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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO LINHA DE PESQUISA TRABALHO E EDUCAÇÃO DEMETRIO CHEROBINI EDUCAÇÃO E POLÍTICA NO PENSAMENTO DE ISTVÁN MÉSZÁROS: ESTUDO INTRODUTÓRIO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Florianópolis 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

LINHA DE PESQUISA TRABALHO E EDUCAÇÃO

DEMETRIO CHEROBINI

EDUCAÇÃO E POLÍTICA

NO PENSAMENTO DE ISTVÁN MÉSZÁROS:

ESTUDO INTRODUTÓRIO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Florianópolis

2010

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DEMETRIO CHEROBINI

EDUCAÇÃO E POLÍTICA

NO PENSAMENTO DE ISTVÁN MÉSZÁROS:

ESTUDO INTRODUTÓRIO

Dissertação submetida ao

Colegiado do Programa de Pós-

Graduação em Educação, Linha

Trabalho e Educação, da

Universidade Federal de Santa

Catarina em cumprimento parcial

para a obtenção do Grau de Mestre

em Educação.

Orientadora:

Profa. Dr

a. Patricia Laura Torriglia

Florianópolis

2010

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Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária

da

Universidade Federal de Santa Catarina

C522e Cherobini, Demetrio

Educação e política no pensamento de István

Mészáros [dissertação] : estudo introdutório /

Demetrio Cherobini ; orientadora, Patricia Laura

Torriglia. - Florianópolis, SC : 2010.

1 v.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal

de Santa Catarina, Centro de Ciências da

Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação.

Inclui referências

1. Mészáros, István, 1930-. 2. Educação. 3.

Política e educação. I. Torriglia, Patricia

Laura. II. Universidade Federal de Santa

Catarina. Programa de Pós-Graduação em

Educação. III. Título.

CDU 37

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

CURSO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO

LINHA DE PESQUISA TRABALHO E EDUCAÇÃO

EDUCAÇÃO E POLÍTICA

NO PENSAMENTO DE ISTVÁN MÉSZÁROS:

ESTUDO INTRODUTÓRIO

Dissertação submetida ao

Colegiado do Programa de Pós-

Graduação em Educação, Linha

Trabalho e Educação, da

Universidade Federal de Santa

Catarina em cumprimento parcial

para a obtenção do Grau de Mestre

em Educação.

APROVADA PELA COMISSÃO EXAMINADORA EM 06/12/2010.

________________________________

Profª. Patricia Laura Torriglia, Dra. Orientadora

Universidade Federal de Santa Catarina

______________________________

Prof. Mauro Luis Iasi, Dr. Examinador

Universidade Federal do Rio de Janeiro

___________________________________

Prof. Paulo Sergio Tumolo, Dr. Examinador

Universidade Federal de Santa Catarina

______________________________

Profa. Célia Regina Vendramini, Dr

a.

Coordenadora do Curso

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Dedico este trabalho a dois

casais de trabalhadores: Ilda e

Mateus, Neli e Zeca.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, a dois trabalhadores braçais, Ilda e

Mateus, meus pais, que me proporcionaram tudo aquilo que eu

precisava para crescer e ser, e me tornar consciente de quem sou, que

deram um duro tremendo nesta vida e mesmo após a aposentadoria

tiveram que continuar trabalhando, que, depois de sentirem na pele

durante tantos anos as agruras do trabalho, saíram de Frederico

Westphalen rumo a Santa Maria em busca de uma vida e de um destino

mais dignos para todos nós, que me ensinaram a ler, a escrever, e que ―o

conhecimento não ocupa espaço‖. Que me inspiraram, enfim, a ver o

mundo a partir do ponto de vista dos trabalhadores, a acreditar nas

minhas próprias forças, a me importar com o sofrimento dos outros, a

não desistir, a crer que o futuro pode ser melhor e a lutar por isso.

Tenham certeza de que todo esse esforço valeu a pena!

Agradeço, em segundo lugar, a Neli e Zeca, também

trabalhadores, pessoas batalhadoras e especiais, a quem devo

muitíssimo, a quem admiro profundamente, que fazem parte da minha

história, e sem as quais este trabalho, certamente, não poderia ter vindo

à luz.

Agradeço também a professores que marcaram amplamente a

minha formação – alguns dos quais há muito eu não vejo -, que me

ensinaram, cada um do seu jeito, coisas importantes que trago comigo

na alma como tesouros dos mais preciosos. Também estiveram, em certo

sentido, comigo nesta jornada: o professor Luis Carlos Nascimento da

Rosa, que me ensinou como a filosofia de Marx é a ―filosofia

insuperável de nosso tempo‖ e que a poesia também faz parte da luta de

classes; a professora Sueli Menezes Pereira, que me ensinou os

rudimentos da pesquisa científica e a importância da autonomia na

educação; a professora Selva López Chirico, que, mesmo sendo

uruguaia, ensinava história do Brasil melhor do que qualquer professor

brasileiro, e por isso fez com que eu amasse essa matéria e tudo aquilo

que diz respeito à América Latina; a professora Teresa Cabañas, que me

ensinou a sempre buscar o rigor teórico e metodológico e que as boas

produções no campo do conhecimento não dispensam momentos de

amizade, camaradagem e celebração.

Agradeço, finalmente, à professora Patricia Laura Torriglia pela

orientação recebida e por ter garantido, sem sombra de dúvida, as

melhores condições objetivas para que esta pesquisa pudesse ter sido

realizada.

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Quando em teu colo deitei a cabeça, meu camarada,

a confissão que fiz eu reafirmo -

o que eu te disse e a céu aberto eu reafirmo:

sei bem que sou inquieto

e deixo os outros também assim.

Eu sei que minhas palavras são armas

carregadas de perigo e de morte,

pois eu enfrento a paz e a segurança

e as leis mais enraizadas

para as desenraizar.

E por me haverem todos rejeitado

mais resoluto sou

do que jamais poderia chegar a ser

se todos me aceitassem.

Eu não respeito e nunca respeitei

experiência, conveniência,

nem maiorias, nem o ridículo,

e a ameaça do que chamam de inferno

para mim nada é, ou muito pouco.

Meu camarada querido: eu confesso

que o incitei a ir em frente comigo

e que ainda o incito sem a mínima idéia

de qual venha a ser o nosso destino:

ou se vamos sair vitoriosos,

ou totalmente sufocados e vencidos.

Walt Whitman

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RESUMO

Este trabalho tem o objetivo de analisar os conceitos de

Educação e Política elaborados por István Mészáros de acordo com sua

proposta de levar a efeito uma alternativa sociometabólica viável ao

quadro de crise estrutural pela qual passa a sociedade contemporânea,

dominada amplamente pela assim chamada relação-capital. Para

Mészáros, a atual forma de organização de nossa sociedade – isto é, a

maneira específica pela qual os homens e mulheres regulam o

metabolismo social humano -, controlada pelo capital, é cronicamente

insustentável e, por isso, nos coloca a todos diante de um dilema: ou

assumimos conscientemente as rédeas e os rumos das atividades que

determinam nossas vidas, ou sucumbimos à lógica destrutiva e

barbarizante que configura as relações sociais comandadas globalmente

por tal sistema. Nesse contexto, a alternativa torna-se viável desde que

os grupos interessados na realização de uma comunidade humana

emancipada adotem um projeto político-social que não só incorpore as

formas tradicionais de luta - aquelas vinculadas ao combate que se dá no

âmbito do parlamento e do Estado -, mas que fundamentalmente vá

além delas. A estratégia da ofensiva socialista, preconizada pelo filósofo

húngaro, exige, pois, a formação de mediações coletivas

extraparlamentares que permitam aos produtores associados controlar,

de forma consciente e não antagônica, a atividade produtiva humana, de

modo a se poder ir assim para além do capital - e não apenas do capitalismo e sua forma histórica particular de extração de trabalho

excedente. A educação pode e deve contribuir para tal objetivo, desde

que incorpore esse mesmo espírito crítico e não se limite às ações que se

desenvolvem unicamente no plano institucional e formal. A educação

transformadora é, portanto, segundo Mészáros, aquela que se abre para

se integrar aos movimentos práticos que hoje se insurgem contra o

domínio do capital, a fim de auxiliar, justamente, a formação das

mediações materiais capazes de possibilitar aos produtores livres a

regulação consciente, não antagônica, cooperativa, horizontal e

sustentável do metabolismo social humano.

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ABSTRACT

The following research aims to analyze the concepts of

Education and Politics elaborated by István Mészáros in accordance

with his proposal to conduct a viable sociometabolic alternative to the

current structural crisis in which contemporary society is going on,

dominated largely by the so-called relationship-capital. Mészáros

considers the current form of organization of our society - that is, the

specific manner in which men and women regulate the metabolism of

the human social - is controlled by the capital, being chronically

unsustainable and therefore establishing a dilemma: we either

consciously assume the reigns and direction of activities that determine

our lives, or succumb to the destructive, barbaric logic that configures

the social relations globally ruled by such a system. In this context, the

alternative becomes feasible provided that groups interested in

conducting a human community adopt an emancipated political and

social project that incorporates not only traditional forms of struggle -

those associated with combat that takes place within the parliament and

State - but that fundamentally go beyond. The strategy of the socialist

offensive, advocated by the Hungarian philosopher, demands the

formation of collective mediations that allow extra-member producers to

control, consciously and not antagonistic to human productive activity,

so it could go well beyond the capital - not only of capitalism and its

particular historical form of extraction of surplus labor. Education can

and should contribute to this goal, since it incorporates the same critical

spirit and is not limited to actions that are developed solely on the

institutional and formal. The transformative education is therefore,

according to Mészáros, the one that opens itself to integrate incoming

practical movement against the capital dominance, to assist, in fact, the

formation of material mediations capable of enabling producers to

regulate free consciousness, not antagonistic, cooperative, horizontal

and sustainable human social metabolism.

