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Universidade Federal do Ceará
Faculdade de Direito Programa de Pós-Graduação em Direito
Curso de Mestrado em Direito Área de Concentração em Ordem Jurídica Constitucional
Daniel Gomes de Miranda
Constitucionalização do direito privado e a função social do contrato e da propriedade na empresa
Fortaleza 2010
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Daniel Gomes de Miranda
Constitucionalização do direito privado e a função social do contrato e da propriedade na empresa
Dissertação apresentada como pré-requisito parcial para obtenção do título de mestre junto ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, tendo como orientador o prof. Dr. João Luis Nogueira Matias.
Fortaleza – Ceará Agosto de 2010
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Constitucionalização do direito privado e a função social do contrato e da propriedade na empresa
Esta dissertação de mestrado foi submetida à Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Direito, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Direito, outorgado pela Universidade Federal do Ceará – UFC e encontra-se à disposição dos interessados na Biblioteca da referida Instituição. A citação de qualquer trecho desta Dissertação de Mestrado é permitida, desde que feita de acordo com as normas de ética científica. Aprovada em:____/____/____ Apresentada à Banca Examinadora, integrada pelos professores:
________________________________________________________________ Prof. Dr. João Luis Nogueira Matias – Universidade Federal do Ceará
(Orientador)
________________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Vital da Rocha – Universidade Federal do Ceará
(Examinadora)
________________________________________________________________ Prof. Dr. Arnaldo Vasconcelos – Universidade de Fortaleza
(Examinador)
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A meu padrinho de formatura, Alexandre Rodrigues de
Albuquerque (in memoriam).
A saudade ainda dói, mas a lembrança dos incontáveis momentos
felizes torna sua ausência um tanto menos insuportável.
Obrigado, Padrinho, pela honra de ter me acolhido entre os seus,
participando, de maneira indelével, de minha vida e de minha
formação como estudante, como advogado e como ser humano.
Eu queria, um dia, ser como o senhor.
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AGRADECIMENTOS
São muitos aqueles a quem destino meu preito de gratidão pela conclusão
deste trabalho. Enumerar todos é tarefa impossível, pois todos com quem convivi
desde 06 de agosto de 2001, quando adentrei, pela primeira vez, na Faculdade Livre
de Direito do Ceará, têm uma parcela de contribuição em minha vida acadêmica e,
por via de consequência, neste trabalho. Permito-me, todavia, mencionar algumas
presenças fundamentais.
Em primeiro lugar, não poderia deixar de agradecer a Deus, que, com sua
benevolência, traçou meu caminho com tanto amor que fez de minha vida um
oceano de bênçãos. Desde minha concepção sei que o Pai está ao meu lado,
concedendo-me o discernimento necessário à realização das boas escolhas, que
redundaram, até hoje, em frutos belíssimos. As pessoas que colocou em meu
caminho, que influíram em minha formação, foram verdadeiros presentes que só um
Ente Divino pode conceder.
Agradeço também a minha família. A papai, por ter sempre nos colocado em
primeiro lugar, abrindo mão de seus projetos pessoais em prol de todos nós; a
mamãe, exemplo de bondade e de caridade, por ter se dedicado à nossa formação
como seres humanos; a Josemir, pelo bom proveito que faz da sabedoria que Deus
lhe concedeu; e a Rodrigo, por me mostrar, a cada dia, que felicidade é fazer, com
prazer, aquilo por que se tem paixão, e por ter colocado no mundo os frutos mais
lindos que um casal pode render: Guilherme e Geovana. A Marcela e Eveline, por
terem se achegado a nós, aumentando nossa felicidade.
Agradeço, também, a Marfisa, que, nestes últimos cinco anos, tem me
dedicado seu amor incondicional, sendo, também, repositório de minhas paixões.
Não há palavras para externar a dívida de gratidão e o amor que sinto pela mulher
com quem decidi passar o resto de meus dias.
À cidade de Brejo Santo, com todos os amigos e familiares, onde repousa
meu coração. É para lá, berço de minhas mais ternas lembranças, que quero
retornar na hora derradeira.
À Faculdade de Direito do Ceará, que, desde 1903, revela talentos jurídicos
de projeção nacional e internacional. Tudo o que consegui na vida, depois de 2001,
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devo à Faculdade: a carreira que amo, meus melhores amigos, minha noiva e meus
grandes mestres. Tenho dentro de mim o desejo, imenso, de um dia retornar a seus
quadros, como professor efetivo.
A João de Souza Frota Neto, um desses presentes que a Faculdade me
concedeu. Jothe não é apenas um livreiro, é amigo como poucos, companheiro de
todas as horas. Devo à sua amizade os bons momentos vividos na Fortlivros,
parcela imensa de minha vida na Faculdade.
A Germana Neiva Belchior e Ana Paula Martins Albuquerque, pela amizade
que sempre me devotaram, com a certeza de que o bem que lhes quero é
impossível de ser reduzido a meras palavras.
A Arnaldo Vasconcelos, o maior professor que já tive, meu mestre maior.
Foram suas aulas magistrais que despertaram em mim a paixão pelo Direito e o
desejo de abraçar a carreira de professar, para outros, a disciplina da convivência
humana. Quisera eu ter seu talento docente.
Ao Professor João Luis Nogueira Matias, mola mestra da revolução pela qual
passa o curso de Mestrado em Direito da UFC, dedicando-se, com inegáveis
seriedade e doação ao aperfeiçoamento institucional e pessoal do curso.
Ao Projeto Casadinho (UFC/UFSC/CNPq), que proporcionou o alargamento
de horizontes na visão da propriedade empresária, fundamental para este trabalho.
À secretaria do Curso de Mestrado em Direito, nas pessoas de Marilene,
Franck e Neuma, pela disponibilidade de nos atender sempre, de forma
incondicional.
Aos alunos da Faculdade de Direito, porque, além de serem a própria razão
de ser do Curso, são os grandes responsáveis pelo nome que a Faculdade leva para
todos os cantos do mundo.
A Everardo Lucena Segundo, grande amigo que sempre me estendeu a mão
nas horas mais difíceis. Não terei, jamais, como adimplir meu débito de gratidão.
Seus desprendimento e senso de amizade são de uma grandeza ímpar.
A Francisco Ponciano de Oliveira Junior, exemplo de retidão de caráter, com
quem tive o prazer de conviver durante nove anos, e com quem, um dia, irei
trabalhar.
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A minha avó, Erundina Feijó de Medeiros (in memoriam), por me ensinar que
a família é o bem mais importante que temos na vida.
A meu tio mais querido, Antônio Gomes Feijó (in memoriam), elevado aos
braços do Pai na data de depósito dessa dissertação, por ter me ensinado que a
vida é para amar e servir. Levo, comigo, a satisfação, o orgulho e a honra de ter seu
sangue correndo em minhas veias.
Agradeço, enfim, a todos os que, de uma maneira ou de outra, contribuíram
para a conclusão do meu curso de mestrado.
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RESUMO
A massificação das relações de consumo e a formação de grandes grupos econômicos fizeram surgir a necessidade de se exigir, daqueles que atuam no mercado, estruturados sob a forma de empresa, uma contrapartida social de sua atividade. Essa constatação trouxe a lume a consagração da expressão “função social da empresa”, já positivada na legislação, e amplamente difundida na doutrina e na jurisprudência brasileiras, tendo sido objeto de tratamento no Enunciado nº 53, da I Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. A teoria da constitucionalização do Direito Privado deu mais impulso à consagração da funcionalização social da empresa, com fundamento, dentre outros, na incidência do princípio da solidariedade nas relações entre os particulares. A questão fundamental que se coloca é: o que se pode entender por função social da empresa? Equívocos teóricos no estudo da empresa e da Constituição têm feito com que se atribuam significados diversos ao instituto, sem se dar um tratamento mais adequado à empresa ou à sua funcionalização. No Direito brasileiro, pode-se extrair um significado para a empresa no artigo 966, do Código Civil, que define o empresário. A partir do texto legal, tem-se que a empresa é uma atividade econômica exercida profissionalmente e voltada para o mercado consumidor. Como atividade econômica, concretiza-se através de contratos cujas obrigações são adimplidas com o patrimônio do empresário, o estabelecimento empresarial. Veem-se, aqui, dois institutos, o contrato e a propriedade, que já têm tratamento jurídico específico, no que toca à função social. Os contratos, sejam civis, trabalhistas, ou o próprio contrato social, devem atingir sua função social; a propriedade, seja móvel, imóvel, material ou imaterial, segue a mesma sorte. A empresa, tendo como elementos o contrato e a propriedade, atinge sua função social através da efetivação da função social do contrato e da função social da propriedade, o que permite afirmar que não existe um significado específico e próprio da função social da empresa. PALAVRAS-CHAVES: CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO. FUNÇÃO SOCIAL. EMPRESA. PROPRIEDADE. CONTRATO.
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ABSTRACT
The development of mass consumer relations and the formation of large business groups created the need to require these large enterprises to play a socially constructive role. This situation gave rise to the expression “the social function of the company”, enshrined in positive law and widely disseminated in Brazilian doctrine and court precedents, as reflected by Enunciation 53 from the First Civil Law Meeting of the Center for Legal Studies of the Federal Justice Council. The theory of the constitutional establishment of private law gave further impetus to the enshrinement of the social function of the company, based on, among others, the principle of solidarity in relations between private parties. The fundamental question that arises is: What is the definition of the social function of the company? Theoretical missteps in the study of business and the Constitution have attributed various meanings to the institute, without giving truly adequate treatment to the company or its function. In Brazilian law, one meaning of the company can be drawn from Article 966 of the Civil Code, which defines what is meant by the term businessperson. Based on this legal text, a company is an entity that engages in economic activity to serve the consumer market. Economic activity is materialized in the form of contracts, whose obligations are performed with the businessperson’s property, the business enterprise. Hence there are two elements – the contact and property – each of which has specific legal treatment regarding its social function. Contracts, be they civil or labor agreements or the incorporation documents of the company itself, must meet their social function. Property, whether moveable, immoveable, tangible or intangible, must meet the same requirement. The company, being based on the elements of contract and property, satisfies its social function through the social function of the contract and the social function of property, which allows affirming that there is no specific and independent meaning of the social function of the company. KEYWORDS: CONSTITUCIONALIZATION OF LAW. SOCIAL FUNCTION. COMPANY. PROPERTY. CONTRACT
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 13
2 SOBRE A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO E SEUS
REFLEXOS SOBRE A EMPRESA 16
2.1 Evolução histórica da constitucionalização do direito privado 17
2.2 Teorias sobre a aplicabilidade das normas constitucionais ao direito
privado 28
2.2.1 Teoria da aplicabilidade indireta ou mediata 28
2.2.2 Teoria da aplicabilidade direta ou imediata 32
2.2.3 Uma proposta de conciliação 36
2.3 Modos de constitucionalização do direito privado 38
2.3.1 Da constitucionalização quando da criação/atualização legislativa 38
2.3.2 Da constitucionalização quando da interpretação legislativa 41
2.3.3 Da constitucionalização quando da aplicação da lei 46
3 SOBRE A ATIVIDADE EMPRESÁRIA 50
3.1 Evolução da noção de empresa. Dos atos de comércio à teoria da
empresa 50
3.2 Empresa como feixe de contratos 61
3.3 O pseudo-problema da função social da empresa 63
4 SOBRE A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA EMPRESA 7 0
4.1 Noção de função social 71
4.2 Propriedade: do direito subjetivo à relação jurídica complexa 75
4.3 A função social da propriedade no Código Civil: a técnica das cláusulas
gerais 81
4.4 A função social da propriedade na Constituição: princípio consagrador de
direito fundamental a ser cumprido pelo proprietário 83
4.5 A função social da propriedade na empresa 88
4.5.1 O Estabelecimento Empresarial 90
4.5.2 A titularidade da participação societária 94
5 SOBRE A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NA EMPRESA 96
5.1 Sobre o Princípio da Função Social dos Contratos 96
5.2 A função social dos contratos na empresa 104
5.2.1 O contrato social 105
12
5.2.2 O contrato de trabalho 108
5.2.3 O contrato de consumo 111
6 CONCLUSÃO 118
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 119
13
1 INTRODUÇÃO
A pesquisa que se pretendeu desenvolver visa a, partindo de um estudo
doutrinário a respeito da constitucionalização do direito, é dizer, da irradiação dos
valores constitucionais sobre o todo ordenamento jurídico, demonstrar os efeitos
dessa projeção axiológica sobre o direito privado, mais especificamente sobre o
Direito de Empresa.
Funda-se, portanto, na ocorrência de afronta a Direitos Fundamentais
levada a cabo pelos próprios particulares em face uns dos outros, sendo que, nesse
caso, ambas as partes do conflito são titulares de Direitos e Garantias
Fundamentais.
A pretensão originária consistia em estudar, além da evolução histórica do
fenômeno da constitucionalização do Direito, sua projeção sobre o Direito de
Empresa, com vistas a aferir se seria possível afirmar a existência de uma função
social própria da atividade empresarial, distinta das outras formas de função social
positivadas no direito privado, quais sejam a função social da propriedade e a função
social do contrato.
A pesquisa se afigurava necessária em função de, na doutrina e na
jurisprudência brasileiras, haver inúmeras referências à função social da empresa,
sem se verificar, todavia, uma definição específica sobre o efetivo conteúdo dessa
função social.
Por recomendação da banca de qualificação, durante o exame homônimo,
os professores Rui Verlaine de Oliveira Moreira e João Luis Nogueira Matias
recomendaram alterar a perspectiva do trabalho, focando-se, com primazia, a função
social do contrato e a função social da propriedade. Essa orientação foi acatada,
modificando-se, inclusive, o título originário da pesquisa (“Constitucionalização do
direito privado e o conteúdo da função social da empresa”) para este que ora se
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afigura no trabalho. A essência, todavia, manteve-se a mesma, de modo que se
chegam às mesmas conclusões da pretensão original.
Com efeito, quando se estudam a função social da propriedade e a função
social do contrato, pode-se perceber a ocorrência de um núcleo teórico delimitado, o
que não ocorre relativamente à função social da empresa, cuja estrutura, apesar de
configurar cláusula geral, não tem, na maioria das vezes, preenchimento adequado
pelos estudiosos da matéria.
Para se demonstrar isso, o trabalho se desenvolve em quatro capítulos. No
primeiro deles, traçam-se as noções gerais sobre a constitucionalização do direito
privado, iniciando-se pela análise de sua evolução histórica, quando se demonstram
as doutrinas que culminaram com a concepção teórica defendida. Mais adiante,
comentam-se as teorias sobre a incidência dos direitos fundamentais nas relações
privadas, dentre elas as relações jurídico-empresariais. Por fim, estudam-se três
modos específicos de constitucionalização do direito privado, a saber: quando da
criação da norma infraconstitucional privada; quando de sua interpretação; e quando
de sua aplicação.
No capitulo seguinte, cuida-se da análise do fenômeno empresarial,
estudando as teorias que buscaram definir o âmbito de incidência das regras jus-
comerciais, desde aquela que o identificava como ato de comércio até a teoria da
empresa, não se deixando de lado as teorias mais modernas, que enxergam a
empresa como feixe de contratos. O capítulo é finalizado com a análise do pseudo-
problema da função social da empresa.
Segue o trabalho com o estudo da propriedade na empresa. É nesse
momento que se trata do direito de propriedade, com sua função social, sob os mais
diversos aspectos, seja sua configuração como cláusula geral no Código Civil, seja
sua conformação principiológica na Constituição Federal. Termina-se o tema com o
estudo da função social da propriedade dos bens empresariais, com relevância para
o estabelecimento empresarial e a titularidade da participação societária.
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O último capítulo versa sobre os contratos, sua função social, e, mais
especificamente, sobre a função social dos contratos na atividade empresária. É
dado destaque, por sua relevância, ao contrato social, instrumento de criação da
sociedade empresária, e os contratos de consumo e de trabalho, por revestirem
maior carga axiológica, exigindo maior cumprimento de sua função social.
A pesquisa focou, exclusivamente, o direito brasileiro. As menções feitas às
ordens jurídicas alienígenas servem, unicamente, para a colocação do problema e
para a compreensão do momento histórico e das influências específicas que
provocaram mudanças de paradigmas que produziram efeitos na ordem jurídica
brasileira.
A pesquisa bibliográfica foi a principal fonte de investigação, partindo-se de
obras de Direito Constitucional, de Teoria do Direito, de Hermenêutica Jurídica, da
Teoria dos Direitos Fundamentais, do Direito Contratual, do Direito das Coisas e do
Direito de Empresa. Iniciou-se com leituras gerais acerca do tema, notadamente no
que se refere aos Direitos Fundamentais e sua tutela jurisdicional, mormente quanto
à dimensão objetiva daqueles, passando posteriormente para as leituras específicas
sobre interpretação, aplicação e efetividade dos direitos fundamentais, bem como a
necessidade de sua proteção judicial.
No âmbito do Direito Privado, buscou-se direcionar a delimitação teórica do
que se pode compreender como empresa no Direito brasileiro, bem como outros
institutos, como o contrato e a propriedade.
O método adotado em relação aos dados bibliográficos foi o dialético, que
promove o confronto de aspectos contraditórios, gerando sínteses de alto teor
reflexivo, capaz de garantir criticidade à pesquisa.
16
2. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO E SEUS
REFLEXOS SOBRE A EMPRESA
A ciência jurídica desenvolvida após a Segunda Guerra Mundial procurou se
desvencilhar do pensamento positivista puro, de inspiração kelseniana, para volver o
Direito a valores, readmitindo a axiologia como componente da noção de direito,
manifestada, sobretudo, pelos valores de justiça e de legitimidade.
Seguindo essa linha de idéias, o constitucionalismo desse período fundou-
se numa compreensão de que a ordem jurídica é composta por normas dotadas de
alta carga axiológica, dentre elas aquela que prima pela dignidade da pessoa
humana, como vetor fundamental de um ordenamento jurídico.
Essa compreensão, amoldurada à idéia, também kelseniana, de
supremacia hierárquica da Constituição, fez com que não durasse muito tempo até
que teóricos começassem a defender a influência das normas constitucionais sobre
todo o ordenamento jurídico1.
O direito privado – civil e comercial – não ficou alheio a essa linha de
pensamento, de sorte que se advoga, desde o início da década de 1950, nos países
de tradição jurídica romano-germânica, a produção de efeitos dos valores
constitucionais sobre a ordem jurídica privada.
A empresa, como componente dessa ordem, também restou influenciada
pela constitucionalização do direito.
1 “Daí a obrigação – não mais livre escolha – imposta ao jurista de levar em consideração a prioridade hierárquica das normas constitucionais, sempre que se deva resolver um problema concreto. [...] a solução para cada controvérsia não pode mais ser encontrada levando em conta simplesmente o artigo de lei que parece contê-la e resolvê-la, mas, antes, à luz do inteiro ordenamento jurídico, e, e, particular, de seus princípios fundamentais, considerados como opções de base que o caracterizam.” (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civi l Constitucional . Tradução de Maria Cristina De Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 5)
17
2.1 Evolução histórica da constitucionalização do direito privado
Os direitos fundamentais, tal como lhes concebe a doutrina e a
jurisprudência constitucionais desenvolvidas na segunda metade do século XX,
passaram a compor o cerne de todos os ordenamentos jurídicos, como valores
informativos e diretivos, de sorte a figurar, no dizer de Robert Alexy2, como normas
de otimização do sistema jurídico.
Marcelo Lima Guerra3, citando Jorge Miranda, afirma que essa mudança de
concepção do ordenamento jurídico em si mesmo, através do reconhecimento da
superioridade hierárquica da Constituição4, e da existência de força normativa de
seus princípios, consistiu num verdadeiro “giro copernicano”, porquanto colocou os
valores fundamentais como vetores e fundamento da atuação do Estado, na
satisfação dos interesses coletivos, e dos indivíduos, nas suas respectivas relações
jurídicas.
O reconhecimento dessa força normativa, juntamente com a Nova
Hermenêutica Constitucional e com a expansão da jurisdição constitucional, são os
três elementos que, no entender de Luis Roberto Barroso5, viabilizaram a
constitucionalização do direito.
2 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos e Constitucionales, 1979. 3 GUERRA, Marcelo Lima. Direitos Fundamentais e a Proteção do Credor na Exe cução Civil. São Paulo: RT, 2003, p. 82. 4 No que toca à supremacia da Constituição, importante lição é dada por Marcio Augusto de Vasconcelos Diniz: “O sentido político do princípio da supremacia constitucional implica que todo o exercício do poder do Estado encontra seus limites na Constituição e deve se realizar de acordo com os parâmetros formais e materiais nela estabelecidos. Por sua vez, o sentido jurídico outorga à Constituição o caráter jurídico de norma suprema do ordenamento jurídico, diferenciando-a, formalmente, das normas provenientes da legislação ordinária, editadas em função de competências, procedimentos e conteúdos nela estabelecidos. A supremacia Constitucional, portanto, resulta do fato de que, ao transformar Direito e política em fenômenos de mútua implicação, a Constituição representa uma estrutura normativa superior a todas as demais no interior da ordem jurídica, que estrutura juridicamente o Estado por meio das funções pelas quais ele atua e estabelece solenemente os fundamentos para a realização dos direitos fundamentais.” (DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos. Constituição e Hermenêutica Constitucional. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 100) 5 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista Opinião Jurídica . Ano III, nº 6 (2005.2). Fortaleza: Faculdade Christus, 2005, pp. 211/252.
18
Mas é de se perguntar: o que vem a se entender por “constitucionalização
do direito”?
Existem três acepções principais relativas a esse fenômeno6, sendo a
primeira delas a que o entende como a existência, num determinado Estado, de uma
ordem jurídica com Constituição própria, dotada de supremacia.
A segunda consiste no entendimento de que a expressão
constitucionalização do direito tem ligação com o fato de normas de direito
tipicamente infraconstitucional passarem a fazer parte do corpo normativo contido na
Constituição.
Ambos os entendimentos contêm falhas, seja por não especificarem
fenômeno nenhum, haja vista o caráter genérico que o primeiro caso expressa; seja
por compreender a constitucionalização a partir de um prisma especificamente
positivista e restritivo, como no segundo exemplo.
A acepção que se afigura mais correta, e é a ela a que se referirá este
trabalho, é aquela que define a constitucionalização do direito como um fenômeno
de expansão da aplicabilidade das normas constitucionais, cujo conteúdo axiológico
se irradia, com força normativa, sobre todo o sistema jurídico. Os princípios
constitucionais passam a condicionar a validade e o sentido de todo o ordenamento.
Mas esse fenômeno de constitucionalização é recente na doutrina jurídica,
vez que sua origem remonta, basicamente, à segunda metade do século XX. Antes
disso, houve evolução teórica que culminou com a nova concepção do denominado
direito civil-constitucional.
Até que esse estágio fosse alcançado, três etapas de evolução teórica se
seguiram. Nesta explanação, seguir-se-á o roteiro teórico discriminado por Luis
6 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista Opinião Jurídica . Ano III, nº 6 (2005.2). Fortaleza: Faculdade Christus, 2005, p. 220.
19
Roberto Barroso7, tecendo-se, em complemento, considerações a respeito de cada
período.
a) “Mundos apartados”. Num primeiro momento, não havia qualquer
relação teórica entre Direito Privado e Direito Constitucional. Trata-se do primeiro
constitucionalismo, decorrente das revoluções burguesas, notadamente a Revolução
Francesa, quando prevaleceu o entendimento de que a Constituição de 1792 seria
apenas uma Carta Política, disciplinando as relações entre o Estado e o Cidadão,
em que o Estado abstencionista deveria permitir a livre atuação dos particulares na
realização de seus interesses.
Os poderes da Constituição sofriam limitação, na medida em que esta
representava uma convocação à atuação dos Poderes Públicos, e a efetivação
dependia da atuação do legislador. Veja-se, por oportuno, o que leciona Paulo
Bonavides:
A corrente de publicistas presos a esse entendimento reduziu consequentemente sua visão interpretativa das Declarações à identificação nelas de um mero conjunto de princípios gerais e abstratos, desprovidos de natureza jurídica, sem eficácia vinculante, de aplicabilidade duvidosa ou impossível; princípios meramente éticos, aptos quanto muito a inspirar o legislador segundo diretrizes ideológicas, mas de modo algum idôneos a obrigar os cidadãos ou órgãos estatais.8
A Constituição, portanto, não tinha força normativa nem aplicabilidade
próprias, ao passo que o Código Civil disciplinava as relações jurídicas dos
principais atores da vida civil: o proprietário e o contratante.
O Código Civil de 1804 e o Código Comercial de 1807 representavam,
efetivamente, documentos jurídicos, porquanto disciplinavam as relações entre os
particulares, sendo o Código de Napoleão compreendido como uma espécie de
“constituição do direito privado”.
7 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista Opinião Jurídica . Ano III, nº 6 (2005.2). Fortaleza: Faculdade Christus, 2005, pp. 211/252. 8 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional . 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 227.
20
b) Publicização do Direito Privado. A compreensão de direitos
fundamentais concebida pelo ideário liberal não poderia permanecer intacta diante
das mudanças que se verificaram na realidade política, econômica e social que
surgiram entre o final do século XIX e início do século XX.
A igualdade formal e a indiferença à igualdade material levadas a cabo pelo
Estado liberal entraram em colapso no momento em que a população marginalizada
iniciou um processo de insurgência, sobretudo através das organizações coletivas e
sindicais.
Em substituição ao Estado Liberal, surge o Estado Social, fundado em
ideário democrático sensível aos novos problemas do indivíduo, considerando-o não
mais como um ser isolado, dotado de igualdade meramente formal em relação aos
demais, mas, por outro lado, concebe-o como um agente imerso numa coletividade.
Essa mudança de perspectiva alterou, também, a Teoria dos Direitos
Fundamentais, de modo que, no Estado Social, prima-se pela igualdade material dos
indivíduos. Dessa alteração conceptiva adveio a segunda geração, ou dimensão,
dos direitos fundamentais – os direitos sociais – vetores a partir dos quais o Estado
assume novas responsabilidades, intervindo, ou buscando intervir, diretamente, na
coordenação das relações sociais, de modo a ajustá-las, na medida do possível, aos
valores consagrados na Constituição.
Esse sistema de valores não pode ser confundido, contudo, com a superada
idéia de mera declaração de princípios, caracterizadora do primeiro
constitucionalismo. Sobre isso, veja-se o que afirma Virgílio Afonso da Silva:
A concepção de ‘declaração de princípios’, muito difundida, especialmente na República de Weimar, quase sempre foi entendida como simples ‘declaração de intenções’ do poder constituinte em relação à atividade legislativa, uma declaração sem valor normativo e, por isso, não vinculante. Um sistema de valores pretende ser muito mais do que isso, pois é o ponto
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de partida, vinculante, para uma constitucionalização do direito e uma ampliação da própria força normativa da constituição.9
Assim é que, com base nesse sistema de valores, muitas das liberdades
públicas passam a ser encaradas não somente como direitos a uma abstenção
estatal, mas também a uma prestação positiva.
Diante dos abusos perpetrados pelo individualismo que a legislação civil
infraconstitucional permitia, fez-se necessária a atuação do Estado no sentido de
barrar esses excessos, visando a possibilitar a equiparação das partes. Do Estado
Social exigem-se medidas de planejamento econômico e social e uma intervenção
dirigente na economia, de sorte a minorar as desigualdades proporcionadas pelo
liberalismo.
Assim, o Estado Social se projeta, no Direito Privado, sobretudo através do
dirigismo contratual, que se expressa na circunstância de Estado intervir nas
relações privadas, através da edição de normas de ordem pública, destinadas à
proteção do lado mais fraco da relação jurídica10.
Dá-se, aqui, a revisão da autonomia da vontade e atribuição de relevância à
solidariedade social e à função social de institutos como a propriedade e o contrato.
