universidade federal do pampa prÓ-reitoria de … · cultura de paz e comunicação não-violenta...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAMPA
PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO
CURSO DE CIÊNCIAS HUMANAS – LICENCIATURA
ANAIS DO II CONGRESSO INTERNACIONAL INTERDISCIPLINAR
DE CIÊNCIAS HUMANAS - COINTER
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COORDENADORA GERAL DO EVENTO
Prof.ª Dra. Andrea Becker Narvaes
COMISSÃO ORGANIZADORA
PROFESSORES
Dr. Ronaldo Bernadino Colvero
Me. Anderson Romário Perreira Côrrea
Me. Camila Almeida
ACADÊMICOS
Ewerton da Silva Ferreira
Danilo Pedro Jovino
Hermogenes de Sousa Cerqueira Filho
Letícia Olveira Chaves de Oliveira
Tiara Cristiana Pimentel dos Santos
Valeska Avila
Vitória Silveira
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COMITÊ CIENTÍFICO
Me. Alisson Machado
Dra. Adriana Hartemink Cantani
Dra. Andrea Bekcer Narvaes
Me. Anderson Romário Pereira Côrrea
Dra. Carmen Regina Dorneles
Nogueira
Dr. Edson Romário Monteiro Paniágua
Dr. Gerson Oliveira
Me. Gilvane Belém Correia
Danilo Pedro Jovino
Dra. Jaqueline Carvalho Quadrado
Dra. Monique Soares Vieira
Dra. Lauren de Lacerda Nunes
Lucas Giovan Gomes Acosta
Dra. Lisianne Sabreda Ceolin
Me. Rodrigo Maurer
Sandro da Silva
Dr. Sergio Ricardo Gacki
Dra. Susana Cesco
Dra. Nola Patrícia Gamalho
Dr. Muriel Pinto
Dr. Victor Oliveira
DIAGRAMAÇÃO
Ewerton da Silva Ferreira
Secretário Geral do II COINTER
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A CORREÇÃO E ADEQUAÇÃO AS NORMAS DA ABNT
DOS RESUMOS AQUI APRESENTADOS SÃO DE
RESPONSABILIDADE EXCLUSIVA DOS AUTORES E
AUTORAS.
TRABALHOS APRESENTADOS NO GRUPO DE
TRABALHO: FILOSOFIA E POLÍTICA, SOB
COORDENAÇÃO DO PROFª. DRA. LAUREN DE
LACERDA NUNES E MESTRANDO LUCAS GIOVAN
GOMES ACOSTA.
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SUMÁRIO DOS TRABALHOS APRESENTADOS NO GT FILOSOFIA E POLÍTICA
E NO GT CIÊNCIAS HUMANAS E INTERDISCIPLINARIDADE
IMPLANTAÇÃO E MONITORAMENTO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM SÃO BORJA ............................. 43
A CULTURA DE PAZ NO ENFRENTAMENTO DA EVASÃO ESCOLAR ....................................................... 57
ALZIRA VARGAS: A FIGURA FEMININA E A ARTICULAÇÃO POLÍTICA NA ERA VARGAS ......................... 74
PRINCÍPIOS DA ÉTICA NA GESTÃO PÚBLICA: TEMA PARA A REFLEXÃO ............................................... 90
ESCOLA E FAMÍLIA NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA ........................................................................ 102
UMA CONTRIBUIÇÃO DE NIETZCHE À FILOSOFIA MORAL: a hipótese do eterno retorno do mesmo
como imperativo de avaliação das ações ............................................................................................ 112
DEBATENDO A PRÁTICA DOCENTE: UM RELATO PIBIDIANO .............................................................. 130
A ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA COMO CAMPO DE
PRÁTICAS INTERDISCIPLINARES: REFLEXÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE ESTÁGIO EM SERVIÇO
SOCIAL ................................................................................................................................................. 141
PERCEPÇÕES DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL POR ESTUDANTES DE UMA ESCOLA PÚBLICA
DA CIDADE DE SANTO ÂNGELO-RS ..................................................................................................... 152
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL NOS ANOS FINAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL: UMA ANALISE DAS
METODOLOGIAS APLICADAS EM SALA ............................................................................................... 171
DIVERSIDADE ÉTNICA: APRENDIZAGEM, CONHECIMENTO E CULTURA ............................................. 181
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IMPLANTAÇÃO E MONITORAMENTO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM SÃO
BORJA
Rafaela Campos de Paula1 Simone Barros de Oliveira2
Ana Carolina Vaz dos Santos3
Alessandro Almeida da Silva4
RESUMO: O trabalho apresenta os dados parciais da Pesquisa de monitoramento do processo
de Implantação da Justiça Restaurativa no Município de São Borja através do Centro de
Judiciário de Soluções de Conflitos e Cidadania/CEJUSC. Trata-se de uma pesquisa de caráter
qualitativo com base no método dialético crítico. A coleta e análise dos dados se deu a partir de
10 relatórios de círculos de construção de paz e 5 relatórios das reuniões de auto supervisão dos
facilitadores realizados no período de março a julho de 2017 a partir da técnica de análise de
conteúdo. A pesquisa surge como uma contribuição e fortalecimento do ideário de todos aqueles
que acreditam e lutam pela transformação dessa sociedade em que estamos inseridos com
padrões culturais excludentes, competitivos e repleta de desigualdades sociais. A Justiça
Restaurativa configura-se como um novo modelo de justiça voltado para as relações
prejudicadas por situações de violência. Nesta perspectiva ancora-se no referencial teórico da
cultura de paz e comunicação Não-Violenta utilizando-se da educação como um meio de
implantação dos processos restaurativos nesta região da Fronteira Oeste. A justiça restaurativa
é uma ferramenta importante de resolução de conflitos que tem como horizonte uma sociedade
que substitua o modo tradicional de resolver os conflitos com base na violência seja física ou
simbólica, pelo diálogo, onde o poder da palavra tenha de fato efeito restaurador. Os dados
preliminares apontam para a eficácia desta política pública que oportuniza o resgate de relações
danificadas pelos processos de conflitos vivenciados no cotidiano escolar. A justiça restaurativa
1 Discente do curso de Serviço Social pela Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Membro do grupo de
pesquisa Educação Direitos Humanos e Fronteira. E-mail: [email protected] 2 Professora Adjunta da Universidade Federal do Pampa/UNIPAMPA, Mestre e Doutora em Serviço Social, pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/PUCRS, líder do Grupo de Pesquisa Educação, Direitos
Humanos e Fronteira. E-mail: [email protected] 3Possui graduação em Direito pelo Instituto Cenecista de Ensino Superior Santo Ângelo (2014). Atualmente é
acadêmica do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Pampa e do curso de pós-graduação
modalidade lato-sensu em Políticas e Intervenção em Violência Intrafamiliar da Universidade Federal do Pampa,
campus São Borja/RS. Membro do grupo de pesquisa Educação Direitos Humanos e Fronteira. E-mail:
[email protected] 4Graduado em Ciências Sociais - Ciência Política pela Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Membro
do grupo de pesquisa Educação Direitos Humanos e Fronteira. E-mail: [email protected]
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vem proporcionar reparação, responsabilização e cura para os envolvidos no dano recuperando
o tecido social, possibilitando que através da reconciliação vítima e ofensor possam mudar suas
posturas frente ao fato ocorrido.
Palavras-Chaves: Justiça Restaurativa, Escola, Círculo de Construção de Paz.
INTRODUÇÃO
A escola é um espaço onde crianças e adolescentes apreendem e exercitam suas
experiências de vida. Nesse sentido, é em sala de aula que ocorre a descarga de suas frustrações,
suas expectativas, atitudes tanto positivas quanto negativas, pois neste ambiente estão outros
sujeitos com experiências parecidas ou totalmente diferentes das suas, tornando a escola um
espaço de aquisição de conhecimento e experiências de vida.
Desta forma, a escola há muito não é mais representada como um lugar neutro, dedicado
exclusivamente à vivência do ensinar e do aprender. Ao contrário, tornou-se ponto de encontro,
de convivência social, espaço potencial à fecundação da cidadania. Vários municípios dos
Estados Brasileiros estão implantando núcleos de práticas restaurativas nas comarcas do
tribunal de justiça, como uma alternativa viável de resolver conflitos através do uso do poder
da palavra. E a escola torna-se um espaço estratégico para a implementação desta nova técnica
de mediação de conflitos em direção a uma nova concepção de sociedade denomina de cultura
de paz que se utiliza da educação como meio para alcançá-la. Estudos e pesquisas comprovam
que também na escola o aluno exercita o seu potencial, principalmente durante situações de
conflito, pois é o momento em que ele descarrega todas as suas experiências para “resolvê-las”,
seja através de agressões físicas ou verbais, mas que deixam marcas profundas no sujeito que
sofre e no sujeito que prática ação violenta.
O projeto configura-se relevante tendo em vista que suas atividades estão ligadas à
função social da Universidade, a partir do tripé ensino pesquisa e extensão, pois dentre suas
funções está o comprometimento com a formação de sujeitos comprometidos com a sociedade.
Para tanto diante disso busca-se por meio do projeto a disseminação dos valores e princípios de
uma cultura de paz para o respeito à diversidade e aos direitos humanos. A partir das
proposições do projeto objetiva-se construir mecanismos que fomentem além de introduzir o
tema educação nos ambientes da pesquisa. Pois entende-se que a educação por sua essência tem
papel fundamental na formação do sujeito e ela só acontece verdadeiramente na relação com
outros sujeitos e a partir de produções da ação humana. Portanto, isso é o necessário para que
haja um processo de criação, recriação e mudança no desenvolvimento do ser social. Freire
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(1996 p. 43), afirma “[...] da natureza mutável da realidade natural como histórica se vê homens
e mulheres como seres não apenas capazes de se adaptar ao mundo, mas, sobretudo de mudá-
lo. Seres curiosos, atuantes, falantes, criadores”.
Em São Borja, a implantação de práticas restaurativas teve início em novembro de 2016
com o curso de formação para facilitadores. A partir desta formação, está sendo implementado
os círculos de paz nas áreas de educação, saúde e segurança pública. Diante do exposto, torna-
se relevante monitorar o processo de implantação da JR no Município de São Borja, com vistas
à contribuir para diminuição dos impactos da violência nas áreas em que o projeto está sendo
implantando, objetivando o desenvolvimento de estratégias de redução de danos nas relações
interpessoais entre os sujeitos envolvidos. Entende-se que a implantação desta importante
ferramenta de prevenção e resolução de conflitos, vai trazer para São Borja novas formas de se
relacionar que não seja apenas as formas da cultura tradicional. Portanto, caminha-se rumo à
uma nova cultura denominada de cultura de paz, cuja educação é o meio mais eficaz para
alcançá-la e a JR uma ferramenta importante nesse longo caminho a percorrer. Este trabalho
objetiva visibilizar a dimensão teórica e prática da Justiça Restaurativa no Município de São
Borja em desenvolvimento.
METODOLOGIA
A pesquisa em andamento tem como base para análise da implantação da Justiça
Restaurativa em São Borja é de cunho qualitativo e utiliza-se do método materialista histórico
dialético critico que faz parte da uma corrente teórica que propõe desvelar a sociedade a partir
de um movimento dialético de construção e desconstrução, possibilitando a compreensão da
realidade de forma concreta. A metodologia articula a subjetividade do sujeito, os processos
particulares e os processos sociais. Para os procedimentos de análise, trabalha-se com análise
de conteúdo de Bardin (1990) e estão sendo utilizados diferentes métodos de pesquisa, que
incluem: pesquisa bibliográfica para compreensão e análise da temática em estudo; pesquisa
documental sobre a implantação da JR em São Borja; Análise de relatórios de círculos de
conflitos; Análise de relatórios de círculos de prevenção.
JUSTIÇA RESTAURATIVA: ASPECTOS FUNDANTES
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A Justiça Restaurativa se configura como uma alternativa que vem ao contraponto da
Justiça Retributiva5, no sentindo de buscar as soluções para conflitos litigiosos por meio do
diálogo e da mediação entre as partes para assim subsidiar uma possível restauração dos danos
causados, mas principalmente das relações entre os sujeitos. A gênese da Justiça Restaurativa
remete as tradicionais práticas indígenas para resoluções de conflitos, mais precisamente nas
tribos aborígenes, que contavam com a colaboração e envolvimento de toda a comunidade, bem
como, a contribuição dos elementos naturais da Terra (JOÃO, 2014).
No entanto, a eclosão do modelo restaurativo como concepção teórica foi desencadeada
no século XX, com intensificação da discussão quanto a temática e experiências restaurativas
a partir da década de 70, sendo consolidada de forma efetiva como metodologia na década de
90 pelo professor universitário e escritor Howard Zehr, que é reconhecido mundialmente como
o percussor do modelo atual de Justiça Restaurativa. No seu livro “Trocando as Lentes: Um
Novo Foco sobre Crime e Justiça” que é considerado a obra fundamental no âmbito da justiça
restaurativa, traz contribuições de suma importância quanto a consolidação da Justiça
Restaurativa enquanto ruptura para a Justiça Redistributiva, apontando os sujeitos dos conflitos
como pontos essenciais a serem trabalhados. Para Zehr,
Em vez de definir a justiça como retribuição, nós a definiremos como restauração. Se
o crime é um ato lesivo, a justiça significará reparar a lesão e promover a cura. Atos
de restauração – ao invés de mais violação – deveriam contrabalançar o dano advindo
do crime. É impossível garantir recuperação total, evidentemente, mas a verdadeira
justiça teria como objetivo oferecer um contexto no qual esse processo pode começar
(ZEHR, 2008, p.13).
Para a Organização da Nações Unidas (ONU), o conceito de Justiça Restaurativa está
na Resolução nº 2002/12 em consonância com o Conselho Social e Econômico (ECOSOC),
onde dispõe que o processo restaurativo significa qualquer processo no qual possuem a
coordenação de facilitadores treinados e capacitados, junto a participação de todos os
envolvidos: vítima, ofensor, e se necessário, as famílias e a comunidade possuem um papel na
busca pela solução nas situações oriundas do crime. Para Tony Marshall (1999, apud AGUIAR,
p. 109) a Justiça Restaurativa é como “um processo através do qual todas as partes interessadas
em um crime específico se reúnem para solucionar coletivamente como lidar com o resultado
5Modelo de justiça caracterizado pela individualidade e a busca pela culpabilização e punição dos sujeitos - ZEHR,
Howard. Trocando as lentes: Um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo: Palas Athena, 2008. Tal modelo
é o predominante no Brasil atualmente.
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do crime e suas implicações para o futuro”. Assim, a Justiça Restaurativa atua pela perspectiva
de possibilitar o fortalecimento dos vínculos entre os indivíduos e consequentemente as
resoluções dos conflitos via diálogo, evidenciando que tais conflitos intencionados e/ou
geradores de fatores como violência, competição, culpa, sofrimento, entre outros, não são
fenômenos individuais mais sim coletivos, sendo assim, necessitam do envolvimento da
sociedade em geral (ZEHR, 2008).
A partir de práticas voltadas para o respeito as diferenças, as diversidades nas relações
sociais, assim como, estimular troca de papéis valorosas como o autoconhecimento, a
consciência, a percepção, a vivência e a empatia, o modelo restaurativo apresenta como valores
fundamentais a participação, o respeito, a humildade, a interconexão, a responsabilidade, o
empoderamento dos indivíduos e a esperança em uma sociedade de paz para assim prevenir a
violência e resolver conflitos de forma pacifica criando condições que conduzam a uma
transformação social,
[...] a aplicação desse novo modelo de Justiça via de regra desencadeia, caso a caso,
um realinhamento ético e um processo reflexivo capaz de repercutir, a um só tempo,
em termos de transformações pessoais, de desenvolvimento institucional, de
aprendizagem social e de mudanças culturais (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO
GRANDE DO SUL, 2014, p. 7).
Deste modo, a Justiça Restaurativa configura-se como um novo modelo de justiça que
propõe a superação da justiça tradicional, como é possível verificar no quadro a seguir:
Quadro 1 – Características da Justiça Tradicional e da Justiça Restaurativa.
JUSTIÇA TRADICIONAL JUSTIÇA RESTAURATIVA
Culpa Responsabilidade
Perseguição Encontro
Imposição Diálogo
Castigo Reparação do Dano
Verticalidade Horizontalidade
Coerção Coesão
Fonte: Elaborado pelos autores a partir do Programa Justiça Restaurativa para o Século 21.
Pelo exposto, a Justiça Restaurativa tem a sua atuação voltada paras as relações
prejudicadas por situações de violência, tendo como instrumento fundamental o diálogo entre
as partes envolvidas no conflito (vítima e agressor), viabilizando novas oportunidades de
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entendimento e conversa sobre motivos que desencadearam tais conflitos, com o intuito de
restaurar as relações entre todos, desenvolvendo ações que os beneficiem, de forma a aproximar
e co-responsabilizar todos os envolvidos, ajudando assim na restauração dos danos e
despertando compromissos futuros mais harmônicos para todas as partes envolvidas.
O marco da justiça restaurativa no Brasil foi o I Simpósio Brasileiro de Justiça
Restaurativa em 2005 cujo documento é ratificado como “Carta de Brasília”. A
implementação se deu a partir de três experiências-piloto através do projeto “Promovendo
práticas restaurativas no sistema judiciário brasileiro” do Ministério da
Justiça. As cidades piloto foram São Caetano do Sul (SP) Brasília (DF) e Porto
Alegre (RS), objetivando verificar o impacto da materialização dos princípios da
justiça restaurativa como forma de abordagem nas relações entre vítima e ofensor.
(BRANCHER, 2008). A partir de então, vários municípios dos Estados Brasileiros
estão implantando núcleos de práticas restaurativas nas comarcas do tribunal de
justiça, como uma alternativa viável de resolver conflitos através do uso do poder da
palavra que expande em áreas diversas, a exemplo da área da educação.
A justiça restaurativa apresenta como valores fundamentais a participação, respeito,
humildade, interconexão, responsabilidade, empoderamento e esperança num ambiente de paz.
Dessa maneira, A justiça restaurativa sem dúvida, vem imprimir uma oportunidade estratégica
de resolução de conflitos (BRANCHER, 2008). Resgata de alguma forma a humanidade das
pessoas, se utilizando de processos circulares que permitam as pessoas identificarem seus
sentimentos e necessidades afetados pelas situações de violência vivenciadas. As mudanças da
partem da necessidade de transformação da sociedade que desafia o desarmamento simbólico
das pessoas na perspectiva de valores que promovam a igualdade, educando para relações
pautadas na participação democrática e na tolerância, ou seja; relações pacificas como novo
marco civilizatório.
A Justiça Restaurativa se apresenta dentro de um processo de educação para a paz que
visa uma cultura de paz. A educação é um direito universal, assim, deve-se pensar vários
caminhos para colocar em prática uma política educacional de qualidade. Logo, a Cultura de
paz pode ser um desses caminhos, por meio da educação. Assim sendo, o termo Paz como deve
ser entendido para concebê-lo como educação:
Paz é um princípio prático da civilização humana e da organização social que está
fundamentada na própria natureza humana. A paz não escraviza o homem, pelo
contrário, ela a exalta. Não humilha, muito ao contrário, ela torna consciente de seu
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poder no universo. E porque está baseada na natureza humana, ela é um princípio
universal e constante que vale para todo ser humano. É esse princípio que deve ser o
nosso guia na elaboração de uma ciência da paz e da educação dos homens para a paz
(MONTESSORI, 2004, p.54).
Contudo, a sociedade ainda está empregando o sentido tradicional de Paz, aquele
utilizado para fins de guerra. Dessa maneira, há a necessidade de reformularmos no cotidiano
da vida o conceito de paz, pois as sociedades mudam, surgem outras questões sociais. Educar
para a paz é grande necessidade do século XXI, a Organização das Nações Unidas refere que a
educação para a paz apresenta
Uma dimensão internacional e uma perspectiva global da educação a todos os níveis
e sob todas as formas; compreensão e respeito por todos os povos e suas culturas,
civilizações, valores e modos de vida, nomeadamente culturas étnicas nacionais e
culturas de outras nações; consciência da crescente interdependência global entre os
povos e as nações; capacidade de comunicação interpessoal; consciência não apenas
dos direitos mas também dos deveres que incumbem a cada indivíduo, grupo social
ou nação face aos outros; compreensão da necessidade de solidariedade e cooperação
internacionais; disponibilidade dos indivíduos de participar na resolução dos
problemas da sua comunidade, do seu país e do mundo em geral. (ONU, 1999, p. 644)
Este processo articula indivíduos, profissionais e organizações de todas as áreas da
sociedade civil em busca de uma outra sociedade, pautada por princípios e valores éticos que
primem por relações humanas diversas e saudáveis que vão ao encontro da igualdade e justiça
social. A paz é um valor inclusivo, molda-se pela dimensão e valores da coletividade, ao mesmo
tempo em que faz com que o sujeito, o profissional e a instituição, sintam, reflitam e ajam em
direção à sua construção e seu fortalecimento.
RESULTADOS E DISCUSSÕES: JUSTIÇA RESTAURATIVA E SUA
MATERIALIZAÇÃO NOS CÍRCULOS DE CONSTRUÇÃO DE PAZ
O Município de São Borja foi contemplado com a institucionalização do Centro
Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania/CEJUSC em 2016, inicialmente com a
implantação dos métodos auto compositivos de Mediação Judicial e Conciliação Judicial
capacitando 25 mediadores e conciliadores. A partir da implantação dessas duas importantes
ferramentas, iniciou-se o diálogo com o Tribunal de Justiça de Porto Alegre para que o
município fosse credenciado com a política pública de justiça restaurativa através do poder
judiciário. Eis que em novembro o mesmo ano, foi firmado o protocolo de Cooperação entre
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instituições públicas e privadas de São Borja, sendo uma delas, a Universidade Federal do
Pampa/UNIPAMPA. Para que a política pública se tornasse realidade, foi realizado um curso
de formação para 25 facilitadores judiciais em justiça restaurativa. Esse curso teórico-prático,
possibilitou a elaboração de um piloto com duas Escolas Municipais (Ubaldo Sorrilha da Costa
e Sagrado Coração de Jesus) e duas e Escolas Estaduais (Viriato Vargas e Tusnelda Lima
Barbosa).
A formação se deu em duas dimensões: teórico e prática em forma circular. Todo o
processo se deu a partir de publicações e literaturas especializadas de autores que destacam-se
na solidificação da área da educação para a paz como uma iniciativa pedagógica e campo
científico de estudos. Atualmente, a educação para a paz é “reconhecida como tarefa mundial,
exigência indiscutível, componente importante dos programas educativos, enfim, (...) uma
direção pedagógica necessária para a construção de uma sociedade democrática”
(GUIMARÃES, 2004, p. 9). Nesta perspectiva, entende-se a escola como um espaço onde
crianças e adolescentes apreendem e exercitam suas experiências de vida. Nesse sentido, é em
sala de aula que ocorre a descarga de suas frustrações, suas expectativas, atitudes tanto positivas
quanto negativas, pois neste ambiente estão outros sujeitos com experiências parecidas ou
totalmente diferentes das suas. E o projeto objetiva proporcionar à comunidade escolar espaço
de formação crítica e reflexão acerca dos assuntos relacionados à educação para paz tendo a
justiça restaurativa como mecanismo de preservação respeito aos direitos humanos.
O círculo de construção de paz, é o espaço para gerar relacionamentos entre os
participantes e também é um espaço para mediar os conflitos. È também o local para se conectar
com os outros participantes, facilitador ou a pessoas com quem fazer o círculo (jovem, professor
e comunidade).
Assim sendo, o círculo vai ajudar a família, oferecendo aos membros da família a chance
de reconhecer melhor a si mesmos. Logo, o círculo de construção de paz é um ambiente para
se fortalecer habilidades e costumes para formar relacionamentos saudáveis, porém não só
dentro do círculo, mas fora dele também.
Então pode caracteriza o círculo de construção de paz como:
O círculo é um processo estruturado para organizar a comunicação em grupo, a
construção de relacionamentos, tomada de decisões e resolução de conflitos de forma
eficiente. O processo cria um espaço à parte de nossos modos de estarmos juntos. O
círculo incorpora e nutre uma filosofia de relacionamento e de interconectividade que
pode nos guiar em todas as circunstâncias – dentro do círculo e fora dele (BOYES-
WATSON; PRANIS, 2011, p.19).
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Contudo, nesse trabalho vai ser abordado os círculos de conversa. Logo, diferentemente
dos círculos de resolução de conflitos e de decisão, sendo esses mais complexos, por causa do
processo para chegar a um consenso.
Nos círculos é feito todo processo de diálogo para expor o “eu verdadeiro”, sendo nos
jovens, nas famílias. O “eu verdadeiro” é a forma intacta do ser humano, isto é, essa forma é
sábia, gentil e boa. Dessa forma, não importa o que alguém tenha feito no passado ou “eu
verdadeiro” continua intacto dentro de você.
[...] o “o eu verdadeiro” que está em cada um. Está em você, em jovens e nas famílias
com quem você trabalha. A natureza do eu verdadeiro é sábia, gentil, justa, boa e
poderosa. O eu verdadeiro não pode ser destruído. Não importa o que alguém tenha
feito no passado e não importa o que tenha acontecido com ele ou ela, o verdadeiro
eu permanece tão bom, sábio e poderoso como no dia em que nasceu. Este modelo do
eu distingue entre o fazer e o ser. O que nós fazemos não é o todo que nós somos. Nós
frequentemente confundimos isso (BOYES-WATSON; PRANIS, 2011, p. 22).
Então dito isso o processo dos círculos é sobretudo, favorável para trabalhar com jovens
e com famílias. Tendo em vista isso podemos elencar como os círculos de paz podem ajudar na
evasão escolar. O processo de organização e realização do círculo se dá com a presença de um
facilitador. Este facilitador é responsável pelo diálogo e a condução de todo o processo. Nesse
espaço, todos são iguais, os participantes vão falar a verdade um para o outro, respeitosamente.
O projeto Piloto possibilitou a formação de aproximadamente 240 profissionais dessas
quatro escolas já referidas. A formação se deu através de 8 oficinas de formação, duas em cada
escola. Posteriormente, a realização de 23 círculos de construção de paz, atendendo
profissionais de todas as áreas que compõe os recursos humanos das escolas. Todo o processo
de planejamento e execução dos círculos foi feito em equipe inter e multidisciplinar (Serviço
Social, Pedagogia, Direito, Designer de Moda, Letras, Segurança Pública- Policial Civil). Entre
as principais categorias de realidade surgidas no decorrer da formação, está a violência. De um
modo geral, a violência se opõe a ética e aos valores de uma sociedade (EYNG; GISI; ENS,
2009).
Nas palavras de Chauí, é destacado que,
Em nossa cultura, a violência é entendida como o uso da força física, e do
constrangimento psíquico para obrigar alguém a agir de modo contrário à sua natureza
e ao seu ser. A violência é violação da integridade física e psíquica, da dignidade
humana de alguém. Eis porque o assassinato, a tortura, a injustiça, a mentira, o
estupro, a calúnia, a má-fé, o roubo são considerados violência, imoralidade e crime
(CHAUÍ, 1998, p. 21).
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Na atualidade, a violência apresenta-se como um desafio para a sociedade, é constituída
de diversas formas que podem se relacionar entre si. Entende-se que através da educação para
a paz e a democracia que precisam ser valorizadas na escola, pode-se combater e prevenir as
diversas forma de violência que estão presentes no cotidiano das escolas pesquisadas. É
importante maior acesso às formas de participação ativa nos espaços, no exercício de tolerância,
de justiça, de consciência do que é bom para todos, da compreensão do lugar do outro. No
respeito mútuo. É dessa forma que podemos fazer mudanças na realidade e através da
articulação e cooperação, se pode fazer revoluções. A educação para a paz é completa em suas
proposições, busca por uma cultura para a paz mundial, local e pessoal, mas, sem esquecer que
a paz começa em nós, e que todos somos importantes neste processo.
É necessário perceber diariamente a importância que a tolerância exerce na vida dos
alunos quando compreendida e praticada. A função que a Psicologia Genética trouxe para o
desenvolvimento da educação para a paz e uso da tolerância nas suas práticas mostra que o
homem é influenciado por diversos fatores externos e internos, e portanto, ninguém é violento
de nascença assim como pode ser violento pelas influências que recebe dos fatores externos.
Assim como mostra como o desenvolvimento dos alunos está interligado aos conflitos que vive
diariamente e a forma com que os soluciona. A forma de resolução dos conflitos está
relacionada com a equilibração que a criança deve fazer durante um conflito, determinado pela
reflexão do conflito em si e formas para solucioná-lo é importante no desenvolvimento pela
forma com que a criança irá reagir e assim, deve ser mediado para que use da não violência e
do diálogo, práticas da educação para a paz. A tolerância é uma das virtudes que são defendidas
pela educação para a paz para a construção de uma cultura de paz, pois é a forma de conviver
com outras pessoas, respeitando-as e as compreendendo.
Após a realização das oficinas, foram realizados um total de 23 círculos de construção
de paz nas quatro escolas piloto e nos órgãos gestores da Educação. Os círculos de construção
de paz são baseados em culturas ancestrais como os indígenas e os aborígenes, e são resgatados
dessas culturas milenares como alternativas nos dias atuais para a resolução de conflitos
pautados pela comunicação não violenta. Nossa forma ocidental de resolver os problemas é
hierarquizada, pautada pela competitividade com os valores da cultura de dominação, cujo
poder e o controle estão presentes.
Pranis (2010) refere que a teoria dos processos circulares ressurge da
convicção de que a criação de espaços e possibilidades para entendimentos mútuos tem base na
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liberdade de expressão. O círculo usa elementos estruturais
intencionais e tem como atividade principal, a contação de histórias a partir de uma cerimônia
de abertura, construção de valores e diretrizes onde as pessoas se (re)aproximam da vida umas
das outras. As diferentes histórias unem a humanidade comum que há nas pessoas a partir da
experiência humana. Nos círculos de construção de paz, as pessoas se tratam como iguais em
ambiente seguro de respeito, reunindo a sabedoria comunitária a partir das necessidades e
diferenças individuais dos participantes, para que todos estejam presentes como um ser humano
inteiro que consegue se reconhecer a partir de valores fundamentais.
O círculo pode ser aplicado em qualquer contexto social e “mobilizam todos os
aspectos da experiência humana: espiritual, emocional, físico e mental” (PRANIS,
2010, p. 26). De acordo com a autora, sua metodologia consiste basicamente nos
seguintes itens: Cerimônia de abertura: No início e no fim como uma atividade de
centramento que demarcada o espaço sagrado do círculo, estabelece o primeiro e o
último contato no grupo; Centro do Círculo, onde se coloca a simbologia da ênfase
do círculo com os valores e diretrizes que dão o direcionamento seguro do círculo;
Objeto (bastão) da (fala) palavra: regula o diálogo e a escuta, peça fundamental na
promoção das emoções, a pessoa que recebe o objeto pode falar sem ser
interrompida e permite a escuta desta pessoa por todos os participantes do círculo;
Facilitador (guardião) contribui para que o grupo mantenha espaço coletivo e
seguro de fala e de escuta. Através das histórias contadas surge a sabedoria coletiva porque os
círculos são construídos a partir de valores partilhados, partindo
do princípio de um desejo humano coletivo de se estar ligado uns aos outros de
forma positiva. A introdução ao círculo é feita a partir da convicção de que cada um
que ali está tem valores e dignidade, que somos interdependentes, e com a
necessidade de focar em relacionamentos saudáveis. Mas que para isso, há de se
considerar que todas as experiências humanas são importantes para a vida coletiva (PRANIS,
2010).
O processo circular trabalha a partir de valores que os próprios sujeitos dos círculos
carregam em si. Nesta perspectiva, os valores são elencados como valores humanos que são
largamente defendidos pela educação para paz como sendo de cooperação, respeito, tolerância,
justiça, compreensão, democracia, etc. Valores que devem ser incentivados desde cedo na vida
das crianças e jovens para que consigamos formar cada vez mais consciências e autonomias
críticas para lutar contra as formas de violência, discriminação, injustiças, explorações que são
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deixadas de lado, naturalizadas. É na participação democrática, na criticidade de indivíduos que
não se conformam com injustiças que se pode ter esperança que ainda há motivos para mudança
e essa força que impulsiona é a educação para a paz.
As reflexões acerca da temática pesquisada, desafiam a prática de valores
historicamente perdidos na sociedade atual. Ao utilizar a justiça restaurativa
materializada em círculos de construção de paz, contribui-se para o rompimento com
o modelo tradicional de comportamento que promove e fortalece processos de
desigualdades. Os principais resultados apontam para:
Maior aprofundamento da temática à educação para a paz no ambiente escolar;
Contribuição na elaboração de ações para fins de enfrentamento e prevenção da violência no
meio escolar; Contribuição na formação dos alunos das escolas integrantes do projeto na
perspectiva da educação para uma Cultura de Paz; Contribuir para maior visibilidade da cultura
da paz.
O processo inicial com as equipes das escolas tem mostrado o que é a Justiça
Restaurativa na prática e consequentemente, vem conquistando os profissionais a aderirem à
proposta piloto. No que se refere à realização dos círculos, os facilitadores observaram que dá
uma apreensão no início. Outra preocupação manifestada foi a dificuldade do planejamento em
dupla, quando a dupla não se se encontra presencialmente no processo de planejamento.
Observou-se ainda que haviam subgrupos de relações profissionais e pessoais nos círculos, o
que ocasionou um distanciamento entre alguns com os outros participantes que eram novos no
local de trabalho ocasionando pouca interação destes. Por fim, de um modo geral, observou-se
a necessidade dos facilitadores falarem o mínimo possível e não dar “conselhos”, considerando
que no círculo fala-se para os outros a partir de si. Avalia-se que o número de pessoas não pode
ser superior a dez pessoas considerando a metodologia do círculo e o tempo disponível para a
realização do mesmo.
CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS
A implantação da Justiça Restaurativa vem provocar reflexões que desafiam a elaboração
de propostas concretas de intervenção no âmbito da educação formal para a construção e
fortalecimento de uma cultura de paz. Esta perspectiva torna-se concreta a partir da
compreensão e absorção da concepção de paz como construto cultural e pedagógico. O projeto
tem proporcionado que as escolas discutam as principais concepções teóricas, ao mesmo tempo
em que vem oportunizando familiaridade com a construção histórica da educação para uma
55
Cultura de Paz na perspectiva de proposições frente à materialização de uma nova cultura,
utilizando-se da educação como processo. Pode-se dizer a escola e a família são espaços
fundamentais de construção orgânica do saber em forma de convívio social. Nesta perspectiva,
o espaço da educação formal é fecundo para que a cultura de paz a través dos círculos de
construção de paz torne-se cada vez uma realidade no horizonte da população de São Borja.
REFERÊNCIAS
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PRANIS, Kay. Processos circulares. SP: Palas Athena, 2010.
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para o século 21. Disponível em:
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Athena, 2008.
57
A CULTURA DE PAZ NO ENFRENTAMENTO DA EVASÃO ESCOLAR
Ana Carolina Vaz dos Santos6
Alessandro Almeida da Silva7
Rafaela Campos de Paula8
Simone de Barros Oliveira9
RESUMO: O ambiente escolar configura um organismo vivo em um contexto repleto de
pluralidade e diferentes visões de mundo, sendo que para muitas crianças/adolescentes entrar
na escola significa ampliar o seu conhecimento sobre novas realidades, causando assim, um
estranhamento de valores socioculturais e econômicos, tendo em vista que a escola além de ser
um campo de construção de conhecimentos também caracteriza um campo de trocas de
vivências. No entanto, ocorre um crescente aumento nos números de alunos infrequentes, que
envolvem diversos fatores determinantes para esta evasão, nesse sentindo, vários mecanismos
foram elaborados para o embate de tal demanda, um deles com articulação de diversas
instituições (Ministério Público/RS, Conselho Tutelar/RS e Secretária Estadual de
Educação/RS), é a Ficha de Comunicação do Aluno Infrequente (FICAI), que possui a
finalidade de estabelecer uma atuação intersetorial para a prevenção e o combate a infrequência,
o abandono e a evasão escolar. Nessa perspectiva, a Cultura de Paz desponta como uma
estratégia ao enfrentamento da evasão escolar, pois busca disseminar uma nova probabilidade
de relação social que vise transformar o modelo atual das relações sociais e consequentemente
atinge as relações escolares, tendo como principais ferramentas o diálogo e a negociação entre
indivíduos para a solução de conflitos. A Cultura de Paz trará o respeito as diferenças no
ambiente escolar e consequentemente uma possível solução de conflitos e enfrentamento as
suas demandas (evasão) por meio do diálogo. Logo, a pesquisa tem como objetivo a análise dos
relatórios da FICAI, sendo assim, a pesquisa é realizada em parceria com o Ministério Público
6Possui graduação em Direito pelo Instituto Cenecista de Ensino Superior Santo Ângelo (2014). Atualmente é
acadêmica do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Pampa e do curso de pós-graduação modalidade
lato-sensu em Políticas e Intervenção em Violência Intrafamiliar da Universidade Federal do Pampa, campus São
Borja/RS. Membro do grupo de pesquisa Educação Direitos humanos e Fronteira. E-mail:
[email protected] 7Graduado em Ciências Sociais - Ciência Política pela Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Membro
do grupo de pesquisa Educação Direitos humanos e Fronteira. E-mail: [email protected]
8Discente do curso de Serviço Social pela Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Membro do grupo de
pesquisa Educação Direitos humanos e Fronteira. E-mail: [email protected] 9Professora Adjunta da Universidade Federal do Pampa/UNIPAMPA, Mestre e Doutora em Serviço Social, pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/PUCRS, líder do Grupo de Pesquisa Educação, Direitos
Humanos e Fronteira. E-mail: [email protected]
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que é a instituição responsável pelos processos que envolvem os alunos infrequentes nas escolas
da rede pública de ensino do município de São Borja/RS.
Palavras-Chaves: Cultura de paz; Evasão Escolar; FICAI.
INTRODUÇÃO
O proposto trabalho cientifico debate uma importante questão dentro do ambiente
escolar, a evasão. Do mesmo modo, observa-se o aumento dos alunos que deixam de frequentar
a escola por motivos multifacetados. Assim sendo, apresenta-se a Cultura de Paz como
alternativa para este problema social abrangendo além do ambiente escolar, as relações
familiares e comunitárias.
A Cultura de Paz vem na perspectiva da prevenção e resolução de conflitos de forma
pacifica, pregando noções quanto liberdade, justiça, democracia, tolerância, solidariedade,
cooperação, pluralismo, diversidade cultural, diálogo e entendimento em todos os níveis da
sociedade e entre as nações, desta forma a Cultura de Paz desponta como uma alternativa viável
para o enfrentamento de questões advindas de uma sociedade que possui suas estruturas sociais
constituídas por desigualdades, opressões e violência.
