircmetros segmentados historicamente na escrita musical (o que chama de
decomposiccedilatildeo do som) O material musical resultante desta elaboraccedilatildeo de recomposiccedilatildeo
apresenta um caraacuteter relacional Por outro lado o material eletroacuacutestico mais do que
relacional deve ser constituiacutedo pelo compositor diferentemente da muacutesica instrumental Isto
eacute o compositor assume a proacutepria constituiccedilatildeo dos espectros Assim o material se apresenta
em duas faces com uma funccedilatildeo relacional e outra constitutiva De um lado a atividade
composicional de relacionar sons de outro a de constituir seus proacuteprios espectros
O processo de recomposiccedilatildeo do som por meio de seus paracircmetros na composiccedilatildeo
instrumental acontece por meio da escritura70 Na composiccedilatildeo eletroacuacutestica a ldquoelaboraccedilatildeo
escritural de suas estruturasrdquo natildeo estaacute ausente mas sim latente ou subjacente Trata-se de uma
escritura latente que ldquo[] tende a resgatar no seio da atividade eletroacuacutestica e de seu
confronto com o som bruto e concreto a abstraccedilatildeo tiacutepica da muacutesica instrumental e sua
histoacuteriardquo (MENEZES 2006 p 362) Ao mesmo tempo se coloca a percepccedilatildeo do caraacuteter
constitutivo do material de sua textura sonora que atenta para os aspectos da vida interna do
som ldquoA percepccedilatildeo relacional dos elementos estruturais eacute acompanhada por aquela destinada a
uma efetiva introspecccedilatildeo constitutiva dos espectrosrdquo (MENEZES 2006 p 362)
Estas duas percepccedilotildees (relacional e constitutiva) se diferenciam tambeacutem em relaccedilatildeo a
percepccedilatildeo do tempo O paradigma convencional da muacutesica instrumental neste aspecto eacute que
o som constitui o tempo musical priorizando assim a percepccedilatildeo dos ataques e a organizaccedilatildeo
meacutetrica e riacutetmica Jaacute a muacutesica eletroacuacutestica iraacute pelo contraacuterio considerar o som enquanto
89-192)70 O termo escritura se contrapotildee agrave escrita e eacute preferiacutevel segundo Menezes por ser ldquomais conotativo de um
processo compositivo e portanto mais proacuteximo ao contexto relativo agrave elaboraccedilatildeo [] em vez de meramente escrita mais condizente com o aspecto superficial e caracteroloacutegico (graacutefico) da apresentaccedilatildeo de um textordquo (MENEZES 1999 p 61)
67
fenocircmeno de textura e o tempo enquanto constituinte do espectro sonoro ldquoO som que era do
tempo cede passo assim ao tempo de cada somrdquo (MENEZES 2006 p 364)
Se por um lado Menezes aproxima a elaboraccedilatildeo composicional eletroacuacutestica da
instrumental atraveacutes do conceito de escritura latente por outro poderiacuteamos pensar na
possibilidade de aproximar a escritura instrumental da elaboraccedilatildeo eletroacuacutestica em sua
funccedilatildeo constitutiva dos sons Embora o autor afirme que a escritura instrumental ldquonatildeo permite
uma radical intervenccedilatildeo composicional na constituiccedilatildeo mesma dos sonsrdquo (MENEZES 2006
p 364) eacute possiacutevel pensar em intervenccedilotildees menos radicais ou ao menos numa analogia desta
intervenccedilatildeo Uma intervenccedilatildeo pouco radical eacute por exemplo o bisbigliando variaccedilotildees
tiacutembricas sobre uma mesma nota Como analogia assim como o compositor eletroacuacutestico
trabalha os aspectos constitutivos dos espectros o compositor instrumental pode tratar os sons
de cada instrumento como constituinte de um todo orquestral por exemplo Evidentemente a
elaboraccedilatildeo instrumental sempre apresentaraacute graus menores em relaccedilatildeo agrave eletroacuacutestica de
controle do movimento interno dos sons devido agraves suas contingecircncias de execuccedilatildeo mas isso
natildeo significa a impossibilidade de se tratar o som instrumental de maneira semelhante ou
anaacuteloga agrave elaboraccedilatildeo eletroacuacutestica
34 FLUXOS SONOROS
Diante deste contexto sonoro-morfoloacutegico interessa-nos compreender como se
constituem e diferenciam os fluxos sonoros na muacutesica eletroacuacutestica mista
Fluxos eacute uma traduccedilatildeo possiacutevel para streams termo presente em Wishart (1996)
Smalley (1997) em Guigue (2011) e em Bregman (2004 2008) Este uacuteltimo autor trata de
fluxos auditivos (auditory streams) Nesta aplicaccedilatildeo do termo a ideia de fluxo se relaciona
com um contiacutenuo recebimento de informaccedilotildees sonoras que satildeo segregadas num processo da
percepccedilatildeo Assim quando no ambiente em que estamos conseguimos distinguir sons
produzidos em fontes diferentes estaacute em accedilatildeo esta capacidade vital Outras pesquisas em
cogniccedilatildeo avanccedilam para a percepccedilatildeo de fluxos distintos ainda que a fonte sonora seja a mesma
como acontece por exemplo na polifonia latente (ver 31) Por outro lado como tentamos
demonstrar eacute possiacutevel perceber um uacutenico fluxo ainda que vaacuterias fontes sonoras estejam
envolvidas (Klangfarbenmelodie e a proacutepria praacutetica de dobramento na orquestraccedilatildeo) Guigue
(2011) adota este termo para se referir natildeo simplesmente a uma polifonia de vozes como
68
Shepard (1999) mas a uma polifonia de sonoridades As sonoridades podem se desenvolver
em muacuteltiplos fluxos simultacircneos Smalley (1997) utiliza uma variaccedilatildeo do termo (streaming)
para expressar um tipo especiacutefico de movimento da textura71
Streaming se refere a uma combinaccedilatildeo de camadas em movimento e implica algum tipo de diferenciaccedilatildeo entre as camadas seja atraveacutes de lacunas no espaccedilo espectral ou porque cada camada natildeo possui o mesmo conteuacutedo espectro-morfoloacutegico (Smalley 1997 p 117 traduccedilatildeo nossa)72
Semelhantemente o termo eacute tambeacutem empregado pelo autor em relaccedilatildeo agrave ocupaccedilatildeo do
espaccedilo espectral Streams - interstices eacute um dos qualificadores deste espaccedilo e se refere a ldquoa
estratificaccedilatildeo em camadas [the layering] do espaccedilo espectral em fluxos estreitos ou largos
separados por espaccedilos intervenientesrdquo (SMALLEY 1997 p 121 traduccedilatildeo nossa)73
Da mesma forma no EletroAcoustic Research Site (EARS) Rob Weale explica
streams
O termo eacute usado como uma ferramenta conceituai para a criaccedilatildeo e anaacutelise perceptual de texturas que apresentam lsquobandasrsquo claramente distinguiacuteveis de atividade socircnica dentro de um espectro global de possiacuteveis frequecircncias audiacuteveis (2005 traduccedilatildeo nossa74)
A separaccedilatildeo de fluxos em bandas de frequecircncias distintas favorece o processo de
segregaccedilatildeo Poreacutem assim como no caso da separaccedilatildeo das vozes em diferentes registros de
alturas este eacute um dos recursos para se alcanccedilar tal resultado uma das possibilidades para se
distinguir os fluxos Como aponta Smalley na citaccedilatildeo acima agraves vezes esta diferenciaccedilatildeo se daacute
por causa da diferenccedila de conteuacutedo espectro-morfoloacutegico
341 Simultaneidades da micro eou da macrotextura
As definiccedilotildees de Smalley e de Weale estatildeo fortemente direcionadas a questotildees da
71 A concepccedilatildeo de textura de Smalley foi abordada em 33272 Original ldquoStreaming refers to a combination of moving layers and implies some way of differentiating
between the layers either through gaps in spectral space or because each layer does not have the same spectromolphological contentrdquo (Smalley 1997 p 117)
73 Original ldquoStreams - interstices - the layering of spectral space into narrow or broad streams separated by intervening spacesrdquo (SMALLEY 1997 p 121)
74 Original ldquoThis term is used as a conceptual tool for the creation and perceptual analysis of textures that comprise of clearly distinguishable rsquobandsrsquo of sonic activity within the overall spectrum of possible available audible frequenciesrdquo (WEALE 2005 Disponiacutevel em httpearspierrecoupriefrspipphparticle99)
69
textura como a concebe Smalley a qual chamamos microtextura Entretanto podemos
questionar esta exclusividade Guigue (2011) por exemplo utiliza fluxos para se referir agraves
partes de uma polifonia de sonoridades que se enquadraria como uma macrotextura Wishart
(1996) utiliza o termo para indicar partes simultacircneas de um contraponto no continuum Estas
partes satildeo anaacutelogas a um fluxo instrumental convencional (voz soprano por exemplo) que
formam uma textura que quanto agrave sua dimensatildeo (micro-macro) se assemelha agrave muacutesica
convencional (macro) Claramente os fluxos em Wishart natildeo se limitam a partes de uma
textura (micro) como em Smalley (1997) Mais do que isso o autor sustenta que
De fato o conceito de fluxo [stream] instrumental eacute talvez o que mais persiste nopensamento musical convencional [] Mesmo num claacutessico estuacutedio de controle devoltagem era possiacutevel conceber uma composiccedilatildeo musical na qual um uacutenico fluxo de som desenvolvido possivelmente divergia em fluxos separados que poderiam ser separadamente articulados poderiam convergir novamente e continuar assim ateacute o final da peccedila (p 25 traduccedilatildeo nossa75)
Nesta citaccedilatildeo vemos as duas dimensotildees intercambiarem O ldquoconceito de fluxo
instrumentalrdquo que ldquopersiste no pensamento musical convencionalrdquo eacute parte de uma textura
deste pensamento comumente o que chamamos macrotextura (ver 31) Jaacute a ideia de uma
ldquocomposiccedilatildeo musical na qual um uacutenico fluxo de som desenvolvido possivelmente divergia
em fluxos separadosrdquo soacute parece ser possiacutevel se consideradas as caracteriacutesticas internas do som
(dimensatildeo micro) Podemos assim dizer que os fluxos podem cruzar esta fronteira entre
micro e macro e de fato estabelecer um continuum entre eles Eacute precisamente por isso que
caracteriacutesticas internas dos sons (micro) de um fluxo (macro) podem assumir um
protagonismo se separando deste fluxo inicial e dando origem a um segundo (macro) Isto
acontece nas peccedilas Kontakte de Stockhausen e Desintegrations de Murail abordadas adiante
(respectivamente em 342 e 41)
342 Fusatildeo e contraste constituiccedilatildeo e segregaccedilatildeo de muacuteltiplos fluxos
O dicionaacuterio Merriam-Webster traz entre outras as seguintes definiccedilotildees de stream
que podem servir de metaacuteforas para pensarmos os fluxos sonoros
75 Original ldquoIn fact the concept of the instrumental stream is perhaps the most persistent in conventional musical thought [] Even in the classical voltage control studio it was possible to conceive of a musical composition in which a single sound stream evolved possibly diverged into separate streams which might be separately articulated might reconverge and continue thus to the end of the piecerdquo (SMALLEY 1997 p 25)
70
1 um corpo de aacutegua corrente (tal como um rio ou coacuterrego) que flui na terra tambeacutem qualquer corpo fluido (tal como aacutegua ou gaacutes) 2 a uma sucessatildeo estaacutevel (como de palavras ou eventos) - manter um fluxo de conversa sem fim [] c uma procissatildeo de contiacutenuo movimento - um fluxo de traacutefego (STREAM 2019 traduccedilatildeo nossa76)
Desta definiccedilatildeo podemos reter duas caracteriacutesticas interdependentes de um fluxo a)
estabilidade relativa do que o compotildee - ldquosucessatildeo estaacutevelrdquo b) movimento contiacutenuo relativo
Satildeo interdependentes pois eacute preciso que haja uma estabilidade em pelo menos alguns
paracircmetros de determinados eventos sonoros para que percebamos a continuidade do fluxo
constituiacutedo por eles Tais aspectos remontam ao processo de segmentaccedilatildeo abordado por
Guigue (2011) (ver 321) Estas caracteriacutesticas excluem muitas texturas como a mencionada
de Webern que natildeo presam por uma continuidade de fluxos Entretanto mesmo nesse caso eacute
possiacutevel compreendecirc-la como um uacutenico fluxo com um aspecto global (a partir da p 51
apresentamos brevemente este aspecto da textura weberniana)
Para que diferenciemos um fluxo de outro eacute preciso que haja uma concorrecircncia outra
sucessatildeo estaacutevel com alguma diferenccedila em relaccedilatildeo ao conteuacutedo sonoro Para a distinccedilatildeo de
vozes um recurso recorrente eacute a utilizaccedilatildeo de instrumentos diferentes para cada voz
(diferenciaccedilatildeo por timbre enquanto tone-color) para os fluxos este fator tambeacutem deve ser
considerado Na muacutesica mista haacute uma distinccedilatildeo ldquoinstrumentalrdquo entre os meios instrumental e
eletroacuacutestico que sobressalta inicialmente Em seu artigo sobre a interaccedilatildeo entre estes dois
meios Souza (2010) faz uma possiacutevel distinccedilatildeo quanto ao mecanismo de produccedilatildeo sonora
para logo questionaacute-la do ponto de vista da percepccedilatildeo
ldquoNote-se que como ponto de partida a diferenccedila entre sons instrumentais e eletrocircnicos eacute tomada inicialmente ao peacute da letra sons instrumentais satildeo aqueles gerados por vibraccedilotildees mecacircnicas de instrumentos acuacutesticos enquanto sons eletrocircnicos satildeo gerados por circuitos eletrocircnicos analoacutegicos ou digitais tornados audiacuteveis por alto-falantes e amplificadores A seguir essa separaccedilatildeo quase tautoloacutegica eacute questionada no lado da percepccedilatildeordquo (SOUZA 2010 p 149)
Esta caracteriacutestica de produccedilatildeo sonora poderia nos fazer pensar cada meio -
instrumental e eletroacuacutestico - como responsaacutevel por um fluxo na muacutesica mista Entretanto
Souza salienta que
76 Traduccedilatildeo do autor Original ldquo 1) a body of running water (such as a river or brook) flowing on the earth also any body of flowing fluid (such as water or gas) 2) a a steady succession (as of words or events) - kept up an endless stream of chatter [ ] c a continuous moving procession - a stream of traficrdquo (STREAM 2019)
71
Do ponto de vista do ouvinte-receptor natildeo haacute propriedades intriacutensecas dos sons que permitam fazer uma separaccedilatildeo absoluta e inquestionaacutevel entre sons instrumentais e sons gerados eletronicamente ainda que em nosso imaginaacuterio tal separaccedilatildeo pudesse parecer evidente (SOUZA 2010 p 149)
Eacute preciso argumentar que a distinccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo sonora apresentada
inicialmente por Souza aponta para uma propriedade intriacutenseca dos sons a ser considerada O
som dos instrumentos (natildeo amplificados ou gravados) em sua maioria se projeta em
muacuteltiplas direccedilotildees enquanto que a projeccedilatildeo cocircnica dos alto-falantes (considerados
individualmente) se daacute numa direccedilatildeo apenas Alguns instrumentos apresentam uma projeccedilatildeo
direcional semelhante agrave dos alto-falantes - o trombone por exemplo Por outro lado satildeo raras
as tentativas que buscam imitar a projeccedilatildeo instrumental multidirecional atraveacutes de alto-
falantes77
Ainda assim o argumento de Souza eacute relevante ele desloca (assim como discutido em
23) a atenccedilatildeo teoacuterica de sobre as questotildees teacutecnicas (produccedilatildeo sonora) para atentar para a
percepccedilatildeo destes sons Do ponto de vista da percepccedilatildeo os sons gerados eletronicamente
podem apresentar o ldquoexatordquo som preacute-gravado de um instrumento e instrumentos podem
produzir sons natildeo-convencionais que podem ser confundidos com sons eletrocircnicos Assim
ainda que a distinccedilatildeo do tipo de mecanismo de produccedilatildeo sonora possa ser utilizada em favor
da separaccedilatildeo de fluxos ela natildeo determina exclusivamente a existecircncia de dois fluxos assim
como a exemplo da melodia de timbres o uso de dois instrumentos diferentes natildeo o faz na
muacutesica instrumental Pelo contraacuterio a fusatildeo dos dois meios num mesmo fluxo eacute um recurso
muito utilizado Para isso a amplificaccedilatildeo do instrumento eacute comumente empregada fazendo
com que haja maior semelhanccedila de projeccedilatildeo sonora dos dois meios78
A proposta de morfologia da interaccedilatildeo de Menezes pode ser uacutetil para abordar a
distinccedilatildeo de fluxos sonoros na muacutesica mista De acordo com o autor a interaccedilatildeo entre
instrumento e eletroacuacutestica acontece entre dois polos fusatildeo e contraste A fusatildeo eacute a absoluta
similaridade caracterizada por ldquotransferecircncias localizadas de caracteriacutesticas espectrais de uma
esfera de atuaccedilatildeo agrave outrardquo (MENEZES 2006 p 385) o contraste eacute a absoluta distinccedilatildeo
77 O Wave Field Synthesis desenvolvido no IRCAM eacute uma alternativa de projeccedilatildeo que vai nesta direccedilatildeo Confira o siacutetio do projeto lthttprechercheircamfrequipessallesWFS_WEBSITEIndex_wfs_sitehtmgt Deve-se mencionar tambeacutem os alto-falantes hemisfeacutericos desenvolvidos na Universidade de Princeton confira no endereccedilo lthttpmusic2princetonedudeloreanhistoryhtmlgt
78 Aleacutem disso os dois meios natildeo instituem apenas dois fluxos porque eacute possiacutevel haver muacuteltiplos fluxos no meio instrumental como tambeacutem muacuteltiplos fluxos no meio eletroacuacutestico
72
caracterizada pela ausecircncia destas transferecircncias Entre estes dois polos existem estaacutegios
transicionais de relativa similaridade e dissimilaridade
Em relaccedilatildeo a proveniecircncia sonora quanto mais lsquoconfusorsquo estiver o ouvinte em face daquilo que ouve tanto mais ele sentiraacute efetivamente integradas as partes constitutivas da obra mista os lsquodois planosrsquo pressupostamente independentes e unidos apenas por contingecircncias aos quais os criacuteticos da muacutesica mista faziam referecircncia passam a ser percebidos como um uacutenico plano essencialmente diagonal agraves linhas estanques da emissatildeo instrumental ou da difusatildeo puramente eletroacuacutestica a emissatildeo instrumental passa entatildeo a ser efetivamente potencializada no espaccedilo acuacutestico pelos recursos eletrocircnicos Ainda que de forma alguma hegemocircnico o estado de duacutevida traduz-se como um momento supremo da interaccedilatildeo (MENEZES 2006 p 385)
Assim na fusatildeo instrumento e sons eletroacuacutesticos compartilham o mesmo fluxo
estatildeo num ldquouacutenico planordquo ldquodiagonalrdquo aos dois meios enquanto que no contraste apresentam
fluxos distintos Este paradigma pode ser facilmente transposto para quaisquer meios se
considerarmos que fusatildeo e contraste se referem a (dis)semelhanccedila espectral de dois fluxos
distintos independentemente se instrumentais ou eletroacuacutesticos
Apesar da inegaacutevel importacircncia das caracteriacutesticas espectrais natildeo satildeo apenas elas que
estatildeo em jogo na fusatildeo e no contraste Menezes considera tambeacutem que a fusatildeo pode ser
alcanccedilada por outros meios Ao referir-se agrave estrateacutegia de utilizar apenas o som do instrumento
como base para a confecccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos ele aponta que
[] tal estrateacutegia estaacute longe de ser excludente as transferecircncias estruturais podem apoiar-se em aspectos outros que natildeo a coloraccedilatildeo (timbre) dos espectros tais como relaccedilotildees de identidade em frequecircncia em percurso espacial em comportamento dos perfis meloacutedicos e de massa em constituiccedilatildeo gestual dos sons (que podem identificar-se ateacute mesmo pela forma de tratamento aos quais se submetem) Ou seja ainda que seja mais condizente com a fusatildeo partir dos proacuteprios sons instrumentais para a elaboraccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos o uso de outras fontes sonoras natildeo implica necessariamente inviabilidade da fusatildeo e pode em contrapartida viabilizar a transiccedilatildeo que vai do fundido ao contrastado Seraacute pois pelo vieacutes de tal distinccedilatildeo relativa - apenas possiacutevel no caso de se utilizarem os mesmos sons instrumentais na elaboraccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos apoacutes inuacutemeros procedimentos de transformaccedilatildeo do material de partida - que a edificaccedilatildeo de toda uma gama de distanciamento tornar-se-aacute possiacutevel ateacute que se atinja o contraste mais evidente com ausecircncia de qualquer transferecircncia espectral (2006 p386)
Petra Bachrataacute (2010 p 89) oferece a seguinte perspectiva
Mas na nossa opiniatildeo fusatildeo e contraste em uma obra eletroacuacutestica mista podem ser percebidos tambeacutem no passar do tempo e podem ser demonstrados em exemplos de relaccedilotildees gestuais Por exemplo dois gestos podem ser similares ou diferentes
73
mesmo que se apresentem separados no tempo Nestes contextos noacutes podemos criar modelos de interaccedilatildeo entre gestos de acordo com sua organizaccedilatildeo no tempo - contrapontos mais ou menos complexos ou em relaccedilatildeo a outras caracteriacutesticas aleacutem da espectral tais como ritmo intensidade ou caracteriacutesticas mais semacircnticas como direccedilatildeo e energia (traduccedilatildeo nossa79)
O trabalho de Bachrataacute (2010) se fundamenta na concepccedilatildeo de gesto e aborda as
relaccedilotildees entre gestos instrumentais e eletroacuacutesticos A autora aborda o gesto por diferentes
perspectivas80 e propotildee uma categorizaccedilatildeo de acordo com os paracircmetros que cada uma
oferece Em nosso caso a ideia de fluxo tem maior importacircncia devido ao foco voltado para
questotildees mais amplas do que pontuais Um fluxo pode ser constituiacutedo de gestos De acordo
com Wishart ldquoo fluxo em evoluccedilatildeo [evolving stream] pode ser articulado gestualmenterdquo81
(WISHART 1996 p 117) E as caracteriacutesticas destes gestos determinaratildeo neste caso as
caracteriacutesticas que distinguiratildeo os fluxos sejam espectrais ou outras
Assim entendemos ser necessaacuterio estender a morfologia da interaccedilatildeo para incluir
outros aspectos aleacutem dos espectrais A fim de natildeo entrar nas particularidades de
parametrizaccedilatildeo do gesto seria suficiente acrescentar um termo e denominarmos de
transferecircncias espectro-morfoloacutegicas incluindo assim os aspectos do desenvolvimento das
caracteriacutesticas espectrais no tempo Afinal como afirma Smalley (1997) ldquoo espectro- natildeo
existe sem a -morfologia e vice-versardquo82 (p 107) Isto eacute o conteuacutedo espectral necessita se
constituir temporalmente assim como qualquer constituiccedilatildeo temporal necessita de um
conteuacutedo espectral Desta forma incluiacutemos como importantes para esta interaccedilatildeo outras
caracteriacutesticas espectro-morfoloacutegicas (ver Quadro 1)
79 Original ldquoBut in our opinion fusion and contrast in a mixed electroacoustic work may be perceived also as time passes and may be demonstrated on the examples of gesture relationships For example two gestures may be similar or different even separated in time In these contexts we may create models of interaction between gestures according to their organization over time - subtle or more complex counterpoints or in relation to other than spectral characteristics such as rhythm loudness or more semantic characteristics such as direction or energy Two gestures may closely relate or blend (lsquofusionrsquo) because of their similar rhythmical structure while having very different spectral characteristics increasing energy of one gesture may potentiate the onset of another one two gestures may relate with each other also through the direction in space such as convergent and divergent ways of interaction etcrdquo (BACHRATAacute 2010 p 89)
80 Entre outras perspectivas de Dennis Smalley - gesto como uma trajetoacuteria-energia-movimento de Trevor Wishart - gesto como articulaccedilatildeo do continuum do Laboratoire de Musique et Informatique in Marseille (MIM) - gesto como unidade temporal semioacutetica de Brian Ferneyhough - gesto e figura (BACHRATAacute 2010 p 123-141)
81 ldquoWhat we are now suggesting is that the evolving stream may be gesturally articulated and we may coordinate (or not) the gestures between the various parts in such a way as to create a viable contrapuntal structurerdquo (WISHART 1996 p 117)
82 ldquoThe spectro- cannot exist without the -morphology and vice versardquo (SMALLEY 1997 p 107)
QUADRO 1 - QUADRO DA MORFOLOGIA DA INTERACcedilAtildeO
74
fusatildeo
fusatildeo por virtualizaccedilatildeo (simulaccedilatildeo eletroacuacutestica do
instrumental)
similaridade absoluta
transferecircncias espectro-
fusatildeo por similaridademorfoloacutegicas localizadas
textural estado de duacutevida (confusatildeo)
transferecircncia natildeo-reflexiva
interferecircncia convergente transferecircncias espectro-
estaacutegios transicionais entre transferecircncia reflexiva morfoloacutegicas dinacircmicas
fusatildeo e contraste contaminaccedilatildeo direcional distinccedilatildeo e similaridadeinterferecircncia potencializadora relativas
interferecircncia natildeo-convergente
contraste por distinccedilatildeo textural
distinccedilatildeo absoluta
contraste contraste por silecircncio
estrutural
ausecircncia de transferecircncia espectro-morfoloacutegica
FONTE Adaptado de Menezes (2006 p 398) Acrescentamos o termo -morfoloacutegicas agrave ideia de transferecircnciasespectrais
Os estaacutegios transicionais estabelecem pontos em que os meios instrumental e
eletroacuacutestico podem estar mais proacuteximos da fusatildeo ou mais proacuteximos do contraste Menezes
expotildee estas possibilidades intermediaacuterias com base em exemplos de sua peccedila ATLAS
FOLISPELIS (1996-7) Natildeo repetiremos a explicaccedilatildeo de Menezes (2006 p 387-390) mas
faremos quando ausente em sua descriccedilatildeo uma generalizaccedilatildeo dos estaacutegios a partir de nossa
perspectiva
Transferecircncia natildeo-reflexiva ldquoa transmutaccedilatildeo de uma esfera de emissatildeo sonora agrave outra
eacute quase imperceptiacutevel Quando o ouvinte se daacute conta jaacute natildeo se trata mais de um som do
instrumento mas sim de sons eletroacuacutesticos que os envolvem no espaccedilo quadrifocircnicordquo
(Menezes 2006 p 390) Podemos inferir que tal transferecircncia seja possiacutevel no sentido
contraacuterio eletroacuacutestico-instrumental
Interferecircncia convergente Ainda que os meios (instrumental e eletroacuacutestico) possam
ser distinguidos um deles apresenta certa interferecircncia em relaccedilatildeo ao outro que pode ser
baseada em relaccedilotildees frequenciais por exemplo
Transferecircncia reflexiva ldquouma coisa nasce da outra eacute interagida pela estrutura que jaacute
estava em curso e pouco a pouco a integra e anula em suas proacuteprias inflexotildeesrdquo (MENEZES
2006 p 390) Num primeiro momento um dos meios ldquoespelhardquo o outro em seguida a
ldquoimagemrdquo espelhada ganha maiores proporccedilotildees ateacute que prepondera sobre a imagem inicial
Contaminaccedilatildeo direcional um dos meios muda em direccedilatildeo a algo que parece uma
transformaccedilatildeo dos sons do outro resultando numa maior ou menor fusatildeo O que eacute salientado
neste estaacutegio eacute o processo de transformaccedilatildeo de um dos meios passando do contraste para a
fusatildeo com o outro
Interferecircncia potencializadora um dos meios interfere e potencializa o outro Aquele
que interfere estaacute subordinado e apresenta materiais que parecem desdobramentos do outro
meio
Interferecircncia natildeo-convergente um dos meios realccedila e acentua aspectos do outro sem
que um se dilua no outro Trata-se nas palavras do autor de um ldquoapoio ancorado por uma
distinccedilatildeo relativardquo (MENEZES 2006 p 390)
A funccedilatildeo dos estaacutegios parece ser a de oferecer gradaccedilotildees entre fusatildeo e contraste
Entretanto da maneira como coloca Menezes mais do que estaacutegios tratam-se de movimentos
no interior do eixo fusatildeo-contraste que apresenta diversas gradaccedilotildees Este eixo poderia ser
explorado por outros movimentos natildeo inclusos nesta lista Para nossa abordagem seraacute
suficiente considerar que entre fusatildeo e contraste satildeo possiacuteveis gradaccedilotildees diversas e por
diversas aproximaccedilotildeesafastamentos espectro-morfoloacutegicos Aleacutem disso esta perspectiva
abrange fluxos independentemente se instrumentais ou eletroacuacutesticos Temos assim a
possibilidade de um fluxo se apresentar mais ou menos paralelo e dependente em relaccedilatildeo a
outro Isto eacute quanto mais transferecircncias espectro-morfoloacutegicas estatildeo presentes mais
aproximamos dois fluxos de uma fusatildeo da convergecircncia em apenas um uacutenico fluxo quanto
menos transferecircncias espectro-morfoloacutegicas mais distinguimos os dois fluxos como
independentes Assim os estaacutegios transicionais podem ser tambeacutem pensados como uma
gradaccedilatildeo um continuum relativo agrave independecircncia dos fluxos sonoros Isto se relaciona com
os apontamentos de Wishart (1996) sobre ser possiacutevel que um uacutenico fluxo se divida em outros
fluxos separados que podem ser desenvolvidos individualmente e convergir novamente num
soacute
[] era possiacutevel conceber uma composiccedilatildeo musical na qual um uacutenico fluxo de som desenvolvido possivelmente divergia em fluxos separados que poderiam ser
75
76
separadamente articulados poderiam convergir novamente e continuar assim ateacute o final da peccedila (p 25 traduccedilatildeo nossa83)
Nestes casos natildeo se trata de um ou outro fluxo sonoro fixo mas um que engendra
outro ou ainda outros que fundem em um ocupando assim regiotildees ambiacuteguas entre
independecircncia paralelismo e fusatildeo Wishart ilustra esta ideia (Figura 21)
FIGURA 21 - DESENVOLVIMENTO DE UM FLUXO SEPARANDO EM OUTROS E CONVERGINDO NOshyVAMENTE
bdquobdquoo i-i ~ gt1
FONTE Extraiacutedo de Wishart (1996 p 27)
Um exemplo desta concepccedilatildeo na muacutesica mista pode ser observado na peccedila Music fo r
Flute and ISPW (1994) de Cort Lippe Nas notas sobre a peccedila o compositor explica haver
pensado num continuum entre uma configuraccedilatildeo de duo e uma configuraccedilatildeo de solo-
extendido ldquoMusicalmente agraves vezes a parte do computador natildeo eacute separada da parte da flauta
mas serve mais para amplificar a flauta em muacuteltiplas dimensotildees e direccedilotildees enquanto no outro
extremo do continuum o computador tem sua proacutepria voz musical independenterdquo (LIPPE
traduccedilatildeo nossa84) De acordo com a tipologia que estamos empregando ora flauta e sons
eletroacuacutesticos constituem um uacutenico fluxo (solo-extendido) que decorre da fusatildeo entre eles
ora cada um desenvolve seu proacuteprio fluxo (duo) decorrente do contraste entre eles
Outro exemplo das nuances da separaccedilatildeo de fluxos distintos estaacute presente na peccedila
Kontakte (1958-1960) de Karlheinz Stockhausen Quando o compositor trata da
decomposiccedilatildeo do som o segundo dos seus quatro criteacuterios da muacutesica eletrocircnica
(STOCKHAUSEN 1989) demonstra que um som pode ser entendido como a soma de
componentes e que por meio de sua decomposiccedilatildeo estes componentes podem ser
desenvolvidos paralelamente85 Ele cita um trecho de Kontakte (aos 22 minutos
83 Original ldquo[] it was possible to conceive of a musical composition in which a single sound stream evolved possibly diverged into separate streams which might be separately articulated might reconverge and continue thus to the end of the piecerdquo
84 Original ldquoMusically the computer part is sometimes not separate from the flute part but serves rather to amplify the flute in multiple dimensions and directions while at the other extreme of the continuum the computer part has its own independent musical voicerdquo (LIPPE 1994)
85 Note o leitor que ldquocomponentesrdquo aqui tecircm outra acepccedilatildeo eles satildeo sonoros espectrais e natildeo paracircmetros como no modelo de Guigue (ver 32) e na apresentada recomposiccedilatildeo do som segundo Menezes Os componentes
77
aproximadamente) no qual acontece a decomposiccedilatildeo de um uacutenico som (ver Figura 22) O
compositor explica ldquoO som original eacute literalmente desintegrado nos seus seis componentes e
cada componente por sua vez eacute decomposto diante de nossos ouvidos nos seus ritmos
individuais de pulsosrdquo (p 97 traduccedilatildeo nossa86) A Figura 22 apresenta uma anaacutelise dos
pontos em que o fluxo inicial daacute origem a outros (marcados com um ciacuterculo) e tambeacutem de um
ponto em que haacute a fusatildeo de dois fluxos (marcado com um quadrado) ainda que este uacuteltimo
seja quase imperceptiacutevel devido agrave intensidade fraca dos dois fluxos
FIGURA 22 - DIVISAtildeO DE UM FLUXO EM OUTROS EM KONTAKTE (1958-60) DE STOCKHAUSEN
FONTE Extraiacutedo de Stockhausen (1966 p 25)
O compositor chama a atenccedilatildeo para o aspecto da percepccedilatildeo deste fenocircmeno ldquoE noacutes
vivemos exatamente a mesma transformaccedilatildeo que o som estaacute passando O som se divide em
seis e se noacutes queremos seguir todos os seis temos que nos tornar polifocircnicos seres
multicamadasrdquo (STOCKHAUSEN 1989 p 88 traduccedilatildeo nossa87) Apesar de o compositor
nesta abordagem de Stockhausen se aproximam sobretudo dos componentes da textura (31)86 Original The original sound is literally taken apart into its six components and each component in turn is
decomposing before our ears into its individual rhythm of pulses (STOCKHAUSEN 1989 p 97)87 Original ldquoAnd we live through exactly the same transformation that the sound is going through The sound
splits into six an if we want to follow all six we have to become polyphonic multilayered beignsrdquo (STOCKHAUSEN 1989 p 88)
falar em camadas podemos perceber o caraacuteter ldquoliacutequidordquo e por isso mais relacionado agrave ideia
de fluxo do seu procedimento trata-se de uma manipulaccedilatildeo das caracteriacutesticas internas dos
sons - dos seus componentes - e apresenta a dissoluccedilatildeo de um fluxo dando origem a outros
numa espeacutecie de ldquodivisatildeo de aacuteguasrdquo
Esta dissoluccedilatildeo eacute ainda mais dispersa quando observados os papeacuteis dos instrumentos
em relaccedilatildeo agrave parte eletrocircnica Por vezes haacute uma reafirmaccedilatildeo do mesmo fluxo por exemplo
tanto o percussionista quanto o pianista reiteram o trinado entre faacute e sol | presente na parte
eletrocircnica Entretanto por vezes os instrumentos apresentam desvios gestos que podem ser
agrupados em outro fluxo ou serem percebidos soltos Neste uacuteltimo caso de maneira
semelhante ao que acontece numa textura global (mencionada em 31) estes gestos natildeo satildeo
agrupados em fluxos
Em resumo os fluxos se estabelecem por uma estabilidade em suas caracteriacutesticas
espectro-morfoloacutegicas e se distinguem atraveacutes de diferenccedilas nestas caracteriacutesticas banda
espectral alturas timbre caracteriacutesticas gestuais localizaccedilatildeo espacial entre outras Na
muacutesica eletroacuacutestica mista natildeo haacute exclusivamente dois fluxos um instrumental e outro
eletroacuacutestico antes cada um destes meios pode apresentar muacuteltiplos fluxos como tambeacutem
podem compor juntos um uacutenico fluxo O eixo fusatildeo-contraste pode ser utilizado para observar
independecircncia e paralelismo entre fluxos distintos dando conta de regiotildees ambiacuteguas
343 Relaccedilatildeo entre fluxos distintos
A questatildeo subsequente e decorrente desta que cerca a constituiccedilatildeo e segregaccedilatildeo de
muacuteltiplos fluxos eacute aquela que busca identificar como estes fluxos se relacionam uns com os
outros As ideias de comportamento de Smalley (1997) contraponto de Wishart (1996) e
interaccedilatildeo gestual de Bachrataacute (2010) oferecem perspectivas importantes para esta abordagem
3431 Comportamento
Colocar sons distintos num mesmo contexto jaacute garante que algum tipo de relaccedilatildeo deva
existir entre eles Dennis Smalley usa o termo comportamento para discriminar tal relaccedilatildeo
78
entre espectro-morfologias88 Esta metaacutefora do comportamento tem por base a distinccedilatildeo de
Jean Jaques Nattiez (1990) entre referecircncias intriacutensecas e extriacutensecas da muacutesica (p 111-127)
As referecircncias intriacutensecas (intramusicais ou intermusicais) satildeo as que acontecem no acircmbito
de uma peccedila em particular (intra) ou em relaccedilatildeo a um universo musical mais amplo ao qual
ela pertence (inter) A observaccedilatildeo de um tema que volta a aparecer ao longo da peccedila eacute um
exemplo da muacutesica referenciando a si mesma (referecircncia intriacutenseca intramusical) Por outro
lado as referecircncias extriacutensecas estatildeo relacionadas a uma seacuterie de experiecircncias externas ao
contexto da muacutesica De acordo com Smalley (1997) as referecircncias comportamentais satildeo
extriacutensecas Isso significa que na experiecircncia da escuta associamos as relaccedilotildees percebidas
entre os sons com outras experiecircncias vividas Eacute isto que acontece por exemplo quando a
teoria musical usa metaacuteforas como a de ldquopergunta e respostardquo para descrever relaccedilotildees
musicais ou quando usa a metaacutefora do ldquosujeito e contra-sujeitordquo para descrever as relaccedilotildees
entre vozes na fuga Natildeo apenas na anaacutelise mas antes no processo composicional estas
metaacuteforas podem surgir A peccedila de Charles Ives The Unanswered Question (1908) apresenta
as referecircncias de pergunta e resposta no proacuteprio tiacutetulo
A muacutesica eletroacuacutestica devido agraves diversas possibilidades de conteuacutedo (sonoro) e
movimento das espectromorfologias apresenta um grande e variaacutevel repositoacuterio de
referecircncias extriacutensecas E se na muacutesica acusmaacutetica89 estas relaccedilotildees de comportamento satildeo
percebidas em relaccedilatildeo agraves espectromorfologias apenas na muacutesica mista elas satildeo percebidas
com uma forte influecircncia da relaccedilatildeo do performer visiacutevel e portador do gesto com a parte
acusmaacutetica (SMALLEY 1997 p 118) A accedilatildeo fiacutesica visual pode ser considerada uma
referecircncia extriacutenseca e pode estar associada agrave percepccedilatildeo de comportamentos sonoros
A perspectiva de referecircncias comportamentais extriacutensecas apresenta uma abertura de
interpretaccedilatildeo jaacute que determinado comportamento sonoro pode se referenciar a diferentes
experiecircncias vividas distintas para cada sujeito Esta abertura permite pensarmos em outras
referecircncias diferentes daquelas abstratas propostas por Smalley que possam enriquecer tanto
79
88 Espectromorfologia se refere ao desenvolvimento do espectro sonoro atraveacutes do tempo (SMALLEY 1997 p 207) Embora este termo englobe diferentes estruturas sonoras (gestos e texturas por exemplo) nesta pesquisa o foco estaacute sobre a relaccedilatildeo entre os fluxos sonoros Isto porque esta categoria favorece um pensamento global da peccedila natildeo voltado para localidades gestuais Os aspectos gestuais tambeacutem satildeo importantes e foram extensamente analisadas por Petra Bachrataacute (2010) trabalho que seraacute abordado em 3433 entretanto eles seratildeo aqui abordados em relaccedilatildeo aos fluxos sonoros conforme 34
89 Muacutesica acusmaacutetica eacute considerada aqui como aquela preacute-gravada e reproduzida atraveacutes de alto-falantes sem a presenccedila de um performer no palco (EMMERSON SMALLEY 2001)
80
a composiccedilatildeo quanto a anaacutelise Por exemplo ao tratarmos do fluxo visual abordaremos o
efeito ventriacuteloquo (35)
Tendo por base a ideia de que as referecircncias comportamentais satildeo extriacutensecas Smalley
(1997) apresenta sua metaacutefora numa tabela com termos que podem explicar os
comportamentos A apresentaccedilatildeo de Smalley parte de termos mais gerais para outros mais
especiacuteficos (respectivamente de cima para baixo no Quadro 2) Em termos gerais o
comportamento depende de duas oposiccedilotildees domiacuteniosubordinaccedilatildeo e conflitocoexistecircncia
QUADRO 2 - COMPORTAMENTO SEGUNDO SMALLEY
dominaccedilatildeosubordinaccedilatildeo conflitocoexi stecircnci a
igualdade - desigualdade
reaccedilatildeo - interaccedilatildeo - reciprocidade
atividade - passividade
atividade - inatividade
estabilidade - instabilidade
modos de relacionamento
coordenaccedilatildeo de movimento
(sincronizaccedilatildeo vertical)
frouxa mdash justa
(percepccedilatildeo de proximidade concordada)
passagem de movimento
(dimensatildeohorizontal)
voluntaacuteria - pressionada
(trajetoacuteria de energia e movimento)
i
causalidade
FONTE traduzido e adaptado de Smalley (1997)
O eixo domiacuteniosubordinaccedilatildeo estaacute relacionado agraves (des)igualdades entre as
espectromorfologias Smalley (2008 p 11) associa a este eixo trecircs maneiras interconectadas
de entender a ideia de primeiro plano (foreground) e plano de fundo (background) espectro-
morfologicamente espacialmente e indicativamente
A primeira se refere agraves caracteriacutesticas espectro-morfoloacutegicas que nos permitem
identificar o domiacutenio de uma espectro-morfologia sobre outra O autor cita forma dinacircmica
mudanccedilas na riqueza espectral rapidez do movimento espectral taxa de deslocamento
espacial entre outras como exemplos de caracteriacutesticas que podem manifestar o domiacutenio e
subordinaccedilatildeo entre espectro-morfologias Ele oferece ldquoum exemplo simples e oacutebviordquo
ldquomorfologias de impacto-ataque brilhantes e presentes superpostas a uma morfologia
81
sustentada relativamente distante e espectralmente inativardquo (SMALLEY 2008 p 11)
A segunda maneira de abordar a ideia de primeiro plano e plano de fundo -
espacialmente - estaacute relacionada sobretudo aos eixos proximidadedistacircncia e
mobilidadeimobilidade Uma espectro-morfologia pode dominar sobre outra por estar mais
proacutexima ou ser mais moacutevel A proximidadedistacircncia estaacute relacionada ao uso de
processamentos como reverberaccedilatildeo filtros e uso de sistema surround e pode ser uma
caracteriacutestica de diferenciaccedilatildeo de fluxos Este aspecto estaacute relacionado agrave composiccedilatildeo espacial
de muacuteltiplas camadas apontada por Stockhausen (2009)
ldquoConstruir profundidade espacial por sobreposiccedilatildeo de camadas nos permite compor perspectivas em som de muito perto a muito longe anaacutelogas ao modo como compomos camadas de melodia e harmonia no plano bidimensional da muacutesica tradicionalrdquo (STOCKHAUSEN 2009 p89)
Assim uma espectro-morfologia pode dominar sobre outra devido a este aspecto
espacial
A terceira maneira de abordar a ideia de primeiro plano e plano de fundo -
indicativamente - se refere ao impacto indicativo de um som Quando o som se refere
diretamente ou indica experiecircncias do mundo natildeo sonoro ele tende a dominar sobre outro
cuja referecircncia natildeo seja tatildeo direta Os sons da fala humana normalmente dominaratildeo sobre
outras espectro-morfologias Sons cuja fonte eacute reconhecida tambeacutem dominaratildeo sobre aqueles
de fonte natildeo reconhecida
O eixo conflitocoexistecircncia se refere agraves relaccedilotildees temporais do comportamento
Conflito indica uma tendecircncia competitiva entre os sons enquanto que a coexistecircncia indica
uma reciprocidade e confluecircncia Se os sons satildeo idecircnticos ou da mesma famiacutelia ainda que
haja assincronia e descontinuidade podemos percebecirc-los em um comportamento consensual
Para que haja conflito eacute preciso que haja ldquocontrastes simultacircneos ou sucessivos de
espectromorfologia cujas forma dinacircmica e atividade temporal reflitam um poderoso
deslocamentordquo (SMALLEY 2008 p 11) Ainda assim no caso em que este comportamento
conflitante estabelece um ldquomodus vivendi quase permanenterdquo eacute possiacutevel o perceber como
coexistente Isto eacute o comportamento conflitante pode se tornar coexistente se permanecer por
tempo suficiente Haacute tambeacutem a possibilidade de uma textura apresentar um comportamento
conflitante internamente enquanto que de um ponto de vista mais global apresenta coerecircncia
devido a alguma caracteriacutestica como o deslocamento espacial por exemplo Neste caso ldquoo
82
conflito interno estaacute [] disparatado com a coerecircncia coletivardquo (SMALLEY 2008 p 11)
Tais oposiccedilotildees (dominaccedilatildeosubordinaccedilatildeo e conflitocoexistecircncia) representam a base
para uma seacuterie de modos de relacionamento igualdade - desigualdade reaccedilatildeo - interaccedilatildeo -
reciprocidade atividade - passividade atividade - inatividade e estabilidade -
instabilidade Estes modos de relacionamento satildeo articulados vertical e horizontalmente -
duas dimensotildees temporais interativas A dimensatildeo horizontal eacute concernente agrave passagem de
movimento isto eacute como os fluxos em nosso caso passam de um contexto para outro Isto
pode acontecer de maneira voluntaacuteria ou pressionada (SMALLEY 1997 p 118) A dimensatildeo
vertical eacute concernente agrave coordenaccedilatildeo de movimento isto eacute como sincronizam ou natildeo os
eventos de cada fluxo Esta dimensatildeo se apresenta num continuum entre liberdade de
coordenaccedilatildeo justa (tight) e frouxa (loose)
ldquo[] haacute uma distacircncia extrema entre uma muacutesica muito justa talvez rigidamente controlada pontual homorriacutetmica e minimalista e associaccedilotildees muito relaxadas e maleaacuteveis encontradas em algumas muacutesicas eletroacuacutesticasrdquo (SMALLEY 1997 p 118 traduccedilatildeo nossa90)
Quando um evento parece ser a causa do seguinte ou a causa de uma modificaccedilatildeo em
um evento concorrente eacute possiacutevel perceber uma relaccedilatildeo de causalidade De acordo com
Smalley a causalidade ldquoocupa-se mais com um som agindo sobre outro seja causando a
ocorrecircncia de um segundo evento seja instigando a mudanccedila em um som que jaacute se
desenrolavardquo (SMALLEY 2008 p 11) A causalidade eacute mais presumida do que propriamente
conhecida natildeo haacute como comprovar que haacute causalidade com base no que vemos ou
experimentamos Mas presumimos esta causalidade porque os sons estatildeo temporalmente
proacuteximos O autor ainda aponta que ldquose o segundo evento responde espectro-
morfologicamente agrave interferecircncia ou ao impacto do primeiro evento a relaccedilatildeo causal seraacute
percebida ainda mais fortementerdquo (SMALLEY 2008 p 11)
Music fo r Flute and ISPW (1994) de Cort Lippe pode ser analisada a partir desta
perspectiva Na primeira seccedilatildeo da peccedila eacute possiacutevel observar dois fluxos que se intercalam na
parte da flauta Um eacute mais contiacutenuo e em dinacircmica piano o outro consiste em fortes ataques
que interrompem a continuidade do primeiro Neste caso o fator maior de diferenciaccedilatildeo dos
dois fluxos eacute a presenccedila dos sons eletroacuacutesticos Enquanto um fluxo eacute apenas instrumental o
90 Original ldquo[] there is an extreme distance between a very tight perhaps rigidly controlled punctual homorhythmic minimal music and the very relaxed malleable associations found in some electroacoustic musicrdquo (SMALLEY 1997 p 118)
83
outro eacute composto pela soma dos dois O fluxo forte eacute sincronizado com a parte do computador
e juntos formam um uacutenico fluxo Os dois fluxos piano e forte apresentam uma coordenaccedilatildeo
de movimento justa na dimensatildeo vertical e se intercalam subitamente numa passagem de
movimento pressionada mas natildeo parece haver relaccedilatildeo de causalidade entre eles Tambeacutem eacute
possiacutevel observar que o fluxo forte estabelece uma instabilidade sobre o fluxo piano mais
estaacutevel (modo de relacionamento) A relaccedilatildeo entre eles neste momento eacute de conflito
A oposiccedilatildeo dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo natildeo se apresenta muito claramente Poderiacuteamos
pensar que o forte domina o fraco por causa da maior intensidade entretanto se
considerarmos sua distribuiccedilatildeo no tempo poderiacuteamos dizer que o fraco domina pois sua
duraccedilatildeo eacute maior ele tecircm predominacircncia temporal Esta incerteza analiacutetica pode manifestar
uma ambiguidade musical mas tambeacutem aponta para um fator pouco contemplado na tabela de
Smalley o desenvolvimento das relaccedilotildees no tempo Isto porque conforme a muacutesica se
desenvolve percebemos que o fluxo forte comeccedila a preponderar e domina sobre o piano
(subordinado)
84
3432 Contraponto
O que estamos sugerindo agora eacute que o fluxo em evoluccedilatildeo [evolving stream] pode ser articulado gestualmente e podemos coordenar (ou natildeo) os gestos entre as vaacuterias partes de modo a criar uma estrutura contrapontiacutestica viaacutevel91 (WISHART 1996 p 117)
A partir do paradigma do continuum sonoro e atraveacutes do gesto (ver 331 e 332)
Wishart desenvolve sua teoria de contraponto Para o autor natildeo eacute suficiente apenas um
nuacutemero de fluxos sonoros Devemos perceber que haacute uma relaccedilatildeo de um com o outro ou que
eles interagem de alguma maneira durante o curso de do seu desenvolvimento individual No
contraponto baseado na rede isso envolve o ldquoir e virrdquo da coordenaccedilatildeo riacutetmica e da
consonacircncia harmocircnica na relaccedilatildeo entre as partes
Para se atingir uma estrutura contrapontiacutestica Wishart argumenta ser necessaacuterio dois
princiacutepios (1) um princiacutepio arquitetural que oferece pontos de referecircncia na progressatildeo
global do material musical Na muacutesica tonal isso corresponde agrave estrutura das tonalidades (o
retorno agrave tocircnica por exemplo eacute normalmente um marco) No continuum este princiacutepio
arquitetural seraacute o conceito de transformaccedilatildeo de uma aacuterea tiacutembrica ou sonoro-morfoloacutegica
em outra Podemos nos lembrar da fala de Varegravese ldquoO papel da cor ou timbre seraacute
completamente modificado [] ele se tornaraacute um agente de delineamento como as diferentes
cores num mapa separando diferentes aacutereas e uma parte integral da formardquo (VARESE apud
SIMMS 1996 p 112)
(2) Uma estrutura contrapontiacutestica tambeacutem precisa ter um princiacutepio dinacircmico que
determina a natureza do movimento No contraponto tonal isto estaacute relacionado ao ldquoir e virrdquo
(ebb and flow ) da coordenaccedilatildeo riacutetmica e ao ldquoir e virrdquo da consonacircncia-dissonacircncia harmocircnica
ou seja estaacute relacionado agrave maneira em que as notas numa parte individual estatildeo colocadas em
relaccedilatildeo agrave notas em outras partes No contraponto no continuum no lugar da consonacircncia-
dissonacircncia na progressatildeo harmocircnica Wishart propotildee a ideia de evoluccedilatildeo gestual e a
interaccedilatildeo entre os fluxos distintos
Estas duas dimensotildees (1 e 2) devem ser independentes uma da outra de acordo com o
autor O princiacutepio dinacircmico natildeo pode ser implicado pelo arquitetural satildeo dimensotildees
separadas
91 ldquoWhat we are now suggesting is that the evolving stream may be gesturally articulated and we may coordinate (or not) the gestures between the various parts in such a way as to create a viable contrapuntal structurerdquo (WISHART 1996 p 117)
O princiacutepio dinacircmico pode ser observado horizontalmente e verticalmente
Horizontalmente a sequecircncia de gestos numa linha particular seraacute determinada pela coerecircncia
expressiva (ou ausecircncia dela) nesta linha Isso determinaraacute
a) O tipo de gesto usado
b) A sequecircncia individual dos gestos
c) A meacutedia da atividade gestual
Na dimensatildeo vertical um paracircmetro importante eacute a taxa global de ocorrecircncia dos
gestos nas diferentes partes Evidentemente devido a nossa percepccedilatildeo se forem dois gestos
simultacircneos eles podem ser contados como um Ainda podemos considerar dentro de um
periacuteodo de tempo da peccedila
a) se os gestos nas diferentes partes satildeo similares (homogecircneos) ou se satildeo heterogecircneos
b) se os gestos parecem interagir uns com os outros ou se se comportam independentes
uns dos outros
A partir destas caracteriacutesticas (a e b) se estabelecem seis arqueacutetipos para a organizaccedilatildeo
vertical dos gestos
1) Paralelo (natildeo tem a ver com caracteriacutestica espectral estamos falando de estrutura
gestual)
2) Semi-paralelo as partes seguem a mesma loacutegica gestual mas natildeo sincronicamente
3) Independecircncia homogecircnea as partes se comportam independentemente
4) Independecircncia heterogecircnea quando os gestos satildeo heterogecircneos tambeacutem podem ser
independentes
5) Interativo especialmente relacionado agrave ligaccedilotildees causais ou imitativas entre as partes
6) De gatilho (triggering) quando um gesto de uma parte parece iniciar um evento ou
uma mudanccedila em uma outra parte de maneira minimamente clara
85
86
QUADRO 3 - ORGANIZACcedilAtildeO VERTICAL DOS GESTOS EM RELACcedilAtildeO AO PRINCIacutePIO DINAcircMICO
independente independecircncia independecircncia
Icircsemi-
paralelismointeraccedilatildeo
interativo paralelismo gatilho
similar
(homogecircneo) -dissimilar
(heterogecircneo)
FONTE Wishart (1996 p 26)
Wishart conclui que com esta ferramenta teoacuterica em sua experiecircncia
ldquo[] foi possiacutevel esquematizar a estrutura da densidade geral dos eventos na partitura e entatildeo compor a estrutura gestual de uma seccedilatildeo usando siacutembolos elementares [] e assim trabalhando a partir do plano global de timbre e desenvolvimento articulatoacuterio colocar na partitura [score] nos detalhes de cada evento sonoro individual em cada vozrdquo (WISHART 1996 p 123 traduccedilatildeo nossa92)
Finalmente eacute relevante salientar que apesar de Wishart ter desenvolvido estas ideias a
partir da experiecircncia de notaccedilatildeo de objetos sonoros complexos ele afirma que a validaccedilatildeo
uacuteltima de qualquer procedimento musical deve ser feita atraveacutes da natildeo-mediada e natildeo
prejudicial experiecircncia de escuta ldquoUma loacutegica baseada em escutar e trabalhar com os
materiais acuacutesticos [] eacute necessaacuteria quando abordamos o multi-dimensional continuum
aberto pelo aacuteudio (Sonic) digitalrdquo (WISHART 1996 p 126 traduccedilatildeo nossa93)
3433 Interaccedilatildeo gestual
Petra Bachrataacute (2010) investiga em sua tese o tema da interaccedilatildeo gestual A autora
percorre diferentes concepccedilotildees do gesto musical para evidenciar relaccedilotildees gestuais entre sons
instrumentais e eletroacuacutesticos gesto como movimento gesto como significado ( meaning)
92 Original ldquoIt was possible to lay out the structure of the overall density of events on the score then compose the gestural structure of a section using elementary symbols [] and then working from the overall plan of timbral and articulatory development score in the details of the individual sound-events in each voicerdquo (WISHART 1996 p 123)
93 Original ldquoA rationale based on listening to and working with acoustic materials [ ] will be needed when we approach the multi-dimensional continuum opened up by digital sonicsrdquo (WISHART 1996 p 126)
87
gesto como trajetoacuteria energia-movimento gesto como articulaccedilatildeo do continuum gesto e
unidades semioacuteticas temporais gesto e figura gesto e energia e finalmente gesto e notaccedilatildeo
A partir desta fundamentaccedilatildeo teoacuterica ela identifica descreve e classifica relacionamentos
gestuais interativos definindo modelos Todos os modelos de interaccedilatildeo gestual satildeo
identificados no repertoacuterio incluindo as peccedilas da proacutepria autora O primeiro grupo de
modelos se refere agrave interaccedilatildeo gestual baseada em aspectos elementares alturafrequecircncia
organizaccedilatildeo temporal envelope de intensidade e caracteriacutesticas tiacutembricas O segundo eacute
baseado no modelo tripartite de estrutura de um som (onset-continuant-termination) O
terceiro estaacute fundamentado na teoria de Wishart (1996) de contraponto O quarto se refere agrave
interaccedilatildeo gestual baseada em caracteriacutesticas espectro-morfoloacutegicas e semacircnticas de direccedilatildeo e
energia Finalmente a autora apresenta modelos espaciais de interaccedilatildeo gestual Anexo a esta
dissertaccedilatildeo estaacute a traduccedilatildeo do apecircndice de seu trabalho (ver Anexo 1) onde sintetiza os
modelos de interaccedilatildeo Natildeo estaacute no escopo de nosso trabalho fazer um detalhamento destes
modelos Em lugar disso intentamos demonstrar a compatibilidade desta abordagem com
aquela que estamos construindo ao redor da ideia de fluxos sonoros
Bacharataacute menciona a concepccedilatildeo de fluxo (stream) quando trata da interaccedilatildeo gestual
baseada em organizaccedilatildeo temporal Isto porque nesta categoria eacute um grupo de gestos que se
relaciona com outro grupo de gestos resultando num modo de interaccedilatildeo como o sincopado o
polirriacutetmico entre outros Natildeo seria possiacutevel por exemplo identificar polirritmia observando
apenas dois eventos Nesta necessidade de observar o agrupamento dos gestos Bachrataacute
aponta para a teoria de Bregman (1990) de fluxos auditivos A ldquointeraccedilatildeo por agrupamento
texturalrdquo apresenta uma relaccedilatildeo mais estreita com esta concepccedilatildeo ldquoInteraccedilatildeo por
agrupamento textural - interaccedilatildeo de padrotildees gestuais de duraccedilatildeoritmos aleatoacuterios ou
irregulares os quais ocorrem em diferentes camadas de sons - fluxos auditivosrdquo
(BACHRATAacute 2010 p 157 traduccedilatildeo nossa94)
O objetivo de sua pesquisa diga-se alcanccedilado minuciosamente era ldquo[] analisar
diferente tipos de relaccedilotildees interativas entre gestos musicais nas muacutesicas escritas para
instrumentos e sons eletroacuacutesticos a fim de estabelecer modelos especiacuteficos de interaccedilatildeo
[]rdquo (BACHRATAacute 2010 p 15 traduccedilatildeo nossa95) Natildeo se trata assim de entender estas
interaccedilotildees entre gestos na relaccedilatildeo com o contexto nem de observar o desenvolvimento desta
94 Original ldquoInteraction by textural grouping - interaction of irregular or random rhythmsdurational gestural patterns which occur in different layers of sounds - auditory streamsrdquo (BACHRATAacute 2010 p 157)
95 Original ldquo[] to analyze different kinds of interactive relationships between musical gestures in music written for instruments and electroacoustic sounds in order to establish specific models of interaction []rdquo
88
interaccedilatildeo ao longo de uma peccedila por exemplo A estas questotildees por outro lado se direciona
nossa investigaccedilatildeo Na praacutetica estas interaccedilotildees gestuais acontecem em determinados
contextos e se desenvolvem no tempo assim todos os modelos estatildeo de certa forma inseridos
numa organizaccedilatildeo temporal
Desta maneira eacute possiacutevel ver complementariedade nas abordagens Os fluxos a que
estamos nos referindo podem ser e satildeo comumente constituiacutedos de gestos Citando novamente
Wishart ldquoo fluxo em evoluccedilatildeo [evolving stream] pode ser articulado gestualmenterdquo96
(WISHART 1996 p 117) Os gestos de um interagem com gestos de outros fluxos da
mesma forma que no contraponto uma voz eacute constituiacuteda por notas que interagem com outras
notas de outras vozes A interaccedilatildeo gestual estaacute num niacutevel mais concreto mais proacuteximo da
superfiacutecie sonora analisada enquanto que fluxo eacute uma categoria mais abstrata de anaacutelise
Bachrataacute natildeo deixa de notar que seus resultados tecircm se estendido na sua produccedilatildeo
para outras instrumentaccedilotildees
A aplicaccedilatildeo de relacionamentos gestuais interativos tecircm sido generalizada natildeo apenas agraves minhas peccedilas que usam instrumentos e sons eletroacuacutesticos em combinaccedilatildeo mas tambeacutem a uma obra puramente eletroacuacutestica (acusmaacutetica) e peccedilas instrumentais sem eletrocircnicos (BACHRATAacute 2010 p 16 traduccedilatildeo nossa97)
Da mesma forma natildeo haacute propriedades intriacutensecas de um ou outro meio que impeccedilam
que estes modelos sejam aplicados em obras puramente instrumentais ou puramente
eletroacuacutesticas Esta caracteriacutestica extrapoladora dos resultados eacute recorrente em nossa leitura
As pesquisas que tecircm como tema a relaccedilatildeo instrumental-eletroacuacutestico no acircmbito sonoro-
morfoloacutegico acabam por encontrar relaccedilotildees que podem ser extrapoladas para uma relaccedilatildeo
instrumental-instrumental ou eletroacuacutestico-eletroacuacutestico Nossa leitura da Morfologia da
Interaccedilatildeo (MENEZES 2006 p 377-400) extrapolou fusatildeo e contraste para a aplicaccedilatildeo em
diferentes fluxos independentemente se instrumentais ou eletroacuacutesticos De modo
semelhante os modelos de interaccedilatildeo gestual de Bachrataacute podem ser aplicados aos diferentes
meios independentemente Isto eacute embora o iacutempeto inicial da pesquisa tenha sido investigar a
interaccedilatildeo entre sons instrumentais e eletroacuacutesticos especificamente os resultados
96 ldquoWhat we are now suggesting is that the evolving stream may be gesturally articulated and we may coordinate (or not) the gestures between the various parts in such a way as to create a viable contrapuntal structurerdquo (WISHART 1996 p 117)
97 Original ldquoThe application of interactive gestural relationships has been generalized not only to my works which use instrumental and electroacoustic sounds in combination but also to a pure electroacoustic (acousmatic) work and instrumental pieces without electronicsrdquo (BACHRATAacute 2010 p 16)
89
encontrados satildeo generalizaacuteveis Esta constataccedilatildeo sublinha a necessidade teoacuterica de uma
denominaccedilatildeo de uma terminologia para indicar os grupos de sons independentemente se
instrumentais eletroacuacutesticos ou uma mescla dos dois Fluxos vozes camadas ou planos satildeo
alternativas
35 O FLUXO VISUAL NA MUacuteSICA MISTA
No decorrer da pesquisa notamos que para a percepccedilatildeo da interaccedilatildeo era importante
considerar a visualidade da performance98 Embora para a escuta a distinccedilatildeo de mecanismo
de produccedilatildeo sonora acuacutestico-eletrocircnico natildeo seja tatildeo relevante (SOUZA 2010) ganha
importacircncia quando considerados os aspectos visuais da performance Isto porque as
vibraccedilotildees mecacircnicas nos instrumentos acuacutesticos satildeo produzidas por gestos fiacutesicos de um
performer (bater pinccedilar friccionar etc) e o som depende da relaccedilatildeo deste gesto fiacutesico com o
instrumento Por outro lado os sons produzidos nos circuitos eletrocircnicos podem ser
controlados de diferentes maneiras (potenciocircmetros mouse por algoritmos generativos etc)
e o som pode estar mais ou menos relacionado a este controle ou ainda natildeo haver controle
em tempo real consideraacutevel Neste sentido natildeo se trata apenas de uma questatildeo visual mas
estaacute em jogo um aprendizado das relaccedilotildees de accedilatildeo e resposta dos instrumentos Schrader
(1991) explica como essas relaccedilotildees satildeo apreendidas nos instrumentos acuacutesticos
A performance tradicional de muacutesica com instrumentos acuacutesticos tem se desenvolvido como uma extensatildeo da percepccedilatildeo de accedilatildeoresposta A accedilatildeo eacute percebida como visual e fiacutesica e a resposta que a acompanha eacute aural Assim algueacutem aprende que quando o percussionista bate no tiacutempano com uma baqueta resultaraacute num certo som A arte de ldquotocarrdquo um instrumento eacute aquela de criar uma seacuterie de associaccedilotildees significativas de accedilatildeoresposta O que eacute significativo eacute aprendido pela experiecircncia e os significados de uma performance instrumental acuacutestica satildeo geralmente apreendidos pelas pessoas num primeiro estaacutegio atraveacutes da experiecircncia de performances ao vivo ou filmadas (SCHRADER 1991 p 91-92 traduccedilatildeo nossa99)
98 O aspecto visual tem tambeacutem uma importacircncia para a percepccedilatildeo de processos tecnoloacutegicos envolvidos na performance O espectador-ouvinte pode inferir que accedilatildeo (visual) do performer estaacute controlando determinado som sintetizado por exemplo Embora possa haver convergecircncias este natildeo eacute o caso de nossa abordagem Estamos interessados em como o aspecto visual se relaciona com o sonoro independentemente do tipo de interaccedilatildeo tecnoloacutegica presente
99 Original ldquoThe traditional performance of music on acoustical instruments has developed as an extension of actionresponse perception The action is perceived as visual and physical and the accompanimental response is aural Thus one learns that when the percussionist strikes the tympana with a stick a certain sound will result The art of playing an instrument is that of creating a series of meaningful actionresponse associations What is meaningful is learned by experience and the meanings of acoustical instrumental performance are generally acquired by people at a very early stage through experiencing live filmed or videotaped performancesrdquo (SCHRADER 1991 p 91-92)
90
De acordo com o autor estes mecanismos de accedilatildeoresposta presentes nos instrumentos
acuacutesticos podem ser aparentes como no caso do violino ou implicados como no caso do
piano Assim poderiacuteamos ilustrar o modelo de instrumentos acuacutesticos da seguinte maneira
FIGURA 24 - MODELO DE ACcedilAtildeO-RESPOSTA DOS INSTRUMENTOS ACUacuteSTICOS
Accedilatildeo fiacutesica e visual Instrumento
FONTE o autor (2019)
Resposta aural
Na muacutesica que une instrumentos acuacutesticos com recursos eletroacuacutesticos esta
correspondecircncia newtoniana de accedilatildeo e reaccedilatildeo eacute modificada Haacute uma parte da experiecircncia
aural que natildeo eacute efeito da accedilatildeo fiacutesica e visual Essa situaccedilatildeo coloca o ouvinte-espectador numa
posiccedilatildeo de atentar para as relaccedilotildees entre accedilatildeo visual e resposta aural que podem ser
diferentes daquelas a que estaacute acostumado e que tambeacutem podem ser instaacuteveis Assim para a
muacutesica mista eacute possiacutevel esboccedilar um modelo diferente (Figura 25)
FIGURA 25 - POSSIacuteVEIS RELACcedilOtildeES CONFUSAS NA PERCEPCcedilAtildeO DE ACcedilAtildeO-RESPOSTA NO CONshyTEXTO DA MUacuteSICA MISTA
FONTE o autor (2019)
O que designei accedilatildeo invisiacutevel na figura acima se explica pelo processo de
referenciaccedilatildeo espectro-morfoloacutegica (spectromorphological referral process) da teoria de
Smalley (1997) ldquoQuando ouvimos espectromorfologias noacutes detectamos a humanidade por
traacutes delas ao deduzir atividade gestual referindo-nos atraveacutes do gesto agrave experiecircncia fisioloacutegica
e proprioceptiva em geralrdquo (p 111)100 A seta a) na figura 25 indica a possibilidade de
percebermos um som eletroacuacutestico como se tivesse sido produzido pela accedilatildeo fiacutesica e visual
do performer no instrumento A seta b) indica a possibilidade de percebermos que a resposta
100Traduccedilatildeo do autor Original ldquoWhen we hear spectromorphologies we detect the humanity behind them by deducing gestural activity referring back through gesture to proprioceptive and psychological experience in generalrdquo (SMALLEY 1997 p 111)
91
aural eletroacuacutestica parece uma variaccedilatildeo da resposta aural instrumental relaccedilatildeo comum no
emprego de processamentos do som ao vivo O quadrado gradiente indica que na percepccedilatildeo
da resposta aural natildeo eacute sempre possiacutevel uma clara distinccedilatildeo entre os meios conforme
demonstrado no subcapiacutetulo 34 A ilustraccedilatildeo apresenta apenas estas duas relaccedilotildees deixando
em aberto a possibilidade de outras
No artigo Muacutesica Eletroacuacutestica possibilidades esteacuteticas e escuta Cristina Dignart
aponta que esta situaccedilatildeo implica novos paradigmas de escuta musical ldquoO movimento gestual
instrumental sobre os sons permite um agenciamento atento ou intencional de certas
qualidades sonoras com a possibilidade de descobertas e surpresas de sonoridadesrdquo
(DIGNART 2010 p 63) Segundo a autora haacute uma ldquoreinterpretaccedilatildeo da escuta atrelada ao
gestordquo
Esta situaccedilatildeo remete agrave relaccedilatildeo interativa entre ouvinte e sons que propotildee Smalley
Segundo este autor a relaccedilatildeo interativa envolve
[] uma relaccedilatildeo ativa da parte do sujeito em explorar continuamente as qualidades e a estrutura do objeto Neste sentido pode ser vista como interativa Nenhuma expectativa preacute-formada eacute buscada pelo ouvinte A relaccedilatildeo interativa engloba a audiccedilatildeo estrutural as atitudes esteacuteticas em relaccedilatildeo agrave muacutesica e aos sons e o conceito de Schaeffer de audiccedilatildeo reduzida Eacute possiacutevel ter uma relaccedilatildeo interativa com qualquer som ainda que naturalmente alguns sons seratildeo mais frutiacuteferos do que outros (SMALLEY 2008 p 6)
Embora esta perspectiva esteja associada apenas com o som eacute possiacutevel considerar que
tal postura seja possiacutevel tambeacutem diante da relaccedilatildeo entre accedilatildeo visual e resposta aural Isto eacute o
ouvinte-espectador pode assumir uma relaccedilatildeo interativa101 natildeo apenas com os sons mas com a
performance como um todo incluindo seu aspecto fiacutesico e visual Esta postura interativa eacute
especialmente demandada desta performance que desafia o modelo de accedilatildeoresposta dos
instrumentos acuacutesticos
Tal situaccedilatildeo do ouvinte-espectador estaacute diretamente relacionada ao mencionado estado
de duacutevida (MENEZES 2006) Ao referir-se agraves suas proacuteprias realizaccedilotildees mistas Menezes
expressa
o ouvinte recai em constantes duacutevidas acerca da natureza daquilo que ouve se adveacutem do instrumento ou da emissatildeo eletroacuacutestica se se opera ao vivo uma dinamizaccedilatildeo espacial harmocircnica tiacutembrica e temporal da escritura instrumental ou
101Observe o leitor que o termo interaccedilatildeo aqui se aplica a outra relaccedilatildeo diferente daquelas diferenciadas no capiacutetulo 2 Esta relaccedilatildeo se aproxima das discussotildees sobre participaccedilatildeo do ldquoespectadorrdquo na arte em geral
92
se estaacute defronte de estruturas preacute-elaboradas em estuacutedio constituiacutedas a partir dos proacuteprios instrumentos ou a estes timbricamente correlatas (MENEZES apud MENEZES 2006 p 386)
Novamente o estado de duacutevida nesta citaccedilatildeo estaacute mais relacionado aos aspectos
sonoros poreacutem eacute evidente que podemos consideraacute-lo tambeacutem na relaccedilatildeo entre accedilatildeo visual e
resposta aural Isto porque a duacutevida em relaccedilatildeo a proveniecircncia do som pode se acentuar ou se
extinguir de acordo com o respaldo visual E ainda eacute possiacutevel que haja outros estados como o
engano por exemplo
O efeito McGurk eacute uma curiosidade sobre a percepccedilatildeo da fala que pode ilustrar o caso
do engano
O efeito McGurk ocorre quando o sinal visual de um fonema eacute dublado com um sinal acuacutestico de um fonema diferente Com pares audiovisuais especiacuteficos os observadores natildeo notam o conflito intermodal e frequentemente experienciam (ie ouvem) um fonema que natildeo corresponde ao verdadeiro sinal auditoacuterio (ALSIUS et al 2017 p 2 traduccedilatildeo nossa102)
Por exemplo se a imagem era a de algueacutem falando ldquobardquo mas dublado com o som desta
pessoa falando ldquogardquo os ouvintes poderiam ouvir ldquobardquo ou mesmo ldquobgardquo103 Natildeo eacute papel desta
pesquisa investigar o quanto tal efeito pode acontecer em relaccedilatildeo a outros tipos de percepccedilatildeo
sonora entretanto este exemplo aponta para a influecircncia que o estiacutemulo visual tem sobre a
escuta
A peccedila Three voices (1982) de Morton Feldman serve como um exemplo Esta peccedila
escrita para Joan La Barbara eacute concebida como um trio para uma voz - duas partes satildeo preacute-
gravadas (pela mesma inteacuterprete) e uma executada ao vivo As vozes apresentam materiais
semelhantes Quando acontece de coincidir ataques de uma voz preacute-gravada com a da
performance ao vivo haacute a fusatildeo104 Natildeo se trata apenas da fusatildeo de dois ou trecircs fluxos
sonoros mas da fusatildeo destes com o que denominei fluxo visual Em cerca de 7 minutos a
peccedila apresenta um momento de sincronia entre as trecircs vozes em que eacute possiacutevel observar tal
fusatildeo105 A Figura 26 apresenta a partitura referente a esta parte
102Original ldquoThe McGurk effect occurs when the visual signal of one phoneme is dubbed onto the acoustic signal of a different phoneme With specific audiovisual pairs the observers do not notice intermodal conflict and often experience (ie hear) a phoneme that does not match the actual auditory signalrdquo (ALSIUS et al 2017 p 2)
103Buscando por ldquoMcGurk effectrdquo o leitor encontraraacute viacutedeos demonstrando este efeito na internet104A fusatildeo natildeo acontece apenas pela sincronia mas por se tratarem do mesmo timbre de voz ou seja haacute
transferecircncia espectral105Confira a performance de Charlotte Mundy disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatch
v=eXGnS7bqJ8ogt Acesso em 17 jan 2019
93
FIGURA 26 - FUSAO EM THREE VOICES (1982) DE MORTON FELDMAN (COMPASSOS 15 A 18 DA PARTE B)
Voice 1
Voice 2
Voice 3
mdashJmdash mdash ampmdash M mdashB r i
=-mdashsHivl
ei
ampL = uacute
mdash 1gtJsect j j
H u mdash laquoL
bull bull IG -------amp - W ----G
mdash bull bull------
e) a ei ei
bull
t
1
t
FONTE transcrito de Feldman (compositor) (1982)
Eacute importante notar o efeito desta fusatildeo natildeo apenas na escuta mas na experiecircncia da
performance que eacute tambeacutem vista uma impressatildeo possiacutevel eacute de que a cantora estaacute produzindo
as trecircs vozes ao vivo A relaccedilatildeo entre accedilatildeo da performer e resposta aural eacute instaacutevel nesta peccedila
Por vezes pode-se perceber a relaccedilatildeo convencional movimento corporal (boca respiraccedilatildeo
etc) agindo para produzir um som vocal No entanto quando o mesmo movimento parece
produzir trecircs sons vocais haacute uma reinterpretaccedilatildeo desta relaccedilatildeo
Truax (2005) aborda a questatildeo do visual na muacutesica eletroacuacutestica e questiona sobre a
influecircncia em questatildeo
No entanto mesmo dentro do mundo da muacutesica eletroacuacutestica estamos realmente livres da influecircncia visual Falamos de formas sonoras ou espectromorfologia (Smalley) e imagens sonoras (Wishart) O timbre eacute frequentemente descrito em termos visuais ou taacuteteis e talvez mais sutilmente muitas vezes nos referimos ao ldquoespaccedilo acuacutesticordquo mais por referecircncia ao espaccedilo visual do que a uma experiecircncia aural um tanto mais elusiva daquele espaccedilo Pode-se argumentar que tais referecircncias a formas imagens e espaccedilos natildeo precisam ser entendidas como visualmente tingidas mas na praacutetica acho que elas geralmente satildeo No entanto a neuropsicologia contemporacircnea em seu estudo do comportamento cerebral fornece evidecircncia de que todos os centros perceptivos estatildeo inter-relacionados e embora os fenocircmenos puramente auditivos possam ser localizados no coacutertex auditivo conexotildees estatildeo sempre sendo feitas a outros centros (TRUAX 2005 traduccedilatildeo nossa106)
Tendo distinguido este fluxo visual na performance mista e apontado o tipo e a
importacircncia de sua relaccedilatildeo com os fluxos sonoros interessa para esta pesquisa questionar qual
o potencial analiacutetico e composicional destes conceitos No caso da anaacutelise cabe ao analista
106Original ldquoYet even within the electroacoustic music world are we truly free of the visual influence We speak of sound shapes or spectromorphology (Smalley) and sound images (Wishart) Timbre is often described in visual or tactile terms and perhaps most subtly we often refer to acoustic space more by reference to visual space than to the somewhat more elusive aural experience of that space One could argue that such references to shapes images and spaces need not be understood as visually tinged but in practice I think they often are However contemporary neuropsychology in its study of brain behaviour provides evidence that all of the perceptive centres are inter-related and even though purely auditory phenomena can be localized to the auditory cortex connections are always being made to other centresrdquo (TRUAX 2005)
94
identificar a importacircncia deste fluxo numa experiecircncia de performance para decidir consideraacute-
lo ou natildeo Para o compositor uma opccedilatildeo eacute considerar este fluxo visual apenas como um fato
inerente agrave performance de muacutesica mista ou seja ainda que esteja consciente de tal fato natildeo o
utiliza como elemento estrutural em sua composiccedilatildeo Outra opccedilatildeo eacute pensaacute-lo como um
paracircmetro estrutural com potencial de ser trabalhado criativamente composto
Esta situaccedilatildeo de performance de relaccedilotildees variaacuteveis de accedilatildeo visual e resposta aural foi
explorada criativamente por alguns compositores A peccedila Aphasia (2009) para vocalista ou
ator (usando liacutengua de sinais) com tape de Mark Applebaum explora as possibilidades destas
relaccedilotildees107 A Figura 27 apresenta um trecho da partitura
Eacute possiacutevel perceber um paradigma de dependecircncia entre os fluxos visual e sonoro um
gesto estaacute sempre associado a um som como explica o compositor
O tape uma explosatildeo idiossincraacutetica de sons deformados e mutilados eacute composto exclusivamente de amostras vocais - todas cantadas por Isherwood e subsequentemente transformadas digitalmente Contra o pano de fundo desta narrativa de aacuteudio o cantor performa um elaborado conjunto de gestos de matildeo uma linguagem de sinais assiduamente coreografada Cada gesto eacute cuidadosamente sincronizado com o tape numa justa coordenaccedilatildeo riacutetmica (APPELBAUM traduccedilatildeo nossa108)
Podemos inferir que estes conceitos (relaccedilatildeo entre accedilatildeo visual e resposta aural fluxo
sonoro e visual) natildeo se apliquem apenas agrave performance de muacutesica mista mas tambeacutem a
107Confira a performance do proacuteprio compositor disponiacutevel em lthttpwebstanfordedu~applemkportfolio- works-aphasiahtmlgt
108Original ldquoThe tape an idiosyncratic explosion of warped and mangled sounds is made up exclusively of vocal samplesmdashall sung by Isherwood and subsequently transformed digitally Against the backdrop of this audio narrative the singer performs an elaborate set of hand gestures an assiduously choreographed sign language of sorts Each gesture is fastidiously synchronized to the tape in tight rhythmic coordinationrdquo (APPELBAUM)
95
outros gecircneros que fazem uso de som em conjunto com imagem (viacutedeo-arte performance
teatro baleacute etc) Barry Truax comenta seu trabalho de mixed media em colaboraccedilatildeo com o
artista visual e compositor Theo Goldberg
Uma vez que Theo Goldberg tinha familiaridade tanto com artes visuais quanto com muacutesica e tinha pensado muito sobre sua possiacutevel correlaccedilatildeo (Goldberg amp Schrack1986) seu conselho a mim quando comeccedilou a colaboraccedilatildeo foi tratar os doiselementos como independentes ainda que derivados de uma ideia comum Tomei isso como significando que uma correlaccedilatildeo direta era desnecessaacuteria e que cada meio deveria se desenvolver de acordo com sua proacutepria loacutegica mas serem informados por uma ideia comum que era central ao trabalho O equiliacutebrio entre liberdade para cada meio mas coerecircncia entre eles sempre pareceu funcionar em cada colaboraccedilatildeo que empreendemos (TRUAX 2005 traduccedilatildeo nossa)109
Este paradigma pode ser descrito como independecircncia com coerecircncia Um paradigma
de relaccedilatildeo estaacutevel O argumento em questatildeo eacute de que ldquocada meio possui sua proacutepria loacutegicardquo e
por isso devem se manter independentes Entretanto podemos questionar se estes meios
realmente possuem loacutegicas distintas Para cada gecircnero (viacutedeo-arte cinema performance e
outros) teriacuteamos uma resposta e natildeo eacute nosso objetivo investigaacute-las precisamente Entretanto
podemos pontuar que mais do que inerecircncias dos meios o que eacute definitivo para tal
posicionamento relativo agrave relaccedilatildeo entre sonoro e visual eacute a decisatildeo esteacutetica do criador
Aphasia de Applebaum apresenta uma dependecircncia completa o trabalho de Truax e Goldberg
independecircncia com coerecircncia Aleacutem disso podemos pensar que este paradigma na relaccedilatildeo
entre sonoro e visual pode ser variaacutevel constituindo assim um paracircmetro passiacutevel de
transformaccedilotildees durante a peccedila Eacute o caso de Strange Autumn (2003-4) de Steven Kazuo
Takazugi que eacute analisada em 42
Em seu texto Why Theater or A Series o f Uninvited Guests (2016) Takasugi
demonstra que a ideia de teatro110 perpassa a muacutesica eletroacuacutestica desde aquela feita para
fones-de-ouvidos (gecircnero a que se dedicou por deacutecadas) ateacute aquela que inclui o inteacuterprete e
seu instrumento no palco
Primeiramente haacute um teatro imaginado cranial daquelas muacutesicas feitas para serem
ouvidas em fones-de-ouvido O autor explica
109OriginaL Since Theo Goldberg was familiar with both the visual arts and music and had thought a great dealabout their possible correlation (Goldberg amp Schrack 1986) his advice to me when we started collaborating was to treat the two elements as independent yet derived from a common idea I took this to mean that direct correlation was unnecessary and that each medium should develop according to its own logic but be informed by a common idea that was central to the work The balance between freedom for each medium but coherence between them always seemed to work in each collaboration we undertook (TRUAX 2005)
110Natildeo se refere ao gecircnero artiacutestico mas ao espaccedilo de apresentaccedilotildees
96
Pois somente nas profundezas mais escuras do espaccedilo projetado e imaginado os sons recuperam uma re-encarnaccedilatildeo quase visual como objetos fiacutesicos que entatildeo executam uma danccedila impossiacutevel em um salatildeo inexplicaacutevel e cranial e assim tornam- se suficientemente provocativos para incitar a imaginaccedilatildeo a criar ao lado real uma casa de espelhos um teatro imaginado (TAKASUGI 2016 natildeo paginado traduccedilatildeo nossa111)
Num outro estaacutegio trocando os fones individuais por alto-falantes comunitaacuterios temos
o teatro fiacutesico Como os alto-falantes natildeo satildeo performers visualmente atrativos baixa-se a
intensidade da luz numa espeacutecie de ldquodesculpas pela ausecircncia do visualrdquo (TAKASUGI 2016)
os alto-falantes desaparecem e o ouvinte eacute novamente deixado agrave sua proacutepria imaginaccedilatildeo
Um passo aleacutem e acompanhando o concerto eletroacuacutestico temos um instrumento no
palco um piano por exemplo Por momentos ele pode servir de referecircncia para os sons
ouvidos
O que eacute isso O instrumento fiacutesico como representaccedilatildeo conceitual Mas se algueacutem - mesmo que por breves instantes - assuma que os sons que ouve foram extraiacutedos do instrumento verdadeiro e factual em si natildeo eacute esse o momento de intrusatildeo de outro ldquohoacutespede natildeo convidadordquo Um impostor de tipos alegando sons que natildeo produziu E como ainda natildeo haacute agente humano nesse ato imaginado o instrumento como objeto assume um ar misterioso de presenccedila esteacutetica importacircncia significado (TAKASUGI 2016 traduccedilatildeo nossa112)
Mais um passo e temos o performer sentado ao piano mas ele natildeo toca nada enquanto
isso a muacutesica eletroacuacutestica eacute executada Seria o verdadeiro ator-impostor Neste caso ldquo []
com a presenccedila de um ser humano no palco o ritual de concertos ao vivo com toda a sua
etiqueta e deferecircncia a um inteacuterprete se materializou O teatro de um tipo exterior renasce
[]rdquo (TAKASUGI 2016 traduccedilatildeo nossa113)
Ainda um passo aleacutem e temos o performer que tocaraacute o piano Entretanto esta
bifurcaccedilatildeo inerente agrave junccedilatildeo de sons ao vivo e sons preacute-gravados carrega a possibilidade de o
performer ldquonatildeo tocar embora fingir tocarrdquo causando uma espeacutecie de efeito de
111 Original ldquoFor only in the darkest depths of ones projected imagined space did sounds regain a near visual re-embodiment as physical objects that then perform an impossible dance in an inexplicable cranial hall and thereby become sufficiently provocative to prompt the imagination to create alongside the real a house of mirrors an imagined theaterrdquo (TAKASUGI 2016)
112 Original ldquoWhat is it The physical instrument as conceptual representation But then if onemdasheven for the briefest of momentsmdashassumes that the sounds one hears as elicited from the true factual instrument itself is that not the moment of intrusion of yet another uninvited guest An imposter of sorts claiming sounds that it has not produced And as there is still no human agent in this imagined act the instrument as object takes on a mysterious air of aesthetic presence importance meaningrdquo (TAKASUGI 2016)
113 Original ldquo[] with the presence of a human on stage the live concert ritual with all its etiquette and deference to a performer has rematerialized Theater of an exterior type is reborn []rdquo (TAKASUGI 2016)
97
ventriloquismo e uma confusatildeo de ldquoquem estaacute fazendo o querdquo Assim o autor registra ldquoO
teatro eacute uma orquestraccedilatildeo alternativamente uma heterofonia que se projetou explicitamente
no domiacutenio visualrdquo (TAKASUGI 2016 traduccedilatildeo nossa114)
Assim esta dissociaccedilatildeo da produccedilatildeo fiacutesica da muacutesica em relaccedilatildeo ao todo que soa se daacute
em graus variados imaginaccedilatildeo instrumento performer gesto fiacutesico Desta forma os artefatos
visuais antes presumidos da produccedilatildeo musical e que eram perifeacutericos a ela (viradas de
paacuteginas por exemplo) satildeo incluiacutedos
Consequentemente se a produccedilatildeo fiacutesica da muacutesica e seu labor foram dissociados em graus variados do todo que soa os artefatos gestuais outrora presumidos da produccedilatildeo musical - outrora estranhos ao empreendimento de fazer muacutesica - se levantam em revolta para se juntar ao jogo inflado do fato e ficccedilatildeo a interaccedilatildeo da verdade e da fraude Viradas de paacutegina olhares de deixas tempo batido com o peacute o cacircmbio de instrumentos duplicados o silenciar dos instrumentos o agradecimento do puacuteblico todos estes satildeo colocados em primeiro plano ensaiados estilizados atuados
E entatildeo o que a camada da performance ao vivo e do teatro contribui para aquele ldquopedaccedilo de fitardquo agora enterrado115 de amostras digitais se o equiliacutebrio entre as camadas cria uma confusatildeo implacaacutevel Ela ajuda a camada da ldquomuacutesica mortardquo a permanecer enterrada como uma percepccedilatildeo subconsciente mesmo que esteja soando sozinha em longas passagens Por isso permite um desvio dos olhos - os olhos internos propiciaram sua suspensatildeo da descrenccedila necessaacuteria a qualquer ficccedilatildeo - ao mesmo tempo em que os olhos fiacutesicos estatildeo bem abertos horrorizados com o que vecircem no palco Isso permite ao espectaacuteculo a sua sombra o seu efeito alienante Eacute assim que aquela presenccedila sombria como o uacuteltimo ldquoconvidado natildeo convidadordquo (agora ldquofantasmardquo) encontra acesso atraveacutes de uma porta dos fundos por assim dizer encontrada de surpresa No final haacute e natildeo haacute o playback Ele desaparece para se tornar mais uma presenccedila despercebida parte das paredes do local uma cortina ou uma porta vista mas natildeo observada
O teatro eacute um truque de maacutegica Eacute a distraccedilatildeo pela qual os mortos se levantam de maneira encoberta pungente desconhecida ou apenas vagamente sentida entre o ao vivo os vivos (TAKASUGI 2016 traduccedilatildeo nossa116)
114 Original ldquoTheater is an orchestration alternatively a heterophony which has projected itself explicitly into the visual domainrdquo (TAKASUGI 2016)
115 O autor brinca com a ideia de live e dead se os sons ao vivo satildeo considerados vivos (live) os sons preacute- gravados poderiam ser chamados de mortos (dead)
116 Original ldquoConsequently if musics physical production and its labor have been decoupled to varying degrees from the sounding whole the once-presumed gestural artifacts of musical production - previously extraneous to the enterprise of music making - rise up in revolt to join the inflated game of fact and fiction the interplay of truth and fraud Page turns cued glances time beat with the foot the exchange of doubling instruments the muting of instruments the acknowledgment of the audience all these become foregrounded rehearsed stylizedacted
And so what does the layering of live performance and theater accomplish for that now buried tape piece of digital samples if the balance among the layers creates a ruthless confusion It aids the layer of the dead music to remain buried as a subconscious perception even if it is sounding alone in long passages It therefore allows for an averting of the eyes - the inward eyes afforded their suspension of disbelief requisite of any fiction - at the same time when the actual physical eyes are wide aglare aghast by what they see on stage It allows the spectacle its shadow its alienation-effect It is how that shadowy presenceas the last uninvited guest (now ghost)finds access through a backdoor as it were met unawares In the end there is and there isnt the playback track It fades away to become yet another unnoticed presence part of the venues walls or a curtain or a doorseen but not watched
98
Diante deste texto eacute possiacutevel reter as seguintes ideias a ldquoconfusatildeo implacaacutevelrdquo se
apresenta natildeo apenas no reconhecimento da fonte sonora pela escuta mas na relaccedilatildeo entre
accedilatildeo visual e resposta aural artefatos antes perifeacutericos agrave performance como as viradas de
paacuteginas satildeo incluiacutedos como elementos relevantes da performance (justamente por causa da
relevacircncia da accedilatildeo visual) que os recorrentes sons do instrumento duplicados na parte
eletroacuacutestica possibilitam agrave confusatildeo adquirir um caraacuteter veridictoacuterio ldquodo fato e da ficccedilatildeo a
interaccedilatildeo da verdade e da frauderdquo
Para elucidar as relaccedilotildees deste uacuteltimo aspecto propomos articular a oposiccedilatildeo ser-
parecer instrumental117 Localizamos o instrumento presente no palco como central natildeo por
ser mais importante mas sim porque eacute em relaccedilatildeo ao som conhecido do instrumento cuja
performance eacute vista que podemos julgar por comparaccedilatildeo os outros Assim em relaccedilatildeo ao
som conhecido do instrumento as seguintes possibilidades podem ser esboccediladas
a) parece e eacute instrumental situaccedilatildeo comum em que percebemos a relaccedilatildeo entre accedilatildeo
visual de um performer em seu instrumento e ouvimos um resultado aural
correspondente
b) parece instrumental mas natildeo eacute situaccedilatildeo em que sons projetados pelos alto-falantes
satildeo semelhantes ou idecircnticos aos instrumentais mas natildeo tiveram sua origem no
instrumento ao vivo embora uma accedilatildeo visual possa induzir tal pensamento
c) natildeo parece nem eacute instrumental situaccedilatildeo em que sons eletroacuacutesticos satildeo distintos dos
instrumentais e haacute uma total discrepacircncia entre accedilatildeo visual e resultado aural (por
exemplo na mencionada Aphasia os sons nunca satildeo os da matildeo do performer)
d) eacute mas natildeo parece instrumental situaccedilatildeo que utiliza sons instrumentais incomuns
(algumas teacutecnicas estendidas por exemplo)
Entretanto como mencionado o ouvinte-espectador pode estar num estado de duacutevida
em que soacute percebe a aparecircncia e natildeo pode dizer ou natildeo tem interesse em dizer o que eacute e o
que natildeo eacute Aleacutem disso podemos lembrar do argumento de Emmerson (2013) o que ouvimos
eacute o efeito e a relaccedilatildeo causal eacute secundaacuteria natildeo eacute essencial para apreciar o conteuacutedo expressivo
da muacutesica (ver p 37)
Theater is a sleight of hand It is the distraction by which the dead rise covertly poignantly unbeknown or only vaguely sensed among the live the livingrdquo (TAKASUGI 2016)
117 Trata-se de uma transposiccedilatildeo da categoria da veridicccedilatildeo da semioacutetica greimasiana (GREIMAS COURTEacuteS 2012 p 532) ldquoA categoria da veridicccedilatildeo apresenta-se assim como o quadro em cujo interior se exerce a atividade cognitiva de natureza epistecircmica que com o auxiacutelio de diferentes programas modais visa a atingir uma posiccedilatildeo veridictoacuteria suscetiacutevel de ser sancionada por um juiacutezo epistecircmico definitivordquo (GREIMAS COURTEacuteS 2012 p 533)
Esta postura de Emmerson parece se aplicar mais facilmente a algumas peccedilas do que a
outras O caso de Steven Takasugi eacute um exemplo de exploraccedilatildeo criativa da relaccedilatildeo causal ou
seja ela chama nossa atenccedilatildeo para esta relaccedilatildeo e ldquojogardquo com ela tornando-a importante e natildeo
secundaacuteria Em Strange Autumn (2003-4)118 para recitantevocalista percussionista e
playback eletrocircnico o compositor explora a dissociaccedilatildeo e o teatro mencionados Pode-se
perceber uma relaccedilatildeo instaacutevel entre accedilatildeo fiacutesica-visual e resposta aural e que agraves vezes causam o
efeito ventriacuteloquo Por vezes o fluxo sonoro corresponde ao que vemos o inteacuterprete fazer
mas por vezes ele finge executar o que foi preacute-gravado Por vezes a palavra que finge dizer eacute
a mesma que ouvimos preacute-gravada por vezes eacute outra Assim o fluxo visual e os fluxos
sonoros convergem e divergem dinamicamente A relaccedilatildeo entre accedilatildeo fiacutesica e visual e sua
resposta aural eacute usada assim como um paracircmetro composicional explorado dentro deste
teatro
Ainda eacute preciso considerar que a exploraccedilatildeo de tais possibilidades se daacute normalmente
no encontro com outras aacutereas artiacutesticas como a performance a danccedila o teatro e o cinema Tal
interdisciplinaridade natildeo estaacute no escopo deste trabalho mas o leitor interessado acharaacute
subsiacutedios teoacutericos e praacuteticos nestas praacuteticas e em outras jaacute mescladas como por exemplo o
teatro musical
Este sub-capiacutetulo trata da emancipaccedilatildeo do aspecto visual Ele sempre existe ldquocoladordquo
ao som percute-se (por exemplo) para ouvir determinado som A imagem de algueacutem
percutindo e o som resultante estatildeo sempre estreitamente relacionados O que acontece na
muacutesica mista eacute um descolamento destes dois aspectos (visualidade e sonoridade) que eacute
inerente a ela Toda a muacutesica mista apresenta em maior ou menor grau este descolamento Isto
permite que se considere este aspecto visual um elemento da textura um fluxo visual
36 TEXTURA NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
Na muacutesica instrumental especialmente do periacuteodo da praacutetica comum como
apresentado em 31 textura se refere aos componentes que soam compreende um aspecto
quantitativo (quantos componentes soam em concorrecircncia) e um qualitativo (interaccedilotildees inter-
relaccedilotildees e outros fatores de seus componentes) (BERRY 1987 184) No verbete textura do
118 Confira a performance de Mark Knoop Serge Vuille e Newton Armstrong disponiacutevel em lthttpsyoutube1y_kunv2kUogt Acesso em 17 jan 2019
99
100
EARS Rob Weale (2005) explica a noccedilatildeo na muacutesica instrumental e na muacutesica eletroacuacutestica
No seu sentido mais geral o termo eacute frequentemente usado de um modo altamente inconsistente Eacute de muitas maneiras usado para descrever recursos instrumentais e vocais utilizados sinocircnimos de timbre e sonoridade densidade vertical e construccedilatildeo de vozes e partes espaccedilamento de intervalos dentro de acordes e a natureza monofocircnica homofocircnica heterofocircnica polifocircnica e construccedilotildees musicais contrapontiacutesticas
Na muacutesica eletroacuacutestica eacute um termo altamente uacutetil na descriccedilatildeo do caraacuteter de sons e vaacuterios niacuteveis estruturais de sequecircncias de sons em termos de seu comportamento geral e detalhes e padrotildees internos119
Podemos questionar tal inconsistecircncia apontada por Weale na utilizaccedilatildeo do termo ldquono
seu sentido mais geralrdquo O fato de o termo abarcar coisas distintas e variadas natildeo
necessariamente signifique uma inconsistecircncia no seu uso De fato textura envolve todos os
aspectos apontados entretanto isso natildeo significa que seu uso eacute inconsistente e sim que
textura eacute uma questatildeo complexa Isto eacute estamos tratando de complexidades simultaneidades
e ambiguidades Eacute preciso um esforccedilo teoacuterico para tranccedilar esta textura com tantos aspectos e
ainda outros se somarmos os eletroacuacutesticos
A fim de lidar com este espaccedilo teoacuterico no acircmbito deste trabalho articulamos as
categorias de macro e microtextura (ver 31) A concepccedilatildeo de textura na muacutesica
eletroacuacutestica apresentada por Weale assemelha-se ao que denominamos microtextura -
iniciativas texturais a partir do pontilhismo de Webern ateacute as massas de Ligeti e Penderecki
(ver 314)
Em nosso levantamento bibliograacutefico natildeo encontramos menccedilatildeo quando tratando da
muacutesica eletroacuacutestica ao que chamamos macrotextura Entretanto quando nesta pesquisa
nos deparamos com a questatildeo da interaccedilatildeo na muacutesica mista (considerando apenas as questotildees
sonoro-morfoloacutegicas) eacute exatamente com esta ideia que lidamos Berry (1987 p 189) enfatiza
que ldquomudanccedilas na textura - certamente mudanccedilas quantitativas mas tambeacutem aquelas
envolvendo qualidades da textura - estatildeo frequentemente entre o que eacute mais prontamente
perceptiacutevel e apreciaacutevel na experiecircncia da muacutesicardquo120 Entendemos que o mesmo acontece na
119 Traduccedilatildeo nossa Original ldquoIn its most general musical sense the term is frequently used in a highly inconsistent fashion It is variously used to describe vocal and instrumental resources employed synonymous with timbre and sonority vertical density and construction of voices and parts interval spacing within chords and the nature of monophonic homophonic heterophonic polyphonic and contrapuntal musical constructions In electroacoustic music texture is a highly useful term in describing the character of sounds and various structural levels of sequences of sounds in terms of their overall behaviour and internal details and patterningsrdquo (WEALE 2005)
120 Traduccedilatildeo nossa Original ldquoChanges in texture-surely quantitative changes but those involving textural qualities as well-are often among the most readily perceptible and appreciable in the experience of musicrdquo
101
muacutesica mista ou mesmo na muacutesica puramente eletroacuacutestica Tendo em vista o levantamento
feito neste capiacutetulo uma recuperaccedilatildeo desta concepccedilatildeo de textura - numa dimensatildeo macro -
parece ser importante para a teoria da muacutesica eletroacuacutestica em geral
Aleacutem disso durante a pesquisa nos deparamos com a importacircncia do aspecto visual
para a percepccedilatildeo da performance da muacutesica mista Esta importacircncia eacute tamanha que alguns
compositores consideram este aspecto mais que apenas uma inerecircncia ou um ldquoparasitardquo da
performance mas o incorporam como um elemento da textura Assim eacute possiacutevel falarmos de
um fluxo visual na textura da muacutesica mista (ver 35)
A macrotextura da muacutesica eletroacuacutestica mista seria assim constituiacuteda por seus
componentes sonoros e visuais sejam melhor descritos por vozes sonoridades camadas
fluxos ou planos121 e ainda por seus (sub)componentes gestos microtexturas linhas gratildeos
eventos etc Permanece ainda a importacircncia da quantidade dos componentes e da qualidade
de sua relaccedilatildeo Quanto agrave quantidade os mesmos recursos de Berry (1987) poderiam ser
usados
a) Os fluxos satildeo representados com uma sequecircncia horizontal de nuacutemeros que indicam a
quantidade dos componentes de cada fluxo (ver Figura 8)
b) Uma curva indica em seu eixo vertical a quantidade de fluxos ao longo do tempo (ver
uacuteltima curva da Figura 8)
Quanto agrave qualidade nosso trabalho apontou os recursos teoacutericos do comportamento
contraponto e interaccedilatildeo gestual (343) Resumidamente
a) O comportamento (SMALLEY 1997) possibilita a articulaccedilatildeo de dois pares de
oposiccedilatildeo dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo e conflito-coexistecircncia que se manifestam em
modos de relacionamento como por exemplo inatividade-atividade Os fluxos podem
apresentar relaccedilotildees de causalidade Esta abordagem descritiva foca sobretudo no
significado das relaccedilotildees122
a) Uma estrutura contrapontiacutestica (WISHART 1996) necessita um princiacutepio arquitetural
e um princiacutepio dinacircmico O primeiro constitui-se de aacutereas sonoro-morfoloacutegicas o
segundo tem um aspecto horizontal e outro de organizaccedilatildeo vertical dos gestos
presentes nos fluxos Este uacuteltimo pode ser vizualisado em dois eixos homogecircneo-
(BERRY 1987 p 189)121 Para facilitar a exposiccedilatildeo das ideias tomaremos fluxo como um termo padratildeo embora dependendo do caso
a estrutura possa ser melhor descrita por algumas das alternativas apontadas122 Haacute inclusive relaccedilatildeo com estudos da significaccedilatildeo as oposiccedilotildees baacutesicas (domiacutenio-subordinaccedilatildeo por
exemplo) estatildeo presentes na articulaccedilatildeo do niacutevel fundamental do percurso gerativo do sentido (GREIMAS 2012 p 474-475)
heterogecircneo e interativo-independente (ver Quadro 3)
a) Os modelos de interaccedilatildeo de Bachrataacute (2010) possibilitam a identificaccedilatildeo de interaccedilotildees
gestuais classificadas de acordo com concepccedilotildees diferentes de gesto
Eacute interessante notar como no decorrer do texto passamos a utilizar a palavra relaccedilatildeo
mais do que interaccedilatildeo Isto se deve ao fato de que interaccedilatildeo como apontam diversos
dicionaacuterios pressupotildee uma reciprocidade Esta accedilatildeo reciacuteproca nem sempre se estabelece
ainda que possamos falar que haja algum tipo de relaccedilatildeo Referindo-nos a vozes e textura
falamos de interaccedilatildeo inter-relaccedilatildeo e outras descriccedilotildees qualitativas tratando de sonoridades
falamos em relaccedilotildees de interdependecircncia tratando de fluxos sonoros utilizamos o conceito de
comportamento123 (SMALLEY 2008) contraponto (WISHART 1996) e interaccedilatildeo gestual
(BACHRATAacute 2010) Os dois primeiros apresentam recursos para tratar de maior ou menor
interaccedilatildeo Para Wishart por exemplo interaccedilatildeo eacute um dos modos com que os fluxos podem se
relacionar na dimensatildeo vertical
A Figura 28 condensa nossa abordagem a fim de ilustrar as possibilidades da
macrotextura na muacutesica eletroacuacutestica mista
Como um adendo cabe salientar a importacircncia das mudanccedilas de textura para a
delimitaccedilatildeo da forma Sem adentrar a discussatildeo deste termo consideremos genericamente os
aspectos formais como aqueles relativos agrave estrutura de seccedilotildees ou ao percurso por diferentes
momentos de uma peccedila Mudanccedilas texturais podem evidenciar estes diferentes momentos
Algumas implicaccedilotildees formais do estudo da textura ficaratildeo evidentes em nossas anaacutelises
(capiacutetulo 4) e nas experiecircncias composicionais (capiacutetulo 5)
102
123 Novamente os conceitos desenvolvidos por Smalley (1997) satildeo aplicaacuteveis agrave quaisquer niacuteveis estruturais O autor salienta que ldquoencontrar o niacutevel ou dimensatildeo temporal lsquocertarsquo para aplicar os atributos destes conceitos deve permanecer sendo uma decisatildeo do perceptor [perceiver]rdquo (p 114 traduccedilatildeo nossa) Em nossa abordagem aplicamos sobre a ideia de fluxo sonoro
103
FIGURA 28 - ILUSTRACcedilAtildeO DE POSSIacuteVEIS COMPONENTES DA MACROTEXTURA DA MUacuteSICA ELE-
TROACUacute STIC A MISTA
P l a n o s
1TC a m a d a s
ITF l u x o s
I IcircV o z e s
^ - J J7b T H m r rffx R lt RaacutepidoS o n o n d a d e s
ITFluxo visual
C o m p o n e n t e s
Cada uma destas categorias aleacutem de ser formadacomposta por eventos gestos gratildeos notas etc pode ser formada por microtexturas ( SljjpEacute ) exceto a voz
Uacute gt Q T T R e l a ccedil otilde e s
bull de comportamento (SMALLEY 1996 2008)bull contrapontiacutesticas (WISHART 1996)bull de interaccedilatildeo gestual (BACHRATAacute 2010)
FONTE o autor (2019)
104
4 DISCUSSAtildeO E ANAacuteLISES
Direcionados por estas reflexotildees teoacutericas analisaremos trechos de trecircs peccedilas mistas
Estas foram escolhidas visando uma representaccedilatildeo das teacutecnicas de instrumento(s) e sons
eletrocircnicos fixados em suporte instrumento(s) e eletrocircnica em tempo real (live electronics)
instrumento(s) e sistema interativo abordadas no capiacutetulo 21 Esta representatividade natildeo
tem como motivaccedilatildeo evidenciar diferenccedilas na configuraccedilatildeo e desenvolvimento de fluxos
sonoros pelo contraacuterio como apresentado em 23 pensamos que as questotildees sonoro-
morfoloacutegicas devem ser tomadas independentemente da teacutecnicatecnologia envolvida Assim
a escolha de peccedilas de diferentes teacutecnicas tem a funccedilatildeo de evidenciar que o pensamento
musical discutido pode ser aplicado em todas elas As anaacutelises tecircm como objetivos destacar a
presenccedila de fluxos distintos a maneira como se relacionam uns com os outros e a importacircncia
formal destas relaccedilotildees
Devido agrave proacutepria ldquoliquidezrdquo tanto das metaacuteforas utilizadas quanto dos proacuteprios
elementos musicais a potencialidade de ambiguidades e muacuteltiplas interpretaccedilotildees eacute expandida
Portanto natildeo se tratam de explicaccedilotildees fechadas das peccedilas mas de olhares e perspectivas que
podem ser uacuteteis para o entendimento geral da muacutesica mista tanto na atividade teoacuterica e
analiacutetica quanto composicional
41 DESINTEGRATIONS DE TRISTAN MURAIL
Desintegrations (1982-3) comissionada pelo IRCAM e primeiramente executada pelo
Ensemble InterContemporain em 1983 foi escrita para 17 instrumentos e sons sintetizados
por computador fixados em suporte Do ponto de vista da relaccedilatildeo com a tecnologia o regente
eacute o performer que assume a tarefa de sincronia com a parte eletrocircnica preacute-elaborada Murail
utiliza uma faixa de cliques que o regente deve ouvir atraveacutes de fones-de-ouvido abertos124 O
compositor salienta que a parte fixa ldquodeve estar em perfeita sincronizaccedilatildeo daiacute a necessidade
de lsquocliquesrsquo sincronizadores que o regente deve seguirrdquo125 (p 6) Os cliques satildeo usados apenas
em momentos estrateacutegicos especialmente no comeccedilo de cada seccedilatildeo Considerando a
classificaccedilatildeo de Ding (apud SCHULZ 2010 p 27-29) (ver 211) a peccedila apresenta uma
124 Os fones-de-ouvido abertos natildeo isolam os sons externos neste caso os sons instrumentais e eletrocircnicos que o regente precisa ouvir
125 Original ldquoIt should be in perfect synchronization hence the necessity of synchronisings ldquoclicksrdquo that the conductor must followrdquo (MURAIL 2004 p 6)
105
sincronizaccedilatildeo estrita a partir de meacutetrica fixa ou seja a sincronia acontece por uma escrita
riacutetmica precisa tanto dos eventos instrumentais quanto eletroacuacutesticos No que se refere agrave
relaccedilatildeo com a tecnologia na performance uma anaacutelise da ldquointeraccedilatildeordquo com os sons fixados
poderia abordar questotildees mais pontuais de sincronia (deixas presentes nos sons eletrocircnicos
por exemplo) questotildees de equiliacutebrio de intensidade entre instrumentos e eletrocircnicos entre
outras Nossa anaacutelise por outro lado se direciona agraves relaccedilotildees sonoro-morfoloacutegicas e busca
identificar na peccedila alguns aspectos jaacute abordados no capiacutetulo 3 o sintagma (GUIGUE 2011) o
princiacutepio arquitetural (WISHART 1996) a divisatildeo dos fluxos entre outros
No texto introdutoacuterio da partitura o compositor indica que todo o material usado tem
origem em anaacutelises decomposiccedilotildees e reconstruccedilotildees de espectros harmocircnicos ou inarmocircnicos
(MURAIL 2004 p 6) Estes espectros satildeo em sua maioria de sons graves do piano de
instrumentos da famiacutelia dos metais e de violoncelo Alguns dos procedimentos espectrais satildeo
explicitados
- fracionamento apenas uma regiatildeo de um espectro eacute utilizada (por exemplo os sons de sino no comeccedilo obtidos pelo fracionamento de sons de piano)- filtragem certos elementos componentes satildeo exagerados ou suprimidos- exploraccedilatildeo espectral movimento no interior de um som os elementos que o compotildeem satildeo ouvidos um apoacutes o outro o timbre se torna melodia (por exemplo a terceira seccedilatildeo sons de sinos pequenos surgem a partir de uma desintegraccedilatildeo dos timbres da clarineta e da flauta)- criaccedilatildeo de espectro inarmocircnico Aqueles que satildeo lineares satildeo feitos adicionando-se ou subtraindo-se frequecircncias (por uma analogia com a modulaccedilatildeo por anel ou de frequecircncia) os lsquonatildeo-linearesrsquo satildeo feitos pelo remodelamento [twisting] de um espectro ou pela descriccedilatildeo de um curva de frequecircncia (por exemplo a penuacuteltima seccedilatildeo - um remodelamento gradual de um som grave de trombone) (MURAIL 2004 p 6 traduccedilatildeo nossa126)
Estes procedimentos satildeo aplicados tanto na parte instrumental quanto na parte
eletrocircnica O compositor explica em poucas frases o tipo de relaccedilatildeo entre estes meios
126 Original ldquo Several types of spectrum treatment are used in this piece- fractioning one region only of a spectrum is used (eg bells sound at the beginning obtained by fractioning piano sounds)- filterings certain component elements are exaggerated or toned down- spectral exploration movement within a sound the component elements are heard one after the other the timbre becoming melody (eg 3rd section - sounds of small bells arising from the disintegration of clarinet and flute timbres)- creation of inharmonic spectra Thos that are linear are made by adding or substracting frequencies (by analogy with ring or frequency modulation) the lsquonon-linearrsquo are made by twisting a spectrum or by describing a frequency curve (eg penultimate section - the gradual twisting of a low trombone sound)rdquo (MURAIL 2004 p 6)
106
Haacute portanto uma origem comum para ambos tape e instrumentos sendo sua relaccedilatildeo uma de complementariedade Frequentemente o tape exagera o caraacuteter dos instrumentos difrata ou desintegra seu timbre ou amplifica os efeitos orquestrais127 (MURAIL 2004 p 6)
Esta origem comum e a consequente relaccedilatildeo de complementariedade apontam para
uma tendecircncia de que os fluxos se componham pela soma por uma relativa fusatildeo dos meios
instrumental e eletrocircnico De fato este eacute o paradigma mais presente na peccedila Entretanto isto
natildeo significa que natildeo se apresentem muacuteltiplos fluxos cuja interaccedilatildeo possa ser analisada
apenas que preponderantemente estes fluxos satildeo compostos por sons instrumentais e
eletrocircnicos em conjunccedilatildeo
O computador natildeo tenta entretanto qualquer simulaccedilatildeo direta dos instrumentos em questatildeo Antes eacute uma questatildeo de usar certos espectros como analogias estruturais para todo o conteuacutedo de alturas da obra (seja nos instrumentos ou na fita) e tambeacutem para gerar suas formas de grande escala Isso garante que os sons do computador e os que estatildeo na fita tenham uma unidade comum que garante que eles mantenham uma unidade orgacircnica audiacutevel um com o outro - de fato o grau com que os sons gravados e instrumentais se fundem durante o trabalho eacute incomumente consistente tendo em vista a tecnologia de seu tempo (ANDERSON 1996 traduccedilatildeo nossa128)
Murail explica que existem sete seccedilotildees estaacutegios diferentes na peccedila e que a mudanccedila
de um estaacutegio para outro acontece por uma ldquotransformaccedilatildeo-transiccedilatildeo ou pela liberaccedilatildeo
[unleashing] de um lsquoefeito thresholdrsquordquo (p 6) Cada estaacutegio passa por uma transformaccedilatildeo na
sua base harmocircnica de um espectro harmocircnico para um inarmocircnico ou vice-versa Isso cria
nas palavras do compositor ldquomovimentos de sombras e luz acompanhados por movimentos
de agitaccedilatildeo crescente ou decrescente de ordenaccedilatildeo ou desordenaccedilatildeo riacutetmicardquo 129 (MURAIL
2004 p 6)
Harmonia e timbre se distinguem muito pouco neste contexto e satildeo aspectos
fundamentais na construccedilatildeo da forma musical em Desintegrations Anthony Cornicello (2000)
127 Original ldquoThere is therefore one origin for both tape and instruments their relationship being one of complementarity Often the tape exaggerates the character of the instruments diffracts or disintegrates their timbre or amplifies the orchestral effects It should be in perfect synchronization hence the necessity of synchronizing ldquoclicksrdquo that the conductor must followrdquo (MURAIL 2004 p 6)
128 Original ldquoThe computer does not however attempt any direct simulation of the instruments concerned Rather it is a question of using certain spectra as structural analogies for the entire pitch content of the work (whether on instruments or tape) and likewise to generate its large-scale forms This ensures that the computer sounds and those on tape have a common unity which ensures that they maintain an audible organic unity the one with the other - indeed the extent to witch taped and instrumental sounds fuse and blend throughout the work is unusually consistent not least given the technology of the timerdquo (ANDERSON 1996)
129 Original ldquoThis creates movements of shade and light accompanied by movements of increasing or decreasing agitation of rhythmic ordering or disorderingrdquo (MURAIL 2004 p 6)
apresenta uma anaacutelise do desenvolvimento de acordes-timbre e sua influecircncia sobre a
estrutura da peccedila suas frases e cadecircncias tanto no acircmbito de cada seccedilatildeo quanto da peccedila como
um todo Nossa anaacutelise abordaraacute a terceira seccedilatildeo que comeccedila aos 645 e dura cerca de 320
A Figura 29 apresenta os acordes-timbre de comeccedilo e de fim desta seccedilatildeo de acordo com
Cornicello
FIGURA 29 - ACORDES-TIMBRE INICIAL E FINAL DA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN MURAIL
trade mdashbull-----------------k-
107
FONTE Extraiacutedo de Cornicello (2000 p 70)
Assim sendo fica claro o direcionamento de um espectro harmocircnico para um
inarmocircnico nesta seccedilatildeo Apenas por este aspecto jaacute eacute possiacutevel perceber a ldquotransformaccedilatildeo de
uma aacuterea tiacutembrica ou sonoro-morfoloacutegica em outrardquo (ver 343) caracterizando assim um
princiacutepio arquitetural da seccedilatildeo Este princiacutepio pode ser melhor analisado se considerarmos
tambeacutem outros aspectos das aacutereas sonoro-morfoloacutegicas da seccedilatildeo Ao menos quatro aacutereas
podem ser identificadas Tal identificaccedilatildeo eacute expressa a seguir de maneira geral tendo em vista
o aspecto praacutetico e natildeo essencialmente descritivo Satildeo elas na ordem em que surgem na peccedila
a) ataques agudos e ressonacircncias
b) ressonacircncias filtradas
c) melodia do corne inglecircs
d) atividade riacutetmica das cordas
Cada uma das aacutereas sonoro-morfoloacutegicas elencadas surge a partir da anterior Como
veremos isso se daacute pela derivaccedilatildeo ou decomposiccedilatildeo de um fluxo em outros Tal abordagem
destoa em parte da perspectiva de Wishart que em nossa leitura previa um princiacutepio
arquitetural comum a todos os fluxos tal qual as tonalidades eram comuns agraves vozes no
contraponto tradicional (WISHART 1996 p 116-117) No caso desta terceira seccedilatildeo a aacuterea
tiacutembrica ou seja o conteuacutedo harmocircnico-tiacutembrico representa um uacutenico princiacutepio arquitetural
geral entretanto dentro deste princiacutepio comum outros elementos caracterizam aacutereas sonoro-
morfoloacutegicas distintas
No primeiro momento desta seccedilatildeo Murail trabalha com a exploraccedilatildeo espectral
conforme indica em sua descriccedilatildeo dos procedimentos espectrais (p 105) desdobrando no
tempo os componentes do espectro Na nota de programa da peccedila Anderson apresenta a
seguinte descriccedilatildeo do primeiro momento da seccedilatildeo III ldquodensas nuvens de sonoridades como
de sino agudas derivadas da desintegraccedilatildeo dos espectros da flauta e da clarineta descem para
revelar sua origem instrumentalrdquo (ANDERSON 1996 traduccedilatildeo nossa130) A desintegraccedilatildeo dos
timbres da clarineta e da flauta eacute distribuiacuteda entre piano crotales glockenspiel e sons
eletrocircnicos formando gestos compostos de notas agudas curtas mas ressonantes que satildeo
ritmicamente ativas na primeira parte do gesto restando apenas sua ressonacircncia na segunda
parte A Figura 30 mostra os dois gestos iniciais desta seccedilatildeo
FIGURA 30 - COMPASSOS INICIAIS TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN MURAIL
108
FONTE Extraiacutedo de Murail (2004 p 29)
Podemos observar a sucessatildeo destes gestos como um fluxo isso se deve
principalmente agrave estabilidade do seu conteuacutedo espectral Evidentemente poderiacuteamos focar a
130 Original ldquoIII - dense clouds of high bell-like sonorities derived from the disintegration of flute and clarinet spectra descend to reveal their instrumental origin - a harmonic spectrum upon F (with the fundamental missing) evolves through flowing melodic figures on the English horn highlighting successive components of the spectra - the music drifts towards inharmonyrdquo (ANDERSON 1996)
atenccedilatildeo sobre os aspectos internos deste fluxo distinguindo uma dinacircmica interna dos seus
componentes abordando esta microtextura Entretanto nosso foco estaacute num niacutevel mais amplo
de agrupamento de acircmbito mais geral do que chamamos macrotextura
A configuraccedilatildeo bipartida destes gestos remonta agrave ideia de sintagma de Guigue (ver
321) Os ataques constituem a parte determinante do sintagma enquanto a ressonacircncia
constitui a parte determinada Ambas as partes do gesto satildeo desenvolvidas caracterizando o
que Wishart chama evoluccedilatildeo gestual Inicialmente esta evoluccedilatildeo gestual acontece por uma
expansatildeo temporal da parte determinante
A partir do quinto gesto (compassos 11 a 13 da seccedilatildeo) a parte determinada apresenta
um novo material um som eletrocircnico longo proveniente do espectro do laacute3 da flauta mas
sem a fundamental somado ao proacuteprio laacute3 na flauta sustentado que comeccedila dal niente e
termina al niente (Figura 31) A partir tambeacutem deste ponto a parte determinante do gesto
seguinte comeccedila a entrar antes do teacutermino da parte determinada do gesto anterior Estes
fatores colaboram para a percepccedilatildeo de um novo fluxo que comeccedila a se estabelecer
A parte determinada antes apenas uma consequecircncia da determinante agora engendra
um novo fluxo sonoro independente Neste quinto gesto cada parte deste sintagma que
inicialmente constituiacutea um uacutenico fluxo eacute desenvolvida de modo a se formarem dois fluxos
distintos A proacutepria ideia de sintagma natildeo se sustenta completamente deste momento em
diante pois natildeo haacute mais uma clara relaccedilatildeo de consequecircncia Natildeo satildeo mais os ataques que
determinam as ressonacircncias mas estas tomam um rumo proacuteprio independente daqueles
Este ponto de mudanccedila de surgimento de um segundo fluxo pode ser entendido pela
metaacutefora do gatilho quando um gesto de uma parte parece iniciar um evento ou uma mudanccedila
em uma outra parte de maneira minimamente clara O gesto de ataques agudos parece iniciar
causar o gesto de ressonacircncia filtrada do novo fluxo A ideia de reaccedilatildeo do sintagma de gatilho
e de causalidade respectivamente de Guigue (2011) Wishart (1996) e Smalley (2008 1997)
se relacionam estreitamente Entretanto devemos diferenciar a preocupaccedilatildeo descritiva de
cada ideia O sintagma natildeo se refere apenas a relaccedilotildees entre fluxos distintos como eacute o caso do
gatilho de Wishart Tampouco a causalidade tem apenas este foco Esta ldquoocupa-se mais com
um som agindo sobre outro seja causando a ocorrecircncia de um segundo evento seja
instigando a mudanccedila em um som que jaacute se desenrolavardquo (SMALLEY 2008 p 11) As trecircs
no entanto coincidem na explicaccedilatildeo deste ponto de Desintegrations
109
110
FIGURA 31 - COMPASSOS 11 A 13 DA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISshy
TAN MURAIL
FONTE Extraiacutedo de Murail (2004 p 30)
De modo semelhante a outra aacuterea sonoro-morfoloacutegica (melodia do corne inglecircs) surge
do interior deste fluxo de ressonacircncias filtradas A Figura 32 apresenta a entrada da melodia
do corne inglecircs
111
FIGURA 32 - FLUXO DO CORNE INGLEcircS NA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS ( 1982-3) DE
TRISTAN MURAIL
FONTE Extraiacutedo de Murail (2004 p 34 grifo nosso)
A aacuterea morfoloacutegica nomeada anteriormente atividade riacutetmica das cordas surge como
uma resposta agrave melodia do corne inglecircs no compasso 47 desta seccedilatildeo Neste ponto a melodia
do corne inglecircs estaacute distribuiacuteda entre sons eletrocircnicos corne inglecircs e fagote A atividade
riacutetmica das cordas em resposta daacute origem a um novo fluxo o uacutenico cujos sons eletrocircnicos
natildeo participam conjuntamente - ao menos isso natildeo eacute explicitado na partitura nem evidente na
escuta da gravaccedilatildeo131 Antes deste ponto as cordas compunham tambeacutem o fluxo de
ressonacircncias filtradas Assim embora apresentem ali uma resposta agrave melodia do corne inglecircs
tecircm sua origem no fluxo no qual se inseriam anteriormente
O desenvolvimento dos fluxos nesta seccedilatildeo eacute ilustrado abaixo na Figura 33 A linha
preta representa a continuidade dos fluxos mas desconsidera sua importante transformaccedilatildeo
Esta natildeo soacute eacute importante porque representa um processo um desenvolvimento dos materiais
mas porque a mudanccedila dos materiais que compotildeem os fluxos representa tambeacutem a mudanccedila
131 A anaacutelise se baseou na gravaccedilatildeo de Ensemble l rsquoItineacuteraire sob a regecircncia de Yves Prin
112
da relaccedilatildeo entre eles
FIGURA 33 - FLUXOS SONOROS NA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN
MURAIL (645 a 1006)
FONTE o autor (2019)
No momento 1 podemos perceber um domiacutenio dos ataques agudos sobre as
ressonacircncias Conforme estas desenvolvem-se num novo fluxo (ressonacircncias filtradas) esta
relaccedilatildeo perde sua forccedila Isto acontece devido a uma diminuiccedilatildeo da densidade riacutetmica132 do
primeiro e uma acumulaccedilatildeo dinacircmica somada ao aumento da densidade harmocircnica do
segundo A diminuiccedilatildeo da densidade riacutetmica eacute evidente e progressiva num primeiro momento
mas deve-se ressalvar uma retomada da alta densidade nos compassos 31 a 33 desta seccedilatildeo
antes da entrada do corne inglecircs Trata-se de um desvio da ldquolinearidaderdquo com que diminuiacutea o
nuacutemero de ataques agudos133 Assim haacute uma transformaccedilatildeo na relaccedilatildeo domiacuteniosubordinaccedilatildeo
destes dois primeiros fluxos em sentido contraacuterio Ataques agudos vatildeo do domiacutenio para um
natildeo-domiacutenio e as ressonacircncias da subordinaccedilatildeo para uma natildeo-subordinaccedilatildeo Sob a metaacutefora
dos planos podemos afirmar que haacute um deslocamento do primeiro plano para um plano de
fundo dos ataques agudos134 Por outro lado as ressonacircncias se deslocam do plano de fundo
para um primeiro plano ao ponto de darem origem agrave melodia do corne inglecircs
A dualidade gestotextura como entendida por Smalley (ver 332) tambeacutem se
apresenta na relaccedilatildeo destes fluxos O primeiro eacute composto por gestos enquanto o segundo
tem um caraacuteter textural Esta constataccedilatildeo tem relaccedilatildeo com o eixo conflitocoexistecircncia que
demarca as relaccedilotildees temporais do campo comportamento Os dois fluxos competem
temporalmente (conflito) num primeiro momento haacute uma intercalaccedilatildeo entre ataques agudos e
132 Nuacutemero de ataques por tempo133 Este evento dos compassos 31 a 33 marca tambeacutem a entrada das cordas com maior presenccedila nesta seccedilatildeo134 Este deslocamento soacute iraacute se concretizar efetivamente apoacutes os mencionados compassos 31 a 33 e a entrada do
corne inglecircs mas a tendecircncia de ir para o plano de fundo se mostra jaacute neste primeiro momento
113
ressonacircncias filtradas A medida em que se desenvolvem passam a confluir em coexistecircncia
Isto aponta tambeacutem para uma coordenaccedilatildeo de movimento que passa de um estado mais justo
para outro mais frouxo Desta perspectiva analiacutetica (SMALLEY 1997) estas relaccedilotildees
concernem agrave atividade-inatividade dos fluxos (modo de relacionamento) E da mesma forma
haacute um movimento contraacuterio em relaccedilatildeo agraves mudanccedilas os ataques agudos mudam da atividade
em direccedilatildeo agrave inatividade (vide a diminuiccedilatildeo da densidade riacutetmica) enquanto que as
ressonacircncias filtradas partem da inatividade em direccedilatildeo agrave atividade Este uacuteltimo
direcionamento tem seu aacutepice no desmembramento seguinte do interior das ressonacircncias
filtradas surge a melodia do corne inglecircs mais ativa e gestual em comparaccedilatildeo agrave textura
anterior das ressonacircncias
A tabela de Wishart apresentada em 343 oferece um meio graacutefico para pensar estas
mudanccedilas no tipo de relaccedilatildeo entre os fluxos A figura 34 apresenta a relaccedilatildeo entre os fluxos
ataques agudos e ressonacircncias filtradas no primeiro momento da seccedilatildeo em questatildeo
FIGURA 34 - RELACcedilAtildeO ENTRE DOIS FLUXOS EM DESINTEGRATIONS (1982-3) SOBRE O QUADRO DE WISHART (1996)
independente
Icirc
interativo
similar dissimilar
(homogecircneo) (heterogecircneo)
FONTE o autor (2019)
Os dois fluxos satildeo similares inicialmente (ponto a na Figura 34) pois um eacute a
ressonacircncia do outro possuem as mesmas frequecircncias Mas porque natildeo estatildeo sincronizados
natildeo eacute completa a homogeneidade Os fluxos se diferenciam espectralmente conforme se
desenvolvem (ponto b) mas ainda guardam a relaccedilatildeo de interaccedilatildeo (gatilho) posteriormente
perdem esta relaccedilatildeo e se mantecircm independentes e heterogecircneos (c)
As notas sobre a peccedila no siacutetio do compositor apresentam a seguinte descriccedilatildeo do
Momento 2
independecircncia c 1independecircncia
semi-paralelismo interaccedilatildeo
paralelismoa
b gatilho
114
- um espectro harmocircnico sobre faacute (com a fundamental ausente) evolui atraveacutes de figuras meloacutedicas fluiacutedas no corne inglecircs destacando componentes sucessivos do espectro (ANDERSON 1996 traduccedilatildeo nossa135)
Neste momento os dois fluxos anteriores embora ainda presentes se deslocam para
um plano de fundo enquanto a melodia do corne inglecircs assume o primeiro plano Este fluxo
natildeo eacute composto apenas pelos sons de corne inglecircs mas por ele somado aos sons eletrocircnicos e
agraves vezes ao fagote Ele domina sobre os outros dois Os fluxos decorrem independentemente
todos no processo de transformaccedilatildeo para um espectro inarmocircnico No momento 3 conforme a
descriccedilatildeo no site do compositor se daacute a conclusatildeo deste processo ldquoa muacutesica desliza para a
inarmoniardquo (traduccedilatildeo nossa136)
As observaccedilotildees analiacuteticas apontadas podem ao menos indicar a importacircncia do
desenvolvimento dos fluxos para a percepccedilatildeo de aspectos formais desta seccedilatildeo Uma anaacutelise
que fatiasse a seccedilatildeo em trechos natildeo daria conta das nuances de derivaccedilatildeo de um trecho a partir
de outro o que foi evidenciado por nossa anaacutelise Uma anaacutelise que observasse a
transformaccedilatildeo harmocircnico-tiacutembrica da seccedilatildeo veria possivelmente uma uacutenica estrutura
passando de um espectro harmocircnico para um inarmocircnico sem considerar o desmembramento
apontado Natildeo se trata de desmerecer estas importantes perspectivas antes de sublinhar a
singularidade da perspectiva aqui apresentada
42 STRANGE AUTUMN DE STEVEN KAZUO TAKASUGI
Strange Autumn (2003-4) eacute uma peccedila com forte caraacuteter de teatro musical para
recitante-vocalista percussionista amplificaccedilatildeo eletrocircnica e playback gravado Note-se nesta
descriccedilatildeo de instrumentaccedilatildeo copiada da partitura que a amplificaccedilatildeo eletrocircnica eacute encarada
como um elemento essencial em peacute de igualdade com os performers Isso se deve
principalmente agrave exploraccedilatildeo de sons de baixa projeccedilatildeo como microssons vocais (recitante-
vocalista) e sons de folhas de caderno (percussionista) Por consequecircncia o papel do
engenheiro de som a quem tambeacutem orientaccedilotildees satildeo dirigidas na partitura eacute de fundamental
importacircncia
A sincronizaccedilatildeo entre sons eletrocircnicos e instrumentais se daacute atraveacutes de um click track
que ambos os performers devem ouvir em seus fones-de-ouvido Esta faixa possui cliques a
135 Original ldquo- a harmonic spectrum upon F (with the fundamental missing) evolves through flowing melodic figures on the English horn highlighting successive components of the spectrardquo (ANDERSON 1996)
136 Original ldquothe music drifts towards inharmonyrdquo (ANDERSON 1996)
115
cada segundo bem como uma indicaccedilatildeo verbal a cada cinco segundos Eacute disponibilizada uma
versatildeo alternativa em que apenas a indicaccedilatildeo verbal estaacute presente (sem cliques)
No texto em que trata de uma performance da peccedila Takasugi menciona um sistema de
live electronics
Os live electronics foram projetados por Michael Acker da SWR Experimentalstudio em Freiburg Consistia em geral em um setup de alto-falantes de oito canais controlado pelo Matrix-Mixer do Experimentalstudio regulando a espacializaccedilatildeo o processamento ao vivo e o playback preacute-gravado incluindo espacializaccedilatildeo com o Halaphon o processador de efeitos Eventide Orville como um fragmentador fonecircmico patches de MaxMSP para siacutentese cruzada e patches jitter bem como uma unidade de reverberaccedilatildeo Vale a pena notar que a configuraccedilatildeo dos alto-falantes de oito canais tem duas sub-estruturas distintas a estrutura espacial completa de oito canais com oito faixas distintas e um a estrutura esteacutereo de dois canais que utiliza tanto os dois quanto os quatro alto-falantes frontais mais proacuteximos dos performers no palco com apenas duas faixas (esquerda e direita) distintas Estes dois espaccedilos satildeo designados como ldquotempestaderdquo (8-faixas) e ldquopalcordquo (2-faixas) respectivamente (TAKASUGI 2006 p 4 traduccedilatildeo nossa137)
Esta configuraccedilatildeo se refere a uma performance especiacutefica em que se apresenta um
modelo misto das opccedilotildees apresentadas em 21 A partitura e o material a que tivemos acesso
diretamente com o compositor entretanto apresenta uma versatildeo em que os sons eletrocircnicos
satildeo preacute-gravados em uma faixa em esteacutereo mas que deve ser projetada em sistema octafocircnico
ou no miacutenimo quadrafocircnico (canal da esquerda para alto-falantes agrave esquerda e canal da direita
para alto-falantes agrave direita)
O compositor explora os mundos do preacute-gravado e do ao vivo de maneira anaacuteloga a
um livro de poemas em ediccedilatildeo biliacutengue Em seu texto ele questiona se ldquouma traduccedilatildeo pode
ser mais lsquooriginalrsquo que a original isto eacute se pode possuir alguma qualidade que aparentemente
precede o originalrdquo (TAKASUGI 2006 p 5) Com tal metaacutefora Takasugi explora o preacute-
gravado e o ao vivo
Uma vez que tanto a recitaccedilatildeo ao vivo quanto a preacute-gravada satildeo transmitidas pelos mesmos alto-falantes haacute uma ambiguumlidade de que tudo ao vivo poderia ser preacute- gravado e tudo preacute-gravado poderia ser ao vivo Isso permite uma incompatibilidade
137 Original ldquoThe live electronics were designed by Michael Acker of SWRrsquos Experimentalstudio in Freiburg This consisted generally of an eight-channel speaker setup controlled by the Experimentalstudiorsquos MatrixshyMixer regulating spatialization live processing and pre-recorded playback including halaphon spatialization the Eventide Orville Effects Processor as a phonemic fragmenter MaxMSP patches for cross-synthesis and jitter patches as well as a reverberation unit It is worth noting that the eight-channel speaker setup has two distinct sub-structures the full eight-channel spatial structure with eight distinct tracks and a two-channel stereo structure that utilizes either the front two or front four speakers closest to the performers on stage with only two (left and right) distinct tracks These two spaces are designated as lsquostormrsquo (8-track) and lsquostagersquo (2-track) respectivelyrdquo (TAKASUGI 2006 p 4)
116
potencialmente catastroacutefica entre a localizaccedilatildeo do agente sinal ao vivo (aqui os laacutebios do recitante) e a atual localizaccedilatildeo percebida do sinal no espaccedilo (TAKASUGI 2006 p 5 traduccedilatildeo nossa138)
Esta ambiguidade que se estabelece faz com que natildeo haja uma divisatildeo expliacutecita entre o
mundo ao vivo e o preacute-gravado Alguns sons que foram preacute-gravados parecem vir do recitante
devido a uma sincronizaccedilatildeo labial Por outro lado o recitante deve executar sons vocais com
cortes exagerados proacuteprios dos sons preacute-gravados Assim os mundos preacute-gravado e ao vivo
espelham um ao outro assegurando nas palavras do compositor ldquouma confusatildeo consistenterdquo
(TAKASUGI 2006 p 5) Esta confusatildeo se impotildee agrave percepccedilatildeo de fluxos sonoros distintos
Natildeo eacute possiacutevel traccedilar uma linha clara que separe sons do palco (projetados tambeacutem pelos alto-
falantes) e sons preacute-gravados em fluxos separados pelo contraacuterio eacute em conjunto que eles
formam os fluxos Estes se colocam em relaccedilatildeo ao aspecto visual da performance E esta
relaccedilatildeo eacute o objeto desta anaacutelise Portanto natildeo nos interessa analisar o surgimento dos fluxos e