É nesse momento que o ideário da função social passa a compor, diretamente, os
ordenamentos jurídicos, como regra positivada.
A revisão de institutos como propriedade e contrato é a revisão da essência
mesma da atividade empresarial, que, como se verá mais adiante, tem-nos como
pilares fundamentais da empresa.
9 SILVA, Virgílio. A Constitucionalização do Direito . São Paulo: Malheiros, 2008, p. 78. 10 “Desde o fim da Primeira Guerra Mundial – quando os interesses sociais passaram a exigir o disciplinamento da liberdade econômica em favor da coletividade, determinando, entre outras consequências, a manutenção da técnica do planejamento, intensamente utilizada durante aquele período belicoso – já se verificava, nos diversos países da Europa, uma tendência no sentido do intervencionismo estatal no domínio econômico, objetivando não apenas a simples correção do mercado, das suas falhas e arbitrariedades, mas a sua ordenação, sua humanização, com influxos diretos nos processos sociais, visando à realização de determinadas finalidades públicas e à concretização de um modelo estatal de todas as classes e não apenas de uma elite.” (SCOTT, Paulo Henrique Rocha. Direito Constitucional Econômico. Estado e Normaliz ação da Economia . Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor: 2000, pp. 54/55)
22
c) Constitucionalização do Direito Privado. Se o Estado Liberal
consagrou a idéia de liberdade, e o Estado Social primou pela igualdade material, o
Estado Democrático de Direito teve como vetor a noção de solidariedade, como
valor objetivo a ser perseguido pelo Estado e pelos particulares.
Fundados na Dignidade Humana, os direitos de solidariedade não são
concebidos como direitos de defesa do cidadão nem, por outro lado, direitos a
prestações exercíveis em face do Estado. São por outro lado, direitos que visam à
construção de uma sociedade mais justa, igualitária e democrática11. É nesse
cenário de efetivação do princípio da solidariedade, erigido como objetivo da
República brasileira, no art. 3º, inciso I, da Constituição Federal, que o direito
brasileiro adota a teoria da aplicabilidade das normas constitucionais nas relações
privadas.
Reconhece-se, neste terceiro momento, que a Constituição efetivamente
ocupa o centro do sistema jurídico, de onde passa a irradiar valores objetivos
através dos quais devem ser criadas/interpretadas/aplicadas as regras jurídicas,
dentre elas aquelas que dizem respeito ao Direito Civil e ao Direito de Empresa.
11 “O solidarismo jurídico pretende reconciliar a democracia com o socialismo. A fórmula jurídica do socialismo seria idêntica à fórmula da democracia. Esta reconciliação supõe, de um lado, o abandono do individualismo, e, de outro, o abandono de toda forma monista de poder. A democracia só pode encontrar sua verdadeira essência em suas múltiplas forças potenciais. Sua existência repousa sobre a multiplicidade de suas faces e no seu caráter pluralista. A verdadeira essência do socialismo repousa sobre uma ‘filosofia pluralista do direito e da sociedade’. Assim, do ponto de vista jurídico, a democracia seria definida como uma soberania das práticas jurídicas de solidariedade no interior de uma organização qualquer. Destarte, para o solidarismo jurídico, a democracia e o direito de solidariedade são dois aspectos de um único e mesmo fenômeno, pois seria a intensificação da experiência jurídica de solidariedade que conduziria à democracia. A democracia e o direito de solidariedade estão ligadas a um mesmo projeto: onde não há direito de solidariedade não há democracia, onde não há democracia não há direito de solidariedade. [...] O solidarismo jurídico almeja ser o discurso do Estado de Direito; não de um Estado de Direito liberal, mas de um Estado de Direito democrático, onde se trata da soberania de um direito de solidariedade engendrado pela comunidade política subjacente à organização sobreposta. A subordinação dos atos dos governantes e da administração a um controle jurídico não é mais baseada numa lógica individualista ou formalista, mas na lógica solidarista. O direito de solidariedade se sobrepõe ao individualismo em matéria de organização social e política. Trata-se de uma ruptura na história do Estado de direito. (FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, pp. 276/277)
23
Com efeito, a doutrina constitucional tem defendido a existência de uma
dupla dimensão dos direitos fundamentais12, permitindo afirmar-se que esses
direitos possuem, de um lado, uma dimensão subjetiva, relacionada diretamente às
prerrogativas reconhecidas aos indivíduos, como direitos asseguradores de
situações jurídicas subjetivas; por outra senda, os direitos fundamentais são valores
consagrados pelo ordenamento, constituindo fins a serem buscados pela sociedade
e pelo Estado, independentemente de se cogitar sua titularidade, do que se pode
dizer que revestem, também, uma dimensão objetiva.
A primeira dimensão – subjetiva – direciona-se ao indivíduo como razão de
ser dos direitos fundamentais, tendo em vista seus interesses. Logo, uma
fundamentação subjetiva desses direitos refere-se ao significado da norma
consagradora de um direito fundamental para o indivíduo no que toca aos seus
interesses, à sua vida, à sua liberdade, de sorte que os direitos fundamentais
objetivam, num primeiro momento, conferir ao titular pretensões a que sejam
realizadas ações ou omissões tendentes a assegurar os interesses que lhe são
conferidos na Constituição.
De outro lado, o Estado Democrático de Direito, como visto, instituiu uma
ordem jurídica material, em que os direitos fundamentais assumem a configuração
de normas jurídicas estruturantes de todo o sistema jurídico, fazendo surgir uma
ordem objetiva de valores.
Por ordem objetiva de valores, pretende-se afirmar que os direitos
fundamentais representam-se por regras e princípios possuidores de validez objetiva
e universal, tendo sua aplicabilidade desvinculada de qualquer experiência do
indivíduo.
Admite-se, em razão disso, um caráter objetivo dos direitos fundamentais,
que deixam de ser meras garantias de proteção para assumir a feição de pautas
principiológicas que influenciam todo o sistema jurídico. 12 Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição . 3 ed. Coimbra: Almedina, pp. 1177/1178; ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 . Coimbra: Almedina, 2001, p. 110.
24
Seguindo esse raciocínio, pode-se afirmar que até mesmo na seara privada,
em que se consideram as esferas de proteção dos interesses particulares e o
exercício da autonomia privada, os direitos fundamentais exercem seu poder
vinculante, de modo que o reconhecimento da aplicabilidade dos direitos
fundamentais nas relações privadas tem como pressuposto o alcance das
dimensões normativas desses direitos.
Pode-se afirmar, ainda, que os direitos fundamentais representam princípios
gerais do sistema jurídico, na medida em que suas normas, na grande maioria, se
estruturam como princípios, os quais expressam os pilares da ordem jurídica.
Segundo Robert Alexy13, as normas de direitos fundamentais são
importantes para o ordenamento jurídico em razão de dois atributos: (i) a
fundamentalidade formal, que resulta da primazia hierárquica dessas normas, haja
vista que ocupam a posição mais elevada na estrutura escalonada do ordenamento;
e (ii) a fundamentalidade material, que permite atribuir a essas normas a qualidade
de viabilizar as decisões sobre a estrutura normativa do Estado e da sociedade.
Já para Konrad Hesse, a concepção de um efeito geral de irradiação dos
direitos fundamentais como princípios objetivos da ordem jurídica contém um ponto
de partida essencial para o esclarecimento do problema da influência desses direitos
nas relações jurídicas privadas14.
Assenta a doutrina15 que a constitucionalização do direito é um processo
que vem se consolidando a partir da Segunda Guerra Mundial, quando, com a
criação do Tribunal Constitucional da Alemanha, em 1949, e diante do
reconhecimento da carga valorativa da Constituição, evidenciou-se o “giro
copernicano” a que se referiu Jorge Miranda, citado por Marcelo Lima Guerra.
13 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos e Constitucionales, 1979, pp. 503-506. 14 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Fe deral da Alemanha . Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998, p. 284. 15 CANARIS, Klaus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado . Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2006. BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito – O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista Opinião Jurídica . Ano III, nº 6. Fortaleza: Faculdade Christus, 2005, pp. 221/222
25
Com efeito, foi a partir daquele momento histórico que, para os países de
tradição romano-germânica, surgiu um novo constitucionalismo.
A idéia que fundamenta toda essa nova ordem jurídica parte do
pressuposto, inafastável, de que a Dignidade da Pessoa Humana constitui o
fundamento de todos os demais princípios constitucionais. Representa, no dizer de
Glauco Barreira Magalhães Filho, o fundamento material da unidade axiológica da
Constituição, harmonizando os demais direitos fundamentais. Vale a pena
transcrever suas palavras:
A pessoa humana é o valor básico da Constituição, o Uno do qual provém os direitos fundamentais não por emanação metafísica, mas por desdobramento histórico, ou seja, pela conquista direta do homem. Só podemos compreender os direitos fundamentais mediante o retorno à idéia de dignidade da pessoa humana, pela regressão à origem. Havendo colisão de direitos fundamentais em um caso concreto, deve-se referi-los à noção de dignidade da pessoa humana, pois nela todos os princípios encontrarão a sua harmonização prática, descobrindo-se uma solução que considera a existência de todos os direitos fundamentais, ao mesmo tempo que se procede a uma hierarquização entre eles, em consonância com a compreensão social do que é mais relevante para se alcançar o fim coletivo e a dignificação da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana (Uno) serve de pré-compreensão para os direitos fundamentais (emanações), e a compreensão dos últimos, no caso concreto, através do retorno à idéia original, configurará um círculo hermenêutico.16
Expressa-se, assim, uma repersonificação e, concomitantemente, uma
despatrimonialização e uma funcionalização do Direito Civil, na medida em que a
proclamação da Dignidade da Pessoa Humana, como vetor do sistema
constitucional, rende primazia ao sujeito de direitos, visando a afastar o
individualismo patrimonialista despersonalizado que dominara, por séculos, a
doutrina privatista.
Luis Edson Fachim, tecendo comentários sobre essa circunstância, assim
se pronunciou:
16 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e a Unidade Axiológica da Constituiçã o. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 229.
26
O caminho a percorrer é retomada e decolagem, uma viagem pedagógica pelo saber jurídico informado pelas premissas críticas e pelos novos perfis do Direito Civil. Conjugando a virada copernicana que recola papéis e funções do Código e da Constituição, reafirma a primazia da pessoa concreta, tomada em suas necessidades e aspirações, sobre a dimensão patrimonial, e sustenta, por meio da repersonalização, a inegável oportunidade do debate permanente entre os espaços público e privado.
Ao assim proceder, estriba-se na funcionalização das titularidades para repensar paradigmas contemporâneos, e para introduzir questões de fundo que, associando conteúdo e método no arco histórico, atravessam o evento unitário da codificação.17
Nessa linha de idéias, um processo específico constitui o marco
jurisprudencial do reconhecimento da constitucionalização do direito18. Trata-se de
um julgado da Corte Constitucional alemã, datado de 15 de janeiro de 1958,
conhecido como caso Lüth19.
Foi nesse julgado que a Corte Constitucional utilizou-se de expressão que
se celebrizou, quando se afirmou que a Lei Fundamental “erigiu na seção referente
aos direitos fundamentais uma ordem objetiva de valores (...), que deve valer
17 FACHIM, Luis Edson. Transformações do direito civil brasileiro contemporâneo. In RAMOS, Carmem Lúcia Silveira et al (org). Diálogos sobre Direito Civil – Construindo a Racion alidade Contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 43 18 Necessário ressalvar, todavia, o entendimento de Virgílio Afonso da Silva (SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 19), para quem o primeiro julgado representativo da constitucionalização do direito foi decidido pela Suprema Corte estadunidense em 1948 (caso Shelley v. Kramer). Acatamos, porém, a lição de Luis Roberto Barroso, que afasta, do estudo da constitucionalização do direito, os julgados daquela Corte, sob o fundamento de que é próprio do constitucionalismo norte-americano, desde sua criação, a interpretação de todo o sistema jurídico em face da constituição (BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito [O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil]. Revista Opinião Jurídica. Ano III, nº 6 [2005.2]. Fortaleza: Faculdade Christus, 2005, pp. 221/222) 19 Erich Lüth iniciou, em 1950, uma campanha, junto aos proprietários e freqüentadores de salas de cinema, visando a que um filme fosse boicotado, sob o argumento de que o diretor havia rodado um filme anti-semita quando do regime do Nacional Socialismo. Iniciado o processo, foi condenado, nas instâncias ordinárias, a não repetir o ato de estímulo ao boicote, com fundamento no § 856 do BGB, na medida em que se entendeu que a sua conduta violou os bons costumes, caracterizando, portanto, ato ilícito. Em resposta ao recurso constitucional interposto pelo Sr. Lüth, a Corte Constitucional deu-lhe provimento, fundamentando-se no sentido de que a decisão do tribunal cível, quando da aplicação do § 856 do BGB, teria violado o direito fundamental à liberdade de opinião do recorrente, que é assegurado pelo art. 5º, inciso I, da Lei Fundamental de Bonn.
27
enquanto decisão fundamental de âmbito constitucional para todas as áreas do
direito”20.
Essa afirmação permitiu concluir que o sistema de valores constitucionais
“obviamente também influi no Direito Civil [e] nenhuma prescrição juscivilista pode
estar em contradição com ele, devendo cada qual ser interpretada à luz do seu
espírito”21.
A partir desse julgado, afirmou-se peremptoriamente, o efeito de irradiação
dos Direitos Fundamentais sobre o Direito Privado, através do reconhecimento da
dimensão objetiva desses direitos.
Especificamente no Brasil, a noção de constitucionalização do direito, antes
presente apenas em sede doutrinária, ganhou reforço com o advento da
Constituição Federal de 1988, uma vez que traz, em seu bojo, tratamento jurídico de
diversos institutos de direito infraconstitucional, como, por exemplo, usucapião,
relações trabalhistas, etc.
A inserção dessas matérias no bojo da Constituição, apesar de não
caracterizar, tecnicamente, como se viu, constitucionalização do direito, é de enorme
serventia, na medida em que, sendo a Constituição o fundamento de validade último
de todo o ordenamento jurídico, já traz em si a explicitação dos valores que guiarão
a atividade do intérprete e do aplicador da norma infraconstitucional.
Além disso, os valores objetivos inseridos na Constituição é que, irradiando-
se sobre o direito privado, produzem efeitos hermenêuticos que promovem severa
mudança de perspectiva na compreensão de institutos jurídicos seculares, na
medida em que, buscando à efetivação da noção da solidariedade nas relações
particulares, a constitucionalização, no direito privado, manifesta-se, sobremodo,
20 Apud CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. Revista Latino-americana de Estudos Constitucionais . nº 3 (jan/jul de 2004). Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 377. 21 Apud CANARIS, Claus-Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. Revista Latino-americana de Estudos Constitucionais . nº 3 (jan/jul de 2004). Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 377.
28
através de limitações aos dois institutos mais caros à doutrina jusprivatística:
autonomia da vontade, relativamente à liberdade de contratar; e uso da propriedade
privada, mediante subordinação a valores constitucionais e respeito aos direitos
fundamentais.
Propriedade e contrato, como se verá adiante, são dois institutos jurídicos
umbilicalmente ligados à atividade empresária, de modo que a revisão desses
institutos não deixa de implicar, diretamente, revisão da própria atividade
empresária, em suas mais variadas formas.
2.2 Teorias sobre a aplicabilidade das normas constitucionais ao direito
privado
Diante do que foi exposto, resta ainda um questionamento: como, e em que
medida, os valores constitucionais interferem no direito privado?
A discussão a respeito desse assunto tem dividido constitucionalistas e
privatistas na defesa, basicamente, de duas teorias, sendo a primeira a que defende
a aplicação indireta dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, e a
segunda aquela que, indo além, sustenta a possibilidade de aplicação direta, ou
imediata, dos princípios da Constituição em situações eminentemente particulares.
2.2.1 Teoria da aplicabilidade indireta ou mediata
A teoria da aplicabilidade mediata ou indireta dos direitos fundamentais nas
relações entre particulares consiste na aceitação da influência dos direitos
fundamentais nessas relações jurídicas através da mediação do Estado. No dizer de
Daniel Sarmento: “trata-se de construção intermediária entre a que simplesmente
29
nega a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, e aquela que sustenta
a incidência direta destes direitos na esfera privada”.22
Defende-se, nessa teoria, que a proteção constitucional da autonomia
privada pressupõe a possibilidade de os indivíduos renunciarem o exercício de
direitos fundamentais no âmbito das relações privadas, o que não seria cogitável nas
relações jurídicas entre cidadão e Estado. Em razão disso, determinadas condutas,
em princípio divergentes da proteção dos direitos fundamentais, que seriam
inválidas se levadas a cabo pelo Estado, podem ser lícitas em decorrência do
exercício da liberdade de contratar.
Afirma-se,a ainda, que a influência do Direito Constitucional sobre o Direito
Privado deve ser indireta, de modo que há a necessidade de se construírem certos
elos entre o Código Civil e a Constituição, a fim de permitir a incidência, sobre o
primeiro, dos valores constitucionais. Essa ligação é realizada pelas cláusulas
gerais, enxergadas como pontos de irrupção dos valores da Constituição no Direito
Privado, e que devem ser interpretados e aplicados pelos juízes sempre em
conformidade com a ordem de valores subjacente aos direitos fundamentais.
A teoria da eficácia indireta ou mediata, embora formulada e defendida sob
distintos aspectos, manteve um núcleo de sentido estável, que pode ser resumido da
seguinte forma:23
(i) as normas de direitos fundamentais têm aplicabilidade nas relações entre
particulares através das normas e das técnicas interpretativas próprias de
direito privado (direito civil, direito do trabalho, direito comercial), isto é, no
caso concreto, a interpretação-aplicação de normas de direitos
fundamentais não se processa de forma direta, sendo realizada através de
mediação de outras normas existentes no ordenamento infraconstitucional;
22 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas . 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 197. 23 A exposição, aqui, tem como suporte textos de autores que se filiam à teoria da eficácia mediata reunidos na obra de STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamenta is . São Paulo: Malheiros, 2004, pp.136-138.
30
(ii) a eficácia de direitos fundamentais nas relações entre particulares está
condicionada à mediação concretizadora do legislador de direito privado, em
primeiro plano, e do juiz e dos tribunais, em segundo plano;
(iii) ao legislador cabe o desenvolvimento dos direitos fundamentais por
meio da criação de regulamentações normativas específicas que delimitem
o conteúdo, as condições de exercício e o alcance desses direitos nas
relações entre particulares;
(iv) ao juiz e aos tribunais, ante o caso concreto e na ausência de
desenvolvimento legislativo específico, compete dar eficácia às normas de
direitos fundamentais por meio da interpretação e aplicação dos textos de
normas de direito privado (interpretação conforme aos direitos
fundamentais), sobretudo daqueles textos que contém cláusulas gerais
(ordem pública, bons costumes, boa-fé, moral, abuso de direito, finalidade
social do direito), isto é, devem fazer uso das cláusulas gerais,
interpretando-as e aplicando-as em conformidade com os valores objetivos
da comunidade que servem de fundamento às normas de direitos
fundamentais ou com os valores que defluem dessas normas.
As cláusulas gerais – por terem a função de oportunizar e legitimar a
introdução judicial de juízos valorativos, jurídico-positivos e metajurídicos, limitativos
do princípio da autonomia privada e do exercício de direitos ou interesses subjetivos
legais – serviriam como cláusulas de abertura para a irradiação dos direitos
fundamentais no direito privado.
Daniel Sarmento24 sustenta que os argumentos levantados pelos adeptos
da eficácia indireta dos direitos fundamentais nas relações privadas são atenuantes
daqueles defendidos pelos que negam qualquer tipo de incidência destes direitos
sobre os particulares. A diferença essencial consiste no reconhecimento, pelos
primeiros, de que os direitos fundamentais exprimem uma ordem de valores que se
24 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas . 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 200.
31
irradia por todos os campos do ordenamento, inclusive sobre o Direito Privado, cujas
normas têm de ser interpretadas ao seu lume.
Desta forma, para conciliar direitos fundamentais e direito privado sem que
haja um domínio de um pelo outro, a solução proposta é a influência dos direitos
fundamentais nas relações privadas por intermédio do material normativo do próprio
direito privado. Essa é a base da teoria da eficácia indireta dos direitos fundamentais
nas relações entre particulares. Portanto, pode-se concluir que a teoria da eficácia
indireta ou mediata apresenta-se correta sob os seguintes aspectos:
(i) Considera e preserva a autonomia privada como princípio fundamental do
direito privado e como princípio que deflui do direito geral de liberdade;
(ii) Assegura a identidade, autonomia e função do direito privado;
(iii) Responde melhor ao postulado da certeza jurídica, porque as normas de
direito privado apresentam um grau maior de especificidade e de
detalhamento do que o das normas de direitos fundamentais;
(iv) Evita a “panconstitucionalização” do ordenamento jurídico, fenômeno
que não seria proveitoso para o direito privado nem para o direito
constitucional, porque implicaria a trivialização da Constituição e dos direitos
fundamentais, converteria, em grande escala, casos jurídico-privados em
casos jurídico-constitucionais e, por conseqüência, sobrecarregaria a
jurisdição constitucional.
Essa conciliação entre direitos fundamentais e direito privado, por meio da
produção indireta de efeitos dos primeiros no segundo, pressupõe a ligação de uma
concepção de direitos fundamentais como um sistema de valores com a existência
de portas de entrada desses valores no próprio direito privado.
O principal meio de admissão dos direitos fundamentais, como ordem
objetiva de valores, no sistema jurídico privado, em conformidade com a teoria da
32
aplicabilidade indireta desses direitos nas relações entre particulares, são as
chamadas cláusulas gerais.
Cláusulas gerais são textos de construção vaga, estruturados dessa forma
especificamente para conferir ao intérprete a possibilidade de preenchimento
quando de sua aplicação no caso concreto, na medida em que, sendo conceitos
abertos, seu conteúdo será definido por uma valoração do aplicador da norma.25
Deve-se, ainda, ressaltar que essa valoração não se limita a concepções
morais ou extra-jurídicas do aplicador, devendo ser fundamentada no sistema de
valores consagrados pela constituição. Conforme ensina Virgílio Afonso da Silva:
“(...) essa valoração não pode ser, contudo, ao contrário do que muitos ainda
pensam, uma valoração baseada em valores morais extras ou supra legais. Essa
valoração deve ser baseada, e aqui se revela o elo de ligação, no sistema de valores
consagrados pela Constituição.”26
Rejeitando a aplicação direta dos direitos fundamentais às relações
privadas, a doutrina objetiva, primordialmente, manter a autonomia do direito
privado, protegendo-o contra uma espécie de pan-constitucionalização, em que se
erigisse, como regra geral, a aplicação de dispositivos constitucionais de forma
imediata, deixando de lado os institutos de direito privado, de modo que sua teoria
exige a aplicação específica por intermédio das normas do próprio direito privado,
especialmente das cláusulas gerais.
25 “Exemplos de cláusulas gerais, no caso brasileiro, seriam alguns dispositivos do Código Civil, como o art. 187, que dispõe que ‘comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo excede manifestamente ao limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé ou pelos bons costumes’; o art. 122, que dispõe como lícitas as condições que não sejam ‘contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes’; o art. 1.638, III, que dispõe que perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: ‘(...) praticar atos contrários à moral e aos bons costumes’; o art. 113, que dispõe que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé [...]” (SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito . São Paulo: Malheiros, 2008, p. 79.) 26 SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito . São Paulo: Malheiros, 2008, pp. 78/79. (destaques no original)
33
2.2.2 Teoria da aplicabilidade direta ou imediata
Quando se fala em teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais nas
relações entre particulares, pretende-se afirmar que, da mesma forma como são
aplicados nas relações entre o Estado e os cidadãos, não é necessária nenhuma
ação intermediária infraconstitucional para que sejam também aplicáveis nas
relações entre particulares.
A teoria da eficácia imediata – também denominada teoria da eficácia direta
– foi defendida inicialmente na Alemanha por Nipperdey, defendendo-se que,
embora alguns direitos fundamentais previstos na Constituição alemã vinculem
apenas o Estado, outros, pela sua natureza, podem ser invocados diretamente nas
relações privadas, independentemente de qualquer mediação por parte do
legislador, revestindo-se de oponibilidade erga omnes.
A teoria se fundamenta na constatação de que os perigos que espreitam os
direitos fundamentais no mundo contemporâneo não provêm apenas do Estado,
mas também dos poderes sociais e de terceiros em geral. A opção constitucional
pelo Estado Social importaria no reconhecimento desta realidade, tendo como
conseqüência a extensão dos direitos fundamentais às relações entre particulares.27
Nipperdey também parte da noção de Constituição como ordem objetiva de
valores, que deve fundamentar toda a ordem jurídica, inclusive a privada, porém não
concorda que a influência dos direitos fundamentais no Direito privado se dê por
meio de pontos de infiltração como as cláusulas gerais. Em verdade, alguns direitos
fundamentais (não todos) devem ser diretamente aplicados nas relações privadas,
valendo como direitos subjetivos contra entidades privadas detentoras de poder
social mesmo entre os cidadãos, estes direitos poderiam ser aplicados diretamente,
servindo de base para a invalidação de negócios jurídicos.
27 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas . 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 205.
34
Com efeito, segundo Nipperdey, alguns direitos fundamentais só vinculam
os poderes públicos, como o direito de asilo, a liberdade de reunião, a inviolabilidade
de domicílio. Porém, existem outros direitos fundamentais que garantem ao
indivíduo uma esfera de liberdade constitucionalmente protegida contra entes
privados, fluindo destes direitos fundamentais verdadeiros direitos privados
subjetivos do indivíduo.
Reinhold Zippelius também defende a eficácia direta dos direitos
fundamentais, ao afirmar que quando tais direitos não forem suficientemente
protegidos pelo legislador na esfera privada, as normas constitucionais que os
consagram produzirão “efeito direto de obrigatoriedade nas relações entre
cidadãos”.28
Diferentemente da teoria da eficácia indireta ou mediata, a teoria da eficácia
direta não logrou ampla aceitação da doutrina e jurisprudência de sua pátria de
origem, tendo, não obstante, conquistado adesão da comunidade jurídica de outros
países, dentre os quais se destacam: Portugal, Espanha, Itália, Argentina e Brasil.29
Nipperdey, como já afirmado, foi o autor que pioneiramente defendeu a
aplicabilidade direta dos direitos fundamentais nas relações entre particulares.
Segundo ele, os direitos fundamentais têm efeitos absolutos e nesse sentido, não
carecem de mediação legislativa para serem aplicados a essas relações.
Virgílio Afonso da Silva30 ressalva que quando Nipperdey fala em efeitos
absolutos, não faz ele menção a uma eventual concepção dos direitos fundamentais
como direitos absolutos. Com a expressão “direitos absolutos”, não se deve
compreender que esses direitos valham por si, impositivamente, mas, por outro lado,
Nipperdey afirma que eles têm aplicação direta sobre os casos concretos,
independentemente de mediação legislativa.
28 ZIPPELLIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Tradução de Karin Praefke-Aires Coutinho. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulberkian, 1997, p. 440. 29SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas . 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp. 204/216. 30 SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito . São Paulo: Malheiros, 2008, p.88.
35
Ao sustentar essa aplicabilidade direta, Nipperdey tem que romper com a
tese majoritária, vista acima, que difundiu o chamado efeito irradiador dos direitos
fundamentais. Segundo essa concepção, que é a base da teoria da eficácia indireta,
já analisada, os direitos fundamentais irradiam seus efeitos por meio de mediação
legislativa e por meio da conformação da interpretação das chamadas cláusulas
gerais do direito infraconstitucional.
Essa é uma diferença fundamental, já que, mesmo sem o material
normativo de direito privado, os direitos fundamentais confeririam, diretamente,
direitos subjetivos aos particulares em suas relações entre si.