O artigo realizado para esse estudo é de abordagem qualitativa, sendo que esse trabalho
utilizou de pesquisa documental, pois analisou os relatórios gerenciais das FICAI do período
06/02/17 até 08/08/17, e o Termo de Cooperação que regulamenta a FICAI. Contudo, os
relatórios das FICAI, apresentaram-se limitados de mais informações referentes a infrequência
dos estudantes, pois o sistema encontra-se em fase de transição para a forma online, assim seus
dados demostram disparidades nos relatórios.
Entretanto, foi feita a análise dos possíveis motivos que contribuíram para com que os
alunos deixassem de frequentar a escola. Consequentemente, os motivos apontados nos
relatórios que contribuíram para a evasão dos alunos analisados foi: negligência, resistência,
distorção idade x série, reprovação, gravidez ou paternidade, dificuldade na aprendizagem,
doença, envolvimento com drogas, problemas de relacionamento, carência material e violência
familiar.
O artigo está estruturado da seguinte forma, primeiramente foi abordado de maneira
breve aspectos históricos da cultura de paz e a sua contextualização universal, em seguida foram
apontadas questões quanto a educação como direito inalienável e os instrumentos de eficácia
para a proteção do direito a educação de crianças e adolescentes, com ênfase nos
59
desdobramentos da Ficha de Comunicação do Aluno Infrequentes, despontando a Cultura de
Paz e educação para paz como instrumentos possíveis para as demanda de infrequência/evasão
escolar. Por fim, foi sugerido propostas para combater a evasão escolar utilizando a cultura de
paz por meio da educação para a paz.
De tal modo, a pesquisa busca analisar os relatórios das FICAI dos alunos infrequentes
de escolas da rede pública do município de São Borja, bem como, demonstrar como a Cultura
de Paz pode configurar-se como um mecanismo efetivo para a proteção ao direito a educação
de crianças e adolescentes e consequentemente uma ferramenta para o enfrentamento da
infrequência/evasão escolar.
CULTURA DE PAZ: BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO
A “Carta das Nações Unidas” que foi assinada em 26 de julho de 1945 é o tratado que
constituiu a ONU. Devido aos poderes da Carta e ao seu carácter internacional, as Nações
Unidas podem agir sobre as questões que a humanidade tem no século XXI, como a paz e a
segurança, as mudanças climáticas, o desenvolvimento sustentável, os direitos humanos,
desarmamento, terrorismo, emergências humanitárias e de saúde, igualdade de gênero,
governança, produção de alimentos e etc.
As Nações Unidas iniciaram em 24 de outubro de 1945, com precedência em manter a
segurança internacional e a paz entre as nações. Atualmente, 193 Estados são membros das
Nações Unidas, que estão representados no corpo deliberativo, a Assembléia Geral. A
Organização fornece um fórum para os seus integrantes discutirem seus pontos de vista na
Assembléia Geral, no Conselho de Segurança, no Conselho Econômico e Social e em outros
órgãos e comissões, de tal modo a Organização tornou-se um mecanismo para que os governos
encontrem áreas de acordo e soluções para os problemas juntos (NOLETO, 2010).
A cultura de paz possui um conceito amplo, que de acordo com a declaração da ONU
inclui respeito à vida, aos princípios de soberania e independência política das nações, à solução
pacífica dos conflitos, à igualdade de direitos de homens e mulheres, e a proteção do meio
ambiente. Significa também, a adesão aos princípios de liberdade, justiça, tolerância,
solidariedade, cooperação, diversidade cultural, diálogo e entendimento em todos os níveis da
sociedade. Conforme o art. 1º da resolução nº 53/243 que dispõe acerca da Declaração e
Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz, promulgada em 6 de outubro de 1999:
60
Art. 1º. Uma Cultura de Paz é um conjunto de valores, atitudes, tradições,
comportamentos e estilos de vida baseados:
a) No respeito à vida, no fim da violência e na promoção e prática da não-
violência por meio da educação, do diálogo e da cooperação;
b) No pleno respeito aos princípios de soberania, integridade territorial e
independência política dos Estados e de não ingerência nos assuntos que são,
essencialmente, de jurisdição interna dos Estados, em conformidade com a
Carta das Nações Unidas e o direito internacional; c) No pleno respeito e na
promoção de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais;
d) No compromisso com a solução pacífica dos conflitos;
e) Nos esforços para satisfazer as necessidades de desenvolvimento e proteção
do meio-ambiente para as gerações presente e futuras;
f) No respeito e promoção do direito ao desenvolvimento;
g) No respeito e fomento à igualdade de direitos e oportunidades de mulheres
e homens;
h) No respeito e fomento ao direito de todas as pessoas à liberdade de
expressão, opinião e informação;
i) Na adesão aos princípios de liberdade, justiça, democracia, tolerância,
solidariedade, cooperação, pluralismo, diversidade cultural, diálogo e
entendimento em todos os níveis da sociedade e entre as nações;
Foi declarado pelas Nações Unidas no ano de 2000, como o Ano Internacional da
Cultura de Paz, e assim indicando o começo de uma mobilização e aliança mundial com o
intuito de transformar os princípios norteadores da cultura de paz em práticas concretas. Antes
mesmo do século XXI, em novembro de 1998, por meio de nova resolução A/53/243, as Nações
Unidas proclamaram a década 2001-2010, como a Década Internacional da Promoção da
Cultura de Paz e Não Violência em Benefício das Crianças do Mundo a fim de fortalecer o
movimento global formado e apontando a UNESCO como responsável por organizar as
atividades do sistema ONU, e dentre outras organizações. A UNESCO, é a agência que tem
como objetivo a garantia da paz por meio da cooperação intelectual entre as nações,
acompanhando o desenvolvimento e auxiliando os 193 Estados-Membros na busca de soluções
dos conflitos.
Os conflitos existem em uma cultura de paz? Existem, pois as pessoas têm necessidades,
interesses diferentes umas das outras, a diferença na cultura de paz é como os conflitos são
resolvidos, que é pela ótica de sem confronto. Essa é uma das características da cultura de paz,
a nossa vida em sociedade é uma rede, está tudo interligado, por isso então que nossas atitudes
interferem nessa rede. E seguindo deste princípio é grande o poder das pessoas comprometidas
com estilos de vida associados à cultura de paz. A cultura de paz está inteiramente ligada à
61
prevenção e à resolução não-violenta dos conflitos, reconhecendo a necessidade de eliminar
todas as formas de discriminação e intolerância, uma cultura baseada em tolerância e
solidariedade. A cultura de paz procura resolver os problemas por meio do diálogo, da
negociação e da mediação, de forma a tornar a guerra e a violência inviáveis (NOLETO, 2010).
Os dias atuais continuam com inúmeros conflitos armados e lutas civis que estão
sacrificando vidas humanas em diversos países. E quando se vive no meio de uma comunidade
ecoada pela violência, romper esse ciclo exige muita força, para que se construa outro ciclo de
não-violência, com uma sociedade de mais tolerância, cooperação, solidariedade.
Outros fatores de tensão, têm sua origem na deterioração do meio ambiente, na
quantidade de população, na competição por água doce que é cada vez mais escassa, na
desnutrição e na flagrante desigualdade econômica-social não só entre os países, como também,
internamente neles. Trocar essa cultura de guerra, dos dias atuais por uma cultura de paz requer
um esforço educativo prolongado para modificar as reações à adversidade e construir um
modelo de desenvolvimento que possa suprimir às causas de conflito. É preciso revisar o
conceito de adotar modelos de desenvolvimento de outros países, para respeitar cada país, suas
tradições e diversidade, incorporando uma dimensão humana e social e de participação que
deve significar democracia. É papel do poder público implantar medidas para acabar com a
violência. De acordo com o art. 5º “Os governos têm função primordial na promoção e no
fortalecimento de uma Cultura de Paz” (RESOLUÇÃO Nº 53/243, 1999). Assim, em cada país,
estado, cidade, bairro, a cultura de paz pode ser instituída de diferentes formas, trabalhando
para eliminar as profundas causas culturais da violência e da guerra, tais como a pobreza, a
exclusão, a ignorância ou a exploração.
Em face desse inaceitável estado dos fatos que acercam a sociedade de diversas tipos
de violência, desencadeou-se uma mobilização em favor da paz e da não violência as quais
devem tornar-se realidade cotidiana, “No mundo interativo, tudo é uma questão de
conscientização, mobilização, educação, prevenção e informação de todos os níveis sociais em
todos os países” (NOLETO, 2010).
A elaboração e a implantação de uma cultura de paz requerem a participação de todos,
como salienta na resolução no art. 2º, “O progresso até o pleno desenvolvimento de uma Cultura
de Paz se conquista através de valores, atitudes, comportamentos e estilos de vida voltados ao
fomento da paz entre as pessoas, os grupos e as nações” (RESOLUÇÃO Nº 53/243, 1999),
portanto, todo esse processo também cabe aos cidadãos, no sentido de organizarem-se e
62
assumirem sua parcela de responsabilidade participando inteiramente no desenvolvimento de
suas sociedades.
A cultura de paz é uma iniciativa de longo prazo que leva em conta o contexto histórico,
político, econômico, social e cultural de cada ser humano e sociedade. É necessário aprendê-la,
desenvolvê-la e colocá-la em prática no dia a dia familiar, regional ou nacional é um processo
que sem dúvida tem um começo, mas que não se pode ter um fim, a cultura de paz é uma
construção individual e coletiva que está ao alcance da sociedade. Através da educação para
uma cultura de paz é possível se obter um olhar mais crítico sobre esses aspectos, perceber de
maneira clara onde estão as reproduções da cultura da violência e se tornar consciente.
MECANISMOS PROTETIVOS DO DIREITO A EDUCAÇÃO: ENFRENTAMENTO
DA EVASÃO ESCOLAR DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Partindo de uma compreensão histórica a educação configura-se como um direito
fundamental a população de importância indiscutível. No atual contexto10 socioeconômico e
político brasileiro o direito a educação corrobora para a defesa dos direitos humanos diante de
uma sociedade permeada por opressões e explorações, tendo em vista que a educação vem na
direção de um método palpável para uma possível transformação social que supere os limites e
contradições de uma sociedade que possui a desigualdade como um dos seus elementos
constituintes (FREIRE, 1979). Assim, a educação efetiva-se de forma plena como um direito
inalienável garantido pela Constituição Federal de 1988 em seu art. 205, que dispõe:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida
e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Nesta perspectiva, além da Constituição Federal de 1988 existem outros mecanismos
jurídicos que asseguram o direto a educação, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB) de 1996 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1990, legislações estas que
pactuam a prerrogativa da escola pública para todos os brasileiros, eis que nenhuma criança,
jovem ou adulto podem deixar de estudar por falta de vaga.
10 A atual conjuntura brasileira apresenta a instauração de uma onda reacionária com um partido de direita no
poder e consequentemente o avanço das classes dominantes, de tal forma direitos estão sendo suprimidos. A
promulgação da Emenda Constitucional nº 95 limita o congelamento dos gastos públicos por 20 anos, causando
impactos principalmente nas áreas da educação e saúde.
63
A partir da LDB nº 9.394 promulgada em 20 de dezembro de 1996, uma série de
alterações ocorreram no panorama da educação para melhorar sua qualidade, de tal modo que
a educação básica passou a ser estruturada por etapas e modalidades de ensino englobando a
Educação Infantil, o Ensino Fundamental obrigatório de nove anos e o Ensino Médio. O art. 5º
da referida lei dispõe sobre a educação básica que possui obrigatoriedade de acesso sendo um
direito público onde qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização
sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída e o Ministério Público poderão
acionar o poder público para exigi-lo. Cabendo assim, ao poder público na figura do Ministério
Público a competência de tutelar em conjunto como os pais e/ou responsáveis a frequência
escolar da criança e do adolescente, ainda, na existência de casos de negligência caberá
imputação por crime de responsabilidade. Nesse sentido, o ECA na composição de suas
políticas de proteção integral aos direitos da criança e do adolescente voltadas para a educação
no que tange a infrequência/evasão escolar na educação básica, afirmará que quando esgotados
os recursos escolares deverá ser feito comunicado ao Conselho Tutelar quanto tal demanda.
É possível perceber uma rede de proteção que intervém para a garantia do direito a
educação para crianças e adolescentes, desta forma existem mecanismos protetivos que
auxiliam tal amparo, uma das estratégias adotada atualmente para garantir o direito a educação
na infância e juventude partindo do enfrentamento de uma demanda recorrente no contexto
escolar, a infrequência/evasão escolar, é a ficha de comunicação do aluno infrequente – FICAI,
que representa um procedimento uniforme de controle do abandono e da evasão escolar no
Estado do Rio Grande do Sul formada por meio de uma rede de apoio institucional composta
pela Escola, Conselho Tutelar e Ministério Público, que busca regulamentar ações propensas a
tornar efetivo o direito a educação, configurando-se um sujeito ativo para a viabilização da
permanência do aluno na escola (MINISTÉRIO PÚBLICO, 2011).
A FICAI foi instituída pela primeira vez no Estado do Rio Grande do Sul no ano de
1997, fruto da união de diversas instituições11 que buscavam zelar pela efetiva garantia do
direito a educação pública e de qualidade, principalmente no que diz respeito a permanência na
rede escolar, das crianças e dos adolescentes nos níveis estaduais e municipais de ensino (VAZ,
2014). Sendo assim, os principais objetivos da FICAI são a atuação intersetorial para a
prevenção e o combate à infrequência/evasão escolar, como aponta Vaz (p. 3, 2014) “o intuito
do uso da Ficha FICAI é trazer, pela interação da rede e conscientização dos estudantes e
11Promotorias da Infância e Juventude, Conselhos Tutelares, Secretária Estadual de Educação e Secretária
Municipal de Educação.
64
responsáveis, o aluno infrequente de volta para a escola, fazendo-se, para tanto, contato direto
com e ele e seus familiares”.
Dada a notória importância da FICAI como mecanismo de prevenção e combate a
infrequência/evasão escolar e a sua alta potencialidade como instrumento de eficácia para
proteção do direito a educação de crianças e adolescentes, foi pactuado em 29 de agosto de
2011 o Termo de Cooperação que regulamenta a FICAI, que de acordo como o mesmo são
envolvidos no processo o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, a Secretária
Estadual de Educação, o Conselho Estadual de Educação, o Conselho Estadual dos Direitos da
Criança e do Adolescente, a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação/RS, a
União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação/RS, a Associação dos Conselheiros
Tutelares/RS, a Federação das Associações dos Municípios do Estado do Rio Grande do Sul-
FAMURS e o Conselho Estadual de Assistência Social (MINISTÉRIO PÚBLICO, 2011).
Deste modo, por meio do art. 1º do Termo de Cooperação, tais órgãos se comprometem
a adotar procedimento uniforme de controle do abandono e evasão escolar através da FICAI,
assim haverá a implantação de um sistema interligado da Ficha informatizada12 nas escolas com
o Ministério Público e o Conselho Tutelar. Além dessa articulação interinstitucional, a rede de
apoio à escola contará com a participação da comunidade em geral, na tentativa de chamar a
sociedade para discutir estratégias e mecanismos para o retorno e/ou permanência do aluno na
escola.
Quando aluno que possui entre 6 a 17 anos apresentar mais de 5 faltas consecutivas ou
20% de ausência mensal na escola, ambas injustificadas, deverá o professor regente da turma
preencher a FICAI e encaminhá-la imediatamente para a Equipe diretiva13. Desta forma,
primeiramente ocorrerá a aproximação por via da orientação pedagógica da escola, onde será
feito o contato com os paios e/ou responsáveis com o intuito de promover uma orientação e
investigação quanto os motivos causadores da infrequência escolar com o objetivo de retornar
à assiduidade do aluno, tais encaminhamentos serão feitos no prazo de uma semana. Findado o
prazo e caso as tentativas de aproximação forem inexitosas, o próximo passo será o
encaminhamento da FICAI via Equipe Diretiva da escola para o Conselho Tutelar, para tomar
12 Importante ressaltar que a partir da pactuação do Termo de Cooperação que regulamenta a FICAI no ano de
2011, a ficha passou a ser elaborada somente de modo online. Anteriormente existia a possibilidade do
preenchimento da ficha na forma escrita. 13 MINISTÉRIO PÚBLICO. Termo de Cooperação FICAI: “Art. 5º: A Equipe Diretiva, de posse do relatório,
deverá contatar os pais ou responsáveis, imediatamente, registrando os encaminhamentos efetivados com o
objetivo do retorno à assiduidade do aluno, no prazo de uma semana; deverá orientar os pais ou responsáveis, a
fim de o aluno (a) retornar à escola e mostrar-lhe seus deveres para com a educação do(a)(s) filho(a)(s)”.
65
as medidas cabíveis no âmbito de suas atribuições14. De tal modo, o Conselho Tutelar terá o
prazo de duas semanas após o recebimento da FICAI para averiguar e intervir nos motivos
causadores da infrequência escolar e fazer possíveis encaminhamentos aos atendimentos
(saúde, assistência social, entre outros), dando preferência para a utilização de visitas
domiciliares, conforme dispõe o art. 7º do Termo de Cooperação da FICAI. Nos termos do
parágrafo 2º do art. 7º, se a situação permanecer sem êxito o Conselho Tutelar deverá:
I – Articulará a busca ativa, a avaliação da família pelo CRAS/CREAS e a elaboração
do plano individual de atendimento;
II – Encaminhará a Ficha ao Ministério Público para a atuação extrajudicial e/ou
judicial cabíveis, informando o encaminhamento à Escola.
Portanto, por fim será feito o encaminhamento da FICAI para o Ministério Público
quando as tentativas de aproximação do Conselho Tutelar não obterem sucesso, assim a
promotoria instaurará inquérito civil para acompanhar as situações das crianças e adolescentes
infrequentes, com a finalidade de adotar medidas de proteção e/ou alertar quanto as medidas
jurídicas cabíveis aos pais ou responsáveis pelo não cumprimento do seu papel frente a garantia
do direito a educação15. Importante destacar que a qualquer momento em que o aluno retornar
para a escola a FICAI será arquivada. No que se refere a atuação do Ministério Público nos
procedimentos da FICAI:
De posse da 1ª via da FICAI, onde constará a identificação e a qualificação do aluno,
bem como o resumo das providências efetuadas pela Escola e pelo Conselho Tutelar,
o Promotor de Justiça tentará ainda o retorno do aluno (poderá realizar audiência
pública com os pais ou notificar para ouvir individualmente) e, se for o caso,
promoverá a responsabilidade dos pais ou responsáveis. Em qualquer das hipóteses,
o Promotor de Justiça dará ciência do ocorrido ao Conselho Tutelar e à Escola,
efetuando a devolução da 1ª via para a escola, que registrará o encaminhamento na 2ª
via, remetendo a 1ª via à respectiva Secretaria de Educação (ROCHA, s.p.,2011).
14 MINISTÉRIO PÚBLICO. Termo de Cooperação FICAI: “Art. 6º: Esgotados os recursos cabíveis e findo o
prazo de uma semana de que trata o artigo anterior, não havendo sucesso no retorno do aluno a escola, a Equipe
Diretiva deverá encaminhar a FICAI, com a síntese dos procedimentos adotados e efetivados, ao Conselho Tutelar,
para as providências cabíveis no âmbito de suas atribuições, enviando cópia a respectiva Coordenadoria Regional
de Educação ou a Secretária Municipal da Educação”. 15MINISTÉRIO PÚBLICO. Termo de Cooperação FICAI: “Art. 9º: O Ministério Público deverá acionar, no
mínimo semestralmente, os gestores da educação, conselhos de educação, de assistência social e dos direitos da
criança e do adolescente, conselhos tutelares e serviços da rede de proteção, por intermédio da Rede de Apoio à
Escola, para discussão e encaminhamentos acerca dos dados coletivos das FICAIs encaminhadas no período, com
o fito do planejamento de políticas e ações necessárias a garantia do direito a educação e do dever de educar”.
66
Nesta perspectiva, a infrequência e consequentemente a evasão escolar16 de crianças e
adolescentes se bem observada está frequentemente associada as seguintes expressões da
questão social: baixo rendimento escolar, dificuldades de aprendizagem, que por sua vez podem
serem ocasionadas por diversos fatores que nem sempre serão perceptíveis como alunos
oriundos de famílias extremamente pobre e com vínculos familiares enfraquecidos, situações
de exclusões no próprio ambiente escolar, desigualdades sociais, demandas de álcool e outras
drogas, falta de acesso a recursos de necessidades básicas. Assim, somente após uma leitura
mais detalhada da realidade do aluno será possível desvendar tais facetas ocultadas da
infrequência/evasão escolar. Nesse sentido, como já mencionado anteriormente a FICAI
configura-se como um importante mecanismo de garantia ao direito a educação de crianças e
adolescentes e vai além ao promover a articulação de uma rede de apoio à escola para investigar
a realidade concreta de cada situação de infrequência/evasão escolar, envolvendo nas
discussões de estratégias e mecanismos para permanência e retorno do aluno na escola a
comunidade em geral, tal articulação viabiliza o acesso a direitos básicos e assegurados
constitucionalmente como é o caso da educação, evidenciando o subsidio de condições de
igualdade para a população onde exista uma participação popular plena e efetiva de todos na
sociedade (COMIRAN, 2009).
A FICAI se fortalece como mecanismo de atuação momentânea e investigativo de outras
demandas de violação de direitos por meio do fomento do trabalho em rede, entretanto dado a
infrequência/evasão escolar ser um fenômeno multifacetado é necessário a superação da busca
de responsáveis ou culpados por tais situações para assim, proporcionar o fortalecimento das
capacidades e habilidades básicas necessárias para o desenvolvimento da autonomia e
intelectualidade dos alunos e consequentemente a sua permanência na escola. Nesta concepção,
a Cultura de Paz irá despontar como uma estratégia viável a prevenção e auxílio ao
enfrentamento da infrequência/evasão escolar, pois irá trabalhar os conflitos resultantes das
relações intra e extraescolares por meio do diálogo, fazendo um tripé entre os alunos, a escola
e a comunidade. Potencializando assim o trabalho realizado na escola com os alunos
infrequentes, levando em consideração que o ambiente escolar possui mais proximidade com a
realidade dos alunos, das suas famílias e do seu território para mediar as situações. Assim, a
inserção da Cultura de Paz no ambiente escolar irá proporcionar situações de intensa
aprendizagem e transformação, eis que os conflitos fazem parte da vida em sociedade e não
16 Segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais - INEP, a evasão somente se materializa
quando o aluno deixa de se matricular no ano seguinte. Disponível em: http://www.edudatabrasil.inep.gov.br
67
possuem uma natureza maniqueísta de bem ou mal, o que subsidia a diferenciação são as suas
repercussões que podem ser negativas ou positivas, nesse sentido a forma como se é manejado
tais conflitos que irá resultar em situações e/ou consequências não desejadas como a
infrequência/evasão escolar.
EDUCAÇÃO PARA PAZ NO ENFRATAMENTO DA EVASÃO ESCOLAR
A educação é um direito universal, assim, deve-se pensar vários caminhos para colocar
em prática uma política educacional de qualidade. Logo, a Cultura de paz pode ser um desses
caminhos, por meio da educação de paz. Assim sendo, o termo Paz como deve ser entendido
para concebê-lo como educação:
Paz é um princípio prático da civilização humana e da organização social que está
fundamentada na própria natureza humana. A paz não escraviza o homem, pelo
contrário, ela a exalta. Não humilha, muito ao contrário, ela torna consciente de seu
poder no universo. E porque está baseada na natureza humana, ela é um princípio
universal e constante que vale para todo ser humano. É esses princípio que deve ser o
nosso guia na elaboração de uma ciência da paz e da educação dos homens para a paz
(MONTESSORI, 2004, p.54 apud CARVALHO, 2011, p. 215, 2011).
Contudo, a sociedade ainda está empregando o sentido tradicional de Paz, aquele
utilizado para fins de guerra. Dessa maneira, deve ser reformular o conceito de paz, pois as
sociedade mudam, surgem outras questões sociais.
Desse modo, é necessário que aja propostas para a pedagogia para a Paz, sendo nas
metodologias de ensino, nas atitudes de relações entre os integrantes do meio escolar.
Portanto, precisa ser desenvolver a educação para paz no ambiente escolas, pois nesse
ambiente vão gerar sentimentos de tolerâncias, solidariedade e assim, vai se difundir a cultura
para não violência no ambiente escolar.
O CÍRCULO DE CONSTRUÇÃO DE PAZ
O círculo de construção de paz, é o espaço para gerar relacionamentos entre os
participantes e também é um espaço para mediar os conflitos. È também o local para se conectar
com os outros participantes, facilitador ou a pessoas com quem estar fazendo o círculo (jovem,
professor e comunidade).
68
Assim sendo, o círculo vai ajudar a família, oferecendo aos membros da família a chance
de reconhecer melhor a si mesmos. Logo, o círculo de construção de paz é um ambiente para
se fortalecer habilidades e costumes para formar relacionamentos saudáveis, porém não só
dentro do círculo, mas fora dele também.
Então pode caracteriza o círculo de construção de paz como:
O círculo é um processo estruturado para organizar a comunicação em grupo, a
construção de relacionamentos, tomada de decisões e resolução de conflitos de forma
eficiente. O processo cria um espaço à parte de nossos modos de estarmos juntos. O
círculo incorpora e nutre uma filosofia de relacionamento e de interconectividade que
pode nos guiar em todas as circunstâncias – dentro do círculo e fora dele (BOYES-
WATSON; PRANIS, 2011, p. 19).
Contudo, nesse trabalho vai ser abordado os círculos de conversa. Logo, diferentemente
dos círculos de resolução de conflitos e de decisão, sendo esses mais complexos, por causa do
processo para chegar a um consenso.
Nos círculos é feito todo processo de diálogo para expor o “eu verdadeiro”, sendo nos
jovens, nas famílias. O “eu verdadeiro” é a forma intacta do ser humano, isto é, essa forma é
sábia, gentil e boa. Dessa forma, não importa o que alguém tenha feito no passado ou “eu
verdadeiro” continua intacto dentro de você.
[...] o “o eu verdadeiro” que está em cada um. Está em você, em jovens e nas famílias
com quem você trabalha. A natureza do eu verdadeiro é sábia, gentil, justa, boa e
poderosa. O eu verdadeiro não pode ser destruído. Não importa o que alguém tenha
feito no passado e não importa o que tenha acontecido com ele ou ela, o verdadeiro
eu permanece tão bom, sábio e poderoso como no dia em que nasceu. Este modelo do
eu distingue entre o fazer e o ser. O que nós fazemos não é o todo que nós somos. Nós
frequentemente confundimos isso (BOYES-WATSON; PRANIS, 2011, p. 22).
Então dito isso o processo dos círculos é sobretudo, favorável para trabalhar com jovens
e com famílias. Tendo em vista isso podemos elencar como os círculos de paz podem ajudar na
evasão escolar.
OS CÍRCULOS DE CONSTRUÇÃO DE PAZ NO ENFRETAMENTO DA EVASÃO
ESCOLAR
Como um dos objetivos desse trabalho é identificar como a cultura de paz pode ajudar
no enfrentamento da evasão escolar, podemos elencar os círculos de construção de paz, já
69
descritos anteriormente. Logo, os círculos é um ambiente que busca por meio do diálogo para
chegar em uma determinada harmonia entre seus participantes.
Descrevendo o processo do círculo de construção de paz. Assim, no círculo tem o
facilitador responsável pelo diálogo, as técnicas (valores e diretrizes), em vista que nesse espaço
todos são iguais, os participantes vão falar a verdade um para o outro, respeitosamente. Os
processos dos círculos são17:
*Cerimônia de abertura;
*Os participantes sentados em círculo, de preferência sem móvel algum no meio;
*Uma peça no centro, que cria um foco central para os participantes, o objeto é chamado de
objeto da palavra, que é passado de pessoa para pessoa, a fim de regular o fluxo do diálogo.
*Perguntas norteadoras;
*E a cerimônia de fechamento que marca o final do círculo;
Desse modo, buscamos descrever os círculos que podem ajudar no processo contra a
evasão escolar. No quadro 1 especificamos os círculos através dos seus objetivos
Quadro 1 – Círculos que podem ajudar no Enfrentamento da Evasão Escolar
17Elaborado através do Guia de Práticas Circulares
CÍRCULOS OBJETIVO
Círculo de valores Identificar os valores centrais dos participante a fim de criar
conscientização/reconhecimento do seu verdadeiro eu
Círculo para criar
Um mundo melhor
Motivar os participantes para que sigam adiante quando as coisas estão
difíceis; ter consciência da nossa conexão para atingir um objetivo que é
maior do que nós.
Círculo do eu
verdadeiro
Explorar o conceito do verdadeiro eu como bom, sábio, duradouro e
universal.
Círculo para ver a luz
Ao invés do abajur
Ajudar os participantes a praticarem “ver” o eu verdadeiro nos outros.
Círculo os jovens
precisam de Quê? O
que eles sentem?
Identificar as necessidades relacionadas ao desenvolvimento sadio das
crianças. O objetivo também é ajudar os jovens a identificarem a ligação
entre suas necessidades não atendidas e os sentimentos negativos em suas
próprias vidas.
Círculo da história de
Jesse
Explorar o impacto que condições injustas em casa têm sobre os jovens.
Círculo das
hierarquias sociais
Criar consciência das hierarquias sociais com base nos aspectos da
identidade; reconhecer o dano causado por essas hierarquias e aumentar a
consciência de que a maioria das pessoas experimenta tanto a posição de
privilégio como a posição sem privilégio em diferentes partes de suas vidas.
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Fonte: Elaborado pelos autores a partir do guia de práticas Circulares
No quadro 2, colocamos os círculos relacionados com os motivos apontados que
contribuíram para a evasão dos alunos.
Quadro 2 – Círculos e Motivos da Evasão Escolar (FICAI)
CÍRCULOS MOTIVOS
Círculo de valores; Círculo do eu verdadeiro Negligência; Resistência
Círculo para criar :Um mundo melhor Distorção Idade x Série
Círculo para criar :Um mundo melhor Reprovação
Círculo da escolha de ser pai / mãe; Círculo
de como é ser pai
Gravidez ou Paternidade
Círculo de valores; Círculo para criar
Um mundo melhor
Dificuldade na Aprendizagem
Círculo para criar: Um mundo melhor Doença
Círculo os jovens precisam de Quê? O que
eles sentem?; Círculo do eu verdadeiro
Envolvimento com Drogas
Círculo: Escolhendo amigos confiáveis;
Círculo para ver a luz Ao invés do abajur
Problemas de Relacionamento
Círculo da história de Jesse; Círculo das
hierarquias sociais
Carência Material
Círculo das conexões familiares; Círculo(s)
dos Pontos fortes da família
Violência Familiar
Fonte: Elaborado pelos autores a partir do guia práticas Circulares e Relatórios da FICAI
Círculo:
Escolhendo amigos
confiáveis
Pensar a respeito de como escolher amigos confiáveis que serão uma
influência positiva em nossas vidas.
Círculo das conexões
familiares
Fortalecer respeito e compreensão entre os membros da família e aumentar
a conscientização do nível de cuidado de uns pelos outros.
Círculo da escolha
De ser pai / mãe
Este círculo é para explorar algumas das razões por trás das decisões que os
jovens fazem de se tornarem pais jovens. Assim como fazer sexo sem
proteção é uma decisão, também a decisão de ter e cuidar de um bebê é uma
escolha. Às vezes os jovens tentam evitar de fazer essa escolha, mas não
tomar a decisão é, na verdade, também fazer uma escolha. O objetivo deste
círculo é explorar algumas das necessidades que as pessoas esperam atender
quando elas decidem ter um bebê.
Círculo de como é ser
pai
Explorar as alegrias, responsabilidades e desafios de ser pai e identificar as
escolhas de vida que são importantes para poder se tornar um bom pai.
Círculo(s) dos
Pontos fortes da
família
Ajudar as famílias a identificar seus próprios pontos fortes como alicerce
para criar um futuro positivo.
71
Dessa forma, sugerimos algumas propostas para combater a evasão escolar, a cultura de
paz aparece como uma das alternativas para isso. Logo, dentro da perspectiva da cultura de paz,
a educação para paz e os círculos são formas florescentes para o enfretamento desse problema
social nas escolas.
CONCLUSÕES
Por todo o exposto foi possível perceber que a evasão escolar é um fenômeno observado
frequentemente pelo profissional que está inserido na política de Educação, no entanto tal
fenômeno é ocasionado por diversos fatores que nem sempre são perceptíveis e assim somente
após a leitura mais detalhada da realidade de cada aluno é possível intervir de forma plena.
Desta forma a Cultura de Paz desponta como uma estratégia viável para o conhecimento não
somente do aluno infrequente, mas da sua relação como um sujeito inserido em um contexto
social, familiar e territorial, contribuindo assim não somente na solução da demanda (evasão),
mas também para sua prevenção, na medida em que irá proporcionar o fortalecimento de
vínculos rompidos por situações de violência, exclusão, problemas de relacionamento, entre
outros, que podem corroborar para situações de infrequência/evasão escolar futuras. É de
extrema importância ressaltar, que quando apontamos a Cultura de Paz como mecanismo
efetivo para o enfrentamento da evasão escolar, ela não se aplica isoladamente em nenhuma
situação, ela vai sempre trabalhar na perspectiva de resolução de conflitos pela ótica da
coletividade, evidenciando assim o seu compromisso como integrante da rede de apoio escolar.
Além disso, partindo de uma compreensão histórica de uma sociedade modularmente
permeada por opressões, explorações, violências e desigualdades, ainda mais com o avanço da
de uma onda reacionária no país por meio de processos democráticos duvidosos o cenário
político atual direciona para um desmonte de direitos, sendo a educação impactada de maneira
direta. Nesse sentido, nos limites e contradições da atual conjuntura brasileira a iniciação de
processos de Cultura de Paz direcionam para uma mudança no agir dos sujeitos e
consequentemente em suas ações em sociedade, o que pode levar a intenção de uma
transformação social, na medida em que transcenderia as atuais relações sociais que já se
encontram bastantes desgastadas.
Em suma, a Cultura de Paz como mecanismo de garantia ao direito a educação
proporcionaria de forma eficaz e de certa com um retorno rápido, a permanência de crianças e
adolescentes nas escolas e a realização de práticas voltadas para o respeito as diferenças, as
72
diversidades nas relações sociais, assim como, estimularia trocas de papéis valorosas como o
autoconhecimento, a consciência, a percepção, a vivência e a empatia.
REFERÊNCIAS
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Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em 15 out.
2017.
BRASIL. Lei nº 9394 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação
Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em
15 out. 2017.
BOYES-WATSON, Carolyn; PRANIS, Kay. No coração da esperança: guia de práticas
circulares: o uso de círculos de construção da paz para desenvolver a inteligência emocional,
promover a cura e construir relacionamentos saudáveis. Tradução de Fátima de Bastiani. Porto
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educacional. Nádia Maria Bádue Freire (org.). Campinas: Mercado de Letras, 2011.
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de Paulo Freire. Tradução de Kátia de Mello e Silva; revisão técnica de Benedito Eliseu Leite
Cintra. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.
73
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ROCHA, Simone Mariano. FICAI – Um instrumento de rede de atenção pela inclusão
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VAZ, Caroline. A informatização da ficha de comunicação do aluno infrequente.
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<http://www.mprs.mp.br/areas/infancia/arquivos/revista_digital/numero_07/informatizacaofic
aicaroline.pdf>. Acesso em 15 out. 2017.
74
ALZIRA VARGAS: A FIGURA FEMININA E A ARTICULAÇÃO POLÍTICA NA
ERA VARGAS
Lauren de Lacerda Nunes18 Roselaine Guedes Santos19
Gladis Kunz Rosa20 Karen Laís Roque21
RESUMO: O presente artigo visa abordar a trajetória histórica de Alzira Sarmanho Vargas na
vida política do Brasil, na Era Vargas (1930 – 1954), no sentido de mostrar sua atuação
enquanto figura feminina significativa deste período. A metodologia utilizada consistiu-se de
pesquisas em fontes originais, constantes do patrimônio do Museu Getúlio Vargas, na cidade
de São Borja, e no espaço virtual da Fundação Getúlio Vargas, especificamente, no Centro de
Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), onde se encontra
depositado o arquivo pessoal da Alzira Sarmanho Vargas. Concomitantemente, buscou-se
referencial bibliográfico, no sentido de problematizar a condição da mulher, da política e da
vida sociocultural do país no período histórico em que Alzira Vargas atuou. Dos documentos
estudados, se abrem inúmeras possibilidades de interpretações e questionamentos sobre a real
importância e participação de uma mulher que, desde muito jovem atraía as atenções de seu
pai, Getúlio Vargas. Este, ao alcançar a maior função pública do país, depositou em Alzira
Vargas sua confiança e cumplicidade em momentos de extrema tensão, dúvidas e conflitos
políticos nos âmbitos nacional e internacional. A quantidade de registros históricos, sejam eles
documentos oficiais, jornais, revistas, vídeos ou em áudios não deixa margem para dúvidas
quanto a presença constante e discreta, da assessora Alzira Vargas e, em outros momentos,
articuladora da nação com outros países. A possibilidade de conhecer esta mulher que, em
ambiente predominantemente masculino, ocupou espaços importantes em momentos históricos
cruciais para o Brasil, instiga a busca de conhecê-la e problematizar sua trajetória enquanto
figura feminina marcante na história do país, principal motivação da presente pesquisa.
18Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, RS. Professora Adjunta da
Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA campus São Borja, RS. E-mail: [email protected]. 19Especialista em Direito e Gestão Ambiental. Tecnóloga Ambiental – Resíduos Industriais. Acadêmica do Curso
de Ciências Humanas – Licenciatura, da Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA, Campus São Borja, RS.
E-mail: [email protected]. 20Acadêmica do curso de Ciências Humanas - Licenciatura da Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA
campus São Borja, RS. Bolsista do Projeto de Extensão: Construção e Desconstrução do gênero e sexualidade no
currículo: tecendo perspectivas para uma educação multicultural. Membro do GEEP - Grupo de Pesquisa em
Gênero, Ética, Educação e Política. E-mail: [email protected]. 21Acadêmica do curso de Ciências Humanas - Licenciatura da Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA
campus São Borja, RS. E-mail: [email protected].
75
Palavras-Chave: Alzira Vargas.Mulher. Política.Getúlio Vargas. Gênero.
INTRODUÇÃO
O presente artigo situado no campo da denominada micro-história, visa expor a
participação da gaúcha Alzira Sarmanho Vargas na vida política brasileira, no período histórico
nacional identificado como a Era Vargas, iniciado em 1930 e interrompido em 1954.
Busca-se com este estudo, uma reflexão inicial sobre a figura de Alzira Vargas no meio
familiar e político do período supra-citado, suas percepções e vivências no interior de um
mundo de poder e de domínio predominantemente masculino, suas estratégias pessoais para a
ocupação de espaços, bem como as suas demonstrações de inconformismo diante da postura e
do comportamento das mulheres, conforme declarado por Alzira Vargas no filme realizado na
2ª Oficina de Produção Audiovisual do Núcleo de Audiovisual e Documentário da Fundação
Getúlio Vargas (FGV), do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil (CPDOC), "Eu ficava indignada. Eu não me conformava em ficar lá tomando chazinho,
batendo papo vazio. Aquilo para mim não tinha sentido." (VARGAS, 2015).