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SUMÁRIO

1 PARA ENCONTRAR NOVAMENTE O ESPÍRITO DA

REVOLUÇÃO: PALAVRAS À GUISA DE INTRODUÇÃO E

JUSTIFICATIVA PARA ESTE TRABALHO...................................19

2 A ESSÊNCIA HUMANA NÃO É UMA ABSTRAÇÃO, MAS O

CONJUNTO DAS RELAÇÕES SOCIAIS: AS COORDENADAS

TEÓRICAS FUNDAMENTAIS DE UMA TEORIA DA

EDUCAÇÃO TRANSFORMADORA................................................35

3 A TRADIÇÃO QUE OPRIME COMO UM PESADELO E AS

FORMAS DE ENFRENTÁ-LA: PARA ALÉM DO CAPITAL –

RUMO A UMA TEORIA DA TRANSIÇÃO......................................95

4 UM MUNDO A GANHAR: A AUTO-EDUCAÇÃO

PERMANENTE DOS IGUAIS NO PROCESSO DA

EMANCIPAÇÃO HUMANA............................................................189

5 COMO A PEDRA DE UMA FUNDA: UM HOMEM DE

ATITUDE FIRME, VIGOROSA E CERTEIRA.............................249

6 CONLUSÃO: POR UMA EDUCAÇÃO QUE NOS LEVE A UMA

VIDA PLENAMENTE VIVIDA.......................................................263

7 APÊNDICE - COMO RASTROS PELO MAR: COMENTÁRIOS

ACERCA DO MÉTODO DESTA PESQUISA................................287

REFERÊNCIAS.................................................................................313 214

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1 PARA ENCONTRAR NOVAMENTE O ESPÍRITO DA

REVOLUÇÃO: PALAVRAS À GUISA DE INTRODUÇÃO E

JUSTIFICATIVA PARA ESTE TRABALHO

Hago mías las faltas. Siento en mí a cuantos

sufren y canto respirando.

Canto, y canto, y cantando más allá de mis penas

personales, me ensancho.

Gabriel Celaya

...dar coragem aos escravos e horrorizar os

déspotas.

Walt Whitman

Este trabalho é o resultado de uma investigação realizada sobre

os conceitos de educação e política desenvolvidos por István Mészáros

ao longo de sua vasta produção intelectual. Procuramos realizar um

estudo sistemático de toda sua obra publicada em português,

privilegiando os textos em que os referidos conceitos apareciam de

maneira mais articulada e pronunciada, a saber: A teoria da alienação

em Marx, O poder da ideologia – especialmente a sua Introdução de

2004 - e O desafio e o fardo do tempo histórico – onde se encontram

contidos os célebres A educação para além do capital e Socialismo no

século XXI. Não foram de menor importância, contudo, os escritos onde

o filósofo apresentava pontos essenciais de sua teoria social, tais como

Filosofia, ideologia e ciência social, e, sobretudo, Para além do capital: rumo a uma teoria da transição, monumental tentativa de síntese das

contradições do sistema do capital em crise estrutural e abrangente

estratégia política para a luta e a efetivação da ―nova forma histórica‖, a

comunidade dos produtores livremente associados.

Durante o percurso, entrevistas, artigos, ensaios curtos e

informações da vida pessoal do autor também foram de extrema

utilidade para iluminar pontos da teoria de Mészáros que se nos

apresentavam obscuros e mesmo de difícil interpretação. Nesse

contexto, o método da pesquisa também foi baseado nos ensinamentos

do filósofo húngaro. Aqui, foi imprescindível recorrer, além da já citada

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A teoria da alienação em Marx, a A obra de Sartre: busca da liberdade

– ambas consistindo em brilhantes escrutínios críticos sobre a obra dos

dois intérpretes radicais da sociedade burguesa -, bem como ao denso

Estrutura social e formas de consciência: a determinação social do

método, magistral ensaio onde são expostos os fundamentos filosóficos

da dialética marxista, tais como o antigo discípulo de Lukács os

concebe.

Nessa direção, a presente pesquisa se orientou a partir de uma

pergunta fundamental: para István Mészáros, em que deve consistir uma

educação que integre o projeto social e político da ofensiva socialista e

que contribua, desse modo, para o enfrentamento e superação do sistema

do capital, que se apresenta, hoje, para nós, num quadro de profunda

crise estrutural?

O objetivo que perseguimos foi, portanto, o de decifrar a

essência do conceito de educação formulado pelo filósofo no interior de

uma teoria política revolucionária, elaborada da perspectiva da

alternativa hegemônica do trabalho e com vistas à superação do sistema

do capital. Com base nisso, buscamos, pois: analisar a gênese, o

desenvolvimento e a estrutura interna desse conceito de educação;

desvendar os termos essenciais de referência e as categorias de análise

utilizadas pelo autor de Para além do capital; compreender as rupturas,

as continuidades e a especificidade da concepção de educação em

Mészáros; delinear, enfim, os pontos fundamentais de sua teoria social e

política, quais sejam, o sistema do capital, o processo histórico de

configuração de sua crise estrutural e a teoria da ofensiva socialista, que

busca dar conta de orientar as lutas dos trabalhadores do mundo em

direção à emancipação humana.

O resultado de nossos modestos esforços culminou nesta

dissertação cuja estrutura está articulada do seguinte modo: os três

primeiros capítulos – ou seja, os três capítulos seguintes - contêm um

estudo sobre a gênese, a estrutura e o desenvolvimento dos conceitos de

educação e política no pensamento de István Mészáros - o primeiro

deles investiga a obra do filósofo húngaro desde seus escritos da década

de 1960 até o momento imediatamente anterior à publicação de Para além do capital (isto é, 1995), explicitando conceitos-chaves como

alienação, ideologia, Aufhebung, lutas de classes, consciência de classe,

ponto de vista de classe, ciência, capital, capitalismo e Estado, dentre

outros; o segundo consiste numa apresentação dos pontos principais de

Para além do capital, onde o capital é mostrado como sistema de

mediações de segunda ordem que se afirma de forma antagônica sobre

as mediações de primeira ordem da atividade produtiva, e que, em

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virtude de circunstâncias históricas, entra numa situação de crise jamais

vista em seus momentos anteriores, uma crise estrutural, que confronta

a humanidade com a necessidade de elaborar uma alternativa radical e

viável em relação à ordem existente. Também aí se encontra a teoria

política para orientar os revolucionários no sentido da realização da

alternativa visada: a estratégia da ofensiva socialista - ou revolução permanente, termo que o filósofo várias vezes usa para referenciá-la. O

terceiro capítulo, por sua vez, é composto da análise das obras

mészárianas sobre educação e política publicadas no período que

compreende de 1995 até nossos dias.

O quarto capítulo traz uma reflexão sobre alguns episódios

marcantes da vida pessoal do filósofo que puderam, quiçá, ter sido

significativos para a constituição de sua teoria e de sua maneira de ver o

mundo como um todo. O quinto capítulo apresenta, além de uma breve

súmula de toda a investigação realizada, um princípio de exploração de

certos aspectos da teoria de Mészáros. O apêndice, finalmente, é

composto de uma síntese do método utilizado neste trabalho, que foi

baseado nos próprios pressupostos teóricos estabelecidos pelo autor de

Estrutura social e formas de consciência.

*

En piedras y moldejones,

Trabajan grandes y chicos,

Martillando todo el día

Pa‘ que otros se vuelvan ricos.

Atahualpa Yupanqui

Por que é importante estudar hoje Mészáros, sua teoria sobre a

sociedade, a política, a educação, todo um conjunto de formulações

críticas que visa expressar a perspectiva dos proletários,1 principalmente

1 Damos ao conceito de proletários o significado preciso que Mészáros atribui ao termo.

Partindo da compreensão de que o sistema do capital é uma estrutura de controle hierarquicamente estabelecida sobre o metabolismo social, o filósofo húngaro estabelece que

proletário não é somente o empregado da fábrica, mas todo aquele sujeito - empregado ou não

- alijado do controle consciente dos processos sociometabólicos da humanidade. Nas palavras do autor de O desafio e o fardo do tempo histórico: ―As classes operárias industriais

constituem-se, em sua totalidade, de trabalhadores manuais, desde a mineração até os diversos

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aqueles que, nos últimos anos, têm se levantado, em várias partes do

mundo, para protestar contra a ordem vigente e clamar por uma

alternativa radical? Acreditamos que essa escolha não se justifica para

todas as pessoas. A resposta para tal indagação depende, justamente, de

uma tomada de partido em relação à ordem sociometabólica na qual nos

inserimos, com a devida consciência acerca das determinações que

acompanham a perspectiva específica que esse posicionamento envolve.

Sabemos que as últimas décadas foram pródigas em produzir

transformações de cunho social, econômico, político e cultural, que

atingiram todas as nações ao redor do globo, mas que não lograram

eliminar do coração da vida humana a presença de contradições que

cada vez mais se intensificam. Em verdade, vemos, dia após dia, de um

lado, a concentração, o esbanjamento, o luxo, a fartura; de outro, a

miséria, a opressão, o desamparo, o sofrimento. De um lado, tudo; de

outro, nada – ou quase tudo e quase nada, o que, de fato, na prática, dá

no mesmo.

Eis alguns números que comprovam como nossa atual forma de

viver em sociedade materializa antíteses: numa população mundial de

cerca de 6.800 bilhões de pessoas, temos 1,020 bilhão de desnutridos

crônicos, 2 bilhões que não possuem acesso a medicamentos, 884

milhões que não têm acesso à água potável, 924 milhões que estão ―sem

teto‖ ou em moradias precárias, 1,6 bilhão sem eletricidade, 2,5 bilhões

que não possuem sistemas de drenagens ou saneamento, 774 milhões de

adultos analfabetos e ainda 218 milhões de crianças, entre 5 e 17 anos,

que trabalham precariamente em condições de escravidão e em tarefas

perigosas ou humilhantes, como soldados, prostitutas, serventes, na

agricultura, na construção ou indústria têxtil. Além disso, ocorrem 18

milhões de mortes por ano devido à pobreza, a maioria de crianças

menores de cinco anos.2 E tudo dentro de uma conjuntura histórica

ramos da produção industrial. Restringir o agente social da mudança aos trabalhadores manuais

não é obviamente a posição do próprio Marx. Ele estava muito longe de pensar que o conceito

de ‗trabalhador manual‘ proporcionaria uma estrutura adequada de explicação sobre aquilo que uma mudança social radical demanda. Devemos recordar que ele está falando de como, pela

polarização da sociedade, um número cada vez maior de pessoas é proletarizado. Assim, é o

processo de proletarização – inseparável do desdobramento global do capital – que define e em última instância estabelece o problema. Ou seja, a questão é como a maioria esmagadora de

indivíduos cai em uma condição na qual perde todas as possibilidades de controle sobre a sua

vida e, nesse sentido, torna-se proletarizada [grifo nosso]‖ (2007, 70). 2 Todas essas informações que aqui apresentamos foram recolhidas de uma recente

sistematização, a partir de dados das Nações Unidas, feita por Atilio Boron, que, ao final de seu

cáustico artigo, arremata: ―Depois de cinco séculos de existência eis o que o capitalismo tem a oferecer. O que estamos esperando para mudar o sistema? Se a humanidade tem futuro, será

claramente socialista. Com o capitalismo, em compensação, não haverá futuro para ninguém.