Nipperdey defende que os valores consagrados pela constituição,
prescindem das cláusulas gerais para se irradiarem no direito privado31, de modo
que, segundo seu entendimento, defendido também por outros tantos seguidores da
teoria da aplicabilidade direta, as normas constitucionais não necessitam de pontos
de infiltração. Elas se aplicam imediatamente a todas as relações privadas, “o que
significa, em termos concretos, que os indivíduos podem recorrer aos direitos
fundamentais para fazê-los valer contra atos de outros indivíduos ou pessoas
jurídicas”.32
Um esclarecimento se faz, ainda, necessário: a teoria de aplicabilidade
direta dos direitos fundamentais nas relações entre particulares não implica que todo
direito fundamental necessariamente seja aplicável a tais relações. Essa
aplicabilidade deve ser individualizada e dependerá das características de cada
norma de direito fundamental. Nesse sentido, o que a teoria propõe é mais restrito
do que se costuma imaginar. Apenas se sustenta que, em sendo determinado direito
31 Em suas próprias palavras: “Na verdade, ordenamento jurídico é uma unidade; todo o direito somente é válido com base na Constituição e dentro dos limites por ela impostos. Também o direito civil, sobretudo o código civil, somente é válido desde que não contrarie a Constituição. Para a validade dos direitos fundamentais como normas objetivas aplicáveis ao direito privado não é necessária nenhuma ‘mediação’, nenhum ‘ponto de rompimento’, que seriam, na opinião de Dürig, as cláusulas gerais. O efeito jurídico dos direitos fundamentais no direito privado é na verdade direto e normativo e modifica as normas de direito privado existentes.” (Apud SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito . São Paulo: Malheiros, 2008, p. 90) 32 SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito . São Paulo: Malheiros, 2008, p. 90.
36
fundamental aplicável a uma determinada relação jurídica privada, a incidência será
direta, dispensando-se a intermediação das cláusulas gerais.
2.2.3 Uma proposta de conciliação
As teorias acima descritas não se excluem. Com efeito, ambas levam com
conta a circunstância de que, em uma relação entre particulares, ambas as partes
são titulares de direitos fundamentais. Além disso, cada uma admite gradações em
sua eficácia, de modo que a medida da eficácia dos direitos fundamentais na
relações privadas é, em última instância, uma questão de ponderação.
É falsa a suposição segundo a qual somente uma das construções é a
correta. Na verdade, cada uma delas apresenta proposições corretas sobre o
complicado problema da eficácia de direitos fundamentais nas relações entre
particulares. Por isso, é necessário um modelo que integre os pontos corretos de
cada teoria em uma solução completa e adequada.
O modelo ora proposto é procedimental. Diante de um caso concreto, o
aplicador da norma deve buscar uma solução diretamente na Constituição. Através
da técnica do sopesamento entre os princípios eventualmente em conflito, extrair-se-
á, por aplicação do princípio da proporcionalidade, aquele que prevaleça no caso
concreto.
Uma vez ultrapassado este momento, cumpre ao aplicador buscar, no
ordenamento infraconstitucional privado, a regra correspondente ao princípio
constitucional escolhido, aplicando-a de modo a produzir o máximo de eficácia do
princípio.
Há, nesse primeiro momento, sem dúvidas, uma primazia da teoria da
aplicabilidade indireta, ou mediata, dos direitos fundamentais nas relações privadas.
37
Duas situações diversas também podem se configurar: (i) a inexistência
de norma infraconstitucional aplicável no caso concreto, de modo a satisfazer o
preceito principiológico escolhido; e (ii) a desconformidade entre a regra
infraconstitucional e o princípio.
Nesses casos, a solução privilegia a teoria da aplicabilidade direta, ou
imediata. Com efeito, para a primeira situação, admite-se a aplicação direta do
princípio para a resolução da lide, em razão de configurar a única norma jurídica
aplicável ao caso. Na segunda hipótese, a desconformidade ensejará a declaração
incidental de inconstitucionalidade da norma infraconstitucional de modo que se
requererá a aplicação do princípio constitucional diretamente33.
O modelo procedimental sugerido une ambas as teorias, na medida em
que deixa como topos interpretativo o arcabouço normativo da Constituição, isto é,
as normas de direitos fundamentais, e, por outro lado, mantém a plena aplicabilidade
e autonomia do direito privado para, diante de um conflito, fornecer regras para a
solução, desde que essas regras sejam conformes à Constituição34.
33 Em termos gerais, semelhante parece ser o entendimento de Ingo Sarlet, quando afirma: “Com efeito, consoante já demonstrado, em boa parte dos casos a existência de uma prévia opção legislativa no que diz com a composição de conflitos entre particulares (e seus respectivos direitos fundamentais como direitos subjetivos) é a solução constitucionalmente adequada, de tal sorte que não haverá o judiciário de interferir, pena de – neste caso – extrapolar suas competências jurisdicionais. Em outras hipóteses, contudo, a própria lei estará violando direitos fundamentais e/ou princípios constitucionais, cabendo aos órgãos jurisdicionais fazer valer o seu poder-dever de correção, ou mesmo, na ausência ou insuficiência da lei, aplicar diretamente as normas constitucionais, delas extraindo mesmo sem lei os seus efeitos jurídicos e outorgando-lhe máxima efetividade.” (SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais, mínimo existencial e direito privado. In TIMM, Luciano Benetti; MACHADO, Rafael Bicca (coord.). Função Social do Direito . São Paulo: Quartier Latin: 2009, p. 93) 34 “Daí a obrigação – não mais livre escolha – imposta aos juristas de levar em consideração a prioridade hierárquica das normas constitucionais, sempre que se deva resolver um problema concreto. [...] A solução para cada controvérsia não pode mais ser encontrada levando em conta simplesmente o artigo de lei que parece contê-la e resolvê-la, mas, antes, à luz do inteiro ordenamento jurídico, e, e, particular, de seus princípios fundamentais, considerados como opção de base que o caracterizam. (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civi l Constitucional . Tradução de Maria Cristina De Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 5)
38
2.3 Modos de constitucionalização do direito privado
Nada obstante o que se expôs a respeito da constitucionalização do direito
privado, bem como a forma de incidência das normas de direitos fundamentais sobre
as relações privadas, podem-se distinguir, didaticamente, três momentos em que o
próprio ordenamento infraconstitucional pode ser constitucionalizado, isto é, pode
sofrer a incidência dos valores objetivos traçados na Constituição.
2.3.1 Da constitucionalização quando da criação/atualização legislativa
A própria Constituição já traz, em seu bojo, normas que, privilegiando os
princípios constitucionais, vão de encontro a outras regras infraconstitucionais, de
sorte que, no confronto entre as duas, a norma inferior perde seu fundamento de
validade, conforme já explicitado no modelo de compatibilidade acima.
Veja-se, por exemplo, o que ocorreu com o pátrio poder quando da
promulgação da Constituição de 1988. Com o fim da supremacia do marido no
casamento, sucedeu que o pátrio poder deu lugar ao poder familiar, isto com
fundamento na isonomia que há, entre marido e mulher, na administração dos
interesses da família.
Da mesma forma, podem-se citar as alterações diretamente decorrentes da
afirmação da plena igualdade entre os filhos, que vedou qualquer forma de
discriminação àqueles que não sejam concebidos na relação conjugal.
O legislador, inserido nessa nova realidade de primazia da Constituição
sobre todo o sistema jurídico, fica condicionado, na elaboração normativa de todo o
direito, inclusive do direito privado, à observância dos princípios garantidores de
direitos fundamentais, como, por exemplo, dos princípios de igualdade, quando for
disciplinar matéria de conteúdo contratual e de direito de família; e da solidariedade
e da socialidade, na elaboração de normas que digam respeito à propriedade, ao
contrato e à empresa.
39
Virgílio Afonso da Silva, lecionando sobre o tema, assim se manifestou:
A mais efetiva, e, ao menos em tese, a menos problemática forma de constitucionalização do direito é realizada por meio de reformas, pontuais ou globais, na legislação infraconstitucional. É parte da tarefa legislativa adaptar a legislação ordinária às prescrições constitucionais de caráter dirigente, realizá-la por meio da legislação.35
No mesmo sentido expressa-se Gustavo Tepedino, quando afirma: “Não há
dúvidas que as normas constitucionais incidem sobre o legislador ordinário, exigindo
produção legislativa compatível com o programa constitucional, e se constituindo em
limite para a reserva legal.”36
A elaboração normativa se expressa, num primeiro momento, quando da
criação de regramento novo pelo legislador. Nesse sentido, as normas que surgem
devem ter o condão de explicitar os valores constitucionais que são afetos ao tema
legislado. Assim, a criação legislativa tem o dever de render eficácia à Constituição,
através da disponibilização de normas que atendam aos seus princípios
norteadores.
Nesse sentido, cita-se, como exemplo, o advento do Código de Defesa do
Consumidor, visando a render maior eficácia, nas relações jurídicas de direito
privado, aos princípios constitucionais fundamentais que tratam da proteção e
defesa do consumidor, dentre eles o art. 5º, inciso XXXII37, e o art. 170, inciso V38,
da Constituição de 1988, umbilicalmente ligados à atividade empresária.
Mas o legislador tem o dever, também, de aperfeiçoar a legislação que já se
encontra em vigor, de modo que as normas infraconstitucionais sejam otimizadas no
sentido de possibilitar uma maior aplicação dos valores constitucionais.
35 SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito. São Paulo: Malheiros, 2008, pp. 39/40. 36 TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Relações de Direito Civil na Experiência Brasileira. Separata de Stvdia Jvridica, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra , nº 48, pp. 330. 37 “XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;” 38 “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) V - defesa do consumidor;”
40
Sobre esse segundo momento de atuação do legislador, pode-se citar, por
exemplo, o advento do próprio Código Civil, que traz, em seu bojo, regras que
consagram princípios constitucionais, como a função social da propriedade e do
contrato, a instituição do poder familiar em substituição ao pátrio poder, dentre
outros.
Impende ressaltar, por fim, que esse mecanismo de otimização da
legislação infraconstitucional tem se verificado, na seara civil, também no que diz
respeito às leis esparsas. Veja-se, por exemplo, a Lei Federal nº 10.931/04 que,
alterando dispositivos do Decreto-Lei nº 911/69, pôs fim à situação anti-isonômica
que se criara em desfavor do devedor fiduciário.
Pela antiga disciplina da matéria da ação de busca a apreensão em
alienação fiduciária, o devedor fiduciário apenas poderia requerer a purga da mora
caso já houvesse adimplido 40% do débito, hipótese que gerava desigualdades em
face dos demais devedores que não se encaixassem nessa situação. O legislador
ordinário, assim, visando a por fim a essa mesma desigualdade, editou a Lei
10.931/04, que, reconhecendo a inconstitucionalidade que então havia, expurgou a
exigência de adimplemento mínimo para que se concedesse a faculdade de pleitear
a purga da mora.
O legislador, portanto, exerce papel fundamental na efetivação dessa ordem
objetiva de valores contida na Constituição, cabendo-lhe o papel revisor da
legislação recepcionada pela ordem constitucional, bem como o dever de
potencializar, ao máximo, na criação de novas leis, os princípios constitucionais
relativos à matéria a ser legislada.
2.3.2 Da constitucionalização quando da interpretação legislativa
Em decorrência da afirmação de que a Constituição passa a ocupar o centro
do ordenamento, impera a necessidade de se reconhecer que todos os atores da
41
atividade jurídica estão sujeitos à observância dos princípios constitucionais. Dessa
realidade não pode fugir o intérprete da norma, uma vez que a interpretação de toda
e qualquer norma jurídica está condicionada à observância dos princípios
constitucionais.
Essa tese também confirma o modelo de composição das teorias de
aplicabilidade direta e indireta das normas de direitos fundamentais, porquanto
impõe ao intérprete o dever de buscar diretamente na constituição a norma inicial
para a resolução do caso concreto. Veja-se, nesse sentido, a lição de Luis Roberto
Barroso:
O ponto de partida do intérprete há de ser sempre os princípios constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui. A atividade de interpretação da Constituição deve começar pela identificação do princípio maior que rege o tema a ser apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie.
Aos princípios cabe (i) embasar as decisões políticas fundamentais, (ii) dar unidade ao sistema normativo e (iii) pautar a interpretação e aplicação de todas as normas jurídicas vigentes. Os princípios irradiam-se pelo sistema normativo, repercutindo sobre as demais normas constitucionais e infraconstitucionais.39
Na linha do que foi exposto, é de se ter que, quanto à aplicação da norma
jurídica, não há mais lugar para o silogismo puro e simples. A estrutura
principiológica da Constituição, proclamando valores, confere ao intérprete maior
grau de liberdade. Mas há, em contrapartida, a criação de deveres direcionados ao
si, uma vez que se exige um comprometimento deste com a própria essência da
Constituição. Veja-se, a respeito, o que afirma Marcio Augusto de Vasconcelos
Diniz:
Esse caráter aberto e fragmentário, ao mesmo tempo em que dá ao intérprete um maior grau de mobilidade na sua concretização, acarreta maior responsabilidade, porque não se pode prescindir da normatividade
39 BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional . Rio de Janeiro: Renovar, 2003, t. 2, p. 149.
42
constitucional, isto é, não se pode admitir uma qualquer atribuição de sentido em detrimento da manifestação ontológica da Constituição enquanto lei fundamental do Estado e da sociedade. A questão, portanto, não reside tanto em discutir a natureza da Constituição – pois trata-se de algo que se dá como condição de possibilidade de sua interpretação –, mas de verificar o grau, a intensidade de vinculação que ela objetivamente suscita no intérprete e na liberdade de concretização que ele possui diante de suas normas.40
Esse entendimento expressa, unicamente, a visão mais recente sobre a
matéria. Predominou, por muito tempo, o entendimento de que os princípios
norteadores da ordem jurídica seriam os “princípios gerais de direito”, a que se
refere a Lei de Introdução ao Código Civil. Essa noção de princípio remete o jurista
para a idéia de brocardo, ou seja, o princípio nada mais seria do que a fonte
histórica do instituto, na forma como foi idealizada e aplicada em sua origem.
Por essa razão, como aponta Gustavo Kohl Muller Neves41, foram os
princípios gerais de direito, quando da época das codificações, relegados a segundo
plano, porquanto remetiam ao direito antigo, que os ideais revolucionários
afastavam, como condição para o estabelecimento de uma nova ordem jurídica.
Ressalta o autor, em complemento, que a “escola da exegese é, antes de tudo, uma
estrutura de controle daquilo que deve ou não ser admitido em uma nova ordem”42, o
que teria afastado a predominância dos princípios.
O culto à lei, somado ao desprestígio dos princípios, agravado quando da
supremacia do positivismo na Europa, fez com que não mais se questionassem as
instâncias de valor43 que deveriam ser atributos da norma. Assim, não se cogitava
sobre a justiça ou a legitimidade da regra, bastando que ela fosse elaborada em
conformidade com o processo legislativo preceituado na Constituição.
40 DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos. Constituição e Hermenêutica Constitucional. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 241. 41 NEVES, Gustavo Kohl Muller. Os princípios entre a teoria geral do direito e o direito civil constitucional. In RAMOS, Carmem Lúcia Silveira et al (org). Diálogos sobre Direito Civil – Construindo a Racionalidade Contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 04. 42 NEVES, Gustavo Kohl Muller. Os princípios entre a teoria geral do direito e o direito civil constitucional. In RAMOS, Carmem Lúcia Silveira et al (org). Diálogos sobre Direito Civil – Construindo a Racionalidade Contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 04. 43 Sobre as instâncias de validade e de valor da norma jurídica, cf. VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
43
Porém, os incidentes da Segunda Guerra Mundial criaram uma necessidade
metodológica de se construir uma teoria do direito aliada a valores, somando, às
instâncias de validade da norma – decorrentes do processo legislativo – as
instâncias de valor.
Foi com esse ânimo que Gustav Radbruch fez publicar uma circular, que
distribuiu aos alunos da Faculdade de Direito de Heidelberg, intitulada “Cinco
Minutos de Filosofia do Direito”, em que afirmava: “Não, não se deve dizer-se: tudo o
que for útil ao povo é direito; mas, ao invés: só o que for direito é útil e proveitoso
para o povo”44.
Fez-se premente, assim, que o Direito, notadamente o Direito Civil,
passasse a ser interpretado em conformidade com os princípios constitucionais, o
que permite afirmar que a interpretação do direito privado deve ser pautada, como já
afirmado por Luis Roberto Barroso, nos valores contidos na Constituição.
Segundo as lições de Raimundo Bezerra Falcão, tem-se que exigir do
intérprete-integrador-aplicador que proceda segundo os ditames do que denomina
“Hermenêutica Total”, observando-se sempre a finalidade da
interpretação/integração, que é a busca da Justiça45. Não assim, veja-se:
Mas, para ser total, a Hermenêutica precisa de manter o ser humano em seu patamar de dignidade, ao mesmo tempo em que não permita que sua individualidade prejudique o funcionamento do todo, em cujo âmbito também estão inumeráveis outras individualidades. Assim, contemplará todas as valorações que lhe for viável contemplar; lembrar-se-á da parte interpretante e da parte destinatária; terá sensibilidade para o funcionamento do todo como âmbito de realização das partes e de cada parte como possibilitação funcional da coordenação no todo. E tudo isso como afã de equilíbrio, ou, no caso do Direito, como fator de consecução de justiça.46
44 RADBRUCH, Gustav. Cinco Minutos de Filosofia do Direito. In RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 5. ed. Tradução e prefácio de L. Cabral de Moncada. Coimbra. Armênio Amado Editor, 1974, p. 416. 45 Justiça é instância de valor jurídico, como sustentado por Arnaldo Vasconcelos. (VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica . 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.) 46 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica . São Paulo: Malheiros, 2000, p. 243.
44
Nesse diapasão, tem-se que é obrigação primordial do aplicador na norma
de direito privado manter como finalidade precípua a consecução da Justiça,
representada, aqui, pela observância aos princípios constitucionais, notadamente
aqueles que afirmem e promovam o reconhecimento da humanidade das pessoas
envolvidas na relação jurídica.
Conforme leciona Gustavo Tepedino,
O Direito perde, então, inevitavelmente, a cômoda unidade sistemática antes assentada, de maneira estável e duradoura, no Código Civil. [...] O intérprete passa então a se valer dos princípios constitucionais, como normas jurídicas privilegiadas para reunificação do sistema interpretativo, evitando, assim, as antinomias provocadas pro núcleos normativos díspares, correspondentes a lógicas setoriais sem sempre coerentes.47
Importante papel na interpretação do direito, e, mais recentemente, do
direito privado, é exercido pelo Princípio da Proporcionalidade. Esse princípio
constitucional tem exercido enorme influência na atividade hermenêutica, na medida
em que tem direcionado o intérprete a encontrar a solução que mais renda eficácia
aos preceitos contidos na Constituição.
As situações jurídicas de direito privado em conflito podem ter, cada uma
delas, fundamento em um determinado princípio constitucional, como, por exemplo,
o conflito existente entre o direito à informação e o direito à privacidade,
representando um conflito de direitos fundamentais que ocorre exclusivamente no
âmbito civil.
É na resolução desse tipo de problema que se manifesta a
constitucionalização da interpretação do direito privado, que se dá através da
aplicação do Princípio da Proporcionalidade. Imperioso se fazer menção aos
ensinamentos de Willis Santiago Guerra Filho, que aduz:
Para resolver o grau de dilema que vai então afligir os que operam com o Direito no âmbito do Estado Democrático contemporâneo, representado
47 TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Relações de Direito Civil na Experiência Brasileira. Separata de Stvdia Jvridica, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra , nº 48, pp. 332/333.
45
pela atualidade de conflitos entre princípios constitucionais, aos quais se deve igual obediência, por ser a mesma a posição que ocupam na hierarquia normativa, é que se preconiza o recurso a um “princípio dos princípios”, o princípio da proporcionalidade, que determina a busca de uma “solução de compromisso”, na qual se respeita mais, em determinada situação, um dos princípios em conflito, procurando desrespeitar o mínimo ao (s) outro (s), e jamais lhe (s) faltando minimamente com o respeito, isto é, ferindo-lhe seu “núcleo essencial”, em que se encontra entronizado o valor da dignidade humana.48
O autor, no texto, cita diversas situações em que se verifica a projeção do
Princípio da Proporcionalidade em situações eminentemente privadas previstas no
direito brasileiro. Restringiremo-nos, aqui, ao exemplo referido no texto sobre a
incidência do Princípio na espécie de vício de consentimento que afeta ato jurídico
recentemente introduzido na legislação civil: a lesão (art. 157/CC). Aduz que, em
preservação à dignidade humana, evitando a instrumentalização de um sujeito por
outro, valendo-se da inexperiência do primeiro para realizar determinado negócio
jurídico que ele próprio não aceitaria para si. Nesse caso, entende ser aplicável o
princípio da proporcionalidade, sopesando benefícios e prejuízos auferidos por
ambas as partes, mitigando-se o clássico princípio pacta sunt servanda com a
observação de um outro, mais atual, da proporcional, adequada e necessária
equivalência das prestações.
Não se pode olvidar, ainda, da constitucionalização do direito privado que se
opera através da concessão, a determinada regra, de interpretação conforme à
Constituição. Através dessa técnica, é possível conceder, a determinada norma,
significado que a amolde à interpretação que a Corte Constitucional confere à
Constituição, o que se pode dar por duas formas: (i) leitura da norma
infraconstitucional da melhor forma que realize o sentido e o alcance dos valores
constitucionais que lhe são subjacentes; (ii) declaração de inconstitucionalidade
parcial sem redução do texto, mediante exclusão de determinada interpretação
possível e afirmação de uma outra interpretação compatível com a Constituição.
Segundo Inocêncio Mártires Coelho, 48 GUERRA FILHO, Willis. Direito das Obrigações e Direitos Fundamentais: Sobre a projeção do Princípio da Proporcionalidade no Direito Privado. Revista Latino-americana de Estudos Constitucionais. nº 1 (jan/jun de 2003). Belo Horizonte: Del Rey, pp. 534/535.
46
[...] presumem-se constitucionais os atos do Congresso; na dúvida, decide-se pela sua constitucionalidade; entre duas interpretações, escolhe-se a que torne esses atos compatíveis com a Constituição, ao invés de preferir a que afronte o texto fundamental; e, por fim, diante de vários sentidos que se consideram igualmente constitucionais, deve-se dar preferência ao que, orientado para a Constituição, melhor corresponde às decisões do legislador constitucional.49
Dessa forma, verifica-se que, na tarefa de interpretação das normas de
direito privado, diante de sua irradiação nas relações entre particulares, deve
prevalecer o sentido que melhor alcance renda aos princípios constitucionais, de
sorte a conferir eficácia à Constituição.
2.3.3 Da constitucionalização quando da aplicação da lei
É a proclamação da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que
consiste, segundo lição de Marcelo Lima Guerra, nos efeitos jurídicos decorrentes
do reconhecimento dos direitos fundamentais como valores fundamentais
constitutivos da ordem jurídica, que faz com que se possa aplicar, nas relações
privadas, a proteção constitucional desses mesmos direitos fundamentais.
Willis Santiago Guerra Filho, proclamando a irradiação dos direitos
fundamentais na relação entre particulares, afirma:
É nesse contexto que se supera, igualmente, a visão clássica dos direitos e garantias fundamentais enquanto direitos e garantias individuais, liberdades publicas, voltados exclusivamente contra o Estado, o qual, perante tais direitos, teria o dever de tão-somente abster-se da prática de atos que os ameaçasse ou violasse. Atualmente, não apenas se concebem os direitos fundamentais como dotados de um aspecto prestacional, a exigir ações por parte do Estado para implementá-los, mas também, sendo o que aqui nos importa particularmente destacar, se atribui a tais direitos uma eficácia reflexa, ou eficácia perante terceiros (Drittwirkung), tornando-os aptos a proteger seus titulares também contra ameaças e violações por parte de seus co-cidadãos, individualmente considerados ou coletivamente
49 COELHO, Inocêncio Mártires. O Novo Código Civil e a Interpretação Conforme à Constituição. In Domingos Franciulli Netto et AL (org). O novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Professor Miguel Reale. 2ª ed. São Paulo: LTr, 2005, p. 52.
47
organizados, de modo especial na forma de “poderes sociais” (soziale Gewalten), representados por grandes organizações da sociedade civil organizada e/ou do setor empresarial (...). É assim que o clássico direito de propriedade, pedra angular sobre a qual se erige grande parte do sistema de direito privado, deverá ser conformado pelos princípios fundamentais constitutivos do Estado Democrático de Direito em nosso País, dentre os quais figuram, por força ao art. 1º, incs. III e IV, a dignidade da pessoa humana, bem como os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, respectivamente.50
Em citação que vem a completar esse raciocínio, no tocante à atuação das
organizações da vida civil de que fala Willis Santiago Guerra Filho, Virgílio Afonso da
Silva assevera:
Da mesma forma que essas forças sociais podem prejudicar o sistema político, em razão de sua alta concentração de poder, o mesmo ocorre no âmbito jurídico. Essas corporações, ainda que privadas, alcançam uma posição de dominação, sobretudo por meio da concentração financeira, que lhes confere um tal poder de decisão mas suas relações com os indivíduos, que qualquer relação jurídica entre ambos, a despeito de se fundar aparentemente na autonomia da vontade, é, na verdade, uma relação de dominação, que ameaça, tanto quanto a atividade estatal, os direitos fundamentais dos particulares.51
Foi a partir do reconhecimento da possibilidade de violação de direitos
fundamentais levada a cabo por particulares que a Corte Constitucional alemã, como
visto, concedeu provimento ao recurso interposto no caso Lüth.
A partir de então, reconheceu-se a legitimidade do Poder Judiciário para,
através da aplicação da Constituição nas relações entre particulares, dar nova
interpretação às normas de direito privado, de modo a garantir a observância de
preceitos constitucionais fundamentais.
A distinção que se levou a cabo, a partir desse julgamento, consiste em
reconhecer que, ao contrário das relações indivíduo-Estado, em que apenas o
primeiro era titular de direitos fundamentais, nas relações privadas ambas as partes
50 GUERRA FILHO, Willis. Direito das Obrigações e Direitos Fundamentais: Sobre a projeção do Princípio da Proporcionalidade no Direito Privado. Revista Latino-americana de Estudos Constitucionais. nº 1 (jan/jun de 2003). Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 534. 51 SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito. São Paulo: Malheiros, 2008, pp. 52/53.
48
titularizam esses direitos, de sorte que, na atuação do Poder Judiciário, quando da
resolução de conflitos desse jaez, se apresenta de fundamental importância o
Princípio da Proporcionalidade, na medida em que viabilizará o sopesamento dos
princípios em jogo, a fim de reconhecer qual valor fundamentante da regra
infraconstitucional deverá prevalecer, assegurando, ainda, o menor prejuízo possível
à parte que sucumbir.
O reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais
possibilitou, assim, a atuação dos magistrados no sentido de, através da
interpretação e da aplicação da norma infraconstitucional segundo as diretrizes
principiológicas da Constituição, aperfeiçoar o sistema jurídico, adaptando-o à
Constituição e, mais ainda, aplicar diretamente as próprias normas constitucionais
nas relações privadas52, conforme já explicitado em tópico anterior.
