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Estudos Feministas, Florianópolis, 17(2): 344, maio-agosto/2009 485 Violência e tecnologias de Violência e tecnologias de Violência e tecnologias de Violência e tecnologias de Violência e tecnologias de gênero: tempo e espaço nos gênero: tempo e espaço nos gênero: tempo e espaço nos gênero: tempo e espaço nos gênero: tempo e espaço nos jornais jornais jornais jornais jornais Resumo Resumo Resumo Resumo Resumo: Este texto busca compreender uma tecnologia de gênero que constrói “homens” e “mulheres”, o masculino e o feminino, nas páginas dos jornais, sublinhando, nos discursos jornalísticos sobre violência, a violência própria dos discursos – a violência dessa tecnologia. Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave Palavras-chave: violência; gênero; jornais; espaço; tempo. Copyright 2009 by Revista Estudos Feministas. Pedro Paulo Gomes Pereira Universidade Federal de São Paulo A cada dia, notícias entram em nossas casas por diversas formas e, apesar do rádio, da televisão e da internet, o jornal impresso continua sendo um dos meios importantes pelos quais recebemos informações e elaboramos nossas perspectivas e visões de mundo. Os jornais nos apresentam eventos, e modelam e posicionam nossos olhares, tratando- se, portanto, de uma poderosa tecnologia. Neste texto, entendendo a mídia impressa como uma tecnologia de gênero – tecnologia que constrói determinadas imagens de “homens” e “mulheres”, e que atua na produção do masculino e do feminino –, indagarei se os discursos jorna- lísticos que descrevem a violência não seriam eles próprios violentos. O artigo está organizado da seguinte forma: abordo, inicialmente, os conceitos de “tecnologias de gênero” de Teresa de Lauretis, indicando o jornal como umas dessas tecnologias. Discorro, logo após, sobre as especificidades do discurso jornalístico, apresentando o conceito de “crono- topo” de Mickail Bakhtin, bem como as peculiaridades de sua análise de discurso. Argumento que conhecer as relações entre tempo e espaço é uma tentativa de aproxi- mação aos modos de estruturar específicos do discurso jornalístico, procedimento que visa a contornar a assepsia estilística desses textos. Posteriormente, percorro os cronotopos

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Estudos Feministas, Florianópolis, 17(2): 344, maio-agosto/2009 485

Violência e tecnologias deViolência e tecnologias deViolência e tecnologias deViolência e tecnologias deViolência e tecnologias degênero: tempo e espaço nosgênero: tempo e espaço nosgênero: tempo e espaço nosgênero: tempo e espaço nosgênero: tempo e espaço nos

jornaisjornaisjornaisjornaisjornais

ResumoResumoResumoResumoResumo: Este texto busca compreender uma tecnologia de gênero que constrói “homens” e“mulheres”, o masculino e o feminino, nas páginas dos jornais, sublinhando, nos discursosjornalísticos sobre violência, a violência própria dos discursos – a violência dessa tecnologia.Palavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chave: violência; gênero; jornais; espaço; tempo.

Copyright 2009 by RevistaEstudos Feministas.

Pedro Paulo Gomes PereiraUniversidade Federal de São Paulo

A cada dia, notícias entram em nossas casas pordiversas formas e, apesar do rádio, da televisão e da internet,o jornal impresso continua sendo um dos meios importantespelos quais recebemos informações e elaboramos nossasperspectivas e visões de mundo. Os jornais nos apresentameventos, e modelam e posicionam nossos olhares, tratando-se, portanto, de uma poderosa tecnologia. Neste texto,entendendo a mídia impressa como uma tecnologia degênero – tecnologia que constrói determinadas imagensde “homens” e “mulheres”, e que atua na produção domasculino e do feminino –, indagarei se os discursos jorna-lísticos que descrevem a violência não seriam eles própriosviolentos.

O artigo está organizado da seguinte forma: abordo,inicialmente, os conceitos de “tecnologias de gênero” deTeresa de Lauretis, indicando o jornal como umas dessastecnologias. Discorro, logo após, sobre as especificidadesdo discurso jornalístico, apresentando o conceito de “crono-topo” de Mickail Bakhtin, bem como as peculiaridades desua análise de discurso. Argumento que conhecer asrelações entre tempo e espaço é uma tentativa de aproxi-mação aos modos de estruturar específicos do discursojornalístico, procedimento que visa a contornar a assepsiaestilística desses textos. Posteriormente, percorro os cronotopos

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dos jornais que representam a violência entre homens dasclasses populares e das classes altas para então analisaros motivos cronotópicos dos discursos que descrevem a “vio-lência contra mulheres” nas páginas policiais. Em seguida,ainda na intenção de ressaltar as formas de funcionamentodessa tecnologia de gênero – a mídia impressa –, indagosobre a dimensão expressiva da violência como ato decomunicação. Finalizo, assinalando formas de construçãoda alteridade nos jornais.

TTTTTecnologias de gêneroecnologias de gêneroecnologias de gêneroecnologias de gêneroecnologias de gênero

Num de seus textos mais conhecidos, Teresa deLauretis1 afirma que gênero é produto de diferentes tecnolo-gias sociais, tais como internet, rádio, televisão, cinema oujornais, e de diversas epistemologias e práticas críticasinstitucionalizadas, bem como práticas da vida cotidiana.Em diversas outras obras,2 a autora vem insistindo que gêneronão é propriedade dos corpos nem algo que existe a priorinos seres humanos, mas conjunto de efeitos produzidos noscorpos, comportamentos e relações sociais.

Aproveitando essa definição, almejo alcançar aforma como se estrutura uma tecnologia de gênero – nocaso, aquela que constrói homens e mulheres nas páginaspoliciais dos jornais – sublinhando a violência própria dessatecnologia. Não se trata, então, de abordar a violênciacontra a Mulher – assim com maiúscula, representação deuma essência inerente a todas as mulheres –, nem de anali-sar as diferentes histórias de violência de mulheres. O focoanalítico consiste na tecnologia de gênero (os jornais) queconstrói mulheres e homens quando narra a violência. Paraefetuar tal aproximação teórica, busco as configuraçõescronotópicas dos discursos jornalísticos (das páginaspoliciais) – tecnologia de gênero específica que, comopretendo demonstrar, em-gendra.3

Focalizo a atenção na máquina que constrói o femini-no e o masculino, em como as páginas policiais descrevema violência em homens das classes populares e homensdas classes altas, e como descrevem a violência contra amulher. Trato o discurso jornalístico como um dispositivo queconstrói o masculino e o feminino, e institui a razoabilidadede gêneros.4 A indagação é: em que medida essa constru-ção – e esse dispositivo – não seria ela própria violenta,fazendo parte do exercício de violência. Gênero está nocentro do exercício da violência – devemos, portanto, falar,para os objetivos aqui propostos, em violência de gênero.Evidentemente, dadas a inércia constitutiva da linguageme a persuasão que os significantes exercem sobre nós, meutexto deslizar-se-á entre os significantes “homem” e “mulher”.5

1 DE LAURETIS, 1994.

2 DE LAURETIS, 1984, 1989 e 2007.

3 DE LAURETIS, 1994, p. 206.Ressalto que não são os tiposdiferenciados de violência queme interessam mais diretamenteneste texto (para tal, ver, entreoutros, Lia Zanotta MACHADO,1998), mas, insisto, uma tecnolo-gia de gênero específica e aviolência do próprio discursojornalístico.4 DE LAURETIS, 1989; e DonnaHARAWAY, 1995.5 DE LAURETIS, 1994; e Rita LauraSEGATO, 2003. Para maior aproxi-mação ao debate sobre as dife-renças de abordagens queensejam os termos “violênciacontra as mulheres” (MarizaCORRÊA, 1983; e Maria AméliaAZEVEDO, 1985; e Maria FilomenaGREGORI, 1992) e “violência degênero” (MACHADO, 1998; eSEGATO, 2003), ver Mireya SUÁREZe Lourdes BANDEIRA, 1999. Parauma historicização das categorias“mulher”, “mulheres”, “gênero”,ver Joana Maria PEDRO, 2005.Para um panorama dos debatesdo sujeito do feminismo, verClaudia Lima COSTA, 2002.