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onde, entre 1988 e 2002, os 25% mais pobres da população mundial

reduziram sua participação na renda global de 1,16% para 0,92%,

enquanto que os 10% mais ricos aumentaram suas posses de 64,7% para

71,1% da riqueza produzida em todo o planeta.3

Nem para os ricos e nem para os pobres. A frase de Friedrich Engels e também de Rosa

Luxemburgo, ‗socialismo ou barbárie‘, é hoje mais atual e vigente do que nunca. Nenhuma sociedade sobrevive quando seu impulso vital reside na busca incessante do lucro e seu motor é

a ganância. Mais cedo que tarde provoca a desintegração da vida social, a destruição do meio

ambiente, a decadência política e uma crise moral. Ainda temos tempo, mas já não tanto‖ (2010). 3 Recentemente, esse quadro de desigualdade parece ter se agravado. Segundo o sociólogo

James Petras, em 2008, a classe dominante mundial era composta por 946 multimilionários. A

riqueza total destes havia aumentado 35% entre 2006 e 2008, atingindo a exorbitante marca de US$ 3,5 trilhões, o que equivalia, na ocasião, ao rendimento de 55% das pessoas mais pobres

do planeta. Mais da metade desses multimilionários (523 deles) viviam em apenas três países:

415 nos EUA, 55 na Alemanha e 53 na Rússia. Nesse cenário, a América Latina contribuía com 38 pessoas para o seleto grupo de bem-aventurados. Destes, 20 eram brasileiros e 10,

mexicanos. Conforme Petras, o aumento da riqueza dessas pessoas, verificado entre os dois

anos, proveio ―mais da especulação que se tem registrado nos mercados de capitais, no imobiliário e no comércio de matérias-primas do que de inovações técnicas, de investimentos

em indústrias criadoras de emprego ou de serviços sociais‖ (2008). Ainda que com uma visão

um tanto discutível sobre qual a essência do sistema que nos oprime, o mesmo autor, em artigo mais recente, nos fornece a importante informação de que, mesmo depois de toda a crise

financeira - que tem chacoalhado os países do centro do capitalismo nos últimos tempos -, ―a

partir do primeiro trimestre deste ano [2010], os lucros das empresas dispararam entre vinte a mais de cem por cento (Financial Times, 10/Agosto/2010, p. 7). Na realidade, os lucros das

empresas subiram mais do que antes do início da recessão em 2008 (Money Morning, 31/Março/2010). Contrariamente aos bloggers progressistas as taxas dos lucros estão a subir

em vez de descer, principalmente entre as maiores empresas (Consensus Economics,

12/Agosto/2010). [...] Quando a recessão bateu no fundo temporariamente, os grandes negócios duplicaram a produção com a restante mão-de-obra, intensificando a exploração

(maior produção por trabalhador) e reduziram os custos passando para a classe trabalhadora

uma fatia muito maior dos encargos com os seguros de saúde e com os benefícios de pensões a aquiescência dos responsáveis milionários dos sindicatos. O resultado é que, embora as receitas

tenham diminuído, os lucros subiram e os balancetes melhoraram (Financial Times,

10/Agosto/2010)‖. E acrescenta: ―Enquanto a Exxon-Mobil arrebanhou mais de 100% de aumento de lucros em 2010 e as empresas de automóveis registraram os seus maiores lucros

dos últimos anos, os salários dos trabalhadores e o seu nível de vida diminuíram e os

funcionários públicos sofreram pesados cortes e despedimentos maciços‖ (2010). Tudo isso, finalmente, dentro de um cenário onde, paradoxalmente, os países de capitalismo avançado se

encontram em situação de estagnação, como nos informa o último editorial da Monthly

Review: ―Como observou recentemente Paul Krugman, a economia dos EUA está a experimentar ‗o que parece cada vez mais como um estado permanente de estagnação e alto

desemprego‘ afim à década de 1930 (‗This is Not a Recovery‘, New York Times, August 26,

2010). [...] James Bullard, presidente do Federal Reserve Bank of St. Louis, emitiu um relatório (‗Seven Faces of The Peril‘, Federal Reserve Bank of St. Louis Review, September-

October 2010) indicando que há um perigo de que ‗os EUA e a Europa‘ estarão ‗juntos ao

Japão no pântano [da estagnação]‘. David Wyss, economista chefe da Standard & Poor's, declarou: ‗Penso que há uma possibilidade realista de que os EUA estejam a deslizar para este

padrão tal como o Japão o fez — 10, 20 anos de estagnação‘ (‗U.S. Has 'Realistic Possibility'

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Uma avaliação qualitativa pode auxiliar no complemento desse

quadro que temos diante dos olhos. Todos, ricos e pobres, sofremos os

efeitos de um conjunto de relações sociais criado por nós mesmos e que,

paradoxalmente, nos aprisiona numa dinâmica que se processa sem que

tenhamos a mais mínima possibilidade de controlá-la conscientemente.

Produzimos as coisas e elas nos dominam. Nossa subjetividade se

esvazia para que os produtos do trabalho humano adquiram como que

uma espécie de ―autonomia‖ e ―vontade próprias‖, movimentando-se,

livre e poderosamente, por todos os quadrantes da terra, e usurpando de

nós a chance de fazermos algo semelhante. Parece, pois, que nos

tornarmos as coisas e que elas assumiram o nosso lugar. Diante disso, só

podemos concluir que não são meras medidas governamentais que

devem ser buscadas para remediar nossa condição degradante, mas toda

uma nova maneira de agirmos e nos relacionarmos em sociedade.

No contexto atual, os privilegiados, as classes dominantes, têm

à sua disposição uma quantidade imensa de mercadorias com as quais

podem se entreter bastante e assim driblar, por alguns instantes, a

melancolia que inevitavelmente acomete a quem se percebe numa

situação de cativeiro em relação às possibilidades humanas mais

fundamentais, quais sejam: a capacidade de socialmente nos auto-

determinarmos, de coletivamente nos tornarmos auto-conscientes, de

sermos todos os legítimos senhores de nossos próprios destinos. As

classes trabalhadoras, por sua vez, formais ou informais, assalariados ou

não, homens ou mulheres, que padecem dessa mesma alienação, são

persuadidas no mais das vezes a se entorpecer, quando muito, com as

migalhas que o sistema faculta. Diante disso, nossa opinião é de que é

mais do que urgente a necessidade de despertar desse transe destrutivo e

enfrentar as causas materiais que lhes sustentam a existência.

Do ponto de vista da ordem dominante, o que importa é, frente

à situação catastrófica na qual a humanidade se encontra, achar os meios

capazes de fazer com que o sistema se reequilibre, a fim de atenuar os

efeitos da crise, voltar a produzir lucros e obter o desejado controle do

processo produtivo e das classes subalternas - que devem ser sempre

mantidas paralisadas, fragmentadas e entorpecidas. Da perspectiva,

criticamente adotada, do proletariado, ao contrário, o decisivo é

conceber e realizar uma alternativa viável ao domínio do capital,

of Stagnation‘, Bloomberg.com, August 24, 2010). Analistas econômicos estão agora a discutir

abertamente a probabilidade de que todo o mundo industrializado possa ser ameaçado por uma ‗década perdida‘ ou duas. (‗Industrialised World's 'Lost Decade' Risk,‘ AFP, September 1,

2010)‖ (2010).

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alternativa essa que se materialize numa forma de organização social

qualitativamente diferente, na qual os produtores livremente associados

sejam os responsáveis reais pela regulação do sociometabolismo

humano. Estamos convencidos de que é para estes, e por tal motivo, que

se justifica o estudo das teorias sobre as lutas de classes e sobre a

transformação revolucionária do mundo, onde a obra de Mészáros

certamente se enquadra.

De nossa parte, o que pretendemos, com a presente

investigação, é dar, justamente, uma singela contribuição para as lutas

de todos aqueles que, em nossa época histórica, se recusam a sucumbir

diante das engrenagens infernais do sistema do capital e anseiam por

uma vida emancipada, uma vida melhor, numa palavra, uma vida

realmente digna de ser vivida: livres das determinações fetichistas de

um sistema impessoal de exploração de trabalho excedente e com tempo

e condições necessárias para a fruição das múltiplas potencialidades

humanas, em todos os domínios e sentidos.

*

Porque hay olvidos que queman

Y hay memorias que engrandecen.

Alfredo Zitarrosa

Nesse contexto, acreditamos que é preciso colocar e refletir

também acerca de um problema fundamental: aquele que tange à

possibilidade da revolução em nossos tempos: é possível, afinal, a

transformação radical do sistema do capital rumo à comunidade humana emancipada? É, de fato, crível tal proposta? O convite à

insubordinação, à resistência, à insurgência e à revolução, que

encontramos nos escritos de Mészáros, poderá tocar os corações e as

mentes daqueles que permanecem sob o jugo do capital? Diante, enfim,

de tantas derrotas históricas por parte das classes trabalhadoras, ainda se justifica um estudo como este e seu conseqüente posicionamento? Para

nós, como não há nada na materialidade que assegure a certeza absoluta

sobre o sucesso de nossos esforços, trata-se aqui de uma questão de

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apostar.4

Esta aposta que reivindicamos nada tem a ver com qualquer tipo

de irracionalismo, visto que não vira as costas para a ciência

revolucionária, nem diminui sua importância. Devemos reconhecer,

contudo, que qualquer atitude crítica se encontra imbuída de um núcleo

irredutível de ―não-saber‖, uma incerteza que está sempre presente em

nossas práticas político-sociais. A aposta revolucionária que assumimos

envolve, pois, a aceitação dessa incerteza e de que toda ação envolve

risco, perigo de fracasso e esperança de sucesso. Por isso mesmo, não

pode ser convertida em objeto de ―prova‖ ou demonstração fatual por

parte de algum experimento. Ela é decidida tão somente, pois, na

própria ação comum, na práxis coletiva. Em nosso caso, essa aposta -

que não despreza a teoria, como veremos a seguir – sobre a

possibilidade da revolução socialista, está calcada na consciência da

história de lutas das classes trabalhadoras e dos povos oprimidos do

mundo, especificamente os de nosso continente.