Sobre a influência da dimensão objetiva dos princípios constitucionais sobre
o Poder Judiciário, afirma o Marcelo Lima Guerra:
No tocante à atuação dos órgãos jurisdicionais, que é o que interessa mais de perto, no presente trabalho, advirta-se que a dimensão objetiva dos direitos fundamentais é o que determina, por exemplo: (a) que o órgão jurisdicional identifique e deixe de aplicar normas excessivamente restritivas de direito fundamental, independentemente de qualquer manifestação de um dos eventuais titulares do direito restringido; (b) que o órgão jurisdicional realize, também sem nenhuma referência à dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, uma interpretação conforma à Constituição, no sentido de extrair de determinada norma um sentido e um alcance que maior proteção assegure a um direito fundamental relacionado a ela; (c) que o órgão jurisdicional leve em consideração, na realização de um determinado direito
52 “[...] A pensarmos como nos idos dos Séculos XVIII e XIX, a supremacia formal do texto constitucional tenderia a ser mais simbólica que efetiva, como um programa normativo vinculante, todavia principiológico, a ser legislativamente desenvolvido. As fundações e exercícios do controle de constitucionalidade se apropriaram dessa principiologia, às vezes, espectral, tanto para fornecer matéria aos supostos fragmentos normativos constitucionais, quanto para invadir a interpretação das normas infraconstitucionais, reduzindo ou ampliando seus significados. Foi essa, digamos, a capacidade hetero-generativa da Constituição que, no momento seguinte, este que chega a nossos dias, contrariou as previsões dos Modernos e ainda deixa perplexos analistas do Direito, ora a se posicionarem em sentido reativo, de crítica à inflação constitucional (deslegitimidade, pois que promovida pelo poder aristocrático ou contramajoritário); ora, supostamente, na direção do ‘progresso constitucional’, pela efetivação judiciária e irradiante, horizontal e verticalmente, dos direitos fundamentais.” (SAMPAIO, José Adércio Leite Mito e história da constituição: prenúncios sobre a constitucionalização do direito. In SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira. (coord.) A Constitucionalização do Direito – Fundamentos Teóri cos e Aplicações Específicas . Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 200/201.)
49
fundamental, eventuais restrições a este impostas pelo respeito a outros direitos fundamentais, independentemente mesmo de qualquer consideração quanto à dimensão subjetiva desses últimos.53
É essa a alteração de posicionamento que se vem verificando na
jurisprudência pátria, irradiando da nova ótica que se tem dado aos julgados do
Supremo Tribunal Federal – STF, que, apesar de não ser propriamente
caracterizado como Corte Constitucional, como assevera Francisco Gérson Marques
de Lima54, tem exercido, através de sua atuação, um papel pedagógico
relativamente aos demais tribunais, buscando vivificar os princípios constantes na
Constituição Federal.
Isso não implica afirmar que essa específica atuação legitimadora dos
direitos fundamentais nas relações entre particulares esteja restrita ao STF,
porquanto, pela organização jurisdicional brasileira, qualquer magistrado,
independentemente da instância de julgamento, tem o dever constitucional de velar
pela Constituição.
Em sendo assim, a qualquer aplicador da norma, em especial o magistrado,
cabe aferir seguir o procedimento de aplicação defendido neste trabalho, elegendo,
em primeiro lugar, mediante utilização do princípio da proporcionalidade, o valor
constitucional merecedor de proteção no caso concreto e, em seguida, aplicando a
norma de direito privado capaz de materializar esse mesmo valor.
53 GUERRA, Marcelo Lima. Direitos Fundamentais e a Proteção do Credor na Exe cução Civil . São Paulo: RT, 2003, pp. 98/99. 54 LIMA, Francisco Gérson Marques de. Fundamentos Constitucionais do Processo – sob a perspectiva dos direitos e garantias fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 31.
50
3. SOBRE A ATIVIDADE EMPRESÁRIA
A atividade empresária sofre, como explanado no capítulo anterior, os
efeitos da constitucionalização do direito privado. Qualquer que seja a concepção de
empresa que se adote, quer como atos de comércio, quer como atividade produtiva,
quer como feixes de contratos, não poderá o empresário se omitir do dever de
conceder função social à empresa.
Essa função social, como se demonstrará, advém do cumprimento,
concomitante, da função social do contrato e da função social da propriedade, uma
vez que estes institutos, o contrato e a propriedade, são imprescindíveis para o
exercício empresarial. Onde aqueles não se verificam, não há empresa.
3.1 Evolução da noção de empresa. Dos atos de comércio à teoria da
empresa
O surgimento dos Estados Nacionais monárquicos marca um período de
relevante importância para o direito comercial. Com efeito, esses Estados,
representados na figura do monarca absoluto, submetem seus súditos, incluindo a
classe dos comerciantes, a um direito posto, em contraposição ao direito comercial
do período anterior, centrado na autodisciplina das relações comerciais por parte
dos próprios mercadores, através das corporações de ofício e seus juízos
consulares55.
55 “Ainda que os usos e costumes continuassem representando grande relevância como fontes do direito comercial, as leis estatais passaram a ocupar cada vez maior importância – das quais são exemplos acabados as Ordenações Francesas de 1763 (para o direito marítimo) e 1681 (quanto aos institutos de direito terrestre). A jurisdição mercantil deixou de ser o exercício de uma atividade privada, expoente da autonomia das corporações, para ser incorporada pelo Estado, na forma de Tribunais especiais, mesmo que deles participando comerciantes. Começava a desaparecer o poder soberano das corporações.” (VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial . v. 1. São Paulo: Malheiros, 2004, pp. 30-31)
51
Em 1807, o Código Comercial francês foi promulgado, a fim de possibilitar a
disciplina dos atos de comércio a que estavam sujeitos os cidadãos. Criou-se no
ordenamento jurídico um sistema objetivo da mercancia, em que a condição de
comerciante somente poderia ser atribuída aos indivíduos que desempenhassem um
dos atos de comércio taxativamente descritos no texto legal.
O Código instituiu um sistema jurídico destinado à disciplina das relações
jurídico-comerciais, dividindo, claramente, o direito privado: de um lado o direito
comercial; de outro, o direito civil. Se o Código Civil de 1804 instituiu um corpo de
leis que atendia aos interesses da burguesia fundiária, na medida em que estava
centrado no direito de propriedade de concepção liberal, o Código Comercial
incorporava o espírito da burguesia comercial e industrial, valorizando a riqueza
mobiliária.
A criação de dois regimes, postos a reger as relações jurídicas entre
particulares, cria a necessidade de se estabelecer um critério de delimitação da
incidência de cada um deles. Para tanto, a doutrina francesa criou a teoria dos atos
de comércio, que tinha como uma de suas funções essenciais a de atribuir, a quem
praticasse os atos de comércio, a qualidade de comerciante, o que era pressuposto
da aplicação das normas jus-comerciais.
O direito comercial incidiria, assim, nas relações jurídicas que
contemplassem a prática de algumas condutas definidas própria legislação como
atos de comércio, de modo que, não envolvendo algum desses atos, a regência
seria dada pelo Código de Napoleão56.
56 “No início do século XIX, em França, Napoleão, com a ambição de regular a totalidade das relações sociais, patrocina a edição de dois monumentais diplomas jurídicos: o Código Civil (1804) e o Comercial (1807). Inaugura-se, então, um sistema para disciplinar as atividades dos cidadãos, que repercutirá em todos os países de tradição romana, inclusive o Brasil. De acordo com esse sistema, classificam-se as relações que hoje em dia são chamadas de direito privado em civis e comerciais. Para cada regime, estabelecem-se regras diferentes sibre contratos, obrigações, prescrição, prerrogativas, prova judiciária e foros. A delimitação do campo de incidência do Código Comercial é feita, no sistema francês, pela teoria dos atos de comércio.” (COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial . 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 07)
52
Significou, na época, avanço no tratamento do comerciante, desvinculando-
o do sujeito ligado a uma das corporações de ofício, para considerá-lo a partir de
sua conduta, de modo que se consagrava, legislativamente, o ideal de igualdade
que guiara o revolucionário francês57.
É em razão dessa circunstância que se afirma uma objetivação58 do direito
comercial, que, segundo Tullio Ascarelli, relaciona-se à formação dos Estados
Nacionais da Idade Moderna, os quais impõem sua soberania ao particularismo que
imperava na ordem jurídica anterior e se inspiram no princípio da igualdade, sendo,
por conseguinte, avessos a qualquer tipo de distinção de disciplinas jurídicas que se
baseiem em critérios subjetivos59.
As deficiências do sistema objetivo, entretanto, não são de difícil percepção,
na medida em que este se resume ao estabelecimento de uma relação de atos
econômicos, sem que haja entre eles nenhum elemento interno de ligação, gerando
indefinições no tocante à natureza mercantil de algumas delas60 61.
Acresça-se a isso o fato de as atividades mercantis não terem o perfil
pluralista que hoje se verifica. Era muito mais simples, naquele período, prever as
57 “Com a codificação francesa de princípios do século XIX, o direito comercial abandonava o sistema subjectivo – segundo o qual este direito se aplicava apenas a quem tivesse inscrito como comerciante no correspondente registro –, adaptando o sistema objectivo: o direito comercial aplica-se a todos os actos de comércio, praticados por quem quer que seja, ainda que ocasionalmente; ao passo que a prática habitual dos actos de comércio e a consequente aquisição da qualidade de comerciante seria pressuposto para a aplicação de normas específicas, como as relativas à obrigação de manter escrituração mercantil e as relativas à falência.” (GALGANO, Francesco. História do direito comercial . Tradução de João Espírito Santo. Lisboa: Editores, 1990, pp. 84/85) 58 “Orientado pelo princípio da igualdade de todos perante a lei, proclamado pela Revolução Francesa, o Direito Comercial não podia mais oferecer uma tutela a sujeitos diferenciados, privilegiados, mas, sim, ser liberado em atenção a um critério objetivo, sem levar em conta as qualidades dos sujeitos envolvidos nas relações de comércio. Passa-se a um período objetivo (ou, como querem alguns, um período subjetivo moderno), em que o então Direito dos Comerciantes, substitui-se pelo Direito dos atos de comércio.” (FÉRES, Marcelo Andrade. Empresa e empresário: do código civil italiano ao novo código civil brasileiro. In VIANA, Frederico Rodrigues (coord.) Direito de empresa no novo Código Civil . Rio de Janeiro: Forense: 2004, p. 40) 59 Apud GALGANO, Francesco. História do direito comercial . Tradução de João Espírito Santo. Lisboa: Editores, 1990, p. 85. 60 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial . v. 1. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 15. 61 Rubens Requião suscita as críticas que se levantaram à teoria, aduzindo que “O sistema objetivista, que desloca a base do direito comercial da figura tradicional do comerciante para a dos atos de comércio, tem sido acoimada de infeliz, de vez que até hoje não conseguiram os comercialistas definir satisfatoriamente o que sejam eles.” (REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial . v. 1. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 12. [grifos no original])
53
atividades comerciais que caracterizariam a prática dos chamados atos de comércio,
e, por conseguinte, qualificariam o indivíduo que as praticasse como comerciante.
A enumeração taxativa dos atos de comércio entravava o mercado, na
medida em que não permitia a qualificação do agente como comerciante. Atividades
importantes, como a prestação de serviços e a atividade imobiliária62, por exemplo,
não foram contempladas, deixando à margem do direito comercial setores
relevantes da atividade econômica.
Nada obstante isso, a teoria serviu ao ordenamento jurídico moderno, na
medida em que os atos praticados qualificavam o indivíduo como comerciante. A
idéia de empresa não se fazia presente sob a ótica do ordenamento jurídico
moderno. A prática dos atos de comércio não tinha maior influência, ao menos num
primeiro instante, sobre os demais setores sociais. Em verdade, os atos de comércio
se davam de sorte a dar substancialidade ao exercício da atividade individual.
O Brasil adotou, pela promulgação do Código Comercial de 1850, a teoria
dos atos de comércio, por influência da codificação francesa, seguindo a linha da
maioria dos Códigos editados no século XIX.
Nada obstante o Código tenha silenciado quanto à definição dos atos de
comércio, o legislador, de maneira suplementar, os definiu através da edição do
Regulamento nº 737, de 1850. Mantendo excluídas a negociação imobiliária e as
atividades rurais, o legislador brasileiro definiu os atos de comércio através de uma
relação taxativa, constante nos arts. 19 e 20, do Regulamento, que contemplavam:
(i) compra e venda de bens móveis e semoventes para revenda ou locação; (ii)
câmbio (troca de moeda estrangeira); (iii) atividade bancária; (iv) transportes de
62 “A exclusão da negociação de imóveis, do âmbito de incidência do direito comercial pelo Code de Commerce – que não se reproduz em outras legislações adeptas da teoria dos atos de comércio, a exemplo do código italiano de 1882 – é, por vezes, relacionada a um caráter sacro de que se revestiria a propriedade imobiliária ou pela tardia distinção entre circulação física e econômica dos bens. Porém esta exclusão só pode ser satisfatoriamente explicada à luz de considerações políticas e históricas, ou seja, a partir da necessidade de a burguesia francesa preservar sua identidade na luta contra o feudalismo.” (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial . v. 1. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 15/16)
54
mercadorias; (v) fabricação, consignação e depósito de mercadorias; (vi)
espetáculos públicos; (vii) contratos marítimos em geral; e (viii) fretamento de navios.
O Regulamento foi revogado em 1875, mas continuou sendo utilizado pela
doutrina e pela jurisprudência para a compreensão do que viessem a ser atos de
comércio, servindo de critério definidor da aplicação do direito comercial.
Além desses, a doutrina ainda mencionava os chamados atos de comércio
por conexão, isto é, “atos em sua essência civis e que se transformam em
comerciais quando praticados com a finalidade de facilitar o exercício da profissão
comercial”63.
A adoção da teoria francesa dos atos de comércio pelo direito comercial
brasileiro fez com que se lhe dirigissem as mesmas críticas relacionadas à
legislação francesa. Não se podia justificar a não-aplicação das normas de direito
comercial a atividades tipicamente econômicas e de suma importância para a
atividade negocial, como a prestação de serviços, a negociação imobiliária e a
pecuária.
Nesse sentido, já na primeira metade do século XX, passa-se a vislumbrar
na prática organizada dos atos de comércio a necessidade de se criar uma nova
forma de organização do ordenamento jurídico em sua faceta comercial. Não se
podia permanecer com a teoria objetiva dos atos de comércio, pois era impossível,
diante do desenvolvimento dos meios de produção industrial, prever, de modo
taxativo, todas as atividades comerciais que pudessem ser compreendidas
efetivamente como dotadas de comercialidade.
Em 1942, edita-se o Código Civil italiano, que consagra um novo sistema
delimitador da aplicação do regime jurídico comercial, qual seja a teoria da empresa,
que tem a finalidade de transpor, para o universo jurídico, um fenômeno que é
63 MARTINS, Fran. Curso de direito comercial . 30. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 81.
55
essencialmente econômico. O centro do sistema deixa de ser os atos de comércio e
passa à empresa64.
O Codice foi o diploma legal de maior importância para a transformação da
teoria dos atos de comércio. Além disso, a legislação italiana defendeu
expressamente uma teoria que tinha por objeto a empresa em si, bem como
entendeu por bem acabar com o tratamento dúplice das obrigações civis e
comerciais, unificando-as em um só corpo de normas.
Para a teoria da empresa, o direito comercial não se limita a regular apenas
as relações jurídicas em que ocorra a prática de um determinado ato definido em lei
como ato de comércio (mercancia), fazendo com que o direito comercial não se
adstrinja apenas a alguns atos, mas com uma forma específica de exercer uma
atividade econômica: a forma empresarial. Segundo Waldirio Bulgarelli, “nos dias
que correm, transmudou-se (o direito comercial) de mero regulador dos
comerciantes e dos atos de comércio, passando a atender à atividade, sob a forma
de empresa, que é o atual fulcro do direito comercial”65.
Ainda que o Código italiano tenha sido inovador ao prever uma verdadeira
teoria da empresa, não logrou conceituar o que seja a empresa. Optou o legislador,
por outro lado, por definir os aspectos principais da atividade empresária.
Supera-se, assim, a dificuldade existente na teoria francesa dos atos de
comércio, de enquadrar certas atividades na disciplina jurídico-comercial, como
prestação de serviços, as atividades ligadas à terra e a negociação imobiliária. Para
a teoria da empresa, qualquer atividade econômica, desde que exercida
profissionalmente, e destinada a produzir bens ou serviços, é considerada
empresarial e pode submeter-se ao regime jurídico empresarial.
Alberto Asquini, no intuito de se opor ao conceito unitário de empresa, optou
por conceituá-la de acordo com a visão jurídica do fenômeno empresa em termos
64 Cf. SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa . São Paulo: Atlas, 2004. 65 BULGARELLI, Waldirio. Direito comercial . 15. ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 19.
56
sócio-econômicos. Para o autor italiano, a idéia de empresa trazida pelo Código
Civil italiano incorporou a vigente em termos econômicos, mas tal fato não deve
impor a utilização dos termos econômicos no âmbito jurídico.
Asquini definiu a empresa, como sendo “um fenômeno econômico
poliédrico, o qual tem sob o aspecto jurídico não um, mas diversos perfis em relação
aos diversos elementos que integram”66. Dessa forma, esse fenômeno econômico
não comportaria um conceito único, pronto e acabado, mas definições jurídicas que
devem ser moldadas à realidade na qual se apresenta o fenômeno empresarial,
tendo em vista o perfil poliédrico da empresa.
Para o autor italiano, a empresa pode ser enfocada sob quatro perfis, a
saber: perfil subjetivo, ao que corresponde a figura do sujeito condutor da atividade,
isto é, o empresário; perfil funcional, visualizando a empresa como uma atividade
econômica direcionada a determinados fins; perfil objetivo, ou patrimonial, em que
empresa seria o estabelecimento empresarial; e, por fim, perfil corporativo,
conferindo à empresa caráter de instituição67.
Ao elencar a pluralidade de perfis que atribui à empresa, Asquini deixa clara
a idéia de que é impossível dar um conceito jurídico que os abarque completamente.
Ao contrário, caberá ao direito saber avaliar a empresa levando em conta tal
diversidade de perfis, a fim de que se possa distinguir entre as implicações relativas
à empresa como empresário; à empresa como estabelecimento; à empresa como
atividade empresária; e, por fim, à empresa como instituição68.
66 ASQUINI, Alberto. Perfis da empresa. Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro . Traduzido por Fábio Konder Comparato. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. Nº 104, outubro-dezembro de 1996, p. 109. 67 Cf. ASQUINI, Alberto. Perfis da empresa. Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro . Traduzido por Fábio Konder Comparato. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. Nº 104, outubro-dezembro de 1996. 68 “[...] a técnica do direito não pode dominar o fenômeno econômico da empresa para dar uma completa disciplina jurídica, sem considerar distintamente os diversos aspectos, em relação aos diversos elementos que nela existem. (ASQUINI, Alberto. Perfis da empresa. Revista de direito mercantil, industrial, econômico e financeiro . Traduzido por Fábio Konder Comparato. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. Nº 104, outubro-dezembro de 1996, p. 125)
57
Mesmo diante das novas teorias empresariais, não se pode negar à teoria
de Asquini a importância que teve para tentar compreender o que seja,
juridicamente, a empresa. Não é menos verdade, no entanto, o fato de o perfil
funcional da empresa ser o de maior importância aos ordenamentos jurídicos
hodiernos. Não se pode entender a empresa sem que haja uma atividade econômica
organizada e profissionalmente exercida. Somente diante desses caracteres se
podem estabelecer os sujeitos e os objetos inseridos no contexto empresarial.
Pensamento semelhante ao de Asquini foi desenvolvido, no Brasil, por
Waldírio Bulgarelli, para quem uma concepção sócio-econômica da empresa deve
ser feita com elementos de cunho jurídico.
Da mesma forma, a expressão “empresarialidade” engloba, na visão do
autor, o fenômeno do empresário, da empresa e do estabelecimento. Em sendo
assim, a empresa poderia ser compreendida como “atividade econômica organizada
de produção e circulação de bens e serviços para o mercado exercida pelo
empresário, em caráter profissional, através de um complexo de bens”69.
Foi por intermédio do Código Civil de 2002 que o ordenamento jurídico
brasileiro adotou, formalmente, a teoria da empresa, em substituição à teoria dos
atos de comércio. Nesse sentido, seu art. 966 estabelece: “considera-se empresário
quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou
a circulação de bens ou de serviços”.
Por mais que o texto legal não expresse um conceito jurídico fechado do
que seja empresa, resta claro que o ordenamento jurídico optou por levar em conta
o perfil funcional da empresa70. Afinal, a definição de empresário expressa no
dispositivo transcrito deixa clara a necessidade de ser exercida atividade econômica
de caráter profissional e organizada, visando à produção ou à circulação de bens ou
de serviços.
69 BULGARELLI, Waldírio. A teoria jurídica da empresa: análise jurídica da e mpresarialidade . São Paulo: RT, 1985, p. 154. 70 Cf. AMARAL, Luiz Fernando de Camargo Prudente. A função social da empresa no direito constitucional econômico brasileiro . São Paulo: SRS, 2008, p. 97.
58
O empresário é uma pessoa, física ou jurídica. A empresa, não, já que,
sendo atividade, é despersonalizada. Esta caracteriza-se por ser organizada para a
produção ou a circulação de bens ou de serviços para o mercado, pondo em
funcionamento o estabelecimento a que se vincula, por meio de empresário
individual ou sociedade empresária.
Esta atividade, definidora da empresa, reveste caracteres específicos,
dentre os quais se podem destacar a finalidade lucrativa e a organização.
Antes de adentrar a análise desses caracteres, faz-se necessário ter em
mente a própria concepção da empresa como atividade. Empresa, pela idéia
fornecida pelo conceito de empresário contida no art. 966, do Código, é uma
atividade profissional de produção ou de circulação de bens ou de serviços,
realizada profissionalmente e de forma organizada, com vistas à obtenção de lucros.
Não se confunde com o empresário, pessoa física ou jurídica que explora a
atividade, nem com o acervo patrimonial, o conjunto de bens materiais ou imateriais
que são destinados à sua realização.
Da noção, deve-se especificar o que venha a ser profissionalismo, caractere
da atividade empresária. A atividade desenvolvida apenas ganhará contornos de
empresarialidade quando for exercida de forma profissional, isto é, quando o sujeito
que a exerce promovê-la de forma habitual, de modo que “importa que a atividade
corresponda a um constante repetir-se, não podendo tratar-se da realização de um
negócio ocasional de compra e venda ou de mediação”71.
Na atividade, há uma sucessão repetida de condutas praticadas de forma
organizada, para que haja, constantemente, a oferta dos bens ou dos serviços dela
decorrentes. Profissionalidade requer, para sua conformação, habitualidade, isto é, a
prática continuada dos atos empresariais; pessoalidade, que resulta da contratação
de pessoas, físicas ou jurídicas, para o auxílio do empresário no desenvolvimento da
71 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial . v. 1. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 120.
59
atividade, pessoas essas genericamente denominadas prepostos; e monopólio, pelo
empresário, das informações intrínsecas à atividade.
Quando se afirma que empresa é uma atividade econômica, pretende-se
informar que é exercida com intuito de obtenção de lucro. Não se sustenta, aqui, que
a atividade, efetivamente, renda lucros ao empresário, mas que, potencialmente,
tenha capacidade de proporcionar resultados positivos72.
O exercício coletivo de atividade sem finalidade lucrativa não se dá através
da empresa, mas por outras figuras tratadas na parte geral do Código Civil, como as
associações, que, em conformidade com o art. 53, se constituem “pela união de
pessoas que se organizem para fins não econômicos”, e as fundações, as quais,
pela sua natureza, apenas admitem fins não lucrativos, tal como disciplinado no
parágrafo único do art. 62, determinando que a fundação “somente poderá constituir-
se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência”.
Por organização, deve-se entender o fato de a atividade decorrer de uma
conformação, realizada pelo empresário73, dos fatores de produção: capital, mão-de-
obra, insumos e tecnologia. A atividade exige74, para seu sucesso, a correta
72 “Não se entenda a idéia de lucro aqui como utilidade. É lucrativa a atividade que produz uma utilidade, e não somente aquela que se traduz em dinheiro. De qualquer forma, o critério da economicidade é essencial. A atividade deve produzir o suficiente para, pelo menos remunerar os fatores de produção, e, dentre eles, o capital investido, de molde a assegurar, por si mesma, a sua sobrevivência.” (FRANCO, Vera Helena de Melo. Manual de direito comercial . v. 1. 2. ed. São Paulo: RT, 2005, pp. 29/30) 73 Rubens Requião, nesse sentido, leciona que “O empresário organiza a sua atividade, coordenando os seus bens (capital) com o trabalho aliciado de outrem. Eis a organização. Mas essa organização, em si, o que é? Constitui apenas um conjunto de bens e um conjunto de pessoal inativo. Esses elementos – bens e pessoal – não se juntam por si; é necessário que sobe eles, devidamente organizados, atue o empresário, dinamizando a organização, imprimindo-lhe atividade, que levará à produção. Tanto o capital do empresário como o pessoal que irá trabalhar nada mais são isoladamente do que bens e pessoas. A empresa somente nasce quando se inicia a atividade sob a orientação do empresário. Dessa explicação surge nítida a idéia de que a empresa é essa organização dos fatores de produção exercida, posta a funcionar, pelo empresário. Desaparecendo o exercício da atividade organizada do empresário, desaparece, ipso facto, a empresa”. (REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar . São Paulo: Saraiva, 1975, pp. 56/57) 74 Fábio Ulhoa Coelho chega ao extremo de sustentar que não se deve considerar empresário aquele que não organiza algum dos fatores de produção: “A empresa é atividade organizada no sentido de que nela se encontram articulados, pelo empresário, os quatro fatores da produção: capital, mão-de-obra, insumos e tecnologia. Não é empresário quem explora atividade de produção ou circulação de bens ou de serviços sem algum desses fatores. O comerciante de perfumes que leva, ele mesmo, à sacola, os produtos até os locais de trabalho ou residência dos potenciais consumidores explora a
60
disposição desses fatores, como requisito inafastável da consecução de seu objeto
social.
Cabe ao empresário mensurar o peso e a intensidade de cada um desses
fatores para o desenvolvimento da atividade, sendo ele o responsável pela sua
adequação, do que decorre o atributo da organização, de sorte que a empresa
pressupõe uma estrutura, um conjunto organizado de bens materiais e imateriais,
conhecimento, patrimônio e trabalho de terceiros – ou esforços do próprio
empresário –, além da coordenação desses elementos pelo empresário.
Por fim, o objeto da atividade também importa para sua compreensão. A
produção ou a circulação de bens ou de serviços é fundamental na caracterização
da empresa. Produção de bens é a fabricação, a criação de produtos destinados ao
mercado, ao passo que a produção de serviços constitui obrigação de fazer relativa
à prestação de serviços, de uma atividade lícita, oriunda da energia de um e
aproveitada por outrem.
Já a circulação compreende as atividades de intermediação, que pode ser
de bens, realizada através da venda nos pontos de comércio, em atacado ou varejo,
ou de serviços, mediante negociação sobre fazeres prestados por outrem,
possibilitados, sobremodo, através dos contratos de agência e representação.
Empresa, portanto, em conformidade com o direito positivo brasileiro, é uma
atividade, profissional e econômica, em que se organizam os fatores de produção
atividade de circulação de bens, fá-lo com intuito de lucro, habitualmente e em nome próprio, mas não é empresário, porque em seu mister não contrata empregado, não organiza mão-de-obra. A tecnologia, ressalte-se, não precisa ser, necessariamente de ponta, para que se caracterize a empresarialidade. Exige-se, apenas, que o empresário se valha dos conhecimentos próprios aos bens ou serviços que pretende oferecer ao mercado – sejam estes sofisticados ou de amplo conhecimento – ao estruturar a organização econômica.” (COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial . 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 13/14). Essa concepção não se afigura correta, na medida em que, na situação narrada pelo autor, há, sim, a organização da mão-de-obra, desempenhada pelos próprios esforços individuais do empresário. É exatamente porque organiza a mão-de-obra que este vendedor de perfumes decide se utilizar apenas de seus esforços, não necessitando, até aquele momento, de auxílio de terceiros.