suas derivaccedilotildees - anaacutelise que provavelmente se mostraria frutiacutefera Nossa intenccedilatildeo eacute apontar
relaccedilotildees instaacuteveis que o fluxo visual estabelece com os fluxos sonoros
Neste contexto percebemos a possibilidade do uso das metaacuteforas de plano e de fluxo
como adequadas Percebemos planos distintos em relaccedilatildeo agrave distacircncia com que se apresentam
os sons mais perto ou mais longe Entretanto percebemos fluxos distintos quando somando
a este aspecto outras caracteriacutesticas sonoro-morfoloacutegicas satildeo consideradas especialmente seu
aspecto referencial sons vocais sons de objetos sons de mosca voando etc Por motivos
praacuteticos mais do que descritivos nomearemos os fluxos de acordo com estas referecircncias
Recorde o leitor que a percepccedilatildeo da fonte sonora que pode corresponder mais ou menos agrave
verdadeira fonte eacute um aspecto importante para a percepccedilatildeo de um fluxo auditivo
A peccedila baseia-se em poemas biliacutengues de Weiland Hoban e se divide em duas partes
Parte 1a Leaf-wort Parte 1b Blatt-word Parte 2 Interiors Der Wuumlrfel Die Zweibel (The
Etching) Nossa anaacutelise abordaraacute a parte 1b que vai dos 240 aos 450139 A Figura 35
apresenta um excerto da partitura do iniacutecio desta seccedilatildeo
138 Original ldquoSince both live and pre-recorded recitation transmit from the same speakers there is an ambiguity that everything live could be pre-recorded and everything pre-recorded could be live This allows for a potentially catastrophic mismatch between the location of the live signal agent (here the lips of the reciter) and the actual perceived location of the signal in the spacerdquo (TAKASUGI 2006 p 5)
139 O trecho compreende de cerca de 3rsquo30rdquo a cerca 5rsquo30rdquo do viacutedeo da performance de Mark Knoop Serge Vuille e Newton Armstrong utilizado para anaacutelise Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatch v= 1y_kunv2kUoampt= 132sgt
FIGURA 35 - INiCIO DA PARTE 1B DE STRANGE AUTUMN DE STEVEN KAZUO TAKASUGI
PART lb BLATT-WORDBlatt-word
2 - 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49Tape-Storm
Tape-Stage
Reciter
117
Perc
2 - 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59Tape-Storm
Tape-Stage
Reciter
Perc
FONTE TAKASUGI (2016)
Esta peccedila apresenta diversos modos de execuccedilatildeo para ambos os performers O texto
sobre linha tracejada para o recitante deve ser lido sem respiraccedilatildeo nenhum som vocal deve
ser ouvido exceto quando destacados com fundo cinza Neste caso as palavras satildeo faladas
normalmente O compositor tambeacutem utiliza a notaccedilatildeo (z) para identificar partes em que
nenhum som eacute emitido apenas eacute feita uma sincronizaccedilatildeo labial Da parte do performer este
modo eacute apenas visual
O princiacutepio arquitetural (WISHART 1996) desta seccedilatildeo apresenta duas aacutereas sonoro-
morfoloacutegicas cada uma delas prepondera em uma das duas partes em que se divide a seccedilatildeo A
primeira apresenta sons mais relacionados ao recitante (fragmentos da leitura entre outros)
enquanto que a segunda apresenta sons relacionados ao percussionista (sons de folhas) Haacute
uma transiccedilatildeo dos 347 aos 413 os movimentos do percussionista intensificam mas
continua a leitura do texto pelo recitante Apoacutes este periacuteodo o recitante congela ldquoFREEZErdquo
expressa a partitura isto eacute nenhuma atividade
Em relaccedilatildeo aos fluxos sonoros se apresenta o fluxo visual os performers no palco Na
(ldquoFLIES ldquo)word-leaf auf der Seite auf which das Wort-Blatt sich dreht indem ich die Seiten durchblaumltte-word-leaf auf der Seite auf which das Wort-Blatt sich dr ht indem ich die Seiten durchblaumltte-
(grasp top page only)
L H 1RH euromdash
Hold turned ( 76 1 77)Hoidcorner
LOu 11 1
Defaultresting
lsquoFLIESrdquoBlatt-word the leaf treeless on welchem the
(gray higlighted words are normally voiced and take precedence over other instructions)
Blatt-word the leaf treelessf articulate recitation lsquolsquowithout breathing rsquo
on welchem theDo not pop b s ps
andfrsquos
Computation BookldquoAs i f still conducting a Japanese tea ceremony rsquo RH
) 7 6 I 7 7(grasp top page only)
118
primeira parte da seccedilatildeo foram encontrados seis tipos de correspondecircncia entre o fluxo visual
do recitante140 e os fluxos sonoros
A accedilatildeo visual do recitante parece produzir uma reaccedilatildeo aural do(s) fluxo(s)
a) sons vocaisleitura 1 (perto)
b) sons de objetos
c) leitura 2 (longe)
d) sons vocaisleitura (perto) e sons de objetos
e) sons vocaisleitura 1 (perto) e leitura 2 (longe)
f) ou pode se apresentar independente de qualquer fluxo sonoro
O Quadro 4 apresenta uma ilustraccedilatildeo dos tipos de relaccedilatildeo entre fluxo visual e sonoro
no trecho analisado Esta figura natildeo representa uma linha do tempo mas dois momentos nos
140 Neste trecho a accedilatildeo visual do percussionista natildeo estaacute diretamente relacionada a nenhum fluxo sonoro
119
quais as relaccedilotildees expressas na tabela se apresentam em ordem diversa Por exemplo a relaccedilatildeo
c) acontece diversas vezes na primeira parte
A voz ao vivo do recitante se confunde com uma leitura preacute-gravada e pode ser
categorizada no fluxo leitura 2 (longe) Este fluxo eacute composto por ambos sons preacute-gravados e
sons ao vivo Identificar as relaccedilotildees destes dois componentes no interior do fluxo natildeo eacute tatildeo
importante para nossa anaacutelise Para nosso objetivo eacute suficiente designaacute-lo como um fluxo
sonoro e apontar a relaccedilatildeo ocasional com o visual
Note-se que a relaccedilatildeo entre os fluxos e sua presenccedilaausecircncia tecircm o potencial de
articular a forma da peccedila Neste trecho (parte 1b) podemos distinguir dois momentos O
primeiro apresenta uma relaccedilatildeo mais variaacutevel do visual do recitante com os diversos fluxos
sonoros No segundo haacute uma preponderacircncia da relaccedilatildeo entre o visual do recitante e a leitura
2 (longe) A atividade dos sons de folhas ausente no primeiro momento eacute outro aspecto que
colabora para tal subdivisatildeo Aleacutem disso no primeiro momento o percussionista apresenta
uma accedilatildeo visual que natildeo corresponde diretamente a som algum no segundo sua accedilatildeo visual
se relaciona por uma interaccedilatildeo inexata com estes sons de folha
Este efeito em que ora a accedilatildeo visual corresponde a um evento sonoro natural ou
convencionalmente ligado a ela ora a outro evento ora a nenhum evento o compositor
chama de duplicaccedilatildeo estranha (strange doubling) Efeito-ventriacuteloquo (ventriloque effect) e
sincronizaccedilatildeo labial (lip-sync) estatildeo associados a esta duplicaccedilatildeo
Ainda inerente agrave proacutepria premissa desse meio musical bifurcado [ao vivo e preacute- gravado] no entanto estaacute a ideia central de natildeo tocar embora fingindo tocar Consequentemente o deslocamento espacial do som virtual em relaccedilatildeo ao agente ao vivo propotildee um tipo de efeito de ventriloquismo E se esse conceito de sincronizaccedilatildeo labial eacute levado um passo adiante um gesto ao vivo que ambos fingem tocar e ainda tenha se tornado destacado da sua funccedilatildeo translativa convida o proacuteximo de nossos lsquoconvidados natildeo convidadosrsquo Este eacute o estranho momento de erro de traduccedilatildeo entre a sincronizaccedilatildeo labial ao vivo ou falsa duplicaccedilatildeo e sua reproduccedilatildeo preacute-gravada Entre uma desassociaccedilatildeo quase imperceptiacutevel e uma separaccedilatildeo grotescamente exagerada um vasto jogo de confusatildeo trazido pela ambiguidade de ldquoquem estaacute fazendo o quecircrdquo eacute criado Essa incerteza eacute ainda mais exacerbada por causa dos alto-falantes ocultos atraacutes do puacuteblico criando ainda outra camada de erro de percepccedilatildeo uma ainda mais estranha duplicaccedilatildeo embora intermitente e assim propositalmente imprevisiacutevel E no entanto a duplicaccedilatildeo remete agraves suas raiacutezes no acuacutemulo de interpretaccedilotildees e representaccedilotildees verticais O teatro eacute uma orquestraccedilatildeo alternativamente uma heterofonia que se projetou explicitamente no domiacutenio visual141 (TAKASUGI 2006 natildeo paginado)
141 Original ldquoStill inherent in the very premise of this bifurcated musical medium however is the core idea of not playing though pretending to play Consequently the spatial displacement of virtual sound and live agent proposes a ventriloquism-effect of sorts And if this concept of lip- syncing is taken one step further a live gesture that both pretends to play and yet has also become detached from its translative function solicits
120
O principal objetivo desta anaacutelise de Strange Autumn eacute argumentar sobre a
importacircncia do aspecto visual na muacutesica mista Natildeo como um aspecto teatral puramente - o
que nos levaria agrave outra pesquisa - mas como um aspecto inerente ao tocar executar haacute uma
relaccedilatildeo causal entre accedilatildeo visual e reaccedilatildeo aural que pode ser explorada criativamente a ponto
de pensarmos o fluxo visual mais ou menos independente do sonoro como um componente
da textura
43 M USICFOR SNARE DRUMAND COMPUTER DE CORT LIPPE
Entre as peccedilas elencadas no siacutetio do compositor Cort Lippe encontram-se um conjunto
para instrumento e computador e algumas peccedilas para instrumento e sons fixados em suporte
(tape) aleacutem de outras puramente instrumentais ou eletroacuacutesticas Para a maioria das peccedilas o
compositor disponibiliza notas de programa uma pequena explicaccedilatildeo sobre questotildees teacutecnicas
e esteacuteticas O conteuacutedo destas notas eacute interessante para a discussatildeo levantada em 23
especialmente no que concerne agrave diferenccedila com que expotildee questotildees de interaccedilatildeo entre os
meios instrumental e eletroacuacutestico Por isso antes de abordarmos Music fo r Snare Drum and
Computer (2007) apresentaremos uma reflexatildeo em torno das notas de programa de Cort
Lippe atentando para a diferenccedila entre duas categorias de peccedilas aquelas para instrumento e
computador e aquelas para instrumento e sons preacute-gravados
431 Instrumento(s) e computador e instrumento(s) e tape no trabalho de Cort Lippe
Para todas as peccedilas para instrumento e computador Lippe oferece uma explicaccedilatildeo
comum ainda que o texto seja diferente para cada uma As notas sobre a peccedila para caixa clara
e computador traz a seguinte observaccedilatildeo ldquoA relaccedilatildeo entre instrumento e computador se move
the next of our uninvited guest This is the strange moment of mistranslation between live lip-syncing or false doubling and its pre- recorded playback Between a just-noticeable decoupling and a grotesquely exaggerated departure a vast play of confusion brought on by the ambiguity of who is doing what is created This uncertainty is further exacerbated by hidden loudspeakers from the rear of the audience creating yet another layer of perceptual misdirection a further strange doubling though intermittent and thereby purposefully unpredictable And yet doubling refers back to its roots in the accumulation of vertical interpretations and representations Theater is an orchestration alternatively a heterophony which has projected itself explicitly into the visual domainrdquo (TAKASUGI 2006)
121
num continuum entre os polos de um solo extendido e um duordquo142 (LIPPE 2007) Nas notas
sobre a Music fo r Tenor Steel Pan and Computer (2011) haacute algumas outras informaccedilotildees
Musicalmente a parte do computador agraves vezes natildeo eacute separada da parte do pan e serve para amplificar o pan em muacuteltiplas dimensotildees e direccedilotildees enquanto que no outro extremo do continuum a parte do computador tem sua proacutepria voz musical independente Estas relaccedilotildees solosuo existem simultaneamente ainda tem um certo niacutevel de ambiguidade teacutecnica e musical Muito parecido com a performance de muacutesica de cacircmara em que a expressividade individual agraves vezes se destina a servir ao todo e em outros momentos tem uma influecircncia individual fundamental sobre todo o grupo [ensemble] as relaccedilotildees musicais entre o performer e o computador satildeo fundamentais para os resultados musicais (LIPPE 2011 traduccedilatildeo nossa143)
Nas notas sobre Music fo r Sextet and Computer (1993) expressa de outra maneira ldquoA
relaccedilatildeo entre a eletrocircnica e as partes instrumentais varia sobre um continuum entre texturas
fundidas (transcendentais) e separadas form ais)rdquo144 (LIPPE 1993) E acrescenta ldquoEnquanto
isso trabalhar com computadores me faz questionar a linha tecircnue que agraves vezes separa muacutesica
e efeitos especiaisrdquo145 (LIPPE 1993) Esta frase aponta para uma discussatildeo pertinente em
relaccedilatildeo aos processamentos eletrocircnicos em tempo real Ela estaacute relacionada com a tendecircncia
de que com estas ferramentas a relaccedilatildeo entre instrumento e sons eletroacuacutesticos se restrinja a
um efeito sobre o som instrumental de maneira semelhante ao efeito de reverberaccedilatildeo por
exemplo
O trabalho de Lippe com instrumentos e computador portanto se encontra na fronteira
destas duas categorias por um lado os efeitos especiais que estendem o som instrumental
gerando texturas fundidas por outro a ldquomuacutesicardquo isto eacute uma parte eletroacuacutestica
independente Mas entre estes dois ldquoterritoacuteriosrdquo existe um espaccedilo de fronteira de
ambiguidade um continuum entre estes dois polos no qual se move a relaccedilatildeo entre
instrumentos e sons eletroacuacutesticos Esta relaccedilatildeo pode ocupar tambeacutem dois pontos deste
142 Original ldquoThe instrumentcomputer relationship moves on a continuum between the poles of an extended solo and a duordquo (LIPPE 2007)
143 Original ldquoMusically the computer part is at times not separate from the pan part and serves to amplify the pan in multiple dimensions and directions while at the other extreme of the continuum the computer part has its own independent musical voice These soloduo relationships exist simultaneously yet have a certain level of musical and technical ambiguity Much like chamber music playing in which individual expressivity sometimes is meant to serve the whole and at other times has a fundamental individual influence on the entire ensemble the musical relationships between the performer and computer are fundamental to the musical resultsrdquo (LIPPE 2011)
144 Original ldquoThe relationship between the electronics and the instrumental parts ranges on a continuum between fused (transcendental) and separate (formal) texturesrdquo (LIPPE 1993)
145 Original ldquoMeanwhile working with computers keeps me questioning the fine line that sometimes separates music and special effectsrdquo (LIPPE 1993)
122
continuum Isto eacute a funccedilatildeo do computador pode ser estender o som instrumental e ao mesmo
tempo apresentar sua proacutepria ldquovoz musical independenterdquo
Nas peccedilas para instrumento e sons preacute-gravados as notas tambeacutem trazem um elemento
comum Na nota sobre Music fo r Harp and Tape (1990) escreve
A relaccedilatildeo instrumentomaacutequina eacute inteiramente simbioacutetica - o instrumento e a parte preacute-gravada satildeo iguais no diaacutelogo musical Agraves vezes uma parte [instrumental ou eletroacuacutestica] pode dominar mas na estrutura formal geral um duo estaacute impliacutecito146 (LIPPE 1990)
As notas da Music fo r Bass Clarinet and Tape (1989) trazem o seguinte
A seccedilatildeo de abertura eacute um diaacutelogo entre instrumento e sons preacute-gravados [tape] e eacuteseguida por uma seccedilatildeo na qual a parte do dos sons preacute-gravados domina Isto emtroca abre espaccedilo para um solo de clarineta baixo enquanto na quarta seccedilatildeo os sons preacute-gravados satildeo dominados pela clarineta Na seccedilatildeo final o instrumento e os sons preacute-gravados estatildeo novamente mais equilibrados - reminiscecircncia da seccedilatildeo de abertura147 (LIPPE 1989)
Enquanto que as notas sobre as peccedilas para instrumento e computador valem-se do eixo
dependecircncia-independecircncia entre estes aquelas sobre as peccedilas para instrumento e sons preacute-
gravados utilizam o eixo dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo para tratar da relaccedilatildeo entre estes Nas
primeiras natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo significativa com explicitar estruturas formais da peccedila ao
passo que nas segundas a explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre instrumento e sons preacute-gravados se daacute
atraveacutes de uma explicitaccedilatildeo das diferentes seccedilotildees Isto eacute a relaccedilatildeo entre a parte instrumental e
a parte preacute-gravada eacute um dos elementos responsaacuteveis pela articulaccedilatildeo de seccedilotildees na forma
geral da peccedila
Embora tendo feito esta diferenciaccedilatildeo no caso de Music fo r Harp and Tape a ideia de
sons processados em tempo real e sons preacute-gravados se confundem Isto porque o compositor
produziu a parte preacute-gravada a partir de processamento em tempo real
Isso levanta a hipoacutetese de que na praacutetica de Lippe as diferenccedilas esteacuteticas tenham
relaccedilatildeo com as diferenccedilas tecnoloacutegicas Embora independecircncia-dependecircncia e dominaccedilatildeo-
146 Original ldquoThe instrumentmachine relationship is entirely symbioticmdash the instrument and tape are equals in the musical dialogue At times one part may dominate but in the overall formal structure a duo is implicitrdquo (LIPPE 1990)
147 Original ldquoThe opening section is a dialogue between the instrument and tape and is followed by a section in which the tape part dominates This in turn gives way to a bass clarinet solo while in the fourth section the tape part is dominated by the clarinet In the final section the instrument and tape are again somewhat equal - reminiscent of the opening sectionrdquo (LIPPE 1989)
subordinaccedilatildeo possam se referir de maneira diferente agraves mesmas relaccedilotildees haacute uma diferenccedila
crucial na maneira com que o compositor expressa estas relaccedilotildees nestes dois tipos de teacutecnicas
As notas sobre as peccedilas para instrumento e sons preacute-gravados natildeo trazem a ideia de um solo
extendido A ideia mais proacutexima a este extremo do continuum seria a de relaccedilatildeo simbioacutetica
(Music fo r Harp and Tape) em que os dois meios se beneficiam Esta noccedilatildeo eacute trazida na peccedila
que se vale de processamento em tempo real para criar o tape As outras peccedilas para
instrumento e tape parecem partir de um contraste ainda maior que esta relaccedilatildeo simbioacutetica a
ideia eacute de diaacutelogo (portanto entre duas entidades diferentes)148
Se estas constataccedilotildees podem ser extrapoladas para a experiecircncia dos compositores em
geral podemos levantar a hipoacutetese de que trabalhando com processamentos em tempo real da
parte instrumental partimos da fusatildeo Isto eacute a relaccedilatildeo mais faacutecil a primeira que pode vir agrave
mente eacute que a parte eletroacuacutestica funcione como uma extensatildeo da parte instrumental
Evidentemente natildeo decidimos sempre pelo que primeiro nos vem agrave mente trata-se aqui de
apontar uma primeira tendecircncia Por outro lado o processo de composiccedilatildeo dos sons preacute-
gravados se daacute mais ou menos independentemente da parte instrumental A primeira ideia a
vir agrave mente pode natildeo ser a de uma extensatildeo da parte instrumental mas da instituiccedilatildeo de uma
parte paralela com conteuacutedo sonoro proacuteprio
432 Music fo r Snare Drum and Computer
Na peccedila para caixa clara e computador consideraremos dois fluxos um instrumental e
outro eletroacuacutestico Embora pudesse haver dois ou mais fluxos instrumentais ou
eletroacuacutesticos natildeo identificamos tal segregaccedilatildeo em nossa anaacutelise Nos deteremos nos seis
minutos iniciais da peccedila (duas primeiras paacuteginas da partitura) Um aspecto primordial em
nossa anaacutelise seraacute a noccedilatildeo de gatilho (WISHART 1996) e de causalidade (SMALLEY 1997)
A atividade do computador depende fortemente da atividade instrumental de modo que a
independecircncia que a parte eletroacuacutestica conquista aos poucos manteacutem ainda que agraves vezes
menos claramente a caracteriacutestica de gatilho em relaccedilatildeo agrave parte instrumental A parte
instrumental aciona o gatilho que daacute iniacutecio aos eventos eletrocircnicos Isso se deve agrave maneira
com que o compositor trabalha a parte do computador Nas notas de programa ele explica
123
148 Natildeo devemos descartar a hipoacutetese de que isso se deva a um diferente posicionamento esteacutetico relacionado mais agrave fase do compositor do que agrave tecnologia utilizada
124
A parte eletrocircnica foi criada nos Estuacutedios de Muacutesica Computacional Hiller da Universidade em Buffalo Nova York usando MaxMSP Tecnicamente o computador rastreia paracircmetros da performance da caixa clara e usa esta informaccedilatildeo para influenciar e manipular continuamente a saiacuteda sonora do computador por afetar diretamente a siacutentese digital e algoritmos composicionais em tempo real Os algoritmos de siacutentese digital focam no processamento espectral no domiacutenio da frequecircncia e inclui filtragem delayrealimentaccedilatildeo feedback] espacializaccedilatildeo fotografias timbrais [timbral snapshot] siacutentese cruzada reduccedilatildeoaumento de ruiacutedo e reordenaccedilatildeo de componentes de canais individuais de FFT149 (LIPPE 2007)
Um dos paracircmetros rastreados (tracked) mais evidentes eacute o envelope de amplitude da
performance da caixa
Na maior parte do tempo o iniacutecio dos eventos eletroacuacutesticos estaacute vinculado ao iniacutecio
do som instrumental Como apontado em 31 ldquose duas coisas estatildeo altamente correlacionadas
eacute altamente provaacutevel que emergiram de uma mesma fonte enquanto que se duas coisas satildeo
assincrocircnicas eacute provaacutevel que sejam associadas com dois objetos diferentesrdquo (SHEPARD
1999 p 117) Instrumento e sons eletrocircnicos estatildeo altamente correlacionados nesta peccedila A
correlaccedilatildeocoordenaccedilatildeo dos ataques eacute constante Isso representa uma forccedila em direccedilatildeo agrave
fusatildeo O recurso que diferenciaraacute os dois fluxos em direccedilatildeo ao contraste eacute o restante do
envelope (decaimento sustentaccedilatildeo e relaxamento)
O trecho analisado compreende 16 programas do sistema interativo com um uso
variado dos diferentes paracircmetros rastreados Uma investigaccedilatildeo do patch do Max poderia
trazer mais dados referentes ao rastreio e mapeamento de paracircmetros e isso por sua vez nos
proporcionaria pensar em outras relaccedilotildees musicais entre estes dois fluxos Entretanto como
ficaraacute evidente o eixo atividade-inatividade eacute um dos aspectos mais importantes da relaccedilatildeo
entre os fluxos e para abordaacute-lo focaremos sobre o paracircmetro do envelope Temos
consciecircncia de que esta posiccedilatildeo natildeo abrange uma seacuterie de aspectos relevantes da peccedila
(processamentos espectrais por exemplo) que estatildeo envolvidos em interessantes relaccedilotildees
entre os fluxos Entretanto o objetivo da nossa anaacutelise seraacute apenas demonstrar o aspecto mais
evidente da relaccedilatildeo entre eles
Num primeiro momento (programas 1 e 2) o envelope da parte eletrocircnica estaacute
correlacionado ao envelope da caixa Posteriormente o computador estende a sustentaccedilatildeo nos
149Original ldquoThe electronic part was created at the Hiller Computer Music Studios of the University at Buffalo New York using MaxMsp Technically the computer tracks parameters of the snare drum performance and uses this information to continuously influence and manipulate the computer sound output by directly affecting digital synthesis and compositional algorithms in real-time The digital synthesis algorithms focus on spectral processing in the frequency domain and include filtering delayfeedback spatialization timbral snapshots cross-synthesis noise reductionenhancement and component reordering of individual FFT channelsrdquo (LIPPE 2007)
programas 3 e 4 se tornando mais independente Entretanto mesmo quando alcanccedila uma
diferenciaccedilatildeo - ldquosua proacutepria voz musicalrdquo - por causa dos diferentes envelopes o programa
continua rastreando cada ataque e mudando algo (conteuacutedo espectral por exemplo) neste
fluxo eletrocircnico que continua
No programa 5 a parte eletrocircnica volta a um envelope semelhante ao da caixa se
aproximando da ideia de efeito novamente O programa 6 apresenta o mesmo material do 5
com o acreacutescimo de um material mais grave de envelope independente que surge nos
momentos de pausa da caixa O programa 7 apresenta novas sonoridades eletroacuacutesticas que
se tornam mais independentes no programa 8 Do programa 9 ao 16 acontece um crescendo
na parte eletroacuacutestica Uma intensificaccedilatildeo tanto da dinacircmica como tambeacutem da independecircncia
deste fluxo em relaccedilatildeo ao instrumental O programa 16 representa um primeiro aacutepice da peccedila
Assim embora neste trecho analisado a relaccedilatildeo entre os fluxos se mova no eixo
dependecircncia-independecircncia mantemos a sensaccedilatildeo de dependecircncia da parte eletroacuacutestica em
relaccedilatildeo agrave instrumental mesmo quando se distancia desta em diversos paracircmetros
Os fluxos apresentam o que foi abordado em 343 como modo de relacionamento de
atividade-inatividade (SMALLEY 1997) A relaccedilatildeo entre eles se daacute pela maior ou menor
atividade de cada fluxo Anotaccedilotildees sobre a pauta indicam a importacircncia deste paracircmetro
Abaixo (Quadro 5) listamos as indicaccedilotildees presentes no trecho em questatildeo Os programas 1 e
2 natildeo apresentam indicaccedilotildees sobre atividade por isso supomos uma atividade regular A
atividade da parte eletroacuacutestica estaacute apenas impliacutecita nestas indicaccedilotildees da partitura
entretanto na tabela abaixo indicamos sua atividade por comparaccedilatildeo atraveacutes da escuta da
gravaccedilatildeo disponiacutevel no siacutetio do compositor150
125
150 Temos tambeacutem na memoacuteria a performance desta peccedila pelo UM2UO que presenciamos no Simpoacutesio Muacutesica Nova 2018 em Curitiba
126
QUADRO 5 - ATIVIDADE DOS FLUXOS INSTRUMENTAL E ELETROACUacuteSTICO EM MUSIC FOR
SNAREDRUMAND COMPUTER DE CORT LIPPE (6 MINUTOS INICIAIS)
p Sons instrumentais(indicaccedilotildees de Lippe na partitura com exceccedilatildeo dos programas 1 e 2 que satildeo anaacutelises nossas)
Sons eletrocircnicos(anaacutelise nossa)
1 Atividade regular inativo mdashgt menos ativo
2 Atividade regular menos ativo
3 ldquopoco a poco mais ativordquo =
4 ldquosubito menos ativordquo ldquopermitir a sustentaccedilatildeo do computadorrdquo ldquoraquooco a poco menos ativo (deixar o computador desaparecer [fade|) mais ativo
5 ldquosubito mais ativordquo ldquopoco a poco mais ativo =
6 ldquosempre ativo (ouccedila o computador)rdquo =
7 ldquosempre ouccedila o computador) poco a poco menos ativo e pausas longasrdquo =
8 ldquo(sempre ouccedila o computador) poco a poco menos ativo e pausas longasrdquo mais ativo
9 ldquo(sempre ouccedila o computador) poco a poco menos ativo e pausas longasrdquo mais ativo
10 ldquonatildeo ativordquo mais ativo
11 ldquonatildeo ativordquo mais ativo
12 ldquopoco a poco levemente mais ativordquo mais ativo
13 ldquosempre poco a poco levemente mais ativordquo ldquo(ritmos algo regulares)rdquo =
14 ldquosempre poco a poco mais ativordquo ldquo(poco a poco ritmos mais regulares)rdquo =
15 ldquosempre poco a poco mais e mais ativordquo ldquo(poco a poco ritmos mais regulares)rdquo
=
16 ldquoatividade maacuteximardquo =P = programas
FONTE Lippe (2007) e anaacutelise do autor (2019)
A fim de visualizar esta relaccedilatildeo de outra maneira atribuiacutemos um valor relativo de
atividade sendo 0 = natildeo ativo e 5 = atividade maacutexima Obtemos assim uma representaccedilatildeo
visual da relaccedilatildeo entre os fluxos no modo de relacionamento atividade-inatividade
GRAacuteFICO 1 - ATIVIDADE DE DOIS FLUXOS (INSTRUMENTAL E ELETRO ACUacuteSTICO) EM MUSIC
FOR SNARE DRUMAND COMPUTER DE CORT LIPPE (6 MINUTOS INICIAIS)
5
4
bullS 3cd T3
o1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
Programas
FONTE o autor (2019)
Sons instrumentais Sons eletrocircnicos
Ao observarmos o graacutefico natildeo eacute difiacutecil imaginarmos uma partitura tornando possiacutevel
assim fazer uma analogia com o movimento entre vozes distintas paralelo obliacutequo e
contraacuterio Em vez da direccedilatildeo dos movimentos intervalares de cada voz observamos a direccedilatildeo
dos movimentos no eixo atividade-inatividade de cada fluxo
44 IN MEMORJAM JO N HIGGINS DE ALVIN LUCIER
In Memoriam Jon Higgins (1984) para Clarineta em laacute e oscilador eacute a primeira peccedila
de Alvin Lucier para instrumento solo e gerador de ondas puras A peccedila consiste num
glissando ascendente de 20 minutos do oscilador que varre a tessitura da clarineta sofrendo
interferecircncia perioacutedica por esta O glissando ascende um semitom a cada 30 segundos O
clarinete toca uma nota durante um minuto (agraves vezes duas de 30 segundos) e pausa durante 30
segundos As frequecircncias fundamentais das notas do clarinete se encontram proacuteximas agraves
frequecircncias do oscilador e por isso causam o fenocircmeno de batimento Este fenocircmeno eacute criado
a partir da interaccedilatildeo entre sons da clarineta e sons do oscilador Assim nossa anaacutelise objetiva
demonstrar o desenvolvimento dos batimentos ao longo da peccedila e seus consequentes aspectos
interativos De um lado abordamos questotildees sonoro-morfoloacutegicas de interferecircncia e gesto de
outro as questotildees da performance fazendo uma analogia com sistemas interativos
Batimento eacute um fenocircmeno acuacutestico que ocorre quando duas ou mais frequecircncias estatildeo
proacuteximas Uma variaccedilatildeo perioacutedica de amplitude (batimento) eacute causada pelas interferecircncias
construtivas e destrutivas entre as duas ondas A frequecircncia de batimento eacute igual agrave diferenccedila
entre as duas frequecircncias (LOY 2006) Por exemplo o primeiro intervalo da peccedila eacute uma
segunda menor em que o clarinete toca um Reacute (cerca de 73 Hz) e o oscilador eacute um Doacute
sustenido (cerca de 69 Hz) portanto a frequecircncia de batimento eacute igual a cerca de 4 Hz A nota
da clarineta eacute constante natildeo muda sua frequecircncia fundamental A frequecircncia do oscilador
sobe ateacute alcanccedilar o uniacutessono com a clarineta diminuindo assim a diferenccedila entre as
frequecircncias e portanto diminuindo a frequecircncia de batimento que vai de 4 Hz para 0 Hz o
que poderiacuteamos chamar de um ritardando
127
128
FIGURA 36 - ILUSTRACcedilAO DE BATIMENTOS ACCELERANDO E RJTARDANDO NO COMECcedilO DE INMEMORIAM JON HIGGINS
A Clarinet(Sounds a minor third
lower than written)
Oscillator(Actual sounds) I
Intervals 1 u (-1)(semitones u = unison)__________________________________________________________________
X T ----------------------0 rdquo 30rdquo
tixT---------------- --- rdquo 1rsquo 1 rsquo 30rdquo
W W W VAAAWritardando accelerando
FONTE o autor (2019)
Dois paracircmetros satildeo diretamente associados nesta relaccedilatildeo (micro)intervalo e ritmo
Nas palavras do compositor ldquoO fenocircmeno do batimento acuacutestico a ideia de que o ritmo pode
ser criado pela afinaccedilatildeo Eu gosto muito desta ideiardquo151
Devemos considerar que um semitom natildeo eacute sempre o mesmo intervalo no domiacutenio da
frequecircncia Por exemplo em comparaccedilatildeo com o primeiro intervalo da peccedila o uacuteltimo tambeacutem
de um semitom eacute tambeacutem o intervalo entre o Doacute sustenido (554 Hz) e o Reacute (587 Hz) A
diferenccedila entre as frequecircncias no primeiro intervalo era de 4 Hz neste uacuteltimo eacute de 33 Hz
Assim para um ldquomesmordquo semitom diferentes frequecircncias de batimentos satildeo possiacuteveis Como
a peccedila tem uma direcionalidade contiacutenua para o agudo a diferenccedila entre as frequecircncias
aumenta conforme vatildeo para um registro mais agudo de maneira que eacute possiacutevel perceber um
accelerando ao longo da peccedila Assim outros dois paracircmetros satildeo associados ritmo e registro
Algumas caracteriacutesticas perceptuais dos batimentos satildeo importantes para entendermos
a complexidade que se instaura nestes materiais e processos superficialmente simples (1)
Quando a frequecircncia de batimento diferenccedila entre as duas frequecircncias eacute menor do que cerca
de 15 Hz percebemos elas como uma uacutenica - a meacutedia das duas frequecircncias com uma variaccedilatildeo
de amplitude os batimentos (LOY 2006 p 174) No primeiro intervalo por exemplo entre
69 Hz e 73 Hz ouvimos uma uacutenica frequecircncia de 71 Hz com um batimento de 4 Hz Neste
caso (ateacute cerca de 15 Hz) a frequecircncia de batimento eacute muito lenta para o percebermos como
altura percebemos suas oscilaccedilotildees individuais como ritmo (2) Quando a frequecircncia de
batimento eacute maior que cerca de 50 Hz as oscilaccedilotildees satildeo muito raacutepidas para serem percebidas
151 ldquoThe phenomenon of acoustical beating the idea that rhythm can be created by tuning I like that idea a lotrdquo Disponiacutevel em lthttpalvin-lucier-filmcomhigginshtmlgt Acesso em 12 jan 2019
129
individualmente assim percebemos as duas frequecircncias como duas alturas e a frequecircncia de
batimento pode ser interpretada como uma terceira altura chamada diference tone Entretanto
(3) se a frequecircncia de batimento estiver entre 15 Hz e 50 Hz aproximadamente152 por um lado
as oscilaccedilotildees satildeo muito raacutepidas para as ouvirmos como ritmo por outro as frequecircncias estatildeo
muito proacuteximas para distinguirmos duas alturas Assim nesta faixa os batimentos soam
rugosos O Graacutefico 2 mostra o desenvolvimento dos batimentos ao longo da peccedila de Lucier
Diferentemente da partitura o Graacutefico 2 demonstra importantes aspectos da percepccedilatildeo
da peccedila de Lucier especialmente o comportamento alternante entre os paradigmas de
batimento riacutetmico (ateacute 15 Hz) rugoso (entre 15 Hz e 50 Hz) e harmocircnico (acima de 50 Hz)
Devido ao direcionamento para o registro agudo e o consequente aumento da diferenccedila entre
as frequecircncias vemos a peccedila se desenvolver progressivamente partindo do primeiro
paradigma em direccedilatildeo a incorporaccedilatildeo mais substancial do segundo e do terceiro
GRAacuteFICO 2 - DESENVOLVIMENTO DOS BATIMENTOS EM IN MEMORIAM JON HIGGINS DE ALVIN LUCIER
FONTE Transcrito de (LUCIER 1987) e analisado pelo autor (2019)
O fenocircmeno de batimentos causado por interferecircncias de uma onda sobre outra eacute por
152 Esta faixa de 15 Hz a 50 Hz aproximadamente eacute chamada banda criacutetica ldquoFor a given frequency the critical band is the smallest band of frequencies around it which activate the same part of the Basilar Membranerdquo (TRUAX 1999 Critical Band) ldquoThe roughness only disappears at a frequency separation equal to the critical bandwidth (about one third of an octave)rdquo (LOY 2006 p180)
si soacute uma interaccedilatildeo entre as ondas Neste caso se reflete numa interaccedilatildeo entre os fluxos
sonoros do oscilador e da clarineta Um dos aspectos mais importantes desta interaccedilatildeo eacute a
fusatildeo e o contraste (MENEZES 2006) que neste caso devem ser interpretados de maneira
peculiar devido aos efeitos psicoacuacutesticos envolvidos Apresentamos abaixo uma escala da
fusatildeo ao contraste presente nesta peccedila
bull Uniacutessono similaridade causando o estado de duacutevida Existe a transferecircncia de
caracteriacutestica espectral (frequecircncia fundamental) Natildeo se trata de uma similaridade
absoluta pois alguns fatos corroboram com a distinccedilatildeo clarineta natildeo eacute amplificada e
estaacute separada espacialmente do alto-falante por exemplo
bull Batimentos ateacute 15 Hz a fusatildeo acontece por dois fatores a frequecircncia ouvida eacute apenas
uma (a meacutedia entre as duas fundamentais) e instrumento e oscilador apresentam o
mesmo envelope de amplitude - o proacuteprio efeito de batimento
bull Batimentos de 15 a 50 Hz estaacutegio confuso com rugosidade na qual a condiccedilatildeo de
duacutevida proacutepria da fusatildeo estaacute se dissolvendo
bull Quando a diferenccedila entre fundamentais eacute maior que 50 Hz existe fusatildeo e relativo
contraste As duas frequecircncias estatildeo afastadas o suficiente para diferenciarmos a
clarineta do oscilador (relativo contraste) poreacutem as duas frequecircncias causam na escuta
no miacutenimo uma terceira frequecircncia (difference tone) O estado de duacutevida se estabelece
pois natildeo sabemos se esta frequecircncia ldquofantasmardquo vem da clarineta ou do oscilador De
fato nem de um nem de outro mas da interaccedilatildeo entre os dois
bull Pausa da clarineta contraste
Esta abordagem sobre fusatildeo e contraste explica a importacircncia do uniacutessono como o
momento de maior integraccedilatildeo um ponto convergente no qual o estado de duacutevida em relaccedilatildeo agrave
fonte sonora eacute evidente Como explica Menezes (2006 p 387) ldquoAinda que de forma alguma
hegemocircnico o estado de duacutevida traduz-se como momento supremo da interaccedilatildeordquo
No momento da performance o aspecto da integraccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo das fontes
sonoras eacute afetado pela disposiccedilatildeo do instrumentista e do alto-falante no palco O uacutenico alto-
falante que toca a parte do oscilador deve ficar agrave direita e o clarinetista agrave esquerda Esta
separaccedilatildeo ajuda a diferenciarmos as duas fontes e os dois fluxos sonoros E torna ainda mais
interessante os momentos de fusatildeo devido agrave estranha impossibilidade de se fazer a
diferenciaccedilatildeo em uma situaccedilatildeo em que isso seria simples
O ritmo em In Memoriam Jon Higgins natildeo surge por accedilatildeo individual de cada parte
130
(clarineta e oscilador) mas pela sua interaccedilatildeo Enquanto o glissando do oscilador eacute
continuamente ascendente as notas da clarineta satildeo estaacuteveis se manteacutem por 30 ou 60
segundos Assim a cada entrada da clarineta daacute-se iniacutecio a um gesto que consiste em
movimentos obliacutequos As duas frequecircncias se aproximam e se afastam causando batimentos
em accelerando e em rallentando respectivamente Estes movimentos podem ser
visualizados no Graacutefico 2 Da esquerda para a direita a linha preta ascendente representa um
accelerando enquanto que a descendente representa um rallentando Aleacutem disso eacute possiacutevel
perceber uma progressatildeo geral destes gestos Haacute uma expansatildeo da diferenccedila entre as
frequecircncias em Hz embora em semitons esta distacircncia se repete (maior intervalo eacute de 3
semitons) o que significa um aumento da frequecircncia maior dos gestos de accelerando e
rallentando
Estes gestos de batimentos estatildeo inseridos dentro do enorme glissando que sobe de
maneira quase imperceptiacutevel Assim podemos entender uma estrutura hieraacuterquica em que o
glissando de 20 minutos compreende uma estrutura de um niacutevel superior high-level
(SMALLEY 1997) enquanto que as interferecircncias perioacutedicas podem ser entendidas como de
um niacutevel inferior (low-level) A interaccedilatildeo acontece tambeacutem entre estes dois niacuteveis da estrutura
hieraacuterquica O niacutevel inferior altera o niacutevel superior Novamente estamos diante de uma
relaccedilatildeo de causalidade
Gestos como este do oscilador desafiam a percepccedilatildeo devido a sua dimensatildeo seu lento
desenvolvimento Como aponta Smalley (1997 p 113-114) ldquo[] haacute uma mudanccedila de foco
da escuta - quanto mais lento o iacutempeto gestual direto tanto mais o ouvido procura se
concentrar em detalhes internos []rdquo153 Podemos dizer assim que a peccedila de Lucier nos
convida para concentrarmos nos detalhes internos do som tais como variaccedilatildeo de amplitude
variaccedilatildeo micro-intervalar e fenocircmeno de difference tone
Os aspectos tecnoloacutegicos e praacuteticos da performance tambeacutem fomentam reflexotildees A
parte do oscilador eacute definida previamente e eacute difundida por um uacutenico alto-falante no momento
da performance Neste sentido a peccedila funciona como uma peccedila para instrumento e sons
fixados em suporte O performer precisa sincronizar com a parte do oscilador para isso
Lucier admite o uso de um afinador cromaacutetico para que o performer possa localizar a
frequecircncia do oscilador Embora entendamos este aspecto fixo do oscilador eacute preciso
considerar que o fenocircmeno de batimentos eacute um processo acuacutestico que acontece sobre ele e eacute
153Original ldquo[] there is a change of listening focus - the slower the direct gestural impetus the more the ear seeks to concentrate on inner details []rdquo (SMALLEY 1997 p 113-114)
131
controlado pelo clarinetista em tempo real Eacute um tipo de sistema interativo De acordo com
Rowe (1993) os sistemas interativos de computaccedilatildeo musical ldquosatildeo aqueles cujo
comportamento muda em resposta a uma entrada musicalrdquo (natildeo paginado) Estas mudanccedilas de
comportamento acontecem devido a uma programaccedilatildeo que estabelece ldquoleisrdquo relaccedilotildees entre a
entrada musical e a saiacuteda musical Na peccedila de Lucier satildeo as leis (psico)acuacutesticas que
estabelecem essa relaccedilatildeo Assim a parte do oscilador ldquomudardquo em resposta agraves notas da
clarineta de acordo com uma relaccedilatildeo acuacutestica presente no fenocircmeno de batimentos
(interferecircncias construtivas e destrutivas) Poderiacuteamos considerar tal configuraccedilatildeo de relaccedilotildees
um sistema interativo acuacutestico
Em conclusatildeo foi possiacutevel nesta anaacutelise identificar certas relaccedilotildees referentes a
interaccedilatildeo tanto como uma questatildeo sonoro-morfoloacutegica (batimentos fusatildeo e contraste gestos
interativos) quanto tecnoloacutegica da performance (relaccedilatildeo do performer com o oscilador preacute-
gravado) Abaixo sumarizamos as relaccedilotildees identificadas
a) Relaccedilatildeo direta entre intervalos e ritmo (frequecircncia de batimento) produzida pelo
fenocircmeno de batimentos
b) Relaccedilatildeo entre registro e frequecircncia de batimento quanto mais para o agudo o registro
mais acelerados satildeo os batimentos
c) Relaccedilatildeo de causalidade os gestos da clarineta causam mudanccedilas no enorme gesto do
oscilador Esta relaccedilatildeo natildeo eacute apenas sonoro-morfoloacutegica mas tambeacutem tecnoloacutegica
praacutetica da performance
Identificar este tipo de relaccedilotildees parece ser um caminho metodoloacutegico importante para
futuros estudos sobre interaccedilatildeo Elas abrem espaccedilo para um estudo natildeo limitado apenas agraves
relaccedilotildees entre performer e tecnologia mas apto para considerar relaccedilotildees em outros acircmbitos
como o sonoro e acuacutestico (aqui abordados) o visual (abordado em 42) o espacial o teatral
entre outros
132
133
5 SOBRE MEU PROCESSO COMPOSICIONAL
Em 2012 meu primeiro ano no curso de Bacharelado em Muacutesica - Composiccedilatildeo na
cidade de Pelotas - RS acontecia o primeiro Festival Latino-americano de Muacutesica
Contemporacircnea de Pelotas organizado pelo NuMC - Nuacutecleo de Muacutesica Contemporacircnea da
UFPel Na ocasiatildeo ouvi pela primeira vez o que se pode denominar muacutesica eletroacuacutestica
mista Entre as peccedilas deste gecircnero estavam Mosaic (2010) de Joatildeo Pedro Oliveira e Infinito
Silecircncio (2012) de Rogeacuterio Constante Levo a experiecircncia de presenciar a performance
destas peccedilas como uma das mais significativas no contato inicial com o universo da muacutesica de
concerto dos seacuteculos XX e XXI Os sons traccedilavam caminhos diversos entre os alto-falantes o
instrumento e minha imaginaccedilatildeo Se apresentava a mim talvez inconsciente disso no
momento um universo sonoro interativo de constituiccedilatildeo e dissoluccedilatildeo de camadas distintas
de interferecircncias e relaccedilotildees complexas entre materiais Some-se a isto o aspecto (in)visiacutevel da
performance visiacutevel e fiacutesica nos movimentos do performer imaginada ou referenciada quanto
aos sons acusmaacuteticos
Minha produccedilatildeo composicional durante a graduaccedilatildeo apresentou um direcionamento agrave
exploraccedilatildeo de tais caracteriacutesticas De fato uma de minhas primeiras peccedilas a ser apresentada
foi uma peccedila para piano e sons eletrocircnicos em que jaacute apareciam iniciativas natildeo eacute preciso
dizer ingecircnuas de fusatildeo e interaccedilatildeo entre gestos dos dois meios (instrumental e
eletroacuacutestico) Estas caracteriacutesticas interativas migravam sem esforccedilo para o pensamento
puramente instrumental o que seria facilmente demonstraacutevel em outras composiccedilotildees como
Ensaio I (2016) Peccedila para acordeatildeo e sons eletrocircnicos (2016) e tambeacutem em Dois
movimentos para acordeatildeo e piano (2016) que gerou o trabalho de conclusatildeo de curso
(TUCHTENHAGEN 2017) Neste uacuteltimo caso busquei na semioacutetica greimasiana154 modelos
teoacutericos para entender os materiais seu desenvolvimento suas relaccedilotildees e interaccedilotildees tanto no
processo de composiccedilatildeo quanto na anaacutelise posterior Um exemplo simples que ilustra o
interesse em questatildeo eacute aquele em que haacute uma transferecircncia de notas do acordeatildeo para o piano
(Figura 37) Esta transferecircncia acontece de tal forma que o piano interrompe a nota sustentada
do acordeatildeo para fazer soar a sua Este interromper eacute um exemplo destas caracteriacutesticas
interativas em que estava e continuo interessado aleacutem deste interferecircncias causalidades e
outras relaccedilotildees se manifestaram posteriormente
154 Aleacutem da teoria de Algirdas Julien Greimas baseei-me em trabalhos mais recentes como A Muacutesica de Hermeto Pascoal Uma abordagem Semioacutetica (ARRAIS 2006)
134
FIGURA 37 - COMPASSOS 77-78 DE DOIS MOVIMENTOS PARA ACORDEAtildeO E PIANO (2016)Grave (J = c 3 2 )
FONTE Tuchtenhagen (2017)
O interesse por estas caracteriacutesticas interativas continuou na submissatildeo do projeto de
mestrado nesta instituiccedilatildeo Inicialmente o projeto propunha estabelecer relaccedilotildees parameacutetricas
entre sons instrumentais e eletroacuacutesticos por meio de um sistema interativo Natildeo se dirigia
apenas ao estudo dos recursos tecnoloacutegicos do sistema mas tambeacutem agraves relaccedilotildees sonoras visto
que determinado paracircmetro instrumental estaria por meio de uma regra mais ou menos
variaacutevel relacionado a um paracircmetro eletroacuacutestico155 Esta proposta inicial foi modificada no
sentido de tratar menos das questotildees tecnoloacutegicas e mais das sonoro-morfoloacutegicas Atraveacutes da
revisatildeo bibliograacutefica expandiram-se as possibilidades para aleacutem de relaccedilotildees parameacutetricas e
para aleacutem da mencionada interrupccedilatildeo Destas expansotildees destaca-se a possibilidade de
agrupamentos dos eventos sonoros em fluxos distintos que interagem entre si
Durante o mestrado mantive a atividade composicional em paralelo ao trabalho
teoacuterico e analiacutetico Esta dinacircmica de pesquisa possibilitou experimentar os aspectos teoacutericos
na praacutetica composicional bem como levantar a partir da praacutetica questionamentos e
explicaccedilotildees teoacutericas Assim a composiccedilatildeo pode ser vista como parte do meacutetodo de pesquisa
teoacuterica e a teoria pesquisada como parte do meacutetodo de composiccedilatildeo
155 Tal ideia existe em Reacutepons (1984) de Pierre Boulez em que a velocidade de espacializaccedilatildeo de determinado som processado estaacute diretamente relacionada agrave intensidade com que determinado solista executa sua parte Satildeo seis solistas o som de cada um eacute processado e a espacializaccedilatildeo deste som processado acontece de acordo com esta regra
135
Este relato pessoal tem a funccedilatildeo de frisar que a pesquisa estaacute imbricada com o
pesquisador Ela se direciona a meus interesses artiacutesticos desde a graduaccedilatildeo e se deu em
paralelo agrave minha praacutetica composicional Trata-se de uma abordagem pessoal Possivelmente
ela encontre ressonacircncia em outros em seus proacuteprios interesses artiacutesticos e teoacutericos
O olhar sobre as peccedilas de outros compositores cumpriu o objetivo de elucidar a
maneira como eacute possiacutevel perceber as relaccedilotildees entre as partes portanto num niacutevel esteacutesico
(NATTIEZ 1990) Jaacute o olhar analiacutetico sobre minhas composiccedilotildees pretende apontar no niacutevel
poieacutetico como lidei com as relaccedilotildees entre fluxos sonoros156
51 CHAtildeO DE OUTONO
Chatildeo de Outono157 eacute uma peccedila para flauta e sons eletrocircnicos composta no contexto da
disciplina Toacutepicos em Composiccedilatildeo e Esteacutetica da poacutes-graduaccedilatildeo em muacutesica da UFPR O
processo criativo abrangeu um periacuteodo no acircmbito da disciplina (de abril a julho de 2017) com
performance ao final do semestre158 e outro periacuteodo (de revisatildeo) de fevereiro a abril de 2018
com performance no concerto Muacutesica Contemporacircnea Brasileira no dia 11 de abril de 2018
na Sala de Atos do SESC Paccedilo da Liberdade O processo criativo se deu em colaboraccedilatildeo com
a flautista e colega da disciplina (doutoranda) Valentina Daldegan Durante o primeiro
periacuteodo eu participava tambeacutem de aulas de composiccedilatildeo com o professor Clayton Mamedes
numa disciplina da graduaccedilatildeo onde pude trabalhar esta peccedila Meu orientador tambeacutem
acompanhava o processo de composiccedilatildeo e aleacutem disso o professor Mauriacutecio Dottori fez
alguns comentaacuterios que foram importantes na revisatildeo da peccedila Este contexto evidencia o
caraacuteter interpessoal do processo criativo
A peccedila estaacute baseada no poema homocircnimo de Mario Quintana
Chatildeo de outono
Ao longo das pedras irregulares do calccedilamento passam ventando umas pobres folhas amarelas em pacircnico perseguidas de perto por um convite de enterro sinistro
156 Os anexos mencionados no texto a seguir estatildeo disponiacuteveis em lthttpsdrivegooglecomopen id=1Fyt 16u4m5OwtHVfz 1BkxWkOx104OoNyWgt
157 Gravaccedilatildeo da estreacuteia disponiacutevel em lthttpssounddoudcomdaviraubachchaodeoutonogtViacutedeo da estreacuteia disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=l3-ULyfGk2kgtGravaccedilatildeo da segunda performance disponiacutevel em lthttpssounddoudcomdaviraubachchao-de-outonogt Acesso em 18 jan 2019
158 Concerto de encerramento da disciplina Electroacoustic live (or dead) realizado no dia 18 de julho de 2018 no TeUNI - Teatro Experimental da UFPR
136
tatalando aos pulos cada vez mais perto as duas asas tarjadas de negro (QUINTANA 2012 p 77)
A primeira intenccedilatildeo composicional era utilizar a sonoridade da leitura do poema como
um material Eu jaacute havia explorado algo semelhante no experimento Meu Trecho Predileto
(2016) para violatildeo e acordeatildeo sobre outro poema de Mario Quintana Cada nota ou acorde eacute
vinculado a uma siacutelaba Os performers natildeo devem ler o texto em voz alta (exceto ao final)
mas tocam conforme seria a leitura ou seja a leitura mental do texto determina ritmo
acentuaccedilatildeo nuances de dinacircmica e andamento (ver Figura 38) Reutilizar esta teacutecnica numa
peccedila para flauta trazia um interesse a mais pela possibilidade de os sons de fala e de flauta
serem mesclados Eles seriam dois instrumentos associados produzindo som a partir do
mesmo focirclego Isto direcionou o processo para uma exploraccedilatildeo da fronteira entre fala e flauta
FIGURA 38 - EXEMPLO DA UTILIZACcedilAtildeO DO TEXTO COMO SUBSTITUTO DE UMA ESCRITA DE FIGURAS RIacuteTMICAS EM MEU TRECHO PREDILETO
FONTE O autor (2016)
Uma segunda intenccedilatildeo se relacionava mais diretamente ao tema desta pesquisa em sua
concepccedilatildeo inicial construir um sistema interativo em que se estabelecesse relaccedilotildees de
interdependecircncia entre paracircmetros da parte instrumental e eletroacuacutestica Isto foi feito a partir
do sinal da flauta captado ao vivo rastreando (tracking) sua amplitude A fim de facilitar a
diferenciaccedilatildeo de amplitude e tambeacutem por um efeito visual optei por utilizar aleacutem do
microfone de bocal um microfone de controle relativamente afastado da flautista A partitura
indica movimentos de aproximaccedilatildeo e afastamento em relaccedilatildeo a este microfone causando
respectivamente maior e menor amplitude no sinal de aacuteudio Tal sistema foi realizado no
software PureData159 (Pd) utilizando o objeto [env~]
Ainda outra intenccedilatildeo dizia respeito agrave estabilidade morfoloacutegica dos elementos (COSTA
2009)160 Buscava um equiliacutebrio entre elementos estritos e flexiacuteveis na composiccedilatildeo
Diferentemente de trabalhar com uma meacutetrica fixa ou mesmo com a utilizaccedilatildeo de metrocircnomo
para o performer - o que jaacute havia feito na Peccedila para acordeatildeo e sons eletrocircnicos (2016) dei
preferecircncia por uma maior liberdade de interpretaccedilatildeo Desta forma o sistema foi concebido
com cinco programas que necessitam ser sucessivamente ativados durante a performance
Cada um deles tem um comportamento em relaccedilatildeo agrave amplitude do sinal da flauta e natildeo haacute a
necessidade de sincronizar eventos exceto na troca dos programas Aleacutem disso a proacutepria
exploraccedilatildeo do texto se apresentou como um oacutetimo meio de desenvolver elementos especiacuteficos
mas sem a necessidade de serem escritos de uma maneira estrita Isto eacute o tempo de leitura e
outros paracircmetros associados a ela poderiam variar de uma performance para outra Ainda
assim o uso do texto garante certa invariacircncia161 nas proporccedilotildees riacutetmicas e acentuaccedilotildees
possibilitando inclusive o tratamento motiacutevico de um fragmento textual (ver Figura 39)
137
FIGURA 39 - VARIACcedilAtildeO MOTIVICA A PARTIR DE UM FRAGMENTO TEXTUAL (SISTEMAS 2 E 3)
~PPP
FONTE O autor (2018)
A exploraccedilatildeo da fronteira entre a fala e a flauta comeccedilou com anotaccedilotildees neste modelo
de uma nota para cada siacutelaba Inicialmente exploramos (compositor e inteacuterprete) basicamente
trecircs modos de articular fala e flauta (1) voz falada normalmente (2) voz sussurrada (ambas
em posiccedilatildeo ordinaacuteria e tentando fazer soar a flauta com a fala) e (3) leitura mental (usada em
159 Patch disponiacutevel em lthttpsdrivegooglecomopenid=1Fyt16u4m5OwtHVfz1BkxWkOx104OoNyWgt160 Este interesse em particular foi explorado num trabalho apresentado no XXVIII Congresso da ANPPOM
(TUCHTENHAGEN DALDEGAN 2018)161 Costa resume ldquotudo aquilo que a cada apresentaccedilatildeo da peccedila deve do ponto de vista do projeto
composicional levando-se em consideraccedilatildeo todas as suas etapas repetir-se de alguma maneira requer o que chamo de estrateacutegia de invariacircnciardquo (COSTA 2009 p48)
Meu Trecho Predileto Figura 38) Verificamos nos encontros iniciais que a fala normal
ativava pouco o som da flauta devido agrave diferenccedila destas duas atividades Combinar a voz com
sopro direcionado significava deformar a voz ou relegar a flauta a uma muito pequena
ressonacircncia Em ambos os casos acontecia de haver um bloqueio do ar nas consoantes
oclusivas (por exemplo ldquomrdquo ou ldquonrdquo) Aleacutem disso a voz predominava de maneira geral
(especialmente em intensidade) sobre a flauta Por estes motivos flauta e voz falada se
distanciavam eram fluxos completamente distintos Embora fosse uma opccedilatildeo natildeo nos
pareceu uma relaccedilatildeo sonoro-morfoloacutegica interessante no momento devido agrave intenccedilatildeo de
explorar a fronteira a ambiguidade entre elas Com a voz sussurrada chegaacutevamos mais
proacuteximos desta intenccedilatildeo As consoantes oclusivas continuavam incontornaacuteveis mas havia um
maior equiliacutebrio entre a intensidade do sussurro e a da flauta daiacute decorreu o direcionamento
de privilegiar a voz sussurrada Uma soluccedilatildeo encontrada para a voz falada foi utilizaacute-la
cobrindo o bocal mesma posiccedilatildeo da teacutecnica tongue ram162 o que tornava possiacutevel a
alternacircncia com esta teacutecnica de maneira suacutebita A utilizaccedilatildeo do tongue ram combinada aos
cliques de chaves foi uma sugestatildeo da inteacuterprete Ela executava a teacutecnica rapidamente como
na peccedila Come Vengono Prodotti Gli Incantesimi (1985) de Salvatore Sciarrino a qual havia
tocado Outra abordagem foi a de uma fala com as vogais omitidas permanecendo apenas as
consoantes que teriam a funccedilatildeo de ataque do som da flauta Neste modo a compreensatildeo do
texto eacute dificultada Isto era positivo jaacute que a fala estava sendo descontextualizada de sua
funccedilatildeo ordinaacuteria de articulaccedilatildeo da linguagem verbal para um lugar sonoro agraves vezes ocupando
um entre-lugar
Deste processo de exploraccedilatildeo inicial resultaram cinco modos de articulaccedilatildeo entre fala
e flauta
1) leitura mental os sons satildeo tocados no tempo e ritmo como seriam lidas as siacutelabas
para a qual se notou o texto em estilo tachado
2) voz sussurrada omitindo as vogais quase ininteligiacutevel as consoantes satildeo responsaacuteveis
pela articulaccedilatildeo dos sons da flauta para a qual se utilizou a notaccedilatildeo do texto com as
vogais em subscrito
3) voz sussurrada eacute executada com forccedila ofegante para que ative tambeacutem os sons da
flauta para a qual se utilizou a notaccedilatildeo do texto sublinhado
4) voz falada dentro do bocal para a qual se notou o texto dentro de caixas
162 Tongue ram teacutecnica executada cobrindo o porta-laacutebio da flauta com a boca e fechando rapidamente apassagem de ar com a liacutengua gerando assim um ataque percussivo
138
139
5) voz entoada sem altura determinada notada com cabeccedila de nota quadrada fora da
pauta163
Existe uma gama de possibilidades em relaccedilatildeo agrave leitura do texto Isso trazia a
preocupaccedilatildeo de que outros inteacuterpretes optassem por maneiras de ler o texto natildeo previstas ou
desconectadas com a proposta Nos ensaios era possiacutevel ler o texto com a inteacuterprete para
oferecer alguma referecircncia Na partitura optei por definir uma escala de termos referentes ao
andamento da fala que vai de lento (15 a 3 siacutelabas por segundo) a mais raacutepido possiacutevel
A parte eletroacuacutestica foi pensada a partir destas sonoridades da fala Basicamente dois
materiais satildeo articulados A um chamo assovios a outro folhas A confecccedilatildeo do som de
assovios teve o seguinte processo
a) gravaccedilatildeo tanto por mim quanto por Valentina deste assovio com som de ldquossrdquo com
pouco fluxo de ar e com a boca em forma de ldquourdquo
b) filtragem O plugin ReaFir do software Reaper foi usado com a funccedilatildeo de subtrair
perfis construiacutedos com a proacutepria amostra
c) montagens com os sons resultantes do processamento sobreposiccedilatildeo transposiccedilatildeo
reversatildeo entre outras
A confecccedilatildeo do som de folhas passou por
a) gravaccedilatildeo do poema sussurrado por mim e por Valentina
b) gravaccedilatildeo do poema sussurrado por Valentina na flauta - ativando o reacute mais grave da
flauta em doacute
c) gravaccedilatildeo de cliques de chaves e tongue-ram
d) processamento (granulaccedilatildeo) destas gravaccedilotildees no software Cecilia5164
e) montagens com os sons resultantes sobreposiccedilatildeo transposiccedilatildeo reversatildeo entre outras
Assovios e folhas se constituem por ateacute cinco faixas165 resultantes deste processo de
confecccedilatildeo que ficam tocando em loop embora agraves vezes sem soar A amplitude da flauta
determina qual deles soaraacute Se acima de determinado valor limite ( treshold) soam as folhas
por exemplo se abaixo deste valor soam os assovios Este eacute o funcionamento do primeiro
programa Um esquema dos programas pode ser visto na Figura 41 extraiacuteda da partitura
Consideraremos dois fluxos da macrotextura nesta peccedila instrumental (flauta-fala) e
163 Para mais detalhes da notaccedilatildeo confira a partitura (Anexo 2)164 Cecilia5 eacute um software livre mantido pelaAjax Sound Studio httpajaxsoundstudiocomsoftware165 Dentro da pasta geral do patch (ldquochaodeoutono_raubachrdquo) haacute uma pasta ldquoaudiordquo onde estatildeo as faixas que
compotildeem os sons de assovios e de folhas bem como outras que satildeo executadas durante a peccedila O leitor poderaacute ouviacute-las se desejar Eacute tambeacutem possiacutevel simular a performance com o patch Isto pode ser feito com o proacuteprio microfone do computador Neste caso utilize fones-de-ouvido para evitar a realimentaccedilatildeo
eletroacuacutestico Cada um deles apresenta componentes que tambeacutem podem ser abordados
como fluxos Por exemplo a parte eletroacuacutestica dos assovios eacute constituiacuteda por cinco faixas
distintas entretanto estas faixas natildeo podem ser percebidas individualmente com facilidade
Elas formam uma microtextura O mesmo acontece com as folhas
Tambeacutem na parte instrumental eacute possiacutevel identificar dois principais componentes
internos flauta e fala No pensamento composicional a diferenciaccedilatildeo deles eacute relativamente
clara Haacute uma notaccedilatildeo para a fala e outra para a flauta Entretanto postos em accedilatildeo
simultaneamente estes dois componentes internos que satildeo tambeacutem fluxos apresentam forte
interdependecircncia o que gera uma ambiguidade uma confusatildeo sobre o que ou quando eacute flauta
e o que ou quando eacute fala166
Aleacutem dos ataques tradicionais satildeo os ataques da fala que geram som na flauta Haacute
uma ambiguidade na percepccedilatildeo de um ataque tradicional e um ataque proveniente do texto
No primeiro trecho da Figura 39 baseado no texto ldquoao longo das pedrasrdquo as siacutelabas ldquoaordquo e
ldquolon-rdquo devem ser apenas mentalizadas A flauta eacute executada por ataques ordinaacuterios com som
eoacutelio Entretanto nas siacutelabas seguintes - ldquo-go das pe-drasrdquo o modo de fala eacute sussurrado mas
omitindo as vogais Das primeiras duas siacutelabas (ldquoao lon-rdquo) para as seguintes (ldquo-go das peshy
drasrdquo) haacute uma mudanccedila de foco da percepccedilatildeo que passa do som da flauta para o som da fala
embora apoacutes a entrada da fala ainda soe a flauta Haacute um deslocamento na percepccedilatildeo de qual
dos fluxos estaacute em primeiro plano Tendo em mente a terceira maneira de abordar a ideia de
primeiro plano e plano de fundo (p 81) a fala por seu caraacuteter fortemente indicativo costuma
se sobrepor a qualquer outro som A Figura 40 ilustra estes deslocamentos A curva sobre as
duas linhas da tabela (flauta e fala) indica em linhas gerais qual dos dois estaacute em primeiro
plano
140
166 Eacute possiacutevel que haja um pensamento em fluxos na composiccedilatildeo isto eacute como estrateacutegia composicional que natildeo se faz tatildeo claro ou mesmo natildeo eacute identificaacutevel na escuta Entretanto imagino ser recomendaacutevel questionar os resultados sonoros desta estrateacutegia Haacute o risco de o compositor cair num formalismo em que pense que as estrateacutegias composicionais justificam a muacutesica quando como acreditamos soacute a experiecircncia subjetiva da escuta o faraacute
141
FIGURA 40 - DESLOCAMENTOS DE FLAUTA E FALA PARA O PRIMEIRO PLANO EM CHAO DE OUTONO
Flauta
Indica qual dos fluxos estaacute em 1deg plano
6
iacute
tempo de falanormal__
igtv $ t|laquo
c ^ j W W W V V V W
T(bisbigliando)
gt bull(]Ao l0n - g0 das peP mP
^ ---frullato
dr_
(Sistema 2)ppp
t | v (bull )
mp
(Sistema 12)
FONTE O autor (2019)
142
Os cinco programas do patch satildeo brevemente explicados na Figura 41
FIGURA 41 - RELACcedilOtildeES PRESENTES NOS PROGRAMAS DO PATCH
A parte eletroacuacutestica estaacute dividida em 5 programas que devem ser ativados de acordo com as indicaccedilotildees na partitura Os programas constituem-se basicamente de sons preacute-gravados que tecircm sua amplitude e espacializaccedilatildeo determinadas em tempo real por uma relaccedilatildeo com a amplitude da flauta captada pelo microfone de controle Dessa forma pode-se resumir o comportamento dos programas da seguinte maneira
P1 Flauta EletroacuacutesticaP ^ sons de ldquoassoviosrdquo
^ sons de ldquofolhasrdquo
P2 Flauta EletroacuacutesticaP ^ sons de ldquofolhasrdquo
f ^ sons de ldquoassoviosrdquo
P3 Flauta EletroacuacutesticaP ^ nada
f ^ sons de tongue-ramNeste programa tambeacutem haacute uma camada eletroacuacutestica independente (sons como ldquorasgosrdquo) que determina aespacializaccedilatildeo da flauta
Eletroacuacutestica FlautaP ^ espacializaccedilatildeo estaacutetica
^ espacializaccedilatildeo em movimento
P4 Eletroacuacutestica independente sons de ldquofolhasrdquo
P5 Eletroacuacutestica independente sons de ldquoassoviosrdquo
FONTE O autor (2018)
Todos os programas tecircm tambeacutem uma faixa que soa no momento de sua ativaccedilatildeo
independentemente da amplitude da flauta e se relaciona interage com a nota tocada pela
flauta no momento167 Estas notas satildeo marcas estruturais da peccedila Inicialmente havia a
intenccedilatildeo de rastreaacute-las a fim de ativar os programas automaticamente Este recurso foi
experimentado e relativamente bem-sucedido Seria uma vantagem caso algum inteacuterprete
quisesse executar a peccedila sem o auxiacutelio de um performer especiacutefico para a difusatildeo
eletroacuacutestica Entretanto no caso de nossas performances eu necessitava estar presente para
167 Na pasta ldquoaudiordquo satildeo as seguintes faixas programa 2 ldquonoteFwavrdquo 3 ldquonoteDwavrdquo 4 ldquonoteP4wavrdquo 5 ldquoassobiofinalwavrdquo
143
diversas configuraccedilotildees do aparato eletroacuacutestico Por isso decidi eliminar tal recurso do patch
e assumir a funccedilatildeo de trocar os programas
511 Programa 1
A peccedila comeccedila com um crescendo da parte eletroacuacutestica solo (assovios)
evidenciando sua independecircncia em relaccedilatildeo agrave flauta-fala - assim nomearemos o conjunto que
representa o meio instrumental na peccedila A flauta-fala comeccedila incorporando o mesmo assovio
preacute-gravado com o qual funde e a medida que apresenta atividade com intensidade suficiente
para disparar o ldquogatilhordquo no patch a parte eletroacuacutestica responde com atividades de folhas
Aleacutem disso a espacializaccedilatildeo168 destas folhas acontece tambeacutem numa relaccedilatildeo com a amplitude
da flauta-fala quanto mais forte mais distante do centro da sala soam as folhas Este
movimento de afastamento das folhas eacute progressivo foi suavizado utilizando o objeto [line]
do Pd Os assovios por outro lado estatildeo fixos em sua localizaccedilatildeo de projeccedilatildeo na sala
Os materiais da parte instrumental tambeacutem podem ser agrupados nestas duas
categorias (assovio e folhas) e podem fundir ou contrastar com a parte eletroacuacutestica Ambos
fusatildeo e contraste estatildeo longe de serem absolutos O Quadro 6 apresenta possiacuteveis relaccedilotildees de
fusatildeo e contraste baseadas na Morfologia da interaccedilatildeo de Menezes (2006)
QUADRO 6 - FUSAtildeO E CONTRASTE NO PRIMEIRO PROGRAMA DE CHAtildeO DE OUTONO
Fusatildeo relativa Contraste relativo
Fluxo instrumental Assovios Folhas Folhas Assovios
Fluxo eletroacuacutestica Assovios Folhas Assovios Folhas
FONTE o autor (2019)
Quando a atividade da flauta-fala apresenta um material semelhante ao das folhas
acontece relativa fusatildeo Podemos enquadrar esta interaccedilatildeo na categoria de Bachrataacute (2010)
interaccedilatildeo por reproduccedilatildeo tiacutembrica ldquoo timbre do gesto eletroacuacutestico eacute um tipo de reproduccedilatildeo
do timbre do instrumento (usando sons instrumentais gravados pouco manipulados)rdquo
(BACHRATAacute 2010 p 167 traduccedilatildeo nossa169)
Por vezes um material de flauta-fala semelhante aos assovios devido a sua
168 O patch estaacute programado com duas opccedilotildees de difusatildeo esteacutereo e quadrafocircnico169 Original ldquothe timbre of electroacoustic gesture is a kind of reproduction of the timbre of the instrument
(using slightly manipulated recorded instrumental sound)rdquo (BACHRATAacute 2010 p 167)
intensidade dispararaacute sons de folhas causando relativo contraste Assim embora haja uma
regra invariaacutevel que relaciona a intensidade da flauta-fala com o material eletroacuacutestico isso
natildeo significa invariabilidade no eixo fusatildeo-contraste entre estes dois fluxos
Assim no programa 1 apresenta-se um fluxo independente (assovios) embora a
flauta-fala dialogue com ele atraveacutes do som de ldquossrdquo e outro dependente e homogecircneo com a
flauta o das folhas (ver representaccedilatildeo destas relaccedilotildees no Quadro 7) Eacute importante tambeacutem
notar que a flauta-fala e as folhas apresentam um caraacuteter fortemente gestual (incluindo o gesto
visual de aproximaccedilatildeo e afastamento do microfone) enquanto que o fluxo assovios eacute
primariamente textural170
512 Programa 2
O segundo programa inverte a relaccedilatildeo da intensidade da flauta-fala com a resposta
eletroacuacutestica Quando a intensidade da flauta ultrapassa o valor limite natildeo satildeo os sons de
folhas mas os de assovios que vecircm a tona A mesma relaccedilatildeo inversa afeta a espacializaccedilatildeo
Natildeo satildeo os mesmos sons do primeiro programa haacute uma variaccedilatildeo - especialmente a utilizaccedilatildeo
de um harmonizador sobre as amostras do primeiro
Na relaccedilatildeo entre fala e flauta haacute um tensionamento Busquei especialmente no
momento de revisatildeo apoacutes a primeira performance explorar mais a relaccedilatildeo entre o som do ldquorrdquo
como em ldquoperseguidasrdquo com o frullato da flauta O terceiro excerto da Figura 40 representa
um exemplo desta exploraccedilatildeo Haacute tambeacutem a inserccedilatildeo discreta do material de tongue-rams
associado a cliques de chaves Este eacute o principal material durante a accedilatildeo do programa
seguinte
513 Programa 3
Nos programas anteriores a intensidade da flauta-fala afetava o que soava (materiais)
e como soavam (espacializaccedilatildeo) os sons eletroacuacutesticos No terceiro programa o inverso
acontece a intensidade dos sons eletroacuacutesticos preacute-gravados afeta a espacializaccedilatildeo da flauta-
fala Um novo material eletroacuacutestico eacute incorporado o chamaremos rasgos171 Ele soa como
novidade ainda que seja proveniente de processamento dos sons de cliques de chaves jaacute
170 Gesto e textura (SMALLEY 1997) foram abordados em 332171 Na pasta ldquoaudiordquo do patch eacute a faixa ldquoclicks3wavrdquo
144
utilizados O patch rastreia a amplitude destes rasgos e quando esta ultrapassa determinado
valor limite o som da flauta-fala ao vivo eacute espacializado pela sala tal qual satildeo as folhas no
primeiro programa
Outro novo material eletroacuacutestico eacute incorporado neste programa Ele eacute composto por
sons processados (granulaccedilotildees e transposiccedilotildees para o grave) de tongue-rams Este material
vecircm a tona pelo mesmo processo de rastreamento da amplitude da flauta configurando
assim uma relaccedilatildeo de gatilho (WISHART 1996)
Os tongue-rams incorporados esparsamente jaacute no segundo programa preponderam
neste terceiro e alternam com a voz falada e tambeacutem com uma atividade mais idiomaacutetica da
flauta Isto significa uma alternacircncia entre modos de execuccedilatildeo cobrindo o bocal e posiccedilatildeo
ordinaacuteria que carrega uma forccedila visual Assim os gestos que surgem nesta alternacircncia se datildeo
neste ldquoabrir e fecharrdquo do som da flauta-fala expandindo e diminuindo o registro espectral
como um filtro em associaccedilatildeo com o gesto visual Quase como a alternacircncia entre a
percepccedilatildeo do som dentro drsquoaacutegua e fora dela
514 Programa 4 e 5
O quarto e o quinto programa natildeo apresentam relaccedilotildees parameacutetricas com o sinal da
flauta-fala O quarto foi inserido apoacutes a revisatildeo dura poucos segundos e serve como uma
conexatildeo entre o terceiro e o final Ele se constitui basicamente pelo que estamos chamando de
fo lhas Por outro lado o quinto programa consiste em sons de assovios semelhantes aos
iniciais
Uma ilustraccedilatildeo da relaccedilatildeo entre a parte instrumental e a eletroacuacutestica durante a peccedila
pode ser vista na Figura 41
145
146
QUADRO 7 - RELACcedilOtildeES ENTRE FLUXOS SONOROS EM CHAO DE OUTONO
03O75
O03OultDs
P1
Assovios
F2 F3 F4 F5
Folhas
RasgosTongue-ramsAmostra de iniacutecio de cada programa
o o
Flauta-fala S mdash J - S mdash J- AEspacializaccedilatildeo da flauta-fala
A seta indica uma relaccedilatildeo de ldquogatilhordquo (WISHART 1996) indica uma reaccedilatildeo de outro fluxo agravequele do qual ela parte A ausecircncia dela significa independecircncia dos fluxos
FONTE o autor (2019)
Eacute preciso lembrar que as relaccedilotildees de gatilho (WISHART 1996) que acontecem a partir
do rastreamento da amplitude da flauta-fala satildeo muitas vezes associadas ao movimento
corporal da performer ao se aproximar do microfone de controle Esta eacute uma exploraccedilatildeo
incipiente do aspecto visual mencionado em 35 O movimento estabelece uma relaccedilatildeo com a
resposta eletroacuacutestica o que oferece uma referecircncia gestual para o resultado sonoro Ele estaacute
notado na partitura atraveacutes dos ciacuterculos com setas (ver Figura 39) No viacutedeo da primeira
performance172 eacute possiacutevel ver como foi esta primeira experiecircncia Em alguns momentos
mesmo sem se aproximar a resposta eletroacuacutestica surgia Isto natildeo era um problema estava
previsto Entretanto em alguns momentos a indicaccedilatildeo de se aproximar estava sobre um
material em dinacircmica piano (som de ldquossrdquo) que natildeo ativava a resposta eletroacuacutestica Neste
caso avaliando posteriormente como ouvinte haacute a tendecircncia de continuar escutando o
resultado eletroacuacutestico como decorrente desta aproximaccedilatildeo ainda que seja na praacutetica
completamente independente
Natildeo houve muito rigor na aplicaccedilatildeo deste rastreamento de amplitude o que foi
intencional Todas as variaacuteveis assim satildeo flexibilidades da performance tipo do microfone
distacircncia do microfone movimento da performer valor limite (threshold) do patch Natildeo era
desejado que a cada gesto da flauta-fala houvesse uma reaccedilatildeo eletroacuacutestica Esta reaccedilatildeo era
( )
172 Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=l3-ULyfGk2kgt Acesso em 18 jan 2019
147
e de fato foi imprevisiacutevel
52 NASCER PEDRA MORRER NUVEM
Ergui a gola do sobretudo desci a aba do chapeacuteu ateacute perto dos olhos e troquei as dependecircncias do hotel pelas da cerraccedilatildeo Satolep estava apropriadamente decorada para minha festa solitaacuteria As coisas geometrizadas pelo frio mostravam-se volaacuteteis Linhas rigorosas agrave luz do dia eram agora ausecircncia de contornos Fazer trinta anos eraperder-me no nevoeiro tendo em vista a concretude da cidade ou o contraacuterio Umcatildeo flutuava atraacutes de uma charrete que passava O granito do meio-fio corria ao meu lado agraves vezes reluzente em sua umidade agraves vezes dissipado em vapor luminoso um outro catildeo de pedra e de nuvem catildeo de alguma mitologia condenado a nascer e morrer indefinidamente Nascer pedra e morrer nuvem Nascer nuvem e morrer pedra Trinta anos Soprei velinhas imaginaacuterias e minha alma revuloteou diante de mim (RAMIL 2008)
A peccedila Nascer pedra morrer nuvem (2018) para violatildeo e sons eletrocircnicos foi
composta para o violonista Eric Moreira no periacuteodo de maio a novembro de 2018 quando foi
estreada no SESC Paccedilo da Liberdade em Curitiba-PR no dia 22 O texto de Ramil (2008)
descreve imagens que tenho internalizadas e que ocupavam minha mente enquanto
compunha Trata-se de um reflexo da cidade de Pelotas (Satolep) Reencontrei este texto
durante o processo composicional Ele natildeo cumpriu funccedilatildeo estrateacutegica na composiccedilatildeo apenas
foi um pensamento presente que deu nome a peccedila
Dois aspectos direcionaram o processo criativo O primeiro se refere ao tema desta
pesquisa o interesse de explorar a textura em fluxos distintos e aspectos ambiacuteguos (fusatildeo
dissoluccedilatildeo contraste etc) e interativos (causalidades gatilhos) da relaccedilatildeo entre eles O
segundo era de ordem praacutetica trabalhar com sons fixados em suporte a fim de facilitar
possiacuteveis futuras performances Uma vez que natildeo eacute necessaacuterio um conhecimento de softwares
especiacuteficos o proacuteprio performer pode dar iniacutecio aos sons eletroacuacutesticos Aleacutem disso a
utilizaccedilatildeo de uma projeccedilatildeo em esteacutereo tambeacutem facilita a montagem da performance
Em conversas preacutevias agrave composiccedilatildeo o violonista jaacute havia demonstrado certa
preferecircncia por um tipo de sincronizaccedilatildeo como o da peccedila Synchronisms no 10 de Mario
Davidovsky Esta peccedila utiliza sons fixados em suporte e se vale de deixas eletroacuacutesticas que
facilitam entradas e sincronizaccedilotildees precisas do violonista A peccedila de Davidovsky foi uma
referecircncia importante neste processo criativo
O iniacutecio de Nascer pedra morrer nuvem apresenta quatro tipos de materiais
a) harmocircnicos naturais
148
b) campanella teacutecnica de instrumentos de cordas pinccediladas em que se utilizam cordas
soltas em movimentos escalares fazendo com que estas ressoem mais como pequenos
sinos (significado do termo em italiano)
c) frequecircncia contiacutenua foi composta a partir da gravaccedilatildeo de uma corda solta do violatildeo
omitindo-se o ataque justapondo repeticcedilotildees (com crossfades) da parte sustentada
(sustain) transpondo e criando glissandos posteriormente
d) sons percussivos compostos a partir de gravaccedilotildees do ataque ordinaacuterio (unha pinccedilando
a corda abafada por exemplo) e outros materiais percussivos173
A frequecircncia contiacutenua e a atividade do violatildeo (campanella e harmocircnicos) podem ser
percebidas como fluxos que se relacionam por similaridade de frequecircncias fundindo quando
alcanccedilam frequecircncias muito proacuteximas como na nota Reacute dos compassos 9 e 10 (ver Figura 42)
Os sons percussivos compotildeem um fluxo mais complexo pois tratam-se de sons mais
heterogecircneos entre si No momento inicial este fluxo eacute composto por eventos esparsos174 Ele
apresenta pouca relaccedilatildeo com os outros exceto por sincronias ocasionais175 e relaccedilatildeo tiacutembrica
com os ataques do violatildeo
FIGURA 42 - QUATRO MATERIAIS DE NASCER PEDRA MORRER NUVEM (COMPASSOS 8 a 10)
harmocircnicos
I frequecircncia contiacutenua
sonspercussivos
Fonte O autor 2019
O direcionamento de partir desta aacuterea sonoro-morfoloacutegica com preponderacircncia de
sons harmocircnicos (campanella harmocircnicos frequecircncia contiacutenua) para outra com maior
presenccedila de sons inarmocircnicos176 (ataques percussivos e outros materiais) movia a composiccedilatildeo
173 O compasso 56 apresenta alguns dos materiais usados na composiccedilatildeo destes sons percussivos eletroacuacutesticos (ver Figura 44) Trata-se da combinaccedilatildeo de duas atividades (1) percutir com polpa dos dedos da md ldquoaleatoriamenterdquo sobre o tampo o mais raacutepido possiacutevel e (2) rasgueado de me com cordas abafadas pela md com vaacuterios dedos em defasagem e usando as 6 cordas (som percussivo granular)
174 Eles natildeo estatildeo completamente indicados na partitura optei por indicar apenas os eventos que representassem um recurso de sincronia deixas para o inteacuterprete
175 Estes foram os principais sons usados como deixas (ver som percussivo no compasso 9 - Figura 42)176 A distinccedilatildeo de harmonicidade e inarmonicidade eacute abordada por Smalley (1997 p 120)
(atividade composicional) Um recurso para executar tal direcionamento foi utilizar sons
ldquoresiduaisrdquo inerentes agrave execuccedilatildeo do violatildeo o mencionado ataque da unha pinccedilando a corda e
aleacutem disso o ruiacutedo dos dedos deslizando sobre as cordas quando muda-se a posiccedilatildeo177 Este
uacuteltimo eacute incorporado progressivamente ateacute que alcanccedila um momento de transiccedilatildeo (compasso s
40 a 55 ver Figura 43) Neste momento haacute uma baixa atividade harmocircnica que permanece
constante e ao mesmo tempo uma intensificaccedilatildeo dos sons provenientes do deslizar dos dedos
sobre as cordas que por praticidade chamaremos ruiacutedo das cordas
FIGURA 43 - COMPASSOS 39 a 54 TRANSICcedilAtildeO EM NASCER PEDRA MORRER NUVEM (2018)
149
39
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FONTE O autor (2018)
Tal transiccedilatildeo evidencia o princiacutepio arquitetural (WISHART 1996) Haacute uma
diminuiccedilatildeo da presenccedila harmocircnica diminuiccedilatildeo da duraccedilatildeo dos arpejos do violatildeo de sua
177 Estes sons satildeo notados com uma cabeccedila de nota em forma de barra (ver Figura 43)
u
intensidade (dinacircmica) e da frequecircncia contiacutenua na parte eletroacuacutestica Por outro lado haacute
um aumento da duraccedilatildeo do ruiacutedo das cordas No comeccedilo desta transiccedilatildeo este ruiacutedo eacute
executado apenas pelo violatildeo Posteriormente a parte eletroacuacutestica repete multiplica
expande esses sons ateacute que preencham toda a textura Se utilizarmos a categoria atividade-
inatividade (SMALLEY 1997) nesta anaacutelise veremos um movimento contraacuterio entre
atividade dos fluxos harmocircnicos (descendente) e atividade dos fluxos inarmocircnicos
(ascendente)
No momento seguinte a esta transiccedilatildeo os sons percussivos satildeo explorados tambeacutem na
parte do violatildeo Satildeo combinadas duas teacutecnicas (1) percutir com polpa dos dedos da matildeo
direita (m d) ldquoaleatoriamenterdquo sobre o tampo o mais raacutepido possiacutevel (4 na Figura 44) e (2)
rasgueado de matildeo esquerda (m e) com cordas abafadas pela md com vaacuterios dedos em
defasagem e usando as 6 cordas (som percussivo granular) (5 na Figura 44) Somados aos
sons percussivos eletroacuacutesticos estes sons instrumentais fundem num uacutenico fluxo que
chamaremos de pedras Esta fusatildeo natildeo decorre tanto da similaridade espectral quanto da
sincronizaccedilatildeo de iniacutecio e teacutermino da atividade
FIGURA 44 - COMPASSOS 55 a 60 TREcircS FLUXOS
150
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FONTE O autor (2018)
E
3
E
Na parte eletroacuacutestica utilizei tambeacutem a gravaccedilatildeo de sons das cordas tocadas acima
da pestana do violatildeo Este material apresenta similaridade de ataque com as teacutecnicas
executadas pelo violatildeo neste momento entretanto apresentam conteuacutedos frequenciais (notas
agudas) ausentes nestas teacutecnicas A confusatildeo desta fusatildeo (quem estaacute fazendo o que) eacute
acentuada pela imprevisibilidade do resultado sonoro das teacutecnicas mencionadas e a alta
densidade de pequenos eventos tanto do meio instrumental quanto do eletroacuacutestico Este
fluxo de pedras existe independentemente daquele do ruiacutedo das cordas e interage com ele em
relaccedilotildees de causalidade (SMALLEY 1997)
A causalidade eacute evidente pois as pedras datildeo iniacutecio aos ruiacutedos das cordas (compasso
56) e datildeo fim a eles (compasso 58) como se o ligassem e desligassem (ver Figura 44) Mas
esta relaccedilatildeo eacute tambeacutem flexibilizada no compasso 60 quando o fluxo de pedras natildeo interfere
sobre o fluxo de ruiacutedo das cordas (ver Figura 44) Enquanto estes dois fluxos interagem haacute
concorrentemente um fluxo de harmocircnicos independente resquiacutecios da seccedilatildeo passada eou
pressaacutegios da seccedilatildeo final
A uacuteltima seccedilatildeo que aliaacutes foi a primeira a ser composta retoma a aacuterea sonoro-
morfoloacutegica harmocircnica inicial sem a presenccedila das interrupccedilotildees de sons percussivos Estaacute
presente um fluxo muito discreto de estalos (ver picos isolados no sonograma da Figura 45)
que natildeo afetam a preponderacircncia dos sons harmocircnicos Os materiais que compotildeem esta aacuterea
harmocircnica satildeo diferentes dos iniciais natildeo haacute a continuidade da semicolcheia haacute uma
presenccedila maior de harmocircnicos naturais e a parte eletroacuacutestica natildeo apresenta glissandos
amplos
Nesta seccedilatildeo os fluxos estatildeo estruturados em vozes A voz composta por notas tocadas
ordinariamente eacute a mais linear embora haja certa confusatildeo devido agrave proximidade da voz de
harmocircnicos e alguns cruzamentos entre elas A parte eletrocircnica daacute corpo agrave ressonacircncia de
algumas notas soando ora como uma extensatildeo da parte instrumental ora como uma
frequecircncia independente (ver Figura 45)
151
152
FONTE O autor (2019)
O final da peccedila propotildee uma interaccedilatildeo que estava latente nesta relaccedilatildeo entre os
materiais Tanto no comeccedilo quanto nesta seccedilatildeo final a parte eletroacuacutestica eacute articulada num
niacutevel microtonal com frequecircncias muito proacuteximas e glissandos Ao final busquei explicitar
este aspecto utilizando o bend no violatildeo com repeticcedilatildeo de notas e fazendo algo semelhante na
frequecircncia contiacutenua da parte eletroacuacutestica Dando mais tempo para o efeito neste final
tornou-se mais faacutecil perceber os batimentos como em In Memoriam Jon Higgins de Lucier
(analisada em 44) A Figura 46 apresenta os uacuteltimos compassos da peccedila
FIGURA 46 - COMPASSOS 89 a 93 BATIMENTOS
V
E
| nTN TN
TNesperar fim do tape
t e
Fonte O autor (2019)
Resumidamente o princiacutepio arquitetural (WISHART 1996) da peccedila consiste no
percurso ilustrado no Quadro 8 Apesar de a representaccedilatildeo lembrar outras que apresentamos
ela natildeo se refere aos fluxos e suas relaccedilotildees Trata-se de um mapeamento da presenccedila das
aacutereas sonoro-morfoloacutegicas da peccedila Estas podem estar presentes em fluxos quaisquer embora
estejamos conscientes de que nesta peccedila trabalhamos com os materiais em fluxos distintos e
isso faz com que haja certa coincidecircncia entre aacutereas sonoro-morfoloacutegicas e fluxos
153
QUADRO 8 - REPRESENTACcedilAtildeO DO PRINCIacutePIO ARQUITETURAL DE NASCER PEDRA MORRER NUshyVEM
Compassos 1 a 52 53 a 64 65 a 93
Qriir bomiAcirciiirrr bulluUiio iiqiiiiuiiiCcedilUo
Sons inarmocircnicos mdash _ _ _
Fonte O autor (2019)
Tal articulaccedilatildeo entre aacutereas sonoro-morfoloacutegicas eacute de fato uma articulaccedilatildeo formal Ela
evidencia a mencionada previsatildeo de Varegravese de que o timbre poderia se tornar ldquoum agente de
delineamento como as diferentes cores num mapa separando diferentes aacutereas e uma parte
integral da formardquo (VARESE apud SIMMS 1996 p 112)
154
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Nosso trabalho comeccedilou separando e aproximando dois acircmbitos distintos tecnoloacutegico
e sonoro-morfoloacutegico Interaccedilatildeo na muacutesica mista se refere agraves relaccedilotildees entre um performer e
um aparato tecnoloacutegico e ao mesmo tempo se refere agraves relaccedilotildees que os sons instrumentais e
ou eletroacuacutesticos mantecircm uns com os outros178 O caso de um sistema interativo que capta
um paracircmetro da performance e estabelece uma relaccedilatildeo direta com uma transformaccedilatildeo do
som captado eacute um exemplo no qual os acircmbitos distinguidos se impactam mutuamente Um
procedimento tecnoloacutegico de interaccedilatildeo daacute origem a relaccedilotildees sonoras interativas e estas
possivelmente suscitaram aquele Entretanto os impactos de um acircmbito sobre outro natildeo satildeo
generalizaacuteveis Uma mesma relaccedilatildeo sonora interativa pode existir ainda que natildeo se valha de
uma tecnologia interativa
Tendo em vista a impossibilidade de afirmaccedilotildees categoacutericas quanto agraves
correspondecircncias entre estes dois acircmbitos a questatildeo da preferecircncia por esta ou aquela teacutecnica
mais ou menos interativa (tecnologicamente) permanece particular O compositor poderaacute
seguir recomendaccedilotildees de outro mais experiente ou experimentar por si mesmo as vantagens e
desvantagens das teacutecnicas e tecnologias De nossa perspectiva esta querela dos tempos eacute
particular a cada compositor e a cada processo criativo A teacutecnica em tempo diferido oferece
ao compositor facilidade para modelar detalhar e introduzir contraste nos materiais
eletroacuacutesticos as teacutecnicas em tempo real oferecem facilidade para criar materiais
eletroacuacutesticos que fundem com e expandem o som instrumental Contudo ambos os
objetivos podem ser alcanccedilados com ambas as teacutecnicas As duas teacutecnicas se confundem
quando o sistema interativo em tempo real se vale de materiais preacute-gravados ou quando os
sons preacute-gravados mudam em tempo real por alguma accedilatildeo instrumental (por exemplo In
memorian Jon Higgins de Alvin Lucier) Em minha atividade composicional considero que
um sistema interativo que se valha de sons preacute-gravados aleacutem do som captado ao vivo eacute uma
opccedilatildeo mais interessante do que as excludentes Esta opccedilatildeo hiacutebrida une as vantagens de ambas
as teacutecnicas Implementei esta opccedilatildeo no patch de Chatildeo de outono de minha autoria
Um sistema interativo oferece agrave muacutesica eletroacuacutestica uma relaccedilatildeo com o performer
humano que carrega caracteriacutesticas humanas para a muacutesica como argumenta Garnett (ver p
178 No Capiacutetulo 2 nos ocupamos de separar e aproximar estes dois acircmbitos Os autores que fundamentaram esta investigaccedilatildeo foram Schrader (1991) Schulz (2010) Ribeiro et al (2016) Rowe (1993) Menezes (2006) Whaley (2009) Dias (2014) Stroppa (1999) Brummer et al (2001) Garnett (2001) Simon Emmerson (2013) Bachrataacute (2010) Smalley (1997) Ribeiro (2018) e Caesar (2018)
34) Ainda que as partes eletroacuacutesticas preacute-gravadas sejam fruto de uma performance em
estuacutedio e carreguem assim caracteriacutesticas humanas a relaccedilatildeo de performance centrada no
performer humano em palco eacute uma posiccedilatildeo mais explicitadora destes valores humanistas Esta
discussatildeo se insere numa discussatildeo maior e que provavelmente cresceraacute ainda mais nos
proacuteximos anos aquela que discute a relaccedilatildeo entre humano e maacutequina tanto do ponto de vista
teacutecnico quanto de uma perspectiva filosoacutefica e eacutetica O reflexo desta discussatildeo geral seraacute
provavelmente visto nas discussotildees musicais concernentes agrave muacutesica eletroacuacutestica mista e
outras iniciativas de arte com sons que implementam recursos como a inteligecircncia artificial
Desvencilhando-nos desta querela inicial podemos atentar de maneira especial para as
relaccedilotildees e interaccedilotildees sonoras presentes na muacutesica eletroacuacutestica mista A interaccedilatildeo neste
acircmbito analiacutetico natildeo eacute exclusividade da muacutesica mista embora nela se encontre muito
evidenciada Haacute por exemplo interaccedilatildeo entre vozes numa textura puramente instrumental e
tambeacutem entre gestos na muacutesica puramente eletroacuacutestica Na muacutesica mista haacute a soma e a
multiplicaccedilatildeo das possibilidades de relaccedilotildees instrumentais com as possibilidades de relaccedilotildees
eletroacuacutesticas Haacute relaccedilotildees e interaccedilotildees entre os sons dos diferentes meios envolvidos
Assim falar de interaccedilatildeo na muacutesica mista considerando apenas estes dois grupos de sons - os
instrumentais e os eletroacuacutesticos - eacute uma simplificaccedilatildeo da complexidade que nela se
apresenta Primeiramente porque estes grupos de sons natildeo satildeo tatildeo separados como eacute possiacutevel
crer - sons eletroacuacutesticos podem ser a exata reproduccedilatildeo de um som instrumental ou apenas
um efeito sobre o som instrumental Os dois trabalhos que abordam especificamente a
interaccedilatildeo na muacutesica mista o artigo de Menezes (2006 p 377-400) e a tese de Bachrataacute
(2010) baseiam-se especialmente nesta separaccedilatildeo entre sons instrumentais e sons
eletroacuacutesticos Embora estes estudos tenham resultados muito relevantes acreditamos que a
teoria precisa relativizar esta separaccedilatildeo baseada no fisiologismo teacutecnico e tecnoloacutegico Os
sons podem ser agrupados em fluxos independentemente de sua produccedilatildeo ter sido mecacircnica
ou eletromecacircnica (circuito - altofalante) Eacute preciso entatildeo atentar para como na experiecircncia
da escuta agrupamos os sons
Neste sentido a psicologia da audiccedilatildeo explica que segregamos o todo sonoro que
chega aos nossos ouvidos em fluxos auditivos distintos Esta segregaccedilatildeo acontece por
aspectos dos sons a correlaccedilatildeo entre iniacutecio e teacutermino dos componentes sonoros a diferenccedila
de localizaccedilatildeo espacial registro espectral entre outros Assim podemos distinguir sons que
vecircm de uma pessoa falando daqueles provenientes de um eletrodomeacutestico por exemplo Os
155
sons de cada um deles satildeo agrupados em fluxos auditivos distintos (BREGMAN 2004 2008
SHEPARD 1999)
Esta explicaccedilatildeo guarda relaccedilatildeo com a maneira como tradicionalmente distinguimos
partes simultacircneas de um todo musical Em muacutesica o termo usado para expressar a
complexidade das simultaneidades eacute textura Ela eacute formada por linhas e vozes simultacircneas
(fluxos auditivos) que interagem umas com as outras Para que identifiquemos uma destas
vozes e a diferenciemos de outra eacute preciso que haja continuidade nas caracteriacutesticas dos sons
que a compotildeem especialmente eou tradicionalmente timbre registro e sincronia de iniacutecio e
fim dos sons (SHEPARD 1999)
Aleacutem da voz um fluxo auditivo pode ser constituiacutedo de uma sonoridade Guigue
(2011) apresenta a ideia de sonoridade e a possibilidade de uma polifonia de sonoridades
Uma sonoridade eacute caracterizada por diversos aspectos como coleccedilatildeo de cromas particcedilatildeo
intensidade entre outros A principal diferenccedila em relaccedilatildeo a ideia de voz eacute que a sonoridade
pode se apresentar uma apoacutes a outra A voz eacute uma explicaccedilatildeo da segregaccedilatildeo da textura em
planos simultacircneos a sonoridade eacute propriamente uma textura Entretanto haacute a possibilidade
de uma polifonia de sonoridades o que seria desta forma uma textura de texturas Assim a
ideia de textura carrega em potencial um caraacuteter como o dos fractais
Esta concepccedilatildeo natildeo eacute estranha ao repertoacuterio do seacuteculo XX e tem seu fundamento na
ideia de uma textura de efeito global presente em obras de Anton Webern (Sinfonia Op 21
por exemplo) (SIMMS 1996) Este efeito global de uma textura em que natildeo atentamos para
vozes em desenvolvimento individual e linear mas sim para um todo resultante foi muito
explorado por compositores durante o seacuteculo XX Podemos lembrar das massas sonoras de
Ligeti (Atmospheres por exemplo) formadas por muitas linhas em uma micro-polifonia Em
Xenakis eacute possiacutevel perceber a simultaneidade de massas distintas (Pithoprakta por exemplo)
Estas texturas que formam massas quando sobrepostas soam simultaneamente instaurando
uma outra textura A primeira indica a configuraccedilatildeo de elementos do niacutevel micro enquanto
que a segunda indica uma configuraccedilatildeo destas microtexturas numa macrotextura A
concepccedilatildeo que integra estas duas ideias de textura natildeo foi identificada em nossas referecircncias
bibliograacuteficas Elas estatildeo presente separadamente se esta ou aquela depende do repertoacuterio agrave
que se estaacute se referindo Em nenhuma de nossas leituras sobre muacutesica eletroacuacutestica o termo
textura indicava o aspecto macro Na espectro-morfologia de Smalley (1997) por exemplo
textura contrapotildee gesto e se refere a uma continuidade sonora que assume um caraacuteter de
156
157
proporccedilotildees ambientais em oposiccedilatildeo agraves proporccedilotildees humanas do gesto Por conta destas
proporccedilotildees tendemos a prestar mais atenccedilatildeo aos detalhes internos do som Citamos
novamente o autor
Ao mesmo tempo haacute uma mudanccedila de foco da escuta - quanto mais lento o iacutempeto gestual direto tanto mais o ouvido procura se concentrar em detalhes internos (ateacute onde eles existam) Uma muacutesica que eacute primariamente textural assim se concentra na atividade interna agraves custas do iacutempeto antecipado179 (SMALLEY 1997 p 113shy114 traduccedilatildeo nossa)
Ao tratar de comportamento Smalley salienta que a metaacutefora pode ser aplicada entre
outros exemplos a um grupo de texturas (SMALLEY 1997 p 118) Ora se pensamos uma
textura de maneira anaacuteloga a uma voz este ldquogrupo de texturasrdquo representa uma configuraccedilatildeo
semelhante a que nos referimos no exemplo de Xenakis uma textura de texturas Para
diferenciar estes dois tipos de texturas nos referimos a microtextura e macrotextura Esta
nomenclatura eacute menos uma proposta teoacuterica a ser replicada do que um meio de indicar
diferentes acepccedilotildees no acircmbito deste trabalho unicamente Assim como exemplos eacute possiacutevel
haver uma macrotextura em que haja fluxos texturais (microtexturas) que soam
simultaneamente e ainda uma macrotextura em que haja um fluxo textural que soa
simultaneamente a outro gestual por exemplo
Portanto demonstramos assim que ao nos referirmos agrave interaccedilatildeo neste acircmbito
sonoro-morfoloacutegico eacute preciso considerar qual niacutevel estrutural estamos analisando Pode haver
interaccedilatildeo entre elementos que compotildeem as microtexturas como tambeacutem entre aqueles que
compotildeem a macrotextura Nosso interesse analiacutetico voltou-se sobretudo agrave macrotextura
aquela que eacute primeiro e mais facilmente percebida No caso de nossa anaacutelise de
Desintegration (41) por exemplo o fluxo que denominamos ataques agudos e ressonacircncias
era formado por gestos texturais Entretanto nos bastou compreendecirc-lo como um fluxo e
investigamos sua relaccedilatildeo com os outros Natildeo atentamos para a interaccedilatildeo entre os ataques
presentes no interior deste fluxo os diferentes timbres destes ataques etc nos interessava
mais o aspecto da macrotextura
Quando Guigue (2011 p 47-81) trata da polifonia de sonoridades salienta para a
segregaccedilatildeo do todo sonoro em fluxos distintos O uso deste termo como explicita o autor estaacute
179 Original ldquoAt the same time there is a change of listening focus - the slower the direct gestural impetus the more the ear seeks to concentrate on inner details (insofar as they exist) A music which is primarily textural then concentrates on internal activity at the expense of forward impetusrdquo (SMALLEY 1997 p 113-114)
intimamente relacionado agrave teoria da psicologia da audiccedilatildeo especialmente dos estudos de
Albert Bregman Tendo por base esta teoria entendemos que a ideia de fluxo eacute uma opccedilatildeo
interessante para indicar qualquer tipo de agrupamento de sons sucessivos que apresentam
continuidade em um miacutenimo de aspectos e podem se diferenciar de outro agrupamento
semelhantemente definido Em Wishart (1996) anterior aos estudos de Bregman fluxo
(stream) eacute uma maneira de pensar a separaccedilatildeo das simultaneidades de uma maneira menos
enrijecida e mais flexiacutevel liacutequida Os fluxos podem se dissolver um no outro Neste sentido
consideramos um termo adequado para se referir a muitos dos processos sonoros
eletroacuacutesticos que habitam regiotildees ambiacuteguas fronteiriccedilas e menos definidas Evidentemente
a anaacutelise pode se valer de outras terminologias como planos massas e camadas de acordo
com a intenccedilatildeo analiacutetica com vista agravequilo que se quer demonstrar O fluxo daacute conta de
ambiguidades dissoluccedilotildees fusotildees e contrastes progressivos A camada expressa a separaccedilatildeo
permanente pouco variaacutevel O plano indica a existecircncia de transparecircncias o primeiro plano
natildeo oculta o segundo plano e haacute movimentos de aproximaccedilotildees e distanciamentos em relaccedilatildeo
ao ouvinte Aliaacutes talvez estes movimentos atravessam os planos sejam proacuteprios de uma
espeacutecie de fluxo transversal A massa eacute um tipo especiacutefico de camada fluxo ou plano ela eacute
sempre textural Ainda assim a denominaccedilatildeo fluxo parece se adaptar mais facilmente a
diferentes situaccedilotildees Ele pode se apresentar estaacutevel como a camada pode estar emcruzar por
planos distintos pode ser uma massa Estas asserccedilotildees natildeo visam agrave definiccedilatildeo das
terminologias e carecem de exemplos e especificidades - algumas das quais foram exploradas
em nossa pesquisa Mas elas satildeo interpretaccedilotildees do que foi observado na teoria na anaacutelise e
na composiccedilatildeo
Os estudos cognitivos mencionados (BREGMAN 2004 2008 SHEPARD 1999)
bem como outros recursos teoacutericos da muacutesica (BERRY 1987 MENEZES 2006) nos ajudam
a pensar a distinccedilatildeo dos fluxos e a identificar caracteriacutesticas de separaccedilatildeo fusatildeo e
ambiguidades intermediaacuterias Entretanto haacute um outro aspecto que natildeo diz respeito apenas agraves
caracteriacutesticas sonoras mas tambeacutem a como as relacionamos com outras experiecircncias As
relaccedilotildees satildeo concebidas por um processo de referenciaccedilatildeo extriacutenseca (NATTIEZ 1990) Por
ouvir determinada relaccedilatildeo sonora nos referenciamos a experiecircncias externas agrave muacutesica Daiacute
podemos falar de comportamento dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo conflito-coexistecircncia sujeito e
contra-sujeito entre outros
A abordagem de Smalley (1997) sobre o comportamento oferece categorias que se
158
mostraram relevantes nas anaacutelises Os pares de oposiccedilatildeo domiacuteniosubordinaccedilatildeo e
conflitocoexistecircncia foram os principais recursos utilizados desta teoria Foram articulados
atraveacutes do modo de relacionamento atividade-inatividade tanto na anaacutelise de Desintegrations
de Murail quanto de Music fo r Snare Drum and Computer de Lippe Na peccedila de Lippe foi
possiacutevel representar o movimento dos fluxos em relaccedilatildeo a este eixo (atividade-inatividade) o
que evidenciou relaccedilotildees entre os fluxos neste paracircmetro movimento paralelo obliacutequo e
contraacuterio
Nossa anaacutelise de Desintegrations explorou tambeacutem os conceitos de Wishart (1996) A
transformaccedilatildeo harmocircnico-tiacutembrica da seccedilatildeo foi entendida como o princiacutepio arquitetural da
seccedilatildeo Entretanto algumas aacutereas sonoro-morfoloacutegicas dissimilares se mostram inseridas nesta
transformaccedilatildeo Neste sentido nossa anaacutelise tomou um rumo diferente da proposta de Wishart
que previa que estas aacutereas sonoro-morfoloacutegicas abarcassem todos os fluxos (como as
tonalidades abarcam todas as vozes) Extendendo a comparaccedilatildeo de Wishart com o tonalismo
poderiacuteamos dizer que eacute como se a peccedila fosse politonal Isto eacute as aacutereas sonoro-morfoloacutegicas
distintas encontram-se sobrepostas em muitos momentos Por isso foi possiacutevel entendecirc-las
cada uma como constituidoras de um fluxo Cada fluxo deriva do anterior partindo de uma
dependecircncia homogecircnea ou interativa inicial e indo para a independecircncia Esta eacute basicamente
a articulaccedilatildeo da dimensatildeo vertical do princiacutepio dinacircmico O quadro de Wishart (Quadro 3) foi
explorado como um graacutefico em duas dimensotildees para expressar a relaccedilatildeo de dois fluxos
iniciais (ver Figura 34) Na observaccedilatildeo da peccedila Nascer pedra morrer nuvem (52) os fluxos
tambeacutem se mostraram atrelados agraves aacutereas sonoro-morfoloacutegicas Eles carregam caracteriacutesticas
sonoras - que eacute tambeacutem o que os diferenciam - que delimitam estas aacutereas por sua maior
presenccedila ou ausecircncia
Na anaacutelise de Strange Autumn de Takasugi nos preocupamos em demonstrar a
plausibilidade de um fluxo visual conforme apontado em 35 Prezamos por apontar as
relaccedilotildees identificadas observando o mencionado viacutedeo da performance natildeo nos detendo a
particularidades das relaccedilotildees entre os fluxos ou de seus componentes internos Foi possiacutevel
identificar correspondecircncias variadas entre o fluxo visual e os fluxos sonoros Ressalta-se
neste aspecto trecircs possibilidades (1) a possibilidade de a accedilatildeo visual ser associada a um
resultado aural que esperamos ouvir Por exemplo quando o recitante abre a boca como se
falasse ldquoardquo e ouvimos o som correspondente - ldquoardquo Por outro lado (2) a accedilatildeo visual pode natildeo
corresponder a este tipo de expectativa causando assim um efeito de ventriloquismo uma
159
duplicaccedilatildeo estranha devido agrave sincronizaccedilatildeo labial (TAKASUGI 2016) por exemplo
quando o recitante articula como se falasse ldquolerdquo (da palavra leaves) e ouvimos em vez do som
esperado um som percussivo vagamente semelhante a um mecanismo de uma maacutequina de
escrever Aleacutem disso (3) a accedilatildeo visual pode ser independente e natildeo corresponder a qualquer
som Aspectos visuais tambeacutem foram apontados em Chatildeo de outono (51) Entretanto na
composiccedilatildeo da peccedila natildeo houve a preocupaccedilatildeo de considerar este aspecto um elemento da
textura Esta possibilidade me atrai pois faz com que tudo faccedila parte da peccedila olhares passos
viradas de paacuteginas etc E aleacutem disso se relaciona com esta questatildeo inerente agrave muacutesica
eletroacuacutestica a ambiguidade de percepccedilatildeo da produccedilatildeo e da fonte sonora Possivelmente
explorarei tais recursos visuais em composiccedilotildees futuras
Nossa abordagem sobre a obra de Cort Lippe buscou identificar com base nas notas
de programa das peccedilas peculiaridades e diferenccedilas entre os trabalhos com instrumentos e
sons fixados em suporte e aqueles com instrumentos e sistema interativo Apontamos a
tendecircncia de nas peccedilas que fazem uso de sons fixados em suporte os meios instrumental e
eletroacuacutestico serem concebidos com relativo contraste num diaacutelogo Nas peccedilas que fazem
uso de sistemas interativos a tendecircncia eacute de conceber estes dois meios numa maior fusatildeo
Music fo r Snare Drum and Computer se enquadra nesta segunda categoria Ainda assim foi
possiacutevel observar relativo contraste alcanccedilado especialmente por um processo de afastamento
da parte eletroacuacutestica em relaccedilatildeo agrave parte instrumental por meio de processamentos de maior
interferecircncia
Na anaacutelise de In Memoriam Jon Higgins destacamos a interaccedilatildeo em tempo real
baseada natildeo num sistema interativo mas num fenocircmeno (psico)acuacutestico - os batimentos
Devido a este fenocircmeno fusatildeo e contraste (MENEZES 2006) acontecem de maneira peculiar
nesta peccedila Apontamos tambeacutem as relaccedilotildees diretas e inversas entre paracircmetros como por
exemplo entre registro e frequecircncia de batimentos
Alguns conteuacutedos foram levantados como referenciais no Capiacutetulo 3 e natildeo foram
retomados ou natildeo ganharam grandes proporccedilotildees nas anaacutelises ou na composiccedilatildeo
caracteriacutesticas de relaccedilotildees entre vozes (BERRY 1987) questotildees de orquestraccedilatildeo (SIMMS
1996) aspectos da teoria de Guigue como a oposiccedilatildeo adjacente e a segmentaccedilatildeo (GUIGUE
2011) modelos de interaccedilatildeo de Bachrataacute (2010) e possivelmente outros Entretanto mais do
que pragmaacutetico o Capiacutetulo 3 eacute uma discussatildeo sobre a abordagem de uma macrotextura da
muacutesica eletroacuacutestica Ele natildeo apenas eacute um preacute-requisito dos capiacutetulos 4 e 5 mas sustenta a si
160
mesmo na funccedilatildeo de abrir e explorar esta discussatildeo Estes conteuacutedos foram importantes para
tratar da questatildeo central da pesquisa ldquo[] a caracterizaccedilatildeo e a interaccedilatildeo de fluxos distintos
percebidos na experiecircncia de escuta []rdquo (p 18) As anaacutelises dos capiacutetulos 4 e 5 objetivaram
trazer a teoria para um acircmbito da plausibilidade praacutetica apelando natildeo apenas para a
razoabilidade das ideias mas para a verificaccedilatildeo aural de suas possibilidades Neste sentido
nas anaacutelises natildeo tentamos incluir todos os recursos teoacutericos mas evidenciar as constituiccedilotildees e
interaccedilotildees nos valendo apenas daqueles que a partir da escuta nos pareciam mais adequados
O capiacutetulo 5 levou a discussatildeo para um acircmbito pessoal A atividade composicional natildeo
foi um ldquofluxordquo independente da pesquisa mas interagiu com ela A pesquisa por sua vez
surgiu de interesses composicionais e foi continuamente alimentado por eles Esta interaccedilatildeo
entre compor e pesquisar eacute o que faz esta pesquisa ser diferente de uma pesquisa em teoria e
anaacutelise A anaacutelise das peccedilas neste capiacutetulo se confundem com um memorial descritivo pois o
pesquisador natildeo eacute apenas o analista mas tambeacutem o compositor Os objetivos da pesquisa que
concerniam agrave constituiccedilatildeo e interaccedilatildeo de fluxos mais ou menos distintos eram tambeacutem
objetivos composicionais entretanto a metodologia foi distinta o pesquisar articulou a teoria
o compor os sons
Na anaacutelise de Chatildeo de outono foi possiacutevel notar uma estreita relaccedilatildeo entre
configuraccedilatildeo do sistema interativo e relaccedilotildees entre fluxos distintos A principal relaccedilatildeo
apontada foi de gatilho (WISHART 1996) que eacute neste caso tanto uma caracteriacutestica sonoro-
morfoloacutegica como um aspecto praacutetico-tecnoloacutegico da performance Na anaacutelise de Nascer
pedra morrer nuvem evidenciou-se a possibilidade de muacuteltiplos fluxos nos dois meios o
meio instrumental apresenta ateacute trecircs fluxos simultacircneos por exemplo
Tanto nas anaacutelises de Desintegrations Strange Autumn e Music fo r Snare Drum and
Computer quanto na abordagem das proacuteprias peccedilas Chatildeo de outono e Nascer pedra morrer
nuvem a investigaccedilatildeo dos fluxos sonoros apresentou implicaccedilotildees formais No capiacutetulo 4
analisamos apenas uma seccedilatildeo de cada peccedila entretanto no interior destas seccedilotildees foi possiacutevel
observar desenvolvimentos mudanccedilas responsaacuteveis por particionar (mais ou menos
claramente) o percurso musical Estas mudanccedilas estavam atreladas a desenvolvimentos e
mudanccedilas na macrotextura A investigaccedilatildeo da macrotextura do desenvolvimento de fluxos
sonoros da sua dominaccedilatildeo sobre ou sua subordinaccedilatildeo a outros fluxos das aacutereas sonoro-
morfoloacutegicas que manifestam ofereceu uma perspectiva dinacircmica da forma Em
Desintegrations e em Nascer pedra morrer nuvem notamos fluxos diretamente relacionados
161
com as aacutereas sonoro-morfoloacutegicas (WISHART 1996) que estes manifestam Aleacutem disso
notamos transiccedilotildees mais ou menos graduais de uma aacuterea para a seguinte devido ao
desenvolvimento de fluxos sonoros Em Strange Autumn a presenccedila e ausecircncia de elementos
texturais segmenta a seccedilatildeo analisada em duas partes Em Music fo r Snare Drum and
Computer as relaccedilotildees oscilantes de atividade-inatividade delineiam um percurso para a seccedilatildeo
Estas anaacutelises evidenciaram uma estreita relaccedilatildeo entre a textura e os aspectos formais das
peccedilas
Questotildees mais especiacuteficas das particularidades da diferenciaccedilatildeo entre os fluxos
tambeacutem podem ser abordadas em pesquisas futuras Isto eacute pode-se abordar quais satildeo os
paracircmetros aleacutem dos mencionados que nos permitem diferenciar os fluxos qual a forccedila que
eles tecircm nesta diferenciaccedilatildeo quais combinaccedilotildees de paracircmetros podem ser usados na
diferenciaccedilatildeo etc Ainda outra questatildeo eacute se os demais recursos da spectro-morfologia
(SMALLEY 1997) aleacutem daqueles utilizados nesta pesquisa (atividade-inatividade e
harmonicidade-inarmonicidade) podem cumprir esta funccedilatildeo de diferenciar os fluxos
processos de crescimento e de movimento movimentos de textura (microtextura) espaccedilo
espectral e densidade e espaccedilo-morfologia
Tendo observado que no eixo atividade-inatividade eacute possiacutevel analisar os movimentos
(paralelo obliacutequo e contraacuterio) de um fluxo (432) em relaccedilatildeo a outro podemos especular se o
mesmo natildeo seria possiacutevel em outros eixos (que descrevem aspectos ou paracircmetros) como
harmonicidade-inarmonicidade densidade de eventos ou inclusive aqueles que decorrem da
parametrizaccedilatildeo de algum aspecto particular em determinada peccedila Isto eacute pensar a interaccedilatildeo
entre os fluxos como uma relaccedilatildeo parameacutetrica Esta seria uma perspectiva quase matemaacutetica
passiacutevel de ser expressa em graacuteficos como fizemos na anaacutelise de Music fo r Snare Drum and
Computer (432) e provavelmente mais proacutexima da implementaccedilatildeo em recursos tecnoloacutegicos
- mapeamentos e outros procedimentos Ao mesmo tempo eacute preciso considerar que mesmo
que as relaccedilotildees sejam abordadas nestes termos elas fazem referecircncia a experiecircncias externas
agrave muacutesica As referecircncias comportamentais satildeo extriacutensecas (SMALLEY 1997) Isto eacute
baseando-nos numa relaccedilatildeo parameacutetrica (intramusical) dificilmente poderemos identificar
dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo ou conflito-coexistecircncia para isso eacute preciso fazermos referecircncia a
experiecircncias externas que se aproximem de alguma maneira do que estamos ouvindo
Esta pesquisa foi uma exploraccedilatildeo das possiacuteveis relaccedilotildees no interior da textura da
muacutesica eletroacuacutestica mista Por um lado buscou-se modelos teoacutericos para a concepccedilatildeo de
162
uma textura neste contexto por outro investigou-se no proacuteprio ato criativo musical
estrateacutegias de estruturaccedilatildeo desenvolvimento e interaccedilatildeo dos elementos da textura Nesta
segunda investigaccedilatildeo de ordem mais praacutetica optou-se por uma maior liberdade A exploraccedilatildeo
de relaccedilotildees texturais - constituir fluxos e colocaacute-los em interaccedilatildeo - na composiccedilatildeo natildeo foi
sistematizada Ainda que os dois processos tenham se influenciado mutuamente agrave
composiccedilatildeo reservou-se a liberdade em coerecircncia com a concepccedilatildeo pessoal de que ela tem
sua proacutepria origem caminho e destino e que eles satildeo artiacutesticos antes de serem cientiacuteficos
163
164
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172
ANEXOS
Anexo 1 Quadros de modelos de interaccedilatildeo gestual de Petra Bachrataacute (2010)
Anexo 2 Partitura de Chatildeo de outono (2017-8)
Anexo 3 Partitura de Nascer pedra morrer nuvem (2018)
Outros anexos gravaccedilotildees viacutedeos e patch disponiacuteveis em
lthttpsdrivegooglecomopenid=1Fyt16u4m5OwtHVfz1BkxWkOx104OoNyWgt
173
ANEXO 1 - QUADROS DE MODELOS DE INTERACcedilAtildeO GESTUAL DE PETRA
BACHRATAacute (2010)
I Modelos elementares de interaccedilatildeo gestual
A Interaccedilatildeo gestual por similaridade ou diferenccedila de alturafrequecircncia
1 Fusatildeo pela mescla de alturafrequecircncia idecircntica - interaccedilatildeo unissocircnica2 Fusatildeo por similaridade de frequecircncia
Fusatildeo no registro grave Fusatildeo no registro meacutedio Fusatildeo no registro agudo
3 Contraste por distinccedilatildeo de frequecircncia4 Interaccedilatildeo por flutuaccedilatildeo de bandas frequenciais5 Interaccedilatildeo baseada em ruiacutedo
C Interaccedilatildeo gestual por trajetoacuteria de intensidade1 Interaccedilatildeo crescendo2 Interaccedilatildeo decrescendo3 Interaccedilatildeo por intersecccedilotildees e cruzamentos (crossovers) em trajetoacuterias de intensidade4 Combinaccedilatildeo dos modelos anteriores
B Interaccedilatildeo gestual baseada em organizaccedilatildeo temporal
1 Interaccedilatildeo sincrocircnicaRegular- uniriacutetmica
Irregular- sincopada
2 Interaccedilatildeo assincrocircnicaRegularIrregularPoliriacutetmica
3 Interaccedilatildeo temporal proporcional por reduccedilatildeo ou multiplicaccedilatildeo de duraccedilatildeo ou padratildeo temporal4 Interaccedilatildeo por agrupamento textural5 Interaccedilatildeo atemporal6 Surrealismo socircnico temporal
D Interaccedilatildeo gestual de acordo com ascaracteriacutesticas tiacutembricas (similaridadediferenccedila)
1 Fusatildeo tiacutembricaInteraccedilatildeo por reproduccedilatildeo tiacutembrica Interaccedilatildeo por derivaccedilatildeo tiacutembrica Interaccedilatildeo por associaccedilatildeo tiacutembrica
2 Contraste tiacutembricoInteraccedilatildeo por dissociaccedilatildeo tiacutembrica
174
II Interaccedilatildeo gestual baseada no modelo tripartite de estrutura (onset-continuant-termination)
1 Interaccedilatildeo por ataque2 Interaccedilatildeo por iteraccedilatildeo3 Interaccedilatildeo por ressonacircncia (ataque-decaimento)4 Interaccedilatildeo por ressonacircncia invertida (ataque-decaimento invertido)5 Combinaccedilatildeo de interaccedilatildeo por ressonacircncia e por ressonacircncia invertida6 Interaccedilatildeo cadencial - interaccedilatildeo por terminaccedilatildeo gradual7 Interaccedilatildeo por cross-fading
III Interaccedilatildeo gestual contrapontiacutestica
1 Interaccedilatildeo repetitiva2 Interaccedilatildeo imitativa3 Interaccedilatildeo canocircnica4 Interaccedilatildeo canocircnica com loop5 Interaccedilatildeo proporcional
RitmoAlturaRitmo e altura
6 Contraponto entre gestos homogecircneos7 Contraponto entre gestos heterogecircneos8 Interaccedilatildeo de gatilho (triggering)
Interaccedilatildeo de gatilho pela potenciaccedilatildeo entre morfologias Interaccedilatildeo de gatilho por transformaccedilatildeo tiacutembrica
9 Contraponto pela divisatildeo do gesto
175
IV Interaccedilatildeo gestual baseada em caracteriacutesticas semacircntico-morfoloacutegicas
Direccedilatildeoa Direccedilatildeo de movimento no campo da altura
Interaccedilatildeo linearpor direccedilatildeo similar de movimento
- ascendente- descendente- plano
por direccedilatildeo diferente de movimento- convergente- divergente- reciacuteproco
Interaccedilatildeo curvilinearInteraccedilatildeo por manipulaccedilatildeo da direccedilatildeo no campo da altura
por contraccedilatildeo por expansatildeo
Interaccedilatildeo cecircntrica pericentral centriacutepeta centriacutefuga
EnergiaInteraccedilatildeo por energia constantemantida Interaccedilatildeo por aumento de energia Interaccedilatildeo por diminuiccedilatildeo de energia Interaccedilatildeo por energia transformadaconvertida Combinaccedilatildeo dos modelos anteriores
b Direccedilatildeo enquanto evoluccedilatildeo do tempo - direccedilatildeo no campo das duraccedilotildees
Interaccedilatildeo por velocidade constante Interaccedilatildeo por velocidade irregular Interaccedilatildeo por aceleraccedilatildeo Interaccedilatildeo por desaceleraccedilatildeo Tipos combinadosInteraccedilatildeo por aceleraccedilatildeo-desaceleraccedilatildeo Interaccedilatildeo por desaceleraccedilatildeo-aceleraccedilatildeo Interaccedilatildeo pela manipulaccedilatildeo (espicharcontrair) do tempopor contraccedilatildeo por expansatildeo
176
V Modelos espaciais de interaccedilatildeo gestual
10 Relaccedilatildeo independentemente11 Relaccedilatildeo interativa12 Relaccedilatildeo de gatilho (triggering)
FONTE Bachrataacute (2010 apecircndice traduccedilatildeo nossa)
ANEXO 2 - PARTITURA DE CHAtildeO DE OUTONO
177
Chatildeo de outonopara flauta e sons eletrocircnicos 2017-8Davi Raubach
Notas de Performance
F l a u t a
Ritmo e andamento estatildeo notados de trecircs maneiras1) Determinada com andamento e figuras riacutetmicas
J = c 54TN
gt )s s _
PP PP
2) Indeterminada (natildeo proporcional) livre (bisbigliando)c^WWWWWWWWVWWWWVVWVWWW
1]V ( bull ) --------d n s
mp
3) Determinada pelo tempo de fala deve-se tocar no ritmo com que satildeo ou seriam lidas as siacutelabas
tempo de falanormal
IT
- a e l e n -
Pg o c L s
Apenas como referecircncia pode-se considerar15 a 3 siacutelabas por segundo 3 a 4 siacutelabas por segundo5 a 7 siacutelabas por segundo mais raacutepido possiacutevel
lento normal raacutepidomais raacutep poss
(bull)s s
Assovio agudo feito com o som de ldquossrdquo boca em forma de ldquourdquo na posiccedilatildeo da nota indicada Deve-se variar o assovio livremente
tf 6
O microfone deve ficar agrave direita do (a) performer direcionado para a extremidade da flauta e em paralelo a ela O(a) performer deve fazer movimentos de aproximaccedilatildeo e afastamento em relaccedilatildeo ao microfone conforme a seguinte notaccedilatildeo
afastado do microfone
t f proacuteximo ao microfone
- A linha pontilhada entre os siacutembolos indica um movimento mais progressivo de afastamento ou aproximaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao microfone- Este movimento natildeo deve ser feito por passos mas apenas com o movimento do corpo especialmente o movimento de rotaccedilatildeo Deve-se buscar uma organicidade e certa expressividade no movimento corporal
p a - m - ccedil o
- Texto sublinhado sussurrar o texto junto agrave flauta na posiccedilatildeo indicada Para um resultado eficiente o sussurrar deve ser relativamente forte e com pressatildeo de ar suficiente para ativar ainda que sutilmente as alturas indicadas A imagem de algueacutem ofegante ilustra uma opccedilatildeo- Quando houver mais de uma nota para uma mesma siacutelaba deve-se fazer a primeira nota junto ao ataque da siacutelaba e as proacuteximas o mais raacutepido possiacutevel
A 1 ---N bull
0
M
Ecirc
y amp raquo1 1
0 ------
ra o 1 HH a s mdash r e d bull nL ao i r mdash r e - f uuml u - a
-mp f mp
Texto tachado o texto natildeo eacute falado Deve-se tocar as alturas no ritmo de uma leitura mental do texto Aleacutem do ritmo a acentuaccedilatildeo pode ser definida de acordo com essa leitura
Texto com vogais em subscrto omitir as vogais As notas devem ser ativadas apenas com o ataque das consoantes semelhante ao sussurrado
(4) mais proacuteximo
CU-
-tomdashm e n
mp[Texto dentro da caixa] falar normalmente o texto na posiccedilatildeo indicada Sempre dentro do bocal
HEI dentro do bocal posiccedilatildeo ordinaacuteria fora do bocal
slap tongue pizzicato
key click
0 key click com nota
tongue-ramPode ser feito tanto expirando quando inspirando
r ar
Cabeccedila de nota triangular som de ar com pouco som de nota Quando necessaacuterio eacute indicada a duraccedilatildeo acima da pauta
nota com ar
E l e t r o a c uacute s t i c a
O patch foi feito em PureData versatildeo 048 mas deve funcionar normalmente em versotildees superiores
A parte eletroacuacutestica estaacute dividida em 5 programas que devem ser ativados de acordo com as indicaccedilotildees na partitura Os programas constituem-se basicamente de sons preacute-gravados que tem sua amplitude e espacializaccedilatildeo determinadas em tempo real por uma relaccedilatildeo com a amplitude da flauta captada pelo microfone de controle Dessa forma pode-se resumir o comportamento dos programas da seguinte maneira
P 1 Flauta EletroacuacutesticaP ^ sons de assobios
f ^ sons de folhas
P 2 FlautaPf
Eletroacuacutesticasons de folhas
sons de assobios
P 3 Flauta EletroacuacutesticaP ^ nada
f ^ sons de tongue-ramNeste programa tambeacutem haacute uma camada eletroacuacutestica independente (sons como ldquorasgosrdquo) que determina a espacializaccedilatildeo da flauta
Eletroacuacutesticap - -
Flautaespacializaccedilatildeo estaacutetica
espacializaccedilatildeo em movimento
P 4 Eletroacuacutestica independente sons de folhas
P 5 Eletroacuacutestica independente sons de assobios
J = C 50 $ = c 400) (muito flexiacutevel oscilando andamento)
long (apenas[^l key clicks)
[ s i n i s t r o
- A linha preta indica que deve-se manter a textura contida na caixa (repeticcedilotildees de notas com articulaccedilatildeo tongue-ram key clicks e com alturas natildeo determinadas)- A linha tracejada indica que quando tiver de falar durante esta textura naturalmente o (a) performer deixaraacute de fazer tongue-ram mas continuaraacute a executar os key clicks
+ + + +
T
Chatildeo de outonoPara Valentina D aldegan
TFlauta
Eletroacuacutestica
p i
6
SS
Davi Raubach
TsJ = c 54
Ttempo de fala
lento C
-------------------------------------------Ucirc0)------------------------- 1 0 ) ------------------------ rj ) (0) V
s s SS__________________ sub
PP W PPa o l o n g o -
PPP
dTS TS
d
bi 6
TS
V t v 0 0 gt0 0 ------l deg n - g o d aS P e
P o f
0 0 (gtdiams) raquoltbull)0d r as s s
- PP
()SS
p
L n g 0 d as p e - d r a s
(bull)s s
6t
^ $ |]l
tempo de fala normal___
mdash gt mdash ----- mdash dtempo defala
-vwwvww (bisbigliando) mais raacutep poss____________C^rvvvvvvvwwvwvwvwwwwvvw^^wv ____
STraquo 0A e r l bdquo n - g bdquo d as p e
p m p
gt (tiw- flv ()frullato
d rd r s
TSJ mdash c 54 lt^|raquoWWWWVWWw
i r r e g u l a r e s
f f
tempo de fala n o rm a l [ZI-
subito
- T h T
(j) + (j)------------------- L l i i raquo L
V laquo7
v (yuml )-------------------------- L j i t w ---------------------------------- ^gt
gtf U | gt X
of f f _ S S _ SS__p - pp - f f mdash d o c a l - p a
m e n
P2mp
6 d A - d
IumlSt t = p as - s am v e n - t a n _ d 0 u m a s p o
AfL) b r ___
f f
Ocirc ^ mdash
6 J = C 54(J) TS
mdash pound----- --------yen t mdash mdash r f -------- ^ --------VS ~^ subito
----- V - rsquo J------frullato
h r
PP n f
CEI
(bull) (bull)[ZI
mfo
m p
l h as _
m c om p
a m a r e l a s e m p acirc n i c o frullato
f t gt f mdashs e g u i - d a s p e r s e g u i d a s d e
P fc o n
P3
TRCEI sempre
J mdash C 50 (J = c 400) (muito flexiacutevel oscilando andamento)
long (apenaskey clicks)
X xinregulares y
t a t a l a n d o J 1 p u l o s ]
CEI
T
2
tempo de fala raacutepido
p a s - s agrave m v e n t a n - d o a o s p u mdash l b s p a s s a m v e n - t a n - d o
laquotf mdashmdash t f t f ntf f f itjfa s d u - a s mdash a s - a s t a r - j a - d a s d e n e - g r o
f f f laquotf lt f flaquo t f mP P
a s d u a s a s a s t a r i a -
IT]rd a s d e n e g r o
- P
+
Tshort
7 A A[ t a t a l a n d o j [ a o s p u l o s |
^ srEcirc atilde bdquo1 f
[ m a i s p e r t o ] (a s d u a s a s a s ) s h [subito
- f f f
I [ t a r j a d a s ) [ s h
f f
(S )
ATf f f pp
J = c 54
SSp
voz
f
h m - atilde
t JP4 P5
3
ANEXO 3 - PARTITURA DE NASCER PEDRA MORRER NUVEM
184
Nascer pedra morrer nuvempara violatildeo e sons eletrocircnicos 2018Davi Raubach
p a ra E ric M ore ira
nascer pedra morrer nuvem2018
D avi R au b ach
J = 52 iacute
IViolatildeo
Electronics
f p p p p m f
f t --------- ^
)11 ^ mdash - -- P ----------------------------------
Eacute EumlJ ^ p J j r J 1
- 32
m
I
=Jj iacuteV
E
H j r J pound4p o o
0 ^ o m f mp f
H
6
s
15
V
iacute o reg
iEacute laquo ij p iPf = Ir
)
r ^ 7 |
^ reg jiacutep H4 J 1 mdash |-
^ mp f mvi4 _ l----- 1 1 1 1 1 1
reg-------------
p
EIcirc
mdash ^ mdash ldquo ---------------------------------mdash ^ ---------------------------------------- raquo mdash
mdash ^ mdash mdash ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
r i i - - T - s
) Repetir livremente ateacute a entrada da deixa eletroacuacutestica
1
21____1 f 0 _ ------1----1----1----1------- 1------- 1------- ------- 1------- ------- 1---- dr-
--- f f f f f f 6 f 1 f f f f f f bull r iaiiA[fiiiffint im 4 6 mdash mdash5 8 88 lt2 V
lt m f m p
p p p f
deixa
^ s c f i -E8
) Ruiacutedo das cordas raspar lateral do polegar eou parte da md sobre as cordas 6 5 e 4 com movimentos curtos Cada semicolcheia indica dois movimentos (para um lado e para outro) cada movimento corresponde a um a fusa
) Ruiacutedo das cordas raspar polpa do(s) dedo(s) da me em direccedilatildeo agrave casa XII
2
36
V jiT
3 + 2t i j a - j j ^ j r v r j r v r j r 3
amp4
m fp p p
o
o o o
L V sempre gt 0 0
V
laquo H P- f ^ = - p p ^ = ^ f
5 + 5 16 7 7
me
fs f
7 7 f
s f
7 7 7 f f
f8
) Here starts a cross fade section The notes articulated convencionaly fade out quite gradually and the noise of the fingers scraping the strings fade in
3
V
32f f
L32 1 lt-32-1f f
p p p
r 7 i i CU (L32lsquo lsquo32l
f f
50 reg n reg n
V
32f f
^ 32
f f
54
V
7 md
- n u u u u u u u u u
o u O U O U U H O i S O U -
56
V
6 (md)
E
a m i u a m u i
8va-
Iacute ~ 7 - ---------------- ------------- 1^ - -------------------fj
74)g
6
5)
7
p
m p
m m m m
iacute 7f
7 1m f
r u a f f 1 p =
4) Percutir com polpa dos dedos (e unhas) da md aleatoriam ente sobre o tampo o mais raacutepido possiacutevel
5) Rasqueado de me com cordas abafadas pela md com vaacuterios dedos em defasagem e usando as 6 cordas (som percussivo granular)
6) Equilibrar a intensidade dos dois sons a percussatildeo sobre o tampo deve soar na mesma intensidade que o rasgueado em direccedilatildeo a um a fusatildeo entre os dois
4
(md)mp
59
V
E
mp8vat
J 1 18 m f
m trnitm r m m m m mf
7 pound
J L BJ
8va-
m lt s f
uuml Lrm f
U L L f It uuml L JT
8
-A--1
va---
jppp
V
E
LV8va- -
laquo 4reg
J f iacute5 ^ -
p p p f - 32
E
IacuteP
7) Ruiacutedo de cordas Movimentos esparsos lentos e irregulares das duas matildeos
5
LV sempre (possible)f mp
f (3 r
68
Vbull 0 mdash mdash
mp etc C IV
reg iacute J
i r r p l =
VS
LJ ----- 4 r - r
i - 14 i r i 14 1 mp mp m p etc
C VII
73
V
C IV
6
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_ r 3^ r32^ (6
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lt4(S
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C VII C V
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78
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C VII
1 7
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C IX
pp
C IV
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7 7 copy ^
C V
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^ PS Pp mdash prego o
I esperar fim do tape
o
8) Nos casos de um bloco que m istura harmocircnicos e notas naturais ambos devem soar com mesma intensidade
6
UFPR
MINISTEacuteRIO OA EDUCACcedilAtildeO 8 E T 0 R ARTES COMUNICACcedilAtildeO E DESIGN UNIVERSIOADE FEDERAL OO PARANAacute P R Oacute -R amp TO R IA DE PESQUISA E POacuteS-GRADUACcedilAtildeO PROGRAM A DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO MUacuteSICA - 40D01016065R2
TER M O OE A PR O V A Ccedil Atilde O
Os m em bros da Bance Exam inadora designada pelo Colegiadcopy d o P rogram a de P oacutes-G raduaccedilatildeo em M UacuteSICA da Universidade
Federal d o Paranaacute foram conw cados pare realMar a arguiccedilatildeo da D issertaccedilatildeo d e M estrado d e D AVI RAIJBACH TUC HTENHAGEN
irrtitiaacuteada In te ra ccedilatilde o n a M uacute s ica E letroecsisU ca M is ta apos te rem inqu irido o a luno e rea lizado e avaliaccedilatildeo d o traD alto satildeo de
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CURITIBA 06 d e Feverero de 2019
Avshador Interno ()
RUA CORONEL DJLCIacuteD IO 636 - CURITIBA - Pereneacute - E rasC E P 80420-170 - TeL (41) 3307-7306 - E-maif ufpr ppgmajsice copy gm ailcom
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo aos professores Clayton Mamedes Roseane Yampolschi e Mauriacutecio Dottori pelos
conhecimentos compartilhados e pelos diversos insights sobre minhas composiccedilotildees e sobre
minha pesquisa
Agradeccedilo aos colegas Valentina Daldegan e Eric Moreira pelos processos criativos
compartilhados
Agradeccedilo ao meu orientador Felipe de Almeida Ribeiro pelo incentivo e motivaccedilatildeo e por
propiciar a expansatildeo de minhas referecircncias
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal
de Niacutevel Superior - Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001
Agradeccedilo agrave CAPES agrave UFPR e ao Grupo de Pesquisa Muacutesica Nova
Agradeccedilo aos meus pais Vanda e Jorge por todo o apoio
Agradeccedilo a minha esposa Caroline Reichow pela cumplicidade e pelo cuidado
Agradeccedilo a Deus por estas pessoas
RESUMO
Esta pesquisa investiga a interaccedilatildeo na muacutesica que combina recursos eletroacuacutesticos e instrumentais numa performance - a muacutesica eletroacuacutestica mista Devido agrave presenccedila de tecnologias diversas na performance e composiccedilatildeo deste repertoacuterio ldquointeraccedilatildeordquo pode se referir agraves relaccedilotildees entre estes recursos tecnoloacutegicos e os performers Entretanto tambeacutem pode se referir agraves relaccedilotildees entre os sons que se nos apresentam na experiecircncia de escuta Distinguimos estes dois acircmbitos praacutetico-tecnoloacutegico e sonoro-morfoloacutegico e investigamos suas inter-relaccedilotildees a fim de focar no segundo Assim independentemente dos recursos tecnoloacutegicos utilizados investigamos as relaccedilotildees e interaccedilotildees entre eventos sonoros que como as notas de uma voz no contraponto tonal satildeo por um processo da escuta agrupados em camadas planos fluxos (WISHART 1996 BREGMAN 2004 2008) que por sua vez formam uma textura O principal problema desta pesquisa concerne agrave maneira como interagem estes fluxos na muacutesica eletroacuacutestica mista tendo em vista as particularidades relativas agrave uniatildeo dos meios instrumental e eletroacuacutestico Atraveacutes de uma revisatildeo bibliograacutefica levantamos ferramentas teoacutericas para investigar e descrever como se constituem se diferenciam se relacionam os fluxos sonoros entre si e como se relacionam com o aspecto visual da performance Anaacutelises de quatro peccedilas mistas aplicam as ferramentas levantadas a fim de verificar estrateacutegias especiacuteficas encontradas no repertoacuterio Aleacutem disso a experiecircncia do autor de compor duas peccedilas em interaccedilatildeo com a pesquisa eacute apresentada Esta pesquisa propotildee a distinccedilatildeo teoacuterica entre microtextura e macrotextura discute as teorias concernentes agrave interaccedilatildeo argumenta pela plausibilidade de considerar o aspecto visual como um elemento da textura em interaccedilatildeo com o que soa e evidencia a ambiguidade e a fluidez presentes nas relaccedilotildees sonoras e visuais deste repertoacuterio
Palavras-chave composiccedilatildeo interaccedilatildeo muacutesica eletroacuacutestica mista fluxos sonoros textura
ABSTRACT