Quando optava por tornar públicas suas ideias, sabia das consequências. Estas recebiam
críticas, e não ignorava a existência de opressão por defendê-las. Era vigiada, sofria
intimidações na universidade, foi odiada por grupos de ideologia política contrárias às que
defendia e, inclusive, por aqueles que compartilhavam do mesmo pensamento. citar livro
passagem universidade.
Durante sua participação no meio político brasileiro, Alzira Vargas desempenhou funções
que foram de secretária, tradutora de documentos, decodificadora de mensagens cifradas,
arquivista, interlocutora entre o povo e o governo, porta-voz do Brasil em Washington, entre
outras funções ocupadas após o seu casamento com Ernani Amaral Peixoto, em 1939. Mas, não
se limitou a cargos burocráticos e intelectuais, foi ainda responsável pela articulação para
organização do Partido Trabalhista Brasileiro, fundado em 1945.
Assim, pensa-se que conhecer Alzira Vargas, uma mulher que fugia à regra da
personagem feminina moldada socialmente, que tinha ideias próprias, que foi militante e
articuladora política, com grande bagagem intelectual formal, filha, assistente e confidente de
um presidente da República, e que, após o término da Era Vargas manteve o espólio documental
do presidente por mais de duas décadas, conforme Nedel (2008) explica no IX Encontro
Estadual de História, em Porto Alegre, possibilitando o acesso a um acervo que, segundo Nedel
76
(2008), "Não fosse em si mesma relevante, a proximidade de Alzira Vargas com os núcleos de
poder também redobra o potencial interesse de seu arquivo entre os historiadores e cientistas
sociais, [...]" (NEDEL, 2008, p. 1), permite avançar sobre a história do Brasil daquele período
e evidenciar que ela foi um personagem dos mais emblemáticas do período histórico analisado
e que, apesar disso, a história oficial a remeteu aos bastidores dos acontecimentos.
METODOLOGIA
As investigações sobre Alzira Vargas, realizadas após o planejamento da pesquisa e a
construção de um portfólio inicial de fontes, mostraram-se um desafio em função das escassas
opções de fontes de pesquisa bibliográfica específicas.
Com vistas a manter o eixo de pesquisa definido, operou-se o arbitramento dos conceitos
principais a serem buscados durante a realização da pesquisa, como a compreensão sobre a
situação da mulher com uma visão ampliada sobre aspectos sociais, filosóficos e históricos no
âmbito familiar e público da mulher Alzira Vargas em ambiente dominado pelo masculino.
Para a obtenção dos resultados foram definidas estratégias de pesquisa que viabilizassem
o acesso a informações seguras quanto ao reconhecimento das fontes. Uma das estratégias foi
o estudo das fontes primárias mantidas sob a guarda do Museu Getúlio Vargas, em São Borja,
e, para tal, foram procedidas as formalidades necessárias, com a informação de data, horário,
número de pesquisadores, assunto e objetivos da pesquisa, documentos desejados, entre outros.
Entretanto, não houve a plena recepção do requerido museu, restando o acesso a documentos
que, em sua maioria, não corresponderam às expectativas produzidas após a visualização do
volume de documentos mantidos em ambiente controlado.
Decorrente da escassez de fontes houve a necessidade de revisar o planejamento da
pesquisa. Tal situação acabou por conduzir a pesquisa para a internet e bibliografia em
documentos impressos, como o livro Getúlio Vargas, meu pai. Neste novo rumo, foi localizado
o arquivo pessoal de Alzira Vargas no Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil (CPDOC), espaço virtual da Fundação Getúlio Vargas. O volume de
documentos originais disponíveis em meio digital é considerável, com acesso irrestrito, com
espaço para solicitação de auxílio para localização, de orientações ou obtenção de cópia digital.
Importante salientar que os documentos compõem o Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro,
elaborado e organizado pelo CPDCO.
77
Além dos documentos disponíveis no Museu Getúlio Vargas e no CPDOC, a leitura das
memórias de Alzira Vargas, onde constam suas percepções dos fatos no momento em que
ocorriam, produziu uma aproximação entre a pesquisada e as autoras, tornando as palavras lidas
mais concretas. Do mesmo modo, a audição de suas palavras ou a visão de sua imagem em
vídeo gerou a sensação de redução da distância temporal e despertou no grupo de pesquisa certa
inquietação mental, manifestada em questionamentos que surgiram sobre as mudanças
efetivamente ocorridas quando se trata da mulher nos espaços públicos, especificamente na
política, desde Alzira Vargas até o tempo presente.
RESULTADO E DISCUSSÃO
Alzira Vargas em família
Alzira Sarmanho Vargas, filha de Getúlio Vargas e Darcy Sarmanho Vargas, nasceu em
22 de novembro de 1914, em São Borja, sendo a terceira filha do casal. Morou até os oito anos
de idade em sua cidade natal quando se mudou para Porto Alegre. Aos dezesseis anos de idade
passa a morar no Rio de Janeiro, onde cursou Direito, na Faculdade de Direito, e em pouco
tempo começou a atuar como arquivista do pai. No último ano do curso foi nomeada auxiliar
de gabinete de Getúlio Vargas. Aos 25 anos se casou com Ernani Amaral Peixoto, militar e
político, com quem teve uma filha, Celina Vargas do Amaral Peixoto.
A relação familiar que existia entre Alzira e o pai é contada no livro “Getúlio Vargas,
Meu Pai”, lançado originalmente em 1960. Nele, Alzira Vargas relata a convivência familiar e
profissional com seu pai. Alzira, filha e assistente, era alguém que Getúlio confiava e queria
por perto, como se pode perceber no trecho a seguir, “[...] O que sei é que todas as vezes em
que ficava longe dele muito tempo, me chamava de volta”. (VARGAS, 1960, p. 366). A ligação
entre pai e filha era tão próxima, respeitosa e sincera que os papéis de filha e funcionária se
confundem, de um modo que é difícil perceber onde uma se destaca mais que a outra.
Em toda sua vida Alzira Vargas esteve ligada ao pai, mesmo que não estivesse presente,
se comunicavam por cartas e reforçavam ainda mais o laço familiar. Porém, a pesquisa mostrou
que a mãe, Senhora Darcy Vargas também representou figura importante para a atuação de
Alzira Vargas como herdeira dos projetos assistenciais desenvolvidos pela mãe.
78
A política brasileira e Alzira Vargas
No Brasil, após os movimentos políticos de 1930, o ambiente político nacional se
encontrava instável, conforme explicado em “História do Brasil por Bóris Fausto” “Getúlio teve
que enfrentar problemas internos do seu governo, das forças que o apoiavam, e problemas
externos, da oposição” (FAUSTO, 2002).
Em um ambiente de conflitos ideológicos, de interesses distintos e de poder, as prisões
sob acusações de adesão à ideologia comunista não eram fatos raros. Segundo o arquivo pessoal
de Alzira Vargas, mantido no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea
do Brasil (CPDOC), a jovem estudante universitária tinha participação ativa em passeatas,
assim como de intervir junto ao pai para soltura de professores feitos prisioneiros, o que exige
a menção a sua vida de militante estudantil iniciada em Porto Alegre entre 1928 e 1930, o que
lhe rendeu intensas e repetidas investidas da mídia ligando-a ao comunismo, sobre o que Alzira
Vargas escreve em Getúlio Vargas, meu pai “Passei a respeitar a força da propaganda dirigida.
Esta havia decretado: “Alzira, a filha do Presidente da República, estudante de direito, é
comunista”.” (VARGAS, 2017, p. 169).
É neste cenário que Alzira Vargas surge para o Brasil. Em janeiro de 1937 foi nomeada
oficialmente como auxiliar de gabinete, passando a integrar o Gabinete Civil da Presidência,
aos 23 anos de idade, quando cursava o último ano do curso de Direito. Sua presença como
assessora, consultora, confidente, secretária, firmou-se ainda mais em 1938, em momento
político de mudanças de regime.
O sítio virtual da Fundação Getúlio Vargas – CPDOC, afirma que “Com os canais
institucionais interrompidos, Alzira somou às suas tarefas, como diria em seu depoimento, a
função informal de interlocutora entre o povo e o governo” (COUTINHO, 2009, s/p).
Do pesquisado no CPDOC, é importante salientar que Alzira Vargas não atuou apenas
nos tratos burocráticos ou de assessoria ao Presidente. Consta o relato da participação ativa na
resistência a ataque ao palácio Guanabara, em 11 de maio de 1938, quando atuou junto às
comunicações telefônicas com os chefes dos órgãos de segurança.
Casada com o interventor do estado do Rio de Janeiro, ocupou-se como interlocutora
entre o Presidente do Brasil e o presidente estadunidense Franklin Roosevelt, o que dá a
perspectiva de sua capacidade de atuação política, ainda mais se analisadas as peculiaridades
mundiais da época.
79
Mas, sua atuação não se resumia àquelas ligadas ao palácio presidencial. Conforme o
arquivo mantido na Fundação Getúlio Vargas, suas ações estenderam-se na área da educação,
criando instituições importantes até os dias atuais, como a Fundação Anchieta. Entretanto, em
áudio disponível na internet, intitulado A Bacharel e o Presidente, Alzira declara: “[...] outro
dia estava comentando com o Ernani. Disse: “engraçado, eu tenho a impressão de que nada do
que eu fiz tem valor, porque como eu nunca quis pessoalizar nada, as minhas obras sumiram”
(VARGAS, 2015).
As palavras de Alzira nos deixam evidente a ação do sistema de poder sobre as mulheres
durante aquele período, evidenciado em suas lembranças: “Habituei-me, assim, a enxergar sem
ver, a ouvir sem entender. Habituei-me a calar. Habituei-me a um silêncio que hoje pesa sobre
meus nervos, cansados de perdoar sem esquecer.”, (VARGAS, 2017, p. 44).
A participação de Alzira Vargas no mundo político, espaço masculino e centralizado na
figura do pai, parece, contudo, não ter sido empecilho para impedi-la de assumir
responsabilidades. Ao contrário, não se omitiu de atender pedido do pai para agir como
articuladora na formação de partido político visando manter as bases aliadas do governo
getulista, entretanto, não há registro de afiliação partidária em sua vida, conforme o arquivo da
CPDOC.
Em 1945 ocorre a queda de Vargas. Exilado em São Borja, Alzira mantém intensa
correspondência com o pai, mantendo-o inteirado dos acontecimentos do meio político e, em
função da saída de Amaral Peixoto, seu marido, do governo fluminense, Alzira se desligou de
cargos que ocupava em instituições sociais. Dentre outras, consta a Legião Brasileira de
Assistência – LBA, a Fundação do Menor e a Comissão do Bem-Estar do Menor, vinculada ao
Ministério do Trabalho, segundo os arquivos da FGV/CPDO.
Com o retorno do pai ao poder da República em 1954 e do marido ao governo do Rio de
Janeiro, retomou funções oficiais, integrando delegações brasileiras às conferências
internacionais do Trabalho.
Inegável que ocupou espaços e definiu posturas que lhe garantiam o papel de principal
auxiliar de Vargas. Em áudio disponível em espaço virtual já citado, fica explícita sua estratégia
para definir sua participação, desde em mesas de reuniões, até confidências do Presidente.
Quando questionada sobre como ela teria chegado a ter sobre ele certa ascensão, responde:
Foi gradual e lenta a maneira pela qual eu me impus a ele. Não posso dizer a você que
ele tenha me descoberto. Mas, aquela vida de trabalho, de uma ocupação sempre me
atraiu. Então, eu comecei, como disse a você, sendo o mata borrão dele. Nunca
80
propriamente procurei ser o braço direito dele, ao contrário. Me omiti o mais possível
porque eu sabia o que era e eu conhecia a importância que se dava a mulher do Rio
Grande nesta época. (VARGAS, 2015).
Declara na entrevista citada acima que a confiança conquistada com o presidente lhe
proporcionava ouvir, falar e conversar sobre assuntos que nenhuma outra pessoa tinha abertura,
ou ainda, presenciar conversas porque o nível de confiança em seu silêncio para o que ouvia,
era tal que não havia omissões a ela, o que lhe causava medo. Não é difícil pensar que o que
lhe era conhecido, não eram situações simples e de pouco interesse para pessoas de muita
influência.
Em seus relatos, chama a atenção colocações em relação a seu gênero ser motivo de
observações, tanto familiares quanto do meio político, tais como o de uma tia que “[...]teria
nascido feito homem.” E, em outra ocasião, o pai teria recebido comentário de um grande amigo
que teria dito: “Getúlio, não achas que esta tua filha está ficando muito sabida?”, ao que
respondeu “Ele quer que eu seja sábia e não sabida”. (VARGAS, 2017, P. 93).
No acervo do Museu Getúlio Vargas, em São Borja, no suplemento da REVISTA DO
GLOBO (1950, p. 50, 51), Alzira faz narrativa do golpe Integralista de 1938. Conforme o
repórter autor da matéria jornalística, não houve a interferência do pai. O relato leva o leitor a
criar a imagem mental da aflição vivida durante o evento, o que pode ser remetida à habilidade
da narradora em expor um cenário com riqueza de detalhes, clareza na conexão dos momentos
e capacidade de análise dos eventos, características que podem ser dadas a uma memória criada
a partir dos fatos vividos.
Ainda, há de se observar sobre o fato de Alzira Vargas ser uma mulher jovem, de pequeno
porte físico, o que não a impediu de pegar em armas e fazer uso destas em defesa do Palácio
Guanabara. Tal atitude não era um fato corriqueiro para a mulher daquele período, mas tratava-
se de Alzira Vargas. Inclusive, pode ser destacada uma leve crítica à condição de inoperância
da irmã Jandira Vargas durante o confronto.
Consta no arquivo do CPDOC/FGV o relato de que, com a crescente luta para que o
Getúlio renunciasse, Alzira tomou conhecimento sobre um apontamento do Presidente, sendo
identificado o mesmo trecho em Getúlio Vargas, meu pai, onde consta: “Á sanha dos meus
inimigos deixo o legado de minha morte.” (VARGAS, 2017, p. 427). Com o rascunho em mãos,
indo buscar junto ao pai alguma indicação de suas intenções, quando o Presidente respondeu:
“[...] Sua bisbilhoteira. Não é nada disso que você está pensando. Você me conhece, e ficou
com o papel”. (VARGAS, 2017, p. 427).
81
Mas, no decorrer dos estudos dos documentos, tanto no arquivo da FGV/CPDOC, como
nas memórias de Alzira, que compõe o livro Getúlio Vargas, meu pai, foi possível identificar a
presença marcante de Alzira Vargas no momento crucial da Era Vargas. No dia 24 de agosto,
após eventos dados como interligados, o Presidente convoca seu ministério para reunião, assim
como Alzira e seu esposo. Consta que, durante a reunião, que tinha como pauta a proposta de
renúncia de seu pai, ela intervém fortemente, como quando relata:
O general Zenóbio da Costa estava falando: dizia que era incontrolável o movimento
contra Getúlio Vargas. Não me contive mais, pedi desculpas ao meu pai e dei um soco
na mesa, dirigindo-me diretamente ao general Zenóbio: “Não é somente a sua vida
nem a de meu pai que está em jogo. A minha e a de minhas crianças também, por isso
dou-me o direito de falar. (VARGAS, 2015, p. 431)
Entretanto, provoca uma certa estranheza que parte da historiografia parece não ter a
mesma interpretação sobre a participação de Alzira em eventos historicamente consagrados
para os cientistas, como é o caso das horas finais da Era Vargas. Isto está explícito em Fausto
(2006, p. 189,190) que, ao abordar sobre a pressão que o setor militar impunha a Getúlio Vargas,
culminando na fatídica reunião do dia 24 de agosto, Alzira mereceu tão somente uma menção
a seu nome juntamente com mais três pessoas, não por acaso, homens.
Nela, os ministros militares foram muito hesitantes, optando obliquamente pela
renúncia, apesar dos apelos do ministro da Justiça, Tancredo Neves, no sentido de que
eles mostrassem disposição de sustentar o governo. Osvaldo Aranha declarou-se
solidário com Getúlio em qualquer circunstância, apontou três hipóteses de resposta
às pressões e disse que tudo dependia da decisão do presidente. Alzira Vargas fez um
apelo à resistência, apoiada entre outros por Manuel Vargas, Danton Coelho e o
general Caiado de Castro. (FAUSTO, 2006, p. 190).
Disto, podemos apreender que Alzira não via e não recebia limites para manifestar seus
pontos de vista de situação tão sérias e graves no mundo da política, inclusive para abandonar
a tal reunião antes do seu fim. Na sequência, após receber orientações do pai, em presença do
irmão, sobre uma chave de cofre, o qual deveria ser aberto caso ocorresse algo com o Presidente.
Em pouco tempo depois, foi informada por militar que decidiram pela saída definitiva de
Getúlio, contrariando a decisão ministerial anterior, encerrando com o suicídio do Presidente e
pai Getúlio Vargas.
Em 1955 deixa de ser a primeira dama do estado do Rio de Janeiro, sendo seu marido
nomeado embaixador do Brasil em Washington, até o ano de 1959. Neste momento, mostra-se,
no mínimo, curiosa a correspondência mantida com Alzira, na qual está recomendado que
repensasse a possibilidade em função de o remetente entender como uma armadilha tal cargo,
82
citando que a capital de Portugal seria o mais adequado. Conclui-se que não foi considerada a
recomendação recebida.
Após assumir a função de embaixatriz, identifica-se no acervo digital depositado no
CPDOC/FGV inúmeras correspondências entre órgãos públicos, instituições de ensino,
intelectuais e, destacamos, com Sara Kubitschek, outra mulher singular no mundo da política
brasileira, onde Alzira informa sobre envio ao Brasil de bonecas produzidas por mães norte
americanas, com recomendações sobre a quem destinar. Destes documentos, fica claro que o
período que desempenhou as funções na embaixada brasileira nos Estados Unidos, foram
atuantes, com ligações bastante próximas de autoridades daquele país.
No ano de 1960, de volta ao Brasil, publicou suas lembranças em livro intitulado Getúlio
Vargas, meu pai. Além disso, ocupou a função antes da sua mãe, na Casa do Pequeno
Jornaleiro, foi Presidente da Fundação Anchieta entre 1940 e 1945, como já dito, Membro da
Comissão Nacional do Bem-Estar Social, de 1951 até 1954, Membro de Delegação, na
Conferência Internacional do Trabalho, no ano de 1952, Presidente da Fundação Darcy Vargas
no período de 1968 a 1992.
Entretanto, o mundo do poder político a acompanhou por muito tempo em razão de o
marido ocupar diversos espaços políticos. Durante este tempo desenvolveu e se envolveu em
diversos projetos, concretizando, por exemplo, a criação da Escola de Enfermagem do Rio de
Janeiro e a Escola de Serviço Social, integradas a Universidade Federal Fluminense, a
Maternidade Divina Providência, em Petrópolis-RJ. No período da Grande Guerra Mundial,
acumulou a direção do Departamento Assistencial do Distrito Federal, da Legião Brasileira de
Assistência no estado fluminense e das Voluntárias da Defesa Passiva do ano de 1942 até o ano
de 1945.
Através das palavras da própria Alzira, citadas anteriormente, suas obras parecem ter
sumido nas gavetas empoeiradas da história. Mas, a pesquisa sobre a sua pessoa e em seu tempo,
nos traz à tona uma figura ciente de que estava em ambiente que não lhe favorecia, com
personagens que não lhe facilitariam a atuação e, para tanto, desenvolveu estratégias de
“sobrevivência” e de ocupação de espaços.
Faleceu no Rio de Janeiro, no dia 26 de janeiro de 1992.
A condição da mulher na Era Vargas, a mulher Alzira Vargas
A mulher brasileira atualmente goza de melhores condições que em épocas passadas,
embora exista pontos que precisam ser discutidos e campos a serem conquistados. Admite-se
83
que os tempos são outros. E, é olhando para trás que vemos o caminho daquelas, que de uma
maneira ou de outra, contribuíram para marcar o seu espaço como mulher em um país dominado
pelo patriarcado.
Uma dessas figuras foi Alzira Vargas, e nesse trecho da pesquisa veremos as condições
das mulheres brasileiras e dela própria, no contexto da Era Vargas. Assim como escreve
Beauvoir, "[...] nenhuma coletividade se define nunca como Uma sem colocar imediatamente
a Outra diante de si". (BEAUVOIR, 1970. p. 12), pondera-se a partir da colocação que a
estrutura social brasileira tem em seu âmago uma longa história de disparidade entre os sexos.
Se a História por muito tempo se ocupou das figuras masculinas, do poder exercido pelo homem
no campo político e social, é premente que o outro lado da coletividade seja evidenciado para
que sejam definidas as particularidades de ambos os lados.
Tratar algumas dessas características da parcela da coletividade brasileira, a qual, por
muito tempo, esteve fora do campo historiográfico, sabendo que não existe um perfil único de
mulher atualmente, assim como também não houve no período analisado, é necessário dada a
amplitude do tema. Para tal, serão mencionadas algumas peculiaridades que estavam em voga
no universo feminino pois, estas características são pertinentes para demonstrar como a Alzira
foi percebida na sua condição de mulher por seus contemporâneos.
Dadas as fontes, identificou-se que um dos principais pontos de discussão diz respeito ao
trabalho desempenhado pela mulher e como esse fator conseguiu transformar as características
do comportamento sociocultural feminino no período em questão. À luz dessa discussão
podemos perceber as diferenças entre as mulheres que saíram do 'lar' (por necessidade e/ou por
obrigação de prover o sustento de si e dos filhos) e aquelas que assumiram o papel socialmente
aceito para época. Também se constatou uma distinção entre classes sociais, demonstrando a
pluralidade socioeconômica que o país já vinha revelando a mais tempo do que a historiografia
de outrora menciona, como se refere Fonseca,
A norma oficial ditava que a mulher devia ser resguardada em casa, se ocupando dos
afazeres domésticos, enquanto que os homens asseguravam o sustento da família
trabalhando no espaço da rua. Longe de retratar a realidade, tratava-se de um
estereótipo calcado nos valores da elite colonial, e muitas vezes espelhado nos relatos
de viajantes europeus, que serviam como instrumento ideológico para marcar a
distinção entre as burguesas e as pobres. Basta aproximar-se da realidade de outrora
para constatar que as mulheres pobres sempre trabalharam fora de casa. (FONSECA,
2012. p. 517)
84
Temos então, a partir do período Vargas iniciado em 1930 até 1945, e em seu segundo
governo de 1950 a 1954, um marco para todas as mulheres brasileiras, definido através do
direito ao voto nas decisões políticas do país, conquistado em 24 de fevereiro de 1932.
Em 1928 foi criado o Comitê das Mulheres Trabalhadoras, umas das primeiras
associações voltadas para as necessidades das mulheres que trabalhavam no contexto das
indústrias têxteis, ou seja, fora de seus lares. Apesar de serem a maioria da mão-de-obra nesses
ambientes, eram excluídas dos sindicatos, pois nestes ambientes não contavam com a força de
voto. E também, ressalta-se no estudo, que as reuniões dos sindicatos não foram feitas para
contemplar a jornada dupla da trabalhadora, que ao voltar para casa, essa mulher ainda assumia
sua outra faceta, a mulher do lar, e todos os seus encargos, situação demonstrada por
Sardenberg, que afirma "[...] dessa maneira, "o mundo sindical no Brasil no início do Século
Vinte", como o mundo da política das elites, permaneceu esmagadoramente masculino".
(SARDENBERG et.al, 2000. p. 05, grifo da autora).
Outro ponto importante, e ainda discutido atualmente, é a diferença salarial. Para o
contexto da época a mulher trabalhadora deveria ganhar menos porque sua renda era
complementar. Beauvoir também advoga a esse respeito quando diz, "[...] ora, a mulher sempre
foi, senão a escrava do homem ao menos sua vassala; os dois sexos nunca partilharam o mundo
em igualdade de condições." (BEAUVOIR, 1970. p. 14). Devido aos salários inferiores e o
avanço do capitalismo, o número de mulheres trabalhadoras era maior nas fábricas, o que
acarretou problemas. Em 1931, o presidente Getúlio Vargas recebeu uma reclamação dos
trabalhadores da indústria têxtil de São Paulo, onde manifestavam descontentamento em
relação ao número expressivo de mulheres no trabalho, e que isto causava desemprego aos
homens. A resposta do Estado Novo a esse anseio seria conduzir ambos, homens e mulheres,
aos seus papéis "tradicionais" na sociedade. O tradicional seria homens pais/provedores e
mulheres mães/do lar. De modo controverso, regulamenta o trabalho feminino nas indústrias e
comércios com a legislação social e trabalhista, através do Decreto 21.417A, de 17 de maio de
1932.
O antagonismo do governo Vargas, a ideia jargão de 'pai dos pobres e mãe dos ricos’,
foi propulsor tanto de mulheres saindo para o trabalho como aquelas que ficaram em seus lares.
Mas, é preciso não cometer o equívoco de acreditar ser esta uma questão de escolha, a vida da
mulher nas fábricas e no mundo do trabalho em geral era difícil e exigia da mulher muito mais
que apenas uma escolha, exigia uma postura diante da sociedade, pois, segundo Hirata et al.
(2009, s/p), ao tratar do poder do feminismo, diz que a marca da mulher livre e a mulher pública
85
eram relacionadas, e isto a colocava como alvo de escândalos, como foram situações vividas
por muitas mulheres que ousaram questionar a hierarquia dos sexos existente e práticas pelas
autoridades, evidentemente homens.
Em relação à profissão de educadora, para as mulheres havia um limite, qual seja ser
professora das primeiras letras, as "normalistas", pois os demais graus escolares eram exercidos
por homens, de acordo com Nahes Semiramis (SEMIRAMIS, 2007, p. 28). A autora diz ainda
que a função de professora envolveria a mulher como mãe, mesmo que os filhos (alunos) não
fossem dela, e ainda mais, que o cuidar de crianças estava ligado ao âmbito caseiro, então,
embora sendo uma profissão, o seu caráter e suas regras colocava a mulher (professora,
trabalhadora) no "seu lugar" na sociedade.
Nesse âmbito de mulher da Era Vargas, podemos contextualizar através da primeira-dama
Darcy Sarmanho Vargas, outro perfil de mulher. A mãe de Alzira Vargas, teve um papel ligado
ao lado maternal, ao auxílio da mulher/mãe e das crianças, se envolveu e encabeçou várias
entidades assistenciais como a Casa do Pequeno Jornaleiro e Legião Brasileira da Assistência
(LBA), criada em 1942, para prestar amparo aos familiares e soldados que lutaram na Segunda
Guerra Mundial, e isso era um traço marcante das mulheres da elite no período. Ela foi uma
mulher do seu tempo e do seu estrato social e dessa forma, "[...] foi no desempenho das funções
de esposa e mãe, que Darcy Vargas desenvolveu formas de atuação e de participação na
política, inclusive, mediante a criação de obras sociais e assistenciais". (SIMILI, 2004, p. 02).
A irmã mais velha de Alzira, Jandira Vargas, também foi uma mulher aos moldes
tradicionais, conforme se constatou na pesquisa na documentação do acervo do Museu Getúlio
Vargas, em São Borja. Esta não se formou no ensino superior como sua irmã mais nova, casou
por volta dos 25 anos, teve filhos e sua vida foi voltada para a casa, o que é explicado pela
autora Pinsky, em a História das Mulheres no Brasil:
Ser mãe, esposa e dona de casa era considerado o destino natural das mulheres. Na
ideologia dos Anos Dourados, maternidade, casamento e dedicação ao lar faziam parte
da essência feminina; sem história, sem possibilidades de contestação. (PINSKY,
2012. p. 609).
Então, disto podemos compreender que o universo das mulheres não era apenas
moldado pelo homem. O exemplo estava em casa, a menina se espelhava na mãe, logo seu
destino era uma vida parecida ao de sua progenitora, e assim foi com Darcy e Jandira Vargas.
Porém, a pesquisa demonstra que para Alzira Vargas o exemplo mais nítido foi seu pai,
e isso deu a ela um perfil diferente daquele da maioria das mulheres do período, e não que
86
Alzira se visse como um homem, mas em alguns momentos foi assim considerada por outros
justamente por realizar o trabalho tão “bem” quanto um.
Apoiada pelo seu pai, Alzira graduou-se em Direito pela Faculdade de Direito do Rio de
Janeiro, quando ainda a formação superior era um fato incomum para mulheres da elite. Como
guardiã das memórias de seu pai, ela relata que Vargas tinha uma concepção moderna a respeito
da mulher, o que está demonstrado por Gomes, ao citar trecho de entrevista concedida por
Alzira, que diz: “[...] Mulher, para ele, fala D. Alzira, tinha que saber três coisas: datilografia,
dirigir automóvel e falar inglês." (GOMES, 1996. p.9). E Alzira não fugiu a nenhuma das três
regras: dirigia, falava inglês, datilografava, além de fazer companhia em suas campereadas
quando buscava o sossego nas estâncias de São Borja.
CONCLUSÕES
A intenção do texto não é produzir críticas ou julgamentos às mulheres, especialmente
àquelas que se mantinham unicamente, ou que ainda permanecem, no exercício das atividades
domésticas. O que a pesquisa elucida é que, para o contexto de 1930 a 1954, o ideal de ser
mulher, corroborado pela sociedade, pela literatura e estudos da época, e principalmente pelos
homens, era a dona de casa, a mãe, mas não aplicável em Alzira Sarmanho Vargas.
Entretanto, devemos destacar que Alzira Vargas tinha o ímpeto de descumprir normas
sociais. Como detalhe do seu perfil incomum, e começando por decisões sobre o seu corpo,
evidencia-se as suas escolhas na vestimenta, elementos ligados à beleza e posição social
feminina. Não usou vestido de noiva em seu casamento, raramente usava chapéu, artigo da
moda entre as mulheres da época, usava calças, sapatos com altura mediana, fumante por um
período, cavalgava com habilidade, realizava atividades ligadas à pecuária, favorável ao
divórcio, ou seja, parecia não lhe incomodar não atender à imagem idealizada pela sociedade
para a mulher. Mas, certamente que a ligação íntima mantida com o meio político, primeiro
com seu pai, e depois e com seu marido motivou a pesquisa.
Poderá o leitor pensar: "mas ela era filha do presidente!". Sim, ela foi. E Jandira também
foi, e mesmo assim vemos duas mulheres diferentes, dois perfis diferentes de vida da mulher
no contexto estudado.
Como já dito, a intenção do estudo não é categorizar, e tão pouco julgar aquelas que nos
antecederam. Mas, é fundamental suscitar que a mulher brasileira é parte fundamental da
História do país, mesmo à sombra dos homens e de costumes sociais engessados, elas lutaram
87
para se inserir no contexto público-político, fabril, sindical, educacional etc., território
masculino. E para tal intento, Alzira descobriu e desenvolveu os meios de tornar-se a “segunda
consciência” do Presidente, expressão que o próprio passou a usar para com a sua assitente, de
acordo com a pesquisada.
A vida pública-política de Alzira Vargas passou por momentos extremos. O que se obtém
das leituras sobre ela, das análises de imagens, dos áudios, da bibliografia utilizada é que foi
uma mulher observadora, com mente inquieta, questionadora, determinada, com clareza de
pensamento, habilidosa na condução de assuntos delicados e perigosos, e todas estas
características desenvolvidas, ou potencializadas com o passar do tempo, visando levar a cabo
o projeto político do pai.
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<http://www.fazendogenero.ufsc.br/7/artigos/Ivana_Guilherme_Simili_42pdf >. Acesso em:
18 jun. 2017.
*A fonte também consta como material de pesquisa no Museu Getúlio Vargas.
SEMIRAMIS, Nahes. A Era Vargas: da revolução de 1930 à ditadura. In.____. Revista FON-
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VARGAS, Alzira. Getúlio Vargas, meu pai: memórias de Alzira Vargas do Amaral
Peixoto/Alzira Vargas. - 1ª Ed. - Rio de Janeiro: Objetiva, 2017. (p. 44, 53, 77, 412-419, 427,
431, ).
VARGAS, Alzira. A Bacharel e o Presidente: depoiment. 2016. Canal FGV. A Bacharel e o
Presidente. Entrevista concedida a Naya Arujo. Disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=5y_oNafW2g0&t=25s >. Acesso em 27 out. 2017.
90
PRINCÍPIOS DA ÉTICA NA GESTÃO PÚBLICA: TEMA PARA A REFLEXÃO22
José Konzen23,
Luciane de Oliveira24,
RESUMO: Atualmente a ética vem ganhando espaço e gerando debates envolvendo a
sociedade e a gestão pública, deixando de ser vista apenas como um problema moral, mas
também como uma ameaça à ordem econômica. Embora tenha ocorrido inúmeros avanços nos
últimos anos em relação a transparência na ética da gestão pública, ainda existe um hiato entre
as normas referidas e as ações praticadas. Este cenário provoca incertezas diante de tais atitudes
que desconfiguram a razão de ser da gestão pública, que tem por preceito ocupar-se da defesa,
conservação e aprimoramento dos bens, serviços e interesses da coletividade. O presente
trabalho, pretende fazer uma análise a respeito da importância da ética no gestão pública por
meio de uma perspectiva teórica. Esta pesquisa caracteriza-se como descritiva, realizada por
meio de uma análise bibliográfica, onde utiliza-se autores referências no tema. Quanto a
abordagem, refere-se a uma pesquisa qualitativa. Percebe-se diante do contexto atual, a
importância de se propor questionamentos que possam despertar princípios democráticos e de
cidadania, para que todo o cidadão esteja apto a assumir qualquer função pública e exercer de
forma consciente e plena os seus direitos políticos, a fim de quebrar paradigmas estabelecidos
em um sistema burocrático, que por vezes, desvia de sua finalidade. Neste sentido, observa-se
a importância de se desenvolver uma consciência ética coletiva, com a intenção de questionar
a cultura comportamental que compactua com atos ilícitos e práticas indevidas, bem como
despertar princípios democráticos e de cidadania. O presente trabalho não pretende esgotar o
assunto, mas sim propor reflexões sobre o tema.
Palavras-Chaves: Ética, Gestão Pública, Transparência.
INTRODUÇÃO
22 Relatório de Estágio de Conclusão de Curso I, apresentado no Curso de Administração da URI - São Luiz
Gonzaga – RS, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Administração. 23 Graduando do Curso de Administração da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e Missões – São
Luiz Gonzaga /RS; [email protected] 24 Docente do Curso de Administração da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e Missões – São Luiz
Gonzaga /RS; [email protected]
91
Nos dias atuais a ética vem sendo questionada e debatida em todos os lugares,
envolvendo a sociedade e a gestão pública, deixando de ser vista apenas como um problema
moral, mas também como uma ameaça à ordem econômica.
Embora tenha ocorrido inúmeros avanços nos últimos anos em relação a transparência
na ética da gestão pública, na tentativa de coibir atos antiéticos, ainda existe uma lacuna entre
as normas referidas pelas leis e as ações praticadas pelos servidores. Este cenário provoca
incertezas diante de tais atitudes e desconfiguram a razão de ser da gestão pública, que tem por
preceito ocupar-se da defesa, conservação e aprimoramento dos bens, serviços e interesses da
coletividade.
Compreende-se que a ética deve conduzir as ações dos indivíduos, porém, percebe-se
que muitas práticas políticas e administrativas não correspondem aos anseios éticos e
transparentes demandados pela sociedade.
Dessa forma, este estudo tem por objetivo analisar a importância da ética no gestão
pública por meio de uma perspectiva teórica. Para tal, serão realizadas pesquisas bibliográficas,
por meio de livros e artigos científicos.
Por fim, o presente trabalho não pretende esgotar o assunto, mas sim propor reflexões
sobre o tema.
REFERENCIAL TEÓRICO
Etimologia e Histórico de Ética
Etimologicamente a palavra ética (ethos) é uma transliteração de dois vocábulos gregos:
hqoz (ethos) que significa morada do homem, e eqoz (ethos) que significa comportamento que
resulta de um repetir os mesmo atos (CARVALHO, 2003).
Ao longo da história humana, o seu significado fora transformado em vários aspectos
pela relação do homem com a sociedade, sendo conceituada conforme a predominância de
determinados pensamentos ou correntes de pensamentos que se apresentavam no momento,
desde os pré-socráticos até os dias atuais, percorrendo mais de vinte séculos.
Muitas vezes o termo ética é confundido com moral. Porém, no século XX o filósofo
espanhol Adolfo Sánches Vásquez cria uma famosa diferenciação entre os dois conceitos. Para
ele o termo moral se refere a uma reflexão que a pessoa faz de sua própria ação. Já o termo ética
92
abrange o estudo dos discursos morais, bem como os critérios de escolha para valorar e
padronizar as condutas numa família, empresa ou sociedade. (MEUCCI, 2013).
Assim, a ética é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade,
ou seja, é a ciência de uma forma específica de comportamento humano (LIMA FILHO, 2015).
Neste contexto, a principal questão da moral e da ética diz respeito à vida em sociedade, que
permite que o ser humano conviva com os demais, tendo como referência um conjunto de
normas e valores que regem a sua conduta.
Dessa forma, Vazquéz, (2001, p.12) afirma, “a ética é a ciência do comportamento moral
dos homens em sociedade”. Trata-se de ciência por ter objeto, leis e métodos próprios, sendo
objeto da ética, a própria moral. Assim, enquanto a ética diz respeito à disciplina teórica, ao
estudo sistemático, a moral corresponde às representações imaginárias que dizem aos agentes
sociais o que se espera deles, quais comportamentos são bem-vindos e quais não. (SROUR,
2000, p. 29).
Gestão Pública
Compreender a importância e abrangência da gestão pública se mostra essencial por
seus resultados se relacionarem diretamente com a vida de todos os cidadãos.
Silva (2000) traduz gestão pública como um conjunto de meios institucionais, materiais,
financeiros e humanos que se organizam para a execução das decisões políticas. Gonçalves
(2012), corrobora conceituando gestão pública como a prática administrativa responsável pelo
desenvolvimento urbano e econômico de um município.
Goés (2010), vai além, quando afirma que a expressão gestão pública compreende toda
a atividade de administração da coisa pública, seja por pessoas de Direito Público, seja por
pessoas de Direito Privado concessionárias de serviços públicos ou atuando em regime de
parceria com o Poder Público (as parcerias público-privadas) ou até pelas organizações não
governamentais.
Porém para que a gestão seja eficiente é necessário que ocorra organização,
planejamento, acompanhamento e fiscalização, primando pela qualidade de resultados dos
serviços ofertados à população. É necessário, também, que toda a atividade de gestão pública
esteja de acordo com as normas legais e tenham como foco o bem comum da coletividade.
Assim, os representantes legais da população, ou seja, os gestores públicos, estão obrigados à
93
prestação de contas e relatórios que se façam públicos para avaliação do parlamento e da
população geral (CRUZ et.al., 2012).