61
para a produção ou a circulação de bens ou de serviços que serão disponibilizados
no mercado75.
3.2 Empresa como feixe de contratos
Além da concepção extraída do Código Civil, há, desenvolvidas pela
doutrina, outras compreensões do fenômeno empresarial, concebendo-o como
relações contratuais plurais.
Dentre essas teorias cumpre tecer considerações a respeito daquela
desenvolvida por Ronald Coase, que sustenta ser a empresa uma forma de
exploração de atividades econômicas visando à maior eficiência na alocação de
recursos, o que se consegue por meio da atividade de um sujeito específico, o
entrepreneur, que pode ser entendido como a figura do controlador da atividade
empresária, o responsável, portanto, pela organização da atividade, através da
conformação dos fatores de produção.
A empresa seria, assim, um feixe de contratos, articulados pelo
entrepreneur, visando à redução de custos ligados à exploração da atividade
desenvolvida. Através desses contratos, ou melhor, da articulação desses contratos,
75 “O objetivo da atividade deverá ser, para a qualificação do empresário, a produção ou a circulação de bens ou de serviços, nos termos do art. 966, caput, do NCC. Considerando tratar-se de redação idêntica à do art. 2.082, do CCIt, pode-se dizer – acompanhando Ascarelli 0 que tal atividade deve dirigir-se diretamente para tais finalidades, excluída a produção para uso próprio, pois esta não está destinada ao mercado. A destinação dos produtos da empresa para o mercado é, justamente, um dos elementos diferenciadores entre a atividade do empresário e a de outros sujeitos que também exercem atividade econômica (...). Desta maneira, não poderá ser considerada “empresa”, para efeitos jurídicos, a atividade cujos benefícios sejam exclusivamente para uso próprio, ou, ainda, com sentido mutualístico, tal como ocorre nas cooperativas. De outro lado, é empresarial a atividade exercida por uma sociedade controladora pura (holding) – ou seja, aquela cujo único objetivo é participar do capital de outras sociedades, desde que as controladas sejam, por sua vez, sociedades empresárias. Neste caso, os requisitos da economicidade e produtividade são atendidos por via indireta.” (VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial . v. 1. São Paulo: Malheiros, 2004, pp. 30-31)
62
obter-se-ia uma otimização da exploração econômica de determinado seguimento,
eliminando as perdas76 que ocorreriam no caso de a contratação ser eventual.
Sobre os problemas e as vantagens da teoria de Coase, João Luis Nogueira
Matias assim relata;
A crítica mais feroz à visão coaseana de empresa é a não definição precisa do conceito de custos de transação e a supervalorização da atuação do entrepreneur, aspectos que foram base das reformulações propostas pelas teorias do nexus of contracts e connected contracts. Entretanto, deve ser reconhecido o valor da teoria, principalmente por possibilitar novo olhar sobre o fenômeno empresarial, o que ensejou a evolução que culminou nas teorias mais recentes que possibilitam vislumbrar novos padrões para a compreensão do fenômeno empresarial e para o entendimento da sua função social. 77
Em decorrência de críticas formuladas ao pensamento de Coase, surgiram,
ainda, duas outras teorias que identificam a empresa com o fenômeno contratual
que lhe é ínsito. Em primeiro lugar, tem-se a teoria do nexus of contracts,
desenvolvida por Jensen e Meckling,78 que mantém a concepção de empresa como
feixe de contratos, mas, por outro lado, reduz a influência do controlador, afirmando
que as relações jurídicas empresariais tem como pano de fundo uma negociação
permanente entre as partes envolvidas.
Eduardo Secchi Munhoz critica esta teoria, afirmando que de sua
concepção decorre um enfraquecimento da pessoa jurídica criada para viabilizar o
exercício da atividade empresária, na medida em que, sendo a empresa um feixe de
contratos que leva em consideração as forças de cada pólo da relação contratual,
76 A doutrina aponta, como custos de transação, exemplificativamente, aqueles oriundos “(I) das negociações das partes para a celebração de casa contrato e para a fixação do preço, que pressupõe o conhecimento e a disponibilidade de informações sobre o mercado respectivo; (II) do risco de a outra parte não cumprir sua obrigação; (III) da impossibilidade de ser preverem todos os acontecimentos futuros que poderão sobrevir no curso do cumprimento do contrato, alterando seu equilíbrio econômico, o que é mais frequente nos contratos de longo prazo.” (MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa contemporânea e direito societário – poder de controle e grupos societários. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, pp. 186/187) 77 MATIAS, João Luis Nogueira. A função social da empresa e a composição de intere sses na sociedade limitada . Obra jurídica decorrente de tese de doutoramento em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. No prelo, p. 74. 78 JENSEN, Michael; MECKLING, William. Theory of the firm: managerial, behavior, agency costs and ownership structure. Journal of Financial Economics , v.3, 1976. Apud MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa contemporânea e direito societário – poder de controle e grupos societários. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 189.
63
não há distinção “daquilo que está dentro e que está fora da sociedade-empresa,
pois esta nada mais representa do que um centro de relações contratuais,
semelhantes àquelas estabelecidas entre duas pessoas no mercado”79.
William Klein, Mitu Gulati e Erci Zolt80 apresentaram um modelo alternativo,
constituído por contratos conexos (connected contracts), que, mantendo a
compreensão clássica de empresa, permite um enfoque diferente de análise, pois,
segundo João Luis Nogueira Matias, “tem por idéia central a constatação de que as
estruturas de propriedade e controle de uma sociedade variam em conformidade
com as relações que forem travadas com os diversos centros de interesse nela
envolvidos”81.
A teoria suplanta a noção de empresa como entidade personificada,
hierarquicamente organizada. Essa noção é substituída pela idéia de que a empresa
se forma por acordos interligados entre todos os participantes da atividade
empresária, quais sejam os sócios, os trabalhadores, os credores, os fornecedores e
os consumidores. Difere da teoria do nexus of contracts porque prescinde da
existência de fronteiras definidas na empresa. O que importa, aqui, é a consideração
da existência de conflitos, na competição e na cooperação existentes nas relações
contratuais mantidas entre todos os agentes envolvidos, direta ou indiretamente, na
exploração da atividade.
Essas teorias serão aqui refutadas, na medida em que reduzem a empresa
a apenas um de seus elementos – o contrato –, reduzindo, portanto, a compreensão
do instituto jurídico empresa.
Da análise do fenômeno da atividade empresarial, pode-se verificar que a
empresa é composta por dois institutos jurídicos: um patrimônio, isto é, um acervo
79 MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa contemporânea e direito societário – poder de controle e grupos societários. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 191. 80 GULATI, Mitu; KEIN, William; ZOLT, Eric. Connected contracts. University of California Law Review , California, n.47, 2000. Apud MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa contemporânea e direito societário – poder de controle e grupos societários . São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 193. 81 MATIAS, João Luis Nogueira. A função social da empresa e a composição de intere sses na sociedade limitada . Obra jurídica decorrente de tese de doutoramento em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. No prelo, p. 75.
64
de bens sobre o qual o empresário exerce poderes de uso, fruição e disposição,
para o exercício da atividade empresária; e os contratos, os mais diversos, típicos e
atípicos, instrumentos que viabilizam a produção e a circulação dos bens ou dos
serviços relacionados à atividade desenvolvida.
Todo e qualquer contrato celebrado na atividade empresária faz surgir uma
relação creditícia, a qual, ainda que não estritamente monetária, ou financeira, gera
um crédito, uma pretensão a um fazer ou não fazer, um dar, restituir ou conservar,
crédito este que se incorpora ao patrimônio do empresário, de modo que não pode
ser desconsiderado quando da análise da empresa.
A empresa, segundo o direito brasileiro é, em verdade, uma atividade,
instituída através de um contrato, o contrato social, e exercida através de tantos
outros, como, por exemplo, contrato de agência, de distribuição, de transporte, de
compra e venda, de locação, de prestação de serviços e tantos outros tipificados na
legislação ou decorrentes de criação pelas partes no exercício da autonomia
privada.
Esses contratos, por sua vez, proporcionam a circulação de riquezas,
determinando se, quando e de que forma a circulação patrimonial se efetivará. Sem
qualquer desses institutos, de empresa não se trata, manietando-se o fenômeno
empresarial. Contrato e propriedade caminham lado a lado no desenvolvimento da
atividade produtiva e de circulação de bens ou de serviços.
3.3 O pseudo-problema da função social da empresa
No cenário econômico atual, caracterizado pelas relações de consumo em
massa e pela formação de grandes grupos econômicos, sobreleva a necessidade de
se exigir, do agente econômico, estruturado sob a forma de empresa, uma
contrapartida social de sua atuação.
65
Veja-se, por exemplo, o que vem disposto no Enunciado nº 53, da I Jornada
de Direito Civil do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal:
“deve-se levar em consideração o princípio da função social na interpretação das
normas relativas à empresa, a despeito da falta de referência expressa”.
A questão fundamental, dentro desse raciocínio, é: como se exerce a função
social da empresa? A resposta a essa pergunta tem gerado enormes distorções, na
medida em que, em decorrência da própria estrutura da função social como cláusula
geral, têm-se criado diversas obrigações para o empresário, ao alvedrio da vontade
do magistrado, e ao arrepio do sistema jurídico.
Cláusulas gerais, como se exporá adiante, são textos de construção vaga,
estruturados dessa forma especificamente para conferir ao intérprete a possibilidade
de preenchimento quando de sua aplicação no caso concreto.
Sendo o Direito funcionalizado, finalístico, teleológico, os institutos jurídicos
também o são, de modo que a interpretação e a juridicização da atividade
empresária através da propriedade e do contrato devem, também, ser
funcionalizados. Não apenas isso. Devem ser socialmente funcionalizados, é dizer, o
exercício empresarial deve, necessariamente, resultar em proveito não apenas dos
particulares, mas de toda uma coletividade em que a empresa é exercida.
Da mesma forma a empresa, como uma atividade econômica exercida
através de contratos que são efetivados por meio do patrimônio do empresário, deve
ser direcionada no sentido da obtenção de proveitos socialmente benéficos,
impedindo-se a concreção dos interesses meramente egoísticos do agente
econômico82.
Isso, todavia, não implica afirmar, de logo, que exista um significado
específico e ínsito à expressão função social da empresa, na medida em que a
82 Cf. PEREZ, Viviane. Função social da empresa: uma proposta de sistematização do conceito. In ALVES, Alexandre Ferreira de Assupção; GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da (coord). Temas de direico civil-empresarial . Rio de Janeiro: Renovar, pp. 197/222.
66
atividade empresarial se estrutura e toma desenvolvimento por institutos outros: o
contrato e a propriedade, estes sim, dotados de função social própria.
Não se poderia falar, portanto, em função social da empresa como um
instituto jurídico autônomo, porquanto, dependendo a empresa, para sua
compreensão, do contrato e da propriedade, é através desses institutos, que já têm
sua função social tratada na legislação, que a função social da empresa é colimada.
Isso não significa que o exercício da atividade empresarial não deva reverter
em proveito da coletividade em que se encontra inserida. De modo algum. Afirma-
se, apenas, que não há um instituto jurídico que se possa identificar como função
social da empresa.
Se os dois institutos que compõem a empresa têm um âmbito específico de
cumprimento de função social, é através do atingimento, concomitante, da função
social do contrato e da propriedade que se poderá colimar um exercício
funcionalizado da empresa.
A função social, como será demonstrado em capítulos posteriores, é causa
de condutas positivas do proprietário e do contratante. É a razão de ser de uma
determinada exploração das faculdades jurídicas de contratar com alguém, usar,
fruir e dispor de determinado bem.
O exercício funcionalizado da empresa não é causa, mas consequência da
função social da propriedade empresária e dos contratos celebrados no âmbito da
empresa. Não se pode confundir determinado instituto jurídico com seus efeitos.
A função social da empresa, como causa de condutas, é absolutamente
vazia de conteúdo, pois somente será atingida, como já afirmado, por meio de
contratos e da propriedade.
67
Não se deve falar, portanto, em função social da empresa, mas em função
social da propriedade empresária e dos contratos empresariais. Em decorrência da
função social desses institutos, decorre o exercício funcionalizado da empresa.
Essa conclusão independe da teoria de empresa adotada. Se, por um lado,
compreender-se a atividade comercial ainda como decorrente de prática de atos de
comércio, esses atos, eminentemente contratuais, sofreriam incidência do disposto
no art. 421, do Código Civil, e do artigo 170, da Constituição Federal. O raciocínio é
válido para as teorias que compreendem a empresa como feixe de contratos ou
arranjos contratuais, que não prescindem da incidência das mesmas normas.
A teoria da empresa adotada pelo Código Civil de 2002, tomando-a como
uma atividade que se exerce através de contratos e de um patrimônio, exige, para
que seu exercício seja socialmente funcionalizado, o cumprimento da função social
da propriedade e do contrato.
A doutrina, sempre que busca um conceito para a função social da
empresa, esbarra na função social da propriedade, quer dos bens de produção, quer
da participação societária, e na função social do contrato, sejam contratos de
consumo, sejam contratos de emprego, sejam contratos empresariais83.
Veja-se, por exemplo, a compreensão de dois juristas brasileiros, Fabio
Konder Comparato e Eros Roberto Grau, respectivamente:
[...] em se tratando de bens de produção, o poder-dever do proprietário de dar à coisa uma destinação compatível com o interesse da coletividade, transmuda-se, quando tais bens são incorporados a uma exploração empresarial, em poder-dever do titular do controle de dirigir a empresa para a realização de interesses coletivos.84
Aí, incidindo pronunciadamente sobre a propriedade dos bens de produção, é que se realiza a função social da propriedade. Por isso, expressa-se, em regra, já que os bens de produção são postos em
83 Cf. OSMO, Carla. Pela máxima efetividade da função social da empresa. Função do Direito Privado no Atual Momento Histórico . NERY, Rosa Maria de Andrade (coord). São Paulo: RT, 2006, pp. 260-305. 84 COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financei ro. São Paulo: RT, n. 63, p. 80.
68
dinamismo, no capitalismo, em regime de empresa, como função social da empresa.85
Sobre as decisões do condutor da atividade empresária, no tocante à
realização de suas escolhas, leia-se, opção por modos de condução da empresa,
que se efetiva por intermédio dos contratos, veja-se o que afirma Alfredo Lamy Filho:
O dever social da empresa traduz-se na obrigação que lhe assiste, de pôr-se em consonância com os interesses da sociedade a que serve, e da qual se serve. As decisões que adota – como vimos – têm repercussão que ultrapassam de muito seu objeto estatutário, e se projetam na vida da sociedade como um todo. Participa, assim, o poder empresarial do interesse público, que a todos cabe respeitar.86
Veja-se, ainda, a citação adiante, que resume, em um só parágrafo, a
confusão conceitual que aqui se sustenta:
Em verdade, o papel social da empresa dá-se em quatro frentes: a) as condições de trabalho oferecidas aos seus empregados; b) as relações mantidas com seus consumidores; c) as relações de interesse mantidas junto aos seus concorrentes; d) as preocupações com a preservação do meio ambiente, na comunidade em que desenvolve suas atividades. Portanto, evidente a função social que a empresa tem desempenhado. Logo, exige-se da empresa uma atuação positiva e responsável em todos os momentos e não apenas em um deles.87
Esmiuçando-se a compreensão dos autores do texto acima colacionado,
tem-se que, na verdade, “a) as condições de trabalho oferecidas aos seus
empregados” não são função social da empresa, mas do contrato de trabalho; “b) as
relações mantidas com seus consumidores” dizem respeito à função social dos
contratos de fornecimento de bens ou de serviços, regido pelas regras do Código de
Defesa do Consumidor; “c) as relações de interesse mantidas junto aos seus
concorrentes” mantêm ligação não com a função social da empresa, mas com as
normas de concorrência desleal, incidentes quando há abuso de poder econômico88,
85 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988 . 12. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 260. 86 LAMY FILHO, Alfredo. A função social da empresa e o imperativo de sua reumanização. Revista de Direito Administrativo . Nº 190, p. 58. 87 PIRES, Eduardo; ARAÚJO, Neiva Cristina. Constitucionalização do direito civil: aspectos da função social da empresa. Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI. p. 10189. 88 “Procurando dominar o mercado e eliminar a concorrência para conseguir lucros excessivos, o indivíduo e a empresa acabam usando o poder econômico de que dispõem para a satisfação de ambições pessoais, deixando de atender à função social.” (CRETELLA JUNIOR, José. Comentários à Constituição de 1988 . v. 8. 1993, p. 426.)
69
decorrente de abuso na exploração da propriedade e na celebração de
determinados contratos; e “d) as preocupações com a preservação do meio
ambiente, na comunidade em que desenvolve suas atividades” também nada dizem
sobre função social da empresa, já que são tuteladas pelo exercício do direito de
propriedade, que não pode prejudicar o meio ambiente. Há um vínculo, aqui
também, com a função social do contrato, já que deve-se vedar a celebração de
contratos cujo objeto seja pernicioso ao meio ambiente.
A legislação que consagra a expressão função social da empresa também
não consegue desconstituir esse raciocínio. Com efeito, os arts. 116, parágrafo
único, e 154, da Lei 6.404/76, dispõem que
Art. 116. (omissis) Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender. Art. 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa.
A atuação do controlador e do administrador, quer na sociedade anônima,
quer em qualquer outro tipo de conformação societária, ou até mesmo o empresário
individual, como já explicitado acima, a respeito da citação de Alfredo Lamy Filho,
conduzem a atividade empresária através de contratos que celebram, dos mais
diversos matizes, dispondo, nesses contratos, do patrimônio empresarial. Resume-
se, portanto, sua atuação, ao cumprimento da função social da propriedade e dos
contratos empresários.
A atividade empresária apenas tem o condão de alterar a pré-compreensão
do que venha a ser função social da propriedade e do contrato empresariais, pois,
constituindo uma especificação no que concerne à propriedade e ao contrato
genericamente considerados, exigem interpretação própria, que é fornecida,
sobretudo, pelo artigo 170, da Constituição Federal, que tutela a ordem econômica,
cenário de atuação do empresário.
71
4 SOBRE A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA EMPRESA
A propriedade se manifesta, na atividade empresária, sob as mais diversas
formas, dentre as quais se podem destacar a propriedade dos bens de produção,
componentes do estabelecimento empresarial, e a propriedade, exercida pelos
sócios, das quotas em que se divide o capital social.
O estabelecimento empresarial contempla uma universalidade de bens –
materiais e imateriais – utilizados pelo empresário ou pela sociedade empresária
para a exploração do objeto social.
O exercício do domínio sobre esses bens deve obedecer ao preceito
constitucional de função social da propriedade, consagrado nos artigos 5º, inciso
XXIII, e 170, inciso III, da Constituição de 1988.
Este último, como princípio específico, tem o poder de condicionar a
interpretação e a aplicação da função social da propriedade quando se tratar de bem
afetado a uma atividade econômica de produção ou de circulação de bens ou de
serviços.
Em sendo assim, diante do caso concreto, é a ele que deve se valer o
aplicador da norma, conjugando-o a todos os demais princípios norteadores da
ordem econômica, estatuídos nos incisos do art. 170.
A não consecução da função social implica, como em toda e qualquer
propriedade sanções de ordem vária, a depender da natureza do bem explorado.
72
4.1 Noção de função social
A concepção romana que justificava a propriedade por sua origem foi
superada pela concepção aristotélica, que justificava a propriedade por seu fim, ou
seja, por sua função. Dessa maneira, a idéia de propriedade-função superou a idéia
de propriedade absoluta, denotando a superação da Filosofia pelo Direito, tal como
asseverado por Eros Roberto Grau89.
Do trinômio liberdade/igualdade/fraternidade, vetor ideológico da Revolução
Francesa, a solidariedade restou propositadamente esquecida na elaboração do
Código Civil de 1804 e do Código Comercial de 1807. A liberdade constitucional e a
igualdade formal conduziram, como já exposto acima, a um processo de exclusão
social que se fundou na acumulação de riquezas por uns poucos, em detrimento de
muitos.
Nesse estágio inicial de evolução do capitalismo, em que a atividade
empresarial de restringia, basicamente, a atividades de troca, importava apenas a
apropriação de bens pelo cidadão, sem se cogitar de uma coletividade com que ele
interagisse, de modo que, nessa fase primitiva da atividade empresarial, era
incentivada a intensificação da produtividade e lucros, sendo estimulado o acesso à
propriedade.
Acreditava-se, então, que a exclusão de controles por parte do ordenamento
propiciaria a geração de riqueza individual e culminaria por beneficiar indiretamente
a sociedade. Consolidava-se o liberalismo econômico, que teve, nessa época, Adam
Smith como seu maior expositor90.
89 “[...] a revanche da Grécia sobre Roma, da filosofia sobre o direito: a concepção romana que justifica a propriedade por sua origem (família, dote, estabilidade de patrimônios), sucumbe diante da concepção aristotélica, que a justifica por seu fim, seus serviços, sua função.” Apud LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa . Rio de Janeiro: Renovar: 2003, p. 105. 90 O autor tornou-se conhecido a partir da publicação de A Riqueza das Nações, em que defendia a existência de uma mão invisível que guiaria as condutas individuais no mercado, a partir das quais adviria o bem-comum.
73
O liberalismo do século XIX consagrou a idéia da coincidência entre o
interesse individual e o coletivo, afirmando que o direito subjetivo atingiria tão melhor
a sua finalidade quanto menores fossem as limitações impostas. Dessa maneira, os
direitos subjetivos poderiam ser exercidos de maneira irrestrita, em proveito
exclusivo do titular.
A liberdade de uns poucos importa opressão de uma massa de pessoas,
privadas de acesso a bens mínimos e excluídas até de sua dignidade. Ao contrário
do que defendiam os liberais, a liberdade exacerbada daqueles que detinham os
meios de produção implicou supressão da liberdade dessa massa, desprovida de
poder econômico e de tutela jurídica do Estado.
Somente em uma fase posterior de sedimentação da nova ordem do capital
coincidente com o advento do Estado Social, surge a preocupação com a divisão
social dos benefícios obtidos em mais de um século de respaldo à autonomia da
vontade.
Percebeu-se a insuficiência da concepção dos direitos subjetivos absolutos
para o convívio social. Esse é o motivo pelo qual foram sendo reconhecidas,
progressivamente, limitações à propriedade e a proibição ao abuso de direito.
Os riscos inerentes ao exercício descontrolado do poder econômico
evidenciaram que o excesso de liberdade poderia comprometer não apenas o livre
funcionamento do mercado, como também o direito dos consumidores e, até
mesmo, o poder político estatal91. Por esse motivo, a repressão ao abuso do poder
econômico mostrou-se necessária.
Tal fato chamou a atenção para a artificialidade da separação absoluta entre
o direito público e o direito privado, mostrando que este último possuía
compromissos com os interesses sociais. Em face disso, antes do Estado Social,
91 LOPES, Ana Frasão de Azevedo. Empresa e propriedade – Função Social e abuso do po der econômico . São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 304.
74
passou-se a cogitar da função social, como mecanismo capaz de administrar a
tensão entre os aspectos individual e social inerentes aos direitos subjetivos.
Seguindo essa linha, o século XX trouxe uma redução da liberdade e uma
revisão da autonomia da vontade, que passaria a ser entendida como autonomia
privada92, alterações estas levadas a cabo por meio de uma intervenção estatal nas
atividades sociais e econômicas.
Vale ressaltar que o percurso da função social foi bastante tormentoso, uma
vez que sua implementação efetiva dependia de uma modificação estrutural dos
direitos subjetivos que passavam a ser instrumentos, não apenas de prerrogativas e
faculdades do titular, mas também de deveres e responsabilidades para com os
demais membros da sociedade. No entanto, foi a ânsia de corrigir as falhas de
mercado, no Estado Social, que a incorporou, de fato, na sociedade93.
A expressão função social tem origem etimológica no latim functio, cujo
significado é de cumprir algo, ou desempenhar um dever ou uma atividade94. O
termo será aqui compreendido como expressão de uma finalidade de um
determinado instituto, ou seja, um certo modo de operar um instituto jurídico.
92 “A autonomia privada é poder que os particulares têm de regular, pelo exercício de sua própria vontade, as relações de que participam, estabelecendo-lhe o conteúdo e a respectiva disciplina jurídica. Sinônimo de autonomia da vontade para grande parte da doutrina contemporânea, com ela porém não se confunde, existindo entre ambas sensível diferença. A expressão ‘autonomia da vontade’ tem conotação subjetiva, psicológica, enquanto autonomia privada marca o poder da vontade no direito de um modo objetivo, concreto e real.” (AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 348) 93 Nada obstante o Código de 1916 não ter contemplado a função social da propriedade, seu idealizador, Clóvis Beviláqua, reconhece o progresso trazido pela Constituição de 1934, nos seguintes termos: “O conceito de propriedade se apresentava no Código Civil sob um cunho um tanto quanto rígido, apesar da tentativa de o adaptar ás exigencias da vida social, que propuzera o Projecto primitivo. Havia, assim, certa desconveniencia entre a definição legal (Código Civil, artigo 524) e as restricções desse mesmo corpo de leis e de outros diplomas llegislativos. A Constituição, porém, fixou a verdadeira doutrina social da propriedade, estatuindo: ‘é garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou collectivo, na forma que a lei determinar’. É uma fórmula feliz, porque attende, na propriedade, ao elemento individual, de cujos estímulos depende a prosperidade do agrupamento humano; ao elemento social, que é a razão de ser e finalidade transcendente do Direito; e, finalmente, ás mudanças, que a evolução cultural impõe á ordem jurídica.” (BEVILÁQUA, Clóvis. A Constituição e o Código Civil. In Opúsculos . II. Rio de Janeiro, 1940, p. 33) 94 Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia . São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 472.
75
Estrutura e função são os dois elementos que compõem o direito subjetivo.
A estrutura diz como se conforma determinado instituto, ao passo a que a função diz
para que serve95. Em sendo assim, pode-se afirmar que a gênese de um
determinado direito reside na estrutura, ao passo que a teleologia do mesmo é
captada pela sua função.
Função social é um atributo inerente a todo e qualquer direito subjetivo, isto
é, a todo interesse protegido pelo ordenamento jurídico, de modo que a realização
de qualquer faculdade, seja ela ligada à atividade econômica, ou não, apenas
encontrava limites em uma conduta culposa que eventualmente causasse danos a
terceiros. Afora essas situações extremas, exaltava-se a conduta egoística de
contratantes, proprietários e comerciantes, que tinham plena liberdade no exercício
de seus direitos legalmente reconhecidos.
O positivismo jurídico, cuja evolução se deu no mesmo período do
liberalismo, reduziu o Direito a processos biológicos e mecânicos na linha da
causalidade96, olvidando o conteúdo, a finalidade que a ele é inerente.
A ordem jurídica não é causal, mas é normativamente ordenada para
finalidades, sendo que o fim do direito é o bem-comum. Seria até mesmo
redundante se cogitar uma função social do direito, pois, pela própria natureza das
relações jurídicas, todo e qualquer direito subjetivo deveria ser direcionado à
consecução da justiça e do bem-estar social.
Apenas através de um exercício funcionalizado do direito subjetivo é que se
poderia concretizar a teoria do tridimensionalismo axiológico de Arnaldo
Vasconcelos, segundo o qual o direito deve ser justo, jurídico e legítimo97.