This research investigates the interaction in music that combines electroacoustic and instrumental resources in a performance - mixed electroacoustic music Due to the presence of different technologies in the performance and composition of this repertoire ldquointeractionrdquo can refer to the relationships between performers and technologic resources Nevertheless it also can refer to the relationships between the sounds we perceive in the listening experience We distinguish these two ambits practical-technological and sound-morphological and investigate their interrelations in order to focus on the second one Then we investigate independently of the technological resources used the relationships and interactions between sound streams Through a listening process the sound events are grouped in layers plans or streams (WISHART 1996 BREGMAN 2004 2008) and constitute a texture the same way the notes are grouped in a voice in tonal counterpoint The main problem of this research concerns the way that these streams interact in mixed electroacoustic music considering its particularities We identify theoretic tools from a bibliographic revision to investigate and describe how the streams are constituted distinguished how they relate to each other and how they relate to the visual aspects of performance We apply these identified tools in the analysis of four mixed pieces in order to verify specific strategies found in the repertoire Moreover we present a personal experience of composing two pieces in interaction with the research This research proposes a theoretic distinction between micro-texture and macro-texture discusses the theories concerned to interaction argues about the plausibility to consider the visual aspect a textural element in interaction with sound and evidences the ambiguity and fluidity present in visual and sound relationships in this repertoire
Keywords composition interaction mixed electroacoustic music sound streams
LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES
FIGURA 1 - SYNCHRONISMSNO 10 (1992) DE MARIO DAVIDOVSKY (COMPASSOS
109-110) 22
FIGURA 2 - ESQUEMA DA PECcedilA A PIERRE DELL rsquoAZZURRO SILENZIO INQUIETUM
(1985) DE LUIGI NONO24
FIGURA 3 - COMPASSOS INICIAIS DE A PIERRE DELL rsquoAZZURRO SILENZIO
INQUIETUM (1985) DE LUIGI NONO25
FIGURA 4 - CONTEXTO DISCIPLINAR DA MUacuteSICA INTERATIVA 27
FIGURA 5 - EXCERTO DA PARTITURA DE JUPITER (1987) DE PHILIPPE MANOURY
29
FIGURA 6 - JANELA PRINCIPAL DO PATCH DE JUPITER (1987) DE PHILIPPE
MANOURY 30
FIGURA 7 - PROCESSO COMPOSICIONAL NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA 40
FIGURA 8 - REPRESENTACcedilAtildeO DOS ASPECTOS QUANTITATIVO E QUALITATIVO
DA TEXTURA 43
FIGURA 9 - ALGUMAS QUALIDADES DA TEXTURA 44
FIGURA 10 - DIAGRAMA DE QUATRO CONDICcedilOtildeES DA PERCEPCcedilAtildeO DE FLUXOS
AUDITIVOS DISTINTOS COM PADRAtildeO GALOPANTE H LH -H LH -H LH - 47
FIGURA 11 - POLIFONIA VIRTUAL NOS COMPASSOS 89 A 94 DA PARTITA NO 2 EM
REacute MENOR B W V 1004 DE J S BACH 47
FIGURA 12 - POLIFONIA VIRTUAL NOS COMPASSOS 121 A 123 DA PARTITA NO 2
EM REacute MENOR BW V 1004 DE J S BACH 48
FIGURA 13 - MELODIA DE TIMBRES NA ORQUESTRACcedilAtildeO DE WEBERN FUGA
(RICERCATA) NO 2 AU SD E M ldquoMUSIKALISCHENOPFER VON JOH SEB BACH 50
FIGURA 14 - EXEMPLO DE MACRO E MICROTEXTURA 53
FIGURA 15 - NIacuteVEIS DE ANAacuteLISE DA SONORIDADE55
FIGURA 16 - VETOR DE QUALIFICACcedilAtildeO DO GRAU DE OPOSICcedilAtildeO ESTRUTURAL
ENTRE UNIDADES SONORAS 56
FIGURA 17 - TELHAGEM DE ACORDO COM GUIGUE (2011)57
FIGURA 18 - SINTAGMA EM SYNCHRONIMS NO 10 (1992) DE MARIO
DAVIDOVSKY (COMPASSOS 271-272)57
FIGURA 19 - POLIFONIA DE SONORIDADES EM MOMENTO 23 DE ALMEIDA
PRADO 58
FIGURA 20 - a) REPRESENTACcedilAtildeO ESQUEMAacuteTICA DA REDE (LATTICE)
TRIDIMENSIONAL b) REPRESENTACcedilAtildeO ESQUEMAacuteTICA DE UM OBJETO
MUSICAL COMPLEXO SE MOVENDO NO CONTINUUM61
FIGURA 21 - DESENVOLVIMENTO DE UM FLUXO SEPARANDO EM OUTROS E
CONVERGINDO NOVAMENTE76
FIGURA 22 - DIVISAtildeO DE UM FLUXO EM OUTROS EM KONTAKTE (1958-60) DE
STOCKHAU SEN 77
FIGURA 23 - COMPASSOS INICIAIS DE MUSIC FOR FLUTE AND ISPW (1994) DE
CORT LIPPE 83
FIGURA 24 - MODELO DE ACcedilAtildeO-RESPOSTA DOS INSTRUMENTOS ACUacuteSTICOS90
FIGURA 25 - POSSIacuteVEIS RELACcedilOtildeES CONFUSAS NA PERCEPCcedilAtildeO DE ACcedilAtildeO-
RESPOSTA NO CONTEXTO DA MUacuteSICA MISTA90
FIGURA 26 - FUSAtildeO EM THREE VOICES (1982) DE MORTON FELDMAN
(COMPASSOS 15 A 18 DA PARTE B) 93
FIGURA 27 - EXCERTO DA PARTITURA DE APHASIA (2009) DE MARK
APPELBAUM 94
FIGURA 28 - ILUSTRACcedilAtildeO DE POSSIacuteVEIS COMPONENTES DA MACROTEXTURA
DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA103
FIGURA 29 - ACORDES-TIMBRE INICIAL E FINAL DA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE
DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN MURAIL107
FIGURA 30 - COMPASSOS INICIAIS TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS
(1982-3) DE TRISTAN MURAIL108
FIGURA 31 - COMPASSOS 11 A 13 DA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS
(1982-3) DE TRISTAN MURAIL110
FIGURA 32 - FLUXO DO CORNE INGLEcircS NA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE
DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN MURAIL111
FIGURA 33 - FLUXOS SONOROS NA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS
(1982-3) DE TRISTAN MURAIL (645 a 1006) 112
FIGURA 34 - RELACcedilAtildeO ENTRE DOIS FLUXOS EM DESINTEGRATIONS (1982-3)
SOBRE O QUADRO DE WISHART (1996) 113
FIGURA 35 - INIacuteCIO DA PARTE 1B DE STRANGE AUTUMN DE STEVEN KAZUO
TAKASUGI 117
FIGURA 36 - ILUSTRACcedilAtildeO DE BATIMENTOS ACCELERANDO E RITARDANDO NO
COMECcedilO DE IN MEMORIAM JO N HIGGINS128
FIGURA 37 - COMPASSOS 77-78 DE DOIS MOVIMENTOS PARA ACORDEAtildeO E PIANO
(2016) 135
FIGURA 38 - EXEMPLO DA UTILIZACcedilAtildeO DO TEXTO COMO SUBSTITUTO DE UMA
ESCRITA DE FIGURAS RIacuteTMICAS EM M EU TRECHO PREDILETO137
FIGURA 39 - VARIACcedilAtildeO MOTIacuteVICA A PARTIR DE UM FRAGMENTO TEXTUAL
(SISTEMAS 2 E 3)138
FIGURA 40 - DESLOCAMENTOS DE FLA UTA E FALA PARA O PRIMEIRO PLANO EM
CHAtildeO DE OUTONO 142
FIGURA 41 - RELACcedilOtildeES PRESENTES NOS PROGRAMAS DO PATCH143
FIGURA 42 - QUATRO MATERIAIS DE NASCER PEDRA MORRER NUVEM
(COMPASSOS 8 a 10)149
FIGURA 43 - COMPASSOS 39 a 54 TRANSICcedilAtildeO EM NASCER PEDRA MORRER
NUVEM (2018) 150
FIGURA 44 - COMPASSOS 55 a 60 TREcircS FLUXOS151
FIGURA 45 - COMPASSOS 67 a 71 INIacuteCIO DA SECcedilAtildeO FINAL 153
FIGURA 46 - COMPASSOS 89 a 93 BATIMENTOS153
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO14
2 A INTERACcedilAtildeO NO CONTEXTO DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
21
21 TEacuteCNICAS DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA21
211 Sons fixados em suporte 21
212 Eletrocircnica em Tempo Real e Sistemas Interativos24
22 QUERELA DOS TEMPOS E A ESTEacuteTICA DA INTERATIVIDADE 31
23 ENTRE TECNOLOGIA E MORFOLOGIA SONORA 36
3 A INTERACcedilAtildeO NO AcircMBITO SONORO-MORFOLOacuteGICO 42
31 VOZES E TEXTURA42
311 Textura42
312 Vozes sons segregados em fluxos auditivos 45
313 Orquestraccedilatildeo timbre (tone-color) e textura48
314 Microtextura e macrotextura52
32 AS SONORIDADES 53
321 Oposiccedilatildeo Adjacente e Segmentaccedilatildeo56
322 Polifonia de Sonoridades58
33 ldquoVOZESrdquo NO CONTEXTO ELETROACUacuteSTICO 59
331 O Continuum 60
332 O Gesto e textura 61
333 Camadas fluxos e planos 63
334 O caraacuteter misto da muacutesica mista64
34 FLUXOS SONOROS 67
341 Simultaneidades da micro eou da macrotextura68
342 Fusatildeo e contraste constituiccedilatildeo e segregaccedilatildeo de muacuteltiplos fluxos69
343 Relaccedilatildeo entre fluxos distintos 78
3431 Comportamento 78
3432 Contraponto 84
3433 Interaccedilatildeo gestual 86
35 O FLUXO VISUAL NA MUacuteSICA MISTA 89
36 TEXTURA NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA 99
4 DISCUSSAtildeO E ANAacuteLISES 104
104
114
120
120
123
127
134
136
144
145
145
146
148
155
165
173
174
177
184
DESINTEGRATIONS DE TRISTAN MURAIL
STRANGE AUTUMN DE STEVEN KAZUO TAKASUGI
MUSIC FOR SNARE DRUM AND COMPUTER DE CORT LIPPE
Instrumento(s) e computador e instrumento(s) e tape no trabalho de Cort Lippe
Music for Snare Drum and Computer
IN MEMORIAM JO N HIGGINS DE ALVIN LUCIER
SOBRE MEU PROCESSO COMPOSICIONAL
CHAtildeO DE OUTONO
Programa 1
Programa 2
Programa 3
Programa 4 e 5
NASCER PEDRA MORRER NUVEM
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
REFEREcircNCIAS
ANEXOS
ANEXO 1 - QUADROS DE MODELOS DE INTERACcedilAtildeO GESTUAL DE
PETRA BACHRATAacute (2010)
ANEXO 2 - PARTITURA DE CHAtildeO DE OUTONO
ANEXO 3 - PARTITURA DE NASCER PEDRA MORRER NUVEM
14
1 INTRODUCcedilAtildeO
Apoacutes a Segunda Guerra Mundial a utilizaccedilatildeo de recursos eletrocircnicos na muacutesica se
desenvolve em duas vertentes principais Na Franccedila a partir das iniciativas de Pierre
Schaeffer se desenvolvia a Musique Concrete na Radiodiffusion Teleacutevision Franccedilaise (RTF)
em Paris a partir de 1948 No mesmo periacuteodo por iniciativa de Herbert Eimert na Alemanha
se desenvolvia a Elektronische Musik no Norwestdeutcher Rundfunk (NWDR) em Colocircnia
Dentre os nomes da muacutesica concreta destaca-se Pierre Henry enquanto que do lado
eletrocircnico Karlheinz Stockhausen (MANNING 2004)1 Inicialmente estas duas vertentes se
diferenciavam fortemente Enquanto a vertente concreta fazia uso de sons gravados a vertente
eletrocircnica utilizava sons sintetizados no proacuteprio equipamento eletrocircnico Como consequecircncia
desta separaccedilatildeo se estabelece uma relaccedilatildeo dicotocircmica entre as duas teacutecnicas Esta relaccedilatildeo eacute
desafiada de maneira mais representativa na peccedila Gesang der Juumlnglinge (1955-56) de
Karlheinz Stockhausen A peccedila vai aleacutem desta dualidade ao combinar sons sintetizados com
gravaccedilotildees da voz de um adolescente (DIAS 2014 p 16-17) Como aponta Menezes (1996 p
40) ldquoPouco a pouco assistimos a uma afluecircncia cada vez mais abundante de sons concretos
no contexto da muacutesica eletrocircnica afluecircncia esta que criaraacute aliaacutes um precedente para a futura
emergecircncia da muacutesica eletroacuacutestica mistardquo
A uniatildeo de sons instrumentais ao vivo com sons eletrocircnicos surge no seio da
Elektronische M usik e apresentou no princiacutepio semelhante dicotomia Como afirma
Stockhausen
Neste sentido a muacutesica instrumental poderia existir ao lado da muacutesica eletrocircnica Em qualquer destas esferas deve-se trabalhar funcionalmente cada meio deve ser usado produtivamente geradores - gravadores de fita - alto-falantes devem produzir o que nenhum instrumentista seria capaz de tocar (e microfones deveriam ser deixados para repoacuterteres) partitura - inteacuterprete - instrumento devem produzir o que nenhum aparato eletrocircnico jamais seria capaz de gerar ou imitar ou repetir
[]Assim a muacutesica eletrocircnica e instrumental complementariam uma a outra se
moveriam mais e mais rapidamente para longe uma da outra - e somente assim despertam a esperanccedila de realmente se encontrarem em uma composiccedilatildeo de vez em quando
1 Aleacutem destas principais vertentes e tambeacutem relacionadas a elas eacute importante citar o Estuacutedio de Fonologia da Radiotelevisione Italiana (RAI) fundado em 1955 por Luciano Berio e Bruno Maderna em Milatildeo nos Estados Unidos as iniciativas de John Cage que jaacute em 1939 em sua peccedila Imaginary Landscape I utilizava recursos eletrocircnicos e a fundaccedilatildeo do Columbia-Princeton Electronic Music Center em 1958 Outros centros direcionados para esta muacutesica atualmente chamada eletroacuacutestica surgiram tambeacutem no Japatildeo e no Canadaacute (MANNING 2004)
15
As primeiras obras combinando muacutesica instrumental e eletrocircnica receberam suas primeiras performances em 1958 Precisamos encontrar as regras superiores de uma conexatildeo aleacutem do contraste - que representa o mais primitivo tipo de forma (STOCKHAU SEN 1961 p 67 traduccedilatildeo nossa2)
Esta uacuteltima frase sugere que o contraste entre os meios instrumental e eletroacuacutestico
era uma caracteriacutestica comum das primeiras peccedilas que os combinaram fato tambeacutem sugerido
pelos tiacutetulos de algumas obras como Musica su due Dimensione (1952-8) de Bruno Maderna
Differeacutences (1958-9) de Luciano Berio Rimes pour Diffeacuterentes Sources Sonores (1959) de
Henri Posseur por exemplo Ao mesmo tempo na citaccedilatildeo acima Stockhausen sustenta a
complementariedade da muacutesica instrumental e eletrocircnica Morgan (1991) aponta que a
resoluccedilatildeo de Stockhausen para a dicotomia eletrocircnico-instrumental ocorre especialmente em
meados de 1960 nas peccedilas Mikrophonie I (1964) Prozession (1967) and Kurzwellen (1968)
Laacute3 nas notas sobre Mikrophonie I (1964) Prozession (1967) e Kurzwellen (1968) pode-se ler do seu esforccedilo crescente para alcanccedilar uma total integraccedilatildeo dos dois tipos de muacutesica O princiacutepio baacutesico em todas estas peccedilas eacute usar os meios eletrocircnicos para transformar os eventos musicais iniciados pelos performers ao vivo o som final sendo o resultado de uma interaccedilatildeo eletrocircnica-instrumental (MORGAN 1991 p 200 grifo nosso traduccedilatildeo nossa4)
O ldquoesforccedilo por uma total integraccedilatildeo dos dois tipos de muacutesicardquo se coloca em oposiccedilatildeo
ao contraste inicial sobre o qual se baseavam as primeiras peccedilas para instrumentos e sons
eletrocircnicos Entretanto ao contraacuterio do que parece argumentar Morgan natildeo podemos
desconsiderar o sucesso da integraccedilatildeo alcanccedilado na produccedilatildeo anterior agrave deacutecada de 1960
especialmente em Kontakte (1958-1960) A peccedila puramente eletrocircnica utiliza sons que fazem
referecircncia a pele madeira e metal sua versatildeo mista para pianista e percussionista apresenta
2 Original ldquoIn this way instrumental music could exist alongside electronic music In either sphere one must work functionally each medium must be used productively generators - tape-recorders - loud-speakers must produce what no instrumentalist would be able to play (and microphones should be left to reporters) score - player - instrument must produce what no electronic apparatus would ever be able to generate or imitate or repeat []
Electronic and instrumental music would then complement each other would constantly move further and more rapidly away from each other - and only thereby awaken the hope of really meeting each other in a composition once in a while
The earliest works combining electronic and instrumental music received their first performances in 1958 We must find the superior laws of a connection beyond the contrast - which represents the most primitive kind of formrdquo (STOCKHAUSEN 1961 p 67)
3 Se refere ao terceiro volume de Texte que surge em 1971 e cobre os anos de 1963-704 Original ldquoThere in the notes on Mikrophonie I (1964) Prozession (1967) and Kurzwellen (1968) one reads
of his increasing efforts to achieve a total integration of the two types of music The basic principle in all these works is to use electronic means to transform the musical events initiated by live performers the final sound being the result of an electronic-instrumental interactionrdquo (MORGAN 1991 p 200)
16
uma preocupaccedilatildeo com a integraccedilatildeo com os sons eletrocircnicos evidenciada pela proacutepria
instrumentaccedilatildeo que inclui tambores (pele) woodblocks (madeira) e pratos (metal) por
exemplo
Colocado este desajuste consideremos ainda a citaccedilatildeo de Morgan (1991) para
observar o uso do termo interaccedilatildeo De acordo com o autor no caso da produccedilatildeo de
Stockhausen nos anos 1960 a ldquointegraccedilatildeo entre os dois tipos de muacutesicardquo acontece na
interaccedilatildeo entre recursos eletrocircnicos e instrumentos que compotildeem assim um uacutenico resultado
final Nesta concepccedilatildeo interaccedilatildeo se refere ao processo tecnoloacutegico que mistura os meios
instrumental e eletroacuacutestico e que se relaciona diretamente a um resultado sonoro
Entretanto esta relaccedilatildeo direta natildeo eacute uma constante ela normalmente varia de peccedila para peccedila
Natildeo haacute um paralelismo estaacutevel uma correspondecircncia clara entre processo tecnoloacutegico da
performance e o resultado sonoro Uma mesma interaccedilatildeo percebida num resultado sonoro
hipoteacutetico pode ser alcanccedilada por diferentes interaccedilotildees tecnoloacutegicas Em Mikrophonie I por
exemplo Stockhausen utiliza dois processos de produccedilatildeo sonora cada um com trecircs estaacutegios
trecircs muacutesicos trabalhando em paralelo o muacutesico que executa o tam-tam o microfonista e o
muacutesico que controla os filtros O compositor explica na partitura que
[] trecircs processos mutuamente dependentes mutuamente interativos e simultaneamente autocircnomos de estruturaccedilatildeo sonora estatildeo conectados uns com os outros os quais foram compostos como sincrocircnicos ou temporalmente independentes homofocircnicos ou em ateacute seis camadas polifocircnicas(STOCKHAUSEN 1973 p 9 traduccedilatildeo nossa5)
Entretanto como as relaccedilotildees entre estes estaacutegios do processo satildeo muito variaacuteveis
Stockhausen afirma ldquoE eu natildeo posso predizer como o resultado dessa interferecircncia vai soar
porque natildeo o sei ateacute ouvi-lordquo (STOCKHAUSEN 2009 p 75) Embora usando termos que
remontam a interaccedilatildeo entre vozes numa textura (polifonia por exemplo) o compositor estaacute
falando sobre um processo tecnoloacutegico da performance Por outro lado o resultado sonoro
ou como chamaremos o acircmbito sonoro-morfoloacutegico eacute pouco previsiacutevel Possivelmente ao
ouvir a peccedila percebemos duas camadas cada uma proveniente de cada processo com seus
trecircs estaacutegios e natildeo ouvimos as seis camadas do processo6 Assim enquanto a interaccedilatildeo nos
5 Original [] three mutually dependent mutually interacting and simultaneously autonomous processes of sound-structuring are connected with each other which were composed as synchronous or temporally independent homophonic or in up to six polyphonic layers (STOCKHAUSEN 1973 p 9)
6 Este exemplo aponta para a complexidade do fenocircmeno perceptivo da interaccedilatildeo a qual natildeo nos aprofundaremos neste trabalho
17
processos tecnoloacutegicos da performance se daacute em seis ldquocamadasrdquo a interaccedilatildeo percebida no
resultado sonoro pode ser entre duas camadas isso se for possiacutevel diferenciaacute-las
A interaccedilatildeo percebida no resultado sonoro diz respeito agraves relaccedilotildees de sincronia
independecircncia homofonia polifonia entre outras que se apresentam entre camadas distintas
Em trabalhos sobre estas relaccedilotildees na muacutesica eletroacuacutestica especialmente em (WISHART
1996) em vez de camadas (layers) o termo usado eacute fluxos (streams) Enquanto que camadas
se refere mais agrave textura e sua estratificaccedilatildeo independentemente de seu desenvolvimento no
tempo fluxos tem forte conotaccedilatildeo temporal A palavra do inglecircs stream carrega tambeacutem a
ideia de correnteza Estendendo esta metaacutefora ora pode tratar-se de um rio com uma
correnteza uacutenica ora eacute como um mar repleto de correntezas diferentes concorrentes e
interativas Por vezes a muacutesica apresenta um uacutenico fluxo por vezes uma seacuterie de fluxos que
concorrem e interagem convergem e divergem fundem e contrastam Tal ideia de interaccedilatildeo
como aspecto da disposiccedilatildeo (ou dissoluccedilatildeo) sonora em fluxos remonta agraves ideias pioneiras de
Edgard Varegravese Numa aula em 1936 Varegravese expotildee o seguinte pensamento
Quando novos instrumentos me permitirem escrever muacutesica como eu a concebo no lugar do contraponto linear o movimento das massas sonoras de planos intercambiantes seraacute claramente percebido Quando estas massas sonoras colidirem o fenocircmeno da penetraccedilatildeo ou repulsatildeo vai parecer acontecer Certas transmutaccedilotildees ocorrendo em certos planos pareceratildeo ser projetadas em outros planos movendo-se em diferentes velocidades e em diferentes acircngulos Natildeo haveraacute mais a velha concepccedilatildeo de melodia ou interaccedilatildeo [interplay] de melodias A obra inteira seraacute uma totalidade meloacutedica A obra inteira fluiraacute como flui um rio (VARESE 1966 p 11 traduccedilatildeo nossa7)
Varegravese denomina estas camadas ldquoplanos intercambiantesrdquo e ldquomassas sonorasrdquo e
imagina como poderiam interagir colidindo eou penetrando uma na outra repelindo uma agrave
outra fazendo com que uma transformaccedilatildeo em um plano apresente consequecircncias em outros
(ldquoser projetadasrdquo) Estas consequecircncias poderiam ser percebidas no caraacuteter cineacutetico
(ldquomovendo-se em diferentes velocidadesrdquo) e espacial (ldquoem diferentes acircngulosrdquo) destas
massas Tais caracteriacutesticas esteacuteticas satildeo apresentadas como opostas agrave ldquovelha concepccedilatildeo de
melodiardquo ou de ldquointeraccedilatildeo de melodiasrdquo Trata-se de uma concepccedilatildeo de massas sonoras
7 Original ldquoWhen new instruments allow me to write music as I conceive it taking the place of the linear counterpoint the movement of sound masses of shifting planes will be clearly perceived When these sound- masses collide the phenomena of penetration or repulsion will seem to occur Certain transmutations taking place on certain planes will seem to be projected onto other planes moving at different speeds and at different angles There will no longer be the old conception of melody or interplay of melodies The entire work will be a melodic totality The entire work will flow as a river flowsrdquo (VARESE e WEN-CHUNG 1966 p 11)
18
interativas que compotildeem uma totalidade (ldquomeloacutedicardquo) que flui ldquocomo flui um riordquo 8
Assim sendo esta pesquisa localiza-se no cenaacuterio geral da muacutesica eletroacuacutestica e
mais especificamente no contexto da muacutesica que une sons instrumentais ao vivo com sons
eletroacuacutesticos a chamada muacutesica eletroacuacutestica mista9 A interaccedilatildeo eacute palavra-chave neste
repertoacuterio e pode se referir entre outros agraves relaccedilotildees presentes (a) nos processos tecnoloacutegicos
da performance e (b) no acircmbito sonoro-morfoloacutegico (resultado sonoro) A segunda eacute a que
motiva esta pesquisa Reunimos e discutimos diversas perspectivas (BACHRATAacute 2010
MENEZES 2006 p 377-400 SMALLEY 1997 SOUZA 2010 WISHART 1996 entre
outros) que utilizam o termo interaccedilatildeo para tratar de relaccedilotildees sonoro-morfoloacutegicas
Entretanto a presente pesquisa apresenta um vieacutes proacuteprio Ela tem o objetivo de observar esta
interaccedilatildeo natildeo apenas no niacutevel dos eventos (nota a nota gesto a gesto) mas num niacutevel em que
estes eventos satildeo agrupados em categorias mais amplas Convencionalmente as notas satildeo
agrupadas em vozes Na muacutesica eletroacuacutestica os eventos sonoros podem ser agrupados em
camadas planos ou fluxos Com base em Wishart (1996) Bregman (2004 2008) e Guigue
(2011) a metaacutefora de fluxo seraacute a principal alternativa apresentada nesta pesquisa Embora
este conceito jaacute tenha sido explorado poucos estudos abordam a constituiccedilatildeo de tais
estruturas no repertoacuterio a que estamos nos direcionando Ao abordar a caracterizaccedilatildeo e a
interaccedilatildeo de fluxos distintos percebidos na experiecircncia de escuta10 da muacutesica eletroacuacutestica
mista busca-se preencher parte desta lacuna Nesta investigaccedilatildeo a pesquisa revisita e oferece
outras perspectivas para questotildees e conceitos sempre importantes para a composiccedilatildeo tais
8 Eacute interessante notar que embora Varegravese descreva caracteriacutesticas do resultado sonoro tudo isso seria possibilitado por ldquonovos instrumentosrdquo ou seja novos processos tecnoloacutegicos da performance juntando assim os dois acircmbitos que separamos inicialmente (tecnoloacutegico e sonoro-morfoloacutegico)
9 Existem outros termos para designar com mais ou menos restriccedilotildees teacutecnicas as possibilidades de muacutesica para instrumentos e sons eletroacuacutesticos musique mixte live electronic music interactive music Uma discussatildeo terminoloacutegica pode ser encontrada na introduccedilatildeo do livro Live Electronic Music (SALLIS et al 2018) Nas pesquisas brasileiras especialmente da UNeSp (GATI 2015 DIAS 2014 MENEZES 2006) o termo muacutesica eletroacuacutestica mista abarca qualquer muacutesica em que haacute a junccedilatildeo destes dois meios instrumental e eletroacuacutestico independentemente da tecnologia utilizada Assim eacute entendida tambeacutem nesta pesquisa
10 Tal delimitaccedilatildeo temaacutetica voltada para o que eacute percebido na experiecircncia da escuta natildeo deve ser entendida dentro de um paradigma que natildeo considera ldquomuacutesicardquo nada aleacutem do som Pelo contraacuterio esta pesquisa assume a compreensatildeo da muacutesica enquanto fato musical (NATTIEZ 1990 p 10-16) como uma atividade que inclui criaccedilatildeo performance (niacutevel poieacutetico) um rastro da criaccedilatildeo como a partitura a gravaccedilatildeo etc (niacutevel neutro) e recepccedilatildeo (niacutevel esteacutesico) E que estas funccedilotildees de compositor performer e ouvinte podem se mesclar em um uacutenico indiviacuteduo Entretanto por delimitaccedilatildeo do escopo o foco estaacute no niacutevel neutro no som resultante da criaccedilatildeo e da performance As representaccedilotildees graacuteficas deste som (e g espectrograma) ou de instruccedilotildees para obtecirc-lo (partitura) satildeo utilizadas na medida em que possibilitam ilustrar o aspecto sonoro Evidentemente natildeo estamos isentos aos outros niacuteveis acessamos o niacutevel neutro de uma perspectiva de recepccedilatildeo (niacutevel esteacutesico) ao mesmo tempo que enquanto pesquisador compositor estou interessado em estrateacutegias de que possa me valer no trabalho criativo (niacutevel poieacutetico) interesse que o leitor possivelmente compartilha
19
como vozes textura e contraponto de forma a dialogar com o contexto atual de produccedilatildeo
musical no qual o autor estaacute inserido11
As concepccedilotildees de interaccedilatildeo (a e b) satildeo abordadas no capiacutetulo 2 como preliminares agrave
discussatildeo principal da dissertaccedilatildeo que foca na interaccedilatildeo como uma relaccedilatildeo sonoro-
morfoloacutegica (b) Apresentamos neste capiacutetulo os principais processos tecnoloacutegicos utilizados
na muacutesica eletroacuacutestica mista abordamos a discussatildeo conhecida como ldquoquerela dos temposrdquo
e as relaccedilotildees entre processos tecnoloacutegicos e resultado sonoro
No capiacutetulo 3 satildeo abordados dois sentidos de uma mesma via Primeiramente
partindo destas reflexotildees do acircmbito eletroacuacutestico nos perguntamos qual seria o lugar da
interaccedilatildeo aparente no resultado sonoro na muacutesica puramente instrumental Posteriormente
tendo abordado os conceitos de voz textura (31) e sonoridade (32) nos perguntamos como
abordar o tema no contexto eletroacuacutestico Fazemos uma breve discussatildeo terminoloacutegica em
torno dos termos camadas fluxos e planos A ideia de fluxo sonoro eacute apresentada como a
principal alternativa para abordar o tema neste contexto (34) A constituiccedilatildeo e segregaccedilatildeo dos
fluxos satildeo abordadas principalmente atraveacutes da morfologia da interaccedilatildeo (MENEZES 2006
p 377-400) A relaccedilatildeo entre eles a partir das ideias de comportamento (SMALLEY 1997)
contraponto (WISHART 1996) e interaccedilatildeo gestual (BACHRATAacute 2010) No subcapiacutetulo 35
a importacircncia do aspecto visual na performance de muacutesica mista eacute avaliada E finalmente a
partir destes levantamentos apresentamos um esboccedilo do que pode ser a textura na muacutesica
eletroacuacutestica mista (36)
O capiacutetulo 4 apresenta anaacutelises de quatro peccedilas mistas feitas a partir das teorias
levantadas Os objetivos de tais anaacutelises satildeo
a) Identificar fluxos sonoros e visuais
b) Identificar relaccedilotildees entre eles
c) Apontar desenvolvimentos e transformaccedilotildees destas relaccedilotildees
Em certa transgressatildeo do modelo de escrita dos capiacutetulos anteriores em que buscou-se
um distanciamento do autor o capiacutetulo 5 explicita o pesquisador-compositor como
interferente delineador desta pesquisa imerso em seus proacuteprios processos criativos As peccedilas
Chatildeo de outono e Nascer pedra morrer nuvem compostas durante o mestrado satildeo abordadas
atraveacutes das teorias estudadas
Os anexos satildeo partituras gravaccedilotildees e patches ldquorastrosrdquo do processo criativo de duas
11 Esta espeacutecie de revisatildeo conceitual complementa a reflexatildeo sem invalidar os meacutetodos jaacute utilizados para descrever inter-relaccedilotildees (harmonia contraponto voz textura etc)
peccedilas compostas durante o mestrado Chatildeo de outono para flauta e sons eletrocircnicos e Nascer
pedra morrer nuvem para violatildeo e sons eletrocircnicos
20
2 A INTERACcedilAtildeO NO CONTEXTO DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
21
O termo interaccedilatildeo tem sido aplicado a diferentes relaccedilotildees presentes no fazer musical12
A que mais nos interessa neste trabalho eacute a relaccedilatildeo sonoro-morfoloacutegica entre os materiais que
se agrupam em fluxos sonoros na experiecircncia da escuta Entretanto eacute importante esclarecer
previamente a distinccedilatildeo entre dois usos do termo interaccedilatildeo no contexto da muacutesica mista
a) Aquele que se refere agraves questotildees tecnoloacutegicas da performance
b) Aquele que se refere agraves questotildees sonoro-morfoloacutegicas
Grosso m odo os aspectos sonoro-morfoloacutegicos concernem ao som e sua organizaccedilatildeo
e podem ser avaliados independentemente dos aspectos praacuteticos tecnoloacutegicos da performance
ou mesmo do processo de composiccedilatildeo13 Para elucidar a diferenccedila do tema interaccedilatildeo nestes
dois acircmbitos neste capiacutetulo as teacutecnicas da muacutesica mista (21) e as discussotildees sobre suas
vantagens e desvantagens para a performance e para composiccedilatildeo (22) satildeo apresentadas E
finalmente questionamos as intersecccedilotildees entre estes dois usos do termo interaccedilatildeo (23)
21 TEacuteCNICAS DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
Podemos classificar grosseiramente as teacutecnicas de performance de peccedilas mistas entre
aquelas que utilizam os sons eletroacuacutesticos fixados em suporte processados em tempo real
eou provenientes de um sistema interativo Estas teacutecnicas natildeo satildeo excludentes as peccedilas
podem fazer um uso misto delas
211 Sons fixados em suporte
A primeira teacutecnica utilizada para combinar instrumentos acuacutesticos e sons
eletroacuacutesticos usada principalmente a partir dos anos 1950 foi aquela em que estes sons satildeo
elaborados previamente em estuacutedio e fixados em um suporte tecnoloacutegico (fita magneacutetica -
tape CD ou disco riacutegido) para serem tocados no momento da performance Nesta teacutecnica eacute
importante considerar a coordenaccedilatildeo (sincronizada ou natildeo) entre os meios instrumental e
12 Um trabalho que avalia diferentes usos do termo eacute o de Mamedes (2016)13 O termo sound morphology eacute usado diversas vezes por Wishart (1996) e encontra forte relaccedilatildeo com a ideia de
espectro-morphology (SMALLEY 1997) A intenccedilatildeo eacute delinear analiticamente um campo em que possamos falar dos aspectos ouvidos da muacutesica sem nos ater a questotildees de produccedilatildeo sonora Este uso do termo natildeo deve ser confundido com a morfologia enquanto estudo da forma musical (periacuteodo frases seccedilotildees etc) ainda que se este estudo se voltasse tambeacutem para as micro-estruturas as duas concepccedilotildees poderiam se encontrar
22
eletroacuacutestico e quais satildeo os recursos utilizados na performance para estabelececirc-la Segundo
Schrader (1991) os compositores tentaram resolver os problemas de coordenaccedilatildeo entre
elementos ao vivo (instrumentais) e preacute-gravados com uma de quatro maneiras diferentes
1) O material eletroacuacutestico foi preacute-gravado mas eacute controlado em tempo real por um
performer Imaginary Landscape No 1 (1939) de John Cage Marginal Intersections (1951)
de Morton Feldman
2) O material eletroacuacutestico foi preacute-gravado e eacute alternado com a performance ao vivo
Deserts (1949-1954) de Edgard Varegravese Concerted Piece fo r Tape Recorder and Orchestra
(1960) de Otto Luening e Vladimir Ussachevsky
3) O material preacute-gravado natildeo coordena precisamente com os elementos ao vivo
Musica su due dimensione (1952 revisada em 1958) de Bruno Maderna
4) O performer deve seguir e sincronizar com o material preacute-gravado Capriccio fo r
violin and two sound tracks (1952) de Hank Badings Kontakte (1960) de Karlheinz
Stockhausen (SCHRADER 1991 p 93)
Deve-se acrescentar que o quarto modo de coordenaccedilatildeo pode acontecer com o auxiacutelio
de um ponto com metrocircnomo de uma regecircncia programada em tela de deixas dos sons
eletroacuacutesticos Na peccedila Synchronism no 10 (1992) para violatildeo e tape de Mario Davidovsky
eacute possiacutevel observar pontos em que a sincronia eacute facilitada por deixas da parte eletrocircnica (ver
Figura 1)
FIGURA 1 - SYNCHRONISMS NO 10 (1992) DE MARIO DAVIDOVSKY (COMPASSOS 109-110)Giusto
Guitar
liberamente J ) = J = 120m m p
mdash d r -h iplusmn -------------1 1 111 raquo 11 L = 1
Tape
9 -
atrade
ecirc
cue
urpm f
Repeat in any order until tape enters on C on beat three
FONTE Transcrito de Davidovsky (compositor) (1995)
Ding (apud SCHULZ 2010 p 27-29) apresenta outra classificaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo
com sons preacute-gravados em relaccedilatildeo agrave maneira com que o compositor lida com a sincronizaccedilatildeo
e a expressa na partitura A classificaccedilatildeo eacute extensiacutevel a outras instrumentaccedilotildees que natildeo piano
e sons preacute-gravados - tema de sua pesquisa Aleacutem disso mais de um tipo de sincronizaccedilatildeo
pode ser utilizado numa mesma peccedila As possibilidades satildeo
a) Riacutetmica independente com sincronizaccedilatildeo por seccedilotildees o instrumentista tem liberdade
para fazer variaccedilotildees temporais no acircmbito de cada seccedilatildeo atentando apenas para o iniacutecio e fim
delas O compositor pode indicar na partitura a minutagem e o inteacuterprete pode usar um
cronocircmetro para acompanhar a troca de seccedilotildees
b) Riacutetmica livre com sincronizaccedilatildeo relativa a partitura natildeo utiliza indicaccedilatildeo de
minutagem (sem necessidade de metrocircnomo) mas possui uma representaccedilatildeo graacutefica da parte
eletroacuacutestica e o inteacuterprete se guia por sinais (setas linhas etc) que indicam a relaccedilatildeo entre
os eventos preacute-gravados e os que executaraacute Esta estrateacutegia depende muito do estudo para
encontrar os pontos de sincronia com a parte eletroacuacutestica deixando os outros momentos
com uma liberdade riacutetmica maior para o inteacuterprete
c) Sincronizaccedilatildeo estrita com riacutetmica livre diferentemente da sincronizaccedilatildeo por seccedilotildees
esta geralmente exige sincronia de evento a evento ou de segundo a segundo A escrita riacutetmica
eacute flexiacutevel mas os pontos de sincronia satildeo indicados com a minutagem sendo imprescindiacutevel o
metrocircnomo no estudo destas peccedilas
d) Sincronizaccedilatildeo estrita a partir de meacutetrica fixa a sincronia acontece por uma escrita
riacutetmica precisa tanto dos eventos instrumentais quanto eletroacuacutesticos Pode apresentar
inclusive notaccedilotildees precisas de andamento accelerando e ritardando
Abaixo estatildeo alguns exemplos de peccedilas para instrumento(s) e sons fixados em suporte
que apresentam diferentes tipos de sincronizaccedilatildeo entre instrumento e suporte
Karlheinz Stockhausen Kontakte (1958-1960) para piano percussatildeo e tape
Luciano Berio Diffeacuterences (1959) para flauta harpa viola violoncelo e tape
Jean-Claude Risset Inharmonique (1977) para soprano e tape
Mario Davidovsky Synchronism No 9 (1988) para violino e sons eletrocircnicos
Flo Menezes Parcours de l rsquoentiteacute (1994) para flauta amplificada percussatildeo e sons
eletroacuacutesticos
Joatildeo Pedro Oliveira Mosaic (2010) para piano e sons eletrocircnicos
23
24
212 Eletrocircnica em Tempo Real e Sistemas Interativos
Outra maneira de combinar instrumento e sons eletroacuacutesticos usada principalmente a
partir de meados de 1960 eacute aquela que usa equipamentos eletrocircnicos para processar o som do
instrumento no momento da performance14 Haacute uma seacuterie de processamentos mais utilizados
entre eles delays harmonizers espacializadores filtros reverbs e moduladores por anel Tais
processos podem se apresentar de maneira fixa ou entatildeo serem controlados por um performer
ao vivo A figura 2 demonstra o esquema da peccedila A Pierre D ellrsquoAzzurro Silenzio Inquietum
(1985) para flauta contrabaixo clarinete contrabaixo e eletrocircnica em tempo real de Luigi
Nono
FONTE Nono (compositor) (1996)
Nesta peccedila a partitura conteacutem aleacutem de vaacuterias indicaccedilotildees preliminares sobre a
configuraccedilatildeo deste sistema uma pauta para controle da dinacircmica da parte eletrocircnica (ver
Figura 3)
14 Tal estrateacutegia se encontra na categoria mais ampla chamada live-electronics Isto porque live-electronics ou eletrocircnica em tempo real pode incluir performances com equipamentos eletrocircnicos mesmo na ausecircncia de instrumentos convencionais
25
FIGURA 3 - COMPASSOS INICIAIS DE A PIERRE DELL rsquoAZZURRO SILENZIO INQUIETUM (1985) DE LUIGI NONO
J= 30 ca
Esta teacutecnica tem a caracteriacutestica de expandir a sonoridade instrumental a ponto de
falarmos em meta-instrumentos Ribeiro et al (2016) apontam que A Pierre se trata mais do
que uma peccedila para dois solistas de uma muacutesica eletroacuacutestica em que flauta e clarinete satildeo
abordados como geradores de som assim como o satildeo os osciladores e os geradores de ruiacutedo
Deve-se ressaltar que o resultado eletroacuacutestico dependeraacute em grande parte da
execuccedilatildeo da parte instrumental Por isso se espera do inteacuterprete que aleacutem de seu instrumento
domine tambeacutem as reaccedilotildees do sistema eletroacuacutestico Fabbriciani aponta este fato em relaccedilatildeo
agraves peccedilas de Nono
Nono sabia que para maximizar o potencial oferecido por essas teacutecnicas era necessaacuterio formar inteacuterpretes que pudessem interagir com o sistema eletrocircnico tatildeo sensivelmente quanto com seus proacuteprios instrumentos Era igualmente vital construir um entendimento entre os inteacuterpretes e os engenheiros de som de live-electronics Poderiacuteamos chamar isto de uma nova virtuosidade consistindo natildeo somente de velocidade teacutecnica mas de uma notaacutevel habilidade em produzir som com vaacuterios tons de cor nuances sutis e controle incomum da dinacircmica (FABBRICIANI apud RIBEIRO et al 2016 p 130)
Outros exemplos de peccedilas como eletrocircnica em tempo real satildeo
Karlheinz Stockhausen Mikrophonie I (1964) para tam-tam (2 instrumentistas) 2
microfones 2 filtros com potenciocircmetros e 4 pares de alto-falantes
Brian Ferneyhough Time and Motion Study I I (1976-7) para violoncelo e live-
electronics
Luigi Nono Das Atmende Klarsein (1981-2) para flauta baixo coro e live-electronics
Luciano Berio Altra Voce (1999) para mezzo soprano flauta em sol e live-
electronics
James Correa Vertiginous Rotation (2008) para violatildeo e live-electronics
Com o advento da tecnologia digital no final do seacuteculo XX passou-se a utilizar o
computador na muacutesica mista os processamentos podiam entatildeo ser feitos no domiacutenio do aacuteudio
digital Aleacutem disso o computador lida com outras informaccedilotildees uacuteteis para a muacutesica pois
podem representar paracircmetros musicais e agendar eventos musicais por exemplo Assim os
sistemas assumem tambeacutem o papel de controlar os processos em tempo real Aleacutem disso a
possibilidade de utilizar sons preacute-gravados integrados com processamento em tempo real
num hiacutebrido eacute consideravelmente facilitada Populariza-se o termo Computer Music e passa-
se entatildeo a chamar os sistemas usados para combinar sons instrumentais e eletroacuacutesticos em
tempo real de Sistemas Interativos de Muacutesica de Computador (traduccedilatildeo livre de Interactive
Computer Music Systems) (ROWE 1993) Como atualmente dizer que a muacutesica
eletroacuacutestica utiliza o computador eacute quase redundante o termo computer music
frequentemente traduzido por computaccedilatildeo musical embora ainda usado natildeo oferece grande
contribuiccedilatildeo para a caracterizaccedilatildeo do gecircnero (MENEZES 2006 p 355)
O contraacuterio acontece com o termo interativo O potencial do computador de interagir
de maneiras diversas com o humano motivou se chamar tais iniciativas de muacutesica interativa
Neste contexto o entendimento de interaccedilatildeo se refere agraves questotildees tecnoloacutegicas da
performance se coloca em contraposiccedilatildeo agrave natildeo-reaccedilatildeo da teacutecnica de sons fixados em suporte
bem como agrave ldquomerardquo reaccedilatildeo das propostas iniciais do live-electronics Nesta pesquisa estas
possibilidades (sons fixados em suporte live-electronics sistemas interativos) satildeo entendidas
como teacutecnicas distintas da muacutesica eletroacuacutestica mista natildeo como (sub-)gecircneros musicais
distintos
Os sistemas interativos tecircm sido estudados com diversas ecircnfases e por diferentes
disciplinas A Figura 4 demonstra o universo em que o desenvolvimento de tais sistemas se
encontra
26
27
FIGURA 4 - CONTEXTO DISCIPLINAR DA MUacuteSICA INTERATIVA
Music
ComputerScience
Engeneering Narrative
FONTE Transcrito de Whaley (2009)
Nossa pesquisa representa sobretudo a ponta musical da ilustraccedilatildeo e aborda os
aspectos de composiccedilatildeo e performance Eacute importante salientar que relacionadas aos sistemas
interativos se encontram as iniciativas dos Instrumentos Digitais (conf MONTEIRO 2012) e
dos Hiper-instrumentos - instrumentos mais ou menos convencionais incrementados com
sensores (conf MACHOVER 1992) - que natildeo seratildeo abordados nesta pesquisa
De acordo com Rowe (1993) ldquoSistemas interativos de muacutesica computacional satildeo
aqueles cujo comportamento muda em resposta a uma entrada musicalrdquo (natildeo paginado) O
autor concebe os sistemas interativos numa cadeia de processos em trecircs estaacutegios
a) recepccedilatildeo (Sensing) os dados satildeo coletados de controladores que lecircem informaccedilotildees
gestuais da performance
b) processamento (Processing) o computador lecirc e interpreta a informaccedilatildeo vinda dos
sensores e prepara os dados para a resposta
c) resposta (Response) o computador realiza uma saiacuteda musical
28
Rowe classifica os sistemas em trecircs dimensotildees A primeira diferencia entre sistemas
guiados por partitura (score driven) daqueles guiados por performance (performance driven)
a) sistema guiado por partitura uma coleccedilatildeo de eventos predeterminados ou
fragmentos musicais armazenados satildeo combinados (sincronizados) com a entrada
musical (input) Assim o compositor pode trabalhar com categorias tradicionais de
tempo meacutetrica e andamento
b) sistema guiado por performance utiliza paracircmetros mais gerais da performance tais
como densidade e regularidade para determinar paracircmetros de saiacuteda Natildeo antecipa
nenhum evento especiacutefico como acontece naqueles guiados por partitura
A segunda dimensatildeo diferencia entre meacutetodo de resposta transformativo generativo e
sequenciado
a) meacutetodo de resposta transformativo transforma um material musical existente para
produzir variantes A relaccedilatildeo destas com o som original pode ser reconhecida ou
natildeo Este material pode ser armazenado ou como eacute frequente pode-se usar o input
da performance como material
b) meacutetodo de resposta generativo o material fonte eacute elementar ou fragmentaacuterio - por
exemplo escalas armazenadas ou conjuntos de duraccedilotildees O meacutetodo usa regras para
produzir o output Por exemplo ele pode sortear alturas de determinada escala ou
aplicar procedimentos seriais a um conjunto de duraccedilotildees permitidas
c) meacutetodo de resposta sequenciado utiliza fragmentos preacute-gravados em resposta ao
input em tempo real Pode-se variar paracircmetros na execuccedilatildeo destes fragmentos
como por exemplo velocidade de reproduccedilatildeo e envelope dinacircmico
A terceira dimensatildeo diferencia os paradigmas de instrumento e de inteacuterprete (player)
a) paradigma de instrumento os gestos da performance ao vivo satildeo analisados pelo
computador e determinam um output que expande a resposta instrumental normal
Se tocado por um uacutenico performer o resultado musical pode ser percebido como
solo
b) paradigma de inteacuterprete o sistema eacute concebido como um inteacuterprete artificial possui
uma presenccedila musical com comportamentos proacuteprios e pode variar o grau com que
acompanha ou natildeo seu parceiro humano Se tocado por um uacutenico performer o
resultado musical pode ser percebido como um duo
Esta dimensatildeo se aproxima de uma questatildeo distinta Enquanto que as outras se
29
referiam agrave questotildees teacutecnicas do sistema sem chamar atenccedilatildeo para qualquer aspecto sonoro
que seria proveniente dele esta dimensatildeo que diferencia paradigma de instrumento e de
inteacuterprete aponta para um resultado musical decorrente A questatildeo apontada natildeo eacute apenas de
instrumentaccedilatildeo formaccedilatildeo mas de textura (solo ou duo) que eacute um aspecto percebido na
escuta eacute sonoro natildeo propriamente tecnoloacutegico15
Uma das primeiras peccedilas a utilizar sistema interativo eacute Jupiter (1987) para flauta e
eletrocircnica em tempo real de Philippe Manoury A peccedila realizada no Institut de Recherche et
Coordination AcoustiqueMusique (IRCAM) eacute a primeira a utilizar o Max programa criado
por Miller Puckette Faz uso tambeacutem do chamado seguidor de partitura (score follower) em
que o computador ldquoouverdquo a execuccedilatildeo do inteacuterprete e a compara com uma partitura virtual
armazenada O computador eacute programado para executar accedilotildees de processamento ou disparar
samples durante a performance em momentos agendados nesta partitura Assim o sistema de
Jupiter eacute guiado por partitura A Figura 5 apresenta um trecho da partitura do inteacuterprete e a
correspondecircncia dos eventos do computador nas pautas superiores
FIGURA 5 - EXCERTO DA PARTITURA DE JUPITER (1987) DE PHILIPPE MANOURY
Quanto ao meacutetodo de resposta o sistema eacute um misto de transformativo generativo e
sequenciado O sistema efetua transformaccedilotildees sobre um material (tanto a entrada ao vivo
quanto samples) - transformativo efetua a siacutentese sonora de acordo com uma seacuterie de
paracircmetros e regras preacute-estabelecidos - generativo possui um conjunto de amostras preacute-
gravadas que satildeo executadas e transformadas ao longo da peccedila - sequenciado
O sistema eacute concebido no paradigma de inteacuterprete Ainda que dependa de acompanhar
a performance e comparar com a partitura virtual o sistema tem uma presenccedila e
comportamento musical independente da parte instrumental A janela principal do patch
adaptado para PureData por Miller Puckette16 pode ser vista na Figura 6
15 Esta discussatildeo seraacute retomada em 22 e 2316 Disponiacutevel em lthttpmspucsdedupdrplatestfilesdocgt Acesso em 17 jan 2019
30
FONTE Puckette (2018)
A mencionada partitura virtual eacute entretanto mais do que uma seacuterie de dados com a
qual a performance eacute comparada eacute um termo cunhado por Philippe Manoury que assim o
descreve
[] uma partitura virtual eacute uma representaccedilatildeo cujos paracircmetros constitutivos satildeo conhecidos previamente mas cuja manifestaccedilatildeo exata e concreta eacute sujeita a variaccedilatildeo Se tal coisa natildeo eacute conheciacutevel previamente eacute pela simples razatildeo de que haacute um certo grau de dependecircncia da performance que como temos visto conteacutem um grau de indeterminismo Entretanto eacute ainda possiacutevel conceber um sistema que inclua ambos os estados determinado e indeterminado alguns paracircmetros necessaacuterios para a criaccedilatildeo de sons sinteacuteticos podem ser fixados previamente enquanto que outros vatildeo derivar seus valores de uma anaacutelise em tempo real dos instrumentos no momento preciso da performance (e assim conteraacute um grau de indeterminaccedilatildeo) (MANOURY 2013 p 67-68 traduccedilatildeo nossa17)
17 Original ldquo[] a virtual score is a representation whose constituent parameters are known in advance but whose exact concrete manifestation is subject to variation If such a thing is unknowable in advance it is for the simple reason that there is some degree of dependence upon performance which as we have seen contains a degree of indeterminism Nonetheless it remains possible to conceive of a system which includes
31
Outros exemplos de peccedilas com sistemas interativos satildeo
Philippe Manoury Pluton (1988-89) para piano MIDI e eletrocircnica em tempo real
Pierre Boulez Anthegravemes 2 (1997) para violino e eletrocircnica em tempo real
Robert Rowe Cigar Smoke (2004) para clarinete e sistema musical interativo
Philippe Manoury Tensio (2010) para quarteto de cordas e eletrocircnica em tempo real18
22 QUERELA DOS TEMPOS E A ESTEacuteTICA DA INTERATIVIDADE
Querela dos tempos eacute como ficou conhecida a discussatildeo sobre as vantagens e
desvantagens da eletrocircnica em tempo real ou em tempo diferido na muacutesica mista (DIAS
2014 p 20) Esta distinccedilatildeo apresentada por Philippe Manoury considera a difusatildeo em tempo
real como aquela em que o material eletroacuacutestico eacute gerado durante a performance enquanto
que na difusatildeo em tempo diferido a parte eletroacuacutestica foi composta anteriormente em
estuacutedio e armazenada para ser executada na performance (DIAS 2014 p 20) Tal discussatildeo
seraacute abordada a seguir no acircmbito da performance e posteriormente da composiccedilatildeo
Existem alguns obstaacuteculos para a performance daquelas peccedilas em que os sons
eletroacuacutesticos satildeo fixados em suporte e satildeo disparados uma ou poucas vezes durante a
performance19 O principal deles se deve ao fato de que o material preacute-gravado jaacute estaacute todo
definido Se numa muacutesica de cacircmara para instrumentos acuacutesticos os inteacuterpretes podem fazer
decisotildees interpretativas em conjunto na muacutesica com o material preacute-gravado isto natildeo eacute
possiacutevel os sons foram fixados em suporte com um tempo imutaacutevel McNutt aponta que
ldquopara o inteacuterprete tocar com acompanhamento fixo eacute como trabalhar com o pior
acompanhador humano imaginaacutevel desatencioso inflexiacutevel natildeo responsivo e totalmente
surdordquo (McNUTT 2003 p 299 traduccedilatildeo nossa20)
both states determinate and indeterminate some parameters necessary for the creation of synthetic sounds may be fixed in advance whereas others will derive their values from a real-time analysis of instruments at the very moment of performance (and thus will contain a degree of indeterminacy)rdquo (MANOURY 2013 p 67-68)
18 Ao final deste subcapiacutetulo sobre as teacutecnicas e tecnologias da muacutesica mista cabe ressaltar ainda outros dois contextos em que a interaccedilatildeo humano-computador eacute estudada na composiccedilatildeo a interaccedilatildeo compositor- tecnologia (THOMASI 2016 RIBEIRO 2018) no contexto da arte sonora a interaccedilatildeo do espectador participante com a obra atraveacutes de meios tecnoloacutegicos
19 Os referidos obstaacuteculos natildeo seriam tatildeo relevantes para uma peccedila em que por exemplo fossem tocados durante a performance diversos sons preacute-gravados de curta duraccedilatildeo Este seria o caso de uma fronteira entre teacutecnicas em tempo real e teacutecnicas em tempo diferido
20 Original ldquoFor the player performing with fixed accompaniment is like working with the worst human accompanist imaginable inconsiderate inflexible unresponsive and utterly deafrdquo (McNUTT 2003 p 299)
32
O problema do tempo imutaacutevel eacute tambeacutem uma preocupaccedilatildeo para o compositor Pierre
Boulez que o apresenta da seguinte forma
O tempo de uma gravaccedilatildeo em fita magneacutetica natildeo eacute o tempo psicoloacutegico e sim o tempo cronoloacutegico por outro lado o tempo de um inteacuterprete - um regente ou um instrumentista - eacute psicoloacutegico e eacute praticamente impossiacutevel interconectar os doisrdquo (BOULEZ apud MISKALO 20 0921)
Schulz (2010 p 25) argumenta que tal especificidade de tempo imutaacutevel natildeo eacute
caracteriacutestica apenas da muacutesica mista mas aparece em peccedilas de outros gecircneros que exigem do
inteacuterprete um rigor interpretativo em relaccedilatildeo ao tempo (e g Musica Ricercata no 7 195153
de Gyorgy Ligeti) Neste sentido a autora defende que no estudo de peccedilas mistas com sons
preacute-gravados o inteacuterprete natildeo deve apenas acompanhar a minutagem e outras indicaccedilotildees
presentes na partitura mas se apropriar destes sons e antecipaacute-los De acordo com Schulz
o instrumentista parte do conteuacutedo sonoro preacute-gravado para desenvolver o estudo bem como sua performance em coerecircncia com a parte fixa Em outras palavras a velocidade as dinacircmicas os momentos de sincronia e de certo modo as escolhas interpretativas satildeo feitas a partir dos sons preacute-gravados (SCHULTZ 2010 p 26)
Aleacutem disso natildeo eacute porque satildeo preacute-gravados que natildeo houve certo tipo de performance
em estuacutedio (manipulaccedilotildees de faders e potenciocircmetros por exemplo) Trata-se entatildeo de
compreender esta ldquoperformancerdquo preacute-gravada (em tempo diferido) e pensar a performance a
partir dela
Stroppa (1999) tambeacutem aponta nesta direccedilatildeo
Um ou uma performer agrave vontade com um click track encontraraacute outros meios de expressar suas escolhas interpretativas Se a composiccedilatildeo eacute feita de certa maneira ningueacutem na audiecircncia perceberaacute qualquer estranheza temporal e a performance seraacute julgada tatildeo livre quanto usualmente (STROPPA 1999 p 43 traduccedilatildeo nossa22)
No acircmbito da composiccedilatildeo tal discussatildeo se apresenta com a crenccedila de que o tempo
imutaacutevel fixo do tape representaria um tempo riacutegido da composiccedilatildeo e que desta
configuraccedilatildeo jamais poderia resultar uma interaccedilatildeo bem-sucedida
21 BOULEZ in HAumlUSLER Josef Boulez on Reacutepons 198522 Original ldquoA performer at ease with a click track will find other ways to express his or her interpretive
choices If the composition is done in a certain way nobody in the audience will perceive any temporal awkwardness and the performance will be judged as free as usualrdquo(STROPPA 1999 p 43)
33
Notamos neste ponto que a discussatildeo adentra um espaccedilo que natildeo eacute apenas da
performance mas se refere ao resultado sonoro desta Nos referimos a este espaccedilo como
morfologia sonora natildeo apenas no que se refere agrave qualificaccedilatildeo de objetos sonoros como nos
estudos de Pierre Schaeffer (1988 p 219) mas simplesmente nos referindo ao objeto de
estudo de todas as teorias musicais Trata-se do que percebemos que soa e seus aspectos
organizaccedilatildeo de materiais paracircmetros musicais relaccedilatildeo entre os materiais agrupamento e
segregaccedilatildeo dos materiais etc
Se da perspectiva da performance o problema da interaccedilatildeo se referia agrave relaccedilatildeo
problemaacutetica entre performer e a preacute-gravaccedilatildeo da perspectiva da composiccedilatildeo esta situaccedilatildeo
performaacutetica teria consequecircncias diretas na morfologia sonora Este pensamento sustenta uma
consequecircncia inexoraacutevel do modo da interaccedilatildeo entre performer e maacutequina sobre o tempo
musical Isto eacute o resultado sonoro seria riacutegido devido agrave situaccedilatildeo de performance ser esta de
discrepacircncia de tempos (cronoloacutegico e psicoloacutegico) entre suporte e performer
Tal posiccedilatildeo tende a natildeo considerar o uso de sons fixados em suporte como uma
possibilidade para a muacutesica mista admitindo exclusivamente o processamento em tempo real
e os sistemas interativos Estas posturas exclusivistas satildeo questionadas por Menezes (2006) e
Stroppa (1999) De acordo com Menezes (2006 p 380)
[] eacute preciso reconhecer que a criacutetica de cunho bouleziano (a despeito do valor inestimaacutevel da obra interativa de Boulez) segundo a qual um tempo fixo sobre suporte jamais poderaacute converter-se em uma interaccedilatildeo organicamente bem-sucedida eacute a meu ver sem fundamento pois a eficaacutecia da interaccedilatildeo natildeo dependeraacute jamais do fato de os sons eletroacuacutesticos estarem ou natildeo fixados sobre algum suporte tecnoloacutegico e terem suas duraccedilotildees predeterminadas mas antes da elaboraccedilatildeo de tal interaccedilatildeo na proacutepria composiccedilatildeo de acordo com suas possibilidades morfoloacutegicas (grifo nosso)23
Ainda haacute aqueles que defendem o uso dos sons fixados argumentando que o estuacutedio
possibilita uma elaboraccedilatildeo mais cuidadosa dos materiais do que as possibilidades em tempo
real O compositor Jean-Claude Risset (In BRUMMER et al 2001 p 6) se alinha com esta
posiccedilatildeo
Embora eu ame instrumentos penso que a ldquosituaccedilatildeo neo-instrumentalrdquo com live electronics raramente alcanccedila o grau de sofisticaccedilatildeo de boas peccedilas de tape Os aspectos de tempo real satildeo em certa medida uma ilusatildeo Compor natildeo eacute uma
23 Em 23 este misto mal analisado que vincula sem cuidado tecnologia e morfologia eacute abordado novamente
34
atividade em tempo real requer se abstrair da tirania do tempo real Muacutesica composta para o meio de gravaccedilatildeo pode ser cuidadosamente composta e realizada24
A preservaccedilatildeo das peccedilas com sistemas interativos eacute tambeacutem uma questatildeo a ser levada
em conta Isso porque as tecnologias mudam softwares ficam desatualizados e as peccedilas se
tornam sucetiacuteveis de obsolescecircncia ou entatildeo necessitam de atualizaccedilatildeo sempre que sua
performance for menos possibilitada por causa da tecnologia Esta atualizaccedilatildeo eacute dispendiosa e
necessita de trabalho especializado como aponta Risset (In BRUMMER et al 2001 p 7)
ldquoum privileacutegio que natildeo pode ser extendido a muitos compositores nem a muitas peccedilasrdquo25
Evidentemente os suportes fixos tambeacutem apresentam problemas semelhantes como por
exemplo a deterioraccedilatildeo de fitas magneacuteticas26 Atualmente entretanto a atualizaccedilatildeo nestes
casos parece ser mais simples e menos dispendiosa
Por outro lado o computador tem possibilitado interaccedilotildees com o performer ao vivo
que embora natildeo pareccedilam possibilitar diferentes relaccedilotildees sonoras certamente representam uma
mudanccedila na praacutetica musical Guy Garnett (2001) em seu artigo The Aesthetics o f Interactive
Computer Music afirma que a interaccedilatildeo tem dois aspectos as accedilotildees do performer afetam a
saiacuteda do computador ou as accedilotildees do computador afetam a saiacuteda do performer O autor aborda
o que a performance humana traz para a muacutesica computacional Um dos argumentos em favor
da muacutesica interativa em oposiccedilatildeo agrave muacutesica puramente computacional ou tape eacute o fator da
interpretaccedilatildeo Uma vez fixada ouviremos sempre novamente a mesma interpretaccedilatildeo da peccedila
Evidentemente haacute maneiras de projetar diferentemente espacializar ao vivo etc Poreacutem de
acordo com o autor ainda assim ldquoa peccedila estaacute fixada em tantos de seus atributos que natildeo eacute
possiacutevel proporcionar uma nova interpretaccedilatildeo significativa Algueacutem poderia entatildeo considerar
a muacutesica eletroacuacutestica como a lsquomuseificaccedilatildeorsquo uacuteltima da arte musicalrdquo (GARNETT 2001 p
29 traduccedilatildeo nossa27) Segundo Garnett incluir a performance humana na muacutesica
computacional eacute uma maneira de se afastar do formalismo presente frequentemente em
24 ldquoAlthough I myself love the instruments I think the neo-instrumental situation with live electronics rarely reaches the degree of sophistication of good tape pieces The real-time aspects are to a certain extent a delusion Composing is not a real-time activity it requires abstracting oneself from the tyranny of real-time Music composed for the recording medium can be carefully composed and realizedrdquo (RISSET In BRUMMER et al 2001 p 6)
25 ldquoa privilege which cannot be extended to many composers and many piecesrdquo (RISSET In BRUMMER et al 2001 p 7)
26 No artigo Electroacoustic music studies and the danger of loss Marc Battier estuda a fundo este problema da perenidade da muacutesica eletroacuacutestica seus sistemas e suportes (BATTIER 2004)
27 Original ldquo[] the work is fixed in so many of its attributes that it is not possible to provide a significant new interpretation One could therefore come to consider electroacoustic music as the ultimate ldquomuseumificationrdquo of musical artrdquo (GARNETT 2001 p 29)
35
muacutesica computacional por exemplo nas composiccedilotildees algoriacutetmicas Para Garnett eacute tambeacutem
uma questatildeo de a muacutesica estar em harmonia coerente com as necessidades do seu tempo de
criaccedilatildeo e existecircncia Natildeo eacute apenas uma questatildeo esteacutetica mas tambeacutem poliacutetica ldquoeacute tambeacutem
uma avaliaccedilatildeo poliacutetica dirigida a uma mudanccedila na maneira com que pessoas pensam sobre
produzem e experienciam muacutesicardquo (GARNETT 2001 p 29 traduccedilatildeo nossa28) Neste sentido
Garnett aponta objetivos poliacuteticos e esteacuteticos globais
Da mesma forma atraveacutes de uma frente esteacutetica ligeiramente diferente mas tambeacutem fortemente associada com Adorno natildeo precisamos mais sequestrar a alta arte do popular De fato precisamos agora lsquodesmuseificarrsquo - em certo sentido popularizar - todas as artes que tecircm em sua crescente institucionalizaccedilatildeo se tornado cada vez mais isoladas de ciacuterculos mais amplos [broad contituencies] Isso naturalmente natildeo implica uma capitulaccedilatildeo para os banais e batidos valores de produccedilatildeo em massa da maioria da muacutesica popular Exatamente o contraacuterio Significa trazer as verdadeiras experiecircncias artiacutesticas de riqueza singularidade e profundidade e expressatildeo intelectual em contato mais proacuteximo com as realidades sociais do nosso contexto cultural atual Eacute importante injetar o artista - o compositor - de volta agrave cena cultural atual em vez de reforccedilar o isolamento institucionalizado atual Rejeitar este curso provavelmente soacute levaraacute agrave morte completa da muacutesica de arte como a conhecemos e agrave completa hegemonia de apenas os elementos mais banais da cultura popular desprovidos de qualquer conexatildeo com e portanto de qualquer benefiacutecio possiacutevel das - enormes realizaccedilotildees do passado (GARNETT 2001 p 30 traduccedilatildeo nossa29)
O autor salienta a importacircncia desta perspectiva ldquoA consanguinidade entre interaccedilatildeo
humana e valores humanistas eacute um importante elemento guia para o campo da muacutesica
interativa computacionalrdquo (GARNETT 2001 p 30 traduccedilatildeo nossa30)
Eacute preciso levar em conta que a argumentaccedilatildeo de Garnett se coloca em oposiccedilatildeo agrave
muacutesica puramente eletroacuacutestica especialmente algoriacutetmica que pode conduzir a um
formalismo indesejado de acordo com estes valores Seus argumentos satildeo principalmente em
favor do inteacuterprete instrumental inserido no contexto eletroacuacutestico
Se anteriormente o potencial do estuacutedio para a elaboraccedilatildeo minuciosa do material
eletroacuacutestico (preacute-gravado) foi ressaltado as questotildees propostas por Garnett se colocam no
28 Original ldquo[] it is also it is also a political valuation in that it is directed toward making a change in the way people think about produce and experience musicrdquo (GARNETT 2001 p 29)
29 Original ldquoIndeed we need now to lsquode-museumizersquo - in a certain sense to popularize - all of the arts which have in their increasing institutionalization become increasingly isolated from broad constituencies This does not of course imply a capitulation to the banal and trite mass production values of much popular music Exactly the opposite It means to bring the true artistic experiences of richness uniqueness and intellectual depth and expression into closer contact with the social realities of our present cultural context It is important to inject the artist - the composer - back into the current cultural scene rather than reinforcing the current institutionalized isolationrdquo (GARNETT 2001 p 30)
30 Original ldquoThe consanguinity between human interaction and humanist values is an important driving element for the field of interactive computer musicrdquo (GARNETT 2001 p 30)
36
outro lado da balanccedila pesando o potencial dos sistemas interativos em sua possibilidade de
reinterpretaccedilatildeo da parte eletroacuacutestica a cada execuccedilatildeo Um sistema hiacutebrido pode somar
algumas vantagens de ambas teacutecnicas Neste caso o sistema poderia em interaccedilatildeo com a
performance ao vivo disparar materiais preacute-gravados de maior ou menor duraccedilatildeo elaborados
minuciosamente em estuacutedio e ao mesmo tempo executar processamentos em tempo real
Implementamos um sistema semelhante na peccedila Chatildeo de outono (51)
23 ENTRE TECNOLOGIA E MORFOLOGIA SONORA
Considerando as questotildees relativas agrave performance da muacutesica mista com suporte
(modos de coordenaccedilatildeo tempo imutaacutevel estudo destas peccedilas) e brevemente as questotildees
relativas agrave composiccedilatildeo (por exemplo do tempo fixo vs tempo riacutegido) notamos as
interferecircncias entre estas aacutereas O raciociacutenio de que devido agraves contingecircncias tecnoloacutegicas dos
sons fixados em suporte a performance apresenta um tempo imutaacutevel que se reflete num
tempo riacutegido da composiccedilatildeo parece ser um misto mal analisado Este raciociacutenio se caracteriza
por transferir questotildees da aacuterea tecnoloacutegica da performance diretamente para o acircmbito sonoro-
morfoloacutegico da composiccedilatildeo Tecnologia e morfologia tecircm naturezas distintas e natildeo se pode
tomar uma pela outra apenas porque a terminologia eacute a mesma Isto eacute falamos de interaccedilatildeo
referindo-nos agrave interaccedilatildeo do performer com a tecnologia utilizada e falamos da interaccedilatildeo entre
elementos da morfologia sonora
Outros autores criticam esta confusatildeo Stroppa (1999) aponta a problemaacutetica da
associaccedilatildeo do ao vivo (live) com teacutecnicas em tempo real (STROPPA 1999) O autor sustenta
que o aspecto da vida na muacutesica (live) necessita algum tipo de interpretaccedilatildeo embora natildeo se
restrinja agrave presenccedila de muacutesicos num palco pode ser percebido numa gravaccedilatildeo por exemplo
(1999 p 62) Assim critica o pensamento errocircneo de que o tempo real dos sistemas
interativos garantiria certa vida (live)
[] natildeo haacute correlaccedilatildeo entre uma peccedila usando tecnologia interativa e a percepccedilatildeo de autecircntica interpretaccedilatildeo em muacutesica interaccedilatildeo natildeo eacute interpretaccedilatildeo pois a uacuteltima se idealmente implica a primeira eacute um fenocircmeno mais sutil e complexo [] A vida na muacutesica brota de repente quando algum tipo de comunicaccedilatildeo estaacute acontecendo entre o performer e o material eletrocircnico circundante entre os dois e o puacuteblico e naturalmente quando a peccedila eacute digna Se a eletrocircnica eacute uma fita modesta ou o
37
sistema interativo ldquomais inteligenterdquo essa eacute uma histoacuteria completamente diferente (STROPPA 1999 p 52)31
Stroppa separa portanto as questotildees tecnoloacutegicas referentes aos sistemas interativos
da questatildeo que cerca a percepccedilatildeo da vida na muacutesica (live) o que estaacute mais associado com o
acircmbito sonoro-morfoloacutegico ao qual estamos voltando nossa atenccedilatildeo nesta pesquisa
Simon Emmerson (2013) sustenta que na experiecircncia de escuta natildeo estamos tatildeo
interessados no ldquojogo de adivinhaccedilotildeesrdquo sobre quais foram as causas de determinado efeito
mas que ouvimos primariamente efeitos Este ponto se coloca em oposiccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de
que um sistema interativo deve buscar uma linearidade entre accedilatildeo e resposta semelhante aos
instrumentos acuacutesticos O autor contraria aqueles que argumentam que a cadeia causal
necessita ser reestabelecida para que haja uma interatividade significativa para o ouvinte De
acordo com Emmerson natildeo ouvimos a causa ouvimos o efeito Nesta abordagem eacute possiacutevel
observar que causa estaacute relacionada a questotildees tecnoloacutegicas (normalmente relacionada a
teacutecnicas de mapeamento) enquanto os efeitos satildeo de natureza sonora
Bachrataacute (2010) ao abordar a interaccedilatildeo gestual entre instrumentos acuacutesticos e sons
eletroacuacutesticos distingue interaccedilatildeo de interatividade A autora cita a definiccedilatildeo de
interatividade do EARS (ElectroAcoustic Research Site) ldquoInteratividade se refere
amplamente agrave interaccedilatildeo musical humano-computador ou interaccedilatildeo humano-humano mediada
por um computador ou possivelmente uma seacuterie de computadores conectados em rede que
estatildeo tambeacutem interagindo um com outrordquo32 De acordo com esta definiccedilatildeo ressalta a autora a
muacutesica para instrumento e sons fixados em suporte natildeo seria interativa embora quando
percebida auralmente a interaccedilatildeo esteja presente sem qualquer duacutevida (BACHRATAacute 2010 p
91) Esta diferenciaccedilatildeo estaacute relacionada com aquela que estamos apontando aqui Entretanto
os termos (interaccedilatildeo e interatividade) satildeo semelhantes e frequentemente utiliza-se interaccedilatildeo
para discursar sobre o que acima foi definido como interatividade Aleacutem do mais estas duas
palavras tecircm a mesma origem etimoloacutegica restando apenas a diferenccedila entre accedilatildeo e
31 ldquo[] there is no correlation between a piece using interactive technology and the perception of authentic interpretation in music interaction is not interpretation since the latter if it ideally implies the former is a much subtler and complex phenomenon [] Life in music sprouts suddenly when some kind of communication is going on between the performer and the surrounding electronic material between both of them and the audience and naturally when the piece is worth it Whether the electronics is a modest tape or the cleverest interactive system thats a completely different kettle of fishrdquo (STROPPA 1999 p 52)
32 Traduccedilatildeo do autor Original ldquoInteractivity refers broadly to human-computer musical interaction or humanshyhuman musical interaction that is mediated through a computer or possibly a series of networked computers that are also interacting with each otherrdquo (WEALE 2005)
38
atividade33 Optamos assim por diferenciar as questotildees tecnoloacutegicas da performance (nas
quais inclui-se a interatividade conforme definida acima) das questotildees sonoro-morfoloacutegicas a
interaccedilatildeo auralmente percebida de acordo com Bachrataacute (2010 p 91)
Por outro lado embora sejam de naturezas distintas com o devido cuidado eacute possiacutevel
analisar as relaccedilotildees entre estes dois acircmbitos Pode-se investigar como uma tecnologia
utilizada estaacute relacionada com uma morfologia sonora em determinado repertoacuterio Entretanto
estas relaccedilotildees natildeo parecem se dar de maneira determiniacutestica ou fataliacutestica pois estatildeo ligadas agraves
decisotildees criativas que muitas vezes tomam rumos contraacuterios agraves tendecircncias de uso de uma
ferramenta (vide as teacutecnicas estendidas dos instrumentos tradicionais) Assim a questatildeo
poderia ser sobre quais satildeo as possibilidades eou tendecircncias sonoro-morfoloacutegicas no uso de
determinada tecnologia
Menezes (2006) aponta tendecircncias das teacutecnicas em tempo real O autor argumenta que
estas permitem uma correlaccedilatildeo estreita com o gesto instrumental e sua metamorfose
eletroacuacutestica Entretanto estas teacutecnicas ldquoagem inexoraacutevel e exclusivamente em sentido
convergenterdquo (p 379) jaacute que estatildeo sempre ligadas a sua fonte instrumental e pouco fazem no
sentido divergente do contraste Eacute preciso considerar a que tipo de empreendimento o autor
se refere A impossibilidade da diferenccedila do contraste estaacute mais relacionada agraves teacutecnicas que
usam processamentos (tais como delays harmonizers entre outros) para transformar o som
instrumental ao vivo nunca se distanciando desta fonte sonora Entretanto como apresentado
em 212 haacute outras possibilidades em tempo real inclusive a de utilizar sons preacute-gravados
distintos dos instrumentais como germe de processos em tempo real Um exemplo eacute a peccedila
Vertiginous Rotation (2008) de James Correa34 Os sons do violatildeo e uma pequena amostra de
som de berimbau satildeo processados ao vivo e eacute possiacutevel observar momentos de consideraacutevel
contraste entre eletrocircnicos e violatildeo
A questatildeo das possibilidades ou tendecircncias sonoro-morfoloacutegicas de determinada
tecnologia tambeacutem tem sido levantada nos estudos da muacutesica eletroacuacutestica em geral Os
33 Esta discussatildeo poderia ir aleacutem se se lanccedilasse matildeo de referenciais de outras aacutereas A distinccedilatildeo entre interaccedilatildeo e interatividade eacute discutida no acircmbito da educaccedilatildeo a distacircncia no artigo (VALLE e BOHADANA 2012) A interaccedilatildeo acontece entre humanos enquanto a interatividade pode acontecer entre maacutequinas A interaccedilatildeo enquanto accedilatildeo entre humanos pode ser de fato uma metaacutefora mais adequada para a interaccedilatildeo entre elementos sonoros jaacute que estes ganham muitas vezes a funccedilatildeo o caraacuteter (de caracterizaccedilatildeo) de voz o que remonta agrave utilizaccedilatildeo da voz humana como instrumento e por sua vez a seu caraacuteter antropomoacuterfico Enquanto que interatividade pode ser mais adequado para as questotildees tecnoloacutegicas jaacute que se caracteriza por uma funccedilatildeo de instrumento ou inteacuterprete
34 Confira o viacutedeo do compositor explicando sua abordagem nesta peccedila lthttpswwwyoutubecomwatch v=dZfw 1WKF7eggt
39
estudos buscam compreender a relaccedilatildeo entre tecnologia e morfologia-sonora encarando o
compositor enquanto colaborador no desenvolvimento de tecnologias e recursos
eletroacuacutesticos (ZATTRA 2018) ou mesmo como luthier experimental (RIBEIRO 2018)
Tambeacutem relacionado a esta questatildeo estaacute o fato de que as teorias de anaacutelise de muacutesica
eletroacuacutestica partem da perspectiva do ouvinte e ignoram mais ou menos a tecnologia
envolvida Um exemplo eacute a Espectro-morfologia de Dennis Smalley (1997) Segundo o autor
eacute um sacrifiacutecio deixar de lado o desejo natural de desvendar os misteacuterios da produccedilatildeo sonora
eletroacuacutestica mas eacute necessaacuterio e loacutegico Smalley alerta para o que chama de escuta
tecnoloacutegica quando o ouvinte passa a perceber a tecnologia ou a teacutecnica responsaacutevel pela
muacutesica mais do que a proacutepria muacutesica De acordo com o autor ldquoIdealmente a tecnologia deve
ser transparente ou pelo menos a muacutesica precisa ser composta de tal maneira que as
qualidades de sua invenccedilatildeo superem qualquer tendecircncia a escutar primeiramente de uma
maneira tecnoloacutegicardquo (SMALLEY 1997 p 109)35
Menezes ao abordar a diferenccedila entre meios instrumental e eletroacuacutestico ressalta que
[ ] os elementos fundamentais de toda composiccedilatildeo musical independem em uacuteltima instacircncia (mas somente em uacuteltima) dos meios com os quais se compotildee uma obra elaboraccedilatildeo do material musical enquanto elementos miacutenimos e relacionais consciecircncia harmocircnica (em seu mais amplo sentido) elementos de conexatildeo entre as distintas ideacuteias musicais elaboraccedilatildeo de gestos musicais direcionalidades entreestados distintos de escuta conduccedilatildeo e transformaccedilatildeo do material musicalartesanato e detalhamento dos espectros variaccedilotildees etc satildeo aspectos que estatildeo aqueacutem e aleacutem dos meios composicionais per se ainda que com estes estabeleccedilam forte relaccedilatildeo dialeacutetica (MENeZeS 2006 p 379)
Estendendo esta ideia pode-se tambeacutem dizer que os elementos fundamentais da
composiccedilatildeo natildeo dependem da tecnologia utilizada - pensando aqui especialmente nas
teacutecnicas descritas em 21 - embora estabeleccedilam uma relaccedilatildeo dialeacutetica com ela
Esta relaccedilatildeo localiza o compositor especialmente o de muacutesica eletroacuacutestica numa
rede num emaranhado com suas ideias musicais e seus instrumentos (tecnologia) de tal forma
que a relaccedilatildeo entre esteacutetica e teacutecnica se torna nebulosa Ribeiro (2018) aponta trecircs fatores
significativos na composiccedilatildeo eletroacuacutestica
bull o compositor eacute o proacuteprio performer
35 Traduccedilatildeo proacutepria Original ldquoIdeally the technology should be transparent or at least the music needs to be composed in such a way that the qualities of its invention override any tendency to listen primarily in a technological mannerrdquo (SMALLEY 1997 p 109)
40
bull o instrumento eacute modular mutaacutevel e quase sempre com configuraccedilatildeo nova para cada obrabull a estrutura da obra se confunde com a construccedilatildeo do instrumento (p 176)
Assim Ribeiro concebe o processo composicional de muacutesica eletroacuacutestica
semelhante a um loop em que natildeo se pode separar facilmente as funccedilotildees tradicionais de
composiccedilatildeo instrumentaccedilatildeo e execuccedilatildeo
FIGURA 7 - PROCESSO COMPOSICIONAL NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA
Instrumento
FONTE Ribeiro (2018 p 117)
Desenvolver ideias para determinado instrumento e desenvolver instrumentos para
determinada ideia mais do que uma via de matildeo dupla parece ser um campo aberto Haacute
muitas possibilidades e neste loop em que se daacute o processo composicional elas podem ter
vaacuterias direccedilotildees Ideias que motivam o desenvolvimento de tecnologias como o caso da
Rotationstisch de Stockhausen instrumento para espacializaccedilatildeo (ver CHADABE 1997 p
41) ideias tecnoloacutegicas existentes que satildeo aproveitadas pelos compositores ou ainda
trabalhos em que o desenvolvimento de ideias musicais e o desenvolvimento tecnoloacutegico se
embricam de tal forma que natildeo se pode distinguir qual motiva qual se encontram numa rede
de relaccedilotildees e influecircncias
Por conveniecircncia de estudo a interaccedilatildeo que se refere agraves questotildees tecnoloacutegicas da
performance eacute distinguida daquela que se refere agraves questotildees sonoro-morfoloacutegicas percebidas
na escuta Eacute proacuteprio da pesquisa distinguir analisar (separar um todo em seus elementos
componentes) para num segundo momento sintetizar Esta siacutentese em especiacutefico natildeo seraacute o
foco de nossa pesquisa A investigaccedilatildeo das influecircncias da tecnologia sobre nossa percepccedilatildeo do
sonoro e mesmo para aleacutem dela eacute tema de pesquisas de Rodolfo Caesar O autor chama tal
influecircncia de marca tecnograacutefica
41
Atraveacutes dessa expressatildeo procuro salientar as marcas deixadas pelas diferentes tecnologias em suas diversas manifestaccedilotildees desde a mera percepccedilatildeo individual ateacute a cultura em geral Comecei a pensar sobre essa manifestaccedilatildeo de uma lsquosubjetivaccedilatildeo das tecnologiasrsquo ao me defrontar com a necessidade de exercer uma atenccedilatildeo criacutetica especificamente no acircmbito da muacutesica eletroacuacutestica quando importantes creacuteditos autorais dos programas computacionais empregados nas muacutesicas natildeo eram devidamente atribuiacutedos (CAESAR 2018)
Diferentemente a presente pesquisa se deteacutem agraves relaccedilotildees sonoro-morfoloacutegicas
percebidas na escuta independentemente das questotildees tecnoloacutegicas Este tema seraacute abordado
atraveacutes da revisatildeo de teorias pertinentes (capiacutetulo 3) anaacutelises (capiacutetulo 4) e relato de
experiecircncia composicional (capiacutetulo 5)
42
3 A INTERACcedilAtildeO NO AcircMBITO SONORO-MORFOLOacuteGICO
Tendo distinguido os dois acircmbitos em que se apresenta o tema da interaccedilatildeo na muacutesica
eletroacuacutestica mista (Capiacutetulo 2) neste capiacutetulo aprofundamos a discussatildeo sobre a interaccedilatildeo
relativa agrave morfologia sonora Neste acircmbito interaccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica proacutepria da textura
Numa textura polifocircnica por exemplo haacute uma interaccedilatildeo entre as diversas vozes A partir do
trabalho de Berry (1987) fazemos uma breve abordagem deste conceito na muacutesica
instrumental (31) Aleacutem disso incorporamos a ideia de sonoridade (GUIGUE 2011) para
abranger outras estruturas instrumentais que natildeo se enquadram como vozes (32) Esta
observacircncia das estruturas instrumentais natildeo necessita justificativa jaacute que estamos falando de
muacutesica para instrumentos e sons eletroacuacutesticos Entretanto podemos assumir
pressupostamente que a muacutesica eletroacuacutestica guardadas suas caracteriacutesticas exclusivas pode
apresentar estruturas semelhantes ou anaacutelogas agraves existentes no repertoacuterio instrumental As
particularidades da muacutesica eletroacuacutestica satildeo tambeacutem abordadas (33) a fim de inserir o tema
no contexto da pesquisa A ideia de fluxo sonoro permanece central embora neste contexto
seja possiacutevel tratar o tema por meio de outras metaacuteforas como camadas e planos (discutimos a
terminologia brevemente em 333) Abordamos tambeacutem o aspecto visual da performance de
muacutesica mista (35) E finalmente relacionamos os diversos conteuacutedos apresentados neste
capiacutetulo propondo um esboccedilo de uma textura da muacutesica mista (36)
31 VOZES E TEXTURA
311 Textura
A voz eacute certo som de um ser animado [que possui alma] porque nenhum dos inanimados dispotildee de voz Apenas por analogia se diz que estes usam a voz como por exemplo a flauta a lira e todos os outros seres inanimados que dispotildeem de altura duraccedilatildeo e articulaccedilatildeo pois a voz parece possuiacute-las (ARISTOacuteTELES 2010 p 85-86)
Na teoria musical a voz eacute um conceito que faz referecircncia ao uso musical da voz
humana Por analogia falamos em vozes mesmo quando satildeo tocadas por instrumentos As
vozes compotildeem uma textura na qual se relacionam de muitas maneiras Berry (1987) dedica
um capiacutetulo de sua obra agrave textura36 De acordo com o autor ldquoA textura da muacutesica consiste em
36 Note-se jaacute que textura na muacutesica instrumental tem uma acepccedilatildeo diferente de textura na muacutesica eletroacuacutestica No capiacutetulo 36 diferenciamos estas duas acepccedilotildees como macrotextura e microtextura respectivamente
43
seus componentes sonorosrdquo (BERRY 1987 p 184 traduccedilatildeo nossa37) Haacute um aspecto
quantitativo e outro qualitativo da textura O primeiro se refere ao nuacutemero de componentes
sonoros o segundo agrave interaccedilatildeo ou inter-relaccedilatildeo entre eles
Berry diferencia linha de voz A linha se refere agrave
ldquoqualquer componente textural no qual a relaccedilatildeo e a configuraccedilatildeo horizontal pode ser plausivelmente traccedilada como uma continuidade loacutegica - um estrato identificaacutevel na textura em algum dado niacutevelrdquo (BERRY 1987 p 192 traduccedilatildeo nossa38)
Jaacute a voz se refere agrave ldquouma linha que apresenta destacada independecircncia relativa ela
pode ser um complexo de linhas dobradas mas ela mesma natildeo eacute capaz de ser dobradardquo
(BERRY 1987 p 192-3 traduccedilatildeo nossa39) Assim uma textura monofocircnica (com uma uacutenica
voz) pode ser multi-linear (formada por vaacuterias linhas em dobramento - fagote e oboeacute com
dobramento de oitava por exemplo) A representaccedilatildeo de tais disposiccedilotildees pode ser vista na
Figura 8 Os nuacutemeros indicam as linhas (2 = mesma voz com dois instrumentos) As vozes satildeo
representadas verticalmente uma abaixo da outra
FIGURA 8 - REPRESENTACcedilAtildeO DOS ASPECTOS QUANTITATIVO E QUALITATIVO DA TEXTURA
1 1 1 1 2 2 41 1 1 1 2
1 1 1 1
Curva de qualidade (conforme condicionada por mushydanccedilas na independecircncia-interdependecircncia)
Curva de quantidade (nuacutemero-densidade)
FONTE Berry (1987 p 194-5 traduccedilatildeo nossa)
37 Original ldquoThe texture of music consists of its sounding components it is conditioned in part by the number of those components sounding in simultaneity or concurrence its qualities determined by the interactions interrelations and relative projections and substances of component lines or other component sounding factorsrdquo (BERRY 1987 p 184)
38 Original ldquo[] any textural component in which horizontal relation and configuration can plausibly be traced as a logical continuity - an identifiable stratum in the texture at some given levelrdquo (BERRY 1987 p 192)
39 Original ldquo[] a line having distinct relative independence it may thus be a complex of doubled lines but is not itself capable of doublingrdquo (BERRY 1987 p 192-3)
44
Aleacutem daqueles termos largamente usados para descrever a textura e que jaacute tem um
significado convencional estaacutevel (polifocircnico homofocircnico cordal dobramento espelhado
heterofocircnico sonoridade contrapontiacutestico monofocircnico) o autor propotildee outros Estes termos
tecircm por base trecircs paracircmetros considerados mais relevantes para a avaliaccedilatildeo das caracteriacutesticas
da textura ritmo (isto eacute padrotildees riacutetmicos) direccedilatildeo (da melodia) e conteuacutedo intervalar linear
(BERRY 1987 p 193) Uma escala que vai do simples para o complexo eacute usada em cada um
destes paracircmetros atraveacutes dos prefixos homo- hetero- e contra-40 Assim quanto ao ritmo a
relaccedilatildeo entre vozes distintas pode ser homorriacutetmica heterorritmica e contrarriacutetmica quanto agrave
direccedilatildeo homodirecional heterodirecional e contradirecional quanto ao conteuacutedo intervalar
homointervalar heterointervalar e contraintervalar A Figura 9 ilustra tais caracteriacutesticas
FIGURA 9 - ALGUMAS QUALIDADES DA TEXTURA
Relaccedilotildees nt niacutevel (nt ctntextt temptral) ilustrado
mhtmtrriacutetmict 3 5 htmtdirecitnal
mhetertrriacutetmict s er r ^ r r r 1
- hetertdirecitnal
3 ctntrarriacutetmictm m
ctntradirecitnal
it
^ r ni u tJsect rr
itmtintervalar
ietertintervalar
ctntraintervalar
FONTE Transcrito e traduzido de Berry (1987 p 194-5)
Nossa intenccedilatildeo em levantar tal classificaccedilatildeo e teorizaccedilatildeo da textura natildeo objetiva
incorporaacute-la prontamente em nossas anaacutelises antes cercar o tema da interaccedilatildeo desde a muacutesica
instrumental em suas especificidades
40 hetero- descreve diferenciaccedilotildees mais sutis enquanto contra- representa diferenccedilas mais draacutesticas
45
312 Vozes sons segregados em fluxos auditivos
A maneira como percebemos uma voz ou uma linha e como a diferenciamos de outras
eacute uma questatildeo importante na abordagem da textura As vozes satildeo normalmente diferenciadas
pela tessitura em que atuam (soprano contralto tenor e baixo por exemplo) e pelo timbre
(tone-color) enquanto identidade espectral associada a uma fonte instrumental (flauta
violino etc) Trevor Wishart (1996 p 23) ao tratar da noccedilatildeo convencional de instrumento
comenta que ldquoao menos conceitualmente um instrumento eacute uma fonte de timbre estaacutevel mas
de alturas variaacuteveis A funccedilatildeo essencial de um instrumento eacute manter o timbre estaacutevel e
articular o paracircmetro de alturasrdquo (traduccedilatildeo nossa41) Esta concepccedilatildeo de instrumento de timbre
estaacutevel garante o desenvolvimento de um fluxo instrumental (voz)42 associado a este timbre e
sua fonte sonora43 Wishart aponta que ldquoDe fato o conceito de fluxo [stream] instrumental eacute
talvez o que mais persiste no pensamento musical convencionalrdquo (1996 p 25)
O grupo de Albert Bregman da universidade McGill no Canadaacute pesquisa o tema da
Anaacutelise da Cena Auditiva que oferece vaacuterios pontos de contato com a percepccedilatildeo de vozes
distintas na muacutesica44 No artigo que compotildee a New Encyclopedia o f Neuroscience
(BREGMAN 2008) o autor resume
Numa situaccedilatildeo tiacutepica de escuta diferentes fontes acuacutesticas estatildeo ativas ao mesmo tempo Desta forma apenas a soma do seu espectro alcanccedilaraacute o ouvido do ouvinte Para padrotildees sonoros individuais serem reconhecidos - tais como aqueles chegando da voz humana numa mistura - a informaccedilatildeo auditoacuteria recebida tem de ser particionada e o subgrupo correto alocado para sons individuais de tal maneira que uma descriccedilatildeo acurada pode ser formada para cada um Este processo de agrupar e segregar dados sensoacuterios em representaccedilotildees mentais separadas chamadas fluxosauditoacuterios tem sido nomeada ldquoauditory scene analysisrdquo (ASA) por Bregman (1990)A formaccedilatildeo de fluxos auditoacuterios eacute o resultado de processos de agrupamento sequencial e simultacircneo O agrupamento sequencial conecta os dados sensoacuterios ao longo do tempo enquanto que o agrupamento simultacircneo seleciona dos dadoschegando no mesmo tempo aqueles componentes que satildeo provavelmente partes domesmo som (BREGMAN 2008 p 3 traduccedilatildeo nossa45)
41 Original [] an instrument is a source of stable timbre but variable pitch The essential function of aninstrument is to hold timbre stable and to articulate the pitch parameter (WISHART 1996 p 23)
42 Abordaremos a ideia de fluxo adiante43 Assim a voz se encontra convencionalmente associada agrave materialidade do instrumento ou suas famiacutelias
Observando por outro acircngulo ordinariamente as possibilidades tiacutembricas para cada voz se apresentam em valores discretos este ou aquele instrumento Esta eacute uma das dimensotildees da rede (lattice) de Wishart (1996) que seraacute abordada adiante
44 Os resultados das pesquisas de Bregman jaacute foram utilizados na composiccedilatildeo musical (Confira Frigatti Ferraz e Faria 2017)
45 Original ldquoIn a typical listening situation different acoustic sources are active at the same time Therefore only the sum of their spectra will reach the listenerrsquos ear For individual sound patterns to be recognized - such as those arriving from the human voice in a mixture - the incoming auditory information has to be
46
Desta forma a percepccedilatildeo de um fluxo auditivo (auditory stream) - em nosso caso
uma voz por enquanto - depende de processos cognitivos de agrupamento de dados
sensoacuterios De acordo com Bregman (2008 p 4) seus resultados manteacutem relaccedilatildeo com os
princiacutepios da Teoria da Gestalt como por exemplo o de agrupamento Segundo este
princiacutepio agrupamos elementos por proximidade similaridade boa continuaccedilatildeo e fato
comum De acordo com Roger Shepard (1999) ldquoOs princiacutepios de agrupamento nos permitem
separar o fluxo de informaccedilatildeo entrando em nosso sistema auditivo em sensaccedilotildees associadas
com objetos discretos pertencentes ao mundo externordquo (p 117) Baseado no princiacutepio de fato
comum eacute possiacutevel dizer que ldquose duas coisas estatildeo altamente correlacionadas eacute altamente
provaacutevel que emergiram de uma mesma fonte enquanto que se duas coisas satildeo assincrocircnicas
eacute provaacutevel que sejam associadas com dois objetos diferentesrdquo (p 117) Como os
componentes do timbre satildeo altamente correlacionados no som de um instrumento e
relativamente estaacuteveis como aponta Wishart na citaccedilatildeo acima (p 45) a tendecircncia eacute que os
sons deste instrumento constituam um fluxo Este aspecto tambeacutem aponta para a percepccedilatildeo de
uma uacutenica voz quando apresentada por vaacuterios instrumentos em dobramento Isto eacute agrupamos
os diversos sons sob uma mesma categoria uma voz porque estatildeo altamente correlacionados
especialmente em seu comeccedilo teacutermino e movimentos meloacutedicos
Outro princiacutepio importante eacute o de movimento aparente A Figura 10 mostra o
fenocircmeno da segregaccedilatildeo de fluxos num experimento de laboratoacuterio Duas notas (H e L) satildeo
tocadas em um padratildeo galopante H-L-H H-L-H etc O experimento evidencia a importacircncia
da separaccedilatildeo em frequecircncia e da velocidade quanto mais afastadas em frequecircncia as notas
estiverem ou quanto mais raacutepida a alternacircncia mais faacutecil seraacute percebecirc-las como fluxos
distintos
Quando por exemplo trecircs notas de alturas afastadas satildeo alternadas lento o suficiente
podemos perceber um padratildeo meloacutedico ou seja percebemos um movimento aparente que vai
de uma nota a outra Entretanto se a velocidade com que satildeo alternadas estas notas se torna
maior chega a um ponto em que natildeo percebemos uma melodia a ordem das trecircs notas se
torna irrelevante e comeccedilamos a ouvir a reiteraccedilatildeo de cada uma das notas como um fluxo
partitioned and the correct subset allocated to individual sounds so that an accurate description may be formed for each This process of grouping and segregating sensory data into separate mental representations called auditory streams has been named lsquoauditory scene analysisrsquo (ASA) by Bregman (1990) The formation of auditory streams is the result of processes of sequential and simultaneous grouping Sequential grouping connects sense data over time whereas simultaneous grouping selects from the data arriving at the same time those components that are probably parts of the same sound These two processes are not independent but can be discussed separately for conveniencerdquo (BREGMAN 1990 p 3)
47
separado (SHEPARD 1999 p 118) Este fenocircmeno explica a possibilidade de uma polifonia
virtual em que as notas intercaladas se agrupam em diferentes vozes devido agrave diferenccedila de
registro e ao tempo em que satildeo tocadas (ver Figura 11)
FIGURA 11 - POLIFONIA VIRTUAL NOS COMPASSOS 89 A 94 DA PARTITA NO 2 EM RE MENOR BWV 1004 DE J S BACH
P
FONTE Transcrito de BACH
48
Agraves vezes basta a separaccedilatildeo de registro (ou outra diferenciaccedilatildeo do material) para se
perceber ldquoduas vozesrdquo natildeo necessitando que seja raacutepida a alternacircncia entre elas A Figura 12
demonstra este caso em outro trecho da mesma partita de Bach Neste caso haacute tambeacutem
diferenciaccedilatildeo riacutetmica (padrotildees riacutetmicos diferentes) que corroboram com a segregaccedilatildeo de dois
fluxos
FIGURA 12 - POLIFONIA VIRTUAL NOS COMPASSOS 121 A 123 DA PARTITA NO 2 EM REacute MENOR BWV1004 DE J S BACH
m
FONTE Transcrito de BACH
Portanto o intervalo entre as notas de uma melodia a velocidade com que elas satildeo
tocadas bem como o timbre instrumental com que satildeo orquestradas satildeo importantes para a
caracterizaccedilatildeo e percepccedilatildeo do fluxo auditivo que na teoria musical chamamos voz Eacute possiacutevel
que mantendo-se as alturas numa relaccedilatildeo tempo-intervalo adequada para a percepccedilatildeo de uma
melodia e modificando o timbre ainda seja possiacutevel identificaacute-la como um uacutenico fluxo Isto
acontece na Klangfarbenmelodie (melodia de timbres) em que um uacutenico fluxo eacute distribuiacutedo
entre os instrumentos46
Os casos de polifonia virtual e de melodia de timbres satildeo exemplos de alternativas
ainda num contexto musical convencional agrave tendecircncia de um uacutenico instrumento constituir
uma uacutenica voz Na polifonia virtual um instrumento constitui vaacuterias vozes enquanto que na
melodia de timbres vaacuterios instrumentos constituem uma uacutenica voz
313 Orquestraccedilatildeo timbre (tone-color) e textura
Eacute importante salientar para a distinccedilatildeo de alguns conceitos que se relacionam e
convergem neste tema orquestraccedilatildeo timbre (tone-color) e textura
De acordo com Brian Simms (1996 p101) ldquoOrquestraccedilatildeo eacute a arte de realizar uma
ideia musical para um grupo esp eciacutefico de instrumentosrdquo Simms (1996 p 101-109) apresenta
uma seacuterie de transformaccedilotildees pelas quais passou a orquestraccedilatildeo nos uacuteltimos seacuteculos
No seacuteculo XIX o tipo de orquestraccedilatildeo dos compositores alematildees como Richard
Wagner privilegiava o uso de vaacuterios dos corais da orquestra sobre uma mesma voz Com estes
46 Este caso seraacute abordado em 313
vaacuterios dobramentos criava-se uma grande uniformidade tiacutembrica
Ao final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX ressalta-se por um lado Claude Debussy que
evitava dobramentos em passagens mais suaves mostrando preferecircncia pelo som puro do
instrumento solo Por outro lado Gustav Mahler que entre outras de suas inovaccedilotildees em
orquestraccedilatildeo usava subdivisotildees heterogecircneas da orquestra com poucos dobramentos para
evidenciar o conteuacutedo contrapontiacutestico
Nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX alguns compositores demonstraram uma
preferecircncia por pequenos grupos de cacircmara - Pierrot Lunaire (1912) de Arnold Schoenberg eacute
uma peccedila emblemaacutetica bem como L rsquohistoire du soldat (1918) de Igor Stravinsky Aleacutem disso
haacute a incorporaccedilatildeo da percussatildeo como elemento estrutural da composiccedilatildeo cuja peccedila simboacutelica
eacute Ionisation (1931) de Edgard Varegravese Deve-se acrescentar ainda a experimentaccedilatildeo com novos
sons por parte de americanos como Charles Ives Henry Cowell entre outros e a exploraccedilatildeo
de efeitos espaciais ao se dividir a orquestra em grupos que tocavam em lugares distintos do
espaccedilo de concerto
A abordagem de Simms daacute ecircnfase ao seacuteculo XX e trata da muacutesica eletroacuacutestica de
maneira independente destes conceitos satildeo capiacutetulos agrave parte Entretanto podemos levantar a
questatildeo de como os recursos eletroacuacutesticos se incorporaram a esta orquestraccedilatildeo na segunda
metade do seacuteculo XX e iniacutecio do XXI Nossa investigaccedilatildeo relaciona-se fortemente com esta
questatildeo entretanto por um vieacutes mais teoacuterico do que histoacuterico
Timbre enquanto tone-color eacute definido por Simms (1996 p 101) como ldquoa qualidade
distintiva de um som musicalrdquo Neste sentido a ideia de Klangfarbenmelodie se apresenta
como um dos principais desenvolvimentos Uma primeira acepccedilatildeo diz respeito agrave ideia original
de Schoenberg - a terceira peccedila (Farben) de suas Cinco Peccedilas para Orquestra op 16 (1909) eacute
um exemplo De acordo com o verbete do Grove Music Online (RUSHTON 2001) o timbre
(ou tone-color) pocircde ser concebido enquanto um paracircmetro estrutural o que possibilitou que
transformaccedilotildees tiacutembricas em uma uacutenica nota podiam ser percebidas como uma melodia Na
obra de Anton Webern haacute uma acepccedilatildeo distinta da melodia de timbres Uma mesma voz eacute
segmentada e cada segmento eacute tocado por um instrumento distinto Um exemplo
representativo eacute a sua orquestraccedilatildeo da Musikalischen Opfer de Bach A Figura 13 apresenta
um excerto da orquestraccedilatildeo de Webern
49
50
FIGURA 13 - MELODIA DE TIMBRES NA ORQUESTRACcedilAtildeO DE WEBERN FUGA (RICERCATA) NO 2 AUS DEM ldquoMUSIKALISCHEN OPFERrdquo VON JOH SEB BACH
Trombone (muted) Horn (muted) Tpt (muted) Horn
mpp mdash p
Horn Tpt and Harp Flute
Tromb pp pp
v gt Violin (muted)
m mp p
FONTE Transcrito de Simms (1996 p 111)
O uso estrutural do timbre (tone-color) eacute bastante desenvolvido no seacuteculo XX Varegravese
prenuncia numa aula em 1936 ldquoO papel da cor ou timbre seraacute completamente modificado de
ser incidental anedoacutetico sensual ou pitoresco ele se tornaraacute um agente de delineamento
como as diferentes cores num mapa separando diferentes aacutereas e uma parte integral da
formardquo (VARESE apud SIMMS 1996 p 112) Varegravese defendia uma liberaccedilatildeo do som que
seria possiacutevel por meio dos novos instrumentos (ver citaccedilatildeo na p 17) Em Poegraveme
eacutelectronique (1958) estas ideias tecircm um aacutepice que evidencia o desenvolvimento do uso do
timbre na muacutesica Aleacutem disso ressalta-se a fascinaccedilatildeo com o som por parte de compositores
como Morton Feldman que buscava uma muacutesica em que os sons existissem por si mesmos
independentemente das estruturas de construccedilatildeo da muacutesica O som seria natildeo apenas uma
memoacuteria mas existiriam por si mesmos Deve-se salientar a discordacircncia neste quesito Elliott
Carter por exemplo afirma
Tatildeo longe quanto a cor possa ir eu continuo acreditando que o real interesse da muacutesica estaacute na sua organizaccedilatildeo Eu natildeo acredito na novidade do som por seu proacuteprio interesse eacute sempre a coisa mais faacutecil a se alcanccedilar e perde seu interesse muito rapidamente (CARTER apud SIMMS 1996 p114 traduccedilatildeo nossa47)
47 Original ldquoAs far as color goes I still believe that the real interest of music lies in its organization I donrsquot believe in novelty of sound for its own sake that is always the easiest thing to bring off and loses its interest very quicklyrdquo (CARTER apud SIMMS 1996 p 114)
51
Abordar a discussatildeo em torno da cor e do timbre neste trabalho seria por demais
expansiacutevel Nos limitaremos a expocircr a explicaccedilatildeo de Rob Weale que demonstra a
problemaacutetica em torno da concepccedilatildeo de timbre
Timbre tem sido usado geralmente sem grande consistecircncia de significado para se referir vagamente agrave lsquocorrsquo de um som Tem sido frequentemente e incorretamente tratado como um lsquoparacircmetrorsquo discreto do som junto a outras facetas como a frequecircncia e altura A praacutetica de criaccedilatildeo e de pesquisa na muacutesica eletroacuacutestica tem revelado a natureza insatisfatoacuteria desta imprecisatildeo e aberto a noccedilatildeo para uma situaccedilatildeo muito mais complexa e variaacutevel onde o timbre existe em relaccedilotildees fraacutegeis e contiacutenuas com frequecircncia conteuacutedo espectral identidade socircnica e reconhecimento da fonte Isto leva para uma situaccedilatildeo onde em vaacuterios exemplos musicais eacute difiacutecil separar timbre do discurso musical geral (WEALE 2005 traduccedilatildeo nossa48)
Com esta complexidade em mente natildeo haveria tanta incongruecircncia como daacute a
entender Carter na citaccedilatildeo acima entre timbre e a organizaccedilatildeo da muacutesica
Textura segundo Simms (1996 p 102) ldquose refere ao agregado sonoro de linhas
acordes ou outros eventos audiacuteveis enquanto interagem uns com os outrosrdquo O autor descreve
o desenvolvimento da textura polifocircnica no seacuteculo XX Citaremos abaixo alguns fatos
importantes deste contexto
Para algumas texturas polifocircnicas muito complicadas a fim de deixar clara a
importacircncia de cada voz da textura Schoenberg e Berg utilizavam a notaccedilatildeo H para
Hauptstimme - voz principal e N para Nebenstimme - para voz secundaacuteria
O uso de texturas convencionais permaneceu mesmo com o uso de estruturas
harmocircnicas natildeo tradicionais Um exemplo satildeo as fugas de Paul Hindemith na obra Ludus
tonalis (1936)
A textura foi abordada de maneiras natildeo convencionais Varegravese e Cowell por exemplo
desenvolveram texturas compostas por massas sonoras diferentes daquelas compostas por
intervalos linhas e acordes
A obra de Webern tambeacutem se distancia das convencionais texturas homofocircnica e
polifocircnica Ela disfarccedila a textura polifocircnica atraveacutes de uma disposiccedilatildeo diferente dos
componentes Simms (1996 p 116) descreve a textura do iniacutecio da Op 21 de Webern
48 Original ldquoTimbre has generally been used without any great consistency of meaning to refer very loosely to the rsquocolourrsquo of a sound It has often and incorrectly been treated as a discrete rsquoparameterrsquo of sound along with other facets such as frequency and pitch Creative practice and research in electroacoustic music have revealed the unsatisfactory nature of this imprecision and opened up the notion to a much more complex and protean situation where timbre exists in fragile relationships and continua with frequency spectral content sonic identity and source recognition This leads to a situation where in many musical examples it is hard to separate timbre from the overall musical discourserdquo (WEALE 2005)
52
A textura consiste em vaacuterias linhas cada qual eacute feita descontiacutenua pela colocaccedilatildeo de pausas grandes saltos disjunccedilotildees no registro e raacutepidas mudanccedilas de cor Eacute de fato difiacutecil perceber qualquer linha no sentido tradicional a atenccedilatildeo do ouvinte eacute primeiramente atraiacuteda por uma seacuterie de sons ou intervalos individuais (traduccedilatildeo nossa49)
Este tipo de textura eacute chamada pontilhista por sua relaccedilatildeo com a teacutecnica de pintura em
que um conjunto de pontos com cores puras datildeo origem agraves formas Agrave distacircncia o mosaico de
pontos se mistura e proporciona perceber formas reconheciacuteveis Ligeti (apud SIMMS 1996
p 117) afirma que a esta fragmentaccedilatildeo da linha em Webern resulta numa textura global
Nesta natildeo haacute de fato um fluir musical trata-se de momentos individuais natildeo haacute de fato um
teacutermino a muacutesica daacute a impressatildeo de ldquouma parada no fluxo do tempordquo O ouvinte natildeo se ateacutem
a continuidades lineares mas a diferentes momentos isolados Este tipo de textura global foi
utilizada por muitos compositores apoacutes Webern como Ligeti Stockhausen e Boulez
Entretanto tamanha variedade na textura ironicamente poderia gerar a percepccedilatildeo de uma
continuidade da mesma coisa Assim estrateacutegias de controle destas texturas globais foram
desenvolvidas de maneira especial por Ligeti e Krzysztof Penderecki
As peccedilas Apparitions (1958-9) e Atmosphegraveres (1961) de Ligeti satildeo exemplos de
composiccedilotildees essencialmente texturais As texturas chegam a cinquenta vozes e satildeo
principalmente formadas por clusters cromaacuteticos ou figuras cromaacuteticas confusas formando
massas que interagem Simms (1996 p 119) comenta ldquoestas massas entatildeo interagem por
colisatildeo penetraccedilatildeo dissipaccedilatildeo mescla ou outros gestos vividamente dramaacuteticosrdquo50 (grifo
nosso) Esta concepccedilatildeo de textura estaacute mais proacutexima do repertoacuterio eletroacuacutestico como haacute de
se demonstrar
314 Microtextura e macrotextura
Eacute importante notar o caraacuteter micro a que foi levada esta textura percebida globalmente
A teacutecnica de Ligeti para a formaccedilatildeo destas massas eacute conhecida como micro-polifonia Isto eacute a
textura cujas mudanccedilas conforme Berry (1987 p 189) ldquoestatildeo frequentemente entre o que eacute
49 Original ldquoThe texture consists of several lines each of which is made discontinuous by the placement of rests large leaps disjunctions in register and rapid changes of color It is in fact difficult to perceive any lines in the traditional sense and the listenerrsquos attention is at first drawn to a mottled array of individual sounds or intervalsrdquo (SIMMS 1996 p 116)
50 Original ldquo[] and these masses then interact by collision penetration dissipation merging or other vividly dramatic gesturesrdquo (SIMMS 1996 p 119)
53
mais prontamente perceptiacutevel e apreciaacutevel na experiecircncia da muacutesicardquo51 neste caso eacute um
emaranhado de ldquomicro-vozesrdquo indistinguiacuteveis que formam uma massa Por outro lado a
proacutepria massa eacute ouvida de maneira semelhante agrave voz como uma camada como um fluxo
coerente Haacute assim em relaccedilatildeo agrave descriccedilatildeo da textura um deslocamento de percepccedilatildeo do
macro para o micro Parece existir uma demanda de escuta uma necessidade embora haja
uma liberdade subjetiva neste aspecto de adaptarmos nossa escuta aos eventos sonoros que se
apresentam a ela De todo modo o termo textura pode se referir a estas complexidades e
simultaneidades do niacutevel micro eou do niacutevel macro Um exerciacutecio imaginativo simploacuterio
pode elucidar estes dois niacuteveis Imaginemos uma massa orquestral tal qual as de Ligeti e a
ela sobreposta uma voz uma melodia cantada por uma soprano por exemplo Haacute uma
macrotextura que se refere a configuraccedilatildeo massa + voz (uma espeacutecie de melodia
acompanhada) e haacute uma microtextura que constitui a proacutepria massa A Figura 14 oferece uma
ilustraccedilatildeo deste exemplo
FIGURA 14 - EXEMPLO DE MACRO E MICROTEXTURA
Soprano (voz)
Orquestra (massa)
Y Macrotextura
FONTE o autor (2019)
Esta distinccedilatildeo eacute um esforccedilo teoacuterico e uma necessidade de nosso trabalho que decorre
da ausecircncia de tal distinccedilatildeo na bibliografia consultada Ela tem o objetivo de indicar neste
trabalho estas diferentes concepccedilotildees micro e macrotextura
32 AS SONORIDADES
Mesmo na muacutesica instrumental a noccedilatildeo de voz pode natildeo ser uma denominaccedilatildeo ideal
dependendo dos materiais e processos de composiccedilatildeo Este eacute o caso de muitas composiccedilotildees
51 Traduccedilatildeo nossa Original ldquoChanges in texture-surely quantitative changes but those involving textural qualities as well-are often among the most readily perceptible and appreciable in the experience of musicrdquo (BERRY 1987 p 189)
do seacuteculo XX como as supramencionadas Em alguns destes casos a ideia de sonoridade
conforme o modelo de Guigue (2011) pode ser mais apropriada Didier Guigue desenvolve
uma teoria analiacutetica da sonoridade especialmente voltada para a anaacutelise de peccedilas para piano
mas facilmente expansiacutevel para outras muacutesicas Uma sonoridade carrega o sentido de uma
unidade sonora composta formada por componentes de nuacutemero variaacutevel que satildeo combinados
e que interagem entre si Ela eacute um momento que pode ocupar qualquer medida temporal
desde um pequeno segmento ateacute uma peccedila inteira Ela eacute uma unidade da estruturaccedilatildeo musical
com potencial morfoloacutegico ldquoUma unidade sonora eacute consequentemente a siacutentese temporaacuteria
de um certo nuacutemero de componentes que agem e interagem em complementaridaderdquo
(GUIGUE 2011 p 50)
O modelo de Guigue apresenta dois niacuteveis O primeiro (niacutevel primaacuterio ou niacutevel 1) eacute
constituiacutedo por
bull coleccedilatildeo de cromas o autor usa o termo como sinocircnimo de classe de nota
bull particcedilatildeo se refere a distribuiccedilatildeo dos cromas na extensatildeo do(s) instrumento(s) em
pontos especiacuteficos e exclusivos em alturas absolutas
bull intensidade comumente chamada de dinacircmica
bull efeitos exoacutegenos efeitos que influenciam a produccedilatildeo concreta do som por exemplo o
pedal do piano
No niacutevel secundaacuterio os componentes podem ser de ordem morfoloacutegica52 quando para
serem analisados eacute preciso fazer a abstraccedilatildeo do fator tempo (conteuacutedo acrocircnico da unidade
sonora) ou de ordem cineacutetica quando satildeo avaliados levando em conta a distribuiccedilatildeo dos fatos
sonoros no tempo (componentes diacrocircnicos) Veja na Figura 15 a ilustraccedilatildeo do domiacutenio
morfoloacutegico e cineacutetico bem como os aspectos do primeiro niacutevel
Cada componente pode ser analisado em relaccedilatildeo a sua complexidade relativa O iacutendice
de complexidade relativa se refere a ldquoposiccedilatildeo que o componente analisado ocupa em dado
momento no vetor simplicidade-complexidaderdquo (GUIGUE 2011 p 52) sempre em relaccedilatildeo a
uma complexidade maacutexima paradigmaacutetica Por exemplo para expressar a complexidade
54
52 Note o leitor que aqui o termo morfoloacutegico estaacute posto em relaccedilatildeo ao dualismo entre os componentes que para serem analisados eacute necessaacuterio fazer a abstraccedilatildeo do fator tempo e aqueles que para serem analisados eacute imperativo considerar o fator tempo No caso de Smalley (1997) o termo morfologia do binocircmio espectro- morfologia se refere justamente ao oposto ou seja o desenvolvimento temporal das caracteriacutesticas espectrais (p 107) Neste trabalho entretanto quando nos referimos ao acircmbito sonoro-morfoloacutegico o estamos fazendo em oposiccedilatildeo aos aspectos de ordem praacutetica tecnoloacutegica da performance Assim os aspectos sonoro- morfoloacutegicos (da forma do som) concernem ao que percebemos que soa e sua organizaccedilatildeo
relativa do nuacutemero de fatos sonoros53 num determinado tempo o eixo ldquovaziordquo (simplicidade
maacutexima) - ldquosaturadordquo (complexidade maacutexima) deve ser utilizado
55
FIGURA 15 - NIVEIS DE ANALISE DA SONORIDADE
Niacutevel 2
Niacutevel 1
53 O autor designa fatos sonoros ldquoum nuacutemero qualquer de notas ou outros elementos organizando a sonoridade ocorrendo simultaneamente isto eacute na mesma posiccedilatildeo do tempordquo (GUIGUE 2011 p 51)
56
321 Oposiccedilatildeo Adjacente e Segmentaccedilatildeo
A articulaccedilatildeo entre as sonoridades se daacute por meio de rupturas de continuidade Se haacute
uma ruptura em um dos componentes que compotildeem a unidade supotildee-se que haacute uma ruptura
na continuidade sonora uma articulaccedilatildeo que daacute iniacutecio a uma nova unidade (p 68)54 Neste
caso falamos de um processo de segmentaccedilatildeo
Satildeo processos de transformaccedilatildeo dos componentes comuns agraves duas unidades
adjacentes que geram estas rupturas Assim eacute ainda necessaacuterio observar o nuacutemero de
componentes ativos no processo de transformaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao nuacutemero daqueles que se
mantecircm passivos neste processo (p69) O autor entra assim na discussatildeo sobre repeticcedilatildeo e
variaccedilatildeo e propotildee uma escala que vai da repeticcedilatildeo agrave oposiccedilatildeo diametral passando pela
declinaccedilatildeo e variaccedilatildeo Declinaccedilotildees satildeo as variaccedilotildees em que o modelo referencial permanece
reconheciacutevel entretanto com pequenas diferenccedilas Por outro lado na oposiccedilatildeo diametral soacute eacute
possiacutevel falar do referencial pela sua ausecircncia Esta escala chamada Vetor de qualificaccedilatildeo do
grau de oposiccedilatildeo estrutural entre unidades sonoras eacute ilustrada na Figura 16
FIGURA 16 - VETOR DE QUALIFICACcedilAtildeO DO GRAU DE OPOSICcedilAtildeO ESTRUTURAL ENTRE UNIDAshyDES SONORAS
A B
repeticcedilotildees declinaccedilotildees
variaccedilotildeesoposiccediloes
a = modelo b ^ variaccedilatildeo paradigmaacuteticaA = domiacutenio de a (repeticcedilotildees ^ exatas variadas ^ declinaccedilotildees) B = domiacutenio de b (variaccedilotildees ^ oposiccedilotildees ^ oposiccedilatildeo diametral)
FONTE Transcrito de Guigue (2011 p 72)
As diferentes sonoridades podem ser articuladas tambeacutem atraveacutes de uma sonoridade
ldquopivocircrdquo ou com sobreposiccedilatildeo parcial de uma sobre a outra Guigue chama esta uacuteltima de
telhagem quando uma sonoridade comeccedila antes que a anterior termine (ver Figura 17)
a v b
54 O autor classifica tambeacutem os tipos de rupturas e o papel e a hierarquia dos componentes no que afetam estas rupturas (GUIGUE 2011 p 64-69)
57
FIGURA 17 - TELHAGEM DE ACORDO COM GUIGUE (2011)U44
O autor desenvolve tambeacutem o conceito de sintagma ldquoum sintagma eacute um conjugado
sequencial binaacuterio de unidades sendo que uma eacute determinante e outra determinadardquo (p 75)
A unidade determinada se define na reaccedilatildeo agrave determinante Esta reaccedilatildeo pode ter o caraacuteter de
ldquorespostardquo ldquoconsequecircnciardquo ou ldquocomplementordquo A ressonacircncia de um gesto uma nota ao
piano por exemplo eacute uma reaccedilatildeo como ldquoconsequecircnciardquo determinada pelo gesto
(determinante)5 Nos compassos 271-272 da Synchronisms no 10 de Mario Davidovsky eacute
possiacutevel demarcar o arpejo do violatildeo como determinante do ataque consecutivo da parte
eletroacuacutestica (determinada) principalmente por se tratar das mesmas alturas (Figura 18)
FIGURA 18 - SINTAGMA EM SYNCHRONIMSNO 10 (1992) DE MARIO DAVIDOVSKY (COMPASSOS
FONTE Transcrito de Davidovsky (compositor) (1995)
55 As ideias de causalidade de Smalley (1997) e de gatilho (triggering) de Wishart (1996) que seratildeo abordadas adiante apresentam estreita relaccedilatildeo com esta ideia de sintagma
58
322 Polifonia de Sonoridades
As sonoridades podem se apresentar dispostas em muacuteltiplos fluxos simultacircneos que se
desenvolvem em paralelo Diferentemente do processo de segmentaccedilatildeo (relacionado agrave
oposiccedilatildeo adjacente que diz respeito agraves articulaccedilotildees sucessivas das sonoridades) na
simultaneidade de fluxos distintos haveraacute um processo de segregaccedilatildeo56 em vaacuterias camadas
Esta polifonia de Sonoridades como denomina Guigue pode apresentar relaccedilotildees de
interdependecircncia das unidades sonoras O autor aponta a relaccedilatildeo espectral como a principal
dimensatildeo das possibilidades de interdependecircncia entre as unidades pois propicia em
potencial a fusatildeo entre unidades57
FIGURA 19 - POLIFONIA DE SONORIDADES EM MOMENTO 23 DE ALMEIDA PRADO
Raacutepido 8va~
Lento
i m mp p p
molto lento
i P P ip p p Calmor3n 3 r 3~i
ampt i
FONTE Transcrito de Guigue (2011 p 77)
Ao fim do capiacutetulo sobre sua proposta metodoloacutegica (p 47-81) Guigue apresenta uma
recapitulaccedilatildeo em que resume o processo de segregaccedilatildeo como segue
3
A Segregaccedilatildeo parte da constataccedilatildeo de que eacute possiacutevel dissociar sistematicamente as unidades em dois ou mais fluxos simultacircneos os quais conservam entre si ao longo do tempo tanto elementos de identificaccedilatildeo quanto de diferenciaccedilatildeo um dos fatores
56 Tanto fluxos como segregaccedilatildeo satildeo os termos utilizados por Guigue O autor aponta a psicologia da audiccedilatildeo como aacuterea de origem destes termos e cita o trabalho de Albert Bregman Auditory Scene Analysis
57 Fusatildeo e contraste satildeo tambeacutem os termos usados para articular a proposta de morfologia da interaccedilatildeo de Flo Menezes (2006 p 377-400) que seraacute apresentada adiante
59
mais frequentes de segregaccedilatildeo eacute a separaccedilatildeo estaacutevel entre vaacuterias regiotildees de alturas ou entre diversas configuraccedilotildees instrumentais (p 79)
Esta uacuteltima frase nos leva a pensar novamente nos jaacute abordados paracircmetros envolvidos
na percepccedilatildeo de um fluxo auditivo registro e timbre instrumental (p 46) Entretanto como
afirma Guigue este eacute ldquoum dos fatores mais frequentes de segregaccedilatildeordquo Existem outros fatores
passiacuteveis de diferenciar os fluxos e tambeacutem de os unir Embora os estudos da percepccedilatildeo
possam nos ajudar a explicar estes fatores esta explicaccedilatildeo eacute posterior agrave praacutetica e agrave
experimentaccedilatildeo que satildeo assim defendemos insubstituiacuteveis como recursos para avaliar
estrateacutegias de composiccedilatildeo Portanto buscaremos evidenciar estes paracircmetros no repertoacuterio
(capiacutetulo 4) e na praacutetica da composiccedilatildeo (capiacutetulo 5)
33 ldquoVOZESrdquo NO CONTEXTO ELETROACUacuteSTICO
As categorias apresentadas - voz e sonoridade - embora natildeo sejam tatildeo recorrentes na
muacutesica eletroacuacutestica natildeo satildeo completamente estranhas a ela A citada peccedila de Davidovsky
demonstra a possibilidade de pensar a parte eletroacuacutestica em categorias tradicionais Nesta
peccedila percebemos uma concepccedilatildeo tradicional de voz a escrita da parte eletroacuacutestica eacute
semelhante agrave escrita para o violatildeo haacute imitaccedilotildees entre os meios como se o eletroacuacutestico se
tratasse de um instrumento semelhante ao violatildeo Em outros casos temos uma duplicaccedilatildeo do
proacuteprio instrumento na parte eletroacuacutestica como eacute o caso de Dialogue de l rsquoombre double
(1985) para clarineta e fita magneacutetica de Pierre Boulez Neste exemplo o clarinetista faz uma
parte ao vivo em diaacutelogo com partes que foram preacute-gravadas preferencialmente por ele
mesmo
Entretanto o universo eletroacuacutestico abre espaccedilo para um continuum de possibilidades
natildeo amoldadas aos padrotildees instrumentais e musicais convencionais Este contexto admite
sons que fazem referecircncia a outras experiecircncias que natildeo apenas agrave voz humana
Smalley (2008) desenvolve os conceitos de Campos e Redes Indicativas para se referir
agraves relaccedilotildees entre a escuta de materiais sonoros em contextos musicais e a experiecircncia humana
em geral Na introduccedilatildeo de seu texto ele aponta trecircs categorias de sons para tentar delimitar o
amplo territoacuterio sonoro em potencial (1) aqueles sons captados da natureza ou da cultura pelo
microfone (2) sons criados para serem usados na muacutesica como os de instrumento e de canto
e (3) sons que por serem sintetizados ou fortemente transformados parecem distantes dos sons
60
familiares da natureza da cultura dos instrumentos ou do canto Os sons de ambas as
categorias podem fazer referecircncia a experiecircncias externas ao contexto da muacutesica
O termo ldquoindicativordquo significa que a manifestaccedilatildeo musical de um campo se refere ao mundo natildeo-sonoro ou indica experiecircncias relacionadas a ele Identificam-se nove campos Trecircs satildeo arquetiacutepicos gesto (gesture) fala (utterance) e comportamento (behaviour) Estes campos satildeo universais originais A fala humana e as consequecircncias do gesto forneceram tradicionalmente os modelos sonoros fundamentais para a muacutesica O campo-comportamento se ocupa das relaccedilotildees sonoras no espaccedilo e no tempo as quais podem ser consideradas anaacutelogas a certos modos de relaccedilatildeo humana as relaccedilotildees observadas entre coisas ou objetos ou a relaccedilotildees homem-objeto Os seis campos restantes satildeo energia movimento objetosubstacircncia ambiente visatildeo e espaccedilo (SMALLEY 2008 p 7)
O campo-ambiente eacute um exemplo de referecircncia pouco usual na muacutesica instrumental
mas muito recorrente na muacutesica eletroacuacutestica (por exemplo Presque rien No1 - le lever du
jour au bord de la mer (1967-70) de Luc Ferrari) E mesmo que se trate dos campos que
ldquoforneceram tradicionalmente os modelos sonoros fundamentais para a muacutesicardquo haacute outras
possibilidades sonoras que natildeo se adequam agrave estrutura conceitual na qual concebemos a
muacutesica instrumental do chamado periacuteodo da praacutetica comum
331 O Continuum
Em seu livro On Sonic Art (1996) Trevor Wishart critica o paradigma de escrita
musical que fundamenta a construccedilatildeo da muacutesica ocidental Esta escrita segundo o autor daacute
demasiada ecircnfase aos paracircmetros altura e duraccedilatildeo e considera-os por valores discretos (Doacute
Doacute sustenido Reacute etc Semiacutenima colcheia tercina etc) Ou seja relega a um lugar perifeacuterico
o continuum existente nestes paracircmetros Entre Doacute e Doacute sustenido haacute uma infinidade de
valores bem como entre as duraccedilotildees de semiacutenima e colcheia por exemplo A ecircnfase sobre
estes dois paracircmetros considerados por valores discretos cria uma rede bidimensional de
altura duraccedilatildeo O paracircmetro timbre eacute visto da mesma forma eacute tambeacutem apresentado em
valores discretos (instrumento 1 instrumento 2 etc) e compreende uma terceira dimensatildeo
(ver Figura 20a)
61
A criacutetica agrave rede concerne ao fato de que se nos concentrarmos apenas nela corremos o
risco de cair na armadilha mental de observar o mundo dos sons como se fosse dividido em
trecircs dimensotildees com valores discretos Pelo contraacuterio objetos musicais complexos para usar o
termo de Wishart movem-se num continuum (ver Figura 20b)
332 O Gesto e textura
De acordo com o autor a articulaccedilatildeo deste continuum se daacute atraveacutes do gesto Para
Wishart o gesto eacute a articulaccedilatildeo do continuum Na base desta ideia estaacute a concepccedilatildeo de que o
gesto intelectual-fisioloacutegico eacute traduzido em morfologia sonora e que inversamente a
morfologia sonora evidencia o gesto intelectual-fisioloacutegico Esta traduccedilatildeo se daacute por meio da
voz laringe ou pela associaccedilatildeo do movimento corporal com um instrumento No caso da voz
temos uma traduccedilatildeo mais direta sensitiva que natildeo apresenta intermediaacuterios Jaacute no caso dos
instrumentos temos normalmente uma mecacircnica intermediaacuteria socialmente construiacuteda que
impotildee as caracteriacutesticas da rede no proacuteprio instrumento seja atraveacutes de furos trastes teclas
etc Desta maneira a voz humana eacute a fonte imediata do gesto intelectual-fisioloacutegico e eacute um
importante modelo para o desenvolvimento das ideias de Wishart Os instrumentos de sopro
carregam tambeacutem de maneira mais sensitiva a informaccedilatildeo gestual embora possuam esta
mecacircnica intermediaacuteria pois a sua produccedilatildeo sonora estaacute intimamente ligada com a respiraccedilatildeo
62
fisioloacutegica
De maneira semelhante para Smalley (1997 p 111) gesto eacute uma ldquo trajetoacuteria de
energia-movimento que estimula o corpo sonador criando vida espectro-morfoloacutegicardquo
(traduccedilatildeo nossa58) Assim o processo gestual musical eacute taacutetil visual e aural mas aleacutem disso
tem relaccedilatildeo com as tensotildees e relaxamentos musculares com esforccedilo e resistecircncia assumindo
assim um caraacuteter proprioceptivo Por isso ldquoa produccedilatildeo sonora estaacute ligada a uma experiecircncia
sensoacuterio-motora e psicoloacutegica mais abrangenterdquo (SMALLEY 1997 p 111 traduccedilatildeo nossa59)
Assim podemos recuperar a atividade humana por traacutes de determinado som atraveacutes do que
Smalley denomina processo de referenciaccedilatildeo espectro-morfoloacutegica (spectromorphological
referralprocess) Na muacutesica eletroacuacutestica as referecircncias gestuais podem ser mais ou menos
evidentes Este aspecto eacute analisado pela noccedilatildeo de substituinte (gesture surrogacy) Sons cuja
origem podemos imaginar facilmente satildeo substituinte de primeira ordem aqueles que natildeo
guardam nenhuma relaccedilatildeo com gestos fiacutesicos conhecidos ou com alguma fonte sonora
conhecida satildeo substituintes de terceira ordem
Smalley (1997) apresenta o gesto como um de seus princiacutepios ao lado da textura60 A
noccedilatildeo de gesto neste caso tem a ver com impulsionar o tempo para frente ldquoAssim a muacutesica
gestual eacute governada por um senso de movimento para diante de linearidade de narratividaderdquo
(SMALLEY 1997 p113) Entretanto
Se eles [os gestos] se tornam muito esticados no tempo ou se evoluem muitolentamente perdemos a fisicalidade humana Parecemos cruzar uma fronteiraembaccedilada entre eventos numa escala humana e eventos numa escala mundana ambiental Ao mesmo haacute uma mudanccedila de foco da escuta - quanto mais lento o iacutempeto gestual direto tanto mais o ouvido procura se concentrar em detalhes internos (ateacute onde eles existam) Uma muacutesica que eacute primariamente textural assim se concentra na atividade interna agraves custas do iacutempeto antecipado (SMALLEY 1997 p 113-114 traduccedilatildeo nossa61)
58 Original ldquoA gesture is therefore an energy-motion trajectory which excites the sounding body creating spectromorphological liferdquo (SMALLEY 1997 p 111)
59 Original ldquo[] sound-making is linked to more comprehensive sensorimotor and psychological experiencerdquo (SMALLEY 1997 p 111)
60 Gesto eacute um termo bastante discutido na muacutesica eletroacuacutestica Embora hajam controveacutersias e perspectivas diferentes optamos por estes dois referenciais (SMALLEY 1997 WISHART 1996) pois satildeo suficientemente abrangentes para nossa abordagem da interaccedilatildeo como uma relaccedilatildeo entre fluxos distintos - tema desta pesquisa
61 Original ldquoIf they [gestures] become too stretched out in time or if become too slowly evolving we lose the human physicality We seem to cross a blurred border between events on a human scale and events on a more worldly environmental scale At the same time there is a change of listening focus - the slower the direct gestural impetus the more the ear seeks to concentrate on inner details (insofar as they exist) A music which is primarily textural then concentrates on internal activity at the expense of forward impetusrdquo (SMALLEY 1997 p 113-114)
63
Smalley aponta para a frequente mistura destes dois princiacutepios (gesto e textura62) ou
por uma mudanccedila de foco da escuta ou porque ambos estatildeo presentes concorrentemente num
equiliacutebrio colaborativo Pode-se entatildeo classificar o contexto como conduzido-por-gesto
[gesture-carried] ou conduzido-por-textura [texture-carried] (SMALLEY 1997 p 114) Nas
palavras do autor
Gestos individuais podem ter interiores texturais em cujo caso o movimento gestual molda [frames] a textura - estamos conscientes tanto do gesto quanto da textura embora o contorno gestual domine um exemplo de gesture-framing Por outro lado estruturas conduzidas-por-textura [texture-carried] nem sempre satildeo ambientes com interiores democraacuteticos onde cada (micro-) evento eacute igual e os indiviacuteduos satildeo subsumidos numa atividade coletiva Gestos podem se destacar da textura em um relevo de primeiro plano Este eacute um exemplo de texture-setting - a textura fornece um plano baacutesico no interior do qual os gestos agem (SMALLEY 1997 p 114 traduccedilatildeo nossa63)
Gesto e textura satildeo assim conceitos importantes na abordagem de nosso tema As
vozes satildeo constituiacutedas de notas em sequecircncia agrupadas (por um processo de percepccedilatildeo) num
fluxo auditivo Da mesma forma os gestos e texturas constituem as camadas planos ou fluxos
num contexto musical mais amplo como o eletroacuacutestico
333 Camadas fluxos e planos
Smalley (2008 p 7) denomina ldquocampo-comportamentordquo o que ldquose ocupa das relaccedilotildees
sonoras no espaccedilo e no tempo as quais podem ser consideradas anaacutelogas a certos modos de
relaccedilatildeo humana agraves relaccedilotildees observadas entre coisas ou objetos ou agraves relaccedilotildees homem-
objetordquo Estas relaccedilotildees sonoras podem ser analisadas evento a evento nota a nota gesto a
gesto ou podemos utilizar uma categoria agrave maneira da voz ou da sonoridade que comporte
agrupe uma seacuterie de sons caracteriacutesticos No universo eletroacuacutestico tal categoria pode ser
denominada camada plano oue fluxo
No verbete do EletroAcoustic Research Site (EARS) Rob Weale traz a seguinte
62 Esta concepccedilatildeo de textura estaacute mais proacutexima ao que chamamos microtextura (314) Retomaremos esta discussatildeo em 341
63 Original ldquoIndividual gestures can have textured interiors in which case gestural motion frames the texture - we are conscious of both gesture and texture although the gestural contour dominates an example of gesture-framing On the other hand texture-carried structures are not always environments with democratic interiors where every (micro-) event is equal and individuals are subsumed in collective activity Gestures can stand out in foreground relief from the texture This is an example of texture-setting - texture provides a basic framework within which individual gestures actrdquo (SMALLEY 1997 p 114)
64
consideraccedilatildeo sobre camada
Um conceito crescentemente usado para descrever obras eletroacuacutesticas nas quais lsquocamadasrsquo de som (ou tipos de sons) satildeo desenvolvidos ao longo de uma obra normalmente numa densidade que o ouvinte pode seguir cada camada Essa forma de pensamento horizontal pode ser vista como o equivalente de contraponto por exemplo na muacutesica renascentista (WEALE 2005 traduccedilatildeo nossa64)
Esta definiccedilatildeo comporta em parte o tema desta pesquisa entretanto a metaacutefora da
camada parece ter um caraacuteter atemporal acrocircnico - como se referia Guigue aos aspectos que
para serem analisados eacute necessaacuterio se fazer a abstraccedilatildeo do fator tempo (ver 32) Podemos
descrever determinado contexto musical como estratificado em camadas mas eacute menos
frequente encontrarmos descriccedilotildees do desenvolvimento destas camadas no tempo como
surgem como se relacionam como interagem como se mesclam uma agrave outra ou surgem uma
da outra Para estas questotildees a metaacutefora de fluxo se mostra mais adequada Enquanto a
camada se refere a estruturas mais estaacuteveis ldquosoacutelidasrdquo o fluxo se aplica a estruturas de forma
variaacutevel ldquoliacutequidasrdquo A metaacutefora do plano apresenta a preocupaccedilatildeo com a profundidade com a
perspectiva eacute uma metaacutefora mais espacial que diferencia aquilo que estaacute mais a frente do que
estaacute mais ao fundo
Estas terminologias entretanto ainda que venham a ser manifestas em artigos livros e
falas dos compositores tecircm sua origem na praacutetica musical seja da escuta ou da composiccedilatildeo
Tratam-se de metaacuteforas para explicar esta praacutetica e que tecircm suas limitaccedilotildees Haacute liacutequidos que
natildeo se misturam haacute camadas geoloacutegicas que se misturam existem planos superiores e
inferiores e natildeo apenas proacuteximos ou distantes Aleacutem disso a mesma estrutura pode ser
observada por meio de diferentes metaacuteforas - os termos mencionados natildeo satildeo excludentes
Neste sentido nossa abordagem natildeo consiste em oferecer um meacutetodo uacutenico e efetivo mas
oferece um caminho de reflexatildeo em torno destas categorias
334 O caraacuteter misto da muacutesica mista
Ao tratar da composiccedilatildeo com o som (sound composition) Wishart observa que ldquonossa
principal metaacutefora para a composiccedilatildeo musical precisa mudar de uma de arquitetura para uma
64 Original A concept used increasingly in describing electroacoustic work in which rsquolayersrsquo of sound (or sound types) are developed throughout a work normally at a density whereby the listener can follow each layer This form of horizontal thinking might be seen to be the equivalent of counterpoint in for example Renaissance music (WEALE 2005)
65
de quiacutemicardquo (WISHART 1994 p 12 traduccedilatildeo nossa65) Isto porque graccedilas agraves possibilidades
de siacutentese gravaccedilatildeo e processamento o compositor pode trabalhar com as caracteriacutesticas
internas dos sons
O som se torna um meio fluido e inteiramente maleaacutevel natildeo uma coleccedilatildeo de dados cuidadosamente aprimorada Escultura e quiacutemica mais do que linguagem ou [] matemaacutetica se tornam metaacuteforas apropriadas para o que o compositor pode fazer embora princiacutepios matemaacuteticos e fiacutesicos continuaratildeo a entrar fortemente no design tanto de ferramentas quanto de estruturas musicais66 (WISHART 1994 p 12)
A muacutesica que une os universos instrumental e eletroacuacutestico pode dialogar por um
lado com as estruturas solidificadas pela tradiccedilatildeo (como as notas de uma voz) por outro