Em função das demandas sociais, culturais, tecnológicas, econômicas e políticas dos
últimos tempos, torna-se necessários buscar novas e melhores alternativas na maneira de
administrar a coisa pública visando maior agilidade e eficácia. Para tanto é importante que seja
realizado treinamento e aperfeiçoamento dos gestores e agentes públicos para que possam obter
condições de conhecer melhores técnicas para realizar suas atividades, e, também, que seja
fortalecida e disseminada a importância da ética e do trabalho do agente público diante do seu
objetivo maior, que é o bem comum.
Ainda que todas essas práticas sejam realizadas, é necessário que os cidadãos conheçam
e possam efetivamente acompanhar e controlar as ações que a administração realiza,
fiscalizando-as e observando-as diante do que é proposto e o que de fato é realizado.
Ética na Gestão Pública
A gestão pública é responsável pela execução das atividades e decisões estipuladas pelas
decisões governamentais. Para tanto se sujeita às normas constitucionais e às leis especiais.
Todo esse aparato de regras tem por objetivo definir um comportamento ético por parte dos
agentes públicos, mesmo assim vê-se uma gestão extremamente corrompida, onde muitos
agentes usam os seus respectivos cargos e poderes para o benefício próprio ou de cúmplices.
Sabe-se que a eficiência e eficácia da Gestão Pública se estabilizam em políticas
públicas comprometidas com os anseios da comunidade, e para que se tornem conquistas reais
da coletividade, a ética deve estar acima das moralidades individuais, tanto dos funcionários
públicos quanto dos políticos eleitos, agentes responsáveis peça solidificação da Gestão
Pública.
Diante disso, Marinho (2012) ressalta que a ausência de ética se deve à falta de preparo
dos servidores, por uma cultura um tanto equivocada e também, por falta de mecanismos de
controle e responsabilização adequada dos atos antiéticos, ou seja, o sentimento de impunidade.
Neste contexto, a sociedade tem o dever de contribuir, exercendo os seus direitos
enquanto cidadãos, atuando de forma consciente, fiscalizando e cobrando uma governabilidade
eficaz, que trabalhe com lisura e rentidão. Para tanto, faz-se necessário estimular uma cultura
de exercício da cidadania. Para Milton Santos (2007), a cidadania "é como uma lei", isto é, ela
94
existe mas precisa ser descoberta, aprendida, utilizada e reclamada e só evolui através de
processos de luta.
Segundo Whitaker (2006), o Estado deveria ser o primeiro a ser o exemplo e evidenciar
atos ilícitos e punir os culpados. A mudança que deveria ocorrer na Gestão Pública implica em
uma mudança gradativa, mas que se faz muito necessária, não somente no Estado, mas também
dos servidores dentro da estrutura dos Órgãos Públicos, isto é, uma mudança de hábitos, valores
que se formam ao longo do tempo e criam estilos de atuação nas organizações.
Assim, pode-se dizer que a Gestão Pública, oriundas dos maiores poderes que regem a
sociedade, deveria ter princípios éticos intrínsecos na sua forma de agir, repassados e exigidos
dos agentes públicos, mantendo a reputação de honestidade, integridade e lealdade em todas as
suas atividades desenvolvidas, seja com seus clientes funcionários fornecedores e até
concorrentes, proporcionando qualidade nos serviços prestados de forma organizada,
sistemática e eficiente visando o bem social da população.
Princípios Constitucionais da Administração Pública
Diferentemente do gestor privado, que pode fazer tudo o que a lei não proíbe, a
Administração Pública, só pode fazer o que a lei permite. Segundo Alexandrino e Paulo (2008)
a administração pública não pode atuar contra a lei ou além da lei, somente pode agir segundo
a lei (a atividade administrativa não pode ser contra legem nem praeter legem, mas
apenas secundum legem). Diante disto, alguns princípios precisam ser observados na condução
das atividades.
Segundo Cretella Júnior (1995, p.6) princípio é “toda a proposição, pressuposto de um
sistema, que lhe garante a validade, legitimando-o”. Reale (1986, p.60) corrobora
Princípios são, pois verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de
garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos
relativos à dada porção da realidade. Às vezes também se denominam princípios
certas proposições, que apesar de não serem evidentes ou resultantes de evidências,
são assumidas como fundantes da validez de um sistema particular de conhecimentos,
como seus pressupostos necessários.
Na gestão pública os princípios constituem os fundamentos de validade da ação
administrativa e visam garantir uma administração correta na gestão dos negócios públicos,
visando o atendimento de bens e de serviços do interesse da coletividade.
95
Conforme disposto na Constituição Federativa do Brasil de 1988, no artigo 37
"a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência (...)".
Ressalta-se que além dos princípios explicitados no art. 37, há outros princípios que
estão expostos no mesmo artigo de forma implícita, como é o caso do princípio da supremacia
do interesse público sobre o privado, o da finalidade, o da razoabilidade e proporcionalidade
(SERESUELA, 2002). Para fins deste trabalho, nos deteremos nos princípios constitucionais
explícitos, ouse seja legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Princípios Constitucionais Explícitos
Princípio da Legalidade
A essência deste princípio fundamenta-se na submissão do Estado à lei, ou seja, não há
liberdade nem vontade pessoal, sendo a lei seu único e definitivo parâmetro. No cerne do
princípio da legalidade está a ideia de que “na relação administrativa, a vontade é a que decorre
da lei” (DI PIETRO, 2002 p. 61).
Desta forma, as ações praticadas em desobediência a tais parâmetros são atos inválidos
e podem ter sua invalidade decretada pela própria Administração que os haja editado
(autotutela administrativa) ou pelo Poder Judiciário (ALEXANDRINO; PAULO, 2008).
Neste Contexto, percebe-se que só é legítima a atividade do administrador público que
estiver de acordo com o disposto em lei, em oposição ao que ocorre com o particular, que pode
fazer tudo aquilo que a lei não proíbe. Lenza destaca que “confinar a atuação governamental
aos parâmetros da lei, editada pelos representantes do povo, é trazer segurança e estabilidade,
evitando-se, ainda, qualquer tipo de favoritismo por parte do legislador” (2011, p.1160).
Princípio da Impessoalidade
Segundo Seresuela (2002),
O princípio da impessoalidade pode ser definido como aquele que determina que os
atos realizados pela Administração Pública, ou por ela delegados, devam ser sempre
imputados ao ente ou órgão em nome do qual se realiza, e ainda destinados
genericamente à coletividade, sem consideração, para fins de privilegiamento ou da
imposição de situações restritivas, das características pessoais daqueles a quem
porventura se dirija.
96
Assim, o administrador público tem que ter uma atuação que vise apenas os
interesses públicos, não sendo permitido no exercício de suas funções, buscar ou deixar
prevalecer interesse privado ou de terceiros.
Para Menezes (2008), neste princípio cabe o entendimento de que os funcionários não
devem ser individualizados, a não ser para imputar ao mesmo falta ou responsabilizá-lo perante
a Administração Pública. Portanto pode-se dizer, que os administrados devem ser tratados sem
discriminações, benéficas ou detrimentos as sem favoritismo nem perseguição e que interesses
particulares não podem interferir na atuação administrativa.
Princípio da Moralidade
Para Cardozo apud Moraes (1999, p. 158):
Entende-se por princípio da moralidade, a nosso ver, aquele que determina que os atos
da Administração Pública devam estar inteiramente conformados aos padrões éticos
dominantes na sociedade para a gestão dos bens e interesses públicos, sob pena de
invalidade jurídica
Pode-se dizer portanto, que o objetivo deste princípio é o dever de honestidade por
parte do agente público, ligando-se aos conceitos de probidade, honestidade, lealdade, decoro
e boa-fé, não apenas respeitando os preceitos legais, mas também, zelando pelos interesses
da coletividade.
Na mesma linha Di Pietro (2002, p. 71) conclui “sempre que em matéria
administrativa se verificar que o comportamento da administração ou do administrador que
com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os
bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e equidade, a ideia
comum de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralidade”.
Princípio da Publicidade
O princípio da publicidade visa a manter a transparência dos gastos públicos, ou seja,
deixar claro para a sociedade ou para qualquer outro interessado sobre assuntos públicos,
comportamentos e decisões tomadas pelos agentes da Administração Pública (COSTA, 2015).
Assim, pode-se dizer que é dever da administração pública, dar publicidade aos atos
públicos além do fornecimento de informações solicitadas, salvo as hipóteses de sigilo
resguardadas pela lei.
97
Meirelles (2000, p. 89), conclui
A publicidade, como princípio da Administração Pública (CF, art. 37, caput), abrange
toda atuação estatal, não só sob o aspecto de divulgação oficial de seus atos como,
também, de propiciação de conhecimento da conduta interna de seus agentes. Essa
publicidade atinge, assim, os atos concluídos e em formação, os processos em
andamento, os pareceres dos órgãos técnicos e jurídicos, os despachos intermediários
e finais, as atas de julgamentos das licitações e os contratos com quaisquer
interessados, bem como os comprovantes de despesas e as prestações de contas
submetidas aos órgãos competentes. Tudo isto é papel ou documento público que pode
ser examinado na repartição por qualquer interessado, e dele pode obter certidão ou
fotocópia autenticada para fins constitucionais.
Princípio da Eficiência
O princípio da eficiência foi acrescentado pela Emenda Constitucional nº 19/1998, como
objetivo de buscar maior qualidade e produtividade dos serviços públicos prestados à sociedade.
Porém
Eficiência não é um conceito jurídico, mas econômico. Não qualifica normas, qualifica
atividades. Numa ideia muito geral, eficiência significa fazer acontecer com racionalidade, o
que implica medir os custos que a satisfação das necessidades públicas importam em relação
ao grau de utilidade alcançado (SERESUELA, 2002).
Discorrendo sobre o tema, Meirelles (2000, p. 90) afirma que:
O Princípio da eficiência exige que a atividade administrativa seja exercida com
presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função
administrativa, que já não se contenta em se desempenhar apenas com uma
legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório
atendimento as necessidades da comunidade e de seus membros.
Embora a Administração Pública não conviva com o ambiente de competitividade
comum à iniciativa privada, é seu dever prestar serviços de qualidade, já que cuida de setores
fundamentais para a coletividade. De acordo com Di Pietro (2002, p. 83) uma administração
eficiente pressupõe qualidade, presteza e resultados positivos, constituindo, em termos de
administração pública, um dever de mostrar rendimento funcional, perfeição e rapidez dos
interesses coletivos.
A importância ética enquanto elemento que perpassa os Princípios Administrativos da
Gestão Pública
98
A Carta Constitucional de 1988, propôs `a Administração Pública um modelo de gestão
mais eficaz e moralmente comprometida com o bem comum, ou seja, de acordo com os
princípios constitucionais elencados no artigo 37.
Porém, compreende-se que a ética deve perpassar todos os princípios estabelecidos para
que a função pública tenha êxito na sua finalidade última, de propor serviços eficazes que
atendam os anseios públicos.
Neste sentido é importante desenvolver uma consciência ética na gestão pública e na da
sociedade em geral, com o objetivo de mudar a cultura comportamental hoje arraigada na
sociedade, que aceita de forma costumeira e satisfatória atos ilícitos e práticas indevidas.
Pode-se afirmar que
para a retomada de uma postura ética e de administradores realmente comprometidos
com o bem estar da sociedade e progresso do País, é necessário conjugar-se as forças
do setor privado, do próprio Estado (Administração) e da sociedade civil, afim de que
cada um possa expressar seu pensamento sobre o tema, mostrem suas estratégias para
o efetivo controle da ética pública e divulguem as informações a todos os cidadãos
sobre as ações concretas desenvolvidas neste sentido. Inegável a importância do atual
momento da vida nacional e, assim sendo, o estudo da ética no serviço público e ainda
mais, o controle jurídico sobre esse comportamento, deve ser incrementado,
objetivando alcançar significativas melhorias no serviço público brasileiro, baseado
este nos agentes públicos, servidores públicos e nos agentes políticos. (CARVALHO,
2005).
Dessa forma, é importante despertar princípios democráticos e de cidadania, para que o
cidadão esteja apto a assumir qualquer função pública e exercer de forma consciente e plena os
seus direitos políticos, a fim de quebrar paradigmas estabelecidos em um sistema burocrático,
que por vezes, desvia de sua finalidade.
METODOLOGIA
A presente pesquisa é resultado do projeto de estágio I referente a conclusão do Curso
de Administração da URI – São Luiz Gonzaga. Por meio desta análise, busca-se evidenciar a
importância da ética na gestão pública.
O trabalho se propõe, quanto aos fins, seguir os parâmetros de uma pesquisa descritiva.
De acordo com Yin (2005), trata-se de uma forma de se fazer pesquisa investigativa de
fenômenos atuais dentro de seu contexto real, em situações em que as fronteiras entre o
fenômeno e o contexto não estão claramente estabelecidos. Corroborando com Yin, Vergara
99
(2003), afirma que, a pesquisa descritiva, pretende apenas descrever o fenômeno estudado e
não explicar o fenômeno, embora possa servir como base para tal explicação.
Quanto aos meios, este estudo enquadra-se como uma pesquisa bibliográfica. Segundo
Fonseca (2002), a pesquisa bibliográfica é feita a partir do levantamento de referências teóricas
já analisadas e publicadas por meios escritos e eletrônicos, como: livros, artigos científicos,
páginas de web sites.
Pode-se dizer que este estudo apresenta-se como abordagem qualitativa, que é
evidenciada de acordo com Marconi e Lakatos (2010) como aquela que pode ser caracterizada
como uma tentativa de fazer a compreensão detalhada de significados. Sendo assim, na pesquisa
qualitativa, não houve a necessidade das opiniões serem mensuradas em variáveis estatísticas.
CONCLUSÕES
Compreende-se que a ética deve perpassar todos os princípios estabelecidos para que a
função pública tenha êxito. Neste sentido, é inegável a importância do controle jurídico,
administrativo e social sobre as práticas realizadas, como fiscalizador e norteador das normas
e ações, objetivando alcançar a sua finalidade última, de propor serviços eficazes que atendam
os anseios da população.
É importante despertar questionamentos em relação a postura ética da sociedade e de
seus administradores, pois este debate é profícuo para que se tenha uma construção coletiva
mais cidadã, que saiba estabelecer juízos diante do que é certo ou errado, o que é bem ou mal,
justo ou injusto, exercendo princípios éticos.
Sabe-se que a mudança ética que se almeja na Administração pública é gradativa, porém
necessária, e implica em uma transformação cultural dentro da estrutura organizacional da
Administração Pública, e da sociedade como um todo, através da reavaliação dos valores morais
e educacionais.
Destaca-se que em meio a tantos episódios de corrupção, existem pessoas muito éticas,
conscientes, qualificadas e preocupadas com o serviço público e com o bem comum, como em
qualquer outro ambiente profissional, não cabendo generalizações. No entanto, para que este
comportamento se propague é necessário que se invista em preparação e atualização dos agentes
públicos proporcionando-lhes condições de conhecer as melhores técnicas e os melhores meios
afim de que possam atingir a excelência no serviço prestado.
100
Por fim, através destas análises espera-se replicar debates e ações coerentes com o que
se almeja da sociedade dos administradores, cientes de que a mudança de postura é uma
construção coletiva, alicerçada primeiramente em ações individuais.
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102
ESCOLA E FAMÍLIA NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA
Enedir Pinto Ramires25
Camila Campos26 Natiele Pimentel27
Lisianne Sabedra Ceolin28
RESUMO: O artigo busca, a partir de uma revisão bibliográfica, discutir o exercício do direito
à cidadania, garantido pelo Estado na Constituição de 1988, dentro do contexto escolar, bem
como formas com que a própria escola viola este direito quando não oferece os meios
necessários para que pais ou responsáveis possam colaborar diretamente nas decisões da
instituição. Inicialmente, será elaborada a concepção de exercício da cidadania no contexto
escolar, seguido de uma contextualização histórica do papel da família no processo de ensino
da criança, buscando perceber como foi construída a relação família-escola. Uma vez colocados
estes pressupostos, discutiremos a forma através da qual a escola acaba transgredindo o direito
à cidadania. Tal discussão será feita tendo em vista que a educação constitui-se de forma legal
como dever da família e da escola, e elas devem interagir de maneira a garantir os direitos da
criança no quesito educação, proporcionando suporte e apoio para o desenvolvimento pleno da
aprendizagem. Deste modo, emerge o exercício da cidadania como um elemento importante na
construção do sujeito, conhecedor de seus deveres e direitos, e transformador de sua realidade
mediante a reivindicação de suas garantias sociais. Por fim, perceberemos que quando a escola
não oferece uma proposta pedagógica que permita aos pais e responsáveis pelo aluno a
possibilidade de contribuir no processo escolar, limita a estes o direito à cidadania e falha em
uma das suas principais finalidades.
Palavras-Chaves: Cidadania, Família, Escola.
INTRODUÇÃO
O direito à cidadania é garantido na Carta Magna de 1988 (art. 1º, II) e o exercício deste
direito ecoa nas mais diversas instituições e esferas da sociedade, inclusive na relação entre a
escola e a família. Na mesma esteira, nossa, nossa legislação indica que a educação tem como
25 Universidade Federal do Pampa; São Borja, RS; E-mail: [email protected] 26 Universidade Federal do Pampa; São Borja, RS; E-mail: [email protected] 27 Universidade Federal do Pampa; São Borja, RS; E-mail: [email protected] 28 Professora da Universidade Federal do Pampa; São Borja, RS; E-mail: [email protected]
103
uma de suas finalidades justamente o exercício da cidadania. Ao mesmo tempo em que
cidadania e educação são direitos garantidos, cabe a família e ao Estado, representado pela
escola, o dever de interagir no intuito de garantir o direito da criança no quesito educação,
proporcionando suporte e apoio para o desenvolvimento pleno da aprendizagem (BRASIL,
1988). Essa dinâmica entre as instituições pode ser caracterizada como o exercício da cidadania,
e se a escola acabar por usurpar ou negligenciar os meios para a participação da família, estará
transgredindo o direito garantido nos textos legais e privando os pais, responsáveis e os alunos
de um aprendizado mais rico e dinâmico.
Desta forma, o presente artigo buscará, num primeiro momento, definir o conceito de
cidadania e procurar entender sua aplicação nas relações entre escola e família. Na sequência,
haverá uma breve contextualização histórica da participação da família no processo de ensino
da criança, com a finalidade de demonstrar que a instituição possui um peso histórico na
formação do indivíduo e que, apesar das transformações ocorridas nas sociedades nos últimos
séculos, ainda hoje pais e responsáveis devem ser considerados como agentes participantes da
educação do aluno. Por fim, discutiremos as formas com que a escola, ainda que de forma
involuntária, acaba transgredindo o direito ao exercício da cidadania garantidos aos cidadãos
ao não considerar os pais ou responsáveis dos alunos como elemento ativo nos processos de
ensino e de aprendizagem.
Portanto, o objetivo desse trabalho é conceituar, analisar e problematizar o exercício da
cidadania dentro do ambiente escolar, especificamente nas dinâmicas estabelecidas entre a
escola e pais ou responsáveis dos alunos.
METODOLOGIA
A metodologia utilizada para delinear este artigo é resultado preliminar de pesquisa
bibliográfica. Trata-se de pesquisa qualitativa, pois se utiliza de informações disponíveis em
banco de dados que serão interpretadas, explicadas e compreendidas a partir de um determinado
referencial teórico. Quanto ao gênero, é uma pesquisa empírica, que segundo Demo (2000)
busca tratar e analisar dados de uma determinada realidade. No que pertine às fontes, esta
pesquisa utilizar-se-á da pesquisa e análise documental, que segundo Gil (2002) se caracteriza
por análises a partir de informações ainda não publicadas, que não receberam tratamento
analítico.
104
A construção do referencial teórico gira em torno de temas de políticas educacionais e
sociologia da educação. Também lança mão de coleta de informações, mediante aplicação de
formulário semiestruturado, sobre a disposição dos professores e coordenação escolar de
trabalhar a construção do Projeto Político de Curso (PPP) da escola em conjunto com as
famílias, nas séries do ensino fundamental II, em escola de ensino fundamental de São Borja.
Através de análise de PPP da escola pesquisada e documentos públicos disponibilizados, serão
levantadas informações sobre políticas adotadas pelas gestões escolares quanto ao
desenvolvimento de cooperação entre família e escola nos processos de ensino e de
aprendizagem dos alunos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A cidadania construída entre a escola e a família
A cidadania está ligada à luta pelos direitos políticos, pela liberdade e também por
melhores garantias individuais e coletivas. Ser cidadão é aquele indivíduo que pensa e participa
da sociedade na qual ele está inserido. Mas como as pessoas passam a ter consciência dos seus
direitos e de seus deveres? Através da educação, que é a via fundamental para a formação de
um indivíduo comprometido com a sociedade na qual ele convive.
A gênese da palavra cidadania vem do latim civitas, que significa cidade. Na Roma
antiga, cidadania servia para indicar a situação política das pessoas e os direitos que possuíam
ou poderiam exercer; portanto, nos remete a ideia de participação do indivíduo em uma
comunidade, onde lhe são outorgados direitos e deveres. Segundo Dalmo Dallari:
A cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de
participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está
marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa
posição de inferioridade dentro do grupo social. (1998, p. 14)
Percebe-se, assim, que a cidadania está diretamente vinculada com a relação entre a
população e o direito de participar nas decisões administrativas do Estado, estabelecendo
vínculo com os direitos das mais diversas ordens. Cabe recordar que o Brasil viveu épocas de
forte autoritarismo, onde a política era centralizada nos interesses de poucas pessoas; entretanto,
quando a Constituição foi promulgada, em 1988, o exercício da cidadania se tornou presente,
constando em muitos artigos da Lei Fundamental. Conforme a CF/88, em seu artigo 5º,
verificamos que:
105
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:[...]
conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora
torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas
inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania; [...] são gratuitas as ações de
"habeas-corpus" e "habeas-data", e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício
da cidadania. (BRASIL, 1988)
Como se percebe pelo texto da Carta Magna, cidadão é aquele indivíduo a quem a
mesma alcança direitos e garantias, e proporciona condições de efetivar seu exercício sem
constrangimentos, além de remédios funcionais contra a violação de seu gozo ou usufruto por
parte Estado. Na sequência do texto constitucional, no artigo 6º, da Lex Fundamentalis de 1988,
é declarado que
São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o
transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (BRASIL,
1988, grifo nosso)
Percebemos logo que a educação constitui-se como elemento fundamental dentro das
garantias do cidadão brasileiro. Tendo isto em vista, encontramos em outro dispositivo legal,
na Lei de Diretrizes e Bases (LDB), de 1996, em seu Artigo 2º, a declaração de que a educação
“tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho”, além de estabelecer como uma das finalidades da
educação básica o desenvolvimento do educando, assegurando-lhe “a formação comum
indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e
em estudos posteriores” (Art. 22).
Ocorre que dentre as novas orientações legais estabelecidas, inclusive da LDB, não há
de forma clara e objetiva a maneira como se dará esse alcance e formação efetiva da cidadania
dentro do sistema escolar. Neste sentido, a posição de Machado:
[...] as possibilidades de construção efetiva da cidadania, mediante o tempo e o espaço
privilegiado da educação escolar, decorrerão muito mais da política educacional
concreta e ser desenhada em cada sistema de ensino e das próprias escolas que do
impacto direto e efetivo dos novos dispositivos. (MACHADO, 1998)
Importante reconhecer que a realidade escolar se estabelece de forma dinâmica, com as
interações aluno-professor, professor-escola e escola-aluno, constituindo-se de forma dialética,
106
onde marcas, resistências e tensões fazem-se presentes, assim como há uma convivência
colaborativa e sistemática visando a construção dos indivíduos como sujeitos de direito. A
cidadania se efetivará através da colaboração entre professor, aluno, escola e inclusive a
comunidade local. Conforme afirma Machado, não devemos crer que
[...] é possível supor uma correspondência linear entre a prescrição legal e a
preparação para a cidadania, da mesma forma que não é válido supor uma relação
causal perfeita entre o que a escola ensina, ou pensa que ensina, e o que os alunos
aprendem. E esta diferença não expressa simplesmente deficiências de aprendizagem
decorrentes de falta de interesse, de problemas de comportamento e carências da parte
dos alunos, ou da ineficiência da escola e incompetência dos professores, antes é a
expressão de uma multiplicidade de fatores presentes e atuantes no processo
educativo. (MACHADO, 1998)
Pensar em cidadania é pensar em aprendizagem como condição fundamental. Uma
escola que não proporciona aos seus alunos as ferramentas básicas do conhecimento e da cultura
não poderá jamais intitular-se como escola cidadã (NOVOA, 2006). Nesta mesma linha de
pensamento, acrescenta Antonio Novoa ao colocar que
[...] é preciso instaurar a escola como sociedade, como lugar do trabalho conjunto,
como lugar do diálogo e da comunicação, como espaço de segurança, como uma
sociedade na qual as crianças prefiguram e praticam uma vida futura. [...] Na escola,
a cidadania faz-se no dia-a-dia, exerce-se, pratica-se, dá-se mal com um discurso
gongórico ou doutrinário. (NOVOA, 2006)
A vivência escolar, por possuir características tão intensas e dinâmicas, não poderia ser
resumida e suas ações limitadas ou delineadas tão somente aos termos das leis (MACHADO,
1998). Compreender estes fatores é de extrema importância para não cair no erro de imaginar
que a mera existência de legislação poderá definir como a construção da cidadania se efetivará
no seio escolar.
Da família à escola: a partilha de responsabilidades
Para uma melhor compreensão do papel da família no processo de aprendizagem do
aluno dentro de nossa sociedade contemporânea, é vital explorarmos, primeiramente, ainda que
de forma breve, a estruturação da família e sua participação no processo de aprendizado da
criança nos últimos séculos.
Segundo Philippe Aries (1978), a sociedade tradicional da Idade Média via a criança
como um adulto em miniatura e não possuíam a visão sobre adolescência tampouco a
consciência sobre família como possuímos nos dias de hoje. A aprendizagem da criança era
pela convivência com adultos e elas aprendiam por ajudar nas tarefas domésticas, ou seja, elas
107
eram misturadas aos adultos. Essa família antiga tinha por missão preservar a honra, conservar
os bens e praticar um ofício. Neste período, os pais não participavam propriamente da educação
dos seus filhos, mas sim os filhos de outros pais. Não tinham função afetiva; essa função se
dava por meio da interação com festas, encontros e visitas.
Aries (1978, p. 225) aponta que “[...] a família transformou-se profundamente na medida
em que modificou suas relações internas com as crianças”, desenvolvendo um relacionamento
mais íntimo e preocupação com seu desenvolvimento. A partir de meados do século 17, período
que marca o início da Idade Moderna, a escola substituiu o método de ensino caseiro, para
separar crianças de adultos e possibilitar que convivessem em um ambiente escolar. Mas essa
separação só foi possível com cumplicidade sentimental das famílias. Essa afeição
proporcionou algo que não existia antes; é nesse momento que a família começa a se interessar
pela educação do filho. Nesse contexto, podemos identificar claramente que não é de hoje que
se fala na importância da participação família na aprendizagem; isso se deu no começo da idade
moderna, onde a concepção sobre infância e a criança teve papel importantíssimo e
revolucionou a maneira de pensar naquela época, mudando toda uma tradição familiar a partir
do momento em que a escola substitui aquele ensino em casa passado de pessoas mais velhas
aos mais novos.
No percurso do período moderno, a família sofreu grandes mudanças; transformações
essas alavancadas pelo processo de industrialização e inclusive com o ingresso acentuado da
mulher ao mercado de trabalho. Assim, o Estado, através da instituição escolar, assume função
na educação da criança. As mudanças ocorridas em nossa sociedade trouxeram uma partilha de
responsabilidades. Hoje não é mais a família a única responsável pelo desenvolvimento escolar
da criança. De acordo com o art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de
13 de julho de 1990:
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público
assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde,
à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (Brasil,
1990)
Assim, a educação constitui-se na forma legal como dever da família e da escola e elas
devem interagir de maneira a garantir os direitos da criança em termos de educação,
proporcionando suporte e apoio para o desenvolvimento pleno da aprendizagem.
108
O direito à cidadania sob ameaça
Já nos era apontado pelo sociólogo estruturalista Talcott Parsons a família como
instituição de fundamental importância na constituição da sociedade, que a considerava como
primeira instituição socializadora da criança, porém não suficiente, sendo necessária a
participação da segunda instituição neste processo socializatório do indivíduo: a escola.
(PARSONS E BALES apud BRUSCHINI, 1989, p. 1-2).
No âmbito jurídico, a Constituição Brasileira de 1988 estabelece, em seu artigo 205, que
a educação é “direito de todos e dever do Estado e da família”, apontando de forma indireta a
existência de uma relação escola-família, visto que a instituição escolar é o equipamento
disposto pelo Estado para garantia deste direito. Ora, a partir deste entendimento podemos
questionar se o Estado, na figura da escola, tem sido competente da função de garantir ao
indivíduo o pleno acesso ao direito de cidadania e educação ou se negligencia esta
responsabilidade ao limitar o acesso da família no processo de educação ao não explicitar, seja
na forma de lei ou de diretriz pedagógica, a forma em que a instituição familiar cumprirá seu
dever na garantia do direito do aluno.
Oportuno colocar em perspectiva que os cidadãos analfabetos, ou com escolaridade
mínima, tiveram em seu passado um direito transgredido por não poder frequentar uma
instituição escolar pelo tempo adequado e, uma vez privados dessa garantia, perderam uma
ferramenta importantíssima que é o acesso ao saber sistematizado. Os indivíduos que passam
pelo sistema escolar completo, em tese, exercem melhor suas cidadanias, visto que possuem
melhores condições de realizar e defender suas garantias individuais. Doutra forma, a educação
escolar é o fundamento constitutivo na formação do indivíduo, e faz-se presente igualmente na
luta rotineira dos cidadãos por direitos individuais e coletivos. E é também nesta luta que se
aprende sobre a cidadania como sendo o compromisso e respeito pelos direitos de outras
pessoas, portanto, com seus deveres.
De acordo com Malavazi (2000, p. 258), família e instituição de ensino estão trocando
de papéis, posto que a escola está cada vez mais se preocupando com normas de condutas das
crianças e a família se ocupando do ensino de seus filhos, mas “[...] algumas atribuições são
específicas da família que tem o direito de reivindicá-las para si, enquanto outras cabem a escola
que, pela sua natureza, poderá ocupar-se melhor delas”.
109
Para os pais, uma vez que lhe é restrito o espaço de participação no contexto
educacional, desenvolve-se a concepção de que a escola é o lugar onde se educa e ensina.
Conforme destaca Malavazi, os pais:
Pensam e atribuem à escola este papel por se sentirem impossibilitados, por vários
motivos, para ocupar-se dela mas também por acreditarem, indiscutivelmente, que na
escola estão reunidas várias condições e pessoas que lhes garantem o cumprimento de
tal objetivo. (Malavazi, 2000, p. 263)
A escola, por sua vez, em muitos casos, não realiza esforços suficientes para
trazer os pais para o seu interior, e limita-se a algumas reuniões formais. Não há empenho
inclusive de que os pais entendam o Projeto Político Pedagógico da escola. Malavazi observa
que são
[...] raras as palestras, os encontros para troca de ideias a respeito da estruturação a
organização do trabalho pedagógico” e inclusive questiona se o “número reduzido de
pais que comparecem aos encontros marcados pela escola não estaria ligado aos raros
convites feitos a eles? (Malavazi, 2000, p. 47)
Quando a escola não oferece uma proposta pedagógica que permita aos pais e
responsáveis pelo aluno a possibilidade de contribuir no processo escolar, limitam o direito à
cidadania – o direito de participar das decisões administrativas da escola – da família. Também
perde-se uma incrível possibilidade de troca de saberes, visto que os pais e responsáveis podem
partilhar suas experiências de vida, principalmente no âmbito do trabalho, bem como
oxigenarem seu arcabouço de conhecimento sistematizado permanecendo sempre atualizados
sobre as diretrizes educacionais. Uma família mais presente na escola também possibilita
conscientização e colaboração maior dos pais e responsáveis do aluno no processo de ensino-
aprendizagem.
CONCLUSÕES
Infere-se que a cidadania é um elemento importante na construção do sujeito,
conhecedor de seus deveres e direitos, e transformador de sua realidade mediante a
reivindicação de suas garantias sociais. A escola participa como instituição formadora do
cidadão, responsável pelo ensino dos conhecimentos sistematizados e construtora da identidade
cidadã de cada aluno, porém sem perder de vista que a família é agente participativo nos
processos de ensino e de aprendizagem, que embora não domine os conceitos pedagógicos,
possui uma gama de saberes práticos que podem contribuir e enriquecer o ambiente escolar.
110
Para que esta relação se estabeleça de forma plena, e que a cidadania seja alcançada a todos,
torna-se urgente que a escola não fique presa a retórica das legislações, com meras práticas
discursivas, mas que estabeleça uma abordagem pragmática, de efetivação do indivíduo como
cidadão pleno, consciente de si e do mundo que o cerca. Se a escola não possui uma política de
estímulo e um programa que permita aos pais e responsáveis pelo aluno a possibilidade de
contribuir no processo escolar, limita a estes o direito à cidadania e lamentavelmente falha em
uma das suas principais finalidades.
Por fim, ainda que de forma preliminar (a pesquisa se encontra em andamento) e
considerando a importância de uma interação maior entre escola e família, podemos apontar
como ponto de partida as seguintes ações pedagógicas para efetivar o direito constitucional
garantido a família no processo de ensino: 1) Realizar anualmente reunião com pais ou
responsáveis para discutir alterações ou construção do Projeto Político Pedagógico da escola;
2) Desenvolver atividade mensal, preferencialmente em um final de semana, oficinas em que
os pais possam vir a escola para participar de aulas temáticas e interdisciplinares, aplicadas
pelos alunos ou mesmo pelos pais que se acharem aptos, sob tutela de um ou mais professor
regente. 3) Fomentar a participação das famílias mediante festas temáticas na escola em data
festivas ou elaborar um calendário próprio de atividades festivas visando a integração e
socialização dos saberes.
Esta colaboração sadia entre as instituições irá permitir a formação de cidadãos
conscientes e participativos nas demandas da sociedade pois desde o princípio serão
estimulados a contribuir e dividir as responsabilidades na formação do aluno, efetivando o
direito ao exercício da cidadania.
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Janeiro: Zahar Editores, 1978. Cap. 3.
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1988. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
________. Lei nº 8069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do
Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 16 jul. 1990. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L8069.htm>. Acesso em: 27 jun. 2017.
111
________. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: Lei nº 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. 8. ed. Brasília,
DF: Edições Câmara, 2013b. Disponível em: http://
bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/2762/ldb_5ed.pdf. Acesso em: 27 jun. 2017.
BRUSCHINI, Cristina. Uma abordagem sociológica de família.Revista brasileira de estudos
da população, São Paulo, v.6 n.1 p.1-23, jan./jun.1989
DALLARI, D. Direitos Humanos e Cidadania. São Paulo: Moderna, 1998. p.14
DEMO, P. Metodologia do Conhecimento Científico. São Paulo: Atlas, 2000
GIL, A.C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2002
MACHADO, L. M.. A nova LDB e a construção da cidadania. In: Carmem Silvia Bissoli da
Silva; Lourdes Marcelino Machado. (Org.). Nova LDB: trajetória para a cidadania. 1ed.São
Paulo: Arte & Ciência, 1998, v. 1, p. 93-104.
MALAVAZI, Maria Márcia Sigrist. Os pais e a vida escolar dos filhos. 2000. 320 p. Tese
(Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de Campinas, 2000.
NOGUEIRA, M. A. Relação família-escola: novo objeto na sociologia da educação. Paidéia
(Ribeirão Preto), v. 8, p. 91-103, 1998.
NÓVOA, António. A Escola e a Cidadania – Apontamentos incómodos. In R. d’Espiney
(Org.). Espaços e Sujeitos de Cidadania. Setúbal: Instituto das Comunidades Educativas, 2006,
pp. 21-40.
112
UMA CONTRIBUIÇÃO DE NIETZCHE À FILOSOFIA MORAL: a hipótese do eterno
retorno do mesmo como imperativo de avaliação das ações
Lucas Giovan Gomes Acosta29
RESUMO: Neste presente artigo, analisa-se a doutrina do eterno retorno do mesmo como
hipótese avaliativa das ações morais. Nietzsche, ao propor o pensamento da eterna recorrência
como o mais pesado dos pesos estaria vislumbrando um critério formal para toda ação possível,
de maneira análoga ao imperativo kantiano. Ao olhar para esse último, poder-se-á desenvolver
o pensamento de Nietzsche como contribuição a filosofia moral, especialmente porque o
filósofo formulou a doutrina da eterna recorrência contra o kantismo. Logo, esse pensamento
apresenta-se como nada além de um pálido reflexo do imperativo categórico. A formulação
nietzschiana da doutrina do eterno retorno do mesmo envolve um duplo aspecto: i) a versão
cosmológica da eterna recorrência e ii) a versão ética do eterno retorno do mesmo. A versão
cosmológica relevou as consequências da visão científica do mundo, iniciando com a
formulação das ciências modernas que conduziram ao insight de que a vida é impossível no
interior da compreensão de mundo das ciências naturais e modernas. As ciências modernas
distanciaram o homem da essência criativa da natureza, quanto dos seus corpos vivos. Mas, e o
outro lado, a questão da moralidade? Já que tanto a filosofia teórica quanto a prática são
platônicas em seus conteúdos e separação, a versão ética do eterno do mesmo deveria ser capaz
de fornecer uma compreensão da moralidade moderna, uma interpretação ética. Discute-se em
que consistem as discussões que ocorrem em torno do pensamento de Nietzsche, e em
específico, no que se refere ao pensamento do eterno retorno. Em especial, o caráter profundo
acerca da complexidade da temática nietzschiana do eterno retorno como método avaliativo das
ações.
Palavras-Chaves: Nietzsche, Kant, eterno retorno do mesmo, moral.
INTRODUÇÃO
Dentre os clássicos da filosofia moderna, Nietzsche talvez seja o pensador mais
cáustico, questionador, incômodo e provocativo. Como destaca Giacóia (2000) sua vocação
crítica cortante o levou ao submundo de nossa civilização, “[...] sua inflexível honestidade
intelectual denunciou a mesquinhez e a trapaça ocultas em nossos valores mais elevados,
29Mestrando em Filosofia (bolsista CAPES); pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Porto
Alegre, Rio Grande do Sul; [email protected]
113
dissimuladas em nossas convicções mais firmes, renegadas em nossas mais sublimes
esperanças” (p. 6). Essa atitude deriva do que Nietzsche entendia por filosofia.
A propósito disso, as reações que se sucedem daqueles que o leem vão desde a repulsa
pura e simplista, até o encantamento ante a beleza de alguns trechos. No Ecce homo escreve
acerca dos seus leitores: “Quem sabe respirar o ar de meus escritos sabe que é um ar das alturas,
um ar forte. É preciso ser feito para ele, senão há o perigo nada pequeno de se resfriar” (EH/EH,
Prólogo, 2, PCS). Nietzsche compreende o ato de filosofar como um exercício de liberdade que
se enraíza na vida.