95 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civ il Constitucional . Tradução de Maria Cristina De Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 94. 96 Cf. VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica . 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. 97 VASCONCELOS, Arnaldo. Direito, Humanismo e Democracia . 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, pp. 17/33. Registre-se, porém, que o autor insere sua teoria no âmbito do poder estatal, ao passo que a legitimidade tratada neste trabalho leva em consideração as relações jurídicas eminentemente privadas, em que o exercício do poder econômico, através do contrato e da propriedade, exigem
76
O valor legitimidade, inserido num raciocínio de relação jurídica privada,
seria alcançado na medida em que o exercício do direito fosse direcionado de modo
a ser proveitoso coletivamente, isto é, socialmente funcionalizado.
Norberto Bobbio enfrenta a função social pelo viés da passagem do Estado
repressor para o Estado promocional98. Enquanto o direito repressivo procura
sancionar negativamente todo aquele que praticasse uma conduta contrária aos
interesses coletivos, o Estado promocional pretende incentivar condutas que sejam
coletivamente úteis, mediante imposição de sanções positivas, capazes de estimular
uma atividade, um fazer.
A função social é um princípio que opera um corte vertical em todo o
sistema de direito privado. Ela se compõe a própria estrutura de qualquer direito
subjetivo, para justificar a razão pela qual ele serve e qual papel desempenha.
4.2 Propriedade: do direito subjetivo à relação jurídica complexa
Concebendo especificamente o direito de propriedade como direito subjetivo
puro, as codificações liberais puseram o proprietário em uma posição jurídica de
superioridade hierárquica, na medida em que poderia exercer as faculdades, ou
poderes, de usar, fruir e dispor da coisa como lhe aprouvesse, ou mesmo não a
usar, não a fruir, nem dela dispor, sem que houvesse qualquer instrumento jurídico
capaz de interferir no domínio do indivíduo sobre o bem.
Essa concepção foi alterada pela admissão da teoria da função social da
propriedade, através de sua positivação na Constituição alemã de Weimar, em 1919,
legitimidade social, surgida do atendimento da função social dos institutos jurídicos, como contrato, propriedade e empresa. 98 BOBBIO, Norberto. Da Estrutura à Função: novos estudos de teoria do d ireito . Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. Barueri: Manole, 2007, p. 80.
77
cujo art. 153 assim expressa: “A propriedade obriga. Seu uso deve, ao mesmo
tempo, servir ao interesse da coletividade”99.
A intervenção legislativa serve como freio ao egoísmo do proprietário,
valorizando-se a fraternidade em detrimento da igualdade formal entre proprietários
e não-proprietários. Caio Mário da Silva Pereira chega a afirmar que,
“bombardeado de todos os ângulos, o absolutismo do direito de propriedade cede lugar a uma nova concepção. A ordem jurídica reconhece que os bens não são dados para que levem sua fruição até o ponto em que o ser exercício atente contra o bem-comum”100.
José de Castro Farias lembra o pensamento de Léon Duguit como introdutor
dessa mudança, atribuindo deveres aos titulares de direitos subjetivos: “na lógica
funcional de Duguit, um ato só tem valor social e jurídico se for determinado por um
fim conforme a solidariedade social”101.
Essa mudança de paradigma provoca uma necessária conciliação entre
poderes e deveres do proprietário, tendo em vista que a tutela da propriedade e dos
poderes econômicos e jurídicos de seu titular passa a ser condicionada ao
adimplemento de deveres sociais102.
A função social é incompatível com a noção de direito absoluto, oponível a
todos, em que se admite apenas a limitação externa, negativa. A função social 99 No original: “Eigentum verpflichet. Sein Gebraucht soll augleich dem Wohle der Allgemeinheit dienen”. 100 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito civil – alguns aspectos da sua evolução . Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 71. 101 FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade . Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 230. 102 Importante mencionar a mudança de entendimento de Eros Grau, que, sobre as obrigações positivas do proprietário, asseverou: “A esse respeito detive-me, em oportunidades anteriores, pensando ter demonstrado, então, suficiente e adequadamente, a compatibilidade entre direito subjetivo e função. O que mais releva enfatizar, entretanto, é o fato de que o princípio da função social da propriedade impõe ao proprietário – ou a quem detém o poder de controle, na empresa – o dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas, de não o exercer em prejuízo de outrem. Isso significa que a função social da propriedade atua como fonte de imposição de comportamentos positivos – prestação de fazer, portanto, e não, meramente, de não fazer – ao detentor do poder que deflui da propriedade.” (GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988 . 12. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 241)
78
importa limitação interna, positiva, condicionando o próprio direito. Lícito é o
interesse individual quando realiza, igualmente, o interesse social. O exercício do
direito individual da propriedade dece ser feito no sentido da utilidade, não somente
para si, mas para todos.
A revisão do direito de propriedade está ligada a três idéias centrais: (i) o
bem-comum, na medida em que a sociedade se guia por um objetivo de progresso,
identificado num bem coletivo, dispondo-se a realizá-lo. A esse bem se subordinam
os bens particulares; (ii) a participação, que transforma o indivíduo em ser humano,
promovendo e consolidando a dignidade da pessoa humana; e (iii) a solidariedade,
que, decorrente do reconhecimento da dignidade do outro, motiva condutas no
sentido de um crescimento não meramente individual, mas de um determinado
grupo.
A tutela constitucional da propriedade, insculpida no art. 5º, inciso XXII, da
Constituição Federal de 1988, é imediatamente seguida da idéia de função social,
porquanto o inciso XXIII preceitua que “a propriedade atenderá sua função social”.
Já não há como se admitir, como o fazia o Código de 1916, que o direito de
propriedade seja exercido de forma absoluta, sendo necessária a observância dos
reflexos que a utilização da propriedade gera para a coletividade.
Desde há algum tempo, o reconhecimento da necessidade de a propriedade
atender a uma função social vem consolidado na doutrina nacional, senão veja-se o
que afirmou, no início da década de 1980, Raimundo Bezerra Falcão:
Lembra Orlando Gomes a oposição que se levantou à inserção da noção de função social da propriedade. Apontava-se, então, uma insanável contradição. “Não se imaginava que, poucos anos depois, se chegaria à convicção, hoje generalizada, porque inclusive aceita em várias Constituições, de que a propriedade é uma função especial, de que a utilização dos bens, para o exercício de uma atividade produtiva, não pode mais ser admitida como um direito natural, que se exerce em proveito próprio, para tirar vantagens, porque se assumem os riscos desse exercício. Hoje, a idéia da função social está substituindo a de propriedade como direito subjetivo, ilimitado”.
79
Mas não é apenas isso que deve ser levado em conta. Cabe ressaltar, ademais, ser menos provável que a propriedade seja uma função social do que tenha uma função social. Isso eliminaria toda a pretendida contradição, considerando-se que a propriedade já nasceria como função e não como facultas agendi. 103
Muito tempo antes, em meados do século XIX, Teixeira de Freitas já havia
atentado para a necessidade de a propriedade conter um viés social. Na sua
Consolidação das Leis Civis consta a seguinte passagem:
A propriedade [...] compõe-se de dous elementos: um individual e outro social; se o primeiro é a base, o segundo é o regulador do direito de propriedade; e ambos devem ser combinados e harmonisados para dar á propriedade um caracter orgânico, reflexo das relações orgânicas que existem entre o indivíduo e a sociedade, entre o homem e a humanidade. Do mesmo modo que o indivíduo não deve ser absorvido pela sociedade, também o direito individual de propriedade não se perde no direito social. Eis a doutrina exacta, que sem fazer derivar só da lei a propriedade, como aliás pensárão Montesquieu e Bentham, attribue á lei o que verdadeiramente á lei pertence.104
Teixeira de Freitas antecipara, naquele momento, a noção de compreensão
do direito de propriedade como estrutura e função, conectando as faculdades
subjetivas do titular do direito (“base”) às obrigações decorrentes da propriedade
(“regulador”).
A configuração da função social na estrutura da propriedade sugere a este
direito um condicionamento, uma finalidade a ser alcançada. De início, a função
social era apresentada como mera indicação programática, despida de efeito
imediato na estrutura do direito de propriedade. Num segundo momento, passou a
ser identificada como limite externo ao domínio, um condicionamento sem atingir sua
estrutura de direito subjetivo.
Hoje se entende a função social como elemento intrínseco à propriedade,
revelando os valores e interesses a serem tutelados por este instituto, sem, no
103 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e Mudança Social. Ed. Forense. Rio de Janeiro. 1981. p. 236-237. 104 TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Consolidação das leis civis. Apud VARELA, Laura Beck. Das sesmarias à propriedade moderna: Um estudo de histó ria do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 219.
80
entanto, desnaturá-la, de modo que a propriedade deve ser estudada e exercida
segundo o texto constitucional, positivamente, isto é, nos sentido de que não
constitui restrição do direito, mas atribuição de novos poderes ao titular. Veja-se, por
oportuno, a noção de função social que é dada por Fábio Konder Comparato:
Quando se fala em função social da propriedade não se indicam as restrições ao uso e gozo dos bens próprios. Estas últimas são limites negativos ao direito de propriedade. Mas a noção de função, no sentido em que é empregado o termo nesta matéria, significa um poder, mais especificamente, o poder de dar ao objeto da propriedade destino determinado, de vinculá-lo a certo objetivo. O adjetivo social mostra que esse objetivo corresponde ao interesse coletivo e não ao interesse próprio do dominus; o que não significa que não possa haver harmonização entre um e outro. Mas, de qualquer modo, se está diante de um interesse coletivo, essa função social da propriedade corresponde a um poder-dever do proprietário, sancionável pela ordem jurídica.105
Nessa linha de idéias, propriedade não é mais tida como o direito subjetivo
de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa, entendimento já ultrapassado, por força
do qual poderia o titular exercer essas faculdades desmedidamente, ou, caso
preferisse, não as exercer.
Se o proprietário do Estado Liberal agia nos imites impostos pela lei,
podendo fazer o que quisesse, desde que não prejudicasse terceiros, o proprietário
atual sofre uma remodelação em decorrência da função social, de modo que deve
direcionar a propriedade ao interesse coletivo, desde que não prejudique a si106.
Não há contrariedade entre a propriedade e a função social, mas uma
necessária relação de complementaridade, como normas de mesma hierarquia. A
Constituição, assim, tutela a propriedade formalmente individual a partir do instante
105 COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financei ro. São Paulo: RT, n. 63, p. 75. 106 Cf. MAZZEI, Rodrigo Reis. A função social da propriedade: uma visão pela perspectiva do Código Civil de 2002. Função do Direito Privado no Atual Momento Históric o. NERY, Rosa Maria de Andrade (coord). São Paulo: RT, 2006, pp.377-410.
81
em que ela se revele socialmente funcionalizada, demonstrando merecimento e
garantindo sua perpetuidade e exclusividade107.
A ênfase à dimensão axiológica da propriedade é evidenciada, também, no
art. 170, incisos II e III, da Constituição Federal. A ordem econômica é fundada na
valorização do trabalho e da livre iniciativa, com a imprescindível conciliação da
propriedade com sua função social.
Através da função social, exige-se do proprietário que atue numa dimensão
em que realize interesses sociais, sem a eliminação do direito privado que incide
sobre o bem titularizado, isto é, sem que se lhe eliminem as faculdades de uso,
fruição, disposição e reivindicação da coisa.
Posicionando-se conforme essa orientação, Pietro Perlingieri afirma que a
propriedade
[...] deve ser entendida não como uma intervenção em ódio à propriedade privada, mas torna-se a própria razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído a um determinado sujeito, um critério de ação para o legislador e um critério de individuação da normativa a ser aplicada para o intérprete chamado a avaliar as atividades do titular.108
A função social, como já afirmado, penetra na própria substância do direito
de propriedade, expressando uma necessidade de atuação promocional por parte do
proprietário, pautada no estímulo a obrigações de fazer, consistentes em
implementação de medidas hábeis a impulsionar a exploração racional dos bens,
com a finalidade de satisfazer os seus anseios econômicos sem aviltar demandas
coletivas, promovendo o desenvolvimento econômico e social, de modo a alcançar o
valor supremo do ordenamento jurídico: a justiça.
A propriedade deixa de um cumprir uma função exclusivamente individual
de outorga de posição de vantagem a seu titular, de modo que, ao lado dessa 107 “Se o proprietário de um bem de produção não o usa, deixando-o deserto, lícito lhe não deveria conservá-lo. A perda da propriedade seria uma conseqüência lógica da idéia de função social.” (GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil . 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 79. 108 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civi l Constitucional . Tradução de Maria Cristina De Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 226.
82
função, há uma diretriz comportamental que direciona a conduta do proprietário ao
atingimento da função social.
A autonomia privada do titular coloca-se no plano da intersubjetividade, na
medida em que se exige do proprietário a compreensão de que seu
desenvolvimento se condiciona ao reconhecimento da dignidade alheia e do anseio
da sociedade por bem-estar.
A propriedade funcionalizada direciona-se à promoção dos valores
fundantes do ordenamento, sendo os interesses patrimoniais submetidos aos
Direitos Fundamentais. Qualquer atuação inferior ao patamar da função social será
compreendida como abuso do direito de propriedade.
Pode-se reconhecer a propriedade funcionalizada, portanto, como relação
jurídica complexa, caracterizada pela atribuição concomitante de direitos e deveres.
Nessa relação jurídica de direito real, o proprietário titulariza as faculdades de uso,
fruição, disposição e reivindicação do bem, ao passo, que lhe cabe um dever de
concessão de função social no momento do exercício dessas faculdades, ou da
própria inércia no referido exercício.
Por outro lado, à coletividade cabe um dever geral de abstenção,
consistente em um não fazer que se concretiza na garantia de liberdade do
proprietário para a utilização de seu patrimônio, ao passo que lhe cabe a
prerrogativa de exigir o atendimento da função social, sendo-lhe permitido, inclusive,
recorrer ao Judiciário, visando à aplicação das sanções previstas no ordenamento
para o desatendimento do comando constitucional.
Os atos de uso, fruição e disposição dos bens serão submetidos ao crivo de
atendimento da finalidade socializante, e, da mesma forma, os atos de reivindicação
poderão ser obstados ou paralisados, caso o proprietário descure do seu dever.
83
4.3 A função social da propriedade no Código Civil: a técnica das cláusulas
gerais
O Código Civil adotou a teoria da função social da propriedade no § 1º, do
art. 1228, cuja redação se transcreve:
O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
Da leitura do dispositivo, pode-se depreender que o legislador não adotou,
para a função social da propriedade, a técnica legislativa da casuística, em que se
prevê determinada situação fática e a consequente incidência de sanção jurídica,
positiva ou negativa, de modo que ao aplicador – magistrados, árbitros ou
contratantes – caberia praticar a subsunção do fato à norma.
Pelo contrário, adotou-se, para o tratamento privado da função social da
propriedade, a técnica da cláusula geral. Com efeito, a norma é redigida de forma
intencionalmente lacunosa e vaga, com grande abertura semântica. Em razão de
sua imprecisão, faculta-se ao aplicador uma interpretação que se ajuste ao influxo
contínuo dos valores sociais, promovendo-se uma constante atualização do sentido
da norma.
Cláusulas gerais, como a função social da propriedade, do contrato e da
empresa, são normas que descrevem valores e remetem a princípios, permitindo
que o direito privado seja focado sob a ótica dos valores objetivos da Constituição.
O Código Civil apóia-se num sistema aberto e móvel em que a ordem
jurídica é construída lentamente na doutrina e na jurisprudência, sem formação
estática de previsões normativas, de modo que se abre aos agentes do direito um
espaço para buscar o significado jurídico da norma.
84
A função social será sempre o resultado da ponderação de valores sociais
objetivamente justificáveis na Constituição Federal, criando-se a norma do caso.
Dessa forma, seriam adotados conceitos e princípios mais abertos, objetivando
armar um estilo de pensamento cada vez mais tópico, que apenas assume seu
significado diante do problema concreto a resolver.
A fixação do conteúdo real da norma jurídica não é tarefa do legislador, mas
missão confiada ao intérprete, de modo que, com a admissão da função social como
cláusula geral no Código Civil, tem-se uma norma genericamente imaginada pelo
legislador, que poderá se aplicar a um caso concreto do futuro, mesmo que já
alteradas as condições econômicas, políticas e sociais do momento da edição da
norma.
Como cláusula-geral, a função social tem ampla gama de destinatários,
quais sejam o titular da relação jurídica de propriedade, os terceiros não-
proprietários, o legislador e o juiz. Serve como parâmetro para o proprietário,
indicando-lhe o rumo de proceder de acordo com os valores fundamentais da
Constituição; serve de norte ao legislador para que não proceda ao proprietário
poderes supérfluos ou contraproducentes ao interesse social, servindo ao juiz como
critério de interpretação da disciplina proprietária.
4.4 A função social da propriedade na Constituição: princípio consagrador de
direito fundamental a ser cumprido pelo proprietário
O direito de propriedade, garantido pelo artigo 5º, inciso XXII, da
Constituição Federal, não reveste caracteres nem de princípio nem de direito
fundamental. Por outro lado, a função social da propriedade detém esses atributos,
na medida e que transforma a propriedade em relação jurídica complexa. Explica-se.
85
A propriedade, por si só, é um direito meramente privado. Sua previsão
encontra-se no art. 1228, do Código Civil e seu tratamento jurídico restringe-se às
normas civis e empresariais.
Os direitos fundamentais possuem características específicas que os
distinguem dos demais direitos espraiados pelo ordenamento. É essa caracterização
que permite afirmar se determinada norma jurídica consagra um direito fundamental
ou um direito despido dessa característica.
Podem-se mencionar dois desses caracteres109 que não se aplicam, de
forma nenhuma, ao direito de propriedade, aplicando-se, em sua inteireza, à idéia de
função social da propriedade:
(i) Inalienabilidade: os direitos fundamentais são intransferíveis, uma vez que
não possuem conteúdo jurídico patrimonial.
A propriedade é plenamente alienável, servindo os negócios jurídicos como
principais condutores da transmissão da propriedade. O Código Civil traz diversas
formas de mutação da titularidade da propriedade, como a compra e venda e a
doação, negócios translativos de domínio que se perfazem com a tradição doe bens
móveis e o registro da escritura de compra e venda, para os bens imóveis.
Especificamente quanto à atividade empresária, é de se ressaltar o contrato
de trespasse, contemplado no art. 1143, do Código Civil, através do qual se aliena o
estabelecimento empresarial como um todo unitário, isto é, como uma
universalidade de bens organizada pelo empresário.
A função social da propriedade, por outro lado, admite a inalienabilidade,
pois, consagrando um valor, a Constituição cria um dever para o proprietário. A 109 A escolha desses dois caracteres deflui de sua função especificadora. Com efeito, a inalienabilidade e a imprescritibilidade são dados determinantes na distinção entre direitos fundamentais e direitos gerais. Os demais traços distintivos apontados pela doutrina (Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo . 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 184), como historicidade, inviolabilidade, efetividade, interdependência e complementaridade, dentre outros, são características que servem tanto a um tipo como a outro, não sendo úteis na sua distinção.
86
função social da propriedade é, exatamente, o direito que a coletividade tem de
exigir, do proprietário, a considerações de interesses supra-individuais no exercício
das faculdades de usar, fruir e dispor do bem.
(ii) Imprescritibilidade: não se verifica, para os direitos fundamentais, a perda
da pretensão de sua proteção judicial. Os direitos fundamentais são, portanto,
sempre exigíveis, não operando, a prescrição, efeitos sobre os mesmos. Eventual
inércia do titular, no exercício de qualquer direito fundamental, não é capaz de
extinguir a exigibilidade de atendimento do direito.
A propriedade, como direito real, é dotada de perpetuidade, isto é,
caracteriza-se por permanecer indefinidamente na esfera jurídica do titular, sendo
suprimida, apenas, pelo advento de uma das formas de perda da propriedade
contempladas no ordenamento110. É característica que distingue os direitos reais dos
direitos obrigacionais, uma vez que estes são qualificados por sua transitoriedade,
extinguindo-se a relação jurídica com o adimplemento da obrigação.
Mas isso não significa que a propriedade seja eterna. O não exercício de
determinadas faculdades gera prejuízos ao proprietário, em decorrência do advento
da prescrição.
Tome-se, por exemplo, a faculdade de reivindicar o bem de quem
injustamente o possua ou detenha, estampada no final do art. 1228, do Código Civil.
Essa faculdade se exerce, judicialmente, através da ação reivindicatória, que, sendo
demanda com pretensão condenatória, sofre os efeitos da prescrição constantes no
art. 205, do Código Civil, isto é, não postulada a ação no prazo previsto em lei, ou
paralisada a demanda pelo mesmo prazo por culpa do proprietário, ocorre a
incidência de prescrição geral e intercorrente, de modo respectivo.
110 PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas . São Paulo: RT, 2008, p. 89.
87
Já se sustenta em doutrina111, ainda, que, sendo a ação reivindicatória a
demanda de recuperação pelo proprietário do conteúdo econômico do bem que se
encontre em posse ilegítima de terceiro, não haveria nada a recuperar, se o titular
restou omisso quanto à função social112.
Tal tese busca fundamento na circunstância de que a propriedade só
poderia ser reconhecida pelo ordenamento se, e na medida em que sua exploração
atingisse o mandamento da função social. Comportamento diverso desnaturaria o
direito, implicando sanções processuais ao titular do domínio, como o julgamento
improcedente de ação reivindicatória ou possessória.
Quanto às demais faculdades, de uso e gozo, sobremodo, não se pode
dizer, por um lado, que sofrem efeitos da prescrição extintiva. A perda das
faculdades, nesse caso, se dará por prescrição aquisitiva, ou usucapião. O
proprietário desidioso, que não cuida de deu patrimônio, deve ser privado da coisa,
em benefício de quem, unindo posse e tempo, deseja consolidar sua situação
jurídica.
Já o direito de exigir do proprietário o cumprimento da função social da
propriedade não se extingue nem perde exigibilidade em razão da inércia do titular.
O tempo não produz qualquer efeito em benefício do proprietário relutante,
permitindo a qualquer interessado postular contra aquele que não usa de forma
eficiente, ou abusa do domínio de seu patrimônio.
Não é a propriedade, portanto, direito fundamental, sendo-o, por outro lado,
a função social da propriedade. Afirmar isso não implica dizer que não haja um
111 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais . 4. ed. Rio de Janeiro, 2007, p. 206. 112 No mesmo sentido leciona Fabio Comparato: “o descumprimento do dever social de propriedade significa uma lesão ao direito fundamental de acesso à propriedade. Nesta hipótese, as garantias ligadas normalmente à propriedade, notadamente a de exclusão de pretensão possessória de outrem, deve ser afastada. Como foi adequadamente salientado na doutrina alemã, a norma de vinculação social da propriedade não diz respeito, tão só, ao uso do bem, mas à própria essência do domínio. Quem não cumpre a função social perde as garantias judiciais e extrajudiciais de proteção da posse.” (COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. Revista CEJ . Nº 03. Disponível em http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/cej/article/viewArticle/123. Acesso em 02.MAR.2009)
88
direito fundamental à propriedade. O direito de tornar-se proprietário, de assumir um
patrimônio próprio, é assegurado a todas as pessoas, caracterizando-se, portanto,
como direito fundamental. O que se defende, neste trabalho, é que o direito do já
proprietário apenas revestirá qualidades de direito fundamental quando estiver
associado à função social.
Inserindo esse raciocínio na tese de que a propriedade é relação jurídica
complexa, gera-se uma revisão da própria estrutura da relação jurídica de direito
real, senão veja-se: nessa relação jurídica, o proprietário titulariza o direito de exigir,
dos não-proprietários, um dever genérico de abstenção, em decorrência da proteção
constitucional assegurada pelo art. 5º, inciso XXII; e, por outro lado, a coletividade
tem o direito de exigir do proprietário que conceda função social à propriedade, por
força do já mencionado inciso XXIII, do mesmo artigo.
A expressão relação jurídica complexa sintetiza exatamente esta realidade
de direitos e deveres recíprocos, derivados de um mesmo fato jurídico – a
propriedade – exprimindo dias situações jurídicas contrapostas e o balanceamento
de interesses de cada um dos pólos da relação.
O cumprimento da função social encerra, portanto, uma obrigação de fazer
ou não-fazer, a ser empreendida pelo proprietário, em atendimento às necessidades
sociais, exigíveis pela coletividade em caso de inadimplemento do titular do bem.
Integra o direito de propriedade, por vincular o direito subjetivo ao atendimento do
interesse social.
Contribui, ainda, para a identificação de deveres a serem observados pelo
titular do direito real, inseridos na relação jurídica firmada com toda a coletividade,
diante da ampla oponibilidade de seu direito, inclusive erga omnes.
Diante dessa constatação, pode-se afirmar: se há um direito de propriedade,
assegurado pela Constituição Federal, é de se ter que, diante da eficácia horizontal
dos direitos fundamentais, que faz incidir os direitos e garantias fundamentais nas
relações entre particulares, e sendo a propriedade uma relação jurídica complexa,
89
envolvendo o proprietário e a coletividade, não se pode negar que há, em benefício
desta, um direito fundamental ao atendimento da função social da propriedade,
exigível do titular desta mesma propriedade.
Se o direito deste último se fundamenta no inciso XXII, do art. 5º, e no inciso
II, do art. 170, o direito fundamental ao atendimento da função social da propriedade
tem fundamento no inciso XXIII do mesmo art. 5º, no inciso II, do art. 170, e nos arts.
182 e 186, todos da Constituição Federal.
O sujeito passivo universal da relação jurídica de direito real converte-se, em
razão da função social da propriedade, em sujeito ativo universal. Todo e qualquer
interessado, ou prejudicado, pelo não cumprimento da função social da propriedade,
pode exigir que o titular do direito real efetive o direito fundamental da função social
da propriedade.
A Constituição não estabelece parâmetros objetivos da aferição do
cumprimento da função social, por tal conceito encerrar uma idéia evolutiva, variável
conforme o objeto em análise, bem como em razão da estrutura do próprio grupo
social, do tempo, do espaço e das regras específicas vigentes, aplicáveis ao caso
concreto.
Caso o proprietário não cumpra o dever constitucional, sofrerá sanções
diferenciadas, conforme o grau de desídia e o modelo de propriedade. Isto porque
não existe apenas uma única função social da propriedade, mas funções sociais de
diversas propriedades: a pequena e a grande, a propriedade dos bens de consumo
e a propriedade dos bens de produção.
A defesa do direito à função social é exercida nos casos previstos em lei,
isto é, apenas mediante norma expressa será permitida a interferência na
propriedade. Conforme salientou Pietro Perlingieri, os limites à propriedade que não
se inserem na norma são “lesivos da reserva de lei que caracteriza a propriedade,
90
ora porque não merecedores da tutela na medida em que são limitativos ou
impeditivos da função social ou da acessibilidade a todos, da propriedade”113.
Nesse sentido, a defesa dos interesses difusos e coletivos dos não-
proprietários será incumbida aos legitimados extraordinários, especialmente ao
Ministério Público pela via da ação civil pública, com imposições de obrigações de
fazer, como, por exemplo, exigir o fim da sub-produtividade, de não-fazer, de que é
exemplo a cessação do abuso de direito, de dar, como a indenização pelos danos
causados, tudo em conformidade com o disposto na Lei Federal nº 7.347/85, para a
efetivação do princípio da função social.
Mais ainda: quando se afirma que a função social da propriedade é um
princípio constitucional consagrador de direitos fundamentais, adota-se a teoria de
Robert Alexy114, para o fim de afirmar que a funcionalização do instituto corresponde
à efetivação de um mandamento de otimização.
A redação da norma constitucional estrutura-se como princípio, na medida
em que, ao contrário das regras, não determina uma conduta específica a ser
concretizada, mas um valor a ser perseguido pelos particulares.
4.5 A função social da propriedade na empresa
No que toca ao exercício da propriedade na empresa, tem-se que há,
unicamente, uma especificação principiológica no tratamento das faculdades de
usar, fruir e dispor a coisa.