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VIOLÊNCIA E TECNOLOGIAS DE GÊNERO: TEMPO E ESPAÇO NOS JORNAIS

As páginas policiais são complexas tecnologias deinterpretação, representação e criação de mundos “reais”.6

De Lauretis já havia mostrado que o cinema era uma formade modelar e posicionar homens e mulheres dentro da matrizheterossexual. As imagens cinematográficas se transformamem modelos, já que “formatam”, “domesticam” o olhar sobreo mundo. Se Teresa de Lauretis pôde demonstrar como astecnologias cinematográficas e os códigos cinemáticosconstroem a mulher, existe a possibilidade de visualizarmosos jornais e seus códigos como tecnologias de gênero. Esperomesmo encontrar o caráter gendered das notícias sobreviolência nas páginas policiais. Perscrutar os discursosjornalísticos, buscando detectar quais cronotopos escolhi-dos na narração da violência, pode nos possibilitar alcan-çar uma complexa tecnologia social – sustentada e opera-cionalizada por diversas instituições e agências sociais.

TTTTTempo e espaço: o conceito de cronotopoempo e espaço: o conceito de cronotopoempo e espaço: o conceito de cronotopoempo e espaço: o conceito de cronotopoempo e espaço: o conceito de cronotopo

A imprensa grava e ressalta determinadas dimensõesde forma mais ou menos consciente. Embora esses discursosse construam com base em representações coletivas,condensando emoções vivenciadas coletivamente nasimagens e nas letras reproduzidas pela mídia, existe certograu de consciência nos jornais que indica a dimensãoideológica. Os jornais não são apenas portadores de eficá-cia mágica que consolidam a reciprocidade entre editorese leitores; são discursos posicionados e valorados.7 Comopodem ser ideológicos os discursos que procuram se construirde forma “neutra” – que se autoproclamam imparciais, comolinguagem que se busca “objetiva” –, tentando dizer tudode forma clara e com frases simples, informando o leitor datotalidade do evento já no primeiro parágrafo?

A resposta poderia ser dada de diversas maneiras.Uma delas consiste em apontar na própria forma de escrever,no como se diz o que se diz, o conteúdo ideológico dosdiscursos sobre violência. O contato com a violência pormeio da mídia impressa pode nos levar a concluir que, pordetrás do objetivo de neutralidade e objetividade, existemdiscursos altamente valorados. No que se refere aos jornais,principalmente às páginas policiais, devemos nosquestionar: como alcançar a dimensão formal – e, por meiodela, o caráter ideológico do discurso – numa linguagem,como a jornalística, que busca uma verdadeira assepsiaestilística? Uma resposta a essa indagação pode indicar aprópria tentativa de eliminação da linguagem figurativacomo índice significativo de seu caráter ideológico; aconvencionalidade da linguagem assinalaria oposicionamento.8

6 HARAWAY, 1995.

7 João Batista TORRES, 1990 e1994.8 Existe certa padronização dostextos jornalísticos, como se podeobservar nos manuais de redaçãodos grandes jornais, nos cursospara os profissionais que ingres-sam nas redações, no diário con-trole da escrita efetuado pelaprópria maneira de organizar osjornais – demonstrado, por exem-plo, por TORRES, 1994, em suaetnografia na redação do jornalFolha de S. Paulo. Evidentemente,os tipos de jornalismos são varia-dos, e incluem mesmo aquelesmais críticos, que buscam subver-ter as próprias formas específicasdesse tipo de discurso. A literaturasobre o assunto é extensa, o queparece indicar certa resistência aabordagens unidirecionais. Cienteda complexidade e da especifici-dade desse discurso, proponho-me, neste texto, apenas umaaproximação parcial às páginaspoliciais dos jornais de um con-junto de notícias selecionadas ecatalogadas no Dossiê 1985 doBanco de Dados do MovimentoNacional de Direitos Humanos(MNDH). Todas as vezes que men-cionar os termos “jornais”, “discur-so jornalístico”, “textos de jornal”,estarei me referindo às páginaspoliciais. Os possíveis achadosdeste texto, portanto, devem sercircunscritos ao universo daspáginas policiais – gênero bemparticular no quadro mais geraldo jornalismo. Para outras aborda-gens do tema, ver Maria VitóriaBENEVIDES, 1983; James CAREY,1988; Sílvia RAMOS, 1994; SérgioADORNO, 1995; Adriana LOPES,1999; Tânia MONTORO, 1999;Danilo ANGRIMANI SOBRINHO,1995; e Theóphillos RIFIOTIS,1999.

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Este artigo busca, portanto, empreender uma análisede discurso. O texto jornalístico é abordado como um“gênero de discurso”9 que possui forma própria de descrição.As notícias são construções discursivas, como forma própriade narrar/criar eventos, que podem ser analisadas com oobjetivo de perceber, no evento narrado, o que passa a sernaturalizado ou percebido como autêntico – ou seja, comoo “aparelho jornalístico”, adaptando aqui a expressão deDe Lauretis,10 constrói e naturaliza os gêneros.

A procura de estreita ligação da análise formal comseu caráter histórico e social e a necessidade de conceitoque pudesse penetrar na assepsia dos textos jornalísticosconduziram à análise de discurso de Mikhail Bakhtin.11 Pordois motivos básicos. Em primeiro lugar, para ele forma econteúdo são indissociáveis e representativos; as palavrasnão são desabitadas e só existem em sua qualidadedialógica. Em segundo, por mais que um texto prime pelaassepsia, pela busca da neutralidade, pela eliminaçãoda linguagem figurativa, ele, necessariamente, se constituinalguma relação espaço-temporal. Essa característica nosconduz ao conceito bakhtiniano de cronotopo, que é umentrecruzar das coordenadas de tempo e espaço, umaintervinculação espaço-temporal de uma narrativa oudiscurso. Qualquer discurso, mesmo o jornalístico, se expressaespaço-temporalmente.

Ao se representarem no espaço e no tempo, asnarrativas se colocam de determinada maneira como serhistórico. Assim, cada cronotopo, determinando uma imagemespaço-temporal, supõe concepções ideológicas. Comoargumenta Michael Holquist,12 numa primeira instância,cronotopo é para Bakhtin uma combinação particular detempo e espaço resultantes de determinadas manifestaçõeshistóricas de formas narrativas, vinculadas principalmenteà literatura. Mas, como o ser “histórico real” se revela noscronotopos, podemos acreditar que esse conceito proporcio-na um meio de explorar a complexa, indireta e frequentemen-te mediada relação entre vida e discurso. Mais do que uminstrumental técnico para análises literárias, o conceito decronotopo nos possibilita captar a forma como homens emulheres se representam. Esse conceito bakhtinianodemonstra que texto e vida estão em permanente diálogo,e o caráter dialógico assinala como um enunciado estásempre interconectado a outros.