Conhecido por sua mordacidade, eloquência e por seu compromisso pela autenticidade
da reflexão que exige vigilância crítica e permanente de modo a denunciar qualquer
mistificação da intelectualidade, colocou em suspeita grandes pressupostos e ideais que, durante
milênios, determinaram o curso da tradição filosófico ocidental. A saber, a bipartição metafísica
do mundo em um mundo real e mundo aparente, a religião, a moral, o conhecimento, a verdade,
a cultura, e até mesmo, a filosofia. Para tanto, não poupou nenhum dos nossos mais acalentados
artigos de fé. “O destino da cultura, o futuro do ser humano na história, sempre foi sua obsessiva
preocupação. Por causa dela, submeteu à crítica todos os domínios vitais de nossa civilização
ocidental [...]” (GIACOIA, 2000, p.6).
Podemos tentar indagar conforme Fink (1983) que Nietzsche é uma das maiores figuras
vitais na história das ideias do Ocidente, um ser fatídico que nos obriga a tomar decisões finais,
um formidável ponto de interrogação no caminho percorrido até agora pelo homem europeu,
determinado pela herança da Antiguidade e por dois milênios de cristianismo. Nietzsche é um
dos grandes mestres da suspeita, que denuncia a moralidade e a política moderna como
transformação vulgarizada de antigos valores metafísicos e religiosos, numa conjuração
subterrânea que conduz ao amesquinhamento das condições nas quais se desenvolve a vida
social. É um dos mais intransigentes críticos do nivelamento e da massificação da humanidade
É impossível se colocar à altura dos principais temas e questões de nosso tempo sem
entender o pensamento de Nietzsche. Ateísta radical, ele atribui ao homem a tarefa de se
reapropriar de sua essência e definir as metas de seu destino. Nesse sentido, Nietzsche é o
pensador de nossas angústias, que não poupou nenhuma certeza estabelecida. A despeito de sua
visão sombria, o filósofo tentou ser, ao mesmo tempo, um arauto de novas esperanças. Sua
mensagem definitiva — a criação de novos valores, a instituição de novas metas para a aventura
humana na história — é também um cântico de alegria.
114
A partir de um dos seus pensamentos mais complexos e de difícil apreensão – a doutrina
do eterno retorno do mesmo - busca-se evidenciar sua contribuição à filosofia moral. Para tanto,
o presente trabalho consiste em lançar mão da doutrina do eterno retorno do mesmo como
hipótese cosmológica e ético-existencial de avaliação das ações morais.
O pensamento do eterno retorno do mesmo, sem dúvida nenhuma é o pensamento mais
difícil do universo nietzschiano de reflexão, é quase sempre qualificado por Nietzsche de
“doutrina”, isto é, aparece como objeto de ensino de Zaratustra. Aparece explicitamente no
texto de a Gaia Ciência, na seção 341 “O maior dos pesos”. Ao apresentar o pensamento da
eterna recorrência – não apenas a forma cosmológica, mas também a forma ética existencial -
como o mais negro e mais pesado, Nietzsche, nos prescreve fundamentalmente um método
avaliativo que visa avaliar as condutas humanas. Isso significa que, em vez de dizer que
qualquer coisa que eu faça é apenas uma repetição de algo que farei infinitas vezes, vejo que
qualquer coisa que eu faça agora farei repetidamente por toda a eternidade. É por isso que esse
pensamento coloca agora o maior dos pesos. É nesse viés, que o pensamento da eterna
recorrência nos forneceria um critério formal para toda a ação possível, de uma maneira análoga
ao imperativo kantiano, fomentando assim a possibilidade de se vislumbrar uma moral trágica.
Enquanto crítico-genealogista da moral, como nos afirma Araldi (2008), Nietzsche
coloca sob suspeita a crença em toda a moral. Ao revelar as fundações, o filósofo destrói o que
se sustenta sobre elas. Eis o trabalho do filósofo das profundezas e a parte destrutiva da Filosofia
de Nietzsche. Há também a parte construtiva: forjar uma nova moralidade sem recorrer a
qualquer fundamento metafísico. Nietzsche toma a moralidade como um problema filosófico e
não apenas como o ponto a partir do qual se discutem problemas. Como destaca Fonseca (2010),
não mais o conteúdo da moralidade, mas a própria ideia de uma moralidade é um problema
filosófico.
Ao criticar a moralidade, ao fazer ruir o antigo edifício, Nietzsche nos remete a
moralidades possíveis, por exemplo, a moralidade trágica que não se baseia em algo como
“Deus, virtude, verdade, justiça, amor ao próximo” (A, prólogo, 4), mas que afirma a vida e sua
inevitável dualidade, estando para além do bem e do mal. Dito de outra maneira, uma
moralidade de um imoralista. Ao se dizer um imoralista, Nietzsche não está dizendo que não
tem moral, que é um amoral, ao contrário, ele está dizendo que não segue a moralidade vigente.
Eis o problema com a qual nos deparamos: i) Qual moralidade pode ser seguida por um
imoralista? ii) Que critérios Nietzsche utiliza para avaliar os valores morais? Cogita-se a
possibilidade de encontrar essa resposta no eterno retorno do mesmo como imperativo prático,
115
no entanto: seria possível tomar o Eterno retorno do mesmo um método de avaliação moral das
ações? Com essa ideia, nos possibilitaria Nietzsche, vislumbrar sua pretensão de superar a
moralidade vigente, tendo como fio condutor a “face ética” do eterno retorno do mesmo; um
método que, na forma de imperativo prático, proporcionaria avaliar o nosso agir?
Nietzsche como filósofo da moralidade: a descrição da fraqueza e a prescrição de uma
moral aristocrática
Friedrich Nietzsche teve na questão da moral seu principal tema, abordando os valores
morais e sua influência na vida humana. Contudo, não é mais um entre tantos filósofos a buscar
constituir atitudes que se estabeleceriam como corretas e assim propiciar o bem viver a todos;
sua filosofia tampouco visa conduzir o homem à virtude e ao bem comum.
A partir do ponto de vista adotado por este trabalho, as contribuições de Nietzsche à
filosofia moral apresentam algumas vantagens em relação a outras teorias morais. Eis a primeira
delas: Nietzsche compreende que os seres humanos não devem ser descritos apenas de uma
única forma, ao contrário, critica a pretensão que se tem em dizer que o homem deve ser assim
ou assim. “[...] que ingenuidade é dizer ‘assim e assim deveria ser o homem’” (CI, A moral
como antinatureza, §6). Segundo Fonseca (2010), existe consequências nefastas não apenas
para o indivíduo, mas por extensão a toda humanidade dizer que o ser humano deveria ser “so
und so”. Consequências que consistem, basicamente, em eliminar o que é peculiar a cada
indivíduo e, ao homogeneizar e domesticá-los, torná-los previsíveis e, por isso, confiáveis.
Nietzsche descreve a maioria dos seres humanos como fundamentalmente fracos, para
ele a exigência da criação de valores para esses seres humanos enfraquecidos que anseiam em
se tornarem o que não são é uma ideia insuportável, insustentável. Para tanto, prescreve uma
moral aristocrática que pressupõe a desigualdade, a hierarquia entre os seres humanos, que os
exorta a serem criadores de seus próprios valores. Em Para Além do Bem e do Mal, enfatiza “A
elevação maior do tipo ‘homem’ foi até agora obra de uma sociedade aristocrática. Parece que
assim será sempre. Por se tratar de uma sociedade que acredita numa longa escala de hierarquias
e diferenças de valor de homem para homem” (BM, Que é aristocrático? §257). Nietzsche
compreende assim, o homem aristocrático como a “fera” mais completa.
Entretanto, cabe ressaltar que há diferenças no Übermensch – Além – do - homem – o
tipo ideal nietzschiano e quem os seres humanos em geral podem vir a ser. No campo da
moralidade, pode-se dizer que o dever-ser está limitado pelo ser. A fraqueza não deve
116
necessariamente ser superada. Pois, Nietzsche reconhece que os seres humanos são diferentes
e todos devem tornar-se o que são, ou seja, não se vislumbra melhorar os seres humanos por
meio do que os outros desejam que sejam. O dever-ser pode tornar o homem confiável, mas
enfraquecê-lo, enfraquecer a sua própria existência. Em um fragmento póstumo da primavera-
outono de 1881, lê-se o seguinte:
Minha doutrina diz: a tarefa consiste em viver de tal modo que queiras viver
novamente... Em quem a aspiração desperta o sentimento mais elevado, que aspire;
em quem o descanso desperta o sentimento mais elevado, que descanse; em quem a
ordem, a continuidade e a obediência despertam o sentimento mais elevado, que
obedeça. Que ele se torne consciente do que lhe desperta o mais elevado sentimento
e não evite meios!..(Apud, FONSECA, 2010, p. 37).
Nietzsche, então nos prescreve a questão fundamental de sua filosofia: ser criador de
valores de seus próprios valores e, assim, tornar-se quem se é. O homem criador é o homem
livre, pois, é somente na plena realização de sua liberdade que o criador pode criar. Em outras
palavras, há criação onde há liberdade. O exercício de liberdade é o que torna o homem criador,
entretanto, nem sempre é alcançável por todos os homens, pois, não basta dizer ao homem tu
és livre para que este se torne realmente livre e criador.
A culpa não é da liberdade se muitos homens não podem exercitá-la, a culpa é do homem
que a teme, pois, quem teme a liberdade não pode ser criador. Para tanto, Nietzsche compreende
que a primeira libertação do homem consiste em libertar-se a si mesmo, há uma intensa luta
dentro de nós mesmos, é preciso travar essa luta contra todos os nossos próprios demônios. Em
Assim falou Zaratustra, Nietzsche introduz os discursos Das Três Transformações que nos
possibilitam vislumbrar esse grande ato de liberdade do homem, essa liberdade criadora, esse
querer criador. Mas para isso é fundamental que o homem saia da dependência para a
independência e do niilismo passivo ao ativo, isto é, para a criação.
Criar novos valores [...] Para criar para si mesmo a liberdade e dar um sagrado não ao
dever [...], assumir o direito de novos valores – é o mais formidável dos pressupostos,
para a suportação e a reverência de um espírito. [...] Sim, é preciso um sagrado Sim,
meus irmãos, para o jogo da criação: o espírito quer agora a sua vontade, aquele que
se apartou do mundo quer conquistar agora o seu mundo. Nomeei-vos três
transformações do espírito: como o espírito tornou-se um camelo, o camelo um leão,
e o leão, por fim, uma criança (ZA I “Das Três Transformações”).
É claro que o conteúdo desses valores depende de cada agente. Há diversas passagens
no Assim falou Zaratustra em que Nietzsche afirma que os seres humanos devem ser criadores
117
de seus próprios valores. A saber, na segunda parte de a “Da virtude dadivosa” Nietzsche
discursa aos seus discípulos “Que o vosso espírito e a vossa virtude sejam devotados ao sentido
da terra, meus irmãos: deixai que o valor possa ser determinado novamente por vós. Vós deveis,
portanto, ser lutadores! E assim sereis criadores” (ZA I “Da virtude dadivosa”). É importante
ressaltar que, Zaratustra está prestes a partir sozinho, como deseja, quando fala a seus
seguidores; pela boca da personagem30, Nietzsche nos ensina como deseja ser lido e
compreendido. Segundo Fonseca (2010) dois aspectos fundamentais podem ser vislumbrados
na fala de Zaratustra/Nietzsche: 1) Zaratustra/Nietzsche não quer discípulos, mas
companheiros. 2) Seus companheiros devem ser criadores de valores.
Ao desejar companheiros, Zaratustra, busca, portanto, interlocutores, e não seguidores.
Zaratustra não é uma muleta, não é sustentação, não é apoio para alguém. “Segure-se em mim
quem puder! Mas não sou a vossa muleta” (ZA I “Do Pálido Criminoso”). Cada um deve ser
forte o suficiente para suportar a si mesmo e para suportar ser criador de seus próprios valores
morais. A exigência para a criação de nossos próprios valores morais não significa que devemos
estar em busca constante de novos valores, mas que podemos adotar como nossos os valores
que aprendemos com os outros. Logo, criar valores não significa apenas inventar novos valores
morais. Mas antes, significa, igualmente, tomar valores para si e tornar-se quem se é.
Nietzsche com isso não assume uma postura apenas de elogio diante de todos os valores
morais criados pelo homem. Ao contrário, Sócrates, por exemplo, enquanto criador de valores,
é amplamente criticado por Nietzsche31. O elogio de Nietzsche se dirige a todos os criadores de
valores que servem ao sentido da Terra, de afirmação e enaltecimento da vida.
A segunda vantagem que conseguimos vislumbrar em Nietzsche consiste na
interpretação da ideia do eterno retorno do mesmo como um possível critério de avaliação das
ações morais. Acerca do eterno retorno Nietzsche explicita em Ecce Homo:
A doutrina do “eterno retorno”, ou seja, do ciclo absoluto e infinitamente repetido de
todas as coisas – essa doutrina de Zaratustra poderia afinal ter sido ensinada também
por Heráclito. Ao menos encontram-se traços dela no estoicismo, que herdou de
Heráclito quase todas as suas ideias fundamentais (EH/EH “O nascimento da
tragédia”, § 3).
30 Refiro-me ao último discurso da primeira parte em Assim falou Zaratustra. 31 Ver: FONSECA, Ana Carolina da Costa e. “Os dois sentidos da crítica nietzschiana: Sócrates como um caso
exemplar”. Revista Veritas, Porto Alegre, v. 57, nº1, Jan/Abr. 2012.
118
A vantagem do critério nietzschiano de avaliação moral das ações consiste no fato de
que esse critério não é o mesmo para todos os indivíduos. O que é possível vislumbrar como
sugestão comum a todos nós a despeito dessa avaliação é o fato de que devemos avaliar as
nossas ações tomando como critério de atribuição moral a ideia de viver a mesma vida uma
infinidade de vezes possíveis, e assim realizar as mesmas ações infinitas vezes, tal concepção
é adotada como critério moral das ações. Porque os seres humanos não são fundamentalmente
iguais, não há possibilidade de haver um critério de avaliação moral que seja aplicável por todos
os seres humanos objetivando obter os mesmos resultados.
Assim, compreende-se que, moralidades se aplicam a tipos humanos diferentes. Não há
moralidades que prescrevem a todos os seres humanos critérios de avaliação moral das ações,
pois se tem a pretensão de que todos os seres humanos devam se comportar do mesmo modo.
Contudo, há moralidades que prescrevem critérios de avaliação moral, entretanto, evidenciam
o reconhecimento de que as atribuições de valores decorrem de certas condições diferenciadas,
ou seja, fisiológicas e psicológicas de cada um. E Nietzsche, defende claramente, essa segunda
forma de moralidade.
De acordo com Fonseca (2010) a moralidade nietzschiana difere-se das demais formas
de moralidade, pois, Nietzsche reconhece a diferença como ponto fundamental entre os seres
humanos. Essa ideia de igualdade surge “[...] no final da Idade Antiga com o cristianismo. Na
Idade Moderna, quando a suposição da igualdade entre os seres humanos se estende a
concepções jurídicas e políticas [...]” e assim, “[...] difunde-se a ideia de que todos devem ser
tratados igualmente” (FONSECA, 2010, p. 37).
Acerca da crítica de Nietzsche a ideia de igualdade o filósofo afirma em Anticristo: “A
venenosa doutrina dos ‘direitos iguais para todos’ foi propagada como um princípio cristão”
(AC/AC, 43). Nietzsche trata, portanto, a ideia de igualdade de direitos como um verdadeiro
veneno. Um veneno que gangrena o corpo social, que revela um discurso que se apoia sobre a
supérflua e mentirosa ideia de igualdade dos homens e que favorece o instinto gregário mais
vulgar. Uma ideia que repousa sob a noção de justiça, mas não faz justiça ao indivíduo. E assim
no Anticristo ataca: “A ‘igualdade das almas perante Deus’ – essa fraude, esse pretexto para o
rancor de todos espírito baixos – essa ideia explosiva terminou por converter-se em revolução,
ideia moderna e princípio de decadência de toda ordem social – isso é dinamite cristã” (AC/AC,
62).
Nietzsche continua a disparar críticas à ideia de igualdade em o Anticristo, e no mesmo
sentido, Zaratustra fala a seus expectadores: “Porque os homens nãos são iguais: assim fala a
119
justiça” (ZA II “Dos Doutos”). Anteriormente, Zaratustra dissera: “Não quero ser misturado a
esses sacerdotes da igualdade, nem ser confundido por um deles. Pois que assim a justiça me
fala: ‘Os homens não são iguais’” (ZA II “Das tarântulas”). Nietzsche compreende, portanto,
que os homens não são iguais, e tratá-los de modo diferente significa tratá-los justamente.
Zaratustra é aquele que se reconhece como criador de valores; como um ser que quer sua Wille
zur Macht – vontade de poder – e, reconhece que a forma como está organizada a sociedade,
tem-se a impossibilidade da criação de valores. Na verdade, concebem-se “[...] conceitos,
ensinamentos e símbolos que tiranizam as massas e forma rebanhos” (AC/AC, 42).
Essa aparente tentativa de homogeneidade do querer faz com que se molde os seres
humanos e, tentar torná-los iguais, exige uma moralidade única, mas em Aurora, Nietzsche
afirma:
[...] não há uma moral única determinando o que é moral, e que toda moralidade que
afirma exclusivamente a si própria mata muitas forças boas e vem a sair muito cara
para a humanidade. Os divergentes, que tantas vezes são os inventivos e fecundos,
não devem mais ser sacrificados; já não deve ser tido por vergonhoso divergir da
moral, em atos e pensamentos; devem ser feitas inúmeras tentativas novas de
existência e de comunidade; um enorme fardo de má consciência deve ser eliminado
do mundo – tais metas universais deveria ser reconhecidas e promovidas por todos os
homens honestos que buscam a verdade (M/A, 164).
E aqui, a o que se considerar acerca das razões para evitar a eliminação da má
consciência no mundo:
Cada ação individual, cada modo de pensar individual provoca horror; é impossível
calcular o que justamente os espíritos mais raros, mais seletos, mais originais da
história devem ter sofrido pelo fato de serem percebidos como maus e perigosos, por
perceberem a si próprios assim. Sob o domínio da moralidade do costume, toda
espécie de originalidade adquiriu má consciência; até o momento de hoje, o horizonte
dos melhores tornou-se ainda mais sombrio do que deveria ser (M/A, 9).
A ética nietzschiana, nesse sentido, contrapõe-se as demais teorias filosóficas que visam
refletir a partir de um ponto comum a todos. A ética nietzschiana reflete sobre a agência a partir
dos indivíduos. Essa seria uma moral aristocrática de afirmação, de enaltecimento da vida e da
Terra.
Entretanto, antes de continuarmos a analisar a contribuição ética do eterno retorno do
mesmo como hipótese avaliativa das ações morais, faz-se necessária uma digressão de forma a
possibilitar a intenção de Nietzsche ao formular seu pensamento abissal.
120
O pensamento mais elevado e abissal
No Ecce Homo, Nietzsche afirma que a doutrina do eterno retorno do mesmo é “[...] a
mais elevada forma de afirmação que se pode em absoluto alcançar, é de agosto de 1881: foi
lançado em uma página com o subscrito: ‘seis mil pés acima do homem e do tempo’” (EH/EH,
Assim falou Zaratustra 1. Trad. PCS). O pensamento da eterna recorrência constitui a
concepção básica de Assim falou Zaratustra. Como o pensamento mais elevado, mais terrível,
mais profundo e mais abissal que conduz à eterna repetição sem sentido ou fim de tudo,
Nietzsche acaba por caracteriza-lo enquanto experiência do pensamento como o “mais pesado
dos pesos”. Na Gaia Ciência aparece pela primeira vez como desafio e hipótese:
O mais pesado dos pesos. — E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse
em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e
como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá
nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que
há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na
mesma ordem e sequência [...]”. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e
amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante
descomunal, em que lhe responderias: “Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais
divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te
transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa: “Quero
isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos
sobre o teu agir! (FW/GC 341. Trad. PCS).
O pensamento da Eterna recorrência, de um tempo circular, parece não ser uma ideia
nova. Nietzsche explicita em uma passagem de Ecce Homo que essa doutrina possui relação
com Heráclito, ou melhor, que poderia ter sido ensinado por Heráclito. O pensamento do eterno
retorno coloca-se como referência suprema após a morte de Deus. Como um novo peso, a
eternidade se realiza no tempo, o que pode mudar todo o âmbito dos valores. Assim, o eterno
retorno é a condição necessária para a transvaloração de todos os valores. É a condição
necessária para a superação do niilismo.
O aforismo 341 da Gaia Ciência que tem como título “o maior dos pesos” parece
possibilitar um sentido duplo. Por um lado como o maior dos pesos, o eterno retorno sufocará
o ressentido, o fraco, o decadente, aquele que não suporta a vida como ela é, e muito menos a
sua eterna repetição; já para o homem afirmador, aquele que aprova a vida em sua totalidade,
bem como o eterno retorno do mesmo será a condição necessária para a criação de valores. Por
outro lado, o eterno retorno parece evidenciar um aspecto ético e outro cosmológico. Num
fragmento póstumo, aponta nessa direção:
121
E sabeis sequer o que é para mim “o mundo”? (...) Este mundo: uma monstruosidade
de força, sem início, sem fim, uma firme, brônzea grandeza de força, que não se torna
maior, nem menor, (...) jogo de forças e ondas de forças ao mesmo tempo um e
múltiplo, (...) afirmando ainda a si próprio, nessa igualdade de suas trilhas e anos,
abençoando a si próprio como Aquilo que eternamente tem de retornar (...)
(Nachlass/FP 1885, 38[12], KSA 11.610. Trad. RRTF).
A doutrina da eterna recorrência, em seu aspecto cosmológico, ensina que o universo
consiste num movimento eterno de repetidos ciclos cósmicos. Em seus ciclos, tudo se repetiria
e retornaria de forma idêntica e na mesma ordem sequencial. Tudo tem que eternamente
retornar “na mesma ordem e sequência”. Ao apresentar a doutrina em seus escritos publicados
em vida, o filósofo não se preocupa em oferecer um embasamento teórico. Em Assim falou
Zaratustra, por exemplo, a doutrina aparece de maneira quase poética na parte final de o
Convalescente:
Vê, sabemos o que ensinas: que todas as coisas eternamente retorna, e nós mesmos
com elas, e que eternas vezes já estivemos aqui, juntamente com todas as coisas.
Ensinas que há um grande ano do vir-a-ser, uma monstruosidade de grande ano: tal
como uma ampulheta, ele tem de virar sempre de novo, a fim de novamente escorrer
e transcorrer: - de modo que todos esses anos são iguais a si mesmos, nas coisas
maiores e também nas menores – de modo que nós mesmos somos iguais a nós
mesmos em cada grande ano, nas coisas maiores e também nas menores. [...] “Agora
morro e desapareço”, falarias, “e num instante serei nada. As almas são tão mortais
quanto os corpos. Mas o nó de causas em que estou emaranhado retornará – ele me
criará novamente! Eu próprio estou entre as causas do eterno retorno. Retornarei, com
este sol, com esta terra, com esta águia, com esta serpente – não para uma vida nova
ou uma vida melhor ou uma vida semelhante: - Retornarei eternamente para esta
mesma e idêntica vida, nas coisas maiores e também menores, para novamente ensinar
o eterno retorno de todas as coisas, [....]” (ZA III “O convalescente”, 2, Trad. PCS).
De acordo o trecho citado supra, os animais de Zaratustra, a saber, a águia e a serpente
fazem referências às noções que integram o pensamento do eterno retorno do mesmo, como por
exemplo, “o grande ano do vir-a-ser”, como “as causas do eterno retorno”. As personagens
estão longe de realizarem uma explicação propriamente teórica, na verdade, uma argumentação
cosmológica que tenta justificar repetições cósmicas será efetivamente realizada nos
fragmentos póstumos. “Em suma, enquanto que, nas obras publicadas, Nietzsche recorre a uma
linguagem mais poética, nos póstumos, ele lança mão – na maioria das vezes – de um discurso
argumentativo e faz uso de um vocabulário científico” (NETO, 2013, p. 85).
Nietzsche foi influenciado por questões da investigação científica da época. É inevitável,
portanto, não ressaltar a relação do pensamento nietzschiano com as ciências naturais. Marton
(2010) enfatiza a importância dos trabalhos dos biólogos Rolph e Roux para a criação do
122
conceito de vontade de poder. Em Boscovich (século XVIII), físico, matemático e astrônomo
croata, Nietzsche buscou um dos conceitos fundamentais para sua cosmologia, o conceito de
força. Em Para além do bem e do mal, Nietsche escreveu sobre Boscovich: “[...] Boscovich
nos ensinou a abjurar a crença na última parte da terra que permanece firme, a crença na
‘substância’, na ‘matéria’, nesse resíduo e partícula da terra, o átomo […]” (JGB/BM 12, KSA
5.26. Trad. PCS). Porém, ao conceito de força mecânica newtoniana, o filósofo acrescentou um
caráter intrínseco, um mundo interior: a vontade de poder. Em dois fragmentos póstumos,
escreve Nietzsche:
O vitorioso conceito de ‘força’, com o qual nossos físicos recriaram Deus e o mundo,
necessita ainda de uma complementação: é necessário aditar-lhe um mundo interior,
ao qual eu chamo de ‘vontade de potência’ (Nachlass/FP 1885, 36[31], KSA 11.563.
Trad. FRK apud NEVES, 2013, p. 287).
Uma força que não podemos conceber (como a assim chamada força de atração e de
repulsão puramente mecânica) é uma palavra vazia (…). Todo acontecer derivado de
propósitos é redutível ao propósito de ampliar a potência” (Nachlass/FP 1885-86,
2[88], KSA 12.105. Trad. FRK apud NEVES, 2013, p. 287).
A vontade de poder aparece em Assim falou Zaratustra ligada somente à vida “Onde
encontrei seres vivos, encontrei vontade de poder; e ainda na vontade do servente encontrei a
vontade de ser senhor. [...] onde há vida há também vontade [...]” (ZA II “Da superação de si”
Trad. PCS). A vontade de poder permeia o modo de ser de todo vivente, ou seja, o mundo
orgânico. Contudo, posteriormente, Nietzsche passa a relacionar a vontade de poder ao mundo
inorgânico, e a vida torna-se um caso particular da vontade de poder. Com a teoria das forças,
a vontade de poder não se restringe apenas ao mundo orgânico, mas constitui agora a totalidade
cósmica. O mundo como forças em luta, em disputa, buscando mais poder. Essas forças não
aumentam nem diminuem, mas se efetivam numa eternidade imanente. Um mundo “tem que
sempre retornar”.
Se o mundo pode ser pensado como grandeza determinada de força e como número
determinado de centros de força — e toda outra representação permanece
indeterminada e consequentemente inutilizável —, disso se segue que ele tem de
passar por um número calculável de combinações, no grande jogo de dados de sua
existência. Em um tempo infinito, cada combinação possível estaria alguma vez
alcançada; mais ainda: estaria alcançada infinitas vezes (Nachlass/FP 1888, 14[188],
KSA 13.376. Trad. RRTF apud NEVES, 2013, pp. 287-288).
Nietzsche apresenta seu argumento a favor da repetição das configurações cósmica. As
forças por serem finitas e/ou determinadas repetem seus arranjos num tempo infinito. Logo,
123
“tudo na mesma ordem e sequencia retornaria infinitas vezes”. Numa eternidade imanente e no
número finito de forças, a cosmologia nietzschiana funda-se.
Nietzsche apresenta sua “fórmula” cosmológica e argumenta da seguinte maneira: o
tempo é tido como infinito, pois o mundo não teria sido criado nem teria fim; o devir não possui
forma alguma de teleologia; o cosmo é composto por luta de forças incessantes; o número das
forças que compõem o cosmo é finito, logo suas combinações são finitas. E conclui: todas as
combinações teriam de se repetir sem nunca variar. Em uma anotação póstuma de 1888
argumenta:
A nova concepção de mundo –
O mundo se conserva; não há qualquer coisa que devenha, qualquer coisa que passe.
Ou melhor, ele devém, ele passa, mas ele jamais começou a devir e não cessará de
passar – ele se mantém nestes dois processos ... ele vive de si mesmo: os seus
excrementos são sua alimentação ...
A hipótese de um mundo criado não deve nos preocupar nem mais um momento
sequer. O conceito de criação é agora absolutamente indefinido, inaplicável: é
somente uma palavra que permanece no estado rudimentar, desde os tempos da
superstição (NIETZSHCE, Friedrich, KSA 13,374, 14 [188] da primavera de 1888
apud NETO, 2013, p. 92).
O filósofo desqualifica a ideia de uma criação cósmica e proclama uma infinitude
temporal seja para o passado, seja para o porvir. Para o homem moderno, tal concepção –
possível após a morte de Deus – sobre a consideração do mundo completamente desprovido
de começo e ao mesmo tempo de sentido final é catastrófico. “Nietzsche pretende sustentar a
tese de que o mundo, mesmo sem o concurso de um Deus transcendente, mantendo-se
inalterável no seu conjunto, é eterno” (BARBOSA, 2010, p. 74). Sem a figura de um ser
transcendente, pois, Deus está morto, o mundo perdeu toda a sua origem quanto a sua meta. O
mundo é sem começo e fim, logo, pode ser concebido como eternamente retornando. No intuito
também de se afastar do preconceito metafísico predominante na física moderna de um conceito
de força infinita, que levaria a aceitação de um mudo ilimitado que, por sua vez, recairia em um
princípio metafísico, Nietsche concebe o conceito de força como quantidade finita e sempre
igual.
O pensamento do eterno retorno do mesmo se imporia como refutação as concepções
teológicas e cientificas, porém, sem promover uma afirmação positiva sobre o mundo. Assim,
parece que não há qualquer possibilidade de criação, novidade, superação, uma vez que tudo é
repetição, (BARBOSA, 2010). O mundo de uma eterna repetição do mesmo não abriria a
possibilidade para a criação. A própria experiência de superação do niilismo estaria fadada ao
124
fracasso. Contudo, concordamos com Barbosa (2010), que a doutrina nietzschiana do eterno
retorno do mesmo é o ultrapassamento absoluto do niilismo. Essa possibilidade se abre a partir
do deslocamento da experiência do eterno retorno para o plano ético. “[...] o plano da
moralidade aparece a Nietzsche como plano possível de uma experimentação ainda mais radical
com a hipótese do eterno retorno”. A superação do niilismo, a criação de novos valores, a
afirmação incondicional da vida, a transvaloração de todos os valores encontraria na efetivação
da experiência do eterno retorno sua chance de efetivação.
A versão cosmológica do eterno retorno revelou as consequências das teologias cristã e
científicas - na medida em que ambas tomam partido de um certo tipo de finalismo,
respectivamente, metafísico e físico - e desse modo sua elaboração visou superar essas
concepções teológicas a partir do conceito de força. Porém, como fica o plano da moralidade?
“[...] com a ideia de que a ação humana já impossível, pois ela está destinada a se repetir em
qualquer caso o que já está determinado” (HAASE, 2011, p. 128) seria possível avaliar as
nossas ações? O pensamento da eterna recorrência nos forneceria uma compreensão da
moralidade moderna? Haveria possibilidade para a criação de novos valores?
O Eterno Retorno do Mesmo como hipótese avaliativa das ações
O eterno retorno do mesmo parece possibilitar uma resposta possível para o problema
da moralidade; aparece assim como um possível método de avaliação moral de nossas ações
conforme a autonomia e não-universal. É imprescindível que avaliemos constantemente nossas
ações e, se desejarmos, que tentemos alterar o nosso comportamento. Isso é feito, por Nietzsche,
de acordo com a utilização do eterno retorno do mesmo como imperativo prático.
Pois, compreende-se que a eterna recorrência, concerne, a afirmação da minha própria
existência. Ela possibilita “a mais alta confirmação e garantia” ao “quem” que eu sou. Logo,
conforme nos descreve Haase (2011) ela fundamenta a noção de liberdade não no nível de
conhecimento como algo oposto ao mundo exterior, mas “no nível da minha inseparabilidade
do mundo da ação” (p.131). Assim, entende-se que, o pensamento da eterna recorrência poderia
ser capaz de fornecer uma compreensão da moralidade moderna.
“A versão ética” do eterno retorno possui estrita ligação com a versão cosmológica. “[...]
a explicação ética da recorrência eterna precede a cosmológica” (p 128). A formulação desse
pensamento, contudo, também é lançado mão por Nietzsche enquanto hipótese ética de
avaliação das ações. Nietzsche toma o eterno retorno do mesmo como um imperativo prático,
7
125
pois, vislumbra a imprescindibilidade de se avaliar constantemente nossas ações. O filósofo usa
a ideia da possibilidade de se revivê-las eternamente como critério de avaliação moral das
mesmas. Sem recorrer a um critério procedimental de avaliação de nossas ações. Como destaca
Deleuze (1976, p. 33, grifos do autor) “Como pensamento ético o eterno retorno é a [...]
formulação da síntese prática: O que tu quiseres, queira-o de tal modo que também queiras seu
eterno retorno”. Igualmente, se pensarmos que todas as ações serão refeitas por nós mesmos
exatamente do mesmo modo, atribuímos a ela o peso da eternidade e da infinita recorrência.
Não importa se devemos realizar as nossas ações porque são boas, mas sim porque desejaríamos
realizar infinitas vezes. Nietzsche, toma o eterno retorno do mesmo como método mais
apropriado para avaliar moralmente as ações, o estatuto moral e o modo como os seres humanos
deveriam agir.
Igualmente como Kant, Nietzsche buscou desenvolver um método capaz de avaliar as
ações e identificá-las como morais ou não. Entretanto, ambos divergem não apenas quanto ao
método, ou quanto ao estatuto da ação moral, como também ao “modo” como os seres humanos
deveriam agir. Nietzsche valoriza um ser capaz de afirmar seus instintos; os padrões de
moralidade vigentes desde Sócrates nada mais fazem do que adestrar o ser humano, torna-lo
fraco e previsível. Por isso, um genealogista da moral pergunta pelas motivações morais que
geram a concepção de agencia ideal que visa determinar como o ser humano deve agir para que
ele seja digno da felicidade.
Kant e Nietzsche de acordo com Haase (2011) e Fonseca (2010) possuem em comum
um imperativo prático. O que vai ao encontro da tese de Bailey (2011), que apesar do desdenho
pelo filósofo, Nietzsche tenha desenvolvido uma série de interesses e compromissos kantianos.
No entanto, enquanto Kant, busca um fundamento a priori para a moralidade, Nietzsche,
reconhece a moralidade como conjunto de valores com validade espaço-temporal. O filósofo
critica qualquer fundamento a priori para a moralidade, pois, estamos fadados a viver em um
mundo previsível com valores não-absolutos.
Para tanto, a interpretação ética do eterno retorno, é um modo afirmativo de avaliação
das ações. O agente deve se perguntar a respeito de cada uma de suas ações. A cada ação, se
atribuiria o peso da possibilidade de ela ser revivida e refeita infinitas vezes. Portanto, a
novidade do eterno retorno como imperativo prático, consiste na construção de um mundo
completamente diferente do de Kant e que não valoriza a razão em detrimento das demais
faculdades humanas. Submete, na verdade, a razão aos desejos dos agentes. O método de
Nietzsche jamais seria parecido com algo como o imperativo categórico. Pois, ao avaliar as
126
ações humanas sob o crivo da eterna recorrência, é o peso da repetição infinita, o modo como
o agente suporta a ação que realizou, não a ação em si, que deve ser avaliada. Portanto,
Nietzsche, coloca nas mãos humanas a origem e a manipulação da moralidade.
Considerações Finais
A relevância em problematizar o eterno retorno do mesmo como método avaliativo de
nossas ações consiste, não apenas em evidenciar a contribuição de Nietzsche a superação da
moralidade decadente e propor a superação e a transvaloração dos valores, fornecendo um
critério formal para toda a ação possível, de uma “maneira análoga” ao imperativo moral
kantiano. Como também em fomentar o debate acerca da complexidade de temas envolvidos
no pensamento do eterno retorno. Como, por exemplo, no que diz respeito ao debate
cosmológico e/ou ético existencial da eterna recorrência.
De acordo com Leidens (2011), “O eterno retorno do mesmo pode ser caracterizado
tanto como uma suprema forma de afirmação quanto como uma perspectiva niilista/negativa”
(p. 104). Entretanto, dentre a complexidade de temas que evolvem os debates acerca do
pensamento da eterna recorrência, uma delas nos diz respeito. A saber, a face ética do eterno
retorno do mesmo. Disso se ocupou Marton em seu artigo O eterno retorno do mesmo: tese
cosmológica ou imperativo ético (2011, p. 85-118). Em linhas gerais, Marton opõe-se a
discussão corrente que compreende o pensamento do eterno retorno, ou como uma tese
cosmológica ou como um imperativo ético existencial. Em resposta, Marton (2001) argumenta
que ambas se impõem ao mesmo tempo, uma vez que o eterno retorno realiza uma
caracterização do mundo que inclui o homem como parte constitutiva dessa dinâmica
cosmológica. Nas palavras dela:
O eterno retorno: tese cosmológica ou imperativo ético? A questão deixa de ter
sentido. Exortar a que se viva como se essa vida retornasse inúmeras vezes não se
restringe a advertir sobre a conduta humana; é mais do que um imperativo ético.
Sustentar que, queiramos ou não, esta vida retorna inúmeras vezes não se limita a
descrever o mundo; é mais do que uma tese cosmológica. O eterno retorno é parte
constitutiva de um projeto que acaba com a primazia da subjetividade. Destronado, o
homem deixa de ser sujeito frente à realidade para tornar-se parte do mundo
(MARTON, 2001, p. 118).
Marton é incisiva quanto à necessidade de se assumir essa dupla consideração do
pensamento do retorno. Segundo ela, se pensada em termos de exclusão “a questão deixa de ter
127
sentido”. Não há que se tomar partido por uma ou outra face desse pensamento, entretanto, a
intérprete segundo Barbosa (2010), não explica de que modo essa dupla face do eterno retorno
colabora com o projeto de destruição da subjetividade. Contudo, entendemos que, mesmo
admitindo essa dupla consideração complexa do eterno retorno, é possível, em relação do que
se pretende mostrar, privilegiar o aspecto ético do retorno, não apenas por se tratar de uma
tentativa de considerar a vida e o mundo do ponto de vista de uma afirmação incondicional,
mas em tomar o eterno retorno do mesmo como imperativo prático que visa avaliar as ações.
