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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO RAFAEL BERTOLDI PESCADOR AÇÃO RESCISÓRIA POR MANIFESTA VIOLAÇÃO À NORMA JURÍDICA FUNDADA EM JURISPRUDÊNCIA DIVERGENTE À DECISÃO RESCINDENDA: HIPÓTESES DE (DES)CABIMENTO E ANÁLISE DE CRITÉRIOS Florianópolis 2015

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

    CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

    CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

    RAFAEL BERTOLDI PESCADOR

    AÇÃO RESCISÓRIA POR MANIFESTA VIOLAÇÃO À NORMA JURÍDICA

    FUNDADA EM JURISPRUDÊNCIA DIVERGENTE À DECISÃO RESCINDENDA:

    HIPÓTESES DE (DES)CABIMENTO E ANÁLISE DE CRITÉRIOS

    Florianópolis

    2015

  • RAFAEL BERTOLDI PESCADOR

    AÇÃO RESCISÓRIA POR MANIFESTA VIOLAÇÃO À NORMA JURÍDICA

    FUNDADA EM JURISPRUDÊNCIA DIVERGENTE À DECISÃO RESCINDENDA:

    HIPÓTESES DE (DES)CABIMENTO E ANÁLISE DE CRITÉRIOS

    Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao

    Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal

    de Santa Catarina como requisito parcial à obtenção

    do título de Bacharel em Direito.

    Orientador Prof. Me. Marcus Vinícius Motter Borges.

    Coorientadora Bela. Luiza Silva Rodrigues.

    Florianópolis

    2015

  • À minha mãe e ao meu pai, a quem tudo;

    Ao meu irmão, por quem tudo.

  • RESUMO

    O escopo do presente trabalho é analisar hipóteses e critérios de cabimento de ação rescisória

    por manifesta violação à norma jurídica em virtude de jurisprudência divergente à decisão

    rescindenda. A fim de atingir seu objetivo, utiliza-se o método de procedimento monográfico.

    O método de abordagem adotado é o dedutivo e a técnica de documentação é a indireta,

    realizada por pesquisa bibliográfica. O trabalho divide-se em três etapas: (a) exposição das

    causas da desuniformidade jurisprudencial; (b) exposição de uma visão geral da coisa julgada

    e da ação rescisória, pressupostos ao estudo que se pretende; e (c) análise de hipóteses de

    rescisão por manifesta violação à norma jurídica e, a partir desta, enumeração de critérios para

    a rescisão. Sobre o primeiro ponto, verifica-se que texto e norma não coincidem por diversas

    razões: o vernáculo, per se, permite interpretações diversas em razão da plurivocidade das

    palavras; (b) a carga emocional e as máximas de experiência do intérprete influenciam a sua

    leitura; (c) o ordenamento se vale, amplamente, de cláusulas abertas; (d) o constitucionalismo

    amplifica o subjetivismo judicial; e (e) o amadorismo legislativo produz inúmeras normas

    atécnicas (federais, estaduais e municipais) que, desde seus nascedouros, são ambíguas,

    contraditórias e/ou lacunosas. Sobre o segundo ponto, as disposições legais demonstram que

    há formação da coisa julgada independentemente da existência de máculas na decisão de

    mérito, sendo plenamente exigível o título judicial formado. Contudo, verificando-se hipótese

    de rescisão prevista na codificação processual, poder-se-á rescindir a decisão de mérito

    transitada em julgado por meio de ação rescisória. Sobre o terceiro ponto, constata-se que a

    disposição de rescisão do CPC/1973 (inciso V do artigo 485) de literal violação à disposição

    de lei é amplamente entendida como flagrante violação à norma jurídica. Portanto, o

    CPC/2015 (inciso V do artigo 966), ao dispor acerca da rescisão por manifesta violação à

    norma jurídica não inova substancialmente o conteúdo normativo, mas preza por um

    aprimoramento técnico de tal dispositivo. Após a análise de cinco hipóteses, extraem-se três

    critérios que influem no (des)cabimento da ação rescisória por manifesta violação à norma

    jurídica em virtude de jurisprudência divergente à decisão rescindenda: (a) a pacificação ou

    controvérsia da jurisprudência; (b) o momento de pacificação da jurisprudência; e (c) os

    efeitos da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Conjugando-se estes critérios,

    pode-se dizer que será cabível ação rescisória quando a decisão rescindenda estiver em

    desacordo com: (a) decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da validade da norma, com

    efeitos ex tunc e erga omnes, independentemente de se anterior ou posterior àquela; (b)

    jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal sobre

    determinada norma jurídica, quando a consolidação do entendimento for prévia àquela.

    Palavras-chave: Ação rescisória. Manifesta violação à norma jurídica. Divergência

    jurisprudencial. Código de processo civil.

  • RIASSUNTO

    Lo scopo di questa ricerca è analizzare ipotesi e criteri di ammisibilità di ricorso per

    cassazione per violazione o falsa applicazione di norme di diritto contro una decisione che

    non ha osservato precedente giudiziario o giurisprudenza costituzionale. Si utilizza il metodo

    monografico come procedimento. Il metodo di approccio è il deduttivo e la documentazione

    tecnica è l’indiretta, fatta attraverso la ricerca bibliografica. La ricercha è divisa in tre parti:

    (a) il motivo della divergenza giurisprudenziale; (b) lo studio della passata in giudicato e del

    ricorso per cassazione; e (c) l'analisi di ipotesi di cassazione per violazione o falsa

    applicazione di norme di diritto e, da questa, l'enumerazione dei criteri per cassazione. Sul

    primo punto, si trova che il testo non coincide con la norma perché: (a) il vernacolo, per se,

    permette interpretazione diverse tra i giudici a causa della plurivocità delle parole; (b)

    l'emozione e gli esperienze del lettore danneggiano la lettura neutrale; (c) ci sono tante parole

    imprecise nell'ordinamento giuridico; (d) il costituzionalismo amplifica il soggettivismo

    giudiziale; ed (e) il legislatore non ha tecnica per produrre leggi, cosa che genera

    innumerevole norme ambigue, contraddittorie ed/od incomplete. Sul secondo punto,

    disposizioni di legge dimostrano che c'è passata in giudicato anche se esistenti vizi nella

    decisione. Ancora, se c'è un'ipotesi di cassazione d'accordo con il codice di procedura civile,

    si può cassare la sentenza attraverso lo strumento procedurale proprio: il ricorso per

    cassazione. Sul terzo punto, si trova che la disposizione di cassazione del CPC/1973 (V, art.

    485), di letterale violazione della disposizione di legge, è capita come chiara violazione di

    norme di diritto. Così, il CPC/2015 (V, art. 966) non porta innovazione con la previsione di

    manifesta violazione di norme di diritto, ma porta un miglioramento tecnico del suo testo.

    Dopo l'analisi di cinque ipotesi, si può avere tre criteri per la ammissibilità del ricorso di

    cassazione: (a) la pacificazione o controversia della giurisprudenza; (b) il momento di

    pacificazione della giurisprudenza; e (c) gli effetti della decisione della Corte Costituzionale.

    Combinando gli tre criteri, si trova che sarà ammissibile il ricorso per cassazione quando la

    decisione è in contrasto con: (a) decisione della Corte Costituzionale sulla valità della norma,

    con effetti ex tunc ed erga omnes; o (b) giurisprudenza della Corte Suprema di Cassazione o

    della Corte Costituzionale, se questa è prima di tale.

    Parole chiavi: Ricorso per cassazione. Violazione o falsa applicazione di norme di diritto.

    Divergenza giurisprudenziale. Codice di procedura civile.

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 9

    1 ASPECTOS CLÁSSICOS DO CIVIL LAW E SUA RELAÇÃO COM A INSEGURANÇA

    JURÍDICA DA OSCILAÇÃO JURISPRUDENCIAL .................................................................... 11

    1.1 O processo civil como meio de se obter a pacificação social da lide ...................................... 11

    1.2 Breve comparação entre a segurança jurídica no civil law e common law ............................ 14

    1.3 A convivência do civil law com outros institutos no ordenamento brasileiro ....................... 21

    1.4 Desuniformidade jurisprudencial como patologia ao acesso à justiça .................................. 26

    2 COISA JULGADA E AÇÃO RESCISÓRIA: DELIMITAÇÃO LEGAL DO INSTITUTO E

    DO INSTRUMENTO PROCESSUAL .............................................................................................. 33

    2.1 Coisa julgada: visão geral e delimitação legal ......................................................................... 33

    2.1.1 Distinção entre coisa julgada material e coisa julgada formal ................................................ 33

    2.1.2 Breve análise da essência, pressupostos e limites da coisa julgada ......................................... 35

    2.1.3 Coisa julgada e tempo: formação, limite temporal e coisa soberanamente julgada ................ 41

    2.1.4 Coisa julgada e sua incidência nas relações jurídicas de trato continuado: ação revisional

    como meio de adequar a relação jurídica ao novo entendimento pacificado pelo Superior Tribunal de

    Justiça ou Supremo Tribunal Federal ................................................................................................... 44

    2.1.5 Apontamentos sobre a desconstituição da coisa julgada e a sua relativização ....................... 47

    2.2 Ação rescisória: visão geral e delimitação legal ....................................................................... 50

    2.2.1 Essência da ação rescisória ...................................................................................................... 50

    2.2.2 Pressupostos da ação rescisória ............................................................................................... 53