O caráter dialógico evita, assim, a absoluta separa-ção entre a existência livre de convenções fora dos textos eum mundo de convenções dentro do texto. Dessa maneira,apesar de o estudo de cronotopo de Bakhtin ser explicita-mente dedicado à descrição de vários modelos que têmdominado a história da novela, suas análises nos fornecem

9 Mikhail BAHKTIN, 1997.

10 DE LAURETIS, 1989.

11 Para a elaboração deste artigome apoio especialmente naabordagem de Bakhtin sobrecronotopo (BAKHTIN, 1988). Paraanálises da obra de Bakhtin, verMichael HOLQUIST, 1991, ElsaDRUCAROFF, 1991, CristóvãoTezza, 2003. Diferentemente deEdward SAID, 1996, que relacionaa obra de Bakhtin a modismointelectual (ele se referebasicamente ao universo norte-americano), ligado diretamente a“discursos domesticados”,acredito que este texto acaba porsugerir como Bakhtin pode ser útilnum projeto de crítica cultural ounuma hermenêutica da suspeita(Paul RICOEUR, 1978).

12 HOLQUIST, 1991.

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VIOLÊNCIA E TECNOLOGIAS DE GÊNERO: TEMPO E ESPAÇO NOS JORNAIS

elementos para estabelecer a vinculação entre práticassociais, história e literatura – como argumentou TzvetanTodorov.13 O conceito de cronotopo poderá ajudar a penetraro véu que encobre o caráter ideológico dos assépticos textosjornalísticos que noticiam a violência de gênero.

Se o cronotopo é uma forma de percepção ideológi-ca, um modo de compreender a vida humana simultanea-mente dentro de um espaço e num ponto específico dotempo histórico, a própria violência não pode ser distan-ciada de seu caráter ideológico, nem de sua dimensãoespaço-temporal. A violência se configura, assim, numaideia-valor que marca os discursos, constituindo-se em for-ma de a própria sociedade se pensar e de atribuir divisões,hierarquias e escalas de poder; consistindo em maneirasde tratar o “outro”, de solucionar conflitos, de sustentaridentidades, de obter reconhecimento social, entre outros.14

Assim, o direcionamento adotado não foi arbitrário: pretendosugerir que os discursos jornalísticos que relatam a violênciautilizam cronotopos diferenciados, o que implica um posicio-nar específico.

Os jornais e as classes popularesOs jornais e as classes popularesOs jornais e as classes popularesOs jornais e as classes popularesOs jornais e as classes populares

Faz parte de certa imagem – como já tive oportuni-dade de frisar – achar que o jornalismo tem uma forma pe-culiar de contar que é única em todos os casos e que sematerializaria numa assepsia estilística. Todavia, sepudermos assinalar cronotopos diferentes para os textosjornalísticos, essa ideia seria, no mínimo, relativizada. Aspesquisas que realizei no Banco de Dados do MovimentoNacional de Direitos Humanos15 levaram justamente a estaconclusão: quando os periódicos descrevem, por exemplo,um crime qualquer ocorrido com homens das classes popu-lares,16 utilizam um cronotopo; mas quando apresentam umcrime semelhante com homens das classes altas, ocronotopo se transforma. Um movimento análogo ocorre coma posição cronotópica da mulher quando ela é personagemparticipante de um crime ou ação violenta.

Nas páginas policiais que descrevem eventos ocor-ridos com homens das classes populares, as ações se desen-rolam tendo como marco um ponto fundamental: a violência.Esse ponto se torna o acontecimento essencial da vida dospersonagens, transfigurando-se no índice significativo dasbiografias. Apesar da existência de fatos e de aconte-cimentos anteriores a esse ponto, nos discursos desses jornaistudo se passa como se, nesse período, nada de essencialse passasse. Os personagens só existem por causa daviolência; a construção cronotópica indica que até aquelemomento nada significativo ocorreu em suas vidas.

13 TODOROV, 1984.14 Luis Eduardo SOARES, 1995b,advertiu sobre a utilização deviolência como “palavra-valise”,com certa tendência a homoge-neizar as observações relativas afenômenos associadas à violên-cia. Neste texto, seguindo LuisEduardo SOARES e Leandro PiquetCARNEIRO, 1997, e na tentativade escapar das ciladas apontadasacima, violência é percebidacomo ideia-valor, modos deconstruir e tratar a alteridade.15 Utilizei as notícias do ano 1995,perfazendo um total de 50, todasselecionadas e catalogadas noBanco de Dados do MNDH, epetencentes ao que se denominano jargão jornalístico de “páginaspoliciais”. O Banco de Dados con-siste num arquivo de notícias,elaborado por profissionais doMNDH, todas envolvendo casos dediversos tipos de violência enoticiadas em jornais de grandecirculação – as notícias sãoretiradas de dois jornais de grandecirculação estadual em cadaunidade da Federação. No Bancode Dados, em seu Dossiê 1995,obtive textos que descreviam aviolência envolvendo homens declasses populares e altas, eviolência contra mulheres, todasdos jornais Correio Braziliense eJornal de Brasília (doravante CB eJB, respectivamente). Além dostextos, o Banco de Dados agrupao perfil dos envolvidos a partir dasvariáveis idade; cor; sexo;ocupação; menção ao uso dedrogas; envolvimento ematividades ilícitas e relação entreos envolvidos. Para uma análisedetalhada desse Banco de Dados,de sua importância e limitações,ver Valéria G. de BRITO E SILVA,1998. Como já salientei, utilizandoanálise de discurso, basicamentea teoria de discurso de MickailBakhtin, busquei analisar nessasnotícias as relações entre espaçoe tempo (cronotopo).16 Apesar das discussões sobre oslimites do termo, principalmenteno que tange a uma visão quehomogeneíza e essencializa as“classes populares” e as “classesaltas”, apresentando-as de forma

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Exemplos variados poderiam ser alocados para confir-mar a afirmação acima. Notícias como “Empregada éassassinada”; “Grávida morre, mas bebê escapa”; “Meninaé estuprada e morta pelos pais”; entre numerosas outras,apontam os nomes dos envolvidos na cena da violência,apresentam descrição do episódio e, quando muito, indi-cam pequenos antecedentes que já antecipavam o próprioato de violência, e os prováveis desdobramentos originados– sempre referentes à ação.17 Descontextualizam-se o agres-sor e a vítima, suprimindo suas histórias de vida. A exceçãoa esse procedimento formal é mínima e se circunscreve acasos em que pequenos fatos já demonstravam a “propen-são ao crime”, como atestam, geralmente, depoimentos devizinhos e amigos: “Eu sempre achei João muito esquisito,caladão, cheio de marcas de facadas e tiro espalhadaspelo corpo”. A vida dos envolvidos só existe em funçãoimediata ao ato de violência.

Antes do ato de violência – como ponto fundamental– há um hiato, pois tudo o que acontece não deixa marcas,não indicando qualquer possibilidade de mudança. Desfe-chos como “O casal deverá ficar preso até a conclusão dasinvestigações”; “Os médicos ainda tentaram salvar a vítima.Em vão” sugerem a inexistência de crises e de transforma-ções, seja no agressor, seja na vítima.