Ora, nesse sentido, para nós, da classe trabalhadora latino-

americana, o ano de 2010 se reveste de um significado muito especial. É

o ano do bicentenário do início da independência da Venezuela, que teve

como seu protagonista mais célebre o grande Simon Bolívar, cujos

ideais de liberdade, justiça, igualdade, democracia, integração,

confederação e auto-determinação se espalharam pelo continente, não só

naquele período histórico imediato, mas através dos séculos seguintes,

estimulando inúmeros movimentos libertadores e revolucionários. Nesse

contexto, 2010 também é o ano que marca o centenário do começo da

Revolução Mexicana, precursora igualmente de profundas e variadas

transformações nas décadas posteriores e cuja influência histórica em

nosso continente só seria suplantada pela Revolução Cubana (1959).

É importante ter sempre em mente tais eventos para que nunca

percamos de vista a longa tradição de lutas, contra os mais variados

tipos de opressão, realizadas na América Latina, ao longo de toda sua

história. A recordação da experiência dos combates efetuados pelas

gerações mortas do passado pode insuflar ânimo no coração dos vivos.

Mais ainda: a compreensão crítica desses eventos permite que se lance

luzes inestimáveis sobre o terreno onde são travados os embates sociais

e políticos no presente.

4 Este argumento – a aposta revolucionária - foi defendido anteriormente por Lucien

Goldmann em suas obras filosóficas, como nos informam Löwy e Naïr (2008). Goldmann – autor em relação ao qual, para esta questão, nos baseamos - foi um querido amigo de Mészáros,

segundo as palavras do próprio filósofo húngaro.

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A memória dos feitos de Bolívar inspirou, dentre outros, José

Martí no desenvolvimento do conceito da Nossa América5 e no

respectivo movimento pela independência de Cuba, e firma raízes em

nossos dias, como podemos verificar, nos movimentos que, em alguns

países latino-americanos, levantam de novo a bandeira do bolivarismo.

A lembrança vívida dos acontecimentos da Revolução Mexicana – que,

apesar de ter se consolidado, anos depois, como revolução burguesa,

chegou a ter, nos seus períodos iniciais, ―uma razoável conotação

socialista‖6 - serviu para alimentar o ímpeto rebelde da organização

guerrilheira Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que, em

1º de janeiro de 1994, nas montanhas de Chiapas, no sul do México, deu

início a um levante armado que se configurou como uma das ―rebeliões

camponesas mais originais dos anos 90‖.7

São eventos profundamente marcantes da complexa e rica

história de lutas sociais de nosso continente, aos quais poderiam ser

somados muitos outros, como por exemplo: a Insurreição Salvadorenha

de 1932, que tinha por objetivo realizar uma revolução socialista

naquele país centro-americano; a Revolução Guatemalteca, de 1944-54,

que foi, de início, burguesa em seus objetivos, mas que avançou, em

5

Como explica Ianni, ―Nossa América faz lembrar algumas preocupações que já estavam no

pensamento de Bolívar. Tratava-se de emancipar a América Latina, compreendendo o continente e as ilhas, de toda dominação européia e norte-americana. Daí a proposta de liga,

federação, congresso, que tanto preocupou Bolívar e alguns outros libertadores. Desde os

primeiros momentos da formação dos estados nacionais compreendia-se que a associação de nações era um caminho fundamental para fazer face às pressões dos interesses adversos aos

dos povos latino-americanos‖ (1993, 24). 6

Tal é o que nos diz Ianni, que, comentando sobre o caráter da Revolução Mexicana em seus

primeiros anos, afirma o seguinte: ―Para os zapatistas, a revolução era inseparável da luta pela terra, principalmente a reconquista da terra perdida ao longo do século XIX, pela atuação das

companhias de demarcação e colonização. O Plano de Ayala, de 25 de novembro de 1911,

estabelece a expropriação de fazendeiros, científicos (porfiristas) e caciques, ou seja, os beneficiários da atuação das companhias de demarcação e colonização; estabelece que as terras

e águas que tenham sido usurpadas dos camponeses, à sombra da justiça venal, serão

restituídas aos seus proprietários originais; que os camponeses manterão essa posse com as armas nas mãos, prevenidos contra a reação dos opressores fazendeiros, científicos ou

caciques. O lema ‗Terra e Liberdade‘, surgido em 1916, era zapatista‖ (1985, 19). 7 Esta conclusão é de Löwy, que nos esclarece acerca dos ideais que alimentam o EZLN com

estas palavras: ―É verdade que o levante zapatista de janeiro de 1994 era orientado pelo

protesto à opressão secular dos indígenas maias pelas autoridades e pelos proprietários de

terras, mas ele estava também diretamente motivado pelas medidas neoliberais de modernização implementadas pelo governo federal: a privatização das comunidades rurais

(ejidos), consagradas pela Revolução Mexicana, e o acordo de livre-comércio com os EUA

que, abrindo o México ao milho transgênico das empresas norte-americanas de agronegócios, ameaçava de ruína a cultura tradicional do milho das comunidades indígenas de base, há

milênios, de sua identidade cultural‖ (2002, 34).

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seguida, num caminho que ―esboçava a possibilidade socialista‖;8 a

Revolução Boliviana, de 1952-64, que teve também suas ―conotações

socialistas‖;9 a Revolução Cubana, de 1959;

10 a Revolução Chilena, de

1970-73, com grande participação de operários e camponeses, que

procurou implementar profundas transformações de cunho socialista; a

Revolução Nicaragüense, de 1979-90, que iniciou um programa de

reconstrução nacional, mas que depois de mais de uma década de

ataques constantes levados a cabo pelas forças auxiliadas pelos EUA,

enfraqueceu-se e foi derrotada; os inúmeros movimentos de luta armada

ou não que surgiram na esteira da Revolução Cubana, imbuídos do

propósito de efetuar uma crítica prática radical das sociedades latino-

americanas, como a Ação de Libertação Nacional (ALN) e o Movimento

Revolucionário 8 de outubro (MR-8), no Brasil; o Movimento de

Libertação Nacional Tupamaros, no Uruguai; o Movimento Esquerda

Revolucionária (sigla em espanhol: MIR), no Chile; o Partido

Revolucionário dos Trabalhadores-Exército do Povo (PRT-ERP), na

Argentina; a Teologia da Libertação – conduzida por padres e bispos da

Igreja Católica - em toda a América Latina, que lutou bravamente contra

as ditaduras na América Latina; o Movimento dos Trabalhadores Rurais

Sem-Terra (MST), ―sem dúvida, o movimento social mais importante e

combativo do Brasil hoje‖;11

o já mencionado EZLN, no México, e suas

―conferências intergalácticas‖12

contra o neoliberalismo e pela

humanidade; a ascensão à presidência de Hugo Chávez Frías, na

Venezuela, e sua tentativa de resgate dos ideais bolivarianos; de Evo

Morales, na Bolívia, liderando os inúmeros movimentos sociais,

indígenas e camponeses, que se desenvolveram neste país ao longo dos

anos 2000, reunidos em torno do Movimento para o Socialismo (sigla

8

Como explica Ianni: ―Na Guatemala, o processo iniciou-se como luta democrática e foi se

convertendo em um movimento anti-oligárquico e anti-imperialista. Esboçou algo como a possibilidade socialista. Em 1954, no entanto, o governo Arbenz foi deposto por um

movimento mercenário organizado e financiado pelo governo dos Estados Unidos e a empresa

norte-americana United Fruit Company, cujos interesses estavam sendo contrariados pela política nacional levada a efeito pelos governos reformistas de Arévalo e Arbenz‖ (1985, 21-2). 9

Conforme Ianni (ibid., 22). 10

Revolução especialmente valorosa, mas que hoje, infelizmente, parece estar sendo vencida

pelas forças da restauração capitalista, como nos mostra Mario Maestri (2010), em oportuno artigo. 11

Como nos informam Löwy e Besancenot, que ainda comentam que: ―Seu objetivo [do MST]

sempre foi a reforma agrária, mas também uma mudança radical do modelo de

desenvolvimento neoliberal do país e o advento de uma sociedade mais justa, ‗sem explorados nem exploradores‘‖ (2009, 100). 12

Este é um título propositalmente irônico, como assinala Löwy (2003).

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em espanhol: MAS); e, sobretudo, o movimento altermundista, que se

concentrou originalmente no Fórum Social Mundial, realizado em Porto

Alegre, em janeiro de 2001, que se espalhou pelo mundo, e que é, hoje,

como afirmam Löwy e Besancenot (2009, 118),

[...] sem dúvida o mais importante fenômeno de

resistência anti-sistêmico do início do século XXI.

Essa vasta nebulosa, ―movimento dos

movimentos‖, toma forma visível por ocasião dos

Fóruns Sociais – regionais ou mundiais – e das

grandes manifestações de protesto contra a OMC,

o G-8 ou a guerra imperialista no Iraque. Ampla

rede descentralizada, ela é múltipla, diversa e

heterogênea, associando sindicatos operários e

movimentos camponeses, ONGs e organizações

indígenas, movimentos de mulheres e associações

ecológicas, intelectuais e jovens ativistas. Longe

de ser uma fraqueza, sua pluralidade é uma das

fontes da força, crescente e em expansão, do

movimento.

Esses movimentos todos – e muitos outros, que não listamos

aqui - surgiram e continuarão a surgir em nosso continente – e também

ao redor do planeta – como expressão da necessidade radical de

superação de uma forma de organização social profundamente

antagônica que, em virtude da miríade de contradições sobre a qual se

assenta – alienação, guerras, desemprego, miséria, fome, devastação

ecológica, discriminação, opressão de gênero, degradação e destruição

das relações sociais mais comezinhas, dentre outras coisas -, condena a

maioria esmagadora de seus membros a existirem, desgraçadamente,

sob a condição de serem ―humilhados, escravizados, abandonados,

desprezíveis‖.13

É preciso, pois, tomar partido nessa história, assimilá-la

criticamente, incorporar os ímpetos rebeldes e revolucionários de todos

aqueles que no passado lutaram e sucumbiram diante dos processos por

meio dos quais um terrível sistema de opressão se afirmou em nosso

continente e no mundo inteiro.

Ora, sabemos que Marx desdenhou, certa vez, das revoluções

burguesas que, para chegarem aos seus fins, corporificaram o espírito de

grandes acontecimentos históricos anteriores, imitando alguns de seus

13

Para retomar as palavras de Marx (2005), em sua Crítica da filosofia do direito de Hegel –

Introdução.