    2.2.3 Visão geral sobre as hipóteses de cabimento da ação rescisória ............................................. 55

    2.2.4 Análise da natureza jurídica dos juízos rescindente e rescisório ............................................. 59

    2.2.5 Prazo de decadência da ação rescisória e o início de sua contagem ....................................... 61

    3 AÇÃO RESCISÓRIA POR MANIFESTA VIOLAÇÃO À NORMA JURÍDICA FUNDADA

    EM JURISPRUDÊNCIA DIVERGENTE À DECISÃO RESCINDENDA: HIPÓTESES DE

    (DES)CABIMENTO E ANÁLISE DE CRITÉRIOS ....................................................................... 64

    3.1 Ação rescisória por manifesta violação à norma jurídica: extensão dos significados ......... 65

  • 3.2 Hipóteses de ação rescisória por manifesta violação da norma jurídica: o cabimento em

    virtude de jurisprudência divergente à decisão rescindenda .......................................................... 71

    3.2.1 Decisão divergente à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal

    Federal à época pacificada ................................................................................................................... 72

    3.2.2 Decisão fundada em norma posteriormente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal

    Federal em controle concentrado de constitucionalidade .................................................................... 75

    3.2.3 Decisão fundada na inconstitucionalidade de norma posteriormente declarada constitucional

    pelo Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade .............................. 78

    3.3 Hipóteses de ação rescisória por manifesta violação da norma jurídica: o não cabimento

    em virtude de jurisprudência divergente à decisão rescindenda .................................................... 79

    3.3.1 Decisão sobre norma jurídica controvertida, cujo entendimento é pacificado, posteriormente

    ao seu trânsito em julgado, no Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal em sentido

    contrário ................................................................................................................................................ 80

    3.3.2 Decisão transitada em julgado conforme entendimento pacificado do Superior Tribunal de

    Justiça ou do Supremo Tribunal Federal posteriormente superado ..................................................... 84

    3.4 Critérios determinantes para o (não) cabimento de ação rescisória por manifesta violação da

    norma jurídica em virtude de jurisprudência divergente à decisão rescindenda e a questão do

    prazo decadencial ................................................................................................................................ 87

    CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................. 91

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................................. 95

  • 9

    INTRODUÇÃO

    Há muito se aponta a constante oscilação da jurisprudência como fator

    determinante à insegurança que aflige o sistema jurídico brasileiro. Mais do que a produção

    legislativa amadora, o Poder Judiciário tem contribuído para a incerteza sobre a existência dos

    direitos e deveres de seus jurisdicionados, a ponto de se comparar a atividade jurisdicional a

    uma loteria, tal como se a procedência ou improcedência de uma demanda dependesse tão

    somente da álea das partes de ter o seu processo julgado por um órgão determinado.

    Ao se constatar posicionamentos interpretativos diversos a depender do órgão

    julgador ao qual será submetido o processo, demonstra-se a apartação entre a segurança

    jurídica e o texto normativo, de modo a pôr em dúvida o próprio sistema jurídico no qual se

    embasa o direito pátrio. Afinal, se todos são iguais perante a lei, não deveria a lei ser igual

    perante todos?

    Neste contexto, da constatação de divergência jurisprudencial sobre uma norma

    nasce a legítima pretensão dos jurisdicionados, sucumbentes em determinada demanda, de

    serem tratados de forma idêntica àqueles que, em situações fáticas símiles, defenderam a

    mesma tese jurídica e saíram vencedores. A questão que se põe diante disto é: existiria meio

    processual que assistiria esta pretensão de igualação entre duas situações faticamente

    idênticas, mas juridicamente tratadas de formas opostas?

    E é deste questionamento que surge o mote a ser estudado. Há de se perquirir,

    nesta linha, se dentre as hipóteses de admissibilidade da ação rescisória, nos termos da

    codificação processual civil, haveria a possibilidade legal de rescisão de decisões transitadas

    em julgado, cuja fundamentação afronte entendimento jurisprudencial consolidado. Em outras

    palavras, buscar-se-á investigar se o desrespeito da decisão rescindenda à jurisprudência

    consolidada configura a hipótese de manifesta violação à norma jurídica disposta na nova

    codificação processual, com correspondente na codificação vigente.

    Com o propósito de se percorrer caminho lógico, dividir-se-á o trabalho em três

    capítulos, que resumidos cada qual em uma palavra, poderiam assim ser mencionados: (1)

    problema; (2) pressupostos; e (3) análise.

    O primeiro capítulo será de vital importância ao trabalho, pois será através dele

    que restarão visíveis as razões da desuniformidade jurisprudencial, causa primordial da

    questionada segurança que dispõe o sistema jurídico brasileiro. Portanto, em síntese, objetiva-

  • 10

    se a demonstração da problemática do presente estudo. Para tanto, haverá de se regressar a

    momentos pretéritos, em um ensaio histórico acerca do civil law e sua convivência com outros

    institutos no ordenamento jurídico pátrio. Ao fim deste capítulo, alguns apontamentos críticos

    serão úteis com o intuito de delimitar os problemas advindos do Poder Judiciário.

    Dedicar-se-á o segundo capítulo ao exame das premissas necessárias à discussão

    que se travará no terceiro capítulo. Primeiramente, far-se-á imprescindível o estudo do

    instituto da coisa julgada, conceituando-a, delimitando-a e apontando o seu consequente nas

    relações jurídicas de trato continuado, ponto este fundamental à temática proposta. Após,

    tratar-se-á do único instrumento processual típico à desconstituição de decisões de mérito no

    ordenamento brasileiro, denominado de ação rescisória. A esta altura, será indispensável dar

    uma visão geral do referido meio de impugnação no Código de Processo Civil, comparando-

    se, sutilmente, a codificação de 1973 com a de 2015.

    Por último, será o terceiro capítulo o ponto fulcral da discussão. Em um primeiro

    momento, abordar-se-á a abrangência da hipótese de rescindibilidade prevista no Código de

    Processo Civil de 1973, como literal violação à disposição de lei, e sua relação com a nova

    redação trazida pelo Código de Processo Civil de 2015, redigida como manifesta violação à

    norma jurídica. Em um segundo momento, expor-se-ão hipóteses de cabimento – bem como

    de não cabimento – de rescisão de julgados com base na jurisprudência dos órgãos

    responsáveis pela sua uniformização – ao presente trabalho, interessam o Superior Tribunal de

    Justiça, para matéria infraconstitucional, e o Supremo Tribunal Federal, para matéria

    constitucional. A partir disto, desenvolver-se-ão critérios hábeis a identificar quando será ou

    não cabível a ação rescisória por manifesta violação à norma jurídica fundada em

    jurisprudência divergente à decisão rescindenda.

    A fim de que sejam obtidas as pretensões expostas, utilizar-se-á como método de

    procedimento o monográfico. O método de abordagem da pesquisa será o dedutivo, enquanto

    a temática será construída sob a técnica de documentação indireta, realizada por meio de

    pesquisa bibliográfica.

    Com a elaboração do presente trabalho, espera-se contribuir à delimitação da

    previsão legal de ação rescisória por manifesta violação à norma jurídica, de modo a elencar

    critérios que demonstrem o cabimento deste instrumento processual quando houver

    jurisprudência divergente à decisão rescindenda.

  • 11

    1 ASPECTOS CLÁSSICOS DO CIVIL LAW E SUA RELAÇÃO COM A

    INSEGURANÇA JURÍDICA DA OSCILAÇÃO JURISPRUDENCIAL

    Árido remanesceria um estudo acerca da ação rescisória por divergência

    jurisprudencial se desconectado da causa que lhe justificaria a existência, a saber, a

    desuniformidade da jurisprudência. Antes, portanto, de se adentrar ao estudo do diploma

    processual em si, necessário que se tenha em mente os motivos que levam o sistema legal

    brasileiro à tão criticada instabilidade da jurisprudência. Para tanto, deve-se analisar uma

    perspectiva histórica do civil law, tido como sistema jurídico pátrio, comparando-o a outro

    sistema de relevância mundial, o common law, do qual se retiraram alguns institutos.

    1.1 O processo civil como meio de se obter a pacificação social da lide

    O atual estágio da ciência processual, tendente à instrumentalidade do processo,

    desenvolveu-se, em especial, sob as fundações criadas pela doutrina de Oskar Von Büllow, no

    século XIX, quando o autor logrou êxito em demonstrar a autonomia da relação jurídica

    processual1 frente à relação jurídica material que a justifica. Büllow, apesar de não ter sido

    pioneiro na ideia, foi o responsável pelo progresso na demonstração da autonomia processual

    ao apontar aspectos fundamentais2 que diferenciariam a relação jurídica processual da relação

    substancial litigiosa.

    No século seguinte, a partir desta concepção, ergueu-se no Brasil a Escola

    Instrumentalista do Processo, encabeçada pelo italiano Enrico Tullio Liebman, que trouxe à

    ciência processual brasileira a noção moderna de que o processo, autônomo à relação jurídica

    litigiosa, serve como instrumento estatal para a resolução do conflito existente entre os

    litigantes.

    Hodiernamente, portanto, o processo é designado como o instrumento do qual se

    utiliza o Estado a fim de prestar a atividade jurisdicional, que existe em razão da função maior

    1 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 36. 2 (a) os sujeitos, eis presente o juiz; (b) o objeto, pois o que se busca imediatamente é a atuação estatal na lide; e

    (c) os pressupostos processuais, necessários à formação regular do processo e estranhos à relação material. (cf.

    LAMY, Eduardo de Avelar. Curso de processo civil: teoria geral do processo.v. 1. São Paulo: Conceito

    Editorial, 2011. p. 63)

  • 12

    de um Estado de Direito: a pacificação social. No caso do processo, tem-se como escopo não

    apenas a pacificação social, mas a pacificação social com justiça3. Isto é, através da aplicação

    da lei dá-se a quem por direito possui razão, extinguindo o conflito de interesses de acordo

    com o que se entende correto diante do ordenamento jurídico. Desta forma, o processo é o

    método pelo qual se persegue a pacificação social das lides.