Quando os jornais narram violência de homens dasclasses populares, o tempo abstrato encerra um ser passivoe imutável. Os fatos acontecem ao personagem que se en-contra privado de iniciativa. Sendo passivo, sofrendo o jogodo destino, ele se resguarda, conservando profunda identi-dade consigo mesmo. Os acontecimentos não alteram nemforjam nada; só provam a solidez de um produto já fabrica-do. O mundo e os homens estão prontos e imóveis, suprimin-do-se possibilidades de transformação. Os fatos aparecempor acaso, e desaparecem sem deixar vestígios no compor-tamento dos envolvidos. Durante o tempo anterior à açãoviolenta, os personagens permanecem inalterados. Quandoos eventos surgem, são organizados numa série temporalexterior à vida, de forma simplesmente técnica. Os fatosocorrem de repente e a vida só é interrompida pelo acaso.

Essa organização temporal conduz a uma dimensãoanistórica e natural, asseverando que os personagens nãose modificam. O acaso, ao colocar o de repente, que amiúdeleva à violência – que na construção jornalística se torna ofato mais relevante na vida dos personagens –, assinalaque o tempo não pertence às pessoas, implicando, assim,a naturalização das ações dos personagens.

De um lado, temos a naturalização do homem que,diante das situações proporcionadas pelo acaso, cometenaturalmente atos de violência. Ou seja: é natural que

monolítica, alguns autores/as vêmempregando o termo de forma aevitar tais conotações, como emCláudia FONSECA e JuremaBRITES, 2006. Ver também GilbertoVELHO e Marcos ALVITO, 1996.

17 O objetivo não é analisar ouacompanhar os eventosnoticiados na íntegra, massomente captar nos discursos dosjornais as relações entre tempo eespaço, ou seja, os motivoscronotópicos, tal como propostopor Backtin. Trata-se de um tipoespecífico de análise de discurso,que, se por um lado se distanciadas abordagens mais focadas emeventos específicos (como emLourdes BANDEIRA e Tânia MaraALMEIDA, 1999), por outro ladopermite uma visão geral dosmotivos que perpassam essestextos. Noutras palavras, interessa-se menos pelos eventos (ou pelosdiferentes tipos de notícias) doque pelas configurações crono-tópicas – objetivando-se, comosalientado, compreender umpouco mais esse “aparelho jornal-ístico” ou a maneira como seestrutura essa tecnologia degênero. Para uma discussão sobreas possibilidades e limites daanálise cronotópica de Backtin,ver TODOROV, 1984; sobre tecno-logia de gênero, ver DE LAURETIS,1984, 1989, 1994 e 2007.

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homens das classes populares sejam violentos. Daí que nãose necessita narrar os eventos e fatos anteriores a um crime,nem mostrar as mudanças ocorridas ou as marcas quedeixou nos homens e mulheres. Mas, de outro lado, temos aforma descontextualizada de se colocar os fatos: isolados eexcepcionais, não se admitindo um tempo-espaço concreto.Nesse caso, temos distância admitida no discurso queparece propor, para além da naturalização da violêncianas classes populares, a necessidade de colocá-las nummundo estranho, à margem do mundo normal e familiar dequem está narrando. Assim, podemos localizar nos discursosjornalísticos cronotopos com as seguintes características: a)ligação técnica e abstrata do espaço e do tempo; b) reversi-bilidade dos momentos da série temporal; c) possibilidadede transferência no espaço.

Os jornais e as classes altasOs jornais e as classes altasOs jornais e as classes altasOs jornais e as classes altasOs jornais e as classes altas

O mundo imutável, de um tempo-espaço abstrato etecnicamente arranjado, naturalizado e estrangeiro, cons-truído nos discursos jornalísticos que descrevem a violênciade homens das classes populares, contrasta-se com osdiscursos dos mesmos jornais ao relatarem a violência dehomens nas classes altas. Nesses discursos, um motivo funda-mental é o da metamorfose, entendida como modo deinterpretação e de representação do destino particular dohomem. A metamorfose é a base da representação da vidahumana em seus momentos essenciais de crise e de ruptura,nos períodos em que um personagem se transforma em outro.O motivo da metamorfose coloca a crise e a transformaçãocomo partes do discurso, apresentando-se duas ou trêsimagens do mesmo personagem, desunidas por suas crises.

As imagens são alocadas uma ao lado da outra, comono caso em que o jornal Correio Braziliense aponta o suicídiode um jovem “da classe média alta”. O início é esclarecedor:“J.R.G.T.C, 17 anos, era um rapaz inteligente, saudável etranqüilo. Tinha carro próprio, computador, carinho da família.Estudava em escola particular, freqüentava festinhas comamigos e pretendia formar uma banda de rock”. Logo a seguir,outra imagem: “Deu um tiro na cabeça com um revólvercalibre 38 no quintal de sua casa no Lago Sul” (CB, 20 demaio). Como esse episódio, são numerosos os casos dehomens “normais”, que eram vizinhos, amigos e parentes, masque, de repente, se transformam e cometem atos violentos.

Os textos de jornal que relatam a violência – princi-palmente crimes – em classes altas também não sugeremum tempo histórico, proporcionando tão somente momentosexcepcionais que, por sua vez, determinam as imagens dopersonagem que caracterizam sua vida posterior. Diferente-

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mente dos elementos contidos no cronotopo anterior, o tempodeixa marcas no personagem, apesar de ainda se caracte-rizar pelos acontecimentos excepcionais e pelo acaso.

Nas descrições de violência de homens das classesaltas, o acaso atua somente nos limites, pois a iniciativa pri-meira pertence ao homem. Essa iniciativa não é “positiva-mente criada” e sim uma iniciativa da falta, do erro e doengano. Nessas condições, os fatos vividos pelo personagemconduzem à construção de uma nova imagem, em que ohomem é responsabilizado pelos seus atos. Já não é maisum tempo abstrato e técnico, o tempo é “um todo essenciale irreversível” que exige concretude e que se aproxima dotempo da vida cotidiana.18

Depois do ato violento, as páginas policiais salpicamdeclarações dos familiares, dos envolvidos, mostrando comohá lições e ensinamentos no episódio, e sugerindo como ospersonagens mudaram suas vidas e seus modos de agir.Não é a identidade anterior que é afirmada, mas sua modifi-cação com a crise e a ruptura advinda dos acontecimentos.

Há nesses textos uma fusão da vida do homem comseu caminho real e espacial, com suas peregrinações. Surge,então, o motivo do caminho da vida, que passa pela terranatal, familiar. O espaço é preenchido pelo sentido da vidado personagem. O cronotopo da estrada permite, além demaior familiaridade, a existência da vida cotidiana; já nãose fala em lugares distantes, mas do “quintal”, do lugaronde os fatos aconteceram e modificaram os rumos de vida.O espaço se concretiza: não é qualquer espaço; trata-se dosítio da metamorfose, da mudança.

Essa vida cotidiana, não obstante, só existe emdeterminados momentos, nos caminhos laterais da estrada,pois os personagens principais e os acontecimentos estãofora do cotidiano. O personagem tem um caminho fora docotidiano e somente atravessa por ele numa das fases desua vida. Ao se retirar o personagem de seu dia a dia,empurrando-o para as margens, fragmentando-o empedaços independentes e desunidos, privando-o de laçossubstanciais, elimina-se também sua historicidade.