Com efeito, situando-se a empresa no âmbito da livre iniciativa e
configurando-se como um dos principais agentes da ordem econômica, é de se ter
que a tutela da propriedade, na empresa, ocorrerá desde que sua exploração se dê
113 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 229. 114 Cf. ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales . Madri: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997.
91
em conformidade com todos os princípios elencados no art. 170, da Constituição
Federal.
É a partir dos valores ali discriminados que o intérprete e o aplicador se
inspirarão para verificar, no caso concreto, se a propriedade empresária atinge, ou
não, a função social, fazendo incidir as normas já constantes no ordenamento, para
o caso de seu não-cumprimento.
4.5.1 O Estabelecimento Empresarial
Todo sujeito que se dedique à exploração de uma atividade econômica
necessita de uma organização, por mais singela que seja, sob pena de insucesso.
Organizar-se implica criar uma estrutura adequada para a instalação e o
desenvolvimento do negócio.
Em conformidade com lição de Rubens Requião, com o estabelecimento “o
empresário aparelha-se para exercer sua atividade. Forma o fundo de comércio a
base física da empresa, constituindo um instrumento da atividade empresarial.”115
O Código Civil de 2002, inspirado no Código Civil italiano de 1942, define o
estabelecimento empresarial no artigo 1142, como sendo “todo complexo de bens
organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade
empresária”.
O estudo do estabelecimento empresarial coloca-se, desde logo, como a
reflexão sobre um dos elementos da empresa, qual seja aquele de natureza
patrimonial e instrumental, por meio do qual a atividade organizada e
profissionalmente desenvolvida pelo empresário poderá alcançar objetivos próprios, 115 REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial . v. 1. 28 ed. edição ver. e atual. por Rubens Edmundo Requião. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 290. (grifos no original)
92
de modo que produz, por esta só razão, reflexos que se concretizam na geração de
interesses suplementares àqueles que seriam próprios da mera avaliação
individualizada dos bens que, num determinado momento, compõem o arsenal de
instrumentos que permitem ao empresário o desenvolvimento de certa atividade e
que assim configuram o instituto jurídico da empresa.
Dessa forma, os bens que estiverem sob a titularidade de algum indivíduo
ou de um grupo de pessoas físicas ou jurídicas, além de possuírem um valor
intrínseco derivado de sua mera existência material, poderão ser valorizados pela
destinação produtiva que a eles venha a ser dada pelo empresário, quando
assumirão, então, o estado de verdadeiros bens de produção.
Constata-se que diversas poderão ser as espécies de estabelecimentos –
bancários, fabris, editoriais etc. – qualificando a doutrina, todos eles, como
estabelecimentos comerciais, ou seja, aqueles constituídos pelo complexo de bens
organizados pelo empresário na qualidade de instrumentos necessários ao exercício
da atividade empresarial.
O estabelecimento não pode ser conceituado como um amontoado de bens
que, por uma razão qualquer, estejam agrupados, mas, por outro lado, como um
instituto jurídico em que se compreenda uma valorização distinta e superior àquela
que resultaria da simples soma de tais bens, constituindo-se como um sistema de
elementos heterogêneos que, apesar de serem detentores de distinta natureza e de
estarem colocados em diversos planos de coordenação e subordinação, são
destinados, todos eles, ao desempenho de uma finalidade produtiva comum.
Tal constatação é que gera a necessidade da proteção específica que,
direta ou indiretamente, encontra-se prevista nos ordenamentos jurídicos, dirigida ao
resguardo do que se poderia entender como sendo a mais-valia que nesse
complexo de bens deve-se buscar identificar.
Diante desse raciocínio, pode-se afirmar que o estabelecimento não se
exterioriza nos limites das relações de acessoriedade entre coisas, mas, sim, a partir
93
da organização de bens da mais diversa natureza, entrelaçados por um elo de
complementaridade, que tanto pode ser de subordinação como de coordenação.
Dentre os bens materiais do estabelecimento, compreendem-se as coisas
corpóreas, móveis e imóveis, como, por exemplo116:
• Imóveis: depósitos, edifícios, armazéns, imóveis rurais etc.;
• Móveis: utensílios, veículos, máquinas etc,:
Sobre os bens imateriais, podem-se mencionar:
• Sinais distintivos: nome empresarial, título de estabelecimento,
marcas etc.:
• Direitos de propriedade industrial: patentes de invenção e modelo
de utilidade e desenhos industriais;
• Ponto comercial: direito de permanência no imóvel em que se
desenvolve a atividade, bem como a possibilidade de postular
renovação compulsória do contrato de locação empresarial.
A organização desses bens, realizada pelo empresário, tem fundamento na
consecução de um objetivo predeterminado, qual seja aquele de permitir que se
desenvolvam as atividades que foram planejadas para serem executadas no âmbito
da empresa. Por tal razão decorre o caráter verdadeiramente funcional deste
conjunto de bens.
Sobre os bens móveis e imóveis, a proteção constitucional dos interesses
do empresário se dá em conformidade com o disciplinamento dos direitos reais, tal
como estipulado no Código Civil. O atendimento de sua função social, por
116 Cf. FAZZIO JUNIOR, Waldo. Manual de Direito Comercial . São Paulo: Atlas, 2000, p. 101.
94
conseguinte, encontra fundamento nas regras do art. 170, da Constituição, e do art.
1228, § 1º, do Código Civil.
Os bens imóveis merecem especial atenção na medida em que a própria
Constituição explicita os traços definidores da sua função social: quanto à
propriedade imobiliária urbana, a função social se atinge por seguimento às normas
do plano diretor de cada município117 (art. 182, § 2º/CF).
O não atendimento desses regramentos implica a incidência de sanções
previstas na própria constituição, como parcelamento e edificações compulsórios,
imposto sobre propriedade urbana progressivo no tempo e desapropriação.
Quanto à propriedade imobiliária rural, o disciplinamento encontra-se no art.
186, da Constituição, que elenca uma série de requisitos identificadores da função
social, a saber: Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural
atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em
lei, aos seguintes requisitos: aproveitamento racional e adequado; utilização
adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e exploração que
favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Importa asseverar que os requisitos mencionados na legislação
constitucional são cumulativos, de sorte que o não preenchimento de qualquer um
possibilita a incidência da sanção por não cumprimento da função social:
desapropriação para fins de reforma agrária.
No que toca aos bens decorrentes da propriedade industrial, como patentes
de invenção e modelo de utilidade, registro de desenho industrial e de marcas,
117 “O plano diretor, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico do desenvolvimento e da expansão urbana. Exige-se a função social da propriedade, atendida se compatível com a ordenação da cidade expressa no plano diretor. [...] A política urbana objetiva o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, e da propriedade urbana. Garante a cidade sustentável, a moradia, o saneamento ambiental, a infra-estrutura urbana, transporte, serviços públicos e lazer [...].” (ROSAS, Roberto. A cidade e seu estatuto jurídico. In O Direito & o Tempo: embates jurídicos e utopias cont emporâneas. TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (org.). Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 679.)
95
impende afirmar que a Constituição traz um dispositivo próprio a fim de disciplinar
sua função social.
Trata-se do inciso XXIX118, do art. 5º, que condiciona a proteção a esses
direitos ao atingimento de duas finalidades específicas: o interesse social e o
desenvolvimento tecnológico e econômico do País119.
Rendendo cumprimento a esses dispositivos constitucionais, nas
específicas hipóteses de incidência de cada uma das normas, o empresário explora
a atividade econômica de modo a atingir a função social que lhe é imposta.
4.5.2 A titularidade da participação societária
É obrigação dos sócios contribuir, com bens ou serviços120, para a
realização dos fins da atividade empresarial. Interessa, aqui, a contribuição em
patrimonial, dado o foco do trabalho. As contribuições com recursos patrimoniais
pode ser realizada com qualquer espécie de bens, corpóreos ou incorpóreos,
dinheiro, direitos e ações, exigindo-se, apenas, que sejam avaliáveis
pecuniariamente.
A contrapartida da contribuição dos sócios é a quota social. O sócio que
destina bens para a formação do capital social recebe, como retribuição, uma
participação desse capital, isto é, uma quota.
118 “XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;” 119 Cf. GUERRERO, Camilo Augusto Amadio. O fundamento científico da função social da propriedade intelectual. Função do Direito Privado no Atual Momento Históric o. NERY, Rosa Maria de Andrade (coord). São Paulo: RT, 2006, pp. 185-259. 120 Exclui-se a participação em serviços nas sociedades limitadas e nas sociedades por ações, em razão do disposto no § 2º, do art. 1055, do Código Civil e 7º, da Lei Federal nº 6.404/76, respectivamente.
96
Essa quota vem a ser, nas palavras de Alfredo de Assis Gonçalves Neto,
“um bem imaterial, ou incorpóreo, de existência autônoma e de valor próprio, que
pode ser objeto de relações jurídicas. O sócio, assim, subscreve quotas, adquire
quotas, aliena quotas etc.”121.
Em razão da titularidade dessa quota, o sócio assume direitos pessoais,
como direitos de fiscalizar a atividade dos administradores, participar das
deliberações sociais, de administrar a sociedade e até mesmo de se retirar da
mesma; e patrimoniais, como o são os direitos de participação nos lucros da
atividade empresária, e de participação no acervo patrimonial da pessoa jurídica,
nas hipóteses de sua liquidação, quer por forma antecipada – falecimento, retirada
voluntária ou exclusão – quer por dissolução da sociedade.
Essa titularidade assume caráter de direito de propriedade de bem imaterial,
submetido, também, ao preceito constitucional da função social da propriedade.
João Luis Nogueira Matias assevera essa realidade, quando afirma que
Ao proprietário de parcelas do capital social, bens que se diferenciam dos direcionados à atividade empresarial e que não compõem o acervo da empresa, são imputados deveres em razão da função social que deve nortear o exercício dos direitos de propriedade sobre tais bens, exatamente o que se denomina de propriedade empresária.122
O sócio titular de quotas – ou ações, nas sociedades institucionais – deve
fazer o uso dessa propriedade em consonância com as diretrizes que já foram acima
explicitadas, sob pena de sofrer sanções previstas no ordenamento, como, por
exemplo, a exclusão por cometimento de abuso de direito, como uma medida interna
da sociedade.
Evidencia-se, aqui, a figura do sócio controlador, sujeito que, por ter maior
participação acionária, detém o poder de decisão sobre os rumos da atividade.
Nesse sentido, o exercício da faculdade de usar o bem – quota ou ação – deve ser
121 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de Empresa . São Paulo: RT, 2007, p. 163. 122 MATIAS, João Luis Nogueira. A função social da empresa e a composição de intere sses na sociedade limitada . No prelo, p. 70.
97
conforme os interesses sociais, vedando-se o atendimento egoístico de interesses
exclusivamente econômicos.
98
5 SOBRE A FUNÇÃO SOCIAL DOS CONTRATOS NA EMPRESA
Conforme mencionado no Capítulo Segundo, em que se tratou do pseudo-
problema da função social da empresa, a atividade empresária se cria e se
desenvolve por conduto de contratos, negócios jurídicos que disciplinam desde sua
constituição – o contrato social – até o seu funcionamento – contratos de trabalho,
fornecimento e consumo –, não se olvidando as demais avenças celebradas para a
consecução do objeto social, como os contratos de agência, distribuição, compra e
venda, transporte, dentre muitos outros, típicos e atípicos.
Todos esses negócios devem – uns com maior carga, outros com menos
vigor – dar concretude do princípio da função social dos contratos, positivado no art.
421, do Código Civil de 2002.
5.1 Sobre o Princípio da Função Social dos Contratos
Na análise da finalidade, ou função do contrato, sobreleva revisitar a obra
de Ihering123, com sua concepção finalista do contrato, pois função social e
finalidade social são, como já referido em capítulo anterior, expressões sinônimas,
que, aqui, expressam a teleologia do fenômeno jurídico a que se referem.
A noção de finalidade no pensamento de Ihering tem caráter explicativo do
sistema jurídico, de modo que a finalidade do direito circunda a demonstração de
que o direito possui forte vínculo com as necessidades sociais. Por isso o interesse,
como motor da vontade, dirige as ações humanas124.
123 IHERING, Rudolf Von. A finalidade do direito . Tradução de José Antônio Faria Correa. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979. 124 O autor inicia sua obre afirmando que “[...] sem causa eficiente, um movimento de vontade é tão inconcebível quanto o movimento da matéria; acreditar na liberdade de querer no sentido de a
99
Baseia Ihering sua teoria na figura do interesse, fator determinante dos fins
a serem atingidos. Por isso, quando um sujeito tem interesse em algo que não lhe
pertence, busca motivar o outro a ter interesse em suas coisas. Haveria, assim, a
ligação do interesse individual com o interesse alheio125.
O interesse contratual, segundo Ihering, não é um interesse objetivo, que
possa estar vinculado a fins sociais. Interessar-se por um fim é pressuposto para
qualquer ato de vontade, ainda que o interesse seja exíguo. Interesse é um ato
puramente individual.
Sendo assim, Ihering divide os fins humanos em individuais e sociais – os
primeiros relativos aos interesses egoísticos e os segundos, relativos ao modelo
pelo qual o Estado e a sociedade aliciam o indivíduo para que coopere com sua
realização.
Nessa divisão, o contrato é inserido entre os fins individuais: forma-se o
acordo de vontade pelo tangenciamento dos interesses, que se torna imutável uma
vez celebrado o contrato. O reconhecimento da obrigatoriedade dos contratos sob o
ponto de vista teleológico é uma garantia da finalidade originária contra a influência
de uma alteração superveniente de interesses.
Ihering não faz menção expressa à função social do contrato, mas se refere
à função prática e negocial da promessa, para dizer que a função dos contratos está
vinculada à sua força obrigatória e à eficácia vinculativa do acordo de vontades. A
obrigatoriedade do contrato deve ser identificada juntamente com o fator finalidade,
ou seja, a função negocial da promessa, e não pela análise da natureza da vontade.
A contribuição dessa concepção funcional limita-se a despertar um interesse
objetivo uniforme ou uma finalidade comum a todos os contratos. Apesar disso, ao
vontade poder spontaneamente, sem qualquer causa impulsora, pôr-se em movimento, é como acreditar no mentiroso que diz sair do pantanal agarrando-se no topete” (IHERING, Rudolf Von. A finalidade do direito . Tradução de José Antônio Faria Correa. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979, p. 10) 125 IHERING, Rudolf Von. A finalidade do direito . Tradução de José Antônio Faria Correa. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979, p. 17.
100
despertar para o estudo da finalidade do direito, teve o papel de situar
historicamente o contrato, atribuindo-lhe significado social em razão da reflexão a
respeito do interesse.
Evidentemente, não há compatibilidade entre o pensamento de Ihering e um
interesse geral subjacente ao contrato, exceto quanto à força obrigatória. A
existência de um interesse geral como objeto do contrato é simplesmente tratada
como interesse jurídico suficiente para dotar o contrato dessa eficácia.
A principal contribuição dessa obra de Ihering para a teoria da função social
foi afirmar a necessidade de que toda proposição jurídica precisa ser vista de acordo
com sua função, o que provoca o nascimento do pensamento teleológico aplicado
ao direito.
Fundado no pensamento de Ihering, no que toca à teleologia do direito e,
por via de consequência, do contrato, Clóvis Beviláqua126 defende que a primeira e
mais elevada função social do contrato é a função de conciliação de interesses
colidentes, surgida para salvar a sociabilidade, condição essencial para a vida
humana, ou seja, a co-existência social, a partir da necessidade de superar-se o
período de lutas contínuas, em que os grupos primitivos preferiam tomar aquilo de
que necessitavam, para obtê-lo pela troca.
Entende o autor do Código de 1916 que, individualizado, contrato obteve
outra função, que se veio a colocar ao lado da primeira. Passou a ser um modo de
afirmar a individualidade humana, pois, quanto mais variam os contratos, quanto
maior é o número de bens sobre os quais eles versam, tanto mais forte e extensa é
a personalidade individual, tanto mais vastas são as utilidades que ela tem a seu
dispor.
126 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das obrigações . Rio da Janeiro: Editora Rio, 1992, p. 154.
101
De outro lado, Léon Duguit127, partindo do fato de que o homem vive em
sociedade, e de que a sociedade é um fato primitivo e humano e não produto da
vontade, conclui que todo sujeito, desde seu nascimento, integra um agrupamento e
adquire consciência de uma sociabilidade que sempre esteve presente, enquanto
dependência do homem em relação à comunidade.
Por mais diversas que as formas sociais se tornem no decorrer da história,
por mais variados que sejam os laços de solidariedade unindo os membros de um
mesmo grupo social, uma regra de conduta impõe-se ao homem social pelas
próprias contingências contextuais, e essa regra, segundo Duguit, pode ser afirmada
da seguinte forma: não praticar nada que possa atentar contra a solidariedade social
e, concomitantemente, conduzir-se de modo a desenvolvê-la.
Desse modo, é possível reconhecer que a existência da sociedade
pressupõe a solidariedade social e que as regras de conduta dos homens que vivem
em sociedade devem se pautar pela sua concretização.
A noção de função social decorre do fato de que todo indivíduo tem, na
sociedade, uma certa função a preencher, uma determinada tarefa a realizar, não
podendo se esquivar dessa execução, uma vez que sua abstenção resultaria em
prejuízo social. Todos os atos realizados, contrários à função que corresponde ao
indivíduo, serão socialmente reprimidos; de outro lado, os atos que cumprem a
função devem ser socialmente protegidos e garantidos.
O Código Civil de 2002 sofreu influências do pensamento de Duguit. O
princípio da função social dos contratos foi trazido no artigo 421, que assim dispõe:
“A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do
contrato”128.
127 DUGUIT, Léon. Fundamentos do direito . Tradução de Márcio Pugliese. São Paulo: Ícone, 1996, pp. 21/29. 128 Miguel Reale, na exposição de motivos do anteprojeto, menciona a importância dessa inovação do sistema obrigacional brasileiro, uma vez que um dos objetivos primordiais do novo Código seria “tornar explícito, como princípio condicionador de todo o processo hermenêutico, que a liberdade de contratar só pode ser exercida em consonância com os fins sociais do contrato, implicando os valores
102
Pela nova compreensão do contrato, adotada pela legislação civil, os
negócios jurídicos devem ser criados e interpretados levando-se sempre em
consideração a concepção do meio social em que estão inseridos, não gerando
onerosidade excessiva ou injustiça aos contratantes, garantindo-lhes igualdade
material, de modo a equilibrar a relação jurídica em que se verificar a
preponderância de um dos contratantes sobre o outro129.
Mas não é apenas no art. 421 que o Código Civil prevê a função social dos
contratos. Com efeito, o parágrafo único do art. 2035 traz regramento bem mais
severo do que o dispositivo acima transcrito, quando preceitua que “nenhuma
convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os
estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos
contratos”.
Essas inovações legislativas provocaram efetiva mudança de compreensão
do direito contratual, na medida em que privilegiam as tendências socializantes do
direito, antenadas com a valorização da dignidade da pessoa humana, efetivando o
objetivo constitucional da construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art.
3º, I, CF/88), em que, por meio da atividade privada, se atinja, na medida do
possível, o objetivo constitucional expresso no inciso III, do art. 3º, da Constituição
Federal de 1988, qual seja o fim de “erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais”.
Percebe-se, pelo texto do Código, o sentido social como uma de suas
características mais marcantes. Conforme destaca Miguel Reale: “se não houve a
vitória do socialismo, houve o triunfo da socialidade”130. O legislador fez prevalecer
os valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, de valores
fundamentais da boa-fé e da probidade. Trata-se de preceito fundamental, dispensável talvez sob o enfoque de uma estreita compreensão do Direito, mas essencial à adequação das normas particulares à concreção ética da experiência jurídica”. (REALE, Miguel. O projeto do novo Código Civil . São Paulo: Saraiva, 1999, p. 71) 129 NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas . 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 130 REALE, Miguel. O projeto do novo código civil . São Paulo: Saraiva, 1999, p. 07.
103
humanísticos, consagrando, como já ressaltado em capítulo anterior, os princípios
constitucionais da solidariedade e da dignidade da pessoa humana.
Com tal grau de abstração, o conteúdo da função social, na condição de
conceito jurídico-normativo, a exemplo de tantos outros, de contornos vagos e
abertos, exigiu positivação sob estrutura de cláusula geral, reclamando constante
concretização e delimitação através da análise do caso concreto, de modo que se
permite, ao magistrado e ao legislador, segundo Miguel Reale, uma função mais
criadora, em consonância com o princípio da eticidade, cujo fulcro fundamental é o
valor da pessoa humana como fonte de todos os valores131.
Objetiva-se, com a adoção da cláusula geral de função social do contrato,
segundo o próprio Reale, uma estrutura normativa concreta, destituída de qualquer
apego a meros valores formais abstratos. Esse objetivo de concretude impõe
soluções que deixam margem ao juiz e à doutrina, com frequente apelo a conceitos
integradores da compreensão ética, tal como os de boa-fé, equidade, probidade,
equivalência das prestações, o que talvez não seja do agrado dos partidários de
uma concepção mecânica ou naturalística do Direito. A exigência de concreção
surge exatamente da contingência insuperável de permanente adequação dos
modelos jurídicos a fatos sociais.
O reconhecimento expresso da existência de uma função social
desempenhada pelo contrato, que lhe é inerente e que não pode deixar de ser
observada, representa uma reação anti-individualista que impõe uma completa
alteração da forma de sua interpretação132 133.
Isso porque deixa-se de considerar apenas a intenção das partes e a
satisfação de interesses meramente individuais e passa-se a reconhecer o contrato
131 REALE, Miguel. O projeto do código civil: situação atual e seus pr oblemas fundamentais . São Paulo: Saraiva, 1986, p. 84. 132 Cf. SOARES, Renzo Gama. Breves comentários sobre a função social dos contratos. Função do Direito Privado no Atual Momento Histórico . NERY, Rosa Maria de Andrade (coord). São Paulo: RT, 2006, pp. 441-460. 133 Cf. COSTA NETO, Moacyr da. A interpretação dos contratos e o abuso de direito. Função do Direito Privado no Atual Momento Histórico . NERY, Rosa Maria de Andrade (coord). São Paulo: RT, 2006, pp. 362-376.
104
como um instrumento de convívio social e de preservação dos interesses da
coletividade, no que encontra sua razão de ser e de onde extrai a sua força,
porquanto é a ordem social que lhe confere eficácia.
Importa asseverar, nessa senda, que o Código Civil de 2002, no art. 421,
condiciona a própria liberdade de contratar ao atingimento de valores maiores do
ordenamento, como a função social do contrato134 135.
Por condicionar o interesse dos contratantes à consecução de finalidades
superiores aos seus interesses é que se pode dizer que o princípio da função social
dos contratos contempla duas eficácias: uma eficácia interna, relacionada às partes,
e uma eficácia externa, que tem sentido para além destes.
O contrato, tem, portanto, duas funções concomitantes e inseparáveis: uma
função endógena, exclusivista, ou interna, que é a finalidade de satisfazer os
interesses das partes, relativamente ao negócio jurídico específico que se pretende
celebrar; e, por outro lado, em razão do princípio ora em comento, uma função
exógena, ou externa, ou social, que se consubstancia na finalidade de o negócio ser
proveitoso – ou quando muito, não lesivo – ao meio social em que os contratantes
estão envolvidos.
O Enunciado nº 23, aprovado na I Jornada de Direito Civil, confirma a idéia
de dupla eficácia da função social dos contratos, no momento em que preceitua: “a
função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o
princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio
quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à
dignidade humana”. 134 Flávio Tartuce, sustentando a originalidade do legislador brasileiro, afirma que essa limitação axiológica “trata-se [...] de criação brasileira, não havendo previsão em qualquer outra codificação de outro país. Por isso é que se pode dizer que o grande desafio da atual geração de civilistas é preencher o conteúdo do que seja essa função social dos pactos. Ao contrário da boa-fé objetiva, o conceito de função social dos contratos não foi desenvolvido pelo Direito Comparado.” (TARTUCE, Flávio. Função Social dos Contratos – do Código de Defesa d o Consumidor ao Código Civil de 2002. 2. ed. São Paulo: Método, 2007, p. 244) 135 Sobre a limitação à liberdade de contratar, Cf. VELTEN, Paulo. Função social do contrato: cláusula limitadora da liberdade contratual. Função do Direito Privado no Atual Momento Históric o. NERY, Rosa Maria de Andrade (coord). São Paulo: RT, 2006, pp. 411-440.
105
A eficácia interna se expressa, no Enunciado, quando se faz referência à
proteção de direitos individuais relativos à dignidade da pessoa humana. Por outro
lado, a eficácia externa se expressa na alusão aos interesses metaindividuais136.
A grande alteração advinda da aplicação do princípio da função social aos
contratos diz respeito à mitigação que sofreu o princípio da força obrigatória dos
contratos, de modo a possibilitar o afastamento de cláusulas que colidam com
preceitos de ordem pública, primando pela igualdade substancial entre os
contratantes. Por conduto desse efeito, equilibram-se relações jurídicas, sem a
preponderância de uma parte sobre a outra, resguardados os interesses do grupo
social também nas relações de direito privado.
Prevalece a concepção socializante, em que não só a manifestação da
vontade, mas a condição social e econômica das pessoas envolvidas no contrato
serão considerados para a validade, eficácia e perpetuação da avença.
Se, anteriormente, a autonomia da vontade ditava as regras do pacto,
fazendo com que o conteúdo normativo contratual tivesse força de lei entre as
partes, o atual momento exige dos contratantes um certo grau de sensibilidade
social, na escolha das regras que serão inseridas no pacto.
Nessa ordem de idéias, a unificação do direito privado, materializada por
uma disciplina comum das relações jurídico-obrigacionais, a despeito de reforçar a
caracterização de uma teoria geral dos contratos, não foi capaz de evitar o
aparecimento de uma teoria geral dos contratos de empresa.
136 Sobre o tema, Fernando Noronha assevera que “o interesse fundamental da questão da função social das obrigações está em despertar a atenção para o fato de que a liberdade contratual (ou mais amplamente, a autonomia privada) não se justifica, e deve cessar, quando afetar valores maiores da sociedade, supra-contratuais, e, além disso e agora no âmbito estritamente contratual, também deve sofrer restrições quando conduzir a graves desequilíbrios entre os direitos e as obrigações das partes, que sejam atentatórios de valores de justiça, que também têm peso social. É isto que se pretende significar quando se diz que nos contratos o interesse do credor tem de ser legítimo, para ser digno de tutela jurídica”. (NORONHA, Fernando. Direito das obrigações . v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 28)
106
A ocorrência frequente de determinadas relações contratuais atípicas –
decorrentes dos propósitos de instrumentalizar a organização e o exercício de
atividades empresariais – determinou, em alguns casos, sua jurisdicização, seu
regramento particular e consequente tipificação.
A despeito de serem relações jurídico-contratuais qualificadas por uma
afetação empresarial e caracterizadas pela especialidade das organizações e
operações econômicas que disciplinam, seu regramento permite a dedução de
regras e princípios comuns.
Essas regras e princípios, todavia, não se contrapõem, necessariamente, ao
regimento comum que instrui a teoria geral dos contratos, de modo que incide, aqui
também, de forma inafastável, o princípio da função social dos contratos.
5.2 A função social dos contratos na empresa
Como já afirmado acima, o empresário se serve de inúmeras avenças,
típicas e atípicas, dispostas à consecução de seu objetivo maior, qual seja o de
desenvolver, com sucesso, a atividade explorada.