    Por meio do processo, então, obtém-se a concretização da norma jurídica, abstrata

    e genérica por excelência, e permite-se a continuidade da convivência humana, regulada

    conforme os ditames do ordenamento vigente. Afinal, de nada valeriam os escritos da lei se

    não se fosse possível dar-lhe cumprimento por algum instrumento apto a adaptar a conduta

    violadora com o dever legal desrespeitado4.

    Sendo instrumento a uma atividade estatal essencial, o processo não serve a si

    próprio, não existe para si. O processo é servil a fins que transpassam a ciência processual e

    adentram ao direito material; este que é o real motivo que leva o Estado de Direito a assumi-lo

    como forma de resolução dos conflitos. Cientificamente, é autônomo ao direito material, mas

    não se justifica sem este.

    Sob esta óptica, a utilidade do processo é a predeterminação de regras a fim de

    viabilizar o devido processo legal e a paridade de armas entre as partes, sem surpresas e

    arbitrariedades que prejudiquem a análise meritória jurisdicional. Esta, aliás, a qual deve estar

    envolta da imparcialidade típica de um sistema processual triangular5, composto pelas partes

    e, sobretudo, por um terceiro – representante estatal –, alheio à lide e despido de pré-juizos,

    pois responsável por resolvê-la.

    Não pode, nesta senda, a definição de processo ser reduzida aos autos físicos ou

    digitais que lhe dão o número no órgão julgador correspondente ou, ainda, à individualização

    da ação promovida por certa parte. A noção de processo deve abarcar a principiologia que lhe

    3 Esta entra na categoria dos escopos sociais, segundo Cândido Rangel Dinamarco. “Sob esse aspecto, a função

    jurisdicional e a legislação estão ligadas pela unidade do escopo fundamental de ambas: a paz social. Mesmo

    quem postule a distinção funcional muito nítida e marcada entre os dois planos do ordenamento jurídico (teoria

    dualista) há de aceitar que direito e processo compõem um só sistema voltado à pacificação de conflitos.”

    (DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade.... p. 160) 4 Conforme lição de Maria Helena Diniz, “Os homens elaboram normas incitados por uma necessidade social

    surgida em certo tempo, por um problema de convivência ou de cooperação que precisa ser solucionado. Têm

    por fim a realização e a garantia da paz e da ordem social” (DINIZ, Maria Helena. Conceito de norma jurídica

    como problema de essência. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 24). Se assim o é, de nada valeria a pretensão

    humana de criar normas sem o correspondente meio apto a sua concretização. Este meio de resolução da lide

    heterocompositivo, em essência, é o processo. 5 Adota-se, no presente trabalho, a teoria triangular de Adolf Wach por confiar-se que há direitos e deveres

    processuais entre as partes, sem que o vínculo destas seja exclusivamente com o representante estatal.

  • 13

    é inerente e que justifica a sua autonomia científica diante dos demais ramos do Direito. Neste

    sentido, leciona Eduardo de Avelar Lamy que,

    Como instrumento estatal de resolução de conflitos, o processo possui

    compromissos éticos fundamentais, decorrentes da função social que se atribui ao

    estado contemporâneo. Deve ser instrumento de garantia e realização concreta dos

    princípios básicos que orientam o ordenamento jurídico. Só assim constituirá

    instrumento efetivo para que a jurisdição possa atingir seu escopo de pacificar com

    justiça.

    O aspecto técnico do direito processual deve, portanto, subordinar-se à sua

    finalidade maior, que se confunde com os escopos da jurisdição e do próprio Estado

    em que está integrado. Necessita ser, acima de tudo, um instrumento de realização

    da justiça.6

    Sendo o processo útil à concretização do direito material, não pode se furtar de

    cumprir os deveres impostos pela Constituição - dentre os quais, o princípio da isonomia

    material. Nesta toada, por sua função instrumental, o processo não pode – ou, ao menos, não

    deveria – determinar a decisão da lide substancial que é instaurada diante do Poder Judiciário,

    servindo como mero meio de resolução dos conflitos através de seus princípios e

    procedimentos previstos na legislação.

    Assim, como meio de subsunção da hipótese legal ao caso concreto, o processo

    deve, em seu bojo, primar pela aplicação da lei de maneira igual aos jurisdicionados, sem

    distinções na atividade subsuntiva quando inexistentes também diferenças fáticas

    juridicamente relevantes. Ao tratar sobre o assunto, José Afonso da Silva esclarece o

    direcionamento específico do mandamento constitucional de igualdade perante a lei ao

    legislador, mas não nega a necessidade de seu respeito pelo executor da lei (leia-se,

    magistrado). Diz o autor que:

    O executor da lei já está, necessariamente, obrigado a aplicá-la de acordo com os

    critérios constantes da própria lei. Se esta, para valer, está adstrita a se conformar ao

    princípio de igualdade, o critério da igualdade resultará obrigatório para o executor

    da lei pelo simples fato de que a lei o obriga a executá-la com fidelidade ou respeito

    aos critérios por ela mesma estabelecidos.7

    Assim, o texto normativo, per se, exige não apenas que o processo acolha a

    igualdade no interior de uma causa específica – o que caracteriza a paridade de armas –, mas,

    especificamente, que o processo sirva como instrumento da uniformização de interpretação

    dos enunciados previstos pelo legislador. Quer-se dizer, com isto, que seja aplicada a

    igualdade jurídica entre as causas de pedir remotas semelhantes – o que caracteriza a

    6 LAMY, Eduardo de Avelar; RODRIGUES, Horácio Wanderlei. op. cit. p. 40. 7 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 216.

  • 14

    igualdade substancial perante a lei de pessoas que possuam uma relação jurídica material

    assemelhada.

    A partir da função precípua do processo, cabe indagar se o modelo atual de

    sistema legislativo-jurídico tem ou não alcançado o seu objetivo de trazer segurança às

    relações jurídicas abrangidas na competência jurisdicional pátria e, consequentemente,

    atingido o escopo processual de paz e justiça sociais, respeitando, desta forma, a igualdade

    substancial entre as causas faticamente similares em trâmite nas varas judiciais do Brasil. Para

    isto, faz-se necessária uma breve análise comparativa entre os sistemas jurídicos do civil law,

    tido como o pátrio, e do common law, em razão do intercâmbio de institutos dentre eles

    ocorrido que promove a convergência em seus modelos teóricos.

    1.2 Breve comparação entre a segurança jurídica no civil law e common law

    Sem a intenção de um estudo aprofundado das formas de civil law e common law

    existentes pelo mundo, faz-se importante destacar o elemento definidor de cada um destes

    sistemas.

    Em linhas gerais, o direito romano-germânico – ou civil law – funda sua estrutura

    jurídica sob um corpo normativo pré-estabelecido à análise do caso concreto: “antigamente, o

    Corpus Juris Civilis de Justiniano; depois, os códigos; hoje, as constituições e todo o conjunto

    de leis infraconstitucionais”8. Isto é, pressupõe-se uma atividade legislativa anterior à

    aplicação do Direito pelo magistrado, com a principal fonte proveniente dos enunciados

    contidos na lei – daí o seu caráter legicêntrico.

    De modo diverso, o direito anglo-saxão – ou common law – ergue-se sobre outra

    pedra angular, a doctrine of stare decisis9, de origem no termo latim stare decisis et non

    quieta movere, que significa “ficar como foi decidido e não mexer no que está quieto”10. Esta

    doutrina exige a criação de precedentes11 pelos juízes e o seu respeito, sendo estes os

    8 RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do

    Advogado Editora, 2010.p. 65. 9 PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre o common law, civil law e o precedente judicial. Disponível em:

    . Acesso em: 25 abr. 2015. p.8. 10 RAMIRES, Maurício. Crítica... p. 65. 11 Entende-se como precedente “a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo elemento normativo

    [leia-se, ratio decidendi] pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos.” (DIDIER JR.,

    Fredie; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da

  • 15

    enunciados a serem seguidos nas decisões seguintes. Em síntese, vê-se a jurisprudência como

    principal fonte deste sistema legal.

    A partir desta noção preliminar, fundamental advertir que a mera observação e

    descrição dos sistemas jurídicos em seu estágio atual em países tradicional e historicamente

    enquadrados em um ou outro sistema legal são insuficientes a uma abordagem completa sobre

    o tema, pois os sistemas nos presentes moldes encontram-se impuros, tendo-se mesclado suas

    características em maior ou menor grau a depender do país sob análise.

    Assim, para traçar de maneira inequívoca as linhas mestres de cada um destes dois

    sistemas jurídicos, é imprescindível uma regressão histórica que permita entender os motivos

    que levaram cada sistema legal a atribuir diferentes papéis aos magistrados, peças

    fundamentais na aplicação do direito ao caso concreto. Ambos os sistemas, em que pesem as

    suas origens em tempos remotos, sofreram grande influência de duas revoluções que, por suas

    motivações diferentes, ocasionaram consequências diversas no modo de se ver a tripartição de

    poderes. São elas a Revolução Gloriosa e a Revolução Francesa.

    Destarte, a Inglaterra, berço do direito anglo-saxônico, encontrava-se sob grande

    instabilidade política em meados do século XVII, após a morte de Oliver Cromwell,

    governante inglês à época e símbolo do puritanismo libertário elitista. Renascia-se, com este

    evento, o temor burguês ao retorno à ordem feudal que fora abolida pela Revolução Puritana.

    Caso nada fosse feito, acreditava-se que a Inglaterra voltaria à doutrina católica – tida como

    um retrocesso ao capitalismo puritano inglês – e ao absolutismo monárquico (este que vinha

    sendo combatido, sem muito êxito, ante o crescente desrespeito do novo monarca, Jaime II, às

    ordens do parlamento)12.

    Como medida para afastar estes perigos, os dois partidos do parlamento, os tories

    – representantes dos latifundiários anglicanos – e os whigs – representantes da burguesia

    comercial e financeira – uniram-se e ofereceram o trono inglês ao príncipe holandês

    Guilherme de Orange, sob a condição de que se submetesse à autoridade do parlamento.