Particular e privada, a vida cotidiana não contémnada de público e só se depreende da esfera privadaquando a ação violenta acontece. Nas páginas policiais,o crime, nas classes altas, é o momento da vida privada emque ela se demuda pública a contragosto.

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A diferenciação cronotópica entre os relatos jornalís-ticos que tratam a violência com homens das classes popu-

18 BAKHTIN, 1988, p. 239.

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VIOLÊNCIA E TECNOLOGIAS DE GÊNERO: TEMPO E ESPAÇO NOS JORNAIS

lares e com homens das classes altas deve ser comparadacom os motivos cronotópicos dos relatos de violência contraa mulher. Tal movimento possibilita verificar as formasescolhidas para construir os personagens, captando asmaneiras escolhidas para representar mulheres e homens –o que indica o caráter gendered do discurso jornalístico.

Ao relatarem a “violência contra as mulheres”, osjornais concebem tempo-espaço como abstratos, nãoexistindo vestígio de construção cronotópica que remeta aalgum tipo de historicidade. O tempo e o espaço abstratosconferem ao feminino um caráter totalmente passivo, pois,já que a dimensão espaço-temporal é exterior à constituiçãodos personagens, as mulheres acabam sendo conformadascomo sem iniciativa; ao se movimentarem no tempo e noespaço sem qualquer inserção, as mulheres simplesmentesofrem o jogo do destino. “L.M.N. foi esfaqueada por seuamante”, “M.P.D. morta a tiros por seu marido”, “E.L.S.assassinada pelo irmão”. Nada da vida dos personagens,das condições que ensejaram o ato violento.

Daí se conclui que os discursos jornalísticos, quandodescrevem a violência contra mulheres desconhecemqualquer localização histórica do tempo dos aconteci-mentos. A história é excluída dos textos jornalísticos. Assim,as datas fornecidas são referenciais, exteriores ao curso doacontecimento, em geral se limitando à própria data dojornal diário, tratando-se, simplesmente, de instrumentaltécnico de informação, mas que, no essencial, não guardamnenhuma vinculação com o fato ocorrido. “Ceilândia, terça-feira à tarde”; “Um homem não identificado invadiu ontemde madrugada”; são as referências temporais amiúdefornecidas nessas circunstâncias. O tempo nos discursosjornalísticos, portanto, é abstrato e anistórico.19

O espaço, à semelhança do tempo, também é abs-trato. Para descrever o ato violento se faz necessária a delimi-tação do espaço. Contudo, os jornais apresentam os aconte-cimentos num espaço determinado unicamente pelo acaso,“pela coincidência ou pela não coincidência fortuitas emdado lugar no espaço”.20 Os fatos podem se passar emqualquer lugar: Ceilândia, Samambaia, Taguatinga,Sobradinho ou Plano Piloto. Existe, evidentemente, a suposi-ção de que algumas localidades na cidade são mais violen-tas do que outras, mas, mesmo nesses sítios, não se propõedescrição espacial ou vinculação entre espaço-persona-gem. O ato de violência ocorreu aqui, como poderia teracontecido em qualquer lugar.21 As localidades considera-das de maior índice de violência recebem, entretanto, motivocronotópico diferente, o de lugar distante e desconhecido,o que serve para consolidar a visão de que a violênciaocorre nos espaços marginais da sociedade.22

19 História e mudança não devemser confundidas, pois a persistên-cia da estrutura através do tempoé ela própria histórica. Todavia, otexto jornalístico constrói arealidade como se fosse anistó-rica. Ao criar um personagem quenão revê o significado de seusprojetos pessoais, o esquemacultural não enfrenta qualquerperigo, não podendo colocar,para utilizar os termos de MarshalSAHLINS, 1987, p. 186, a humbrissimbólica do homem como “umagrande aposta feita com asrealidades empíricas”.20 BAKHTIN, 1988, p. 224.21 Concordo com Luiz EduardoSOARES, 1995a, p. 26, quandoaponta o equívoco da ideia deque a violência é um fenômenodemocrático e com distribuiçãohomogênea. Contudo, o queestou sublinhando aqui é queexiste uma forma de narrar quevincula abstratamente a violênciaao espaço de sua localização.22 Ver HALL et al., 1973, p. 226.

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Esse mundo naturalizado e de um tempo e espaçoabstratos e tecnicamente arranjados se distancia de tempo-espaço concreto, inevitável na representação de um mundofamiliar. Seja pela distância denunciada pela objetividadee assepsia dos textos de jornal, seja pela forma de interligartempo e espaço, ao relatar a violência de alguma formarelacionada ao feminino, as páginas policiais a colocamnum mundo estranho e estrangeiro. E nele não se verifica famili-aridade com o autor – familiaridade com o de onde veio e ode onde observa o autor. Esse caráter de “estranho” é dadotambém pela forma descontextualizada de se colocar os fatos.

A construção espaço-temporal conduz à indistinçãotanto dos personagens como de suas ações. Esseprocedimento pode ser observado quando se obnubila abiografia dos sujeitos ou quando as páginas policiaisresumem a vida ao ato violento. Mas, também, quando nomesmo jornal diário o assassinato de uma mulher pelo seumarido e o estupro perpetrado pelo vizinho a uma jovem de16 anos são alocados numa disposição que subsumemessas notícias num amplo universo, não as diferenciando,por exemplo, do furto de uma bicicleta, seguido de prisão,por um jovem da periferia de Brasília. Disposição formal,aliás, deveras comum em jornais. O processo de indistinçãonaturaliza a violência, subsumindo, por exemplo, os crimesde gênero numa miríade de outros crimes e de outras formasde violência. Indistinção que esconde o rastro de gênerodos discursos, reforçando a ideia de um narrador neutro eequânime, escondendo sua participação na comunicação– que também gera violência, como argumentarei adiante.

Mesmo em notícias nas quais as mulheres efetuamcrimes, os jornais as colocam como sujeitos não constituintes.Quando a mulher comete o crime, passa a existir somentepor causa dele; o discurso, então, olvida toda história devida e se cria um imenso vazio sobre o passado. Mas, alémdisso, o texto jornalístico procura retirar a mulher do centroda descrição. O Jornal de Brasília (5 de julho de 1995)descreve, por exemplo, a história de uma mulher que matouseu marido e escondeu o corpo. Na matéria, o jornalistacomeça dizendo ser O.P.G. acusada de matar seucompanheiro a golpes de facão. Depois, ele localiza o bairroe o nome da vítima. Em seguida, informa que os bombeirosencontraram o corpo, que policiais descobriram o crime pormeio de um telefonema anônimo denunciando brigas entreo casal, denúncia confirmada pelo vizinho. No final, o leitorfica sabendo que OPG teve ajuda de certo D, personagem,evidentemente, masculino. A presença de um númeroinfindável de sujeitos constituintes sugere o papel sempresecundário da mulher, mesmo quando é ela quem efetuouo crime.

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Falo de crime cometido por mulheres, neste momento,só para nuançar os motivos cronotópicos das páginaspoliciais que constroem mulheres como sujeitos não consti-tuintes. Se ao cometer o crime a mulher não se apresentacomo sujeito, quando vítima, simplesmente desaparece. Noprimeiro caso, aparece tecnicamente, como um nome quereage diante de um fato; no segundo, é um nome apenas –condição decorrente, como já fiz notar, da descontex-tualização das ações e da localização espaço-temporal.