mergulha neste contexto fluido da composiccedilatildeo com o som Isto evidencia o caraacuteter misto da
composiccedilatildeo mista Com histoacuterias e teacutecnicas distintas os meios instrumental e eletroacuacutestico
se misturam neste gecircnero Isto eacute perceptiacutevel tanto para o ouvinte que observa estes meios
fundirem e contrastarem quanto para o compositor que lida com um misto de teacutecnicas
provenientes de cada contexto (instrumental e eletroacuacutestico) que se interferem no fazer
composicional67
Num texto de 1979 Jon Appleton escreve sobre estilos e teacutecnicas composicionais da
muacutesica eletrocircnica em que expressa uma previsatildeo de natildeo-separaccedilatildeo destes meios
ldquoAlguns estilos satildeo uacutenicos agrave muacutesica eletrocircnica por causa da natureza do meio outros satildeo comuns agrave muacutesica instrumental Os dois meios continuam a criar possibilidades um para o outro e vatildeo sem duacutevida no final se tornar indistinguiacuteveisrdquo (p 104 traduccedilatildeo nossa68)
Se ainda natildeo alcanccedilamos este estaacutegio descrito por Appleton ao menos jaacute passamos por
uma inegaacutevel transformaccedilatildeo da atividade composicional causada pela experiecircncia em
estuacutedio69 Gati (2015) aponta que a partir de 1950
65 Original ldquo[] our principal methafor for music composition must change from one of architecture to one of chemistryrdquo (WISHART 1994 p 12)
66 Original ldquoSound becomes a fluid and entirely malleable medium not a carefully honed collection of givens Sculpture and chemistry rather than language or ire mathematics become appropriate metaphors for what a composer might do although mathematical and physical principals will still enter strongly into the design of both musical tools and musical structuresrdquo (WISHART 1994 p 12)
67 E tendo muitas vezes seu instrumento amplificado e difundido nos mesmos alto-falantes que difundem os sons eletroacuacutesticos tambeacutem o inteacuterprete percebe esta mistura
68 Original ldquoSome styles are unique to electronic music because of the nature of the medium others are common to instrumental music as well The two media continue to create possibilities for each other and will no doubt ultimately become indistinguishablerdquo (APPPELTON 1979 p 104)
69 Um caso sempre lembrado eacute o de Gyorgy Ligeti Suas composiccedilotildees posteriores agrave breve experiecircncia no estuacutedio de Colocircnia em 1957-8 evidenciam a influecircncia que esta exerceu sobre sua produccedilatildeo (DIAS 2014 p
66
[] estabeleceu-se uma verdadeira via de matildeo dupla entre a escritura instrumental e a eletroacuacutestica pela qual ambas se realimentam se influenciam Notadamente por meio da experiecircncia da muacutesica acusmaacutetica semearam-se de maneira mais intensa abordagens composicionais que tomavam os eventos sonoros em si seus contornos sua distribuiccedilatildeo e caracterizaccedilatildeo espectral como ponto de partida para a estruturaccedilatildeo musical (GATI 2015 p 22)
Esta ldquovia de matildeo duplardquo se evidencia na elaboraccedilatildeo composicional da muacutesica mista
Estaacute presente neste processo uma interaccedilatildeo entre elaboraccedilatildeo instrumental e eletroacuacutestica
cujas diferenccedilas devem ser consideradas
Menezes (2006) aponta que na muacutesica instrumental compor significa recompor o som
a partir de seus paracircmetros segmentados historicamente na escrita musical (o que chama de
decomposiccedilatildeo do som) O material musical resultante desta elaboraccedilatildeo de recomposiccedilatildeo
apresenta um caraacuteter relacional Por outro lado o material eletroacuacutestico mais do que
relacional deve ser constituiacutedo pelo compositor diferentemente da muacutesica instrumental Isto
eacute o compositor assume a proacutepria constituiccedilatildeo dos espectros Assim o material se apresenta
em duas faces com uma funccedilatildeo relacional e outra constitutiva De um lado a atividade
composicional de relacionar sons de outro a de constituir seus proacuteprios espectros
O processo de recomposiccedilatildeo do som por meio de seus paracircmetros na composiccedilatildeo
instrumental acontece por meio da escritura70 Na composiccedilatildeo eletroacuacutestica a ldquoelaboraccedilatildeo
escritural de suas estruturasrdquo natildeo estaacute ausente mas sim latente ou subjacente Trata-se de uma
escritura latente que ldquo[] tende a resgatar no seio da atividade eletroacuacutestica e de seu
confronto com o som bruto e concreto a abstraccedilatildeo tiacutepica da muacutesica instrumental e sua
histoacuteriardquo (MENEZES 2006 p 362) Ao mesmo tempo se coloca a percepccedilatildeo do caraacuteter
constitutivo do material de sua textura sonora que atenta para os aspectos da vida interna do
som ldquoA percepccedilatildeo relacional dos elementos estruturais eacute acompanhada por aquela destinada a
uma efetiva introspecccedilatildeo constitutiva dos espectrosrdquo (MENEZES 2006 p 362)
Estas duas percepccedilotildees (relacional e constitutiva) se diferenciam tambeacutem em relaccedilatildeo a
percepccedilatildeo do tempo O paradigma convencional da muacutesica instrumental neste aspecto eacute que
o som constitui o tempo musical priorizando assim a percepccedilatildeo dos ataques e a organizaccedilatildeo
meacutetrica e riacutetmica Jaacute a muacutesica eletroacuacutestica iraacute pelo contraacuterio considerar o som enquanto
89-192)70 O termo escritura se contrapotildee agrave escrita e eacute preferiacutevel segundo Menezes por ser ldquomais conotativo de um
processo compositivo e portanto mais proacuteximo ao contexto relativo agrave elaboraccedilatildeo [] em vez de meramente escrita mais condizente com o aspecto superficial e caracteroloacutegico (graacutefico) da apresentaccedilatildeo de um textordquo (MENEZES 1999 p 61)
67
fenocircmeno de textura e o tempo enquanto constituinte do espectro sonoro ldquoO som que era do
tempo cede passo assim ao tempo de cada somrdquo (MENEZES 2006 p 364)
Se por um lado Menezes aproxima a elaboraccedilatildeo composicional eletroacuacutestica da
instrumental atraveacutes do conceito de escritura latente por outro poderiacuteamos pensar na
possibilidade de aproximar a escritura instrumental da elaboraccedilatildeo eletroacuacutestica em sua
funccedilatildeo constitutiva dos sons Embora o autor afirme que a escritura instrumental ldquonatildeo permite
uma radical intervenccedilatildeo composicional na constituiccedilatildeo mesma dos sonsrdquo (MENEZES 2006
p 364) eacute possiacutevel pensar em intervenccedilotildees menos radicais ou ao menos numa analogia desta
intervenccedilatildeo Uma intervenccedilatildeo pouco radical eacute por exemplo o bisbigliando variaccedilotildees
tiacutembricas sobre uma mesma nota Como analogia assim como o compositor eletroacuacutestico
trabalha os aspectos constitutivos dos espectros o compositor instrumental pode tratar os sons
de cada instrumento como constituinte de um todo orquestral por exemplo Evidentemente a
elaboraccedilatildeo instrumental sempre apresentaraacute graus menores em relaccedilatildeo agrave eletroacuacutestica de
controle do movimento interno dos sons devido agraves suas contingecircncias de execuccedilatildeo mas isso
natildeo significa a impossibilidade de se tratar o som instrumental de maneira semelhante ou
anaacuteloga agrave elaboraccedilatildeo eletroacuacutestica
34 FLUXOS SONOROS
Diante deste contexto sonoro-morfoloacutegico interessa-nos compreender como se
constituem e diferenciam os fluxos sonoros na muacutesica eletroacuacutestica mista
Fluxos eacute uma traduccedilatildeo possiacutevel para streams termo presente em Wishart (1996)
Smalley (1997) em Guigue (2011) e em Bregman (2004 2008) Este uacuteltimo autor trata de
fluxos auditivos (auditory streams) Nesta aplicaccedilatildeo do termo a ideia de fluxo se relaciona
com um contiacutenuo recebimento de informaccedilotildees sonoras que satildeo segregadas num processo da
percepccedilatildeo Assim quando no ambiente em que estamos conseguimos distinguir sons
produzidos em fontes diferentes estaacute em accedilatildeo esta capacidade vital Outras pesquisas em
cogniccedilatildeo avanccedilam para a percepccedilatildeo de fluxos distintos ainda que a fonte sonora seja a mesma
como acontece por exemplo na polifonia latente (ver 31) Por outro lado como tentamos
demonstrar eacute possiacutevel perceber um uacutenico fluxo ainda que vaacuterias fontes sonoras estejam
envolvidas (Klangfarbenmelodie e a proacutepria praacutetica de dobramento na orquestraccedilatildeo) Guigue
(2011) adota este termo para se referir natildeo simplesmente a uma polifonia de vozes como
68
Shepard (1999) mas a uma polifonia de sonoridades As sonoridades podem se desenvolver
em muacuteltiplos fluxos simultacircneos Smalley (1997) utiliza uma variaccedilatildeo do termo (streaming)
para expressar um tipo especiacutefico de movimento da textura71
Streaming se refere a uma combinaccedilatildeo de camadas em movimento e implica algum tipo de diferenciaccedilatildeo entre as camadas seja atraveacutes de lacunas no espaccedilo espectral ou porque cada camada natildeo possui o mesmo conteuacutedo espectro-morfoloacutegico (Smalley 1997 p 117 traduccedilatildeo nossa)72
Semelhantemente o termo eacute tambeacutem empregado pelo autor em relaccedilatildeo agrave ocupaccedilatildeo do
espaccedilo espectral Streams - interstices eacute um dos qualificadores deste espaccedilo e se refere a ldquoa
estratificaccedilatildeo em camadas [the layering] do espaccedilo espectral em fluxos estreitos ou largos
separados por espaccedilos intervenientesrdquo (SMALLEY 1997 p 121 traduccedilatildeo nossa)73
Da mesma forma no EletroAcoustic Research Site (EARS) Rob Weale explica
streams
O termo eacute usado como uma ferramenta conceituai para a criaccedilatildeo e anaacutelise perceptual de texturas que apresentam lsquobandasrsquo claramente distinguiacuteveis de atividade socircnica dentro de um espectro global de possiacuteveis frequecircncias audiacuteveis (2005 traduccedilatildeo nossa74)
A separaccedilatildeo de fluxos em bandas de frequecircncias distintas favorece o processo de
segregaccedilatildeo Poreacutem assim como no caso da separaccedilatildeo das vozes em diferentes registros de
alturas este eacute um dos recursos para se alcanccedilar tal resultado uma das possibilidades para se
distinguir os fluxos Como aponta Smalley na citaccedilatildeo acima agraves vezes esta diferenciaccedilatildeo se daacute
por causa da diferenccedila de conteuacutedo espectro-morfoloacutegico
341 Simultaneidades da micro eou da macrotextura
As definiccedilotildees de Smalley e de Weale estatildeo fortemente direcionadas a questotildees da
71 A concepccedilatildeo de textura de Smalley foi abordada em 33272 Original ldquoStreaming refers to a combination of moving layers and implies some way of differentiating
between the layers either through gaps in spectral space or because each layer does not have the same spectromolphological contentrdquo (Smalley 1997 p 117)
73 Original ldquoStreams - interstices - the layering of spectral space into narrow or broad streams separated by intervening spacesrdquo (SMALLEY 1997 p 121)
74 Original ldquoThis term is used as a conceptual tool for the creation and perceptual analysis of textures that comprise of clearly distinguishable rsquobandsrsquo of sonic activity within the overall spectrum of possible available audible frequenciesrdquo (WEALE 2005 Disponiacutevel em httpearspierrecoupriefrspipphparticle99)
69
textura como a concebe Smalley a qual chamamos microtextura Entretanto podemos
questionar esta exclusividade Guigue (2011) por exemplo utiliza fluxos para se referir agraves
partes de uma polifonia de sonoridades que se enquadraria como uma macrotextura Wishart
(1996) utiliza o termo para indicar partes simultacircneas de um contraponto no continuum Estas
partes satildeo anaacutelogas a um fluxo instrumental convencional (voz soprano por exemplo) que
formam uma textura que quanto agrave sua dimensatildeo (micro-macro) se assemelha agrave muacutesica
convencional (macro) Claramente os fluxos em Wishart natildeo se limitam a partes de uma
textura (micro) como em Smalley (1997) Mais do que isso o autor sustenta que
De fato o conceito de fluxo [stream] instrumental eacute talvez o que mais persiste nopensamento musical convencional [] Mesmo num claacutessico estuacutedio de controle devoltagem era possiacutevel conceber uma composiccedilatildeo musical na qual um uacutenico fluxo de som desenvolvido possivelmente divergia em fluxos separados que poderiam ser separadamente articulados poderiam convergir novamente e continuar assim ateacute o final da peccedila (p 25 traduccedilatildeo nossa75)
Nesta citaccedilatildeo vemos as duas dimensotildees intercambiarem O ldquoconceito de fluxo
instrumentalrdquo que ldquopersiste no pensamento musical convencionalrdquo eacute parte de uma textura
deste pensamento comumente o que chamamos macrotextura (ver 31) Jaacute a ideia de uma
ldquocomposiccedilatildeo musical na qual um uacutenico fluxo de som desenvolvido possivelmente divergia
em fluxos separadosrdquo soacute parece ser possiacutevel se consideradas as caracteriacutesticas internas do som
(dimensatildeo micro) Podemos assim dizer que os fluxos podem cruzar esta fronteira entre
micro e macro e de fato estabelecer um continuum entre eles Eacute precisamente por isso que
caracteriacutesticas internas dos sons (micro) de um fluxo (macro) podem assumir um
protagonismo se separando deste fluxo inicial e dando origem a um segundo (macro) Isto
acontece nas peccedilas Kontakte de Stockhausen e Desintegrations de Murail abordadas adiante
(respectivamente em 342 e 41)
342 Fusatildeo e contraste constituiccedilatildeo e segregaccedilatildeo de muacuteltiplos fluxos
O dicionaacuterio Merriam-Webster traz entre outras as seguintes definiccedilotildees de stream
que podem servir de metaacuteforas para pensarmos os fluxos sonoros
75 Original ldquoIn fact the concept of the instrumental stream is perhaps the most persistent in conventional musical thought [] Even in the classical voltage control studio it was possible to conceive of a musical composition in which a single sound stream evolved possibly diverged into separate streams which might be separately articulated might reconverge and continue thus to the end of the piecerdquo (SMALLEY 1997 p 25)
70
1 um corpo de aacutegua corrente (tal como um rio ou coacuterrego) que flui na terra tambeacutem qualquer corpo fluido (tal como aacutegua ou gaacutes) 2 a uma sucessatildeo estaacutevel (como de palavras ou eventos) - manter um fluxo de conversa sem fim [] c uma procissatildeo de contiacutenuo movimento - um fluxo de traacutefego (STREAM 2019 traduccedilatildeo nossa76)
Desta definiccedilatildeo podemos reter duas caracteriacutesticas interdependentes de um fluxo a)
estabilidade relativa do que o compotildee - ldquosucessatildeo estaacutevelrdquo b) movimento contiacutenuo relativo
Satildeo interdependentes pois eacute preciso que haja uma estabilidade em pelo menos alguns
paracircmetros de determinados eventos sonoros para que percebamos a continuidade do fluxo
constituiacutedo por eles Tais aspectos remontam ao processo de segmentaccedilatildeo abordado por
Guigue (2011) (ver 321) Estas caracteriacutesticas excluem muitas texturas como a mencionada
de Webern que natildeo presam por uma continuidade de fluxos Entretanto mesmo nesse caso eacute
possiacutevel compreendecirc-la como um uacutenico fluxo com um aspecto global (a partir da p 51
apresentamos brevemente este aspecto da textura weberniana)
Para que diferenciemos um fluxo de outro eacute preciso que haja uma concorrecircncia outra
sucessatildeo estaacutevel com alguma diferenccedila em relaccedilatildeo ao conteuacutedo sonoro Para a distinccedilatildeo de
vozes um recurso recorrente eacute a utilizaccedilatildeo de instrumentos diferentes para cada voz
(diferenciaccedilatildeo por timbre enquanto tone-color) para os fluxos este fator tambeacutem deve ser
considerado Na muacutesica mista haacute uma distinccedilatildeo ldquoinstrumentalrdquo entre os meios instrumental e
eletroacuacutestico que sobressalta inicialmente Em seu artigo sobre a interaccedilatildeo entre estes dois
meios Souza (2010) faz uma possiacutevel distinccedilatildeo quanto ao mecanismo de produccedilatildeo sonora
para logo questionaacute-la do ponto de vista da percepccedilatildeo
ldquoNote-se que como ponto de partida a diferenccedila entre sons instrumentais e eletrocircnicos eacute tomada inicialmente ao peacute da letra sons instrumentais satildeo aqueles gerados por vibraccedilotildees mecacircnicas de instrumentos acuacutesticos enquanto sons eletrocircnicos satildeo gerados por circuitos eletrocircnicos analoacutegicos ou digitais tornados audiacuteveis por alto-falantes e amplificadores A seguir essa separaccedilatildeo quase tautoloacutegica eacute questionada no lado da percepccedilatildeordquo (SOUZA 2010 p 149)
Esta caracteriacutestica de produccedilatildeo sonora poderia nos fazer pensar cada meio -
instrumental e eletroacuacutestico - como responsaacutevel por um fluxo na muacutesica mista Entretanto
Souza salienta que
76 Traduccedilatildeo do autor Original ldquo 1) a body of running water (such as a river or brook) flowing on the earth also any body of flowing fluid (such as water or gas) 2) a a steady succession (as of words or events) - kept up an endless stream of chatter [ ] c a continuous moving procession - a stream of traficrdquo (STREAM 2019)
71
Do ponto de vista do ouvinte-receptor natildeo haacute propriedades intriacutensecas dos sons que permitam fazer uma separaccedilatildeo absoluta e inquestionaacutevel entre sons instrumentais e sons gerados eletronicamente ainda que em nosso imaginaacuterio tal separaccedilatildeo pudesse parecer evidente (SOUZA 2010 p 149)
Eacute preciso argumentar que a distinccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo sonora apresentada
inicialmente por Souza aponta para uma propriedade intriacutenseca dos sons a ser considerada O
som dos instrumentos (natildeo amplificados ou gravados) em sua maioria se projeta em
muacuteltiplas direccedilotildees enquanto que a projeccedilatildeo cocircnica dos alto-falantes (considerados
individualmente) se daacute numa direccedilatildeo apenas Alguns instrumentos apresentam uma projeccedilatildeo
direcional semelhante agrave dos alto-falantes - o trombone por exemplo Por outro lado satildeo raras
as tentativas que buscam imitar a projeccedilatildeo instrumental multidirecional atraveacutes de alto-
falantes77
Ainda assim o argumento de Souza eacute relevante ele desloca (assim como discutido em
23) a atenccedilatildeo teoacuterica de sobre as questotildees teacutecnicas (produccedilatildeo sonora) para atentar para a
percepccedilatildeo destes sons Do ponto de vista da percepccedilatildeo os sons gerados eletronicamente
podem apresentar o ldquoexatordquo som preacute-gravado de um instrumento e instrumentos podem
produzir sons natildeo-convencionais que podem ser confundidos com sons eletrocircnicos Assim
ainda que a distinccedilatildeo do tipo de mecanismo de produccedilatildeo sonora possa ser utilizada em favor
da separaccedilatildeo de fluxos ela natildeo determina exclusivamente a existecircncia de dois fluxos assim
como a exemplo da melodia de timbres o uso de dois instrumentos diferentes natildeo o faz na
muacutesica instrumental Pelo contraacuterio a fusatildeo dos dois meios num mesmo fluxo eacute um recurso
muito utilizado Para isso a amplificaccedilatildeo do instrumento eacute comumente empregada fazendo
com que haja maior semelhanccedila de projeccedilatildeo sonora dos dois meios78
A proposta de morfologia da interaccedilatildeo de Menezes pode ser uacutetil para abordar a
distinccedilatildeo de fluxos sonoros na muacutesica mista De acordo com o autor a interaccedilatildeo entre
instrumento e eletroacuacutestica acontece entre dois polos fusatildeo e contraste A fusatildeo eacute a absoluta
similaridade caracterizada por ldquotransferecircncias localizadas de caracteriacutesticas espectrais de uma
esfera de atuaccedilatildeo agrave outrardquo (MENEZES 2006 p 385) o contraste eacute a absoluta distinccedilatildeo
77 O Wave Field Synthesis desenvolvido no IRCAM eacute uma alternativa de projeccedilatildeo que vai nesta direccedilatildeo Confira o siacutetio do projeto lthttprechercheircamfrequipessallesWFS_WEBSITEIndex_wfs_sitehtmgt Deve-se mencionar tambeacutem os alto-falantes hemisfeacutericos desenvolvidos na Universidade de Princeton confira no endereccedilo lthttpmusic2princetonedudeloreanhistoryhtmlgt
78 Aleacutem disso os dois meios natildeo instituem apenas dois fluxos porque eacute possiacutevel haver muacuteltiplos fluxos no meio instrumental como tambeacutem muacuteltiplos fluxos no meio eletroacuacutestico
72
caracterizada pela ausecircncia destas transferecircncias Entre estes dois polos existem estaacutegios
transicionais de relativa similaridade e dissimilaridade
Em relaccedilatildeo a proveniecircncia sonora quanto mais lsquoconfusorsquo estiver o ouvinte em face daquilo que ouve tanto mais ele sentiraacute efetivamente integradas as partes constitutivas da obra mista os lsquodois planosrsquo pressupostamente independentes e unidos apenas por contingecircncias aos quais os criacuteticos da muacutesica mista faziam referecircncia passam a ser percebidos como um uacutenico plano essencialmente diagonal agraves linhas estanques da emissatildeo instrumental ou da difusatildeo puramente eletroacuacutestica a emissatildeo instrumental passa entatildeo a ser efetivamente potencializada no espaccedilo acuacutestico pelos recursos eletrocircnicos Ainda que de forma alguma hegemocircnico o estado de duacutevida traduz-se como um momento supremo da interaccedilatildeo (MENEZES 2006 p 385)
Assim na fusatildeo instrumento e sons eletroacuacutesticos compartilham o mesmo fluxo
estatildeo num ldquouacutenico planordquo ldquodiagonalrdquo aos dois meios enquanto que no contraste apresentam
fluxos distintos Este paradigma pode ser facilmente transposto para quaisquer meios se
considerarmos que fusatildeo e contraste se referem a (dis)semelhanccedila espectral de dois fluxos
distintos independentemente se instrumentais ou eletroacuacutesticos
Apesar da inegaacutevel importacircncia das caracteriacutesticas espectrais natildeo satildeo apenas elas que
estatildeo em jogo na fusatildeo e no contraste Menezes considera tambeacutem que a fusatildeo pode ser
alcanccedilada por outros meios Ao referir-se agrave estrateacutegia de utilizar apenas o som do instrumento
como base para a confecccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos ele aponta que
[] tal estrateacutegia estaacute longe de ser excludente as transferecircncias estruturais podem apoiar-se em aspectos outros que natildeo a coloraccedilatildeo (timbre) dos espectros tais como relaccedilotildees de identidade em frequecircncia em percurso espacial em comportamento dos perfis meloacutedicos e de massa em constituiccedilatildeo gestual dos sons (que podem identificar-se ateacute mesmo pela forma de tratamento aos quais se submetem) Ou seja ainda que seja mais condizente com a fusatildeo partir dos proacuteprios sons instrumentais para a elaboraccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos o uso de outras fontes sonoras natildeo implica necessariamente inviabilidade da fusatildeo e pode em contrapartida viabilizar a transiccedilatildeo que vai do fundido ao contrastado Seraacute pois pelo vieacutes de tal distinccedilatildeo relativa - apenas possiacutevel no caso de se utilizarem os mesmos sons instrumentais na elaboraccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos apoacutes inuacutemeros procedimentos de transformaccedilatildeo do material de partida - que a edificaccedilatildeo de toda uma gama de distanciamento tornar-se-aacute possiacutevel ateacute que se atinja o contraste mais evidente com ausecircncia de qualquer transferecircncia espectral (2006 p386)
Petra Bachrataacute (2010 p 89) oferece a seguinte perspectiva
Mas na nossa opiniatildeo fusatildeo e contraste em uma obra eletroacuacutestica mista podem ser percebidos tambeacutem no passar do tempo e podem ser demonstrados em exemplos de relaccedilotildees gestuais Por exemplo dois gestos podem ser similares ou diferentes
73
mesmo que se apresentem separados no tempo Nestes contextos noacutes podemos criar modelos de interaccedilatildeo entre gestos de acordo com sua organizaccedilatildeo no tempo - contrapontos mais ou menos complexos ou em relaccedilatildeo a outras caracteriacutesticas aleacutem da espectral tais como ritmo intensidade ou caracteriacutesticas mais semacircnticas como direccedilatildeo e energia (traduccedilatildeo nossa79)
O trabalho de Bachrataacute (2010) se fundamenta na concepccedilatildeo de gesto e aborda as
relaccedilotildees entre gestos instrumentais e eletroacuacutesticos A autora aborda o gesto por diferentes
perspectivas80 e propotildee uma categorizaccedilatildeo de acordo com os paracircmetros que cada uma
oferece Em nosso caso a ideia de fluxo tem maior importacircncia devido ao foco voltado para
questotildees mais amplas do que pontuais Um fluxo pode ser constituiacutedo de gestos De acordo
com Wishart ldquoo fluxo em evoluccedilatildeo [evolving stream] pode ser articulado gestualmenterdquo81
(WISHART 1996 p 117) E as caracteriacutesticas destes gestos determinaratildeo neste caso as
caracteriacutesticas que distinguiratildeo os fluxos sejam espectrais ou outras
Assim entendemos ser necessaacuterio estender a morfologia da interaccedilatildeo para incluir
outros aspectos aleacutem dos espectrais A fim de natildeo entrar nas particularidades de
parametrizaccedilatildeo do gesto seria suficiente acrescentar um termo e denominarmos de
transferecircncias espectro-morfoloacutegicas incluindo assim os aspectos do desenvolvimento das
caracteriacutesticas espectrais no tempo Afinal como afirma Smalley (1997) ldquoo espectro- natildeo
existe sem a -morfologia e vice-versardquo82 (p 107) Isto eacute o conteuacutedo espectral necessita se
constituir temporalmente assim como qualquer constituiccedilatildeo temporal necessita de um
conteuacutedo espectral Desta forma incluiacutemos como importantes para esta interaccedilatildeo outras
caracteriacutesticas espectro-morfoloacutegicas (ver Quadro 1)
79 Original ldquoBut in our opinion fusion and contrast in a mixed electroacoustic work may be perceived also as time passes and may be demonstrated on the examples of gesture relationships For example two gestures may be similar or different even separated in time In these contexts we may create models of interaction between gestures according to their organization over time - subtle or more complex counterpoints or in relation to other than spectral characteristics such as rhythm loudness or more semantic characteristics such as direction or energy Two gestures may closely relate or blend (lsquofusionrsquo) because of their similar rhythmical structure while having very different spectral characteristics increasing energy of one gesture may potentiate the onset of another one two gestures may relate with each other also through the direction in space such as convergent and divergent ways of interaction etcrdquo (BACHRATAacute 2010 p 89)
80 Entre outras perspectivas de Dennis Smalley - gesto como uma trajetoacuteria-energia-movimento de Trevor Wishart - gesto como articulaccedilatildeo do continuum do Laboratoire de Musique et Informatique in Marseille (MIM) - gesto como unidade temporal semioacutetica de Brian Ferneyhough - gesto e figura (BACHRATAacute 2010 p 123-141)
81 ldquoWhat we are now suggesting is that the evolving stream may be gesturally articulated and we may coordinate (or not) the gestures between the various parts in such a way as to create a viable contrapuntal structurerdquo (WISHART 1996 p 117)
82 ldquoThe spectro- cannot exist without the -morphology and vice versardquo (SMALLEY 1997 p 107)
QUADRO 1 - QUADRO DA MORFOLOGIA DA INTERACcedilAtildeO
74
fusatildeo
fusatildeo por virtualizaccedilatildeo (simulaccedilatildeo eletroacuacutestica do
instrumental)
similaridade absoluta
transferecircncias espectro-
fusatildeo por similaridademorfoloacutegicas localizadas
textural estado de duacutevida (confusatildeo)
transferecircncia natildeo-reflexiva
interferecircncia convergente transferecircncias espectro-
estaacutegios transicionais entre transferecircncia reflexiva morfoloacutegicas dinacircmicas
fusatildeo e contraste contaminaccedilatildeo direcional distinccedilatildeo e similaridadeinterferecircncia potencializadora relativas
interferecircncia natildeo-convergente
contraste por distinccedilatildeo textural
distinccedilatildeo absoluta
contraste contraste por silecircncio
estrutural
ausecircncia de transferecircncia espectro-morfoloacutegica
FONTE Adaptado de Menezes (2006 p 398) Acrescentamos o termo -morfoloacutegicas agrave ideia de transferecircnciasespectrais
Os estaacutegios transicionais estabelecem pontos em que os meios instrumental e
eletroacuacutestico podem estar mais proacuteximos da fusatildeo ou mais proacuteximos do contraste Menezes
expotildee estas possibilidades intermediaacuterias com base em exemplos de sua peccedila ATLAS
FOLISPELIS (1996-7) Natildeo repetiremos a explicaccedilatildeo de Menezes (2006 p 387-390) mas
faremos quando ausente em sua descriccedilatildeo uma generalizaccedilatildeo dos estaacutegios a partir de nossa
perspectiva
Transferecircncia natildeo-reflexiva ldquoa transmutaccedilatildeo de uma esfera de emissatildeo sonora agrave outra
eacute quase imperceptiacutevel Quando o ouvinte se daacute conta jaacute natildeo se trata mais de um som do
instrumento mas sim de sons eletroacuacutesticos que os envolvem no espaccedilo quadrifocircnicordquo
(Menezes 2006 p 390) Podemos inferir que tal transferecircncia seja possiacutevel no sentido
contraacuterio eletroacuacutestico-instrumental
Interferecircncia convergente Ainda que os meios (instrumental e eletroacuacutestico) possam
ser distinguidos um deles apresenta certa interferecircncia em relaccedilatildeo ao outro que pode ser
baseada em relaccedilotildees frequenciais por exemplo
Transferecircncia reflexiva ldquouma coisa nasce da outra eacute interagida pela estrutura que jaacute
estava em curso e pouco a pouco a integra e anula em suas proacuteprias inflexotildeesrdquo (MENEZES
2006 p 390) Num primeiro momento um dos meios ldquoespelhardquo o outro em seguida a
ldquoimagemrdquo espelhada ganha maiores proporccedilotildees ateacute que prepondera sobre a imagem inicial
Contaminaccedilatildeo direcional um dos meios muda em direccedilatildeo a algo que parece uma
transformaccedilatildeo dos sons do outro resultando numa maior ou menor fusatildeo O que eacute salientado
neste estaacutegio eacute o processo de transformaccedilatildeo de um dos meios passando do contraste para a
fusatildeo com o outro
Interferecircncia potencializadora um dos meios interfere e potencializa o outro Aquele
que interfere estaacute subordinado e apresenta materiais que parecem desdobramentos do outro
meio
Interferecircncia natildeo-convergente um dos meios realccedila e acentua aspectos do outro sem
que um se dilua no outro Trata-se nas palavras do autor de um ldquoapoio ancorado por uma
distinccedilatildeo relativardquo (MENEZES 2006 p 390)
A funccedilatildeo dos estaacutegios parece ser a de oferecer gradaccedilotildees entre fusatildeo e contraste
Entretanto da maneira como coloca Menezes mais do que estaacutegios tratam-se de movimentos
no interior do eixo fusatildeo-contraste que apresenta diversas gradaccedilotildees Este eixo poderia ser
explorado por outros movimentos natildeo inclusos nesta lista Para nossa abordagem seraacute
suficiente considerar que entre fusatildeo e contraste satildeo possiacuteveis gradaccedilotildees diversas e por
diversas aproximaccedilotildeesafastamentos espectro-morfoloacutegicos Aleacutem disso esta perspectiva
abrange fluxos independentemente se instrumentais ou eletroacuacutesticos Temos assim a
possibilidade de um fluxo se apresentar mais ou menos paralelo e dependente em relaccedilatildeo a
outro Isto eacute quanto mais transferecircncias espectro-morfoloacutegicas estatildeo presentes mais
aproximamos dois fluxos de uma fusatildeo da convergecircncia em apenas um uacutenico fluxo quanto
menos transferecircncias espectro-morfoloacutegicas mais distinguimos os dois fluxos como
independentes Assim os estaacutegios transicionais podem ser tambeacutem pensados como uma
gradaccedilatildeo um continuum relativo agrave independecircncia dos fluxos sonoros Isto se relaciona com
os apontamentos de Wishart (1996) sobre ser possiacutevel que um uacutenico fluxo se divida em outros
fluxos separados que podem ser desenvolvidos individualmente e convergir novamente num
soacute
[] era possiacutevel conceber uma composiccedilatildeo musical na qual um uacutenico fluxo de som desenvolvido possivelmente divergia em fluxos separados que poderiam ser
75
76
separadamente articulados poderiam convergir novamente e continuar assim ateacute o final da peccedila (p 25 traduccedilatildeo nossa83)
Nestes casos natildeo se trata de um ou outro fluxo sonoro fixo mas um que engendra
outro ou ainda outros que fundem em um ocupando assim regiotildees ambiacuteguas entre
independecircncia paralelismo e fusatildeo Wishart ilustra esta ideia (Figura 21)
FIGURA 21 - DESENVOLVIMENTO DE UM FLUXO SEPARANDO EM OUTROS E CONVERGINDO NOshyVAMENTE
bdquobdquoo i-i ~ gt1
FONTE Extraiacutedo de Wishart (1996 p 27)
Um exemplo desta concepccedilatildeo na muacutesica mista pode ser observado na peccedila Music fo r
Flute and ISPW (1994) de Cort Lippe Nas notas sobre a peccedila o compositor explica haver
pensado num continuum entre uma configuraccedilatildeo de duo e uma configuraccedilatildeo de solo-
extendido ldquoMusicalmente agraves vezes a parte do computador natildeo eacute separada da parte da flauta
mas serve mais para amplificar a flauta em muacuteltiplas dimensotildees e direccedilotildees enquanto no outro
extremo do continuum o computador tem sua proacutepria voz musical independenterdquo (LIPPE
traduccedilatildeo nossa84) De acordo com a tipologia que estamos empregando ora flauta e sons
eletroacuacutesticos constituem um uacutenico fluxo (solo-extendido) que decorre da fusatildeo entre eles
ora cada um desenvolve seu proacuteprio fluxo (duo) decorrente do contraste entre eles
Outro exemplo das nuances da separaccedilatildeo de fluxos distintos estaacute presente na peccedila
Kontakte (1958-1960) de Karlheinz Stockhausen Quando o compositor trata da
decomposiccedilatildeo do som o segundo dos seus quatro criteacuterios da muacutesica eletrocircnica
(STOCKHAUSEN 1989) demonstra que um som pode ser entendido como a soma de
componentes e que por meio de sua decomposiccedilatildeo estes componentes podem ser
desenvolvidos paralelamente85 Ele cita um trecho de Kontakte (aos 22 minutos
83 Original ldquo[] it was possible to conceive of a musical composition in which a single sound stream evolved possibly diverged into separate streams which might be separately articulated might reconverge and continue thus to the end of the piecerdquo
84 Original ldquoMusically the computer part is sometimes not separate from the flute part but serves rather to amplify the flute in multiple dimensions and directions while at the other extreme of the continuum the computer part has its own independent musical voicerdquo (LIPPE 1994)
85 Note o leitor que ldquocomponentesrdquo aqui tecircm outra acepccedilatildeo eles satildeo sonoros espectrais e natildeo paracircmetros como no modelo de Guigue (ver 32) e na apresentada recomposiccedilatildeo do som segundo Menezes Os componentes
77
aproximadamente) no qual acontece a decomposiccedilatildeo de um uacutenico som (ver Figura 22) O
compositor explica ldquoO som original eacute literalmente desintegrado nos seus seis componentes e
cada componente por sua vez eacute decomposto diante de nossos ouvidos nos seus ritmos
individuais de pulsosrdquo (p 97 traduccedilatildeo nossa86) A Figura 22 apresenta uma anaacutelise dos
pontos em que o fluxo inicial daacute origem a outros (marcados com um ciacuterculo) e tambeacutem de um
ponto em que haacute a fusatildeo de dois fluxos (marcado com um quadrado) ainda que este uacuteltimo
seja quase imperceptiacutevel devido agrave intensidade fraca dos dois fluxos
FIGURA 22 - DIVISAtildeO DE UM FLUXO EM OUTROS EM KONTAKTE (1958-60) DE STOCKHAUSEN
FONTE Extraiacutedo de Stockhausen (1966 p 25)
O compositor chama a atenccedilatildeo para o aspecto da percepccedilatildeo deste fenocircmeno ldquoE noacutes
vivemos exatamente a mesma transformaccedilatildeo que o som estaacute passando O som se divide em
seis e se noacutes queremos seguir todos os seis temos que nos tornar polifocircnicos seres
multicamadasrdquo (STOCKHAUSEN 1989 p 88 traduccedilatildeo nossa87) Apesar de o compositor
nesta abordagem de Stockhausen se aproximam sobretudo dos componentes da textura (31)86 Original The original sound is literally taken apart into its six components and each component in turn is
decomposing before our ears into its individual rhythm of pulses (STOCKHAUSEN 1989 p 97)87 Original ldquoAnd we live through exactly the same transformation that the sound is going through The sound
splits into six an if we want to follow all six we have to become polyphonic multilayered beignsrdquo (STOCKHAUSEN 1989 p 88)
falar em camadas podemos perceber o caraacuteter ldquoliacutequidordquo e por isso mais relacionado agrave ideia
de fluxo do seu procedimento trata-se de uma manipulaccedilatildeo das caracteriacutesticas internas dos
sons - dos seus componentes - e apresenta a dissoluccedilatildeo de um fluxo dando origem a outros
numa espeacutecie de ldquodivisatildeo de aacuteguasrdquo
Esta dissoluccedilatildeo eacute ainda mais dispersa quando observados os papeacuteis dos instrumentos
em relaccedilatildeo agrave parte eletrocircnica Por vezes haacute uma reafirmaccedilatildeo do mesmo fluxo por exemplo
tanto o percussionista quanto o pianista reiteram o trinado entre faacute e sol | presente na parte
eletrocircnica Entretanto por vezes os instrumentos apresentam desvios gestos que podem ser
agrupados em outro fluxo ou serem percebidos soltos Neste uacuteltimo caso de maneira
semelhante ao que acontece numa textura global (mencionada em 31) estes gestos natildeo satildeo
agrupados em fluxos
Em resumo os fluxos se estabelecem por uma estabilidade em suas caracteriacutesticas
espectro-morfoloacutegicas e se distinguem atraveacutes de diferenccedilas nestas caracteriacutesticas banda
espectral alturas timbre caracteriacutesticas gestuais localizaccedilatildeo espacial entre outras Na
muacutesica eletroacuacutestica mista natildeo haacute exclusivamente dois fluxos um instrumental e outro
eletroacuacutestico antes cada um destes meios pode apresentar muacuteltiplos fluxos como tambeacutem
podem compor juntos um uacutenico fluxo O eixo fusatildeo-contraste pode ser utilizado para observar
independecircncia e paralelismo entre fluxos distintos dando conta de regiotildees ambiacuteguas
343 Relaccedilatildeo entre fluxos distintos
A questatildeo subsequente e decorrente desta que cerca a constituiccedilatildeo e segregaccedilatildeo de
muacuteltiplos fluxos eacute aquela que busca identificar como estes fluxos se relacionam uns com os
outros As ideias de comportamento de Smalley (1997) contraponto de Wishart (1996) e
interaccedilatildeo gestual de Bachrataacute (2010) oferecem perspectivas importantes para esta abordagem
3431 Comportamento
Colocar sons distintos num mesmo contexto jaacute garante que algum tipo de relaccedilatildeo deva
existir entre eles Dennis Smalley usa o termo comportamento para discriminar tal relaccedilatildeo
78
entre espectro-morfologias88 Esta metaacutefora do comportamento tem por base a distinccedilatildeo de
Jean Jaques Nattiez (1990) entre referecircncias intriacutensecas e extriacutensecas da muacutesica (p 111-127)
As referecircncias intriacutensecas (intramusicais ou intermusicais) satildeo as que acontecem no acircmbito
de uma peccedila em particular (intra) ou em relaccedilatildeo a um universo musical mais amplo ao qual
ela pertence (inter) A observaccedilatildeo de um tema que volta a aparecer ao longo da peccedila eacute um
exemplo da muacutesica referenciando a si mesma (referecircncia intriacutenseca intramusical) Por outro
lado as referecircncias extriacutensecas estatildeo relacionadas a uma seacuterie de experiecircncias externas ao
contexto da muacutesica De acordo com Smalley (1997) as referecircncias comportamentais satildeo
extriacutensecas Isso significa que na experiecircncia da escuta associamos as relaccedilotildees percebidas
entre os sons com outras experiecircncias vividas Eacute isto que acontece por exemplo quando a
teoria musical usa metaacuteforas como a de ldquopergunta e respostardquo para descrever relaccedilotildees
musicais ou quando usa a metaacutefora do ldquosujeito e contra-sujeitordquo para descrever as relaccedilotildees
entre vozes na fuga Natildeo apenas na anaacutelise mas antes no processo composicional estas
metaacuteforas podem surgir A peccedila de Charles Ives The Unanswered Question (1908) apresenta
as referecircncias de pergunta e resposta no proacuteprio tiacutetulo
A muacutesica eletroacuacutestica devido agraves diversas possibilidades de conteuacutedo (sonoro) e
movimento das espectromorfologias apresenta um grande e variaacutevel repositoacuterio de
referecircncias extriacutensecas E se na muacutesica acusmaacutetica89 estas relaccedilotildees de comportamento satildeo
percebidas em relaccedilatildeo agraves espectromorfologias apenas na muacutesica mista elas satildeo percebidas
com uma forte influecircncia da relaccedilatildeo do performer visiacutevel e portador do gesto com a parte
acusmaacutetica (SMALLEY 1997 p 118) A accedilatildeo fiacutesica visual pode ser considerada uma
referecircncia extriacutenseca e pode estar associada agrave percepccedilatildeo de comportamentos sonoros
A perspectiva de referecircncias comportamentais extriacutensecas apresenta uma abertura de
interpretaccedilatildeo jaacute que determinado comportamento sonoro pode se referenciar a diferentes
experiecircncias vividas distintas para cada sujeito Esta abertura permite pensarmos em outras
referecircncias diferentes daquelas abstratas propostas por Smalley que possam enriquecer tanto
79
88 Espectromorfologia se refere ao desenvolvimento do espectro sonoro atraveacutes do tempo (SMALLEY 1997 p 207) Embora este termo englobe diferentes estruturas sonoras (gestos e texturas por exemplo) nesta pesquisa o foco estaacute sobre a relaccedilatildeo entre os fluxos sonoros Isto porque esta categoria favorece um pensamento global da peccedila natildeo voltado para localidades gestuais Os aspectos gestuais tambeacutem satildeo importantes e foram extensamente analisadas por Petra Bachrataacute (2010) trabalho que seraacute abordado em 3433 entretanto eles seratildeo aqui abordados em relaccedilatildeo aos fluxos sonoros conforme 34
89 Muacutesica acusmaacutetica eacute considerada aqui como aquela preacute-gravada e reproduzida atraveacutes de alto-falantes sem a presenccedila de um performer no palco (EMMERSON SMALLEY 2001)
80
a composiccedilatildeo quanto a anaacutelise Por exemplo ao tratarmos do fluxo visual abordaremos o
efeito ventriacuteloquo (35)
Tendo por base a ideia de que as referecircncias comportamentais satildeo extriacutensecas Smalley
(1997) apresenta sua metaacutefora numa tabela com termos que podem explicar os
comportamentos A apresentaccedilatildeo de Smalley parte de termos mais gerais para outros mais
especiacuteficos (respectivamente de cima para baixo no Quadro 2) Em termos gerais o
comportamento depende de duas oposiccedilotildees domiacuteniosubordinaccedilatildeo e conflitocoexistecircncia
QUADRO 2 - COMPORTAMENTO SEGUNDO SMALLEY
dominaccedilatildeosubordinaccedilatildeo conflitocoexi stecircnci a
igualdade - desigualdade
reaccedilatildeo - interaccedilatildeo - reciprocidade
atividade - passividade
atividade - inatividade
estabilidade - instabilidade
modos de relacionamento
coordenaccedilatildeo de movimento
(sincronizaccedilatildeo vertical)
frouxa mdash justa
(percepccedilatildeo de proximidade concordada)
passagem de movimento
(dimensatildeohorizontal)
voluntaacuteria - pressionada
(trajetoacuteria de energia e movimento)
i
causalidade
FONTE traduzido e adaptado de Smalley (1997)
O eixo domiacuteniosubordinaccedilatildeo estaacute relacionado agraves (des)igualdades entre as
espectromorfologias Smalley (2008 p 11) associa a este eixo trecircs maneiras interconectadas
de entender a ideia de primeiro plano (foreground) e plano de fundo (background) espectro-
morfologicamente espacialmente e indicativamente
A primeira se refere agraves caracteriacutesticas espectro-morfoloacutegicas que nos permitem
identificar o domiacutenio de uma espectro-morfologia sobre outra O autor cita forma dinacircmica
mudanccedilas na riqueza espectral rapidez do movimento espectral taxa de deslocamento
espacial entre outras como exemplos de caracteriacutesticas que podem manifestar o domiacutenio e
subordinaccedilatildeo entre espectro-morfologias Ele oferece ldquoum exemplo simples e oacutebviordquo
ldquomorfologias de impacto-ataque brilhantes e presentes superpostas a uma morfologia
81
sustentada relativamente distante e espectralmente inativardquo (SMALLEY 2008 p 11)
A segunda maneira de abordar a ideia de primeiro plano e plano de fundo -
espacialmente - estaacute relacionada sobretudo aos eixos proximidadedistacircncia e
mobilidadeimobilidade Uma espectro-morfologia pode dominar sobre outra por estar mais
proacutexima ou ser mais moacutevel A proximidadedistacircncia estaacute relacionada ao uso de
processamentos como reverberaccedilatildeo filtros e uso de sistema surround e pode ser uma
caracteriacutestica de diferenciaccedilatildeo de fluxos Este aspecto estaacute relacionado agrave composiccedilatildeo espacial
de muacuteltiplas camadas apontada por Stockhausen (2009)
ldquoConstruir profundidade espacial por sobreposiccedilatildeo de camadas nos permite compor perspectivas em som de muito perto a muito longe anaacutelogas ao modo como compomos camadas de melodia e harmonia no plano bidimensional da muacutesica tradicionalrdquo (STOCKHAUSEN 2009 p89)
Assim uma espectro-morfologia pode dominar sobre outra devido a este aspecto
espacial
A terceira maneira de abordar a ideia de primeiro plano e plano de fundo -
indicativamente - se refere ao impacto indicativo de um som Quando o som se refere
diretamente ou indica experiecircncias do mundo natildeo sonoro ele tende a dominar sobre outro
cuja referecircncia natildeo seja tatildeo direta Os sons da fala humana normalmente dominaratildeo sobre
outras espectro-morfologias Sons cuja fonte eacute reconhecida tambeacutem dominaratildeo sobre aqueles
de fonte natildeo reconhecida
O eixo conflitocoexistecircncia se refere agraves relaccedilotildees temporais do comportamento
Conflito indica uma tendecircncia competitiva entre os sons enquanto que a coexistecircncia indica
uma reciprocidade e confluecircncia Se os sons satildeo idecircnticos ou da mesma famiacutelia ainda que
haja assincronia e descontinuidade podemos percebecirc-los em um comportamento consensual
Para que haja conflito eacute preciso que haja ldquocontrastes simultacircneos ou sucessivos de
espectromorfologia cujas forma dinacircmica e atividade temporal reflitam um poderoso
deslocamentordquo (SMALLEY 2008 p 11) Ainda assim no caso em que este comportamento
conflitante estabelece um ldquomodus vivendi quase permanenterdquo eacute possiacutevel o perceber como
coexistente Isto eacute o comportamento conflitante pode se tornar coexistente se permanecer por
tempo suficiente Haacute tambeacutem a possibilidade de uma textura apresentar um comportamento
conflitante internamente enquanto que de um ponto de vista mais global apresenta coerecircncia
devido a alguma caracteriacutestica como o deslocamento espacial por exemplo Neste caso ldquoo
82
conflito interno estaacute [] disparatado com a coerecircncia coletivardquo (SMALLEY 2008 p 11)
Tais oposiccedilotildees (dominaccedilatildeosubordinaccedilatildeo e conflitocoexistecircncia) representam a base
para uma seacuterie de modos de relacionamento igualdade - desigualdade reaccedilatildeo - interaccedilatildeo -
reciprocidade atividade - passividade atividade - inatividade e estabilidade -
instabilidade Estes modos de relacionamento satildeo articulados vertical e horizontalmente -
duas dimensotildees temporais interativas A dimensatildeo horizontal eacute concernente agrave passagem de
movimento isto eacute como os fluxos em nosso caso passam de um contexto para outro Isto
pode acontecer de maneira voluntaacuteria ou pressionada (SMALLEY 1997 p 118) A dimensatildeo
vertical eacute concernente agrave coordenaccedilatildeo de movimento isto eacute como sincronizam ou natildeo os
eventos de cada fluxo Esta dimensatildeo se apresenta num continuum entre liberdade de
coordenaccedilatildeo justa (tight) e frouxa (loose)
ldquo[] haacute uma distacircncia extrema entre uma muacutesica muito justa talvez rigidamente controlada pontual homorriacutetmica e minimalista e associaccedilotildees muito relaxadas e maleaacuteveis encontradas em algumas muacutesicas eletroacuacutesticasrdquo (SMALLEY 1997 p 118 traduccedilatildeo nossa90)
Quando um evento parece ser a causa do seguinte ou a causa de uma modificaccedilatildeo em
um evento concorrente eacute possiacutevel perceber uma relaccedilatildeo de causalidade De acordo com
Smalley a causalidade ldquoocupa-se mais com um som agindo sobre outro seja causando a
ocorrecircncia de um segundo evento seja instigando a mudanccedila em um som que jaacute se
desenrolavardquo (SMALLEY 2008 p 11) A causalidade eacute mais presumida do que propriamente
conhecida natildeo haacute como comprovar que haacute causalidade com base no que vemos ou
experimentamos Mas presumimos esta causalidade porque os sons estatildeo temporalmente
proacuteximos O autor ainda aponta que ldquose o segundo evento responde espectro-
morfologicamente agrave interferecircncia ou ao impacto do primeiro evento a relaccedilatildeo causal seraacute
percebida ainda mais fortementerdquo (SMALLEY 2008 p 11)
Music fo r Flute and ISPW (1994) de Cort Lippe pode ser analisada a partir desta
perspectiva Na primeira seccedilatildeo da peccedila eacute possiacutevel observar dois fluxos que se intercalam na
parte da flauta Um eacute mais contiacutenuo e em dinacircmica piano o outro consiste em fortes ataques
que interrompem a continuidade do primeiro Neste caso o fator maior de diferenciaccedilatildeo dos
dois fluxos eacute a presenccedila dos sons eletroacuacutesticos Enquanto um fluxo eacute apenas instrumental o
90 Original ldquo[] there is an extreme distance between a very tight perhaps rigidly controlled punctual homorhythmic minimal music and the very relaxed malleable associations found in some electroacoustic musicrdquo (SMALLEY 1997 p 118)
83
outro eacute composto pela soma dos dois O fluxo forte eacute sincronizado com a parte do computador
e juntos formam um uacutenico fluxo Os dois fluxos piano e forte apresentam uma coordenaccedilatildeo
de movimento justa na dimensatildeo vertical e se intercalam subitamente numa passagem de
movimento pressionada mas natildeo parece haver relaccedilatildeo de causalidade entre eles Tambeacutem eacute
possiacutevel observar que o fluxo forte estabelece uma instabilidade sobre o fluxo piano mais
estaacutevel (modo de relacionamento) A relaccedilatildeo entre eles neste momento eacute de conflito
A oposiccedilatildeo dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo natildeo se apresenta muito claramente Poderiacuteamos
pensar que o forte domina o fraco por causa da maior intensidade entretanto se
considerarmos sua distribuiccedilatildeo no tempo poderiacuteamos dizer que o fraco domina pois sua
duraccedilatildeo eacute maior ele tecircm predominacircncia temporal Esta incerteza analiacutetica pode manifestar
uma ambiguidade musical mas tambeacutem aponta para um fator pouco contemplado na tabela de
Smalley o desenvolvimento das relaccedilotildees no tempo Isto porque conforme a muacutesica se
desenvolve percebemos que o fluxo forte comeccedila a preponderar e domina sobre o piano
(subordinado)
84
3432 Contraponto
O que estamos sugerindo agora eacute que o fluxo em evoluccedilatildeo [evolving stream] pode ser articulado gestualmente e podemos coordenar (ou natildeo) os gestos entre as vaacuterias partes de modo a criar uma estrutura contrapontiacutestica viaacutevel91 (WISHART 1996 p 117)
A partir do paradigma do continuum sonoro e atraveacutes do gesto (ver 331 e 332)
Wishart desenvolve sua teoria de contraponto Para o autor natildeo eacute suficiente apenas um
nuacutemero de fluxos sonoros Devemos perceber que haacute uma relaccedilatildeo de um com o outro ou que
eles interagem de alguma maneira durante o curso de do seu desenvolvimento individual No
contraponto baseado na rede isso envolve o ldquoir e virrdquo da coordenaccedilatildeo riacutetmica e da
consonacircncia harmocircnica na relaccedilatildeo entre as partes
Para se atingir uma estrutura contrapontiacutestica Wishart argumenta ser necessaacuterio dois
princiacutepios (1) um princiacutepio arquitetural que oferece pontos de referecircncia na progressatildeo
global do material musical Na muacutesica tonal isso corresponde agrave estrutura das tonalidades (o
retorno agrave tocircnica por exemplo eacute normalmente um marco) No continuum este princiacutepio
arquitetural seraacute o conceito de transformaccedilatildeo de uma aacuterea tiacutembrica ou sonoro-morfoloacutegica
em outra Podemos nos lembrar da fala de Varegravese ldquoO papel da cor ou timbre seraacute
completamente modificado [] ele se tornaraacute um agente de delineamento como as diferentes
cores num mapa separando diferentes aacutereas e uma parte integral da formardquo (VARESE apud
SIMMS 1996 p 112)
(2) Uma estrutura contrapontiacutestica tambeacutem precisa ter um princiacutepio dinacircmico que
determina a natureza do movimento No contraponto tonal isto estaacute relacionado ao ldquoir e virrdquo
(ebb and flow ) da coordenaccedilatildeo riacutetmica e ao ldquoir e virrdquo da consonacircncia-dissonacircncia harmocircnica
ou seja estaacute relacionado agrave maneira em que as notas numa parte individual estatildeo colocadas em
relaccedilatildeo agrave notas em outras partes No contraponto no continuum no lugar da consonacircncia-
dissonacircncia na progressatildeo harmocircnica Wishart propotildee a ideia de evoluccedilatildeo gestual e a
interaccedilatildeo entre os fluxos distintos
Estas duas dimensotildees (1 e 2) devem ser independentes uma da outra de acordo com o
autor O princiacutepio dinacircmico natildeo pode ser implicado pelo arquitetural satildeo dimensotildees
separadas
91 ldquoWhat we are now suggesting is that the evolving stream may be gesturally articulated and we may coordinate (or not) the gestures between the various parts in such a way as to create a viable contrapuntal structurerdquo (WISHART 1996 p 117)
O princiacutepio dinacircmico pode ser observado horizontalmente e verticalmente
Horizontalmente a sequecircncia de gestos numa linha particular seraacute determinada pela coerecircncia
expressiva (ou ausecircncia dela) nesta linha Isso determinaraacute
a) O tipo de gesto usado
b) A sequecircncia individual dos gestos
c) A meacutedia da atividade gestual
Na dimensatildeo vertical um paracircmetro importante eacute a taxa global de ocorrecircncia dos
gestos nas diferentes partes Evidentemente devido a nossa percepccedilatildeo se forem dois gestos
simultacircneos eles podem ser contados como um Ainda podemos considerar dentro de um
periacuteodo de tempo da peccedila
a) se os gestos nas diferentes partes satildeo similares (homogecircneos) ou se satildeo heterogecircneos
b) se os gestos parecem interagir uns com os outros ou se se comportam independentes
uns dos outros
A partir destas caracteriacutesticas (a e b) se estabelecem seis arqueacutetipos para a organizaccedilatildeo
vertical dos gestos
1) Paralelo (natildeo tem a ver com caracteriacutestica espectral estamos falando de estrutura
gestual)
2) Semi-paralelo as partes seguem a mesma loacutegica gestual mas natildeo sincronicamente
3) Independecircncia homogecircnea as partes se comportam independentemente
4) Independecircncia heterogecircnea quando os gestos satildeo heterogecircneos tambeacutem podem ser
independentes
5) Interativo especialmente relacionado agrave ligaccedilotildees causais ou imitativas entre as partes
6) De gatilho (triggering) quando um gesto de uma parte parece iniciar um evento ou
uma mudanccedila em uma outra parte de maneira minimamente clara
85
86
QUADRO 3 - ORGANIZACcedilAtildeO VERTICAL DOS GESTOS EM RELACcedilAtildeO AO PRINCIacutePIO DINAcircMICO
independente independecircncia independecircncia
Icircsemi-
paralelismointeraccedilatildeo
interativo paralelismo gatilho
similar
(homogecircneo) -dissimilar
(heterogecircneo)
FONTE Wishart (1996 p 26)
Wishart conclui que com esta ferramenta teoacuterica em sua experiecircncia
ldquo[] foi possiacutevel esquematizar a estrutura da densidade geral dos eventos na partitura e entatildeo compor a estrutura gestual de uma seccedilatildeo usando siacutembolos elementares [] e assim trabalhando a partir do plano global de timbre e desenvolvimento articulatoacuterio colocar na partitura [score] nos detalhes de cada evento sonoro individual em cada vozrdquo (WISHART 1996 p 123 traduccedilatildeo nossa92)
Finalmente eacute relevante salientar que apesar de Wishart ter desenvolvido estas ideias a
partir da experiecircncia de notaccedilatildeo de objetos sonoros complexos ele afirma que a validaccedilatildeo
uacuteltima de qualquer procedimento musical deve ser feita atraveacutes da natildeo-mediada e natildeo
prejudicial experiecircncia de escuta ldquoUma loacutegica baseada em escutar e trabalhar com os
materiais acuacutesticos [] eacute necessaacuteria quando abordamos o multi-dimensional continuum
aberto pelo aacuteudio (Sonic) digitalrdquo (WISHART 1996 p 126 traduccedilatildeo nossa93)
3433 Interaccedilatildeo gestual
Petra Bachrataacute (2010) investiga em sua tese o tema da interaccedilatildeo gestual A autora
percorre diferentes concepccedilotildees do gesto musical para evidenciar relaccedilotildees gestuais entre sons
instrumentais e eletroacuacutesticos gesto como movimento gesto como significado ( meaning)
92 Original ldquoIt was possible to lay out the structure of the overall density of events on the score then compose the gestural structure of a section using elementary symbols [] and then working from the overall plan of timbral and articulatory development score in the details of the individual sound-events in each voicerdquo (WISHART 1996 p 123)
93 Original ldquoA rationale based on listening to and working with acoustic materials [ ] will be needed when we approach the multi-dimensional continuum opened up by digital sonicsrdquo (WISHART 1996 p 126)
87
gesto como trajetoacuteria energia-movimento gesto como articulaccedilatildeo do continuum gesto e
unidades semioacuteticas temporais gesto e figura gesto e energia e finalmente gesto e notaccedilatildeo
A partir desta fundamentaccedilatildeo teoacuterica ela identifica descreve e classifica relacionamentos
gestuais interativos definindo modelos Todos os modelos de interaccedilatildeo gestual satildeo
identificados no repertoacuterio incluindo as peccedilas da proacutepria autora O primeiro grupo de
modelos se refere agrave interaccedilatildeo gestual baseada em aspectos elementares alturafrequecircncia
organizaccedilatildeo temporal envelope de intensidade e caracteriacutesticas tiacutembricas O segundo eacute
baseado no modelo tripartite de estrutura de um som (onset-continuant-termination) O
terceiro estaacute fundamentado na teoria de Wishart (1996) de contraponto O quarto se refere agrave
interaccedilatildeo gestual baseada em caracteriacutesticas espectro-morfoloacutegicas e semacircnticas de direccedilatildeo e
energia Finalmente a autora apresenta modelos espaciais de interaccedilatildeo gestual Anexo a esta
dissertaccedilatildeo estaacute a traduccedilatildeo do apecircndice de seu trabalho (ver Anexo 1) onde sintetiza os
modelos de interaccedilatildeo Natildeo estaacute no escopo de nosso trabalho fazer um detalhamento destes
modelos Em lugar disso intentamos demonstrar a compatibilidade desta abordagem com
aquela que estamos construindo ao redor da ideia de fluxos sonoros
Bacharataacute menciona a concepccedilatildeo de fluxo (stream) quando trata da interaccedilatildeo gestual
baseada em organizaccedilatildeo temporal Isto porque nesta categoria eacute um grupo de gestos que se
relaciona com outro grupo de gestos resultando num modo de interaccedilatildeo como o sincopado o
polirriacutetmico entre outros Natildeo seria possiacutevel por exemplo identificar polirritmia observando
apenas dois eventos Nesta necessidade de observar o agrupamento dos gestos Bachrataacute
aponta para a teoria de Bregman (1990) de fluxos auditivos A ldquointeraccedilatildeo por agrupamento
texturalrdquo apresenta uma relaccedilatildeo mais estreita com esta concepccedilatildeo ldquoInteraccedilatildeo por
agrupamento textural - interaccedilatildeo de padrotildees gestuais de duraccedilatildeoritmos aleatoacuterios ou
irregulares os quais ocorrem em diferentes camadas de sons - fluxos auditivosrdquo
(BACHRATAacute 2010 p 157 traduccedilatildeo nossa94)
O objetivo de sua pesquisa diga-se alcanccedilado minuciosamente era ldquo[] analisar
diferente tipos de relaccedilotildees interativas entre gestos musicais nas muacutesicas escritas para
instrumentos e sons eletroacuacutesticos a fim de estabelecer modelos especiacuteficos de interaccedilatildeo
[]rdquo (BACHRATAacute 2010 p 15 traduccedilatildeo nossa95) Natildeo se trata assim de entender estas
interaccedilotildees entre gestos na relaccedilatildeo com o contexto nem de observar o desenvolvimento desta
94 Original ldquoInteraction by textural grouping - interaction of irregular or random rhythmsdurational gestural patterns which occur in different layers of sounds - auditory streamsrdquo (BACHRATAacute 2010 p 157)
95 Original ldquo[] to analyze different kinds of interactive relationships between musical gestures in music written for instruments and electroacoustic sounds in order to establish specific models of interaction []rdquo
88
interaccedilatildeo ao longo de uma peccedila por exemplo A estas questotildees por outro lado se direciona
nossa investigaccedilatildeo Na praacutetica estas interaccedilotildees gestuais acontecem em determinados
contextos e se desenvolvem no tempo assim todos os modelos estatildeo de certa forma inseridos
numa organizaccedilatildeo temporal
Desta maneira eacute possiacutevel ver complementariedade nas abordagens Os fluxos a que
estamos nos referindo podem ser e satildeo comumente constituiacutedos de gestos Citando novamente
Wishart ldquoo fluxo em evoluccedilatildeo [evolving stream] pode ser articulado gestualmenterdquo96
(WISHART 1996 p 117) Os gestos de um interagem com gestos de outros fluxos da
mesma forma que no contraponto uma voz eacute constituiacuteda por notas que interagem com outras
notas de outras vozes A interaccedilatildeo gestual estaacute num niacutevel mais concreto mais proacuteximo da
superfiacutecie sonora analisada enquanto que fluxo eacute uma categoria mais abstrata de anaacutelise
Bachrataacute natildeo deixa de notar que seus resultados tecircm se estendido na sua produccedilatildeo
para outras instrumentaccedilotildees
A aplicaccedilatildeo de relacionamentos gestuais interativos tecircm sido generalizada natildeo apenas agraves minhas peccedilas que usam instrumentos e sons eletroacuacutesticos em combinaccedilatildeo mas tambeacutem a uma obra puramente eletroacuacutestica (acusmaacutetica) e peccedilas instrumentais sem eletrocircnicos (BACHRATAacute 2010 p 16 traduccedilatildeo nossa97)
Da mesma forma natildeo haacute propriedades intriacutensecas de um ou outro meio que impeccedilam
que estes modelos sejam aplicados em obras puramente instrumentais ou puramente
eletroacuacutesticas Esta caracteriacutestica extrapoladora dos resultados eacute recorrente em nossa leitura
As pesquisas que tecircm como tema a relaccedilatildeo instrumental-eletroacuacutestico no acircmbito sonoro-
morfoloacutegico acabam por encontrar relaccedilotildees que podem ser extrapoladas para uma relaccedilatildeo
instrumental-instrumental ou eletroacuacutestico-eletroacuacutestico Nossa leitura da Morfologia da
Interaccedilatildeo (MENEZES 2006 p 377-400) extrapolou fusatildeo e contraste para a aplicaccedilatildeo em
diferentes fluxos independentemente se instrumentais ou eletroacuacutesticos De modo
semelhante os modelos de interaccedilatildeo gestual de Bachrataacute podem ser aplicados aos diferentes
meios independentemente Isto eacute embora o iacutempeto inicial da pesquisa tenha sido investigar a
interaccedilatildeo entre sons instrumentais e eletroacuacutesticos especificamente os resultados
96 ldquoWhat we are now suggesting is that the evolving stream may be gesturally articulated and we may coordinate (or not) the gestures between the various parts in such a way as to create a viable contrapuntal structurerdquo (WISHART 1996 p 117)
97 Original ldquoThe application of interactive gestural relationships has been generalized not only to my works which use instrumental and electroacoustic sounds in combination but also to a pure electroacoustic (acousmatic) work and instrumental pieces without electronicsrdquo (BACHRATAacute 2010 p 16)
89
encontrados satildeo generalizaacuteveis Esta constataccedilatildeo sublinha a necessidade teoacuterica de uma
denominaccedilatildeo de uma terminologia para indicar os grupos de sons independentemente se
instrumentais eletroacuacutesticos ou uma mescla dos dois Fluxos vozes camadas ou planos satildeo
alternativas
35 O FLUXO VISUAL NA MUacuteSICA MISTA
No decorrer da pesquisa notamos que para a percepccedilatildeo da interaccedilatildeo era importante
considerar a visualidade da performance98 Embora para a escuta a distinccedilatildeo de mecanismo
de produccedilatildeo sonora acuacutestico-eletrocircnico natildeo seja tatildeo relevante (SOUZA 2010) ganha
importacircncia quando considerados os aspectos visuais da performance Isto porque as
vibraccedilotildees mecacircnicas nos instrumentos acuacutesticos satildeo produzidas por gestos fiacutesicos de um
performer (bater pinccedilar friccionar etc) e o som depende da relaccedilatildeo deste gesto fiacutesico com o
instrumento Por outro lado os sons produzidos nos circuitos eletrocircnicos podem ser
controlados de diferentes maneiras (potenciocircmetros mouse por algoritmos generativos etc)
e o som pode estar mais ou menos relacionado a este controle ou ainda natildeo haver controle
em tempo real consideraacutevel Neste sentido natildeo se trata apenas de uma questatildeo visual mas
estaacute em jogo um aprendizado das relaccedilotildees de accedilatildeo e resposta dos instrumentos Schrader
(1991) explica como essas relaccedilotildees satildeo apreendidas nos instrumentos acuacutesticos
A performance tradicional de muacutesica com instrumentos acuacutesticos tem se desenvolvido como uma extensatildeo da percepccedilatildeo de accedilatildeoresposta A accedilatildeo eacute percebida como visual e fiacutesica e a resposta que a acompanha eacute aural Assim algueacutem aprende que quando o percussionista bate no tiacutempano com uma baqueta resultaraacute num certo som A arte de ldquotocarrdquo um instrumento eacute aquela de criar uma seacuterie de associaccedilotildees significativas de accedilatildeoresposta O que eacute significativo eacute aprendido pela experiecircncia e os significados de uma performance instrumental acuacutestica satildeo geralmente apreendidos pelas pessoas num primeiro estaacutegio atraveacutes da experiecircncia de performances ao vivo ou filmadas (SCHRADER 1991 p 91-92 traduccedilatildeo nossa99)
98 O aspecto visual tem tambeacutem uma importacircncia para a percepccedilatildeo de processos tecnoloacutegicos envolvidos na performance O espectador-ouvinte pode inferir que accedilatildeo (visual) do performer estaacute controlando determinado som sintetizado por exemplo Embora possa haver convergecircncias este natildeo eacute o caso de nossa abordagem Estamos interessados em como o aspecto visual se relaciona com o sonoro independentemente do tipo de interaccedilatildeo tecnoloacutegica presente
99 Original ldquoThe traditional performance of music on acoustical instruments has developed as an extension of actionresponse perception The action is perceived as visual and physical and the accompanimental response is aural Thus one learns that when the percussionist strikes the tympana with a stick a certain sound will result The art of playing an instrument is that of creating a series of meaningful actionresponse associations What is meaningful is learned by experience and the meanings of acoustical instrumental performance are generally acquired by people at a very early stage through experiencing live filmed or videotaped performancesrdquo (SCHRADER 1991 p 91-92)
90
De acordo com o autor estes mecanismos de accedilatildeoresposta presentes nos instrumentos
acuacutesticos podem ser aparentes como no caso do violino ou implicados como no caso do
piano Assim poderiacuteamos ilustrar o modelo de instrumentos acuacutesticos da seguinte maneira
FIGURA 24 - MODELO DE ACcedilAtildeO-RESPOSTA DOS INSTRUMENTOS ACUacuteSTICOS
Accedilatildeo fiacutesica e visual Instrumento
FONTE o autor (2019)
Resposta aural
Na muacutesica que une instrumentos acuacutesticos com recursos eletroacuacutesticos esta
correspondecircncia newtoniana de accedilatildeo e reaccedilatildeo eacute modificada Haacute uma parte da experiecircncia
aural que natildeo eacute efeito da accedilatildeo fiacutesica e visual Essa situaccedilatildeo coloca o ouvinte-espectador numa
posiccedilatildeo de atentar para as relaccedilotildees entre accedilatildeo visual e resposta aural que podem ser
diferentes daquelas a que estaacute acostumado e que tambeacutem podem ser instaacuteveis Assim para a
muacutesica mista eacute possiacutevel esboccedilar um modelo diferente (Figura 25)
FIGURA 25 - POSSIacuteVEIS RELACcedilOtildeES CONFUSAS NA PERCEPCcedilAtildeO DE ACcedilAtildeO-RESPOSTA NO CONshyTEXTO DA MUacuteSICA MISTA
FONTE o autor (2019)
O que designei accedilatildeo invisiacutevel na figura acima se explica pelo processo de
referenciaccedilatildeo espectro-morfoloacutegica (spectromorphological referral process) da teoria de
Smalley (1997) ldquoQuando ouvimos espectromorfologias noacutes detectamos a humanidade por
traacutes delas ao deduzir atividade gestual referindo-nos atraveacutes do gesto agrave experiecircncia fisioloacutegica
e proprioceptiva em geralrdquo (p 111)100 A seta a) na figura 25 indica a possibilidade de
percebermos um som eletroacuacutestico como se tivesse sido produzido pela accedilatildeo fiacutesica e visual
do performer no instrumento A seta b) indica a possibilidade de percebermos que a resposta
100Traduccedilatildeo do autor Original ldquoWhen we hear spectromorphologies we detect the humanity behind them by deducing gestural activity referring back through gesture to proprioceptive and psychological experience in generalrdquo (SMALLEY 1997 p 111)
91
aural eletroacuacutestica parece uma variaccedilatildeo da resposta aural instrumental relaccedilatildeo comum no
emprego de processamentos do som ao vivo O quadrado gradiente indica que na percepccedilatildeo
da resposta aural natildeo eacute sempre possiacutevel uma clara distinccedilatildeo entre os meios conforme
demonstrado no subcapiacutetulo 34 A ilustraccedilatildeo apresenta apenas estas duas relaccedilotildees deixando
em aberto a possibilidade de outras
No artigo Muacutesica Eletroacuacutestica possibilidades esteacuteticas e escuta Cristina Dignart
aponta que esta situaccedilatildeo implica novos paradigmas de escuta musical ldquoO movimento gestual
instrumental sobre os sons permite um agenciamento atento ou intencional de certas
qualidades sonoras com a possibilidade de descobertas e surpresas de sonoridadesrdquo
(DIGNART 2010 p 63) Segundo a autora haacute uma ldquoreinterpretaccedilatildeo da escuta atrelada ao
gestordquo
Esta situaccedilatildeo remete agrave relaccedilatildeo interativa entre ouvinte e sons que propotildee Smalley
Segundo este autor a relaccedilatildeo interativa envolve
[] uma relaccedilatildeo ativa da parte do sujeito em explorar continuamente as qualidades e a estrutura do objeto Neste sentido pode ser vista como interativa Nenhuma expectativa preacute-formada eacute buscada pelo ouvinte A relaccedilatildeo interativa engloba a audiccedilatildeo estrutural as atitudes esteacuteticas em relaccedilatildeo agrave muacutesica e aos sons e o conceito de Schaeffer de audiccedilatildeo reduzida Eacute possiacutevel ter uma relaccedilatildeo interativa com qualquer som ainda que naturalmente alguns sons seratildeo mais frutiacuteferos do que outros (SMALLEY 2008 p 6)
Embora esta perspectiva esteja associada apenas com o som eacute possiacutevel considerar que
tal postura seja possiacutevel tambeacutem diante da relaccedilatildeo entre accedilatildeo visual e resposta aural Isto eacute o
ouvinte-espectador pode assumir uma relaccedilatildeo interativa101 natildeo apenas com os sons mas com a
performance como um todo incluindo seu aspecto fiacutesico e visual Esta postura interativa eacute
especialmente demandada desta performance que desafia o modelo de accedilatildeoresposta dos
instrumentos acuacutesticos
Tal situaccedilatildeo do ouvinte-espectador estaacute diretamente relacionada ao mencionado estado
de duacutevida (MENEZES 2006) Ao referir-se agraves suas proacuteprias realizaccedilotildees mistas Menezes
expressa
o ouvinte recai em constantes duacutevidas acerca da natureza daquilo que ouve se adveacutem do instrumento ou da emissatildeo eletroacuacutestica se se opera ao vivo uma dinamizaccedilatildeo espacial harmocircnica tiacutembrica e temporal da escritura instrumental ou
101Observe o leitor que o termo interaccedilatildeo aqui se aplica a outra relaccedilatildeo diferente daquelas diferenciadas no capiacutetulo 2 Esta relaccedilatildeo se aproxima das discussotildees sobre participaccedilatildeo do ldquoespectadorrdquo na arte em geral
92
se estaacute defronte de estruturas preacute-elaboradas em estuacutedio constituiacutedas a partir dos proacuteprios instrumentos ou a estes timbricamente correlatas (MENEZES apud MENEZES 2006 p 386)
Novamente o estado de duacutevida nesta citaccedilatildeo estaacute mais relacionado aos aspectos
sonoros poreacutem eacute evidente que podemos consideraacute-lo tambeacutem na relaccedilatildeo entre accedilatildeo visual e
resposta aural Isto porque a duacutevida em relaccedilatildeo a proveniecircncia do som pode se acentuar ou se
extinguir de acordo com o respaldo visual E ainda eacute possiacutevel que haja outros estados como o
engano por exemplo
O efeito McGurk eacute uma curiosidade sobre a percepccedilatildeo da fala que pode ilustrar o caso
do engano
O efeito McGurk ocorre quando o sinal visual de um fonema eacute dublado com um sinal acuacutestico de um fonema diferente Com pares audiovisuais especiacuteficos os observadores natildeo notam o conflito intermodal e frequentemente experienciam (ie ouvem) um fonema que natildeo corresponde ao verdadeiro sinal auditoacuterio (ALSIUS et al 2017 p 2 traduccedilatildeo nossa102)
Por exemplo se a imagem era a de algueacutem falando ldquobardquo mas dublado com o som desta
pessoa falando ldquogardquo os ouvintes poderiam ouvir ldquobardquo ou mesmo ldquobgardquo103 Natildeo eacute papel desta
pesquisa investigar o quanto tal efeito pode acontecer em relaccedilatildeo a outros tipos de percepccedilatildeo
sonora entretanto este exemplo aponta para a influecircncia que o estiacutemulo visual tem sobre a
escuta
A peccedila Three voices (1982) de Morton Feldman serve como um exemplo Esta peccedila
escrita para Joan La Barbara eacute concebida como um trio para uma voz - duas partes satildeo preacute-
gravadas (pela mesma inteacuterprete) e uma executada ao vivo As vozes apresentam materiais
semelhantes Quando acontece de coincidir ataques de uma voz preacute-gravada com a da
performance ao vivo haacute a fusatildeo104 Natildeo se trata apenas da fusatildeo de dois ou trecircs fluxos
sonoros mas da fusatildeo destes com o que denominei fluxo visual Em cerca de 7 minutos a
peccedila apresenta um momento de sincronia entre as trecircs vozes em que eacute possiacutevel observar tal
fusatildeo105 A Figura 26 apresenta a partitura referente a esta parte
102Original ldquoThe McGurk effect occurs when the visual signal of one phoneme is dubbed onto the acoustic signal of a different phoneme With specific audiovisual pairs the observers do not notice intermodal conflict and often experience (ie hear) a phoneme that does not match the actual auditory signalrdquo (ALSIUS et al 2017 p 2)
103Buscando por ldquoMcGurk effectrdquo o leitor encontraraacute viacutedeos demonstrando este efeito na internet104A fusatildeo natildeo acontece apenas pela sincronia mas por se tratarem do mesmo timbre de voz ou seja haacute
transferecircncia espectral105Confira a performance de Charlotte Mundy disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatch
v=eXGnS7bqJ8ogt Acesso em 17 jan 2019
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FIGURA 26 - FUSAO EM THREE VOICES (1982) DE MORTON FELDMAN (COMPASSOS 15 A 18 DA PARTE B)
Voice 1
Voice 2
Voice 3
mdashJmdash mdash ampmdash M mdashB r i
=-mdashsHivl
ei
ampL = uacute
mdash 1gtJsect j j
H u mdash laquoL
bull bull IG -------amp - W ----G
mdash bull bull------
e) a ei ei
bull
t
1
t
FONTE transcrito de Feldman (compositor) (1982)
Eacute importante notar o efeito desta fusatildeo natildeo apenas na escuta mas na experiecircncia da
performance que eacute tambeacutem vista uma impressatildeo possiacutevel eacute de que a cantora estaacute produzindo
as trecircs vozes ao vivo A relaccedilatildeo entre accedilatildeo da performer e resposta aural eacute instaacutevel nesta peccedila
Por vezes pode-se perceber a relaccedilatildeo convencional movimento corporal (boca respiraccedilatildeo
etc) agindo para produzir um som vocal No entanto quando o mesmo movimento parece
produzir trecircs sons vocais haacute uma reinterpretaccedilatildeo desta relaccedilatildeo
Truax (2005) aborda a questatildeo do visual na muacutesica eletroacuacutestica e questiona sobre a
influecircncia em questatildeo
No entanto mesmo dentro do mundo da muacutesica eletroacuacutestica estamos realmente livres da influecircncia visual Falamos de formas sonoras ou espectromorfologia (Smalley) e imagens sonoras (Wishart) O timbre eacute frequentemente descrito em termos visuais ou taacuteteis e talvez mais sutilmente muitas vezes nos referimos ao ldquoespaccedilo acuacutesticordquo mais por referecircncia ao espaccedilo visual do que a uma experiecircncia aural um tanto mais elusiva daquele espaccedilo Pode-se argumentar que tais referecircncias a formas imagens e espaccedilos natildeo precisam ser entendidas como visualmente tingidas mas na praacutetica acho que elas geralmente satildeo No entanto a neuropsicologia contemporacircnea em seu estudo do comportamento cerebral fornece evidecircncia de que todos os centros perceptivos estatildeo inter-relacionados e embora os fenocircmenos puramente auditivos possam ser localizados no coacutertex auditivo conexotildees estatildeo sempre sendo feitas a outros centros (TRUAX 2005 traduccedilatildeo nossa106)
Tendo distinguido este fluxo visual na performance mista e apontado o tipo e a
importacircncia de sua relaccedilatildeo com os fluxos sonoros interessa para esta pesquisa questionar qual
o potencial analiacutetico e composicional destes conceitos No caso da anaacutelise cabe ao analista
106Original ldquoYet even within the electroacoustic music world are we truly free of the visual influence We speak of sound shapes or spectromorphology (Smalley) and sound images (Wishart) Timbre is often described in visual or tactile terms and perhaps most subtly we often refer to acoustic space more by reference to visual space than to the somewhat more elusive aural experience of that space One could argue that such references to shapes images and spaces need not be understood as visually tinged but in practice I think they often are However contemporary neuropsychology in its study of brain behaviour provides evidence that all of the perceptive centres are inter-related and even though purely auditory phenomena can be localized to the auditory cortex connections are always being made to other centresrdquo (TRUAX 2005)
94
identificar a importacircncia deste fluxo numa experiecircncia de performance para decidir consideraacute-
lo ou natildeo Para o compositor uma opccedilatildeo eacute considerar este fluxo visual apenas como um fato
inerente agrave performance de muacutesica mista ou seja ainda que esteja consciente de tal fato natildeo o
utiliza como elemento estrutural em sua composiccedilatildeo Outra opccedilatildeo eacute pensaacute-lo como um
paracircmetro estrutural com potencial de ser trabalhado criativamente composto
Esta situaccedilatildeo de performance de relaccedilotildees variaacuteveis de accedilatildeo visual e resposta aural foi
explorada criativamente por alguns compositores A peccedila Aphasia (2009) para vocalista ou
ator (usando liacutengua de sinais) com tape de Mark Applebaum explora as possibilidades destas
relaccedilotildees107 A Figura 27 apresenta um trecho da partitura
Eacute possiacutevel perceber um paradigma de dependecircncia entre os fluxos visual e sonoro um
gesto estaacute sempre associado a um som como explica o compositor
O tape uma explosatildeo idiossincraacutetica de sons deformados e mutilados eacute composto exclusivamente de amostras vocais - todas cantadas por Isherwood e subsequentemente transformadas digitalmente Contra o pano de fundo desta narrativa de aacuteudio o cantor performa um elaborado conjunto de gestos de matildeo uma linguagem de sinais assiduamente coreografada Cada gesto eacute cuidadosamente sincronizado com o tape numa justa coordenaccedilatildeo riacutetmica (APPELBAUM traduccedilatildeo nossa108)
Podemos inferir que estes conceitos (relaccedilatildeo entre accedilatildeo visual e resposta aural fluxo
sonoro e visual) natildeo se apliquem apenas agrave performance de muacutesica mista mas tambeacutem a
107Confira a performance do proacuteprio compositor disponiacutevel em lthttpwebstanfordedu~applemkportfolio- works-aphasiahtmlgt
108Original ldquoThe tape an idiosyncratic explosion of warped and mangled sounds is made up exclusively of vocal samplesmdashall sung by Isherwood and subsequently transformed digitally Against the backdrop of this audio narrative the singer performs an elaborate set of hand gestures an assiduously choreographed sign language of sorts Each gesture is fastidiously synchronized to the tape in tight rhythmic coordinationrdquo (APPELBAUM)
95
outros gecircneros que fazem uso de som em conjunto com imagem (viacutedeo-arte performance
teatro baleacute etc) Barry Truax comenta seu trabalho de mixed media em colaboraccedilatildeo com o
artista visual e compositor Theo Goldberg
Uma vez que Theo Goldberg tinha familiaridade tanto com artes visuais quanto com muacutesica e tinha pensado muito sobre sua possiacutevel correlaccedilatildeo (Goldberg amp Schrack1986) seu conselho a mim quando comeccedilou a colaboraccedilatildeo foi tratar os doiselementos como independentes ainda que derivados de uma ideia comum Tomei isso como significando que uma correlaccedilatildeo direta era desnecessaacuteria e que cada meio deveria se desenvolver de acordo com sua proacutepria loacutegica mas serem informados por uma ideia comum que era central ao trabalho O equiliacutebrio entre liberdade para cada meio mas coerecircncia entre eles sempre pareceu funcionar em cada colaboraccedilatildeo que empreendemos (TRUAX 2005 traduccedilatildeo nossa)109
Este paradigma pode ser descrito como independecircncia com coerecircncia Um paradigma
de relaccedilatildeo estaacutevel O argumento em questatildeo eacute de que ldquocada meio possui sua proacutepria loacutegicardquo e
por isso devem se manter independentes Entretanto podemos questionar se estes meios
realmente possuem loacutegicas distintas Para cada gecircnero (viacutedeo-arte cinema performance e
outros) teriacuteamos uma resposta e natildeo eacute nosso objetivo investigaacute-las precisamente Entretanto
podemos pontuar que mais do que inerecircncias dos meios o que eacute definitivo para tal
posicionamento relativo agrave relaccedilatildeo entre sonoro e visual eacute a decisatildeo esteacutetica do criador
Aphasia de Applebaum apresenta uma dependecircncia completa o trabalho de Truax e Goldberg
independecircncia com coerecircncia Aleacutem disso podemos pensar que este paradigma na relaccedilatildeo
entre sonoro e visual pode ser variaacutevel constituindo assim um paracircmetro passiacutevel de
transformaccedilotildees durante a peccedila Eacute o caso de Strange Autumn (2003-4) de Steven Kazuo
Takazugi que eacute analisada em 42
Em seu texto Why Theater or A Series o f Uninvited Guests (2016) Takasugi
demonstra que a ideia de teatro110 perpassa a muacutesica eletroacuacutestica desde aquela feita para
fones-de-ouvidos (gecircnero a que se dedicou por deacutecadas) ateacute aquela que inclui o inteacuterprete e
seu instrumento no palco
Primeiramente haacute um teatro imaginado cranial daquelas muacutesicas feitas para serem
ouvidas em fones-de-ouvido O autor explica
109OriginaL Since Theo Goldberg was familiar with both the visual arts and music and had thought a great dealabout their possible correlation (Goldberg amp Schrack 1986) his advice to me when we started collaborating was to treat the two elements as independent yet derived from a common idea I took this to mean that direct correlation was unnecessary and that each medium should develop according to its own logic but be informed by a common idea that was central to the work The balance between freedom for each medium but coherence between them always seemed to work in each collaboration we undertook (TRUAX 2005)
110Natildeo se refere ao gecircnero artiacutestico mas ao espaccedilo de apresentaccedilotildees
96
Pois somente nas profundezas mais escuras do espaccedilo projetado e imaginado os sons recuperam uma re-encarnaccedilatildeo quase visual como objetos fiacutesicos que entatildeo executam uma danccedila impossiacutevel em um salatildeo inexplicaacutevel e cranial e assim tornam- se suficientemente provocativos para incitar a imaginaccedilatildeo a criar ao lado real uma casa de espelhos um teatro imaginado (TAKASUGI 2016 natildeo paginado traduccedilatildeo nossa111)
Num outro estaacutegio trocando os fones individuais por alto-falantes comunitaacuterios temos
o teatro fiacutesico Como os alto-falantes natildeo satildeo performers visualmente atrativos baixa-se a
intensidade da luz numa espeacutecie de ldquodesculpas pela ausecircncia do visualrdquo (TAKASUGI 2016)
os alto-falantes desaparecem e o ouvinte eacute novamente deixado agrave sua proacutepria imaginaccedilatildeo
Um passo aleacutem e acompanhando o concerto eletroacuacutestico temos um instrumento no
palco um piano por exemplo Por momentos ele pode servir de referecircncia para os sons
ouvidos
O que eacute isso O instrumento fiacutesico como representaccedilatildeo conceitual Mas se algueacutem - mesmo que por breves instantes - assuma que os sons que ouve foram extraiacutedos do instrumento verdadeiro e factual em si natildeo eacute esse o momento de intrusatildeo de outro ldquohoacutespede natildeo convidadordquo Um impostor de tipos alegando sons que natildeo produziu E como ainda natildeo haacute agente humano nesse ato imaginado o instrumento como objeto assume um ar misterioso de presenccedila esteacutetica importacircncia significado (TAKASUGI 2016 traduccedilatildeo nossa112)
Mais um passo e temos o performer sentado ao piano mas ele natildeo toca nada enquanto
isso a muacutesica eletroacuacutestica eacute executada Seria o verdadeiro ator-impostor Neste caso ldquo []
com a presenccedila de um ser humano no palco o ritual de concertos ao vivo com toda a sua
etiqueta e deferecircncia a um inteacuterprete se materializou O teatro de um tipo exterior renasce
[]rdquo (TAKASUGI 2016 traduccedilatildeo nossa113)
Ainda um passo aleacutem e temos o performer que tocaraacute o piano Entretanto esta
bifurcaccedilatildeo inerente agrave junccedilatildeo de sons ao vivo e sons preacute-gravados carrega a possibilidade de o
performer ldquonatildeo tocar embora fingir tocarrdquo causando uma espeacutecie de efeito de
111 Original ldquoFor only in the darkest depths of ones projected imagined space did sounds regain a near visual re-embodiment as physical objects that then perform an impossible dance in an inexplicable cranial hall and thereby become sufficiently provocative to prompt the imagination to create alongside the real a house of mirrors an imagined theaterrdquo (TAKASUGI 2016)
112 Original ldquoWhat is it The physical instrument as conceptual representation But then if onemdasheven for the briefest of momentsmdashassumes that the sounds one hears as elicited from the true factual instrument itself is that not the moment of intrusion of yet another uninvited guest An imposter of sorts claiming sounds that it has not produced And as there is still no human agent in this imagined act the instrument as object takes on a mysterious air of aesthetic presence importance meaningrdquo (TAKASUGI 2016)
113 Original ldquo[] with the presence of a human on stage the live concert ritual with all its etiquette and deference to a performer has rematerialized Theater of an exterior type is reborn []rdquo (TAKASUGI 2016)
97
ventriloquismo e uma confusatildeo de ldquoquem estaacute fazendo o querdquo Assim o autor registra ldquoO
teatro eacute uma orquestraccedilatildeo alternativamente uma heterofonia que se projetou explicitamente
no domiacutenio visualrdquo (TAKASUGI 2016 traduccedilatildeo nossa114)
Assim esta dissociaccedilatildeo da produccedilatildeo fiacutesica da muacutesica em relaccedilatildeo ao todo que soa se daacute
em graus variados imaginaccedilatildeo instrumento performer gesto fiacutesico Desta forma os artefatos
visuais antes presumidos da produccedilatildeo musical e que eram perifeacutericos a ela (viradas de
paacuteginas por exemplo) satildeo incluiacutedos
Consequentemente se a produccedilatildeo fiacutesica da muacutesica e seu labor foram dissociados em graus variados do todo que soa os artefatos gestuais outrora presumidos da produccedilatildeo musical - outrora estranhos ao empreendimento de fazer muacutesica - se levantam em revolta para se juntar ao jogo inflado do fato e ficccedilatildeo a interaccedilatildeo da verdade e da fraude Viradas de paacutegina olhares de deixas tempo batido com o peacute o cacircmbio de instrumentos duplicados o silenciar dos instrumentos o agradecimento do puacuteblico todos estes satildeo colocados em primeiro plano ensaiados estilizados atuados
E entatildeo o que a camada da performance ao vivo e do teatro contribui para aquele ldquopedaccedilo de fitardquo agora enterrado115 de amostras digitais se o equiliacutebrio entre as camadas cria uma confusatildeo implacaacutevel Ela ajuda a camada da ldquomuacutesica mortardquo a permanecer enterrada como uma percepccedilatildeo subconsciente mesmo que esteja soando sozinha em longas passagens Por isso permite um desvio dos olhos - os olhos internos propiciaram sua suspensatildeo da descrenccedila necessaacuteria a qualquer ficccedilatildeo - ao mesmo tempo em que os olhos fiacutesicos estatildeo bem abertos horrorizados com o que vecircem no palco Isso permite ao espectaacuteculo a sua sombra o seu efeito alienante Eacute assim que aquela presenccedila sombria como o uacuteltimo ldquoconvidado natildeo convidadordquo (agora ldquofantasmardquo) encontra acesso atraveacutes de uma porta dos fundos por assim dizer encontrada de surpresa No final haacute e natildeo haacute o playback Ele desaparece para se tornar mais uma presenccedila despercebida parte das paredes do local uma cortina ou uma porta vista mas natildeo observada
O teatro eacute um truque de maacutegica Eacute a distraccedilatildeo pela qual os mortos se levantam de maneira encoberta pungente desconhecida ou apenas vagamente sentida entre o ao vivo os vivos (TAKASUGI 2016 traduccedilatildeo nossa116)
114 Original ldquoTheater is an orchestration alternatively a heterophony which has projected itself explicitly into the visual domainrdquo (TAKASUGI 2016)
115 O autor brinca com a ideia de live e dead se os sons ao vivo satildeo considerados vivos (live) os sons preacute- gravados poderiam ser chamados de mortos (dead)
116 Original ldquoConsequently if musics physical production and its labor have been decoupled to varying degrees from the sounding whole the once-presumed gestural artifacts of musical production - previously extraneous to the enterprise of music making - rise up in revolt to join the inflated game of fact and fiction the interplay of truth and fraud Page turns cued glances time beat with the foot the exchange of doubling instruments the muting of instruments the acknowledgment of the audience all these become foregrounded rehearsed stylizedacted
And so what does the layering of live performance and theater accomplish for that now buried tape piece of digital samples if the balance among the layers creates a ruthless confusion It aids the layer of the dead music to remain buried as a subconscious perception even if it is sounding alone in long passages It therefore allows for an averting of the eyes - the inward eyes afforded their suspension of disbelief requisite of any fiction - at the same time when the actual physical eyes are wide aglare aghast by what they see on stage It allows the spectacle its shadow its alienation-effect It is how that shadowy presenceas the last uninvited guest (now ghost)finds access through a backdoor as it were met unawares In the end there is and there isnt the playback track It fades away to become yet another unnoticed presence part of the venues walls or a curtain or a doorseen but not watched
98
Diante deste texto eacute possiacutevel reter as seguintes ideias a ldquoconfusatildeo implacaacutevelrdquo se
apresenta natildeo apenas no reconhecimento da fonte sonora pela escuta mas na relaccedilatildeo entre
accedilatildeo visual e resposta aural artefatos antes perifeacutericos agrave performance como as viradas de
paacuteginas satildeo incluiacutedos como elementos relevantes da performance (justamente por causa da
relevacircncia da accedilatildeo visual) que os recorrentes sons do instrumento duplicados na parte
eletroacuacutestica possibilitam agrave confusatildeo adquirir um caraacuteter veridictoacuterio ldquodo fato e da ficccedilatildeo a
interaccedilatildeo da verdade e da frauderdquo
Para elucidar as relaccedilotildees deste uacuteltimo aspecto propomos articular a oposiccedilatildeo ser-
parecer instrumental117 Localizamos o instrumento presente no palco como central natildeo por
ser mais importante mas sim porque eacute em relaccedilatildeo ao som conhecido do instrumento cuja
performance eacute vista que podemos julgar por comparaccedilatildeo os outros Assim em relaccedilatildeo ao
som conhecido do instrumento as seguintes possibilidades podem ser esboccediladas
a) parece e eacute instrumental situaccedilatildeo comum em que percebemos a relaccedilatildeo entre accedilatildeo
visual de um performer em seu instrumento e ouvimos um resultado aural
correspondente
b) parece instrumental mas natildeo eacute situaccedilatildeo em que sons projetados pelos alto-falantes
satildeo semelhantes ou idecircnticos aos instrumentais mas natildeo tiveram sua origem no
instrumento ao vivo embora uma accedilatildeo visual possa induzir tal pensamento
c) natildeo parece nem eacute instrumental situaccedilatildeo em que sons eletroacuacutesticos satildeo distintos dos
instrumentais e haacute uma total discrepacircncia entre accedilatildeo visual e resultado aural (por
exemplo na mencionada Aphasia os sons nunca satildeo os da matildeo do performer)
d) eacute mas natildeo parece instrumental situaccedilatildeo que utiliza sons instrumentais incomuns
(algumas teacutecnicas estendidas por exemplo)
Entretanto como mencionado o ouvinte-espectador pode estar num estado de duacutevida
em que soacute percebe a aparecircncia e natildeo pode dizer ou natildeo tem interesse em dizer o que eacute e o
que natildeo eacute Aleacutem disso podemos lembrar do argumento de Emmerson (2013) o que ouvimos
eacute o efeito e a relaccedilatildeo causal eacute secundaacuteria natildeo eacute essencial para apreciar o conteuacutedo expressivo
da muacutesica (ver p 37)
Theater is a sleight of hand It is the distraction by which the dead rise covertly poignantly unbeknown or only vaguely sensed among the live the livingrdquo (TAKASUGI 2016)
117 Trata-se de uma transposiccedilatildeo da categoria da veridicccedilatildeo da semioacutetica greimasiana (GREIMAS COURTEacuteS 2012 p 532) ldquoA categoria da veridicccedilatildeo apresenta-se assim como o quadro em cujo interior se exerce a atividade cognitiva de natureza epistecircmica que com o auxiacutelio de diferentes programas modais visa a atingir uma posiccedilatildeo veridictoacuteria suscetiacutevel de ser sancionada por um juiacutezo epistecircmico definitivordquo (GREIMAS COURTEacuteS 2012 p 533)
Esta postura de Emmerson parece se aplicar mais facilmente a algumas peccedilas do que a
outras O caso de Steven Takasugi eacute um exemplo de exploraccedilatildeo criativa da relaccedilatildeo causal ou
seja ela chama nossa atenccedilatildeo para esta relaccedilatildeo e ldquojogardquo com ela tornando-a importante e natildeo
secundaacuteria Em Strange Autumn (2003-4)118 para recitantevocalista percussionista e
playback eletrocircnico o compositor explora a dissociaccedilatildeo e o teatro mencionados Pode-se
perceber uma relaccedilatildeo instaacutevel entre accedilatildeo fiacutesica-visual e resposta aural e que agraves vezes causam o
efeito ventriacuteloquo Por vezes o fluxo sonoro corresponde ao que vemos o inteacuterprete fazer
mas por vezes ele finge executar o que foi preacute-gravado Por vezes a palavra que finge dizer eacute
a mesma que ouvimos preacute-gravada por vezes eacute outra Assim o fluxo visual e os fluxos
sonoros convergem e divergem dinamicamente A relaccedilatildeo entre accedilatildeo fiacutesica e visual e sua
resposta aural eacute usada assim como um paracircmetro composicional explorado dentro deste
teatro
Ainda eacute preciso considerar que a exploraccedilatildeo de tais possibilidades se daacute normalmente
no encontro com outras aacutereas artiacutesticas como a performance a danccedila o teatro e o cinema Tal
interdisciplinaridade natildeo estaacute no escopo deste trabalho mas o leitor interessado acharaacute
subsiacutedios teoacutericos e praacuteticos nestas praacuteticas e em outras jaacute mescladas como por exemplo o
teatro musical
Este sub-capiacutetulo trata da emancipaccedilatildeo do aspecto visual Ele sempre existe ldquocoladordquo
ao som percute-se (por exemplo) para ouvir determinado som A imagem de algueacutem
percutindo e o som resultante estatildeo sempre estreitamente relacionados O que acontece na
muacutesica mista eacute um descolamento destes dois aspectos (visualidade e sonoridade) que eacute
inerente a ela Toda a muacutesica mista apresenta em maior ou menor grau este descolamento Isto
permite que se considere este aspecto visual um elemento da textura um fluxo visual
36 TEXTURA NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
Na muacutesica instrumental especialmente do periacuteodo da praacutetica comum como
apresentado em 31 textura se refere aos componentes que soam compreende um aspecto
quantitativo (quantos componentes soam em concorrecircncia) e um qualitativo (interaccedilotildees inter-
relaccedilotildees e outros fatores de seus componentes) (BERRY 1987 184) No verbete textura do
118 Confira a performance de Mark Knoop Serge Vuille e Newton Armstrong disponiacutevel em lthttpsyoutube1y_kunv2kUogt Acesso em 17 jan 2019
99
100
EARS Rob Weale (2005) explica a noccedilatildeo na muacutesica instrumental e na muacutesica eletroacuacutestica
No seu sentido mais geral o termo eacute frequentemente usado de um modo altamente inconsistente Eacute de muitas maneiras usado para descrever recursos instrumentais e vocais utilizados sinocircnimos de timbre e sonoridade densidade vertical e construccedilatildeo de vozes e partes espaccedilamento de intervalos dentro de acordes e a natureza monofocircnica homofocircnica heterofocircnica polifocircnica e construccedilotildees musicais contrapontiacutesticas
Na muacutesica eletroacuacutestica eacute um termo altamente uacutetil na descriccedilatildeo do caraacuteter de sons e vaacuterios niacuteveis estruturais de sequecircncias de sons em termos de seu comportamento geral e detalhes e padrotildees internos119
Podemos questionar tal inconsistecircncia apontada por Weale na utilizaccedilatildeo do termo ldquono
seu sentido mais geralrdquo O fato de o termo abarcar coisas distintas e variadas natildeo
necessariamente signifique uma inconsistecircncia no seu uso De fato textura envolve todos os
aspectos apontados entretanto isso natildeo significa que seu uso eacute inconsistente e sim que
textura eacute uma questatildeo complexa Isto eacute estamos tratando de complexidades simultaneidades
e ambiguidades Eacute preciso um esforccedilo teoacuterico para tranccedilar esta textura com tantos aspectos e
ainda outros se somarmos os eletroacuacutesticos
A fim de lidar com este espaccedilo teoacuterico no acircmbito deste trabalho articulamos as
categorias de macro e microtextura (ver 31) A concepccedilatildeo de textura na muacutesica
eletroacuacutestica apresentada por Weale assemelha-se ao que denominamos microtextura -
iniciativas texturais a partir do pontilhismo de Webern ateacute as massas de Ligeti e Penderecki
(ver 314)
Em nosso levantamento bibliograacutefico natildeo encontramos menccedilatildeo quando tratando da
muacutesica eletroacuacutestica ao que chamamos macrotextura Entretanto quando nesta pesquisa
nos deparamos com a questatildeo da interaccedilatildeo na muacutesica mista (considerando apenas as questotildees
sonoro-morfoloacutegicas) eacute exatamente com esta ideia que lidamos Berry (1987 p 189) enfatiza
que ldquomudanccedilas na textura - certamente mudanccedilas quantitativas mas tambeacutem aquelas
envolvendo qualidades da textura - estatildeo frequentemente entre o que eacute mais prontamente
perceptiacutevel e apreciaacutevel na experiecircncia da muacutesicardquo120 Entendemos que o mesmo acontece na
119 Traduccedilatildeo nossa Original ldquoIn its most general musical sense the term is frequently used in a highly inconsistent fashion It is variously used to describe vocal and instrumental resources employed synonymous with timbre and sonority vertical density and construction of voices and parts interval spacing within chords and the nature of monophonic homophonic heterophonic polyphonic and contrapuntal musical constructions In electroacoustic music texture is a highly useful term in describing the character of sounds and various structural levels of sequences of sounds in terms of their overall behaviour and internal details and patterningsrdquo (WEALE 2005)
120 Traduccedilatildeo nossa Original ldquoChanges in texture-surely quantitative changes but those involving textural qualities as well-are often among the most readily perceptible and appreciable in the experience of musicrdquo
101
muacutesica mista ou mesmo na muacutesica puramente eletroacuacutestica Tendo em vista o levantamento
feito neste capiacutetulo uma recuperaccedilatildeo desta concepccedilatildeo de textura - numa dimensatildeo macro -
parece ser importante para a teoria da muacutesica eletroacuacutestica em geral
Aleacutem disso durante a pesquisa nos deparamos com a importacircncia do aspecto visual
para a percepccedilatildeo da performance da muacutesica mista Esta importacircncia eacute tamanha que alguns
compositores consideram este aspecto mais que apenas uma inerecircncia ou um ldquoparasitardquo da
performance mas o incorporam como um elemento da textura Assim eacute possiacutevel falarmos de
um fluxo visual na textura da muacutesica mista (ver 35)
A macrotextura da muacutesica eletroacuacutestica mista seria assim constituiacuteda por seus
componentes sonoros e visuais sejam melhor descritos por vozes sonoridades camadas
fluxos ou planos121 e ainda por seus (sub)componentes gestos microtexturas linhas gratildeos
eventos etc Permanece ainda a importacircncia da quantidade dos componentes e da qualidade
de sua relaccedilatildeo Quanto agrave quantidade os mesmos recursos de Berry (1987) poderiam ser
usados
a) Os fluxos satildeo representados com uma sequecircncia horizontal de nuacutemeros que indicam a
quantidade dos componentes de cada fluxo (ver Figura 8)
b) Uma curva indica em seu eixo vertical a quantidade de fluxos ao longo do tempo (ver
uacuteltima curva da Figura 8)
Quanto agrave qualidade nosso trabalho apontou os recursos teoacutericos do comportamento
contraponto e interaccedilatildeo gestual (343) Resumidamente
a) O comportamento (SMALLEY 1997) possibilita a articulaccedilatildeo de dois pares de
oposiccedilatildeo dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo e conflito-coexistecircncia que se manifestam em
modos de relacionamento como por exemplo inatividade-atividade Os fluxos podem
apresentar relaccedilotildees de causalidade Esta abordagem descritiva foca sobretudo no
significado das relaccedilotildees122
a) Uma estrutura contrapontiacutestica (WISHART 1996) necessita um princiacutepio arquitetural
e um princiacutepio dinacircmico O primeiro constitui-se de aacutereas sonoro-morfoloacutegicas o
segundo tem um aspecto horizontal e outro de organizaccedilatildeo vertical dos gestos
presentes nos fluxos Este uacuteltimo pode ser vizualisado em dois eixos homogecircneo-
(BERRY 1987 p 189)121 Para facilitar a exposiccedilatildeo das ideias tomaremos fluxo como um termo padratildeo embora dependendo do caso
a estrutura possa ser melhor descrita por algumas das alternativas apontadas122 Haacute inclusive relaccedilatildeo com estudos da significaccedilatildeo as oposiccedilotildees baacutesicas (domiacutenio-subordinaccedilatildeo por
exemplo) estatildeo presentes na articulaccedilatildeo do niacutevel fundamental do percurso gerativo do sentido (GREIMAS 2012 p 474-475)
heterogecircneo e interativo-independente (ver Quadro 3)
a) Os modelos de interaccedilatildeo de Bachrataacute (2010) possibilitam a identificaccedilatildeo de interaccedilotildees
gestuais classificadas de acordo com concepccedilotildees diferentes de gesto
Eacute interessante notar como no decorrer do texto passamos a utilizar a palavra relaccedilatildeo
mais do que interaccedilatildeo Isto se deve ao fato de que interaccedilatildeo como apontam diversos
dicionaacuterios pressupotildee uma reciprocidade Esta accedilatildeo reciacuteproca nem sempre se estabelece
ainda que possamos falar que haja algum tipo de relaccedilatildeo Referindo-nos a vozes e textura
falamos de interaccedilatildeo inter-relaccedilatildeo e outras descriccedilotildees qualitativas tratando de sonoridades
falamos em relaccedilotildees de interdependecircncia tratando de fluxos sonoros utilizamos o conceito de
comportamento123 (SMALLEY 2008) contraponto (WISHART 1996) e interaccedilatildeo gestual
(BACHRATAacute 2010) Os dois primeiros apresentam recursos para tratar de maior ou menor
interaccedilatildeo Para Wishart por exemplo interaccedilatildeo eacute um dos modos com que os fluxos podem se
relacionar na dimensatildeo vertical
A Figura 28 condensa nossa abordagem a fim de ilustrar as possibilidades da
macrotextura na muacutesica eletroacuacutestica mista
Como um adendo cabe salientar a importacircncia das mudanccedilas de textura para a
delimitaccedilatildeo da forma Sem adentrar a discussatildeo deste termo consideremos genericamente os
aspectos formais como aqueles relativos agrave estrutura de seccedilotildees ou ao percurso por diferentes
momentos de uma peccedila Mudanccedilas texturais podem evidenciar estes diferentes momentos
Algumas implicaccedilotildees formais do estudo da textura ficaratildeo evidentes em nossas anaacutelises
(capiacutetulo 4) e nas experiecircncias composicionais (capiacutetulo 5)
102
123 Novamente os conceitos desenvolvidos por Smalley (1997) satildeo aplicaacuteveis agrave quaisquer niacuteveis estruturais O autor salienta que ldquoencontrar o niacutevel ou dimensatildeo temporal lsquocertarsquo para aplicar os atributos destes conceitos deve permanecer sendo uma decisatildeo do perceptor [perceiver]rdquo (p 114 traduccedilatildeo nossa) Em nossa abordagem aplicamos sobre a ideia de fluxo sonoro
103
FIGURA 28 - ILUSTRACcedilAtildeO DE POSSIacuteVEIS COMPONENTES DA MACROTEXTURA DA MUacuteSICA ELE-
TROACUacute STIC A MISTA
P l a n o s
1TC a m a d a s
ITF l u x o s
I IcircV o z e s
^ - J J7b T H m r rffx R lt RaacutepidoS o n o n d a d e s
ITFluxo visual
C o m p o n e n t e s
Cada uma destas categorias aleacutem de ser formadacomposta por eventos gestos gratildeos notas etc pode ser formada por microtexturas ( SljjpEacute ) exceto a voz
Uacute gt Q T T R e l a ccedil otilde e s
bull de comportamento (SMALLEY 1996 2008)bull contrapontiacutesticas (WISHART 1996)bull de interaccedilatildeo gestual (BACHRATAacute 2010)
FONTE o autor (2019)
104
4 DISCUSSAtildeO E ANAacuteLISES
Direcionados por estas reflexotildees teoacutericas analisaremos trechos de trecircs peccedilas mistas
Estas foram escolhidas visando uma representaccedilatildeo das teacutecnicas de instrumento(s) e sons
eletrocircnicos fixados em suporte instrumento(s) e eletrocircnica em tempo real (live electronics)
instrumento(s) e sistema interativo abordadas no capiacutetulo 21 Esta representatividade natildeo
tem como motivaccedilatildeo evidenciar diferenccedilas na configuraccedilatildeo e desenvolvimento de fluxos
sonoros pelo contraacuterio como apresentado em 23 pensamos que as questotildees sonoro-
morfoloacutegicas devem ser tomadas independentemente da teacutecnicatecnologia envolvida Assim
a escolha de peccedilas de diferentes teacutecnicas tem a funccedilatildeo de evidenciar que o pensamento
musical discutido pode ser aplicado em todas elas As anaacutelises tecircm como objetivos destacar a
presenccedila de fluxos distintos a maneira como se relacionam uns com os outros e a importacircncia
formal destas relaccedilotildees
Devido agrave proacutepria ldquoliquidezrdquo tanto das metaacuteforas utilizadas quanto dos proacuteprios
elementos musicais a potencialidade de ambiguidades e muacuteltiplas interpretaccedilotildees eacute expandida
Portanto natildeo se tratam de explicaccedilotildees fechadas das peccedilas mas de olhares e perspectivas que
podem ser uacuteteis para o entendimento geral da muacutesica mista tanto na atividade teoacuterica e
analiacutetica quanto composicional
41 DESINTEGRATIONS DE TRISTAN MURAIL
Desintegrations (1982-3) comissionada pelo IRCAM e primeiramente executada pelo
Ensemble InterContemporain em 1983 foi escrita para 17 instrumentos e sons sintetizados
por computador fixados em suporte Do ponto de vista da relaccedilatildeo com a tecnologia o regente
eacute o performer que assume a tarefa de sincronia com a parte eletrocircnica preacute-elaborada Murail
utiliza uma faixa de cliques que o regente deve ouvir atraveacutes de fones-de-ouvido abertos124 O
compositor salienta que a parte fixa ldquodeve estar em perfeita sincronizaccedilatildeo daiacute a necessidade
de lsquocliquesrsquo sincronizadores que o regente deve seguirrdquo125 (p 6) Os cliques satildeo usados apenas
em momentos estrateacutegicos especialmente no comeccedilo de cada seccedilatildeo Considerando a
classificaccedilatildeo de Ding (apud SCHULZ 2010 p 27-29) (ver 211) a peccedila apresenta uma
124 Os fones-de-ouvido abertos natildeo isolam os sons externos neste caso os sons instrumentais e eletrocircnicos que o regente precisa ouvir
125 Original ldquoIt should be in perfect synchronization hence the necessity of synchronisings ldquoclicksrdquo that the conductor must followrdquo (MURAIL 2004 p 6)
105
sincronizaccedilatildeo estrita a partir de meacutetrica fixa ou seja a sincronia acontece por uma escrita
riacutetmica precisa tanto dos eventos instrumentais quanto eletroacuacutesticos No que se refere agrave
relaccedilatildeo com a tecnologia na performance uma anaacutelise da ldquointeraccedilatildeordquo com os sons fixados
poderia abordar questotildees mais pontuais de sincronia (deixas presentes nos sons eletrocircnicos
por exemplo) questotildees de equiliacutebrio de intensidade entre instrumentos e eletrocircnicos entre
outras Nossa anaacutelise por outro lado se direciona agraves relaccedilotildees sonoro-morfoloacutegicas e busca
identificar na peccedila alguns aspectos jaacute abordados no capiacutetulo 3 o sintagma (GUIGUE 2011) o
princiacutepio arquitetural (WISHART 1996) a divisatildeo dos fluxos entre outros
No texto introdutoacuterio da partitura o compositor indica que todo o material usado tem
origem em anaacutelises decomposiccedilotildees e reconstruccedilotildees de espectros harmocircnicos ou inarmocircnicos
(MURAIL 2004 p 6) Estes espectros satildeo em sua maioria de sons graves do piano de
instrumentos da famiacutelia dos metais e de violoncelo Alguns dos procedimentos espectrais satildeo
explicitados
- fracionamento apenas uma regiatildeo de um espectro eacute utilizada (por exemplo os sons de sino no comeccedilo obtidos pelo fracionamento de sons de piano)- filtragem certos elementos componentes satildeo exagerados ou suprimidos- exploraccedilatildeo espectral movimento no interior de um som os elementos que o compotildeem satildeo ouvidos um apoacutes o outro o timbre se torna melodia (por exemplo a terceira seccedilatildeo sons de sinos pequenos surgem a partir de uma desintegraccedilatildeo dos timbres da clarineta e da flauta)- criaccedilatildeo de espectro inarmocircnico Aqueles que satildeo lineares satildeo feitos adicionando-se ou subtraindo-se frequecircncias (por uma analogia com a modulaccedilatildeo por anel ou de frequecircncia) os lsquonatildeo-linearesrsquo satildeo feitos pelo remodelamento [twisting] de um espectro ou pela descriccedilatildeo de um curva de frequecircncia (por exemplo a penuacuteltima seccedilatildeo - um remodelamento gradual de um som grave de trombone) (MURAIL 2004 p 6 traduccedilatildeo nossa126)
Estes procedimentos satildeo aplicados tanto na parte instrumental quanto na parte
eletrocircnica O compositor explica em poucas frases o tipo de relaccedilatildeo entre estes meios
126 Original ldquo Several types of spectrum treatment are used in this piece- fractioning one region only of a spectrum is used (eg bells sound at the beginning obtained by fractioning piano sounds)- filterings certain component elements are exaggerated or toned down- spectral exploration movement within a sound the component elements are heard one after the other the timbre becoming melody (eg 3rd section - sounds of small bells arising from the disintegration of clarinet and flute timbres)- creation of inharmonic spectra Thos that are linear are made by adding or substracting frequencies (by analogy with ring or frequency modulation) the lsquonon-linearrsquo are made by twisting a spectrum or by describing a frequency curve (eg penultimate section - the gradual twisting of a low trombone sound)rdquo (MURAIL 2004 p 6)
106
Haacute portanto uma origem comum para ambos tape e instrumentos sendo sua relaccedilatildeo uma de complementariedade Frequentemente o tape exagera o caraacuteter dos instrumentos difrata ou desintegra seu timbre ou amplifica os efeitos orquestrais127 (MURAIL 2004 p 6)
Esta origem comum e a consequente relaccedilatildeo de complementariedade apontam para
uma tendecircncia de que os fluxos se componham pela soma por uma relativa fusatildeo dos meios
instrumental e eletrocircnico De fato este eacute o paradigma mais presente na peccedila Entretanto isto
natildeo significa que natildeo se apresentem muacuteltiplos fluxos cuja interaccedilatildeo possa ser analisada
apenas que preponderantemente estes fluxos satildeo compostos por sons instrumentais e
eletrocircnicos em conjunccedilatildeo
O computador natildeo tenta entretanto qualquer simulaccedilatildeo direta dos instrumentos em questatildeo Antes eacute uma questatildeo de usar certos espectros como analogias estruturais para todo o conteuacutedo de alturas da obra (seja nos instrumentos ou na fita) e tambeacutem para gerar suas formas de grande escala Isso garante que os sons do computador e os que estatildeo na fita tenham uma unidade comum que garante que eles mantenham uma unidade orgacircnica audiacutevel um com o outro - de fato o grau com que os sons gravados e instrumentais se fundem durante o trabalho eacute incomumente consistente tendo em vista a tecnologia de seu tempo (ANDERSON 1996 traduccedilatildeo nossa128)
Murail explica que existem sete seccedilotildees estaacutegios diferentes na peccedila e que a mudanccedila
de um estaacutegio para outro acontece por uma ldquotransformaccedilatildeo-transiccedilatildeo ou pela liberaccedilatildeo
[unleashing] de um lsquoefeito thresholdrsquordquo (p 6) Cada estaacutegio passa por uma transformaccedilatildeo na
sua base harmocircnica de um espectro harmocircnico para um inarmocircnico ou vice-versa Isso cria
nas palavras do compositor ldquomovimentos de sombras e luz acompanhados por movimentos
de agitaccedilatildeo crescente ou decrescente de ordenaccedilatildeo ou desordenaccedilatildeo riacutetmicardquo 129 (MURAIL
2004 p 6)
Harmonia e timbre se distinguem muito pouco neste contexto e satildeo aspectos
fundamentais na construccedilatildeo da forma musical em Desintegrations Anthony Cornicello (2000)
127 Original ldquoThere is therefore one origin for both tape and instruments their relationship being one of complementarity Often the tape exaggerates the character of the instruments diffracts or disintegrates their timbre or amplifies the orchestral effects It should be in perfect synchronization hence the necessity of synchronizing ldquoclicksrdquo that the conductor must followrdquo (MURAIL 2004 p 6)
128 Original ldquoThe computer does not however attempt any direct simulation of the instruments concerned Rather it is a question of using certain spectra as structural analogies for the entire pitch content of the work (whether on instruments or tape) and likewise to generate its large-scale forms This ensures that the computer sounds and those on tape have a common unity which ensures that they maintain an audible organic unity the one with the other - indeed the extent to witch taped and instrumental sounds fuse and blend throughout the work is unusually consistent not least given the technology of the timerdquo (ANDERSON 1996)
129 Original ldquoThis creates movements of shade and light accompanied by movements of increasing or decreasing agitation of rhythmic ordering or disorderingrdquo (MURAIL 2004 p 6)
apresenta uma anaacutelise do desenvolvimento de acordes-timbre e sua influecircncia sobre a
estrutura da peccedila suas frases e cadecircncias tanto no acircmbito de cada seccedilatildeo quanto da peccedila como
um todo Nossa anaacutelise abordaraacute a terceira seccedilatildeo que comeccedila aos 645 e dura cerca de 320
A Figura 29 apresenta os acordes-timbre de comeccedilo e de fim desta seccedilatildeo de acordo com
Cornicello
FIGURA 29 - ACORDES-TIMBRE INICIAL E FINAL DA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN MURAIL
trade mdashbull-----------------k-
107
FONTE Extraiacutedo de Cornicello (2000 p 70)
Assim sendo fica claro o direcionamento de um espectro harmocircnico para um
inarmocircnico nesta seccedilatildeo Apenas por este aspecto jaacute eacute possiacutevel perceber a ldquotransformaccedilatildeo de
uma aacuterea tiacutembrica ou sonoro-morfoloacutegica em outrardquo (ver 343) caracterizando assim um
princiacutepio arquitetural da seccedilatildeo Este princiacutepio pode ser melhor analisado se considerarmos
tambeacutem outros aspectos das aacutereas sonoro-morfoloacutegicas da seccedilatildeo Ao menos quatro aacutereas
podem ser identificadas Tal identificaccedilatildeo eacute expressa a seguir de maneira geral tendo em vista
o aspecto praacutetico e natildeo essencialmente descritivo Satildeo elas na ordem em que surgem na peccedila
a) ataques agudos e ressonacircncias
b) ressonacircncias filtradas
c) melodia do corne inglecircs
d) atividade riacutetmica das cordas
Cada uma das aacutereas sonoro-morfoloacutegicas elencadas surge a partir da anterior Como
veremos isso se daacute pela derivaccedilatildeo ou decomposiccedilatildeo de um fluxo em outros Tal abordagem
destoa em parte da perspectiva de Wishart que em nossa leitura previa um princiacutepio
arquitetural comum a todos os fluxos tal qual as tonalidades eram comuns agraves vozes no
contraponto tradicional (WISHART 1996 p 116-117) No caso desta terceira seccedilatildeo a aacuterea
tiacutembrica ou seja o conteuacutedo harmocircnico-tiacutembrico representa um uacutenico princiacutepio arquitetural
geral entretanto dentro deste princiacutepio comum outros elementos caracterizam aacutereas sonoro-
morfoloacutegicas distintas
No primeiro momento desta seccedilatildeo Murail trabalha com a exploraccedilatildeo espectral
conforme indica em sua descriccedilatildeo dos procedimentos espectrais (p 105) desdobrando no
tempo os componentes do espectro Na nota de programa da peccedila Anderson apresenta a
seguinte descriccedilatildeo do primeiro momento da seccedilatildeo III ldquodensas nuvens de sonoridades como
de sino agudas derivadas da desintegraccedilatildeo dos espectros da flauta e da clarineta descem para
revelar sua origem instrumentalrdquo (ANDERSON 1996 traduccedilatildeo nossa130) A desintegraccedilatildeo dos
timbres da clarineta e da flauta eacute distribuiacuteda entre piano crotales glockenspiel e sons
eletrocircnicos formando gestos compostos de notas agudas curtas mas ressonantes que satildeo
ritmicamente ativas na primeira parte do gesto restando apenas sua ressonacircncia na segunda
parte A Figura 30 mostra os dois gestos iniciais desta seccedilatildeo
FIGURA 30 - COMPASSOS INICIAIS TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN MURAIL
108
FONTE Extraiacutedo de Murail (2004 p 29)
Podemos observar a sucessatildeo destes gestos como um fluxo isso se deve
principalmente agrave estabilidade do seu conteuacutedo espectral Evidentemente poderiacuteamos focar a
130 Original ldquoIII - dense clouds of high bell-like sonorities derived from the disintegration of flute and clarinet spectra descend to reveal their instrumental origin - a harmonic spectrum upon F (with the fundamental missing) evolves through flowing melodic figures on the English horn highlighting successive components of the spectra - the music drifts towards inharmonyrdquo (ANDERSON 1996)
atenccedilatildeo sobre os aspectos internos deste fluxo distinguindo uma dinacircmica interna dos seus
componentes abordando esta microtextura Entretanto nosso foco estaacute num niacutevel mais amplo
de agrupamento de acircmbito mais geral do que chamamos macrotextura
A configuraccedilatildeo bipartida destes gestos remonta agrave ideia de sintagma de Guigue (ver
321) Os ataques constituem a parte determinante do sintagma enquanto a ressonacircncia
constitui a parte determinada Ambas as partes do gesto satildeo desenvolvidas caracterizando o
que Wishart chama evoluccedilatildeo gestual Inicialmente esta evoluccedilatildeo gestual acontece por uma
expansatildeo temporal da parte determinante
A partir do quinto gesto (compassos 11 a 13 da seccedilatildeo) a parte determinada apresenta
um novo material um som eletrocircnico longo proveniente do espectro do laacute3 da flauta mas
sem a fundamental somado ao proacuteprio laacute3 na flauta sustentado que comeccedila dal niente e
termina al niente (Figura 31) A partir tambeacutem deste ponto a parte determinante do gesto
seguinte comeccedila a entrar antes do teacutermino da parte determinada do gesto anterior Estes
fatores colaboram para a percepccedilatildeo de um novo fluxo que comeccedila a se estabelecer
A parte determinada antes apenas uma consequecircncia da determinante agora engendra
um novo fluxo sonoro independente Neste quinto gesto cada parte deste sintagma que
inicialmente constituiacutea um uacutenico fluxo eacute desenvolvida de modo a se formarem dois fluxos
distintos A proacutepria ideia de sintagma natildeo se sustenta completamente deste momento em
diante pois natildeo haacute mais uma clara relaccedilatildeo de consequecircncia Natildeo satildeo mais os ataques que
determinam as ressonacircncias mas estas tomam um rumo proacuteprio independente daqueles
Este ponto de mudanccedila de surgimento de um segundo fluxo pode ser entendido pela
metaacutefora do gatilho quando um gesto de uma parte parece iniciar um evento ou uma mudanccedila
em uma outra parte de maneira minimamente clara O gesto de ataques agudos parece iniciar
causar o gesto de ressonacircncia filtrada do novo fluxo A ideia de reaccedilatildeo do sintagma de gatilho
e de causalidade respectivamente de Guigue (2011) Wishart (1996) e Smalley (2008 1997)
se relacionam estreitamente Entretanto devemos diferenciar a preocupaccedilatildeo descritiva de
cada ideia O sintagma natildeo se refere apenas a relaccedilotildees entre fluxos distintos como eacute o caso do
gatilho de Wishart Tampouco a causalidade tem apenas este foco Esta ldquoocupa-se mais com
um som agindo sobre outro seja causando a ocorrecircncia de um segundo evento seja
instigando a mudanccedila em um som que jaacute se desenrolavardquo (SMALLEY 2008 p 11) As trecircs
no entanto coincidem na explicaccedilatildeo deste ponto de Desintegrations
109
110
FIGURA 31 - COMPASSOS 11 A 13 DA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISshy
TAN MURAIL
FONTE Extraiacutedo de Murail (2004 p 30)
De modo semelhante a outra aacuterea sonoro-morfoloacutegica (melodia do corne inglecircs) surge
do interior deste fluxo de ressonacircncias filtradas A Figura 32 apresenta a entrada da melodia
do corne inglecircs
111
FIGURA 32 - FLUXO DO CORNE INGLEcircS NA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS ( 1982-3) DE
TRISTAN MURAIL
FONTE Extraiacutedo de Murail (2004 p 34 grifo nosso)
A aacuterea morfoloacutegica nomeada anteriormente atividade riacutetmica das cordas surge como
uma resposta agrave melodia do corne inglecircs no compasso 47 desta seccedilatildeo Neste ponto a melodia
do corne inglecircs estaacute distribuiacuteda entre sons eletrocircnicos corne inglecircs e fagote A atividade
riacutetmica das cordas em resposta daacute origem a um novo fluxo o uacutenico cujos sons eletrocircnicos
natildeo participam conjuntamente - ao menos isso natildeo eacute explicitado na partitura nem evidente na
escuta da gravaccedilatildeo131 Antes deste ponto as cordas compunham tambeacutem o fluxo de
ressonacircncias filtradas Assim embora apresentem ali uma resposta agrave melodia do corne inglecircs
tecircm sua origem no fluxo no qual se inseriam anteriormente
O desenvolvimento dos fluxos nesta seccedilatildeo eacute ilustrado abaixo na Figura 33 A linha
preta representa a continuidade dos fluxos mas desconsidera sua importante transformaccedilatildeo
Esta natildeo soacute eacute importante porque representa um processo um desenvolvimento dos materiais
mas porque a mudanccedila dos materiais que compotildeem os fluxos representa tambeacutem a mudanccedila
131 A anaacutelise se baseou na gravaccedilatildeo de Ensemble l rsquoItineacuteraire sob a regecircncia de Yves Prin
112
da relaccedilatildeo entre eles
FIGURA 33 - FLUXOS SONOROS NA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN
MURAIL (645 a 1006)
FONTE o autor (2019)
No momento 1 podemos perceber um domiacutenio dos ataques agudos sobre as
ressonacircncias Conforme estas desenvolvem-se num novo fluxo (ressonacircncias filtradas) esta
relaccedilatildeo perde sua forccedila Isto acontece devido a uma diminuiccedilatildeo da densidade riacutetmica132 do
primeiro e uma acumulaccedilatildeo dinacircmica somada ao aumento da densidade harmocircnica do
segundo A diminuiccedilatildeo da densidade riacutetmica eacute evidente e progressiva num primeiro momento
mas deve-se ressalvar uma retomada da alta densidade nos compassos 31 a 33 desta seccedilatildeo
antes da entrada do corne inglecircs Trata-se de um desvio da ldquolinearidaderdquo com que diminuiacutea o
nuacutemero de ataques agudos133 Assim haacute uma transformaccedilatildeo na relaccedilatildeo domiacuteniosubordinaccedilatildeo
destes dois primeiros fluxos em sentido contraacuterio Ataques agudos vatildeo do domiacutenio para um
natildeo-domiacutenio e as ressonacircncias da subordinaccedilatildeo para uma natildeo-subordinaccedilatildeo Sob a metaacutefora
dos planos podemos afirmar que haacute um deslocamento do primeiro plano para um plano de
fundo dos ataques agudos134 Por outro lado as ressonacircncias se deslocam do plano de fundo
para um primeiro plano ao ponto de darem origem agrave melodia do corne inglecircs
A dualidade gestotextura como entendida por Smalley (ver 332) tambeacutem se
apresenta na relaccedilatildeo destes fluxos O primeiro eacute composto por gestos enquanto o segundo
tem um caraacuteter textural Esta constataccedilatildeo tem relaccedilatildeo com o eixo conflitocoexistecircncia que
demarca as relaccedilotildees temporais do campo comportamento Os dois fluxos competem
temporalmente (conflito) num primeiro momento haacute uma intercalaccedilatildeo entre ataques agudos e
132 Nuacutemero de ataques por tempo133 Este evento dos compassos 31 a 33 marca tambeacutem a entrada das cordas com maior presenccedila nesta seccedilatildeo134 Este deslocamento soacute iraacute se concretizar efetivamente apoacutes os mencionados compassos 31 a 33 e a entrada do
corne inglecircs mas a tendecircncia de ir para o plano de fundo se mostra jaacute neste primeiro momento
113
ressonacircncias filtradas A medida em que se desenvolvem passam a confluir em coexistecircncia
Isto aponta tambeacutem para uma coordenaccedilatildeo de movimento que passa de um estado mais justo
para outro mais frouxo Desta perspectiva analiacutetica (SMALLEY 1997) estas relaccedilotildees
concernem agrave atividade-inatividade dos fluxos (modo de relacionamento) E da mesma forma
haacute um movimento contraacuterio em relaccedilatildeo agraves mudanccedilas os ataques agudos mudam da atividade
em direccedilatildeo agrave inatividade (vide a diminuiccedilatildeo da densidade riacutetmica) enquanto que as
ressonacircncias filtradas partem da inatividade em direccedilatildeo agrave atividade Este uacuteltimo
direcionamento tem seu aacutepice no desmembramento seguinte do interior das ressonacircncias
filtradas surge a melodia do corne inglecircs mais ativa e gestual em comparaccedilatildeo agrave textura
anterior das ressonacircncias
A tabela de Wishart apresentada em 343 oferece um meio graacutefico para pensar estas
mudanccedilas no tipo de relaccedilatildeo entre os fluxos A figura 34 apresenta a relaccedilatildeo entre os fluxos
ataques agudos e ressonacircncias filtradas no primeiro momento da seccedilatildeo em questatildeo
FIGURA 34 - RELACcedilAtildeO ENTRE DOIS FLUXOS EM DESINTEGRATIONS (1982-3) SOBRE O QUADRO DE WISHART (1996)
independente
Icirc
interativo
similar dissimilar
(homogecircneo) (heterogecircneo)
FONTE o autor (2019)
Os dois fluxos satildeo similares inicialmente (ponto a na Figura 34) pois um eacute a
ressonacircncia do outro possuem as mesmas frequecircncias Mas porque natildeo estatildeo sincronizados
natildeo eacute completa a homogeneidade Os fluxos se diferenciam espectralmente conforme se
desenvolvem (ponto b) mas ainda guardam a relaccedilatildeo de interaccedilatildeo (gatilho) posteriormente
perdem esta relaccedilatildeo e se mantecircm independentes e heterogecircneos (c)
As notas sobre a peccedila no siacutetio do compositor apresentam a seguinte descriccedilatildeo do
Momento 2
independecircncia c 1independecircncia
semi-paralelismo interaccedilatildeo
paralelismoa
b gatilho
114
- um espectro harmocircnico sobre faacute (com a fundamental ausente) evolui atraveacutes de figuras meloacutedicas fluiacutedas no corne inglecircs destacando componentes sucessivos do espectro (ANDERSON 1996 traduccedilatildeo nossa135)
Neste momento os dois fluxos anteriores embora ainda presentes se deslocam para
um plano de fundo enquanto a melodia do corne inglecircs assume o primeiro plano Este fluxo
natildeo eacute composto apenas pelos sons de corne inglecircs mas por ele somado aos sons eletrocircnicos e
agraves vezes ao fagote Ele domina sobre os outros dois Os fluxos decorrem independentemente
todos no processo de transformaccedilatildeo para um espectro inarmocircnico No momento 3 conforme a
descriccedilatildeo no site do compositor se daacute a conclusatildeo deste processo ldquoa muacutesica desliza para a
inarmoniardquo (traduccedilatildeo nossa136)
As observaccedilotildees analiacuteticas apontadas podem ao menos indicar a importacircncia do
desenvolvimento dos fluxos para a percepccedilatildeo de aspectos formais desta seccedilatildeo Uma anaacutelise
que fatiasse a seccedilatildeo em trechos natildeo daria conta das nuances de derivaccedilatildeo de um trecho a partir
de outro o que foi evidenciado por nossa anaacutelise Uma anaacutelise que observasse a
transformaccedilatildeo harmocircnico-tiacutembrica da seccedilatildeo veria possivelmente uma uacutenica estrutura
passando de um espectro harmocircnico para um inarmocircnico sem considerar o desmembramento
apontado Natildeo se trata de desmerecer estas importantes perspectivas antes de sublinhar a
singularidade da perspectiva aqui apresentada
42 STRANGE AUTUMN DE STEVEN KAZUO TAKASUGI
Strange Autumn (2003-4) eacute uma peccedila com forte caraacuteter de teatro musical para
recitante-vocalista percussionista amplificaccedilatildeo eletrocircnica e playback gravado Note-se nesta
descriccedilatildeo de instrumentaccedilatildeo copiada da partitura que a amplificaccedilatildeo eletrocircnica eacute encarada
como um elemento essencial em peacute de igualdade com os performers Isso se deve
principalmente agrave exploraccedilatildeo de sons de baixa projeccedilatildeo como microssons vocais (recitante-
vocalista) e sons de folhas de caderno (percussionista) Por consequecircncia o papel do
engenheiro de som a quem tambeacutem orientaccedilotildees satildeo dirigidas na partitura eacute de fundamental
importacircncia
A sincronizaccedilatildeo entre sons eletrocircnicos e instrumentais se daacute atraveacutes de um click track
que ambos os performers devem ouvir em seus fones-de-ouvido Esta faixa possui cliques a
135 Original ldquo- a harmonic spectrum upon F (with the fundamental missing) evolves through flowing melodic figures on the English horn highlighting successive components of the spectrardquo (ANDERSON 1996)
136 Original ldquothe music drifts towards inharmonyrdquo (ANDERSON 1996)
115
cada segundo bem como uma indicaccedilatildeo verbal a cada cinco segundos Eacute disponibilizada uma
versatildeo alternativa em que apenas a indicaccedilatildeo verbal estaacute presente (sem cliques)
No texto em que trata de uma performance da peccedila Takasugi menciona um sistema de
live electronics
Os live electronics foram projetados por Michael Acker da SWR Experimentalstudio em Freiburg Consistia em geral em um setup de alto-falantes de oito canais controlado pelo Matrix-Mixer do Experimentalstudio regulando a espacializaccedilatildeo o processamento ao vivo e o playback preacute-gravado incluindo espacializaccedilatildeo com o Halaphon o processador de efeitos Eventide Orville como um fragmentador fonecircmico patches de MaxMSP para siacutentese cruzada e patches jitter bem como uma unidade de reverberaccedilatildeo Vale a pena notar que a configuraccedilatildeo dos alto-falantes de oito canais tem duas sub-estruturas distintas a estrutura espacial completa de oito canais com oito faixas distintas e um a estrutura esteacutereo de dois canais que utiliza tanto os dois quanto os quatro alto-falantes frontais mais proacuteximos dos performers no palco com apenas duas faixas (esquerda e direita) distintas Estes dois espaccedilos satildeo designados como ldquotempestaderdquo (8-faixas) e ldquopalcordquo (2-faixas) respectivamente (TAKASUGI 2006 p 4 traduccedilatildeo nossa137)