    Deflagrou-se, então, a Revolução Gloriosa, também conhecida como Revolução Sem Sangue,

    prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da

    tutela. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2015. p. 441) 12 OLIVIERI, Antônio Carlos. Revolução Inglesa: Cromwell, Revolução Puritana e Revolução Gloriosa.

    Disponível em: . Acesso em: 14 mai. 2015.

  • 16

    ante a desnecessidade de derramamento de sangue para que Guilherme de Orange assumisse o

    trono inglês13.

    Sem participação das camadas populares, a Revolução Gloriosa obteve êxito em

    afastar o absolutismo monárquico e direcionar o poder político ao parlamento, permitindo a

    edição do Bill of Rights em 1689, documento que garantia, dentre outras previsões, as

    liberdades individuais, a impossibilidade de um católico suceder no trono, a tripartição de

    poderes e a aprovação prévia do parlamento quando da criação de novos impostos14.

    Em síntese, a Revolução Gloriosa é marcante pela transição de uma fase de

    instabilidade política, na qual o monarca desrespeitava as edições parlamentares, para uma

    fase de submissão do governante à autoridade do parlamento, de modo a dar o controle

    diretivo do país às classes elitistas que promoveram, no século seguinte, a Revolução

    Industrial.

    Noutro lado, a França pré-revolucionária, no século XVIII, apresentava uma

    estrutura social feudal, deveras segregada e marcada pela concessão de privilégios ao primeiro

    e segundo estados – clero e nobreza, respectivamente – e a opressão do terceiro estado,

    composto pelo restante da população, sobretudo burgueses e camponeses15.

    Os privilégios concedidos às elites pelo ancien régime era o que dava o apoio

    político e econômico ao absolutismo do Rei Luís XVI. A situação era espúria16: o não

    pagamento de impostos e o recebimento de pensões do Estado intensificavam a desigualdade

    financeira entre as classes e a exclusividade no exercício de cargos públicos – dentre estes, a

    magistratura – corroborava com a instituição de um Estado em que a ordem era emitida

    unicamente pela palavra do soberano. É sobre esta conjuntura que leciona Luiz Guilherme

    Marinoni:

    Antes da Revolução Francesa, os membros do judiciário francês constituíam classe

    aristocrática não apenas sem qualquer compromisso com os valores da igualdade, da

    fraternidade e da liberdade - mantinham laços visíveis e espúrios com outras classes

    privilegiadas, especialmente com a aristocracia feudal, em cujo nome atuavam sob

    as togas. Nesta época, os cargos judiciais eram comprados e herdados, o que fazia

    13 Idem. 14 Idem. 15 Cf. (1) OLIVIERI, Antönio Carlos. Revolução Francesa: do Estado absolutista à queda da Bastilha.

    Disponível em: < http://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia/revolucao-francesa-1-do-estado-absolutista-a-

    queda-da-bastilha.htm>. Acesso em 14 mai. 2015; (2) BIGELI, Alexandre. Revolução Francesa: a queda da

    Bastilha e o fim do regime absolutista. Disponível em:

    . Acesso em 14. mai. 2015. 16 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 50.

  • 17

    supor que o cargo de magistrado deveria ser usufruído como uma propriedade

    particular, capaz de render frutos pessoais.17

    A situação social agravou-se com o exponencial crescimento da fome e

    desemprego no terceiro estado, cujo reflexo imediato foi o medo das elites frente ao caos

    criado pela apatia do monarca. A eclosão de uma revolução sangrenta e subversiva era

    questão de tempo frente ao descaso no qual se encontrava a população francesa. Logo,

    ergueu-se o lema da liberdade, igualdade e fraternidade, pelo qual se pretendia a extinção da

    sociedade estamental, na qual o nascimento é único fator determinante para a aferição da

    classe social em que a pessoa permanecerá em sua vida18.

    A Revolução Francesa ocasionou uma instabilidade política que perpassou uma

    década, subvertendo a ordem social pré-estabelecida, desconstruindo toda a estrutura estatal e

    reconstruindo-a aos moldes do ideário iluminista. Por mais que seus objetivos nunca tenham

    sido alcançados por completo, o abalo que os revolucionários proporcionaram às fundações

    do absolutismo francês influenciou o civil law de maneira sem precedentes.

    Deste breve relato histórico, extraem-se configurações revolucionárias diversas.

    Na Inglaterra, os burgueses participavam das decisões do parlamento, ou seja, já integravam

    um dos poderes do Estado. A lide surgia no conflito entre o monarca, com tendência

    absolutista, e o parlamento, que via suas medidas serem reiteradamente desrespeitadas, sob o

    temor de um regresso ao estado anterior. Na França, por outro lado, a burguesia via-se

    sustentando uma estrutura de poder feudal, oprimida pela instituição de mais impostos para

    manter o privilégio das classes elitistas, sem qualquer perspectiva de mudança.

    Grosso modo, enquanto no primeiro caso a solução recaía na submissão do

    monarca às leis, sem um objetivo imediato de mudança social, no segundo não havia outra

    saída senão uma completa reestruturação do poder, viável apenas por meio de uma revolução,

    eis que todo o Estado – inclusive o Poder Judiciário – estava corroído e infestado pelo

    primeiro e segundo estados, servis à vontade do soberano.

    Isto é, a Revolução Gloriosa não quis extinguir o direito preexistente para a

    criação de um novo ordenamento, tal qual pretendeu a Revolução Francesa, mas, sim,

    17 Ibidem. p. 50-56. 18 Cf. (1) OLIVIERI, Antönio Carlos. Revolução Francesa: do Estado absolutista à queda da Bastilha.

    Disponível em: < http://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia/revolucao-francesa-1-do-estado-absolutista-a-

    queda-da-bastilha.htm>. Acesso em 14 mai. 2015; (2) BIGELI, Alexandre. Revolução Francesa: a queda da

    Bastilha e o fim do regime absolutista. Disponível em:

    . Acesso em 14. mai. 2015.

  • 18

    reafirmar o direito que vinha sendo reiteradamente desrespeitado pelo monarca. Em ambos os

    casos pretendeu-se o fim do absolutismo, mas um pela afirmação do direito pré-existente e

    outro pela completa destruição do que existira para a sua reformulação sob o ideário

    iluminista19. É importante, neste sentido, visualizar o Poder Judiciário no período pré-

    revolucionário. Na Inglaterra, por não haver uma ligação intrínseca entre a monarquia e os

    magistrados, não havia uma carga negativa da população em sua concepção sobre a atuação

    judicial:

    O Parlamento, com a Revolução Gloriosa, venceu longa luta contra o absolutismo

    do rei. Diante da preocupação em conter os arbítrios do monarca, os juízes sempre

    estiveram ao lado do Parlamento, chegando a com ele se misturar. Assim, aí não

    houve qualquer necessidade de afirmar a prevalência da lei – como produto do

    Parliament – sobre os magistrados, mas sim a força do direito comum diante do

    poder real. [...]

    Na Inglaterra, ao contrário do que ocorreu na França, os juízes não só constituíram

    uma força progressista preocupada em proteger o indivíduo e em pôr freios no abuso

    do governo, como ainda desempenharam papel importante para a centralização do

    poder e para a superação do feudalismo.20

    Já em território francês, a correlação entre a monarquia e a magistratura era

    evidente: os juízes eram membros da classe aristocrática, com cargos que eram comprados e

    herdados. Em outras palavras, o cargo de juiz representava uma propriedade na França e, por

    esta razão, não havia credibilidade na função exercida, ainda mais por ser tendenciosamente

    utilizada em favor do soberano, com o intuito de manter a posição privilegiada que ocupava

    ao lado do rei.

    Daí as opostas funções atribuídas ao Poder Judiciário nos momentos

    imediatamente pós-revolucionários: na Inglaterra permanece a figura do judge make law (juiz

    legislador), responsável pela criação do precedente com base nos costumes, em oposição ao

    surgimento do juge bouche de la loi (juiz boca da lei), pelo qual se amarra o juiz ao texto

    legal, o que significa submeter o magistrado à mera repetição, no caso concreto, do que, em

    abstrato, fora deliberado pelo parlamento (órgão composto pelos representantes do povo):

    Com efeito, percebe-se que a partir da Revolução francesa buscou-se atribuir,

    mediante uma retórica estratégica, um autor único e indiscutível para o sistema

    jurídico, ‘o povo’, que exercia sua vontade por meio da produção das leis, por isso,

    vinculantes. Mais ainda: afirma-se que todas as normas aplicadas são advindas

    exclusivamente desta fonte, e que para sua aplicação e interpretação bastaria um

    processo simples para averiguar uma vontade verdadeiramente existente, mediante

    uma lógica infalível; consequentemente, a aplicação de normas respeitaria uma

    mecânica. É notável que a opção pela descrição do funcionamento do Direito desta

    19 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes... p. 46-47. 20 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes... p. 44-55.

  • 19

    forma tem por escopo a limitação dos poderes judiciais, exaltando o valor segurança

    jurídica. 21

    São atribuições distintas que demonstram a confiabilidade – ou não – que os

    revolucionários nutriam pelo Poder Judiciário. Da confiança permaneceram os juízes capazes

    de criar o Direito; da falta de confiança surgiram os juízes que só aplicam – em tese, sem

    poder criativo – o direito instituído pelo parlamento.

    A consequência lógica da limitação da atuação judicial à lei é a inflação de

    códigos no ordenamento jurídico, com a tradicional – e impossível – pretensão de prescrever

    todas as situações fáticas possíveis no texto normativo. Sob vértice distinto, utilizar o

    precedente judicial como fonte de direito resulta na necessidade de estabilidade das decisões,

    sob pena de criar um caos nas relações sociais pela incerteza de como agir de acordo com o

    direito.