Essa configuração cronotópica produz efeitos. Asucessão de histórias, descontextualizadas de localizaçãoconcreta espaço-temporal, insinua uma repetição queentedia os leitores e adjudica a naturalização da violência– seja ela em forma de crime, seja simbólica.23 A naturaliza-ção parece mesmo formar a base moral sob a qual a violên-cia não noticiada, mas comum no dia a dia vivenciado porhomens e mulheres, pode surgir com a mesma naturalidade.

A violência cotidiana, quando aparece nos jornais,figura num tempo e espaço abstratos e intangíveis, perfa-zendo configuração que indica sua distância de qualquerrealidade observável. Uma das maneiras de edificar textual-mente esse distanciamento se dá quando o jornalista conferecerto ar de jocosidade às situações: “Depois de beber atarde inteira, J.P.P. vai a Delegacia das Mulheres se queixardos desmandos de seu marido”; “Questionada na Delega-cia, O.M. diz que as brigas ocorrem por que o marido quercontrolar a televisão”, e assim por diante. A violência morale simbólica termina por se tornar trivialidade, e sua denúnciase configura em “coisa de mulher mal amada” (CB, 12 desetembro de 1995) – como ressaltou o jovem L.P.G., casado epai de duas filhas e que proferiu a frase acima depois deuma briga do casal na qual sua esposa – com hematomaspelo corpo – prestou queixa na polícia. O pretenso gracejoconfere naturalidade à violência. Justamente por esse tipode violência ser inerente e indispensável à ordem de gênero,exercendo papel ubíquo de atualização naquilo que sedenomina gênero,24 é que a construção textual torna jocosassituações de angústia, medo, insegurança e dominação.

O programa de televisão “Sem meias palavras” apre-sentou um incidente que envolveu Jeremias – rapaz de unsvinte e poucos anos detido por conduzir uma motocicletaembriagado. A fala desconexa desse personagem parececonferir graça a esse episódio por demais banal paraalcançar tão amplamente a mídia. O site youtube divulgoua matéria e logo uma quantidade enorme de espectadores,no país e no mundo, puderam acompanhar o aconteci-mento, chegando à mídia impressa e à rede televisiva deoutros países. O que passou despercebido para muitos foique por detrás do gracejo surge uma fala que impressiona

23 Violência simbólica é, segundoPierre BOURDIEU, 2002, p. 50, “aforma de poder que se exercesobre os corpos, diretamente, ecomo que por magia, semqualquer coação física; mas estamagia só atua com o apoio depredisposições colocadas comomolas propulsoras, nas zonas maisprofundas dos corpos”. Na análisede Roger CHARTIER, 1995,violência simbólica, no caso degênero, seria a interiorização,pelas mulheres, de normasenunciadas pelos discursosmasculinos. O historiador adverte,entretanto, que tal interiorizaçãoda dominação não excluiafastamentos e manipulações –que vão permitir o deslocamentoou a subversão da relação dedominação. A reapropriação pelodominado de uma representaçãoimposta se volta, então, contra aordem dominante que a produziu.Ver também BOURDIEU, 1989; RitaLaura SEGATO, 2003; e RachelSOIHET, 1989 e 1997.24 SEGATO, 2003.

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pela violência: “Eu sou cabra homem, se eu pudesse, eumatava mil... eu mato até o delegado”, vociferou Jeremias.A fala desconexa, o estado de embriaguez, o caráter, porassim dizer, inconsciente da narrativa acabaram porconformar uma estranha e desconcertante facúndia quedenuncia a vinculação imediata entre violência e gênero.Tão marcante fora essa conexão que esse mesmopersonagem, encontrado dias após nas mesmas condiçõesda primeira detenção, sofreu a incitação exatamente nessecampo: “Ainda continua sendo cabra homem?”, comoindagou várias vezes o repórter. Essa história demonstra avinculação entre aquilo que se noticia, a forma de se contara história e as relações entre meios de comunicação,violência e gênero.25

Quando o texto de jornal descreve práticas violentasnas classes populares utiliza um tempo-espaço que colocaos sujeitos como imutáveis e anistóricos, um tempo e espaçoabstrato que priva os sujeitos de toda iniciativa. Os homenssurgem como personagens que cometem ações violentas,existindo somente por causa delas. No caso das mulheres,como vítimas ou agressoras, os textos de jornais apagamsuas atitudes e ações, tornando-as, além de passivas esocialmente marginais, seres à margem no próprio discurso.Geralmente, as notícias de violência reservam às mulhereso espaço que o ato violento abarca, e pequenasinformações são adicionadas à margem, como que paraatestar que aquele personagem se limita ao ato de violênciasofrido. A parca quantidade de detalhes ou de dados sobreo ocorrido, bem como das condições que propiciaram aviolência, completa e perfaz a própria economia simbólicada violência. Nos discursos jornalísticos nada há de novo,nenhuma alteração ou criação; tudo ocorre para confirmaruma identidade que já existia desde o início. Os traçosbiográficos são tão genéricos que terminam por assegurara construção de uma mulher também genérica, criadapara consubstanciar o feminino como eternamentepassivo.26

O mais interessante é que, mesmo quando se tratade discursos jornalísticos que procuram relatar a violênciacontra mulheres das classes altas, os motivos cronotópicosnão se alteram, como demonstra a inexistência do motivoda metamorfose envolvendo mulheres das classes altas nasnotícias por mim analisadas. A imagem da mulher, portanto,não sofre alteração no processo de descrição e de narraçãodo ato violento.

O resultado dessa construção cronotópica é que anotícia acaba por distanciar o leitor dos personagens,fazendo desaparecer qualquer personagem palpável,localizado historicamente, vinculado a um tempo-espaço

25 Podemos também pensar emoutras dimensões, como a forçada mídia e sua interconexão comdiversas modalidades de comuni-cação, sejam jornais impressos,rádio, internet ou televisão –aspecto esse que não poderei de-senvolver aqui. Utilizo esse eventosomente para destacar a zomba-ria como elemento do discursojornalístico, tratando-se, entretan-to, do único caso que não constano Banco de Dados do MNDH.Sobre a zombaria como armaantifeminista, ver SOIHET, 2005.26 O discurso jornalístico estabele-ce – e se pauta por – contratosna interação entre o enunciadore o destinatário. Há uma comple-xa rede de relações entre jornalis-ta e leitor, o que significa que nãopodemos imaginar um isoladocriador (o jornalista) de sentidos,sem perceber o público tambémcomo aquele que marca a forma-ção de significados. Dessa forma,o processo de construção damulher, ou de “engendramento”,não é unidirecional nem homo-gêneo (DE LAURETIS, 1994, p.206). As tecnologias de gênerosão reapropriadas e desviadas,como demonstram, por exemplo,Marie-Hélène BOURCIER, 2002 e2005; e Beatriz PRECIADO, 2000,2002 e 2007. Uma limitação destetrabalho, evidentemente, é queele se centra em verificar como ogênero é construído por uma tec-nologia específica (as páginaspoliciais dos jornais), mas nãocomo ele é absorvido pelas pes-soas, o que implica a não obser-vância das fraturas, das disjunçõese da resistência. Ou seja, afirmarque os jornais constroem a Mulhernão significa, em hipótese algu-ma, dizer que não haja resistên-cias e dissonâncias no processo,e reapropriações e desvios dos ins-trumentos simbólicos e das tecno-logias que instituem e efetuam aprópria construção da mulher edo feminino (ver SOIHET, 1997).