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ideais, palavras de ordem, etc., o que acabava resultando sempre, na

visão do filósofo alemão, em uma farsa daquilo que outrora havia

desembocado em tragédia. Assim, por exemplo, os revolucionários

franceses de 1789 buscavam desempenhar ―a tarefa de sua época, a

tarefa de libertar e instaurar a moderna sociedade burguesa, em trajes

romanos e com frases romanas‖. Por que, afinal, se empenhavam em

resolver seus intentos a partir de tais ―conjurações de mortos da história

do mundo‖?

A ressurreição dos mortos tinha, portanto, a

finalidade de glorificar as novas lutas e não a de

parodiar as passadas; de engrandecer na

imaginação a tarefa a cumprir, e não de fugir de

sua solução na realidade; de encontrar novamente

o espírito da revolução e não de fazer seu espectro

caminhar outra vez. (MARX, 1978, 330)

E com a farsa assim configurada, e o seu objetivo

conseqüentemente atingido, dispensavam os fantasmas que haviam

velado durante certo tempo o berço daquela formação social nascente.

Em contrapartida, para os revolucionários proletários do século XIX, o

autor de O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte (ibid., 331)

recomendava que era preciso fazer diferente:

A revolução social do século XIX não pode tirar

sua poesia do passado, e sim do futuro. Não pode

iniciar sua tarefa enquanto não se despojar de toda

veneração supersticiosa do passado. As revoluções

anteriores tiveram que lançar mão de recordações

da história antiga para se iludirem quanto ao

próprio conteúdo. A fim de alcançar seu próprio

conteúdo, a revolução do século XIX deve deixar

que os mortos enterrem seus mortos.

Acreditamos, contudo, que alguma poesia é necessário que

tiremos do passado, sem, evidentemente, cairmos no equívoco de

permitir que as revoluções do século XXI sejam envolvidas por

―venerações supersticiosas‖ ou mistificações acerca de si mesmas e das

tarefas a serem cumpridas. Se é verdade que o futuro deve ser elemento

precípuo a entrar na medida da nossa práxis revolucionária, não é menos

certo que algo proveniente do passado pode por nós ser aproveitado.

Aqui, estamos de acordo com Mészáros (2009, 95), quando afirma que

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não poderemos ter êxito em nos convertermos em executores

testamentários dos movimentos progressistas que vieram antes de nós

se não construirmos conscientemente sobre a

herança que eles nos legaram algo como uma

tarefa para o futuro redefinida no presente, de

acordo com as circunstâncias vigentes [grifos

nossos].

Por isso, a importância, para nós, da memória das lutas sociais

travadas pelo mundo e, em especial, na América Latina: indispensável

para que os explorados de hoje não tomem o presente como cristalizado,

para que percebam a história como transformação constante, para que

adquiram o orgulho necessário para se reerguer da genuflexão realizada

frente às exigências do capital, para encontrar, enfim, as energias

requeridas para que se possa materializar mais uma vez o espírito da revolução socialista diante dos desafios de nossa era.

*

si no creyera en quien me escucha

si no creyera en lo que duele

si no creyera en lo que quede

si no creyera en lo que lucha

que cosa fuera?

que cosa fuera la maza sin cantera?

un amasijo hecho de cuerdas y tendones

un revoltijo de carne con madera

Silvio Rodriguez

Como dissemos acima, não há nada na materialidade que

garanta que a superação do capital de fato ocorrerá. Assim como não há

nada que objetivamente assegure o sucesso de nossos esforços em

auxiliar na generalização deste pensamento crítico que compõe a teoria

de Mészáros, com vistas a ajudar na organização e na conscientização

das classes trabalhadoras, no sentido de que novos embates contra o

sistema possam despontar no horizonte do século XXI. É preciso,

entretanto, não se deixar intimidar por isso e continuar a apostar

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criticamente.

Por certo, não ignoramos o fato de que vivemos tempos difíceis.

Experimentamos, hoje, principalmente em nosso país, uma conjuntura

onde predominam medidas políticas de administração e funcionalização

da pobreza14

com a conseqüente perda momentânea da capacidade das

14

Do ponto de vista sócio-econômico, essas políticas apenas reforçam, em nosso continente, a

condição apontada por Francisco de Oliveira, de que os países da América Latina se apresentam, no século XXI, como uma articulação sui generis de tremendas desigualdades, tais

como os ornitorrincos: ―uma combinação esdrúxula de altas rendas, consumo ostentatório,

acumulação de capital comandada pela revolução molecular-digital, pobreza extrema,

lumpesinato moderno, avassalamento pelo capital financeiro, incapacidade técnico-científica‖

(2004, 115), dentre outras coisas. Em um ensaio específico sobre a realidade brasileira,

Oliveira (2003) demonstrou como o nosso país, nesse cenário, configura um caso específico de ornitorrinco. Mais tarde (2006), ainda tomando como foco de análise a realidade brasileira, o

mesmo sociólogo explicitou, de forma bastante convincente, como, nos primeiros anos da

administração petista – que se apresentava então como um projeto alternativo à realidade estabelecida –, se efetivou um conjunto de práticas continuistas em relação aos governos

anteriores. Em um texto ainda mais recente (2010), no qual discordou radicalmente da retórica

mistificadora veiculada pelos esbirros ideológicos do governo Lula, Oliveira colocou em questão e chegou mesmo a negar que a tão propalada ―diminuição da desigualdade‖ tenha de

fato ocorrido entre os anos de 2002 a 2010. Do mesmo sociólogo, finalmente, ainda temos uma

entrevista, concedida logo após o primeiro turno da última eleição presidencial, onde afirmou que o governo Lula foi ―um governo muito privatista, mais até do que o do FHC. FHC

privatizou as empresas; Lula, sobre essa tendência, empurrou o Brasil para o campo do

capitalismo monopolista de Estado, no qual não há avanço e nunca se produziram bons resultados em política interna‖ (2010 b). Em se tratando ainda da realidade brasileira, vale a

pena mencionar também a análise de outro crítico arguto, José Paulo Netto, para quem o governo petista meramente ―roubou o programa econômico-social da oposição‖, liderada pelo

PSDB, para assim tão somente reproduzir a estrutura de dominação de classe e perpetuar-se no

comando do Estado por tempo indefinido. Nas palavras de Netto: ―Mantidos tais parâmetros, não pode surpreender que, nos oito anos da presidência de Lula da Silva, o sistema bancário

brasileiro tenha registrado seus mais altos ganhos, que o agro-negócio (‗agro-business‘) tenha

se convertido no modelo do desenvolvimento agrícola brasileiro, que a Bolsa de Valores tenha experimentado o que a grande mídia designou como uma ‗era de ouro‘ (a Bolsa de Valores de

São Paulo/BOVESPA subiu 523% em oito anos, com o maior ganho entre os 12 principais

mercados do mundo), que os possuidores (os rentistas, nacionais e estrangeiros) de títulos da dívida pública tenham recebido pontualmente os maiores juros em vigor no mundo e que as

agências internacionais que avaliam países ‗seguros para investimentos‘ lhe tenham conferido

‗boas notas‘ e que economistas a serviço do grande capital (nacional e transnacional) considerem que o tripé da economia brasileira – precisamente a fórmula defendida pelo FMI e

o Banco Mundial: o superávit primário para o pagamento de juros, as metas da inflação e o

câmbio flutuante – está ‗consolidado‘. Igualmente, não pode surpreender o apoio massivo das camadas populares: houve uma discreta recuperação do salário mínimo e, nos últimos três

anos, uma ampliação do crédito que estimulou fortemente o mercado interno, ademais de uma

política assistencialista que nenhum dos seus opositores admite mudar (seja por seu baixo custo, seja pelo grau de legitimação que tem conferido ao governo). Em suma: não pode

surpreender a existência, hoje, no Brasil, de algo como o lulismo‖ (2010, 26-7). Ainda sobre o

Brasil, é lícito mencionar, por fim, uma avaliação feita a partir de uma experiência vivida por dentro do governo petista, de Ildo Sauer, professor da USP e ex-diretor de Petróleo e Gás da

Petrobrás na gestão de Lula até 2007, que, numa entrevista recente, afirmou o seguinte: ―a

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forças do trabalho de se organizar e propor alternativas radicais.

Contudo, analisando-se a gravidade da crise vivida atualmente pela

sociedade burguesa, juntamente com o histórico de lutas por

emancipação dos oprimidos do mundo, que sempre, apesar das derrotas

e dificuldades, insistiram em se levantar do chão, com as energias

refeitas, e atentar de novo contra a ordem estabelecida, não podemos

considerar crível que outros embates de grande envergadura possam vir

a ocorrer novamente na história?

Sobre a magnitude da crise do capital e os caminhos

alternativos que em virtude dela se abrem para a humanidade, Mészáros

(2009, 48) afirmou, certa vez, que

Como todos sabemos pela história, jamais um

status quo durou indefinidamente; nem mesmo o

mais parcial e localizado. A permanência de um

status quo global, dadas as imensas forças

dinâmicas, necessariamente expansivas, que

envolve, é uma contradição em termos: um

absurdo que deveria ser visível até mesmo para o

mais míope especialista em teoria dos jogos. Num

mundo constituído por uma multiplicidade de

sistemas sociais conflitantes e em mútua interação

em contraste com o mundo fantasioso das

agenda do PSDB - a chamada social-democracia que na prática implementou todos os cânones

do neoliberalismo hegemônico dos anos 90 - foi seqüestrada pelo Lula. Lula seqüestrou a

agenda da burguesia, mantendo e ampliando os espaços abertos pelo governo tucano, e ao mesmo tempo se manteve depositário da esperança de um processo longamente construído. [...]