Esta configuraccedilatildeo se refere a uma performance especiacutefica em que se apresenta um
modelo misto das opccedilotildees apresentadas em 21 A partitura e o material a que tivemos acesso
diretamente com o compositor entretanto apresenta uma versatildeo em que os sons eletrocircnicos
satildeo preacute-gravados em uma faixa em esteacutereo mas que deve ser projetada em sistema octafocircnico
ou no miacutenimo quadrafocircnico (canal da esquerda para alto-falantes agrave esquerda e canal da direita
para alto-falantes agrave direita)
O compositor explora os mundos do preacute-gravado e do ao vivo de maneira anaacuteloga a
um livro de poemas em ediccedilatildeo biliacutengue Em seu texto ele questiona se ldquouma traduccedilatildeo pode
ser mais lsquooriginalrsquo que a original isto eacute se pode possuir alguma qualidade que aparentemente
precede o originalrdquo (TAKASUGI 2006 p 5) Com tal metaacutefora Takasugi explora o preacute-
gravado e o ao vivo
Uma vez que tanto a recitaccedilatildeo ao vivo quanto a preacute-gravada satildeo transmitidas pelos mesmos alto-falantes haacute uma ambiguumlidade de que tudo ao vivo poderia ser preacute- gravado e tudo preacute-gravado poderia ser ao vivo Isso permite uma incompatibilidade
137 Original ldquoThe live electronics were designed by Michael Acker of SWRrsquos Experimentalstudio in Freiburg This consisted generally of an eight-channel speaker setup controlled by the Experimentalstudiorsquos MatrixshyMixer regulating spatialization live processing and pre-recorded playback including halaphon spatialization the Eventide Orville Effects Processor as a phonemic fragmenter MaxMSP patches for cross-synthesis and jitter patches as well as a reverberation unit It is worth noting that the eight-channel speaker setup has two distinct sub-structures the full eight-channel spatial structure with eight distinct tracks and a two-channel stereo structure that utilizes either the front two or front four speakers closest to the performers on stage with only two (left and right) distinct tracks These two spaces are designated as lsquostormrsquo (8-track) and lsquostagersquo (2-track) respectivelyrdquo (TAKASUGI 2006 p 4)
116
potencialmente catastroacutefica entre a localizaccedilatildeo do agente sinal ao vivo (aqui os laacutebios do recitante) e a atual localizaccedilatildeo percebida do sinal no espaccedilo (TAKASUGI 2006 p 5 traduccedilatildeo nossa138)
Esta ambiguidade que se estabelece faz com que natildeo haja uma divisatildeo expliacutecita entre o
mundo ao vivo e o preacute-gravado Alguns sons que foram preacute-gravados parecem vir do recitante
devido a uma sincronizaccedilatildeo labial Por outro lado o recitante deve executar sons vocais com
cortes exagerados proacuteprios dos sons preacute-gravados Assim os mundos preacute-gravado e ao vivo
espelham um ao outro assegurando nas palavras do compositor ldquouma confusatildeo consistenterdquo
(TAKASUGI 2006 p 5) Esta confusatildeo se impotildee agrave percepccedilatildeo de fluxos sonoros distintos
Natildeo eacute possiacutevel traccedilar uma linha clara que separe sons do palco (projetados tambeacutem pelos alto-
falantes) e sons preacute-gravados em fluxos separados pelo contraacuterio eacute em conjunto que eles
formam os fluxos Estes se colocam em relaccedilatildeo ao aspecto visual da performance E esta
relaccedilatildeo eacute o objeto desta anaacutelise Portanto natildeo nos interessa analisar o surgimento dos fluxos e
suas derivaccedilotildees - anaacutelise que provavelmente se mostraria frutiacutefera Nossa intenccedilatildeo eacute apontar
relaccedilotildees instaacuteveis que o fluxo visual estabelece com os fluxos sonoros
Neste contexto percebemos a possibilidade do uso das metaacuteforas de plano e de fluxo
como adequadas Percebemos planos distintos em relaccedilatildeo agrave distacircncia com que se apresentam
os sons mais perto ou mais longe Entretanto percebemos fluxos distintos quando somando
a este aspecto outras caracteriacutesticas sonoro-morfoloacutegicas satildeo consideradas especialmente seu
aspecto referencial sons vocais sons de objetos sons de mosca voando etc Por motivos
praacuteticos mais do que descritivos nomearemos os fluxos de acordo com estas referecircncias
Recorde o leitor que a percepccedilatildeo da fonte sonora que pode corresponder mais ou menos agrave
verdadeira fonte eacute um aspecto importante para a percepccedilatildeo de um fluxo auditivo
A peccedila baseia-se em poemas biliacutengues de Weiland Hoban e se divide em duas partes
Parte 1a Leaf-wort Parte 1b Blatt-word Parte 2 Interiors Der Wuumlrfel Die Zweibel (The
Etching) Nossa anaacutelise abordaraacute a parte 1b que vai dos 240 aos 450139 A Figura 35
apresenta um excerto da partitura do iniacutecio desta seccedilatildeo
138 Original ldquoSince both live and pre-recorded recitation transmit from the same speakers there is an ambiguity that everything live could be pre-recorded and everything pre-recorded could be live This allows for a potentially catastrophic mismatch between the location of the live signal agent (here the lips of the reciter) and the actual perceived location of the signal in the spacerdquo (TAKASUGI 2006 p 5)
139 O trecho compreende de cerca de 3rsquo30rdquo a cerca 5rsquo30rdquo do viacutedeo da performance de Mark Knoop Serge Vuille e Newton Armstrong utilizado para anaacutelise Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatch v= 1y_kunv2kUoampt= 132sgt
FIGURA 35 - INiCIO DA PARTE 1B DE STRANGE AUTUMN DE STEVEN KAZUO TAKASUGI
PART lb BLATT-WORDBlatt-word
2 - 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49Tape-Storm
Tape-Stage
Reciter
117
Perc
2 - 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59Tape-Storm
Tape-Stage
Reciter
Perc
FONTE TAKASUGI (2016)
Esta peccedila apresenta diversos modos de execuccedilatildeo para ambos os performers O texto
sobre linha tracejada para o recitante deve ser lido sem respiraccedilatildeo nenhum som vocal deve
ser ouvido exceto quando destacados com fundo cinza Neste caso as palavras satildeo faladas
normalmente O compositor tambeacutem utiliza a notaccedilatildeo (z) para identificar partes em que
nenhum som eacute emitido apenas eacute feita uma sincronizaccedilatildeo labial Da parte do performer este
modo eacute apenas visual
O princiacutepio arquitetural (WISHART 1996) desta seccedilatildeo apresenta duas aacutereas sonoro-
morfoloacutegicas cada uma delas prepondera em uma das duas partes em que se divide a seccedilatildeo A
primeira apresenta sons mais relacionados ao recitante (fragmentos da leitura entre outros)
enquanto que a segunda apresenta sons relacionados ao percussionista (sons de folhas) Haacute
uma transiccedilatildeo dos 347 aos 413 os movimentos do percussionista intensificam mas
continua a leitura do texto pelo recitante Apoacutes este periacuteodo o recitante congela ldquoFREEZErdquo
expressa a partitura isto eacute nenhuma atividade
Em relaccedilatildeo aos fluxos sonoros se apresenta o fluxo visual os performers no palco Na
(ldquoFLIES ldquo)word-leaf auf der Seite auf which das Wort-Blatt sich dreht indem ich die Seiten durchblaumltte-word-leaf auf der Seite auf which das Wort-Blatt sich dr ht indem ich die Seiten durchblaumltte-
(grasp top page only)
L H 1RH euromdash
Hold turned ( 76 1 77)Hoidcorner
LOu 11 1
Defaultresting
lsquoFLIESrdquoBlatt-word the leaf treeless on welchem the
(gray higlighted words are normally voiced and take precedence over other instructions)
Blatt-word the leaf treelessf articulate recitation lsquolsquowithout breathing rsquo
on welchem theDo not pop b s ps
andfrsquos
Computation BookldquoAs i f still conducting a Japanese tea ceremony rsquo RH
) 7 6 I 7 7(grasp top page only)
118
primeira parte da seccedilatildeo foram encontrados seis tipos de correspondecircncia entre o fluxo visual
do recitante140 e os fluxos sonoros
A accedilatildeo visual do recitante parece produzir uma reaccedilatildeo aural do(s) fluxo(s)
a) sons vocaisleitura 1 (perto)
b) sons de objetos
c) leitura 2 (longe)
d) sons vocaisleitura (perto) e sons de objetos
e) sons vocaisleitura 1 (perto) e leitura 2 (longe)
f) ou pode se apresentar independente de qualquer fluxo sonoro
O Quadro 4 apresenta uma ilustraccedilatildeo dos tipos de relaccedilatildeo entre fluxo visual e sonoro
no trecho analisado Esta figura natildeo representa uma linha do tempo mas dois momentos nos
140 Neste trecho a accedilatildeo visual do percussionista natildeo estaacute diretamente relacionada a nenhum fluxo sonoro
119
quais as relaccedilotildees expressas na tabela se apresentam em ordem diversa Por exemplo a relaccedilatildeo
c) acontece diversas vezes na primeira parte
A voz ao vivo do recitante se confunde com uma leitura preacute-gravada e pode ser
categorizada no fluxo leitura 2 (longe) Este fluxo eacute composto por ambos sons preacute-gravados e
sons ao vivo Identificar as relaccedilotildees destes dois componentes no interior do fluxo natildeo eacute tatildeo
importante para nossa anaacutelise Para nosso objetivo eacute suficiente designaacute-lo como um fluxo
sonoro e apontar a relaccedilatildeo ocasional com o visual
Note-se que a relaccedilatildeo entre os fluxos e sua presenccedilaausecircncia tecircm o potencial de
articular a forma da peccedila Neste trecho (parte 1b) podemos distinguir dois momentos O
primeiro apresenta uma relaccedilatildeo mais variaacutevel do visual do recitante com os diversos fluxos
sonoros No segundo haacute uma preponderacircncia da relaccedilatildeo entre o visual do recitante e a leitura
2 (longe) A atividade dos sons de folhas ausente no primeiro momento eacute outro aspecto que
colabora para tal subdivisatildeo Aleacutem disso no primeiro momento o percussionista apresenta
uma accedilatildeo visual que natildeo corresponde diretamente a som algum no segundo sua accedilatildeo visual
se relaciona por uma interaccedilatildeo inexata com estes sons de folha
Este efeito em que ora a accedilatildeo visual corresponde a um evento sonoro natural ou
convencionalmente ligado a ela ora a outro evento ora a nenhum evento o compositor
chama de duplicaccedilatildeo estranha (strange doubling) Efeito-ventriacuteloquo (ventriloque effect) e
sincronizaccedilatildeo labial (lip-sync) estatildeo associados a esta duplicaccedilatildeo
Ainda inerente agrave proacutepria premissa desse meio musical bifurcado [ao vivo e preacute- gravado] no entanto estaacute a ideia central de natildeo tocar embora fingindo tocar Consequentemente o deslocamento espacial do som virtual em relaccedilatildeo ao agente ao vivo propotildee um tipo de efeito de ventriloquismo E se esse conceito de sincronizaccedilatildeo labial eacute levado um passo adiante um gesto ao vivo que ambos fingem tocar e ainda tenha se tornado destacado da sua funccedilatildeo translativa convida o proacuteximo de nossos lsquoconvidados natildeo convidadosrsquo Este eacute o estranho momento de erro de traduccedilatildeo entre a sincronizaccedilatildeo labial ao vivo ou falsa duplicaccedilatildeo e sua reproduccedilatildeo preacute-gravada Entre uma desassociaccedilatildeo quase imperceptiacutevel e uma separaccedilatildeo grotescamente exagerada um vasto jogo de confusatildeo trazido pela ambiguidade de ldquoquem estaacute fazendo o quecircrdquo eacute criado Essa incerteza eacute ainda mais exacerbada por causa dos alto-falantes ocultos atraacutes do puacuteblico criando ainda outra camada de erro de percepccedilatildeo uma ainda mais estranha duplicaccedilatildeo embora intermitente e assim propositalmente imprevisiacutevel E no entanto a duplicaccedilatildeo remete agraves suas raiacutezes no acuacutemulo de interpretaccedilotildees e representaccedilotildees verticais O teatro eacute uma orquestraccedilatildeo alternativamente uma heterofonia que se projetou explicitamente no domiacutenio visual141 (TAKASUGI 2006 natildeo paginado)
141 Original ldquoStill inherent in the very premise of this bifurcated musical medium however is the core idea of not playing though pretending to play Consequently the spatial displacement of virtual sound and live agent proposes a ventriloquism-effect of sorts And if this concept of lip- syncing is taken one step further a live gesture that both pretends to play and yet has also become detached from its translative function solicits
120
O principal objetivo desta anaacutelise de Strange Autumn eacute argumentar sobre a
importacircncia do aspecto visual na muacutesica mista Natildeo como um aspecto teatral puramente - o
que nos levaria agrave outra pesquisa - mas como um aspecto inerente ao tocar executar haacute uma
relaccedilatildeo causal entre accedilatildeo visual e reaccedilatildeo aural que pode ser explorada criativamente a ponto
de pensarmos o fluxo visual mais ou menos independente do sonoro como um componente
da textura
43 M USICFOR SNARE DRUMAND COMPUTER DE CORT LIPPE
Entre as peccedilas elencadas no siacutetio do compositor Cort Lippe encontram-se um conjunto
para instrumento e computador e algumas peccedilas para instrumento e sons fixados em suporte
(tape) aleacutem de outras puramente instrumentais ou eletroacuacutesticas Para a maioria das peccedilas o
compositor disponibiliza notas de programa uma pequena explicaccedilatildeo sobre questotildees teacutecnicas
e esteacuteticas O conteuacutedo destas notas eacute interessante para a discussatildeo levantada em 23
especialmente no que concerne agrave diferenccedila com que expotildee questotildees de interaccedilatildeo entre os
meios instrumental e eletroacuacutestico Por isso antes de abordarmos Music fo r Snare Drum and
Computer (2007) apresentaremos uma reflexatildeo em torno das notas de programa de Cort
Lippe atentando para a diferenccedila entre duas categorias de peccedilas aquelas para instrumento e
computador e aquelas para instrumento e sons preacute-gravados
431 Instrumento(s) e computador e instrumento(s) e tape no trabalho de Cort Lippe
Para todas as peccedilas para instrumento e computador Lippe oferece uma explicaccedilatildeo
comum ainda que o texto seja diferente para cada uma As notas sobre a peccedila para caixa clara
e computador traz a seguinte observaccedilatildeo ldquoA relaccedilatildeo entre instrumento e computador se move
the next of our uninvited guest This is the strange moment of mistranslation between live lip-syncing or false doubling and its pre- recorded playback Between a just-noticeable decoupling and a grotesquely exaggerated departure a vast play of confusion brought on by the ambiguity of who is doing what is created This uncertainty is further exacerbated by hidden loudspeakers from the rear of the audience creating yet another layer of perceptual misdirection a further strange doubling though intermittent and thereby purposefully unpredictable And yet doubling refers back to its roots in the accumulation of vertical interpretations and representations Theater is an orchestration alternatively a heterophony which has projected itself explicitly into the visual domainrdquo (TAKASUGI 2006)
121
num continuum entre os polos de um solo extendido e um duordquo142 (LIPPE 2007) Nas notas
sobre a Music fo r Tenor Steel Pan and Computer (2011) haacute algumas outras informaccedilotildees
Musicalmente a parte do computador agraves vezes natildeo eacute separada da parte do pan e serve para amplificar o pan em muacuteltiplas dimensotildees e direccedilotildees enquanto que no outro extremo do continuum a parte do computador tem sua proacutepria voz musical independente Estas relaccedilotildees solosuo existem simultaneamente ainda tem um certo niacutevel de ambiguidade teacutecnica e musical Muito parecido com a performance de muacutesica de cacircmara em que a expressividade individual agraves vezes se destina a servir ao todo e em outros momentos tem uma influecircncia individual fundamental sobre todo o grupo [ensemble] as relaccedilotildees musicais entre o performer e o computador satildeo fundamentais para os resultados musicais (LIPPE 2011 traduccedilatildeo nossa143)
Nas notas sobre Music fo r Sextet and Computer (1993) expressa de outra maneira ldquoA
relaccedilatildeo entre a eletrocircnica e as partes instrumentais varia sobre um continuum entre texturas
fundidas (transcendentais) e separadas form ais)rdquo144 (LIPPE 1993) E acrescenta ldquoEnquanto
isso trabalhar com computadores me faz questionar a linha tecircnue que agraves vezes separa muacutesica
e efeitos especiaisrdquo145 (LIPPE 1993) Esta frase aponta para uma discussatildeo pertinente em
relaccedilatildeo aos processamentos eletrocircnicos em tempo real Ela estaacute relacionada com a tendecircncia
de que com estas ferramentas a relaccedilatildeo entre instrumento e sons eletroacuacutesticos se restrinja a
um efeito sobre o som instrumental de maneira semelhante ao efeito de reverberaccedilatildeo por
exemplo
O trabalho de Lippe com instrumentos e computador portanto se encontra na fronteira
destas duas categorias por um lado os efeitos especiais que estendem o som instrumental
gerando texturas fundidas por outro a ldquomuacutesicardquo isto eacute uma parte eletroacuacutestica
independente Mas entre estes dois ldquoterritoacuteriosrdquo existe um espaccedilo de fronteira de
ambiguidade um continuum entre estes dois polos no qual se move a relaccedilatildeo entre
instrumentos e sons eletroacuacutesticos Esta relaccedilatildeo pode ocupar tambeacutem dois pontos deste
142 Original ldquoThe instrumentcomputer relationship moves on a continuum between the poles of an extended solo and a duordquo (LIPPE 2007)
143 Original ldquoMusically the computer part is at times not separate from the pan part and serves to amplify the pan in multiple dimensions and directions while at the other extreme of the continuum the computer part has its own independent musical voice These soloduo relationships exist simultaneously yet have a certain level of musical and technical ambiguity Much like chamber music playing in which individual expressivity sometimes is meant to serve the whole and at other times has a fundamental individual influence on the entire ensemble the musical relationships between the performer and computer are fundamental to the musical resultsrdquo (LIPPE 2011)
144 Original ldquoThe relationship between the electronics and the instrumental parts ranges on a continuum between fused (transcendental) and separate (formal) texturesrdquo (LIPPE 1993)
145 Original ldquoMeanwhile working with computers keeps me questioning the fine line that sometimes separates music and special effectsrdquo (LIPPE 1993)
122
continuum Isto eacute a funccedilatildeo do computador pode ser estender o som instrumental e ao mesmo
tempo apresentar sua proacutepria ldquovoz musical independenterdquo
Nas peccedilas para instrumento e sons preacute-gravados as notas tambeacutem trazem um elemento
comum Na nota sobre Music fo r Harp and Tape (1990) escreve
A relaccedilatildeo instrumentomaacutequina eacute inteiramente simbioacutetica - o instrumento e a parte preacute-gravada satildeo iguais no diaacutelogo musical Agraves vezes uma parte [instrumental ou eletroacuacutestica] pode dominar mas na estrutura formal geral um duo estaacute impliacutecito146 (LIPPE 1990)
As notas da Music fo r Bass Clarinet and Tape (1989) trazem o seguinte
A seccedilatildeo de abertura eacute um diaacutelogo entre instrumento e sons preacute-gravados [tape] e eacuteseguida por uma seccedilatildeo na qual a parte do dos sons preacute-gravados domina Isto emtroca abre espaccedilo para um solo de clarineta baixo enquanto na quarta seccedilatildeo os sons preacute-gravados satildeo dominados pela clarineta Na seccedilatildeo final o instrumento e os sons preacute-gravados estatildeo novamente mais equilibrados - reminiscecircncia da seccedilatildeo de abertura147 (LIPPE 1989)
Enquanto que as notas sobre as peccedilas para instrumento e computador valem-se do eixo
dependecircncia-independecircncia entre estes aquelas sobre as peccedilas para instrumento e sons preacute-
gravados utilizam o eixo dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo para tratar da relaccedilatildeo entre estes Nas
primeiras natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo significativa com explicitar estruturas formais da peccedila ao
passo que nas segundas a explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre instrumento e sons preacute-gravados se daacute
atraveacutes de uma explicitaccedilatildeo das diferentes seccedilotildees Isto eacute a relaccedilatildeo entre a parte instrumental e
a parte preacute-gravada eacute um dos elementos responsaacuteveis pela articulaccedilatildeo de seccedilotildees na forma
geral da peccedila
Embora tendo feito esta diferenciaccedilatildeo no caso de Music fo r Harp and Tape a ideia de
sons processados em tempo real e sons preacute-gravados se confundem Isto porque o compositor
produziu a parte preacute-gravada a partir de processamento em tempo real
Isso levanta a hipoacutetese de que na praacutetica de Lippe as diferenccedilas esteacuteticas tenham
relaccedilatildeo com as diferenccedilas tecnoloacutegicas Embora independecircncia-dependecircncia e dominaccedilatildeo-
146 Original ldquoThe instrumentmachine relationship is entirely symbioticmdash the instrument and tape are equals in the musical dialogue At times one part may dominate but in the overall formal structure a duo is implicitrdquo (LIPPE 1990)
147 Original ldquoThe opening section is a dialogue between the instrument and tape and is followed by a section in which the tape part dominates This in turn gives way to a bass clarinet solo while in the fourth section the tape part is dominated by the clarinet In the final section the instrument and tape are again somewhat equal - reminiscent of the opening sectionrdquo (LIPPE 1989)
subordinaccedilatildeo possam se referir de maneira diferente agraves mesmas relaccedilotildees haacute uma diferenccedila
crucial na maneira com que o compositor expressa estas relaccedilotildees nestes dois tipos de teacutecnicas
As notas sobre as peccedilas para instrumento e sons preacute-gravados natildeo trazem a ideia de um solo
extendido A ideia mais proacutexima a este extremo do continuum seria a de relaccedilatildeo simbioacutetica
(Music fo r Harp and Tape) em que os dois meios se beneficiam Esta noccedilatildeo eacute trazida na peccedila
que se vale de processamento em tempo real para criar o tape As outras peccedilas para
instrumento e tape parecem partir de um contraste ainda maior que esta relaccedilatildeo simbioacutetica a
ideia eacute de diaacutelogo (portanto entre duas entidades diferentes)148
Se estas constataccedilotildees podem ser extrapoladas para a experiecircncia dos compositores em
geral podemos levantar a hipoacutetese de que trabalhando com processamentos em tempo real da
parte instrumental partimos da fusatildeo Isto eacute a relaccedilatildeo mais faacutecil a primeira que pode vir agrave
mente eacute que a parte eletroacuacutestica funcione como uma extensatildeo da parte instrumental
Evidentemente natildeo decidimos sempre pelo que primeiro nos vem agrave mente trata-se aqui de
apontar uma primeira tendecircncia Por outro lado o processo de composiccedilatildeo dos sons preacute-
gravados se daacute mais ou menos independentemente da parte instrumental A primeira ideia a
vir agrave mente pode natildeo ser a de uma extensatildeo da parte instrumental mas da instituiccedilatildeo de uma
parte paralela com conteuacutedo sonoro proacuteprio
432 Music fo r Snare Drum and Computer
Na peccedila para caixa clara e computador consideraremos dois fluxos um instrumental e
outro eletroacuacutestico Embora pudesse haver dois ou mais fluxos instrumentais ou
eletroacuacutesticos natildeo identificamos tal segregaccedilatildeo em nossa anaacutelise Nos deteremos nos seis
minutos iniciais da peccedila (duas primeiras paacuteginas da partitura) Um aspecto primordial em
nossa anaacutelise seraacute a noccedilatildeo de gatilho (WISHART 1996) e de causalidade (SMALLEY 1997)
A atividade do computador depende fortemente da atividade instrumental de modo que a
independecircncia que a parte eletroacuacutestica conquista aos poucos manteacutem ainda que agraves vezes
menos claramente a caracteriacutestica de gatilho em relaccedilatildeo agrave parte instrumental A parte
instrumental aciona o gatilho que daacute iniacutecio aos eventos eletrocircnicos Isso se deve agrave maneira
com que o compositor trabalha a parte do computador Nas notas de programa ele explica
123
148 Natildeo devemos descartar a hipoacutetese de que isso se deva a um diferente posicionamento esteacutetico relacionado mais agrave fase do compositor do que agrave tecnologia utilizada
124
A parte eletrocircnica foi criada nos Estuacutedios de Muacutesica Computacional Hiller da Universidade em Buffalo Nova York usando MaxMSP Tecnicamente o computador rastreia paracircmetros da performance da caixa clara e usa esta informaccedilatildeo para influenciar e manipular continuamente a saiacuteda sonora do computador por afetar diretamente a siacutentese digital e algoritmos composicionais em tempo real Os algoritmos de siacutentese digital focam no processamento espectral no domiacutenio da frequecircncia e inclui filtragem delayrealimentaccedilatildeo feedback] espacializaccedilatildeo fotografias timbrais [timbral snapshot] siacutentese cruzada reduccedilatildeoaumento de ruiacutedo e reordenaccedilatildeo de componentes de canais individuais de FFT149 (LIPPE 2007)
Um dos paracircmetros rastreados (tracked) mais evidentes eacute o envelope de amplitude da
performance da caixa
Na maior parte do tempo o iniacutecio dos eventos eletroacuacutesticos estaacute vinculado ao iniacutecio
do som instrumental Como apontado em 31 ldquose duas coisas estatildeo altamente correlacionadas
eacute altamente provaacutevel que emergiram de uma mesma fonte enquanto que se duas coisas satildeo
assincrocircnicas eacute provaacutevel que sejam associadas com dois objetos diferentesrdquo (SHEPARD
1999 p 117) Instrumento e sons eletrocircnicos estatildeo altamente correlacionados nesta peccedila A
correlaccedilatildeocoordenaccedilatildeo dos ataques eacute constante Isso representa uma forccedila em direccedilatildeo agrave
fusatildeo O recurso que diferenciaraacute os dois fluxos em direccedilatildeo ao contraste eacute o restante do
envelope (decaimento sustentaccedilatildeo e relaxamento)
O trecho analisado compreende 16 programas do sistema interativo com um uso
variado dos diferentes paracircmetros rastreados Uma investigaccedilatildeo do patch do Max poderia
trazer mais dados referentes ao rastreio e mapeamento de paracircmetros e isso por sua vez nos
proporcionaria pensar em outras relaccedilotildees musicais entre estes dois fluxos Entretanto como
ficaraacute evidente o eixo atividade-inatividade eacute um dos aspectos mais importantes da relaccedilatildeo
entre os fluxos e para abordaacute-lo focaremos sobre o paracircmetro do envelope Temos
consciecircncia de que esta posiccedilatildeo natildeo abrange uma seacuterie de aspectos relevantes da peccedila
(processamentos espectrais por exemplo) que estatildeo envolvidos em interessantes relaccedilotildees
entre os fluxos Entretanto o objetivo da nossa anaacutelise seraacute apenas demonstrar o aspecto mais
evidente da relaccedilatildeo entre eles
Num primeiro momento (programas 1 e 2) o envelope da parte eletrocircnica estaacute
correlacionado ao envelope da caixa Posteriormente o computador estende a sustentaccedilatildeo nos
149Original ldquoThe electronic part was created at the Hiller Computer Music Studios of the University at Buffalo New York using MaxMsp Technically the computer tracks parameters of the snare drum performance and uses this information to continuously influence and manipulate the computer sound output by directly affecting digital synthesis and compositional algorithms in real-time The digital synthesis algorithms focus on spectral processing in the frequency domain and include filtering delayfeedback spatialization timbral snapshots cross-synthesis noise reductionenhancement and component reordering of individual FFT channelsrdquo (LIPPE 2007)
programas 3 e 4 se tornando mais independente Entretanto mesmo quando alcanccedila uma
diferenciaccedilatildeo - ldquosua proacutepria voz musicalrdquo - por causa dos diferentes envelopes o programa
continua rastreando cada ataque e mudando algo (conteuacutedo espectral por exemplo) neste
fluxo eletrocircnico que continua
No programa 5 a parte eletrocircnica volta a um envelope semelhante ao da caixa se
aproximando da ideia de efeito novamente O programa 6 apresenta o mesmo material do 5
com o acreacutescimo de um material mais grave de envelope independente que surge nos
momentos de pausa da caixa O programa 7 apresenta novas sonoridades eletroacuacutesticas que
se tornam mais independentes no programa 8 Do programa 9 ao 16 acontece um crescendo
na parte eletroacuacutestica Uma intensificaccedilatildeo tanto da dinacircmica como tambeacutem da independecircncia
deste fluxo em relaccedilatildeo ao instrumental O programa 16 representa um primeiro aacutepice da peccedila
Assim embora neste trecho analisado a relaccedilatildeo entre os fluxos se mova no eixo
dependecircncia-independecircncia mantemos a sensaccedilatildeo de dependecircncia da parte eletroacuacutestica em
relaccedilatildeo agrave instrumental mesmo quando se distancia desta em diversos paracircmetros
Os fluxos apresentam o que foi abordado em 343 como modo de relacionamento de
atividade-inatividade (SMALLEY 1997) A relaccedilatildeo entre eles se daacute pela maior ou menor
atividade de cada fluxo Anotaccedilotildees sobre a pauta indicam a importacircncia deste paracircmetro
Abaixo (Quadro 5) listamos as indicaccedilotildees presentes no trecho em questatildeo Os programas 1 e
2 natildeo apresentam indicaccedilotildees sobre atividade por isso supomos uma atividade regular A
atividade da parte eletroacuacutestica estaacute apenas impliacutecita nestas indicaccedilotildees da partitura
entretanto na tabela abaixo indicamos sua atividade por comparaccedilatildeo atraveacutes da escuta da
gravaccedilatildeo disponiacutevel no siacutetio do compositor150
125
150 Temos tambeacutem na memoacuteria a performance desta peccedila pelo UM2UO que presenciamos no Simpoacutesio Muacutesica Nova 2018 em Curitiba
126
QUADRO 5 - ATIVIDADE DOS FLUXOS INSTRUMENTAL E ELETROACUacuteSTICO EM MUSIC FOR
SNAREDRUMAND COMPUTER DE CORT LIPPE (6 MINUTOS INICIAIS)
p Sons instrumentais(indicaccedilotildees de Lippe na partitura com exceccedilatildeo dos programas 1 e 2 que satildeo anaacutelises nossas)
Sons eletrocircnicos(anaacutelise nossa)
1 Atividade regular inativo mdashgt menos ativo
2 Atividade regular menos ativo
3 ldquopoco a poco mais ativordquo =
4 ldquosubito menos ativordquo ldquopermitir a sustentaccedilatildeo do computadorrdquo ldquoraquooco a poco menos ativo (deixar o computador desaparecer [fade|) mais ativo
5 ldquosubito mais ativordquo ldquopoco a poco mais ativo =
6 ldquosempre ativo (ouccedila o computador)rdquo =
7 ldquosempre ouccedila o computador) poco a poco menos ativo e pausas longasrdquo =
8 ldquo(sempre ouccedila o computador) poco a poco menos ativo e pausas longasrdquo mais ativo
9 ldquo(sempre ouccedila o computador) poco a poco menos ativo e pausas longasrdquo mais ativo
10 ldquonatildeo ativordquo mais ativo
11 ldquonatildeo ativordquo mais ativo
12 ldquopoco a poco levemente mais ativordquo mais ativo
13 ldquosempre poco a poco levemente mais ativordquo ldquo(ritmos algo regulares)rdquo =
14 ldquosempre poco a poco mais ativordquo ldquo(poco a poco ritmos mais regulares)rdquo =
15 ldquosempre poco a poco mais e mais ativordquo ldquo(poco a poco ritmos mais regulares)rdquo
=
16 ldquoatividade maacuteximardquo =P = programas
FONTE Lippe (2007) e anaacutelise do autor (2019)
A fim de visualizar esta relaccedilatildeo de outra maneira atribuiacutemos um valor relativo de
atividade sendo 0 = natildeo ativo e 5 = atividade maacutexima Obtemos assim uma representaccedilatildeo
visual da relaccedilatildeo entre os fluxos no modo de relacionamento atividade-inatividade
GRAacuteFICO 1 - ATIVIDADE DE DOIS FLUXOS (INSTRUMENTAL E ELETRO ACUacuteSTICO) EM MUSIC
FOR SNARE DRUMAND COMPUTER DE CORT LIPPE (6 MINUTOS INICIAIS)
5
4
bullS 3cd T3
o1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
Programas
FONTE o autor (2019)
Sons instrumentais Sons eletrocircnicos
Ao observarmos o graacutefico natildeo eacute difiacutecil imaginarmos uma partitura tornando possiacutevel
assim fazer uma analogia com o movimento entre vozes distintas paralelo obliacutequo e
contraacuterio Em vez da direccedilatildeo dos movimentos intervalares de cada voz observamos a direccedilatildeo
dos movimentos no eixo atividade-inatividade de cada fluxo
44 IN MEMORJAM JO N HIGGINS DE ALVIN LUCIER
In Memoriam Jon Higgins (1984) para Clarineta em laacute e oscilador eacute a primeira peccedila
de Alvin Lucier para instrumento solo e gerador de ondas puras A peccedila consiste num
glissando ascendente de 20 minutos do oscilador que varre a tessitura da clarineta sofrendo
interferecircncia perioacutedica por esta O glissando ascende um semitom a cada 30 segundos O
clarinete toca uma nota durante um minuto (agraves vezes duas de 30 segundos) e pausa durante 30
segundos As frequecircncias fundamentais das notas do clarinete se encontram proacuteximas agraves
frequecircncias do oscilador e por isso causam o fenocircmeno de batimento Este fenocircmeno eacute criado
a partir da interaccedilatildeo entre sons da clarineta e sons do oscilador Assim nossa anaacutelise objetiva
demonstrar o desenvolvimento dos batimentos ao longo da peccedila e seus consequentes aspectos
interativos De um lado abordamos questotildees sonoro-morfoloacutegicas de interferecircncia e gesto de
outro as questotildees da performance fazendo uma analogia com sistemas interativos
Batimento eacute um fenocircmeno acuacutestico que ocorre quando duas ou mais frequecircncias estatildeo
proacuteximas Uma variaccedilatildeo perioacutedica de amplitude (batimento) eacute causada pelas interferecircncias
construtivas e destrutivas entre as duas ondas A frequecircncia de batimento eacute igual agrave diferenccedila
entre as duas frequecircncias (LOY 2006) Por exemplo o primeiro intervalo da peccedila eacute uma
segunda menor em que o clarinete toca um Reacute (cerca de 73 Hz) e o oscilador eacute um Doacute
sustenido (cerca de 69 Hz) portanto a frequecircncia de batimento eacute igual a cerca de 4 Hz A nota
da clarineta eacute constante natildeo muda sua frequecircncia fundamental A frequecircncia do oscilador
sobe ateacute alcanccedilar o uniacutessono com a clarineta diminuindo assim a diferenccedila entre as
frequecircncias e portanto diminuindo a frequecircncia de batimento que vai de 4 Hz para 0 Hz o
que poderiacuteamos chamar de um ritardando
127
128
FIGURA 36 - ILUSTRACcedilAO DE BATIMENTOS ACCELERANDO E RJTARDANDO NO COMECcedilO DE INMEMORIAM JON HIGGINS
A Clarinet(Sounds a minor third
lower than written)
Oscillator(Actual sounds) I
Intervals 1 u (-1)(semitones u = unison)__________________________________________________________________
X T ----------------------0 rdquo 30rdquo
tixT---------------- --- rdquo 1rsquo 1 rsquo 30rdquo
W W W VAAAWritardando accelerando
FONTE o autor (2019)
Dois paracircmetros satildeo diretamente associados nesta relaccedilatildeo (micro)intervalo e ritmo
Nas palavras do compositor ldquoO fenocircmeno do batimento acuacutestico a ideia de que o ritmo pode
ser criado pela afinaccedilatildeo Eu gosto muito desta ideiardquo151
Devemos considerar que um semitom natildeo eacute sempre o mesmo intervalo no domiacutenio da
frequecircncia Por exemplo em comparaccedilatildeo com o primeiro intervalo da peccedila o uacuteltimo tambeacutem
de um semitom eacute tambeacutem o intervalo entre o Doacute sustenido (554 Hz) e o Reacute (587 Hz) A
diferenccedila entre as frequecircncias no primeiro intervalo era de 4 Hz neste uacuteltimo eacute de 33 Hz
Assim para um ldquomesmordquo semitom diferentes frequecircncias de batimentos satildeo possiacuteveis Como
a peccedila tem uma direcionalidade contiacutenua para o agudo a diferenccedila entre as frequecircncias
aumenta conforme vatildeo para um registro mais agudo de maneira que eacute possiacutevel perceber um
accelerando ao longo da peccedila Assim outros dois paracircmetros satildeo associados ritmo e registro
Algumas caracteriacutesticas perceptuais dos batimentos satildeo importantes para entendermos
a complexidade que se instaura nestes materiais e processos superficialmente simples (1)
Quando a frequecircncia de batimento diferenccedila entre as duas frequecircncias eacute menor do que cerca
de 15 Hz percebemos elas como uma uacutenica - a meacutedia das duas frequecircncias com uma variaccedilatildeo
de amplitude os batimentos (LOY 2006 p 174) No primeiro intervalo por exemplo entre
69 Hz e 73 Hz ouvimos uma uacutenica frequecircncia de 71 Hz com um batimento de 4 Hz Neste
caso (ateacute cerca de 15 Hz) a frequecircncia de batimento eacute muito lenta para o percebermos como
altura percebemos suas oscilaccedilotildees individuais como ritmo (2) Quando a frequecircncia de
batimento eacute maior que cerca de 50 Hz as oscilaccedilotildees satildeo muito raacutepidas para serem percebidas
151 ldquoThe phenomenon of acoustical beating the idea that rhythm can be created by tuning I like that idea a lotrdquo Disponiacutevel em lthttpalvin-lucier-filmcomhigginshtmlgt Acesso em 12 jan 2019
129
individualmente assim percebemos as duas frequecircncias como duas alturas e a frequecircncia de
batimento pode ser interpretada como uma terceira altura chamada diference tone Entretanto
(3) se a frequecircncia de batimento estiver entre 15 Hz e 50 Hz aproximadamente152 por um lado
as oscilaccedilotildees satildeo muito raacutepidas para as ouvirmos como ritmo por outro as frequecircncias estatildeo
muito proacuteximas para distinguirmos duas alturas Assim nesta faixa os batimentos soam
rugosos O Graacutefico 2 mostra o desenvolvimento dos batimentos ao longo da peccedila de Lucier
Diferentemente da partitura o Graacutefico 2 demonstra importantes aspectos da percepccedilatildeo
da peccedila de Lucier especialmente o comportamento alternante entre os paradigmas de
batimento riacutetmico (ateacute 15 Hz) rugoso (entre 15 Hz e 50 Hz) e harmocircnico (acima de 50 Hz)
Devido ao direcionamento para o registro agudo e o consequente aumento da diferenccedila entre
as frequecircncias vemos a peccedila se desenvolver progressivamente partindo do primeiro
paradigma em direccedilatildeo a incorporaccedilatildeo mais substancial do segundo e do terceiro
GRAacuteFICO 2 - DESENVOLVIMENTO DOS BATIMENTOS EM IN MEMORIAM JON HIGGINS DE ALVIN LUCIER
FONTE Transcrito de (LUCIER 1987) e analisado pelo autor (2019)
O fenocircmeno de batimentos causado por interferecircncias de uma onda sobre outra eacute por
152 Esta faixa de 15 Hz a 50 Hz aproximadamente eacute chamada banda criacutetica ldquoFor a given frequency the critical band is the smallest band of frequencies around it which activate the same part of the Basilar Membranerdquo (TRUAX 1999 Critical Band) ldquoThe roughness only disappears at a frequency separation equal to the critical bandwidth (about one third of an octave)rdquo (LOY 2006 p180)
si soacute uma interaccedilatildeo entre as ondas Neste caso se reflete numa interaccedilatildeo entre os fluxos
sonoros do oscilador e da clarineta Um dos aspectos mais importantes desta interaccedilatildeo eacute a
fusatildeo e o contraste (MENEZES 2006) que neste caso devem ser interpretados de maneira
peculiar devido aos efeitos psicoacuacutesticos envolvidos Apresentamos abaixo uma escala da
fusatildeo ao contraste presente nesta peccedila
bull Uniacutessono similaridade causando o estado de duacutevida Existe a transferecircncia de
caracteriacutestica espectral (frequecircncia fundamental) Natildeo se trata de uma similaridade
absoluta pois alguns fatos corroboram com a distinccedilatildeo clarineta natildeo eacute amplificada e
estaacute separada espacialmente do alto-falante por exemplo
bull Batimentos ateacute 15 Hz a fusatildeo acontece por dois fatores a frequecircncia ouvida eacute apenas
uma (a meacutedia entre as duas fundamentais) e instrumento e oscilador apresentam o
mesmo envelope de amplitude - o proacuteprio efeito de batimento
bull Batimentos de 15 a 50 Hz estaacutegio confuso com rugosidade na qual a condiccedilatildeo de
duacutevida proacutepria da fusatildeo estaacute se dissolvendo
bull Quando a diferenccedila entre fundamentais eacute maior que 50 Hz existe fusatildeo e relativo
contraste As duas frequecircncias estatildeo afastadas o suficiente para diferenciarmos a
clarineta do oscilador (relativo contraste) poreacutem as duas frequecircncias causam na escuta
no miacutenimo uma terceira frequecircncia (difference tone) O estado de duacutevida se estabelece
pois natildeo sabemos se esta frequecircncia ldquofantasmardquo vem da clarineta ou do oscilador De
fato nem de um nem de outro mas da interaccedilatildeo entre os dois
bull Pausa da clarineta contraste
Esta abordagem sobre fusatildeo e contraste explica a importacircncia do uniacutessono como o
momento de maior integraccedilatildeo um ponto convergente no qual o estado de duacutevida em relaccedilatildeo agrave
fonte sonora eacute evidente Como explica Menezes (2006 p 387) ldquoAinda que de forma alguma
hegemocircnico o estado de duacutevida traduz-se como momento supremo da interaccedilatildeordquo
No momento da performance o aspecto da integraccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo das fontes
sonoras eacute afetado pela disposiccedilatildeo do instrumentista e do alto-falante no palco O uacutenico alto-
falante que toca a parte do oscilador deve ficar agrave direita e o clarinetista agrave esquerda Esta
separaccedilatildeo ajuda a diferenciarmos as duas fontes e os dois fluxos sonoros E torna ainda mais
interessante os momentos de fusatildeo devido agrave estranha impossibilidade de se fazer a
diferenciaccedilatildeo em uma situaccedilatildeo em que isso seria simples
O ritmo em In Memoriam Jon Higgins natildeo surge por accedilatildeo individual de cada parte
130
(clarineta e oscilador) mas pela sua interaccedilatildeo Enquanto o glissando do oscilador eacute
continuamente ascendente as notas da clarineta satildeo estaacuteveis se manteacutem por 30 ou 60
segundos Assim a cada entrada da clarineta daacute-se iniacutecio a um gesto que consiste em
movimentos obliacutequos As duas frequecircncias se aproximam e se afastam causando batimentos
em accelerando e em rallentando respectivamente Estes movimentos podem ser
visualizados no Graacutefico 2 Da esquerda para a direita a linha preta ascendente representa um
accelerando enquanto que a descendente representa um rallentando Aleacutem disso eacute possiacutevel
perceber uma progressatildeo geral destes gestos Haacute uma expansatildeo da diferenccedila entre as
frequecircncias em Hz embora em semitons esta distacircncia se repete (maior intervalo eacute de 3
semitons) o que significa um aumento da frequecircncia maior dos gestos de accelerando e
rallentando
Estes gestos de batimentos estatildeo inseridos dentro do enorme glissando que sobe de
maneira quase imperceptiacutevel Assim podemos entender uma estrutura hieraacuterquica em que o
glissando de 20 minutos compreende uma estrutura de um niacutevel superior high-level
(SMALLEY 1997) enquanto que as interferecircncias perioacutedicas podem ser entendidas como de
um niacutevel inferior (low-level) A interaccedilatildeo acontece tambeacutem entre estes dois niacuteveis da estrutura
hieraacuterquica O niacutevel inferior altera o niacutevel superior Novamente estamos diante de uma
relaccedilatildeo de causalidade
Gestos como este do oscilador desafiam a percepccedilatildeo devido a sua dimensatildeo seu lento
desenvolvimento Como aponta Smalley (1997 p 113-114) ldquo[] haacute uma mudanccedila de foco
da escuta - quanto mais lento o iacutempeto gestual direto tanto mais o ouvido procura se
concentrar em detalhes internos []rdquo153 Podemos dizer assim que a peccedila de Lucier nos
convida para concentrarmos nos detalhes internos do som tais como variaccedilatildeo de amplitude
variaccedilatildeo micro-intervalar e fenocircmeno de difference tone
Os aspectos tecnoloacutegicos e praacuteticos da performance tambeacutem fomentam reflexotildees A
parte do oscilador eacute definida previamente e eacute difundida por um uacutenico alto-falante no momento
da performance Neste sentido a peccedila funciona como uma peccedila para instrumento e sons
fixados em suporte O performer precisa sincronizar com a parte do oscilador para isso
Lucier admite o uso de um afinador cromaacutetico para que o performer possa localizar a
frequecircncia do oscilador Embora entendamos este aspecto fixo do oscilador eacute preciso
considerar que o fenocircmeno de batimentos eacute um processo acuacutestico que acontece sobre ele e eacute
153Original ldquo[] there is a change of listening focus - the slower the direct gestural impetus the more the ear seeks to concentrate on inner details []rdquo (SMALLEY 1997 p 113-114)
131
controlado pelo clarinetista em tempo real Eacute um tipo de sistema interativo De acordo com
Rowe (1993) os sistemas interativos de computaccedilatildeo musical ldquosatildeo aqueles cujo
comportamento muda em resposta a uma entrada musicalrdquo (natildeo paginado) Estas mudanccedilas de
comportamento acontecem devido a uma programaccedilatildeo que estabelece ldquoleisrdquo relaccedilotildees entre a
entrada musical e a saiacuteda musical Na peccedila de Lucier satildeo as leis (psico)acuacutesticas que
estabelecem essa relaccedilatildeo Assim a parte do oscilador ldquomudardquo em resposta agraves notas da
clarineta de acordo com uma relaccedilatildeo acuacutestica presente no fenocircmeno de batimentos
(interferecircncias construtivas e destrutivas) Poderiacuteamos considerar tal configuraccedilatildeo de relaccedilotildees
um sistema interativo acuacutestico
Em conclusatildeo foi possiacutevel nesta anaacutelise identificar certas relaccedilotildees referentes a
interaccedilatildeo tanto como uma questatildeo sonoro-morfoloacutegica (batimentos fusatildeo e contraste gestos
interativos) quanto tecnoloacutegica da performance (relaccedilatildeo do performer com o oscilador preacute-
gravado) Abaixo sumarizamos as relaccedilotildees identificadas
a) Relaccedilatildeo direta entre intervalos e ritmo (frequecircncia de batimento) produzida pelo
fenocircmeno de batimentos
b) Relaccedilatildeo entre registro e frequecircncia de batimento quanto mais para o agudo o registro
mais acelerados satildeo os batimentos
c) Relaccedilatildeo de causalidade os gestos da clarineta causam mudanccedilas no enorme gesto do
oscilador Esta relaccedilatildeo natildeo eacute apenas sonoro-morfoloacutegica mas tambeacutem tecnoloacutegica
praacutetica da performance
Identificar este tipo de relaccedilotildees parece ser um caminho metodoloacutegico importante para
futuros estudos sobre interaccedilatildeo Elas abrem espaccedilo para um estudo natildeo limitado apenas agraves
relaccedilotildees entre performer e tecnologia mas apto para considerar relaccedilotildees em outros acircmbitos
como o sonoro e acuacutestico (aqui abordados) o visual (abordado em 42) o espacial o teatral
entre outros
132
133
5 SOBRE MEU PROCESSO COMPOSICIONAL
Em 2012 meu primeiro ano no curso de Bacharelado em Muacutesica - Composiccedilatildeo na
cidade de Pelotas - RS acontecia o primeiro Festival Latino-americano de Muacutesica
Contemporacircnea de Pelotas organizado pelo NuMC - Nuacutecleo de Muacutesica Contemporacircnea da
UFPel Na ocasiatildeo ouvi pela primeira vez o que se pode denominar muacutesica eletroacuacutestica
mista Entre as peccedilas deste gecircnero estavam Mosaic (2010) de Joatildeo Pedro Oliveira e Infinito
Silecircncio (2012) de Rogeacuterio Constante Levo a experiecircncia de presenciar a performance
destas peccedilas como uma das mais significativas no contato inicial com o universo da muacutesica de
concerto dos seacuteculos XX e XXI Os sons traccedilavam caminhos diversos entre os alto-falantes o
instrumento e minha imaginaccedilatildeo Se apresentava a mim talvez inconsciente disso no
momento um universo sonoro interativo de constituiccedilatildeo e dissoluccedilatildeo de camadas distintas
de interferecircncias e relaccedilotildees complexas entre materiais Some-se a isto o aspecto (in)visiacutevel da
performance visiacutevel e fiacutesica nos movimentos do performer imaginada ou referenciada quanto
aos sons acusmaacuteticos
Minha produccedilatildeo composicional durante a graduaccedilatildeo apresentou um direcionamento agrave
exploraccedilatildeo de tais caracteriacutesticas De fato uma de minhas primeiras peccedilas a ser apresentada
foi uma peccedila para piano e sons eletrocircnicos em que jaacute apareciam iniciativas natildeo eacute preciso
dizer ingecircnuas de fusatildeo e interaccedilatildeo entre gestos dos dois meios (instrumental e
eletroacuacutestico) Estas caracteriacutesticas interativas migravam sem esforccedilo para o pensamento
puramente instrumental o que seria facilmente demonstraacutevel em outras composiccedilotildees como
Ensaio I (2016) Peccedila para acordeatildeo e sons eletrocircnicos (2016) e tambeacutem em Dois
movimentos para acordeatildeo e piano (2016) que gerou o trabalho de conclusatildeo de curso
(TUCHTENHAGEN 2017) Neste uacuteltimo caso busquei na semioacutetica greimasiana154 modelos
teoacutericos para entender os materiais seu desenvolvimento suas relaccedilotildees e interaccedilotildees tanto no
processo de composiccedilatildeo quanto na anaacutelise posterior Um exemplo simples que ilustra o
interesse em questatildeo eacute aquele em que haacute uma transferecircncia de notas do acordeatildeo para o piano
(Figura 37) Esta transferecircncia acontece de tal forma que o piano interrompe a nota sustentada
do acordeatildeo para fazer soar a sua Este interromper eacute um exemplo destas caracteriacutesticas
interativas em que estava e continuo interessado aleacutem deste interferecircncias causalidades e
outras relaccedilotildees se manifestaram posteriormente
154 Aleacutem da teoria de Algirdas Julien Greimas baseei-me em trabalhos mais recentes como A Muacutesica de Hermeto Pascoal Uma abordagem Semioacutetica (ARRAIS 2006)
134
FIGURA 37 - COMPASSOS 77-78 DE DOIS MOVIMENTOS PARA ACORDEAtildeO E PIANO (2016)Grave (J = c 3 2 )
FONTE Tuchtenhagen (2017)
O interesse por estas caracteriacutesticas interativas continuou na submissatildeo do projeto de
mestrado nesta instituiccedilatildeo Inicialmente o projeto propunha estabelecer relaccedilotildees parameacutetricas
entre sons instrumentais e eletroacuacutesticos por meio de um sistema interativo Natildeo se dirigia
apenas ao estudo dos recursos tecnoloacutegicos do sistema mas tambeacutem agraves relaccedilotildees sonoras visto
que determinado paracircmetro instrumental estaria por meio de uma regra mais ou menos
variaacutevel relacionado a um paracircmetro eletroacuacutestico155 Esta proposta inicial foi modificada no
sentido de tratar menos das questotildees tecnoloacutegicas e mais das sonoro-morfoloacutegicas Atraveacutes da
revisatildeo bibliograacutefica expandiram-se as possibilidades para aleacutem de relaccedilotildees parameacutetricas e
para aleacutem da mencionada interrupccedilatildeo Destas expansotildees destaca-se a possibilidade de
agrupamentos dos eventos sonoros em fluxos distintos que interagem entre si
Durante o mestrado mantive a atividade composicional em paralelo ao trabalho
teoacuterico e analiacutetico Esta dinacircmica de pesquisa possibilitou experimentar os aspectos teoacutericos
na praacutetica composicional bem como levantar a partir da praacutetica questionamentos e
explicaccedilotildees teoacutericas Assim a composiccedilatildeo pode ser vista como parte do meacutetodo de pesquisa
teoacuterica e a teoria pesquisada como parte do meacutetodo de composiccedilatildeo
155 Tal ideia existe em Reacutepons (1984) de Pierre Boulez em que a velocidade de espacializaccedilatildeo de determinado som processado estaacute diretamente relacionada agrave intensidade com que determinado solista executa sua parte Satildeo seis solistas o som de cada um eacute processado e a espacializaccedilatildeo deste som processado acontece de acordo com esta regra
135
Este relato pessoal tem a funccedilatildeo de frisar que a pesquisa estaacute imbricada com o
pesquisador Ela se direciona a meus interesses artiacutesticos desde a graduaccedilatildeo e se deu em
paralelo agrave minha praacutetica composicional Trata-se de uma abordagem pessoal Possivelmente
ela encontre ressonacircncia em outros em seus proacuteprios interesses artiacutesticos e teoacutericos
O olhar sobre as peccedilas de outros compositores cumpriu o objetivo de elucidar a
maneira como eacute possiacutevel perceber as relaccedilotildees entre as partes portanto num niacutevel esteacutesico
(NATTIEZ 1990) Jaacute o olhar analiacutetico sobre minhas composiccedilotildees pretende apontar no niacutevel
poieacutetico como lidei com as relaccedilotildees entre fluxos sonoros156
51 CHAtildeO DE OUTONO
Chatildeo de Outono157 eacute uma peccedila para flauta e sons eletrocircnicos composta no contexto da
disciplina Toacutepicos em Composiccedilatildeo e Esteacutetica da poacutes-graduaccedilatildeo em muacutesica da UFPR O
processo criativo abrangeu um periacuteodo no acircmbito da disciplina (de abril a julho de 2017) com
performance ao final do semestre158 e outro periacuteodo (de revisatildeo) de fevereiro a abril de 2018
com performance no concerto Muacutesica Contemporacircnea Brasileira no dia 11 de abril de 2018
na Sala de Atos do SESC Paccedilo da Liberdade O processo criativo se deu em colaboraccedilatildeo com
a flautista e colega da disciplina (doutoranda) Valentina Daldegan Durante o primeiro
periacuteodo eu participava tambeacutem de aulas de composiccedilatildeo com o professor Clayton Mamedes
numa disciplina da graduaccedilatildeo onde pude trabalhar esta peccedila Meu orientador tambeacutem
acompanhava o processo de composiccedilatildeo e aleacutem disso o professor Mauriacutecio Dottori fez
alguns comentaacuterios que foram importantes na revisatildeo da peccedila Este contexto evidencia o
caraacuteter interpessoal do processo criativo
A peccedila estaacute baseada no poema homocircnimo de Mario Quintana
Chatildeo de outono
Ao longo das pedras irregulares do calccedilamento passam ventando umas pobres folhas amarelas em pacircnico perseguidas de perto por um convite de enterro sinistro
156 Os anexos mencionados no texto a seguir estatildeo disponiacuteveis em lthttpsdrivegooglecomopen id=1Fyt 16u4m5OwtHVfz 1BkxWkOx104OoNyWgt
157 Gravaccedilatildeo da estreacuteia disponiacutevel em lthttpssounddoudcomdaviraubachchaodeoutonogtViacutedeo da estreacuteia disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=l3-ULyfGk2kgtGravaccedilatildeo da segunda performance disponiacutevel em lthttpssounddoudcomdaviraubachchao-de-outonogt Acesso em 18 jan 2019
158 Concerto de encerramento da disciplina Electroacoustic live (or dead) realizado no dia 18 de julho de 2018 no TeUNI - Teatro Experimental da UFPR
136
tatalando aos pulos cada vez mais perto as duas asas tarjadas de negro (QUINTANA 2012 p 77)
A primeira intenccedilatildeo composicional era utilizar a sonoridade da leitura do poema como
um material Eu jaacute havia explorado algo semelhante no experimento Meu Trecho Predileto
(2016) para violatildeo e acordeatildeo sobre outro poema de Mario Quintana Cada nota ou acorde eacute
vinculado a uma siacutelaba Os performers natildeo devem ler o texto em voz alta (exceto ao final)
mas tocam conforme seria a leitura ou seja a leitura mental do texto determina ritmo
acentuaccedilatildeo nuances de dinacircmica e andamento (ver Figura 38) Reutilizar esta teacutecnica numa
peccedila para flauta trazia um interesse a mais pela possibilidade de os sons de fala e de flauta
serem mesclados Eles seriam dois instrumentos associados produzindo som a partir do
mesmo focirclego Isto direcionou o processo para uma exploraccedilatildeo da fronteira entre fala e flauta
FIGURA 38 - EXEMPLO DA UTILIZACcedilAtildeO DO TEXTO COMO SUBSTITUTO DE UMA ESCRITA DE FIGURAS RIacuteTMICAS EM MEU TRECHO PREDILETO
FONTE O autor (2016)
Uma segunda intenccedilatildeo se relacionava mais diretamente ao tema desta pesquisa em sua
concepccedilatildeo inicial construir um sistema interativo em que se estabelecesse relaccedilotildees de
interdependecircncia entre paracircmetros da parte instrumental e eletroacuacutestica Isto foi feito a partir
do sinal da flauta captado ao vivo rastreando (tracking) sua amplitude A fim de facilitar a
diferenciaccedilatildeo de amplitude e tambeacutem por um efeito visual optei por utilizar aleacutem do
microfone de bocal um microfone de controle relativamente afastado da flautista A partitura
indica movimentos de aproximaccedilatildeo e afastamento em relaccedilatildeo a este microfone causando
respectivamente maior e menor amplitude no sinal de aacuteudio Tal sistema foi realizado no
software PureData159 (Pd) utilizando o objeto [env~]
Ainda outra intenccedilatildeo dizia respeito agrave estabilidade morfoloacutegica dos elementos (COSTA
2009)160 Buscava um equiliacutebrio entre elementos estritos e flexiacuteveis na composiccedilatildeo
Diferentemente de trabalhar com uma meacutetrica fixa ou mesmo com a utilizaccedilatildeo de metrocircnomo
para o performer - o que jaacute havia feito na Peccedila para acordeatildeo e sons eletrocircnicos (2016) dei
preferecircncia por uma maior liberdade de interpretaccedilatildeo Desta forma o sistema foi concebido
com cinco programas que necessitam ser sucessivamente ativados durante a performance
Cada um deles tem um comportamento em relaccedilatildeo agrave amplitude do sinal da flauta e natildeo haacute a
necessidade de sincronizar eventos exceto na troca dos programas Aleacutem disso a proacutepria
exploraccedilatildeo do texto se apresentou como um oacutetimo meio de desenvolver elementos especiacuteficos
mas sem a necessidade de serem escritos de uma maneira estrita Isto eacute o tempo de leitura e
outros paracircmetros associados a ela poderiam variar de uma performance para outra Ainda
assim o uso do texto garante certa invariacircncia161 nas proporccedilotildees riacutetmicas e acentuaccedilotildees
possibilitando inclusive o tratamento motiacutevico de um fragmento textual (ver Figura 39)
137
FIGURA 39 - VARIACcedilAtildeO MOTIVICA A PARTIR DE UM FRAGMENTO TEXTUAL (SISTEMAS 2 E 3)
~PPP
FONTE O autor (2018)
A exploraccedilatildeo da fronteira entre a fala e a flauta comeccedilou com anotaccedilotildees neste modelo
de uma nota para cada siacutelaba Inicialmente exploramos (compositor e inteacuterprete) basicamente
trecircs modos de articular fala e flauta (1) voz falada normalmente (2) voz sussurrada (ambas
em posiccedilatildeo ordinaacuteria e tentando fazer soar a flauta com a fala) e (3) leitura mental (usada em
159 Patch disponiacutevel em lthttpsdrivegooglecomopenid=1Fyt16u4m5OwtHVfz1BkxWkOx104OoNyWgt160 Este interesse em particular foi explorado num trabalho apresentado no XXVIII Congresso da ANPPOM
(TUCHTENHAGEN DALDEGAN 2018)161 Costa resume ldquotudo aquilo que a cada apresentaccedilatildeo da peccedila deve do ponto de vista do projeto
composicional levando-se em consideraccedilatildeo todas as suas etapas repetir-se de alguma maneira requer o que chamo de estrateacutegia de invariacircnciardquo (COSTA 2009 p48)
Meu Trecho Predileto Figura 38) Verificamos nos encontros iniciais que a fala normal
ativava pouco o som da flauta devido agrave diferenccedila destas duas atividades Combinar a voz com
sopro direcionado significava deformar a voz ou relegar a flauta a uma muito pequena
ressonacircncia Em ambos os casos acontecia de haver um bloqueio do ar nas consoantes
oclusivas (por exemplo ldquomrdquo ou ldquonrdquo) Aleacutem disso a voz predominava de maneira geral
(especialmente em intensidade) sobre a flauta Por estes motivos flauta e voz falada se
distanciavam eram fluxos completamente distintos Embora fosse uma opccedilatildeo natildeo nos
pareceu uma relaccedilatildeo sonoro-morfoloacutegica interessante no momento devido agrave intenccedilatildeo de
explorar a fronteira a ambiguidade entre elas Com a voz sussurrada chegaacutevamos mais
proacuteximos desta intenccedilatildeo As consoantes oclusivas continuavam incontornaacuteveis mas havia um
maior equiliacutebrio entre a intensidade do sussurro e a da flauta daiacute decorreu o direcionamento
de privilegiar a voz sussurrada Uma soluccedilatildeo encontrada para a voz falada foi utilizaacute-la
cobrindo o bocal mesma posiccedilatildeo da teacutecnica tongue ram162 o que tornava possiacutevel a
alternacircncia com esta teacutecnica de maneira suacutebita A utilizaccedilatildeo do tongue ram combinada aos
cliques de chaves foi uma sugestatildeo da inteacuterprete Ela executava a teacutecnica rapidamente como
na peccedila Come Vengono Prodotti Gli Incantesimi (1985) de Salvatore Sciarrino a qual havia
tocado Outra abordagem foi a de uma fala com as vogais omitidas permanecendo apenas as
consoantes que teriam a funccedilatildeo de ataque do som da flauta Neste modo a compreensatildeo do
texto eacute dificultada Isto era positivo jaacute que a fala estava sendo descontextualizada de sua
funccedilatildeo ordinaacuteria de articulaccedilatildeo da linguagem verbal para um lugar sonoro agraves vezes ocupando
um entre-lugar
Deste processo de exploraccedilatildeo inicial resultaram cinco modos de articulaccedilatildeo entre fala
e flauta
1) leitura mental os sons satildeo tocados no tempo e ritmo como seriam lidas as siacutelabas
para a qual se notou o texto em estilo tachado
2) voz sussurrada omitindo as vogais quase ininteligiacutevel as consoantes satildeo responsaacuteveis
pela articulaccedilatildeo dos sons da flauta para a qual se utilizou a notaccedilatildeo do texto com as
vogais em subscrito
3) voz sussurrada eacute executada com forccedila ofegante para que ative tambeacutem os sons da
flauta para a qual se utilizou a notaccedilatildeo do texto sublinhado
4) voz falada dentro do bocal para a qual se notou o texto dentro de caixas
162 Tongue ram teacutecnica executada cobrindo o porta-laacutebio da flauta com a boca e fechando rapidamente apassagem de ar com a liacutengua gerando assim um ataque percussivo
138
139
5) voz entoada sem altura determinada notada com cabeccedila de nota quadrada fora da
pauta163
Existe uma gama de possibilidades em relaccedilatildeo agrave leitura do texto Isso trazia a
preocupaccedilatildeo de que outros inteacuterpretes optassem por maneiras de ler o texto natildeo previstas ou
desconectadas com a proposta Nos ensaios era possiacutevel ler o texto com a inteacuterprete para
oferecer alguma referecircncia Na partitura optei por definir uma escala de termos referentes ao
andamento da fala que vai de lento (15 a 3 siacutelabas por segundo) a mais raacutepido possiacutevel
A parte eletroacuacutestica foi pensada a partir destas sonoridades da fala Basicamente dois
materiais satildeo articulados A um chamo assovios a outro folhas A confecccedilatildeo do som de
assovios teve o seguinte processo
a) gravaccedilatildeo tanto por mim quanto por Valentina deste assovio com som de ldquossrdquo com
pouco fluxo de ar e com a boca em forma de ldquourdquo
b) filtragem O plugin ReaFir do software Reaper foi usado com a funccedilatildeo de subtrair
perfis construiacutedos com a proacutepria amostra
c) montagens com os sons resultantes do processamento sobreposiccedilatildeo transposiccedilatildeo
reversatildeo entre outras
A confecccedilatildeo do som de folhas passou por
a) gravaccedilatildeo do poema sussurrado por mim e por Valentina
b) gravaccedilatildeo do poema sussurrado por Valentina na flauta - ativando o reacute mais grave da
flauta em doacute
c) gravaccedilatildeo de cliques de chaves e tongue-ram
d) processamento (granulaccedilatildeo) destas gravaccedilotildees no software Cecilia5164
e) montagens com os sons resultantes sobreposiccedilatildeo transposiccedilatildeo reversatildeo entre outras
Assovios e folhas se constituem por ateacute cinco faixas165 resultantes deste processo de
confecccedilatildeo que ficam tocando em loop embora agraves vezes sem soar A amplitude da flauta
determina qual deles soaraacute Se acima de determinado valor limite ( treshold) soam as folhas
por exemplo se abaixo deste valor soam os assovios Este eacute o funcionamento do primeiro
programa Um esquema dos programas pode ser visto na Figura 41 extraiacuteda da partitura
Consideraremos dois fluxos da macrotextura nesta peccedila instrumental (flauta-fala) e
163 Para mais detalhes da notaccedilatildeo confira a partitura (Anexo 2)164 Cecilia5 eacute um software livre mantido pelaAjax Sound Studio httpajaxsoundstudiocomsoftware165 Dentro da pasta geral do patch (ldquochaodeoutono_raubachrdquo) haacute uma pasta ldquoaudiordquo onde estatildeo as faixas que
compotildeem os sons de assovios e de folhas bem como outras que satildeo executadas durante a peccedila O leitor poderaacute ouviacute-las se desejar Eacute tambeacutem possiacutevel simular a performance com o patch Isto pode ser feito com o proacuteprio microfone do computador Neste caso utilize fones-de-ouvido para evitar a realimentaccedilatildeo
eletroacuacutestico Cada um deles apresenta componentes que tambeacutem podem ser abordados
como fluxos Por exemplo a parte eletroacuacutestica dos assovios eacute constituiacuteda por cinco faixas
distintas entretanto estas faixas natildeo podem ser percebidas individualmente com facilidade
Elas formam uma microtextura O mesmo acontece com as folhas
Tambeacutem na parte instrumental eacute possiacutevel identificar dois principais componentes
internos flauta e fala No pensamento composicional a diferenciaccedilatildeo deles eacute relativamente
clara Haacute uma notaccedilatildeo para a fala e outra para a flauta Entretanto postos em accedilatildeo
simultaneamente estes dois componentes internos que satildeo tambeacutem fluxos apresentam forte
interdependecircncia o que gera uma ambiguidade uma confusatildeo sobre o que ou quando eacute flauta
e o que ou quando eacute fala166
Aleacutem dos ataques tradicionais satildeo os ataques da fala que geram som na flauta Haacute
uma ambiguidade na percepccedilatildeo de um ataque tradicional e um ataque proveniente do texto
No primeiro trecho da Figura 39 baseado no texto ldquoao longo das pedrasrdquo as siacutelabas ldquoaordquo e
ldquolon-rdquo devem ser apenas mentalizadas A flauta eacute executada por ataques ordinaacuterios com som
eoacutelio Entretanto nas siacutelabas seguintes - ldquo-go das pe-drasrdquo o modo de fala eacute sussurrado mas
omitindo as vogais Das primeiras duas siacutelabas (ldquoao lon-rdquo) para as seguintes (ldquo-go das peshy
drasrdquo) haacute uma mudanccedila de foco da percepccedilatildeo que passa do som da flauta para o som da fala
embora apoacutes a entrada da fala ainda soe a flauta Haacute um deslocamento na percepccedilatildeo de qual
dos fluxos estaacute em primeiro plano Tendo em mente a terceira maneira de abordar a ideia de
primeiro plano e plano de fundo (p 81) a fala por seu caraacuteter fortemente indicativo costuma
se sobrepor a qualquer outro som A Figura 40 ilustra estes deslocamentos A curva sobre as
duas linhas da tabela (flauta e fala) indica em linhas gerais qual dos dois estaacute em primeiro
plano
140
166 Eacute possiacutevel que haja um pensamento em fluxos na composiccedilatildeo isto eacute como estrateacutegia composicional que natildeo se faz tatildeo claro ou mesmo natildeo eacute identificaacutevel na escuta Entretanto imagino ser recomendaacutevel questionar os resultados sonoros desta estrateacutegia Haacute o risco de o compositor cair num formalismo em que pense que as estrateacutegias composicionais justificam a muacutesica quando como acreditamos soacute a experiecircncia subjetiva da escuta o faraacute
141
FIGURA 40 - DESLOCAMENTOS DE FLAUTA E FALA PARA O PRIMEIRO PLANO EM CHAO DE OUTONO
Flauta
Indica qual dos fluxos estaacute em 1deg plano
6
iacute
tempo de falanormal__
igtv $ t|laquo
c ^ j W W W V V V W
T(bisbigliando)
gt bull(]Ao l0n - g0 das peP mP
^ ---frullato
dr_
(Sistema 2)ppp
t | v (bull )
mp
(Sistema 12)
FONTE O autor (2019)
142
Os cinco programas do patch satildeo brevemente explicados na Figura 41
FIGURA 41 - RELACcedilOtildeES PRESENTES NOS PROGRAMAS DO PATCH
A parte eletroacuacutestica estaacute dividida em 5 programas que devem ser ativados de acordo com as indicaccedilotildees na partitura Os programas constituem-se basicamente de sons preacute-gravados que tecircm sua amplitude e espacializaccedilatildeo determinadas em tempo real por uma relaccedilatildeo com a amplitude da flauta captada pelo microfone de controle Dessa forma pode-se resumir o comportamento dos programas da seguinte maneira
P1 Flauta EletroacuacutesticaP ^ sons de ldquoassoviosrdquo
^ sons de ldquofolhasrdquo
P2 Flauta EletroacuacutesticaP ^ sons de ldquofolhasrdquo
f ^ sons de ldquoassoviosrdquo
P3 Flauta EletroacuacutesticaP ^ nada
f ^ sons de tongue-ramNeste programa tambeacutem haacute uma camada eletroacuacutestica independente (sons como ldquorasgosrdquo) que determina aespacializaccedilatildeo da flauta
Eletroacuacutestica FlautaP ^ espacializaccedilatildeo estaacutetica
^ espacializaccedilatildeo em movimento
P4 Eletroacuacutestica independente sons de ldquofolhasrdquo
P5 Eletroacuacutestica independente sons de ldquoassoviosrdquo
FONTE O autor (2018)
Todos os programas tecircm tambeacutem uma faixa que soa no momento de sua ativaccedilatildeo
independentemente da amplitude da flauta e se relaciona interage com a nota tocada pela
flauta no momento167 Estas notas satildeo marcas estruturais da peccedila Inicialmente havia a
intenccedilatildeo de rastreaacute-las a fim de ativar os programas automaticamente Este recurso foi
experimentado e relativamente bem-sucedido Seria uma vantagem caso algum inteacuterprete
quisesse executar a peccedila sem o auxiacutelio de um performer especiacutefico para a difusatildeo
eletroacuacutestica Entretanto no caso de nossas performances eu necessitava estar presente para
167 Na pasta ldquoaudiordquo satildeo as seguintes faixas programa 2 ldquonoteFwavrdquo 3 ldquonoteDwavrdquo 4 ldquonoteP4wavrdquo 5 ldquoassobiofinalwavrdquo
143
diversas configuraccedilotildees do aparato eletroacuacutestico Por isso decidi eliminar tal recurso do patch
e assumir a funccedilatildeo de trocar os programas
511 Programa 1
A peccedila comeccedila com um crescendo da parte eletroacuacutestica solo (assovios)
evidenciando sua independecircncia em relaccedilatildeo agrave flauta-fala - assim nomearemos o conjunto que
representa o meio instrumental na peccedila A flauta-fala comeccedila incorporando o mesmo assovio
preacute-gravado com o qual funde e a medida que apresenta atividade com intensidade suficiente
para disparar o ldquogatilhordquo no patch a parte eletroacuacutestica responde com atividades de folhas
Aleacutem disso a espacializaccedilatildeo168 destas folhas acontece tambeacutem numa relaccedilatildeo com a amplitude
da flauta-fala quanto mais forte mais distante do centro da sala soam as folhas Este
movimento de afastamento das folhas eacute progressivo foi suavizado utilizando o objeto [line]
do Pd Os assovios por outro lado estatildeo fixos em sua localizaccedilatildeo de projeccedilatildeo na sala
Os materiais da parte instrumental tambeacutem podem ser agrupados nestas duas
categorias (assovio e folhas) e podem fundir ou contrastar com a parte eletroacuacutestica Ambos
fusatildeo e contraste estatildeo longe de serem absolutos O Quadro 6 apresenta possiacuteveis relaccedilotildees de
fusatildeo e contraste baseadas na Morfologia da interaccedilatildeo de Menezes (2006)
QUADRO 6 - FUSAtildeO E CONTRASTE NO PRIMEIRO PROGRAMA DE CHAtildeO DE OUTONO
Fusatildeo relativa Contraste relativo
Fluxo instrumental Assovios Folhas Folhas Assovios
Fluxo eletroacuacutestica Assovios Folhas Assovios Folhas
FONTE o autor (2019)
Quando a atividade da flauta-fala apresenta um material semelhante ao das folhas
acontece relativa fusatildeo Podemos enquadrar esta interaccedilatildeo na categoria de Bachrataacute (2010)
interaccedilatildeo por reproduccedilatildeo tiacutembrica ldquoo timbre do gesto eletroacuacutestico eacute um tipo de reproduccedilatildeo
do timbre do instrumento (usando sons instrumentais gravados pouco manipulados)rdquo
(BACHRATAacute 2010 p 167 traduccedilatildeo nossa169)
Por vezes um material de flauta-fala semelhante aos assovios devido a sua
168 O patch estaacute programado com duas opccedilotildees de difusatildeo esteacutereo e quadrafocircnico169 Original ldquothe timbre of electroacoustic gesture is a kind of reproduction of the timbre of the instrument
(using slightly manipulated recorded instrumental sound)rdquo (BACHRATAacute 2010 p 167)
intensidade dispararaacute sons de folhas causando relativo contraste Assim embora haja uma
regra invariaacutevel que relaciona a intensidade da flauta-fala com o material eletroacuacutestico isso
natildeo significa invariabilidade no eixo fusatildeo-contraste entre estes dois fluxos
Assim no programa 1 apresenta-se um fluxo independente (assovios) embora a
flauta-fala dialogue com ele atraveacutes do som de ldquossrdquo e outro dependente e homogecircneo com a
flauta o das folhas (ver representaccedilatildeo destas relaccedilotildees no Quadro 7) Eacute importante tambeacutem
notar que a flauta-fala e as folhas apresentam um caraacuteter fortemente gestual (incluindo o gesto
visual de aproximaccedilatildeo e afastamento do microfone) enquanto que o fluxo assovios eacute
primariamente textural170
512 Programa 2
O segundo programa inverte a relaccedilatildeo da intensidade da flauta-fala com a resposta
eletroacuacutestica Quando a intensidade da flauta ultrapassa o valor limite natildeo satildeo os sons de
folhas mas os de assovios que vecircm a tona A mesma relaccedilatildeo inversa afeta a espacializaccedilatildeo
Natildeo satildeo os mesmos sons do primeiro programa haacute uma variaccedilatildeo - especialmente a utilizaccedilatildeo
de um harmonizador sobre as amostras do primeiro
Na relaccedilatildeo entre fala e flauta haacute um tensionamento Busquei especialmente no
momento de revisatildeo apoacutes a primeira performance explorar mais a relaccedilatildeo entre o som do ldquorrdquo
como em ldquoperseguidasrdquo com o frullato da flauta O terceiro excerto da Figura 40 representa
um exemplo desta exploraccedilatildeo Haacute tambeacutem a inserccedilatildeo discreta do material de tongue-rams
associado a cliques de chaves Este eacute o principal material durante a accedilatildeo do programa
seguinte
513 Programa 3
Nos programas anteriores a intensidade da flauta-fala afetava o que soava (materiais)
e como soavam (espacializaccedilatildeo) os sons eletroacuacutesticos No terceiro programa o inverso
acontece a intensidade dos sons eletroacuacutesticos preacute-gravados afeta a espacializaccedilatildeo da flauta-
fala Um novo material eletroacuacutestico eacute incorporado o chamaremos rasgos171 Ele soa como
novidade ainda que seja proveniente de processamento dos sons de cliques de chaves jaacute
170 Gesto e textura (SMALLEY 1997) foram abordados em 332171 Na pasta ldquoaudiordquo do patch eacute a faixa ldquoclicks3wavrdquo
144
utilizados O patch rastreia a amplitude destes rasgos e quando esta ultrapassa determinado
valor limite o som da flauta-fala ao vivo eacute espacializado pela sala tal qual satildeo as folhas no
primeiro programa
Outro novo material eletroacuacutestico eacute incorporado neste programa Ele eacute composto por
sons processados (granulaccedilotildees e transposiccedilotildees para o grave) de tongue-rams Este material
vecircm a tona pelo mesmo processo de rastreamento da amplitude da flauta configurando
assim uma relaccedilatildeo de gatilho (WISHART 1996)
Os tongue-rams incorporados esparsamente jaacute no segundo programa preponderam
neste terceiro e alternam com a voz falada e tambeacutem com uma atividade mais idiomaacutetica da
flauta Isto significa uma alternacircncia entre modos de execuccedilatildeo cobrindo o bocal e posiccedilatildeo
ordinaacuteria que carrega uma forccedila visual Assim os gestos que surgem nesta alternacircncia se datildeo
neste ldquoabrir e fecharrdquo do som da flauta-fala expandindo e diminuindo o registro espectral
como um filtro em associaccedilatildeo com o gesto visual Quase como a alternacircncia entre a
percepccedilatildeo do som dentro drsquoaacutegua e fora dela
514 Programa 4 e 5
O quarto e o quinto programa natildeo apresentam relaccedilotildees parameacutetricas com o sinal da
flauta-fala O quarto foi inserido apoacutes a revisatildeo dura poucos segundos e serve como uma
conexatildeo entre o terceiro e o final Ele se constitui basicamente pelo que estamos chamando de
fo lhas Por outro lado o quinto programa consiste em sons de assovios semelhantes aos
iniciais
Uma ilustraccedilatildeo da relaccedilatildeo entre a parte instrumental e a eletroacuacutestica durante a peccedila
pode ser vista na Figura 41
145
146
QUADRO 7 - RELACcedilOtildeES ENTRE FLUXOS SONOROS EM CHAO DE OUTONO
03O75
O03OultDs
P1
Assovios
F2 F3 F4 F5
Folhas
RasgosTongue-ramsAmostra de iniacutecio de cada programa
o o
Flauta-fala S mdash J - S mdash J- AEspacializaccedilatildeo da flauta-fala
A seta indica uma relaccedilatildeo de ldquogatilhordquo (WISHART 1996) indica uma reaccedilatildeo de outro fluxo agravequele do qual ela parte A ausecircncia dela significa independecircncia dos fluxos
FONTE o autor (2019)
Eacute preciso lembrar que as relaccedilotildees de gatilho (WISHART 1996) que acontecem a partir
do rastreamento da amplitude da flauta-fala satildeo muitas vezes associadas ao movimento
corporal da performer ao se aproximar do microfone de controle Esta eacute uma exploraccedilatildeo
incipiente do aspecto visual mencionado em 35 O movimento estabelece uma relaccedilatildeo com a
resposta eletroacuacutestica o que oferece uma referecircncia gestual para o resultado sonoro Ele estaacute
notado na partitura atraveacutes dos ciacuterculos com setas (ver Figura 39) No viacutedeo da primeira
performance172 eacute possiacutevel ver como foi esta primeira experiecircncia Em alguns momentos
mesmo sem se aproximar a resposta eletroacuacutestica surgia Isto natildeo era um problema estava
previsto Entretanto em alguns momentos a indicaccedilatildeo de se aproximar estava sobre um
material em dinacircmica piano (som de ldquossrdquo) que natildeo ativava a resposta eletroacuacutestica Neste
caso avaliando posteriormente como ouvinte haacute a tendecircncia de continuar escutando o
resultado eletroacuacutestico como decorrente desta aproximaccedilatildeo ainda que seja na praacutetica
completamente independente
Natildeo houve muito rigor na aplicaccedilatildeo deste rastreamento de amplitude o que foi
intencional Todas as variaacuteveis assim satildeo flexibilidades da performance tipo do microfone
distacircncia do microfone movimento da performer valor limite (threshold) do patch Natildeo era
desejado que a cada gesto da flauta-fala houvesse uma reaccedilatildeo eletroacuacutestica Esta reaccedilatildeo era
( )
172 Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=l3-ULyfGk2kgt Acesso em 18 jan 2019
147
e de fato foi imprevisiacutevel
52 NASCER PEDRA MORRER NUVEM
Ergui a gola do sobretudo desci a aba do chapeacuteu ateacute perto dos olhos e troquei as dependecircncias do hotel pelas da cerraccedilatildeo Satolep estava apropriadamente decorada para minha festa solitaacuteria As coisas geometrizadas pelo frio mostravam-se volaacuteteis Linhas rigorosas agrave luz do dia eram agora ausecircncia de contornos Fazer trinta anos eraperder-me no nevoeiro tendo em vista a concretude da cidade ou o contraacuterio Umcatildeo flutuava atraacutes de uma charrete que passava O granito do meio-fio corria ao meu lado agraves vezes reluzente em sua umidade agraves vezes dissipado em vapor luminoso um outro catildeo de pedra e de nuvem catildeo de alguma mitologia condenado a nascer e morrer indefinidamente Nascer pedra e morrer nuvem Nascer nuvem e morrer pedra Trinta anos Soprei velinhas imaginaacuterias e minha alma revuloteou diante de mim (RAMIL 2008)
A peccedila Nascer pedra morrer nuvem (2018) para violatildeo e sons eletrocircnicos foi
composta para o violonista Eric Moreira no periacuteodo de maio a novembro de 2018 quando foi
estreada no SESC Paccedilo da Liberdade em Curitiba-PR no dia 22 O texto de Ramil (2008)
descreve imagens que tenho internalizadas e que ocupavam minha mente enquanto
compunha Trata-se de um reflexo da cidade de Pelotas (Satolep) Reencontrei este texto
durante o processo composicional Ele natildeo cumpriu funccedilatildeo estrateacutegica na composiccedilatildeo apenas
foi um pensamento presente que deu nome a peccedila
Dois aspectos direcionaram o processo criativo O primeiro se refere ao tema desta
pesquisa o interesse de explorar a textura em fluxos distintos e aspectos ambiacuteguos (fusatildeo
dissoluccedilatildeo contraste etc) e interativos (causalidades gatilhos) da relaccedilatildeo entre eles O
segundo era de ordem praacutetica trabalhar com sons fixados em suporte a fim de facilitar
possiacuteveis futuras performances Uma vez que natildeo eacute necessaacuterio um conhecimento de softwares
especiacuteficos o proacuteprio performer pode dar iniacutecio aos sons eletroacuacutesticos Aleacutem disso a
utilizaccedilatildeo de uma projeccedilatildeo em esteacutereo tambeacutem facilita a montagem da performance
Em conversas preacutevias agrave composiccedilatildeo o violonista jaacute havia demonstrado certa
preferecircncia por um tipo de sincronizaccedilatildeo como o da peccedila Synchronisms no 10 de Mario
Davidovsky Esta peccedila utiliza sons fixados em suporte e se vale de deixas eletroacuacutesticas que
facilitam entradas e sincronizaccedilotildees precisas do violonista A peccedila de Davidovsky foi uma
referecircncia importante neste processo criativo
O iniacutecio de Nascer pedra morrer nuvem apresenta quatro tipos de materiais
a) harmocircnicos naturais
148
b) campanella teacutecnica de instrumentos de cordas pinccediladas em que se utilizam cordas
soltas em movimentos escalares fazendo com que estas ressoem mais como pequenos
sinos (significado do termo em italiano)
c) frequecircncia contiacutenua foi composta a partir da gravaccedilatildeo de uma corda solta do violatildeo
omitindo-se o ataque justapondo repeticcedilotildees (com crossfades) da parte sustentada
(sustain) transpondo e criando glissandos posteriormente
d) sons percussivos compostos a partir de gravaccedilotildees do ataque ordinaacuterio (unha pinccedilando
a corda abafada por exemplo) e outros materiais percussivos173
A frequecircncia contiacutenua e a atividade do violatildeo (campanella e harmocircnicos) podem ser
percebidas como fluxos que se relacionam por similaridade de frequecircncias fundindo quando
alcanccedilam frequecircncias muito proacuteximas como na nota Reacute dos compassos 9 e 10 (ver Figura 42)
Os sons percussivos compotildeem um fluxo mais complexo pois tratam-se de sons mais
heterogecircneos entre si No momento inicial este fluxo eacute composto por eventos esparsos174 Ele
apresenta pouca relaccedilatildeo com os outros exceto por sincronias ocasionais175 e relaccedilatildeo tiacutembrica
com os ataques do violatildeo
FIGURA 42 - QUATRO MATERIAIS DE NASCER PEDRA MORRER NUVEM (COMPASSOS 8 a 10)
harmocircnicos
I frequecircncia contiacutenua
sonspercussivos
Fonte O autor 2019
O direcionamento de partir desta aacuterea sonoro-morfoloacutegica com preponderacircncia de
sons harmocircnicos (campanella harmocircnicos frequecircncia contiacutenua) para outra com maior
presenccedila de sons inarmocircnicos176 (ataques percussivos e outros materiais) movia a composiccedilatildeo
173 O compasso 56 apresenta alguns dos materiais usados na composiccedilatildeo destes sons percussivos eletroacuacutesticos (ver Figura 44) Trata-se da combinaccedilatildeo de duas atividades (1) percutir com polpa dos dedos da md ldquoaleatoriamenterdquo sobre o tampo o mais raacutepido possiacutevel e (2) rasgueado de me com cordas abafadas pela md com vaacuterios dedos em defasagem e usando as 6 cordas (som percussivo granular)
174 Eles natildeo estatildeo completamente indicados na partitura optei por indicar apenas os eventos que representassem um recurso de sincronia deixas para o inteacuterprete
175 Estes foram os principais sons usados como deixas (ver som percussivo no compasso 9 - Figura 42)176 A distinccedilatildeo de harmonicidade e inarmonicidade eacute abordada por Smalley (1997 p 120)
(atividade composicional) Um recurso para executar tal direcionamento foi utilizar sons
ldquoresiduaisrdquo inerentes agrave execuccedilatildeo do violatildeo o mencionado ataque da unha pinccedilando a corda e
aleacutem disso o ruiacutedo dos dedos deslizando sobre as cordas quando muda-se a posiccedilatildeo177 Este
uacuteltimo eacute incorporado progressivamente ateacute que alcanccedila um momento de transiccedilatildeo (compasso s
40 a 55 ver Figura 43) Neste momento haacute uma baixa atividade harmocircnica que permanece
constante e ao mesmo tempo uma intensificaccedilatildeo dos sons provenientes do deslizar dos dedos
sobre as cordas que por praticidade chamaremos ruiacutedo das cordas
FIGURA 43 - COMPASSOS 39 a 54 TRANSICcedilAtildeO EM NASCER PEDRA MORRER NUVEM (2018)
149
39
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FONTE O autor (2018)
Tal transiccedilatildeo evidencia o princiacutepio arquitetural (WISHART 1996) Haacute uma
diminuiccedilatildeo da presenccedila harmocircnica diminuiccedilatildeo da duraccedilatildeo dos arpejos do violatildeo de sua
177 Estes sons satildeo notados com uma cabeccedila de nota em forma de barra (ver Figura 43)
u
intensidade (dinacircmica) e da frequecircncia contiacutenua na parte eletroacuacutestica Por outro lado haacute
um aumento da duraccedilatildeo do ruiacutedo das cordas No comeccedilo desta transiccedilatildeo este ruiacutedo eacute
executado apenas pelo violatildeo Posteriormente a parte eletroacuacutestica repete multiplica
expande esses sons ateacute que preencham toda a textura Se utilizarmos a categoria atividade-
inatividade (SMALLEY 1997) nesta anaacutelise veremos um movimento contraacuterio entre
atividade dos fluxos harmocircnicos (descendente) e atividade dos fluxos inarmocircnicos
(ascendente)
No momento seguinte a esta transiccedilatildeo os sons percussivos satildeo explorados tambeacutem na
parte do violatildeo Satildeo combinadas duas teacutecnicas (1) percutir com polpa dos dedos da matildeo
direita (m d) ldquoaleatoriamenterdquo sobre o tampo o mais raacutepido possiacutevel (4 na Figura 44) e (2)
rasgueado de matildeo esquerda (m e) com cordas abafadas pela md com vaacuterios dedos em
defasagem e usando as 6 cordas (som percussivo granular) (5 na Figura 44) Somados aos
sons percussivos eletroacuacutesticos estes sons instrumentais fundem num uacutenico fluxo que
chamaremos de pedras Esta fusatildeo natildeo decorre tanto da similaridade espectral quanto da
sincronizaccedilatildeo de iniacutecio e teacutermino da atividade
FIGURA 44 - COMPASSOS 55 a 60 TREcircS FLUXOS
150
V
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FONTE O autor (2018)
E
3
E
Na parte eletroacuacutestica utilizei tambeacutem a gravaccedilatildeo de sons das cordas tocadas acima
da pestana do violatildeo Este material apresenta similaridade de ataque com as teacutecnicas
executadas pelo violatildeo neste momento entretanto apresentam conteuacutedos frequenciais (notas
agudas) ausentes nestas teacutecnicas A confusatildeo desta fusatildeo (quem estaacute fazendo o que) eacute
acentuada pela imprevisibilidade do resultado sonoro das teacutecnicas mencionadas e a alta
densidade de pequenos eventos tanto do meio instrumental quanto do eletroacuacutestico Este
fluxo de pedras existe independentemente daquele do ruiacutedo das cordas e interage com ele em
relaccedilotildees de causalidade (SMALLEY 1997)
A causalidade eacute evidente pois as pedras datildeo iniacutecio aos ruiacutedos das cordas (compasso
56) e datildeo fim a eles (compasso 58) como se o ligassem e desligassem (ver Figura 44) Mas
esta relaccedilatildeo eacute tambeacutem flexibilizada no compasso 60 quando o fluxo de pedras natildeo interfere
sobre o fluxo de ruiacutedo das cordas (ver Figura 44) Enquanto estes dois fluxos interagem haacute
concorrentemente um fluxo de harmocircnicos independente resquiacutecios da seccedilatildeo passada eou
pressaacutegios da seccedilatildeo final
A uacuteltima seccedilatildeo que aliaacutes foi a primeira a ser composta retoma a aacuterea sonoro-
morfoloacutegica harmocircnica inicial sem a presenccedila das interrupccedilotildees de sons percussivos Estaacute
presente um fluxo muito discreto de estalos (ver picos isolados no sonograma da Figura 45)
que natildeo afetam a preponderacircncia dos sons harmocircnicos Os materiais que compotildeem esta aacuterea
harmocircnica satildeo diferentes dos iniciais natildeo haacute a continuidade da semicolcheia haacute uma
presenccedila maior de harmocircnicos naturais e a parte eletroacuacutestica natildeo apresenta glissandos
amplos
Nesta seccedilatildeo os fluxos estatildeo estruturados em vozes A voz composta por notas tocadas
ordinariamente eacute a mais linear embora haja certa confusatildeo devido agrave proximidade da voz de
harmocircnicos e alguns cruzamentos entre elas A parte eletrocircnica daacute corpo agrave ressonacircncia de
algumas notas soando ora como uma extensatildeo da parte instrumental ora como uma
frequecircncia independente (ver Figura 45)
151
152
FONTE O autor (2019)
O final da peccedila propotildee uma interaccedilatildeo que estava latente nesta relaccedilatildeo entre os
materiais Tanto no comeccedilo quanto nesta seccedilatildeo final a parte eletroacuacutestica eacute articulada num
niacutevel microtonal com frequecircncias muito proacuteximas e glissandos Ao final busquei explicitar
este aspecto utilizando o bend no violatildeo com repeticcedilatildeo de notas e fazendo algo semelhante na
frequecircncia contiacutenua da parte eletroacuacutestica Dando mais tempo para o efeito neste final
tornou-se mais faacutecil perceber os batimentos como em In Memoriam Jon Higgins de Lucier
(analisada em 44) A Figura 46 apresenta os uacuteltimos compassos da peccedila
FIGURA 46 - COMPASSOS 89 a 93 BATIMENTOS
V
E
| nTN TN
TNesperar fim do tape
t e
Fonte O autor (2019)
Resumidamente o princiacutepio arquitetural (WISHART 1996) da peccedila consiste no
percurso ilustrado no Quadro 8 Apesar de a representaccedilatildeo lembrar outras que apresentamos
ela natildeo se refere aos fluxos e suas relaccedilotildees Trata-se de um mapeamento da presenccedila das
aacutereas sonoro-morfoloacutegicas da peccedila Estas podem estar presentes em fluxos quaisquer embora
estejamos conscientes de que nesta peccedila trabalhamos com os materiais em fluxos distintos e
isso faz com que haja certa coincidecircncia entre aacutereas sonoro-morfoloacutegicas e fluxos
153
QUADRO 8 - REPRESENTACcedilAtildeO DO PRINCIacutePIO ARQUITETURAL DE NASCER PEDRA MORRER NUshyVEM
Compassos 1 a 52 53 a 64 65 a 93
Qriir bomiAcirciiirrr bulluUiio iiqiiiiuiiiCcedilUo
Sons inarmocircnicos mdash _ _ _
Fonte O autor (2019)
Tal articulaccedilatildeo entre aacutereas sonoro-morfoloacutegicas eacute de fato uma articulaccedilatildeo formal Ela
evidencia a mencionada previsatildeo de Varegravese de que o timbre poderia se tornar ldquoum agente de
delineamento como as diferentes cores num mapa separando diferentes aacutereas e uma parte
integral da formardquo (VARESE apud SIMMS 1996 p 112)
154
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Nosso trabalho comeccedilou separando e aproximando dois acircmbitos distintos tecnoloacutegico
e sonoro-morfoloacutegico Interaccedilatildeo na muacutesica mista se refere agraves relaccedilotildees entre um performer e
um aparato tecnoloacutegico e ao mesmo tempo se refere agraves relaccedilotildees que os sons instrumentais e
ou eletroacuacutesticos mantecircm uns com os outros178 O caso de um sistema interativo que capta
um paracircmetro da performance e estabelece uma relaccedilatildeo direta com uma transformaccedilatildeo do
som captado eacute um exemplo no qual os acircmbitos distinguidos se impactam mutuamente Um
procedimento tecnoloacutegico de interaccedilatildeo daacute origem a relaccedilotildees sonoras interativas e estas
possivelmente suscitaram aquele Entretanto os impactos de um acircmbito sobre outro natildeo satildeo
generalizaacuteveis Uma mesma relaccedilatildeo sonora interativa pode existir ainda que natildeo se valha de
uma tecnologia interativa
Tendo em vista a impossibilidade de afirmaccedilotildees categoacutericas quanto agraves
correspondecircncias entre estes dois acircmbitos a questatildeo da preferecircncia por esta ou aquela teacutecnica
mais ou menos interativa (tecnologicamente) permanece particular O compositor poderaacute
seguir recomendaccedilotildees de outro mais experiente ou experimentar por si mesmo as vantagens e
desvantagens das teacutecnicas e tecnologias De nossa perspectiva esta querela dos tempos eacute
particular a cada compositor e a cada processo criativo A teacutecnica em tempo diferido oferece
ao compositor facilidade para modelar detalhar e introduzir contraste nos materiais
eletroacuacutesticos as teacutecnicas em tempo real oferecem facilidade para criar materiais
eletroacuacutesticos que fundem com e expandem o som instrumental Contudo ambos os
objetivos podem ser alcanccedilados com ambas as teacutecnicas As duas teacutecnicas se confundem
quando o sistema interativo em tempo real se vale de materiais preacute-gravados ou quando os
sons preacute-gravados mudam em tempo real por alguma accedilatildeo instrumental (por exemplo In
memorian Jon Higgins de Alvin Lucier) Em minha atividade composicional considero que
um sistema interativo que se valha de sons preacute-gravados aleacutem do som captado ao vivo eacute uma
opccedilatildeo mais interessante do que as excludentes Esta opccedilatildeo hiacutebrida une as vantagens de ambas
as teacutecnicas Implementei esta opccedilatildeo no patch de Chatildeo de outono de minha autoria
Um sistema interativo oferece agrave muacutesica eletroacuacutestica uma relaccedilatildeo com o performer
humano que carrega caracteriacutesticas humanas para a muacutesica como argumenta Garnett (ver p
178 No Capiacutetulo 2 nos ocupamos de separar e aproximar estes dois acircmbitos Os autores que fundamentaram esta investigaccedilatildeo foram Schrader (1991) Schulz (2010) Ribeiro et al (2016) Rowe (1993) Menezes (2006) Whaley (2009) Dias (2014) Stroppa (1999) Brummer et al (2001) Garnett (2001) Simon Emmerson (2013) Bachrataacute (2010) Smalley (1997) Ribeiro (2018) e Caesar (2018)
34) Ainda que as partes eletroacuacutesticas preacute-gravadas sejam fruto de uma performance em
estuacutedio e carreguem assim caracteriacutesticas humanas a relaccedilatildeo de performance centrada no
performer humano em palco eacute uma posiccedilatildeo mais explicitadora destes valores humanistas Esta
discussatildeo se insere numa discussatildeo maior e que provavelmente cresceraacute ainda mais nos
proacuteximos anos aquela que discute a relaccedilatildeo entre humano e maacutequina tanto do ponto de vista
teacutecnico quanto de uma perspectiva filosoacutefica e eacutetica O reflexo desta discussatildeo geral seraacute
provavelmente visto nas discussotildees musicais concernentes agrave muacutesica eletroacuacutestica mista e
outras iniciativas de arte com sons que implementam recursos como a inteligecircncia artificial
Desvencilhando-nos desta querela inicial podemos atentar de maneira especial para as
relaccedilotildees e interaccedilotildees sonoras presentes na muacutesica eletroacuacutestica mista A interaccedilatildeo neste
acircmbito analiacutetico natildeo eacute exclusividade da muacutesica mista embora nela se encontre muito
evidenciada Haacute por exemplo interaccedilatildeo entre vozes numa textura puramente instrumental e
tambeacutem entre gestos na muacutesica puramente eletroacuacutestica Na muacutesica mista haacute a soma e a
multiplicaccedilatildeo das possibilidades de relaccedilotildees instrumentais com as possibilidades de relaccedilotildees
eletroacuacutesticas Haacute relaccedilotildees e interaccedilotildees entre os sons dos diferentes meios envolvidos
Assim falar de interaccedilatildeo na muacutesica mista considerando apenas estes dois grupos de sons - os
instrumentais e os eletroacuacutesticos - eacute uma simplificaccedilatildeo da complexidade que nela se
apresenta Primeiramente porque estes grupos de sons natildeo satildeo tatildeo separados como eacute possiacutevel
crer - sons eletroacuacutesticos podem ser a exata reproduccedilatildeo de um som instrumental ou apenas
um efeito sobre o som instrumental Os dois trabalhos que abordam especificamente a
interaccedilatildeo na muacutesica mista o artigo de Menezes (2006 p 377-400) e a tese de Bachrataacute
(2010) baseiam-se especialmente nesta separaccedilatildeo entre sons instrumentais e sons
eletroacuacutesticos Embora estes estudos tenham resultados muito relevantes acreditamos que a
teoria precisa relativizar esta separaccedilatildeo baseada no fisiologismo teacutecnico e tecnoloacutegico Os
sons podem ser agrupados em fluxos independentemente de sua produccedilatildeo ter sido mecacircnica
ou eletromecacircnica (circuito - altofalante) Eacute preciso entatildeo atentar para como na experiecircncia
da escuta agrupamos os sons
Neste sentido a psicologia da audiccedilatildeo explica que segregamos o todo sonoro que
chega aos nossos ouvidos em fluxos auditivos distintos Esta segregaccedilatildeo acontece por
aspectos dos sons a correlaccedilatildeo entre iniacutecio e teacutermino dos componentes sonoros a diferenccedila
de localizaccedilatildeo espacial registro espectral entre outros Assim podemos distinguir sons que
vecircm de uma pessoa falando daqueles provenientes de um eletrodomeacutestico por exemplo Os
155
sons de cada um deles satildeo agrupados em fluxos auditivos distintos (BREGMAN 2004 2008
SHEPARD 1999)
Esta explicaccedilatildeo guarda relaccedilatildeo com a maneira como tradicionalmente distinguimos
partes simultacircneas de um todo musical Em muacutesica o termo usado para expressar a
complexidade das simultaneidades eacute textura Ela eacute formada por linhas e vozes simultacircneas
(fluxos auditivos) que interagem umas com as outras Para que identifiquemos uma destas
vozes e a diferenciemos de outra eacute preciso que haja continuidade nas caracteriacutesticas dos sons
que a compotildeem especialmente eou tradicionalmente timbre registro e sincronia de iniacutecio e
fim dos sons (SHEPARD 1999)
Aleacutem da voz um fluxo auditivo pode ser constituiacutedo de uma sonoridade Guigue
(2011) apresenta a ideia de sonoridade e a possibilidade de uma polifonia de sonoridades
Uma sonoridade eacute caracterizada por diversos aspectos como coleccedilatildeo de cromas particcedilatildeo
intensidade entre outros A principal diferenccedila em relaccedilatildeo a ideia de voz eacute que a sonoridade
pode se apresentar uma apoacutes a outra A voz eacute uma explicaccedilatildeo da segregaccedilatildeo da textura em
planos simultacircneos a sonoridade eacute propriamente uma textura Entretanto haacute a possibilidade
de uma polifonia de sonoridades o que seria desta forma uma textura de texturas Assim a
ideia de textura carrega em potencial um caraacuteter como o dos fractais
Esta concepccedilatildeo natildeo eacute estranha ao repertoacuterio do seacuteculo XX e tem seu fundamento na
ideia de uma textura de efeito global presente em obras de Anton Webern (Sinfonia Op 21
por exemplo) (SIMMS 1996) Este efeito global de uma textura em que natildeo atentamos para
vozes em desenvolvimento individual e linear mas sim para um todo resultante foi muito
explorado por compositores durante o seacuteculo XX Podemos lembrar das massas sonoras de
Ligeti (Atmospheres por exemplo) formadas por muitas linhas em uma micro-polifonia Em
Xenakis eacute possiacutevel perceber a simultaneidade de massas distintas (Pithoprakta por exemplo)
Estas texturas que formam massas quando sobrepostas soam simultaneamente instaurando
uma outra textura A primeira indica a configuraccedilatildeo de elementos do niacutevel micro enquanto
que a segunda indica uma configuraccedilatildeo destas microtexturas numa macrotextura A
concepccedilatildeo que integra estas duas ideias de textura natildeo foi identificada em nossas referecircncias
bibliograacuteficas Elas estatildeo presente separadamente se esta ou aquela depende do repertoacuterio agrave
que se estaacute se referindo Em nenhuma de nossas leituras sobre muacutesica eletroacuacutestica o termo
textura indicava o aspecto macro Na espectro-morfologia de Smalley (1997) por exemplo
textura contrapotildee gesto e se refere a uma continuidade sonora que assume um caraacuteter de
156
157
proporccedilotildees ambientais em oposiccedilatildeo agraves proporccedilotildees humanas do gesto Por conta destas
proporccedilotildees tendemos a prestar mais atenccedilatildeo aos detalhes internos do som Citamos
novamente o autor
Ao mesmo tempo haacute uma mudanccedila de foco da escuta - quanto mais lento o iacutempeto gestual direto tanto mais o ouvido procura se concentrar em detalhes internos (ateacute onde eles existam) Uma muacutesica que eacute primariamente textural assim se concentra na atividade interna agraves custas do iacutempeto antecipado179 (SMALLEY 1997 p 113shy114 traduccedilatildeo nossa)
Ao tratar de comportamento Smalley salienta que a metaacutefora pode ser aplicada entre
outros exemplos a um grupo de texturas (SMALLEY 1997 p 118) Ora se pensamos uma
textura de maneira anaacuteloga a uma voz este ldquogrupo de texturasrdquo representa uma configuraccedilatildeo
semelhante a que nos referimos no exemplo de Xenakis uma textura de texturas Para
diferenciar estes dois tipos de texturas nos referimos a microtextura e macrotextura Esta
nomenclatura eacute menos uma proposta teoacuterica a ser replicada do que um meio de indicar
diferentes acepccedilotildees no acircmbito deste trabalho unicamente Assim como exemplos eacute possiacutevel
haver uma macrotextura em que haja fluxos texturais (microtexturas) que soam
simultaneamente e ainda uma macrotextura em que haja um fluxo textural que soa
simultaneamente a outro gestual por exemplo
Portanto demonstramos assim que ao nos referirmos agrave interaccedilatildeo neste acircmbito
sonoro-morfoloacutegico eacute preciso considerar qual niacutevel estrutural estamos analisando Pode haver
interaccedilatildeo entre elementos que compotildeem as microtexturas como tambeacutem entre aqueles que
compotildeem a macrotextura Nosso interesse analiacutetico voltou-se sobretudo agrave macrotextura
aquela que eacute primeiro e mais facilmente percebida No caso de nossa anaacutelise de
Desintegration (41) por exemplo o fluxo que denominamos ataques agudos e ressonacircncias
era formado por gestos texturais Entretanto nos bastou compreendecirc-lo como um fluxo e
investigamos sua relaccedilatildeo com os outros Natildeo atentamos para a interaccedilatildeo entre os ataques
presentes no interior deste fluxo os diferentes timbres destes ataques etc nos interessava
mais o aspecto da macrotextura
Quando Guigue (2011 p 47-81) trata da polifonia de sonoridades salienta para a
segregaccedilatildeo do todo sonoro em fluxos distintos O uso deste termo como explicita o autor estaacute
179 Original ldquoAt the same time there is a change of listening focus - the slower the direct gestural impetus the more the ear seeks to concentrate on inner details (insofar as they exist) A music which is primarily textural then concentrates on internal activity at the expense of forward impetusrdquo (SMALLEY 1997 p 113-114)
intimamente relacionado agrave teoria da psicologia da audiccedilatildeo especialmente dos estudos de
Albert Bregman Tendo por base esta teoria entendemos que a ideia de fluxo eacute uma opccedilatildeo
interessante para indicar qualquer tipo de agrupamento de sons sucessivos que apresentam
continuidade em um miacutenimo de aspectos e podem se diferenciar de outro agrupamento
semelhantemente definido Em Wishart (1996) anterior aos estudos de Bregman fluxo
(stream) eacute uma maneira de pensar a separaccedilatildeo das simultaneidades de uma maneira menos
enrijecida e mais flexiacutevel liacutequida Os fluxos podem se dissolver um no outro Neste sentido
consideramos um termo adequado para se referir a muitos dos processos sonoros
eletroacuacutesticos que habitam regiotildees ambiacuteguas fronteiriccedilas e menos definidas Evidentemente
a anaacutelise pode se valer de outras terminologias como planos massas e camadas de acordo
com a intenccedilatildeo analiacutetica com vista agravequilo que se quer demonstrar O fluxo daacute conta de
ambiguidades dissoluccedilotildees fusotildees e contrastes progressivos A camada expressa a separaccedilatildeo
permanente pouco variaacutevel O plano indica a existecircncia de transparecircncias o primeiro plano
natildeo oculta o segundo plano e haacute movimentos de aproximaccedilotildees e distanciamentos em relaccedilatildeo
ao ouvinte Aliaacutes talvez estes movimentos atravessam os planos sejam proacuteprios de uma
espeacutecie de fluxo transversal A massa eacute um tipo especiacutefico de camada fluxo ou plano ela eacute
sempre textural Ainda assim a denominaccedilatildeo fluxo parece se adaptar mais facilmente a
diferentes situaccedilotildees Ele pode se apresentar estaacutevel como a camada pode estar emcruzar por
planos distintos pode ser uma massa Estas asserccedilotildees natildeo visam agrave definiccedilatildeo das
terminologias e carecem de exemplos e especificidades - algumas das quais foram exploradas
em nossa pesquisa Mas elas satildeo interpretaccedilotildees do que foi observado na teoria na anaacutelise e
na composiccedilatildeo
Os estudos cognitivos mencionados (BREGMAN 2004 2008 SHEPARD 1999)
bem como outros recursos teoacutericos da muacutesica (BERRY 1987 MENEZES 2006) nos ajudam
a pensar a distinccedilatildeo dos fluxos e a identificar caracteriacutesticas de separaccedilatildeo fusatildeo e
ambiguidades intermediaacuterias Entretanto haacute um outro aspecto que natildeo diz respeito apenas agraves
caracteriacutesticas sonoras mas tambeacutem a como as relacionamos com outras experiecircncias As
relaccedilotildees satildeo concebidas por um processo de referenciaccedilatildeo extriacutenseca (NATTIEZ 1990) Por
ouvir determinada relaccedilatildeo sonora nos referenciamos a experiecircncias externas agrave muacutesica Daiacute
podemos falar de comportamento dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo conflito-coexistecircncia sujeito e
contra-sujeito entre outros
A abordagem de Smalley (1997) sobre o comportamento oferece categorias que se
158
mostraram relevantes nas anaacutelises Os pares de oposiccedilatildeo domiacuteniosubordinaccedilatildeo e
conflitocoexistecircncia foram os principais recursos utilizados desta teoria Foram articulados
atraveacutes do modo de relacionamento atividade-inatividade tanto na anaacutelise de Desintegrations
de Murail quanto de Music fo r Snare Drum and Computer de Lippe Na peccedila de Lippe foi
possiacutevel representar o movimento dos fluxos em relaccedilatildeo a este eixo (atividade-inatividade) o
que evidenciou relaccedilotildees entre os fluxos neste paracircmetro movimento paralelo obliacutequo e
contraacuterio
Nossa anaacutelise de Desintegrations explorou tambeacutem os conceitos de Wishart (1996) A
transformaccedilatildeo harmocircnico-tiacutembrica da seccedilatildeo foi entendida como o princiacutepio arquitetural da
seccedilatildeo Entretanto algumas aacutereas sonoro-morfoloacutegicas dissimilares se mostram inseridas nesta
transformaccedilatildeo Neste sentido nossa anaacutelise tomou um rumo diferente da proposta de Wishart
que previa que estas aacutereas sonoro-morfoloacutegicas abarcassem todos os fluxos (como as
tonalidades abarcam todas as vozes) Extendendo a comparaccedilatildeo de Wishart com o tonalismo
poderiacuteamos dizer que eacute como se a peccedila fosse politonal Isto eacute as aacutereas sonoro-morfoloacutegicas
distintas encontram-se sobrepostas em muitos momentos Por isso foi possiacutevel entendecirc-las
cada uma como constituidoras de um fluxo Cada fluxo deriva do anterior partindo de uma
dependecircncia homogecircnea ou interativa inicial e indo para a independecircncia Esta eacute basicamente
a articulaccedilatildeo da dimensatildeo vertical do princiacutepio dinacircmico O quadro de Wishart (Quadro 3) foi
explorado como um graacutefico em duas dimensotildees para expressar a relaccedilatildeo de dois fluxos
iniciais (ver Figura 34) Na observaccedilatildeo da peccedila Nascer pedra morrer nuvem (52) os fluxos
tambeacutem se mostraram atrelados agraves aacutereas sonoro-morfoloacutegicas Eles carregam caracteriacutesticas
sonoras - que eacute tambeacutem o que os diferenciam - que delimitam estas aacutereas por sua maior
presenccedila ou ausecircncia
Na anaacutelise de Strange Autumn de Takasugi nos preocupamos em demonstrar a
plausibilidade de um fluxo visual conforme apontado em 35 Prezamos por apontar as
relaccedilotildees identificadas observando o mencionado viacutedeo da performance natildeo nos detendo a
particularidades das relaccedilotildees entre os fluxos ou de seus componentes internos Foi possiacutevel
identificar correspondecircncias variadas entre o fluxo visual e os fluxos sonoros Ressalta-se
neste aspecto trecircs possibilidades (1) a possibilidade de a accedilatildeo visual ser associada a um
resultado aural que esperamos ouvir Por exemplo quando o recitante abre a boca como se
falasse ldquoardquo e ouvimos o som correspondente - ldquoardquo Por outro lado (2) a accedilatildeo visual pode natildeo
corresponder a este tipo de expectativa causando assim um efeito de ventriloquismo uma
159
duplicaccedilatildeo estranha devido agrave sincronizaccedilatildeo labial (TAKASUGI 2016) por exemplo
quando o recitante articula como se falasse ldquolerdquo (da palavra leaves) e ouvimos em vez do som
esperado um som percussivo vagamente semelhante a um mecanismo de uma maacutequina de
escrever Aleacutem disso (3) a accedilatildeo visual pode ser independente e natildeo corresponder a qualquer
som Aspectos visuais tambeacutem foram apontados em Chatildeo de outono (51) Entretanto na
composiccedilatildeo da peccedila natildeo houve a preocupaccedilatildeo de considerar este aspecto um elemento da
textura Esta possibilidade me atrai pois faz com que tudo faccedila parte da peccedila olhares passos
viradas de paacuteginas etc E aleacutem disso se relaciona com esta questatildeo inerente agrave muacutesica
eletroacuacutestica a ambiguidade de percepccedilatildeo da produccedilatildeo e da fonte sonora Possivelmente
explorarei tais recursos visuais em composiccedilotildees futuras
Nossa abordagem sobre a obra de Cort Lippe buscou identificar com base nas notas
de programa das peccedilas peculiaridades e diferenccedilas entre os trabalhos com instrumentos e
sons fixados em suporte e aqueles com instrumentos e sistema interativo Apontamos a
tendecircncia de nas peccedilas que fazem uso de sons fixados em suporte os meios instrumental e
eletroacuacutestico serem concebidos com relativo contraste num diaacutelogo Nas peccedilas que fazem
uso de sistemas interativos a tendecircncia eacute de conceber estes dois meios numa maior fusatildeo
Music fo r Snare Drum and Computer se enquadra nesta segunda categoria Ainda assim foi
possiacutevel observar relativo contraste alcanccedilado especialmente por um processo de afastamento
da parte eletroacuacutestica em relaccedilatildeo agrave parte instrumental por meio de processamentos de maior
interferecircncia
Na anaacutelise de In Memoriam Jon Higgins destacamos a interaccedilatildeo em tempo real
baseada natildeo num sistema interativo mas num fenocircmeno (psico)acuacutestico - os batimentos
Devido a este fenocircmeno fusatildeo e contraste (MENEZES 2006) acontecem de maneira peculiar
nesta peccedila Apontamos tambeacutem as relaccedilotildees diretas e inversas entre paracircmetros como por
exemplo entre registro e frequecircncia de batimentos
Alguns conteuacutedos foram levantados como referenciais no Capiacutetulo 3 e natildeo foram
retomados ou natildeo ganharam grandes proporccedilotildees nas anaacutelises ou na composiccedilatildeo
caracteriacutesticas de relaccedilotildees entre vozes (BERRY 1987) questotildees de orquestraccedilatildeo (SIMMS
1996) aspectos da teoria de Guigue como a oposiccedilatildeo adjacente e a segmentaccedilatildeo (GUIGUE
2011) modelos de interaccedilatildeo de Bachrataacute (2010) e possivelmente outros Entretanto mais do
que pragmaacutetico o Capiacutetulo 3 eacute uma discussatildeo sobre a abordagem de uma macrotextura da
muacutesica eletroacuacutestica Ele natildeo apenas eacute um preacute-requisito dos capiacutetulos 4 e 5 mas sustenta a si
160
mesmo na funccedilatildeo de abrir e explorar esta discussatildeo Estes conteuacutedos foram importantes para
tratar da questatildeo central da pesquisa ldquo[] a caracterizaccedilatildeo e a interaccedilatildeo de fluxos distintos
percebidos na experiecircncia de escuta []rdquo (p 18) As anaacutelises dos capiacutetulos 4 e 5 objetivaram
trazer a teoria para um acircmbito da plausibilidade praacutetica apelando natildeo apenas para a
razoabilidade das ideias mas para a verificaccedilatildeo aural de suas possibilidades Neste sentido
nas anaacutelises natildeo tentamos incluir todos os recursos teoacutericos mas evidenciar as constituiccedilotildees e
interaccedilotildees nos valendo apenas daqueles que a partir da escuta nos pareciam mais adequados
O capiacutetulo 5 levou a discussatildeo para um acircmbito pessoal A atividade composicional natildeo
foi um ldquofluxordquo independente da pesquisa mas interagiu com ela A pesquisa por sua vez
surgiu de interesses composicionais e foi continuamente alimentado por eles Esta interaccedilatildeo
entre compor e pesquisar eacute o que faz esta pesquisa ser diferente de uma pesquisa em teoria e
anaacutelise A anaacutelise das peccedilas neste capiacutetulo se confundem com um memorial descritivo pois o
pesquisador natildeo eacute apenas o analista mas tambeacutem o compositor Os objetivos da pesquisa que
concerniam agrave constituiccedilatildeo e interaccedilatildeo de fluxos mais ou menos distintos eram tambeacutem
objetivos composicionais entretanto a metodologia foi distinta o pesquisar articulou a teoria
o compor os sons
Na anaacutelise de Chatildeo de outono foi possiacutevel notar uma estreita relaccedilatildeo entre
configuraccedilatildeo do sistema interativo e relaccedilotildees entre fluxos distintos A principal relaccedilatildeo
apontada foi de gatilho (WISHART 1996) que eacute neste caso tanto uma caracteriacutestica sonoro-
morfoloacutegica como um aspecto praacutetico-tecnoloacutegico da performance Na anaacutelise de Nascer
pedra morrer nuvem evidenciou-se a possibilidade de muacuteltiplos fluxos nos dois meios o
meio instrumental apresenta ateacute trecircs fluxos simultacircneos por exemplo
Tanto nas anaacutelises de Desintegrations Strange Autumn e Music fo r Snare Drum and
Computer quanto na abordagem das proacuteprias peccedilas Chatildeo de outono e Nascer pedra morrer
nuvem a investigaccedilatildeo dos fluxos sonoros apresentou implicaccedilotildees formais No capiacutetulo 4
analisamos apenas uma seccedilatildeo de cada peccedila entretanto no interior destas seccedilotildees foi possiacutevel
observar desenvolvimentos mudanccedilas responsaacuteveis por particionar (mais ou menos
claramente) o percurso musical Estas mudanccedilas estavam atreladas a desenvolvimentos e
mudanccedilas na macrotextura A investigaccedilatildeo da macrotextura do desenvolvimento de fluxos
sonoros da sua dominaccedilatildeo sobre ou sua subordinaccedilatildeo a outros fluxos das aacutereas sonoro-
morfoloacutegicas que manifestam ofereceu uma perspectiva dinacircmica da forma Em
Desintegrations e em Nascer pedra morrer nuvem notamos fluxos diretamente relacionados
161
com as aacutereas sonoro-morfoloacutegicas (WISHART 1996) que estes manifestam Aleacutem disso
notamos transiccedilotildees mais ou menos graduais de uma aacuterea para a seguinte devido ao
desenvolvimento de fluxos sonoros Em Strange Autumn a presenccedila e ausecircncia de elementos
texturais segmenta a seccedilatildeo analisada em duas partes Em Music fo r Snare Drum and
Computer as relaccedilotildees oscilantes de atividade-inatividade delineiam um percurso para a seccedilatildeo
Estas anaacutelises evidenciaram uma estreita relaccedilatildeo entre a textura e os aspectos formais das
peccedilas
Questotildees mais especiacuteficas das particularidades da diferenciaccedilatildeo entre os fluxos
tambeacutem podem ser abordadas em pesquisas futuras Isto eacute pode-se abordar quais satildeo os
paracircmetros aleacutem dos mencionados que nos permitem diferenciar os fluxos qual a forccedila que
eles tecircm nesta diferenciaccedilatildeo quais combinaccedilotildees de paracircmetros podem ser usados na
diferenciaccedilatildeo etc Ainda outra questatildeo eacute se os demais recursos da spectro-morfologia
(SMALLEY 1997) aleacutem daqueles utilizados nesta pesquisa (atividade-inatividade e
harmonicidade-inarmonicidade) podem cumprir esta funccedilatildeo de diferenciar os fluxos
processos de crescimento e de movimento movimentos de textura (microtextura) espaccedilo
espectral e densidade e espaccedilo-morfologia
Tendo observado que no eixo atividade-inatividade eacute possiacutevel analisar os movimentos
(paralelo obliacutequo e contraacuterio) de um fluxo (432) em relaccedilatildeo a outro podemos especular se o
mesmo natildeo seria possiacutevel em outros eixos (que descrevem aspectos ou paracircmetros) como
harmonicidade-inarmonicidade densidade de eventos ou inclusive aqueles que decorrem da
parametrizaccedilatildeo de algum aspecto particular em determinada peccedila Isto eacute pensar a interaccedilatildeo
entre os fluxos como uma relaccedilatildeo parameacutetrica Esta seria uma perspectiva quase matemaacutetica
passiacutevel de ser expressa em graacuteficos como fizemos na anaacutelise de Music fo r Snare Drum and
Computer (432) e provavelmente mais proacutexima da implementaccedilatildeo em recursos tecnoloacutegicos
- mapeamentos e outros procedimentos Ao mesmo tempo eacute preciso considerar que mesmo
que as relaccedilotildees sejam abordadas nestes termos elas fazem referecircncia a experiecircncias externas
agrave muacutesica As referecircncias comportamentais satildeo extriacutensecas (SMALLEY 1997) Isto eacute
baseando-nos numa relaccedilatildeo parameacutetrica (intramusical) dificilmente poderemos identificar
dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo ou conflito-coexistecircncia para isso eacute preciso fazermos referecircncia a
experiecircncias externas que se aproximem de alguma maneira do que estamos ouvindo
Esta pesquisa foi uma exploraccedilatildeo das possiacuteveis relaccedilotildees no interior da textura da
muacutesica eletroacuacutestica mista Por um lado buscou-se modelos teoacutericos para a concepccedilatildeo de
162
uma textura neste contexto por outro investigou-se no proacuteprio ato criativo musical
estrateacutegias de estruturaccedilatildeo desenvolvimento e interaccedilatildeo dos elementos da textura Nesta
segunda investigaccedilatildeo de ordem mais praacutetica optou-se por uma maior liberdade A exploraccedilatildeo
de relaccedilotildees texturais - constituir fluxos e colocaacute-los em interaccedilatildeo - na composiccedilatildeo natildeo foi
sistematizada Ainda que os dois processos tenham se influenciado mutuamente agrave
composiccedilatildeo reservou-se a liberdade em coerecircncia com a concepccedilatildeo pessoal de que ela tem
sua proacutepria origem caminho e destino e que eles satildeo artiacutesticos antes de serem cientiacuteficos
163
164
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172
ANEXOS
Anexo 1 Quadros de modelos de interaccedilatildeo gestual de Petra Bachrataacute (2010)
Anexo 2 Partitura de Chatildeo de outono (2017-8)
Anexo 3 Partitura de Nascer pedra morrer nuvem (2018)
Outros anexos gravaccedilotildees viacutedeos e patch disponiacuteveis em
lthttpsdrivegooglecomopenid=1Fyt16u4m5OwtHVfz1BkxWkOx104OoNyWgt
173
ANEXO 1 - QUADROS DE MODELOS DE INTERACcedilAtildeO GESTUAL DE PETRA
BACHRATAacute (2010)
I Modelos elementares de interaccedilatildeo gestual
A Interaccedilatildeo gestual por similaridade ou diferenccedila de alturafrequecircncia
1 Fusatildeo pela mescla de alturafrequecircncia idecircntica - interaccedilatildeo unissocircnica2 Fusatildeo por similaridade de frequecircncia
Fusatildeo no registro grave Fusatildeo no registro meacutedio Fusatildeo no registro agudo
3 Contraste por distinccedilatildeo de frequecircncia4 Interaccedilatildeo por flutuaccedilatildeo de bandas frequenciais5 Interaccedilatildeo baseada em ruiacutedo
C Interaccedilatildeo gestual por trajetoacuteria de intensidade1 Interaccedilatildeo crescendo2 Interaccedilatildeo decrescendo3 Interaccedilatildeo por intersecccedilotildees e cruzamentos (crossovers) em trajetoacuterias de intensidade4 Combinaccedilatildeo dos modelos anteriores
B Interaccedilatildeo gestual baseada em organizaccedilatildeo temporal
1 Interaccedilatildeo sincrocircnicaRegular- uniriacutetmica
Irregular- sincopada
2 Interaccedilatildeo assincrocircnicaRegularIrregularPoliriacutetmica
3 Interaccedilatildeo temporal proporcional por reduccedilatildeo ou multiplicaccedilatildeo de duraccedilatildeo ou padratildeo temporal4 Interaccedilatildeo por agrupamento textural5 Interaccedilatildeo atemporal6 Surrealismo socircnico temporal
D Interaccedilatildeo gestual de acordo com ascaracteriacutesticas tiacutembricas (similaridadediferenccedila)
1 Fusatildeo tiacutembricaInteraccedilatildeo por reproduccedilatildeo tiacutembrica Interaccedilatildeo por derivaccedilatildeo tiacutembrica Interaccedilatildeo por associaccedilatildeo tiacutembrica
2 Contraste tiacutembricoInteraccedilatildeo por dissociaccedilatildeo tiacutembrica
174
II Interaccedilatildeo gestual baseada no modelo tripartite de estrutura (onset-continuant-termination)
1 Interaccedilatildeo por ataque2 Interaccedilatildeo por iteraccedilatildeo3 Interaccedilatildeo por ressonacircncia (ataque-decaimento)4 Interaccedilatildeo por ressonacircncia invertida (ataque-decaimento invertido)5 Combinaccedilatildeo de interaccedilatildeo por ressonacircncia e por ressonacircncia invertida6 Interaccedilatildeo cadencial - interaccedilatildeo por terminaccedilatildeo gradual7 Interaccedilatildeo por cross-fading
III Interaccedilatildeo gestual contrapontiacutestica
1 Interaccedilatildeo repetitiva2 Interaccedilatildeo imitativa3 Interaccedilatildeo canocircnica4 Interaccedilatildeo canocircnica com loop5 Interaccedilatildeo proporcional
RitmoAlturaRitmo e altura
6 Contraponto entre gestos homogecircneos7 Contraponto entre gestos heterogecircneos8 Interaccedilatildeo de gatilho (triggering)
Interaccedilatildeo de gatilho pela potenciaccedilatildeo entre morfologias Interaccedilatildeo de gatilho por transformaccedilatildeo tiacutembrica
9 Contraponto pela divisatildeo do gesto
175
IV Interaccedilatildeo gestual baseada em caracteriacutesticas semacircntico-morfoloacutegicas
Direccedilatildeoa Direccedilatildeo de movimento no campo da altura
Interaccedilatildeo linearpor direccedilatildeo similar de movimento
- ascendente- descendente- plano
por direccedilatildeo diferente de movimento- convergente- divergente- reciacuteproco
Interaccedilatildeo curvilinearInteraccedilatildeo por manipulaccedilatildeo da direccedilatildeo no campo da altura
por contraccedilatildeo por expansatildeo
Interaccedilatildeo cecircntrica pericentral centriacutepeta centriacutefuga
EnergiaInteraccedilatildeo por energia constantemantida Interaccedilatildeo por aumento de energia Interaccedilatildeo por diminuiccedilatildeo de energia Interaccedilatildeo por energia transformadaconvertida Combinaccedilatildeo dos modelos anteriores
b Direccedilatildeo enquanto evoluccedilatildeo do tempo - direccedilatildeo no campo das duraccedilotildees
Interaccedilatildeo por velocidade constante Interaccedilatildeo por velocidade irregular Interaccedilatildeo por aceleraccedilatildeo Interaccedilatildeo por desaceleraccedilatildeo Tipos combinadosInteraccedilatildeo por aceleraccedilatildeo-desaceleraccedilatildeo Interaccedilatildeo por desaceleraccedilatildeo-aceleraccedilatildeo Interaccedilatildeo pela manipulaccedilatildeo (espicharcontrair) do tempopor contraccedilatildeo por expansatildeo
176
V Modelos espaciais de interaccedilatildeo gestual
10 Relaccedilatildeo independentemente11 Relaccedilatildeo interativa12 Relaccedilatildeo de gatilho (triggering)
FONTE Bachrataacute (2010 apecircndice traduccedilatildeo nossa)
ANEXO 2 - PARTITURA DE CHAtildeO DE OUTONO
177
Chatildeo de outonopara flauta e sons eletrocircnicos 2017-8Davi Raubach
Notas de Performance
F l a u t a
Ritmo e andamento estatildeo notados de trecircs maneiras1) Determinada com andamento e figuras riacutetmicas
J = c 54TN
gt )s s _
PP PP
2) Indeterminada (natildeo proporcional) livre (bisbigliando)c^WWWWWWWWVWWWWVVWVWWW
1]V ( bull ) --------d n s
mp
3) Determinada pelo tempo de fala deve-se tocar no ritmo com que satildeo ou seriam lidas as siacutelabas
tempo de falanormal
IT
- a e l e n -
Pg o c L s
Apenas como referecircncia pode-se considerar15 a 3 siacutelabas por segundo 3 a 4 siacutelabas por segundo5 a 7 siacutelabas por segundo mais raacutepido possiacutevel
lento normal raacutepidomais raacutep poss
(bull)s s
Assovio agudo feito com o som de ldquossrdquo boca em forma de ldquourdquo na posiccedilatildeo da nota indicada Deve-se variar o assovio livremente
tf 6
O microfone deve ficar agrave direita do (a) performer direcionado para a extremidade da flauta e em paralelo a ela O(a) performer deve fazer movimentos de aproximaccedilatildeo e afastamento em relaccedilatildeo ao microfone conforme a seguinte notaccedilatildeo
afastado do microfone
t f proacuteximo ao microfone
- A linha pontilhada entre os siacutembolos indica um movimento mais progressivo de afastamento ou aproximaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao microfone- Este movimento natildeo deve ser feito por passos mas apenas com o movimento do corpo especialmente o movimento de rotaccedilatildeo Deve-se buscar uma organicidade e certa expressividade no movimento corporal
p a - m - ccedil o
- Texto sublinhado sussurrar o texto junto agrave flauta na posiccedilatildeo indicada Para um resultado eficiente o sussurrar deve ser relativamente forte e com pressatildeo de ar suficiente para ativar ainda que sutilmente as alturas indicadas A imagem de algueacutem ofegante ilustra uma opccedilatildeo- Quando houver mais de uma nota para uma mesma siacutelaba deve-se fazer a primeira nota junto ao ataque da siacutelaba e as proacuteximas o mais raacutepido possiacutevel
A 1 ---N bull
0
M
Ecirc
y amp raquo1 1
0 ------
ra o 1 HH a s mdash r e d bull nL ao i r mdash r e - f uuml u - a
-mp f mp
Texto tachado o texto natildeo eacute falado Deve-se tocar as alturas no ritmo de uma leitura mental do texto Aleacutem do ritmo a acentuaccedilatildeo pode ser definida de acordo com essa leitura
Texto com vogais em subscrto omitir as vogais As notas devem ser ativadas apenas com o ataque das consoantes semelhante ao sussurrado
(4) mais proacuteximo
CU-
-tomdashm e n
mp[Texto dentro da caixa] falar normalmente o texto na posiccedilatildeo indicada Sempre dentro do bocal
HEI dentro do bocal posiccedilatildeo ordinaacuteria fora do bocal
slap tongue pizzicato
key click
0 key click com nota
tongue-ramPode ser feito tanto expirando quando inspirando
r ar
Cabeccedila de nota triangular som de ar com pouco som de nota Quando necessaacuterio eacute indicada a duraccedilatildeo acima da pauta
nota com ar
E l e t r o a c uacute s t i c a
O patch foi feito em PureData versatildeo 048 mas deve funcionar normalmente em versotildees superiores
A parte eletroacuacutestica estaacute dividida em 5 programas que devem ser ativados de acordo com as indicaccedilotildees na partitura Os programas constituem-se basicamente de sons preacute-gravados que tem sua amplitude e espacializaccedilatildeo determinadas em tempo real por uma relaccedilatildeo com a amplitude da flauta captada pelo microfone de controle Dessa forma pode-se resumir o comportamento dos programas da seguinte maneira
P 1 Flauta EletroacuacutesticaP ^ sons de assobios
f ^ sons de folhas
P 2 FlautaPf
Eletroacuacutesticasons de folhas
sons de assobios
P 3 Flauta EletroacuacutesticaP ^ nada
f ^ sons de tongue-ramNeste programa tambeacutem haacute uma camada eletroacuacutestica independente (sons como ldquorasgosrdquo) que determina a espacializaccedilatildeo da flauta
Eletroacuacutesticap - -
Flautaespacializaccedilatildeo estaacutetica
espacializaccedilatildeo em movimento
P 4 Eletroacuacutestica independente sons de folhas
P 5 Eletroacuacutestica independente sons de assobios
J = C 50 $ = c 400) (muito flexiacutevel oscilando andamento)
long (apenas[^l key clicks)
[ s i n i s t r o
- A linha preta indica que deve-se manter a textura contida na caixa (repeticcedilotildees de notas com articulaccedilatildeo tongue-ram key clicks e com alturas natildeo determinadas)- A linha tracejada indica que quando tiver de falar durante esta textura naturalmente o (a) performer deixaraacute de fazer tongue-ram mas continuaraacute a executar os key clicks
+ + + +
T
Chatildeo de outonoPara Valentina D aldegan
TFlauta
Eletroacuacutestica
p i
6
SS
Davi Raubach
TsJ = c 54
Ttempo de fala
lento C
-------------------------------------------Ucirc0)------------------------- 1 0 ) ------------------------ rj ) (0) V
s s SS__________________ sub
PP W PPa o l o n g o -
PPP
dTS TS
d
bi 6
TS
V t v 0 0 gt0 0 ------l deg n - g o d aS P e
P o f
0 0 (gtdiams) raquoltbull)0d r as s s
- PP
()SS
p
L n g 0 d as p e - d r a s
(bull)s s
6t
^ $ |]l
tempo de fala normal___
mdash gt mdash ----- mdash dtempo defala
-vwwvww (bisbigliando) mais raacutep poss____________C^rvvvvvvvwwvwvwvwwwwvvw^^wv ____
STraquo 0A e r l bdquo n - g bdquo d as p e
p m p
gt (tiw- flv ()frullato
d rd r s
TSJ mdash c 54 lt^|raquoWWWWVWWw
i r r e g u l a r e s
f f
tempo de fala n o rm a l [ZI-
subito
- T h T
(j) + (j)------------------- L l i i raquo L
V laquo7
v (yuml )-------------------------- L j i t w ---------------------------------- ^gt
gtf U | gt X
of f f _ S S _ SS__p - pp - f f mdash d o c a l - p a
m e n
P2mp
6 d A - d
IumlSt t = p as - s am v e n - t a n _ d 0 u m a s p o
AfL) b r ___
f f
Ocirc ^ mdash
6 J = C 54(J) TS
mdash pound----- --------yen t mdash mdash r f -------- ^ --------VS ~^ subito
----- V - rsquo J------frullato
h r
PP n f
CEI
(bull) (bull)[ZI
mfo
m p
l h as _
m c om p
a m a r e l a s e m p acirc n i c o frullato
f t gt f mdashs e g u i - d a s p e r s e g u i d a s d e
P fc o n
P3
TRCEI sempre
J mdash C 50 (J = c 400) (muito flexiacutevel oscilando andamento)
long (apenaskey clicks)
X xinregulares y
t a t a l a n d o J 1 p u l o s ]
CEI
T
2
tempo de fala raacutepido
p a s - s agrave m v e n t a n - d o a o s p u mdash l b s p a s s a m v e n - t a n - d o
laquotf mdashmdash t f t f ntf f f itjfa s d u - a s mdash a s - a s t a r - j a - d a s d e n e - g r o
f f f laquotf lt f flaquo t f mP P
a s d u a s a s a s t a r i a -
IT]rd a s d e n e g r o
- P
+
Tshort
7 A A[ t a t a l a n d o j [ a o s p u l o s |
^ srEcirc atilde bdquo1 f
[ m a i s p e r t o ] (a s d u a s a s a s ) s h [subito
- f f f
I [ t a r j a d a s ) [ s h
f f
(S )
ATf f f pp
J = c 54
SSp
voz
f
h m - atilde
t JP4 P5
3
ANEXO 3 - PARTITURA DE NASCER PEDRA MORRER NUVEM
184
Nascer pedra morrer nuvempara violatildeo e sons eletrocircnicos 2018Davi Raubach
p a ra E ric M ore ira
nascer pedra morrer nuvem2018
D avi R au b ach
J = 52 iacute
IViolatildeo
Electronics
f p p p p m f
f t --------- ^
)11 ^ mdash - -- P ----------------------------------
Eacute EumlJ ^ p J j r J 1
- 32
m
I
=Jj iacuteV
E
H j r J pound4p o o
0 ^ o m f mp f
H
6
s
15
V
iacute o reg
iEacute laquo ij p iPf = Ir
)
r ^ 7 |
^ reg jiacutep H4 J 1 mdash |-
^ mp f mvi4 _ l----- 1 1 1 1 1 1
reg-------------
p
EIcirc
mdash ^ mdash ldquo ---------------------------------mdash ^ ---------------------------------------- raquo mdash
mdash ^ mdash mdash ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
r i i - - T - s
) Repetir livremente ateacute a entrada da deixa eletroacuacutestica
1
21____1 f 0 _ ------1----1----1----1------- 1------- 1------- ------- 1------- ------- 1---- dr-
--- f f f f f f 6 f 1 f f f f f f bull r iaiiA[fiiiffint im 4 6 mdash mdash5 8 88 lt2 V
lt m f m p
p p p f
deixa
^ s c f i -E8
) Ruiacutedo das cordas raspar lateral do polegar eou parte da md sobre as cordas 6 5 e 4 com movimentos curtos Cada semicolcheia indica dois movimentos (para um lado e para outro) cada movimento corresponde a um a fusa
) Ruiacutedo das cordas raspar polpa do(s) dedo(s) da me em direccedilatildeo agrave casa XII
2
36
V jiT
3 + 2t i j a - j j ^ j r v r j r v r j r 3
amp4
m fp p p
o
o o o
L V sempre gt 0 0
V
laquo H P- f ^ = - p p ^ = ^ f
5 + 5 16 7 7
me
fs f
7 7 f
s f
7 7 7 f f
f8
) Here starts a cross fade section The notes articulated convencionaly fade out quite gradually and the noise of the fingers scraping the strings fade in
3
V
32f f
L32 1 lt-32-1f f
p p p
r 7 i i CU (L32lsquo lsquo32l
f f
50 reg n reg n
V
32f f
^ 32
f f
54
V
7 md
- n u u u u u u u u u
o u O U O U U H O i S O U -
56
V
6 (md)
E
a m i u a m u i
8va-
Iacute ~ 7 - ---------------- ------------- 1^ - -------------------fj
74)g
6
5)
7
p
m p
m m m m
iacute 7f
7 1m f
r u a f f 1 p =
4) Percutir com polpa dos dedos (e unhas) da md aleatoriam ente sobre o tampo o mais raacutepido possiacutevel
5) Rasqueado de me com cordas abafadas pela md com vaacuterios dedos em defasagem e usando as 6 cordas (som percussivo granular)
6) Equilibrar a intensidade dos dois sons a percussatildeo sobre o tampo deve soar na mesma intensidade que o rasgueado em direccedilatildeo a um a fusatildeo entre os dois
4
(md)mp
59
V
E
mp8vat
J 1 18 m f
m trnitm r m m m m mf
7 pound
J L BJ
8va-
m lt s f
uuml Lrm f
U L L f It uuml L JT
8
-A--1
va---
jppp
V
E
LV8va- -
laquo 4reg
J f iacute5 ^ -
p p p f - 32
E
IacuteP
7) Ruiacutedo de cordas Movimentos esparsos lentos e irregulares das duas matildeos
5
LV sempre (possible)f mp
f (3 r
68
Vbull 0 mdash mdash
mp etc C IV
reg iacute J
i r r p l =
VS
LJ ----- 4 r - r
i - 14 i r i 14 1 mp mp m p etc
C VII
73
V
C IV
6
t laquo
t P
copy
A 3 ltJip - r 3
_ r 3^ r32^ (6
^ hr raquo2 v ------- - 2 -^r mdash raquo f- -------- 4 - - mdash r iacute
lt4(S
mdash rsquo ------- -laquol
p mdash f ^ r mdash i
euro8--------- ----------- 1------- -----------------4 1 1 A ------------- 1--------- f ------ Ip mdash mdash 1mdash 1
C VII C V
C XII
C XII
78
VtT
p-i plaquo - Ur t J raquo r
f i p g
C VII
1 7
C V
C IX
pp
C IV
reg reg reg reg
83 fl f t s ---------^ j 0 tlJ i i f ltV L 3 4 r r r J |l
i t
raquo r r i t j r ^ mdashr i
v t h i t r r 1 1 - r [ j = M8 ^ reg ^ reg reg
7 7 copy ^
C V
v t - t t r - r r J g LAgrave
^ PS Pp mdash prego o
I esperar fim do tape
o
8) Nos casos de um bloco que m istura harmocircnicos e notas naturais ambos devem soar com mesma intensidade
6
AGRADECIMENTOS
Agradeccedilo aos professores Clayton Mamedes Roseane Yampolschi e Mauriacutecio Dottori pelos
conhecimentos compartilhados e pelos diversos insights sobre minhas composiccedilotildees e sobre
minha pesquisa
Agradeccedilo aos colegas Valentina Daldegan e Eric Moreira pelos processos criativos
compartilhados
Agradeccedilo ao meu orientador Felipe de Almeida Ribeiro pelo incentivo e motivaccedilatildeo e por
propiciar a expansatildeo de minhas referecircncias
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal
de Niacutevel Superior - Brasil (CAPES) - Coacutedigo de Financiamento 001
Agradeccedilo agrave CAPES agrave UFPR e ao Grupo de Pesquisa Muacutesica Nova
Agradeccedilo aos meus pais Vanda e Jorge por todo o apoio
Agradeccedilo a minha esposa Caroline Reichow pela cumplicidade e pelo cuidado
Agradeccedilo a Deus por estas pessoas
RESUMO