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concreto. Dois outros efeitos poderiam, ainda, ser apontados.Em primeiro lugar, a foraclusão do feminino, tratando-se deuma negação insistente e repetitiva da mulher como sujeito.O sujeito feminino inexiste, encontrando-se em seu lugar umamulher genérica, um simulacro. Esse processo ocorre nãoapenas como recalque – rasura de algo dito – mas comoausência de inscrição; já que a mulher só surge nos discursosjornalísticos como simulacro. Em segundo, mas diretamenterelacionada à foraclusão do feminino nos textos que noti-ciam a violência contra a mulher, a construção cronotópica,ao naturalizar a violência, acaba por tornar indistintos osmais variados crimes e atos violentos; uma indistinção internados tipos de crimes, que coaduna com a construçãosimulacral de uma “mulher genérica”.27

Os jornais têm estrutura formal e procedimentosestilísticos, já que utilizam motivos cronotópicos valendo-sede formas da tradição para construir verdades. O jornalistaescreve se posicionando – cronotopicamente –; ao se distan-ciar do leitor e enquadrá-lo, a construção textual exercesempre seu olhar sob o manto da neutralidade. Essa neutrali-dade e essa distância se desfazem, entretanto, quando per-cebemos o caráter de classe e de gênero dos discursos –como espero ter ficado demonstrado pela análise da compo-sição cronotópica dos textos de jornal que abordam a violên-cia.28 Assim, talvez seja melhor compreender as páginaspoliciais dos jornais como dispositivos discursivos queconstroem o outro, que agem sob o outro e que classificam,enquadram, definem e inventam a violência e o violento.

Podemos observar, ainda, que as relações espaço-tempo nos textos de jornal que noticiam a violência ocorremde forma a criar locais civilizados e pacificados e espaçosmarginais, distantes e estrangeiros, que se configuram numoutro da sociedade hegemônica. Esses textos espargem,fragmentariamente, também uma pedagogia da naçãolimpa da violência, composta por homens brancos razoáveise mulheres passivas que devem ser controladas pelo discursonormatizador que as enquadra – o que nos lembra afrequente vinculação entre a preservação do territórionacional e o corpo feminino.29

Páginas policiais, gênero e violênciaPáginas policiais, gênero e violênciaPáginas policiais, gênero e violênciaPáginas policiais, gênero e violênciaPáginas policiais, gênero e violência

Ao analisar as dinâmicas psíquicas, sociais e culturaisque se relacionam com a violação, Rita Laura Segato30 concluiser ela, antes de tudo, um enunciado. Desse modo, as análisesque circunscrevem os atos de violação a patologiasindividuais ou à ação imediata e automática da dominaçãomasculina acabam por olvidar uma dimensão fundamental:a violação é, fundamentalmente, um mandato que, sempre

27 Penso aqui na utilização eampliação de Judith BUTLER, 1997,do conceito lacaniano deforaclusão, e, sobretudo, no textode SEGATO, 2006b, sobre o Édipobra-sileiro. Utilizo o conceito desimulacro valendo-me de JeanBAUDRILLARD, 1996.

28 Inspiro-me, aqui, no livro de MaryLouise PRATT, 1999, e em suasconsiderações sobre o “observa-dor” (seeing-man), e igualmentenas abordagens de Teresa DELAURETIS, 1989, sobre as tecnolo-gias de gênero.

29 Ver SEGATO, 2004 e 2006a.

30 SEGATO, 2003.

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segundo Segato, seria condição necessária para areprodução do gênero como estrutura de relações entreposições marcadas pelo diferencial hierárquico, e instânciaparadigmática de todas as outras ordens de status. A violaçãosurge como cobrança rigorosa, força-da e naturalizada deum tributo sexual, na reprodução da economia simbólica depoder cuja marca é o gênero. A violação, portanto, atua nosciclos regulares de restauração desse poder.

Na busca de formulação de modelo capaz de darconta da etiologia da violência – sempre pensada em suaassociação direta com as relações de gênero –, a autoraassevera que a violência, no caso da violação, decorre darelação entre dois eixos interconectados. Um eixo horizontal,formado por termos acoplados por relações de aliança ecompetição; outro, vertical, caracterizado por vínculos deentrega ou expropriação. O eixo vertical associa as posiçõesassimétricas de poder à sujeição, ou seja, o perpetrador àsua vítima; o eixo horizontal associa o perpetrador aos seuspares, em relações que atuam objetivando a simetria. Essesdois eixos possuem ciclos que se articulam, formando sistemaúnico cujo equilíbrio é instável e de consistência deficiente.O ciclo cuja dinâmica violenta se desenvolve sobre o eixohorizontal se organiza ideologicamente em torno de umaconcepção de contrato entre iguais; o ciclo que se revolveem torno do eixo vertical corresponde ao mundo pré-moderno, e se refere ao universo do status. As esferas docontrato e do status, apesar de pertencerem a universosdistintos, são coetâneas e se interceptam sistematicamente.

A manutenção do eixo horizontal, que prima pelarelação simétrica entre pares, depende, para sua susten-tação em simetria, da relação vertical com a posição subor-dinada. Esse processo origina uma relação de exação detributo no eixo vertical, condição mesma da conservaçãoda estabilidade do eixo horizontal. Essa exação de tributoresulta num fluxo afetivo, sexual e de outros tipos de subordi-nação que expressa a sujeição constante da posição doque se designa de mulher ou feminina. Como se pode dedu-zir, esse tributo é voluntário em condições de “normalidade”,mas em períodos e conjunturas especiais pode ser coagido.

A violação é um enunciado que se dirige basicamen-te a colocutores presentes no cenário ou no panoramaintelectual e afetivo do sujeito de enunciação. O estupro,seguindo esse raciocínio, decorre de um mandato que dima-na da própria estrutura de gênero, e garante, em determi-nados casos, o preito que se acredita ter acesso. Esteesquema forma o desenho do patriarcado e das estruturasde gênero, perfilando suas arquiteturas.31

A exação do tributo de gênero é condição indispen-sável para a habilitação dos que aspiram ao status mascu-

31 A análise sobre violação aquiesboçada objetiva apenas desta-car a dimensão expressiva daviolência, problematizando asrelações entre os meios de comu-nicação, gênero e violência, eindagando sobre as possibilidadesde formas de atuação violentasespecíficas dessa tecnologia degênero. Sobre o assunto, verSEGATO, 2003.

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lino e esperam poder competir ou se aliar, regidos por umesquema contratual. A violência tem papel fundamentalna reprodução da ordem do gênero, sendo-lhe mesmoconsubstancial. A articulação violenta é paradigmática daeconomia simbólica dos regimes de status, exercendo papelcentral na reprodução da ordem de gênero. Dessa forma,fica evidente que a moral e o costume são indissociáveisda dimensão violenta do regime hierárquico.

Essas ideias conduzem a questionamentos interes-santes sobre as relações entre meios de comunicação, gêne-ro e violência. A dimensão expressiva e não apenas instru-mental de violências contra as mulheres e a presença dainterlocução entre os agentes – relações tanto ou mais impor-tantes que conexão imediata entre agressor e vítima – suge-rem as seguintes indagações: qual o papel da mídia naqui-lo que Segato denominou de “eixo horizontal”? Como essestextos participam do eixo horizontal e, assim, do próprio atoviolento? Se a violência é um ato de comunicação, como osmeios de comunicação atuam sobre esse ato?