Para Fonseca (2010) a ideia do eterno retorno sob o prisma da interpretação ética é o que torna
como unicamente original a doutrina nietzschiana. Sendo a cosmológica uma reapresentação
das ideias dos antigos, pois, Nietzsche compreende que os fatos, assim como ocorreram uma
vez, ocorreriam infinitas vezes. O tempo seria circular e a vida revivida eternamente, do mesmo
modo e na mesma sequencia. Suposição que já fora aventada pelos gregos. Sendo assim,
Nietzsche estaria representando uma ideia dos antigos; e a interpretação ética é a única original
extraída por Nietzsche desse pensamento. A interpretação ética, portanto, atribui um peso a
cada ação, peso que é o “mais pesado dos pesos”.
REFERÊNCIAS
ARALDI, Claudemir Luís. Nietzsche como crítico da Moral. Revista Dissertatio, 27-27, pp.
33-51, Pelotas, 2008.
______. Niilismo, Criação, Aniquilamento: Nietzsche e a filosofia dos extremos. São Paulo.
Discurso Editorial: Ijuí, RS: Editora Unijuí, 2004.
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129
TRABALHOS APRESENTADOS NO GRUPO DE
TRABALHO CIÊNCIAS HUMANAS E
INTERDISCIPLINARIDADE, SOB COORDENAÇÃO
DO PROFº. DR. EDSON ROMÁRIO MONTEIRO
PANIÁGUA
130
DEBATENDO A PRÁTICA DOCENTE: UM RELATO PIBIDIANO32
Camila Dinat Campos33,
Mariana Dicheti Gonçalves34,
Ingrid Suelen Rodrigues Meireles35,
Sandro da Silva36,
Edson Romário Monteiro Paniágua 37
RESUMO: O presente trabalho é um relato do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
à Docência – PIBID – campus São Borja, subprojeto História, com o projeto “Patrimônio e
Cultura”, desenvolvido na Escola Municipal de Ensino Fundamental Vicente Goulart, São
Borja/RS. O PIBID está ligado ao curso de Ciências Humanas da UNIPAMPA – São Borja.
Serão abordadas duas atividades realizadas no desenvolvimento do projeto no primeiro
semestre de 2017. Para dar início as atividades do projeto, optou-se por ministrar uma aula
com conteúdo sobre cultura e identidade, com a utilização da metodologia expositiva dialogada,
realizando as conexões entre o cerne formal e o conhecimento construído socialmente por cada
sujeito antes de sua inserção ao ambiente escolar. Partindo dessa premissa, de que a escola
deve ir além do pragmatismo, da transferência de conteúdos aos educandos é preciso despertar
a curiosidade que associada ao senso comum, contribui na construção social de cada educando.
Porém, quando essa curiosidade ganha elementos de criticidade, advindos da interação com o
aspecto formal da educação, o educando passa a construir seu próprio conhecimento e não
receber de forma pronta e determinista, como sugere Freire (1997). Neste sentido,
primeiramente, para refletir criticamente sobre a própria prática, segundo para buscar uma
prática melhor, decidiu-se aplicar uma aula com uma dinâmica de grupo, com objetivo de
32 Trabalho executado com recursos do Edital Capes nº. 061/2013 do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação
à Docência. 33 Graduanda no Curso de Ciências Humanas – Licenciatura na Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA –
Campus São Borja. Bolsista Capes/CNPq – no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência E-mail:
[email protected] 34 Graduanda no Curso de Ciências Humanas – Licenciatura na Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA –
Campus São Borja. Bolsista Capes/CNPq – no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência E-mail:
[email protected] 35 Graduanda no Curso de Ciências Humanas – Licenciatura na Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA –
Campus São Borja. Bolsista Capes/CNPq – no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência E-mail:
[email protected] 36 Graduando no Curso de Ciências Humanas – Licenciatura na Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA –
Campus São Borja. Bolsista Capes/CNPq – no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência E-mail:
[email protected] 37 Doutor em História. Professor Adjunto da Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA – Campus São Borja.
Bolsista Capes/CNPq. Coordenador do subprojeto História – PIBID E-mail: [email protected]
131
contribuir na construção do conhecimento por parte dos educandos, mediante questões
formuladas com base na proposta da atividade anterior. A atividade foi desenvolvida dividindo
a turma em dois grupos, que deveriam coletar as questões dispostas dentro de balões, para
posteriormente a resposta ser construída de forma coletiva. Para os educadores em formação,
proponentes das atividades em questão, a associação entre uma aula expositiva dialogada e uma
aula prática, permite avaliar de forma qualitativa o processo.
Palavras-Chaves: cultura, patrimônio, prática docente, PIBID, interdisciplinaridade.
.
INTRODUÇÃO
São Borja, município pertencente à unidade federativa do Rio Grande do Sul, localiza-
se na mesorregião sudoeste do estado e faz parte da região e do Corede Fronteira Oeste
(Conselho Regional de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul), região que se caracteriza por
uma matriz economia alicerçada no agronegócio que concentra renda e promove desigualdades
sociais. A origem do município nos remete as Missões Jesuíticas Guaranis, região também
conhecida por “Sete Povos das Missões”. A cidade tem 61. 671 mil habitantes, conforme o
IBGE (2010), e faz fronteira com a municipalidade Santo Tomé, Província de Corrientes,
República Argentina.
No ano de 1994, o município atingiu o “status” de “cidade histórica”, título conferido
pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul através do Decreto nº 35.580, de 11 de outubro
de 1994. Ressaltam, Colvero; Maurer (2009), que diante disto os esforços concentraram-se para
marcar a cidade como berço do trabalhismo ou “Terra dos Presidentes”, tendência que se
confirma com a Lei Estadual nº 13.041/2009 que declara de forma oficial a alcunha ao
município. No entanto, a cidade de São Borja dentro dos seus mais de 300 anos de história, esta
permeada por um conjunto de fatos históricos que compõem seu arcabouço patrimonial
histórico-cultural e identitário. O legado patrimonial de São Borja, passa pelo estabelecimento
da Redução de São Francisco de Borja no século XVII, pelos acontecimentos da Guerra do
Paraguai no século XIX e pelos Presidentes da República, Getúlio Vargas e João Goulart no
século XX. É neste contexto que a “materialização da cultura e da identidade acaba
consequentemente criando símbolos e manifestações sociais que são espacializadas no
território, sendo denominadas nas épocas de hoje como recursos do Patrimônio Histórico”
(PINTO, 2010, p. 1).
A questão patrimonial é compreendida em duas dimensões conceituais patrimônio
material e imaterial. Entendo o primeiro como o testemunho físico do passado e o segundo
132
também voltado ao tempo passado, porém sua dimensão não é a física e sim, saberes tradições
orais, modos de fazer e ritos, as duas dimensões fazem parte da ampliação sofrida pelo conceito
de patrimônio histórico que ocorreu a partir da década de 1960, Nascimento (2009). No Brasil
o artigo 216 da Constituição Federal de 1988, substitui o conceito de Patrimônio Histórico e
Artístico que era atribuído pelo Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, passando ser
denominado Patrimônio Cultural Brasileiro e conceituado da seguinte maneira pelo artigo em
voga “de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores
de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira”.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) caracteriza as duas
dimensões, considerando patrimônio material podendo ser “imóveis como as cidades históricas,
sítios arqueológicos e paisagísticos e bens individuais; ou móveis, como coleções
arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos, arquivísticos,
videográficos, fotográficos e cinematográficos”; já os patrimônios de ordem imaterial como
sendo aqueles que “dizem respeito àquelas práticas e domínios da vida social que se manifestam
em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas,
musicais ou lúdicas; e nos lugares (como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas
culturais coletivas)”.38
Ainda que se tenha tentado favorecer e afirmar apenas uma parte, o legado histórico
resiste ainda da tentativa de imposição de um único símbolo histórico, um potencial a ser
explorado no que tange a outros aspectos do legado patrimonial. Sendo assim, “Por isso mesmo
pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os
saberes com que os educandos, sobretudo os das classes populares, chegam a ela – saberes
socialmente construídos na prática comunitária” (FREIRE, 1997, P. 15), visando um despertar
de curiosidade e a criticidade para com os elementos culturais e patrimoniais presentes na
localidade, que o grupo de dez bolsistas do Subprojeto História do Curso de Ciências Humanas
- Licenciatura da Universidade Federal do Pampa/Campus São Borja vinculados ao Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, decidiu desenvolver na Escola Municipal de
Ensino Fundamental Vicente Goulart o projeto “Patrimônio e Cultura”. Tendo em vista que “A
educação é visada como ato de conhecimento e transformação social, tendo certo cunho
38 Informações coletadas do site do IFHAN. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/ acessado: 25/10/2017 às
18:27.
133
político. O resultado desse tipo de educação é observado quando o sujeito pode situar-se bem
no contexto de interesse” (GADOTTI, 19972, p.5).
Neste sentido, pretende-se então, através da execução do projeto implementando
aulas/oficinas, atividades que envolvam os patrimônios culturais presentes na cidade, descobrir
as realidades culturais pouco visadas no município, com vistas a aguçar nos educandos um
sentimento de pertencimento em relação aos patrimônios, maneira talvez seja possível despertar
a importância para conservação dos mesmos. Com este viés aproximamo-nos do que o (IFHAN,
p.21, 2014), descreve como Educação Patrimonial, que se constitui então:
de todos os processos educativos formais e não formais que têm como foco o
patrimônio cultural, apropriado socialmente como recurso para a compreensão sócio-
histórica das referências culturais em todas as suas manifestações, a fim de colaborar
para seu reconhecimento, sua valorização e preservação. Considera-se, ainda, que os
processos educativos devem primar pela construção coletiva e democrática do
conhecimento, por meio da participação efetiva das comunidades detentoras e
produtoras das referências culturais, onde convivem diversas noções de patrimônio
cultural.
O PIBID na Universidade Federal do Pampa tem como marco inicial o ano de 2011,
através do Edital CAPES nº 01/2011, neste primeiro momento oito cursos de licenciatura
participaram do programa, atualmente são quatorze cursos de licenciatura participando,
distribuídos em oito campi da universidade. Em São Borja as atividades do programa e do
subprojeto História começaram no mês de maio de 2014, atuando em três escolas presentes no
município, que são as seguintes: Instituto de Educação Padre Francisco Garcia; Colégio
Estadual Getúlio Vargas e Escola Municipal de Ensino Fundamental Vicente Goulart, são 30
acadêmicos de iniciação à docência divididos em três grupos de 10, 5 bolsistas supervisores da
educação básica e 2 bolsistas coordenadores vinculados ao Curso de Ciências Humanas -
Licenciatura.
A rede municipal é composta por onze escolas da educação infantil e escolas dedicam
suas atividades ao ensino fundamental no perímetro urbano e oito na zona rural. A Escola
Municipal de Ensino Fundamental Vicente Goulart, faz parte da rede municipal de educação e
é umas das três que atende simultaneamente ensino infantil e fundamental. Tem cerca de 310
alunos matriculados e é localizada no Bairro do centro, porém em uma zona limítrofe com a
Vila Florêncio Guimarães e do Bairro Paraboi ambos parte da periferia.
Diante do que foi exposto em relação ao legado patrimonial do município, o grupo de
10 bolsistas que executa suas atividades na escola Vicente Goulart, durante o período de recesso
134
acadêmico e escolar, justifica a escolha e construção do projeto “Cultura e Patrimônio” em
execução no presente ano e que tem como objetivo a conscientização em relação à cultura e ao
legado patrimonial presente na cidade. Destacando as principais virtudes do PIBID para
formação docente que oportunizam aos acadêmicos vivenciarem a dinâmica do contexto
escolar, através do planejamento, organização de atividades e trabalho coletivo, além de um
contato antecipado com a prática docente. Para tanto destaca, (FREIRE, 1997 p. 18):
é fundamental que, na prática da formação docente, o aprendiz de educador assuma
que o indispensável pensar certo não é presente dos deuses nem se acha nos guias de
professores que iluminados intelectuais escrevem desde o centro do poder, mas, pelo
contrário, o pensar certo que supera o ingênuo tem que ser produzido pelo próprio
aprendiz em comunhão com o professor formador.
A execução do projeto iniciou no dia 21 de março de 2017, com o primeiro contato com
quatro turmas. Duas de sexto ano (61 e 62) e duas de sétimo ano (71 e 72), que totalizam 72
educandos atendidos. Após o primeiro contato e a apresentação do projeto e dos executores,
veio à aula introdutória que é a atividade a ser relatada, assim como a aula dinâmica que será
apresentada posteriormente.
O presente projeto tem como objetivo estudar e compreender os patrimônios de nosso
município, assim mostrando aos educandos as várias tipologias de patrimônio, como o cultural,
material e imaterial assim buscando a compreensão destes pelos educandos. Contribuindo com
uma formação sobre o que é cultura e patrimônio. Com ênfase no desenvolvimento da
interpretação, da leitura, reflexões de textos e músicas e de práticas para conhecer os
patrimônios.
As práticas metodologias utilizadas terão um caráter crítico e participativo visando a
inserção dos educandos na realidade local tendo como horizonte o desenvolvimento
educacional e cultural da região. Com o estudo sobre patrimônio podemos estimular e mostrar
a partir das abordagens que se desenvolverão através das paisagens artificiais e naturais
presentes na cidade algo que talvez não sejam percebidos como pertencentes aos educandos
com vistas a estimular o cuidado e a preservação dos bens que foram estudados, pois o
patrimônio cultural se materializa no conjunto de manifestações, realizações e representações
de determinada sociedade.
Para dar inicio as atividades do projeto, optou-se por ministrar uma aula com a temática
da cultura e identidade. Foi desenvolvida com a metodologia expositiva dialogada, com
objetivo de fazer a ligação entre o âmago formal e o conhecimento socialmente construído ao
135
longo da vida de cada educando. Entendendo que a escola deve ir além da transferência de
conteúdo aos educandos, buscou-se a interação entre o aspecto formal da educação e o
conhecimento pertencente a cada educando com vistas de que cada sujeito pode construir seu
conhecimento de forma crítica, através da interação proposta e não apenas receba da escola o
conhecimento de forma pronta. Partindo dessa premissa, de que a escola deve ir além do
pragmatismo, da transferência de conteúdos aos educandos é preciso despertar a curiosidade
que associada ao senso comum, contribui na construção social de cada educando. Porém,
quando essa curiosidade ganha elementos de criticidade, advindos da interação com o aspecto
formal da educação, o educando passa a construir seu próprio conhecimento e não receber de
forma pronta e determinista, como sugere Freire (1997).
Uma segunda aula em associação a primeira foi ministrada. Primeiramente para uma
reflexão crítica da própria prática dos bolsistas. Num segundo momento, visando uma prática
melhor, realizou-se uma aula a partir de uma dinâmica de grupo, objetivando contribuir com a
construção do conhecimento por parte dos educandos, mediante questões elaboradas de acordo
com a atividade anterior. As turmas foram divididas em dois grupos para o desenvolvimento da
atividade, cada grupo deveria coletar as questões dispostas em balões, para depois construir
uma resposta de forma coletiva.
RESULTADOS e DISCUSSÃO
Para despertar nos educandos o interesse sobre cultura além do respeito às diferenças
culturais e identitárias presentes em nosso país, foram citadas características culturais da
identidade local para podermos partir para o nacional, conforme se trabalha na geografia (partir
do local para o global), (interdisciplinar). Partiu-se primeiramente de questionamentos sobre o
que seria “cultura” para proporcionar aos educandos esboçarem seus pontos de vista.
a ajuda do professor para o desenvolvimento das competências do pensar, em função
do que coloca problemas, pergunta, dialoga, ouve os alunos, ensina-os a argumentar,
abre espaço para expressarem seus pensamentos, sentimentos, desejos, de modo que
tragam para a aula sua realidade vivida. É nisso que consiste a ajuda pedagógica ou
mediação pedagógica (LIBÂNEO, 1998, p. 13).
Obtivemos como produto da provocação respostas, que foram variadas entre elas
destacaram o frevo, chimarrão, música e dança. Isto foi possibilitado pelo uso como materiais
didáticos slides com imagens representativas para serem ou não reconhecidas como cultura.
136
Neste sentido, a aula introdutória do projeto teve como temática os conceitos cultura e
identidade. O primeiro contato foi profícuo, pois visando a interação dos conhecimentos
adotou-se a metodologia expositiva dialogada, o que nos proporcionou a partir de
questionamentos a interação desejada e participação dos educandos, que em muitos momentos
ficavam inquietos, refletiam e devolviam questionamentos. A percepção implícita foi que nas
turmas de sexto ano a metodologia aplicada funcionou de maneira satisfatória, já nos sétimos
anos eram mais retraídos, porém conseguiu-se o mesmo resultado através do questionamento
“funk é cultura?” que aproximou as turmas de sua realidade, e a partir disto ocorreu à interação
desejada e o objetivo da aula que era a compreensão da cultura no cotidiano foi atingido.
Garrido (2002, p. 45), nos propõe que:
No diálogo, as idéias vão tomando corpo, tornando-se mais precisas. O conflito de
pontos de vista aguça o espírito crítico, estimula a revisão das opiniões, contribui para
relativizar posições [...]. É neste momento do diálogo e da reflexão que os alunos
tomam consciência de sua atividade cognitiva, dos procedimentos de investigação que
utilizaram aprendendo a geri-los e aperfeiçoá-lo.
O diálogo na prática docente tem suma importância, pois dá destaque a importância do
aluno como sujeito no processo ensino-aprendizagem. Buscou-se interagir com os alunos em
todas as aulas por considera-se importante, escutá-los para compreender quais os
conhecimentos eles tem já adquiriram em sua construção social ao longo da vida. Optamos
então por não expor de maneira dogmática, onde o professor domina enquanto o aluno é um
ator passivo e receptivo durante o processo, Haydt (2006). Conforme a mesma autora com
relação à aula expositiva aberta ou dialogada, o educando desempenha um papel mais ativo,
porque participa da aula, fazendo comentários, fazendo relatos, falando exemplos, tirando
dúvidas e respondendo perguntas, segundo a autora as aulas expositivas abertas ou dialogadas
além de favorecer a participação dos alunos, e estimula a atividade reflexiva dos mesmos
(HAYDT, 2006, p. 155).
No planejamento para as aulas buscou-se trazer elementos diferentes dos abordados no
cotidiano da sala de aula. Tanto nas aulas teóricas quanto nas aulas práticas. Para a próxima
aula buscou-se por exemplo, a utilização de balões. Em um processo no qual toda a turma
participasse. Conforme Haydt (2006), a aprendizagem é um processo dinâmico que ocorre
somente quando o educando realiza algum tipo de atividade e em um processo dinâmico.
A segunda aula consistiu na aplicação de uma dinâmica em grupo, com vistas a
contribuir na construção do conhecimento por parte dos educandos, mediante questões
137
formuladas com base na proposta da atividade anterior era o objetivo. Através de perguntas
com tema da primeira aula inseridas em balões as turmas foram divididas em dois grupos, assim
a cada rodada do jogo um educando de cada grupo participava, o balão era posto sob uma
cadeira, os educandos ficavam distantes e deveria ao sinal, chegar primeiro estourar o balão e
fazer a pergunta ao seu grupo. Em caso de acerto ganhava o ponto, caso contrário passava a
vez.
As temáticas inerentes ao projeto foram divididas em aula teórica, seguida de aula
prática. Considera-se importante trabalhar nas aulas práticas, atividades que envolva o coletivo,
assim como o individual, buscando um processo educacional diferenciado ao trazer didáticas
que proporcionam ser um contraponto aos métodos tradicionais. Esta atividade foi proveitosa,
da mesma forma que a primeira atingiu o objetivo, além de trazer elementos como, diversão e
brincadeira para sala de aula, o que é forma diferenciada de utilizar o espaço de construção de
saberes.
É importante frizar que nós futuros educadores levamos em consideração no
planejamento das aulas alguns aspectos como: tempo a ser ministrado a aula, características dos
alunos, idade dos mesmos além da disponibilidade de horário das aulas e disponibilidade dos
materiais didáticos da escola.
As aulas práticas foram todas pensadas para um processo de avaliação dos alunos e
reflexão das aulas teóricas. Como futuros educadores acredita-se que é de suma importância a
reflexão de todas as práticas adotadas. Para tanto, utilizamos o diálogo como principal
instrumento, levando em consideração todas as ideias do grupo de Pidianos e de como adquirir
as ferramentas para que as ideias aconteçam. Pois nem tudo o que queremos utilizar em sala de
aula está em nosso alcance. Além do diálogo entre o grupo de bolsistas, não podemos esquecer
dos professores, sem o qual não conseguiríamos a construção de uma prática docente em sala
de aula, sempre dialogando conosco, trocando ideias e dividindo suas reflexões e experiências
com relação a prática docente.
Outra forma de reflexão das aulas adotada são os registros reflexivos. A cada aula
procuramos anotar as principais informações com relação aos alunos, as metodologias enfim os
resultados alcançados. Essa é uma prática individual e de suma importância na formação
docente. Pois é um caderno ou agenda onde é colocada a reflexão de como se deu o processo
educativo “na prática”. Desta maneira registra (VILLAS BOAS, 2008, p. 97), que “Os registros
reflexivos são anotações ou narrações sobre aprendizagens desenvolvidas, aspectos
138
considerados relevantes, articulações entre estudos realizados e atuação profissional do
narrador”.
Nesse sentido segundo a mesma autora, os registros reflexivos são ótimos recursos para
o acompanhamento das atividades realizadas e avaliação das aprendizagens. Permite que nós
como futuros educadores analisemos a qualidade do trabalho realizado na escola. Para que isso
ocorra trazer elementos concretos nos quais muitas vezes são esquecidos como algo que um
aluno falou ou alguma atitude que ocorreu.
Consideramos as aulas ministradas produtivas e compreendemos a importância de se
trabalhar a temática do Patrimônio Cultural. Essa reflexão se dá através de elementos que
ressaltam a história local do município de São Borja que necessita urgentemente ser articulada
junto as escolas, tanto as municipais quanto as estaduais. Para que ocorra a valorização do
patrimônio local e se reconheça seus aspectos de importância histórica, política e cultural pelos
educandos. Conforme salienta, Pinto (2015):
tais ações poderão contribuir com a melhora da qualidade educacional, assim como
gerar um maior conhecimento e valorização dos momentos históricos, das
manifestações artístico-culturais e das práticas sociais, fatores estes que instigam o
reconhecimento da realidade e dos espaços do cotidiano da fronteira (PINTO et all,
2015, p. 95).
Nesse contexto, não há como valorizar algo que se é desconhecido. Buscamos
primeiramente, trabalhar com os conceitos básicos de cultura e identidade para posteriormente
entrarmos na história local.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Aos educadores em formação proponentes das atividades relatadas a associação entre
uma aula expositiva dialogada e uma aula prática, permite avaliar de forma qualitativa o
processo. Desta maneira, também foi possível refletir criticamente sobre a própria prática.
Buscar uma prática melhor e ao aplicar aulas em associação que se complementam, o transcurso
educacional é qualificado. A partir da reflexão da prática docente das primeiras aulas no âmbito
da percepção educador/educando, verificamos o despertar da curiosidade, um maior interesse
dos educandos com aula prática, assim como uma maior interação com os futuros educadores
e nos permitindo outros planejamentos voltados para aulas teóricas e práticas.
139
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Mariana Marques Sebastiany39
Gecira Di Fiori40
Laura Regina da Silva Câmara Maurício da Fonseca41
RESUMO: O presente trabalho visa, a partir da experiência de estágio obrigatório de Serviço
Social, do Curso de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), contribuir
para o debate sobre a prática de estágio na Assistência Judiciária da UFSM (AJUFSM) na
perspectiva da interdisciplinaridade. Especificamente, se propõe a refletir sobre a realização de
triagem socioeconômica e mediação de conflitos (modelo alternativo de solução de conflitos
judiciais), bem como sobre as contribuições do estágio em Serviço Social para o campo em
questão. O trabalho é resultante do conjunto das atividades teórico-práticas do estágio,
constituindo-se metodologicamente como estudo descritivo, fruto de relato de experiência e
também estudo bibliográfico. Para discutir as contribuições do estágio em Serviço Social para
a AJUFSM, percepções sobre o campo são discutidas e alguns resultados do projeto de
intervenção executado pela estagiária são apresentados. Aponta-se a triagem socioeconômica
como momento particular para apreender as mediações e as contradições por meio das quais se
dão as expressões da questão social que acompanham as demandas dos (as) usuários (as). A
mediação de conflitos, realizada de forma interdisciplinar entre as áreas de Direito e Serviço
Social, com especial contribuição da última, é destacada como uma possibilidade de ampliação
da análise, tanto pelos (as) usuários (as) quanto pelos (as) estudantes e profissionais
participantes do processo, das relações sociais. Conclui-se que a Assistência Judiciária da
UFSM, ao propiciar estágio interdisciplinar aos e às estudantes, desenvolve suas percepções
sobre as implicações sociais no processo de aplicação do Direito, da mesma forma que permite
a reflexão crítica sobre a realidade social durante a formação profissional.
39 Estudante de Serviço Social; Universidade Federal de Santa Maria; Santa Maria, Rio Grande do Sul;
[email protected]. 40 Assistente social Técnica-Administrativa em Educação da Assistência Judiciária da Universidade Federal de
Santa Maria; Universidade Federal de Santa Maria; Santa Maria, Rio Grande do Sul; [email protected]. 41 Professora do Departamento de Serviço Social; Universidade Federal de Santa Maria; Santa Maria, Rio Grande
do Sul; [email protected].
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Palavras-Chaves: Assistência Judiciária, Serviço Social, Estágio, Interdisciplinaridade,
Direito.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho é fruto da experiência de estágio obrigatório de Serviço Social, do
Curso de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) na Assistência
Judiciária da UFSM (AJUFSM).
A Constituição Federal de 1988 afirma a assistência jurídica como direito fundamental
previsto no artigo 5º, inciso LXXIV, em que o “Estado prestará assistência jurídica integral e
gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Neste sentido, Rodrigues (2002, p.10)
comenta:
Assistência Judiciária é a faculdade que por Lei se assegura às pessoas
comprovadamente pobres virem pleitear o benefício da Justiça Gratuita para que
demandem ou defendam seus direitos, e ainda, segundo Marcacini (1996:29) “é a
organização estatal, ou para estatal, que tem por fim, ao lado da dispensa provisória
das despesas, a indicação de advogado”. É, pois, um serviço público organizado e
consistente na defesa em juízo do assistido que deve ser oferecido pelo estado, mas
que pode ser desempenhado por entidades não estatais, conveniadas ou não com o
poder público.
Na UFSM, a Assistência Judiciária foi instituída no ano de 1978 e atualmente está
vinculada ao Centro de Ciências Sociais e Humanas. Caracteriza-se por prestar serviços no
âmbito judicial de forma gratuita, atendendo pessoas que recebam até três salários mínimos e
que tenham demandas de ações referentes à Vara de Família e Vara Cível. Não abarca ações
trabalhistas, previdenciárias e criminais, que, quando verificadas, são encaminhadas para os
Núcleos de Práticas Jurídicas de outras universidades ou para a Defensoria Pública (LONDERO
et al., 2013 apud MARIANO, 2014). A AJUFSM também se constitui como campo de estágio
para estudantes da UFSM dos cursos de Direito, Serviço Social e Psicologia, sendo todos (as)
orientados (as) por professores (as) de seus respectivos cursos.
Assim sendo, a Assistência Judiciária da UFSM é uma das ações universitárias que
podem expressar a inserção regional e a responsabilidade social da instituição, seus cursos de
graduação e setores de serviço técnico de educação superior, realizando, por meio de atividades
extensionistas, o desafio necessário da relação universidade e sociedade.
143
A orientação jurídica fornecida aos processos acompanhados implica ou o ajuizamento
de ações ou a realização de acordos extrajudiciais através da mediação de conflitos, meio
autocompositivo de solução de conflitos. Esta é desenvolvida de forma interdisciplinar entre as
áreas de Direito e Serviço Social, sendo também uma modalidade de atendimento do último42.
A mediação possui como pano de fundo o direito de acesso à Justiça além da vertente
formal perante os órgãos judiciários, assim como o estabelecimento de mecanismos
consensuais para a solução de conflitos e a redução da excessiva judicialização dos conflitos de
interesses (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2010). É respaldada pela Resolução nº
125, de 2010, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)43, pela Constituição Federal e pelo
Código de Processo Civil, de 2015.
Importa localizar o Serviço Social: um tipo de trabalho especializado na sociedade, uma
profissão inserida na divisão sócio-técnica do trabalho, que não intervém ou produz
conhecimentos sobre um território específico, mas que se dispõe a interagir na trama das
relações sociais, o que pressupõe a articulação de múltiplos territórios e conhecimentos
(PRATES, 2003). Como especialização do trabalho, o Serviço Social tem na questão social a
base de sua fundação. Questão social apreendida enquanto o conjunto das desigualdades da
sociedade capitalista, mas também como expressões de rebeldia, por envolver sujeitos que
vivem, resistem e se opõem às desigualdades (IAMAMOTO, 1998).
É pertinente referir os objetivos da atuação do Serviço Social na AJUFSM conforme
seu projeto profissional na instituição. Dentre os objetivos, destacam-se: realizar atividades
interdisciplinares entre o Direito, o Serviço Social e a Psicologia que fortaleçam o exercício da
cidadania ativa no campo social; contribuir para o reconhecimento teórico-prático dos direitos
sociais; construir alternativas que sustentem a auto-organização da cidadã e do cidadão, de
grupos sociais e da família; organizar atividades e meios autocompositivos que encontre no
reconhecimento do campo da negociação os consensos possíveis; criar propostas à convivência,
socialização e ao acolhimento, familiares e comunitários; disponibilizar aos (às) acadêmicos
(as) da UFSM vivência interdisciplinar; viabilizar o acesso a políticas sociais, programas,
projetos, serviços, recursos e bens de natureza diversa (DI FIORI, 2005).
O estágio em Serviço Social se constitui como um somatório de vivências num espaço
sócio-institucional concreto de iniciação ao exercício da prática profissional de e do assistente
42O atendimento é feito por mediadora capacitada conforme prevê a Resolução nº 125, de 2010, do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), sendo esta, na Assistência Judiciária, também assistente social. 43 Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do
Poder Judiciário
144
social (UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA, 2013), devendo, de acordo com
Silva (1994), capacitar a e o estudante para enfrentar as experiências cotidianas da prática
profissional como desafios intelectuais e operativos.
As atividades de estágio realizadas no campo da AJUFSM por estudantes de Serviço
Social compreendem a observação da sessão de mediação de conflitos e realização de triagem
socioeconômica. A triagem socioeconômica é competência do Serviço Social na AJUFSM,
referente à avaliação social, coleta de dados, entrevista e verificação da adequação dos (as)
usuários (as) aos critérios de elegibilidade do serviço (LONDERO et al., 2013 apud
MARIANO, 2014). Também propicia encaminhamentos à rede de proteção social e garantia de
direitos.
É na triagem que a possibilidade da mediação de conflitos é apresentada aos (às)
usuários (as) que não manifestarem interesse pelo processo judicial, ou que solicitarem uma
possibilidade de resolutividade mais rápida, ou, ainda, quando há a percepção da necessidade
de um atendimento diferenciado. Após o atendimento do Serviço Social, os casos selecionados
são encaminhados às e aos estudantes de Direito para darem prosseguimento às ações judiciais
ou ao processo da mediação, bem como às e aos estudantes de Psicologia, a fim de fornecerem
orientação psicológica, quando esta for demandada.
Dessa forma, esse trabalho visa contribuir para o debate sobre a prática de estágio na
Assistência Judiciária da UFSM (AJUFSM) na perspectiva da interdisciplinaridade.
Especificamente, se propõe a refletir sobre a realização de triagem socioeconômica e mediação
de conflitos, bem como sobre as contribuições do estágio em Serviço Social para o campo em
questão.
METODOLOGIA
O trabalho foi possível a partir do contexto do desenvolvimento das disciplinas de Estágio
em Serviço Social I e II, realizadas no sétimo e oitavo semestres do curso de Serviço Social da
UFSM, durante o segundo semestre de 2016 e primeiro semestre de 2017, totalizando 300
horas, nas dependências da AJUFSM, localizada no centro da cidade de Santa Maria - RS.
145
O estágio em Serviço Social pressupõe o envolvimento da tríade44, juntamente à
elaboração de documentos, quais sejam: plano de estágio, diários de campo, análise
institucional, projeto de intervenção e relatório final de estágio. O conjunto dessas atividades
teórico-práticas resultou o presente trabalho, que, portanto, é estudo descritivo, fruto de relato
de experiência e também estudo bibliográfico. Igualmente, é síntese coletiva: elaborada por
estudante estagiária, professora supervisora acadêmica e assistente social supervisora de
campo.
Para discutir as contribuições do estágio em Serviço Social para a AJUFSM, serão
discutidas percepções sobre o campo e apresentados alguns resultados do projeto de intervenção
executado pela estagiária. O projeto em questão delineava diversas atividades, dentre as quais
as principais foram: construção e proposição de instrumento avaliativo do serviço pelo (a)
usuário (a) no sentido de qualificá-lo; levantamento de dados da demanda atendida no campo
por meio das fichas de triagem socioeconômica, visando caracterizá-la minimamente, para
sistematizar e instrumentalizar a prática profissional e obter material para subsidiar pesquisas
futuras.
A sistematização da demanda atendida no campo foi feita a partir da análise das fichas
de triagem socioeconômica de 2015 e 2016 de casos que já tinham ocorrido desfecho. As
categorias para análise das fichas foram deliberadas entre a tríade, tendo como base a atual
ficha. Também foram definidas subcategorias dentro para melhor sistematização.
A prática da mediação de conflitos é desenvolvida da seguinte forma:
1) Pré-mediação com o Serviço Social: realização de triagem socioeconômica, que
fornecerá subsídio para a adesão voluntária dos (as) usuários (as) à mediação;
2) Ocorrida a adesão, dá-se a pré-mediação com estagiários (as) do Direito, os quais
orientarão juridicamente as partes;
3) Sessão de mediação constituída: pelas partes; respectivos (as) representantes das
partes, que serão ou estagiários (as) do Direito da AJUFSM ou advogados (as) particulares45;
mediadora (assistente social); co-mediador (a), sendo este (a) aluno (a) do Direito responsável
pela elaboração do acordo se a mediação for frutífera46, sob orientação de professor (a)
44 Tríade considerada como estudante estagiário (a), professor (a) supervisor (a) acadêmico (a) e assistente social
supervisor (a) de campo, devendo os (as) últimos (as) realizarem supervisão permanente (ABEPSS, 2009). 45 Será advogado (a) particular em caso de opção da parte ou se esta não for abrangida pelo serviço, pelos critérios
de elegibilidade. 46 Mediação frutífera refere-se à quando as partes chegam a um acordo.
146
supervisor (a) de estágio do Curso de Direito. Findada a sessão, mediador (a) e pré-mediador
(a) avaliam-na mediante ficha avaliativa;
4) Caso a mediação seja frutífera, estagiários (as) do Direito redigem o acordo e
acompanham a sua assinatura pelas partes.
RESULTADO E DISCUSSÃO
A realização da triagem socioeconômica permitiu inferir que se dá em consonância com
o Código de Ética da/o Assistente Social (BRASIL, 2012), pois corrobora com alguns dos seus
princípios fundamentais: quando remete à ampliação e consolidação da cidadania, com vistas à
garantia dos direitos civis sociais e políticos da classe trabalhadora; quanto ao posicionamento
em favor da equidade e da justiça social, que assegure a universalidade de acesso aos bens e
serviços relativos aos programas e políticas sociais; compromisso com a qualidade dos serviços
prestados à população.
Conforme Fávero (2013), mesmo nos limites da atuação cotidiana do assistente social,
uma das formas de materializar a contribuição com a justiça e os direitos pode se dar pelo
desvelamento e a interpretação crítica da demanda trazida e/ou vivida pelos (as) sujeitos (as).
Isso é também propiciado pelo processo da triagem, momento particular para apreender as
mediações e as contradições por meio das quais se dão as expressões da questão social que
acompanham as demandas dos (as) usuários (as), expressões que constituem o porquê da
intervenção profissional.
Sobre estas, as que mais se evidenciaram abarcam desemprego, precarização do
trabalho, baixa renda, insuficiência de políticas públicas, conflitos familiares, pobreza. Desse
modo, a recorrência à justiça (inclusive o retorno a ela após decisão judicial não efetivada na
vida prática) é consequência de uma totalidade social que priva, de algum modo, os (as) sujeitos
(as) das condições de viverem plenamente, o que pressupõe viver livre de exploração, opressão
e alienação. Neste sentido, o não acesso à justiça e às políticas sociais - e até mesmo sua
judicialização - são também expressões da questão social.
Muitas dessas expressões rebatem no núcleo familiar, e não é a toa que as intervenções
com famílias e/ou em situações que a envolvem são recorrentes na AJUFSM. A construção
abstrata burguesa do ideal de família não se materializa nos diversos atendimentos realizados.
Bem pelo contrário. As famílias reais são atravessadas pelos rebatimentos do conflito capital x
147
trabalho e muito pouco fazem jus ao modelo “comercial de margarina” - o qual é uma
representação muito fiel à referida construção do padrão burguês de família.
Outro exemplo disso é o nítido rebatimento do patriarcado e da cultura machista em
praticamente todos os casos, sendo expressos pelas mulheres quando relatam suas jornadas
triplas de trabalho, a responsabilidade e o cuidado exclusivos com os (as) filhos (as), bem como
quando buscam sair judicialmente de seus relacionamentos abusivos. Em especial, o que é
destinado socialmente e historicamente às mulheres pelo sistema patriarcal capitalista salta aos
olhos na vivência de campo na AJUFSM (SEBASTIANY, 2017).
O instrumento avaliativo do serviço pelo (a) usuário (a) foi elaborado entre a tríade foi
proposto aos (às) profissionais do serviço durante alguns encontros. Apesar de não ter sido
executado plenamente por questões temporais, obteve ótima receptividade, apontando como
desafio a sua implementação no próximo período.
A sistematização da demanda atendida no campo resultou em uma aproximação à
caracterização da população usuária, sendo sujeitos (as) que, em sua maioria: residem em áreas
periféricas da cidade; possuem baixa (e dificilmente fixa) renda, tanto é que muitos (as) estão
abrangidos (as) por políticas de proteção social; ocupam postos de trabalho precarizados;
possuem até 40 anos de idade; são mulheres. As demandas mais recorrentes dizem respeito a:
dissolução de união estável, pensão alimentícia, execução de alimentos, visita e guarda de filhos
(as).47
A observação da realização das sessões de mediação permitiu destacar, considerando a
lógica em que está inserida48, a centralidade que visa dar às usuárias e aos usuários que
demandam pela Justiça e o não estabelecimento de hierarquias neste processo da busca por
acessar direitos. Isso porque vem procurando materializar princípios como a autodeterminação
dos cidadãos e das cidadãs, ou seja, preza pela sua decisão e protagonismo, não demandando
um dito “ente superior”, o Estado, para regular suas vidas e ações a partir de normatizações que
os (as) homogeneízam e não considera a essência de suas problemáticas, o que possibilita mais
chances do “acordo”, resultado do “consenso entre as partes”, se efetivar na prática.