No limite do pouco que PT e PSDB expressam programaticamente, o PT em tese é social-

democrata, mas muito mais operador da máquina – levou-nos a um discurso um pouco mais populista contra outro um pouco mais elitista, com pequenas nuances na forma de abordar o

Estado. Não vejo muita diferença entre privatizar uma empresa ou instrumentalizá-la em favor

dos interesses privados. [...] De modo que esse é o quadro resultante da longa metamorfose do projeto que nasceu socialista e progressivamente virou gestor dos interesses da burguesia

nacional, do setor financeiro, industrial, do setor contratista de obras públicas, expressos no

Brasil e no exterior. [...] Para definir, o governo Lula foi aquele que consolidou as relações sociais de existência e de trabalho capitalistas com a hegemonia capitalista no país‖ (2010). A

política lulista, portanto, perpetuou a vigência do ornitorrinco no Brasil. Surfou na onda do

neoliberalismo – manteve sua estrutura básica – numa conjuntura favorável ao crescimento econômico do país, proporcionou altos vencimentos à burguesia, instrumentalizou o Estado a

favor da iniciativa privada, desmobilizou os movimentos sociais, distribuiu algumas migalhas

aos pobres, fomentou o consumo entorpecendo assim as classes trabalhadoras – ao mesmo tempo em que as mantinha fragmentadas - e, por intermédio de um uso muito hábil de

estratégias de comunicação – usando massivamente, dentre outros meios, a internet – construiu

um mito calcado na ideologia de que ―nunca na história deste país‖ um governante fez tanto para o povo.

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escaladas e desescaladas dos tabuleiros de xadrez,

o precário status quo global caminha por certo

para a ruptura. A questão não é ―se haverá ruptura

ou não‖, mas ―por quais meios‖ vão ocorrer. Ele

se romperá por meios militares devastadores ou

haverá válvulas sociais adequadas para o alívio

das crescentes tensões sociais, que hoje estão em

evidência mesmo nos cantos mais remotos de

nosso espaço social global?

Sem ilusões otimistas quanto ao caráter dos obstáculos que

temos de enfrentar e das tarefas a serem cumpridas para vencermos a

barbárie e a catástrofe capitalistas, nossa aposta – com o conseqüente

conjunto de ações que tal escolha deve acarretar - recai sobre a segunda

possibilidade.

Portanto, com base na consciência da crise estrutural do sistema

do capital, na história das lutas sociais - principalmente as realizadas

neste ―cantinho do mundo‖ que é a América Latina -, e no fato de que a

história é um processo aberto – no sentido de que o destino das

coletividades não está definido de antemão -, nossa aposta é de que

novas revoluções podem vir a acontecer. Apostamos, pois, no

fortalecimento dos movimentos de luta que, de tempos em tempos, têm

surgido, na possibilidade da emancipação humana e no fato de que a

teoria política de István Mészáros – dentro da qual está contida a sua

concepção de educação – terá capacidade para auxiliar nos combates

vindouros a favor dos trabalhadores.

Nesse contexto, convidamos à atitude semelhante todos aqueles

que cultivam criticamente a esperança de uma comunidade humana na

qual se materialize, como nas palavras do poeta,

uma pátria sem fronteiras, [...]

uma terra sem bandeiras,

sem igrejas nem quartéis, [...]

um jeito só de viver,

mas nesse jeito a variedade,

a multiplicidade toda

que há dentro de cada um.

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2 A ESSÊNCIA HUMANA NÃO É UMA ABSTRAÇÃO, MAS O

CONJUNTO DAS RELAÇÕES SOCIAIS: AS COORDENADAS

TEÓRICAS FUNDAMENTAIS DE UMA TEORIA DA

EDUCAÇÃO TRANSFORMADORA

Subiu a construção como se fosse máquina

Ergueu no patamar quatro paredes sólidas

Tijolo com tijolo num desenho mágico

Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Chico Buarque

Era ele que erguia casas

Onde antes só havia chão.

Como um pássaro sem asas

Ele subia com as casas

Que lhe brotavam da mão.

Mas tudo desconhecia

De sua grande missão.

Vinícius de Moraes

A primeira obra importante de Mészáros onde os temas da

política e da educação são tratados em conjunto e de forma privilegiada

é A teoria da alienação em Marx.15

Nesse livro, ambas as atividades são

entendidas pelo filósofo como mediações fundamentais e capazes de

auxiliar no movimento de superação da alienação. Cumpre, pois, em

primeiro lugar, compreender em que consiste tal fenômeno.

Em A teoria da alienação... - um estudo centrado nos

Manuscritos econômico-filosóficos, de Marx, de 1844 - a alienação é

definida, em suas características gerais, logo na introdução. Aí, são

explicitadas brevemente as suas quatro dimensões principais. Para o

filósofo alemão, explica Mészáros, tal fenômeno significa: 1) que o

homem está alienado da natureza; 2) que o homem está alienado de si mesmo (isto é, da sua própria atividade); 3) que o homem está alienado

do seu ―ser genérico‖ (isto é, de seu ser como membro da espécie

15

Este livro foi escrito, como Mészáros (2002) nos informa, entre 1959 e 1969, sendo

publicado em 1970. No Brasil, apareceu primeiramente num lançamento da Editora Zahar, em 1979, com o título Marx: a teoria da alienação. A edição de que nos servimos aqui é A teoria

da alienação em Marx (São Paulo: Boitempo, 2006).

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humana);16

4) que o homem está alienado do homem (isto é, dos outros

homens).17

A primeira dessas características ―expressa a relação do

trabalhador com o produto de seu trabalho, que é ao mesmo tempo,

segundo Marx, sua relação com o mundo sensível exterior, com os

objetos da natureza‖ (ibid., 20); a segunda característica está relacionada

com o ato de produção no interior do processo de trabalho, ―isto é, a

relação do trabalhador com sua própria atividade como uma atividade

alheia que não lhe oferece satisfação em si e por si mesma, mas apenas

pelo ato de vendê-la a outra pessoa‖ (ibid., 20); o terceiro aspecto diz

respeito ao fato de que, na alienação, o homem se vê separado de tudo

aquilo que se constitui enquanto ―objetivação da vida da espécie

humana‖ - tudo que diz respeito a essas objetivações, que não são

16

Ser genérico (em alemão: Gattungwessen) é definido por Mészáros da seguinte maneira:

―Um ser que tem consciência da espécie a que pertence, ou, dito de outro modo, um ser cuja essência não coincide diretamente com sua individualidade. O homem é o único ser que pode

ter uma tal ‗consciência da espécie‘ – tanto subjetivamente, em sua percepção consciente da

espécie a que pertence, como nas formas objetivadas dessa ‗consciência da espécie‘, da indústria e às instituições e às obras de arte – e assim ele é o único ‗ser genérico‘‖ (2006, 80). 17

Diferentemente de alguns autores – como, por exemplo, Iasi (2007) - que, ao discutirem os

Manuscritos econômico-filosóficos, apresentam três aspectos da alienação (em relação à

natureza; em relação à atividade humana e em relação à espécie), para o filósofo húngaro, como vimos, trata-se de quatro níveis - incluindo-se o de que ―o homem está alienado do

homem (dos outros homens)‖ (2006, 20). Em Marx, lemos o seguinte: ―Já que o trabalho alienado aliena a natureza do homem, aliena o homem de si mesmo, o seu papel ativo, a sua

atividade fundamental, aliena do mesmo modo o homem a respeito da espécie; transforma a

vida genérica em meio da vida individual. [...] Uma implicação imediata da alienação do homem a respeito do produto do seu trabalho, da sua vida genérica, é a alienação do homem

em relação ao homem. Quando o homem se contrapõe a si mesmo, entra do mesmo modo em

oposição com os outros homens. O que se constata na relação do homem com o seu trabalho, com o produto de seu trabalho e consigo mesmo, constata-se também com a relação do homem

com os outros homens, bem como com o trabalho e com o objeto do trabalho dos outros

homens. De forma geral, a afirmação de que o homem se encontra alienado da sua vida genérica significa que um homem está alienado dos outros, e que cada um dos outros se

encontra do mesmo modo alienado da vida humana‖ (2006, 116-8). Possivelmente, esta

passagem do célebre manuscrito pode dar margem a interpretações diferentes. Vale a pena ler, nesse contexto, a maneira como o filósofo húngaro justifica a sua distinção: ―A terceira

característica está implícita nas duas primeiras, sendo expressão delas em termos de relações

humanas, como também o é a quarta característica anteriormente mencionada. Porém, enquanto ao formular a terceira característica Marx levou em conta os efeitos da alienação do

trabalho – tanto como ‗estranhamento da coisa‘ quanto como ‗auto-estranhamento‘ – com

respeito à relação do homem com a humanidade em geral (isto é, a alienação da ‗condição humana‘ no curso do seu rebaixamento por meio de processos capitalistas), na quarta ele as

está considerando tendo em vista a relação do homem com outros homens. [...] Assim, o

conceito de alienação de Marx compreende as manifestações do ‗estranhamento do homem em relação à natureza e a si mesmo‘, de um lado, e as expressões desse processo na relação entre

homem-humanidade e homem e homem, de outro‖ (2006, 20-1).

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meramente objetos, mas relações humanas, passa a se constituir como

meio para a existência individual do homem; a quarta característica,

finalmente, diz respeito ao ―estranhamento‖ do homem com os outros

homens tomados individualmente.

A alienação é essa condição específica na qual os homens estão

apartados, estranhados e compondo um fortíssimo antagonismo em

relação à natureza, à sua própria atividade, à humanidade em geral (e as

suas produções históricas) e aos outros homens particulares. Nessa

situação, o mundo sensível exterior, a atividade social humana, o ser

genérico e os indivíduos sociais estão em oposição ao homem, são

tomados por ele como meios para a realização dos seus fins individuais,

sendo que ele também se comporta como objeto para as intenções

egoístas dos seus semelhantes.

Mas o que é que produz a alienação? Mészáros, em

concordância com a teorização de Marx, explica que isso se origina a

partir de um certo tipo de organização da produção, de uma forma

específica de efetivação da atividade produtiva. Numa palavra, o

fundamento da alienação se encontra no trabalho alienado. Assim nos

explica o filósofo húngaro (ibid., 78):

O ponto de convergência dos aspectos

heterogêneos da alienação é a noção de ―trabalho‖

(Arbeit). Nos Manuscritos de 1844, o trabalho é

considerado tanto em sua acepção geral – como

―atividade produtiva‖: a determinação ontológica

fundamental da ―humanidade‖ (―menschliches

Dasein‖, isto é, o modo realmente humano de

existência) – como em sua acepção particular, na

forma da ―divisão do trabalho‖ capitalista. É nesta

última forma – a atividade estruturada em moldes

capitalistas – que o ―trabalho‖ é a base de toda a

alienação.

Eis, então, o ponto central da argumentação de Mészáros: é um

determinado modo de organização do trabalho que dá origem à

alienação. Mas o que é o trabalho? Na visão de Marx, o trabalho é

composto de um conjunto determinado de mediações que os homens estabelecem entre si e nas suas relações de intercâmbio com a natureza.