Se a violência é coetânea ao gênero, a foraclusãofeminina que se manifesta na construção cronotópica dasnotícias das páginas policiais por mim analisadas corres-ponde a uma naturalidade que enseja – noutras palavras,sustenta as condições comunicativas – a própria violênciamoral e simbólica, mesmo naquele tipo de violência nãonoticiada pelos jornais; violência que se manifesta, inclusive,na própria foraclusão do feminino. Diante dessas dimensõesdevemos, ainda, indagar sobre outro aspecto da construçãodesse “outro feminino”.

Um crime perUm crime perUm crime perUm crime perUm crime per feitofeitofeitofeitofeito

Os artigos de jornal apresentam diferenciaçãocronotópica substancial na forma de narrar a violência nasclasses populares e nas classes altas, e na forma de abordara violência quando se refere ao universo feminino. Naspáginas policiais que retratam a violência nas classespopulares, os personagens: a) só existem por causa do crime,b) não se modificam, c) são anistóricos, d) são colocadosdentro de um espaço-tempo abstrato. Na representação dasclasses altas, os discursos são construídos de modo a mostrar:a) a “metamorfose” do personagem – indicando a existênciade uma vida “normal” anterior à ação violenta, b) diversasimagens do mesmo personagem, c) um tempo-espaço maisconcreto. A imagem da mulher não sofre alteração noprocesso de descrição e de narração do ato violento. Nocaso dos motivos cronotópicos que constroem a mulher e ofeminino nas páginas policiais, existe um duplo olhar: emprimeiro lugar, a naturalização da mulher dá-se exatamente

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no processo de retirá-la de um tempo-espaço concreto e deseu caráter histórico. Em segundo, nota-se que, indepen-dentemente de classe social – e das condições histórico-sociais daí advindas – a mulher é construída como alteri-dade total. Nos discursos jornalísticos que descrevem aviolência contra mulheres temos também a naturalizaçãoda alteridade. Já que a diferença é naturalizada e se atribuium valor menor ao universo feminino, as mulheres podemser sujeitos de agressão preferencial.

A construção textual ocorre sempre, podemos afirmaragora, de uma perspectiva e de um lugar – denunciadospela composição cronotópica –: os do homem branco,pertencente às elites, que direciona seu olhar masculinosobre o outro, perfazendo uma pedagogia da dominaçãomasculina e da assepsia que se quer civilizatória. O discursojornalístico nas páginas policiais constrói uma distânciaentre o narrador e a violência. Essa distância é elaboradade maneira diferenciada. Ao tratar das classes populares, onarrador admite uma distância absoluta em relação aospersonagens da ação violenta, pois eles já são os “outros”,advindos de um tempo-espaço abstrato, de um mundoestrangeiro, seres imutáveis cuja incômoda existência sedeve ao ato violento, não existindo nenhuma familiaridadeentre o narrador-personagem. Mas, ao tratar das classesaltas, o narrador observa momentos de familiaridade comos personagens, apresentado imagens de vida que indicamcondutas e procedimentos “normais”, e a metamorfoseassinala quando e como os personagens se afastam donarrador e da sociedade, para se configurar em “outros”.

Os textos de jornal buscam, portanto, naturalizar aviolência no “outro”, construindo, no discurso, a alteridade.O narrador fabrica a alteridade, colocando a violência comoanômala, buscando situá-la nas margens, para retirá-la desi mesmo. Talvez esse modo de criar a alteridade, de construí-la, objetive a afastar as motivações consideradas social-mente inadequadas, e a distanciar os atos moralmentecensuráveis que, não obstante, continuam constituindo oimaginário e a sensibilidade daquele que relata a violêncianos jornais. Os discursos jornalísticos concebem os persona-gens envolvidos como alteridades totais, sujeitos situados àmargem, dividindo assim a sociedade em duas partes: umaregião interna e central, composta por pessoas consideradaspuras; e uma margem formada por pessoas impuras,perigosas, violentas.32

Se o texto jornalístico, pelo menos no que se refere àspáginas policiais, busca alocar e naturalizar a violência no“outro”, e se o “truque” da violência e do terror, na análisede Michael Taussig,33 por exemplo, é o de produzir imagensque alocam a violência, a desordem, o perigo no outro, o

32 Mireya SUÁREZ, 1995.

33 TAUSSIG, 1993.

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jornal seria, de certa forma, um amplificador da violência.As matérias de jornais que noticiam a violência – mesmoquando existe um tom de denúncia ou condenação –, emsua própria forma, na sua maneira de estruturar o texto (ouseja, nos pilares dessa tecnologia de gênero), envereda-sena própria violência descrita. Não se trata somente de relatossobre violência, pois, ao fragmentar os personagens, retirarsua historicidade, construir imagens que refletem mulherescomo “sujeitos não constituintes”, aderem violência aos fatosviolentos que descrevem, tornando-se textos violentos. Disseanteriormente que a violência é “uma forma de tratar o‘outro’”; posso ampliar minha argumentação afirmando queé também uma forma de retratar o “outro”, de construí-lotextualmente.34

A construção do “outro”, nesse caso, é uma forma debuscar sua própria liquidação. Quando disse que aspáginas policiais criam a “alteridade”, estava me referindoa uma visão artificial de alteridade, pois o texto homogeneízao “outro”. De um lado, as páginas policiais apresentamcronotopos variados em situações diversas, conforme sugeriacima; mas, por outro lado, toda distinção cronotópica épara afirmar que a violência está no “outro”. Aquele queescreve não se identifica com os personagens e, indepen-dentemente de sua situação, o personagem é sempre o“outro”, retirando assim seu caráter irredutível. O que temos éo desmoronamento da experiência de alteridade. SegundoSoares,35 a tendência de “homogeneizar as observaçõesrelativas a fenômenos associados à violência” seria acaracterística definidora da “cultura do medo”. A tendênciados textos das páginas policiais de homogeneizar ospersonagens e situações de violência também poderia servinculada à busca de se construir uma “cultura do medo”.

Jean Baudrilhard36 nos conta qual seria o crimeperfeito. Segundo ele, estamos vivendo um tempo em que afunção primeira do signo é fazer desaparecer a realidadee, simultaneamente, dissimular essa desaparição. Um outrocrime perfeito seria o de ocultar a violência dos textos nostextos sobre violência.

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34 BAUDRILLARD, 1996, p. 156.

36 BAUDRILHARD, 1996.

35 SOARES e CARNEIRO, 1997, p.17.

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[Recebido em abril de 2007e aceito para publicação em junho de 2008]

Violence and TViolence and TViolence and TViolence and TViolence and Technologies of Gender: Time and Space in the Newspaperechnologies of Gender: Time and Space in the Newspaperechnologies of Gender: Time and Space in the Newspaperechnologies of Gender: Time and Space in the Newspaperechnologies of Gender: Time and Space in the NewspaperAbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: The present discussion aims at understanding a technology of gender that constructs“men” and “women”, the masculine and the feminine, on the newspaper articles, underscoring, inthe journalistic discourse on violence, the violence embedded in the discourses – the violence ofthe technology itself.Key WordsKey WordsKey WordsKey WordsKey Words: Violence; Gender; Newspaper; Space; Time.