A liberdade de iniciativa, por exemplo, assegurada por preceitos
constitucionais, dirige o sistema, de modo a autorizar, e mesmo fomentar, a
organização e exercício de atividades econômicas lícitas. A empresa, nada obstante
a importância das atividades simples, é a forma mais relevante de iniciativa
econômica, em razão de sua capacidade de produzir resultados positivos vultosos
tanto para o sujeito que a exerce quanto para o meio em que se encontra inserida.
Por isso, a ordem jurídica, em cumprimento ao disposto na Constituição
Federal, é instruída para fornecer meios necessários à manifestação da liberdade de
iniciativa. O princípio da autonomia privada, trazido no art. 425, do Código Civil,
possibilita que a atividade empresarial, prevista em tese pelo Código, seja
107
constituída através do contrato social e exercida por meio de contratos os mais
variados, dentre eles o contrato de trabalho e o contrato de consumo.
Os contratos empresariais, como representação, agência, compra e venda,
transporte etc., submetem-se ao tratamento geral já verificado acima, de sorte que
na sua elaboração e na sua execução, deve ser verificado o atendimento da função
social que lhe sé ínsita.
Três contratos serão analisados neste estudo: (i) o contrato social, por ser o
instrumento de constituição e desenvolvimento da atividade, uma vez que as partes,
através dele, prescrevem o programa constitutivo, o método de governo da
sociedade; determinam seu objeto; os meios de produção empregados ao seu
alcance; as formas de organização desses meios de produção; as pessoas
designadas para organizá-los, os métodos de formação e manifestação da vontade
da sociedade etc.; e os contratos (ii) de trabalho e (iii) de consumo, em que se
verifica uma carga mais evidente de função social a ser implementada pelo
empresário, porquanto o legislador edita normas de ordem pública e interesse social,
visando à proteção dos trabalhadores e dos consumidores.
5.2.1 O contrato social
O princípio da função social dos contratos influencia a atividade empresarial
desde sua gênese, já quando os sócios, pretendendo explorar uma atividade
econômica, se reúnem para a constituição da sociedade empresária.
O contrato social é a convenção em que duas ou mais pessoas, naturais ou
jurídicas, se obrigam a conjugar seus esforços ou recursos ou a contribuir ou a
contribuir com bens ou serviços para a consecução do fim comum: o exercício de
uma atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de
serviços, com a posterior partilha, entre si, dos resultados, tal como se depreende da
leitura do art. 981, do Código Civil.
108
Nesse contrato, há uma conjunção de interesses, paralelos ou
convergentes, direcionados no mesmo sentido, com a finalidade precípua de atingir
um objetivo comum, ao passo que nos demais contratos os interesses das partes
colidem, por serem antagônicos, de modo que a convenção surge exatamente para
compor as divergências. O interesse dos sócios, por outro lado, é semelhante. Em
razão disso, todos, com patrimônio ou serviços, se unem para lograr uma finalidade
econômica, restrita à realização de um ou mais negócios determinados e partilhar,
entre si, os resultados.
Por haver uma confraternização dos interesses dos sócios para atingir o
objetivo comum, todos os lucros deverão ser atribuídos aos mesmos, não se
excluindo a parcela (quinhão) de qualquer deles da comparticipação nos prejuízos.
Logo, proíbe-se qualquer cláusula, no contrato social, que beneficie um dos sócios,
isentando-o, por exemplo, dos riscos da empresa, destinando-os os lucros e
excluindo-o do pagamento das despesas ou da responsabilidade sobre os prejuízos.
Por isso, no regime da sociedade simples, aplicável subsidiariamente aos
demais tipos empresariais tratados no Código Civil, é nula toda e qualquer
estipulação contratual que afaste um sócio de participar dos lucros e das perdas, tal
como estatuído no art. 1008, do Código.
Não desconsiderando a existência de diversas teorias137 relativas à
natureza jurídica do ato que dá conformação jurídica à sociedade empresária,
adotar-se-á, neste trabalho, a teoria desenvolvida por Tullio Ascarelli, segundo a
qual este ato tem natureza de contrato plurilateral138.
137 (i) Teorias anticontratualistas; (ii) Teoria do ato corporativo; (iii) Teoria institucionalista; e (iv) Teoria do contrato bilateral. 138 Rubens Requião, admitindo a concepção contratualista plurilateral no direito brasilerio, assevera: “Aderimos a essa teoria. Já tivemos oportunidade de afirmar, e reafirmamos agora, a nossa crença de que a sociedade comercial resulta de contrato plurilateral, considerando essa teoria compatível com o direito positivo brasileiro. Por isso concluímos, em tese de concurso, que, no sistema de 1850, a sociedade comercial foi estruturada sobre o contrato. Essa é a incontestável concepção de todo o nosso direito. não disse o legislador brasileiro, e não lhe cabia, é verdade, descer a tal casuísmo, a que tipo de contrato ela se filia. Por outro lado, sob certos aspectos encontramos no direito positivo solução da inadimplência de determinadas obrigações de forma típica indicada por Ascarelli, para os
109
Essa natureza do contrato social é compreendida tendo em vista que, na
avença que cria uma sociedade empresária, duas ou mais pessoas se obrigam,
reciprocamente, associando-se para a realização de um fim comum, tal como já
exposto.
A pluralidade, todavia, não diz respeito ao número de contratantes, tal como
ressaltado por Waldo Fazzio Junior139, na medida em que diz respeito à viabilidade
de participação de um número indeterminado e variável de partes, de modo que se,
eventualmente, for reduzido a dois o número de sócios, essa circunstância não
atinge a natureza plurilateral do contrato social, em função de sua finalidade
aglutinadora para o exercício de uma atividade.
Nos contratos bilaterais, os direitos e deveres das partes são recíprocos, de
modo que, se a obrigação de uma delas se impossibilitar, com ou sem culpa, a
obrigação se resolve, segundo a orientação do Direito das Obrigações.
Sendo plurilateral, o contrato de constituição de uma sociedade empresária
admite que os sócios caminhem lado a lado para a consecução da finalidade
comum, de sorte que, na eventualidade de a execução da prestação de um deles se
impossibilitar, tal fato atingirá apenas este sócio, permanecendo o contrato em
relação aos demais, como se dá, por exemplo, com o sócio remisso, quando os
demais decidem pela sua exclusão da sociedade. Com isso, preserva-se a pessoa
jurídica, que permanecerá com os sócios remanescentes.
contratos plurilaterais. Assim, por exemplo, quando o sócio não ingressa com sua cota, ou quando é declarado falido (em relação à cota que possua na sociedade), ou quando nas sociedades de capital e indústria empregar-se em operação estranha à sociedade, nessas hipóteses legais o contrato não se resolve, rompendo-se o vínculo apenas em relação ao inadimplente ou ao falido, se assim desejarem os demais contratantes. Além disso, o art. 153, do Código Civil brasileiro de 1916, como lembrou o próprio Prof. Ascarelli, estatuindo que ‘a nulidade parcial de um ato não o prejudicará na parte válida, se esta for separável’, adotou regra tipicamente de contrato plurilateral. O novo Código Civil, no art. 184, manteve o mesmo princípio”. (REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. v. 1. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 395/402.)
139 FAZZIO JUNIOR, Waldo. Manual de Direito Comercial . São Paulo: Atlas, 2000, p. 88.
110
A função social desse contrato – o contrato social – é atingida por meio de
atos de escolha e de disposição. Com efeito, no momento em que os sócios criam a
sociedade, por meio do instrumento contratual, têm a obrigação legal de optar por
um objeto social socialmente proveitoso. A atividade decorrente do contrato,
resultante da exploração desse objeto, não pode ser nociva ao meio social em que
situada.
Da mesma forma, é no momento da celebração do contrato social que os
sócios realizam seu aporte de capital, indispensável à composição do patrimônio
social. Esse ato de disposição não pode malferir o princípio da função social da
propriedade, sob pena de macular, por arrasto, a função social do contrato, visto que
este é uma instrumento para o exercício da faculdade de disposição componente do
direito de propriedade.
5.2.2 O contrato de trabalho
A atividade econômica produtiva é geradora de empregos, fundamentais
para a sociedade. A identificação do indivíduo como trabalhador, a seu turno, surge
como uma referência mas ampla, como portador de um saber prático, na sociedade
contemporânea.
Em princípio, o trabalhador é uma pessoa completamente integrada na
sociedade economicamente organizada. Entretanto, sua participação decorre da
capacidade para controlar determinado saber prático e para desenvolver
relacionamentos em seu universo concreto de referências, que se irradia de seu
emprego, de sua moradia e do acesso que tem a formas colaterais de associação,
como no lazer e na política.
As empresas que ainda enxergam seus funcionários como despesas e as
máquinas como ativos sofrem severa incidência da função social do contrato. Na
história dos direitos fundamentais, em especial os direitos humanos, a criação de
111
tutelas institucionais da dignidade das classes sociais e dos povos oprimidos nunca
foi o resultado de uma articulação externa, surgindo sempre em razão de sua
capacidade de auto-organização, como se pode perceber da evolução do direito do
trabalho.
Sem qualquer sombra de dúvida, o reconhecimento dos direitos
fundamentais dos trabalhadores assalariados ou autônomos não se materializou
verticalmente, de cima para baixo, em decorrência da benemerência daqueles que
dirigem, que representam o poder, mas somente passou a vigorar a partir do
momento em que a classe trabalhadora, organizada em sindicatos ou associações
profissionais, adquiriu força para exigir dos patrões e proprietários um mínimo de
respeito à sua dignidade.
Portanto, pode-se dizer que, apesar de o capital poder ver o trabalhador
apenas como trabalho e gerar relações unilaterais, ninguém é apenas trabalhador, e
essa talvez seja uma das perspectivas de análise de função social da empresa, visto
que esse indivíduo também gera riquezas ao adquirir bens ou serviços.
Mas ainda que não fosse suficiente essa argumentação, a atuação da
empresa e a relação de emprego afetam positivamente um princípio fundamental
que é o da dignidade da pessoa humana, encartado na Constituição Federal no art.
1º, inciso III.
Com efeito, há uma conexão existente, do ponto de vista constitucional,
entre esse princípio fundamental e a regra que assegura ao indivíduo o direito ao
trabalho, formalizado no contrato de trabalho, na medida em que o princípio põe em
evidência o ser humano, para o qual deve convergir todo o esforço de proteção pelo
Estado e, dada a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, também pelos
particulares.
O trabalho, indiscutivelmente, figura como um dos componentes da
condição da dignidade da pessoa. É para o bem-estar do indivíduo que o trabalho se
direciona. É para garantir seu estado de bem-viver, condignamente, com o respaldo
112
moral de poder assegurar a si e à família o sustento, a saúde, o lazer e o progresso
material, contínuo e crescente, que deve se voltar o contrato de trabalho. Essa a sua
finalidade. Essa a sua função, essencialmente social140.
A atividade empresária, os meios de produção e todo o engenho voltado ao
desenvolvimento de bens e serviços só se justificam se forem respeitados, acima de
tudo, os valores humanos do trabalho, e, longe de visar exclusivamente ao lucro e
ao enriquecimento do empregador, destina-se ao bem-estar coletivo.
O mencionado art. 1º, inciso III, da Constituição revela ser a dignidade da
pessoa humana um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Já o art.
170, caput, pertencente ao capítulo da Ordem Econômica e Financeira, deixa claro
que a existência digna está intimamente ligada ao princípio da valorização do
trabalho humano141.
É na consecução desses valores que o contrato de trabalho assume e
cumpre sua função social, de modo que a atividade empresária, dependente de
esforço humano, deve ser pautada em contratos de trabalho e prestação de serviços
que desenvolvam, na medida do possível, todas as potencialidades do prestador de
serviços, concretizando a axiologia constitucional.
140 “O Direito do Trabalho, na medida em que encerra um grande feixe de determinantes normativos estatais e convencionais coletivos na composição do regulamento contratual, permite a construção de uma relação jurídica menos desigual nas prestações a que se obrigam os contratantes.” (SOUZA, Rodrigo Trindade. Função Social do Contrato de Emprego . Dissertação de mestrado. UFPR. Disponível em http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/1884/10094/1/Fun%C3%A7%C3%A3o%20Social%20do%20Contrato%20-%20Rodrigo%20Trindade%20de%20Souza.pdf. Acesso em 10 de julho de 2010) 141 “No quadro da Constituição de 1988, de toda sorte, da interação entre esses dois princípios e os demais por ela contemplados – particularmente o que define como fim da ordem econômica (mundo do ser) assegurar a todos existência digna – resulta que valorizar o trabalho humano e tomar como fundamental o valor social do trabalho importa em conferir ao trabalho e seus agentes (os trabalhadores) tratamento particular. Esse tratamento, em uma sociedade capitalista moderna, particulariza-se, na medida em que o trabalho passa a receber proteção não meramente filantrópica, porém politicamente racional. Titulares de capital e de trabalho são movidos por interesses distintos, ainda que se o negue ou se pretenda enunciá-los como convergentes. Daí porque o capitalismo moderno, renovado, pretende a conciliação e a composição entre ambos. [...] Valorização do trabalho humano e reconhecimento do calor social do trabalho consubstanciam cláusulas principiológicas que, ao par de afirmarem a compatibilização – conciliação e composição – a que acima me referi, portam em si evidentes potencialidades transformadoras.” (GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988 . 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, pp. 198/199)
113
5.2.3 O contrato de consumo
A proteção aos consumidores, no âmbito de uma política nacional
direcionada às relações de consumo, é trazida na Constituição Federal em seus
artigos 5º, inciso XXXII142, e 170, inciso V143. Este último preceito é inserido na
Constituição em conjunto com outros que devem reger a atividade econômica,
juntamente com a livre concorrência, a redução ads desigualdades regionais e
sociais, a propriedade privada e sua função social.
A combinação desses princípios fundamentais com outros dispostos na
Constituição, mormente aqueles que inserem, entre os fundamentos da República a
dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III), e entre seus objetivos erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º,
inciso III), evidencia a intenção do legislador de reduzir os efeitos da concepção
produtivista e patrimonialista tão lesivas à tutela do consumidor.
A Constituição não apenas introduz a tutela dos consumidores no rol dos
direitos fundamentais, indo além no que respeita à instrumentalização de sua
proteção, de modo que a proteção do consumidor é atingida através da
funcionalização dos interesses patrimoniais do fornecedor, submetendo-os aos
valores existenciais norteadores da República Federativa do Brasil.
Trata-se, aqui, de proteger a pessoa humana do consumidor, que, dada sua
vulnerabilidade econômica, a qual repercute na esfera contratual, exige tutela como
categoria, ou classe privilegiada, em detrimento dos empresários144.
142 “XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;” 143 “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: ................................................................................................................................................................... V - defesa do consumidor;” 144 Gustavo Tepedino, nesse sentido, assevera que “A proteção jurídica do consumidor, nesta perspectiva, não pode ser estudada senão como um momento particular da ordem pública
114
Isso permite afirmar a necessidade de definição dos princípios
constitucionais que informam a relação de consumo, dos quais se extrai a noção de
função social deste tipo de contrato, evidenciando o conteúdo da tutela do
consumidor.
Quatro são os princípios fundamentais de proteção contratual do
consumidor referidos na Constituição de 1988: (i) a dignidade da pessoa humana
(art. 1º, inciso III); (ii) O valor social da livre iniciativa (art. 1º, inciso IV); (iii) a
igualdade substancial (art. 3º, inciso III); e a solidariedade social (art. 3º, inciso I).
Esses preceitos informam, no dizer de Gustavo Tepedino, a principiologia
das relações contratuais de consumo, introduzida pelo Código de Defesa do
Consumidor nos artigos que tratam da boa-fé objetiva (art. 4º, inciso III, e art. 51,
inciso IV), do equilíbrio das prestações (art. 4º, inciso III, 51, inciso IV e 51, § 1º,
inciso III), e da vulnerabilidade, expresso no art. 4º, inciso I145.
O princípio da boa-fé objetiva evidencia um conjunto de deveres anexos ao
regulamento contratual, aplicáveis às fases pré-contratual, contratual e pós-
contratual. Trata-se de regra de conduta das relações obrigacionais, estruturada
constitucional, que tem por objetivo maior a tutela da personalidade e dos valores existenciais.” (TEPEDINO, Gustavo. Os contratos de consumo no Brasil. Temas de direito civil . Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 124) 145 Por todas as referências, transcrevem-se, na íntegra, os dispositivos mencionados: “Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995) I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; ................................................................................................................................................................... III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;” “Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade; ................................................................................................................................................................... § 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vontade que: ................................................................................................................................................................... III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.”
115
como cláusula geral, em que interessam as repercussões de certos comportamentos
na confiança que as partes normalmente depositam nos co-contratantes. Confia-se
no significado comum, usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecível
no mundo social. A boa-fé objetiva implica conduta honesta, correta, leal.
O princípio do equilíbrio das prestações tem fundamento na solidariedade
social e na igualdade material, manifestando-se em diversos mecanismos de
equiparação conferidos ao juiz pelo legislador, especificamente no que toca à
possibilidade de revisão das cláusulas contratuais pelo Judiciário, como, por
exemplo, nas situações de onerosidade excessiva, que, no regime do CDC, não se
encontra vinculado a qualquer pressuposto relacionado à imprevisão, sendo possível
a revisão quando se verificar, apenas, a desproporção entre as prestações.
Já o princípio da vulnerabilidade, manifestado, diretamente, no art. 6º, inciso
VIII, do CDC, faz admitir a inversão do ônus da prova em favor do consumidor,
quando suas alegações forem revestidas de verossimilhança e se verificar sua
hipossuficiência. Essa hipossuficiência, que implica a inversão do ônus da prova,
afirme-se, não é econômica, mas técnica, tal como lecionado por Luiz Antônio
Rizzatto Nunes146.
Essa distinção é necessária em razão de a noção de vulnerabilidade
apresentar três facetas: técnica, jurídica e econômica. Por vulnerabilidade técnica
entende-se a inferioridade de conhecimentos do consumidor relativos ao produto ou
ao serviço prestado. A vulnerabilidade jurídica é concernente à falta de
conhecimentos a respeito dos direitos que o consumidor detém em face do
fornecedor. Já a vulnerabilidade econômica decorre do poder econômico exercido
146 “O significado de hipossuficiência do texto do preceito normativo do CDC não é econômico. É técnico. A vulnerabilidade, como vimos, é o conceito que afirma a fragilidade econômica do consumidor e também técnica. Mas hipossuficiência, para fins da possibilidade de inversão do ônus da prova, tem sentido de desconhecimento técnico e informativo do produto e do serviço, de suas propriedades, de seu funcionamento vital e/ou intrínseco, dos modos especiais de controle, dos aspectos que podem ter gerado o acidente de consumo e o dano, das características do vício etc.” (NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor – Dir eito Material . São Paulo: Saraiva, 2000, pp. 123/124)
116
pelo fornecedor em situação de monopólio ou de caráter essencial do produto,
como, por exemplo, serviços de fornecimento de energia elétrica.
Esses princípios, que não foram contemplados pelo legislador de 1916, dão
nova conformação à atuação da vontade individual, convertendo a autonomia da
vontade em autonomia privada de sorte a funcionalizar a atividade econômica, a fim
de que esta concretize os valores sociais existentes na Constituição.
Antônio Jeová dos Santos, em síntese que concentra as alterações do
sistema contratual pelas regras do Código de Defesa do Consumidor, assim se
manifesta:
A existência da lesão e do estado de perigo como formas de anulabilidade dos contratos, a excessiva onerosidade modificando e, até, resolvendo pactos, a possibilidade de a parte descumprir o contrato e, ainda assim, ser restituída na importância que pagou, como deflui do art. 51, II, do Código de Defesa do Consumidor, são manifestações de que o contrato atual tem outra direção. É a aplicação do princípio da sociabilidade em todo o seu grau de pureza. A sociabilidade, como aqui realçada, tem o efeito de corrigir aquela concepção demasiado individualista ausente dos dias atuais. Agora, os interesses gerais são superpostos aos interesses puramente particulares.147
O art. 4º, do Código de Defesa do Consumidor, introduz, em seus incisos,
longa enumeração dos princípios que regem a Política Nacional das Relações de
Consumo, que tem como objetivo “o atendimento das necessidades dos
consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus
interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida”.
Já o art. 6º estatui quais são os direitos básicos do consumidor, podendo-se
extrair, dentre eles, aqueles que mais estão afetos à seara contratual: (i) a
informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com
especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço,
bem como sobre os riscos que apresentem; (ii) a proteção contra a publicidade
enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra
147 SANTOS, Antônio Jeová dos. Função social do contrato . 2. ed. São Paulo: Método, 2004, p. 117.
117
práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;
(iii) a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações
desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem
excessivamente onerosas; (iv) a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com
a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do
juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras
ordinárias de experiências.
Com essas diretrizes, o legislador instituiu, no Capítulo VI, do Código
consumeirista, uma série de normas relacionadas à proteção contratual do
consumidor. Já no art. 46, pode verificar que os contratos regidos pela legislação
especial não terão força obrigatória, relativamente ao consumidor, “se não lhes for
dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os
respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu
sentido e alcance”.
Tal norma inova no sistema jurídico, na medida em que atenua, mesmo, ou
gera a impossibilidade de incidência do princípio clássico da força obrigatória dos
contratos, regra basilar de direito das obrigações contratuais148.
Tal circunstância ocorrem em razão de o Código, sendo constituído “de
normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social”,
tal como explicitado em seu art. 1º, inserir regras inderrogáveis pelas partes
contratantes, possibilitando ao Judiciário a exoneração do consumidor do
cumprimento de certas e determinadas obrigações assumidas contratualmente.
Essa revisão tem por fundamento adequar o contrato à sua finalidade externa, à sua
função social. Sobre esse ponto, Cláudia Lima Marques leciona: 148 Sobre a idéia de força obrigatória dos contratos, veja-se a lição de Paulo Nader: “Os contratos são feitos para serem cumpridos. Se o acordo de vontades se faz dentro da esfera de liberdade reservada à iniciativa particular, em se tratando de contratos de Direito Privado, as regras estabelecidas impõem-se coercitivamente às partes (...). O princípio da obrigatoriedade apóia o da autonomia da vontade, pois de nenhum sentido seria este último se a criatividade desenvolvida carecesse de força jurídica. Se aos particulares é atribuído o poder de criar o seu próprio dever-ser, contraditório seria o não provimento de obrigatoriedade às cláusulas contratuais. O poder intimidativo das obrigações contratuais se nivelaria ao das regras morais e convencionalismos sociais.” (NADER, Paulo. Curso de Direito Civil . Contratos . 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, pp. 25/26)
118
Assim, também a vontade das partes não é mais a única fonte de interpretação que possuem os juízes para interpretar um instrumento contratual. A evolução doutrinária do direito dos contratos já pleiteava uma interpretação teleológica do contrato, um respeito maior pelos interesses sociais envolvidos, pelas expectativas legítimas das partes, especialmente as partes que só tiveram a liberdade de aderir ou não aos termos mais elaborados.
As leis, aqui chamadas de leis intervencionistas, autorizarão o Poder Judiciário a um controle mais efetivo da justiça contratual e ao exercício de uma interpretação mais teleológica, onde os valores da lei tomam o primeiro plano e delimitam o espaço para o poder da vontade. O juiz, ao interpretar o contrato, não será um simples servidor da vontade das partes – será, ao contrário, um servidor do interesse geral. Ele terá em vista tanto o mandamento da lei como a vontade manifestada, quanto aos efeitos sociais do contrato e os interesses das partes protegidas pelo direito em sua nova concepção social.149
O dispositivo em tela consagra, portanto, o direito à informação150, à
prestação de todos os esclarecimentos necessários à compreensão dos termos e
das condições contratuais, de modo que o não-cumprimento desse dever pode
acarretar o desfazimento do contrato. A função social se manifesta, aqui, na
exigência de uma conduta ética do fornecedor, sobretudo do fornecedor de produtos
ou serviços de massa, que deve promover a atuação de sua empresa da maneira
mais transparente possível.
Em outro dispositivo, o art. 47, o legislador consagra a função social do
contrato através da proteção ao consumidor no que diz respeito à interpretação das
cláusulas contratuais, estatuindo que estas serão interpretadas da maneira mais
favorável ao consumidor.
Já o art. 49 confere um prazo, decadencial, de sete dias, para que o
consumidor exerça um direito potestativo de rescisão contratual, quando a compra e
venda se der fora do estabelecimento empresarial. Nessas rescisões, não há
imposição de multas contratuais em detrimento do consumidor.
149 MARQUES,Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor . 5. ed. São Paulo: RT, 2006, p. 276. 150 Sobre o dever de informar, Cf. FABIAN, Christoph. O dever de informar no direito civil . São Paulo: RT, 2002.
119
Por fim, o art. 51 enumera, de forma não taxativa, uma série de cláusulas
contratuais consideradas abusivas, as quais, em sendo celebradas, são
consideradas, de imediato, nulas.
Todos esses dispositivos dão concretude à determinação constitucional de
proteção ao consumidor, de modo que é através da obediência a essas normas que
se atinge a função social dos contratos de consumo, finalidade da qual o empresário
não pode se afastar.
120
6. CONCLUSÃO
Da pesquisa realizada, podem-se extrair as seguintes conclusões:
• Os direitos fundamentais, desde quando reconhecida sua dimensão
objetiva, isto é, desde que foram concebidos como uma ordem objetiva
de valores, projetam-se sobre todo o direito privado, alterando a
compreensão dos institutos jurídicos jus-privatísticos;
• Essa projeção pode-se dar de forma direta, quando não houver
disposição normativa infraconstitucional para a resolução do caso
concreto, ou de forma indireta, através das cláusulas gerais;
• Modifica-se em razão dessa aplicabilidade das normas constitucionais
de direitos fundamentais, a criação, a interpretação e a aplicação do
direito privado infraconstitucional;
• A empresa, concebida pelo legislador brasileiro como atividade
profissional organizada para a produção ou a circulação de bens ou de
serviços com finalidade lucrativa, desenvolve-se através de dois
institutos, o contrato e a propriedade, de modo que sua função social
existe não de forma autônoma, mas por dependência da função social
do contrato e da propriedade;
• A função social representa a exigência de o titular de determinada
faculdade jurídica exercer essa faculdade de modo a gerar proveitos
socialmente úteis, vedando-se os atos meramente emulativos;
• A propriedade e o contrato, sobre os quais se estruturam a empresa,
devem ser funcionalizados, advindo a noção se sua funcionalização dos
dispositivos já constantes no ordenamento jurídico;
121
• Especificamente sobre a propriedade, pode-se afirmar que sua natureza
jurídica, pós-função social, é de relação jurídica complexa, uma vez que
se atribuem direitos e deveres os mais diversos aos dois sujeitos da
relação: o proprietário e a coletividade;
• Ainda se pode dizer que não reveste caráter de direito fundamental,
revestindo-o, por outro lado, a função social da propriedade, prerrogativa
fundamental da coletividade, cuja efetividade deve ser exigida do
proprietário;
• A propriedade na empresa deve ser funcionalizada em conformidade
com os preceitos já constantes na legislação, a depender do tipo de bem
sobre o qual incide. Assim há uma tutela específica, dentre o acervo do
estabelecimento empresarial, para os bens imóveis, os bens móveis, os
bens imateriais etc.;
• O sócio de sociedade empresária também exerce direito de propriedade
sobre uma quota do capital social. Esse direito de propriedade, também,
submete-se ao princípio constitucional da função social da propriedade,
vedando-se a exploração emulativa por seu titular;
• Por fim, os contratos empresariais submetem-se ao regramento
principiológico do art. 421, do Código Civil, que, inovando o sistema
jurídico brasileiro, consagrou a função social dos contratos.
• Dessa forma, devem-se pautar por este princípio todos os contratos
celebrados em empresa, desde o contrato de constituição – o contrato
social, até contratos outros, dotados de maior carga axiológica, como o
contrato de consumo e o contrato de trabalho.
122
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