Problematizando mediação e Serviço Social, Fávero e Mazuelos sinalizam que
47 Informações conforme: SEBASTIANY, M. M. Relatório Final de Estágio. 43f, 2017. Universidade Federal de
Santa Maria, 2017. 48 A AJUFSM se situa no que, dentro do âmbito do Serviço Social, se convém denominar como “campo
sociojurídico”, aquele que reúne o conjunto de áreas em que a ação do Serviço Social articula-se a ações de
natureza jurídica (FÁVERO, 2013). Conforme Borgianni (2012), o campo sociojurídico carrega uma “polaridade
antitética”, que é a convivência numa mesma totalidade de duas determinações que são antagônicas, mas
complementares. Tal polaridade se dá pela proteção de direitos de um lado e a responsabilização civil ou criminal
de outro.
148
É fundamental que o profissional de Serviço Social que faz uso desse instrumental
exercite a reflexão sobre o conjunto dos elementos que forjam a problemática
apresentada, estabelecendo conexões com as determinações postas em sua construção
pela questão social, e com as implicações do conflito existente, na família e no
território – apenas para citar duas das categorias de análise que podem subsidiar a
negociação. Sem o entendimento e a análise crítica dessas questões, a mediação será
uma técnica de intervenção que poderá proporcionar a contenção, o alívio temporário
de conflitos familiares, mas não contribuirá para que família e o profissional entendam
as raízes e os condicionantes sociais do conflito e se empoderem para enfrentá-los
(FÁVERO; MAZUELOS, 2010, p. 49).
Nesse sentido, entende-se a atuação da assistente social durante a mediação como
contribuição interdisciplinar para a crítica da realidade social ao possibilitar, tanto para usuários
(as) quanto para profissionais e estudantes de Direito participantes do processo, a ampliação da
percepção e da compreensão das situações vivenciadas.
Portanto, é necessário que a reflexão e a ação de mediação familiar vinculem-se às
múltiplas questões vivenciadas cotidianamente pelos sujeitos, desde entender como
vivem e como acontecem as relações nessas famílias e quais são seus desafios,
perpassando pelo bairro em que passam a maior parte do tempo de suas vidas;
perceber como está estruturado esse território em termos de qualidade de vida, de
políticas públicas, o que o local oferece, a quais acessos em termos de direitos sociais
essa família terá ao finalizar o processo de mediação: poderá, por exemplo, contar
com a rede de ensino, de saúde, de lazer, com trabalho? Se realizado esse link, a
intervenção irá além da escuta e da negociação com vistas a uma solução imediata e
judicial para a questão emergente que levou os sujeitos à procura do serviço;
possibilitará que o diálogo e a reflexão tragam o contexto social mais amplo que
interfere diretamente nas relações familiares postas no âmbito privado, eliminando a
culpabilização individualizada pelos conflitos, não raro presente em trabalhos
desenvolvidos com famílias (FÁVERO; MAZUELOS, 2010, p.53, grifo das autoras).
Nisso, entende-se que a dimensão técnico-operativa do Serviço Social não se confunde
com imposições jurídicas e normativas, não cabendo a incorporação, no fazer profissional, de
verdades jurídicas, expressas na ‘forma da lei’. Apesar das práticas punitivas, com cunho
moralizante e disciplinador fazerem parte da trajetória histórica da profissão, sendo, inclusive,
requisições que as instituições sociojurídicas colocam às e aos assistentes sociais, estas e estes,
por meio de seu saber teórico-prático, devem propiciar conhecimentos e abordagens técnicas
sobre a realidade para romper com a alienação reproduzida a partir do senso comum e ou de
uma lógica dominante repressora. Para tanto, a mediação de conflitos, na realidade da
AJUFSM, vem sendo construída nesta perspectiva.
Além disso, é relevante mencionar como resultado da experiência de estágio a
possibilidade da interlocução “da prática à teoria", isto é, do estágio curricular à formação
149
profissional, que, pelo material da “práxis”, permite a elaboração de trabalhos acadêmicos e a
devolutiva à sociedade.
CONCLUSÕES
A prática de estágio em Serviço Social possibilitou reconhecer a Assistência Judiciária
da Universidade Federal de Santa Maria como um legítimo laboratório de ensino, pesquisa e
extensão, visto que contempla a formação acadêmica e os interesses da comunidade local, no
caso específico, de acesso aos direitos e à Justiça.
Destaca-se a contribuição que a prática interdisciplinar durante a mediação de conflitos
propicia para a formação profissional. A interlocução das áreas do conhecimento durante os
procedimentos da mediação propiciam com que as e os estudantes ampliem a percepção e a
análise das situações sociais que trabalham.
Nisso, visualiza-se o quão fundamental é o papel do Serviço Social para a instituição,
principalmente porque utiliza seu arsenal técnico-operativo, teórico-prático e ético-político em
favor da democratização de informações relacionadas aos direitos sociais, bem como busca um
olhar crítico no que concerne às relações sociais.
Portanto, a AJUFSM, ao propiciar aprendizado interdisciplinar às e aos estudantes,
sobretudo durante a triagem socioeconômica e a mediação de conflitos, desenvolve suas
percepções sobre as implicações sociais no processo de aplicação do Direito, contribuindo desta
maneira para reduzir os problemas do acesso à Justiça, bem como pode ser uma possibilidade
de reflexão crítica sobre a realidade durante a formação profissional.
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151
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152
PERCEPÇÕES DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL POR ESTUDANTES
DE UMA ESCOLA PÚBLICA DA CIDADE DE SANTO ÂNGELO-RS
Juliani Borchardt da Silva49
RESUMO: As percepções que envolvem o patrimônio histórico são distintas entre sujeitos e
culturas, as quais dependem de laços afetivos dos sujeitos junto a espaços e elementos
representativos de suas identidades. A pesquisa ora apresentada buscou identificar alguns
elementos desta afetividade através de estudantes de uma escola pública da cidade de Santo
Ângelo - RS, onde estes principais elementos simbólicos e representativos, através de seu uso
cotidiano ou imaginário construído, emergiram e foram expostos. Através de pesquisa
bibliográfica sobre o tema e pesquisa de campo, se abordou a temática junto ao público do
educandário aplicando questionário semi-estruturado, chegou-se a indicativos dos locais mais
afetivos e usuais para este público, os quais em determinados aspectos divergiram de hipóteses
inicialmente pensadas para a pesquisa, a qual poderá servir de subsídio para futuras ações e
políticas públicas e de salvaguarda na área do patrimônio histórico e cultural desta localidade.
Palavras-chave: Patrimônio histórico, Afetividade; Cultura. Santo Ângelo-RS.
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa buscou identificar as percepções dos alunos de uma escola pública50
do município de Santo Ângelo-RS51 acerca do patrimônio histórico e cultural local,
identificando as principais referências culturais para este grupo através do uso que os mesmos
possuem destes bens e espaços. A temática apresentada têm se mostrado abrangente em seu
campo de análise e discussão, sejam eles sociais, antropológicos, culturais, filosóficos, de
direito, arquitetura e tantos outros que buscam compreender suas dinâmicas na atualidade,
49 Doutoranda em Memória Social e Patrimônio Cultural na Universidade Federal de Pelotas – UFPEL. E-mail:
[email protected] 50 Escolheu-se para a aplicação da referida pesquisa o Instituto Estadual de Educação Odão Felipe Pippi, maior
educandário de abrangência da 14ª Coordenadoria Regional de Educação do Rio Grande do Sul, hoje com 1.500
alunos (dados referentes ao ano de 2017). 51 Fundada em 1706 pelo Padre Jesuíta Diogo Haze, compôs um dos Sete Povoados desenvolvidos no que hoje é
território Brasileiro durante o chamado Segundo Ciclo Missioneiro. Teve seu declínio com a Guerra Guaranítica
motivada pela assinatura do Tratado de Madrid em 1750. Em seguida seu território foi ocupado por Portugueses
repovoadores e imigrantes de diversas etnias. Hoje possui em torno de 76 mil habitantes e é detentora de um legado
patrimonial e histórico referência para todo o Estado do Rio Grande do Sul.
153
sendo cada perspectiva, colocada conforme sua área, seu interesse ou grupo de sujeitos
estudados. O que se torna inevitável, no entanto, é a necessidade de olhares cada vez mais
atentos e que dialoguem com os sujeitos envolvidos em cada processo onde bens e percepções
culturais estejam envolvidos, percebendo e reconhecendo suas representações, produções de
sentidos e conflitos existentes nas negociações do campo patrimonial.
O processo de patrimonialização ocorre, a priori, através do reconhecimento via
instâncias governamentais competentes e responsáveis por consagrar e salvaguardar os
principais elementos culturais e identitários representativos da sociedade e de seus diversos
grupos. Esse procedimento têm se mostrado em muitas situações, elitizado e seletivo, onde
apenas os elementos arquitetônicos advindos das camadas sociais mais abastadas são
contemplados com o reconhecimento institucional e salvaguardados pelo Estado, deixando de
lado, na maioria das vezes, a produção cultural, histórica, simbólica, patrimonial, paisagística,
e de territórios produzidos e representativos de grupos e camadas sociais inferiores
economicamente, e sem poder de influência junto a instâncias governamentais.
Em situações onde mecanismos de participação social existem no diagnóstico de bens
patrimoniais a serem reconhecidos pelo Estado, o processo de reconhecimento se torna mais
próximo às identificações produzidas pelos sujeitos que ali habitam e, consequentemente, estes
auxiliam o poder público na própria salvaguarda destes bens, havendo assim uma apropriação
social resultante deste vínculo afetivo social. Este tipo de caso ainda pode ser considerado
excepcional na maioria dos processos de patrimonialização, infelizmente. Isso porque ainda
permanece em nossa sociedade a ideia de que algo só é ‘patrimônio’ ou ‘importante’ se possuir
o reconhecimento por parte do Estado, não prevalecendo por si só os níveis de uso ou afeto que
os grupos possam fazer de determinados espaços ou objetos, fazendo com que muitas vezes os
próprios sujeitos não reconheçam suas práticas ou bens edificados como algo importante para
o coletivo numa esfera institucional.
Neste sentido, torna-se indispensável o desenvolvimento de instrumentos de
participação social, o qual pode ser produzido tanto na esfera governamental, quanto na própria
sociedade civil. Na esfera pública, podem ser desenvolvidos espaços de participação social
através de conselhos de políticas públicas na área, bem como, a produção de eventos como
conferências municipais para discutir ações e estratégias de proteção patrimonial diretamente
com as comunidades envolvidas. Outra ação existente em muitos Estados e municípios são os
Orçamentos Participativos, onde a população elege áreas prioritárias para investimentos e ações
154
do poder público, direcionando recursos estrategicamente para os setores que acreditam ser
prioridade para o desenvolvimento destas comunidades.
No campo da sociedade civil organizada, podem ser fundadas instituições como
ONGs52, Associações e OSCIPs53 que auxiliarão na salvaguarda de bens patrimoniais através
de ações, projetos, fiscalização e proposição de políticas públicas para o setor, podendo estas
estar atuando de forma conjunta e participativa, inclusive, com o próprio poder público na
elaboração de estratégias de desenvolvimento na área. Tais grupos também são importantes
para a conscientização e difusão da temática junto à sociedade, desmitificando muitos tabus que
existem e informando a população sobre a importância de proteger sua cultura, patrimônio e
consequentemente suas memórias.
Cabe lembrar, que o conceito de patrimônio cultural foi se alterando com o passar do
tempo, possuindo ainda distintas interpretações conforme as percepções e ideias de cada
sociedade. Um exemplo disso são as formas de concepção dos bens culturais no ocidente em
comparação ao oriente ou Ásia, sendo estas distintas umas das outras, as quais interferem na
forma como cada grupo se relaciona com os seus referenciais simbólicos e arquitetônicos, bem
como a maneira como se dará sua proteção e difusão perante o restante da comunidade e a
transmissão destes bens às futuras gerações. Como campo de disputas ideológicas, políticas e
identitárias, o patrimônio histórico tem servido como constituidor de discursos legitimadores
de Estados e Governos que buscam, historicamente, se consolidarem como portadores de
determinadas características que formarão a cultura daqueles que ali habitam, criando um
passado comum com o qual todos possam conviver, bem como, projetando bases identitárias
para o futuro. Essa necessidade faz com que conflitos ocorram, bem como, que elementos
culturais sejam apagados e rejeitados em determinados sociedades: é o processo de lembrar
versus esquecer, numa dinâmica de escolha que determinará o que será predominante
culturalmente, arquitetonicamente, espacialmente e simbolicamente numa sociedade.
A escolha destes referenciais é sempre balizada pela dicotomia do que será lembrado
versus o que será esquecido. Elegem-se elementos de uma sociedade em prol de outros que
deverão ser esquecidos, numa decisão geralmente política, visando justamente à criação de um
discurso fundador, oficial e identitário comum, conforme preleciona Ricoeur, “para a memória
artificial, tudo é ação, nada é paixão. Os lugares são soberanamente escolhidos, sua ordem
52 ONG: Organização Não Governamental. 53 OSCIP: Organização da Sociedade Civil de Interesse Público.
155
oculta a arbitrariedade da sua escolha; e as imagens não são menos manipuladas que os lugares
aos quais são destinadas.” (2007, p. 80)
Os elementos escolhidos para serem “esquecidos”, nem sempre são extirpados da
sociedade, permanecendo nas práticas e nos discursos sociais de forma “subterrânea” e não
legitimada pelas esferas governamentais. É o que geralmente ocorre com as práticas culturais
populares e imateriais54, que só recentemente começaram a ser visitadas e reconhecidas
institucionalmente como elementos relevantes formadores da identidade nacional, por exemplo.
Neste trabalho, de forma simples e genérica, espera-se escutar a voz de uma parcela de
estudantes de um educandário público da cidade Santo Ângelo (RS) sobre as suas percepções
acerca do patrimônio existente neste município, podendo os resultados apontarem para
elementos distintos daqueles oficiais introduzidos por órgãos governamentais como relevantes
da cultura e da cidade. Para o desenvolvimento da pesquisa, além de pesquisa bibliográfica,
fez-se um trabalho de campo na escola onde se escolheu trabalhar junto aos alunos do Ensino
Médio do turno da manhã, os quais receberam informações básicas referentes à pesquisa, seus
objetivos, contextos bem como da temática que envolve o estudo, a fim de não haverem dúvidas
no momento destes responderem ao questionário proposto, o qual foi aplicado a todos que
desejaram participar da pesquisa.
Espera-se que o trabalho sirva como instrumento de inclusão para esta parcela da
população, quer seja, jovens estudantes de escola pública, via de regra, esquecidos e
desconsiderados das políticas públicas no segmento patrimônio histórico bem como de
incentivo para futuras pesquisas na área, que ainda se mostram incipientes nesta localidade,
principalmente com abordagens, públicos e enfoques distintos dos habituais até então,
estimulando uma educação através do patrimônio histórico, o consequente uso sustentável
destes espaços assim como a elaboração de políticas públicas de inclusão e de reconhecimento
destes sujeitos e de seus referencias na discussão e na salvaguarda pública dos bens
patrimoniais.
PATRIMÔNIO HISTÓRICO CULTURAL: AFETIVIDADE E USO
54 O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer bens imateriais em sua listagem de patrimônios. A convenção
de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial da UNESCO de 2003 foi um marco nesta área.
156
A proteção do patrimônio histórico a partir de seu uso através do grupo que o detém,
deveria ser a premissa de qualquer sociedade realmente identificada com os bens ali
consagrados como legitimadores de sua cultura e das distintas identidades que a compõem. A
crítica ocorre, quando a escolha destes elementos é feita basicamente de forma autoritária,
vertical e burocrática, sem considerar os anseios e percepções da comunidade que habita neste
espaço. Fonseca lembra bem esta questão ao afirmar que:
No caso da preservação, é preciso lembrar que o exercício da liberdade na seleção dos
bens a serem preservados e na produção da justificativa para o seu tombamento deve
assentar em critérios explícitos e que encontrem um razoável grau de consenso junto
à sociedade. (2005, p. 169)
O consenso de que o autor fala seria uma identificação, por uma parcela da sociedade,
do bem a ser salvaguardado. Não havendo representatividade nesta escolha, o reflexo direto é
a falta de afetividade dos sujeitos diante destes espaços que, senão forem extremamente
cuidados pelo poder público, serão abandonados, esquecidos e depredados, não tendo nenhum
tipo de uso efetivo à comunidade, perdendo completamente seu sentido patrimonial, o qual seria
justamente o de valorizar identidades, culturas, histórias e elementos representativos da
pluralidade que compõe a memória desta sociedade atualmente. Neste sentido, Castriota lembra
ainda que:
O fato é que as decisões sobre a conservação do patrimônio sempre lançaram mão,
explícita ou implicitamente, de uma articulação de valores como ponto de referência:
a última instância vai ser a atribuição de valor pela comunidade ou pelos órgãos
oficiais que leva à decisão de se conservar (ou não) um bem cultural. Assim, as
políticas de preservação trabalham sempre com a dialética lembrar-esquecer: para se
criar uma memória, privilegiam-se certos aspectos em detrimento de outros,
iluminam-se certos aspectos da história, enquanto outros permanecem na obscuridade.
(2009, p. 15)
O processo de escolha do que preservar parte, via de regra, de disputas identitárias,
ideológicas, culturais e discursivas de distintos grupos que visam a permanência, a
exclusividade ou o reconhecimento de seus elementos como os legítimos portadores de verdade
as quais passam a servir de parâmetro e referência aos demais. Estes conflitos, muitas vezes
subliminares e até mesmo não identificados publicamente, ocorrem basicamente na demarcação
de discurso e territórios que são consagrados e consequentemente reproduzidos como
referências culturais daquela comunidade, exaltando alguns elementos em detrimento de outros,
157
os quais não terão como destino provável o esquecimento e o abandono. Cabe ressaltar que
neste jogo conflitual de discursos e bens a serem esquecidos, podem por outro lado, resultar,
segundo Ricoeur (2007, p. 452) numa memória impedida, fazendo com que os sujeitos
desenvolvam memórias encobridoras, onde referências e narrativas muitas vezes são
desordenadas dos fatos e acontecimentos vivenciados, desconectando-os de suas próprias
culturas e identidades.
No campo da proteção patrimonial, cabe reforçar ainda o que prevê a Constituição
Federal de 1988 em seu artigo 216, onde diz que
§ 1°. O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o
patrimônio cultural brasileiro por meio de inventários, registros, vigilância,
tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.
(Constituição Federal Brasileira de 1988)
Neste sentido, a responsabilidade pela salvaguarda dos bens, segundo a Constituição
Federal, é do Poder Público tanto em suas esferas Federal, Estadual e Municipal, incluindo a
colaboração dos cidadãos. Sabe-se que na prática, as ações que envolvem o poder público se
limitam apenas ao ato legal e declaratório do reconhecimento do imóvel ou bem como
patrimônio, ficando na maioria das vezes o ônus da manutenção destes espaços para seus
proprietários. A quantidade de bens reconhecidos impossibilitaria, provavelmente, que sua
manutenção seja realizada exclusivamente pelo Estado, porém as dificuldades não findariam
neste quesito, onde há deficiências de apoio técnico, profissionais qualificados bem como a
utilização e destinação destes espaços após seu processo de patrimonialização nos órgãos
competentes, sendo seu uso ainda um desafio na maioria dos casos.
Para além das discussões de reconhecimento oficiais dos bens patrimoniais, é
imprescindível reconhecer, que há elementos que mesmo não institucionalizados como “bens
tombados” possuem um apelo afetivo e de valoração junto a parcelas da população que os
identificam com tais bens e espaços, representando-os como pertencentes à suas vidas. Tais
elementos são produzidos nos contextos sociais dos grupos, sendo compartilhados em seus
sentidos, onde a afetividade e o pertencimento fazem com que os sujeitos se apropriem destes
como seus. Leite lembra que
(...) os afetos “possuem um caráter universal, são expressivos e, sem exceção,
comunicativos no sentido deque implicam em contágio”. O contágio é uma
158
propriedade fundamental dos afetos. Isso porque um afeto é sempre “percebido no
social”. A condição humana é conduzida pelos afetos. “Nascemos com eles”. As
pessoas “suscitam afetos”. (LEITE, 2005, p. 105)
O desenvolvimento de afetos, em especial os relacionados às referências patrimoniais
e simbólicas produzidas pelo homem, o que na antropologia se denomina cultura, é socialmente
(re) produzido no seio das relações dos sujeitos que compõem o grupo, que elegem
determinados sentimentos que serão expressos e manifestados através da materialidade destes
objetos, prédios e/ou espaços, dos quais, provavelmente, se desprenderá todo esforço para que
estes discursos e sentimentos sejam alocados e impregnados constantemente a fim de que o
mesmo não se perca em virtude do surgimento de outros.
Através do fator afetividade, os órgãos reguladores do patrimônio histórico podem
utilizá-lo para nortear parte de suas ações no que tange o delineamento dos critérios para
salvaguarda dos bens materiais das comunidades que anseiam por terem reconhecidas suas
identidades. Neste sentido, Fonseca lembra que
(...) Porém não basta uma revisão de critérios adotados pelas instituições que têm o
dever de fazer com que a lei seja aplicada, tendo em vista a dinâmica dos valores
atribuídos. É necessária, além disso, uma mudança de procedimentos, com o propósito
de abrir espaços para a participação da sociedade no processo de construção e de
apropriação de seu patrimônio cultural. (FONSECA apud ABREU, 2003, p. 67)
Como já lembrado anteriormente, o espaço de diálogo e de participação é elemento
primordial para que o patrimônio histórico possua um grau razoável de aderência às
expectativas sociais, aplicadas inclusive ao uso que se fará do mesmo, seja ele no campo
simbólico, cultural, turístico ou financeiro. Pode-se dizer que o uso de destino destes bens é
determinante para sua efetiva manutenção, proteção, difusão e fruição social ou o contrário,
abandono, esquecimento, depredação e ruína. Nesta lógica, sem uso, não há sentido de
existência e de reconhecimento de elementos que não possuem representatividade e afetividade
perante os sujeitos detentores do mesmo.
Isso não quer dizer que tecnicamente bens edificados ou imateriais não devam ser
reconhecidos simplesmente porque não possuam o ‘apelo da maioria’, cabendo aí ao Estado e
aos grupos organizados determinarem a melhor forma de uso e de reprodução destes bens na
sociedade, estimulando seu consumo e potencializando sua difusão coletiva, que talvez só não
a valorize por simples falta de conhecimento da relevância dos mesmos para a coletividade.
Uma questão se mostra importante: a necessidade da aplicação de novas ferramentas para o
159
reconhecimento do que é representativo para as comunidades, a fim de que o “reconhecido”
tenha a cara daqueles que o utilizam e valorizam dentro da lógica de afetividade e
pertencimento.
ANÁLISE DAS PERCEPÇÕES REFENTES AO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E
CULTURAL NO INSTITUTO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO ODÃO FELIPPE PIPPI
Após contato realizado com a direção do educandário, optou-se pela aplicação do
questionário junto aos alunos matriculados no ensino médio diurno55. No total foram aplicados
174 questionários56, sendo neste universo para um público de 50% do gênero masculino e 50%
feminino. A escola possui uma aparente diversidade étnica sendo que, respondendo ao
questionário, os alunos se identificaram, em sua maioria 48% como brancos, 37% pardos, 8%
negro, 3% amarelo, 2% mulato e 2% indígena. Neste contexto, se pode concluir que muito
embora a escola seja pública, e esteja localizada em uma zona periférica do município, a maioria
de seus alunos se considera branco ou pardo, o que poderia, numa primeira hipótese, influenciar
nas referências simbólicas que os mesmos pudessem possuir dos referências culturais existentes
na localidade.
Questionados sobre o conhecimento que possuíam sobre a história de Santo Ângelo, a
maioria (54%) considerou regular sua formação nesse quesito, sendo a opção “muito bom”
correspondente apenas a 5% da percepção dos entrevistados.
55A escolha se deu principalmente pela abertura dos mesmos à proposta da pesquisa, demonstrada pelo interesse
dos alunos diante das conversas iniciais da direção da escola e da pesquisadora desta pesquisa. Considerou-se
ainda que o turno da manhã houvesse um universo maior de participantes do que o noturno bem como o perfil dos
alunos, tendo em vista que alunos do ensino fundamental a dinâmica e a linguagem deveriam ser distintas,
demandando outros mecanismos a fim de verificar suas percepções sobre a temática. 56 O questionário foi aprovado dentro do projeto da respectiva pesquisa junto ao comitê de ética da instituição de
ensino, respeitando assim todos os critérios da legislação vigente referente ao tema.
160
Gráfico 01: Conhecimento sobre a história do Município
Fonte: Aplicação de questionário, 2017.
Estes dados apontam para a hipótese de uma fragilidade que estes discentes possuem no
que toca a sua formação no quesito história local, o que se deve, provavelmente, em razão desta
temática ser abordada apenas durante o conteúdo programático do quinto ano do ensino
fundamental, incipiente e frágil diante de todas as possibilidades de abordagens que o assunto
poderia ter na rede de ensino da região, conforme reflete os resultados: “ruim” 16% e “muito
ruim” 1%. Outra hipótese que estes números podem indicar é que os instrumentos culturais do
município (museus, memoriais, centro de cultura, centro histórico, arquivo histórico, etc.), bem
como as ações governamentais realizadas são insuficientes e ineficientes para este público, o
qual não é diretamente atingido pelas (poucas) políticas públicas existentes no setor. Este dado
é constatado ao se verificar que no município não existem ações específicas voltadas ao
patrimônio histórico direcionadas a estes estudantes, o que indica que os entrevistados que
disseram possuir conhecimento regular, provavelmente saibam menos do que acreditam saber
sobre sua própria história.
Nesta lógica, quando questionados sobre os locais que conhecem e/ou já visitaram e
frequentam, as respostas apresentadas indicam basicamente dois principais espaços: Praça da
Catedral57, localizada no Centro Histórico da cidade e a Praça do Brique58, ambas situadas no
57 Seu nome oficial é Praça Pinheiro Machado. 58 Seu nome oficial é Praça Leônidas Ribas.
5%
22%
54%
16% 1%
2%
Conhecimento sobre a história do Município
Muito bom
Bom
Regular
Ruim
Muito ruim
Indiferente
161
centro da cidade de Santo Ângelo, ou seja, em locais estratégicos e privilegiados
geograficamente.
Gráfico 02: Locais que já visitou
Fonte: Aplicação de questionário, 2017.
Nota-se que locais como Arquivo Histórico, Acervo Abambaé, Museu Marechal
Cândido Rondon e o Monumento ao próprio fundador do Município (Padre Diogo Haze) não
são totalmente visitados ou conhecidos pelos entrevistados (mesmo também estando
localizados em áreas privilegiadas da cidade), o que indica um não reconhecimento destes como
espaços representativos de sua história e consequentemente de suas memórias de vida e de
legitimação social. Neste sentido, voltamos aos argumentos anteriores para justificar tais dados:
1) estes espaços, em sua maioria, foram criados e desenvolvidos através de ações do governo
local para “impor” um discurso histórico oficial da cidade, o qual não parece estar sendo
absorvido por estudantes de ensino médio desta escola pública simplesmente por não ser
representativo de suas identidades e/ou pelo fato do próprio governo não desenvolver ações de
educação patrimonial que incentivem à afetividade dos mesmos junto aos mesmos. 2) A
realidade dos sujeitos entrevistados, pelo menos numa visão superficial, não parece estar
contemplada nos espaços culturais existentes na cidade, criando distanciamento e o não
reconhecimento destes por parte dos sujeitos que poderiam utilizá-los justamente para reforçar
suas identidades. 3) A importância do uso do espaço. Aqueles que mais podem ser utilizados
parecem ser apropriados de forma mais preferencial pelos entrevistados, apontando assim para
a necessidade de se pensar as dinâmicas de uso para um pertencimento em relação ao
0 50 100 150 200
Praça do Brique
Memorial Coluna Prestes
Museu Olavo Machado
Monumento Índio
Monumento Padre DH
Capela e Memorial TV
Museu Rondon
Praça da Catedral
Centro de Cultura
Acervo Abambaé-Tupambaé
Arquivo Histórico
Locais que já visitou
162
patrimônio histórico. Nesta lógica, a importância poderia estar não nos objetos e espaços em si,
mas na significação e manutenção de vínculos que estes podem proporcionar ao grupo através
de seu uso, acarretando assim um elo de pertencimento. Nestas dinâmicas, cabe lembrar que o
conhecimento e a sensibilização podem auxiliar no processo de afetividade dos bens, o que o
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) caracteriza de educação
patrimonial, sendo definido como
(...) os processos educativos formais e não formais que têm como foco o Patrimônio
Cultural, apropriado socialmente como recurso para a compreensão sócio-histórica
das referências culturais em todas as suas manifestações, a fim de colaborar para seu
reconhecimento, sua valorização e preservação. Considera ainda que os processos
educativos devem primar pela construção coletiva e democrática do conhecimento,
por meio do diálogo permanente entre os agentes culturais e sociais e pela participação
efetiva das comunidades detentoras e produtoras das referências culturais, onde
convivem diversas noções de Patrimônio Cultural. (IPHAN, 2014, p. 19)
Educar assim através dos elementos apresentados através das referências culturais, se
torna uma experiência rica e eficaz, trazendo os discentes às realidades locais de sua região,
formação histórica e cultural, as quais são representadas e manifestadas através de distintas
maneiras na atualidade. Cabe às instituições de ensino e seus profissionais, devidamente
habilitados, utilizarem deste valioso recurso em suas práticas pedagógicas, inclusive de forma
interdisciplinar, moldando assim, formas mais atrativas de docência e consequentemente de
educação e conhecimento aos alunos, que participarão e se sentirão mais pertencentes tanto à
escola quanto à cidade e seus bens culturais, reproduzindo assim discursos e ações de cuidado
junto a estes espaços. Lemos preleciona que a educação popular direcionada a todos os
envolvidos e interessados no processo de proteção dos referenciais simbólicos é fundamental,
onde “sem dúvida, tornamos a repetir, a base correta do “como preservar” está na elucidação
popular, na educação sistemática que difunda entre toda a população, dirigentes e dirigidos, o
interesse maior que há na salvaguarda de bens culturais.” (2010, p. 119)
Em contraponto, é importante ressaltar também que o poder público deve reconhecer
elementos e bens que sejam representativos dos diversos grupos que compõem a plural
sociedade que se compõem atualmente, a fim de que os sujeitos além de conhecerem a cultura
e suas distintas representações, se reconheçam nela e a reproduzam de forma viva, dinâmica e
que proporcione seu compartilhamento futuro.
Questionados sobre o lugar da cidade que mais gostam, a resposta dos entrevistados foi
a seguinte:
163
Gráfico 03: Lugar que mais gosta
Fonte: Aplicação de questionário, 2017.
A hipótese primeira levantada nesta pesquisa seria que os mesmos, em sua maioria,
optassem pela Praça da Catedral em virtude do apelo simbólico nela existente, pelo processo
de valorização incentivado pelo poder público bem como pelos principais eventos oficiais do
município que são realizados neste local, assim como esta praça ser o ponto de encontro social
aos domingos à tarde de parcela da população que ali se reúne servindo de ponto de
sociabilidade. Ao contrário do que se imaginou, os entrevistados manifestaram que o espaço
que mais se identificam era a Praça do Brique.
Essa escolha pode estar motivada por dois aspectos principais: 1) a referida praça possui
uma ampla pista para a prática de skate, podendo este ser um fator determinante para o uso e a
consequente afetividade destes jovens que se identificam com aquele espaço e; 2) sua
localização geográfica é favorável em relação à escola onde o questionário foi aplicado, ficando
cerca de 1,5km de distância, o que também favorece o fluxo e o uso deste público naquele
espaço.
Apesar da Praça da Catedral aparecer em segundo lugar em uso pelos entrevistados,
pelo enorme fator de sociabilidade que apresenta por estar localizada no Centro Histórico da
cidade, o uso e a afetividade destes jovens junto à Praça do Brique se deve à constituição de um
ponto de referência criado específico para esta parcela da população, diferentemente do que
ocorre na outra praça, mais genérica e abrangente em seu uso. Estes jovens, mesmo não sendo
aparentemente percebidos no uso deste espaço, fazem dele o seu refúgio para manifestação de
outras práticas que expressam suas maneiras de pensar e imaginar a sociedade e o mundo onde
Praça do Brique
52%
Memorial Coluna Prestes
3%
Museu Olavo Machado
2%
Monumento Índio0%
Monumento Padre DH
0%
Capela e Memorial TV
0%
Museu Rondon
1%
Praça da Catedral
38%
Centro de Cultura
0%
Acervo Abambaé-Tupambaé
0%
Arquivo Histórico
1% Outros0%
Nenhuma das opções
3%
Lugar que mais gosta
164
vivem, sendo o skate apenas uma delas. Cabe questionarmos, a título de registro, a possível
carência de ações e políticas públicas que adolescentes entre 14 e 17 anos possuem na
atualidade, sendo então a adoção de espaços como o da praça e sua pista de skate, locais chave
para o encontro e o desenvolvimento destes vínculos afins entre sujeitos que passam a
compartilhar elementos culturais e simbólicos que formam suas identidades e referencias
sociais. Questionados sobre o fluxo de uso, a resposta dos entrevistados demonstra o seguinte:
Gráfico 04: Brique da Praça: uso
Fonte: Aplicação de questionário, 2017.
Uma parcela considerável do público entrevistado utiliza o espaço da Praça do Brique
semanalmente (42%), seguido de mensalmente (29%) e diariamente (16%), o que se conclui
que de forma geral a respectiva praça é utilizada de forma regular pelos entrevistados, o que
consequentemente cria vínculos destes sujeitos junto a este local, acarretando assim, como
efeitos: a) o não abandono do espaço público; b) o monitoramento que os próprios usuários
fazem do local para que o mesmo não seja depredado; c) a manutenção do espaço pelos usuários
e a cobrança de que o poder público faça o mesmo; d) a criação de entidades e associação civis
específicas que utilizem o espaço, por exemplo. Nesta praça há grupos de skatistas organizados,
bem como uma associação que realiza um brique59 dominical com ações culturais e de
artesanato a mais de 25 anos; e) criação de políticas públicas para a juventude através da
secretaria de cultura, educação ou de esporte60.
59 Espaço para artesãos da cidade e região comercializarem seus trabalhos e produtos. 60 As quais como já foi citado, ainda não existem, porém podem ser impulsionadas com a organização destes que
utilizam a praça, por exemplo.
16%
42%
29%
3%10%
Brique da Praça: uso
Diariamente Semanalmente Mensalmente
Anualmente Praticamente nunca
165
A afetividade de um grupo pode assim motivar o desenvolvimento de inúmeras ações e
estratégias que, no todo, acarretarão a consequente proteção de locais e ambientes consagrados
pela própria comunidade como importantes para suas vidas, independente de haver uma
formalização institucional patrimonializando determinados espaços, o que não é garantia de sua
efetiva proteção e aderência junto à população. É importante destacar ainda que diante de uma
sociedade plural, os sujeitos tendem a se identificar com distintos locais e elementos simbólicos,
não impedindo, por exemplo, que estes mesmos alunos que primeiramente se identificaram com
a Praça do Brique, não utilizem, gostem e também se sintam pertencentes (em proporções
distintas) com outros locais da cidade, ou que mudem com o passar do tempo e conforme sua
idade e prioridades, de locais e o uso que consequentemente farão deles.
Desta forma, longe de uma hierarquização que muitas vezes a temática tende a impor,
deve-se ter sensibilidade e ações que reconheçam as distintas formas de uso e identificação dos
diversos espaços simbólicos existentes numa localidade, cada um com seu grau de
expressividade para grupos e segmentos diversos, sendo todos importantes para o
reconhecimento do patrimônio histórico como elemento fundamental para a manutenção e
fortificação das culturas e identidades locais.
Questionados ainda sobre se conheceriam algum espaço patrimonial depredado em
Santo Ângelo, 57% manifestou que sim, apontando que o público entrevistado possui a
percepção do que seja depredação, perda e descaracterização destes espaços na paisagem
urbana. Não se podem indicar aqui quais seriam estes espaços nem seus possíveis depredadores,
os quais em muitos casos podem ser provenientes da própria faixa etária dos entrevistados, que
justamente não se identificam com as referências e espaços existências na cidade, necessitando
assim deixar sua marca e mensagem de contrariedade perante um sistema excludente, que não
os ouve e enxerga, num processo de invisibilidade deste segmento. Obviamente que este
processo de depredação pode ser elemento advindo de outros grupos que também não se
reconheçam como os elementos escolhidos para representar a identidade do município e, como
já ressaltado anteriormente, resposta à maneira como geralmente o processo de
patrimonialização ocorre: verticalmente, sem a participação da comunidade e distante de um
planejamento sustentável de uso e manutenção destas edificações/espaços/paisagens, resultado
de um processo geralmente político e unilateral.
Os entrevistados possuem a seguinte percepção sobre a importância da proteção do
patrimônio histórico:
166
Gráfico 05: Quanto a importância da proteção do patrimônio histórico
Fonte: Aplicação de questionário, 2017.
Para 97% dos estudantes é importante a proteção do patrimônio histórico, demonstrando
assim que os mesmos, dentro de suas lógicas constituídas daquilo que seja relevante e
considerado patrimônio histórico, ou seja, a praça e tudo aquilo que ela representa como
elemento de sociabilidade, imaginário, esporte e paisagem, devendo ser mantido pois é
significativo para as concepções que os mesmos possuem do que seja fundamental suas vidas.
Tal ideia pode sim, ser aplicada pelos entrevistados a outros locais, bem como futuramente a
outros elementos que futuramente possam a vir ser configurados como representativos da
cultura local. Essa representação é imprescindível para a formação de uma mentalidade destes
sujeitos diante da temática, que terão condições de se posicionar em momentos decisivos sobre
o assunto bem como reivindicar seus aspectos identitários e memoriais quando necessário. Essa
postura pode ser reflexo, segundo os próprios entrevistados, das ações que a própria escola
desenvolve sobre a temática:
97%
0%3%
Quanto a importância da proteção do patrimônio Histórico
Sim Não Indiferente
167
Gráfico 06: Se a escola trabalha a temática do patrimônio
Fonte: Aplicação de questionário, 2017.
Aparentemente, a escola não trabalha, pelo menos de forma direta, segundo os
estudantes, questões relacionadas ao patrimônio histórico, apesar de 49% considerarem que isso
ocorra. Tais dados aparentam certa ambiguidade nas percepções que os entrevistados tiveram
neste questionamento, onde puderam, por exemplo, ter considerado como ação aulas referentes
à disciplina de história, onde relações podem ser efetivadas de forma superficial nesta temática.
Podemos supor, também, para aqueles que referem não lembrar de ter sido trabalhada tal
temática, pode que, realmente não a fizeram no ambiente escolar ou a mesma se ocorreu, foi
incipiente ou ineficiente a ponto de não marcar memorialmente, acarretando assim
esquecimentos.