    In fine, independentemente de qual se observe, a construção de um sistema

    jurídico tem como último escopo a obtenção de segurança jurídica22 para seus jurisdicionados.

    Abstraindo-se os rótulos típicos, sem as designações que lhe são próprias, a diferença

    essencial entre os dois sistemas se dá na significação atribuída aos códigos e à função que o

    juiz exerce ao considerá-los. No common law, os códigos não têm o condão de esgotar as

    hipóteses para evitar a interpretação do juiz; assim, não se esforçam no vão intuito de ter todas

    as regras capazes de solucionar conflitos. No civil law, há esta intenção.

    Em breves palavras, o ponto fulcral está no grau de importância dado à legislação

    ou à jurisprudência como fonte criativa de direito. Se o direito surge preponderantemente de

    uma decisão judicial, estar-se-á diante de um sistema; se o direito surge preponderantemente

    de um texto normativo abstrato, estar-se-á diante de outro. Contudo, importante frisar que um

    também se vale de características de outro em menor intensidade para o aperfeiçoamento de

    seu sistema – daí ser o grau de importância que é dado para cada uma das fontes criativas do

    direito o determinante para descobrir diante de qual sistema se está.

    O civil law, ab initio, fundou-se sob uma crença perigosa de que o juiz não

    poderia interpretar o direito, mas, tão somente, deveria subsumir a norma ao caso concreto

    posto ao seu juízo, o que, em todo, resta inviável. Dúvidas não há que

    21 MACÊDO, Lucas Buril de. Precedentes judiciais e o direito processual civil. Salvador: JusPodivm, 2015. p.

    41. 22 “A segurança jurídica consiste no ‘conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento

    antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida’.”

    (SILVA, José Afonso da. op. cit. p. 433)

  • 20

    A segurança e a previsibilidade obviamente são valores almejados por ambos os

    sistemas. Porém, supôs-se no civil law que tais valores seriam realizados por meio

    da lei e da sua estrita aplicação pelos juízes, enquanto no common law, por nunca ter

    existido dúvida que os juízes interpretam a lei e, por isso, podem proferir decisões

    diferentes, enxergou-se na força vinculante dos precedentes o instrumento capaz de

    garantir a segurança e a previsibilidade de que a sociedade precisa para se

    desenvolver.23

    Pela análise histórica realizada, verifica-se que nos países de common law, por

    não haver uma desconfiança latente no Poder Judiciário, não se necessitou criar premissas

    absurdas – tais qual a impossibilidade de o juiz interpretar a lei – para legitimar a segurança

    jurídica. Cientes do subjetivismo inteligível humano, procurou-se a segurança jurídica naquilo

    que efetivamente poderia se verificar: a aplicação do direito ao caso concreto, ou seja, nos

    precedentes, sob o título doutrinário de stare decisis.

    Porém, um estudo atual dos países tradicionalmente reconhecidos como de civil

    law ou common law comprova que os sistemas se encontram impuros. No Brasil, a despeito

    do enquadramento no direito romano-germânico, verifica-se o caráter criativo da interpretação

    jurisprudencial, bem como instrumentos que vinculam os precedentes, tais como as súmulas

    vinculantes do Supremo Tribunal Federal. Noutro vértice, países clássicos do common law

    têm elaborado mais e mais códigos a fim de prescrever a resolução do caso a ser analisado

    antes sequer do conflito ser instaurado ante o Poder Judiciário. Isto é:

    Uma common law pura, entendida como judge-made law, entretanto, só existiu

    realmente na Inglaterra vitoriana. Após a revolução industrial, a Inglaterra passou a

    receber várias leis escritas, sendo que hoje, em razão da União Europeia, vige na ilha

    um extenso direito escrito elaborado por legisladores supranacionais. Os EUA, por

    sua vez, muito embora tenham recebido a common law como herança britânica, têm

    desde pouco depois da sua independência um direito marcado pela influência de

    uma Constituição escrita (de 1788), reforçada para sempre pela criação do controle

    judicial de constitucionalidade na decisão do caso Marbury v. Madison pela

    Suprema Corte (USSC), em 1803.24

    Esta evolução dos sistemas não implica em dizer que o civil law – como o

    brasileiro – ou o common law – como o americano – estão se transformando para que um dê

    lugar ao outro. O que se apreende é o fato de que ambos os sistemas se utilizam de certos

    mecanismos do outro a ponto de não poderem ser considerados isoladamente como de um

    sistema particular.

    Inclusive, curiosamente, esta troca de informações entre os sistemas se dá, em

    certos casos, no próprio interior dos países. Como exemplo, temos o estado americano de

    23 MARINONI, Luiz Guilherme.Precedentes... p. 61. 24 Ibidem. p. 64.

  • 21

    Louisiana e a província canadense de Quebec, que, pela influência francesa em suas

    fundações, adotam o civil law, à exceção do restante do país no qual estão inseridos.

    Com a futura vigência do CPC/2015, a tendência é a intensificação desta

    mesclagem no ordenamento jurídico nacional, com a previsão de diversos dispositivos

    marcadamente da cultura dos precedentes, a ponto de os mais críticos decretarem a “morte da

    lei” para o nascimento de uma tendência jurídica anglo-saxã no Direito pátrio25.

    1.3 A convivência do civil law com outros institutos no ordenamento brasileiro

    Não há dúvidas que o pensamento revolucionário francês que procurava impedir a

    interpretação da lei pelos juízes, atribuindo-lhes a – utópica – função de tão somente aplicar o

    direito, estava fadada ao fracasso. Todavia, mesmo que se admitisse o contrário, a evolução

    do direito provaria que as bases nas quais se funda o civil law não trazem a este sistema legal

    tanta segurança jurídica quanto se pretendia inicialmente.

    Pode-se destacar, portanto, como a primeira controvérsia do civil law justamente a

    premissa básica na qual se sustenta a segurança jurídica por ele almejada: a lei e a função

    jurisdicional exclusivamente aplicativa. Uma razão justifica a falha sistemática: não existe

    imediata subsunção do fato à norma, pois sempre haverá intermediação da inteligência

    subjetiva humana.

    Em que pese a pretensão do positivismo jurídico em sentido contrário, não é

    novidade que há distinção entre o enunciado normativo e a norma da qual dele se extrai. De

    um mesmo texto normativo retiram-se diversas normas possíveis26 – ou, melhor,

    interpretações:

    As normas são o significado extraído de uma ou mais disposições de lei ou atos

    normativos considerados como dispositivos, textos ou enunciados, que lhe

    estabelecem. A norma pode estar em um ou em muitos dispositivos de lei, um só

    enunciado pode conter muitas normas. A norma somente adquire o seu significado

    conforme a individuação pelo intérprete no momento da aplicação. Por essa razão, a

    doutrina fala em normas como o resultado, e não o pressuposto da atividade

    interpretativa.27

    25 Sobre o tema: STRECK, Lenio Luiz. Novo CPC decreta a morte da lei. Viva o common law! Consultor

    Jurídico, São Paulo, 12 de setembro de 2013. Disponível em . Acesso em: 24 jan. 2015. 26 MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho de direito constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p.

    45. 27 ZANETI JUNIOR, Hermes. O valor vinculante dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2015. p. 142-143.

  • 22

    Isto se dá ante a problemática central de um sistema que se pretende positivista,

    que é a arbitrariedade disponibilizada ao magistrado para que determine a indefinição trazida

    pelas chamadas zonas de penumbra28 da norma. Assim, o dogma de um sentido unívoco do

    texto normativo cai por terra ao se analisarem dois elementos fundamentais à interpretação do

    enunciado: o elemento linguístico e o elemento subjetivo.

    Quer dizer, o texto legal, por si só, já viabiliza certo número de interpretações,

    pois para cada palavra nele descrita há mais de um significado linguístico possível. Eis o

    cerne do problema: a ambiguidade da norma que permite a sua extensão ou redução aos

    moldes da compreensão do intérprete. Por outro lado, a palavra, sendo base de qualquer texto

    legal, também é vaga, pois a sua própria definição requer a utilização de mais e outras

    palavras, igualmente insuficientes e incapazes de se autodefinir. O sentido da palavra só

    surge, portanto, na sua aplicação29.

    Em soma, há, ainda, outro elemento, de caráter subjetivo, que é a carga

    emocional. O intérprete da lei não a compreende de maneira neutra, pois a sua vivência e seu

    conhecimento pretérito influem diretamente no olhar que dará ao enunciado. Da mesma

    forma, a carga emocional ao tempo da interpretação influencia diretamente no raciocínio do

    leitor:

    A decisão judicial – como observa Frosini [1991:11] – considera e é determinada:

    pelas palavras da lei e pelos antecedentes judiciais; pela figura delitiva que se

    imputa; pelas interpretações elaboradas pelas duas ou mais partes em conflito; pelas

    regras processuais; pelas expectativas de justiça nutridas pela consciência da

    sociedade. Finalmente, pelas convicções do próprio juiz, que pode estar

    influenciado, de forma decisiva, por preceitos de ética religiosa ou social, por

    esquemas doutrinais em voga ou por instâncias de ordem política. De mais a mais, o

    juiz, em verdade, considera o direito todo, e não apenas determinado texto

    normativo.

    Daí que a decisão judicial implica, inarredavelmente, emoção e volição, visto que o

    juiz decide sempre dentro de uma situação histórica determinada, participando da

    consciência social de seu tempo.30

    Mas não apenas isto. A própria lei não possui neutralidade na sua confecção. Não

    bastasse a carga de subjetivismo do intérprete, o próprio texto legal é politicamente partidário

    de certas ideologias, pois fabricado para satisfazer os ideários dos seus criadores, os

    legisladores. É o que expõe Ovídio A. Baptista da Silva:

    28 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso especial, recurso extraordinário e ação rescisória. 2. ed. São

    Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 154-155. 29 Ibidem. 151-158. 30 GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 72-73.