Mas há que se fazer uma diferenciação entre os tipos de mediação

existentes. Elas se dividem, diz o filósofo húngaro, em ―de primeira

ordem‖ e ―de segunda ordem‖. As da primeira modalidade consistem,

grosso modo, na relação de intercâmbio fundamental que os homens

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travam com a natureza no processo de produção da sua vida social. São

invariáveis conforme o tempo e o lugar e constituem-se na condição sine

qua non de toda sociabilidade humana. As segundas, ao contrário, são

criadas historicamente e variam conforme o contexto em que se inserem.

A alienação é produzida quando um tipo específico de mediações de

segunda ordem – criadas historicamente pela atividade dos homens – se

impõe, subjuga e controla as mediações de primeira ordem. As

mediações de segunda ordem específicas do capitalismo que Marx

identifica nos Manuscritos econômicos-filosóficos são: a propriedade

privada, o intercâmbio e a divisão do trabalho capitalistas.

Acompanhemos, pois, a explicação detalhada que nos dá Mészáros

(ibid., 78):

―Atividade‖ (Tätigkeit), ―divisão do trabalho‖

(Teilung der Arbeit), ―intercâmbio‖ (Austausch) e

―propriedade privada‖ (Privateigentum) são os

conceitos essenciais dessa abordagem da

problemática da alienação. O ideal de uma

―transcendência positiva‖ da alienação é

formulado como uma superação sócio-histórica

necessária das ―mediações‖: propriedade

privada – intercâmbio – divisão do trabalho

que se interpõem entre o homem e sua atividade e

o impedem de se realizar em seu trabalho, no

exercício de suas capacidades produtivas

(criativas), e na apropriação humana dos produtos

de sua atividade.

A crítica que Marx faz da alienação é, portanto,

formulada como uma rejeição dessas mediações.

É vitalmente importante ressaltar, quanto a isso,

que sua rejeição não implica, de modo algum,

uma negação de toda mediação. Pelo contrário: é

essa a primeira compreensão realmente dialética

da relação complexa entre a mediação e a

imediação na história da filosofia, inclusive

levando em conta as conquistas nada desprezíveis

de Hegel.

Uma rejeição de toda mediação estaria

perigosamente próxima do simples misticismo,

em sua idealização da ―identidade entre sujeito e

objeto‖. O que Marx combate como alienação não

é a mediação em geral, mas uma série de

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mediações de segunda ordem (propriedade

privada – intercâmbio – divisão do trabalho),

uma ―mediação da mediação‖, isto é, uma

mediação historicamente específica da

automediação ontologicamente fundamental do

homem com a natureza. Essa ―mediação de

segunda ordem‖ só pode nascer com base na

ontologicamente necessária ―mediação de

primeira ordem‖ - como a forma específica,

alienada, desta última. Mas a própria ―mediação

de primeira ordem‖ - a atividade produtiva como

tal – é um fator ontológico absoluto da condição

humana [grifos de Mészáros].

Portanto, o trabalho é alienado quando as mediações de segunda

ordem do capitalismo se estabelecem sobre a atividade produtiva como

tal, fazendo com que esta se afaste ―de sua função apropriada de mediar humanamente a relação sujeito-objeto entre homem e natureza‖ (ibid.,

81). A crítica de Marx não se dá em nome de uma idealização de um

―estado natural‖, onde o homem eliminaria toda e qualquer forma de

mediação de segunda ordem. O que lhe interessa é, ao contrário, que a

sociedade consiga realizar um outro tipo de mediações, que devem ser

necessariamente não alienadas, e que organizem de forma não

antagônica o processo de produção da vida social humana.

Marx coloca, então, com base nessa concepção, o problema da

superação dialética (Aufhebung) da alienação. Como explica Mészáros,

―Aufhebung em alemão significa ao mesmo tempo ‗transcendência‘,

‗superação‘, ‗preservação‘ e ‗superação‘ (ou substituição) pela elevação

a um nível superior‖ (ibid., 18). É esse conceito que, na visão do

filósofo húngaro, dá a chave para o entendimento da alienação em Marx.

A superação da alienação, ou, em outras palavras, a sua transcendência

positiva, só pode ser o produto da atividade humana autoconsciente.

Mas em que deve consistir exatamente essa prática emancipadora?

Como explica Mészáros (ibid., 167), a atividade de superação da

alienação

não é uma relação estática de um meio com

relação a um fim, sem nenhuma possibilidade de

influência mútua. Nem é uma cadeia causal

mecanicista pressupondo partes pré-fabricadas

que não poderiam ser modificadas na relação –

sua posição respectiva está sujeita à mudança,

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como a de duas bolas de bilhar depois da colisão.

Do mesmo modo que a alienação não é um ato

único (seja uma ―queda‖ misteriosa ou um

resultado mecânico), seu oposto, a superação da

atividade alienada por meio da iniciativa

autoconsciente, só pode ser concebido como um

processo complexo de interação, que produz

mudanças estruturais em todas as partes da

totalidade humana.

Compreende-se, assim, que os conceitos de alienação e

Aufhebung em Marx – e também, certamente, em Mészáros - estão

estreitamente inter-relacionados. Tanto que, ao teorizar o capitalismo em

termos de sociedade alienada, o filósofo alemão precisou,

necessariamente, estabelecer em que consistia a superação de tal

condição. Se a alienação é o resultado de uma situação em que certos

tipos de mediação se ―estranham‖ da atividade produtiva humana e

passam a controlá-la antagonisticamente, a transcendência positiva

desse processo exige que se produza uma outra forma de relacionamento

e de organização social humana, onde estejam definitivamente

eliminadas as relações contraditórias em que a natureza, a atividade, o

―ser genérico‖ e os indivíduos sociais aparecem como meios para o

homem singular, e vice-versa. Mészáros afirma que essa transcendência

se dá quando se efetiva ―uma atividade humana adequadamente

automediadora‖ (ibid., 81). O que quer dizer, pois, nesse contexto, tal

automediação? O filósofo húngaro assim assevera: ―isso [a

automediação] significa que ele [o homem] pode fazer com que ele

mesmo se torne o que é em qualquer momento dado – de acordo com as

circunstâncias predominantes -, seja isso egoísta ou o contrário‖ (ibid.,

151). Os homens fazem a sua história, a partir das ―circunstâncias

predominantes‖, com os meios que eles próprios criam. Se um

determinado conjunto desses elementos passou a oprimi-los, a única

solução possível é a construção de novos meios, não problemáticos,

produzidos pela atividade consciente desses mesmos homens.

A alienação, portanto, para Marx, nasce de um determinado tipo

de práxis humana onde a propriedade privada, o intercâmbio e a divisão

do trabalho capitalistas comandam e organizam a atividade produtiva.

Tais mediações se apartam do controle do homem e ele aí não mais se

reconhece. Passa a ser um estranho para elas, a não mais controlar sua

atividade, e a estar em oposição à humanidade, aos outros homens, ao

mundo dos objetos naturais e histórico-sociais. Mas agindo para

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transcender essa condição, e tomando consciência cada vez mais dessas

determinações no processo mesmo da atividade crítica, o homem supera

tal relação de oposição, trazendo à luz um novo modo de intercâmbio

com a natureza, com sua atividade, com a humanidade e com os

indivíduos singulares. Realiza, assim, uma forma qualitativamente

superior de prática social onde controla conscientemente sua atividade

produtiva e deixa ser um meio para fins alheios à sua vontade

consciente. Surge, então, uma atividade ―automediadora‖ em duplo

sentido. Como explica Mészáros (ibid., 81):

Primeiro, porque é a natureza que se media

consigo mesma no homem. E em segundo lugar,

porque a própria atividade mediadora é apenas um

atributo do homem, localizado numa parte

específica da natureza. Assim, na atividade

produtiva, sob o primeiro de seus aspectos

ontológicos duais, a natureza medeia a si mesma

com a natureza; e, sob o segundo aspecto

ontológico – em virtude de que a atividade

produtiva é inerentemente atividade social -, o

homem medeia a si mesmo com o homem.

Com tal atividade automediadora aparece, pois, o ―homem

rico‖ de acordo com o significado que Marx atribui a esse termo. O

―homem rico‖, não-alienado, emancipado no sentido marxiano da

palavra, é aquele que não age mais impelido por uma força exterior a si,

mas que sente internamente a necessidade de realizar plenamente a sua

atividade em todos os âmbitos das possibilidades humanas

historicamente constituídas. Este é o objetivo – ou seja, possibilitar o

surgimento do ―homem rico‖ - que deve orientar a ―transcendência

positiva da auto-alienação do trabalho‖. Diz Mészáros (ibid., 163-4):

A verdadeira meta é a ―riqueza interior‖, que não

é um tipo de contemplação abstrata, mas a

autoconfirmação na plenitude da atividade vital de

cada um. Isto significa que é toda a estrutura da

atividade vital que precisa ser transformada –

desde o trabalho cotidiano até uma participação

real nos mais altos níveis da elaboração de

políticas que têm influência na nossa vida – e não

simplesmente o potencial da produção material de

um país. […]

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A luta contra a alienação é, portanto, aos olhos de

Marx, uma luta para resgatar o homem de um

estado no qual ―a expansão dos produtos e das

carências o torna escravo inventivo e

continuamente calculista de desejos não humanos,

requintados, não naturais e pretensiosos‖. Esse

estado alienado que se caracteriza não só pelo

―refinamento artificial das carências‖, mas

também pela sua ―crueza artificialmente gerada‖,

reduz ao ridículo o desejo do homem de ampliar

seus poderes a fim de alcançar a realização

humana, porque esse aumento de poder equivale

ao crescimento do ―império do ser estranho ao

qual o homem está submetido‖ [grifos assim no

original].

Na alienação, então, o homem se separa dos demais, deixa de

controlar conscientemente o seu trabalho, entra em relação de oposição

ao seu ―ser genérico‖, torna-se refém de imperativos exteriores a si e

que comandam a sua atividade. O homem verdadeiramente ―rico‖,

emancipado, no sentido que Marx o concebe, isto é, o homem que

superou a alienação, é aquele que se sente interiormente impelido a agir

no sentido de não mais se contrapor à natureza, aos seus semelhantes, às

suas próprias potencialidades humanas. Como diz o autor de A teoria da

alienação em Marx (ibid., p. 168),

Quando Marx fala da ―riqueza interior‖ do

homem, em oposição à alienação, refere-se ao

―homem rico‖ e à ―necessidade humana rica‖.

Este ser é rico porque é ―o homem carente de

uma totalidade da manifestação humana de vida.