Esta pesquisa investiga a interaccedilatildeo na muacutesica que combina recursos eletroacuacutesticos e instrumentais numa performance - a muacutesica eletroacuacutestica mista Devido agrave presenccedila de tecnologias diversas na performance e composiccedilatildeo deste repertoacuterio ldquointeraccedilatildeordquo pode se referir agraves relaccedilotildees entre estes recursos tecnoloacutegicos e os performers Entretanto tambeacutem pode se referir agraves relaccedilotildees entre os sons que se nos apresentam na experiecircncia de escuta Distinguimos estes dois acircmbitos praacutetico-tecnoloacutegico e sonoro-morfoloacutegico e investigamos suas inter-relaccedilotildees a fim de focar no segundo Assim independentemente dos recursos tecnoloacutegicos utilizados investigamos as relaccedilotildees e interaccedilotildees entre eventos sonoros que como as notas de uma voz no contraponto tonal satildeo por um processo da escuta agrupados em camadas planos fluxos (WISHART 1996 BREGMAN 2004 2008) que por sua vez formam uma textura O principal problema desta pesquisa concerne agrave maneira como interagem estes fluxos na muacutesica eletroacuacutestica mista tendo em vista as particularidades relativas agrave uniatildeo dos meios instrumental e eletroacuacutestico Atraveacutes de uma revisatildeo bibliograacutefica levantamos ferramentas teoacutericas para investigar e descrever como se constituem se diferenciam se relacionam os fluxos sonoros entre si e como se relacionam com o aspecto visual da performance Anaacutelises de quatro peccedilas mistas aplicam as ferramentas levantadas a fim de verificar estrateacutegias especiacuteficas encontradas no repertoacuterio Aleacutem disso a experiecircncia do autor de compor duas peccedilas em interaccedilatildeo com a pesquisa eacute apresentada Esta pesquisa propotildee a distinccedilatildeo teoacuterica entre microtextura e macrotextura discute as teorias concernentes agrave interaccedilatildeo argumenta pela plausibilidade de considerar o aspecto visual como um elemento da textura em interaccedilatildeo com o que soa e evidencia a ambiguidade e a fluidez presentes nas relaccedilotildees sonoras e visuais deste repertoacuterio
Palavras-chave composiccedilatildeo interaccedilatildeo muacutesica eletroacuacutestica mista fluxos sonoros textura
ABSTRACT
This research investigates the interaction in music that combines electroacoustic and instrumental resources in a performance - mixed electroacoustic music Due to the presence of different technologies in the performance and composition of this repertoire ldquointeractionrdquo can refer to the relationships between performers and technologic resources Nevertheless it also can refer to the relationships between the sounds we perceive in the listening experience We distinguish these two ambits practical-technological and sound-morphological and investigate their interrelations in order to focus on the second one Then we investigate independently of the technological resources used the relationships and interactions between sound streams Through a listening process the sound events are grouped in layers plans or streams (WISHART 1996 BREGMAN 2004 2008) and constitute a texture the same way the notes are grouped in a voice in tonal counterpoint The main problem of this research concerns the way that these streams interact in mixed electroacoustic music considering its particularities We identify theoretic tools from a bibliographic revision to investigate and describe how the streams are constituted distinguished how they relate to each other and how they relate to the visual aspects of performance We apply these identified tools in the analysis of four mixed pieces in order to verify specific strategies found in the repertoire Moreover we present a personal experience of composing two pieces in interaction with the research This research proposes a theoretic distinction between micro-texture and macro-texture discusses the theories concerned to interaction argues about the plausibility to consider the visual aspect a textural element in interaction with sound and evidences the ambiguity and fluidity present in visual and sound relationships in this repertoire
Keywords composition interaction mixed electroacoustic music sound streams
LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES
FIGURA 1 - SYNCHRONISMSNO 10 (1992) DE MARIO DAVIDOVSKY (COMPASSOS
109-110) 22
FIGURA 2 - ESQUEMA DA PECcedilA A PIERRE DELL rsquoAZZURRO SILENZIO INQUIETUM
(1985) DE LUIGI NONO24
FIGURA 3 - COMPASSOS INICIAIS DE A PIERRE DELL rsquoAZZURRO SILENZIO
INQUIETUM (1985) DE LUIGI NONO25
FIGURA 4 - CONTEXTO DISCIPLINAR DA MUacuteSICA INTERATIVA 27
FIGURA 5 - EXCERTO DA PARTITURA DE JUPITER (1987) DE PHILIPPE MANOURY
29
FIGURA 6 - JANELA PRINCIPAL DO PATCH DE JUPITER (1987) DE PHILIPPE
MANOURY 30
FIGURA 7 - PROCESSO COMPOSICIONAL NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA 40
FIGURA 8 - REPRESENTACcedilAtildeO DOS ASPECTOS QUANTITATIVO E QUALITATIVO
DA TEXTURA 43
FIGURA 9 - ALGUMAS QUALIDADES DA TEXTURA 44
FIGURA 10 - DIAGRAMA DE QUATRO CONDICcedilOtildeES DA PERCEPCcedilAtildeO DE FLUXOS
AUDITIVOS DISTINTOS COM PADRAtildeO GALOPANTE H LH -H LH -H LH - 47
FIGURA 11 - POLIFONIA VIRTUAL NOS COMPASSOS 89 A 94 DA PARTITA NO 2 EM
REacute MENOR B W V 1004 DE J S BACH 47
FIGURA 12 - POLIFONIA VIRTUAL NOS COMPASSOS 121 A 123 DA PARTITA NO 2
EM REacute MENOR BW V 1004 DE J S BACH 48
FIGURA 13 - MELODIA DE TIMBRES NA ORQUESTRACcedilAtildeO DE WEBERN FUGA
(RICERCATA) NO 2 AU SD E M ldquoMUSIKALISCHENOPFER VON JOH SEB BACH 50
FIGURA 14 - EXEMPLO DE MACRO E MICROTEXTURA 53
FIGURA 15 - NIacuteVEIS DE ANAacuteLISE DA SONORIDADE55
FIGURA 16 - VETOR DE QUALIFICACcedilAtildeO DO GRAU DE OPOSICcedilAtildeO ESTRUTURAL
ENTRE UNIDADES SONORAS 56
FIGURA 17 - TELHAGEM DE ACORDO COM GUIGUE (2011)57
FIGURA 18 - SINTAGMA EM SYNCHRONIMS NO 10 (1992) DE MARIO
DAVIDOVSKY (COMPASSOS 271-272)57
FIGURA 19 - POLIFONIA DE SONORIDADES EM MOMENTO 23 DE ALMEIDA
PRADO 58
FIGURA 20 - a) REPRESENTACcedilAtildeO ESQUEMAacuteTICA DA REDE (LATTICE)
TRIDIMENSIONAL b) REPRESENTACcedilAtildeO ESQUEMAacuteTICA DE UM OBJETO
MUSICAL COMPLEXO SE MOVENDO NO CONTINUUM61
FIGURA 21 - DESENVOLVIMENTO DE UM FLUXO SEPARANDO EM OUTROS E
CONVERGINDO NOVAMENTE76
FIGURA 22 - DIVISAtildeO DE UM FLUXO EM OUTROS EM KONTAKTE (1958-60) DE
STOCKHAU SEN 77
FIGURA 23 - COMPASSOS INICIAIS DE MUSIC FOR FLUTE AND ISPW (1994) DE
CORT LIPPE 83
FIGURA 24 - MODELO DE ACcedilAtildeO-RESPOSTA DOS INSTRUMENTOS ACUacuteSTICOS90
FIGURA 25 - POSSIacuteVEIS RELACcedilOtildeES CONFUSAS NA PERCEPCcedilAtildeO DE ACcedilAtildeO-
RESPOSTA NO CONTEXTO DA MUacuteSICA MISTA90
FIGURA 26 - FUSAtildeO EM THREE VOICES (1982) DE MORTON FELDMAN
(COMPASSOS 15 A 18 DA PARTE B) 93
FIGURA 27 - EXCERTO DA PARTITURA DE APHASIA (2009) DE MARK
APPELBAUM 94
FIGURA 28 - ILUSTRACcedilAtildeO DE POSSIacuteVEIS COMPONENTES DA MACROTEXTURA
DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA103
FIGURA 29 - ACORDES-TIMBRE INICIAL E FINAL DA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE
DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN MURAIL107
FIGURA 30 - COMPASSOS INICIAIS TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS
(1982-3) DE TRISTAN MURAIL108
FIGURA 31 - COMPASSOS 11 A 13 DA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS
(1982-3) DE TRISTAN MURAIL110
FIGURA 32 - FLUXO DO CORNE INGLEcircS NA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE
DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN MURAIL111
FIGURA 33 - FLUXOS SONOROS NA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS
(1982-3) DE TRISTAN MURAIL (645 a 1006) 112
FIGURA 34 - RELACcedilAtildeO ENTRE DOIS FLUXOS EM DESINTEGRATIONS (1982-3)
SOBRE O QUADRO DE WISHART (1996) 113
FIGURA 35 - INIacuteCIO DA PARTE 1B DE STRANGE AUTUMN DE STEVEN KAZUO
TAKASUGI 117
FIGURA 36 - ILUSTRACcedilAtildeO DE BATIMENTOS ACCELERANDO E RITARDANDO NO
COMECcedilO DE IN MEMORIAM JO N HIGGINS128
FIGURA 37 - COMPASSOS 77-78 DE DOIS MOVIMENTOS PARA ACORDEAtildeO E PIANO
(2016) 135
FIGURA 38 - EXEMPLO DA UTILIZACcedilAtildeO DO TEXTO COMO SUBSTITUTO DE UMA
ESCRITA DE FIGURAS RIacuteTMICAS EM M EU TRECHO PREDILETO137
FIGURA 39 - VARIACcedilAtildeO MOTIacuteVICA A PARTIR DE UM FRAGMENTO TEXTUAL
(SISTEMAS 2 E 3)138
FIGURA 40 - DESLOCAMENTOS DE FLA UTA E FALA PARA O PRIMEIRO PLANO EM
CHAtildeO DE OUTONO 142
FIGURA 41 - RELACcedilOtildeES PRESENTES NOS PROGRAMAS DO PATCH143
FIGURA 42 - QUATRO MATERIAIS DE NASCER PEDRA MORRER NUVEM
(COMPASSOS 8 a 10)149
FIGURA 43 - COMPASSOS 39 a 54 TRANSICcedilAtildeO EM NASCER PEDRA MORRER
NUVEM (2018) 150
FIGURA 44 - COMPASSOS 55 a 60 TREcircS FLUXOS151
FIGURA 45 - COMPASSOS 67 a 71 INIacuteCIO DA SECcedilAtildeO FINAL 153
FIGURA 46 - COMPASSOS 89 a 93 BATIMENTOS153
SUMAacuteRIO
1 INTRODUCcedilAtildeO14
2 A INTERACcedilAtildeO NO CONTEXTO DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
21
21 TEacuteCNICAS DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA21
211 Sons fixados em suporte 21
212 Eletrocircnica em Tempo Real e Sistemas Interativos24
22 QUERELA DOS TEMPOS E A ESTEacuteTICA DA INTERATIVIDADE 31
23 ENTRE TECNOLOGIA E MORFOLOGIA SONORA 36
3 A INTERACcedilAtildeO NO AcircMBITO SONORO-MORFOLOacuteGICO 42
31 VOZES E TEXTURA42
311 Textura42
312 Vozes sons segregados em fluxos auditivos 45
313 Orquestraccedilatildeo timbre (tone-color) e textura48
314 Microtextura e macrotextura52
32 AS SONORIDADES 53
321 Oposiccedilatildeo Adjacente e Segmentaccedilatildeo56
322 Polifonia de Sonoridades58
33 ldquoVOZESrdquo NO CONTEXTO ELETROACUacuteSTICO 59
331 O Continuum 60
332 O Gesto e textura 61
333 Camadas fluxos e planos 63
334 O caraacuteter misto da muacutesica mista64
34 FLUXOS SONOROS 67
341 Simultaneidades da micro eou da macrotextura68
342 Fusatildeo e contraste constituiccedilatildeo e segregaccedilatildeo de muacuteltiplos fluxos69
343 Relaccedilatildeo entre fluxos distintos 78
3431 Comportamento 78
3432 Contraponto 84
3433 Interaccedilatildeo gestual 86
35 O FLUXO VISUAL NA MUacuteSICA MISTA 89
36 TEXTURA NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA 99
4 DISCUSSAtildeO E ANAacuteLISES 104
104
114
120
120
123
127
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177
184
DESINTEGRATIONS DE TRISTAN MURAIL
STRANGE AUTUMN DE STEVEN KAZUO TAKASUGI
MUSIC FOR SNARE DRUM AND COMPUTER DE CORT LIPPE
Instrumento(s) e computador e instrumento(s) e tape no trabalho de Cort Lippe
Music for Snare Drum and Computer
IN MEMORIAM JO N HIGGINS DE ALVIN LUCIER
SOBRE MEU PROCESSO COMPOSICIONAL
CHAtildeO DE OUTONO
Programa 1
Programa 2
Programa 3
Programa 4 e 5
NASCER PEDRA MORRER NUVEM
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
REFEREcircNCIAS
ANEXOS
ANEXO 1 - QUADROS DE MODELOS DE INTERACcedilAtildeO GESTUAL DE
PETRA BACHRATAacute (2010)
ANEXO 2 - PARTITURA DE CHAtildeO DE OUTONO
ANEXO 3 - PARTITURA DE NASCER PEDRA MORRER NUVEM
14
1 INTRODUCcedilAtildeO
Apoacutes a Segunda Guerra Mundial a utilizaccedilatildeo de recursos eletrocircnicos na muacutesica se
desenvolve em duas vertentes principais Na Franccedila a partir das iniciativas de Pierre
Schaeffer se desenvolvia a Musique Concrete na Radiodiffusion Teleacutevision Franccedilaise (RTF)
em Paris a partir de 1948 No mesmo periacuteodo por iniciativa de Herbert Eimert na Alemanha
se desenvolvia a Elektronische Musik no Norwestdeutcher Rundfunk (NWDR) em Colocircnia
Dentre os nomes da muacutesica concreta destaca-se Pierre Henry enquanto que do lado
eletrocircnico Karlheinz Stockhausen (MANNING 2004)1 Inicialmente estas duas vertentes se
diferenciavam fortemente Enquanto a vertente concreta fazia uso de sons gravados a vertente
eletrocircnica utilizava sons sintetizados no proacuteprio equipamento eletrocircnico Como consequecircncia
desta separaccedilatildeo se estabelece uma relaccedilatildeo dicotocircmica entre as duas teacutecnicas Esta relaccedilatildeo eacute
desafiada de maneira mais representativa na peccedila Gesang der Juumlnglinge (1955-56) de
Karlheinz Stockhausen A peccedila vai aleacutem desta dualidade ao combinar sons sintetizados com
gravaccedilotildees da voz de um adolescente (DIAS 2014 p 16-17) Como aponta Menezes (1996 p
40) ldquoPouco a pouco assistimos a uma afluecircncia cada vez mais abundante de sons concretos
no contexto da muacutesica eletrocircnica afluecircncia esta que criaraacute aliaacutes um precedente para a futura
emergecircncia da muacutesica eletroacuacutestica mistardquo
A uniatildeo de sons instrumentais ao vivo com sons eletrocircnicos surge no seio da
Elektronische M usik e apresentou no princiacutepio semelhante dicotomia Como afirma
Stockhausen
Neste sentido a muacutesica instrumental poderia existir ao lado da muacutesica eletrocircnica Em qualquer destas esferas deve-se trabalhar funcionalmente cada meio deve ser usado produtivamente geradores - gravadores de fita - alto-falantes devem produzir o que nenhum instrumentista seria capaz de tocar (e microfones deveriam ser deixados para repoacuterteres) partitura - inteacuterprete - instrumento devem produzir o que nenhum aparato eletrocircnico jamais seria capaz de gerar ou imitar ou repetir
[]Assim a muacutesica eletrocircnica e instrumental complementariam uma a outra se
moveriam mais e mais rapidamente para longe uma da outra - e somente assim despertam a esperanccedila de realmente se encontrarem em uma composiccedilatildeo de vez em quando
1 Aleacutem destas principais vertentes e tambeacutem relacionadas a elas eacute importante citar o Estuacutedio de Fonologia da Radiotelevisione Italiana (RAI) fundado em 1955 por Luciano Berio e Bruno Maderna em Milatildeo nos Estados Unidos as iniciativas de John Cage que jaacute em 1939 em sua peccedila Imaginary Landscape I utilizava recursos eletrocircnicos e a fundaccedilatildeo do Columbia-Princeton Electronic Music Center em 1958 Outros centros direcionados para esta muacutesica atualmente chamada eletroacuacutestica surgiram tambeacutem no Japatildeo e no Canadaacute (MANNING 2004)
15
As primeiras obras combinando muacutesica instrumental e eletrocircnica receberam suas primeiras performances em 1958 Precisamos encontrar as regras superiores de uma conexatildeo aleacutem do contraste - que representa o mais primitivo tipo de forma (STOCKHAU SEN 1961 p 67 traduccedilatildeo nossa2)
Esta uacuteltima frase sugere que o contraste entre os meios instrumental e eletroacuacutestico
era uma caracteriacutestica comum das primeiras peccedilas que os combinaram fato tambeacutem sugerido
pelos tiacutetulos de algumas obras como Musica su due Dimensione (1952-8) de Bruno Maderna
Differeacutences (1958-9) de Luciano Berio Rimes pour Diffeacuterentes Sources Sonores (1959) de
Henri Posseur por exemplo Ao mesmo tempo na citaccedilatildeo acima Stockhausen sustenta a
complementariedade da muacutesica instrumental e eletrocircnica Morgan (1991) aponta que a
resoluccedilatildeo de Stockhausen para a dicotomia eletrocircnico-instrumental ocorre especialmente em
meados de 1960 nas peccedilas Mikrophonie I (1964) Prozession (1967) and Kurzwellen (1968)
Laacute3 nas notas sobre Mikrophonie I (1964) Prozession (1967) e Kurzwellen (1968) pode-se ler do seu esforccedilo crescente para alcanccedilar uma total integraccedilatildeo dos dois tipos de muacutesica O princiacutepio baacutesico em todas estas peccedilas eacute usar os meios eletrocircnicos para transformar os eventos musicais iniciados pelos performers ao vivo o som final sendo o resultado de uma interaccedilatildeo eletrocircnica-instrumental (MORGAN 1991 p 200 grifo nosso traduccedilatildeo nossa4)
O ldquoesforccedilo por uma total integraccedilatildeo dos dois tipos de muacutesicardquo se coloca em oposiccedilatildeo
ao contraste inicial sobre o qual se baseavam as primeiras peccedilas para instrumentos e sons
eletrocircnicos Entretanto ao contraacuterio do que parece argumentar Morgan natildeo podemos
desconsiderar o sucesso da integraccedilatildeo alcanccedilado na produccedilatildeo anterior agrave deacutecada de 1960
especialmente em Kontakte (1958-1960) A peccedila puramente eletrocircnica utiliza sons que fazem
referecircncia a pele madeira e metal sua versatildeo mista para pianista e percussionista apresenta
2 Original ldquoIn this way instrumental music could exist alongside electronic music In either sphere one must work functionally each medium must be used productively generators - tape-recorders - loud-speakers must produce what no instrumentalist would be able to play (and microphones should be left to reporters) score - player - instrument must produce what no electronic apparatus would ever be able to generate or imitate or repeat []
Electronic and instrumental music would then complement each other would constantly move further and more rapidly away from each other - and only thereby awaken the hope of really meeting each other in a composition once in a while
The earliest works combining electronic and instrumental music received their first performances in 1958 We must find the superior laws of a connection beyond the contrast - which represents the most primitive kind of formrdquo (STOCKHAUSEN 1961 p 67)
3 Se refere ao terceiro volume de Texte que surge em 1971 e cobre os anos de 1963-704 Original ldquoThere in the notes on Mikrophonie I (1964) Prozession (1967) and Kurzwellen (1968) one reads
of his increasing efforts to achieve a total integration of the two types of music The basic principle in all these works is to use electronic means to transform the musical events initiated by live performers the final sound being the result of an electronic-instrumental interactionrdquo (MORGAN 1991 p 200)
16
uma preocupaccedilatildeo com a integraccedilatildeo com os sons eletrocircnicos evidenciada pela proacutepria
instrumentaccedilatildeo que inclui tambores (pele) woodblocks (madeira) e pratos (metal) por
exemplo
Colocado este desajuste consideremos ainda a citaccedilatildeo de Morgan (1991) para
observar o uso do termo interaccedilatildeo De acordo com o autor no caso da produccedilatildeo de
Stockhausen nos anos 1960 a ldquointegraccedilatildeo entre os dois tipos de muacutesicardquo acontece na
interaccedilatildeo entre recursos eletrocircnicos e instrumentos que compotildeem assim um uacutenico resultado
final Nesta concepccedilatildeo interaccedilatildeo se refere ao processo tecnoloacutegico que mistura os meios
instrumental e eletroacuacutestico e que se relaciona diretamente a um resultado sonoro
Entretanto esta relaccedilatildeo direta natildeo eacute uma constante ela normalmente varia de peccedila para peccedila
Natildeo haacute um paralelismo estaacutevel uma correspondecircncia clara entre processo tecnoloacutegico da
performance e o resultado sonoro Uma mesma interaccedilatildeo percebida num resultado sonoro
hipoteacutetico pode ser alcanccedilada por diferentes interaccedilotildees tecnoloacutegicas Em Mikrophonie I por
exemplo Stockhausen utiliza dois processos de produccedilatildeo sonora cada um com trecircs estaacutegios
trecircs muacutesicos trabalhando em paralelo o muacutesico que executa o tam-tam o microfonista e o
muacutesico que controla os filtros O compositor explica na partitura que
[] trecircs processos mutuamente dependentes mutuamente interativos e simultaneamente autocircnomos de estruturaccedilatildeo sonora estatildeo conectados uns com os outros os quais foram compostos como sincrocircnicos ou temporalmente independentes homofocircnicos ou em ateacute seis camadas polifocircnicas(STOCKHAUSEN 1973 p 9 traduccedilatildeo nossa5)
Entretanto como as relaccedilotildees entre estes estaacutegios do processo satildeo muito variaacuteveis
Stockhausen afirma ldquoE eu natildeo posso predizer como o resultado dessa interferecircncia vai soar
porque natildeo o sei ateacute ouvi-lordquo (STOCKHAUSEN 2009 p 75) Embora usando termos que
remontam a interaccedilatildeo entre vozes numa textura (polifonia por exemplo) o compositor estaacute
falando sobre um processo tecnoloacutegico da performance Por outro lado o resultado sonoro
ou como chamaremos o acircmbito sonoro-morfoloacutegico eacute pouco previsiacutevel Possivelmente ao
ouvir a peccedila percebemos duas camadas cada uma proveniente de cada processo com seus
trecircs estaacutegios e natildeo ouvimos as seis camadas do processo6 Assim enquanto a interaccedilatildeo nos
5 Original [] three mutually dependent mutually interacting and simultaneously autonomous processes of sound-structuring are connected with each other which were composed as synchronous or temporally independent homophonic or in up to six polyphonic layers (STOCKHAUSEN 1973 p 9)
6 Este exemplo aponta para a complexidade do fenocircmeno perceptivo da interaccedilatildeo a qual natildeo nos aprofundaremos neste trabalho
17
processos tecnoloacutegicos da performance se daacute em seis ldquocamadasrdquo a interaccedilatildeo percebida no
resultado sonoro pode ser entre duas camadas isso se for possiacutevel diferenciaacute-las
A interaccedilatildeo percebida no resultado sonoro diz respeito agraves relaccedilotildees de sincronia
independecircncia homofonia polifonia entre outras que se apresentam entre camadas distintas
Em trabalhos sobre estas relaccedilotildees na muacutesica eletroacuacutestica especialmente em (WISHART
1996) em vez de camadas (layers) o termo usado eacute fluxos (streams) Enquanto que camadas
se refere mais agrave textura e sua estratificaccedilatildeo independentemente de seu desenvolvimento no
tempo fluxos tem forte conotaccedilatildeo temporal A palavra do inglecircs stream carrega tambeacutem a
ideia de correnteza Estendendo esta metaacutefora ora pode tratar-se de um rio com uma
correnteza uacutenica ora eacute como um mar repleto de correntezas diferentes concorrentes e
interativas Por vezes a muacutesica apresenta um uacutenico fluxo por vezes uma seacuterie de fluxos que
concorrem e interagem convergem e divergem fundem e contrastam Tal ideia de interaccedilatildeo
como aspecto da disposiccedilatildeo (ou dissoluccedilatildeo) sonora em fluxos remonta agraves ideias pioneiras de
Edgard Varegravese Numa aula em 1936 Varegravese expotildee o seguinte pensamento
Quando novos instrumentos me permitirem escrever muacutesica como eu a concebo no lugar do contraponto linear o movimento das massas sonoras de planos intercambiantes seraacute claramente percebido Quando estas massas sonoras colidirem o fenocircmeno da penetraccedilatildeo ou repulsatildeo vai parecer acontecer Certas transmutaccedilotildees ocorrendo em certos planos pareceratildeo ser projetadas em outros planos movendo-se em diferentes velocidades e em diferentes acircngulos Natildeo haveraacute mais a velha concepccedilatildeo de melodia ou interaccedilatildeo [interplay] de melodias A obra inteira seraacute uma totalidade meloacutedica A obra inteira fluiraacute como flui um rio (VARESE 1966 p 11 traduccedilatildeo nossa7)
Varegravese denomina estas camadas ldquoplanos intercambiantesrdquo e ldquomassas sonorasrdquo e
imagina como poderiam interagir colidindo eou penetrando uma na outra repelindo uma agrave
outra fazendo com que uma transformaccedilatildeo em um plano apresente consequecircncias em outros
(ldquoser projetadasrdquo) Estas consequecircncias poderiam ser percebidas no caraacuteter cineacutetico
(ldquomovendo-se em diferentes velocidadesrdquo) e espacial (ldquoem diferentes acircngulosrdquo) destas
massas Tais caracteriacutesticas esteacuteticas satildeo apresentadas como opostas agrave ldquovelha concepccedilatildeo de
melodiardquo ou de ldquointeraccedilatildeo de melodiasrdquo Trata-se de uma concepccedilatildeo de massas sonoras
7 Original ldquoWhen new instruments allow me to write music as I conceive it taking the place of the linear counterpoint the movement of sound masses of shifting planes will be clearly perceived When these sound- masses collide the phenomena of penetration or repulsion will seem to occur Certain transmutations taking place on certain planes will seem to be projected onto other planes moving at different speeds and at different angles There will no longer be the old conception of melody or interplay of melodies The entire work will be a melodic totality The entire work will flow as a river flowsrdquo (VARESE e WEN-CHUNG 1966 p 11)
18
interativas que compotildeem uma totalidade (ldquomeloacutedicardquo) que flui ldquocomo flui um riordquo 8
Assim sendo esta pesquisa localiza-se no cenaacuterio geral da muacutesica eletroacuacutestica e
mais especificamente no contexto da muacutesica que une sons instrumentais ao vivo com sons
eletroacuacutesticos a chamada muacutesica eletroacuacutestica mista9 A interaccedilatildeo eacute palavra-chave neste
repertoacuterio e pode se referir entre outros agraves relaccedilotildees presentes (a) nos processos tecnoloacutegicos
da performance e (b) no acircmbito sonoro-morfoloacutegico (resultado sonoro) A segunda eacute a que
motiva esta pesquisa Reunimos e discutimos diversas perspectivas (BACHRATAacute 2010
MENEZES 2006 p 377-400 SMALLEY 1997 SOUZA 2010 WISHART 1996 entre
outros) que utilizam o termo interaccedilatildeo para tratar de relaccedilotildees sonoro-morfoloacutegicas
Entretanto a presente pesquisa apresenta um vieacutes proacuteprio Ela tem o objetivo de observar esta
interaccedilatildeo natildeo apenas no niacutevel dos eventos (nota a nota gesto a gesto) mas num niacutevel em que
estes eventos satildeo agrupados em categorias mais amplas Convencionalmente as notas satildeo
agrupadas em vozes Na muacutesica eletroacuacutestica os eventos sonoros podem ser agrupados em
camadas planos ou fluxos Com base em Wishart (1996) Bregman (2004 2008) e Guigue
(2011) a metaacutefora de fluxo seraacute a principal alternativa apresentada nesta pesquisa Embora
este conceito jaacute tenha sido explorado poucos estudos abordam a constituiccedilatildeo de tais
estruturas no repertoacuterio a que estamos nos direcionando Ao abordar a caracterizaccedilatildeo e a
interaccedilatildeo de fluxos distintos percebidos na experiecircncia de escuta10 da muacutesica eletroacuacutestica
mista busca-se preencher parte desta lacuna Nesta investigaccedilatildeo a pesquisa revisita e oferece
outras perspectivas para questotildees e conceitos sempre importantes para a composiccedilatildeo tais
8 Eacute interessante notar que embora Varegravese descreva caracteriacutesticas do resultado sonoro tudo isso seria possibilitado por ldquonovos instrumentosrdquo ou seja novos processos tecnoloacutegicos da performance juntando assim os dois acircmbitos que separamos inicialmente (tecnoloacutegico e sonoro-morfoloacutegico)
9 Existem outros termos para designar com mais ou menos restriccedilotildees teacutecnicas as possibilidades de muacutesica para instrumentos e sons eletroacuacutesticos musique mixte live electronic music interactive music Uma discussatildeo terminoloacutegica pode ser encontrada na introduccedilatildeo do livro Live Electronic Music (SALLIS et al 2018) Nas pesquisas brasileiras especialmente da UNeSp (GATI 2015 DIAS 2014 MENEZES 2006) o termo muacutesica eletroacuacutestica mista abarca qualquer muacutesica em que haacute a junccedilatildeo destes dois meios instrumental e eletroacuacutestico independentemente da tecnologia utilizada Assim eacute entendida tambeacutem nesta pesquisa
10 Tal delimitaccedilatildeo temaacutetica voltada para o que eacute percebido na experiecircncia da escuta natildeo deve ser entendida dentro de um paradigma que natildeo considera ldquomuacutesicardquo nada aleacutem do som Pelo contraacuterio esta pesquisa assume a compreensatildeo da muacutesica enquanto fato musical (NATTIEZ 1990 p 10-16) como uma atividade que inclui criaccedilatildeo performance (niacutevel poieacutetico) um rastro da criaccedilatildeo como a partitura a gravaccedilatildeo etc (niacutevel neutro) e recepccedilatildeo (niacutevel esteacutesico) E que estas funccedilotildees de compositor performer e ouvinte podem se mesclar em um uacutenico indiviacuteduo Entretanto por delimitaccedilatildeo do escopo o foco estaacute no niacutevel neutro no som resultante da criaccedilatildeo e da performance As representaccedilotildees graacuteficas deste som (e g espectrograma) ou de instruccedilotildees para obtecirc-lo (partitura) satildeo utilizadas na medida em que possibilitam ilustrar o aspecto sonoro Evidentemente natildeo estamos isentos aos outros niacuteveis acessamos o niacutevel neutro de uma perspectiva de recepccedilatildeo (niacutevel esteacutesico) ao mesmo tempo que enquanto pesquisador compositor estou interessado em estrateacutegias de que possa me valer no trabalho criativo (niacutevel poieacutetico) interesse que o leitor possivelmente compartilha
19
como vozes textura e contraponto de forma a dialogar com o contexto atual de produccedilatildeo
musical no qual o autor estaacute inserido11
As concepccedilotildees de interaccedilatildeo (a e b) satildeo abordadas no capiacutetulo 2 como preliminares agrave
discussatildeo principal da dissertaccedilatildeo que foca na interaccedilatildeo como uma relaccedilatildeo sonoro-
morfoloacutegica (b) Apresentamos neste capiacutetulo os principais processos tecnoloacutegicos utilizados
na muacutesica eletroacuacutestica mista abordamos a discussatildeo conhecida como ldquoquerela dos temposrdquo
e as relaccedilotildees entre processos tecnoloacutegicos e resultado sonoro
No capiacutetulo 3 satildeo abordados dois sentidos de uma mesma via Primeiramente
partindo destas reflexotildees do acircmbito eletroacuacutestico nos perguntamos qual seria o lugar da
interaccedilatildeo aparente no resultado sonoro na muacutesica puramente instrumental Posteriormente
tendo abordado os conceitos de voz textura (31) e sonoridade (32) nos perguntamos como
abordar o tema no contexto eletroacuacutestico Fazemos uma breve discussatildeo terminoloacutegica em
torno dos termos camadas fluxos e planos A ideia de fluxo sonoro eacute apresentada como a
principal alternativa para abordar o tema neste contexto (34) A constituiccedilatildeo e segregaccedilatildeo dos
fluxos satildeo abordadas principalmente atraveacutes da morfologia da interaccedilatildeo (MENEZES 2006
p 377-400) A relaccedilatildeo entre eles a partir das ideias de comportamento (SMALLEY 1997)
contraponto (WISHART 1996) e interaccedilatildeo gestual (BACHRATAacute 2010) No subcapiacutetulo 35
a importacircncia do aspecto visual na performance de muacutesica mista eacute avaliada E finalmente a
partir destes levantamentos apresentamos um esboccedilo do que pode ser a textura na muacutesica
eletroacuacutestica mista (36)
O capiacutetulo 4 apresenta anaacutelises de quatro peccedilas mistas feitas a partir das teorias
levantadas Os objetivos de tais anaacutelises satildeo
a) Identificar fluxos sonoros e visuais
b) Identificar relaccedilotildees entre eles
c) Apontar desenvolvimentos e transformaccedilotildees destas relaccedilotildees
Em certa transgressatildeo do modelo de escrita dos capiacutetulos anteriores em que buscou-se
um distanciamento do autor o capiacutetulo 5 explicita o pesquisador-compositor como
interferente delineador desta pesquisa imerso em seus proacuteprios processos criativos As peccedilas
Chatildeo de outono e Nascer pedra morrer nuvem compostas durante o mestrado satildeo abordadas
atraveacutes das teorias estudadas
Os anexos satildeo partituras gravaccedilotildees e patches ldquorastrosrdquo do processo criativo de duas
11 Esta espeacutecie de revisatildeo conceitual complementa a reflexatildeo sem invalidar os meacutetodos jaacute utilizados para descrever inter-relaccedilotildees (harmonia contraponto voz textura etc)
peccedilas compostas durante o mestrado Chatildeo de outono para flauta e sons eletrocircnicos e Nascer
pedra morrer nuvem para violatildeo e sons eletrocircnicos
20
2 A INTERACcedilAtildeO NO CONTEXTO DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
21
O termo interaccedilatildeo tem sido aplicado a diferentes relaccedilotildees presentes no fazer musical12
A que mais nos interessa neste trabalho eacute a relaccedilatildeo sonoro-morfoloacutegica entre os materiais que
se agrupam em fluxos sonoros na experiecircncia da escuta Entretanto eacute importante esclarecer
previamente a distinccedilatildeo entre dois usos do termo interaccedilatildeo no contexto da muacutesica mista
a) Aquele que se refere agraves questotildees tecnoloacutegicas da performance
b) Aquele que se refere agraves questotildees sonoro-morfoloacutegicas
Grosso m odo os aspectos sonoro-morfoloacutegicos concernem ao som e sua organizaccedilatildeo
e podem ser avaliados independentemente dos aspectos praacuteticos tecnoloacutegicos da performance
ou mesmo do processo de composiccedilatildeo13 Para elucidar a diferenccedila do tema interaccedilatildeo nestes
dois acircmbitos neste capiacutetulo as teacutecnicas da muacutesica mista (21) e as discussotildees sobre suas
vantagens e desvantagens para a performance e para composiccedilatildeo (22) satildeo apresentadas E
finalmente questionamos as intersecccedilotildees entre estes dois usos do termo interaccedilatildeo (23)
21 TEacuteCNICAS DA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
Podemos classificar grosseiramente as teacutecnicas de performance de peccedilas mistas entre
aquelas que utilizam os sons eletroacuacutesticos fixados em suporte processados em tempo real
eou provenientes de um sistema interativo Estas teacutecnicas natildeo satildeo excludentes as peccedilas
podem fazer um uso misto delas
211 Sons fixados em suporte
A primeira teacutecnica utilizada para combinar instrumentos acuacutesticos e sons
eletroacuacutesticos usada principalmente a partir dos anos 1950 foi aquela em que estes sons satildeo
elaborados previamente em estuacutedio e fixados em um suporte tecnoloacutegico (fita magneacutetica -
tape CD ou disco riacutegido) para serem tocados no momento da performance Nesta teacutecnica eacute
importante considerar a coordenaccedilatildeo (sincronizada ou natildeo) entre os meios instrumental e
12 Um trabalho que avalia diferentes usos do termo eacute o de Mamedes (2016)13 O termo sound morphology eacute usado diversas vezes por Wishart (1996) e encontra forte relaccedilatildeo com a ideia de
espectro-morphology (SMALLEY 1997) A intenccedilatildeo eacute delinear analiticamente um campo em que possamos falar dos aspectos ouvidos da muacutesica sem nos ater a questotildees de produccedilatildeo sonora Este uso do termo natildeo deve ser confundido com a morfologia enquanto estudo da forma musical (periacuteodo frases seccedilotildees etc) ainda que se este estudo se voltasse tambeacutem para as micro-estruturas as duas concepccedilotildees poderiam se encontrar
22
eletroacuacutestico e quais satildeo os recursos utilizados na performance para estabelececirc-la Segundo
Schrader (1991) os compositores tentaram resolver os problemas de coordenaccedilatildeo entre
elementos ao vivo (instrumentais) e preacute-gravados com uma de quatro maneiras diferentes
1) O material eletroacuacutestico foi preacute-gravado mas eacute controlado em tempo real por um
performer Imaginary Landscape No 1 (1939) de John Cage Marginal Intersections (1951)
de Morton Feldman
2) O material eletroacuacutestico foi preacute-gravado e eacute alternado com a performance ao vivo
Deserts (1949-1954) de Edgard Varegravese Concerted Piece fo r Tape Recorder and Orchestra
(1960) de Otto Luening e Vladimir Ussachevsky
3) O material preacute-gravado natildeo coordena precisamente com os elementos ao vivo
Musica su due dimensione (1952 revisada em 1958) de Bruno Maderna
4) O performer deve seguir e sincronizar com o material preacute-gravado Capriccio fo r
violin and two sound tracks (1952) de Hank Badings Kontakte (1960) de Karlheinz
Stockhausen (SCHRADER 1991 p 93)
Deve-se acrescentar que o quarto modo de coordenaccedilatildeo pode acontecer com o auxiacutelio
de um ponto com metrocircnomo de uma regecircncia programada em tela de deixas dos sons
eletroacuacutesticos Na peccedila Synchronism no 10 (1992) para violatildeo e tape de Mario Davidovsky
eacute possiacutevel observar pontos em que a sincronia eacute facilitada por deixas da parte eletrocircnica (ver
Figura 1)
FIGURA 1 - SYNCHRONISMS NO 10 (1992) DE MARIO DAVIDOVSKY (COMPASSOS 109-110)Giusto
Guitar
liberamente J ) = J = 120m m p
mdash d r -h iplusmn -------------1 1 111 raquo 11 L = 1
Tape
9 -
atrade
ecirc
cue
urpm f
Repeat in any order until tape enters on C on beat three
FONTE Transcrito de Davidovsky (compositor) (1995)
Ding (apud SCHULZ 2010 p 27-29) apresenta outra classificaccedilatildeo de coordenaccedilatildeo
com sons preacute-gravados em relaccedilatildeo agrave maneira com que o compositor lida com a sincronizaccedilatildeo
e a expressa na partitura A classificaccedilatildeo eacute extensiacutevel a outras instrumentaccedilotildees que natildeo piano
e sons preacute-gravados - tema de sua pesquisa Aleacutem disso mais de um tipo de sincronizaccedilatildeo
pode ser utilizado numa mesma peccedila As possibilidades satildeo
a) Riacutetmica independente com sincronizaccedilatildeo por seccedilotildees o instrumentista tem liberdade
para fazer variaccedilotildees temporais no acircmbito de cada seccedilatildeo atentando apenas para o iniacutecio e fim
delas O compositor pode indicar na partitura a minutagem e o inteacuterprete pode usar um
cronocircmetro para acompanhar a troca de seccedilotildees
b) Riacutetmica livre com sincronizaccedilatildeo relativa a partitura natildeo utiliza indicaccedilatildeo de
minutagem (sem necessidade de metrocircnomo) mas possui uma representaccedilatildeo graacutefica da parte
eletroacuacutestica e o inteacuterprete se guia por sinais (setas linhas etc) que indicam a relaccedilatildeo entre
os eventos preacute-gravados e os que executaraacute Esta estrateacutegia depende muito do estudo para
encontrar os pontos de sincronia com a parte eletroacuacutestica deixando os outros momentos
com uma liberdade riacutetmica maior para o inteacuterprete
c) Sincronizaccedilatildeo estrita com riacutetmica livre diferentemente da sincronizaccedilatildeo por seccedilotildees
esta geralmente exige sincronia de evento a evento ou de segundo a segundo A escrita riacutetmica
eacute flexiacutevel mas os pontos de sincronia satildeo indicados com a minutagem sendo imprescindiacutevel o
metrocircnomo no estudo destas peccedilas
d) Sincronizaccedilatildeo estrita a partir de meacutetrica fixa a sincronia acontece por uma escrita
riacutetmica precisa tanto dos eventos instrumentais quanto eletroacuacutesticos Pode apresentar
inclusive notaccedilotildees precisas de andamento accelerando e ritardando
Abaixo estatildeo alguns exemplos de peccedilas para instrumento(s) e sons fixados em suporte
que apresentam diferentes tipos de sincronizaccedilatildeo entre instrumento e suporte
Karlheinz Stockhausen Kontakte (1958-1960) para piano percussatildeo e tape
Luciano Berio Diffeacuterences (1959) para flauta harpa viola violoncelo e tape
Jean-Claude Risset Inharmonique (1977) para soprano e tape
Mario Davidovsky Synchronism No 9 (1988) para violino e sons eletrocircnicos
Flo Menezes Parcours de l rsquoentiteacute (1994) para flauta amplificada percussatildeo e sons
eletroacuacutesticos
Joatildeo Pedro Oliveira Mosaic (2010) para piano e sons eletrocircnicos
23
24
212 Eletrocircnica em Tempo Real e Sistemas Interativos
Outra maneira de combinar instrumento e sons eletroacuacutesticos usada principalmente a
partir de meados de 1960 eacute aquela que usa equipamentos eletrocircnicos para processar o som do
instrumento no momento da performance14 Haacute uma seacuterie de processamentos mais utilizados
entre eles delays harmonizers espacializadores filtros reverbs e moduladores por anel Tais
processos podem se apresentar de maneira fixa ou entatildeo serem controlados por um performer
ao vivo A figura 2 demonstra o esquema da peccedila A Pierre D ellrsquoAzzurro Silenzio Inquietum
(1985) para flauta contrabaixo clarinete contrabaixo e eletrocircnica em tempo real de Luigi
Nono
FONTE Nono (compositor) (1996)
Nesta peccedila a partitura conteacutem aleacutem de vaacuterias indicaccedilotildees preliminares sobre a
configuraccedilatildeo deste sistema uma pauta para controle da dinacircmica da parte eletrocircnica (ver
Figura 3)
14 Tal estrateacutegia se encontra na categoria mais ampla chamada live-electronics Isto porque live-electronics ou eletrocircnica em tempo real pode incluir performances com equipamentos eletrocircnicos mesmo na ausecircncia de instrumentos convencionais
25
FIGURA 3 - COMPASSOS INICIAIS DE A PIERRE DELL rsquoAZZURRO SILENZIO INQUIETUM (1985) DE LUIGI NONO
J= 30 ca
Esta teacutecnica tem a caracteriacutestica de expandir a sonoridade instrumental a ponto de
falarmos em meta-instrumentos Ribeiro et al (2016) apontam que A Pierre se trata mais do
que uma peccedila para dois solistas de uma muacutesica eletroacuacutestica em que flauta e clarinete satildeo
abordados como geradores de som assim como o satildeo os osciladores e os geradores de ruiacutedo
Deve-se ressaltar que o resultado eletroacuacutestico dependeraacute em grande parte da
execuccedilatildeo da parte instrumental Por isso se espera do inteacuterprete que aleacutem de seu instrumento
domine tambeacutem as reaccedilotildees do sistema eletroacuacutestico Fabbriciani aponta este fato em relaccedilatildeo
agraves peccedilas de Nono
Nono sabia que para maximizar o potencial oferecido por essas teacutecnicas era necessaacuterio formar inteacuterpretes que pudessem interagir com o sistema eletrocircnico tatildeo sensivelmente quanto com seus proacuteprios instrumentos Era igualmente vital construir um entendimento entre os inteacuterpretes e os engenheiros de som de live-electronics Poderiacuteamos chamar isto de uma nova virtuosidade consistindo natildeo somente de velocidade teacutecnica mas de uma notaacutevel habilidade em produzir som com vaacuterios tons de cor nuances sutis e controle incomum da dinacircmica (FABBRICIANI apud RIBEIRO et al 2016 p 130)
Outros exemplos de peccedilas como eletrocircnica em tempo real satildeo
Karlheinz Stockhausen Mikrophonie I (1964) para tam-tam (2 instrumentistas) 2
microfones 2 filtros com potenciocircmetros e 4 pares de alto-falantes
Brian Ferneyhough Time and Motion Study I I (1976-7) para violoncelo e live-
electronics
Luigi Nono Das Atmende Klarsein (1981-2) para flauta baixo coro e live-electronics
Luciano Berio Altra Voce (1999) para mezzo soprano flauta em sol e live-
electronics
James Correa Vertiginous Rotation (2008) para violatildeo e live-electronics
Com o advento da tecnologia digital no final do seacuteculo XX passou-se a utilizar o
computador na muacutesica mista os processamentos podiam entatildeo ser feitos no domiacutenio do aacuteudio
digital Aleacutem disso o computador lida com outras informaccedilotildees uacuteteis para a muacutesica pois
podem representar paracircmetros musicais e agendar eventos musicais por exemplo Assim os
sistemas assumem tambeacutem o papel de controlar os processos em tempo real Aleacutem disso a
possibilidade de utilizar sons preacute-gravados integrados com processamento em tempo real
num hiacutebrido eacute consideravelmente facilitada Populariza-se o termo Computer Music e passa-
se entatildeo a chamar os sistemas usados para combinar sons instrumentais e eletroacuacutesticos em
tempo real de Sistemas Interativos de Muacutesica de Computador (traduccedilatildeo livre de Interactive
Computer Music Systems) (ROWE 1993) Como atualmente dizer que a muacutesica
eletroacuacutestica utiliza o computador eacute quase redundante o termo computer music
frequentemente traduzido por computaccedilatildeo musical embora ainda usado natildeo oferece grande
contribuiccedilatildeo para a caracterizaccedilatildeo do gecircnero (MENEZES 2006 p 355)
O contraacuterio acontece com o termo interativo O potencial do computador de interagir
de maneiras diversas com o humano motivou se chamar tais iniciativas de muacutesica interativa
Neste contexto o entendimento de interaccedilatildeo se refere agraves questotildees tecnoloacutegicas da
performance se coloca em contraposiccedilatildeo agrave natildeo-reaccedilatildeo da teacutecnica de sons fixados em suporte
bem como agrave ldquomerardquo reaccedilatildeo das propostas iniciais do live-electronics Nesta pesquisa estas
possibilidades (sons fixados em suporte live-electronics sistemas interativos) satildeo entendidas
como teacutecnicas distintas da muacutesica eletroacuacutestica mista natildeo como (sub-)gecircneros musicais
distintos
Os sistemas interativos tecircm sido estudados com diversas ecircnfases e por diferentes
disciplinas A Figura 4 demonstra o universo em que o desenvolvimento de tais sistemas se
encontra
26
27
FIGURA 4 - CONTEXTO DISCIPLINAR DA MUacuteSICA INTERATIVA
Music
ComputerScience
Engeneering Narrative
FONTE Transcrito de Whaley (2009)
Nossa pesquisa representa sobretudo a ponta musical da ilustraccedilatildeo e aborda os
aspectos de composiccedilatildeo e performance Eacute importante salientar que relacionadas aos sistemas
interativos se encontram as iniciativas dos Instrumentos Digitais (conf MONTEIRO 2012) e
dos Hiper-instrumentos - instrumentos mais ou menos convencionais incrementados com
sensores (conf MACHOVER 1992) - que natildeo seratildeo abordados nesta pesquisa
De acordo com Rowe (1993) ldquoSistemas interativos de muacutesica computacional satildeo
aqueles cujo comportamento muda em resposta a uma entrada musicalrdquo (natildeo paginado) O
autor concebe os sistemas interativos numa cadeia de processos em trecircs estaacutegios
a) recepccedilatildeo (Sensing) os dados satildeo coletados de controladores que lecircem informaccedilotildees
gestuais da performance
b) processamento (Processing) o computador lecirc e interpreta a informaccedilatildeo vinda dos
sensores e prepara os dados para a resposta
c) resposta (Response) o computador realiza uma saiacuteda musical
28
Rowe classifica os sistemas em trecircs dimensotildees A primeira diferencia entre sistemas
guiados por partitura (score driven) daqueles guiados por performance (performance driven)
a) sistema guiado por partitura uma coleccedilatildeo de eventos predeterminados ou
fragmentos musicais armazenados satildeo combinados (sincronizados) com a entrada
musical (input) Assim o compositor pode trabalhar com categorias tradicionais de
tempo meacutetrica e andamento
b) sistema guiado por performance utiliza paracircmetros mais gerais da performance tais
como densidade e regularidade para determinar paracircmetros de saiacuteda Natildeo antecipa
nenhum evento especiacutefico como acontece naqueles guiados por partitura
A segunda dimensatildeo diferencia entre meacutetodo de resposta transformativo generativo e
sequenciado
a) meacutetodo de resposta transformativo transforma um material musical existente para
produzir variantes A relaccedilatildeo destas com o som original pode ser reconhecida ou
natildeo Este material pode ser armazenado ou como eacute frequente pode-se usar o input
da performance como material
b) meacutetodo de resposta generativo o material fonte eacute elementar ou fragmentaacuterio - por
exemplo escalas armazenadas ou conjuntos de duraccedilotildees O meacutetodo usa regras para
produzir o output Por exemplo ele pode sortear alturas de determinada escala ou
aplicar procedimentos seriais a um conjunto de duraccedilotildees permitidas
c) meacutetodo de resposta sequenciado utiliza fragmentos preacute-gravados em resposta ao
input em tempo real Pode-se variar paracircmetros na execuccedilatildeo destes fragmentos
como por exemplo velocidade de reproduccedilatildeo e envelope dinacircmico
A terceira dimensatildeo diferencia os paradigmas de instrumento e de inteacuterprete (player)
a) paradigma de instrumento os gestos da performance ao vivo satildeo analisados pelo
computador e determinam um output que expande a resposta instrumental normal
Se tocado por um uacutenico performer o resultado musical pode ser percebido como
solo
b) paradigma de inteacuterprete o sistema eacute concebido como um inteacuterprete artificial possui
uma presenccedila musical com comportamentos proacuteprios e pode variar o grau com que
acompanha ou natildeo seu parceiro humano Se tocado por um uacutenico performer o
resultado musical pode ser percebido como um duo
Esta dimensatildeo se aproxima de uma questatildeo distinta Enquanto que as outras se
29
referiam agrave questotildees teacutecnicas do sistema sem chamar atenccedilatildeo para qualquer aspecto sonoro
que seria proveniente dele esta dimensatildeo que diferencia paradigma de instrumento e de
inteacuterprete aponta para um resultado musical decorrente A questatildeo apontada natildeo eacute apenas de
instrumentaccedilatildeo formaccedilatildeo mas de textura (solo ou duo) que eacute um aspecto percebido na
escuta eacute sonoro natildeo propriamente tecnoloacutegico15
Uma das primeiras peccedilas a utilizar sistema interativo eacute Jupiter (1987) para flauta e
eletrocircnica em tempo real de Philippe Manoury A peccedila realizada no Institut de Recherche et
Coordination AcoustiqueMusique (IRCAM) eacute a primeira a utilizar o Max programa criado
por Miller Puckette Faz uso tambeacutem do chamado seguidor de partitura (score follower) em
que o computador ldquoouverdquo a execuccedilatildeo do inteacuterprete e a compara com uma partitura virtual
armazenada O computador eacute programado para executar accedilotildees de processamento ou disparar
samples durante a performance em momentos agendados nesta partitura Assim o sistema de
Jupiter eacute guiado por partitura A Figura 5 apresenta um trecho da partitura do inteacuterprete e a
correspondecircncia dos eventos do computador nas pautas superiores
FIGURA 5 - EXCERTO DA PARTITURA DE JUPITER (1987) DE PHILIPPE MANOURY
Quanto ao meacutetodo de resposta o sistema eacute um misto de transformativo generativo e
sequenciado O sistema efetua transformaccedilotildees sobre um material (tanto a entrada ao vivo
quanto samples) - transformativo efetua a siacutentese sonora de acordo com uma seacuterie de
paracircmetros e regras preacute-estabelecidos - generativo possui um conjunto de amostras preacute-
gravadas que satildeo executadas e transformadas ao longo da peccedila - sequenciado
O sistema eacute concebido no paradigma de inteacuterprete Ainda que dependa de acompanhar
a performance e comparar com a partitura virtual o sistema tem uma presenccedila e
comportamento musical independente da parte instrumental A janela principal do patch
adaptado para PureData por Miller Puckette16 pode ser vista na Figura 6
15 Esta discussatildeo seraacute retomada em 22 e 2316 Disponiacutevel em lthttpmspucsdedupdrplatestfilesdocgt Acesso em 17 jan 2019
30
FONTE Puckette (2018)
A mencionada partitura virtual eacute entretanto mais do que uma seacuterie de dados com a
qual a performance eacute comparada eacute um termo cunhado por Philippe Manoury que assim o
descreve
[] uma partitura virtual eacute uma representaccedilatildeo cujos paracircmetros constitutivos satildeo conhecidos previamente mas cuja manifestaccedilatildeo exata e concreta eacute sujeita a variaccedilatildeo Se tal coisa natildeo eacute conheciacutevel previamente eacute pela simples razatildeo de que haacute um certo grau de dependecircncia da performance que como temos visto conteacutem um grau de indeterminismo Entretanto eacute ainda possiacutevel conceber um sistema que inclua ambos os estados determinado e indeterminado alguns paracircmetros necessaacuterios para a criaccedilatildeo de sons sinteacuteticos podem ser fixados previamente enquanto que outros vatildeo derivar seus valores de uma anaacutelise em tempo real dos instrumentos no momento preciso da performance (e assim conteraacute um grau de indeterminaccedilatildeo) (MANOURY 2013 p 67-68 traduccedilatildeo nossa17)
17 Original ldquo[] a virtual score is a representation whose constituent parameters are known in advance but whose exact concrete manifestation is subject to variation If such a thing is unknowable in advance it is for the simple reason that there is some degree of dependence upon performance which as we have seen contains a degree of indeterminism Nonetheless it remains possible to conceive of a system which includes
31
Outros exemplos de peccedilas com sistemas interativos satildeo
Philippe Manoury Pluton (1988-89) para piano MIDI e eletrocircnica em tempo real
Pierre Boulez Anthegravemes 2 (1997) para violino e eletrocircnica em tempo real
Robert Rowe Cigar Smoke (2004) para clarinete e sistema musical interativo
Philippe Manoury Tensio (2010) para quarteto de cordas e eletrocircnica em tempo real18
22 QUERELA DOS TEMPOS E A ESTEacuteTICA DA INTERATIVIDADE
Querela dos tempos eacute como ficou conhecida a discussatildeo sobre as vantagens e
desvantagens da eletrocircnica em tempo real ou em tempo diferido na muacutesica mista (DIAS
2014 p 20) Esta distinccedilatildeo apresentada por Philippe Manoury considera a difusatildeo em tempo
real como aquela em que o material eletroacuacutestico eacute gerado durante a performance enquanto
que na difusatildeo em tempo diferido a parte eletroacuacutestica foi composta anteriormente em
estuacutedio e armazenada para ser executada na performance (DIAS 2014 p 20) Tal discussatildeo
seraacute abordada a seguir no acircmbito da performance e posteriormente da composiccedilatildeo
Existem alguns obstaacuteculos para a performance daquelas peccedilas em que os sons
eletroacuacutesticos satildeo fixados em suporte e satildeo disparados uma ou poucas vezes durante a
performance19 O principal deles se deve ao fato de que o material preacute-gravado jaacute estaacute todo
definido Se numa muacutesica de cacircmara para instrumentos acuacutesticos os inteacuterpretes podem fazer
decisotildees interpretativas em conjunto na muacutesica com o material preacute-gravado isto natildeo eacute
possiacutevel os sons foram fixados em suporte com um tempo imutaacutevel McNutt aponta que
ldquopara o inteacuterprete tocar com acompanhamento fixo eacute como trabalhar com o pior
acompanhador humano imaginaacutevel desatencioso inflexiacutevel natildeo responsivo e totalmente
surdordquo (McNUTT 2003 p 299 traduccedilatildeo nossa20)
both states determinate and indeterminate some parameters necessary for the creation of synthetic sounds may be fixed in advance whereas others will derive their values from a real-time analysis of instruments at the very moment of performance (and thus will contain a degree of indeterminacy)rdquo (MANOURY 2013 p 67-68)
18 Ao final deste subcapiacutetulo sobre as teacutecnicas e tecnologias da muacutesica mista cabe ressaltar ainda outros dois contextos em que a interaccedilatildeo humano-computador eacute estudada na composiccedilatildeo a interaccedilatildeo compositor- tecnologia (THOMASI 2016 RIBEIRO 2018) no contexto da arte sonora a interaccedilatildeo do espectador participante com a obra atraveacutes de meios tecnoloacutegicos
19 Os referidos obstaacuteculos natildeo seriam tatildeo relevantes para uma peccedila em que por exemplo fossem tocados durante a performance diversos sons preacute-gravados de curta duraccedilatildeo Este seria o caso de uma fronteira entre teacutecnicas em tempo real e teacutecnicas em tempo diferido
20 Original ldquoFor the player performing with fixed accompaniment is like working with the worst human accompanist imaginable inconsiderate inflexible unresponsive and utterly deafrdquo (McNUTT 2003 p 299)
32
O problema do tempo imutaacutevel eacute tambeacutem uma preocupaccedilatildeo para o compositor Pierre
Boulez que o apresenta da seguinte forma
O tempo de uma gravaccedilatildeo em fita magneacutetica natildeo eacute o tempo psicoloacutegico e sim o tempo cronoloacutegico por outro lado o tempo de um inteacuterprete - um regente ou um instrumentista - eacute psicoloacutegico e eacute praticamente impossiacutevel interconectar os doisrdquo (BOULEZ apud MISKALO 20 0921)
Schulz (2010 p 25) argumenta que tal especificidade de tempo imutaacutevel natildeo eacute
caracteriacutestica apenas da muacutesica mista mas aparece em peccedilas de outros gecircneros que exigem do
inteacuterprete um rigor interpretativo em relaccedilatildeo ao tempo (e g Musica Ricercata no 7 195153
de Gyorgy Ligeti) Neste sentido a autora defende que no estudo de peccedilas mistas com sons
preacute-gravados o inteacuterprete natildeo deve apenas acompanhar a minutagem e outras indicaccedilotildees
presentes na partitura mas se apropriar destes sons e antecipaacute-los De acordo com Schulz
o instrumentista parte do conteuacutedo sonoro preacute-gravado para desenvolver o estudo bem como sua performance em coerecircncia com a parte fixa Em outras palavras a velocidade as dinacircmicas os momentos de sincronia e de certo modo as escolhas interpretativas satildeo feitas a partir dos sons preacute-gravados (SCHULTZ 2010 p 26)
Aleacutem disso natildeo eacute porque satildeo preacute-gravados que natildeo houve certo tipo de performance
em estuacutedio (manipulaccedilotildees de faders e potenciocircmetros por exemplo) Trata-se entatildeo de
compreender esta ldquoperformancerdquo preacute-gravada (em tempo diferido) e pensar a performance a
partir dela
Stroppa (1999) tambeacutem aponta nesta direccedilatildeo
Um ou uma performer agrave vontade com um click track encontraraacute outros meios de expressar suas escolhas interpretativas Se a composiccedilatildeo eacute feita de certa maneira ningueacutem na audiecircncia perceberaacute qualquer estranheza temporal e a performance seraacute julgada tatildeo livre quanto usualmente (STROPPA 1999 p 43 traduccedilatildeo nossa22)
No acircmbito da composiccedilatildeo tal discussatildeo se apresenta com a crenccedila de que o tempo
imutaacutevel fixo do tape representaria um tempo riacutegido da composiccedilatildeo e que desta
configuraccedilatildeo jamais poderia resultar uma interaccedilatildeo bem-sucedida
21 BOULEZ in HAumlUSLER Josef Boulez on Reacutepons 198522 Original ldquoA performer at ease with a click track will find other ways to express his or her interpretive
choices If the composition is done in a certain way nobody in the audience will perceive any temporal awkwardness and the performance will be judged as free as usualrdquo(STROPPA 1999 p 43)
33
Notamos neste ponto que a discussatildeo adentra um espaccedilo que natildeo eacute apenas da
performance mas se refere ao resultado sonoro desta Nos referimos a este espaccedilo como
morfologia sonora natildeo apenas no que se refere agrave qualificaccedilatildeo de objetos sonoros como nos
estudos de Pierre Schaeffer (1988 p 219) mas simplesmente nos referindo ao objeto de
estudo de todas as teorias musicais Trata-se do que percebemos que soa e seus aspectos
organizaccedilatildeo de materiais paracircmetros musicais relaccedilatildeo entre os materiais agrupamento e
segregaccedilatildeo dos materiais etc
Se da perspectiva da performance o problema da interaccedilatildeo se referia agrave relaccedilatildeo
problemaacutetica entre performer e a preacute-gravaccedilatildeo da perspectiva da composiccedilatildeo esta situaccedilatildeo
performaacutetica teria consequecircncias diretas na morfologia sonora Este pensamento sustenta uma
consequecircncia inexoraacutevel do modo da interaccedilatildeo entre performer e maacutequina sobre o tempo
musical Isto eacute o resultado sonoro seria riacutegido devido agrave situaccedilatildeo de performance ser esta de
discrepacircncia de tempos (cronoloacutegico e psicoloacutegico) entre suporte e performer
Tal posiccedilatildeo tende a natildeo considerar o uso de sons fixados em suporte como uma
possibilidade para a muacutesica mista admitindo exclusivamente o processamento em tempo real
e os sistemas interativos Estas posturas exclusivistas satildeo questionadas por Menezes (2006) e
Stroppa (1999) De acordo com Menezes (2006 p 380)
[] eacute preciso reconhecer que a criacutetica de cunho bouleziano (a despeito do valor inestimaacutevel da obra interativa de Boulez) segundo a qual um tempo fixo sobre suporte jamais poderaacute converter-se em uma interaccedilatildeo organicamente bem-sucedida eacute a meu ver sem fundamento pois a eficaacutecia da interaccedilatildeo natildeo dependeraacute jamais do fato de os sons eletroacuacutesticos estarem ou natildeo fixados sobre algum suporte tecnoloacutegico e terem suas duraccedilotildees predeterminadas mas antes da elaboraccedilatildeo de tal interaccedilatildeo na proacutepria composiccedilatildeo de acordo com suas possibilidades morfoloacutegicas (grifo nosso)23
Ainda haacute aqueles que defendem o uso dos sons fixados argumentando que o estuacutedio
possibilita uma elaboraccedilatildeo mais cuidadosa dos materiais do que as possibilidades em tempo
real O compositor Jean-Claude Risset (In BRUMMER et al 2001 p 6) se alinha com esta
posiccedilatildeo
Embora eu ame instrumentos penso que a ldquosituaccedilatildeo neo-instrumentalrdquo com live electronics raramente alcanccedila o grau de sofisticaccedilatildeo de boas peccedilas de tape Os aspectos de tempo real satildeo em certa medida uma ilusatildeo Compor natildeo eacute uma
23 Em 23 este misto mal analisado que vincula sem cuidado tecnologia e morfologia eacute abordado novamente
34
atividade em tempo real requer se abstrair da tirania do tempo real Muacutesica composta para o meio de gravaccedilatildeo pode ser cuidadosamente composta e realizada24
A preservaccedilatildeo das peccedilas com sistemas interativos eacute tambeacutem uma questatildeo a ser levada
em conta Isso porque as tecnologias mudam softwares ficam desatualizados e as peccedilas se
tornam sucetiacuteveis de obsolescecircncia ou entatildeo necessitam de atualizaccedilatildeo sempre que sua
performance for menos possibilitada por causa da tecnologia Esta atualizaccedilatildeo eacute dispendiosa e
necessita de trabalho especializado como aponta Risset (In BRUMMER et al 2001 p 7)
ldquoum privileacutegio que natildeo pode ser extendido a muitos compositores nem a muitas peccedilasrdquo25
Evidentemente os suportes fixos tambeacutem apresentam problemas semelhantes como por
exemplo a deterioraccedilatildeo de fitas magneacuteticas26 Atualmente entretanto a atualizaccedilatildeo nestes
casos parece ser mais simples e menos dispendiosa
Por outro lado o computador tem possibilitado interaccedilotildees com o performer ao vivo
que embora natildeo pareccedilam possibilitar diferentes relaccedilotildees sonoras certamente representam uma
mudanccedila na praacutetica musical Guy Garnett (2001) em seu artigo The Aesthetics o f Interactive
Computer Music afirma que a interaccedilatildeo tem dois aspectos as accedilotildees do performer afetam a
saiacuteda do computador ou as accedilotildees do computador afetam a saiacuteda do performer O autor aborda
o que a performance humana traz para a muacutesica computacional Um dos argumentos em favor
da muacutesica interativa em oposiccedilatildeo agrave muacutesica puramente computacional ou tape eacute o fator da
interpretaccedilatildeo Uma vez fixada ouviremos sempre novamente a mesma interpretaccedilatildeo da peccedila
Evidentemente haacute maneiras de projetar diferentemente espacializar ao vivo etc Poreacutem de
acordo com o autor ainda assim ldquoa peccedila estaacute fixada em tantos de seus atributos que natildeo eacute
possiacutevel proporcionar uma nova interpretaccedilatildeo significativa Algueacutem poderia entatildeo considerar
a muacutesica eletroacuacutestica como a lsquomuseificaccedilatildeorsquo uacuteltima da arte musicalrdquo (GARNETT 2001 p
29 traduccedilatildeo nossa27) Segundo Garnett incluir a performance humana na muacutesica
computacional eacute uma maneira de se afastar do formalismo presente frequentemente em
24 ldquoAlthough I myself love the instruments I think the neo-instrumental situation with live electronics rarely reaches the degree of sophistication of good tape pieces The real-time aspects are to a certain extent a delusion Composing is not a real-time activity it requires abstracting oneself from the tyranny of real-time Music composed for the recording medium can be carefully composed and realizedrdquo (RISSET In BRUMMER et al 2001 p 6)
25 ldquoa privilege which cannot be extended to many composers and many piecesrdquo (RISSET In BRUMMER et al 2001 p 7)
26 No artigo Electroacoustic music studies and the danger of loss Marc Battier estuda a fundo este problema da perenidade da muacutesica eletroacuacutestica seus sistemas e suportes (BATTIER 2004)
27 Original ldquo[] the work is fixed in so many of its attributes that it is not possible to provide a significant new interpretation One could therefore come to consider electroacoustic music as the ultimate ldquomuseumificationrdquo of musical artrdquo (GARNETT 2001 p 29)
35
muacutesica computacional por exemplo nas composiccedilotildees algoriacutetmicas Para Garnett eacute tambeacutem
uma questatildeo de a muacutesica estar em harmonia coerente com as necessidades do seu tempo de
criaccedilatildeo e existecircncia Natildeo eacute apenas uma questatildeo esteacutetica mas tambeacutem poliacutetica ldquoeacute tambeacutem
uma avaliaccedilatildeo poliacutetica dirigida a uma mudanccedila na maneira com que pessoas pensam sobre
produzem e experienciam muacutesicardquo (GARNETT 2001 p 29 traduccedilatildeo nossa28) Neste sentido
Garnett aponta objetivos poliacuteticos e esteacuteticos globais
Da mesma forma atraveacutes de uma frente esteacutetica ligeiramente diferente mas tambeacutem fortemente associada com Adorno natildeo precisamos mais sequestrar a alta arte do popular De fato precisamos agora lsquodesmuseificarrsquo - em certo sentido popularizar - todas as artes que tecircm em sua crescente institucionalizaccedilatildeo se tornado cada vez mais isoladas de ciacuterculos mais amplos [broad contituencies] Isso naturalmente natildeo implica uma capitulaccedilatildeo para os banais e batidos valores de produccedilatildeo em massa da maioria da muacutesica popular Exatamente o contraacuterio Significa trazer as verdadeiras experiecircncias artiacutesticas de riqueza singularidade e profundidade e expressatildeo intelectual em contato mais proacuteximo com as realidades sociais do nosso contexto cultural atual Eacute importante injetar o artista - o compositor - de volta agrave cena cultural atual em vez de reforccedilar o isolamento institucionalizado atual Rejeitar este curso provavelmente soacute levaraacute agrave morte completa da muacutesica de arte como a conhecemos e agrave completa hegemonia de apenas os elementos mais banais da cultura popular desprovidos de qualquer conexatildeo com e portanto de qualquer benefiacutecio possiacutevel das - enormes realizaccedilotildees do passado (GARNETT 2001 p 30 traduccedilatildeo nossa29)
O autor salienta a importacircncia desta perspectiva ldquoA consanguinidade entre interaccedilatildeo
humana e valores humanistas eacute um importante elemento guia para o campo da muacutesica
interativa computacionalrdquo (GARNETT 2001 p 30 traduccedilatildeo nossa30)
Eacute preciso levar em conta que a argumentaccedilatildeo de Garnett se coloca em oposiccedilatildeo agrave
muacutesica puramente eletroacuacutestica especialmente algoriacutetmica que pode conduzir a um
formalismo indesejado de acordo com estes valores Seus argumentos satildeo principalmente em
favor do inteacuterprete instrumental inserido no contexto eletroacuacutestico
Se anteriormente o potencial do estuacutedio para a elaboraccedilatildeo minuciosa do material
eletroacuacutestico (preacute-gravado) foi ressaltado as questotildees propostas por Garnett se colocam no
28 Original ldquo[] it is also it is also a political valuation in that it is directed toward making a change in the way people think about produce and experience musicrdquo (GARNETT 2001 p 29)
29 Original ldquoIndeed we need now to lsquode-museumizersquo - in a certain sense to popularize - all of the arts which have in their increasing institutionalization become increasingly isolated from broad constituencies This does not of course imply a capitulation to the banal and trite mass production values of much popular music Exactly the opposite It means to bring the true artistic experiences of richness uniqueness and intellectual depth and expression into closer contact with the social realities of our present cultural context It is important to inject the artist - the composer - back into the current cultural scene rather than reinforcing the current institutionalized isolationrdquo (GARNETT 2001 p 30)
30 Original ldquoThe consanguinity between human interaction and humanist values is an important driving element for the field of interactive computer musicrdquo (GARNETT 2001 p 30)
36
outro lado da balanccedila pesando o potencial dos sistemas interativos em sua possibilidade de
reinterpretaccedilatildeo da parte eletroacuacutestica a cada execuccedilatildeo Um sistema hiacutebrido pode somar
algumas vantagens de ambas teacutecnicas Neste caso o sistema poderia em interaccedilatildeo com a
performance ao vivo disparar materiais preacute-gravados de maior ou menor duraccedilatildeo elaborados
minuciosamente em estuacutedio e ao mesmo tempo executar processamentos em tempo real
Implementamos um sistema semelhante na peccedila Chatildeo de outono (51)
23 ENTRE TECNOLOGIA E MORFOLOGIA SONORA
Considerando as questotildees relativas agrave performance da muacutesica mista com suporte
(modos de coordenaccedilatildeo tempo imutaacutevel estudo destas peccedilas) e brevemente as questotildees
relativas agrave composiccedilatildeo (por exemplo do tempo fixo vs tempo riacutegido) notamos as
interferecircncias entre estas aacutereas O raciociacutenio de que devido agraves contingecircncias tecnoloacutegicas dos
sons fixados em suporte a performance apresenta um tempo imutaacutevel que se reflete num
tempo riacutegido da composiccedilatildeo parece ser um misto mal analisado Este raciociacutenio se caracteriza
por transferir questotildees da aacuterea tecnoloacutegica da performance diretamente para o acircmbito sonoro-
morfoloacutegico da composiccedilatildeo Tecnologia e morfologia tecircm naturezas distintas e natildeo se pode
tomar uma pela outra apenas porque a terminologia eacute a mesma Isto eacute falamos de interaccedilatildeo
referindo-nos agrave interaccedilatildeo do performer com a tecnologia utilizada e falamos da interaccedilatildeo entre
elementos da morfologia sonora
Outros autores criticam esta confusatildeo Stroppa (1999) aponta a problemaacutetica da
associaccedilatildeo do ao vivo (live) com teacutecnicas em tempo real (STROPPA 1999) O autor sustenta
que o aspecto da vida na muacutesica (live) necessita algum tipo de interpretaccedilatildeo embora natildeo se
restrinja agrave presenccedila de muacutesicos num palco pode ser percebido numa gravaccedilatildeo por exemplo
(1999 p 62) Assim critica o pensamento errocircneo de que o tempo real dos sistemas
interativos garantiria certa vida (live)
[] natildeo haacute correlaccedilatildeo entre uma peccedila usando tecnologia interativa e a percepccedilatildeo de autecircntica interpretaccedilatildeo em muacutesica interaccedilatildeo natildeo eacute interpretaccedilatildeo pois a uacuteltima se idealmente implica a primeira eacute um fenocircmeno mais sutil e complexo [] A vida na muacutesica brota de repente quando algum tipo de comunicaccedilatildeo estaacute acontecendo entre o performer e o material eletrocircnico circundante entre os dois e o puacuteblico e naturalmente quando a peccedila eacute digna Se a eletrocircnica eacute uma fita modesta ou o
37
sistema interativo ldquomais inteligenterdquo essa eacute uma histoacuteria completamente diferente (STROPPA 1999 p 52)31
Stroppa separa portanto as questotildees tecnoloacutegicas referentes aos sistemas interativos
da questatildeo que cerca a percepccedilatildeo da vida na muacutesica (live) o que estaacute mais associado com o
acircmbito sonoro-morfoloacutegico ao qual estamos voltando nossa atenccedilatildeo nesta pesquisa
Simon Emmerson (2013) sustenta que na experiecircncia de escuta natildeo estamos tatildeo
interessados no ldquojogo de adivinhaccedilotildeesrdquo sobre quais foram as causas de determinado efeito
mas que ouvimos primariamente efeitos Este ponto se coloca em oposiccedilatildeo agrave concepccedilatildeo de
que um sistema interativo deve buscar uma linearidade entre accedilatildeo e resposta semelhante aos
instrumentos acuacutesticos O autor contraria aqueles que argumentam que a cadeia causal
necessita ser reestabelecida para que haja uma interatividade significativa para o ouvinte De
acordo com Emmerson natildeo ouvimos a causa ouvimos o efeito Nesta abordagem eacute possiacutevel
observar que causa estaacute relacionada a questotildees tecnoloacutegicas (normalmente relacionada a
teacutecnicas de mapeamento) enquanto os efeitos satildeo de natureza sonora
Bachrataacute (2010) ao abordar a interaccedilatildeo gestual entre instrumentos acuacutesticos e sons
eletroacuacutesticos distingue interaccedilatildeo de interatividade A autora cita a definiccedilatildeo de
interatividade do EARS (ElectroAcoustic Research Site) ldquoInteratividade se refere
amplamente agrave interaccedilatildeo musical humano-computador ou interaccedilatildeo humano-humano mediada
por um computador ou possivelmente uma seacuterie de computadores conectados em rede que
estatildeo tambeacutem interagindo um com outrordquo32 De acordo com esta definiccedilatildeo ressalta a autora a
muacutesica para instrumento e sons fixados em suporte natildeo seria interativa embora quando
percebida auralmente a interaccedilatildeo esteja presente sem qualquer duacutevida (BACHRATAacute 2010 p
91) Esta diferenciaccedilatildeo estaacute relacionada com aquela que estamos apontando aqui Entretanto
os termos (interaccedilatildeo e interatividade) satildeo semelhantes e frequentemente utiliza-se interaccedilatildeo
para discursar sobre o que acima foi definido como interatividade Aleacutem do mais estas duas
palavras tecircm a mesma origem etimoloacutegica restando apenas a diferenccedila entre accedilatildeo e
31 ldquo[] there is no correlation between a piece using interactive technology and the perception of authentic interpretation in music interaction is not interpretation since the latter if it ideally implies the former is a much subtler and complex phenomenon [] Life in music sprouts suddenly when some kind of communication is going on between the performer and the surrounding electronic material between both of them and the audience and naturally when the piece is worth it Whether the electronics is a modest tape or the cleverest interactive system thats a completely different kettle of fishrdquo (STROPPA 1999 p 52)
32 Traduccedilatildeo do autor Original ldquoInteractivity refers broadly to human-computer musical interaction or humanshyhuman musical interaction that is mediated through a computer or possibly a series of networked computers that are also interacting with each otherrdquo (WEALE 2005)
38
atividade33 Optamos assim por diferenciar as questotildees tecnoloacutegicas da performance (nas
quais inclui-se a interatividade conforme definida acima) das questotildees sonoro-morfoloacutegicas a
interaccedilatildeo auralmente percebida de acordo com Bachrataacute (2010 p 91)
Por outro lado embora sejam de naturezas distintas com o devido cuidado eacute possiacutevel
analisar as relaccedilotildees entre estes dois acircmbitos Pode-se investigar como uma tecnologia
utilizada estaacute relacionada com uma morfologia sonora em determinado repertoacuterio Entretanto
estas relaccedilotildees natildeo parecem se dar de maneira determiniacutestica ou fataliacutestica pois estatildeo ligadas agraves
decisotildees criativas que muitas vezes tomam rumos contraacuterios agraves tendecircncias de uso de uma
ferramenta (vide as teacutecnicas estendidas dos instrumentos tradicionais) Assim a questatildeo
poderia ser sobre quais satildeo as possibilidades eou tendecircncias sonoro-morfoloacutegicas no uso de
determinada tecnologia
Menezes (2006) aponta tendecircncias das teacutecnicas em tempo real O autor argumenta que
estas permitem uma correlaccedilatildeo estreita com o gesto instrumental e sua metamorfose
eletroacuacutestica Entretanto estas teacutecnicas ldquoagem inexoraacutevel e exclusivamente em sentido
convergenterdquo (p 379) jaacute que estatildeo sempre ligadas a sua fonte instrumental e pouco fazem no
sentido divergente do contraste Eacute preciso considerar a que tipo de empreendimento o autor
se refere A impossibilidade da diferenccedila do contraste estaacute mais relacionada agraves teacutecnicas que
usam processamentos (tais como delays harmonizers entre outros) para transformar o som
instrumental ao vivo nunca se distanciando desta fonte sonora Entretanto como apresentado
em 212 haacute outras possibilidades em tempo real inclusive a de utilizar sons preacute-gravados
distintos dos instrumentais como germe de processos em tempo real Um exemplo eacute a peccedila
Vertiginous Rotation (2008) de James Correa34 Os sons do violatildeo e uma pequena amostra de
som de berimbau satildeo processados ao vivo e eacute possiacutevel observar momentos de consideraacutevel
contraste entre eletrocircnicos e violatildeo
A questatildeo das possibilidades ou tendecircncias sonoro-morfoloacutegicas de determinada
tecnologia tambeacutem tem sido levantada nos estudos da muacutesica eletroacuacutestica em geral Os
33 Esta discussatildeo poderia ir aleacutem se se lanccedilasse matildeo de referenciais de outras aacutereas A distinccedilatildeo entre interaccedilatildeo e interatividade eacute discutida no acircmbito da educaccedilatildeo a distacircncia no artigo (VALLE e BOHADANA 2012) A interaccedilatildeo acontece entre humanos enquanto a interatividade pode acontecer entre maacutequinas A interaccedilatildeo enquanto accedilatildeo entre humanos pode ser de fato uma metaacutefora mais adequada para a interaccedilatildeo entre elementos sonoros jaacute que estes ganham muitas vezes a funccedilatildeo o caraacuteter (de caracterizaccedilatildeo) de voz o que remonta agrave utilizaccedilatildeo da voz humana como instrumento e por sua vez a seu caraacuteter antropomoacuterfico Enquanto que interatividade pode ser mais adequado para as questotildees tecnoloacutegicas jaacute que se caracteriza por uma funccedilatildeo de instrumento ou inteacuterprete
34 Confira o viacutedeo do compositor explicando sua abordagem nesta peccedila lthttpswwwyoutubecomwatch v=dZfw 1WKF7eggt
39
estudos buscam compreender a relaccedilatildeo entre tecnologia e morfologia-sonora encarando o
compositor enquanto colaborador no desenvolvimento de tecnologias e recursos
eletroacuacutesticos (ZATTRA 2018) ou mesmo como luthier experimental (RIBEIRO 2018)
Tambeacutem relacionado a esta questatildeo estaacute o fato de que as teorias de anaacutelise de muacutesica
eletroacuacutestica partem da perspectiva do ouvinte e ignoram mais ou menos a tecnologia
envolvida Um exemplo eacute a Espectro-morfologia de Dennis Smalley (1997) Segundo o autor
eacute um sacrifiacutecio deixar de lado o desejo natural de desvendar os misteacuterios da produccedilatildeo sonora
eletroacuacutestica mas eacute necessaacuterio e loacutegico Smalley alerta para o que chama de escuta
tecnoloacutegica quando o ouvinte passa a perceber a tecnologia ou a teacutecnica responsaacutevel pela
muacutesica mais do que a proacutepria muacutesica De acordo com o autor ldquoIdealmente a tecnologia deve
ser transparente ou pelo menos a muacutesica precisa ser composta de tal maneira que as
qualidades de sua invenccedilatildeo superem qualquer tendecircncia a escutar primeiramente de uma
maneira tecnoloacutegicardquo (SMALLEY 1997 p 109)35
Menezes ao abordar a diferenccedila entre meios instrumental e eletroacuacutestico ressalta que
[ ] os elementos fundamentais de toda composiccedilatildeo musical independem em uacuteltima instacircncia (mas somente em uacuteltima) dos meios com os quais se compotildee uma obra elaboraccedilatildeo do material musical enquanto elementos miacutenimos e relacionais consciecircncia harmocircnica (em seu mais amplo sentido) elementos de conexatildeo entre as distintas ideacuteias musicais elaboraccedilatildeo de gestos musicais direcionalidades entreestados distintos de escuta conduccedilatildeo e transformaccedilatildeo do material musicalartesanato e detalhamento dos espectros variaccedilotildees etc satildeo aspectos que estatildeo aqueacutem e aleacutem dos meios composicionais per se ainda que com estes estabeleccedilam forte relaccedilatildeo dialeacutetica (MENeZeS 2006 p 379)
Estendendo esta ideia pode-se tambeacutem dizer que os elementos fundamentais da
composiccedilatildeo natildeo dependem da tecnologia utilizada - pensando aqui especialmente nas
teacutecnicas descritas em 21 - embora estabeleccedilam uma relaccedilatildeo dialeacutetica com ela
Esta relaccedilatildeo localiza o compositor especialmente o de muacutesica eletroacuacutestica numa
rede num emaranhado com suas ideias musicais e seus instrumentos (tecnologia) de tal forma
que a relaccedilatildeo entre esteacutetica e teacutecnica se torna nebulosa Ribeiro (2018) aponta trecircs fatores
significativos na composiccedilatildeo eletroacuacutestica
bull o compositor eacute o proacuteprio performer
35 Traduccedilatildeo proacutepria Original ldquoIdeally the technology should be transparent or at least the music needs to be composed in such a way that the qualities of its invention override any tendency to listen primarily in a technological mannerrdquo (SMALLEY 1997 p 109)
40
bull o instrumento eacute modular mutaacutevel e quase sempre com configuraccedilatildeo nova para cada obrabull a estrutura da obra se confunde com a construccedilatildeo do instrumento (p 176)
Assim Ribeiro concebe o processo composicional de muacutesica eletroacuacutestica
semelhante a um loop em que natildeo se pode separar facilmente as funccedilotildees tradicionais de
composiccedilatildeo instrumentaccedilatildeo e execuccedilatildeo
FIGURA 7 - PROCESSO COMPOSICIONAL NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA
Instrumento
FONTE Ribeiro (2018 p 117)
Desenvolver ideias para determinado instrumento e desenvolver instrumentos para
determinada ideia mais do que uma via de matildeo dupla parece ser um campo aberto Haacute
muitas possibilidades e neste loop em que se daacute o processo composicional elas podem ter
vaacuterias direccedilotildees Ideias que motivam o desenvolvimento de tecnologias como o caso da
Rotationstisch de Stockhausen instrumento para espacializaccedilatildeo (ver CHADABE 1997 p
41) ideias tecnoloacutegicas existentes que satildeo aproveitadas pelos compositores ou ainda
trabalhos em que o desenvolvimento de ideias musicais e o desenvolvimento tecnoloacutegico se
embricam de tal forma que natildeo se pode distinguir qual motiva qual se encontram numa rede
de relaccedilotildees e influecircncias
Por conveniecircncia de estudo a interaccedilatildeo que se refere agraves questotildees tecnoloacutegicas da
performance eacute distinguida daquela que se refere agraves questotildees sonoro-morfoloacutegicas percebidas
na escuta Eacute proacuteprio da pesquisa distinguir analisar (separar um todo em seus elementos
componentes) para num segundo momento sintetizar Esta siacutentese em especiacutefico natildeo seraacute o
foco de nossa pesquisa A investigaccedilatildeo das influecircncias da tecnologia sobre nossa percepccedilatildeo do
sonoro e mesmo para aleacutem dela eacute tema de pesquisas de Rodolfo Caesar O autor chama tal
influecircncia de marca tecnograacutefica
41
Atraveacutes dessa expressatildeo procuro salientar as marcas deixadas pelas diferentes tecnologias em suas diversas manifestaccedilotildees desde a mera percepccedilatildeo individual ateacute a cultura em geral Comecei a pensar sobre essa manifestaccedilatildeo de uma lsquosubjetivaccedilatildeo das tecnologiasrsquo ao me defrontar com a necessidade de exercer uma atenccedilatildeo criacutetica especificamente no acircmbito da muacutesica eletroacuacutestica quando importantes creacuteditos autorais dos programas computacionais empregados nas muacutesicas natildeo eram devidamente atribuiacutedos (CAESAR 2018)
Diferentemente a presente pesquisa se deteacutem agraves relaccedilotildees sonoro-morfoloacutegicas
percebidas na escuta independentemente das questotildees tecnoloacutegicas Este tema seraacute abordado
atraveacutes da revisatildeo de teorias pertinentes (capiacutetulo 3) anaacutelises (capiacutetulo 4) e relato de
experiecircncia composicional (capiacutetulo 5)
42
3 A INTERACcedilAtildeO NO AcircMBITO SONORO-MORFOLOacuteGICO
Tendo distinguido os dois acircmbitos em que se apresenta o tema da interaccedilatildeo na muacutesica
eletroacuacutestica mista (Capiacutetulo 2) neste capiacutetulo aprofundamos a discussatildeo sobre a interaccedilatildeo
relativa agrave morfologia sonora Neste acircmbito interaccedilatildeo eacute uma caracteriacutestica proacutepria da textura
Numa textura polifocircnica por exemplo haacute uma interaccedilatildeo entre as diversas vozes A partir do
trabalho de Berry (1987) fazemos uma breve abordagem deste conceito na muacutesica
instrumental (31) Aleacutem disso incorporamos a ideia de sonoridade (GUIGUE 2011) para
abranger outras estruturas instrumentais que natildeo se enquadram como vozes (32) Esta
observacircncia das estruturas instrumentais natildeo necessita justificativa jaacute que estamos falando de
muacutesica para instrumentos e sons eletroacuacutesticos Entretanto podemos assumir
pressupostamente que a muacutesica eletroacuacutestica guardadas suas caracteriacutesticas exclusivas pode
apresentar estruturas semelhantes ou anaacutelogas agraves existentes no repertoacuterio instrumental As
particularidades da muacutesica eletroacuacutestica satildeo tambeacutem abordadas (33) a fim de inserir o tema
no contexto da pesquisa A ideia de fluxo sonoro permanece central embora neste contexto
seja possiacutevel tratar o tema por meio de outras metaacuteforas como camadas e planos (discutimos a
terminologia brevemente em 333) Abordamos tambeacutem o aspecto visual da performance de
muacutesica mista (35) E finalmente relacionamos os diversos conteuacutedos apresentados neste
capiacutetulo propondo um esboccedilo de uma textura da muacutesica mista (36)
31 VOZES E TEXTURA
311 Textura
A voz eacute certo som de um ser animado [que possui alma] porque nenhum dos inanimados dispotildee de voz Apenas por analogia se diz que estes usam a voz como por exemplo a flauta a lira e todos os outros seres inanimados que dispotildeem de altura duraccedilatildeo e articulaccedilatildeo pois a voz parece possuiacute-las (ARISTOacuteTELES 2010 p 85-86)
Na teoria musical a voz eacute um conceito que faz referecircncia ao uso musical da voz
humana Por analogia falamos em vozes mesmo quando satildeo tocadas por instrumentos As
vozes compotildeem uma textura na qual se relacionam de muitas maneiras Berry (1987) dedica
um capiacutetulo de sua obra agrave textura36 De acordo com o autor ldquoA textura da muacutesica consiste em
36 Note-se jaacute que textura na muacutesica instrumental tem uma acepccedilatildeo diferente de textura na muacutesica eletroacuacutestica No capiacutetulo 36 diferenciamos estas duas acepccedilotildees como macrotextura e microtextura respectivamente
43
seus componentes sonorosrdquo (BERRY 1987 p 184 traduccedilatildeo nossa37) Haacute um aspecto
quantitativo e outro qualitativo da textura O primeiro se refere ao nuacutemero de componentes
sonoros o segundo agrave interaccedilatildeo ou inter-relaccedilatildeo entre eles
Berry diferencia linha de voz A linha se refere agrave
ldquoqualquer componente textural no qual a relaccedilatildeo e a configuraccedilatildeo horizontal pode ser plausivelmente traccedilada como uma continuidade loacutegica - um estrato identificaacutevel na textura em algum dado niacutevelrdquo (BERRY 1987 p 192 traduccedilatildeo nossa38)
Jaacute a voz se refere agrave ldquouma linha que apresenta destacada independecircncia relativa ela
pode ser um complexo de linhas dobradas mas ela mesma natildeo eacute capaz de ser dobradardquo
(BERRY 1987 p 192-3 traduccedilatildeo nossa39) Assim uma textura monofocircnica (com uma uacutenica
voz) pode ser multi-linear (formada por vaacuterias linhas em dobramento - fagote e oboeacute com
dobramento de oitava por exemplo) A representaccedilatildeo de tais disposiccedilotildees pode ser vista na
Figura 8 Os nuacutemeros indicam as linhas (2 = mesma voz com dois instrumentos) As vozes satildeo
representadas verticalmente uma abaixo da outra
FIGURA 8 - REPRESENTACcedilAtildeO DOS ASPECTOS QUANTITATIVO E QUALITATIVO DA TEXTURA
1 1 1 1 2 2 41 1 1 1 2
1 1 1 1
Curva de qualidade (conforme condicionada por mushydanccedilas na independecircncia-interdependecircncia)
Curva de quantidade (nuacutemero-densidade)
FONTE Berry (1987 p 194-5 traduccedilatildeo nossa)
37 Original ldquoThe texture of music consists of its sounding components it is conditioned in part by the number of those components sounding in simultaneity or concurrence its qualities determined by the interactions interrelations and relative projections and substances of component lines or other component sounding factorsrdquo (BERRY 1987 p 184)
38 Original ldquo[] any textural component in which horizontal relation and configuration can plausibly be traced as a logical continuity - an identifiable stratum in the texture at some given levelrdquo (BERRY 1987 p 192)
39 Original ldquo[] a line having distinct relative independence it may thus be a complex of doubled lines but is not itself capable of doublingrdquo (BERRY 1987 p 192-3)
44
Aleacutem daqueles termos largamente usados para descrever a textura e que jaacute tem um
significado convencional estaacutevel (polifocircnico homofocircnico cordal dobramento espelhado
heterofocircnico sonoridade contrapontiacutestico monofocircnico) o autor propotildee outros Estes termos
tecircm por base trecircs paracircmetros considerados mais relevantes para a avaliaccedilatildeo das caracteriacutesticas
da textura ritmo (isto eacute padrotildees riacutetmicos) direccedilatildeo (da melodia) e conteuacutedo intervalar linear
(BERRY 1987 p 193) Uma escala que vai do simples para o complexo eacute usada em cada um
destes paracircmetros atraveacutes dos prefixos homo- hetero- e contra-40 Assim quanto ao ritmo a
relaccedilatildeo entre vozes distintas pode ser homorriacutetmica heterorritmica e contrarriacutetmica quanto agrave
direccedilatildeo homodirecional heterodirecional e contradirecional quanto ao conteuacutedo intervalar
homointervalar heterointervalar e contraintervalar A Figura 9 ilustra tais caracteriacutesticas
FIGURA 9 - ALGUMAS QUALIDADES DA TEXTURA
Relaccedilotildees nt niacutevel (nt ctntextt temptral) ilustrado
mhtmtrriacutetmict 3 5 htmtdirecitnal
mhetertrriacutetmict s er r ^ r r r 1
- hetertdirecitnal
3 ctntrarriacutetmictm m
ctntradirecitnal
it
^ r ni u tJsect rr
itmtintervalar
ietertintervalar
ctntraintervalar
FONTE Transcrito e traduzido de Berry (1987 p 194-5)
Nossa intenccedilatildeo em levantar tal classificaccedilatildeo e teorizaccedilatildeo da textura natildeo objetiva
incorporaacute-la prontamente em nossas anaacutelises antes cercar o tema da interaccedilatildeo desde a muacutesica
instrumental em suas especificidades
40 hetero- descreve diferenciaccedilotildees mais sutis enquanto contra- representa diferenccedilas mais draacutesticas
45
312 Vozes sons segregados em fluxos auditivos
A maneira como percebemos uma voz ou uma linha e como a diferenciamos de outras
eacute uma questatildeo importante na abordagem da textura As vozes satildeo normalmente diferenciadas
pela tessitura em que atuam (soprano contralto tenor e baixo por exemplo) e pelo timbre
(tone-color) enquanto identidade espectral associada a uma fonte instrumental (flauta
violino etc) Trevor Wishart (1996 p 23) ao tratar da noccedilatildeo convencional de instrumento
comenta que ldquoao menos conceitualmente um instrumento eacute uma fonte de timbre estaacutevel mas
de alturas variaacuteveis A funccedilatildeo essencial de um instrumento eacute manter o timbre estaacutevel e
articular o paracircmetro de alturasrdquo (traduccedilatildeo nossa41) Esta concepccedilatildeo de instrumento de timbre
estaacutevel garante o desenvolvimento de um fluxo instrumental (voz)42 associado a este timbre e
sua fonte sonora43 Wishart aponta que ldquoDe fato o conceito de fluxo [stream] instrumental eacute
talvez o que mais persiste no pensamento musical convencionalrdquo (1996 p 25)
O grupo de Albert Bregman da universidade McGill no Canadaacute pesquisa o tema da
Anaacutelise da Cena Auditiva que oferece vaacuterios pontos de contato com a percepccedilatildeo de vozes
distintas na muacutesica44 No artigo que compotildee a New Encyclopedia o f Neuroscience
(BREGMAN 2008) o autor resume
Numa situaccedilatildeo tiacutepica de escuta diferentes fontes acuacutesticas estatildeo ativas ao mesmo tempo Desta forma apenas a soma do seu espectro alcanccedilaraacute o ouvido do ouvinte Para padrotildees sonoros individuais serem reconhecidos - tais como aqueles chegando da voz humana numa mistura - a informaccedilatildeo auditoacuteria recebida tem de ser particionada e o subgrupo correto alocado para sons individuais de tal maneira que uma descriccedilatildeo acurada pode ser formada para cada um Este processo de agrupar e segregar dados sensoacuterios em representaccedilotildees mentais separadas chamadas fluxosauditoacuterios tem sido nomeada ldquoauditory scene analysisrdquo (ASA) por Bregman (1990)A formaccedilatildeo de fluxos auditoacuterios eacute o resultado de processos de agrupamento sequencial e simultacircneo O agrupamento sequencial conecta os dados sensoacuterios ao longo do tempo enquanto que o agrupamento simultacircneo seleciona dos dadoschegando no mesmo tempo aqueles componentes que satildeo provavelmente partes domesmo som (BREGMAN 2008 p 3 traduccedilatildeo nossa45)
41 Original [] an instrument is a source of stable timbre but variable pitch The essential function of aninstrument is to hold timbre stable and to articulate the pitch parameter (WISHART 1996 p 23)
42 Abordaremos a ideia de fluxo adiante43 Assim a voz se encontra convencionalmente associada agrave materialidade do instrumento ou suas famiacutelias
Observando por outro acircngulo ordinariamente as possibilidades tiacutembricas para cada voz se apresentam em valores discretos este ou aquele instrumento Esta eacute uma das dimensotildees da rede (lattice) de Wishart (1996) que seraacute abordada adiante
44 Os resultados das pesquisas de Bregman jaacute foram utilizados na composiccedilatildeo musical (Confira Frigatti Ferraz e Faria 2017)
45 Original ldquoIn a typical listening situation different acoustic sources are active at the same time Therefore only the sum of their spectra will reach the listenerrsquos ear For individual sound patterns to be recognized - such as those arriving from the human voice in a mixture - the incoming auditory information has to be
46
Desta forma a percepccedilatildeo de um fluxo auditivo (auditory stream) - em nosso caso
uma voz por enquanto - depende de processos cognitivos de agrupamento de dados
sensoacuterios De acordo com Bregman (2008 p 4) seus resultados manteacutem relaccedilatildeo com os
princiacutepios da Teoria da Gestalt como por exemplo o de agrupamento Segundo este
princiacutepio agrupamos elementos por proximidade similaridade boa continuaccedilatildeo e fato
comum De acordo com Roger Shepard (1999) ldquoOs princiacutepios de agrupamento nos permitem
separar o fluxo de informaccedilatildeo entrando em nosso sistema auditivo em sensaccedilotildees associadas
com objetos discretos pertencentes ao mundo externordquo (p 117) Baseado no princiacutepio de fato
comum eacute possiacutevel dizer que ldquose duas coisas estatildeo altamente correlacionadas eacute altamente
provaacutevel que emergiram de uma mesma fonte enquanto que se duas coisas satildeo assincrocircnicas
eacute provaacutevel que sejam associadas com dois objetos diferentesrdquo (p 117) Como os
componentes do timbre satildeo altamente correlacionados no som de um instrumento e
relativamente estaacuteveis como aponta Wishart na citaccedilatildeo acima (p 45) a tendecircncia eacute que os
sons deste instrumento constituam um fluxo Este aspecto tambeacutem aponta para a percepccedilatildeo de
uma uacutenica voz quando apresentada por vaacuterios instrumentos em dobramento Isto eacute agrupamos
os diversos sons sob uma mesma categoria uma voz porque estatildeo altamente correlacionados
especialmente em seu comeccedilo teacutermino e movimentos meloacutedicos
Outro princiacutepio importante eacute o de movimento aparente A Figura 10 mostra o
fenocircmeno da segregaccedilatildeo de fluxos num experimento de laboratoacuterio Duas notas (H e L) satildeo
tocadas em um padratildeo galopante H-L-H H-L-H etc O experimento evidencia a importacircncia
da separaccedilatildeo em frequecircncia e da velocidade quanto mais afastadas em frequecircncia as notas
estiverem ou quanto mais raacutepida a alternacircncia mais faacutecil seraacute percebecirc-las como fluxos
distintos
Quando por exemplo trecircs notas de alturas afastadas satildeo alternadas lento o suficiente
podemos perceber um padratildeo meloacutedico ou seja percebemos um movimento aparente que vai
de uma nota a outra Entretanto se a velocidade com que satildeo alternadas estas notas se torna
maior chega a um ponto em que natildeo percebemos uma melodia a ordem das trecircs notas se
torna irrelevante e comeccedilamos a ouvir a reiteraccedilatildeo de cada uma das notas como um fluxo
partitioned and the correct subset allocated to individual sounds so that an accurate description may be formed for each This process of grouping and segregating sensory data into separate mental representations called auditory streams has been named lsquoauditory scene analysisrsquo (ASA) by Bregman (1990) The formation of auditory streams is the result of processes of sequential and simultaneous grouping Sequential grouping connects sense data over time whereas simultaneous grouping selects from the data arriving at the same time those components that are probably parts of the same sound These two processes are not independent but can be discussed separately for conveniencerdquo (BREGMAN 1990 p 3)
47
separado (SHEPARD 1999 p 118) Este fenocircmeno explica a possibilidade de uma polifonia
virtual em que as notas intercaladas se agrupam em diferentes vozes devido agrave diferenccedila de
registro e ao tempo em que satildeo tocadas (ver Figura 11)
FIGURA 11 - POLIFONIA VIRTUAL NOS COMPASSOS 89 A 94 DA PARTITA NO 2 EM RE MENOR BWV 1004 DE J S BACH
P
FONTE Transcrito de BACH
48
Agraves vezes basta a separaccedilatildeo de registro (ou outra diferenciaccedilatildeo do material) para se
perceber ldquoduas vozesrdquo natildeo necessitando que seja raacutepida a alternacircncia entre elas A Figura 12
demonstra este caso em outro trecho da mesma partita de Bach Neste caso haacute tambeacutem
diferenciaccedilatildeo riacutetmica (padrotildees riacutetmicos diferentes) que corroboram com a segregaccedilatildeo de dois
fluxos
FIGURA 12 - POLIFONIA VIRTUAL NOS COMPASSOS 121 A 123 DA PARTITA NO 2 EM REacute MENOR BWV1004 DE J S BACH
m
FONTE Transcrito de BACH
Portanto o intervalo entre as notas de uma melodia a velocidade com que elas satildeo
tocadas bem como o timbre instrumental com que satildeo orquestradas satildeo importantes para a
caracterizaccedilatildeo e percepccedilatildeo do fluxo auditivo que na teoria musical chamamos voz Eacute possiacutevel
que mantendo-se as alturas numa relaccedilatildeo tempo-intervalo adequada para a percepccedilatildeo de uma
melodia e modificando o timbre ainda seja possiacutevel identificaacute-la como um uacutenico fluxo Isto
acontece na Klangfarbenmelodie (melodia de timbres) em que um uacutenico fluxo eacute distribuiacutedo
entre os instrumentos46
Os casos de polifonia virtual e de melodia de timbres satildeo exemplos de alternativas
ainda num contexto musical convencional agrave tendecircncia de um uacutenico instrumento constituir
uma uacutenica voz Na polifonia virtual um instrumento constitui vaacuterias vozes enquanto que na
melodia de timbres vaacuterios instrumentos constituem uma uacutenica voz
313 Orquestraccedilatildeo timbre (tone-color) e textura
Eacute importante salientar para a distinccedilatildeo de alguns conceitos que se relacionam e
convergem neste tema orquestraccedilatildeo timbre (tone-color) e textura
De acordo com Brian Simms (1996 p101) ldquoOrquestraccedilatildeo eacute a arte de realizar uma
ideia musical para um grupo esp eciacutefico de instrumentosrdquo Simms (1996 p 101-109) apresenta
uma seacuterie de transformaccedilotildees pelas quais passou a orquestraccedilatildeo nos uacuteltimos seacuteculos
No seacuteculo XIX o tipo de orquestraccedilatildeo dos compositores alematildees como Richard
Wagner privilegiava o uso de vaacuterios dos corais da orquestra sobre uma mesma voz Com estes
46 Este caso seraacute abordado em 313
vaacuterios dobramentos criava-se uma grande uniformidade tiacutembrica
Ao final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX ressalta-se por um lado Claude Debussy que
evitava dobramentos em passagens mais suaves mostrando preferecircncia pelo som puro do
instrumento solo Por outro lado Gustav Mahler que entre outras de suas inovaccedilotildees em
orquestraccedilatildeo usava subdivisotildees heterogecircneas da orquestra com poucos dobramentos para
evidenciar o conteuacutedo contrapontiacutestico
Nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX alguns compositores demonstraram uma
preferecircncia por pequenos grupos de cacircmara - Pierrot Lunaire (1912) de Arnold Schoenberg eacute
uma peccedila emblemaacutetica bem como L rsquohistoire du soldat (1918) de Igor Stravinsky Aleacutem disso
haacute a incorporaccedilatildeo da percussatildeo como elemento estrutural da composiccedilatildeo cuja peccedila simboacutelica
eacute Ionisation (1931) de Edgard Varegravese Deve-se acrescentar ainda a experimentaccedilatildeo com novos
sons por parte de americanos como Charles Ives Henry Cowell entre outros e a exploraccedilatildeo
de efeitos espaciais ao se dividir a orquestra em grupos que tocavam em lugares distintos do
espaccedilo de concerto
A abordagem de Simms daacute ecircnfase ao seacuteculo XX e trata da muacutesica eletroacuacutestica de
maneira independente destes conceitos satildeo capiacutetulos agrave parte Entretanto podemos levantar a
questatildeo de como os recursos eletroacuacutesticos se incorporaram a esta orquestraccedilatildeo na segunda
metade do seacuteculo XX e iniacutecio do XXI Nossa investigaccedilatildeo relaciona-se fortemente com esta
questatildeo entretanto por um vieacutes mais teoacuterico do que histoacuterico
Timbre enquanto tone-color eacute definido por Simms (1996 p 101) como ldquoa qualidade
distintiva de um som musicalrdquo Neste sentido a ideia de Klangfarbenmelodie se apresenta
como um dos principais desenvolvimentos Uma primeira acepccedilatildeo diz respeito agrave ideia original
de Schoenberg - a terceira peccedila (Farben) de suas Cinco Peccedilas para Orquestra op 16 (1909) eacute
um exemplo De acordo com o verbete do Grove Music Online (RUSHTON 2001) o timbre
(ou tone-color) pocircde ser concebido enquanto um paracircmetro estrutural o que possibilitou que
transformaccedilotildees tiacutembricas em uma uacutenica nota podiam ser percebidas como uma melodia Na
obra de Anton Webern haacute uma acepccedilatildeo distinta da melodia de timbres Uma mesma voz eacute
segmentada e cada segmento eacute tocado por um instrumento distinto Um exemplo
representativo eacute a sua orquestraccedilatildeo da Musikalischen Opfer de Bach A Figura 13 apresenta
um excerto da orquestraccedilatildeo de Webern
49
50
FIGURA 13 - MELODIA DE TIMBRES NA ORQUESTRACcedilAtildeO DE WEBERN FUGA (RICERCATA) NO 2 AUS DEM ldquoMUSIKALISCHEN OPFERrdquo VON JOH SEB BACH
Trombone (muted) Horn (muted) Tpt (muted) Horn
mpp mdash p
Horn Tpt and Harp Flute
Tromb pp pp
v gt Violin (muted)
m mp p
FONTE Transcrito de Simms (1996 p 111)
O uso estrutural do timbre (tone-color) eacute bastante desenvolvido no seacuteculo XX Varegravese
prenuncia numa aula em 1936 ldquoO papel da cor ou timbre seraacute completamente modificado de
ser incidental anedoacutetico sensual ou pitoresco ele se tornaraacute um agente de delineamento
como as diferentes cores num mapa separando diferentes aacutereas e uma parte integral da
formardquo (VARESE apud SIMMS 1996 p 112) Varegravese defendia uma liberaccedilatildeo do som que
seria possiacutevel por meio dos novos instrumentos (ver citaccedilatildeo na p 17) Em Poegraveme
eacutelectronique (1958) estas ideias tecircm um aacutepice que evidencia o desenvolvimento do uso do
timbre na muacutesica Aleacutem disso ressalta-se a fascinaccedilatildeo com o som por parte de compositores
como Morton Feldman que buscava uma muacutesica em que os sons existissem por si mesmos
independentemente das estruturas de construccedilatildeo da muacutesica O som seria natildeo apenas uma
memoacuteria mas existiriam por si mesmos Deve-se salientar a discordacircncia neste quesito Elliott
Carter por exemplo afirma
Tatildeo longe quanto a cor possa ir eu continuo acreditando que o real interesse da muacutesica estaacute na sua organizaccedilatildeo Eu natildeo acredito na novidade do som por seu proacuteprio interesse eacute sempre a coisa mais faacutecil a se alcanccedilar e perde seu interesse muito rapidamente (CARTER apud SIMMS 1996 p114 traduccedilatildeo nossa47)
47 Original ldquoAs far as color goes I still believe that the real interest of music lies in its organization I donrsquot believe in novelty of sound for its own sake that is always the easiest thing to bring off and loses its interest very quicklyrdquo (CARTER apud SIMMS 1996 p 114)
51
Abordar a discussatildeo em torno da cor e do timbre neste trabalho seria por demais
expansiacutevel Nos limitaremos a expocircr a explicaccedilatildeo de Rob Weale que demonstra a
problemaacutetica em torno da concepccedilatildeo de timbre
Timbre tem sido usado geralmente sem grande consistecircncia de significado para se referir vagamente agrave lsquocorrsquo de um som Tem sido frequentemente e incorretamente tratado como um lsquoparacircmetrorsquo discreto do som junto a outras facetas como a frequecircncia e altura A praacutetica de criaccedilatildeo e de pesquisa na muacutesica eletroacuacutestica tem revelado a natureza insatisfatoacuteria desta imprecisatildeo e aberto a noccedilatildeo para uma situaccedilatildeo muito mais complexa e variaacutevel onde o timbre existe em relaccedilotildees fraacutegeis e contiacutenuas com frequecircncia conteuacutedo espectral identidade socircnica e reconhecimento da fonte Isto leva para uma situaccedilatildeo onde em vaacuterios exemplos musicais eacute difiacutecil separar timbre do discurso musical geral (WEALE 2005 traduccedilatildeo nossa48)
Com esta complexidade em mente natildeo haveria tanta incongruecircncia como daacute a
entender Carter na citaccedilatildeo acima entre timbre e a organizaccedilatildeo da muacutesica
Textura segundo Simms (1996 p 102) ldquose refere ao agregado sonoro de linhas
acordes ou outros eventos audiacuteveis enquanto interagem uns com os outrosrdquo O autor descreve
o desenvolvimento da textura polifocircnica no seacuteculo XX Citaremos abaixo alguns fatos
importantes deste contexto
Para algumas texturas polifocircnicas muito complicadas a fim de deixar clara a
importacircncia de cada voz da textura Schoenberg e Berg utilizavam a notaccedilatildeo H para
Hauptstimme - voz principal e N para Nebenstimme - para voz secundaacuteria
O uso de texturas convencionais permaneceu mesmo com o uso de estruturas
harmocircnicas natildeo tradicionais Um exemplo satildeo as fugas de Paul Hindemith na obra Ludus
tonalis (1936)
A textura foi abordada de maneiras natildeo convencionais Varegravese e Cowell por exemplo
desenvolveram texturas compostas por massas sonoras diferentes daquelas compostas por
intervalos linhas e acordes
A obra de Webern tambeacutem se distancia das convencionais texturas homofocircnica e
polifocircnica Ela disfarccedila a textura polifocircnica atraveacutes de uma disposiccedilatildeo diferente dos
componentes Simms (1996 p 116) descreve a textura do iniacutecio da Op 21 de Webern
48 Original ldquoTimbre has generally been used without any great consistency of meaning to refer very loosely to the rsquocolourrsquo of a sound It has often and incorrectly been treated as a discrete rsquoparameterrsquo of sound along with other facets such as frequency and pitch Creative practice and research in electroacoustic music have revealed the unsatisfactory nature of this imprecision and opened up the notion to a much more complex and protean situation where timbre exists in fragile relationships and continua with frequency spectral content sonic identity and source recognition This leads to a situation where in many musical examples it is hard to separate timbre from the overall musical discourserdquo (WEALE 2005)
52
A textura consiste em vaacuterias linhas cada qual eacute feita descontiacutenua pela colocaccedilatildeo de pausas grandes saltos disjunccedilotildees no registro e raacutepidas mudanccedilas de cor Eacute de fato difiacutecil perceber qualquer linha no sentido tradicional a atenccedilatildeo do ouvinte eacute primeiramente atraiacuteda por uma seacuterie de sons ou intervalos individuais (traduccedilatildeo nossa49)
Este tipo de textura eacute chamada pontilhista por sua relaccedilatildeo com a teacutecnica de pintura em
que um conjunto de pontos com cores puras datildeo origem agraves formas Agrave distacircncia o mosaico de
pontos se mistura e proporciona perceber formas reconheciacuteveis Ligeti (apud SIMMS 1996
p 117) afirma que a esta fragmentaccedilatildeo da linha em Webern resulta numa textura global
Nesta natildeo haacute de fato um fluir musical trata-se de momentos individuais natildeo haacute de fato um
teacutermino a muacutesica daacute a impressatildeo de ldquouma parada no fluxo do tempordquo O ouvinte natildeo se ateacutem
a continuidades lineares mas a diferentes momentos isolados Este tipo de textura global foi
utilizada por muitos compositores apoacutes Webern como Ligeti Stockhausen e Boulez
Entretanto tamanha variedade na textura ironicamente poderia gerar a percepccedilatildeo de uma
continuidade da mesma coisa Assim estrateacutegias de controle destas texturas globais foram
desenvolvidas de maneira especial por Ligeti e Krzysztof Penderecki
As peccedilas Apparitions (1958-9) e Atmosphegraveres (1961) de Ligeti satildeo exemplos de
composiccedilotildees essencialmente texturais As texturas chegam a cinquenta vozes e satildeo
principalmente formadas por clusters cromaacuteticos ou figuras cromaacuteticas confusas formando
massas que interagem Simms (1996 p 119) comenta ldquoestas massas entatildeo interagem por
colisatildeo penetraccedilatildeo dissipaccedilatildeo mescla ou outros gestos vividamente dramaacuteticosrdquo50 (grifo
nosso) Esta concepccedilatildeo de textura estaacute mais proacutexima do repertoacuterio eletroacuacutestico como haacute de
se demonstrar
314 Microtextura e macrotextura
Eacute importante notar o caraacuteter micro a que foi levada esta textura percebida globalmente
A teacutecnica de Ligeti para a formaccedilatildeo destas massas eacute conhecida como micro-polifonia Isto eacute a
textura cujas mudanccedilas conforme Berry (1987 p 189) ldquoestatildeo frequentemente entre o que eacute
49 Original ldquoThe texture consists of several lines each of which is made discontinuous by the placement of rests large leaps disjunctions in register and rapid changes of color It is in fact difficult to perceive any lines in the traditional sense and the listenerrsquos attention is at first drawn to a mottled array of individual sounds or intervalsrdquo (SIMMS 1996 p 116)
50 Original ldquo[] and these masses then interact by collision penetration dissipation merging or other vividly dramatic gesturesrdquo (SIMMS 1996 p 119)
53
mais prontamente perceptiacutevel e apreciaacutevel na experiecircncia da muacutesicardquo51 neste caso eacute um
emaranhado de ldquomicro-vozesrdquo indistinguiacuteveis que formam uma massa Por outro lado a
proacutepria massa eacute ouvida de maneira semelhante agrave voz como uma camada como um fluxo
coerente Haacute assim em relaccedilatildeo agrave descriccedilatildeo da textura um deslocamento de percepccedilatildeo do
macro para o micro Parece existir uma demanda de escuta uma necessidade embora haja
uma liberdade subjetiva neste aspecto de adaptarmos nossa escuta aos eventos sonoros que se
apresentam a ela De todo modo o termo textura pode se referir a estas complexidades e
simultaneidades do niacutevel micro eou do niacutevel macro Um exerciacutecio imaginativo simploacuterio
pode elucidar estes dois niacuteveis Imaginemos uma massa orquestral tal qual as de Ligeti e a
ela sobreposta uma voz uma melodia cantada por uma soprano por exemplo Haacute uma
macrotextura que se refere a configuraccedilatildeo massa + voz (uma espeacutecie de melodia
acompanhada) e haacute uma microtextura que constitui a proacutepria massa A Figura 14 oferece uma
ilustraccedilatildeo deste exemplo
FIGURA 14 - EXEMPLO DE MACRO E MICROTEXTURA
Soprano (voz)
Orquestra (massa)
Y Macrotextura
FONTE o autor (2019)
Esta distinccedilatildeo eacute um esforccedilo teoacuterico e uma necessidade de nosso trabalho que decorre
da ausecircncia de tal distinccedilatildeo na bibliografia consultada Ela tem o objetivo de indicar neste
trabalho estas diferentes concepccedilotildees micro e macrotextura
32 AS SONORIDADES
Mesmo na muacutesica instrumental a noccedilatildeo de voz pode natildeo ser uma denominaccedilatildeo ideal
dependendo dos materiais e processos de composiccedilatildeo Este eacute o caso de muitas composiccedilotildees
51 Traduccedilatildeo nossa Original ldquoChanges in texture-surely quantitative changes but those involving textural qualities as well-are often among the most readily perceptible and appreciable in the experience of musicrdquo (BERRY 1987 p 189)
do seacuteculo XX como as supramencionadas Em alguns destes casos a ideia de sonoridade
conforme o modelo de Guigue (2011) pode ser mais apropriada Didier Guigue desenvolve
uma teoria analiacutetica da sonoridade especialmente voltada para a anaacutelise de peccedilas para piano
mas facilmente expansiacutevel para outras muacutesicas Uma sonoridade carrega o sentido de uma
unidade sonora composta formada por componentes de nuacutemero variaacutevel que satildeo combinados
e que interagem entre si Ela eacute um momento que pode ocupar qualquer medida temporal
desde um pequeno segmento ateacute uma peccedila inteira Ela eacute uma unidade da estruturaccedilatildeo musical
com potencial morfoloacutegico ldquoUma unidade sonora eacute consequentemente a siacutentese temporaacuteria
de um certo nuacutemero de componentes que agem e interagem em complementaridaderdquo
(GUIGUE 2011 p 50)
O modelo de Guigue apresenta dois niacuteveis O primeiro (niacutevel primaacuterio ou niacutevel 1) eacute
constituiacutedo por
bull coleccedilatildeo de cromas o autor usa o termo como sinocircnimo de classe de nota
bull particcedilatildeo se refere a distribuiccedilatildeo dos cromas na extensatildeo do(s) instrumento(s) em
pontos especiacuteficos e exclusivos em alturas absolutas
bull intensidade comumente chamada de dinacircmica
bull efeitos exoacutegenos efeitos que influenciam a produccedilatildeo concreta do som por exemplo o
pedal do piano
No niacutevel secundaacuterio os componentes podem ser de ordem morfoloacutegica52 quando para
serem analisados eacute preciso fazer a abstraccedilatildeo do fator tempo (conteuacutedo acrocircnico da unidade
sonora) ou de ordem cineacutetica quando satildeo avaliados levando em conta a distribuiccedilatildeo dos fatos
sonoros no tempo (componentes diacrocircnicos) Veja na Figura 15 a ilustraccedilatildeo do domiacutenio
morfoloacutegico e cineacutetico bem como os aspectos do primeiro niacutevel
Cada componente pode ser analisado em relaccedilatildeo a sua complexidade relativa O iacutendice
de complexidade relativa se refere a ldquoposiccedilatildeo que o componente analisado ocupa em dado
momento no vetor simplicidade-complexidaderdquo (GUIGUE 2011 p 52) sempre em relaccedilatildeo a
uma complexidade maacutexima paradigmaacutetica Por exemplo para expressar a complexidade
54
52 Note o leitor que aqui o termo morfoloacutegico estaacute posto em relaccedilatildeo ao dualismo entre os componentes que para serem analisados eacute necessaacuterio fazer a abstraccedilatildeo do fator tempo e aqueles que para serem analisados eacute imperativo considerar o fator tempo No caso de Smalley (1997) o termo morfologia do binocircmio espectro- morfologia se refere justamente ao oposto ou seja o desenvolvimento temporal das caracteriacutesticas espectrais (p 107) Neste trabalho entretanto quando nos referimos ao acircmbito sonoro-morfoloacutegico o estamos fazendo em oposiccedilatildeo aos aspectos de ordem praacutetica tecnoloacutegica da performance Assim os aspectos sonoro- morfoloacutegicos (da forma do som) concernem ao que percebemos que soa e sua organizaccedilatildeo
relativa do nuacutemero de fatos sonoros53 num determinado tempo o eixo ldquovaziordquo (simplicidade
maacutexima) - ldquosaturadordquo (complexidade maacutexima) deve ser utilizado
55
FIGURA 15 - NIVEIS DE ANALISE DA SONORIDADE
Niacutevel 2
Niacutevel 1
53 O autor designa fatos sonoros ldquoum nuacutemero qualquer de notas ou outros elementos organizando a sonoridade ocorrendo simultaneamente isto eacute na mesma posiccedilatildeo do tempordquo (GUIGUE 2011 p 51)
56
321 Oposiccedilatildeo Adjacente e Segmentaccedilatildeo
A articulaccedilatildeo entre as sonoridades se daacute por meio de rupturas de continuidade Se haacute
uma ruptura em um dos componentes que compotildeem a unidade supotildee-se que haacute uma ruptura
na continuidade sonora uma articulaccedilatildeo que daacute iniacutecio a uma nova unidade (p 68)54 Neste
caso falamos de um processo de segmentaccedilatildeo
Satildeo processos de transformaccedilatildeo dos componentes comuns agraves duas unidades
adjacentes que geram estas rupturas Assim eacute ainda necessaacuterio observar o nuacutemero de
componentes ativos no processo de transformaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao nuacutemero daqueles que se
mantecircm passivos neste processo (p69) O autor entra assim na discussatildeo sobre repeticcedilatildeo e
variaccedilatildeo e propotildee uma escala que vai da repeticcedilatildeo agrave oposiccedilatildeo diametral passando pela
declinaccedilatildeo e variaccedilatildeo Declinaccedilotildees satildeo as variaccedilotildees em que o modelo referencial permanece
reconheciacutevel entretanto com pequenas diferenccedilas Por outro lado na oposiccedilatildeo diametral soacute eacute
possiacutevel falar do referencial pela sua ausecircncia Esta escala chamada Vetor de qualificaccedilatildeo do
grau de oposiccedilatildeo estrutural entre unidades sonoras eacute ilustrada na Figura 16
FIGURA 16 - VETOR DE QUALIFICACcedilAtildeO DO GRAU DE OPOSICcedilAtildeO ESTRUTURAL ENTRE UNIDAshyDES SONORAS
A B
repeticcedilotildees declinaccedilotildees
variaccedilotildeesoposiccediloes
a = modelo b ^ variaccedilatildeo paradigmaacuteticaA = domiacutenio de a (repeticcedilotildees ^ exatas variadas ^ declinaccedilotildees) B = domiacutenio de b (variaccedilotildees ^ oposiccedilotildees ^ oposiccedilatildeo diametral)
FONTE Transcrito de Guigue (2011 p 72)
As diferentes sonoridades podem ser articuladas tambeacutem atraveacutes de uma sonoridade
ldquopivocircrdquo ou com sobreposiccedilatildeo parcial de uma sobre a outra Guigue chama esta uacuteltima de
telhagem quando uma sonoridade comeccedila antes que a anterior termine (ver Figura 17)
a v b
54 O autor classifica tambeacutem os tipos de rupturas e o papel e a hierarquia dos componentes no que afetam estas rupturas (GUIGUE 2011 p 64-69)
57
FIGURA 17 - TELHAGEM DE ACORDO COM GUIGUE (2011)U44
O autor desenvolve tambeacutem o conceito de sintagma ldquoum sintagma eacute um conjugado
sequencial binaacuterio de unidades sendo que uma eacute determinante e outra determinadardquo (p 75)
A unidade determinada se define na reaccedilatildeo agrave determinante Esta reaccedilatildeo pode ter o caraacuteter de
ldquorespostardquo ldquoconsequecircnciardquo ou ldquocomplementordquo A ressonacircncia de um gesto uma nota ao
piano por exemplo eacute uma reaccedilatildeo como ldquoconsequecircnciardquo determinada pelo gesto
(determinante)5 Nos compassos 271-272 da Synchronisms no 10 de Mario Davidovsky eacute
possiacutevel demarcar o arpejo do violatildeo como determinante do ataque consecutivo da parte
eletroacuacutestica (determinada) principalmente por se tratar das mesmas alturas (Figura 18)
FIGURA 18 - SINTAGMA EM SYNCHRONIMSNO 10 (1992) DE MARIO DAVIDOVSKY (COMPASSOS
FONTE Transcrito de Davidovsky (compositor) (1995)
55 As ideias de causalidade de Smalley (1997) e de gatilho (triggering) de Wishart (1996) que seratildeo abordadas adiante apresentam estreita relaccedilatildeo com esta ideia de sintagma
58
322 Polifonia de Sonoridades
As sonoridades podem se apresentar dispostas em muacuteltiplos fluxos simultacircneos que se
desenvolvem em paralelo Diferentemente do processo de segmentaccedilatildeo (relacionado agrave
oposiccedilatildeo adjacente que diz respeito agraves articulaccedilotildees sucessivas das sonoridades) na
simultaneidade de fluxos distintos haveraacute um processo de segregaccedilatildeo56 em vaacuterias camadas
Esta polifonia de Sonoridades como denomina Guigue pode apresentar relaccedilotildees de
interdependecircncia das unidades sonoras O autor aponta a relaccedilatildeo espectral como a principal
dimensatildeo das possibilidades de interdependecircncia entre as unidades pois propicia em
potencial a fusatildeo entre unidades57
FIGURA 19 - POLIFONIA DE SONORIDADES EM MOMENTO 23 DE ALMEIDA PRADO
Raacutepido 8va~
Lento
i m mp p p
molto lento
i P P ip p p Calmor3n 3 r 3~i
ampt i
FONTE Transcrito de Guigue (2011 p 77)
Ao fim do capiacutetulo sobre sua proposta metodoloacutegica (p 47-81) Guigue apresenta uma
recapitulaccedilatildeo em que resume o processo de segregaccedilatildeo como segue
3
A Segregaccedilatildeo parte da constataccedilatildeo de que eacute possiacutevel dissociar sistematicamente as unidades em dois ou mais fluxos simultacircneos os quais conservam entre si ao longo do tempo tanto elementos de identificaccedilatildeo quanto de diferenciaccedilatildeo um dos fatores
56 Tanto fluxos como segregaccedilatildeo satildeo os termos utilizados por Guigue O autor aponta a psicologia da audiccedilatildeo como aacuterea de origem destes termos e cita o trabalho de Albert Bregman Auditory Scene Analysis
57 Fusatildeo e contraste satildeo tambeacutem os termos usados para articular a proposta de morfologia da interaccedilatildeo de Flo Menezes (2006 p 377-400) que seraacute apresentada adiante
59
mais frequentes de segregaccedilatildeo eacute a separaccedilatildeo estaacutevel entre vaacuterias regiotildees de alturas ou entre diversas configuraccedilotildees instrumentais (p 79)
Esta uacuteltima frase nos leva a pensar novamente nos jaacute abordados paracircmetros envolvidos
na percepccedilatildeo de um fluxo auditivo registro e timbre instrumental (p 46) Entretanto como
afirma Guigue este eacute ldquoum dos fatores mais frequentes de segregaccedilatildeordquo Existem outros fatores
passiacuteveis de diferenciar os fluxos e tambeacutem de os unir Embora os estudos da percepccedilatildeo
possam nos ajudar a explicar estes fatores esta explicaccedilatildeo eacute posterior agrave praacutetica e agrave
experimentaccedilatildeo que satildeo assim defendemos insubstituiacuteveis como recursos para avaliar
estrateacutegias de composiccedilatildeo Portanto buscaremos evidenciar estes paracircmetros no repertoacuterio
(capiacutetulo 4) e na praacutetica da composiccedilatildeo (capiacutetulo 5)
33 ldquoVOZESrdquo NO CONTEXTO ELETROACUacuteSTICO
As categorias apresentadas - voz e sonoridade - embora natildeo sejam tatildeo recorrentes na
muacutesica eletroacuacutestica natildeo satildeo completamente estranhas a ela A citada peccedila de Davidovsky
demonstra a possibilidade de pensar a parte eletroacuacutestica em categorias tradicionais Nesta
peccedila percebemos uma concepccedilatildeo tradicional de voz a escrita da parte eletroacuacutestica eacute
semelhante agrave escrita para o violatildeo haacute imitaccedilotildees entre os meios como se o eletroacuacutestico se
tratasse de um instrumento semelhante ao violatildeo Em outros casos temos uma duplicaccedilatildeo do
proacuteprio instrumento na parte eletroacuacutestica como eacute o caso de Dialogue de l rsquoombre double
(1985) para clarineta e fita magneacutetica de Pierre Boulez Neste exemplo o clarinetista faz uma
parte ao vivo em diaacutelogo com partes que foram preacute-gravadas preferencialmente por ele
mesmo
Entretanto o universo eletroacuacutestico abre espaccedilo para um continuum de possibilidades
natildeo amoldadas aos padrotildees instrumentais e musicais convencionais Este contexto admite
sons que fazem referecircncia a outras experiecircncias que natildeo apenas agrave voz humana
Smalley (2008) desenvolve os conceitos de Campos e Redes Indicativas para se referir
agraves relaccedilotildees entre a escuta de materiais sonoros em contextos musicais e a experiecircncia humana
em geral Na introduccedilatildeo de seu texto ele aponta trecircs categorias de sons para tentar delimitar o
amplo territoacuterio sonoro em potencial (1) aqueles sons captados da natureza ou da cultura pelo
microfone (2) sons criados para serem usados na muacutesica como os de instrumento e de canto
e (3) sons que por serem sintetizados ou fortemente transformados parecem distantes dos sons
60
familiares da natureza da cultura dos instrumentos ou do canto Os sons de ambas as
categorias podem fazer referecircncia a experiecircncias externas ao contexto da muacutesica
O termo ldquoindicativordquo significa que a manifestaccedilatildeo musical de um campo se refere ao mundo natildeo-sonoro ou indica experiecircncias relacionadas a ele Identificam-se nove campos Trecircs satildeo arquetiacutepicos gesto (gesture) fala (utterance) e comportamento (behaviour) Estes campos satildeo universais originais A fala humana e as consequecircncias do gesto forneceram tradicionalmente os modelos sonoros fundamentais para a muacutesica O campo-comportamento se ocupa das relaccedilotildees sonoras no espaccedilo e no tempo as quais podem ser consideradas anaacutelogas a certos modos de relaccedilatildeo humana as relaccedilotildees observadas entre coisas ou objetos ou a relaccedilotildees homem-objeto Os seis campos restantes satildeo energia movimento objetosubstacircncia ambiente visatildeo e espaccedilo (SMALLEY 2008 p 7)
O campo-ambiente eacute um exemplo de referecircncia pouco usual na muacutesica instrumental
mas muito recorrente na muacutesica eletroacuacutestica (por exemplo Presque rien No1 - le lever du
jour au bord de la mer (1967-70) de Luc Ferrari) E mesmo que se trate dos campos que
ldquoforneceram tradicionalmente os modelos sonoros fundamentais para a muacutesicardquo haacute outras
possibilidades sonoras que natildeo se adequam agrave estrutura conceitual na qual concebemos a
muacutesica instrumental do chamado periacuteodo da praacutetica comum
331 O Continuum
Em seu livro On Sonic Art (1996) Trevor Wishart critica o paradigma de escrita
musical que fundamenta a construccedilatildeo da muacutesica ocidental Esta escrita segundo o autor daacute
demasiada ecircnfase aos paracircmetros altura e duraccedilatildeo e considera-os por valores discretos (Doacute
Doacute sustenido Reacute etc Semiacutenima colcheia tercina etc) Ou seja relega a um lugar perifeacuterico
o continuum existente nestes paracircmetros Entre Doacute e Doacute sustenido haacute uma infinidade de
valores bem como entre as duraccedilotildees de semiacutenima e colcheia por exemplo A ecircnfase sobre
estes dois paracircmetros considerados por valores discretos cria uma rede bidimensional de
altura duraccedilatildeo O paracircmetro timbre eacute visto da mesma forma eacute tambeacutem apresentado em
valores discretos (instrumento 1 instrumento 2 etc) e compreende uma terceira dimensatildeo
(ver Figura 20a)
61
A criacutetica agrave rede concerne ao fato de que se nos concentrarmos apenas nela corremos o
risco de cair na armadilha mental de observar o mundo dos sons como se fosse dividido em
trecircs dimensotildees com valores discretos Pelo contraacuterio objetos musicais complexos para usar o
termo de Wishart movem-se num continuum (ver Figura 20b)
332 O Gesto e textura
De acordo com o autor a articulaccedilatildeo deste continuum se daacute atraveacutes do gesto Para
Wishart o gesto eacute a articulaccedilatildeo do continuum Na base desta ideia estaacute a concepccedilatildeo de que o
gesto intelectual-fisioloacutegico eacute traduzido em morfologia sonora e que inversamente a
morfologia sonora evidencia o gesto intelectual-fisioloacutegico Esta traduccedilatildeo se daacute por meio da
voz laringe ou pela associaccedilatildeo do movimento corporal com um instrumento No caso da voz
temos uma traduccedilatildeo mais direta sensitiva que natildeo apresenta intermediaacuterios Jaacute no caso dos
instrumentos temos normalmente uma mecacircnica intermediaacuteria socialmente construiacuteda que
impotildee as caracteriacutesticas da rede no proacuteprio instrumento seja atraveacutes de furos trastes teclas
etc Desta maneira a voz humana eacute a fonte imediata do gesto intelectual-fisioloacutegico e eacute um
importante modelo para o desenvolvimento das ideias de Wishart Os instrumentos de sopro
carregam tambeacutem de maneira mais sensitiva a informaccedilatildeo gestual embora possuam esta
mecacircnica intermediaacuteria pois a sua produccedilatildeo sonora estaacute intimamente ligada com a respiraccedilatildeo
62
fisioloacutegica
De maneira semelhante para Smalley (1997 p 111) gesto eacute uma ldquo trajetoacuteria de
energia-movimento que estimula o corpo sonador criando vida espectro-morfoloacutegicardquo
(traduccedilatildeo nossa58) Assim o processo gestual musical eacute taacutetil visual e aural mas aleacutem disso
tem relaccedilatildeo com as tensotildees e relaxamentos musculares com esforccedilo e resistecircncia assumindo
assim um caraacuteter proprioceptivo Por isso ldquoa produccedilatildeo sonora estaacute ligada a uma experiecircncia
sensoacuterio-motora e psicoloacutegica mais abrangenterdquo (SMALLEY 1997 p 111 traduccedilatildeo nossa59)
Assim podemos recuperar a atividade humana por traacutes de determinado som atraveacutes do que
Smalley denomina processo de referenciaccedilatildeo espectro-morfoloacutegica (spectromorphological
referralprocess) Na muacutesica eletroacuacutestica as referecircncias gestuais podem ser mais ou menos
evidentes Este aspecto eacute analisado pela noccedilatildeo de substituinte (gesture surrogacy) Sons cuja
origem podemos imaginar facilmente satildeo substituinte de primeira ordem aqueles que natildeo
guardam nenhuma relaccedilatildeo com gestos fiacutesicos conhecidos ou com alguma fonte sonora
conhecida satildeo substituintes de terceira ordem
Smalley (1997) apresenta o gesto como um de seus princiacutepios ao lado da textura60 A
noccedilatildeo de gesto neste caso tem a ver com impulsionar o tempo para frente ldquoAssim a muacutesica
gestual eacute governada por um senso de movimento para diante de linearidade de narratividaderdquo
(SMALLEY 1997 p113) Entretanto
Se eles [os gestos] se tornam muito esticados no tempo ou se evoluem muitolentamente perdemos a fisicalidade humana Parecemos cruzar uma fronteiraembaccedilada entre eventos numa escala humana e eventos numa escala mundana ambiental Ao mesmo haacute uma mudanccedila de foco da escuta - quanto mais lento o iacutempeto gestual direto tanto mais o ouvido procura se concentrar em detalhes internos (ateacute onde eles existam) Uma muacutesica que eacute primariamente textural assim se concentra na atividade interna agraves custas do iacutempeto antecipado (SMALLEY 1997 p 113-114 traduccedilatildeo nossa61)
58 Original ldquoA gesture is therefore an energy-motion trajectory which excites the sounding body creating spectromorphological liferdquo (SMALLEY 1997 p 111)
59 Original ldquo[] sound-making is linked to more comprehensive sensorimotor and psychological experiencerdquo (SMALLEY 1997 p 111)
60 Gesto eacute um termo bastante discutido na muacutesica eletroacuacutestica Embora hajam controveacutersias e perspectivas diferentes optamos por estes dois referenciais (SMALLEY 1997 WISHART 1996) pois satildeo suficientemente abrangentes para nossa abordagem da interaccedilatildeo como uma relaccedilatildeo entre fluxos distintos - tema desta pesquisa
61 Original ldquoIf they [gestures] become too stretched out in time or if become too slowly evolving we lose the human physicality We seem to cross a blurred border between events on a human scale and events on a more worldly environmental scale At the same time there is a change of listening focus - the slower the direct gestural impetus the more the ear seeks to concentrate on inner details (insofar as they exist) A music which is primarily textural then concentrates on internal activity at the expense of forward impetusrdquo (SMALLEY 1997 p 113-114)
63
Smalley aponta para a frequente mistura destes dois princiacutepios (gesto e textura62) ou
por uma mudanccedila de foco da escuta ou porque ambos estatildeo presentes concorrentemente num
equiliacutebrio colaborativo Pode-se entatildeo classificar o contexto como conduzido-por-gesto
[gesture-carried] ou conduzido-por-textura [texture-carried] (SMALLEY 1997 p 114) Nas
palavras do autor
Gestos individuais podem ter interiores texturais em cujo caso o movimento gestual molda [frames] a textura - estamos conscientes tanto do gesto quanto da textura embora o contorno gestual domine um exemplo de gesture-framing Por outro lado estruturas conduzidas-por-textura [texture-carried] nem sempre satildeo ambientes com interiores democraacuteticos onde cada (micro-) evento eacute igual e os indiviacuteduos satildeo subsumidos numa atividade coletiva Gestos podem se destacar da textura em um relevo de primeiro plano Este eacute um exemplo de texture-setting - a textura fornece um plano baacutesico no interior do qual os gestos agem (SMALLEY 1997 p 114 traduccedilatildeo nossa63)
Gesto e textura satildeo assim conceitos importantes na abordagem de nosso tema As
vozes satildeo constituiacutedas de notas em sequecircncia agrupadas (por um processo de percepccedilatildeo) num
fluxo auditivo Da mesma forma os gestos e texturas constituem as camadas planos ou fluxos
num contexto musical mais amplo como o eletroacuacutestico
333 Camadas fluxos e planos
Smalley (2008 p 7) denomina ldquocampo-comportamentordquo o que ldquose ocupa das relaccedilotildees
sonoras no espaccedilo e no tempo as quais podem ser consideradas anaacutelogas a certos modos de
relaccedilatildeo humana agraves relaccedilotildees observadas entre coisas ou objetos ou agraves relaccedilotildees homem-
objetordquo Estas relaccedilotildees sonoras podem ser analisadas evento a evento nota a nota gesto a
gesto ou podemos utilizar uma categoria agrave maneira da voz ou da sonoridade que comporte
agrupe uma seacuterie de sons caracteriacutesticos No universo eletroacuacutestico tal categoria pode ser
denominada camada plano oue fluxo
No verbete do EletroAcoustic Research Site (EARS) Rob Weale traz a seguinte
62 Esta concepccedilatildeo de textura estaacute mais proacutexima ao que chamamos microtextura (314) Retomaremos esta discussatildeo em 341
63 Original ldquoIndividual gestures can have textured interiors in which case gestural motion frames the texture - we are conscious of both gesture and texture although the gestural contour dominates an example of gesture-framing On the other hand texture-carried structures are not always environments with democratic interiors where every (micro-) event is equal and individuals are subsumed in collective activity Gestures can stand out in foreground relief from the texture This is an example of texture-setting - texture provides a basic framework within which individual gestures actrdquo (SMALLEY 1997 p 114)
64
consideraccedilatildeo sobre camada
Um conceito crescentemente usado para descrever obras eletroacuacutesticas nas quais lsquocamadasrsquo de som (ou tipos de sons) satildeo desenvolvidos ao longo de uma obra normalmente numa densidade que o ouvinte pode seguir cada camada Essa forma de pensamento horizontal pode ser vista como o equivalente de contraponto por exemplo na muacutesica renascentista (WEALE 2005 traduccedilatildeo nossa64)
Esta definiccedilatildeo comporta em parte o tema desta pesquisa entretanto a metaacutefora da
camada parece ter um caraacuteter atemporal acrocircnico - como se referia Guigue aos aspectos que
para serem analisados eacute necessaacuterio se fazer a abstraccedilatildeo do fator tempo (ver 32) Podemos
descrever determinado contexto musical como estratificado em camadas mas eacute menos
frequente encontrarmos descriccedilotildees do desenvolvimento destas camadas no tempo como
surgem como se relacionam como interagem como se mesclam uma agrave outra ou surgem uma
da outra Para estas questotildees a metaacutefora de fluxo se mostra mais adequada Enquanto a
camada se refere a estruturas mais estaacuteveis ldquosoacutelidasrdquo o fluxo se aplica a estruturas de forma