  • 23

    A utopia da neutralidade da lei, que pressupunha, no fundo uma lei natural imutável,

    foi fragorosamente derrotada pela sociedade democrática e pluralista deste final de

    século, concebida para permitir a convivência dos contrários, a coparticipação

    harmônica e pacífica de toda sorte de antagonismos políticos e crenças religiosas e

    morais.

    [...]

    A verdade, porém, como adverte Castanheira Neves, é que a lei, no Estado

    contemporâneo, não é simplesmente aquela prescrição abstrata, formulada para

    permitir a ação (qualquer ação) dos agentes sociais. A lei não oferece simplesmente

    as condições para qualquer projeto de governo. Ela é o próprio plano de governo. O

    partido vitorioso da contenda política serve-se da lei para, através dela, constituir seu

    projeto político de administração pública [...]. A funcionalística neutralidade jurídica

    da lei possibilitou que ela adquirisse uma directa intenção política e desse modo se

    transformasse num 'processo de governo' através do qual, como diz Burdeau, o

    próprio 'legislador governa'. À tentativa iluminista de reduzir o político a jurídico

    substituiu-se hoje a instrumentação do jurídico pelo político.31

    Entretanto, a problemática do civil law não se exaure nesta premissa vacilante.

    Conforme elenca Luiz Guilherme Marinoni32, a evolução mundial, com o surgimento de

    novas teses jurídicas, abalou outros pilares do sistema jurídico baseado na lei, o que, via de

    consequência, expôs sobremaneira a insegurança jurídica das relações sociais sob a jurisdição

    brasileira.

    Certo é que o juiz não pode se furtar de decidir amparado nas palavras da lei,

    afinal, é premissa necessária ao Estado de Direito. Por outro lado, a cultura jurídica romano-

    germânica implicaria na incompetência do juiz para dar significado a conceito indeterminado

    ou concretizar regra de conceito vago ou ambíguo, o que acarretaria na resolução da lide da

    maneira que subjetivamente lhe parecesse oportuna e adequada. Não obstante, em mais uma

    demonstração de incompatibilidade entre prática legislativa e o sistema legal brasileiro, edita-

    se grande parte das codificações com enunciados que contêm as denominadas cláusulas

    abertas – ou cláusulas gerais33.

    Entendem-se como cláusulas abertas os conceitos indeterminados integrantes do

    enunciado normativo que abrem, em maior grau que o comum, a interpretação linguístico-

    jurídica. Ad exemplum, têm-se termos como boa-fé, justa causa, probidade, urgência,

    desproporção e razoável. Em síntese, são palavras que possibilitam uma subjetividade maior

    em sua apreciação.

    31 SILVA, Ovídio A. Baptista. Jurisdição e execução na tradição româno-germânica. São Paulo: Revista dos

    Tribunais,1996. p. 192-194. 32 MARINONI, Luiz Guilherme.Precedentes... p. 56-83. 33 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. op. cit. p. 161-175.

  • 24

    Se o direito nunca é totalmente aplicável ao seu tempo34, certo é que no momento

    em que entra em vigência qualquer lei, o contexto político-social em que foi produzida já é

    um passado diverso à realidade na qual será aplicada, fato que influencia diretamente na

    eficácia da norma. Assim, as cláusulas abertas são úteis à dinamização e completude do

    direito, pois a abertura interpretativa do enunciado normativo permite a adequação da lei ao

    tempo e aos pressupostos fáticos sob os quais é julgado o caso concreto.

    Contudo, não se pode negar o poder de definição do indefinido que é dado a cada

    juiz competente à interpretação de certa cláusula aberta. Em termos práticos, a indefinição de

    conceitos, que serviria à transtemporaneidade da norma – vez que permitiria que a norma

    fosse aplicada de acordo com o contexto social da época –, resulta na indefinição do conceito

    a todo tempo, pois a interpretação que os juízes atribuem à norma é diversificada até ao

    mesmo contexto temporal em que é por eles interpretada. Ao fim, constata-se que este

    instrumento, útil à dinamicidade legislativa, permite a insegurança jurídica sobre os conceitos

    indeterminados, acaso não se lhe dê uma aplicação mais precisa por certo órgão.

    Outro movimento jurídico que trouxe certa incongruência ao civil law foi o

    constitucionalismo. Baseado no ideário de que todo o arcabouço legislativo deve ser

    observado através da lente da Constituição, o constitucionalismo potencializa o subjetivismo

    interpretativo do magistrado em patamares que tendem à arbitrariedade.

    Explica-se: ao se aplicar uma norma, deverá o juiz interpretá-la não apenas aos

    fins que a codificação propõe-se, mas também sob todos os aspectos principiológicos trazidos

    pela Constituição. Ou seja, há, primeiro, o subjetivismo interpretativo acerca da lei em si e,

    ainda, a verificação de seu enquadramento e aplicação nos moldes dos princípios

    constitucionais, que, por serem mandamentos de otimização – de grau superior às cláusulas

    abertas –, por si só já demandam um esforço hermenêutico de grande subjetivismo.

    Não bastasse isto, a convivência brasileira do controle de constitucionalidade

    difuso e abstrato causa ainda mais instabilidade às decisões, vez que o juiz singular pode,

    como bem entender, dar a leitura constitucional que acredita ser a correta à certa legislação,

    ainda que contrária aos precedentes não vinculantes do Supremo Tribunal Federal. Como se

    34 “A dinâmica social passou a atropelar o direito positivado, impedindo que fosse atingido o ideal de

    fechamento do sistema legal. Essa carência foi agravada pela própria forma de ser do processo legislativo,

    condicionando a aprovação de um novo texto legal ao prévio debate (rectius: embate) entre diferentes grupos de

    pressão da sociedade (demorado, imprevisível e não muito imparcial). A cumulação de todos esses fatores gerou

    um natural descompasso entre o surgimento de novas situações carentes de tutela e a edição de leis que

    pudessem regrá-las.” (PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Jurisprudência: da divergência à uniformização.

    São Paulo: Atlas, 2006. p. 46)

  • 25

    percebe, o constitucionalismo atribui ao magistrado brasileiro um poder interpretativo sem

    precedentes, o que provoca uma incompatibilidade manifesta entre o sistema do civil law e a

    função interpretativa jurisdicional. Não por menos,

    A evolução do civil law, particularmente em virtude do impacto do

    constitucionalismo, deu aos juízes um poder similar àquele do juiz inglês submetido

    ao common law e, bem mais claramente, ao poder do juiz americano, dotado do

    poder de controlar a lei a partir da Constituição. No instante em que a lei perde a

    supremacia, submetendo-se à Constituição, transforma-se não apenas o conceito de

    direito, mas igualmente o significado de jurisdição. O juiz deixa de ser um servo da

    lei e assume o dever de dimensioná-la na medida dos direitos positivados na

    Constituição. Se o juiz pode negar a validade da lei em face da Constituição ou

    mesmo instituir regra imprescindível à realização de direito fundamental, o seu

    papel não é mais aquele concebido por juristas e processualistas de épocas distantes.

    Aliás, o juiz brasileiro, hoje, tem poder criativo do que o juiz do common law, uma

    vez que, ao contrário deste, não presta o adequado respeito aos precedentes.35

    Não se procura, com isto, questionar a importância que o constitucionalismo e as

    cláusulas abertas trouxeram ao ordenamento jurídico ao viabilizarem uma flexibilização na

    legislação para se adequar aos critérios de isonomia constitucional. Critica-se, por outro lado,

    o modo de sua implementação no direito pátrio, conferindo aos juízes poderes incompatíveis

    com o sistema legal brasileiro, sem um mecanismo expresso que evitasse o decisionismo e a

    instabilidade jurisprudencial.

    Em adição, para comprometer ainda mais a aplicação da lei, a produção legislativa

    pátria é amadora, o que inviabiliza aos cidadãos, bem como aos juristas em geral, a tomada de

    decisões em suas condutas com certo grau de certeza quanto às suas consequências jurídicas

    imediatas, o que, evidentemente, prejudica as relações sociais e gera insegurança jurídica:

    Se o Direito serve para guias as pessoas, elas devem ter condições de saber o que ele

    significa. Por isso o seu sentido deve ser claro, porquanto um Direito ambíguo,

    vago, obscuro ou impreciso termina por enganar ou por confundir pelo menos

    aqueles que desejam ser guiados por ele. Daí se afirmar que a inteligibilidade das

    normas requer clareza e precisão, sendo essa condição de existência daquela. [...]

    A clareza exigida pela segurança jurídica não pode, porém, ser confundida com

    univocidade, visto que não há um único sentido possível, mas sim uma escala entre

    aquilo que é mais óbvio e aquilo que é mais contestável.36

    Neste sentido, são infinitas normas tratando do mesmo tema, umas conflitando

    com as outras. São textos normativos atécnicos sobre matérias especializadas, produzidos por

    leigos no assunto. São medidas provisórias regulando matéria sem urgência nem relevância.

    São deliberações em que votam partidos, não os representantes eleitos. Enfim, a imperfeição

    legislativa é chocante:

    35 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes... p. 38. 36 ÁVILA, Humberto. Teoria da segurança jurídica. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 335-337.

  • 26

    Convivemos, assim, com esse emaranhado de leis, umas revogadas, outras

    limitando, outras, ainda, ampliando textos legais anteriores, de modo que nunca

    possamos ter a necessária segurança jurídica para efeito de, validamente,

    promovermos nossas pretensões perante o Judiciário.