Fato é que as abordagens direcionadas a um uso mais prático e eficiente dos espaços e
bens consagrados institucionalmente no município de Santo Ângelo, direcionados a uma
educação para o patrimônio a estudantes de escolas públicas, em especial a do ensino médio,
parecem distantes de uma praticidade e efetividade, servindo os mesmos, aparentemente como
meros atrativos turísticos de uma paisagem que não contempla a diversidade dos grupos
existentes na cidade, sendo seu uso, primeiramente, para os ‘outros’.
49%
9%
42%
Se a escola trabalha a temática do patrimônio
Sim Não Não lembra
168
CONCLUSÕES
Para que um espaço considerado de relevância patrimonial seja preservado, é
fundamental que o mesmo tenha um uso eficaz, sustentável e permanente. A afetividade dos
estudantes do ensino Médio do Instituto Estadual de Educação Odão Felipe Felippe Pippi
apresentou, ao contrário do que se imaginava, a Praça do Brique como aquele com que os
estudantes mais se identificaram e mais frequentaram em seu dia-a-dia, demonstrando assim
um aspecto instigante e preocupante para as políticas públicas quando o assunto é ouvir estes
sujeitos bem como direcionar ações que visem o reconhecimento dos espaços que estes
indivíduos reconhecem como representativos de suas culturas. A praça do Brique, identificada
como elemento principal para estes jovens, não é consagrada oficialmente pelo poder público
como um bem cultural, muito menos possui elementos culturais, arquitetônicos, paisagísticos
ou históricos que possam a tornar, via de regra, um patrimônio histórico da cidade. Por isso ela
deixou de ser importante e representativa para um grupo de sujeitos? Não! Isso nos faz pensar
que a noção de patrimônio deve ir além de concepções tradicionais do que se pensa como
próprio patrimônio de uma comunidade, abrindo assim possibilidades de discussão, análise e
até mesmo de proteção para locais que diretamente fujam daquilo que tradicionalmente se
concebe como tal. Certo é que o patrimônio deve atender em primeira instância a vida, as
percepções e os interesses culturais dos sujeitos que vivem nestas localidades, sendo
imprescindíveis para sua própria existência e sociabilidade a manutenção e sua salvaguarda,
seja ela via Estado ou pelo próprio grupo que a detém.
Entretanto, historicamente, as escolhas dos elementos patrimoniais edificados tendem a
seguir a lógica elitista e verticalizada dos governos que legitimam espaços e discursos que
perpetuam poder e glória para a história da cidade. Aspectos advindos das classes subterrâneas
geralmente são desconsiderados do processo dialógico patrimonial, sendo estes geralmente
renegados ao esquecimento. Ouvir estes sujeitos é reconhecer elementos e discursos que podem
inclusive contrapor com aquilo que se deseja transmitir e comunicar como o oficial, belo e
original de um povo.
Ao iniciar esta pesquisa, imaginava-se que o resultado seria óbvio: os estudantes
indicariam como principal espaço de convivência e de afetividade a Praça de Catedral, espaço
este que possui prédios históricos e uma carga simbólica muito forte. Grande surpresa foi
quando os dados apresentados demonstraram que um espaço completamente diverso
despontava como o preferido destes jovens. Uso? Afetividade? A criação de um ponto de
169
referencia e de encontro, supostamente em virtude de uma pista de skate mudou toda a
perspectiva de um espaço. Se a pista não existisse o uso seria o mesmo? As respostas teriam
indicado esta praça como a preferida? Eu acredito que não. A idade e as percepções de vida
destes sujeitos são elementos determinantes para que as respostas indicassem este espaço como
o preferido. Se a pesquisa fosse realizada com outro perfil de entrevistados, provavelmente os
indicativos seria outros. A questão é: para este grupo o importante é que a praça, e
provavelmente a pista de skate, é um elemento fundamental para o seu no cotidiano, fazendo
parte da constituição de suas vidas, relações, memórias, sociabilidades e identidades.
O reconhecimento através do afeto fez com que este grupo indicasse a praça do brique
como prioritário em seu uso cotidiano, apontando assim (e até alertando) para que uma atenção
maior a este local possa ser realizada em ações e projetos futuros que visem o maior
reconhecimento e valorização também por parte do poder público, não apenas para com a praça,
mas sim com a prática do skate e outras que possam ser representativas a este segmento da
população, como o esporte num todo. A afetividade, longe de estar apenas relacionada aos
sentimentos que os sujeitos possuem junto a alguém ou algo, cria vínculos que neste caso,
podem auxiliar na constituição das relações identitárias e culturais destes jovens junto a um
espaço, sendo este ponto de referência, sociabilidade, diálogo e manutenção de suas ideias
enquanto jovens desta faixa etária. Espera-se que as conclusões desta breve e modesta pesquisa
sirvam de incentivo para que outras sejam desenvolvidas na área, tão carente de abordagens e
olhares atentos, sensíveis e interdisciplinares, a fim de suprir demandas e lacunas acadêmicas
ainda existentes.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição Federal de 1988.
_______. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Site.
CASTRIOTA, Leonardo Garcia. Patrimônio Cultural: Conceitos, Políticas, Instrumentos.
São Paulo: Editora Annablume, 2009.
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em Processo: trajetória da política
federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.
LEITE, Ivanise. Emoções, Sentimentos e Afetos: uma reflexão sócio-histórica. Araraquara:
Junqueira e Marin Editores, 2005.
LEMOS, Carlos A. C. O que é Patrimônio Histórico. 2. Ed. – São Paulo: Brasiliense, 2010.
MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro. Doutrina,
Jurisprudência e Legislação. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
170
MERLEAU-PONTY, Maurice. O Homem e a Comunicação: A Prosa do Mundo. Rio de
Janeiro: Bloch Editores, 1974.
POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente, séculos XVIII-XIX. Do
monumento aos valores. São Paulo: Estação da Liberdade, 2009.
RICOEUR, Paul. O esquecimento. In: A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed.
da Unicamp, 2007, p. 423-462.
171
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL NOS ANOS FINAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL:
UMA ANALISE DAS METODOLOGIAS APLICADAS EM SALA
Danilo Pedro Jovino61
Hermogenes De Sousa Cerqueira Filho62
RESUMO: O presente trabalho é desenvolvido pela Universidade Federal do Pampa -
UNIPAMPA, campus São Borja - RS, especificamente no curso de Licenciatura em Ciências
Humanas, em financiamento com o CNPq e CAPES, desenvolvem o Programa Institucional de
Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID, uma política pública educacional em parceria com a
universidade e o Colégio Estadual Getúlio Vargas. O objetivo deste trabalho é verificar se as
metodologias e estratégias pedagógicas utilizadas em sala, estão orientando os alunos de
maneira que os levem a conhecer sua herança cultural, tendo como fonte primaria de
conhecimento o patrimônio cultural de São Borja. O grupo de pibidianos do subprojeto história,
no decorrer do ano de 2017, desenvolveram um projeto de educação patrimonial com alunos
do 8º ano do ensino fundamental. No decorrer das aulas surgiu a necessidade de verificar se os
alunos estavam conseguindo relacionar o conteúdo ministrado nas aulas, com o patrimônio
existente na cidade, através de um questionário aberto. Assim pautados pela a metodologia
quali-quanti e os métodos historiográfico, hermenêutico e analítico desenvolvemos a presente
pesquisa. Os resultados obtidos com esta pesquisa indicaram que os alunos conseguiram
assimilar a teoria e relaciona-la com a pratica, ou seja, compreender o que é patrimônio cultural
e conhecer os patrimônios que fazem parte da sua história. Além de indicar uma satisfação com
programa, as metodologias utilizadas em sala e o tema escolhido para o ano letivo.
Palavras-Chaves: PIBID, Educação Patrimonial, Metodologias
INTRODUÇÃO
O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à docência – PIBID é uma política
pública educacional com o objetivo de diminuir o distanciamento entre a realidade encontrada
na academia e da realidade que se encontra na escola. A Universidade Federal do Pampa –
61Mestrando do programa de Pós Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Pampa –
UNIPAMPA; bacharel em Ciências Sociais - Ciência Política e graduando em Licenciatura em Ciências Humanas
pela mesma instituição; e-mail: [email protected] 62 Graduando em Licenciatura em Ciências Humanas pela Universidade Federal do Pampa – UNIPAMPA campus
São Borja; e-mail: [email protected]
172
UNIPAMPA, é uma universidade multi-campi, em dez cidades da Metade Sul do Rio Grande
do Sul, o PIBID se faz presente em oito campis, que por sua vez está em quatorze cursos de
licenciatura. Do totalizante de cursos, temos o curso de Licenciatura em Ciências Humanas, um
curso interdisciplinar, que habilita o profissional a atuar nas áreas de História, Geografia,
Sociologia e Filosofia e está presente no campus de São Borja.
O subprojeto de História tem parceria com 3 escola do município de São Borja-RS, o
Instituto Estadual Padre Francisco Garcia, Colégio Estadual Getúlio Vargas e a Escola
Municipal de Ensino Fundamental Vicente Goulart, com 30 bolsistas alunos do curso de
Licenciatura em Ciências Humanas, 5 professores supervisores da rede pública de educação
básica e 2 supervisores de área ligados a UNIPAMPA. Esta pesquisa se debruça sobre o PIBID
no Colégio Estadual Getúlio Vargas, nas turmas de 8º ano do ensino fundamental, no qual a
temática escolhida pelos bolsistas e que vem sendo trabalhada durante o presente ano é a
educação patrimonial.
Segundo as autoras (HORTA, GRUNBERG e MONTEIRO, 1999, p. 4) educação
patrimonial é “um instrumento de ‘alfabetização cultural’ que possibilita ao indivíduo fazer a
leitura do mundo que o rodeia, levando-o à compreensão do universo sociocultural e da
trajetória histórico-temporal em que está inserido”. De acordo com as mesmas autoras, esse
processo leva ao reforço da identidade dos sujeitos e das comunidades além do reconhecimento
da cultura nacional, entendida como múltipla e plural.
Afinal o que é patrimônio cultural? Antes de responder tal pergunta precisamos deixar
claro um outro conceito, o de patrimônio. Para Ferreira (apud SIBONY, 1998, p. 80)
“patrimônio simboliza uma forma de vida fixada, ‘algo que se realizou naquele objeto ou
construção’; ou seja, patrimônio é portador de tempo e vivências. ”
Pensando no patrimônio como portador de tempo e vivências, o patrimônio cultural seria
todas as manifestações e expressões criadas pelo homem e pela sociedade, que vão se
acumulando ao longo dos anos, é a expressão de cada geração (GRUNBERG, 2007, p. 4). Ou
seja, o patrimônio cultural é o produto de um determinado grupo sociocultural em um
determinado tempo histórico, e esse patrimônio carrega consigo expressões, manifestações e
vivencias experimentadas por esse grupo. Ainda segundo a autora (GRUNBERG 2007, p. 4-5),
patrimônio cultural também é entendido como:
173
[...] todo esse Patrimônio, material, imaterial, consagrado e não consagrado –
entendendo os primeiros como os reconhecidos pela sociedade e protegidos por
legislações (leis e decretos), e os segundos como aqueles que fazem parte do nosso
dia a dia, de nossa realidade, revelando os múltiplos aspectos que a cultura viva de
uma comunidade pode apresentar – que podemos trabalhar num processo constante
de conhecimento e descoberta.
A educação patrimonial trabalhada no subprojeto de história teve como objeto de estudo
o patrimônio cultural de São Borja-RS. Uma cidade fronteiriça, a primeira dos 7 povos das
missões, com raízes históricas dos nativos índios Guaranis e dos padres Jesuítas, além de ter
sido a cidade natal de dois presidentes do Brasil, Getúlio Vargas e João Goulart. Para preservar
o patrimônio material herdado dos contextos históricos citados anteriormente, existem 4
museus pela cidade, ideais para o exercício de metodologias da educação patrimonial. As
autoras (HORTA, GRUNBERG e MONTEIRO, 1999, p. 7) explicam que “nada substitui o
objeto real como fonte de informação sobre a rede de relações sociais e o contexto histórico em
que foi produzido, utilizado e dotado de significado pela sociedade que o criou. ”, também
afirma as autoras que, interpretar essas informações amplia a capacidade de compreender a
realidade, um objetivo da educação básica.
A educação patrimonial é o tema do projeto para o ano letivo de 2017, tal projeto tem
por objetivo levar crianças e adolescentes a conhecer, valorizar e apropriar-se da sua herança
cultural tendo como fonte primaria do conhecimento o patrimônio cultural da cidade de São
Borja.
O presente trabalho surgiu a partir da necessidade de verificar se as metodologias e
estratégias pedagógicas utilizadas em sala, estavam orientando os alunos de maneira que os
levem a conhecer sua herança cultural, além de servir como um instrumento de avaliação do
programa e do tema escolhido para o corrente ano.
METODOLOGIA
A presente pesquisa possui por metodologia utilizada a quali-quanti através dos métodos
historiográfico, hermenêutico e analítico. Utilizamos a quali-quanti, pois se torna uma
ferramenta melhorada para podermos entender de uma forma mais eficaz o nosso objeto de
estudo, através do contexto e da quantificação do mesmo. Os métodos são utilizados de acordo
com cada fase da pesquisa, o historiográfico como um resgate do tema e das principais
174
discussões a respeito da problemática, o hermenêutico nos possibilita conhecer e entender o
nosso objeto através da interpretação, tanto do contexto quanto o dos números e o método
analítico utilizamos quando há a transformação das respostas em números e por sua vez,
gráficos e tabelas; e pautados pela técnica de pesquisa questionário podemos executar esta
pesquisa.
A técnica de pesquisa utilizada foi o questionário aberto, o mesmo contou com quatro
questões e foi aplicado em três turmas do 8º ano do ensino fundamental, do Colégio Estadual
Getúlio Vargas. As duas primeiras questões foram sobre educação patrimonial, e as outras duas
a respeito do programa e das aulas. Com a finalidade de avaliar as práticas pedagógicas dos
pibidianos e qual o parecer dos alunos sobre o programa institucional.
RESULTADO E DISCUSSÃO
O embasamento da pesquisa se resulta em um questionário com quatro perguntas. As duas
primeiras relacionadas ao conteúdo do projeto, com o objetivo de avaliar se os principais
conceitos da educação patrimonial, presente na cartilha do Iphan e ministrados nas aulas dos
meses de abril, maio e junho, foram bem compreendidos pelos alunos, pois seria de extrema
relevância para as futuras oficinas práticas e aulas de campo, um aprendizado significativo da
teoria. Já as últimas perguntas, tiveram o objetivo de avaliar o PIBID e o projeto do ano de
2017. As questões foram as seguintes: a) O que é patrimônio cultural?; b) Quais patrimônios
materiais de São Borja – RS você gostaria de visitar?; c) O que você gostaria que mudasse nas
aulas do PIBID?; d) O que você tem achado do PIBID?
A primeira pergunta, (a), diz respeito a um importante conceito da educação patrimonial,
o de patrimônio cultural. Entendemos a importância de avaliar se tal conceito foi bem
compreendido pelos alunos, evitando assim confusões com outras definições. As respostas dos
alunos foram quantificadas em: Plenamente satisfatório, aquelas respostas que estavam
completas e de acordo com os exemplos e os textos utilizados em sala; Satisfatório, as respostas
que estavam incompletas, mas não fugiam muito da definição utilizada; e Insatisfatório,
respostas que estavam totalmente em desacordo com o conceito e o autor citado nas aulas. A
tabela seguinte tem por finalidade apresentar a avaliação para qualitativa das respostas dos
alunos dividido por turmas, e o total por cada categoria.
175
Tabela 01: Quantitativo referente às respostas da pergunta nº 01
Pergunta 1) O que é patrimônio cultural?
Plenamente
Satisfatório
% Satisfatório % Insatisfatório % Não
Respondeu
%
Turmas
81 8 42,1 4 21 6 31,5 1 5,2
82 8 34,7 11 48 2 8,6 2 8,6
83 4 17,3 18 78,2 0 0 1 4,3
Total: 20 30,7 33 50,7 8 12,3 4 6,1
Fonte: JOVINO; FILHO (2017)
A partir da análise da tabela, podemos tirar as primeiras conclusões, 80% dos alunos
conseguiram assimilar completamente ou parcialmente o conceito. O quesito satisfatório obteve
a maior porcentagem 50,7%, revelando que os alunos sabem o que é patrimônio cultural mas
possui algumas dúvidas. 12% dos alunos não conseguiram compreender o que é patrimônio
cultural. O que foi motivo para reflexões, pois a tabela deixou evidente a diferença no
aprendizado entre as turmas e a necessidade de se trabalhar metodologias específicas para se
atingir um nível razoável do conhecimento, entre eles, sobre as teorias relacionadas a temática,
para que as aulas práticas e de campo não se viesse a se tornar uma atividade sem reflexão.
Dois objetivos pautaram a segunda pergunta, (b). O primeiro, saber se os alunos
conheciam os patrimônios materiais da sua cidade, e de acordo com os patrimônios citados por
eles, avaliar se os mesmos dominavam o conceito de patrimônio material. Ou seja, se o aluno
citava um patrimônio local e o mesmo era um patrimônio material reconhecido pelas
instituições de reconhecimento de bens culturais, era um sinal de que o estudante conhecia o
conceito de patrimônio material. O segundo objetivo, foi o de realizar uma consulta para saber
quais locais eles gostariam de visitar em uma futura aula de campo sobre o patrimônio material
local.
A quantificação das respostas foram com base na quantidade de patrimônios materiais
citados pelos alunos. Nos casos em que o patrimônio, ou local, não era reconhecido, e não se
constituía de fato um patrimônio material da cidade, a resposta foi enquadrada no conceito
“confundiu”. Ou seja, o aluno não tinha compreendido a definição de patrimônio material. A
seguir a tabela com a porcentagem dos dados quantificados.
176
Tabela 02: Quantitativo referente às respostas da pergunta nº 02
Pergunta 2) Quais patrimônios materiais de São Borja – RS você gostaria de visitar?
Nenhum
patrimônio
% 1 – 2
Patrimônios
% 3 – 5
Patrimônios
% Confundiu %
Turmas
81 1 5,2 9 47,3 0 - 9 47,3
82 4 17,3 11 47,8 2 8,6 6 26
83 5 21,7 14 60,1 0 - 4 17,3
Total: 10 1,5 34 52,3 2 3 19 29,2
Fonte: JOVINO; FILHO (2017)
A análise da tabela acima se dá a partir de que apenas 3% dos alunos possuem um
conhecimento ampliado dos patrimônios materiais na cidade, e consequentemente, uma maior
compreensão da história local. 52% desses alunos sabem o que é patrimônio material, mas
conhecem pouco sobre a história e os patrimônios reconhecidos. 29% dos alunos não dominam
o conceito de patrimônio material e nem conhecem quais bens materiais são reconhecidos pelos
órgãos governamentais. E ainda, 1,5% não citaram nenhum patrimônio material o que acusa
esses alunos de não terem compreendido o conceito, ou não ter conseguido relacionar a teoria
com a prática, o conceito com os patrimônios materiais que fazem parte da sua cultura.
Na turma 81 um dado se mostrou interessante, a quantidade de alunos que confundiram
patrimônios materiais foi igual para aqueles que citaram de 1 a 2 patrimônios.
A terceira pergunta, (c), abre o bloco de questões a respeito do programa. Nessas
perguntas buscamos conhecer a opinião dos alunos sobre o PIBID, as metodologias e o tema
da educação patrimonial. Quantificamos as respostas dos alunos em 3 grandes grupos: Não
“mudaria nada das aulas”, ou seja, a metodologia e o tema estão agradando; “Mudaria a forma
da aula”, ou seja, as práticas pedagógicas junto com os materiais utilizados em sala não estão
agradando; “Mudaria o tema”, ou seja, o tema não é de interesse dos alunos, o que gera um
desinteresse pelas aulas. A tabela a seguir deixa bem claro as porcentagens de cada resposta:
177
Tabela 03: Quantitativo referente às respostas da pergunta nº 03
Pergunta 3) O que você gostaria que mudasse nas aulas do PIBID?
Nada % Forma da Aula % Mudaria o
tema
% Não
Respondeu
%
Turmas
81 7 36,8 9 47,3 1 5,2 2 10,5
82 14 60,8 8 34,7 1 4,3 0 0
83 19 82,6 2 8,6 2 8,6 0 0
Total: 40 61,5 19 29,2 4 6,1 2 3
Fonte: JOVINO; FILHO (2017)
A partir da análise da tabela 03, observamos que apenas 6% dos alunos são avessos ao
tema, em contrapartida 61% são favoráveis ao tema do projeto e estão gostando da forma que
as aulas estão sendo ministradas. Porém, uma reflexão sobre as práticas pedagógicas surgiu ao
notar-se que quase 30% dos alunos tendem a querer uma mudança na “forma da aula” onde a
mesma fosse diferente. Entretanto chegamos a seguinte conclusão; o tema e as aulas estavam
sendo atrativas para a maioria dos discentes. Mesmo com algumas dificuldades no processo de
ensino/aprendizagem os educandos se mostraram interessados na temática que os estimulava a
querer conhecer mais sobre a história local.
A mudança na forma das aulas veio a partir do momento que conseguimos superar a
teoria, delimitar alguns conceitos e suprimir as dúvidas que encontramos no caminho. Após
concluir esses objetivos, as aulas seguintes, depois do recesso, iniciadas no mês de agosto,
acompanhavam uma revisão teórica e uma prática acompanhada de reflexão, como exemplo
tivemos: visitas a museus da cidade, oficina de saber fazer cerâmica guarani e a construção de
uma maquete da redução de são Francisco de Borja. Essas oficinas só foram possíveis de serem
pensadas a partir das reflexões proporcionado pelo questionário.
178
Imagem 01: Oficina de cerâmica guarani
Fonte: Acervo pessoal dos autores
A oficina de saber fazer cêramica guarani foi uma das aulas práticas do projeto. O saber
fazer cêramica guarani se constitui como um patrimônio imaterial da região das missões na qual
São Borja está inserida. Esse modo próprio dos Guaranis de fazer cêramica vem sendo
esquecido a cada nova geração, assim como o oficio de cerâmista. Apresentar aos alunos esse
patrimônio imaterial é uma forma de se preservar a cultura e mantendo-a viva para as próximas
gerações. Esse é o objetivo do projeto do pibid na escola Getulio Vargas e também da educação
patrimonial, levar o aluno a conhecer, valorizar e se apropriar da sua históra e sua cultura.
A quarta e última pergunta, (d), se constitui uma avaliação direta do programa
institucional, buscando aferir o nível de satisfação dos alunos com a política educacional.
Classificamos as respostas em: Péssimo, o aluno não está gostando nenhum pouco do programa;
Bom, o aluno está gostando do programa, mas tem algumas críticas a ser colocada; e, excelente,
no qual o aluno está muito satisfeito com o programa.
179
Tabela 04: Quantitativo referente às respostas da pergunta nº 04
Pergunta 4) O que você tem achado do PIBID?
Péssimo % Bom % Excelente % Não
Respondeu
%
Turmas
81 0 - 10 53 8 42 1 5,2
82 1 4,3 8 35 12 52,1 2 8,6
83 1 4,3 7 30 13 56,5 2 8,6
Total: 2 3 25 38,4 33 51 5 7,6
Fonte: JOVINO; FILHO (2017)
Analisando a tabela acima, podemos perceber que apenas 3% dos alunos reprovam a
política educacional, enquanto 51% deles estão satisfeitos com o programa e até apontam em
suas respostas que o PIBID proporciona um conhecimento diferente das matérias curriculares
convencionais. E, 38% dos alunos aprovam o programa mas apontam algumas críticas, como a
necessidade de mais períodos na semana.
Esses dados reforçam como o pibid vem ganhando o respeito, aceitação e espaço dentro
da comunidade escolar de São Borja. E, além de aproximar licenciados a realidade escolar,
também tem aproximado a comunidade escolar a universidade. A aprovação de mais de 89%
dos alunos diz muito sobre a relação entre pibidianos, universitários, e os alunos da educação
básica.
CONCLUSÕES
Essa pesquisa obteve o objetivo de estudar as metodologias aplicadas em sala de aula,
onde as mesmas estão ou não surtindo efeitos e qual é o feedback acerca das aulas, ou seja, uma
avaliação dos resultados alcançados, tanto das práticas pedagógicas, como do PIBID no Colégio
Getúlio Vargas. Tal feedback proporcionou ao grupo um material para analisar como o
conteúdo ministrado conseguiu, ou não, acessa o aluno. E a forma como o aluno estava
apreendendo. O que pretendíamos era checar se a teoria foi bem assimilada, para que
posteriormente a prática não se tornasse mera técnica sem reflexão, orientando assim o aluno a
apropriar-se de sua herança cultural, capacitando-o para um uso consciente destes bens.
A reflexão acerca dessa pesquisa deu origem a reuniões para repensar coletivamente as
práticas pedagógicas do pibidianos, e o cronograma do segundo semestre do projeto para o ano
180
letivo de 2017, o qual foi colocado em prática no mês de Agosto. Tomamos como base as
considerações e sugestões dos alunos, que pediram mais aulas práticas, e a oficina de cerâmica,
citada anteriormente, foi fruto dessas reuniões. Assim buscamos tornar o processo de
ensino/aprendizagem mais dinâmico, mais divertido, porque concordamos que a atividade do
conhecimento tem que ser prazerosa para atrair o interesse do aluno.
Assim compreendemos e salientamos a importância das avaliações pedagógicas e
metodológicas no processo de ensino/aprendizagem, e não apenas a avaliação do aluno com
provas e testes. Preocupar-se com as metodologias é estar preocupado também em conhecer
melhor o perfil do aluno e das turmas para saber quais recursos pedagógicos utilizar.
Obtivemos com o questionário fontes para argumentar a favor da continuidade do
programa dentro da Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA. Esse tipo de trabalho ajuda
a reforçar como essa política educacional vem cumprindo bem seus principais objetivos,
preparando o futuro formando para os estágios, e futuramente o seu ambiente de trabalho, visto
que a escola é um ambiente complexo que necessita de experiencia e pratica para se conseguir
exercer bem a profissão.
REFERÊNCIAS
RANGEL, Mary. Métodos de ensino para a aprendizagem e a dinamização das aulas 6 ed.
Campinas: Papirus, 2010.
HORTA, Maria de Lourdes Parreiras; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane Queiroz.
Guia básico de educação patrimonial. Brasília: Iphan, 1999.
FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi. Patrimônio: discutindo alguns conceitos. Diálogos -
Revista do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em
História, Maringá, v. 10, n. 3, p.79-88, 2006.
GRUNBERG, Evelina. Manual de atividades práticas de Educação Patrimonial. Brasília:
IPAHN, 2007.
LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica. São Paulo: Ed. Atlas, 2010.
MINAYO, Maria Cecilia de Souza de (org) Pesquisa Social: Teoria Método e Criatividade.
Petrópolis, RJ: Vozes 2002.
BAQUERO, Marcello. Pesquisa quantitativa nas Ciências Sociais. Porto Alegre: UFRGS,
2009.
181
DIVERSIDADE ÉTNICA: APRENDIZAGEM, CONHECIMENTO E CULTURA
Kauana Rodrigues Amaral63
Izabel Espindola Barbosa64
Priscyla Hammerl65
Viviani Sasso Saraiva66
RESUMO: O Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígena (NEABI), conforme a Lei
10.639/03 e 11.645/08, tem por finalidade o desenvolvimento de ações afirmativas nas
Instituições de Ensino. Diante disso, ao longo deste ano o NEABI do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha, IFFAR, Campus Avançado Uruguaiana
desenvolveu diversas ações com o objetivo de valorizar a cultura dos povos originários,
apresentar a importância do índio e do negro no estado do Rio Grande do Sul, discutir
preconceito, transmitir conhecimento sobre assédio moral e racismo institucional, disseminar
conhecimento sobre as políticas públicas para combate à desigualdade racial, compreender a
diversidade, identidade de gênero e raça, informar sobre a escravidão, quilombos e territórios
negros no município de Uruguaiana. Para o alcance desses objetivos, foram realizadas algumas
atividades pelos coordenadores do NEABI para os alunos do campus, como rodas de conversas
acompanhadas de debates e filmes curtos para despertar a criticidade. Atividades práticas para
estimular nos discentes a compreensão da desigualdade racial, neste caso enfatizando o sistema
de cotas e a feira indígena que possibilitou a degustação de uma bebida típica, assim como a
distribuição de panfletos que ajudaram a refletir a contribuição dessas etnias e como torna-se
importante a luta pela igualdade de oportunidades. Sem esquecer que o racismo e o preconceito
em relação ao indígena e ao negro que ainda perpetua na sociedade brasileira. As atividades
tiveram efetivas participações dos alunos, percebeu-se que de fato eles se apoderaram das
informações disseminadas. Portanto, os objetivos sobre a aprendizagem foram atingidos porque
foi possível tratar a temática envolvendo as questões afro-brasileiras e indígenas. Assim
estimulando dúvidas sobre pré-conceitos enraizados, não pelos jovens mas pela sociedade, e,
assim propondo maior compreensão, tolerância, respeito e a tão esperada valorização da própria
história do povo brasileiro. Espaços de discussão que proporcionam mudanças.
63 Vice-Presidente do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígena; Bacharela em Biblioteconomia; Instituto
Federal Farroupilha; Uruguaiana, RS; [email protected] 64Presidente do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígena; Especialista em Gestão Pública; Instituto Federal
Farroupilha; São Borja, RS; [email protected] 65Professora Doutora em Desenvolvimento Regional; Instituto Federal Farroupilha; São Borja, RS;
[email protected] 66 Coordenadora da Assistência Estudantil; Bacharela em Administração. Instituto Federal Farroupilha;
Uruguaiana, RS; [email protected]
182
Palavras-Chaves: NEABI, IFFar, negro, indígena.
INTRODUÇÃO
Este trabalho é resultado das atividades realizadas pelo Núcleo de Estudos Afro-brasileiro
e Indígena (NEABI) no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha,
IFFAR, Campus Avançado Uruguaiana. O NEABI em conformidade com as leis Lei 10.639/03
e 11.645/08 tem por finalidade o desenvolvimento de ações afirmativas nas Instituições de
Ensino, afinal,
A escola tem papel preponderante para eliminação das discriminações e para
emancipação dos grupos discriminados, ao proporcionar acesso aos conhecimentos
científicos, a registros culturais diferenciados, à conquista de racionalidade que rege
as relações sociais e raciais, a conhecimentos avançados, indispensáveis para
consolidação e concerto das nações como espaços democráticos e igualitários (CNE,
2004, p. 8).
Os objetivos deste trabalho consistem em valorizar a cultura dos povos originários,
apresentar a importância do índio e do negro no estado do Rio Grande do Sul, discutir
preconceito, transmitir conhecimento sobre assédio moral e racismo institucional, disseminar
conhecimento sobre as políticas públicas para combate à desigualdade racial, compreender a
diversidade, identidade de gênero e raça e informar sobre a escravidão, quilombos e territórios
negros no município de Uruguaiana.
As atividades do NEABI iniciaram em janeiro de 2017, com participação em evento desta
temática promovido pelo município, na qual propiciou firmar parcerias com entidades e pessoas
que estudam sobre a temática afro-brasileira e indígena.
PROBLEMATIZAÇÃO
O campus Avançado Uruguaiana do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia Farroupilha fica na zona sul da cidade. Na fronteira entre bairros de periferia, dois
instalados recentemente por políticas de habitação como o Minha Casa, Minha Vida, um
formado por invasão dos lotes, possui população de mais de vinte mil habitantes. Embora esteja
em uma área populosa, o campus, e o próprio ensino técnico federal é novidade na região.
Com isso, o campus Avançado Uruguaiana apenas terá turmas de ensino médio
integrado em 2018. Até este ano, possui turmas de técnico subsequente, à noite, e de técnico
concomitante durante o dia, ou seja, os alunos cursam em outra escola o ensino médio fazendo
183
apenas as disciplinas técnicas na instituição. Isso causa certo distanciamento entre instituição e
discentes. Sobre a temática interdisciplinar que o NEABI trabalha, são necessárias estratégias
que promovam interesse na participação em turmas e turnos diversos, onde o público tem
diferenças etárias, envolvendo adolescentes e adultos.
Conforme o Parecer CNE 003 (2004, p. 8), “para que as instituições de ensino
desempenhem a contento o papel de educar, é necessário que se constituam em espaço
democrático de produção e divulgação de conhecimentos e posturas que visam a uma sociedade
justa”. Assim, algumas atividades foram incorporadas a outras situações e, algumas situações
precisam ser estimuladas para que houvesse o debate.
METODOLOGIA
As ações foram realizadas nas dependências do Campus Avançado Uruguaiana em forma
de rodas de conversas e atividades práticas. Com intuito de socializar as experiências, relatamos
o processo de implementação e as estratégias utilizadas para aprendizagem.
No início do ano letivo reunimos os alunos para apresentar os objetivos do NEABI e as
ações propostas para desenvolver durante o ano.
As ações foram organizadas conforme as datas “comemorativas” já conhecidas com a
finalidade de desmistificar, refletir e discutir muitos fatos. Por isso, esta palavra será entre aspas
neste trabalho. Nesse sentido, em abril organizamos a feira indígena, na qual abordou a
importância do povo originário para o estado do Rio Grande do Sul, durante a atividade foram
apresentadas, no mapa do estado, as cidades que tem nome de origem indígena e sua tradução
em português.
Em maio duas datas são “comemoradas”, o dia do trabalhador e a abolição da
escravatura. Nessa perspectiva, foi realizada uma roda de conversa sobre assédio moral no
trabalho, enfatizando questões de gênero e racismo institucional, apresentando a legislação e
alertando para tal situação.
Nesse mesmo mês, em virtude da abolição da escravatura, na qual não é uma data a ser
comemorada e sim um momento de reflexão sobre as desigualdades ainda presentes, foi
organizada uma roda de conversa com a temática Desigualdade racial: políticas públicas,
promovida em parceria com o NEABI da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) na
qual estudam sobre a cultura e a história afro-brasileira e indígena.
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Ainda nesse mês, o historiador e pesquisador de Uruguaiana foi convidadopara falar
sobre Escravidão, quilombos e territórios negros em Uruguaiana.
Continuando as datas “comemorativas”, no mês de setembro celebra-se no estado do
Rio Grande do Sul a Semana Farroupilha, então surgiu a necessidade de abordar a importância
dos lanceiros negros na batalha dos farrapos em 1835, na qual lutaram a frente do batalhão em
troca de liberdade. A atividade se deu por meio de uma roda de conversa com muita discussão.
O objetivo dessa discussão foi para apresentar uma parte da história do estado, geralmente, não
discutida na escola. O professor convidado abordou o assunto com um clipe, protagonizado
pelo grupo de rap gaúcho Rafuagi que fala sobre a guerra dos Porongos e mostra que no RS
não existe nomes de rua e tão pouco monumentos que homenageiam os lanceiros.
RESULTADO E DISCUSSÃO
Em primeiro lugar, o aluno.
Durante a feira indígena, os alunos aprenderam trava-língua e algumas saudações em tupi-
guaraní, assim como conheceram a genealogia da família tupi-guaraní. Durante a feira os alunos
provaram uma bebida típica, chamada cocido que é preparada com leite, erva mate e açúcar
queimado. Os alunos demonstraram-se interessados, participativos e foi um momento de grande
aprendizado.
Na atividade alusiva ao trabalho, os alunos tiraram muitas dúvidas e colocaram situações
reais de seu ambiente de trabalho.
O que se propõe, em contrapartida, é o respeito às matrizes culturais a partir das quais
se constrói a identidade dos alunos, com, atenção voltada para tudo aquilo que vá
resgatar suas origens e sua história (o que também significa respeitar os direitos
humanos!), como condição de afirmação de sua dignidade enquanto pessoa, e da
especificidade da herança cultural que ele carrega, como parte da infinita diversidade
que constitui a riqueza do ser humano (MUNANGA, 2005, p. 76)
Nas ações sobre Desigualdade racial: políticas públicas foi debatido identidade,
diversidade, sonhos, cotas e novamente racismo institucional. Esses pontos quando versam nas
políticas públicas para as desigualdades raciais correspondem ao fim do período escravocrata
da qual houve liberdade e, no entanto nenhuma política de garantia de direito ao povo negro.
Diante disso, vale ressaltar aos alunos que essa data não deve ser comemorada e sim realizar
reflexões sobre o que vem acontecendo há mais de 300 anos.
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Na vertente identidade, foi discutida de forma dinâmica onde os alunos responderam
Como eu me vejo? Como eu me identifico? Branco, negro, pardo, índio. Em quanto a religião?
E em quanto a identidade de gênero?
Tais perguntas fazem refletir, assim como exemplificado na literatura de Munanga ou
nas normas do Conselho de Educação, como a história nos foi recontada, quem contou e com
quais propósitos. Pois a simples cor que é perguntada no censo já tem uma percepção nada
simples.
Temos, pois, pedagogias de combate ao racismo e às discriminações por criar. Para
empreender a construção dessas pedagogias, é fundamental que se desfaçam alguns
equívocos. Um deles diz respeito à preocupação de professores no sentido de designar
ou não seus alunos negros como negros ou como pretos, sem ofensas (CNE, 2004, p.
9).
O racismo institucional foi explicado através de uma curta metragem, a fim de discutir
como e porque ocorre e o que é. E por último, a discussão foi sobre o sistema brasileiro de
cotas, da qual as instituições de ensino possuem como forma de ingresso e que ainda gera muita
discussão e divide opiniões.
Além disso, a explanação do historiador e pesquisador Uruguaianense foi importante
para conhecer um pouco mais da cidade de Uruguaiana. Foi um momento de conhecimento
sobre as pessoas que lutaram e fizeram parte da história do município.
As rodas de conversa tiveram participação efetiva dos alunos, principalmente na
dinâmica sobre identidade. Durante as atividades percebeu-se o quanto os alunos ficaram
satisfeitos em falar desses assuntos.
CONCLUSÕES
Iniciando por força da lei, das normas institucionais, implementado pela vontade de um
pequeno grupo, realizado pela colaboração da comunidade e pela participação dos alunos, o
NEABI do campus avançado Uruguaiana do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia Farroupilha, IFFAR propõe atividades que permitam a oportunidade de
desenvolvimento do cidadão de forma igualitária. O espaço institucional não é o único que deva
trabalhar a valorização dos povos originários, mas é parte fundamental no desenvolvimento de
comportamentos que eliminem as discriminações, o racismo e qualquer preconceito.
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Assim estimulando dúvidas sobre pré-conceitos enraizados, não pelos jovens mas pela
sociedade, e, assim propondo maior compreensão, tolerância, respeito e a tão esperada
valorização da própria história do povo brasileiro. Espaços de discussão que proporcionam
mudanças.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-
Brasileira", e dá outras providências. Disponível em: Acesso em 04 Out. 2016.
CNE, Conselho Nacional de Educação. Parecer 003 de 10 de março de 2004. Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A,
2011.
MUNANGA, KABENGELE. Superando o Racismo na escola. Brasília: Ministério da
Educação, 2005