variaacutevel ldquoliacutequidasrdquo A metaacutefora do plano apresenta a preocupaccedilatildeo com a profundidade com a
perspectiva eacute uma metaacutefora mais espacial que diferencia aquilo que estaacute mais a frente do que
estaacute mais ao fundo
Estas terminologias entretanto ainda que venham a ser manifestas em artigos livros e
falas dos compositores tecircm sua origem na praacutetica musical seja da escuta ou da composiccedilatildeo
Tratam-se de metaacuteforas para explicar esta praacutetica e que tecircm suas limitaccedilotildees Haacute liacutequidos que
natildeo se misturam haacute camadas geoloacutegicas que se misturam existem planos superiores e
inferiores e natildeo apenas proacuteximos ou distantes Aleacutem disso a mesma estrutura pode ser
observada por meio de diferentes metaacuteforas - os termos mencionados natildeo satildeo excludentes
Neste sentido nossa abordagem natildeo consiste em oferecer um meacutetodo uacutenico e efetivo mas
oferece um caminho de reflexatildeo em torno destas categorias
334 O caraacuteter misto da muacutesica mista
Ao tratar da composiccedilatildeo com o som (sound composition) Wishart observa que ldquonossa
principal metaacutefora para a composiccedilatildeo musical precisa mudar de uma de arquitetura para uma
64 Original A concept used increasingly in describing electroacoustic work in which rsquolayersrsquo of sound (or sound types) are developed throughout a work normally at a density whereby the listener can follow each layer This form of horizontal thinking might be seen to be the equivalent of counterpoint in for example Renaissance music (WEALE 2005)
65
de quiacutemicardquo (WISHART 1994 p 12 traduccedilatildeo nossa65) Isto porque graccedilas agraves possibilidades
de siacutentese gravaccedilatildeo e processamento o compositor pode trabalhar com as caracteriacutesticas
internas dos sons
O som se torna um meio fluido e inteiramente maleaacutevel natildeo uma coleccedilatildeo de dados cuidadosamente aprimorada Escultura e quiacutemica mais do que linguagem ou [] matemaacutetica se tornam metaacuteforas apropriadas para o que o compositor pode fazer embora princiacutepios matemaacuteticos e fiacutesicos continuaratildeo a entrar fortemente no design tanto de ferramentas quanto de estruturas musicais66 (WISHART 1994 p 12)
A muacutesica que une os universos instrumental e eletroacuacutestico pode dialogar por um
lado com as estruturas solidificadas pela tradiccedilatildeo (como as notas de uma voz) por outro
mergulha neste contexto fluido da composiccedilatildeo com o som Isto evidencia o caraacuteter misto da
composiccedilatildeo mista Com histoacuterias e teacutecnicas distintas os meios instrumental e eletroacuacutestico
se misturam neste gecircnero Isto eacute perceptiacutevel tanto para o ouvinte que observa estes meios
fundirem e contrastarem quanto para o compositor que lida com um misto de teacutecnicas
provenientes de cada contexto (instrumental e eletroacuacutestico) que se interferem no fazer
composicional67
Num texto de 1979 Jon Appleton escreve sobre estilos e teacutecnicas composicionais da
muacutesica eletrocircnica em que expressa uma previsatildeo de natildeo-separaccedilatildeo destes meios
ldquoAlguns estilos satildeo uacutenicos agrave muacutesica eletrocircnica por causa da natureza do meio outros satildeo comuns agrave muacutesica instrumental Os dois meios continuam a criar possibilidades um para o outro e vatildeo sem duacutevida no final se tornar indistinguiacuteveisrdquo (p 104 traduccedilatildeo nossa68)
Se ainda natildeo alcanccedilamos este estaacutegio descrito por Appleton ao menos jaacute passamos por
uma inegaacutevel transformaccedilatildeo da atividade composicional causada pela experiecircncia em
estuacutedio69 Gati (2015) aponta que a partir de 1950
65 Original ldquo[] our principal methafor for music composition must change from one of architecture to one of chemistryrdquo (WISHART 1994 p 12)
66 Original ldquoSound becomes a fluid and entirely malleable medium not a carefully honed collection of givens Sculpture and chemistry rather than language or ire mathematics become appropriate metaphors for what a composer might do although mathematical and physical principals will still enter strongly into the design of both musical tools and musical structuresrdquo (WISHART 1994 p 12)
67 E tendo muitas vezes seu instrumento amplificado e difundido nos mesmos alto-falantes que difundem os sons eletroacuacutesticos tambeacutem o inteacuterprete percebe esta mistura
68 Original ldquoSome styles are unique to electronic music because of the nature of the medium others are common to instrumental music as well The two media continue to create possibilities for each other and will no doubt ultimately become indistinguishablerdquo (APPPELTON 1979 p 104)
69 Um caso sempre lembrado eacute o de Gyorgy Ligeti Suas composiccedilotildees posteriores agrave breve experiecircncia no estuacutedio de Colocircnia em 1957-8 evidenciam a influecircncia que esta exerceu sobre sua produccedilatildeo (DIAS 2014 p
66
[] estabeleceu-se uma verdadeira via de matildeo dupla entre a escritura instrumental e a eletroacuacutestica pela qual ambas se realimentam se influenciam Notadamente por meio da experiecircncia da muacutesica acusmaacutetica semearam-se de maneira mais intensa abordagens composicionais que tomavam os eventos sonoros em si seus contornos sua distribuiccedilatildeo e caracterizaccedilatildeo espectral como ponto de partida para a estruturaccedilatildeo musical (GATI 2015 p 22)
Esta ldquovia de matildeo duplardquo se evidencia na elaboraccedilatildeo composicional da muacutesica mista
Estaacute presente neste processo uma interaccedilatildeo entre elaboraccedilatildeo instrumental e eletroacuacutestica
cujas diferenccedilas devem ser consideradas
Menezes (2006) aponta que na muacutesica instrumental compor significa recompor o som
a partir de seus paracircmetros segmentados historicamente na escrita musical (o que chama de
decomposiccedilatildeo do som) O material musical resultante desta elaboraccedilatildeo de recomposiccedilatildeo
apresenta um caraacuteter relacional Por outro lado o material eletroacuacutestico mais do que
relacional deve ser constituiacutedo pelo compositor diferentemente da muacutesica instrumental Isto
eacute o compositor assume a proacutepria constituiccedilatildeo dos espectros Assim o material se apresenta
em duas faces com uma funccedilatildeo relacional e outra constitutiva De um lado a atividade
composicional de relacionar sons de outro a de constituir seus proacuteprios espectros
O processo de recomposiccedilatildeo do som por meio de seus paracircmetros na composiccedilatildeo
instrumental acontece por meio da escritura70 Na composiccedilatildeo eletroacuacutestica a ldquoelaboraccedilatildeo
escritural de suas estruturasrdquo natildeo estaacute ausente mas sim latente ou subjacente Trata-se de uma
escritura latente que ldquo[] tende a resgatar no seio da atividade eletroacuacutestica e de seu
confronto com o som bruto e concreto a abstraccedilatildeo tiacutepica da muacutesica instrumental e sua
histoacuteriardquo (MENEZES 2006 p 362) Ao mesmo tempo se coloca a percepccedilatildeo do caraacuteter
constitutivo do material de sua textura sonora que atenta para os aspectos da vida interna do
som ldquoA percepccedilatildeo relacional dos elementos estruturais eacute acompanhada por aquela destinada a
uma efetiva introspecccedilatildeo constitutiva dos espectrosrdquo (MENEZES 2006 p 362)
Estas duas percepccedilotildees (relacional e constitutiva) se diferenciam tambeacutem em relaccedilatildeo a
percepccedilatildeo do tempo O paradigma convencional da muacutesica instrumental neste aspecto eacute que
o som constitui o tempo musical priorizando assim a percepccedilatildeo dos ataques e a organizaccedilatildeo
meacutetrica e riacutetmica Jaacute a muacutesica eletroacuacutestica iraacute pelo contraacuterio considerar o som enquanto
89-192)70 O termo escritura se contrapotildee agrave escrita e eacute preferiacutevel segundo Menezes por ser ldquomais conotativo de um
processo compositivo e portanto mais proacuteximo ao contexto relativo agrave elaboraccedilatildeo [] em vez de meramente escrita mais condizente com o aspecto superficial e caracteroloacutegico (graacutefico) da apresentaccedilatildeo de um textordquo (MENEZES 1999 p 61)
67
fenocircmeno de textura e o tempo enquanto constituinte do espectro sonoro ldquoO som que era do
tempo cede passo assim ao tempo de cada somrdquo (MENEZES 2006 p 364)
Se por um lado Menezes aproxima a elaboraccedilatildeo composicional eletroacuacutestica da
instrumental atraveacutes do conceito de escritura latente por outro poderiacuteamos pensar na
possibilidade de aproximar a escritura instrumental da elaboraccedilatildeo eletroacuacutestica em sua
funccedilatildeo constitutiva dos sons Embora o autor afirme que a escritura instrumental ldquonatildeo permite
uma radical intervenccedilatildeo composicional na constituiccedilatildeo mesma dos sonsrdquo (MENEZES 2006
p 364) eacute possiacutevel pensar em intervenccedilotildees menos radicais ou ao menos numa analogia desta
intervenccedilatildeo Uma intervenccedilatildeo pouco radical eacute por exemplo o bisbigliando variaccedilotildees
tiacutembricas sobre uma mesma nota Como analogia assim como o compositor eletroacuacutestico
trabalha os aspectos constitutivos dos espectros o compositor instrumental pode tratar os sons
de cada instrumento como constituinte de um todo orquestral por exemplo Evidentemente a
elaboraccedilatildeo instrumental sempre apresentaraacute graus menores em relaccedilatildeo agrave eletroacuacutestica de
controle do movimento interno dos sons devido agraves suas contingecircncias de execuccedilatildeo mas isso
natildeo significa a impossibilidade de se tratar o som instrumental de maneira semelhante ou
anaacuteloga agrave elaboraccedilatildeo eletroacuacutestica
34 FLUXOS SONOROS
Diante deste contexto sonoro-morfoloacutegico interessa-nos compreender como se
constituem e diferenciam os fluxos sonoros na muacutesica eletroacuacutestica mista
Fluxos eacute uma traduccedilatildeo possiacutevel para streams termo presente em Wishart (1996)
Smalley (1997) em Guigue (2011) e em Bregman (2004 2008) Este uacuteltimo autor trata de
fluxos auditivos (auditory streams) Nesta aplicaccedilatildeo do termo a ideia de fluxo se relaciona
com um contiacutenuo recebimento de informaccedilotildees sonoras que satildeo segregadas num processo da
percepccedilatildeo Assim quando no ambiente em que estamos conseguimos distinguir sons
produzidos em fontes diferentes estaacute em accedilatildeo esta capacidade vital Outras pesquisas em
cogniccedilatildeo avanccedilam para a percepccedilatildeo de fluxos distintos ainda que a fonte sonora seja a mesma
como acontece por exemplo na polifonia latente (ver 31) Por outro lado como tentamos
demonstrar eacute possiacutevel perceber um uacutenico fluxo ainda que vaacuterias fontes sonoras estejam
envolvidas (Klangfarbenmelodie e a proacutepria praacutetica de dobramento na orquestraccedilatildeo) Guigue
(2011) adota este termo para se referir natildeo simplesmente a uma polifonia de vozes como
68
Shepard (1999) mas a uma polifonia de sonoridades As sonoridades podem se desenvolver
em muacuteltiplos fluxos simultacircneos Smalley (1997) utiliza uma variaccedilatildeo do termo (streaming)
para expressar um tipo especiacutefico de movimento da textura71
Streaming se refere a uma combinaccedilatildeo de camadas em movimento e implica algum tipo de diferenciaccedilatildeo entre as camadas seja atraveacutes de lacunas no espaccedilo espectral ou porque cada camada natildeo possui o mesmo conteuacutedo espectro-morfoloacutegico (Smalley 1997 p 117 traduccedilatildeo nossa)72
Semelhantemente o termo eacute tambeacutem empregado pelo autor em relaccedilatildeo agrave ocupaccedilatildeo do
espaccedilo espectral Streams - interstices eacute um dos qualificadores deste espaccedilo e se refere a ldquoa
estratificaccedilatildeo em camadas [the layering] do espaccedilo espectral em fluxos estreitos ou largos
separados por espaccedilos intervenientesrdquo (SMALLEY 1997 p 121 traduccedilatildeo nossa)73
Da mesma forma no EletroAcoustic Research Site (EARS) Rob Weale explica
streams
O termo eacute usado como uma ferramenta conceituai para a criaccedilatildeo e anaacutelise perceptual de texturas que apresentam lsquobandasrsquo claramente distinguiacuteveis de atividade socircnica dentro de um espectro global de possiacuteveis frequecircncias audiacuteveis (2005 traduccedilatildeo nossa74)
A separaccedilatildeo de fluxos em bandas de frequecircncias distintas favorece o processo de
segregaccedilatildeo Poreacutem assim como no caso da separaccedilatildeo das vozes em diferentes registros de
alturas este eacute um dos recursos para se alcanccedilar tal resultado uma das possibilidades para se
distinguir os fluxos Como aponta Smalley na citaccedilatildeo acima agraves vezes esta diferenciaccedilatildeo se daacute
por causa da diferenccedila de conteuacutedo espectro-morfoloacutegico
341 Simultaneidades da micro eou da macrotextura
As definiccedilotildees de Smalley e de Weale estatildeo fortemente direcionadas a questotildees da
71 A concepccedilatildeo de textura de Smalley foi abordada em 33272 Original ldquoStreaming refers to a combination of moving layers and implies some way of differentiating
between the layers either through gaps in spectral space or because each layer does not have the same spectromolphological contentrdquo (Smalley 1997 p 117)
73 Original ldquoStreams - interstices - the layering of spectral space into narrow or broad streams separated by intervening spacesrdquo (SMALLEY 1997 p 121)
74 Original ldquoThis term is used as a conceptual tool for the creation and perceptual analysis of textures that comprise of clearly distinguishable rsquobandsrsquo of sonic activity within the overall spectrum of possible available audible frequenciesrdquo (WEALE 2005 Disponiacutevel em httpearspierrecoupriefrspipphparticle99)
69
textura como a concebe Smalley a qual chamamos microtextura Entretanto podemos
questionar esta exclusividade Guigue (2011) por exemplo utiliza fluxos para se referir agraves
partes de uma polifonia de sonoridades que se enquadraria como uma macrotextura Wishart
(1996) utiliza o termo para indicar partes simultacircneas de um contraponto no continuum Estas
partes satildeo anaacutelogas a um fluxo instrumental convencional (voz soprano por exemplo) que
formam uma textura que quanto agrave sua dimensatildeo (micro-macro) se assemelha agrave muacutesica
convencional (macro) Claramente os fluxos em Wishart natildeo se limitam a partes de uma
textura (micro) como em Smalley (1997) Mais do que isso o autor sustenta que
De fato o conceito de fluxo [stream] instrumental eacute talvez o que mais persiste nopensamento musical convencional [] Mesmo num claacutessico estuacutedio de controle devoltagem era possiacutevel conceber uma composiccedilatildeo musical na qual um uacutenico fluxo de som desenvolvido possivelmente divergia em fluxos separados que poderiam ser separadamente articulados poderiam convergir novamente e continuar assim ateacute o final da peccedila (p 25 traduccedilatildeo nossa75)
Nesta citaccedilatildeo vemos as duas dimensotildees intercambiarem O ldquoconceito de fluxo
instrumentalrdquo que ldquopersiste no pensamento musical convencionalrdquo eacute parte de uma textura
deste pensamento comumente o que chamamos macrotextura (ver 31) Jaacute a ideia de uma
ldquocomposiccedilatildeo musical na qual um uacutenico fluxo de som desenvolvido possivelmente divergia
em fluxos separadosrdquo soacute parece ser possiacutevel se consideradas as caracteriacutesticas internas do som
(dimensatildeo micro) Podemos assim dizer que os fluxos podem cruzar esta fronteira entre
micro e macro e de fato estabelecer um continuum entre eles Eacute precisamente por isso que
caracteriacutesticas internas dos sons (micro) de um fluxo (macro) podem assumir um
protagonismo se separando deste fluxo inicial e dando origem a um segundo (macro) Isto
acontece nas peccedilas Kontakte de Stockhausen e Desintegrations de Murail abordadas adiante
(respectivamente em 342 e 41)
342 Fusatildeo e contraste constituiccedilatildeo e segregaccedilatildeo de muacuteltiplos fluxos
O dicionaacuterio Merriam-Webster traz entre outras as seguintes definiccedilotildees de stream
que podem servir de metaacuteforas para pensarmos os fluxos sonoros
75 Original ldquoIn fact the concept of the instrumental stream is perhaps the most persistent in conventional musical thought [] Even in the classical voltage control studio it was possible to conceive of a musical composition in which a single sound stream evolved possibly diverged into separate streams which might be separately articulated might reconverge and continue thus to the end of the piecerdquo (SMALLEY 1997 p 25)
70
1 um corpo de aacutegua corrente (tal como um rio ou coacuterrego) que flui na terra tambeacutem qualquer corpo fluido (tal como aacutegua ou gaacutes) 2 a uma sucessatildeo estaacutevel (como de palavras ou eventos) - manter um fluxo de conversa sem fim [] c uma procissatildeo de contiacutenuo movimento - um fluxo de traacutefego (STREAM 2019 traduccedilatildeo nossa76)
Desta definiccedilatildeo podemos reter duas caracteriacutesticas interdependentes de um fluxo a)
estabilidade relativa do que o compotildee - ldquosucessatildeo estaacutevelrdquo b) movimento contiacutenuo relativo
Satildeo interdependentes pois eacute preciso que haja uma estabilidade em pelo menos alguns
paracircmetros de determinados eventos sonoros para que percebamos a continuidade do fluxo
constituiacutedo por eles Tais aspectos remontam ao processo de segmentaccedilatildeo abordado por
Guigue (2011) (ver 321) Estas caracteriacutesticas excluem muitas texturas como a mencionada
de Webern que natildeo presam por uma continuidade de fluxos Entretanto mesmo nesse caso eacute
possiacutevel compreendecirc-la como um uacutenico fluxo com um aspecto global (a partir da p 51
apresentamos brevemente este aspecto da textura weberniana)
Para que diferenciemos um fluxo de outro eacute preciso que haja uma concorrecircncia outra
sucessatildeo estaacutevel com alguma diferenccedila em relaccedilatildeo ao conteuacutedo sonoro Para a distinccedilatildeo de
vozes um recurso recorrente eacute a utilizaccedilatildeo de instrumentos diferentes para cada voz
(diferenciaccedilatildeo por timbre enquanto tone-color) para os fluxos este fator tambeacutem deve ser
considerado Na muacutesica mista haacute uma distinccedilatildeo ldquoinstrumentalrdquo entre os meios instrumental e
eletroacuacutestico que sobressalta inicialmente Em seu artigo sobre a interaccedilatildeo entre estes dois
meios Souza (2010) faz uma possiacutevel distinccedilatildeo quanto ao mecanismo de produccedilatildeo sonora
para logo questionaacute-la do ponto de vista da percepccedilatildeo
ldquoNote-se que como ponto de partida a diferenccedila entre sons instrumentais e eletrocircnicos eacute tomada inicialmente ao peacute da letra sons instrumentais satildeo aqueles gerados por vibraccedilotildees mecacircnicas de instrumentos acuacutesticos enquanto sons eletrocircnicos satildeo gerados por circuitos eletrocircnicos analoacutegicos ou digitais tornados audiacuteveis por alto-falantes e amplificadores A seguir essa separaccedilatildeo quase tautoloacutegica eacute questionada no lado da percepccedilatildeordquo (SOUZA 2010 p 149)
Esta caracteriacutestica de produccedilatildeo sonora poderia nos fazer pensar cada meio -
instrumental e eletroacuacutestico - como responsaacutevel por um fluxo na muacutesica mista Entretanto
Souza salienta que
76 Traduccedilatildeo do autor Original ldquo 1) a body of running water (such as a river or brook) flowing on the earth also any body of flowing fluid (such as water or gas) 2) a a steady succession (as of words or events) - kept up an endless stream of chatter [ ] c a continuous moving procession - a stream of traficrdquo (STREAM 2019)
71
Do ponto de vista do ouvinte-receptor natildeo haacute propriedades intriacutensecas dos sons que permitam fazer uma separaccedilatildeo absoluta e inquestionaacutevel entre sons instrumentais e sons gerados eletronicamente ainda que em nosso imaginaacuterio tal separaccedilatildeo pudesse parecer evidente (SOUZA 2010 p 149)
Eacute preciso argumentar que a distinccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave produccedilatildeo sonora apresentada
inicialmente por Souza aponta para uma propriedade intriacutenseca dos sons a ser considerada O
som dos instrumentos (natildeo amplificados ou gravados) em sua maioria se projeta em
muacuteltiplas direccedilotildees enquanto que a projeccedilatildeo cocircnica dos alto-falantes (considerados
individualmente) se daacute numa direccedilatildeo apenas Alguns instrumentos apresentam uma projeccedilatildeo
direcional semelhante agrave dos alto-falantes - o trombone por exemplo Por outro lado satildeo raras
as tentativas que buscam imitar a projeccedilatildeo instrumental multidirecional atraveacutes de alto-
falantes77
Ainda assim o argumento de Souza eacute relevante ele desloca (assim como discutido em
23) a atenccedilatildeo teoacuterica de sobre as questotildees teacutecnicas (produccedilatildeo sonora) para atentar para a
percepccedilatildeo destes sons Do ponto de vista da percepccedilatildeo os sons gerados eletronicamente
podem apresentar o ldquoexatordquo som preacute-gravado de um instrumento e instrumentos podem
produzir sons natildeo-convencionais que podem ser confundidos com sons eletrocircnicos Assim
ainda que a distinccedilatildeo do tipo de mecanismo de produccedilatildeo sonora possa ser utilizada em favor
da separaccedilatildeo de fluxos ela natildeo determina exclusivamente a existecircncia de dois fluxos assim
como a exemplo da melodia de timbres o uso de dois instrumentos diferentes natildeo o faz na
muacutesica instrumental Pelo contraacuterio a fusatildeo dos dois meios num mesmo fluxo eacute um recurso
muito utilizado Para isso a amplificaccedilatildeo do instrumento eacute comumente empregada fazendo
com que haja maior semelhanccedila de projeccedilatildeo sonora dos dois meios78
A proposta de morfologia da interaccedilatildeo de Menezes pode ser uacutetil para abordar a
distinccedilatildeo de fluxos sonoros na muacutesica mista De acordo com o autor a interaccedilatildeo entre
instrumento e eletroacuacutestica acontece entre dois polos fusatildeo e contraste A fusatildeo eacute a absoluta
similaridade caracterizada por ldquotransferecircncias localizadas de caracteriacutesticas espectrais de uma
esfera de atuaccedilatildeo agrave outrardquo (MENEZES 2006 p 385) o contraste eacute a absoluta distinccedilatildeo
77 O Wave Field Synthesis desenvolvido no IRCAM eacute uma alternativa de projeccedilatildeo que vai nesta direccedilatildeo Confira o siacutetio do projeto lthttprechercheircamfrequipessallesWFS_WEBSITEIndex_wfs_sitehtmgt Deve-se mencionar tambeacutem os alto-falantes hemisfeacutericos desenvolvidos na Universidade de Princeton confira no endereccedilo lthttpmusic2princetonedudeloreanhistoryhtmlgt
78 Aleacutem disso os dois meios natildeo instituem apenas dois fluxos porque eacute possiacutevel haver muacuteltiplos fluxos no meio instrumental como tambeacutem muacuteltiplos fluxos no meio eletroacuacutestico
72
caracterizada pela ausecircncia destas transferecircncias Entre estes dois polos existem estaacutegios
transicionais de relativa similaridade e dissimilaridade
Em relaccedilatildeo a proveniecircncia sonora quanto mais lsquoconfusorsquo estiver o ouvinte em face daquilo que ouve tanto mais ele sentiraacute efetivamente integradas as partes constitutivas da obra mista os lsquodois planosrsquo pressupostamente independentes e unidos apenas por contingecircncias aos quais os criacuteticos da muacutesica mista faziam referecircncia passam a ser percebidos como um uacutenico plano essencialmente diagonal agraves linhas estanques da emissatildeo instrumental ou da difusatildeo puramente eletroacuacutestica a emissatildeo instrumental passa entatildeo a ser efetivamente potencializada no espaccedilo acuacutestico pelos recursos eletrocircnicos Ainda que de forma alguma hegemocircnico o estado de duacutevida traduz-se como um momento supremo da interaccedilatildeo (MENEZES 2006 p 385)
Assim na fusatildeo instrumento e sons eletroacuacutesticos compartilham o mesmo fluxo
estatildeo num ldquouacutenico planordquo ldquodiagonalrdquo aos dois meios enquanto que no contraste apresentam
fluxos distintos Este paradigma pode ser facilmente transposto para quaisquer meios se
considerarmos que fusatildeo e contraste se referem a (dis)semelhanccedila espectral de dois fluxos
distintos independentemente se instrumentais ou eletroacuacutesticos
Apesar da inegaacutevel importacircncia das caracteriacutesticas espectrais natildeo satildeo apenas elas que
estatildeo em jogo na fusatildeo e no contraste Menezes considera tambeacutem que a fusatildeo pode ser
alcanccedilada por outros meios Ao referir-se agrave estrateacutegia de utilizar apenas o som do instrumento
como base para a confecccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos ele aponta que
[] tal estrateacutegia estaacute longe de ser excludente as transferecircncias estruturais podem apoiar-se em aspectos outros que natildeo a coloraccedilatildeo (timbre) dos espectros tais como relaccedilotildees de identidade em frequecircncia em percurso espacial em comportamento dos perfis meloacutedicos e de massa em constituiccedilatildeo gestual dos sons (que podem identificar-se ateacute mesmo pela forma de tratamento aos quais se submetem) Ou seja ainda que seja mais condizente com a fusatildeo partir dos proacuteprios sons instrumentais para a elaboraccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos o uso de outras fontes sonoras natildeo implica necessariamente inviabilidade da fusatildeo e pode em contrapartida viabilizar a transiccedilatildeo que vai do fundido ao contrastado Seraacute pois pelo vieacutes de tal distinccedilatildeo relativa - apenas possiacutevel no caso de se utilizarem os mesmos sons instrumentais na elaboraccedilatildeo dos sons eletroacuacutesticos apoacutes inuacutemeros procedimentos de transformaccedilatildeo do material de partida - que a edificaccedilatildeo de toda uma gama de distanciamento tornar-se-aacute possiacutevel ateacute que se atinja o contraste mais evidente com ausecircncia de qualquer transferecircncia espectral (2006 p386)
Petra Bachrataacute (2010 p 89) oferece a seguinte perspectiva
Mas na nossa opiniatildeo fusatildeo e contraste em uma obra eletroacuacutestica mista podem ser percebidos tambeacutem no passar do tempo e podem ser demonstrados em exemplos de relaccedilotildees gestuais Por exemplo dois gestos podem ser similares ou diferentes
73
mesmo que se apresentem separados no tempo Nestes contextos noacutes podemos criar modelos de interaccedilatildeo entre gestos de acordo com sua organizaccedilatildeo no tempo - contrapontos mais ou menos complexos ou em relaccedilatildeo a outras caracteriacutesticas aleacutem da espectral tais como ritmo intensidade ou caracteriacutesticas mais semacircnticas como direccedilatildeo e energia (traduccedilatildeo nossa79)
O trabalho de Bachrataacute (2010) se fundamenta na concepccedilatildeo de gesto e aborda as
relaccedilotildees entre gestos instrumentais e eletroacuacutesticos A autora aborda o gesto por diferentes
perspectivas80 e propotildee uma categorizaccedilatildeo de acordo com os paracircmetros que cada uma
oferece Em nosso caso a ideia de fluxo tem maior importacircncia devido ao foco voltado para
questotildees mais amplas do que pontuais Um fluxo pode ser constituiacutedo de gestos De acordo
com Wishart ldquoo fluxo em evoluccedilatildeo [evolving stream] pode ser articulado gestualmenterdquo81
(WISHART 1996 p 117) E as caracteriacutesticas destes gestos determinaratildeo neste caso as
caracteriacutesticas que distinguiratildeo os fluxos sejam espectrais ou outras
Assim entendemos ser necessaacuterio estender a morfologia da interaccedilatildeo para incluir
outros aspectos aleacutem dos espectrais A fim de natildeo entrar nas particularidades de
parametrizaccedilatildeo do gesto seria suficiente acrescentar um termo e denominarmos de
transferecircncias espectro-morfoloacutegicas incluindo assim os aspectos do desenvolvimento das
caracteriacutesticas espectrais no tempo Afinal como afirma Smalley (1997) ldquoo espectro- natildeo
existe sem a -morfologia e vice-versardquo82 (p 107) Isto eacute o conteuacutedo espectral necessita se
constituir temporalmente assim como qualquer constituiccedilatildeo temporal necessita de um
conteuacutedo espectral Desta forma incluiacutemos como importantes para esta interaccedilatildeo outras
caracteriacutesticas espectro-morfoloacutegicas (ver Quadro 1)
79 Original ldquoBut in our opinion fusion and contrast in a mixed electroacoustic work may be perceived also as time passes and may be demonstrated on the examples of gesture relationships For example two gestures may be similar or different even separated in time In these contexts we may create models of interaction between gestures according to their organization over time - subtle or more complex counterpoints or in relation to other than spectral characteristics such as rhythm loudness or more semantic characteristics such as direction or energy Two gestures may closely relate or blend (lsquofusionrsquo) because of their similar rhythmical structure while having very different spectral characteristics increasing energy of one gesture may potentiate the onset of another one two gestures may relate with each other also through the direction in space such as convergent and divergent ways of interaction etcrdquo (BACHRATAacute 2010 p 89)
80 Entre outras perspectivas de Dennis Smalley - gesto como uma trajetoacuteria-energia-movimento de Trevor Wishart - gesto como articulaccedilatildeo do continuum do Laboratoire de Musique et Informatique in Marseille (MIM) - gesto como unidade temporal semioacutetica de Brian Ferneyhough - gesto e figura (BACHRATAacute 2010 p 123-141)
81 ldquoWhat we are now suggesting is that the evolving stream may be gesturally articulated and we may coordinate (or not) the gestures between the various parts in such a way as to create a viable contrapuntal structurerdquo (WISHART 1996 p 117)
82 ldquoThe spectro- cannot exist without the -morphology and vice versardquo (SMALLEY 1997 p 107)
QUADRO 1 - QUADRO DA MORFOLOGIA DA INTERACcedilAtildeO
74
fusatildeo
fusatildeo por virtualizaccedilatildeo (simulaccedilatildeo eletroacuacutestica do
instrumental)
similaridade absoluta
transferecircncias espectro-
fusatildeo por similaridademorfoloacutegicas localizadas
textural estado de duacutevida (confusatildeo)
transferecircncia natildeo-reflexiva
interferecircncia convergente transferecircncias espectro-
estaacutegios transicionais entre transferecircncia reflexiva morfoloacutegicas dinacircmicas
fusatildeo e contraste contaminaccedilatildeo direcional distinccedilatildeo e similaridadeinterferecircncia potencializadora relativas
interferecircncia natildeo-convergente
contraste por distinccedilatildeo textural
distinccedilatildeo absoluta
contraste contraste por silecircncio
estrutural
ausecircncia de transferecircncia espectro-morfoloacutegica
FONTE Adaptado de Menezes (2006 p 398) Acrescentamos o termo -morfoloacutegicas agrave ideia de transferecircnciasespectrais
Os estaacutegios transicionais estabelecem pontos em que os meios instrumental e
eletroacuacutestico podem estar mais proacuteximos da fusatildeo ou mais proacuteximos do contraste Menezes
expotildee estas possibilidades intermediaacuterias com base em exemplos de sua peccedila ATLAS
FOLISPELIS (1996-7) Natildeo repetiremos a explicaccedilatildeo de Menezes (2006 p 387-390) mas
faremos quando ausente em sua descriccedilatildeo uma generalizaccedilatildeo dos estaacutegios a partir de nossa
perspectiva
Transferecircncia natildeo-reflexiva ldquoa transmutaccedilatildeo de uma esfera de emissatildeo sonora agrave outra
eacute quase imperceptiacutevel Quando o ouvinte se daacute conta jaacute natildeo se trata mais de um som do
instrumento mas sim de sons eletroacuacutesticos que os envolvem no espaccedilo quadrifocircnicordquo
(Menezes 2006 p 390) Podemos inferir que tal transferecircncia seja possiacutevel no sentido
contraacuterio eletroacuacutestico-instrumental
Interferecircncia convergente Ainda que os meios (instrumental e eletroacuacutestico) possam
ser distinguidos um deles apresenta certa interferecircncia em relaccedilatildeo ao outro que pode ser
baseada em relaccedilotildees frequenciais por exemplo
Transferecircncia reflexiva ldquouma coisa nasce da outra eacute interagida pela estrutura que jaacute
estava em curso e pouco a pouco a integra e anula em suas proacuteprias inflexotildeesrdquo (MENEZES
2006 p 390) Num primeiro momento um dos meios ldquoespelhardquo o outro em seguida a
ldquoimagemrdquo espelhada ganha maiores proporccedilotildees ateacute que prepondera sobre a imagem inicial
Contaminaccedilatildeo direcional um dos meios muda em direccedilatildeo a algo que parece uma
transformaccedilatildeo dos sons do outro resultando numa maior ou menor fusatildeo O que eacute salientado
neste estaacutegio eacute o processo de transformaccedilatildeo de um dos meios passando do contraste para a
fusatildeo com o outro
Interferecircncia potencializadora um dos meios interfere e potencializa o outro Aquele
que interfere estaacute subordinado e apresenta materiais que parecem desdobramentos do outro
meio
Interferecircncia natildeo-convergente um dos meios realccedila e acentua aspectos do outro sem
que um se dilua no outro Trata-se nas palavras do autor de um ldquoapoio ancorado por uma
distinccedilatildeo relativardquo (MENEZES 2006 p 390)
A funccedilatildeo dos estaacutegios parece ser a de oferecer gradaccedilotildees entre fusatildeo e contraste
Entretanto da maneira como coloca Menezes mais do que estaacutegios tratam-se de movimentos
no interior do eixo fusatildeo-contraste que apresenta diversas gradaccedilotildees Este eixo poderia ser
explorado por outros movimentos natildeo inclusos nesta lista Para nossa abordagem seraacute
suficiente considerar que entre fusatildeo e contraste satildeo possiacuteveis gradaccedilotildees diversas e por
diversas aproximaccedilotildeesafastamentos espectro-morfoloacutegicos Aleacutem disso esta perspectiva
abrange fluxos independentemente se instrumentais ou eletroacuacutesticos Temos assim a
possibilidade de um fluxo se apresentar mais ou menos paralelo e dependente em relaccedilatildeo a
outro Isto eacute quanto mais transferecircncias espectro-morfoloacutegicas estatildeo presentes mais
aproximamos dois fluxos de uma fusatildeo da convergecircncia em apenas um uacutenico fluxo quanto
menos transferecircncias espectro-morfoloacutegicas mais distinguimos os dois fluxos como
independentes Assim os estaacutegios transicionais podem ser tambeacutem pensados como uma
gradaccedilatildeo um continuum relativo agrave independecircncia dos fluxos sonoros Isto se relaciona com
os apontamentos de Wishart (1996) sobre ser possiacutevel que um uacutenico fluxo se divida em outros
fluxos separados que podem ser desenvolvidos individualmente e convergir novamente num
soacute
[] era possiacutevel conceber uma composiccedilatildeo musical na qual um uacutenico fluxo de som desenvolvido possivelmente divergia em fluxos separados que poderiam ser
75
76
separadamente articulados poderiam convergir novamente e continuar assim ateacute o final da peccedila (p 25 traduccedilatildeo nossa83)
Nestes casos natildeo se trata de um ou outro fluxo sonoro fixo mas um que engendra
outro ou ainda outros que fundem em um ocupando assim regiotildees ambiacuteguas entre
independecircncia paralelismo e fusatildeo Wishart ilustra esta ideia (Figura 21)
FIGURA 21 - DESENVOLVIMENTO DE UM FLUXO SEPARANDO EM OUTROS E CONVERGINDO NOshyVAMENTE
bdquobdquoo i-i ~ gt1
FONTE Extraiacutedo de Wishart (1996 p 27)
Um exemplo desta concepccedilatildeo na muacutesica mista pode ser observado na peccedila Music fo r
Flute and ISPW (1994) de Cort Lippe Nas notas sobre a peccedila o compositor explica haver
pensado num continuum entre uma configuraccedilatildeo de duo e uma configuraccedilatildeo de solo-
extendido ldquoMusicalmente agraves vezes a parte do computador natildeo eacute separada da parte da flauta
mas serve mais para amplificar a flauta em muacuteltiplas dimensotildees e direccedilotildees enquanto no outro
extremo do continuum o computador tem sua proacutepria voz musical independenterdquo (LIPPE
traduccedilatildeo nossa84) De acordo com a tipologia que estamos empregando ora flauta e sons
eletroacuacutesticos constituem um uacutenico fluxo (solo-extendido) que decorre da fusatildeo entre eles
ora cada um desenvolve seu proacuteprio fluxo (duo) decorrente do contraste entre eles
Outro exemplo das nuances da separaccedilatildeo de fluxos distintos estaacute presente na peccedila
Kontakte (1958-1960) de Karlheinz Stockhausen Quando o compositor trata da
decomposiccedilatildeo do som o segundo dos seus quatro criteacuterios da muacutesica eletrocircnica
(STOCKHAUSEN 1989) demonstra que um som pode ser entendido como a soma de
componentes e que por meio de sua decomposiccedilatildeo estes componentes podem ser
desenvolvidos paralelamente85 Ele cita um trecho de Kontakte (aos 22 minutos
83 Original ldquo[] it was possible to conceive of a musical composition in which a single sound stream evolved possibly diverged into separate streams which might be separately articulated might reconverge and continue thus to the end of the piecerdquo
84 Original ldquoMusically the computer part is sometimes not separate from the flute part but serves rather to amplify the flute in multiple dimensions and directions while at the other extreme of the continuum the computer part has its own independent musical voicerdquo (LIPPE 1994)
85 Note o leitor que ldquocomponentesrdquo aqui tecircm outra acepccedilatildeo eles satildeo sonoros espectrais e natildeo paracircmetros como no modelo de Guigue (ver 32) e na apresentada recomposiccedilatildeo do som segundo Menezes Os componentes
77
aproximadamente) no qual acontece a decomposiccedilatildeo de um uacutenico som (ver Figura 22) O
compositor explica ldquoO som original eacute literalmente desintegrado nos seus seis componentes e
cada componente por sua vez eacute decomposto diante de nossos ouvidos nos seus ritmos
individuais de pulsosrdquo (p 97 traduccedilatildeo nossa86) A Figura 22 apresenta uma anaacutelise dos
pontos em que o fluxo inicial daacute origem a outros (marcados com um ciacuterculo) e tambeacutem de um
ponto em que haacute a fusatildeo de dois fluxos (marcado com um quadrado) ainda que este uacuteltimo
seja quase imperceptiacutevel devido agrave intensidade fraca dos dois fluxos
FIGURA 22 - DIVISAtildeO DE UM FLUXO EM OUTROS EM KONTAKTE (1958-60) DE STOCKHAUSEN
FONTE Extraiacutedo de Stockhausen (1966 p 25)
O compositor chama a atenccedilatildeo para o aspecto da percepccedilatildeo deste fenocircmeno ldquoE noacutes
vivemos exatamente a mesma transformaccedilatildeo que o som estaacute passando O som se divide em
seis e se noacutes queremos seguir todos os seis temos que nos tornar polifocircnicos seres
multicamadasrdquo (STOCKHAUSEN 1989 p 88 traduccedilatildeo nossa87) Apesar de o compositor
nesta abordagem de Stockhausen se aproximam sobretudo dos componentes da textura (31)86 Original The original sound is literally taken apart into its six components and each component in turn is
decomposing before our ears into its individual rhythm of pulses (STOCKHAUSEN 1989 p 97)87 Original ldquoAnd we live through exactly the same transformation that the sound is going through The sound
splits into six an if we want to follow all six we have to become polyphonic multilayered beignsrdquo (STOCKHAUSEN 1989 p 88)
falar em camadas podemos perceber o caraacuteter ldquoliacutequidordquo e por isso mais relacionado agrave ideia
de fluxo do seu procedimento trata-se de uma manipulaccedilatildeo das caracteriacutesticas internas dos
sons - dos seus componentes - e apresenta a dissoluccedilatildeo de um fluxo dando origem a outros
numa espeacutecie de ldquodivisatildeo de aacuteguasrdquo
Esta dissoluccedilatildeo eacute ainda mais dispersa quando observados os papeacuteis dos instrumentos
em relaccedilatildeo agrave parte eletrocircnica Por vezes haacute uma reafirmaccedilatildeo do mesmo fluxo por exemplo
tanto o percussionista quanto o pianista reiteram o trinado entre faacute e sol | presente na parte
eletrocircnica Entretanto por vezes os instrumentos apresentam desvios gestos que podem ser
agrupados em outro fluxo ou serem percebidos soltos Neste uacuteltimo caso de maneira
semelhante ao que acontece numa textura global (mencionada em 31) estes gestos natildeo satildeo
agrupados em fluxos
Em resumo os fluxos se estabelecem por uma estabilidade em suas caracteriacutesticas
espectro-morfoloacutegicas e se distinguem atraveacutes de diferenccedilas nestas caracteriacutesticas banda
espectral alturas timbre caracteriacutesticas gestuais localizaccedilatildeo espacial entre outras Na
muacutesica eletroacuacutestica mista natildeo haacute exclusivamente dois fluxos um instrumental e outro
eletroacuacutestico antes cada um destes meios pode apresentar muacuteltiplos fluxos como tambeacutem
podem compor juntos um uacutenico fluxo O eixo fusatildeo-contraste pode ser utilizado para observar
independecircncia e paralelismo entre fluxos distintos dando conta de regiotildees ambiacuteguas
343 Relaccedilatildeo entre fluxos distintos
A questatildeo subsequente e decorrente desta que cerca a constituiccedilatildeo e segregaccedilatildeo de
muacuteltiplos fluxos eacute aquela que busca identificar como estes fluxos se relacionam uns com os
outros As ideias de comportamento de Smalley (1997) contraponto de Wishart (1996) e
interaccedilatildeo gestual de Bachrataacute (2010) oferecem perspectivas importantes para esta abordagem
3431 Comportamento
Colocar sons distintos num mesmo contexto jaacute garante que algum tipo de relaccedilatildeo deva
existir entre eles Dennis Smalley usa o termo comportamento para discriminar tal relaccedilatildeo
78
entre espectro-morfologias88 Esta metaacutefora do comportamento tem por base a distinccedilatildeo de
Jean Jaques Nattiez (1990) entre referecircncias intriacutensecas e extriacutensecas da muacutesica (p 111-127)
As referecircncias intriacutensecas (intramusicais ou intermusicais) satildeo as que acontecem no acircmbito
de uma peccedila em particular (intra) ou em relaccedilatildeo a um universo musical mais amplo ao qual
ela pertence (inter) A observaccedilatildeo de um tema que volta a aparecer ao longo da peccedila eacute um
exemplo da muacutesica referenciando a si mesma (referecircncia intriacutenseca intramusical) Por outro
lado as referecircncias extriacutensecas estatildeo relacionadas a uma seacuterie de experiecircncias externas ao
contexto da muacutesica De acordo com Smalley (1997) as referecircncias comportamentais satildeo
extriacutensecas Isso significa que na experiecircncia da escuta associamos as relaccedilotildees percebidas
entre os sons com outras experiecircncias vividas Eacute isto que acontece por exemplo quando a
teoria musical usa metaacuteforas como a de ldquopergunta e respostardquo para descrever relaccedilotildees
musicais ou quando usa a metaacutefora do ldquosujeito e contra-sujeitordquo para descrever as relaccedilotildees
entre vozes na fuga Natildeo apenas na anaacutelise mas antes no processo composicional estas
metaacuteforas podem surgir A peccedila de Charles Ives The Unanswered Question (1908) apresenta
as referecircncias de pergunta e resposta no proacuteprio tiacutetulo
A muacutesica eletroacuacutestica devido agraves diversas possibilidades de conteuacutedo (sonoro) e
movimento das espectromorfologias apresenta um grande e variaacutevel repositoacuterio de
referecircncias extriacutensecas E se na muacutesica acusmaacutetica89 estas relaccedilotildees de comportamento satildeo
percebidas em relaccedilatildeo agraves espectromorfologias apenas na muacutesica mista elas satildeo percebidas
com uma forte influecircncia da relaccedilatildeo do performer visiacutevel e portador do gesto com a parte
acusmaacutetica (SMALLEY 1997 p 118) A accedilatildeo fiacutesica visual pode ser considerada uma
referecircncia extriacutenseca e pode estar associada agrave percepccedilatildeo de comportamentos sonoros
A perspectiva de referecircncias comportamentais extriacutensecas apresenta uma abertura de
interpretaccedilatildeo jaacute que determinado comportamento sonoro pode se referenciar a diferentes
experiecircncias vividas distintas para cada sujeito Esta abertura permite pensarmos em outras
referecircncias diferentes daquelas abstratas propostas por Smalley que possam enriquecer tanto
79
88 Espectromorfologia se refere ao desenvolvimento do espectro sonoro atraveacutes do tempo (SMALLEY 1997 p 207) Embora este termo englobe diferentes estruturas sonoras (gestos e texturas por exemplo) nesta pesquisa o foco estaacute sobre a relaccedilatildeo entre os fluxos sonoros Isto porque esta categoria favorece um pensamento global da peccedila natildeo voltado para localidades gestuais Os aspectos gestuais tambeacutem satildeo importantes e foram extensamente analisadas por Petra Bachrataacute (2010) trabalho que seraacute abordado em 3433 entretanto eles seratildeo aqui abordados em relaccedilatildeo aos fluxos sonoros conforme 34
89 Muacutesica acusmaacutetica eacute considerada aqui como aquela preacute-gravada e reproduzida atraveacutes de alto-falantes sem a presenccedila de um performer no palco (EMMERSON SMALLEY 2001)
80
a composiccedilatildeo quanto a anaacutelise Por exemplo ao tratarmos do fluxo visual abordaremos o
efeito ventriacuteloquo (35)
Tendo por base a ideia de que as referecircncias comportamentais satildeo extriacutensecas Smalley
(1997) apresenta sua metaacutefora numa tabela com termos que podem explicar os
comportamentos A apresentaccedilatildeo de Smalley parte de termos mais gerais para outros mais
especiacuteficos (respectivamente de cima para baixo no Quadro 2) Em termos gerais o
comportamento depende de duas oposiccedilotildees domiacuteniosubordinaccedilatildeo e conflitocoexistecircncia
QUADRO 2 - COMPORTAMENTO SEGUNDO SMALLEY
dominaccedilatildeosubordinaccedilatildeo conflitocoexi stecircnci a
igualdade - desigualdade
reaccedilatildeo - interaccedilatildeo - reciprocidade
atividade - passividade
atividade - inatividade
estabilidade - instabilidade
modos de relacionamento
coordenaccedilatildeo de movimento
(sincronizaccedilatildeo vertical)
frouxa mdash justa
(percepccedilatildeo de proximidade concordada)
passagem de movimento
(dimensatildeohorizontal)
voluntaacuteria - pressionada
(trajetoacuteria de energia e movimento)
i
causalidade
FONTE traduzido e adaptado de Smalley (1997)
O eixo domiacuteniosubordinaccedilatildeo estaacute relacionado agraves (des)igualdades entre as
espectromorfologias Smalley (2008 p 11) associa a este eixo trecircs maneiras interconectadas
de entender a ideia de primeiro plano (foreground) e plano de fundo (background) espectro-
morfologicamente espacialmente e indicativamente
A primeira se refere agraves caracteriacutesticas espectro-morfoloacutegicas que nos permitem
identificar o domiacutenio de uma espectro-morfologia sobre outra O autor cita forma dinacircmica
mudanccedilas na riqueza espectral rapidez do movimento espectral taxa de deslocamento
espacial entre outras como exemplos de caracteriacutesticas que podem manifestar o domiacutenio e
subordinaccedilatildeo entre espectro-morfologias Ele oferece ldquoum exemplo simples e oacutebviordquo
ldquomorfologias de impacto-ataque brilhantes e presentes superpostas a uma morfologia
81
sustentada relativamente distante e espectralmente inativardquo (SMALLEY 2008 p 11)
A segunda maneira de abordar a ideia de primeiro plano e plano de fundo -
espacialmente - estaacute relacionada sobretudo aos eixos proximidadedistacircncia e
mobilidadeimobilidade Uma espectro-morfologia pode dominar sobre outra por estar mais
proacutexima ou ser mais moacutevel A proximidadedistacircncia estaacute relacionada ao uso de
processamentos como reverberaccedilatildeo filtros e uso de sistema surround e pode ser uma
caracteriacutestica de diferenciaccedilatildeo de fluxos Este aspecto estaacute relacionado agrave composiccedilatildeo espacial
de muacuteltiplas camadas apontada por Stockhausen (2009)
ldquoConstruir profundidade espacial por sobreposiccedilatildeo de camadas nos permite compor perspectivas em som de muito perto a muito longe anaacutelogas ao modo como compomos camadas de melodia e harmonia no plano bidimensional da muacutesica tradicionalrdquo (STOCKHAUSEN 2009 p89)
Assim uma espectro-morfologia pode dominar sobre outra devido a este aspecto
espacial
A terceira maneira de abordar a ideia de primeiro plano e plano de fundo -
indicativamente - se refere ao impacto indicativo de um som Quando o som se refere
diretamente ou indica experiecircncias do mundo natildeo sonoro ele tende a dominar sobre outro
cuja referecircncia natildeo seja tatildeo direta Os sons da fala humana normalmente dominaratildeo sobre
outras espectro-morfologias Sons cuja fonte eacute reconhecida tambeacutem dominaratildeo sobre aqueles
de fonte natildeo reconhecida
O eixo conflitocoexistecircncia se refere agraves relaccedilotildees temporais do comportamento
Conflito indica uma tendecircncia competitiva entre os sons enquanto que a coexistecircncia indica
uma reciprocidade e confluecircncia Se os sons satildeo idecircnticos ou da mesma famiacutelia ainda que
haja assincronia e descontinuidade podemos percebecirc-los em um comportamento consensual
Para que haja conflito eacute preciso que haja ldquocontrastes simultacircneos ou sucessivos de
espectromorfologia cujas forma dinacircmica e atividade temporal reflitam um poderoso
deslocamentordquo (SMALLEY 2008 p 11) Ainda assim no caso em que este comportamento
conflitante estabelece um ldquomodus vivendi quase permanenterdquo eacute possiacutevel o perceber como
coexistente Isto eacute o comportamento conflitante pode se tornar coexistente se permanecer por
tempo suficiente Haacute tambeacutem a possibilidade de uma textura apresentar um comportamento
conflitante internamente enquanto que de um ponto de vista mais global apresenta coerecircncia
devido a alguma caracteriacutestica como o deslocamento espacial por exemplo Neste caso ldquoo
82
conflito interno estaacute [] disparatado com a coerecircncia coletivardquo (SMALLEY 2008 p 11)
Tais oposiccedilotildees (dominaccedilatildeosubordinaccedilatildeo e conflitocoexistecircncia) representam a base
para uma seacuterie de modos de relacionamento igualdade - desigualdade reaccedilatildeo - interaccedilatildeo -
reciprocidade atividade - passividade atividade - inatividade e estabilidade -
instabilidade Estes modos de relacionamento satildeo articulados vertical e horizontalmente -
duas dimensotildees temporais interativas A dimensatildeo horizontal eacute concernente agrave passagem de
movimento isto eacute como os fluxos em nosso caso passam de um contexto para outro Isto
pode acontecer de maneira voluntaacuteria ou pressionada (SMALLEY 1997 p 118) A dimensatildeo
vertical eacute concernente agrave coordenaccedilatildeo de movimento isto eacute como sincronizam ou natildeo os
eventos de cada fluxo Esta dimensatildeo se apresenta num continuum entre liberdade de
coordenaccedilatildeo justa (tight) e frouxa (loose)
ldquo[] haacute uma distacircncia extrema entre uma muacutesica muito justa talvez rigidamente controlada pontual homorriacutetmica e minimalista e associaccedilotildees muito relaxadas e maleaacuteveis encontradas em algumas muacutesicas eletroacuacutesticasrdquo (SMALLEY 1997 p 118 traduccedilatildeo nossa90)
Quando um evento parece ser a causa do seguinte ou a causa de uma modificaccedilatildeo em
um evento concorrente eacute possiacutevel perceber uma relaccedilatildeo de causalidade De acordo com
Smalley a causalidade ldquoocupa-se mais com um som agindo sobre outro seja causando a
ocorrecircncia de um segundo evento seja instigando a mudanccedila em um som que jaacute se
desenrolavardquo (SMALLEY 2008 p 11) A causalidade eacute mais presumida do que propriamente
conhecida natildeo haacute como comprovar que haacute causalidade com base no que vemos ou
experimentamos Mas presumimos esta causalidade porque os sons estatildeo temporalmente
proacuteximos O autor ainda aponta que ldquose o segundo evento responde espectro-
morfologicamente agrave interferecircncia ou ao impacto do primeiro evento a relaccedilatildeo causal seraacute
percebida ainda mais fortementerdquo (SMALLEY 2008 p 11)
Music fo r Flute and ISPW (1994) de Cort Lippe pode ser analisada a partir desta
perspectiva Na primeira seccedilatildeo da peccedila eacute possiacutevel observar dois fluxos que se intercalam na
parte da flauta Um eacute mais contiacutenuo e em dinacircmica piano o outro consiste em fortes ataques
que interrompem a continuidade do primeiro Neste caso o fator maior de diferenciaccedilatildeo dos
dois fluxos eacute a presenccedila dos sons eletroacuacutesticos Enquanto um fluxo eacute apenas instrumental o
90 Original ldquo[] there is an extreme distance between a very tight perhaps rigidly controlled punctual homorhythmic minimal music and the very relaxed malleable associations found in some electroacoustic musicrdquo (SMALLEY 1997 p 118)
83
outro eacute composto pela soma dos dois O fluxo forte eacute sincronizado com a parte do computador
e juntos formam um uacutenico fluxo Os dois fluxos piano e forte apresentam uma coordenaccedilatildeo
de movimento justa na dimensatildeo vertical e se intercalam subitamente numa passagem de
movimento pressionada mas natildeo parece haver relaccedilatildeo de causalidade entre eles Tambeacutem eacute
possiacutevel observar que o fluxo forte estabelece uma instabilidade sobre o fluxo piano mais
estaacutevel (modo de relacionamento) A relaccedilatildeo entre eles neste momento eacute de conflito
A oposiccedilatildeo dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo natildeo se apresenta muito claramente Poderiacuteamos
pensar que o forte domina o fraco por causa da maior intensidade entretanto se
considerarmos sua distribuiccedilatildeo no tempo poderiacuteamos dizer que o fraco domina pois sua
duraccedilatildeo eacute maior ele tecircm predominacircncia temporal Esta incerteza analiacutetica pode manifestar
uma ambiguidade musical mas tambeacutem aponta para um fator pouco contemplado na tabela de
Smalley o desenvolvimento das relaccedilotildees no tempo Isto porque conforme a muacutesica se
desenvolve percebemos que o fluxo forte comeccedila a preponderar e domina sobre o piano
(subordinado)
84
3432 Contraponto
O que estamos sugerindo agora eacute que o fluxo em evoluccedilatildeo [evolving stream] pode ser articulado gestualmente e podemos coordenar (ou natildeo) os gestos entre as vaacuterias partes de modo a criar uma estrutura contrapontiacutestica viaacutevel91 (WISHART 1996 p 117)
A partir do paradigma do continuum sonoro e atraveacutes do gesto (ver 331 e 332)
Wishart desenvolve sua teoria de contraponto Para o autor natildeo eacute suficiente apenas um
nuacutemero de fluxos sonoros Devemos perceber que haacute uma relaccedilatildeo de um com o outro ou que
eles interagem de alguma maneira durante o curso de do seu desenvolvimento individual No
contraponto baseado na rede isso envolve o ldquoir e virrdquo da coordenaccedilatildeo riacutetmica e da
consonacircncia harmocircnica na relaccedilatildeo entre as partes
Para se atingir uma estrutura contrapontiacutestica Wishart argumenta ser necessaacuterio dois
princiacutepios (1) um princiacutepio arquitetural que oferece pontos de referecircncia na progressatildeo
global do material musical Na muacutesica tonal isso corresponde agrave estrutura das tonalidades (o
retorno agrave tocircnica por exemplo eacute normalmente um marco) No continuum este princiacutepio
arquitetural seraacute o conceito de transformaccedilatildeo de uma aacuterea tiacutembrica ou sonoro-morfoloacutegica
em outra Podemos nos lembrar da fala de Varegravese ldquoO papel da cor ou timbre seraacute
completamente modificado [] ele se tornaraacute um agente de delineamento como as diferentes
cores num mapa separando diferentes aacutereas e uma parte integral da formardquo (VARESE apud
SIMMS 1996 p 112)
(2) Uma estrutura contrapontiacutestica tambeacutem precisa ter um princiacutepio dinacircmico que
determina a natureza do movimento No contraponto tonal isto estaacute relacionado ao ldquoir e virrdquo
(ebb and flow ) da coordenaccedilatildeo riacutetmica e ao ldquoir e virrdquo da consonacircncia-dissonacircncia harmocircnica
ou seja estaacute relacionado agrave maneira em que as notas numa parte individual estatildeo colocadas em
relaccedilatildeo agrave notas em outras partes No contraponto no continuum no lugar da consonacircncia-
dissonacircncia na progressatildeo harmocircnica Wishart propotildee a ideia de evoluccedilatildeo gestual e a
interaccedilatildeo entre os fluxos distintos
Estas duas dimensotildees (1 e 2) devem ser independentes uma da outra de acordo com o
autor O princiacutepio dinacircmico natildeo pode ser implicado pelo arquitetural satildeo dimensotildees
separadas
91 ldquoWhat we are now suggesting is that the evolving stream may be gesturally articulated and we may coordinate (or not) the gestures between the various parts in such a way as to create a viable contrapuntal structurerdquo (WISHART 1996 p 117)
O princiacutepio dinacircmico pode ser observado horizontalmente e verticalmente
Horizontalmente a sequecircncia de gestos numa linha particular seraacute determinada pela coerecircncia
expressiva (ou ausecircncia dela) nesta linha Isso determinaraacute
a) O tipo de gesto usado
b) A sequecircncia individual dos gestos
c) A meacutedia da atividade gestual
Na dimensatildeo vertical um paracircmetro importante eacute a taxa global de ocorrecircncia dos
gestos nas diferentes partes Evidentemente devido a nossa percepccedilatildeo se forem dois gestos
simultacircneos eles podem ser contados como um Ainda podemos considerar dentro de um
periacuteodo de tempo da peccedila
a) se os gestos nas diferentes partes satildeo similares (homogecircneos) ou se satildeo heterogecircneos
b) se os gestos parecem interagir uns com os outros ou se se comportam independentes
uns dos outros
A partir destas caracteriacutesticas (a e b) se estabelecem seis arqueacutetipos para a organizaccedilatildeo
vertical dos gestos
1) Paralelo (natildeo tem a ver com caracteriacutestica espectral estamos falando de estrutura
gestual)
2) Semi-paralelo as partes seguem a mesma loacutegica gestual mas natildeo sincronicamente
3) Independecircncia homogecircnea as partes se comportam independentemente
4) Independecircncia heterogecircnea quando os gestos satildeo heterogecircneos tambeacutem podem ser
independentes
5) Interativo especialmente relacionado agrave ligaccedilotildees causais ou imitativas entre as partes
6) De gatilho (triggering) quando um gesto de uma parte parece iniciar um evento ou
uma mudanccedila em uma outra parte de maneira minimamente clara
85
86
QUADRO 3 - ORGANIZACcedilAtildeO VERTICAL DOS GESTOS EM RELACcedilAtildeO AO PRINCIacutePIO DINAcircMICO
independente independecircncia independecircncia
Icircsemi-
paralelismointeraccedilatildeo
interativo paralelismo gatilho
similar
(homogecircneo) -dissimilar
(heterogecircneo)
FONTE Wishart (1996 p 26)
Wishart conclui que com esta ferramenta teoacuterica em sua experiecircncia
ldquo[] foi possiacutevel esquematizar a estrutura da densidade geral dos eventos na partitura e entatildeo compor a estrutura gestual de uma seccedilatildeo usando siacutembolos elementares [] e assim trabalhando a partir do plano global de timbre e desenvolvimento articulatoacuterio colocar na partitura [score] nos detalhes de cada evento sonoro individual em cada vozrdquo (WISHART 1996 p 123 traduccedilatildeo nossa92)
Finalmente eacute relevante salientar que apesar de Wishart ter desenvolvido estas ideias a
partir da experiecircncia de notaccedilatildeo de objetos sonoros complexos ele afirma que a validaccedilatildeo
uacuteltima de qualquer procedimento musical deve ser feita atraveacutes da natildeo-mediada e natildeo
prejudicial experiecircncia de escuta ldquoUma loacutegica baseada em escutar e trabalhar com os
materiais acuacutesticos [] eacute necessaacuteria quando abordamos o multi-dimensional continuum
aberto pelo aacuteudio (Sonic) digitalrdquo (WISHART 1996 p 126 traduccedilatildeo nossa93)
3433 Interaccedilatildeo gestual
Petra Bachrataacute (2010) investiga em sua tese o tema da interaccedilatildeo gestual A autora
percorre diferentes concepccedilotildees do gesto musical para evidenciar relaccedilotildees gestuais entre sons
instrumentais e eletroacuacutesticos gesto como movimento gesto como significado ( meaning)
92 Original ldquoIt was possible to lay out the structure of the overall density of events on the score then compose the gestural structure of a section using elementary symbols [] and then working from the overall plan of timbral and articulatory development score in the details of the individual sound-events in each voicerdquo (WISHART 1996 p 123)
93 Original ldquoA rationale based on listening to and working with acoustic materials [ ] will be needed when we approach the multi-dimensional continuum opened up by digital sonicsrdquo (WISHART 1996 p 126)
87
gesto como trajetoacuteria energia-movimento gesto como articulaccedilatildeo do continuum gesto e
unidades semioacuteticas temporais gesto e figura gesto e energia e finalmente gesto e notaccedilatildeo
A partir desta fundamentaccedilatildeo teoacuterica ela identifica descreve e classifica relacionamentos
gestuais interativos definindo modelos Todos os modelos de interaccedilatildeo gestual satildeo
identificados no repertoacuterio incluindo as peccedilas da proacutepria autora O primeiro grupo de
modelos se refere agrave interaccedilatildeo gestual baseada em aspectos elementares alturafrequecircncia
organizaccedilatildeo temporal envelope de intensidade e caracteriacutesticas tiacutembricas O segundo eacute
baseado no modelo tripartite de estrutura de um som (onset-continuant-termination) O
terceiro estaacute fundamentado na teoria de Wishart (1996) de contraponto O quarto se refere agrave
interaccedilatildeo gestual baseada em caracteriacutesticas espectro-morfoloacutegicas e semacircnticas de direccedilatildeo e
energia Finalmente a autora apresenta modelos espaciais de interaccedilatildeo gestual Anexo a esta
dissertaccedilatildeo estaacute a traduccedilatildeo do apecircndice de seu trabalho (ver Anexo 1) onde sintetiza os
modelos de interaccedilatildeo Natildeo estaacute no escopo de nosso trabalho fazer um detalhamento destes
modelos Em lugar disso intentamos demonstrar a compatibilidade desta abordagem com
aquela que estamos construindo ao redor da ideia de fluxos sonoros
Bacharataacute menciona a concepccedilatildeo de fluxo (stream) quando trata da interaccedilatildeo gestual
baseada em organizaccedilatildeo temporal Isto porque nesta categoria eacute um grupo de gestos que se
relaciona com outro grupo de gestos resultando num modo de interaccedilatildeo como o sincopado o
polirriacutetmico entre outros Natildeo seria possiacutevel por exemplo identificar polirritmia observando
apenas dois eventos Nesta necessidade de observar o agrupamento dos gestos Bachrataacute
aponta para a teoria de Bregman (1990) de fluxos auditivos A ldquointeraccedilatildeo por agrupamento
texturalrdquo apresenta uma relaccedilatildeo mais estreita com esta concepccedilatildeo ldquoInteraccedilatildeo por
agrupamento textural - interaccedilatildeo de padrotildees gestuais de duraccedilatildeoritmos aleatoacuterios ou
irregulares os quais ocorrem em diferentes camadas de sons - fluxos auditivosrdquo
(BACHRATAacute 2010 p 157 traduccedilatildeo nossa94)
O objetivo de sua pesquisa diga-se alcanccedilado minuciosamente era ldquo[] analisar
diferente tipos de relaccedilotildees interativas entre gestos musicais nas muacutesicas escritas para
instrumentos e sons eletroacuacutesticos a fim de estabelecer modelos especiacuteficos de interaccedilatildeo
[]rdquo (BACHRATAacute 2010 p 15 traduccedilatildeo nossa95) Natildeo se trata assim de entender estas
interaccedilotildees entre gestos na relaccedilatildeo com o contexto nem de observar o desenvolvimento desta
94 Original ldquoInteraction by textural grouping - interaction of irregular or random rhythmsdurational gestural patterns which occur in different layers of sounds - auditory streamsrdquo (BACHRATAacute 2010 p 157)
95 Original ldquo[] to analyze different kinds of interactive relationships between musical gestures in music written for instruments and electroacoustic sounds in order to establish specific models of interaction []rdquo
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interaccedilatildeo ao longo de uma peccedila por exemplo A estas questotildees por outro lado se direciona
nossa investigaccedilatildeo Na praacutetica estas interaccedilotildees gestuais acontecem em determinados
contextos e se desenvolvem no tempo assim todos os modelos estatildeo de certa forma inseridos
numa organizaccedilatildeo temporal
Desta maneira eacute possiacutevel ver complementariedade nas abordagens Os fluxos a que
estamos nos referindo podem ser e satildeo comumente constituiacutedos de gestos Citando novamente
Wishart ldquoo fluxo em evoluccedilatildeo [evolving stream] pode ser articulado gestualmenterdquo96
(WISHART 1996 p 117) Os gestos de um interagem com gestos de outros fluxos da
mesma forma que no contraponto uma voz eacute constituiacuteda por notas que interagem com outras
notas de outras vozes A interaccedilatildeo gestual estaacute num niacutevel mais concreto mais proacuteximo da
superfiacutecie sonora analisada enquanto que fluxo eacute uma categoria mais abstrata de anaacutelise
Bachrataacute natildeo deixa de notar que seus resultados tecircm se estendido na sua produccedilatildeo
para outras instrumentaccedilotildees
A aplicaccedilatildeo de relacionamentos gestuais interativos tecircm sido generalizada natildeo apenas agraves minhas peccedilas que usam instrumentos e sons eletroacuacutesticos em combinaccedilatildeo mas tambeacutem a uma obra puramente eletroacuacutestica (acusmaacutetica) e peccedilas instrumentais sem eletrocircnicos (BACHRATAacute 2010 p 16 traduccedilatildeo nossa97)
Da mesma forma natildeo haacute propriedades intriacutensecas de um ou outro meio que impeccedilam
que estes modelos sejam aplicados em obras puramente instrumentais ou puramente
eletroacuacutesticas Esta caracteriacutestica extrapoladora dos resultados eacute recorrente em nossa leitura
As pesquisas que tecircm como tema a relaccedilatildeo instrumental-eletroacuacutestico no acircmbito sonoro-
morfoloacutegico acabam por encontrar relaccedilotildees que podem ser extrapoladas para uma relaccedilatildeo
instrumental-instrumental ou eletroacuacutestico-eletroacuacutestico Nossa leitura da Morfologia da
Interaccedilatildeo (MENEZES 2006 p 377-400) extrapolou fusatildeo e contraste para a aplicaccedilatildeo em
diferentes fluxos independentemente se instrumentais ou eletroacuacutesticos De modo
semelhante os modelos de interaccedilatildeo gestual de Bachrataacute podem ser aplicados aos diferentes
meios independentemente Isto eacute embora o iacutempeto inicial da pesquisa tenha sido investigar a
interaccedilatildeo entre sons instrumentais e eletroacuacutesticos especificamente os resultados
96 ldquoWhat we are now suggesting is that the evolving stream may be gesturally articulated and we may coordinate (or not) the gestures between the various parts in such a way as to create a viable contrapuntal structurerdquo (WISHART 1996 p 117)
97 Original ldquoThe application of interactive gestural relationships has been generalized not only to my works which use instrumental and electroacoustic sounds in combination but also to a pure electroacoustic (acousmatic) work and instrumental pieces without electronicsrdquo (BACHRATAacute 2010 p 16)
89
encontrados satildeo generalizaacuteveis Esta constataccedilatildeo sublinha a necessidade teoacuterica de uma
denominaccedilatildeo de uma terminologia para indicar os grupos de sons independentemente se
instrumentais eletroacuacutesticos ou uma mescla dos dois Fluxos vozes camadas ou planos satildeo
alternativas
35 O FLUXO VISUAL NA MUacuteSICA MISTA
No decorrer da pesquisa notamos que para a percepccedilatildeo da interaccedilatildeo era importante
considerar a visualidade da performance98 Embora para a escuta a distinccedilatildeo de mecanismo
de produccedilatildeo sonora acuacutestico-eletrocircnico natildeo seja tatildeo relevante (SOUZA 2010) ganha
importacircncia quando considerados os aspectos visuais da performance Isto porque as
vibraccedilotildees mecacircnicas nos instrumentos acuacutesticos satildeo produzidas por gestos fiacutesicos de um
performer (bater pinccedilar friccionar etc) e o som depende da relaccedilatildeo deste gesto fiacutesico com o
instrumento Por outro lado os sons produzidos nos circuitos eletrocircnicos podem ser
controlados de diferentes maneiras (potenciocircmetros mouse por algoritmos generativos etc)
e o som pode estar mais ou menos relacionado a este controle ou ainda natildeo haver controle
em tempo real consideraacutevel Neste sentido natildeo se trata apenas de uma questatildeo visual mas
estaacute em jogo um aprendizado das relaccedilotildees de accedilatildeo e resposta dos instrumentos Schrader
(1991) explica como essas relaccedilotildees satildeo apreendidas nos instrumentos acuacutesticos
A performance tradicional de muacutesica com instrumentos acuacutesticos tem se desenvolvido como uma extensatildeo da percepccedilatildeo de accedilatildeoresposta A accedilatildeo eacute percebida como visual e fiacutesica e a resposta que a acompanha eacute aural Assim algueacutem aprende que quando o percussionista bate no tiacutempano com uma baqueta resultaraacute num certo som A arte de ldquotocarrdquo um instrumento eacute aquela de criar uma seacuterie de associaccedilotildees significativas de accedilatildeoresposta O que eacute significativo eacute aprendido pela experiecircncia e os significados de uma performance instrumental acuacutestica satildeo geralmente apreendidos pelas pessoas num primeiro estaacutegio atraveacutes da experiecircncia de performances ao vivo ou filmadas (SCHRADER 1991 p 91-92 traduccedilatildeo nossa99)
98 O aspecto visual tem tambeacutem uma importacircncia para a percepccedilatildeo de processos tecnoloacutegicos envolvidos na performance O espectador-ouvinte pode inferir que accedilatildeo (visual) do performer estaacute controlando determinado som sintetizado por exemplo Embora possa haver convergecircncias este natildeo eacute o caso de nossa abordagem Estamos interessados em como o aspecto visual se relaciona com o sonoro independentemente do tipo de interaccedilatildeo tecnoloacutegica presente
99 Original ldquoThe traditional performance of music on acoustical instruments has developed as an extension of actionresponse perception The action is perceived as visual and physical and the accompanimental response is aural Thus one learns that when the percussionist strikes the tympana with a stick a certain sound will result The art of playing an instrument is that of creating a series of meaningful actionresponse associations What is meaningful is learned by experience and the meanings of acoustical instrumental performance are generally acquired by people at a very early stage through experiencing live filmed or videotaped performancesrdquo (SCHRADER 1991 p 91-92)
90
De acordo com o autor estes mecanismos de accedilatildeoresposta presentes nos instrumentos
acuacutesticos podem ser aparentes como no caso do violino ou implicados como no caso do
piano Assim poderiacuteamos ilustrar o modelo de instrumentos acuacutesticos da seguinte maneira
FIGURA 24 - MODELO DE ACcedilAtildeO-RESPOSTA DOS INSTRUMENTOS ACUacuteSTICOS
Accedilatildeo fiacutesica e visual Instrumento
FONTE o autor (2019)
Resposta aural
Na muacutesica que une instrumentos acuacutesticos com recursos eletroacuacutesticos esta
correspondecircncia newtoniana de accedilatildeo e reaccedilatildeo eacute modificada Haacute uma parte da experiecircncia
aural que natildeo eacute efeito da accedilatildeo fiacutesica e visual Essa situaccedilatildeo coloca o ouvinte-espectador numa
posiccedilatildeo de atentar para as relaccedilotildees entre accedilatildeo visual e resposta aural que podem ser
diferentes daquelas a que estaacute acostumado e que tambeacutem podem ser instaacuteveis Assim para a
muacutesica mista eacute possiacutevel esboccedilar um modelo diferente (Figura 25)
FIGURA 25 - POSSIacuteVEIS RELACcedilOtildeES CONFUSAS NA PERCEPCcedilAtildeO DE ACcedilAtildeO-RESPOSTA NO CONshyTEXTO DA MUacuteSICA MISTA
FONTE o autor (2019)
O que designei accedilatildeo invisiacutevel na figura acima se explica pelo processo de
referenciaccedilatildeo espectro-morfoloacutegica (spectromorphological referral process) da teoria de
Smalley (1997) ldquoQuando ouvimos espectromorfologias noacutes detectamos a humanidade por
traacutes delas ao deduzir atividade gestual referindo-nos atraveacutes do gesto agrave experiecircncia fisioloacutegica
e proprioceptiva em geralrdquo (p 111)100 A seta a) na figura 25 indica a possibilidade de
percebermos um som eletroacuacutestico como se tivesse sido produzido pela accedilatildeo fiacutesica e visual
do performer no instrumento A seta b) indica a possibilidade de percebermos que a resposta
100Traduccedilatildeo do autor Original ldquoWhen we hear spectromorphologies we detect the humanity behind them by deducing gestural activity referring back through gesture to proprioceptive and psychological experience in generalrdquo (SMALLEY 1997 p 111)
91
aural eletroacuacutestica parece uma variaccedilatildeo da resposta aural instrumental relaccedilatildeo comum no
emprego de processamentos do som ao vivo O quadrado gradiente indica que na percepccedilatildeo
da resposta aural natildeo eacute sempre possiacutevel uma clara distinccedilatildeo entre os meios conforme
demonstrado no subcapiacutetulo 34 A ilustraccedilatildeo apresenta apenas estas duas relaccedilotildees deixando
em aberto a possibilidade de outras
No artigo Muacutesica Eletroacuacutestica possibilidades esteacuteticas e escuta Cristina Dignart
aponta que esta situaccedilatildeo implica novos paradigmas de escuta musical ldquoO movimento gestual
instrumental sobre os sons permite um agenciamento atento ou intencional de certas
qualidades sonoras com a possibilidade de descobertas e surpresas de sonoridadesrdquo
(DIGNART 2010 p 63) Segundo a autora haacute uma ldquoreinterpretaccedilatildeo da escuta atrelada ao
gestordquo
Esta situaccedilatildeo remete agrave relaccedilatildeo interativa entre ouvinte e sons que propotildee Smalley
Segundo este autor a relaccedilatildeo interativa envolve
[] uma relaccedilatildeo ativa da parte do sujeito em explorar continuamente as qualidades e a estrutura do objeto Neste sentido pode ser vista como interativa Nenhuma expectativa preacute-formada eacute buscada pelo ouvinte A relaccedilatildeo interativa engloba a audiccedilatildeo estrutural as atitudes esteacuteticas em relaccedilatildeo agrave muacutesica e aos sons e o conceito de Schaeffer de audiccedilatildeo reduzida Eacute possiacutevel ter uma relaccedilatildeo interativa com qualquer som ainda que naturalmente alguns sons seratildeo mais frutiacuteferos do que outros (SMALLEY 2008 p 6)
Embora esta perspectiva esteja associada apenas com o som eacute possiacutevel considerar que
tal postura seja possiacutevel tambeacutem diante da relaccedilatildeo entre accedilatildeo visual e resposta aural Isto eacute o
ouvinte-espectador pode assumir uma relaccedilatildeo interativa101 natildeo apenas com os sons mas com a
performance como um todo incluindo seu aspecto fiacutesico e visual Esta postura interativa eacute
especialmente demandada desta performance que desafia o modelo de accedilatildeoresposta dos
instrumentos acuacutesticos
Tal situaccedilatildeo do ouvinte-espectador estaacute diretamente relacionada ao mencionado estado
de duacutevida (MENEZES 2006) Ao referir-se agraves suas proacuteprias realizaccedilotildees mistas Menezes
expressa
o ouvinte recai em constantes duacutevidas acerca da natureza daquilo que ouve se adveacutem do instrumento ou da emissatildeo eletroacuacutestica se se opera ao vivo uma dinamizaccedilatildeo espacial harmocircnica tiacutembrica e temporal da escritura instrumental ou
101Observe o leitor que o termo interaccedilatildeo aqui se aplica a outra relaccedilatildeo diferente daquelas diferenciadas no capiacutetulo 2 Esta relaccedilatildeo se aproxima das discussotildees sobre participaccedilatildeo do ldquoespectadorrdquo na arte em geral
92
se estaacute defronte de estruturas preacute-elaboradas em estuacutedio constituiacutedas a partir dos proacuteprios instrumentos ou a estes timbricamente correlatas (MENEZES apud MENEZES 2006 p 386)
Novamente o estado de duacutevida nesta citaccedilatildeo estaacute mais relacionado aos aspectos
sonoros poreacutem eacute evidente que podemos consideraacute-lo tambeacutem na relaccedilatildeo entre accedilatildeo visual e
resposta aural Isto porque a duacutevida em relaccedilatildeo a proveniecircncia do som pode se acentuar ou se
extinguir de acordo com o respaldo visual E ainda eacute possiacutevel que haja outros estados como o
engano por exemplo
O efeito McGurk eacute uma curiosidade sobre a percepccedilatildeo da fala que pode ilustrar o caso
do engano
O efeito McGurk ocorre quando o sinal visual de um fonema eacute dublado com um sinal acuacutestico de um fonema diferente Com pares audiovisuais especiacuteficos os observadores natildeo notam o conflito intermodal e frequentemente experienciam (ie ouvem) um fonema que natildeo corresponde ao verdadeiro sinal auditoacuterio (ALSIUS et al 2017 p 2 traduccedilatildeo nossa102)
Por exemplo se a imagem era a de algueacutem falando ldquobardquo mas dublado com o som desta
pessoa falando ldquogardquo os ouvintes poderiam ouvir ldquobardquo ou mesmo ldquobgardquo103 Natildeo eacute papel desta
pesquisa investigar o quanto tal efeito pode acontecer em relaccedilatildeo a outros tipos de percepccedilatildeo
sonora entretanto este exemplo aponta para a influecircncia que o estiacutemulo visual tem sobre a
escuta
A peccedila Three voices (1982) de Morton Feldman serve como um exemplo Esta peccedila
escrita para Joan La Barbara eacute concebida como um trio para uma voz - duas partes satildeo preacute-
gravadas (pela mesma inteacuterprete) e uma executada ao vivo As vozes apresentam materiais
semelhantes Quando acontece de coincidir ataques de uma voz preacute-gravada com a da
performance ao vivo haacute a fusatildeo104 Natildeo se trata apenas da fusatildeo de dois ou trecircs fluxos
sonoros mas da fusatildeo destes com o que denominei fluxo visual Em cerca de 7 minutos a
peccedila apresenta um momento de sincronia entre as trecircs vozes em que eacute possiacutevel observar tal
fusatildeo105 A Figura 26 apresenta a partitura referente a esta parte
102Original ldquoThe McGurk effect occurs when the visual signal of one phoneme is dubbed onto the acoustic signal of a different phoneme With specific audiovisual pairs the observers do not notice intermodal conflict and often experience (ie hear) a phoneme that does not match the actual auditory signalrdquo (ALSIUS et al 2017 p 2)
103Buscando por ldquoMcGurk effectrdquo o leitor encontraraacute viacutedeos demonstrando este efeito na internet104A fusatildeo natildeo acontece apenas pela sincronia mas por se tratarem do mesmo timbre de voz ou seja haacute
transferecircncia espectral105Confira a performance de Charlotte Mundy disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatch
v=eXGnS7bqJ8ogt Acesso em 17 jan 2019
93
FIGURA 26 - FUSAO EM THREE VOICES (1982) DE MORTON FELDMAN (COMPASSOS 15 A 18 DA PARTE B)
Voice 1
Voice 2
Voice 3
mdashJmdash mdash ampmdash M mdashB r i
=-mdashsHivl
ei
ampL = uacute
mdash 1gtJsect j j
H u mdash laquoL
bull bull IG -------amp - W ----G
mdash bull bull------
e) a ei ei
bull
t
1
t
FONTE transcrito de Feldman (compositor) (1982)
Eacute importante notar o efeito desta fusatildeo natildeo apenas na escuta mas na experiecircncia da
performance que eacute tambeacutem vista uma impressatildeo possiacutevel eacute de que a cantora estaacute produzindo
as trecircs vozes ao vivo A relaccedilatildeo entre accedilatildeo da performer e resposta aural eacute instaacutevel nesta peccedila
Por vezes pode-se perceber a relaccedilatildeo convencional movimento corporal (boca respiraccedilatildeo
etc) agindo para produzir um som vocal No entanto quando o mesmo movimento parece
produzir trecircs sons vocais haacute uma reinterpretaccedilatildeo desta relaccedilatildeo
Truax (2005) aborda a questatildeo do visual na muacutesica eletroacuacutestica e questiona sobre a
influecircncia em questatildeo
No entanto mesmo dentro do mundo da muacutesica eletroacuacutestica estamos realmente livres da influecircncia visual Falamos de formas sonoras ou espectromorfologia (Smalley) e imagens sonoras (Wishart) O timbre eacute frequentemente descrito em termos visuais ou taacuteteis e talvez mais sutilmente muitas vezes nos referimos ao ldquoespaccedilo acuacutesticordquo mais por referecircncia ao espaccedilo visual do que a uma experiecircncia aural um tanto mais elusiva daquele espaccedilo Pode-se argumentar que tais referecircncias a formas imagens e espaccedilos natildeo precisam ser entendidas como visualmente tingidas mas na praacutetica acho que elas geralmente satildeo No entanto a neuropsicologia contemporacircnea em seu estudo do comportamento cerebral fornece evidecircncia de que todos os centros perceptivos estatildeo inter-relacionados e embora os fenocircmenos puramente auditivos possam ser localizados no coacutertex auditivo conexotildees estatildeo sempre sendo feitas a outros centros (TRUAX 2005 traduccedilatildeo nossa106)
Tendo distinguido este fluxo visual na performance mista e apontado o tipo e a
importacircncia de sua relaccedilatildeo com os fluxos sonoros interessa para esta pesquisa questionar qual
o potencial analiacutetico e composicional destes conceitos No caso da anaacutelise cabe ao analista
106Original ldquoYet even within the electroacoustic music world are we truly free of the visual influence We speak of sound shapes or spectromorphology (Smalley) and sound images (Wishart) Timbre is often described in visual or tactile terms and perhaps most subtly we often refer to acoustic space more by reference to visual space than to the somewhat more elusive aural experience of that space One could argue that such references to shapes images and spaces need not be understood as visually tinged but in practice I think they often are However contemporary neuropsychology in its study of brain behaviour provides evidence that all of the perceptive centres are inter-related and even though purely auditory phenomena can be localized to the auditory cortex connections are always being made to other centresrdquo (TRUAX 2005)
94
identificar a importacircncia deste fluxo numa experiecircncia de performance para decidir consideraacute-
lo ou natildeo Para o compositor uma opccedilatildeo eacute considerar este fluxo visual apenas como um fato
inerente agrave performance de muacutesica mista ou seja ainda que esteja consciente de tal fato natildeo o
utiliza como elemento estrutural em sua composiccedilatildeo Outra opccedilatildeo eacute pensaacute-lo como um
paracircmetro estrutural com potencial de ser trabalhado criativamente composto
Esta situaccedilatildeo de performance de relaccedilotildees variaacuteveis de accedilatildeo visual e resposta aural foi
explorada criativamente por alguns compositores A peccedila Aphasia (2009) para vocalista ou
ator (usando liacutengua de sinais) com tape de Mark Applebaum explora as possibilidades destas
relaccedilotildees107 A Figura 27 apresenta um trecho da partitura
Eacute possiacutevel perceber um paradigma de dependecircncia entre os fluxos visual e sonoro um
gesto estaacute sempre associado a um som como explica o compositor
O tape uma explosatildeo idiossincraacutetica de sons deformados e mutilados eacute composto exclusivamente de amostras vocais - todas cantadas por Isherwood e subsequentemente transformadas digitalmente Contra o pano de fundo desta narrativa de aacuteudio o cantor performa um elaborado conjunto de gestos de matildeo uma linguagem de sinais assiduamente coreografada Cada gesto eacute cuidadosamente sincronizado com o tape numa justa coordenaccedilatildeo riacutetmica (APPELBAUM traduccedilatildeo nossa108)
Podemos inferir que estes conceitos (relaccedilatildeo entre accedilatildeo visual e resposta aural fluxo
sonoro e visual) natildeo se apliquem apenas agrave performance de muacutesica mista mas tambeacutem a
107Confira a performance do proacuteprio compositor disponiacutevel em lthttpwebstanfordedu~applemkportfolio- works-aphasiahtmlgt
108Original ldquoThe tape an idiosyncratic explosion of warped and mangled sounds is made up exclusively of vocal samplesmdashall sung by Isherwood and subsequently transformed digitally Against the backdrop of this audio narrative the singer performs an elaborate set of hand gestures an assiduously choreographed sign language of sorts Each gesture is fastidiously synchronized to the tape in tight rhythmic coordinationrdquo (APPELBAUM)
95
outros gecircneros que fazem uso de som em conjunto com imagem (viacutedeo-arte performance
teatro baleacute etc) Barry Truax comenta seu trabalho de mixed media em colaboraccedilatildeo com o
artista visual e compositor Theo Goldberg
Uma vez que Theo Goldberg tinha familiaridade tanto com artes visuais quanto com muacutesica e tinha pensado muito sobre sua possiacutevel correlaccedilatildeo (Goldberg amp Schrack1986) seu conselho a mim quando comeccedilou a colaboraccedilatildeo foi tratar os doiselementos como independentes ainda que derivados de uma ideia comum Tomei isso como significando que uma correlaccedilatildeo direta era desnecessaacuteria e que cada meio deveria se desenvolver de acordo com sua proacutepria loacutegica mas serem informados por uma ideia comum que era central ao trabalho O equiliacutebrio entre liberdade para cada meio mas coerecircncia entre eles sempre pareceu funcionar em cada colaboraccedilatildeo que empreendemos (TRUAX 2005 traduccedilatildeo nossa)109
Este paradigma pode ser descrito como independecircncia com coerecircncia Um paradigma
de relaccedilatildeo estaacutevel O argumento em questatildeo eacute de que ldquocada meio possui sua proacutepria loacutegicardquo e
por isso devem se manter independentes Entretanto podemos questionar se estes meios
realmente possuem loacutegicas distintas Para cada gecircnero (viacutedeo-arte cinema performance e
outros) teriacuteamos uma resposta e natildeo eacute nosso objetivo investigaacute-las precisamente Entretanto
podemos pontuar que mais do que inerecircncias dos meios o que eacute definitivo para tal
posicionamento relativo agrave relaccedilatildeo entre sonoro e visual eacute a decisatildeo esteacutetica do criador
Aphasia de Applebaum apresenta uma dependecircncia completa o trabalho de Truax e Goldberg
independecircncia com coerecircncia Aleacutem disso podemos pensar que este paradigma na relaccedilatildeo
entre sonoro e visual pode ser variaacutevel constituindo assim um paracircmetro passiacutevel de
transformaccedilotildees durante a peccedila Eacute o caso de Strange Autumn (2003-4) de Steven Kazuo
Takazugi que eacute analisada em 42
Em seu texto Why Theater or A Series o f Uninvited Guests (2016) Takasugi
demonstra que a ideia de teatro110 perpassa a muacutesica eletroacuacutestica desde aquela feita para
fones-de-ouvidos (gecircnero a que se dedicou por deacutecadas) ateacute aquela que inclui o inteacuterprete e
seu instrumento no palco
Primeiramente haacute um teatro imaginado cranial daquelas muacutesicas feitas para serem
ouvidas em fones-de-ouvido O autor explica
109OriginaL Since Theo Goldberg was familiar with both the visual arts and music and had thought a great dealabout their possible correlation (Goldberg amp Schrack 1986) his advice to me when we started collaborating was to treat the two elements as independent yet derived from a common idea I took this to mean that direct correlation was unnecessary and that each medium should develop according to its own logic but be informed by a common idea that was central to the work The balance between freedom for each medium but coherence between them always seemed to work in each collaboration we undertook (TRUAX 2005)
110Natildeo se refere ao gecircnero artiacutestico mas ao espaccedilo de apresentaccedilotildees
96
Pois somente nas profundezas mais escuras do espaccedilo projetado e imaginado os sons recuperam uma re-encarnaccedilatildeo quase visual como objetos fiacutesicos que entatildeo executam uma danccedila impossiacutevel em um salatildeo inexplicaacutevel e cranial e assim tornam- se suficientemente provocativos para incitar a imaginaccedilatildeo a criar ao lado real uma casa de espelhos um teatro imaginado (TAKASUGI 2016 natildeo paginado traduccedilatildeo nossa111)
Num outro estaacutegio trocando os fones individuais por alto-falantes comunitaacuterios temos
o teatro fiacutesico Como os alto-falantes natildeo satildeo performers visualmente atrativos baixa-se a
intensidade da luz numa espeacutecie de ldquodesculpas pela ausecircncia do visualrdquo (TAKASUGI 2016)
os alto-falantes desaparecem e o ouvinte eacute novamente deixado agrave sua proacutepria imaginaccedilatildeo
Um passo aleacutem e acompanhando o concerto eletroacuacutestico temos um instrumento no
palco um piano por exemplo Por momentos ele pode servir de referecircncia para os sons
ouvidos
O que eacute isso O instrumento fiacutesico como representaccedilatildeo conceitual Mas se algueacutem - mesmo que por breves instantes - assuma que os sons que ouve foram extraiacutedos do instrumento verdadeiro e factual em si natildeo eacute esse o momento de intrusatildeo de outro ldquohoacutespede natildeo convidadordquo Um impostor de tipos alegando sons que natildeo produziu E como ainda natildeo haacute agente humano nesse ato imaginado o instrumento como objeto assume um ar misterioso de presenccedila esteacutetica importacircncia significado (TAKASUGI 2016 traduccedilatildeo nossa112)
Mais um passo e temos o performer sentado ao piano mas ele natildeo toca nada enquanto
isso a muacutesica eletroacuacutestica eacute executada Seria o verdadeiro ator-impostor Neste caso ldquo []
com a presenccedila de um ser humano no palco o ritual de concertos ao vivo com toda a sua
etiqueta e deferecircncia a um inteacuterprete se materializou O teatro de um tipo exterior renasce
[]rdquo (TAKASUGI 2016 traduccedilatildeo nossa113)
Ainda um passo aleacutem e temos o performer que tocaraacute o piano Entretanto esta
bifurcaccedilatildeo inerente agrave junccedilatildeo de sons ao vivo e sons preacute-gravados carrega a possibilidade de o
performer ldquonatildeo tocar embora fingir tocarrdquo causando uma espeacutecie de efeito de
111 Original ldquoFor only in the darkest depths of ones projected imagined space did sounds regain a near visual re-embodiment as physical objects that then perform an impossible dance in an inexplicable cranial hall and thereby become sufficiently provocative to prompt the imagination to create alongside the real a house of mirrors an imagined theaterrdquo (TAKASUGI 2016)
112 Original ldquoWhat is it The physical instrument as conceptual representation But then if onemdasheven for the briefest of momentsmdashassumes that the sounds one hears as elicited from the true factual instrument itself is that not the moment of intrusion of yet another uninvited guest An imposter of sorts claiming sounds that it has not produced And as there is still no human agent in this imagined act the instrument as object takes on a mysterious air of aesthetic presence importance meaningrdquo (TAKASUGI 2016)
113 Original ldquo[] with the presence of a human on stage the live concert ritual with all its etiquette and deference to a performer has rematerialized Theater of an exterior type is reborn []rdquo (TAKASUGI 2016)
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ventriloquismo e uma confusatildeo de ldquoquem estaacute fazendo o querdquo Assim o autor registra ldquoO
teatro eacute uma orquestraccedilatildeo alternativamente uma heterofonia que se projetou explicitamente
no domiacutenio visualrdquo (TAKASUGI 2016 traduccedilatildeo nossa114)
Assim esta dissociaccedilatildeo da produccedilatildeo fiacutesica da muacutesica em relaccedilatildeo ao todo que soa se daacute
em graus variados imaginaccedilatildeo instrumento performer gesto fiacutesico Desta forma os artefatos
visuais antes presumidos da produccedilatildeo musical e que eram perifeacutericos a ela (viradas de
paacuteginas por exemplo) satildeo incluiacutedos
Consequentemente se a produccedilatildeo fiacutesica da muacutesica e seu labor foram dissociados em graus variados do todo que soa os artefatos gestuais outrora presumidos da produccedilatildeo musical - outrora estranhos ao empreendimento de fazer muacutesica - se levantam em revolta para se juntar ao jogo inflado do fato e ficccedilatildeo a interaccedilatildeo da verdade e da fraude Viradas de paacutegina olhares de deixas tempo batido com o peacute o cacircmbio de instrumentos duplicados o silenciar dos instrumentos o agradecimento do puacuteblico todos estes satildeo colocados em primeiro plano ensaiados estilizados atuados
E entatildeo o que a camada da performance ao vivo e do teatro contribui para aquele ldquopedaccedilo de fitardquo agora enterrado115 de amostras digitais se o equiliacutebrio entre as camadas cria uma confusatildeo implacaacutevel Ela ajuda a camada da ldquomuacutesica mortardquo a permanecer enterrada como uma percepccedilatildeo subconsciente mesmo que esteja soando sozinha em longas passagens Por isso permite um desvio dos olhos - os olhos internos propiciaram sua suspensatildeo da descrenccedila necessaacuteria a qualquer ficccedilatildeo - ao mesmo tempo em que os olhos fiacutesicos estatildeo bem abertos horrorizados com o que vecircem no palco Isso permite ao espectaacuteculo a sua sombra o seu efeito alienante Eacute assim que aquela presenccedila sombria como o uacuteltimo ldquoconvidado natildeo convidadordquo (agora ldquofantasmardquo) encontra acesso atraveacutes de uma porta dos fundos por assim dizer encontrada de surpresa No final haacute e natildeo haacute o playback Ele desaparece para se tornar mais uma presenccedila despercebida parte das paredes do local uma cortina ou uma porta vista mas natildeo observada
O teatro eacute um truque de maacutegica Eacute a distraccedilatildeo pela qual os mortos se levantam de maneira encoberta pungente desconhecida ou apenas vagamente sentida entre o ao vivo os vivos (TAKASUGI 2016 traduccedilatildeo nossa116)
114 Original ldquoTheater is an orchestration alternatively a heterophony which has projected itself explicitly into the visual domainrdquo (TAKASUGI 2016)
115 O autor brinca com a ideia de live e dead se os sons ao vivo satildeo considerados vivos (live) os sons preacute- gravados poderiam ser chamados de mortos (dead)
116 Original ldquoConsequently if musics physical production and its labor have been decoupled to varying degrees from the sounding whole the once-presumed gestural artifacts of musical production - previously extraneous to the enterprise of music making - rise up in revolt to join the inflated game of fact and fiction the interplay of truth and fraud Page turns cued glances time beat with the foot the exchange of doubling instruments the muting of instruments the acknowledgment of the audience all these become foregrounded rehearsed stylizedacted
And so what does the layering of live performance and theater accomplish for that now buried tape piece of digital samples if the balance among the layers creates a ruthless confusion It aids the layer of the dead music to remain buried as a subconscious perception even if it is sounding alone in long passages It therefore allows for an averting of the eyes - the inward eyes afforded their suspension of disbelief requisite of any fiction - at the same time when the actual physical eyes are wide aglare aghast by what they see on stage It allows the spectacle its shadow its alienation-effect It is how that shadowy presenceas the last uninvited guest (now ghost)finds access through a backdoor as it were met unawares In the end there is and there isnt the playback track It fades away to become yet another unnoticed presence part of the venues walls or a curtain or a doorseen but not watched
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Diante deste texto eacute possiacutevel reter as seguintes ideias a ldquoconfusatildeo implacaacutevelrdquo se
apresenta natildeo apenas no reconhecimento da fonte sonora pela escuta mas na relaccedilatildeo entre
accedilatildeo visual e resposta aural artefatos antes perifeacutericos agrave performance como as viradas de
paacuteginas satildeo incluiacutedos como elementos relevantes da performance (justamente por causa da
relevacircncia da accedilatildeo visual) que os recorrentes sons do instrumento duplicados na parte
eletroacuacutestica possibilitam agrave confusatildeo adquirir um caraacuteter veridictoacuterio ldquodo fato e da ficccedilatildeo a
interaccedilatildeo da verdade e da frauderdquo
Para elucidar as relaccedilotildees deste uacuteltimo aspecto propomos articular a oposiccedilatildeo ser-
parecer instrumental117 Localizamos o instrumento presente no palco como central natildeo por
ser mais importante mas sim porque eacute em relaccedilatildeo ao som conhecido do instrumento cuja
performance eacute vista que podemos julgar por comparaccedilatildeo os outros Assim em relaccedilatildeo ao
som conhecido do instrumento as seguintes possibilidades podem ser esboccediladas
a) parece e eacute instrumental situaccedilatildeo comum em que percebemos a relaccedilatildeo entre accedilatildeo
visual de um performer em seu instrumento e ouvimos um resultado aural
correspondente
b) parece instrumental mas natildeo eacute situaccedilatildeo em que sons projetados pelos alto-falantes
satildeo semelhantes ou idecircnticos aos instrumentais mas natildeo tiveram sua origem no
instrumento ao vivo embora uma accedilatildeo visual possa induzir tal pensamento
c) natildeo parece nem eacute instrumental situaccedilatildeo em que sons eletroacuacutesticos satildeo distintos dos
instrumentais e haacute uma total discrepacircncia entre accedilatildeo visual e resultado aural (por
exemplo na mencionada Aphasia os sons nunca satildeo os da matildeo do performer)
d) eacute mas natildeo parece instrumental situaccedilatildeo que utiliza sons instrumentais incomuns
(algumas teacutecnicas estendidas por exemplo)
Entretanto como mencionado o ouvinte-espectador pode estar num estado de duacutevida
em que soacute percebe a aparecircncia e natildeo pode dizer ou natildeo tem interesse em dizer o que eacute e o
que natildeo eacute Aleacutem disso podemos lembrar do argumento de Emmerson (2013) o que ouvimos
eacute o efeito e a relaccedilatildeo causal eacute secundaacuteria natildeo eacute essencial para apreciar o conteuacutedo expressivo
da muacutesica (ver p 37)
Theater is a sleight of hand It is the distraction by which the dead rise covertly poignantly unbeknown or only vaguely sensed among the live the livingrdquo (TAKASUGI 2016)
117 Trata-se de uma transposiccedilatildeo da categoria da veridicccedilatildeo da semioacutetica greimasiana (GREIMAS COURTEacuteS 2012 p 532) ldquoA categoria da veridicccedilatildeo apresenta-se assim como o quadro em cujo interior se exerce a atividade cognitiva de natureza epistecircmica que com o auxiacutelio de diferentes programas modais visa a atingir uma posiccedilatildeo veridictoacuteria suscetiacutevel de ser sancionada por um juiacutezo epistecircmico definitivordquo (GREIMAS COURTEacuteS 2012 p 533)
Esta postura de Emmerson parece se aplicar mais facilmente a algumas peccedilas do que a
outras O caso de Steven Takasugi eacute um exemplo de exploraccedilatildeo criativa da relaccedilatildeo causal ou
seja ela chama nossa atenccedilatildeo para esta relaccedilatildeo e ldquojogardquo com ela tornando-a importante e natildeo
secundaacuteria Em Strange Autumn (2003-4)118 para recitantevocalista percussionista e
playback eletrocircnico o compositor explora a dissociaccedilatildeo e o teatro mencionados Pode-se
perceber uma relaccedilatildeo instaacutevel entre accedilatildeo fiacutesica-visual e resposta aural e que agraves vezes causam o
efeito ventriacuteloquo Por vezes o fluxo sonoro corresponde ao que vemos o inteacuterprete fazer
mas por vezes ele finge executar o que foi preacute-gravado Por vezes a palavra que finge dizer eacute
a mesma que ouvimos preacute-gravada por vezes eacute outra Assim o fluxo visual e os fluxos
sonoros convergem e divergem dinamicamente A relaccedilatildeo entre accedilatildeo fiacutesica e visual e sua
resposta aural eacute usada assim como um paracircmetro composicional explorado dentro deste
teatro
Ainda eacute preciso considerar que a exploraccedilatildeo de tais possibilidades se daacute normalmente
no encontro com outras aacutereas artiacutesticas como a performance a danccedila o teatro e o cinema Tal
interdisciplinaridade natildeo estaacute no escopo deste trabalho mas o leitor interessado acharaacute
subsiacutedios teoacutericos e praacuteticos nestas praacuteticas e em outras jaacute mescladas como por exemplo o
teatro musical
Este sub-capiacutetulo trata da emancipaccedilatildeo do aspecto visual Ele sempre existe ldquocoladordquo
ao som percute-se (por exemplo) para ouvir determinado som A imagem de algueacutem
percutindo e o som resultante estatildeo sempre estreitamente relacionados O que acontece na
muacutesica mista eacute um descolamento destes dois aspectos (visualidade e sonoridade) que eacute
inerente a ela Toda a muacutesica mista apresenta em maior ou menor grau este descolamento Isto
permite que se considere este aspecto visual um elemento da textura um fluxo visual
36 TEXTURA NA MUacuteSICA ELETROACUacuteSTICA MISTA
Na muacutesica instrumental especialmente do periacuteodo da praacutetica comum como
apresentado em 31 textura se refere aos componentes que soam compreende um aspecto
quantitativo (quantos componentes soam em concorrecircncia) e um qualitativo (interaccedilotildees inter-
relaccedilotildees e outros fatores de seus componentes) (BERRY 1987 184) No verbete textura do
118 Confira a performance de Mark Knoop Serge Vuille e Newton Armstrong disponiacutevel em lthttpsyoutube1y_kunv2kUogt Acesso em 17 jan 2019
99
100
EARS Rob Weale (2005) explica a noccedilatildeo na muacutesica instrumental e na muacutesica eletroacuacutestica
No seu sentido mais geral o termo eacute frequentemente usado de um modo altamente inconsistente Eacute de muitas maneiras usado para descrever recursos instrumentais e vocais utilizados sinocircnimos de timbre e sonoridade densidade vertical e construccedilatildeo de vozes e partes espaccedilamento de intervalos dentro de acordes e a natureza monofocircnica homofocircnica heterofocircnica polifocircnica e construccedilotildees musicais contrapontiacutesticas
Na muacutesica eletroacuacutestica eacute um termo altamente uacutetil na descriccedilatildeo do caraacuteter de sons e vaacuterios niacuteveis estruturais de sequecircncias de sons em termos de seu comportamento geral e detalhes e padrotildees internos119
Podemos questionar tal inconsistecircncia apontada por Weale na utilizaccedilatildeo do termo ldquono
seu sentido mais geralrdquo O fato de o termo abarcar coisas distintas e variadas natildeo
necessariamente signifique uma inconsistecircncia no seu uso De fato textura envolve todos os
aspectos apontados entretanto isso natildeo significa que seu uso eacute inconsistente e sim que
textura eacute uma questatildeo complexa Isto eacute estamos tratando de complexidades simultaneidades
e ambiguidades Eacute preciso um esforccedilo teoacuterico para tranccedilar esta textura com tantos aspectos e
ainda outros se somarmos os eletroacuacutesticos
A fim de lidar com este espaccedilo teoacuterico no acircmbito deste trabalho articulamos as
categorias de macro e microtextura (ver 31) A concepccedilatildeo de textura na muacutesica
eletroacuacutestica apresentada por Weale assemelha-se ao que denominamos microtextura -
iniciativas texturais a partir do pontilhismo de Webern ateacute as massas de Ligeti e Penderecki
(ver 314)
Em nosso levantamento bibliograacutefico natildeo encontramos menccedilatildeo quando tratando da
muacutesica eletroacuacutestica ao que chamamos macrotextura Entretanto quando nesta pesquisa
nos deparamos com a questatildeo da interaccedilatildeo na muacutesica mista (considerando apenas as questotildees
sonoro-morfoloacutegicas) eacute exatamente com esta ideia que lidamos Berry (1987 p 189) enfatiza
que ldquomudanccedilas na textura - certamente mudanccedilas quantitativas mas tambeacutem aquelas
envolvendo qualidades da textura - estatildeo frequentemente entre o que eacute mais prontamente
perceptiacutevel e apreciaacutevel na experiecircncia da muacutesicardquo120 Entendemos que o mesmo acontece na
119 Traduccedilatildeo nossa Original ldquoIn its most general musical sense the term is frequently used in a highly inconsistent fashion It is variously used to describe vocal and instrumental resources employed synonymous with timbre and sonority vertical density and construction of voices and parts interval spacing within chords and the nature of monophonic homophonic heterophonic polyphonic and contrapuntal musical constructions In electroacoustic music texture is a highly useful term in describing the character of sounds and various structural levels of sequences of sounds in terms of their overall behaviour and internal details and patterningsrdquo (WEALE 2005)
120 Traduccedilatildeo nossa Original ldquoChanges in texture-surely quantitative changes but those involving textural qualities as well-are often among the most readily perceptible and appreciable in the experience of musicrdquo
101
muacutesica mista ou mesmo na muacutesica puramente eletroacuacutestica Tendo em vista o levantamento
feito neste capiacutetulo uma recuperaccedilatildeo desta concepccedilatildeo de textura - numa dimensatildeo macro -
parece ser importante para a teoria da muacutesica eletroacuacutestica em geral
Aleacutem disso durante a pesquisa nos deparamos com a importacircncia do aspecto visual
para a percepccedilatildeo da performance da muacutesica mista Esta importacircncia eacute tamanha que alguns
compositores consideram este aspecto mais que apenas uma inerecircncia ou um ldquoparasitardquo da
performance mas o incorporam como um elemento da textura Assim eacute possiacutevel falarmos de
um fluxo visual na textura da muacutesica mista (ver 35)
A macrotextura da muacutesica eletroacuacutestica mista seria assim constituiacuteda por seus
componentes sonoros e visuais sejam melhor descritos por vozes sonoridades camadas
fluxos ou planos121 e ainda por seus (sub)componentes gestos microtexturas linhas gratildeos
eventos etc Permanece ainda a importacircncia da quantidade dos componentes e da qualidade
de sua relaccedilatildeo Quanto agrave quantidade os mesmos recursos de Berry (1987) poderiam ser
usados
a) Os fluxos satildeo representados com uma sequecircncia horizontal de nuacutemeros que indicam a
quantidade dos componentes de cada fluxo (ver Figura 8)
b) Uma curva indica em seu eixo vertical a quantidade de fluxos ao longo do tempo (ver
uacuteltima curva da Figura 8)
Quanto agrave qualidade nosso trabalho apontou os recursos teoacutericos do comportamento
contraponto e interaccedilatildeo gestual (343) Resumidamente
a) O comportamento (SMALLEY 1997) possibilita a articulaccedilatildeo de dois pares de
oposiccedilatildeo dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo e conflito-coexistecircncia que se manifestam em
modos de relacionamento como por exemplo inatividade-atividade Os fluxos podem
apresentar relaccedilotildees de causalidade Esta abordagem descritiva foca sobretudo no
significado das relaccedilotildees122
a) Uma estrutura contrapontiacutestica (WISHART 1996) necessita um princiacutepio arquitetural
e um princiacutepio dinacircmico O primeiro constitui-se de aacutereas sonoro-morfoloacutegicas o
segundo tem um aspecto horizontal e outro de organizaccedilatildeo vertical dos gestos
presentes nos fluxos Este uacuteltimo pode ser vizualisado em dois eixos homogecircneo-
(BERRY 1987 p 189)121 Para facilitar a exposiccedilatildeo das ideias tomaremos fluxo como um termo padratildeo embora dependendo do caso
a estrutura possa ser melhor descrita por algumas das alternativas apontadas122 Haacute inclusive relaccedilatildeo com estudos da significaccedilatildeo as oposiccedilotildees baacutesicas (domiacutenio-subordinaccedilatildeo por
exemplo) estatildeo presentes na articulaccedilatildeo do niacutevel fundamental do percurso gerativo do sentido (GREIMAS 2012 p 474-475)
heterogecircneo e interativo-independente (ver Quadro 3)
a) Os modelos de interaccedilatildeo de Bachrataacute (2010) possibilitam a identificaccedilatildeo de interaccedilotildees
gestuais classificadas de acordo com concepccedilotildees diferentes de gesto
Eacute interessante notar como no decorrer do texto passamos a utilizar a palavra relaccedilatildeo
mais do que interaccedilatildeo Isto se deve ao fato de que interaccedilatildeo como apontam diversos
dicionaacuterios pressupotildee uma reciprocidade Esta accedilatildeo reciacuteproca nem sempre se estabelece
ainda que possamos falar que haja algum tipo de relaccedilatildeo Referindo-nos a vozes e textura
falamos de interaccedilatildeo inter-relaccedilatildeo e outras descriccedilotildees qualitativas tratando de sonoridades
falamos em relaccedilotildees de interdependecircncia tratando de fluxos sonoros utilizamos o conceito de
comportamento123 (SMALLEY 2008) contraponto (WISHART 1996) e interaccedilatildeo gestual
(BACHRATAacute 2010) Os dois primeiros apresentam recursos para tratar de maior ou menor
interaccedilatildeo Para Wishart por exemplo interaccedilatildeo eacute um dos modos com que os fluxos podem se
relacionar na dimensatildeo vertical
A Figura 28 condensa nossa abordagem a fim de ilustrar as possibilidades da
macrotextura na muacutesica eletroacuacutestica mista
Como um adendo cabe salientar a importacircncia das mudanccedilas de textura para a
delimitaccedilatildeo da forma Sem adentrar a discussatildeo deste termo consideremos genericamente os
aspectos formais como aqueles relativos agrave estrutura de seccedilotildees ou ao percurso por diferentes
momentos de uma peccedila Mudanccedilas texturais podem evidenciar estes diferentes momentos
Algumas implicaccedilotildees formais do estudo da textura ficaratildeo evidentes em nossas anaacutelises
(capiacutetulo 4) e nas experiecircncias composicionais (capiacutetulo 5)
102
123 Novamente os conceitos desenvolvidos por Smalley (1997) satildeo aplicaacuteveis agrave quaisquer niacuteveis estruturais O autor salienta que ldquoencontrar o niacutevel ou dimensatildeo temporal lsquocertarsquo para aplicar os atributos destes conceitos deve permanecer sendo uma decisatildeo do perceptor [perceiver]rdquo (p 114 traduccedilatildeo nossa) Em nossa abordagem aplicamos sobre a ideia de fluxo sonoro
103
FIGURA 28 - ILUSTRACcedilAtildeO DE POSSIacuteVEIS COMPONENTES DA MACROTEXTURA DA MUacuteSICA ELE-
TROACUacute STIC A MISTA
P l a n o s
1TC a m a d a s
ITF l u x o s
I IcircV o z e s
^ - J J7b T H m r rffx R lt RaacutepidoS o n o n d a d e s
ITFluxo visual
C o m p o n e n t e s
Cada uma destas categorias aleacutem de ser formadacomposta por eventos gestos gratildeos notas etc pode ser formada por microtexturas ( SljjpEacute ) exceto a voz
Uacute gt Q T T R e l a ccedil otilde e s
bull de comportamento (SMALLEY 1996 2008)bull contrapontiacutesticas (WISHART 1996)bull de interaccedilatildeo gestual (BACHRATAacute 2010)
FONTE o autor (2019)
104
4 DISCUSSAtildeO E ANAacuteLISES
Direcionados por estas reflexotildees teoacutericas analisaremos trechos de trecircs peccedilas mistas
Estas foram escolhidas visando uma representaccedilatildeo das teacutecnicas de instrumento(s) e sons
eletrocircnicos fixados em suporte instrumento(s) e eletrocircnica em tempo real (live electronics)
instrumento(s) e sistema interativo abordadas no capiacutetulo 21 Esta representatividade natildeo
tem como motivaccedilatildeo evidenciar diferenccedilas na configuraccedilatildeo e desenvolvimento de fluxos
sonoros pelo contraacuterio como apresentado em 23 pensamos que as questotildees sonoro-
morfoloacutegicas devem ser tomadas independentemente da teacutecnicatecnologia envolvida Assim
a escolha de peccedilas de diferentes teacutecnicas tem a funccedilatildeo de evidenciar que o pensamento
musical discutido pode ser aplicado em todas elas As anaacutelises tecircm como objetivos destacar a
presenccedila de fluxos distintos a maneira como se relacionam uns com os outros e a importacircncia
formal destas relaccedilotildees
Devido agrave proacutepria ldquoliquidezrdquo tanto das metaacuteforas utilizadas quanto dos proacuteprios
elementos musicais a potencialidade de ambiguidades e muacuteltiplas interpretaccedilotildees eacute expandida
Portanto natildeo se tratam de explicaccedilotildees fechadas das peccedilas mas de olhares e perspectivas que
podem ser uacuteteis para o entendimento geral da muacutesica mista tanto na atividade teoacuterica e
analiacutetica quanto composicional
41 DESINTEGRATIONS DE TRISTAN MURAIL
Desintegrations (1982-3) comissionada pelo IRCAM e primeiramente executada pelo
Ensemble InterContemporain em 1983 foi escrita para 17 instrumentos e sons sintetizados
por computador fixados em suporte Do ponto de vista da relaccedilatildeo com a tecnologia o regente
eacute o performer que assume a tarefa de sincronia com a parte eletrocircnica preacute-elaborada Murail
utiliza uma faixa de cliques que o regente deve ouvir atraveacutes de fones-de-ouvido abertos124 O
compositor salienta que a parte fixa ldquodeve estar em perfeita sincronizaccedilatildeo daiacute a necessidade
de lsquocliquesrsquo sincronizadores que o regente deve seguirrdquo125 (p 6) Os cliques satildeo usados apenas
em momentos estrateacutegicos especialmente no comeccedilo de cada seccedilatildeo Considerando a
classificaccedilatildeo de Ding (apud SCHULZ 2010 p 27-29) (ver 211) a peccedila apresenta uma
124 Os fones-de-ouvido abertos natildeo isolam os sons externos neste caso os sons instrumentais e eletrocircnicos que o regente precisa ouvir
125 Original ldquoIt should be in perfect synchronization hence the necessity of synchronisings ldquoclicksrdquo that the conductor must followrdquo (MURAIL 2004 p 6)
105
sincronizaccedilatildeo estrita a partir de meacutetrica fixa ou seja a sincronia acontece por uma escrita
riacutetmica precisa tanto dos eventos instrumentais quanto eletroacuacutesticos No que se refere agrave
relaccedilatildeo com a tecnologia na performance uma anaacutelise da ldquointeraccedilatildeordquo com os sons fixados
poderia abordar questotildees mais pontuais de sincronia (deixas presentes nos sons eletrocircnicos
por exemplo) questotildees de equiliacutebrio de intensidade entre instrumentos e eletrocircnicos entre
outras Nossa anaacutelise por outro lado se direciona agraves relaccedilotildees sonoro-morfoloacutegicas e busca
identificar na peccedila alguns aspectos jaacute abordados no capiacutetulo 3 o sintagma (GUIGUE 2011) o
princiacutepio arquitetural (WISHART 1996) a divisatildeo dos fluxos entre outros
No texto introdutoacuterio da partitura o compositor indica que todo o material usado tem
origem em anaacutelises decomposiccedilotildees e reconstruccedilotildees de espectros harmocircnicos ou inarmocircnicos
(MURAIL 2004 p 6) Estes espectros satildeo em sua maioria de sons graves do piano de
instrumentos da famiacutelia dos metais e de violoncelo Alguns dos procedimentos espectrais satildeo
explicitados
- fracionamento apenas uma regiatildeo de um espectro eacute utilizada (por exemplo os sons de sino no comeccedilo obtidos pelo fracionamento de sons de piano)- filtragem certos elementos componentes satildeo exagerados ou suprimidos- exploraccedilatildeo espectral movimento no interior de um som os elementos que o compotildeem satildeo ouvidos um apoacutes o outro o timbre se torna melodia (por exemplo a terceira seccedilatildeo sons de sinos pequenos surgem a partir de uma desintegraccedilatildeo dos timbres da clarineta e da flauta)- criaccedilatildeo de espectro inarmocircnico Aqueles que satildeo lineares satildeo feitos adicionando-se ou subtraindo-se frequecircncias (por uma analogia com a modulaccedilatildeo por anel ou de frequecircncia) os lsquonatildeo-linearesrsquo satildeo feitos pelo remodelamento [twisting] de um espectro ou pela descriccedilatildeo de um curva de frequecircncia (por exemplo a penuacuteltima seccedilatildeo - um remodelamento gradual de um som grave de trombone) (MURAIL 2004 p 6 traduccedilatildeo nossa126)
Estes procedimentos satildeo aplicados tanto na parte instrumental quanto na parte
eletrocircnica O compositor explica em poucas frases o tipo de relaccedilatildeo entre estes meios
126 Original ldquo Several types of spectrum treatment are used in this piece- fractioning one region only of a spectrum is used (eg bells sound at the beginning obtained by fractioning piano sounds)- filterings certain component elements are exaggerated or toned down- spectral exploration movement within a sound the component elements are heard one after the other the timbre becoming melody (eg 3rd section - sounds of small bells arising from the disintegration of clarinet and flute timbres)- creation of inharmonic spectra Thos that are linear are made by adding or substracting frequencies (by analogy with ring or frequency modulation) the lsquonon-linearrsquo are made by twisting a spectrum or by describing a frequency curve (eg penultimate section - the gradual twisting of a low trombone sound)rdquo (MURAIL 2004 p 6)
106
Haacute portanto uma origem comum para ambos tape e instrumentos sendo sua relaccedilatildeo uma de complementariedade Frequentemente o tape exagera o caraacuteter dos instrumentos difrata ou desintegra seu timbre ou amplifica os efeitos orquestrais127 (MURAIL 2004 p 6)
Esta origem comum e a consequente relaccedilatildeo de complementariedade apontam para
uma tendecircncia de que os fluxos se componham pela soma por uma relativa fusatildeo dos meios
instrumental e eletrocircnico De fato este eacute o paradigma mais presente na peccedila Entretanto isto
natildeo significa que natildeo se apresentem muacuteltiplos fluxos cuja interaccedilatildeo possa ser analisada
apenas que preponderantemente estes fluxos satildeo compostos por sons instrumentais e
eletrocircnicos em conjunccedilatildeo
O computador natildeo tenta entretanto qualquer simulaccedilatildeo direta dos instrumentos em questatildeo Antes eacute uma questatildeo de usar certos espectros como analogias estruturais para todo o conteuacutedo de alturas da obra (seja nos instrumentos ou na fita) e tambeacutem para gerar suas formas de grande escala Isso garante que os sons do computador e os que estatildeo na fita tenham uma unidade comum que garante que eles mantenham uma unidade orgacircnica audiacutevel um com o outro - de fato o grau com que os sons gravados e instrumentais se fundem durante o trabalho eacute incomumente consistente tendo em vista a tecnologia de seu tempo (ANDERSON 1996 traduccedilatildeo nossa128)
Murail explica que existem sete seccedilotildees estaacutegios diferentes na peccedila e que a mudanccedila
de um estaacutegio para outro acontece por uma ldquotransformaccedilatildeo-transiccedilatildeo ou pela liberaccedilatildeo
[unleashing] de um lsquoefeito thresholdrsquordquo (p 6) Cada estaacutegio passa por uma transformaccedilatildeo na
sua base harmocircnica de um espectro harmocircnico para um inarmocircnico ou vice-versa Isso cria
nas palavras do compositor ldquomovimentos de sombras e luz acompanhados por movimentos
de agitaccedilatildeo crescente ou decrescente de ordenaccedilatildeo ou desordenaccedilatildeo riacutetmicardquo 129 (MURAIL
2004 p 6)
Harmonia e timbre se distinguem muito pouco neste contexto e satildeo aspectos
fundamentais na construccedilatildeo da forma musical em Desintegrations Anthony Cornicello (2000)
127 Original ldquoThere is therefore one origin for both tape and instruments their relationship being one of complementarity Often the tape exaggerates the character of the instruments diffracts or disintegrates their timbre or amplifies the orchestral effects It should be in perfect synchronization hence the necessity of synchronizing ldquoclicksrdquo that the conductor must followrdquo (MURAIL 2004 p 6)
128 Original ldquoThe computer does not however attempt any direct simulation of the instruments concerned Rather it is a question of using certain spectra as structural analogies for the entire pitch content of the work (whether on instruments or tape) and likewise to generate its large-scale forms This ensures that the computer sounds and those on tape have a common unity which ensures that they maintain an audible organic unity the one with the other - indeed the extent to witch taped and instrumental sounds fuse and blend throughout the work is unusually consistent not least given the technology of the timerdquo (ANDERSON 1996)
129 Original ldquoThis creates movements of shade and light accompanied by movements of increasing or decreasing agitation of rhythmic ordering or disorderingrdquo (MURAIL 2004 p 6)
apresenta uma anaacutelise do desenvolvimento de acordes-timbre e sua influecircncia sobre a
estrutura da peccedila suas frases e cadecircncias tanto no acircmbito de cada seccedilatildeo quanto da peccedila como
um todo Nossa anaacutelise abordaraacute a terceira seccedilatildeo que comeccedila aos 645 e dura cerca de 320
A Figura 29 apresenta os acordes-timbre de comeccedilo e de fim desta seccedilatildeo de acordo com
Cornicello
FIGURA 29 - ACORDES-TIMBRE INICIAL E FINAL DA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN MURAIL
trade mdashbull-----------------k-
107
FONTE Extraiacutedo de Cornicello (2000 p 70)
Assim sendo fica claro o direcionamento de um espectro harmocircnico para um
inarmocircnico nesta seccedilatildeo Apenas por este aspecto jaacute eacute possiacutevel perceber a ldquotransformaccedilatildeo de
uma aacuterea tiacutembrica ou sonoro-morfoloacutegica em outrardquo (ver 343) caracterizando assim um
princiacutepio arquitetural da seccedilatildeo Este princiacutepio pode ser melhor analisado se considerarmos
tambeacutem outros aspectos das aacutereas sonoro-morfoloacutegicas da seccedilatildeo Ao menos quatro aacutereas
podem ser identificadas Tal identificaccedilatildeo eacute expressa a seguir de maneira geral tendo em vista
o aspecto praacutetico e natildeo essencialmente descritivo Satildeo elas na ordem em que surgem na peccedila
a) ataques agudos e ressonacircncias
b) ressonacircncias filtradas
c) melodia do corne inglecircs
d) atividade riacutetmica das cordas
Cada uma das aacutereas sonoro-morfoloacutegicas elencadas surge a partir da anterior Como
veremos isso se daacute pela derivaccedilatildeo ou decomposiccedilatildeo de um fluxo em outros Tal abordagem
destoa em parte da perspectiva de Wishart que em nossa leitura previa um princiacutepio
arquitetural comum a todos os fluxos tal qual as tonalidades eram comuns agraves vozes no
contraponto tradicional (WISHART 1996 p 116-117) No caso desta terceira seccedilatildeo a aacuterea
tiacutembrica ou seja o conteuacutedo harmocircnico-tiacutembrico representa um uacutenico princiacutepio arquitetural
geral entretanto dentro deste princiacutepio comum outros elementos caracterizam aacutereas sonoro-
morfoloacutegicas distintas
No primeiro momento desta seccedilatildeo Murail trabalha com a exploraccedilatildeo espectral
conforme indica em sua descriccedilatildeo dos procedimentos espectrais (p 105) desdobrando no
tempo os componentes do espectro Na nota de programa da peccedila Anderson apresenta a
seguinte descriccedilatildeo do primeiro momento da seccedilatildeo III ldquodensas nuvens de sonoridades como
de sino agudas derivadas da desintegraccedilatildeo dos espectros da flauta e da clarineta descem para
revelar sua origem instrumentalrdquo (ANDERSON 1996 traduccedilatildeo nossa130) A desintegraccedilatildeo dos
timbres da clarineta e da flauta eacute distribuiacuteda entre piano crotales glockenspiel e sons
eletrocircnicos formando gestos compostos de notas agudas curtas mas ressonantes que satildeo
ritmicamente ativas na primeira parte do gesto restando apenas sua ressonacircncia na segunda
parte A Figura 30 mostra os dois gestos iniciais desta seccedilatildeo
FIGURA 30 - COMPASSOS INICIAIS TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN MURAIL
108
FONTE Extraiacutedo de Murail (2004 p 29)
Podemos observar a sucessatildeo destes gestos como um fluxo isso se deve
principalmente agrave estabilidade do seu conteuacutedo espectral Evidentemente poderiacuteamos focar a
130 Original ldquoIII - dense clouds of high bell-like sonorities derived from the disintegration of flute and clarinet spectra descend to reveal their instrumental origin - a harmonic spectrum upon F (with the fundamental missing) evolves through flowing melodic figures on the English horn highlighting successive components of the spectra - the music drifts towards inharmonyrdquo (ANDERSON 1996)
atenccedilatildeo sobre os aspectos internos deste fluxo distinguindo uma dinacircmica interna dos seus
componentes abordando esta microtextura Entretanto nosso foco estaacute num niacutevel mais amplo
de agrupamento de acircmbito mais geral do que chamamos macrotextura
A configuraccedilatildeo bipartida destes gestos remonta agrave ideia de sintagma de Guigue (ver
321) Os ataques constituem a parte determinante do sintagma enquanto a ressonacircncia
constitui a parte determinada Ambas as partes do gesto satildeo desenvolvidas caracterizando o
que Wishart chama evoluccedilatildeo gestual Inicialmente esta evoluccedilatildeo gestual acontece por uma
expansatildeo temporal da parte determinante
A partir do quinto gesto (compassos 11 a 13 da seccedilatildeo) a parte determinada apresenta
um novo material um som eletrocircnico longo proveniente do espectro do laacute3 da flauta mas
sem a fundamental somado ao proacuteprio laacute3 na flauta sustentado que comeccedila dal niente e
termina al niente (Figura 31) A partir tambeacutem deste ponto a parte determinante do gesto
seguinte comeccedila a entrar antes do teacutermino da parte determinada do gesto anterior Estes
fatores colaboram para a percepccedilatildeo de um novo fluxo que comeccedila a se estabelecer
A parte determinada antes apenas uma consequecircncia da determinante agora engendra
um novo fluxo sonoro independente Neste quinto gesto cada parte deste sintagma que
inicialmente constituiacutea um uacutenico fluxo eacute desenvolvida de modo a se formarem dois fluxos
distintos A proacutepria ideia de sintagma natildeo se sustenta completamente deste momento em
diante pois natildeo haacute mais uma clara relaccedilatildeo de consequecircncia Natildeo satildeo mais os ataques que
determinam as ressonacircncias mas estas tomam um rumo proacuteprio independente daqueles
Este ponto de mudanccedila de surgimento de um segundo fluxo pode ser entendido pela
metaacutefora do gatilho quando um gesto de uma parte parece iniciar um evento ou uma mudanccedila
em uma outra parte de maneira minimamente clara O gesto de ataques agudos parece iniciar
causar o gesto de ressonacircncia filtrada do novo fluxo A ideia de reaccedilatildeo do sintagma de gatilho
e de causalidade respectivamente de Guigue (2011) Wishart (1996) e Smalley (2008 1997)
se relacionam estreitamente Entretanto devemos diferenciar a preocupaccedilatildeo descritiva de
cada ideia O sintagma natildeo se refere apenas a relaccedilotildees entre fluxos distintos como eacute o caso do
gatilho de Wishart Tampouco a causalidade tem apenas este foco Esta ldquoocupa-se mais com
um som agindo sobre outro seja causando a ocorrecircncia de um segundo evento seja
instigando a mudanccedila em um som que jaacute se desenrolavardquo (SMALLEY 2008 p 11) As trecircs
no entanto coincidem na explicaccedilatildeo deste ponto de Desintegrations
109
110
FIGURA 31 - COMPASSOS 11 A 13 DA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISshy
TAN MURAIL
FONTE Extraiacutedo de Murail (2004 p 30)
De modo semelhante a outra aacuterea sonoro-morfoloacutegica (melodia do corne inglecircs) surge
do interior deste fluxo de ressonacircncias filtradas A Figura 32 apresenta a entrada da melodia
do corne inglecircs
111
FIGURA 32 - FLUXO DO CORNE INGLEcircS NA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS ( 1982-3) DE
TRISTAN MURAIL
FONTE Extraiacutedo de Murail (2004 p 34 grifo nosso)
A aacuterea morfoloacutegica nomeada anteriormente atividade riacutetmica das cordas surge como
uma resposta agrave melodia do corne inglecircs no compasso 47 desta seccedilatildeo Neste ponto a melodia
do corne inglecircs estaacute distribuiacuteda entre sons eletrocircnicos corne inglecircs e fagote A atividade
riacutetmica das cordas em resposta daacute origem a um novo fluxo o uacutenico cujos sons eletrocircnicos
natildeo participam conjuntamente - ao menos isso natildeo eacute explicitado na partitura nem evidente na
escuta da gravaccedilatildeo131 Antes deste ponto as cordas compunham tambeacutem o fluxo de
ressonacircncias filtradas Assim embora apresentem ali uma resposta agrave melodia do corne inglecircs
tecircm sua origem no fluxo no qual se inseriam anteriormente
O desenvolvimento dos fluxos nesta seccedilatildeo eacute ilustrado abaixo na Figura 33 A linha
preta representa a continuidade dos fluxos mas desconsidera sua importante transformaccedilatildeo
Esta natildeo soacute eacute importante porque representa um processo um desenvolvimento dos materiais
mas porque a mudanccedila dos materiais que compotildeem os fluxos representa tambeacutem a mudanccedila
131 A anaacutelise se baseou na gravaccedilatildeo de Ensemble l rsquoItineacuteraire sob a regecircncia de Yves Prin
112
da relaccedilatildeo entre eles
FIGURA 33 - FLUXOS SONOROS NA TERCEIRA SECcedilAtildeO DE DESINTEGRATIONS (1982-3) DE TRISTAN
MURAIL (645 a 1006)
FONTE o autor (2019)
No momento 1 podemos perceber um domiacutenio dos ataques agudos sobre as
ressonacircncias Conforme estas desenvolvem-se num novo fluxo (ressonacircncias filtradas) esta
relaccedilatildeo perde sua forccedila Isto acontece devido a uma diminuiccedilatildeo da densidade riacutetmica132 do
primeiro e uma acumulaccedilatildeo dinacircmica somada ao aumento da densidade harmocircnica do
segundo A diminuiccedilatildeo da densidade riacutetmica eacute evidente e progressiva num primeiro momento
mas deve-se ressalvar uma retomada da alta densidade nos compassos 31 a 33 desta seccedilatildeo
antes da entrada do corne inglecircs Trata-se de um desvio da ldquolinearidaderdquo com que diminuiacutea o
nuacutemero de ataques agudos133 Assim haacute uma transformaccedilatildeo na relaccedilatildeo domiacuteniosubordinaccedilatildeo
destes dois primeiros fluxos em sentido contraacuterio Ataques agudos vatildeo do domiacutenio para um
natildeo-domiacutenio e as ressonacircncias da subordinaccedilatildeo para uma natildeo-subordinaccedilatildeo Sob a metaacutefora
dos planos podemos afirmar que haacute um deslocamento do primeiro plano para um plano de
fundo dos ataques agudos134 Por outro lado as ressonacircncias se deslocam do plano de fundo
para um primeiro plano ao ponto de darem origem agrave melodia do corne inglecircs
A dualidade gestotextura como entendida por Smalley (ver 332) tambeacutem se
apresenta na relaccedilatildeo destes fluxos O primeiro eacute composto por gestos enquanto o segundo
tem um caraacuteter textural Esta constataccedilatildeo tem relaccedilatildeo com o eixo conflitocoexistecircncia que
demarca as relaccedilotildees temporais do campo comportamento Os dois fluxos competem
temporalmente (conflito) num primeiro momento haacute uma intercalaccedilatildeo entre ataques agudos e
132 Nuacutemero de ataques por tempo133 Este evento dos compassos 31 a 33 marca tambeacutem a entrada das cordas com maior presenccedila nesta seccedilatildeo134 Este deslocamento soacute iraacute se concretizar efetivamente apoacutes os mencionados compassos 31 a 33 e a entrada do
corne inglecircs mas a tendecircncia de ir para o plano de fundo se mostra jaacute neste primeiro momento
113
ressonacircncias filtradas A medida em que se desenvolvem passam a confluir em coexistecircncia
Isto aponta tambeacutem para uma coordenaccedilatildeo de movimento que passa de um estado mais justo
para outro mais frouxo Desta perspectiva analiacutetica (SMALLEY 1997) estas relaccedilotildees
concernem agrave atividade-inatividade dos fluxos (modo de relacionamento) E da mesma forma
haacute um movimento contraacuterio em relaccedilatildeo agraves mudanccedilas os ataques agudos mudam da atividade
em direccedilatildeo agrave inatividade (vide a diminuiccedilatildeo da densidade riacutetmica) enquanto que as
ressonacircncias filtradas partem da inatividade em direccedilatildeo agrave atividade Este uacuteltimo
direcionamento tem seu aacutepice no desmembramento seguinte do interior das ressonacircncias
filtradas surge a melodia do corne inglecircs mais ativa e gestual em comparaccedilatildeo agrave textura
anterior das ressonacircncias
A tabela de Wishart apresentada em 343 oferece um meio graacutefico para pensar estas
mudanccedilas no tipo de relaccedilatildeo entre os fluxos A figura 34 apresenta a relaccedilatildeo entre os fluxos
ataques agudos e ressonacircncias filtradas no primeiro momento da seccedilatildeo em questatildeo
FIGURA 34 - RELACcedilAtildeO ENTRE DOIS FLUXOS EM DESINTEGRATIONS (1982-3) SOBRE O QUADRO DE WISHART (1996)
independente
Icirc
interativo
similar dissimilar
(homogecircneo) (heterogecircneo)
FONTE o autor (2019)
Os dois fluxos satildeo similares inicialmente (ponto a na Figura 34) pois um eacute a
ressonacircncia do outro possuem as mesmas frequecircncias Mas porque natildeo estatildeo sincronizados
natildeo eacute completa a homogeneidade Os fluxos se diferenciam espectralmente conforme se
desenvolvem (ponto b) mas ainda guardam a relaccedilatildeo de interaccedilatildeo (gatilho) posteriormente
perdem esta relaccedilatildeo e se mantecircm independentes e heterogecircneos (c)
As notas sobre a peccedila no siacutetio do compositor apresentam a seguinte descriccedilatildeo do
Momento 2
independecircncia c 1independecircncia
semi-paralelismo interaccedilatildeo
paralelismoa
b gatilho
114
- um espectro harmocircnico sobre faacute (com a fundamental ausente) evolui atraveacutes de figuras meloacutedicas fluiacutedas no corne inglecircs destacando componentes sucessivos do espectro (ANDERSON 1996 traduccedilatildeo nossa135)
Neste momento os dois fluxos anteriores embora ainda presentes se deslocam para
um plano de fundo enquanto a melodia do corne inglecircs assume o primeiro plano Este fluxo
natildeo eacute composto apenas pelos sons de corne inglecircs mas por ele somado aos sons eletrocircnicos e
agraves vezes ao fagote Ele domina sobre os outros dois Os fluxos decorrem independentemente
todos no processo de transformaccedilatildeo para um espectro inarmocircnico No momento 3 conforme a
descriccedilatildeo no site do compositor se daacute a conclusatildeo deste processo ldquoa muacutesica desliza para a
inarmoniardquo (traduccedilatildeo nossa136)
As observaccedilotildees analiacuteticas apontadas podem ao menos indicar a importacircncia do
desenvolvimento dos fluxos para a percepccedilatildeo de aspectos formais desta seccedilatildeo Uma anaacutelise
que fatiasse a seccedilatildeo em trechos natildeo daria conta das nuances de derivaccedilatildeo de um trecho a partir
de outro o que foi evidenciado por nossa anaacutelise Uma anaacutelise que observasse a
transformaccedilatildeo harmocircnico-tiacutembrica da seccedilatildeo veria possivelmente uma uacutenica estrutura
passando de um espectro harmocircnico para um inarmocircnico sem considerar o desmembramento
apontado Natildeo se trata de desmerecer estas importantes perspectivas antes de sublinhar a
singularidade da perspectiva aqui apresentada
42 STRANGE AUTUMN DE STEVEN KAZUO TAKASUGI
Strange Autumn (2003-4) eacute uma peccedila com forte caraacuteter de teatro musical para