    Ademais, algumas leis, feitas às pressas, para atender uma exigência do momento, já

    nascem ambíguas contraditórias ou lacunosas, contribuindo decisivamente para a

    incoerência de qualquer sistema legal. Assim, se o requisito para que um sistema

    legal seja considerado coerente é o de que nenhuma de suas leis colida com outra, a

    conclusão é a que se permite chegar é a de que o sistema legal brasileiro é

    incoerente, haja vista a existência de um razoável número de leis contraditórias ou

    de leis com dispositivos contraditórios. Em face disso, cumpre ressaltar que,

    conquanto a coerência não seja condição de validade, ela é sempre condição para a

    justiça do ordenamento.37

    Ante um ordenamento contraditório e lacunoso, a jurisprudência pátria demonstra

    com clareza uma enfermidade do civil law: o entendimento jurisprudencial sobrevive, quando

    muito, apenas enquanto a configuração da corte não se modificar. Isto leva à conclusão de que

    as interpretações das normas tendem a se modificar constantemente, a depender da

    composição do tribunal. O que vale, ao fim, é a opinião dos ocupantes de cargos de ministro

    ou desembargador, e não o precedente construído.

    Por certo, não é uma questão de se verificar se o precedente é mais ou menos justo

    que o entendimento posteriormente firmado, mas sim demonstrar a violação da isonomia entre

    casos faticamente idênticos, sem uma alteração legislativa substancial sobre o tema entre o

    julgamento dos precedentes conflitantes.

    Constata-se, nesta linha, que a resolução de lides acerca de certas matérias

    substancialmente controversas pode dar-se de uma maneira x ou, ainda, de maneira y,

    diametralmente oposta x, a depender da álea das partes de em qual órgão e quando será

    julgada a demanda. Entretanto, condenável esta situação, pois a partir do momento que se

    associa a prestação jurisdicional ao risco ou à sorte, não estamos mais tratando acerca da

    pacificação social, mas do acaso lotérico.

    Todos os anos, inúmeros são os casos como tal, nos quais a jurisprudência muda

    de sentido sem qualquer motivação legislativa ou social que justifique a alteração

    interpretativa. Ao fim, resta o questionamento de se aspectos processuais – como órgão

    julgador e o tempo de julgamento – poderiam determinar qual das partes possui razão na lide.

    1.4 Desuniformidade jurisprudencial como patologia ao acesso à justiça

    37 LUZ, Valdemar P. da. As Imperfeições Legislativas e suas Consequências: o problema da insegurança

    jurídica. Florianópolis: OAB/SC, 2006. p. 54-55.

  • 27

    Se um sistema jurídico baseia-se na lei, o mínimo que dele se espera é que se

    apresente como um sistema coerente, com estrutura capaz de proporcionar segurança

    jurídica38 aos jurisdicionados por meio do texto normativo – mesmo que não por este

    exclusivamente.

    Assim sendo, por mais comum e corriqueira que se tenha tornado a mudança de

    entendimento jurisprudencial atinente a certa matéria sem prévia modificação legislativa ou

    evolução social que a justificasse, deve ela ser vista como uma patologia de nosso sistema

    legal, ante os tantos reflexos negativos que gera aos jurisdicionados.

    É uma patologia do sistema que deve ser combatida, pois corrói a principal base

    do civil law brasileiro, que é a segurança jurídica na lei. A partir do momento em que os

    tribunais aplicam interpretações diferentes sobre um mesmo texto normativo, não temos uma

    norma, mas temos tantas normas quanto interpretações aplicáveis, todas gerando resultados

    diversos nos casos submetidos à apreciação judicial, o que configura o caráter

    antidemocrático e anti-isonômico desta prática.

    Apesar de sob perspectiva diversa, vez que analisa a hipótese de textos

    normativos conflitantes, a problemática examinada por Norberto Bobbio não deixa de ser

    aplicável quando da existência de interpretações diversas de um mesmo enunciado contido no

    ordenamento jurídico:

    A coerência não é condição de validade, mas é sempre condição para a justiça do

    ordenamento. É evidente que quando duas normas contraditórias são ambas válidas,

    e pode haver indiferentemente a aplicação de uma ou de outra, conforme o livre-

    arbítrio daqueles que são chamados a aplicá-las, são violadas duas exigências

    fundamentais em que se inspiram ou tendem a inspirar-se os ordenamentos

    jurídicos: a exigência de certeza (que corresponde ao valor da paz ou da ordem) e a

    exigência da justiça (que corresponde ao valor da igualdade). Onde existem duas

    normas antinômicas, ambas válidas, e portanto ambas aplicáveis, o ordenamento

    jurídico não consegue garantir nem a certeza, entendida como possibilidade, por

    parte do cidadão, de prever com exatidão as conseqüências jurídicas da própria

    38 “A segurança projeta-se num continuum, temporalmente balanceada entre as estabilidades pretéritas, as

    exigências do presente e as expectativas e prognoses futuras. E assim deve ocorrer também quando o Judiciário

    lida com posições jurídicas consolidadas. Na atualidade, portanto, o formato mais adequado para a segurança

    jurídica é a segurança-continuidade. A continuidade jurídica é um conceito que está na síntese da tensão entre

    uma total e estanque eternização de conteúdos estabilizados e o oposto de uma ampla e irrestrita alterabilidade.

    Continuidade, então, não significa petrificação, mas mudança com consistência, protegendo os interesses

    humanos de estabilidade e permanência, mas viabilizando também a alteração das posições jurídicas estáveis.

    Por conseguinte, a continuidade revela uma maneira de não bloquear totalmente as mudanças e, ao mesmo

    tempo, preservar a segurança.” (CABRAL, Antonio do Passo. Estabilidade e alteração de jurisprudência

    consolidada: proteção da confiança e a técnica do julgamento alerta. In: GALLOTTI, Isabela; et al (Coord.). O

    papel da jurisprudência no Superior Tribunal de Justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 47)

  • 28

    conduta, nem a justiça, entendida como o igual tratamento das pessoas que

    pertencem à mesma categoria.39

    Percebe-se o estágio de insegurança jurídica de interpretação da legislação quando

    um grupo de magistrados – seja este do mesmo órgão jurisdicional ou não – dá a certo

    dispositivo legal uma exegese, enquanto outro grupo dispõe de maneira diametralmente

    oposta, ou simplesmente diversa, a ponto de aplicar concomitante de maneira desuniforme a

    mesma redação normativa.

    A lei, ao entrar em vigência, não possui em seu texto normativo todas as suas

    aplicações possíveis. É indiscutível, pois, que a interpretação da lei é construída aos poucos,

    de acordo com a submissão ao judiciário, de causas faticamente diversas. Partindo-se deste

    pensamento, surge uma dúvida típica do common law, que faz-nos questionar

    [...] se nessa atividade interpretativa, seria o juiz mero intérprete-aplicador do

    direito, ou participaria, lato sensu, da atividade legislativa, vale dizer, mais

    corretamente, da criação do direito.

    Diz-se, de um lado, que a tarefa interpretativa consiste em criação de direito, porque

    o juiz se move dentro de um marco dotado inevitavelmente de certa amplitude e

    dentro do qual o órgão decisório pode ser considerado como necessário e único.

    Segue, pois, que por mais precisa que a norma geral pretenda ser, a norma especial

    criada pela decisão judicial do tribunal sempre acrescentará àquela algo de novo.

    Em relação à common law, contrariamente ao que pensa a doutrina tradicional

    (Blackstone, Carter), a doutrina moderna, que tem como representantes Cardozo,

    Graz e Pound, considera a sentença verdadeira criação de direito.40

    Se a sentença judicial declara ou cria o direito, esta é a grande questão. Entende-se

    que a natureza da sentença é tanto declaratória quanto criativa. Sob um vértice, a sentença

    declara o dispositivo legal aplicável à lide em questão. Por outro, a subsunção do fato ao

    dispositivo delimita o alcance da norma, que não está predeterminado ao início de sua

    vigência, o que caracteriza a sua natureza criativa. Nesta linha, afirma Eros Roberto Grau:

    O intérprete procede à interpretação dos textos normativos no quadro da realidade,

    tal e qual a realidade é no momento da interpretação dos textos e dos fatos. Este

    ponto desejo enfatizar: o intérprete apreende o significado dos textos no quadro da

    realidade do momento no qual as normas serão aplicadas. Daí que a realidade do

    momento no qual os acontecimentos que compõem o caso se apresentam pesará de

    maneira determinante na produção da(s) norma(s) aplicável(veis) ao caso. [...]

    Mas não é só, visto que – repito-o – a interpretação do direito é constitutiva, não

    simplesmente declaratória. Vale dizer: não se limita – a interpretação do direito – a

    ser mera compreensão dos textos, da realidade e dos fatos. Vai bem além disso.

    [...]

    Relembre-se: os textos normativos carecem de interpretação não apenas por não

    serem unívocos ou evidentes – isto é, por serem destituídos de clareza –, mas

    também porque devem ser aplicados a casos concretos, reais ou fictícios. [...]

    39 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 4. ed. Brasília, UnB, 1994. p. 80. 40 LUZ, Valdemar P. da. op. cit. p. 139.

  • 29

    O texto normativo - observa Friedrich Muller [1993:169] – não contém

    imediatamente a norma. A norma é construída, pelo intérprete, no decorrer do

    processo de concretização do direito; o preceito jurídico é matéria que precisa ser

    'trabalhada'.41

    Conclui-se que a resolução de uma lide é determinada pela aplicação de um

    dispositivo, e o alcance deste dispositivo é determinado pelas resoluções de lides. Ou seja,

    uma relação recíproca. Ademais, o caráter criativo da sentença resta evidente ao se verificar

    que, constituindo precedente aos futuros casos símiles, cria uma fonte de direito às decisões

    que estão por vir.

    Para que subsista segurança jurídica em nosso sistema legal, primeiramente é

    necessário que se admita a natureza criativa das decisões, superando a premissa do juiz boca

    da lei. Após, deve-se respeitar os precedentes como a fonte de direito42 legítima que são, de

    modo a dar efetividade ao postulado do treat like cases alike, isto é, que casos similares

    devem ser decididos da mesma forma, brocardo que nada mais é que decorrência do princípio

    da isonomia, em seu sentido material.

    Ora, a segurança jurídica é a viga que sustenta e justifica a existência do direito.

    Se ela advém – pretensamente, ao menos – da lei e sabe-se que um texto normativo pode ter

    uma infinidade de interpretações, a interpretação que é dada pelo Poder Judiciário deve ser

    una e contínua. Do início ao fim de sua vigência, a lei deveria ser interpretada de uma única

    forma para casos idênticos. Entender de modo diverso é negar vigência à segurança e

    isonomia, valores consagrados a nível constitucional.

    Evidentemente, esta estabilidade hermenêutica não pode ser vista de maneira

    absoluta. A elaboração de novas leis atinentes a certa matéria influi diretamente na aplicação

    do direito, o que possibilita a mudança do tratamento jurisprudencial sobre o tema. Da mesma

    forma, o decurso do tempo pode justificar a alteração do sentido dos precedentes quando a

    evolução da sociedade exigir.

    Adaptando-se o simplório exemplo contado por Luís Alberto Warat43, pode-se

    perceber como a época de interpretação e seu contexto social influem na aplicação do direito:

    imagine-se um convento no século XX que contém uma placa com os dizeres “proibido o uso

    de roupas de banho”. Neste contexto, evidentemente, pretende-se que não se exibam demais

    os corpos das pessoas. Por outro lado, se a mesma placa for colocada em uma praia nos dias

    41 GRAU, Eros Roberto. op. cit. p. 30-34. 42 Cf. TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,

    2004. p. 295-304. 43 WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995.

  • 30

    de hoje, implicará na inteligência de que se trata de uma praia de nudismo, ou seja, que não se

    pode usar qualquer roupa. É o mesmo texto normativo, que muda de sentido de acordo com o

    contexto em que se insere.

    Sobre o tema, o common law dá-nos uma solução de equilíbrio entre a

    estabilidade jurisprudencial e a adequação do direito à realidade social ao tratar do

    denominado overruling. Em síntese, o overruling é a modificação do entendimento de certo

    precedente, o que representa a superação de um modo que vinha sendo aplicado o direito.

    Entretanto, é instrumento excepcional. Admite-se

    [...] o overruling quando se percebe com nitidez o erro do precedente e nada justifica

    a opção pela estabilidade. Também se admite o overruling quando a evolução

    tecnológica, ao gerar nova realidade, impõe a reconfiguração da doutrina ou da

    teoria que fundamenta o precedente. O mesmo ocorre quando os valores sociais, que

    sustentam o precedente, são modificados. Note-se que a evolução da tecnologia e a

    superação de valores sociais são fatores que obviamente não se inserem na ideia de

    ‘novas circunstâncias’, vista como ‘fatos novos’.44

    Percebe-se, assim, que a regra deve ser o stare decisis, isto é, o respeito aos

    precedentes já criados, e a exceção o overruling. Ambos os instrumentos têm seu nomen iuris

    relacionado ao common law, entretanto, a sua ratio é plenamente aplicável ao civil law, vez

    que tanto em um quanto em outro sistema, apesar de em graus e formas diversas, o juiz possui

    como atributo funcional o poder criativo em seus julgados.

    Desta forma, o ideário que envolta o overruling e o stare decisis deve ser aplicado

    à realidade do civil law, a fim de consagrar valores como a igualdade, a segurança jurídica e a

    previsibilidade, colaborando no fortalecimento da relação que se cria entre o Poder Judiciário

    e seus jurisdicionados. Afinal, de acordo com o princípio da legalidade, o que governa a nossa

    conduta perante a sociedade é a lei ao seu tempo, não a opinião de um grupo de homens que

    ocupam temporariamente um cargo de magistratura. Neste sentido,

    Em verdade, as bases do sistema por precedentes servem para diluir as falsas ideias

    de que obrigar a seguir decisões é necessariamente congelar o direito. Há um objeto

    mais importante para a ordem jurídica, que é a segurança pela estabilidade desse

    sistema, principalmente mercê de um panorama atual em que as leis materiais são

    cada vez mais genéricas, lacunosas, expressas em conceitos valorativos vagos.45

    A adoção de instrumentos tais quais traz diversos benefícios ao nosso sistema

    legal. Dentre estes, podem ser elencados: (a) a segurança jurídica, que é o fundamento do

    Estado de Direito; (b) a estabilidade das decisões, necessária à previsibilidade; (c) [maior grau

    44 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes.... p. 115. 45 PARENTE, Eduardo de Albuquerque. op. cit. p. 17.

  • 31

    de] previsibilidade das decisões, o que possibilita maior certeza jurídica na tomada de

    decisões dos cidadãos em suas relações interpessoais; (d) a confiabilidade no Poder Judiciário

    pelos jurisdicionados, cujo resultado é um maior grau de pacificação social com justiça; (e) a

    coerência da ordem jurídica; (f) a diminuição da utilização de recursos e meios de

    impugnação, com redução da sobrecarga de processos; e (g) a concretização do princípio da

    isonomia substancial.

    Ademais, a aptidão para reconhecer um direito próprio e propor uma ação ou

    apresentar defesa é uma das facetas do acesso à justiça em sentido amplo. Inegável que a

    partir do momento no qual a jurisprudência é farta em precedentes colidentes, a tendência é a

    impossibilidade de se reconhecer se uma pessoa possui ou não o reconhecimento judicial

    daquele direito.

    Diante de incertezas, diversas pessoas deixarão de instaurar demandas, apesar de

    acreditarem possuir o direito respectivo, por simples receio de virem a ser sucumbente na

    demanda, vendo sua lide diante do Poder Judiciário tal qual um bilhete de loteria, cujo custo é

    tangível e a chance de vitória é meramente estatística, movida pela sorte. Em vértice oposto,

    diversas lides temerárias serão propostas por haver esta instabilidade, vez que não há uma

    certeza na delimitação da norma. Em lição memorável e sob esta perspectiva, Mauro

    Cappelletti sintetiza a abrangência do obstáculo que é criado com a dificuldade de se

    reconhecer um direito próprio:

    Essa barreira fundamental [de desconhecimento de um Direito] é especialmente

    séria para os despossuídos, mas não afeta apenas os pobres. Ela diz respeito a toda a

    população em muitos tipos de conflitos que envolvem direitos. Observou

    recentemente o professor Leon Mayhew: ‘Existe... um conjunto de interesses e

    problemas potenciais; alguns são bem compreendidos pelos membros da população,

    enquanto outros são percebidos de forma pouco clara, ou de todo despercebidos’.

    Mesmo consumidores bem informados, por exemplo, só raramente se dão conta de

    que sua assinatura num contrato não significa que precisem, obrigatoriamente,

    sujeitar-se a seus termos, em quaisquer circunstâncias. Falta-lhes o conhecimento

    jurídico básico não apenas para fazer objeção a esses contratos, mas até mesmo para

    perceber que sejam passíveis de objeção.46

    Extrai-se, então, que a consolidação de um precedente sobre certa matéria em

    detrimento a julgamentos que vão de encontro uns com os outros é, antes de mais nada,

    medida necessária para viabilizar um maior acesso à justiça à população e, por conseguinte,

    tratar casos símiles de maneira juridicamente igual.

    46 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto

    Alegre: Fabris, 2002. p. 22-23.

  • 32

    Ante toda a exposição, demonstra-se inegável o atual estágio de insegurança

    jurídica que paira os litigantes que estão frente a um judiciário oscilante e, muitas vezes,

    lotérico em sua jurisprudência. O sistema recursal assume papel importante no controle da

    atividade jurisdicional, entretanto, não resolve, nos moldes atuais, todos os problemas

    advindos da constante alteração de jurisprudência.

    Assim, da análise realizada neste capítulo, averiguou-se que: (a) a função do

    processo é instrumental ao Estado de Direito para que se faça valer o direito material

    aplicável; (b) o civil law funda a segurança jurídica de seu sistema no texto legal; (c) em

    contraposição aos pontos anteriores, o tempo e o órgão julgador em que é instaurada a

    demanda judicial influencia diretamente na resolução da lide, vez que há constante mudança

    na jurisprudência, o que demonstra a frágil segurança jurídica de nosso sistema legal, tal qual

    a função não meramente instrumental do processo em nosso ordenamento.

    Partindo-se destas afirmações, ergue-se o questionamento mote do presente

    trabalho. Imagine-se uma ação que trata de questão material controversa na jurisprudência

    nacional. Após o seu julgamento, com trânsito em julgado, firma-se entendimento dos

    tribunais responsáveis pela uniformização em sentido diverso ao prolatado na sentença

    daquela ação. Haveria casos nos quais a sentença transitada em julgado poderá ser rescindida

    para que se lhe dê adequação ao entendimento uniformizado pelos órgãos jurisdicionais

    competentes? É um questionamento que conflita valores de um sistema e pelo qual se passa a

    estudar.

  • 33

    2 COISA JULGADA E AÇÃO RESCISÓRIA: DELIMITAÇÃO LEGAL DO

    INSTITUTO E DO INSTRUMENTO PROCESSUAL

    Ao se pretender o exame acerca da viabilidade da desconstituição de uma decisão

    judicial por violação à jurisprudência consolidada em sentido contrário, há de se estudar o

    instituto que impede que qualquer relação jurídica declarada judicialmente seja revista a bel-

    prazer do julgador, bem como o instrumento processual que excetua esta intangibilidade do

    provimento judicial.

    Neste contexto, o trânsito em julgado de uma decisão de mérito implica na

    formação da coisa julgada, a qual, uma vez perfectibilizada, somente poderá ser

    desconstituída por meio de nova ação de conhecimento, específica a esta pretensã