recitante-vocalista percussionista amplificaccedilatildeo eletrocircnica e playback gravado Note-se nesta
descriccedilatildeo de instrumentaccedilatildeo copiada da partitura que a amplificaccedilatildeo eletrocircnica eacute encarada
como um elemento essencial em peacute de igualdade com os performers Isso se deve
principalmente agrave exploraccedilatildeo de sons de baixa projeccedilatildeo como microssons vocais (recitante-
vocalista) e sons de folhas de caderno (percussionista) Por consequecircncia o papel do
engenheiro de som a quem tambeacutem orientaccedilotildees satildeo dirigidas na partitura eacute de fundamental
importacircncia
A sincronizaccedilatildeo entre sons eletrocircnicos e instrumentais se daacute atraveacutes de um click track
que ambos os performers devem ouvir em seus fones-de-ouvido Esta faixa possui cliques a
135 Original ldquo- a harmonic spectrum upon F (with the fundamental missing) evolves through flowing melodic figures on the English horn highlighting successive components of the spectrardquo (ANDERSON 1996)
136 Original ldquothe music drifts towards inharmonyrdquo (ANDERSON 1996)
115
cada segundo bem como uma indicaccedilatildeo verbal a cada cinco segundos Eacute disponibilizada uma
versatildeo alternativa em que apenas a indicaccedilatildeo verbal estaacute presente (sem cliques)
No texto em que trata de uma performance da peccedila Takasugi menciona um sistema de
live electronics
Os live electronics foram projetados por Michael Acker da SWR Experimentalstudio em Freiburg Consistia em geral em um setup de alto-falantes de oito canais controlado pelo Matrix-Mixer do Experimentalstudio regulando a espacializaccedilatildeo o processamento ao vivo e o playback preacute-gravado incluindo espacializaccedilatildeo com o Halaphon o processador de efeitos Eventide Orville como um fragmentador fonecircmico patches de MaxMSP para siacutentese cruzada e patches jitter bem como uma unidade de reverberaccedilatildeo Vale a pena notar que a configuraccedilatildeo dos alto-falantes de oito canais tem duas sub-estruturas distintas a estrutura espacial completa de oito canais com oito faixas distintas e um a estrutura esteacutereo de dois canais que utiliza tanto os dois quanto os quatro alto-falantes frontais mais proacuteximos dos performers no palco com apenas duas faixas (esquerda e direita) distintas Estes dois espaccedilos satildeo designados como ldquotempestaderdquo (8-faixas) e ldquopalcordquo (2-faixas) respectivamente (TAKASUGI 2006 p 4 traduccedilatildeo nossa137)
Esta configuraccedilatildeo se refere a uma performance especiacutefica em que se apresenta um
modelo misto das opccedilotildees apresentadas em 21 A partitura e o material a que tivemos acesso
diretamente com o compositor entretanto apresenta uma versatildeo em que os sons eletrocircnicos
satildeo preacute-gravados em uma faixa em esteacutereo mas que deve ser projetada em sistema octafocircnico
ou no miacutenimo quadrafocircnico (canal da esquerda para alto-falantes agrave esquerda e canal da direita
para alto-falantes agrave direita)
O compositor explora os mundos do preacute-gravado e do ao vivo de maneira anaacuteloga a
um livro de poemas em ediccedilatildeo biliacutengue Em seu texto ele questiona se ldquouma traduccedilatildeo pode
ser mais lsquooriginalrsquo que a original isto eacute se pode possuir alguma qualidade que aparentemente
precede o originalrdquo (TAKASUGI 2006 p 5) Com tal metaacutefora Takasugi explora o preacute-
gravado e o ao vivo
Uma vez que tanto a recitaccedilatildeo ao vivo quanto a preacute-gravada satildeo transmitidas pelos mesmos alto-falantes haacute uma ambiguumlidade de que tudo ao vivo poderia ser preacute- gravado e tudo preacute-gravado poderia ser ao vivo Isso permite uma incompatibilidade
137 Original ldquoThe live electronics were designed by Michael Acker of SWRrsquos Experimentalstudio in Freiburg This consisted generally of an eight-channel speaker setup controlled by the Experimentalstudiorsquos MatrixshyMixer regulating spatialization live processing and pre-recorded playback including halaphon spatialization the Eventide Orville Effects Processor as a phonemic fragmenter MaxMSP patches for cross-synthesis and jitter patches as well as a reverberation unit It is worth noting that the eight-channel speaker setup has two distinct sub-structures the full eight-channel spatial structure with eight distinct tracks and a two-channel stereo structure that utilizes either the front two or front four speakers closest to the performers on stage with only two (left and right) distinct tracks These two spaces are designated as lsquostormrsquo (8-track) and lsquostagersquo (2-track) respectivelyrdquo (TAKASUGI 2006 p 4)
116
potencialmente catastroacutefica entre a localizaccedilatildeo do agente sinal ao vivo (aqui os laacutebios do recitante) e a atual localizaccedilatildeo percebida do sinal no espaccedilo (TAKASUGI 2006 p 5 traduccedilatildeo nossa138)
Esta ambiguidade que se estabelece faz com que natildeo haja uma divisatildeo expliacutecita entre o
mundo ao vivo e o preacute-gravado Alguns sons que foram preacute-gravados parecem vir do recitante
devido a uma sincronizaccedilatildeo labial Por outro lado o recitante deve executar sons vocais com
cortes exagerados proacuteprios dos sons preacute-gravados Assim os mundos preacute-gravado e ao vivo
espelham um ao outro assegurando nas palavras do compositor ldquouma confusatildeo consistenterdquo
(TAKASUGI 2006 p 5) Esta confusatildeo se impotildee agrave percepccedilatildeo de fluxos sonoros distintos
Natildeo eacute possiacutevel traccedilar uma linha clara que separe sons do palco (projetados tambeacutem pelos alto-
falantes) e sons preacute-gravados em fluxos separados pelo contraacuterio eacute em conjunto que eles
formam os fluxos Estes se colocam em relaccedilatildeo ao aspecto visual da performance E esta
relaccedilatildeo eacute o objeto desta anaacutelise Portanto natildeo nos interessa analisar o surgimento dos fluxos e
suas derivaccedilotildees - anaacutelise que provavelmente se mostraria frutiacutefera Nossa intenccedilatildeo eacute apontar
relaccedilotildees instaacuteveis que o fluxo visual estabelece com os fluxos sonoros
Neste contexto percebemos a possibilidade do uso das metaacuteforas de plano e de fluxo
como adequadas Percebemos planos distintos em relaccedilatildeo agrave distacircncia com que se apresentam
os sons mais perto ou mais longe Entretanto percebemos fluxos distintos quando somando
a este aspecto outras caracteriacutesticas sonoro-morfoloacutegicas satildeo consideradas especialmente seu
aspecto referencial sons vocais sons de objetos sons de mosca voando etc Por motivos
praacuteticos mais do que descritivos nomearemos os fluxos de acordo com estas referecircncias
Recorde o leitor que a percepccedilatildeo da fonte sonora que pode corresponder mais ou menos agrave
verdadeira fonte eacute um aspecto importante para a percepccedilatildeo de um fluxo auditivo
A peccedila baseia-se em poemas biliacutengues de Weiland Hoban e se divide em duas partes
Parte 1a Leaf-wort Parte 1b Blatt-word Parte 2 Interiors Der Wuumlrfel Die Zweibel (The
Etching) Nossa anaacutelise abordaraacute a parte 1b que vai dos 240 aos 450139 A Figura 35
apresenta um excerto da partitura do iniacutecio desta seccedilatildeo
138 Original ldquoSince both live and pre-recorded recitation transmit from the same speakers there is an ambiguity that everything live could be pre-recorded and everything pre-recorded could be live This allows for a potentially catastrophic mismatch between the location of the live signal agent (here the lips of the reciter) and the actual perceived location of the signal in the spacerdquo (TAKASUGI 2006 p 5)
139 O trecho compreende de cerca de 3rsquo30rdquo a cerca 5rsquo30rdquo do viacutedeo da performance de Mark Knoop Serge Vuille e Newton Armstrong utilizado para anaacutelise Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatch v= 1y_kunv2kUoampt= 132sgt
FIGURA 35 - INiCIO DA PARTE 1B DE STRANGE AUTUMN DE STEVEN KAZUO TAKASUGI
PART lb BLATT-WORDBlatt-word
2 - 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49Tape-Storm
Tape-Stage
Reciter
117
Perc
2 - 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59Tape-Storm
Tape-Stage
Reciter
Perc
FONTE TAKASUGI (2016)
Esta peccedila apresenta diversos modos de execuccedilatildeo para ambos os performers O texto
sobre linha tracejada para o recitante deve ser lido sem respiraccedilatildeo nenhum som vocal deve
ser ouvido exceto quando destacados com fundo cinza Neste caso as palavras satildeo faladas
normalmente O compositor tambeacutem utiliza a notaccedilatildeo (z) para identificar partes em que
nenhum som eacute emitido apenas eacute feita uma sincronizaccedilatildeo labial Da parte do performer este
modo eacute apenas visual
O princiacutepio arquitetural (WISHART 1996) desta seccedilatildeo apresenta duas aacutereas sonoro-
morfoloacutegicas cada uma delas prepondera em uma das duas partes em que se divide a seccedilatildeo A
primeira apresenta sons mais relacionados ao recitante (fragmentos da leitura entre outros)
enquanto que a segunda apresenta sons relacionados ao percussionista (sons de folhas) Haacute
uma transiccedilatildeo dos 347 aos 413 os movimentos do percussionista intensificam mas
continua a leitura do texto pelo recitante Apoacutes este periacuteodo o recitante congela ldquoFREEZErdquo
expressa a partitura isto eacute nenhuma atividade
Em relaccedilatildeo aos fluxos sonoros se apresenta o fluxo visual os performers no palco Na
(ldquoFLIES ldquo)word-leaf auf der Seite auf which das Wort-Blatt sich dreht indem ich die Seiten durchblaumltte-word-leaf auf der Seite auf which das Wort-Blatt sich dr ht indem ich die Seiten durchblaumltte-
(grasp top page only)
L H 1RH euromdash
Hold turned ( 76 1 77)Hoidcorner
LOu 11 1
Defaultresting
lsquoFLIESrdquoBlatt-word the leaf treeless on welchem the
(gray higlighted words are normally voiced and take precedence over other instructions)
Blatt-word the leaf treelessf articulate recitation lsquolsquowithout breathing rsquo
on welchem theDo not pop b s ps
andfrsquos
Computation BookldquoAs i f still conducting a Japanese tea ceremony rsquo RH
) 7 6 I 7 7(grasp top page only)
118
primeira parte da seccedilatildeo foram encontrados seis tipos de correspondecircncia entre o fluxo visual
do recitante140 e os fluxos sonoros
A accedilatildeo visual do recitante parece produzir uma reaccedilatildeo aural do(s) fluxo(s)
a) sons vocaisleitura 1 (perto)
b) sons de objetos
c) leitura 2 (longe)
d) sons vocaisleitura (perto) e sons de objetos
e) sons vocaisleitura 1 (perto) e leitura 2 (longe)
f) ou pode se apresentar independente de qualquer fluxo sonoro
O Quadro 4 apresenta uma ilustraccedilatildeo dos tipos de relaccedilatildeo entre fluxo visual e sonoro
no trecho analisado Esta figura natildeo representa uma linha do tempo mas dois momentos nos
140 Neste trecho a accedilatildeo visual do percussionista natildeo estaacute diretamente relacionada a nenhum fluxo sonoro
119
quais as relaccedilotildees expressas na tabela se apresentam em ordem diversa Por exemplo a relaccedilatildeo
c) acontece diversas vezes na primeira parte
A voz ao vivo do recitante se confunde com uma leitura preacute-gravada e pode ser
categorizada no fluxo leitura 2 (longe) Este fluxo eacute composto por ambos sons preacute-gravados e
sons ao vivo Identificar as relaccedilotildees destes dois componentes no interior do fluxo natildeo eacute tatildeo
importante para nossa anaacutelise Para nosso objetivo eacute suficiente designaacute-lo como um fluxo
sonoro e apontar a relaccedilatildeo ocasional com o visual
Note-se que a relaccedilatildeo entre os fluxos e sua presenccedilaausecircncia tecircm o potencial de
articular a forma da peccedila Neste trecho (parte 1b) podemos distinguir dois momentos O
primeiro apresenta uma relaccedilatildeo mais variaacutevel do visual do recitante com os diversos fluxos
sonoros No segundo haacute uma preponderacircncia da relaccedilatildeo entre o visual do recitante e a leitura
2 (longe) A atividade dos sons de folhas ausente no primeiro momento eacute outro aspecto que
colabora para tal subdivisatildeo Aleacutem disso no primeiro momento o percussionista apresenta
uma accedilatildeo visual que natildeo corresponde diretamente a som algum no segundo sua accedilatildeo visual
se relaciona por uma interaccedilatildeo inexata com estes sons de folha
Este efeito em que ora a accedilatildeo visual corresponde a um evento sonoro natural ou
convencionalmente ligado a ela ora a outro evento ora a nenhum evento o compositor
chama de duplicaccedilatildeo estranha (strange doubling) Efeito-ventriacuteloquo (ventriloque effect) e
sincronizaccedilatildeo labial (lip-sync) estatildeo associados a esta duplicaccedilatildeo
Ainda inerente agrave proacutepria premissa desse meio musical bifurcado [ao vivo e preacute- gravado] no entanto estaacute a ideia central de natildeo tocar embora fingindo tocar Consequentemente o deslocamento espacial do som virtual em relaccedilatildeo ao agente ao vivo propotildee um tipo de efeito de ventriloquismo E se esse conceito de sincronizaccedilatildeo labial eacute levado um passo adiante um gesto ao vivo que ambos fingem tocar e ainda tenha se tornado destacado da sua funccedilatildeo translativa convida o proacuteximo de nossos lsquoconvidados natildeo convidadosrsquo Este eacute o estranho momento de erro de traduccedilatildeo entre a sincronizaccedilatildeo labial ao vivo ou falsa duplicaccedilatildeo e sua reproduccedilatildeo preacute-gravada Entre uma desassociaccedilatildeo quase imperceptiacutevel e uma separaccedilatildeo grotescamente exagerada um vasto jogo de confusatildeo trazido pela ambiguidade de ldquoquem estaacute fazendo o quecircrdquo eacute criado Essa incerteza eacute ainda mais exacerbada por causa dos alto-falantes ocultos atraacutes do puacuteblico criando ainda outra camada de erro de percepccedilatildeo uma ainda mais estranha duplicaccedilatildeo embora intermitente e assim propositalmente imprevisiacutevel E no entanto a duplicaccedilatildeo remete agraves suas raiacutezes no acuacutemulo de interpretaccedilotildees e representaccedilotildees verticais O teatro eacute uma orquestraccedilatildeo alternativamente uma heterofonia que se projetou explicitamente no domiacutenio visual141 (TAKASUGI 2006 natildeo paginado)
141 Original ldquoStill inherent in the very premise of this bifurcated musical medium however is the core idea of not playing though pretending to play Consequently the spatial displacement of virtual sound and live agent proposes a ventriloquism-effect of sorts And if this concept of lip- syncing is taken one step further a live gesture that both pretends to play and yet has also become detached from its translative function solicits
120
O principal objetivo desta anaacutelise de Strange Autumn eacute argumentar sobre a
importacircncia do aspecto visual na muacutesica mista Natildeo como um aspecto teatral puramente - o
que nos levaria agrave outra pesquisa - mas como um aspecto inerente ao tocar executar haacute uma
relaccedilatildeo causal entre accedilatildeo visual e reaccedilatildeo aural que pode ser explorada criativamente a ponto
de pensarmos o fluxo visual mais ou menos independente do sonoro como um componente
da textura
43 M USICFOR SNARE DRUMAND COMPUTER DE CORT LIPPE
Entre as peccedilas elencadas no siacutetio do compositor Cort Lippe encontram-se um conjunto
para instrumento e computador e algumas peccedilas para instrumento e sons fixados em suporte
(tape) aleacutem de outras puramente instrumentais ou eletroacuacutesticas Para a maioria das peccedilas o
compositor disponibiliza notas de programa uma pequena explicaccedilatildeo sobre questotildees teacutecnicas
e esteacuteticas O conteuacutedo destas notas eacute interessante para a discussatildeo levantada em 23
especialmente no que concerne agrave diferenccedila com que expotildee questotildees de interaccedilatildeo entre os
meios instrumental e eletroacuacutestico Por isso antes de abordarmos Music fo r Snare Drum and
Computer (2007) apresentaremos uma reflexatildeo em torno das notas de programa de Cort
Lippe atentando para a diferenccedila entre duas categorias de peccedilas aquelas para instrumento e
computador e aquelas para instrumento e sons preacute-gravados
431 Instrumento(s) e computador e instrumento(s) e tape no trabalho de Cort Lippe
Para todas as peccedilas para instrumento e computador Lippe oferece uma explicaccedilatildeo
comum ainda que o texto seja diferente para cada uma As notas sobre a peccedila para caixa clara
e computador traz a seguinte observaccedilatildeo ldquoA relaccedilatildeo entre instrumento e computador se move
the next of our uninvited guest This is the strange moment of mistranslation between live lip-syncing or false doubling and its pre- recorded playback Between a just-noticeable decoupling and a grotesquely exaggerated departure a vast play of confusion brought on by the ambiguity of who is doing what is created This uncertainty is further exacerbated by hidden loudspeakers from the rear of the audience creating yet another layer of perceptual misdirection a further strange doubling though intermittent and thereby purposefully unpredictable And yet doubling refers back to its roots in the accumulation of vertical interpretations and representations Theater is an orchestration alternatively a heterophony which has projected itself explicitly into the visual domainrdquo (TAKASUGI 2006)
121
num continuum entre os polos de um solo extendido e um duordquo142 (LIPPE 2007) Nas notas
sobre a Music fo r Tenor Steel Pan and Computer (2011) haacute algumas outras informaccedilotildees
Musicalmente a parte do computador agraves vezes natildeo eacute separada da parte do pan e serve para amplificar o pan em muacuteltiplas dimensotildees e direccedilotildees enquanto que no outro extremo do continuum a parte do computador tem sua proacutepria voz musical independente Estas relaccedilotildees solosuo existem simultaneamente ainda tem um certo niacutevel de ambiguidade teacutecnica e musical Muito parecido com a performance de muacutesica de cacircmara em que a expressividade individual agraves vezes se destina a servir ao todo e em outros momentos tem uma influecircncia individual fundamental sobre todo o grupo [ensemble] as relaccedilotildees musicais entre o performer e o computador satildeo fundamentais para os resultados musicais (LIPPE 2011 traduccedilatildeo nossa143)
Nas notas sobre Music fo r Sextet and Computer (1993) expressa de outra maneira ldquoA
relaccedilatildeo entre a eletrocircnica e as partes instrumentais varia sobre um continuum entre texturas
fundidas (transcendentais) e separadas form ais)rdquo144 (LIPPE 1993) E acrescenta ldquoEnquanto
isso trabalhar com computadores me faz questionar a linha tecircnue que agraves vezes separa muacutesica
e efeitos especiaisrdquo145 (LIPPE 1993) Esta frase aponta para uma discussatildeo pertinente em
relaccedilatildeo aos processamentos eletrocircnicos em tempo real Ela estaacute relacionada com a tendecircncia
de que com estas ferramentas a relaccedilatildeo entre instrumento e sons eletroacuacutesticos se restrinja a
um efeito sobre o som instrumental de maneira semelhante ao efeito de reverberaccedilatildeo por
exemplo
O trabalho de Lippe com instrumentos e computador portanto se encontra na fronteira
destas duas categorias por um lado os efeitos especiais que estendem o som instrumental
gerando texturas fundidas por outro a ldquomuacutesicardquo isto eacute uma parte eletroacuacutestica
independente Mas entre estes dois ldquoterritoacuteriosrdquo existe um espaccedilo de fronteira de
ambiguidade um continuum entre estes dois polos no qual se move a relaccedilatildeo entre
instrumentos e sons eletroacuacutesticos Esta relaccedilatildeo pode ocupar tambeacutem dois pontos deste
142 Original ldquoThe instrumentcomputer relationship moves on a continuum between the poles of an extended solo and a duordquo (LIPPE 2007)
143 Original ldquoMusically the computer part is at times not separate from the pan part and serves to amplify the pan in multiple dimensions and directions while at the other extreme of the continuum the computer part has its own independent musical voice These soloduo relationships exist simultaneously yet have a certain level of musical and technical ambiguity Much like chamber music playing in which individual expressivity sometimes is meant to serve the whole and at other times has a fundamental individual influence on the entire ensemble the musical relationships between the performer and computer are fundamental to the musical resultsrdquo (LIPPE 2011)
144 Original ldquoThe relationship between the electronics and the instrumental parts ranges on a continuum between fused (transcendental) and separate (formal) texturesrdquo (LIPPE 1993)
145 Original ldquoMeanwhile working with computers keeps me questioning the fine line that sometimes separates music and special effectsrdquo (LIPPE 1993)
122
continuum Isto eacute a funccedilatildeo do computador pode ser estender o som instrumental e ao mesmo
tempo apresentar sua proacutepria ldquovoz musical independenterdquo
Nas peccedilas para instrumento e sons preacute-gravados as notas tambeacutem trazem um elemento
comum Na nota sobre Music fo r Harp and Tape (1990) escreve
A relaccedilatildeo instrumentomaacutequina eacute inteiramente simbioacutetica - o instrumento e a parte preacute-gravada satildeo iguais no diaacutelogo musical Agraves vezes uma parte [instrumental ou eletroacuacutestica] pode dominar mas na estrutura formal geral um duo estaacute impliacutecito146 (LIPPE 1990)
As notas da Music fo r Bass Clarinet and Tape (1989) trazem o seguinte
A seccedilatildeo de abertura eacute um diaacutelogo entre instrumento e sons preacute-gravados [tape] e eacuteseguida por uma seccedilatildeo na qual a parte do dos sons preacute-gravados domina Isto emtroca abre espaccedilo para um solo de clarineta baixo enquanto na quarta seccedilatildeo os sons preacute-gravados satildeo dominados pela clarineta Na seccedilatildeo final o instrumento e os sons preacute-gravados estatildeo novamente mais equilibrados - reminiscecircncia da seccedilatildeo de abertura147 (LIPPE 1989)
Enquanto que as notas sobre as peccedilas para instrumento e computador valem-se do eixo
dependecircncia-independecircncia entre estes aquelas sobre as peccedilas para instrumento e sons preacute-
gravados utilizam o eixo dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo para tratar da relaccedilatildeo entre estes Nas
primeiras natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo significativa com explicitar estruturas formais da peccedila ao
passo que nas segundas a explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre instrumento e sons preacute-gravados se daacute
atraveacutes de uma explicitaccedilatildeo das diferentes seccedilotildees Isto eacute a relaccedilatildeo entre a parte instrumental e
a parte preacute-gravada eacute um dos elementos responsaacuteveis pela articulaccedilatildeo de seccedilotildees na forma
geral da peccedila
Embora tendo feito esta diferenciaccedilatildeo no caso de Music fo r Harp and Tape a ideia de
sons processados em tempo real e sons preacute-gravados se confundem Isto porque o compositor
produziu a parte preacute-gravada a partir de processamento em tempo real
Isso levanta a hipoacutetese de que na praacutetica de Lippe as diferenccedilas esteacuteticas tenham
relaccedilatildeo com as diferenccedilas tecnoloacutegicas Embora independecircncia-dependecircncia e dominaccedilatildeo-
146 Original ldquoThe instrumentmachine relationship is entirely symbioticmdash the instrument and tape are equals in the musical dialogue At times one part may dominate but in the overall formal structure a duo is implicitrdquo (LIPPE 1990)
147 Original ldquoThe opening section is a dialogue between the instrument and tape and is followed by a section in which the tape part dominates This in turn gives way to a bass clarinet solo while in the fourth section the tape part is dominated by the clarinet In the final section the instrument and tape are again somewhat equal - reminiscent of the opening sectionrdquo (LIPPE 1989)
subordinaccedilatildeo possam se referir de maneira diferente agraves mesmas relaccedilotildees haacute uma diferenccedila
crucial na maneira com que o compositor expressa estas relaccedilotildees nestes dois tipos de teacutecnicas
As notas sobre as peccedilas para instrumento e sons preacute-gravados natildeo trazem a ideia de um solo
extendido A ideia mais proacutexima a este extremo do continuum seria a de relaccedilatildeo simbioacutetica
(Music fo r Harp and Tape) em que os dois meios se beneficiam Esta noccedilatildeo eacute trazida na peccedila
que se vale de processamento em tempo real para criar o tape As outras peccedilas para
instrumento e tape parecem partir de um contraste ainda maior que esta relaccedilatildeo simbioacutetica a
ideia eacute de diaacutelogo (portanto entre duas entidades diferentes)148
Se estas constataccedilotildees podem ser extrapoladas para a experiecircncia dos compositores em
geral podemos levantar a hipoacutetese de que trabalhando com processamentos em tempo real da
parte instrumental partimos da fusatildeo Isto eacute a relaccedilatildeo mais faacutecil a primeira que pode vir agrave
mente eacute que a parte eletroacuacutestica funcione como uma extensatildeo da parte instrumental
Evidentemente natildeo decidimos sempre pelo que primeiro nos vem agrave mente trata-se aqui de
apontar uma primeira tendecircncia Por outro lado o processo de composiccedilatildeo dos sons preacute-
gravados se daacute mais ou menos independentemente da parte instrumental A primeira ideia a
vir agrave mente pode natildeo ser a de uma extensatildeo da parte instrumental mas da instituiccedilatildeo de uma
parte paralela com conteuacutedo sonoro proacuteprio
432 Music fo r Snare Drum and Computer
Na peccedila para caixa clara e computador consideraremos dois fluxos um instrumental e
outro eletroacuacutestico Embora pudesse haver dois ou mais fluxos instrumentais ou
eletroacuacutesticos natildeo identificamos tal segregaccedilatildeo em nossa anaacutelise Nos deteremos nos seis
minutos iniciais da peccedila (duas primeiras paacuteginas da partitura) Um aspecto primordial em
nossa anaacutelise seraacute a noccedilatildeo de gatilho (WISHART 1996) e de causalidade (SMALLEY 1997)
A atividade do computador depende fortemente da atividade instrumental de modo que a
independecircncia que a parte eletroacuacutestica conquista aos poucos manteacutem ainda que agraves vezes
menos claramente a caracteriacutestica de gatilho em relaccedilatildeo agrave parte instrumental A parte
instrumental aciona o gatilho que daacute iniacutecio aos eventos eletrocircnicos Isso se deve agrave maneira
com que o compositor trabalha a parte do computador Nas notas de programa ele explica
123
148 Natildeo devemos descartar a hipoacutetese de que isso se deva a um diferente posicionamento esteacutetico relacionado mais agrave fase do compositor do que agrave tecnologia utilizada
124
A parte eletrocircnica foi criada nos Estuacutedios de Muacutesica Computacional Hiller da Universidade em Buffalo Nova York usando MaxMSP Tecnicamente o computador rastreia paracircmetros da performance da caixa clara e usa esta informaccedilatildeo para influenciar e manipular continuamente a saiacuteda sonora do computador por afetar diretamente a siacutentese digital e algoritmos composicionais em tempo real Os algoritmos de siacutentese digital focam no processamento espectral no domiacutenio da frequecircncia e inclui filtragem delayrealimentaccedilatildeo feedback] espacializaccedilatildeo fotografias timbrais [timbral snapshot] siacutentese cruzada reduccedilatildeoaumento de ruiacutedo e reordenaccedilatildeo de componentes de canais individuais de FFT149 (LIPPE 2007)
Um dos paracircmetros rastreados (tracked) mais evidentes eacute o envelope de amplitude da
performance da caixa
Na maior parte do tempo o iniacutecio dos eventos eletroacuacutesticos estaacute vinculado ao iniacutecio
do som instrumental Como apontado em 31 ldquose duas coisas estatildeo altamente correlacionadas
eacute altamente provaacutevel que emergiram de uma mesma fonte enquanto que se duas coisas satildeo
assincrocircnicas eacute provaacutevel que sejam associadas com dois objetos diferentesrdquo (SHEPARD
1999 p 117) Instrumento e sons eletrocircnicos estatildeo altamente correlacionados nesta peccedila A
correlaccedilatildeocoordenaccedilatildeo dos ataques eacute constante Isso representa uma forccedila em direccedilatildeo agrave
fusatildeo O recurso que diferenciaraacute os dois fluxos em direccedilatildeo ao contraste eacute o restante do
envelope (decaimento sustentaccedilatildeo e relaxamento)
O trecho analisado compreende 16 programas do sistema interativo com um uso
variado dos diferentes paracircmetros rastreados Uma investigaccedilatildeo do patch do Max poderia
trazer mais dados referentes ao rastreio e mapeamento de paracircmetros e isso por sua vez nos
proporcionaria pensar em outras relaccedilotildees musicais entre estes dois fluxos Entretanto como
ficaraacute evidente o eixo atividade-inatividade eacute um dos aspectos mais importantes da relaccedilatildeo
entre os fluxos e para abordaacute-lo focaremos sobre o paracircmetro do envelope Temos
consciecircncia de que esta posiccedilatildeo natildeo abrange uma seacuterie de aspectos relevantes da peccedila
(processamentos espectrais por exemplo) que estatildeo envolvidos em interessantes relaccedilotildees
entre os fluxos Entretanto o objetivo da nossa anaacutelise seraacute apenas demonstrar o aspecto mais
evidente da relaccedilatildeo entre eles
Num primeiro momento (programas 1 e 2) o envelope da parte eletrocircnica estaacute
correlacionado ao envelope da caixa Posteriormente o computador estende a sustentaccedilatildeo nos
149Original ldquoThe electronic part was created at the Hiller Computer Music Studios of the University at Buffalo New York using MaxMsp Technically the computer tracks parameters of the snare drum performance and uses this information to continuously influence and manipulate the computer sound output by directly affecting digital synthesis and compositional algorithms in real-time The digital synthesis algorithms focus on spectral processing in the frequency domain and include filtering delayfeedback spatialization timbral snapshots cross-synthesis noise reductionenhancement and component reordering of individual FFT channelsrdquo (LIPPE 2007)
programas 3 e 4 se tornando mais independente Entretanto mesmo quando alcanccedila uma
diferenciaccedilatildeo - ldquosua proacutepria voz musicalrdquo - por causa dos diferentes envelopes o programa
continua rastreando cada ataque e mudando algo (conteuacutedo espectral por exemplo) neste
fluxo eletrocircnico que continua
No programa 5 a parte eletrocircnica volta a um envelope semelhante ao da caixa se
aproximando da ideia de efeito novamente O programa 6 apresenta o mesmo material do 5
com o acreacutescimo de um material mais grave de envelope independente que surge nos
momentos de pausa da caixa O programa 7 apresenta novas sonoridades eletroacuacutesticas que
se tornam mais independentes no programa 8 Do programa 9 ao 16 acontece um crescendo
na parte eletroacuacutestica Uma intensificaccedilatildeo tanto da dinacircmica como tambeacutem da independecircncia
deste fluxo em relaccedilatildeo ao instrumental O programa 16 representa um primeiro aacutepice da peccedila
Assim embora neste trecho analisado a relaccedilatildeo entre os fluxos se mova no eixo
dependecircncia-independecircncia mantemos a sensaccedilatildeo de dependecircncia da parte eletroacuacutestica em
relaccedilatildeo agrave instrumental mesmo quando se distancia desta em diversos paracircmetros
Os fluxos apresentam o que foi abordado em 343 como modo de relacionamento de
atividade-inatividade (SMALLEY 1997) A relaccedilatildeo entre eles se daacute pela maior ou menor
atividade de cada fluxo Anotaccedilotildees sobre a pauta indicam a importacircncia deste paracircmetro
Abaixo (Quadro 5) listamos as indicaccedilotildees presentes no trecho em questatildeo Os programas 1 e
2 natildeo apresentam indicaccedilotildees sobre atividade por isso supomos uma atividade regular A
atividade da parte eletroacuacutestica estaacute apenas impliacutecita nestas indicaccedilotildees da partitura
entretanto na tabela abaixo indicamos sua atividade por comparaccedilatildeo atraveacutes da escuta da
gravaccedilatildeo disponiacutevel no siacutetio do compositor150
125
150 Temos tambeacutem na memoacuteria a performance desta peccedila pelo UM2UO que presenciamos no Simpoacutesio Muacutesica Nova 2018 em Curitiba
126
QUADRO 5 - ATIVIDADE DOS FLUXOS INSTRUMENTAL E ELETROACUacuteSTICO EM MUSIC FOR
SNAREDRUMAND COMPUTER DE CORT LIPPE (6 MINUTOS INICIAIS)
p Sons instrumentais(indicaccedilotildees de Lippe na partitura com exceccedilatildeo dos programas 1 e 2 que satildeo anaacutelises nossas)
Sons eletrocircnicos(anaacutelise nossa)
1 Atividade regular inativo mdashgt menos ativo
2 Atividade regular menos ativo
3 ldquopoco a poco mais ativordquo =
4 ldquosubito menos ativordquo ldquopermitir a sustentaccedilatildeo do computadorrdquo ldquoraquooco a poco menos ativo (deixar o computador desaparecer [fade|) mais ativo
5 ldquosubito mais ativordquo ldquopoco a poco mais ativo =
6 ldquosempre ativo (ouccedila o computador)rdquo =
7 ldquosempre ouccedila o computador) poco a poco menos ativo e pausas longasrdquo =
8 ldquo(sempre ouccedila o computador) poco a poco menos ativo e pausas longasrdquo mais ativo
9 ldquo(sempre ouccedila o computador) poco a poco menos ativo e pausas longasrdquo mais ativo
10 ldquonatildeo ativordquo mais ativo
11 ldquonatildeo ativordquo mais ativo
12 ldquopoco a poco levemente mais ativordquo mais ativo
13 ldquosempre poco a poco levemente mais ativordquo ldquo(ritmos algo regulares)rdquo =
14 ldquosempre poco a poco mais ativordquo ldquo(poco a poco ritmos mais regulares)rdquo =
15 ldquosempre poco a poco mais e mais ativordquo ldquo(poco a poco ritmos mais regulares)rdquo
=
16 ldquoatividade maacuteximardquo =P = programas
FONTE Lippe (2007) e anaacutelise do autor (2019)
A fim de visualizar esta relaccedilatildeo de outra maneira atribuiacutemos um valor relativo de
atividade sendo 0 = natildeo ativo e 5 = atividade maacutexima Obtemos assim uma representaccedilatildeo
visual da relaccedilatildeo entre os fluxos no modo de relacionamento atividade-inatividade
GRAacuteFICO 1 - ATIVIDADE DE DOIS FLUXOS (INSTRUMENTAL E ELETRO ACUacuteSTICO) EM MUSIC
FOR SNARE DRUMAND COMPUTER DE CORT LIPPE (6 MINUTOS INICIAIS)
5
4
bullS 3cd T3
o1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16
Programas
FONTE o autor (2019)
Sons instrumentais Sons eletrocircnicos
Ao observarmos o graacutefico natildeo eacute difiacutecil imaginarmos uma partitura tornando possiacutevel
assim fazer uma analogia com o movimento entre vozes distintas paralelo obliacutequo e
contraacuterio Em vez da direccedilatildeo dos movimentos intervalares de cada voz observamos a direccedilatildeo
dos movimentos no eixo atividade-inatividade de cada fluxo
44 IN MEMORJAM JO N HIGGINS DE ALVIN LUCIER
In Memoriam Jon Higgins (1984) para Clarineta em laacute e oscilador eacute a primeira peccedila
de Alvin Lucier para instrumento solo e gerador de ondas puras A peccedila consiste num
glissando ascendente de 20 minutos do oscilador que varre a tessitura da clarineta sofrendo
interferecircncia perioacutedica por esta O glissando ascende um semitom a cada 30 segundos O
clarinete toca uma nota durante um minuto (agraves vezes duas de 30 segundos) e pausa durante 30
segundos As frequecircncias fundamentais das notas do clarinete se encontram proacuteximas agraves
frequecircncias do oscilador e por isso causam o fenocircmeno de batimento Este fenocircmeno eacute criado
a partir da interaccedilatildeo entre sons da clarineta e sons do oscilador Assim nossa anaacutelise objetiva
demonstrar o desenvolvimento dos batimentos ao longo da peccedila e seus consequentes aspectos
interativos De um lado abordamos questotildees sonoro-morfoloacutegicas de interferecircncia e gesto de
outro as questotildees da performance fazendo uma analogia com sistemas interativos
Batimento eacute um fenocircmeno acuacutestico que ocorre quando duas ou mais frequecircncias estatildeo
proacuteximas Uma variaccedilatildeo perioacutedica de amplitude (batimento) eacute causada pelas interferecircncias
construtivas e destrutivas entre as duas ondas A frequecircncia de batimento eacute igual agrave diferenccedila
entre as duas frequecircncias (LOY 2006) Por exemplo o primeiro intervalo da peccedila eacute uma
segunda menor em que o clarinete toca um Reacute (cerca de 73 Hz) e o oscilador eacute um Doacute
sustenido (cerca de 69 Hz) portanto a frequecircncia de batimento eacute igual a cerca de 4 Hz A nota
da clarineta eacute constante natildeo muda sua frequecircncia fundamental A frequecircncia do oscilador
sobe ateacute alcanccedilar o uniacutessono com a clarineta diminuindo assim a diferenccedila entre as
frequecircncias e portanto diminuindo a frequecircncia de batimento que vai de 4 Hz para 0 Hz o
que poderiacuteamos chamar de um ritardando
127
128
FIGURA 36 - ILUSTRACcedilAO DE BATIMENTOS ACCELERANDO E RJTARDANDO NO COMECcedilO DE INMEMORIAM JON HIGGINS
A Clarinet(Sounds a minor third
lower than written)
Oscillator(Actual sounds) I
Intervals 1 u (-1)(semitones u = unison)__________________________________________________________________
X T ----------------------0 rdquo 30rdquo
tixT---------------- --- rdquo 1rsquo 1 rsquo 30rdquo
W W W VAAAWritardando accelerando
FONTE o autor (2019)
Dois paracircmetros satildeo diretamente associados nesta relaccedilatildeo (micro)intervalo e ritmo
Nas palavras do compositor ldquoO fenocircmeno do batimento acuacutestico a ideia de que o ritmo pode
ser criado pela afinaccedilatildeo Eu gosto muito desta ideiardquo151
Devemos considerar que um semitom natildeo eacute sempre o mesmo intervalo no domiacutenio da
frequecircncia Por exemplo em comparaccedilatildeo com o primeiro intervalo da peccedila o uacuteltimo tambeacutem
de um semitom eacute tambeacutem o intervalo entre o Doacute sustenido (554 Hz) e o Reacute (587 Hz) A
diferenccedila entre as frequecircncias no primeiro intervalo era de 4 Hz neste uacuteltimo eacute de 33 Hz
Assim para um ldquomesmordquo semitom diferentes frequecircncias de batimentos satildeo possiacuteveis Como
a peccedila tem uma direcionalidade contiacutenua para o agudo a diferenccedila entre as frequecircncias
aumenta conforme vatildeo para um registro mais agudo de maneira que eacute possiacutevel perceber um
accelerando ao longo da peccedila Assim outros dois paracircmetros satildeo associados ritmo e registro
Algumas caracteriacutesticas perceptuais dos batimentos satildeo importantes para entendermos
a complexidade que se instaura nestes materiais e processos superficialmente simples (1)
Quando a frequecircncia de batimento diferenccedila entre as duas frequecircncias eacute menor do que cerca
de 15 Hz percebemos elas como uma uacutenica - a meacutedia das duas frequecircncias com uma variaccedilatildeo
de amplitude os batimentos (LOY 2006 p 174) No primeiro intervalo por exemplo entre
69 Hz e 73 Hz ouvimos uma uacutenica frequecircncia de 71 Hz com um batimento de 4 Hz Neste
caso (ateacute cerca de 15 Hz) a frequecircncia de batimento eacute muito lenta para o percebermos como
altura percebemos suas oscilaccedilotildees individuais como ritmo (2) Quando a frequecircncia de
batimento eacute maior que cerca de 50 Hz as oscilaccedilotildees satildeo muito raacutepidas para serem percebidas
151 ldquoThe phenomenon of acoustical beating the idea that rhythm can be created by tuning I like that idea a lotrdquo Disponiacutevel em lthttpalvin-lucier-filmcomhigginshtmlgt Acesso em 12 jan 2019
129
individualmente assim percebemos as duas frequecircncias como duas alturas e a frequecircncia de
batimento pode ser interpretada como uma terceira altura chamada diference tone Entretanto
(3) se a frequecircncia de batimento estiver entre 15 Hz e 50 Hz aproximadamente152 por um lado
as oscilaccedilotildees satildeo muito raacutepidas para as ouvirmos como ritmo por outro as frequecircncias estatildeo
muito proacuteximas para distinguirmos duas alturas Assim nesta faixa os batimentos soam
rugosos O Graacutefico 2 mostra o desenvolvimento dos batimentos ao longo da peccedila de Lucier
Diferentemente da partitura o Graacutefico 2 demonstra importantes aspectos da percepccedilatildeo
da peccedila de Lucier especialmente o comportamento alternante entre os paradigmas de
batimento riacutetmico (ateacute 15 Hz) rugoso (entre 15 Hz e 50 Hz) e harmocircnico (acima de 50 Hz)
Devido ao direcionamento para o registro agudo e o consequente aumento da diferenccedila entre
as frequecircncias vemos a peccedila se desenvolver progressivamente partindo do primeiro
paradigma em direccedilatildeo a incorporaccedilatildeo mais substancial do segundo e do terceiro
GRAacuteFICO 2 - DESENVOLVIMENTO DOS BATIMENTOS EM IN MEMORIAM JON HIGGINS DE ALVIN LUCIER
FONTE Transcrito de (LUCIER 1987) e analisado pelo autor (2019)
O fenocircmeno de batimentos causado por interferecircncias de uma onda sobre outra eacute por
152 Esta faixa de 15 Hz a 50 Hz aproximadamente eacute chamada banda criacutetica ldquoFor a given frequency the critical band is the smallest band of frequencies around it which activate the same part of the Basilar Membranerdquo (TRUAX 1999 Critical Band) ldquoThe roughness only disappears at a frequency separation equal to the critical bandwidth (about one third of an octave)rdquo (LOY 2006 p180)
si soacute uma interaccedilatildeo entre as ondas Neste caso se reflete numa interaccedilatildeo entre os fluxos
sonoros do oscilador e da clarineta Um dos aspectos mais importantes desta interaccedilatildeo eacute a
fusatildeo e o contraste (MENEZES 2006) que neste caso devem ser interpretados de maneira
peculiar devido aos efeitos psicoacuacutesticos envolvidos Apresentamos abaixo uma escala da
fusatildeo ao contraste presente nesta peccedila
bull Uniacutessono similaridade causando o estado de duacutevida Existe a transferecircncia de
caracteriacutestica espectral (frequecircncia fundamental) Natildeo se trata de uma similaridade
absoluta pois alguns fatos corroboram com a distinccedilatildeo clarineta natildeo eacute amplificada e
estaacute separada espacialmente do alto-falante por exemplo
bull Batimentos ateacute 15 Hz a fusatildeo acontece por dois fatores a frequecircncia ouvida eacute apenas
uma (a meacutedia entre as duas fundamentais) e instrumento e oscilador apresentam o
mesmo envelope de amplitude - o proacuteprio efeito de batimento
bull Batimentos de 15 a 50 Hz estaacutegio confuso com rugosidade na qual a condiccedilatildeo de
duacutevida proacutepria da fusatildeo estaacute se dissolvendo
bull Quando a diferenccedila entre fundamentais eacute maior que 50 Hz existe fusatildeo e relativo
contraste As duas frequecircncias estatildeo afastadas o suficiente para diferenciarmos a
clarineta do oscilador (relativo contraste) poreacutem as duas frequecircncias causam na escuta
no miacutenimo uma terceira frequecircncia (difference tone) O estado de duacutevida se estabelece
pois natildeo sabemos se esta frequecircncia ldquofantasmardquo vem da clarineta ou do oscilador De
fato nem de um nem de outro mas da interaccedilatildeo entre os dois
bull Pausa da clarineta contraste
Esta abordagem sobre fusatildeo e contraste explica a importacircncia do uniacutessono como o
momento de maior integraccedilatildeo um ponto convergente no qual o estado de duacutevida em relaccedilatildeo agrave
fonte sonora eacute evidente Como explica Menezes (2006 p 387) ldquoAinda que de forma alguma
hegemocircnico o estado de duacutevida traduz-se como momento supremo da interaccedilatildeordquo
No momento da performance o aspecto da integraccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo das fontes
sonoras eacute afetado pela disposiccedilatildeo do instrumentista e do alto-falante no palco O uacutenico alto-
falante que toca a parte do oscilador deve ficar agrave direita e o clarinetista agrave esquerda Esta
separaccedilatildeo ajuda a diferenciarmos as duas fontes e os dois fluxos sonoros E torna ainda mais
interessante os momentos de fusatildeo devido agrave estranha impossibilidade de se fazer a
diferenciaccedilatildeo em uma situaccedilatildeo em que isso seria simples
O ritmo em In Memoriam Jon Higgins natildeo surge por accedilatildeo individual de cada parte
130
(clarineta e oscilador) mas pela sua interaccedilatildeo Enquanto o glissando do oscilador eacute
continuamente ascendente as notas da clarineta satildeo estaacuteveis se manteacutem por 30 ou 60
segundos Assim a cada entrada da clarineta daacute-se iniacutecio a um gesto que consiste em
movimentos obliacutequos As duas frequecircncias se aproximam e se afastam causando batimentos
em accelerando e em rallentando respectivamente Estes movimentos podem ser
visualizados no Graacutefico 2 Da esquerda para a direita a linha preta ascendente representa um
accelerando enquanto que a descendente representa um rallentando Aleacutem disso eacute possiacutevel
perceber uma progressatildeo geral destes gestos Haacute uma expansatildeo da diferenccedila entre as
frequecircncias em Hz embora em semitons esta distacircncia se repete (maior intervalo eacute de 3
semitons) o que significa um aumento da frequecircncia maior dos gestos de accelerando e
rallentando
Estes gestos de batimentos estatildeo inseridos dentro do enorme glissando que sobe de
maneira quase imperceptiacutevel Assim podemos entender uma estrutura hieraacuterquica em que o
glissando de 20 minutos compreende uma estrutura de um niacutevel superior high-level
(SMALLEY 1997) enquanto que as interferecircncias perioacutedicas podem ser entendidas como de
um niacutevel inferior (low-level) A interaccedilatildeo acontece tambeacutem entre estes dois niacuteveis da estrutura
hieraacuterquica O niacutevel inferior altera o niacutevel superior Novamente estamos diante de uma
relaccedilatildeo de causalidade
Gestos como este do oscilador desafiam a percepccedilatildeo devido a sua dimensatildeo seu lento
desenvolvimento Como aponta Smalley (1997 p 113-114) ldquo[] haacute uma mudanccedila de foco
da escuta - quanto mais lento o iacutempeto gestual direto tanto mais o ouvido procura se
concentrar em detalhes internos []rdquo153 Podemos dizer assim que a peccedila de Lucier nos
convida para concentrarmos nos detalhes internos do som tais como variaccedilatildeo de amplitude
variaccedilatildeo micro-intervalar e fenocircmeno de difference tone
Os aspectos tecnoloacutegicos e praacuteticos da performance tambeacutem fomentam reflexotildees A
parte do oscilador eacute definida previamente e eacute difundida por um uacutenico alto-falante no momento
da performance Neste sentido a peccedila funciona como uma peccedila para instrumento e sons
fixados em suporte O performer precisa sincronizar com a parte do oscilador para isso
Lucier admite o uso de um afinador cromaacutetico para que o performer possa localizar a
frequecircncia do oscilador Embora entendamos este aspecto fixo do oscilador eacute preciso
considerar que o fenocircmeno de batimentos eacute um processo acuacutestico que acontece sobre ele e eacute
153Original ldquo[] there is a change of listening focus - the slower the direct gestural impetus the more the ear seeks to concentrate on inner details []rdquo (SMALLEY 1997 p 113-114)
131
controlado pelo clarinetista em tempo real Eacute um tipo de sistema interativo De acordo com
Rowe (1993) os sistemas interativos de computaccedilatildeo musical ldquosatildeo aqueles cujo
comportamento muda em resposta a uma entrada musicalrdquo (natildeo paginado) Estas mudanccedilas de
comportamento acontecem devido a uma programaccedilatildeo que estabelece ldquoleisrdquo relaccedilotildees entre a
entrada musical e a saiacuteda musical Na peccedila de Lucier satildeo as leis (psico)acuacutesticas que
estabelecem essa relaccedilatildeo Assim a parte do oscilador ldquomudardquo em resposta agraves notas da
clarineta de acordo com uma relaccedilatildeo acuacutestica presente no fenocircmeno de batimentos
(interferecircncias construtivas e destrutivas) Poderiacuteamos considerar tal configuraccedilatildeo de relaccedilotildees
um sistema interativo acuacutestico
Em conclusatildeo foi possiacutevel nesta anaacutelise identificar certas relaccedilotildees referentes a
interaccedilatildeo tanto como uma questatildeo sonoro-morfoloacutegica (batimentos fusatildeo e contraste gestos
interativos) quanto tecnoloacutegica da performance (relaccedilatildeo do performer com o oscilador preacute-
gravado) Abaixo sumarizamos as relaccedilotildees identificadas
a) Relaccedilatildeo direta entre intervalos e ritmo (frequecircncia de batimento) produzida pelo
fenocircmeno de batimentos
b) Relaccedilatildeo entre registro e frequecircncia de batimento quanto mais para o agudo o registro
mais acelerados satildeo os batimentos
c) Relaccedilatildeo de causalidade os gestos da clarineta causam mudanccedilas no enorme gesto do
oscilador Esta relaccedilatildeo natildeo eacute apenas sonoro-morfoloacutegica mas tambeacutem tecnoloacutegica
praacutetica da performance
Identificar este tipo de relaccedilotildees parece ser um caminho metodoloacutegico importante para
futuros estudos sobre interaccedilatildeo Elas abrem espaccedilo para um estudo natildeo limitado apenas agraves
relaccedilotildees entre performer e tecnologia mas apto para considerar relaccedilotildees em outros acircmbitos
como o sonoro e acuacutestico (aqui abordados) o visual (abordado em 42) o espacial o teatral
entre outros
132
133
5 SOBRE MEU PROCESSO COMPOSICIONAL
Em 2012 meu primeiro ano no curso de Bacharelado em Muacutesica - Composiccedilatildeo na
cidade de Pelotas - RS acontecia o primeiro Festival Latino-americano de Muacutesica
Contemporacircnea de Pelotas organizado pelo NuMC - Nuacutecleo de Muacutesica Contemporacircnea da
UFPel Na ocasiatildeo ouvi pela primeira vez o que se pode denominar muacutesica eletroacuacutestica
mista Entre as peccedilas deste gecircnero estavam Mosaic (2010) de Joatildeo Pedro Oliveira e Infinito
Silecircncio (2012) de Rogeacuterio Constante Levo a experiecircncia de presenciar a performance
destas peccedilas como uma das mais significativas no contato inicial com o universo da muacutesica de
concerto dos seacuteculos XX e XXI Os sons traccedilavam caminhos diversos entre os alto-falantes o
instrumento e minha imaginaccedilatildeo Se apresentava a mim talvez inconsciente disso no
momento um universo sonoro interativo de constituiccedilatildeo e dissoluccedilatildeo de camadas distintas
de interferecircncias e relaccedilotildees complexas entre materiais Some-se a isto o aspecto (in)visiacutevel da
performance visiacutevel e fiacutesica nos movimentos do performer imaginada ou referenciada quanto
aos sons acusmaacuteticos
Minha produccedilatildeo composicional durante a graduaccedilatildeo apresentou um direcionamento agrave
exploraccedilatildeo de tais caracteriacutesticas De fato uma de minhas primeiras peccedilas a ser apresentada
foi uma peccedila para piano e sons eletrocircnicos em que jaacute apareciam iniciativas natildeo eacute preciso
dizer ingecircnuas de fusatildeo e interaccedilatildeo entre gestos dos dois meios (instrumental e
eletroacuacutestico) Estas caracteriacutesticas interativas migravam sem esforccedilo para o pensamento
puramente instrumental o que seria facilmente demonstraacutevel em outras composiccedilotildees como
Ensaio I (2016) Peccedila para acordeatildeo e sons eletrocircnicos (2016) e tambeacutem em Dois
movimentos para acordeatildeo e piano (2016) que gerou o trabalho de conclusatildeo de curso
(TUCHTENHAGEN 2017) Neste uacuteltimo caso busquei na semioacutetica greimasiana154 modelos
teoacutericos para entender os materiais seu desenvolvimento suas relaccedilotildees e interaccedilotildees tanto no
processo de composiccedilatildeo quanto na anaacutelise posterior Um exemplo simples que ilustra o
interesse em questatildeo eacute aquele em que haacute uma transferecircncia de notas do acordeatildeo para o piano
(Figura 37) Esta transferecircncia acontece de tal forma que o piano interrompe a nota sustentada
do acordeatildeo para fazer soar a sua Este interromper eacute um exemplo destas caracteriacutesticas
interativas em que estava e continuo interessado aleacutem deste interferecircncias causalidades e
outras relaccedilotildees se manifestaram posteriormente
154 Aleacutem da teoria de Algirdas Julien Greimas baseei-me em trabalhos mais recentes como A Muacutesica de Hermeto Pascoal Uma abordagem Semioacutetica (ARRAIS 2006)
134
FIGURA 37 - COMPASSOS 77-78 DE DOIS MOVIMENTOS PARA ACORDEAtildeO E PIANO (2016)Grave (J = c 3 2 )
FONTE Tuchtenhagen (2017)
O interesse por estas caracteriacutesticas interativas continuou na submissatildeo do projeto de
mestrado nesta instituiccedilatildeo Inicialmente o projeto propunha estabelecer relaccedilotildees parameacutetricas
entre sons instrumentais e eletroacuacutesticos por meio de um sistema interativo Natildeo se dirigia
apenas ao estudo dos recursos tecnoloacutegicos do sistema mas tambeacutem agraves relaccedilotildees sonoras visto
que determinado paracircmetro instrumental estaria por meio de uma regra mais ou menos
variaacutevel relacionado a um paracircmetro eletroacuacutestico155 Esta proposta inicial foi modificada no
sentido de tratar menos das questotildees tecnoloacutegicas e mais das sonoro-morfoloacutegicas Atraveacutes da
revisatildeo bibliograacutefica expandiram-se as possibilidades para aleacutem de relaccedilotildees parameacutetricas e
para aleacutem da mencionada interrupccedilatildeo Destas expansotildees destaca-se a possibilidade de
agrupamentos dos eventos sonoros em fluxos distintos que interagem entre si
Durante o mestrado mantive a atividade composicional em paralelo ao trabalho
teoacuterico e analiacutetico Esta dinacircmica de pesquisa possibilitou experimentar os aspectos teoacutericos
na praacutetica composicional bem como levantar a partir da praacutetica questionamentos e
explicaccedilotildees teoacutericas Assim a composiccedilatildeo pode ser vista como parte do meacutetodo de pesquisa
teoacuterica e a teoria pesquisada como parte do meacutetodo de composiccedilatildeo
155 Tal ideia existe em Reacutepons (1984) de Pierre Boulez em que a velocidade de espacializaccedilatildeo de determinado som processado estaacute diretamente relacionada agrave intensidade com que determinado solista executa sua parte Satildeo seis solistas o som de cada um eacute processado e a espacializaccedilatildeo deste som processado acontece de acordo com esta regra
135
Este relato pessoal tem a funccedilatildeo de frisar que a pesquisa estaacute imbricada com o
pesquisador Ela se direciona a meus interesses artiacutesticos desde a graduaccedilatildeo e se deu em
paralelo agrave minha praacutetica composicional Trata-se de uma abordagem pessoal Possivelmente
ela encontre ressonacircncia em outros em seus proacuteprios interesses artiacutesticos e teoacutericos
O olhar sobre as peccedilas de outros compositores cumpriu o objetivo de elucidar a
maneira como eacute possiacutevel perceber as relaccedilotildees entre as partes portanto num niacutevel esteacutesico
(NATTIEZ 1990) Jaacute o olhar analiacutetico sobre minhas composiccedilotildees pretende apontar no niacutevel
poieacutetico como lidei com as relaccedilotildees entre fluxos sonoros156
51 CHAtildeO DE OUTONO
Chatildeo de Outono157 eacute uma peccedila para flauta e sons eletrocircnicos composta no contexto da
disciplina Toacutepicos em Composiccedilatildeo e Esteacutetica da poacutes-graduaccedilatildeo em muacutesica da UFPR O
processo criativo abrangeu um periacuteodo no acircmbito da disciplina (de abril a julho de 2017) com
performance ao final do semestre158 e outro periacuteodo (de revisatildeo) de fevereiro a abril de 2018
com performance no concerto Muacutesica Contemporacircnea Brasileira no dia 11 de abril de 2018
na Sala de Atos do SESC Paccedilo da Liberdade O processo criativo se deu em colaboraccedilatildeo com
a flautista e colega da disciplina (doutoranda) Valentina Daldegan Durante o primeiro
periacuteodo eu participava tambeacutem de aulas de composiccedilatildeo com o professor Clayton Mamedes
numa disciplina da graduaccedilatildeo onde pude trabalhar esta peccedila Meu orientador tambeacutem
acompanhava o processo de composiccedilatildeo e aleacutem disso o professor Mauriacutecio Dottori fez
alguns comentaacuterios que foram importantes na revisatildeo da peccedila Este contexto evidencia o
caraacuteter interpessoal do processo criativo
A peccedila estaacute baseada no poema homocircnimo de Mario Quintana
Chatildeo de outono
Ao longo das pedras irregulares do calccedilamento passam ventando umas pobres folhas amarelas em pacircnico perseguidas de perto por um convite de enterro sinistro
156 Os anexos mencionados no texto a seguir estatildeo disponiacuteveis em lthttpsdrivegooglecomopen id=1Fyt 16u4m5OwtHVfz 1BkxWkOx104OoNyWgt
157 Gravaccedilatildeo da estreacuteia disponiacutevel em lthttpssounddoudcomdaviraubachchaodeoutonogtViacutedeo da estreacuteia disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=l3-ULyfGk2kgtGravaccedilatildeo da segunda performance disponiacutevel em lthttpssounddoudcomdaviraubachchao-de-outonogt Acesso em 18 jan 2019
158 Concerto de encerramento da disciplina Electroacoustic live (or dead) realizado no dia 18 de julho de 2018 no TeUNI - Teatro Experimental da UFPR
136
tatalando aos pulos cada vez mais perto as duas asas tarjadas de negro (QUINTANA 2012 p 77)
A primeira intenccedilatildeo composicional era utilizar a sonoridade da leitura do poema como
um material Eu jaacute havia explorado algo semelhante no experimento Meu Trecho Predileto
(2016) para violatildeo e acordeatildeo sobre outro poema de Mario Quintana Cada nota ou acorde eacute
vinculado a uma siacutelaba Os performers natildeo devem ler o texto em voz alta (exceto ao final)
mas tocam conforme seria a leitura ou seja a leitura mental do texto determina ritmo
acentuaccedilatildeo nuances de dinacircmica e andamento (ver Figura 38) Reutilizar esta teacutecnica numa
peccedila para flauta trazia um interesse a mais pela possibilidade de os sons de fala e de flauta
serem mesclados Eles seriam dois instrumentos associados produzindo som a partir do
mesmo focirclego Isto direcionou o processo para uma exploraccedilatildeo da fronteira entre fala e flauta
FIGURA 38 - EXEMPLO DA UTILIZACcedilAtildeO DO TEXTO COMO SUBSTITUTO DE UMA ESCRITA DE FIGURAS RIacuteTMICAS EM MEU TRECHO PREDILETO
FONTE O autor (2016)
Uma segunda intenccedilatildeo se relacionava mais diretamente ao tema desta pesquisa em sua
concepccedilatildeo inicial construir um sistema interativo em que se estabelecesse relaccedilotildees de
interdependecircncia entre paracircmetros da parte instrumental e eletroacuacutestica Isto foi feito a partir
do sinal da flauta captado ao vivo rastreando (tracking) sua amplitude A fim de facilitar a
diferenciaccedilatildeo de amplitude e tambeacutem por um efeito visual optei por utilizar aleacutem do
microfone de bocal um microfone de controle relativamente afastado da flautista A partitura
indica movimentos de aproximaccedilatildeo e afastamento em relaccedilatildeo a este microfone causando
respectivamente maior e menor amplitude no sinal de aacuteudio Tal sistema foi realizado no
software PureData159 (Pd) utilizando o objeto [env~]
Ainda outra intenccedilatildeo dizia respeito agrave estabilidade morfoloacutegica dos elementos (COSTA
2009)160 Buscava um equiliacutebrio entre elementos estritos e flexiacuteveis na composiccedilatildeo
Diferentemente de trabalhar com uma meacutetrica fixa ou mesmo com a utilizaccedilatildeo de metrocircnomo
para o performer - o que jaacute havia feito na Peccedila para acordeatildeo e sons eletrocircnicos (2016) dei
preferecircncia por uma maior liberdade de interpretaccedilatildeo Desta forma o sistema foi concebido
com cinco programas que necessitam ser sucessivamente ativados durante a performance
Cada um deles tem um comportamento em relaccedilatildeo agrave amplitude do sinal da flauta e natildeo haacute a
necessidade de sincronizar eventos exceto na troca dos programas Aleacutem disso a proacutepria
exploraccedilatildeo do texto se apresentou como um oacutetimo meio de desenvolver elementos especiacuteficos
mas sem a necessidade de serem escritos de uma maneira estrita Isto eacute o tempo de leitura e
outros paracircmetros associados a ela poderiam variar de uma performance para outra Ainda
assim o uso do texto garante certa invariacircncia161 nas proporccedilotildees riacutetmicas e acentuaccedilotildees
possibilitando inclusive o tratamento motiacutevico de um fragmento textual (ver Figura 39)
137
FIGURA 39 - VARIACcedilAtildeO MOTIVICA A PARTIR DE UM FRAGMENTO TEXTUAL (SISTEMAS 2 E 3)
~PPP
FONTE O autor (2018)
A exploraccedilatildeo da fronteira entre a fala e a flauta comeccedilou com anotaccedilotildees neste modelo
de uma nota para cada siacutelaba Inicialmente exploramos (compositor e inteacuterprete) basicamente
trecircs modos de articular fala e flauta (1) voz falada normalmente (2) voz sussurrada (ambas
em posiccedilatildeo ordinaacuteria e tentando fazer soar a flauta com a fala) e (3) leitura mental (usada em
159 Patch disponiacutevel em lthttpsdrivegooglecomopenid=1Fyt16u4m5OwtHVfz1BkxWkOx104OoNyWgt160 Este interesse em particular foi explorado num trabalho apresentado no XXVIII Congresso da ANPPOM
(TUCHTENHAGEN DALDEGAN 2018)161 Costa resume ldquotudo aquilo que a cada apresentaccedilatildeo da peccedila deve do ponto de vista do projeto
composicional levando-se em consideraccedilatildeo todas as suas etapas repetir-se de alguma maneira requer o que chamo de estrateacutegia de invariacircnciardquo (COSTA 2009 p48)
Meu Trecho Predileto Figura 38) Verificamos nos encontros iniciais que a fala normal
ativava pouco o som da flauta devido agrave diferenccedila destas duas atividades Combinar a voz com
sopro direcionado significava deformar a voz ou relegar a flauta a uma muito pequena
ressonacircncia Em ambos os casos acontecia de haver um bloqueio do ar nas consoantes
oclusivas (por exemplo ldquomrdquo ou ldquonrdquo) Aleacutem disso a voz predominava de maneira geral
(especialmente em intensidade) sobre a flauta Por estes motivos flauta e voz falada se
distanciavam eram fluxos completamente distintos Embora fosse uma opccedilatildeo natildeo nos
pareceu uma relaccedilatildeo sonoro-morfoloacutegica interessante no momento devido agrave intenccedilatildeo de
explorar a fronteira a ambiguidade entre elas Com a voz sussurrada chegaacutevamos mais
proacuteximos desta intenccedilatildeo As consoantes oclusivas continuavam incontornaacuteveis mas havia um
maior equiliacutebrio entre a intensidade do sussurro e a da flauta daiacute decorreu o direcionamento
de privilegiar a voz sussurrada Uma soluccedilatildeo encontrada para a voz falada foi utilizaacute-la
cobrindo o bocal mesma posiccedilatildeo da teacutecnica tongue ram162 o que tornava possiacutevel a
alternacircncia com esta teacutecnica de maneira suacutebita A utilizaccedilatildeo do tongue ram combinada aos
cliques de chaves foi uma sugestatildeo da inteacuterprete Ela executava a teacutecnica rapidamente como
na peccedila Come Vengono Prodotti Gli Incantesimi (1985) de Salvatore Sciarrino a qual havia
tocado Outra abordagem foi a de uma fala com as vogais omitidas permanecendo apenas as
consoantes que teriam a funccedilatildeo de ataque do som da flauta Neste modo a compreensatildeo do
texto eacute dificultada Isto era positivo jaacute que a fala estava sendo descontextualizada de sua
funccedilatildeo ordinaacuteria de articulaccedilatildeo da linguagem verbal para um lugar sonoro agraves vezes ocupando
um entre-lugar
Deste processo de exploraccedilatildeo inicial resultaram cinco modos de articulaccedilatildeo entre fala
e flauta
1) leitura mental os sons satildeo tocados no tempo e ritmo como seriam lidas as siacutelabas
para a qual se notou o texto em estilo tachado
2) voz sussurrada omitindo as vogais quase ininteligiacutevel as consoantes satildeo responsaacuteveis
pela articulaccedilatildeo dos sons da flauta para a qual se utilizou a notaccedilatildeo do texto com as
vogais em subscrito
3) voz sussurrada eacute executada com forccedila ofegante para que ative tambeacutem os sons da
flauta para a qual se utilizou a notaccedilatildeo do texto sublinhado
4) voz falada dentro do bocal para a qual se notou o texto dentro de caixas
162 Tongue ram teacutecnica executada cobrindo o porta-laacutebio da flauta com a boca e fechando rapidamente apassagem de ar com a liacutengua gerando assim um ataque percussivo
138
139
5) voz entoada sem altura determinada notada com cabeccedila de nota quadrada fora da
pauta163
Existe uma gama de possibilidades em relaccedilatildeo agrave leitura do texto Isso trazia a
preocupaccedilatildeo de que outros inteacuterpretes optassem por maneiras de ler o texto natildeo previstas ou
desconectadas com a proposta Nos ensaios era possiacutevel ler o texto com a inteacuterprete para
oferecer alguma referecircncia Na partitura optei por definir uma escala de termos referentes ao
andamento da fala que vai de lento (15 a 3 siacutelabas por segundo) a mais raacutepido possiacutevel
A parte eletroacuacutestica foi pensada a partir destas sonoridades da fala Basicamente dois
materiais satildeo articulados A um chamo assovios a outro folhas A confecccedilatildeo do som de
assovios teve o seguinte processo
a) gravaccedilatildeo tanto por mim quanto por Valentina deste assovio com som de ldquossrdquo com
pouco fluxo de ar e com a boca em forma de ldquourdquo
b) filtragem O plugin ReaFir do software Reaper foi usado com a funccedilatildeo de subtrair
perfis construiacutedos com a proacutepria amostra
c) montagens com os sons resultantes do processamento sobreposiccedilatildeo transposiccedilatildeo
reversatildeo entre outras
A confecccedilatildeo do som de folhas passou por
a) gravaccedilatildeo do poema sussurrado por mim e por Valentina
b) gravaccedilatildeo do poema sussurrado por Valentina na flauta - ativando o reacute mais grave da
flauta em doacute
c) gravaccedilatildeo de cliques de chaves e tongue-ram
d) processamento (granulaccedilatildeo) destas gravaccedilotildees no software Cecilia5164
e) montagens com os sons resultantes sobreposiccedilatildeo transposiccedilatildeo reversatildeo entre outras
Assovios e folhas se constituem por ateacute cinco faixas165 resultantes deste processo de
confecccedilatildeo que ficam tocando em loop embora agraves vezes sem soar A amplitude da flauta
determina qual deles soaraacute Se acima de determinado valor limite ( treshold) soam as folhas
por exemplo se abaixo deste valor soam os assovios Este eacute o funcionamento do primeiro
programa Um esquema dos programas pode ser visto na Figura 41 extraiacuteda da partitura
Consideraremos dois fluxos da macrotextura nesta peccedila instrumental (flauta-fala) e
163 Para mais detalhes da notaccedilatildeo confira a partitura (Anexo 2)164 Cecilia5 eacute um software livre mantido pelaAjax Sound Studio httpajaxsoundstudiocomsoftware165 Dentro da pasta geral do patch (ldquochaodeoutono_raubachrdquo) haacute uma pasta ldquoaudiordquo onde estatildeo as faixas que
compotildeem os sons de assovios e de folhas bem como outras que satildeo executadas durante a peccedila O leitor poderaacute ouviacute-las se desejar Eacute tambeacutem possiacutevel simular a performance com o patch Isto pode ser feito com o proacuteprio microfone do computador Neste caso utilize fones-de-ouvido para evitar a realimentaccedilatildeo
eletroacuacutestico Cada um deles apresenta componentes que tambeacutem podem ser abordados
como fluxos Por exemplo a parte eletroacuacutestica dos assovios eacute constituiacuteda por cinco faixas
distintas entretanto estas faixas natildeo podem ser percebidas individualmente com facilidade
Elas formam uma microtextura O mesmo acontece com as folhas
Tambeacutem na parte instrumental eacute possiacutevel identificar dois principais componentes
internos flauta e fala No pensamento composicional a diferenciaccedilatildeo deles eacute relativamente
clara Haacute uma notaccedilatildeo para a fala e outra para a flauta Entretanto postos em accedilatildeo
simultaneamente estes dois componentes internos que satildeo tambeacutem fluxos apresentam forte
interdependecircncia o que gera uma ambiguidade uma confusatildeo sobre o que ou quando eacute flauta
e o que ou quando eacute fala166
Aleacutem dos ataques tradicionais satildeo os ataques da fala que geram som na flauta Haacute
uma ambiguidade na percepccedilatildeo de um ataque tradicional e um ataque proveniente do texto
No primeiro trecho da Figura 39 baseado no texto ldquoao longo das pedrasrdquo as siacutelabas ldquoaordquo e
ldquolon-rdquo devem ser apenas mentalizadas A flauta eacute executada por ataques ordinaacuterios com som
eoacutelio Entretanto nas siacutelabas seguintes - ldquo-go das pe-drasrdquo o modo de fala eacute sussurrado mas
omitindo as vogais Das primeiras duas siacutelabas (ldquoao lon-rdquo) para as seguintes (ldquo-go das peshy
drasrdquo) haacute uma mudanccedila de foco da percepccedilatildeo que passa do som da flauta para o som da fala
embora apoacutes a entrada da fala ainda soe a flauta Haacute um deslocamento na percepccedilatildeo de qual
dos fluxos estaacute em primeiro plano Tendo em mente a terceira maneira de abordar a ideia de
primeiro plano e plano de fundo (p 81) a fala por seu caraacuteter fortemente indicativo costuma
se sobrepor a qualquer outro som A Figura 40 ilustra estes deslocamentos A curva sobre as
duas linhas da tabela (flauta e fala) indica em linhas gerais qual dos dois estaacute em primeiro
plano
140
166 Eacute possiacutevel que haja um pensamento em fluxos na composiccedilatildeo isto eacute como estrateacutegia composicional que natildeo se faz tatildeo claro ou mesmo natildeo eacute identificaacutevel na escuta Entretanto imagino ser recomendaacutevel questionar os resultados sonoros desta estrateacutegia Haacute o risco de o compositor cair num formalismo em que pense que as estrateacutegias composicionais justificam a muacutesica quando como acreditamos soacute a experiecircncia subjetiva da escuta o faraacute
141
FIGURA 40 - DESLOCAMENTOS DE FLAUTA E FALA PARA O PRIMEIRO PLANO EM CHAO DE OUTONO
Flauta
Indica qual dos fluxos estaacute em 1deg plano
6
iacute
tempo de falanormal__
igtv $ t|laquo
c ^ j W W W V V V W
T(bisbigliando)
gt bull(]Ao l0n - g0 das peP mP
^ ---frullato
dr_
(Sistema 2)ppp
t | v (bull )
mp
(Sistema 12)
FONTE O autor (2019)
142
Os cinco programas do patch satildeo brevemente explicados na Figura 41
FIGURA 41 - RELACcedilOtildeES PRESENTES NOS PROGRAMAS DO PATCH
A parte eletroacuacutestica estaacute dividida em 5 programas que devem ser ativados de acordo com as indicaccedilotildees na partitura Os programas constituem-se basicamente de sons preacute-gravados que tecircm sua amplitude e espacializaccedilatildeo determinadas em tempo real por uma relaccedilatildeo com a amplitude da flauta captada pelo microfone de controle Dessa forma pode-se resumir o comportamento dos programas da seguinte maneira
P1 Flauta EletroacuacutesticaP ^ sons de ldquoassoviosrdquo
^ sons de ldquofolhasrdquo
P2 Flauta EletroacuacutesticaP ^ sons de ldquofolhasrdquo
f ^ sons de ldquoassoviosrdquo
P3 Flauta EletroacuacutesticaP ^ nada
f ^ sons de tongue-ramNeste programa tambeacutem haacute uma camada eletroacuacutestica independente (sons como ldquorasgosrdquo) que determina aespacializaccedilatildeo da flauta
Eletroacuacutestica FlautaP ^ espacializaccedilatildeo estaacutetica
^ espacializaccedilatildeo em movimento
P4 Eletroacuacutestica independente sons de ldquofolhasrdquo
P5 Eletroacuacutestica independente sons de ldquoassoviosrdquo
FONTE O autor (2018)
Todos os programas tecircm tambeacutem uma faixa que soa no momento de sua ativaccedilatildeo
independentemente da amplitude da flauta e se relaciona interage com a nota tocada pela
flauta no momento167 Estas notas satildeo marcas estruturais da peccedila Inicialmente havia a
intenccedilatildeo de rastreaacute-las a fim de ativar os programas automaticamente Este recurso foi
experimentado e relativamente bem-sucedido Seria uma vantagem caso algum inteacuterprete
quisesse executar a peccedila sem o auxiacutelio de um performer especiacutefico para a difusatildeo
eletroacuacutestica Entretanto no caso de nossas performances eu necessitava estar presente para
167 Na pasta ldquoaudiordquo satildeo as seguintes faixas programa 2 ldquonoteFwavrdquo 3 ldquonoteDwavrdquo 4 ldquonoteP4wavrdquo 5 ldquoassobiofinalwavrdquo
143
diversas configuraccedilotildees do aparato eletroacuacutestico Por isso decidi eliminar tal recurso do patch
e assumir a funccedilatildeo de trocar os programas
511 Programa 1
A peccedila comeccedila com um crescendo da parte eletroacuacutestica solo (assovios)
evidenciando sua independecircncia em relaccedilatildeo agrave flauta-fala - assim nomearemos o conjunto que
representa o meio instrumental na peccedila A flauta-fala comeccedila incorporando o mesmo assovio
preacute-gravado com o qual funde e a medida que apresenta atividade com intensidade suficiente
para disparar o ldquogatilhordquo no patch a parte eletroacuacutestica responde com atividades de folhas
Aleacutem disso a espacializaccedilatildeo168 destas folhas acontece tambeacutem numa relaccedilatildeo com a amplitude
da flauta-fala quanto mais forte mais distante do centro da sala soam as folhas Este
movimento de afastamento das folhas eacute progressivo foi suavizado utilizando o objeto [line]
do Pd Os assovios por outro lado estatildeo fixos em sua localizaccedilatildeo de projeccedilatildeo na sala
Os materiais da parte instrumental tambeacutem podem ser agrupados nestas duas
categorias (assovio e folhas) e podem fundir ou contrastar com a parte eletroacuacutestica Ambos
fusatildeo e contraste estatildeo longe de serem absolutos O Quadro 6 apresenta possiacuteveis relaccedilotildees de
fusatildeo e contraste baseadas na Morfologia da interaccedilatildeo de Menezes (2006)
QUADRO 6 - FUSAtildeO E CONTRASTE NO PRIMEIRO PROGRAMA DE CHAtildeO DE OUTONO
Fusatildeo relativa Contraste relativo
Fluxo instrumental Assovios Folhas Folhas Assovios
Fluxo eletroacuacutestica Assovios Folhas Assovios Folhas
FONTE o autor (2019)
Quando a atividade da flauta-fala apresenta um material semelhante ao das folhas
acontece relativa fusatildeo Podemos enquadrar esta interaccedilatildeo na categoria de Bachrataacute (2010)
interaccedilatildeo por reproduccedilatildeo tiacutembrica ldquoo timbre do gesto eletroacuacutestico eacute um tipo de reproduccedilatildeo
do timbre do instrumento (usando sons instrumentais gravados pouco manipulados)rdquo
(BACHRATAacute 2010 p 167 traduccedilatildeo nossa169)
Por vezes um material de flauta-fala semelhante aos assovios devido a sua
168 O patch estaacute programado com duas opccedilotildees de difusatildeo esteacutereo e quadrafocircnico169 Original ldquothe timbre of electroacoustic gesture is a kind of reproduction of the timbre of the instrument
(using slightly manipulated recorded instrumental sound)rdquo (BACHRATAacute 2010 p 167)
intensidade dispararaacute sons de folhas causando relativo contraste Assim embora haja uma
regra invariaacutevel que relaciona a intensidade da flauta-fala com o material eletroacuacutestico isso
natildeo significa invariabilidade no eixo fusatildeo-contraste entre estes dois fluxos
Assim no programa 1 apresenta-se um fluxo independente (assovios) embora a
flauta-fala dialogue com ele atraveacutes do som de ldquossrdquo e outro dependente e homogecircneo com a
flauta o das folhas (ver representaccedilatildeo destas relaccedilotildees no Quadro 7) Eacute importante tambeacutem
notar que a flauta-fala e as folhas apresentam um caraacuteter fortemente gestual (incluindo o gesto
visual de aproximaccedilatildeo e afastamento do microfone) enquanto que o fluxo assovios eacute
primariamente textural170
512 Programa 2
O segundo programa inverte a relaccedilatildeo da intensidade da flauta-fala com a resposta
eletroacuacutestica Quando a intensidade da flauta ultrapassa o valor limite natildeo satildeo os sons de
folhas mas os de assovios que vecircm a tona A mesma relaccedilatildeo inversa afeta a espacializaccedilatildeo
Natildeo satildeo os mesmos sons do primeiro programa haacute uma variaccedilatildeo - especialmente a utilizaccedilatildeo
de um harmonizador sobre as amostras do primeiro
Na relaccedilatildeo entre fala e flauta haacute um tensionamento Busquei especialmente no
momento de revisatildeo apoacutes a primeira performance explorar mais a relaccedilatildeo entre o som do ldquorrdquo
como em ldquoperseguidasrdquo com o frullato da flauta O terceiro excerto da Figura 40 representa
um exemplo desta exploraccedilatildeo Haacute tambeacutem a inserccedilatildeo discreta do material de tongue-rams
associado a cliques de chaves Este eacute o principal material durante a accedilatildeo do programa
seguinte
513 Programa 3
Nos programas anteriores a intensidade da flauta-fala afetava o que soava (materiais)
e como soavam (espacializaccedilatildeo) os sons eletroacuacutesticos No terceiro programa o inverso
acontece a intensidade dos sons eletroacuacutesticos preacute-gravados afeta a espacializaccedilatildeo da flauta-
fala Um novo material eletroacuacutestico eacute incorporado o chamaremos rasgos171 Ele soa como
novidade ainda que seja proveniente de processamento dos sons de cliques de chaves jaacute
170 Gesto e textura (SMALLEY 1997) foram abordados em 332171 Na pasta ldquoaudiordquo do patch eacute a faixa ldquoclicks3wavrdquo
144
utilizados O patch rastreia a amplitude destes rasgos e quando esta ultrapassa determinado
valor limite o som da flauta-fala ao vivo eacute espacializado pela sala tal qual satildeo as folhas no
primeiro programa
Outro novo material eletroacuacutestico eacute incorporado neste programa Ele eacute composto por
sons processados (granulaccedilotildees e transposiccedilotildees para o grave) de tongue-rams Este material
vecircm a tona pelo mesmo processo de rastreamento da amplitude da flauta configurando
assim uma relaccedilatildeo de gatilho (WISHART 1996)
Os tongue-rams incorporados esparsamente jaacute no segundo programa preponderam
neste terceiro e alternam com a voz falada e tambeacutem com uma atividade mais idiomaacutetica da
flauta Isto significa uma alternacircncia entre modos de execuccedilatildeo cobrindo o bocal e posiccedilatildeo
ordinaacuteria que carrega uma forccedila visual Assim os gestos que surgem nesta alternacircncia se datildeo
neste ldquoabrir e fecharrdquo do som da flauta-fala expandindo e diminuindo o registro espectral
como um filtro em associaccedilatildeo com o gesto visual Quase como a alternacircncia entre a
percepccedilatildeo do som dentro drsquoaacutegua e fora dela
514 Programa 4 e 5
O quarto e o quinto programa natildeo apresentam relaccedilotildees parameacutetricas com o sinal da
flauta-fala O quarto foi inserido apoacutes a revisatildeo dura poucos segundos e serve como uma
conexatildeo entre o terceiro e o final Ele se constitui basicamente pelo que estamos chamando de
fo lhas Por outro lado o quinto programa consiste em sons de assovios semelhantes aos
iniciais
Uma ilustraccedilatildeo da relaccedilatildeo entre a parte instrumental e a eletroacuacutestica durante a peccedila
pode ser vista na Figura 41
145
146
QUADRO 7 - RELACcedilOtildeES ENTRE FLUXOS SONOROS EM CHAO DE OUTONO
03O75
O03OultDs
P1
Assovios
F2 F3 F4 F5
Folhas
RasgosTongue-ramsAmostra de iniacutecio de cada programa
o o
Flauta-fala S mdash J - S mdash J- AEspacializaccedilatildeo da flauta-fala
A seta indica uma relaccedilatildeo de ldquogatilhordquo (WISHART 1996) indica uma reaccedilatildeo de outro fluxo agravequele do qual ela parte A ausecircncia dela significa independecircncia dos fluxos
FONTE o autor (2019)
Eacute preciso lembrar que as relaccedilotildees de gatilho (WISHART 1996) que acontecem a partir
do rastreamento da amplitude da flauta-fala satildeo muitas vezes associadas ao movimento
corporal da performer ao se aproximar do microfone de controle Esta eacute uma exploraccedilatildeo
incipiente do aspecto visual mencionado em 35 O movimento estabelece uma relaccedilatildeo com a
resposta eletroacuacutestica o que oferece uma referecircncia gestual para o resultado sonoro Ele estaacute
notado na partitura atraveacutes dos ciacuterculos com setas (ver Figura 39) No viacutedeo da primeira
performance172 eacute possiacutevel ver como foi esta primeira experiecircncia Em alguns momentos
mesmo sem se aproximar a resposta eletroacuacutestica surgia Isto natildeo era um problema estava
previsto Entretanto em alguns momentos a indicaccedilatildeo de se aproximar estava sobre um
material em dinacircmica piano (som de ldquossrdquo) que natildeo ativava a resposta eletroacuacutestica Neste
caso avaliando posteriormente como ouvinte haacute a tendecircncia de continuar escutando o
resultado eletroacuacutestico como decorrente desta aproximaccedilatildeo ainda que seja na praacutetica
completamente independente
Natildeo houve muito rigor na aplicaccedilatildeo deste rastreamento de amplitude o que foi
intencional Todas as variaacuteveis assim satildeo flexibilidades da performance tipo do microfone
distacircncia do microfone movimento da performer valor limite (threshold) do patch Natildeo era
desejado que a cada gesto da flauta-fala houvesse uma reaccedilatildeo eletroacuacutestica Esta reaccedilatildeo era
( )
172 Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=l3-ULyfGk2kgt Acesso em 18 jan 2019
147
e de fato foi imprevisiacutevel
52 NASCER PEDRA MORRER NUVEM
Ergui a gola do sobretudo desci a aba do chapeacuteu ateacute perto dos olhos e troquei as dependecircncias do hotel pelas da cerraccedilatildeo Satolep estava apropriadamente decorada para minha festa solitaacuteria As coisas geometrizadas pelo frio mostravam-se volaacuteteis Linhas rigorosas agrave luz do dia eram agora ausecircncia de contornos Fazer trinta anos eraperder-me no nevoeiro tendo em vista a concretude da cidade ou o contraacuterio Umcatildeo flutuava atraacutes de uma charrete que passava O granito do meio-fio corria ao meu lado agraves vezes reluzente em sua umidade agraves vezes dissipado em vapor luminoso um outro catildeo de pedra e de nuvem catildeo de alguma mitologia condenado a nascer e morrer indefinidamente Nascer pedra e morrer nuvem Nascer nuvem e morrer pedra Trinta anos Soprei velinhas imaginaacuterias e minha alma revuloteou diante de mim (RAMIL 2008)
A peccedila Nascer pedra morrer nuvem (2018) para violatildeo e sons eletrocircnicos foi
composta para o violonista Eric Moreira no periacuteodo de maio a novembro de 2018 quando foi
estreada no SESC Paccedilo da Liberdade em Curitiba-PR no dia 22 O texto de Ramil (2008)
descreve imagens que tenho internalizadas e que ocupavam minha mente enquanto
compunha Trata-se de um reflexo da cidade de Pelotas (Satolep) Reencontrei este texto
durante o processo composicional Ele natildeo cumpriu funccedilatildeo estrateacutegica na composiccedilatildeo apenas
foi um pensamento presente que deu nome a peccedila
Dois aspectos direcionaram o processo criativo O primeiro se refere ao tema desta
pesquisa o interesse de explorar a textura em fluxos distintos e aspectos ambiacuteguos (fusatildeo
dissoluccedilatildeo contraste etc) e interativos (causalidades gatilhos) da relaccedilatildeo entre eles O
segundo era de ordem praacutetica trabalhar com sons fixados em suporte a fim de facilitar
possiacuteveis futuras performances Uma vez que natildeo eacute necessaacuterio um conhecimento de softwares
especiacuteficos o proacuteprio performer pode dar iniacutecio aos sons eletroacuacutesticos Aleacutem disso a
utilizaccedilatildeo de uma projeccedilatildeo em esteacutereo tambeacutem facilita a montagem da performance
Em conversas preacutevias agrave composiccedilatildeo o violonista jaacute havia demonstrado certa
preferecircncia por um tipo de sincronizaccedilatildeo como o da peccedila Synchronisms no 10 de Mario
Davidovsky Esta peccedila utiliza sons fixados em suporte e se vale de deixas eletroacuacutesticas que
facilitam entradas e sincronizaccedilotildees precisas do violonista A peccedila de Davidovsky foi uma
referecircncia importante neste processo criativo
O iniacutecio de Nascer pedra morrer nuvem apresenta quatro tipos de materiais
a) harmocircnicos naturais
148
b) campanella teacutecnica de instrumentos de cordas pinccediladas em que se utilizam cordas
soltas em movimentos escalares fazendo com que estas ressoem mais como pequenos
sinos (significado do termo em italiano)
c) frequecircncia contiacutenua foi composta a partir da gravaccedilatildeo de uma corda solta do violatildeo
omitindo-se o ataque justapondo repeticcedilotildees (com crossfades) da parte sustentada
(sustain) transpondo e criando glissandos posteriormente
d) sons percussivos compostos a partir de gravaccedilotildees do ataque ordinaacuterio (unha pinccedilando
a corda abafada por exemplo) e outros materiais percussivos173
A frequecircncia contiacutenua e a atividade do violatildeo (campanella e harmocircnicos) podem ser
percebidas como fluxos que se relacionam por similaridade de frequecircncias fundindo quando
alcanccedilam frequecircncias muito proacuteximas como na nota Reacute dos compassos 9 e 10 (ver Figura 42)
Os sons percussivos compotildeem um fluxo mais complexo pois tratam-se de sons mais
heterogecircneos entre si No momento inicial este fluxo eacute composto por eventos esparsos174 Ele
apresenta pouca relaccedilatildeo com os outros exceto por sincronias ocasionais175 e relaccedilatildeo tiacutembrica
com os ataques do violatildeo
FIGURA 42 - QUATRO MATERIAIS DE NASCER PEDRA MORRER NUVEM (COMPASSOS 8 a 10)
harmocircnicos
I frequecircncia contiacutenua
sonspercussivos
Fonte O autor 2019
O direcionamento de partir desta aacuterea sonoro-morfoloacutegica com preponderacircncia de
sons harmocircnicos (campanella harmocircnicos frequecircncia contiacutenua) para outra com maior
presenccedila de sons inarmocircnicos176 (ataques percussivos e outros materiais) movia a composiccedilatildeo
173 O compasso 56 apresenta alguns dos materiais usados na composiccedilatildeo destes sons percussivos eletroacuacutesticos (ver Figura 44) Trata-se da combinaccedilatildeo de duas atividades (1) percutir com polpa dos dedos da md ldquoaleatoriamenterdquo sobre o tampo o mais raacutepido possiacutevel e (2) rasgueado de me com cordas abafadas pela md com vaacuterios dedos em defasagem e usando as 6 cordas (som percussivo granular)
174 Eles natildeo estatildeo completamente indicados na partitura optei por indicar apenas os eventos que representassem um recurso de sincronia deixas para o inteacuterprete
175 Estes foram os principais sons usados como deixas (ver som percussivo no compasso 9 - Figura 42)176 A distinccedilatildeo de harmonicidade e inarmonicidade eacute abordada por Smalley (1997 p 120)
(atividade composicional) Um recurso para executar tal direcionamento foi utilizar sons
ldquoresiduaisrdquo inerentes agrave execuccedilatildeo do violatildeo o mencionado ataque da unha pinccedilando a corda e
aleacutem disso o ruiacutedo dos dedos deslizando sobre as cordas quando muda-se a posiccedilatildeo177 Este
uacuteltimo eacute incorporado progressivamente ateacute que alcanccedila um momento de transiccedilatildeo (compasso s
40 a 55 ver Figura 43) Neste momento haacute uma baixa atividade harmocircnica que permanece
constante e ao mesmo tempo uma intensificaccedilatildeo dos sons provenientes do deslizar dos dedos
sobre as cordas que por praticidade chamaremos ruiacutedo das cordas
FIGURA 43 - COMPASSOS 39 a 54 TRANSICcedilAtildeO EM NASCER PEDRA MORRER NUVEM (2018)
149
39
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UJJUJJUJJUJJUMUM-
FONTE O autor (2018)
Tal transiccedilatildeo evidencia o princiacutepio arquitetural (WISHART 1996) Haacute uma
diminuiccedilatildeo da presenccedila harmocircnica diminuiccedilatildeo da duraccedilatildeo dos arpejos do violatildeo de sua
177 Estes sons satildeo notados com uma cabeccedila de nota em forma de barra (ver Figura 43)
u
intensidade (dinacircmica) e da frequecircncia contiacutenua na parte eletroacuacutestica Por outro lado haacute
um aumento da duraccedilatildeo do ruiacutedo das cordas No comeccedilo desta transiccedilatildeo este ruiacutedo eacute
executado apenas pelo violatildeo Posteriormente a parte eletroacuacutestica repete multiplica
expande esses sons ateacute que preencham toda a textura Se utilizarmos a categoria atividade-
inatividade (SMALLEY 1997) nesta anaacutelise veremos um movimento contraacuterio entre
atividade dos fluxos harmocircnicos (descendente) e atividade dos fluxos inarmocircnicos
(ascendente)
No momento seguinte a esta transiccedilatildeo os sons percussivos satildeo explorados tambeacutem na
parte do violatildeo Satildeo combinadas duas teacutecnicas (1) percutir com polpa dos dedos da matildeo
direita (m d) ldquoaleatoriamenterdquo sobre o tampo o mais raacutepido possiacutevel (4 na Figura 44) e (2)
rasgueado de matildeo esquerda (m e) com cordas abafadas pela md com vaacuterios dedos em
defasagem e usando as 6 cordas (som percussivo granular) (5 na Figura 44) Somados aos
sons percussivos eletroacuacutesticos estes sons instrumentais fundem num uacutenico fluxo que
chamaremos de pedras Esta fusatildeo natildeo decorre tanto da similaridade espectral quanto da
sincronizaccedilatildeo de iniacutecio e teacutermino da atividade
FIGURA 44 - COMPASSOS 55 a 60 TREcircS FLUXOS
150
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FONTE O autor (2018)
E
3
E
Na parte eletroacuacutestica utilizei tambeacutem a gravaccedilatildeo de sons das cordas tocadas acima
da pestana do violatildeo Este material apresenta similaridade de ataque com as teacutecnicas
executadas pelo violatildeo neste momento entretanto apresentam conteuacutedos frequenciais (notas
agudas) ausentes nestas teacutecnicas A confusatildeo desta fusatildeo (quem estaacute fazendo o que) eacute
acentuada pela imprevisibilidade do resultado sonoro das teacutecnicas mencionadas e a alta
densidade de pequenos eventos tanto do meio instrumental quanto do eletroacuacutestico Este
fluxo de pedras existe independentemente daquele do ruiacutedo das cordas e interage com ele em
relaccedilotildees de causalidade (SMALLEY 1997)
A causalidade eacute evidente pois as pedras datildeo iniacutecio aos ruiacutedos das cordas (compasso
56) e datildeo fim a eles (compasso 58) como se o ligassem e desligassem (ver Figura 44) Mas
esta relaccedilatildeo eacute tambeacutem flexibilizada no compasso 60 quando o fluxo de pedras natildeo interfere
sobre o fluxo de ruiacutedo das cordas (ver Figura 44) Enquanto estes dois fluxos interagem haacute
concorrentemente um fluxo de harmocircnicos independente resquiacutecios da seccedilatildeo passada eou
pressaacutegios da seccedilatildeo final
A uacuteltima seccedilatildeo que aliaacutes foi a primeira a ser composta retoma a aacuterea sonoro-
morfoloacutegica harmocircnica inicial sem a presenccedila das interrupccedilotildees de sons percussivos Estaacute
presente um fluxo muito discreto de estalos (ver picos isolados no sonograma da Figura 45)
que natildeo afetam a preponderacircncia dos sons harmocircnicos Os materiais que compotildeem esta aacuterea
harmocircnica satildeo diferentes dos iniciais natildeo haacute a continuidade da semicolcheia haacute uma
presenccedila maior de harmocircnicos naturais e a parte eletroacuacutestica natildeo apresenta glissandos
amplos
Nesta seccedilatildeo os fluxos estatildeo estruturados em vozes A voz composta por notas tocadas
ordinariamente eacute a mais linear embora haja certa confusatildeo devido agrave proximidade da voz de
harmocircnicos e alguns cruzamentos entre elas A parte eletrocircnica daacute corpo agrave ressonacircncia de
algumas notas soando ora como uma extensatildeo da parte instrumental ora como uma
frequecircncia independente (ver Figura 45)
151
152
FONTE O autor (2019)
O final da peccedila propotildee uma interaccedilatildeo que estava latente nesta relaccedilatildeo entre os
materiais Tanto no comeccedilo quanto nesta seccedilatildeo final a parte eletroacuacutestica eacute articulada num
niacutevel microtonal com frequecircncias muito proacuteximas e glissandos Ao final busquei explicitar
este aspecto utilizando o bend no violatildeo com repeticcedilatildeo de notas e fazendo algo semelhante na
frequecircncia contiacutenua da parte eletroacuacutestica Dando mais tempo para o efeito neste final
tornou-se mais faacutecil perceber os batimentos como em In Memoriam Jon Higgins de Lucier
(analisada em 44) A Figura 46 apresenta os uacuteltimos compassos da peccedila
FIGURA 46 - COMPASSOS 89 a 93 BATIMENTOS
V
E
| nTN TN
TNesperar fim do tape
t e
Fonte O autor (2019)
Resumidamente o princiacutepio arquitetural (WISHART 1996) da peccedila consiste no
percurso ilustrado no Quadro 8 Apesar de a representaccedilatildeo lembrar outras que apresentamos
ela natildeo se refere aos fluxos e suas relaccedilotildees Trata-se de um mapeamento da presenccedila das
aacutereas sonoro-morfoloacutegicas da peccedila Estas podem estar presentes em fluxos quaisquer embora
estejamos conscientes de que nesta peccedila trabalhamos com os materiais em fluxos distintos e
isso faz com que haja certa coincidecircncia entre aacutereas sonoro-morfoloacutegicas e fluxos
153
QUADRO 8 - REPRESENTACcedilAtildeO DO PRINCIacutePIO ARQUITETURAL DE NASCER PEDRA MORRER NUshyVEM
Compassos 1 a 52 53 a 64 65 a 93
Qriir bomiAcirciiirrr bulluUiio iiqiiiiuiiiCcedilUo
Sons inarmocircnicos mdash _ _ _
Fonte O autor (2019)
Tal articulaccedilatildeo entre aacutereas sonoro-morfoloacutegicas eacute de fato uma articulaccedilatildeo formal Ela
evidencia a mencionada previsatildeo de Varegravese de que o timbre poderia se tornar ldquoum agente de
delineamento como as diferentes cores num mapa separando diferentes aacutereas e uma parte
integral da formardquo (VARESE apud SIMMS 1996 p 112)
154
6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Nosso trabalho comeccedilou separando e aproximando dois acircmbitos distintos tecnoloacutegico
e sonoro-morfoloacutegico Interaccedilatildeo na muacutesica mista se refere agraves relaccedilotildees entre um performer e
um aparato tecnoloacutegico e ao mesmo tempo se refere agraves relaccedilotildees que os sons instrumentais e
ou eletroacuacutesticos mantecircm uns com os outros178 O caso de um sistema interativo que capta
um paracircmetro da performance e estabelece uma relaccedilatildeo direta com uma transformaccedilatildeo do
som captado eacute um exemplo no qual os acircmbitos distinguidos se impactam mutuamente Um
procedimento tecnoloacutegico de interaccedilatildeo daacute origem a relaccedilotildees sonoras interativas e estas
possivelmente suscitaram aquele Entretanto os impactos de um acircmbito sobre outro natildeo satildeo
generalizaacuteveis Uma mesma relaccedilatildeo sonora interativa pode existir ainda que natildeo se valha de
uma tecnologia interativa
Tendo em vista a impossibilidade de afirmaccedilotildees categoacutericas quanto agraves
correspondecircncias entre estes dois acircmbitos a questatildeo da preferecircncia por esta ou aquela teacutecnica
mais ou menos interativa (tecnologicamente) permanece particular O compositor poderaacute
seguir recomendaccedilotildees de outro mais experiente ou experimentar por si mesmo as vantagens e
desvantagens das teacutecnicas e tecnologias De nossa perspectiva esta querela dos tempos eacute
particular a cada compositor e a cada processo criativo A teacutecnica em tempo diferido oferece
ao compositor facilidade para modelar detalhar e introduzir contraste nos materiais
eletroacuacutesticos as teacutecnicas em tempo real oferecem facilidade para criar materiais
eletroacuacutesticos que fundem com e expandem o som instrumental Contudo ambos os
objetivos podem ser alcanccedilados com ambas as teacutecnicas As duas teacutecnicas se confundem
quando o sistema interativo em tempo real se vale de materiais preacute-gravados ou quando os
sons preacute-gravados mudam em tempo real por alguma accedilatildeo instrumental (por exemplo In
memorian Jon Higgins de Alvin Lucier) Em minha atividade composicional considero que
um sistema interativo que se valha de sons preacute-gravados aleacutem do som captado ao vivo eacute uma
opccedilatildeo mais interessante do que as excludentes Esta opccedilatildeo hiacutebrida une as vantagens de ambas
as teacutecnicas Implementei esta opccedilatildeo no patch de Chatildeo de outono de minha autoria
Um sistema interativo oferece agrave muacutesica eletroacuacutestica uma relaccedilatildeo com o performer
humano que carrega caracteriacutesticas humanas para a muacutesica como argumenta Garnett (ver p
178 No Capiacutetulo 2 nos ocupamos de separar e aproximar estes dois acircmbitos Os autores que fundamentaram esta investigaccedilatildeo foram Schrader (1991) Schulz (2010) Ribeiro et al (2016) Rowe (1993) Menezes (2006) Whaley (2009) Dias (2014) Stroppa (1999) Brummer et al (2001) Garnett (2001) Simon Emmerson (2013) Bachrataacute (2010) Smalley (1997) Ribeiro (2018) e Caesar (2018)
34) Ainda que as partes eletroacuacutesticas preacute-gravadas sejam fruto de uma performance em
estuacutedio e carreguem assim caracteriacutesticas humanas a relaccedilatildeo de performance centrada no
performer humano em palco eacute uma posiccedilatildeo mais explicitadora destes valores humanistas Esta
discussatildeo se insere numa discussatildeo maior e que provavelmente cresceraacute ainda mais nos
proacuteximos anos aquela que discute a relaccedilatildeo entre humano e maacutequina tanto do ponto de vista
teacutecnico quanto de uma perspectiva filosoacutefica e eacutetica O reflexo desta discussatildeo geral seraacute
provavelmente visto nas discussotildees musicais concernentes agrave muacutesica eletroacuacutestica mista e
outras iniciativas de arte com sons que implementam recursos como a inteligecircncia artificial
Desvencilhando-nos desta querela inicial podemos atentar de maneira especial para as
relaccedilotildees e interaccedilotildees sonoras presentes na muacutesica eletroacuacutestica mista A interaccedilatildeo neste
acircmbito analiacutetico natildeo eacute exclusividade da muacutesica mista embora nela se encontre muito
evidenciada Haacute por exemplo interaccedilatildeo entre vozes numa textura puramente instrumental e
tambeacutem entre gestos na muacutesica puramente eletroacuacutestica Na muacutesica mista haacute a soma e a
multiplicaccedilatildeo das possibilidades de relaccedilotildees instrumentais com as possibilidades de relaccedilotildees
eletroacuacutesticas Haacute relaccedilotildees e interaccedilotildees entre os sons dos diferentes meios envolvidos
Assim falar de interaccedilatildeo na muacutesica mista considerando apenas estes dois grupos de sons - os
instrumentais e os eletroacuacutesticos - eacute uma simplificaccedilatildeo da complexidade que nela se
apresenta Primeiramente porque estes grupos de sons natildeo satildeo tatildeo separados como eacute possiacutevel
crer - sons eletroacuacutesticos podem ser a exata reproduccedilatildeo de um som instrumental ou apenas
um efeito sobre o som instrumental Os dois trabalhos que abordam especificamente a
interaccedilatildeo na muacutesica mista o artigo de Menezes (2006 p 377-400) e a tese de Bachrataacute
(2010) baseiam-se especialmente nesta separaccedilatildeo entre sons instrumentais e sons
eletroacuacutesticos Embora estes estudos tenham resultados muito relevantes acreditamos que a
teoria precisa relativizar esta separaccedilatildeo baseada no fisiologismo teacutecnico e tecnoloacutegico Os
sons podem ser agrupados em fluxos independentemente de sua produccedilatildeo ter sido mecacircnica
ou eletromecacircnica (circuito - altofalante) Eacute preciso entatildeo atentar para como na experiecircncia
da escuta agrupamos os sons
Neste sentido a psicologia da audiccedilatildeo explica que segregamos o todo sonoro que
chega aos nossos ouvidos em fluxos auditivos distintos Esta segregaccedilatildeo acontece por
aspectos dos sons a correlaccedilatildeo entre iniacutecio e teacutermino dos componentes sonoros a diferenccedila
de localizaccedilatildeo espacial registro espectral entre outros Assim podemos distinguir sons que
vecircm de uma pessoa falando daqueles provenientes de um eletrodomeacutestico por exemplo Os
155
sons de cada um deles satildeo agrupados em fluxos auditivos distintos (BREGMAN 2004 2008
SHEPARD 1999)
Esta explicaccedilatildeo guarda relaccedilatildeo com a maneira como tradicionalmente distinguimos
partes simultacircneas de um todo musical Em muacutesica o termo usado para expressar a
complexidade das simultaneidades eacute textura Ela eacute formada por linhas e vozes simultacircneas
(fluxos auditivos) que interagem umas com as outras Para que identifiquemos uma destas
vozes e a diferenciemos de outra eacute preciso que haja continuidade nas caracteriacutesticas dos sons
que a compotildeem especialmente eou tradicionalmente timbre registro e sincronia de iniacutecio e
fim dos sons (SHEPARD 1999)
Aleacutem da voz um fluxo auditivo pode ser constituiacutedo de uma sonoridade Guigue
(2011) apresenta a ideia de sonoridade e a possibilidade de uma polifonia de sonoridades
Uma sonoridade eacute caracterizada por diversos aspectos como coleccedilatildeo de cromas particcedilatildeo
intensidade entre outros A principal diferenccedila em relaccedilatildeo a ideia de voz eacute que a sonoridade
pode se apresentar uma apoacutes a outra A voz eacute uma explicaccedilatildeo da segregaccedilatildeo da textura em
planos simultacircneos a sonoridade eacute propriamente uma textura Entretanto haacute a possibilidade
de uma polifonia de sonoridades o que seria desta forma uma textura de texturas Assim a
ideia de textura carrega em potencial um caraacuteter como o dos fractais
Esta concepccedilatildeo natildeo eacute estranha ao repertoacuterio do seacuteculo XX e tem seu fundamento na
ideia de uma textura de efeito global presente em obras de Anton Webern (Sinfonia Op 21
por exemplo) (SIMMS 1996) Este efeito global de uma textura em que natildeo atentamos para
vozes em desenvolvimento individual e linear mas sim para um todo resultante foi muito
explorado por compositores durante o seacuteculo XX Podemos lembrar das massas sonoras de
Ligeti (Atmospheres por exemplo) formadas por muitas linhas em uma micro-polifonia Em
Xenakis eacute possiacutevel perceber a simultaneidade de massas distintas (Pithoprakta por exemplo)
Estas texturas que formam massas quando sobrepostas soam simultaneamente instaurando
uma outra textura A primeira indica a configuraccedilatildeo de elementos do niacutevel micro enquanto
que a segunda indica uma configuraccedilatildeo destas microtexturas numa macrotextura A
concepccedilatildeo que integra estas duas ideias de textura natildeo foi identificada em nossas referecircncias
bibliograacuteficas Elas estatildeo presente separadamente se esta ou aquela depende do repertoacuterio agrave
que se estaacute se referindo Em nenhuma de nossas leituras sobre muacutesica eletroacuacutestica o termo
textura indicava o aspecto macro Na espectro-morfologia de Smalley (1997) por exemplo
textura contrapotildee gesto e se refere a uma continuidade sonora que assume um caraacuteter de
156
157
proporccedilotildees ambientais em oposiccedilatildeo agraves proporccedilotildees humanas do gesto Por conta destas
proporccedilotildees tendemos a prestar mais atenccedilatildeo aos detalhes internos do som Citamos
novamente o autor
Ao mesmo tempo haacute uma mudanccedila de foco da escuta - quanto mais lento o iacutempeto gestual direto tanto mais o ouvido procura se concentrar em detalhes internos (ateacute onde eles existam) Uma muacutesica que eacute primariamente textural assim se concentra na atividade interna agraves custas do iacutempeto antecipado179 (SMALLEY 1997 p 113shy114 traduccedilatildeo nossa)
Ao tratar de comportamento Smalley salienta que a metaacutefora pode ser aplicada entre
outros exemplos a um grupo de texturas (SMALLEY 1997 p 118) Ora se pensamos uma
textura de maneira anaacuteloga a uma voz este ldquogrupo de texturasrdquo representa uma configuraccedilatildeo
semelhante a que nos referimos no exemplo de Xenakis uma textura de texturas Para
diferenciar estes dois tipos de texturas nos referimos a microtextura e macrotextura Esta
nomenclatura eacute menos uma proposta teoacuterica a ser replicada do que um meio de indicar
diferentes acepccedilotildees no acircmbito deste trabalho unicamente Assim como exemplos eacute possiacutevel
haver uma macrotextura em que haja fluxos texturais (microtexturas) que soam
simultaneamente e ainda uma macrotextura em que haja um fluxo textural que soa
simultaneamente a outro gestual por exemplo
Portanto demonstramos assim que ao nos referirmos agrave interaccedilatildeo neste acircmbito
sonoro-morfoloacutegico eacute preciso considerar qual niacutevel estrutural estamos analisando Pode haver
interaccedilatildeo entre elementos que compotildeem as microtexturas como tambeacutem entre aqueles que
compotildeem a macrotextura Nosso interesse analiacutetico voltou-se sobretudo agrave macrotextura
aquela que eacute primeiro e mais facilmente percebida No caso de nossa anaacutelise de
Desintegration (41) por exemplo o fluxo que denominamos ataques agudos e ressonacircncias
era formado por gestos texturais Entretanto nos bastou compreendecirc-lo como um fluxo e
investigamos sua relaccedilatildeo com os outros Natildeo atentamos para a interaccedilatildeo entre os ataques
presentes no interior deste fluxo os diferentes timbres destes ataques etc nos interessava
mais o aspecto da macrotextura
Quando Guigue (2011 p 47-81) trata da polifonia de sonoridades salienta para a
segregaccedilatildeo do todo sonoro em fluxos distintos O uso deste termo como explicita o autor estaacute
179 Original ldquoAt the same time there is a change of listening focus - the slower the direct gestural impetus the more the ear seeks to concentrate on inner details (insofar as they exist) A music which is primarily textural then concentrates on internal activity at the expense of forward impetusrdquo (SMALLEY 1997 p 113-114)
intimamente relacionado agrave teoria da psicologia da audiccedilatildeo especialmente dos estudos de
Albert Bregman Tendo por base esta teoria entendemos que a ideia de fluxo eacute uma opccedilatildeo
interessante para indicar qualquer tipo de agrupamento de sons sucessivos que apresentam
continuidade em um miacutenimo de aspectos e podem se diferenciar de outro agrupamento
semelhantemente definido Em Wishart (1996) anterior aos estudos de Bregman fluxo
(stream) eacute uma maneira de pensar a separaccedilatildeo das simultaneidades de uma maneira menos
enrijecida e mais flexiacutevel liacutequida Os fluxos podem se dissolver um no outro Neste sentido
consideramos um termo adequado para se referir a muitos dos processos sonoros
eletroacuacutesticos que habitam regiotildees ambiacuteguas fronteiriccedilas e menos definidas Evidentemente
a anaacutelise pode se valer de outras terminologias como planos massas e camadas de acordo
com a intenccedilatildeo analiacutetica com vista agravequilo que se quer demonstrar O fluxo daacute conta de
ambiguidades dissoluccedilotildees fusotildees e contrastes progressivos A camada expressa a separaccedilatildeo
permanente pouco variaacutevel O plano indica a existecircncia de transparecircncias o primeiro plano
natildeo oculta o segundo plano e haacute movimentos de aproximaccedilotildees e distanciamentos em relaccedilatildeo
ao ouvinte Aliaacutes talvez estes movimentos atravessam os planos sejam proacuteprios de uma
espeacutecie de fluxo transversal A massa eacute um tipo especiacutefico de camada fluxo ou plano ela eacute
sempre textural Ainda assim a denominaccedilatildeo fluxo parece se adaptar mais facilmente a
diferentes situaccedilotildees Ele pode se apresentar estaacutevel como a camada pode estar emcruzar por
planos distintos pode ser uma massa Estas asserccedilotildees natildeo visam agrave definiccedilatildeo das
terminologias e carecem de exemplos e especificidades - algumas das quais foram exploradas
em nossa pesquisa Mas elas satildeo interpretaccedilotildees do que foi observado na teoria na anaacutelise e
na composiccedilatildeo
Os estudos cognitivos mencionados (BREGMAN 2004 2008 SHEPARD 1999)
bem como outros recursos teoacutericos da muacutesica (BERRY 1987 MENEZES 2006) nos ajudam
a pensar a distinccedilatildeo dos fluxos e a identificar caracteriacutesticas de separaccedilatildeo fusatildeo e
ambiguidades intermediaacuterias Entretanto haacute um outro aspecto que natildeo diz respeito apenas agraves
caracteriacutesticas sonoras mas tambeacutem a como as relacionamos com outras experiecircncias As
relaccedilotildees satildeo concebidas por um processo de referenciaccedilatildeo extriacutenseca (NATTIEZ 1990) Por
ouvir determinada relaccedilatildeo sonora nos referenciamos a experiecircncias externas agrave muacutesica Daiacute
podemos falar de comportamento dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo conflito-coexistecircncia sujeito e
contra-sujeito entre outros
A abordagem de Smalley (1997) sobre o comportamento oferece categorias que se
158
mostraram relevantes nas anaacutelises Os pares de oposiccedilatildeo domiacuteniosubordinaccedilatildeo e
conflitocoexistecircncia foram os principais recursos utilizados desta teoria Foram articulados
atraveacutes do modo de relacionamento atividade-inatividade tanto na anaacutelise de Desintegrations
de Murail quanto de Music fo r Snare Drum and Computer de Lippe Na peccedila de Lippe foi
possiacutevel representar o movimento dos fluxos em relaccedilatildeo a este eixo (atividade-inatividade) o
que evidenciou relaccedilotildees entre os fluxos neste paracircmetro movimento paralelo obliacutequo e
contraacuterio
Nossa anaacutelise de Desintegrations explorou tambeacutem os conceitos de Wishart (1996) A
transformaccedilatildeo harmocircnico-tiacutembrica da seccedilatildeo foi entendida como o princiacutepio arquitetural da
seccedilatildeo Entretanto algumas aacutereas sonoro-morfoloacutegicas dissimilares se mostram inseridas nesta
transformaccedilatildeo Neste sentido nossa anaacutelise tomou um rumo diferente da proposta de Wishart
que previa que estas aacutereas sonoro-morfoloacutegicas abarcassem todos os fluxos (como as
tonalidades abarcam todas as vozes) Extendendo a comparaccedilatildeo de Wishart com o tonalismo
poderiacuteamos dizer que eacute como se a peccedila fosse politonal Isto eacute as aacutereas sonoro-morfoloacutegicas
distintas encontram-se sobrepostas em muitos momentos Por isso foi possiacutevel entendecirc-las
cada uma como constituidoras de um fluxo Cada fluxo deriva do anterior partindo de uma
dependecircncia homogecircnea ou interativa inicial e indo para a independecircncia Esta eacute basicamente
a articulaccedilatildeo da dimensatildeo vertical do princiacutepio dinacircmico O quadro de Wishart (Quadro 3) foi
explorado como um graacutefico em duas dimensotildees para expressar a relaccedilatildeo de dois fluxos
iniciais (ver Figura 34) Na observaccedilatildeo da peccedila Nascer pedra morrer nuvem (52) os fluxos
tambeacutem se mostraram atrelados agraves aacutereas sonoro-morfoloacutegicas Eles carregam caracteriacutesticas
sonoras - que eacute tambeacutem o que os diferenciam - que delimitam estas aacutereas por sua maior
presenccedila ou ausecircncia
Na anaacutelise de Strange Autumn de Takasugi nos preocupamos em demonstrar a
plausibilidade de um fluxo visual conforme apontado em 35 Prezamos por apontar as
relaccedilotildees identificadas observando o mencionado viacutedeo da performance natildeo nos detendo a
particularidades das relaccedilotildees entre os fluxos ou de seus componentes internos Foi possiacutevel
identificar correspondecircncias variadas entre o fluxo visual e os fluxos sonoros Ressalta-se
neste aspecto trecircs possibilidades (1) a possibilidade de a accedilatildeo visual ser associada a um
resultado aural que esperamos ouvir Por exemplo quando o recitante abre a boca como se
falasse ldquoardquo e ouvimos o som correspondente - ldquoardquo Por outro lado (2) a accedilatildeo visual pode natildeo
corresponder a este tipo de expectativa causando assim um efeito de ventriloquismo uma
159
duplicaccedilatildeo estranha devido agrave sincronizaccedilatildeo labial (TAKASUGI 2016) por exemplo
quando o recitante articula como se falasse ldquolerdquo (da palavra leaves) e ouvimos em vez do som
esperado um som percussivo vagamente semelhante a um mecanismo de uma maacutequina de
escrever Aleacutem disso (3) a accedilatildeo visual pode ser independente e natildeo corresponder a qualquer
som Aspectos visuais tambeacutem foram apontados em Chatildeo de outono (51) Entretanto na
composiccedilatildeo da peccedila natildeo houve a preocupaccedilatildeo de considerar este aspecto um elemento da
textura Esta possibilidade me atrai pois faz com que tudo faccedila parte da peccedila olhares passos
viradas de paacuteginas etc E aleacutem disso se relaciona com esta questatildeo inerente agrave muacutesica
eletroacuacutestica a ambiguidade de percepccedilatildeo da produccedilatildeo e da fonte sonora Possivelmente
explorarei tais recursos visuais em composiccedilotildees futuras
Nossa abordagem sobre a obra de Cort Lippe buscou identificar com base nas notas
de programa das peccedilas peculiaridades e diferenccedilas entre os trabalhos com instrumentos e
sons fixados em suporte e aqueles com instrumentos e sistema interativo Apontamos a
tendecircncia de nas peccedilas que fazem uso de sons fixados em suporte os meios instrumental e
eletroacuacutestico serem concebidos com relativo contraste num diaacutelogo Nas peccedilas que fazem
uso de sistemas interativos a tendecircncia eacute de conceber estes dois meios numa maior fusatildeo
Music fo r Snare Drum and Computer se enquadra nesta segunda categoria Ainda assim foi
possiacutevel observar relativo contraste alcanccedilado especialmente por um processo de afastamento
da parte eletroacuacutestica em relaccedilatildeo agrave parte instrumental por meio de processamentos de maior
interferecircncia
Na anaacutelise de In Memoriam Jon Higgins destacamos a interaccedilatildeo em tempo real
baseada natildeo num sistema interativo mas num fenocircmeno (psico)acuacutestico - os batimentos
Devido a este fenocircmeno fusatildeo e contraste (MENEZES 2006) acontecem de maneira peculiar
nesta peccedila Apontamos tambeacutem as relaccedilotildees diretas e inversas entre paracircmetros como por
exemplo entre registro e frequecircncia de batimentos
Alguns conteuacutedos foram levantados como referenciais no Capiacutetulo 3 e natildeo foram
retomados ou natildeo ganharam grandes proporccedilotildees nas anaacutelises ou na composiccedilatildeo
caracteriacutesticas de relaccedilotildees entre vozes (BERRY 1987) questotildees de orquestraccedilatildeo (SIMMS
1996) aspectos da teoria de Guigue como a oposiccedilatildeo adjacente e a segmentaccedilatildeo (GUIGUE
2011) modelos de interaccedilatildeo de Bachrataacute (2010) e possivelmente outros Entretanto mais do
que pragmaacutetico o Capiacutetulo 3 eacute uma discussatildeo sobre a abordagem de uma macrotextura da
muacutesica eletroacuacutestica Ele natildeo apenas eacute um preacute-requisito dos capiacutetulos 4 e 5 mas sustenta a si
160
mesmo na funccedilatildeo de abrir e explorar esta discussatildeo Estes conteuacutedos foram importantes para
tratar da questatildeo central da pesquisa ldquo[] a caracterizaccedilatildeo e a interaccedilatildeo de fluxos distintos
percebidos na experiecircncia de escuta []rdquo (p 18) As anaacutelises dos capiacutetulos 4 e 5 objetivaram
trazer a teoria para um acircmbito da plausibilidade praacutetica apelando natildeo apenas para a
razoabilidade das ideias mas para a verificaccedilatildeo aural de suas possibilidades Neste sentido
nas anaacutelises natildeo tentamos incluir todos os recursos teoacutericos mas evidenciar as constituiccedilotildees e
interaccedilotildees nos valendo apenas daqueles que a partir da escuta nos pareciam mais adequados
O capiacutetulo 5 levou a discussatildeo para um acircmbito pessoal A atividade composicional natildeo
foi um ldquofluxordquo independente da pesquisa mas interagiu com ela A pesquisa por sua vez
surgiu de interesses composicionais e foi continuamente alimentado por eles Esta interaccedilatildeo
entre compor e pesquisar eacute o que faz esta pesquisa ser diferente de uma pesquisa em teoria e
anaacutelise A anaacutelise das peccedilas neste capiacutetulo se confundem com um memorial descritivo pois o
pesquisador natildeo eacute apenas o analista mas tambeacutem o compositor Os objetivos da pesquisa que
concerniam agrave constituiccedilatildeo e interaccedilatildeo de fluxos mais ou menos distintos eram tambeacutem
objetivos composicionais entretanto a metodologia foi distinta o pesquisar articulou a teoria
o compor os sons
Na anaacutelise de Chatildeo de outono foi possiacutevel notar uma estreita relaccedilatildeo entre
configuraccedilatildeo do sistema interativo e relaccedilotildees entre fluxos distintos A principal relaccedilatildeo
apontada foi de gatilho (WISHART 1996) que eacute neste caso tanto uma caracteriacutestica sonoro-
morfoloacutegica como um aspecto praacutetico-tecnoloacutegico da performance Na anaacutelise de Nascer
pedra morrer nuvem evidenciou-se a possibilidade de muacuteltiplos fluxos nos dois meios o
meio instrumental apresenta ateacute trecircs fluxos simultacircneos por exemplo
Tanto nas anaacutelises de Desintegrations Strange Autumn e Music fo r Snare Drum and
Computer quanto na abordagem das proacuteprias peccedilas Chatildeo de outono e Nascer pedra morrer
nuvem a investigaccedilatildeo dos fluxos sonoros apresentou implicaccedilotildees formais No capiacutetulo 4
analisamos apenas uma seccedilatildeo de cada peccedila entretanto no interior destas seccedilotildees foi possiacutevel
observar desenvolvimentos mudanccedilas responsaacuteveis por particionar (mais ou menos
claramente) o percurso musical Estas mudanccedilas estavam atreladas a desenvolvimentos e
mudanccedilas na macrotextura A investigaccedilatildeo da macrotextura do desenvolvimento de fluxos
sonoros da sua dominaccedilatildeo sobre ou sua subordinaccedilatildeo a outros fluxos das aacutereas sonoro-
morfoloacutegicas que manifestam ofereceu uma perspectiva dinacircmica da forma Em
Desintegrations e em Nascer pedra morrer nuvem notamos fluxos diretamente relacionados
161
com as aacutereas sonoro-morfoloacutegicas (WISHART 1996) que estes manifestam Aleacutem disso
notamos transiccedilotildees mais ou menos graduais de uma aacuterea para a seguinte devido ao
desenvolvimento de fluxos sonoros Em Strange Autumn a presenccedila e ausecircncia de elementos
texturais segmenta a seccedilatildeo analisada em duas partes Em Music fo r Snare Drum and
Computer as relaccedilotildees oscilantes de atividade-inatividade delineiam um percurso para a seccedilatildeo
Estas anaacutelises evidenciaram uma estreita relaccedilatildeo entre a textura e os aspectos formais das
peccedilas
Questotildees mais especiacuteficas das particularidades da diferenciaccedilatildeo entre os fluxos
tambeacutem podem ser abordadas em pesquisas futuras Isto eacute pode-se abordar quais satildeo os
paracircmetros aleacutem dos mencionados que nos permitem diferenciar os fluxos qual a forccedila que
eles tecircm nesta diferenciaccedilatildeo quais combinaccedilotildees de paracircmetros podem ser usados na
diferenciaccedilatildeo etc Ainda outra questatildeo eacute se os demais recursos da spectro-morfologia
(SMALLEY 1997) aleacutem daqueles utilizados nesta pesquisa (atividade-inatividade e
harmonicidade-inarmonicidade) podem cumprir esta funccedilatildeo de diferenciar os fluxos
processos de crescimento e de movimento movimentos de textura (microtextura) espaccedilo
espectral e densidade e espaccedilo-morfologia
Tendo observado que no eixo atividade-inatividade eacute possiacutevel analisar os movimentos
(paralelo obliacutequo e contraacuterio) de um fluxo (432) em relaccedilatildeo a outro podemos especular se o
mesmo natildeo seria possiacutevel em outros eixos (que descrevem aspectos ou paracircmetros) como
harmonicidade-inarmonicidade densidade de eventos ou inclusive aqueles que decorrem da
parametrizaccedilatildeo de algum aspecto particular em determinada peccedila Isto eacute pensar a interaccedilatildeo
entre os fluxos como uma relaccedilatildeo parameacutetrica Esta seria uma perspectiva quase matemaacutetica
passiacutevel de ser expressa em graacuteficos como fizemos na anaacutelise de Music fo r Snare Drum and
Computer (432) e provavelmente mais proacutexima da implementaccedilatildeo em recursos tecnoloacutegicos
- mapeamentos e outros procedimentos Ao mesmo tempo eacute preciso considerar que mesmo
que as relaccedilotildees sejam abordadas nestes termos elas fazem referecircncia a experiecircncias externas
agrave muacutesica As referecircncias comportamentais satildeo extriacutensecas (SMALLEY 1997) Isto eacute
baseando-nos numa relaccedilatildeo parameacutetrica (intramusical) dificilmente poderemos identificar
dominaccedilatildeo-subordinaccedilatildeo ou conflito-coexistecircncia para isso eacute preciso fazermos referecircncia a
experiecircncias externas que se aproximem de alguma maneira do que estamos ouvindo
Esta pesquisa foi uma exploraccedilatildeo das possiacuteveis relaccedilotildees no interior da textura da
muacutesica eletroacuacutestica mista Por um lado buscou-se modelos teoacutericos para a concepccedilatildeo de
162
uma textura neste contexto por outro investigou-se no proacuteprio ato criativo musical
estrateacutegias de estruturaccedilatildeo desenvolvimento e interaccedilatildeo dos elementos da textura Nesta
segunda investigaccedilatildeo de ordem mais praacutetica optou-se por uma maior liberdade A exploraccedilatildeo
de relaccedilotildees texturais - constituir fluxos e colocaacute-los em interaccedilatildeo - na composiccedilatildeo natildeo foi
sistematizada Ainda que os dois processos tenham se influenciado mutuamente agrave
composiccedilatildeo reservou-se a liberdade em coerecircncia com a concepccedilatildeo pessoal de que ela tem
sua proacutepria origem caminho e destino e que eles satildeo artiacutesticos antes de serem cientiacuteficos
163
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172
ANEXOS
Anexo 1 Quadros de modelos de interaccedilatildeo gestual de Petra Bachrataacute (2010)
Anexo 2 Partitura de Chatildeo de outono (2017-8)
Anexo 3 Partitura de Nascer pedra morrer nuvem (2018)
Outros anexos gravaccedilotildees viacutedeos e patch disponiacuteveis em
lthttpsdrivegooglecomopenid=1Fyt16u4m5OwtHVfz1BkxWkOx104OoNyWgt
173
ANEXO 1 - QUADROS DE MODELOS DE INTERACcedilAtildeO GESTUAL DE PETRA
BACHRATAacute (2010)
I Modelos elementares de interaccedilatildeo gestual
A Interaccedilatildeo gestual por similaridade ou diferenccedila de alturafrequecircncia
1 Fusatildeo pela mescla de alturafrequecircncia idecircntica - interaccedilatildeo unissocircnica2 Fusatildeo por similaridade de frequecircncia
Fusatildeo no registro grave Fusatildeo no registro meacutedio Fusatildeo no registro agudo
3 Contraste por distinccedilatildeo de frequecircncia4 Interaccedilatildeo por flutuaccedilatildeo de bandas frequenciais5 Interaccedilatildeo baseada em ruiacutedo
C Interaccedilatildeo gestual por trajetoacuteria de intensidade1 Interaccedilatildeo crescendo2 Interaccedilatildeo decrescendo3 Interaccedilatildeo por intersecccedilotildees e cruzamentos (crossovers) em trajetoacuterias de intensidade4 Combinaccedilatildeo dos modelos anteriores
B Interaccedilatildeo gestual baseada em organizaccedilatildeo temporal
1 Interaccedilatildeo sincrocircnicaRegular- uniriacutetmica
Irregular- sincopada
2 Interaccedilatildeo assincrocircnicaRegularIrregularPoliriacutetmica
3 Interaccedilatildeo temporal proporcional por reduccedilatildeo ou multiplicaccedilatildeo de duraccedilatildeo ou padratildeo temporal4 Interaccedilatildeo por agrupamento textural5 Interaccedilatildeo atemporal6 Surrealismo socircnico temporal
D Interaccedilatildeo gestual de acordo com ascaracteriacutesticas tiacutembricas (similaridadediferenccedila)
1 Fusatildeo tiacutembricaInteraccedilatildeo por reproduccedilatildeo tiacutembrica Interaccedilatildeo por derivaccedilatildeo tiacutembrica Interaccedilatildeo por associaccedilatildeo tiacutembrica
2 Contraste tiacutembricoInteraccedilatildeo por dissociaccedilatildeo tiacutembrica
174
II Interaccedilatildeo gestual baseada no modelo tripartite de estrutura (onset-continuant-termination)
1 Interaccedilatildeo por ataque2 Interaccedilatildeo por iteraccedilatildeo3 Interaccedilatildeo por ressonacircncia (ataque-decaimento)4 Interaccedilatildeo por ressonacircncia invertida (ataque-decaimento invertido)5 Combinaccedilatildeo de interaccedilatildeo por ressonacircncia e por ressonacircncia invertida6 Interaccedilatildeo cadencial - interaccedilatildeo por terminaccedilatildeo gradual7 Interaccedilatildeo por cross-fading
III Interaccedilatildeo gestual contrapontiacutestica
1 Interaccedilatildeo repetitiva2 Interaccedilatildeo imitativa3 Interaccedilatildeo canocircnica4 Interaccedilatildeo canocircnica com loop5 Interaccedilatildeo proporcional
RitmoAlturaRitmo e altura
6 Contraponto entre gestos homogecircneos7 Contraponto entre gestos heterogecircneos8 Interaccedilatildeo de gatilho (triggering)
Interaccedilatildeo de gatilho pela potenciaccedilatildeo entre morfologias Interaccedilatildeo de gatilho por transformaccedilatildeo tiacutembrica
9 Contraponto pela divisatildeo do gesto
175
IV Interaccedilatildeo gestual baseada em caracteriacutesticas semacircntico-morfoloacutegicas
Direccedilatildeoa Direccedilatildeo de movimento no campo da altura
Interaccedilatildeo linearpor direccedilatildeo similar de movimento
- ascendente- descendente- plano
por direccedilatildeo diferente de movimento- convergente- divergente- reciacuteproco
Interaccedilatildeo curvilinearInteraccedilatildeo por manipulaccedilatildeo da direccedilatildeo no campo da altura
por contraccedilatildeo por expansatildeo
Interaccedilatildeo cecircntrica pericentral centriacutepeta centriacutefuga
EnergiaInteraccedilatildeo por energia constantemantida Interaccedilatildeo por aumento de energia Interaccedilatildeo por diminuiccedilatildeo de energia Interaccedilatildeo por energia transformadaconvertida Combinaccedilatildeo dos modelos anteriores
b Direccedilatildeo enquanto evoluccedilatildeo do tempo - direccedilatildeo no campo das duraccedilotildees
Interaccedilatildeo por velocidade constante Interaccedilatildeo por velocidade irregular Interaccedilatildeo por aceleraccedilatildeo Interaccedilatildeo por desaceleraccedilatildeo Tipos combinadosInteraccedilatildeo por aceleraccedilatildeo-desaceleraccedilatildeo Interaccedilatildeo por desaceleraccedilatildeo-aceleraccedilatildeo Interaccedilatildeo pela manipulaccedilatildeo (espicharcontrair) do tempopor contraccedilatildeo por expansatildeo
176
V Modelos espaciais de interaccedilatildeo gestual
10 Relaccedilatildeo independentemente11 Relaccedilatildeo interativa12 Relaccedilatildeo de gatilho (triggering)
FONTE Bachrataacute (2010 apecircndice traduccedilatildeo nossa)
ANEXO 2 - PARTITURA DE CHAtildeO DE OUTONO
177
Chatildeo de outonopara flauta e sons eletrocircnicos 2017-8Davi Raubach
Notas de Performance
F l a u t a
Ritmo e andamento estatildeo notados de trecircs maneiras1) Determinada com andamento e figuras riacutetmicas
J = c 54TN
gt )s s _
PP PP
2) Indeterminada (natildeo proporcional) livre (bisbigliando)c^WWWWWWWWVWWWWVVWVWWW
1]V ( bull ) --------d n s
mp
3) Determinada pelo tempo de fala deve-se tocar no ritmo com que satildeo ou seriam lidas as siacutelabas
tempo de falanormal
IT
- a e l e n -
Pg o c L s
Apenas como referecircncia pode-se considerar15 a 3 siacutelabas por segundo 3 a 4 siacutelabas por segundo5 a 7 siacutelabas por segundo mais raacutepido possiacutevel
lento normal raacutepidomais raacutep poss
(bull)s s
Assovio agudo feito com o som de ldquossrdquo boca em forma de ldquourdquo na posiccedilatildeo da nota indicada Deve-se variar o assovio livremente
tf 6
O microfone deve ficar agrave direita do (a) performer direcionado para a extremidade da flauta e em paralelo a ela O(a) performer deve fazer movimentos de aproximaccedilatildeo e afastamento em relaccedilatildeo ao microfone conforme a seguinte notaccedilatildeo
afastado do microfone
t f proacuteximo ao microfone
- A linha pontilhada entre os siacutembolos indica um movimento mais progressivo de afastamento ou aproximaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao microfone- Este movimento natildeo deve ser feito por passos mas apenas com o movimento do corpo especialmente o movimento de rotaccedilatildeo Deve-se buscar uma organicidade e certa expressividade no movimento corporal
p a - m - ccedil o
- Texto sublinhado sussurrar o texto junto agrave flauta na posiccedilatildeo indicada Para um resultado eficiente o sussurrar deve ser relativamente forte e com pressatildeo de ar suficiente para ativar ainda que sutilmente as alturas indicadas A imagem de algueacutem ofegante ilustra uma opccedilatildeo- Quando houver mais de uma nota para uma mesma siacutelaba deve-se fazer a primeira nota junto ao ataque da siacutelaba e as proacuteximas o mais raacutepido possiacutevel
A 1 ---N bull
0
M
Ecirc
y amp raquo1 1
0 ------
ra o 1 HH a s mdash r e d bull nL ao i r mdash r e - f uuml u - a
-mp f mp
Texto tachado o texto natildeo eacute falado Deve-se tocar as alturas no ritmo de uma leitura mental do texto Aleacutem do ritmo a acentuaccedilatildeo pode ser definida de acordo com essa leitura
Texto com vogais em subscrto omitir as vogais As notas devem ser ativadas apenas com o ataque das consoantes semelhante ao sussurrado
(4) mais proacuteximo
CU-
-tomdashm e n
mp[Texto dentro da caixa] falar normalmente o texto na posiccedilatildeo indicada Sempre dentro do bocal
HEI dentro do bocal posiccedilatildeo ordinaacuteria fora do bocal
slap tongue pizzicato
key click
0 key click com nota
tongue-ramPode ser feito tanto expirando quando inspirando
r ar
Cabeccedila de nota triangular som de ar com pouco som de nota Quando necessaacuterio eacute indicada a duraccedilatildeo acima da pauta
nota com ar
E l e t r o a c uacute s t i c a
O patch foi feito em PureData versatildeo 048 mas deve funcionar normalmente em versotildees superiores
A parte eletroacuacutestica estaacute dividida em 5 programas que devem ser ativados de acordo com as indicaccedilotildees na partitura Os programas constituem-se basicamente de sons preacute-gravados que tem sua amplitude e espacializaccedilatildeo determinadas em tempo real por uma relaccedilatildeo com a amplitude da flauta captada pelo microfone de controle Dessa forma pode-se resumir o comportamento dos programas da seguinte maneira
P 1 Flauta EletroacuacutesticaP ^ sons de assobios
f ^ sons de folhas
P 2 FlautaPf
Eletroacuacutesticasons de folhas
sons de assobios
P 3 Flauta EletroacuacutesticaP ^ nada
f ^ sons de tongue-ramNeste programa tambeacutem haacute uma camada eletroacuacutestica independente (sons como ldquorasgosrdquo) que determina a espacializaccedilatildeo da flauta
Eletroacuacutesticap - -
Flautaespacializaccedilatildeo estaacutetica
espacializaccedilatildeo em movimento
P 4 Eletroacuacutestica independente sons de folhas
P 5 Eletroacuacutestica independente sons de assobios
J = C 50 $ = c 400) (muito flexiacutevel oscilando andamento)
long (apenas[^l key clicks)
[ s i n i s t r o
- A linha preta indica que deve-se manter a textura contida na caixa (repeticcedilotildees de notas com articulaccedilatildeo tongue-ram key clicks e com alturas natildeo determinadas)- A linha tracejada indica que quando tiver de falar durante esta textura naturalmente o (a) performer deixaraacute de fazer tongue-ram mas continuaraacute a executar os key clicks
+ + + +
T
Chatildeo de outonoPara Valentina D aldegan
TFlauta
Eletroacuacutestica
p i
6
SS
Davi Raubach
TsJ = c 54
Ttempo de fala
lento C
-------------------------------------------Ucirc0)------------------------- 1 0 ) ------------------------ rj ) (0) V
s s SS__________________ sub
PP W PPa o l o n g o -
PPP
dTS TS
d
bi 6
TS
V t v 0 0 gt0 0 ------l deg n - g o d aS P e
P o f
0 0 (gtdiams) raquoltbull)0d r as s s
- PP
()SS
p
L n g 0 d as p e - d r a s
(bull)s s
6t
^ $ |]l
tempo de fala normal___
mdash gt mdash ----- mdash dtempo defala
-vwwvww (bisbigliando) mais raacutep poss____________C^rvvvvvvvwwvwvwvwwwwvvw^^wv ____
STraquo 0A e r l bdquo n - g bdquo d as p e
p m p
gt (tiw- flv ()frullato
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TSJ mdash c 54 lt^|raquoWWWWVWWw
i r r e g u l a r e s
f f
tempo de fala n o rm a l [ZI-
subito
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(j) + (j)------------------- L l i i raquo L
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P2mp
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IumlSt t = p as - s am v e n - t a n _ d 0 u m a s p o
AfL) b r ___
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6 J = C 54(J) TS
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----- V - rsquo J------frullato
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a m a r e l a s e m p acirc n i c o frullato
f t gt f mdashs e g u i - d a s p e r s e g u i d a s d e
P fc o n
P3
TRCEI sempre
J mdash C 50 (J = c 400) (muito flexiacutevel oscilando andamento)
long (apenaskey clicks)
X xinregulares y
t a t a l a n d o J 1 p u l o s ]
CEI
T
2
tempo de fala raacutepido
p a s - s agrave m v e n t a n - d o a o s p u mdash l b s p a s s a m v e n - t a n - d o
laquotf mdashmdash t f t f ntf f f itjfa s d u - a s mdash a s - a s t a r - j a - d a s d e n e - g r o
f f f laquotf lt f flaquo t f mP P
a s d u a s a s a s t a r i a -
IT]rd a s d e n e g r o
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+
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7 A A[ t a t a l a n d o j [ a o s p u l o s |
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[ m a i s p e r t o ] (a s d u a s a s a s ) s h [subito
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I [ t a r j a d a s ) [ s h
f f
(S )
ATf f f pp
J = c 54
SSp
voz
f
h m - atilde
t JP4 P5
3
ANEXO 3 - PARTITURA DE NASCER PEDRA MORRER NUVEM
184
Nascer pedra morrer nuvempara violatildeo e sons eletrocircnicos 2018Davi Raubach
p a ra E ric M ore ira
nascer pedra morrer nuvem2018
D avi R au b ach
J = 52 iacute
IViolatildeo
Electronics
f p p p p m f
f t --------- ^
)11 ^ mdash - -- P ----------------------------------
Eacute EumlJ ^ p J j r J 1
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mdash ^ mdash ldquo ---------------------------------mdash ^ ---------------------------------------- raquo mdash
mdash ^ mdash mdash ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
r i i - - T - s
) Repetir livremente ateacute a entrada da deixa eletroacuacutestica
1
21____1 f 0 _ ------1----1----1----1------- 1------- 1------- ------- 1------- ------- 1---- dr-
--- f f f f f f 6 f 1 f f f f f f bull r iaiiA[fiiiffint im 4 6 mdash mdash5 8 88 lt2 V
lt m f m p
p p p f
deixa
^ s c f i -E8
) Ruiacutedo das cordas raspar lateral do polegar eou parte da md sobre as cordas 6 5 e 4 com movimentos curtos Cada semicolcheia indica dois movimentos (para um lado e para outro) cada movimento corresponde a um a fusa
) Ruiacutedo das cordas raspar polpa do(s) dedo(s) da me em direccedilatildeo agrave casa XII
2
36
V jiT
3 + 2t i j a - j j ^ j r v r j r v r j r 3
amp4
m fp p p
o
o o o
L V sempre gt 0 0
V
laquo H P- f ^ = - p p ^ = ^ f
5 + 5 16 7 7
me
fs f
7 7 f
s f
7 7 7 f f
f8
) Here starts a cross fade section The notes articulated convencionaly fade out quite gradually and the noise of the fingers scraping the strings fade in
3
V
32f f
L32 1 lt-32-1f f
p p p
r 7 i i CU (L32lsquo lsquo32l
f f
50 reg n reg n
V
32f f
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4) Percutir com polpa dos dedos (e unhas) da md aleatoriam ente sobre o tampo o mais raacutepido possiacutevel
5) Rasqueado de me com cordas abafadas pela md com vaacuterios dedos em defasagem e usando as 6 cordas (som percussivo granular)
6) Equilibrar a intensidade dos dois sons a percussatildeo sobre o tampo deve soar na mesma intensidade que o rasgueado em direccedilatildeo a um a fusatildeo entre os dois
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7) Ruiacutedo de cordas Movimentos esparsos lentos e irregulares das duas matildeos
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8) Nos casos de um bloco que m istura harmocircnicos e notas naturais ambos devem soar com mesma intensidade
6