O homem, no qual a sua efetivação própria existe

como necessidade interior, como falta‖. Esse é o

critério que deve ser aplicado à avaliação moral de

toda relação humana e não há outros critérios

além dele. Qualquer acréscimo só poderia ser de

um tipo ―exterior‖, isto é, superposto

abstratamente ao homem real [grifos de acordo

com o original de Mészáros].

O homem ―rico‖ é, pois, o homem livre, que realiza a atividade

produtiva como uma necessidade interior, que a controla

conscientemente – ao contrário do que ocorre no capitalismo, onde os

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trabalhadores estão submetidos a forças exteriores às quais devem

obedecer cegamente -, e que a toma como uma necessidade positiva.

Nas palavras, novamente, do filósofo húngaro (ibid., 170):

Uma vez que apenas enquanto necessidade

positiva, como necessidade interior, o trabalho é

gozo, então a auto-realização, a plenitude humana,

é inseparável do aparecimento dessa necessidade

positiva. A liberdade é, assim, a realização da

finalidade própria do homem: a auto-realização

no exercício autodeterminação e externamente

não-impedido dos poderes humanos. Como

autodeterminação, a base desse exercício livre dos

poderes humanos não é um ―imperativo

categórico‖ abstrato, que permanece exterior ao

ser humano real, mas uma necessidade positiva

efetivamente existente de trabalho humano auto-

realizador. Assim, os meios (trabalho) e fins

(necessidades) nesse processo de humanização

transformam-se mutuamente em atividade

verdadeiramente humana, feita de gozo e auto-

realização, por intermédio da qual poder e

finalidade, meios e fins, surgem numa unidade

natural (humana).

Compreendido o núcleo em torno do qual gira a teorização de

Mészáros – a questão da Aufhebung marxiana, a transcendência positiva

da auto-alienação do trabalho -, pode-se melhor apreender suas

formulações acerca da educação e a sua importância no interior de uma

práxis social e política genuinamente revolucionária.

Para o filósofo húngaro, a questão da educação deve ser

analisada tendo-se como base a sua relação com a totalidade de

fenômenos sociais concretos com os quais está ligada. Se o capitalismo

é um conjunto de mediações de segunda ordem que se realiza no sentido

de submeter aos seus imperativos todos os processos que compõem a

atividade produtiva humana, a educação não pode se situar além dessas

determinações. Ou seja, ela também se constituirá como um complexo

de mediações atrelado ao sistema maior do qual faz parte e que a condiciona.

Não é um ponto de pequena importância o fato de que, em A

teoria da alienação..., Mészáros trata a educação em dois sentidos:

formal e informal. Educação, na verdade, na visão do filósofo, diz

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respeito a todas aquelas atividades que envolvem a interiorização, por

parte dos indivíduos sociais, das relações, imperativos e valores

presentes na dinâmica sócio-histórica determinada em que estão

imersos. E essa interiorização se dá, concomitantemente, dentro e fora

da escola. Eis o trato que Mészáros (ibid., 175) dá ao tema:

A educação formal está profundamente integrada

na totalidade dos processos sociais, e mesmo em

relação à consciência do indivíduo particular suas

funções são julgadas de acordo com sua raison

d'être identificável na sociedade como um todo.

[…] O sistema educacional formal da sociedade

não pode funcionar tranqüilamente se não estiver

de acordo com a estrutura educacional geral – isto

é, com o sistema específico de ―interiorização‖

efetiva – da sociedade em questão.

O filósofo húngaro explica, então, que, no capitalismo, a

educação tem duas funções principais: a primeira é a produção das

qualificações necessárias ao funcionamento da economia como um todo;

a segunda diz respeito à exigência de formação dos quadros políticos da

sociedade, com seus correspondentes métodos de controle político (estes

também devem ser criados pela educação). Essa formação social

específica não pode existir, portanto, sem um tipo determinado de

educação – a bem da verdade, esclarece o filósofo, nenhuma sociedade

vive sem seu sistema próprio de educação – que deve realizar, através de

processos formais e informais, a internalização de relações, habilidades,

pressões externas, perspectivas gerais da sociedade de mercadorias e

valores que auxiliem na perpetuação da ordem vigente. Para que a

superação da alienação ocorra é preciso um outro tipo de educação, que

não se limite apenas aos aspectos formais, mas que se constitua também

nas atividades informais de interiorização das produções histórico-

sociais.

Como dissemos anteriormente, a questão fundamental que se

coloca é a da transcendência da atividade produtiva alienada em direção

a uma sociedade emancipada, livre, de homens ―ricos‖, que sintam

intimamente a ―carência de uma totalidade de manifestações humanas de vida‖. Deve-se, para isso, superar o sistema de mediações alienadas

capitalistas e substituí-lo por outro, qualitativamente diferente. A

educação – formal e informal - pode ajudar nesse processo se se

converter, ela mesma, num conjunto de mediações – aliado,

necessariamente, a outras mediações - que ajude os trabalhadores a

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realizar o seu objetivo político-social precípuo. E se se entende que a

atividade produtiva humana é também, em sentido amplo, uma dinâmica

real no qual ocorre ininterruptamente, além da objetivação, a

interiorização de relações sociais criadas historicamente pelo homem,

pode-se dizer, com Mészáros (ibid., 264), que

a transcendência positiva da alienação é, em

última análise, uma tarefa educacional, exigindo

uma ―revolução cultural‖ radical para a sua

realização. O que está em jogo não é apenas a

modificação política das instituições de educação

formal. […] Marx ressaltou vigorosamente a

continuidade ontológica objetiva do

desenvolvimento do capital, materializado em

todas as formas e instituições de intercâmbio

social, e não apenas nas mediações de segunda

ordem, diretamente econômicas, do capitalismo. É

por isso que a tarefa de transcender as relações

sociais de produção alienadas sob o capitalismo

deve ser concebida no quadro global de uma

estratégia educacional socialista. Esta última,

porém, não deve ser confundida com nenhuma

forma de utopismo educacional.

Assim, a superação completa da alienação é uma tarefa, em

última análise, educacional, na medida em que exige não um esforço –

iluminista! – gigantesco de apropriação de conhecimentos, mas a

reformulação radical – portanto, material – de todas as formas de

interiorização que se encontram hoje cristalizadas na sociedade

produtora de mercadorias. É com base nisso que Mészáros (ibid., 172)

estabelece que

a educação [enquanto prática material

interiorizadora] é o único órgão possível de

automediação humana, porque a educação – não

num limitado sentido institucional – abarca todas

as atividades que podem se tornar uma

necessidade interna para o homem, desde as

funções humanas mais naturais até as mais

sofisticadas funções intelectuais.

Com tal argumentação, Mészáros quer combater um certo tipo

de utopia, que diz respeito, exatamente, àquelas tentativas de ação que

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oferecem soluções apenas parciais para os problemas globais que se

corporificam na sociedade capitalista. Para o filósofo, a educação

socialista não pode se restringir a essas questões parciais, e sim ter em

mente a totalidade do sistema de problemas a ser superado. A superação

da alienação é, pois, em última análise, uma tarefa educacional porque a

própria educação se confunde com a práxis transformadora. É

interessante notar, nesse contexto, também, como Mészáros já fala em

―crise estrutural‖ do capitalismo e em crise estrutural do modo de

interiorização capitalista, sem especificar ainda em que consiste a

―estruturalidade‖ de tal crise.18

Um último aspecto importante da educação, desenvolvido nessa

grande obra filosófica de Mészáros, deve aqui ser mencionado: a

questão da sensibilidade. O filósofo afirma que um dos objetivos da

transcendência positiva da auto-alienação do trabalho - e, portanto, da

educação transformadora - é reabilitar a sensibilidade do papel

subordinado e fragmentado que a racionalidade capitalista alienada lhe

impõe. Com base novamente em Marx, o filósofo húngaro explica que o

homem é um ser sensível, e, nessa posição, ―é ser padecente. O homem

enquanto ser objetivo sensível é, por conseguinte, um padecedor, e,

porque é um ser que sente o seu tormento, um ser apaixonado. A paixão

é a força humana essencial que caminha energicamente em direção ao

seu objeto [grifos assim no original]‖ (MARX, apud Mészáros, ibid.,

80). Com tal passagem, o autor de A teoria da alienação... pretende

começar a explicar a estrutura dialética da sensibilidade humana tal

como teorizada por Marx.

Durante o seu processo de auto-constituição, diz o filósofo

húngaro, o homem age e ―sofre‖ (padece) a ação do mundo objetivo.

Mas tal sofrer não é um registro passivo do mundo exterior. O homem

sente (isto é, percebe ativamente pelos sentidos) esse ―padecimento‖ (o

―seu tormento‖) e é essa atividade que torna possível a criação de

significados – e, portanto, de valores (é o homem, por isso, um ―ser

apaixonado‖, diferentemente da chapa fotográfica, que apenas reflete o

objeto que incide sobre ela). Como explica Mészáros (ibid., 181),

Nesse ―sentir o que o homem experimenta‖ estão

estabelecidos os valores primitivos do homem, e

18

Salvo engano, Mészáros faz uma única menção à crise estrutural do capital, mas é no

Prefácio à terceira edição de A teoria da alienação em Marx, escrita em 1971. Trata-se de uma passagem bastante breve e novamente sem explicitar em que consiste o caráter estrutural da

crise.

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todo objeto que o afeta, não importa a maneira e a

forma como o faça, ocupa um lugar definido no

sistema humano de valores, no qual significado e

valor estão inseparavelmente inter-relacionados.

Assim o ―sofrimento‖, tal como discutido por

Marx, é criador de valor [grifo nosso], e,

portanto, ativo – por paradoxal que isso possa

parecer. Não há ―sofrimento‖ sem sentimento, que

seja apenas um registro mecânico. E também não

há ―sentimento‖ sem ―paixão‖, no sentido

marxiano, porque o homem, para poder estar em

relação com seus objetos, deve ―caminhar

energicamente em direção a eles‖, o que implica a

presença da paixão – embora de intensidade

variada – em todas as relações humanas, inclusive

as mais mediadas.

A unidade dialética entre sofrimento, sentimento e paixão é,

portanto, inerentemente ativa e constitui a essência da sensibilidade

humana – assim como também constitui uma especificidade humana,

segundo Marx. Ora, o que a alienação aí provoca é, justamente, o

empobrecimento dessa sensibilidade humana como um todo.

Mészáros desenvolve sua argumentação, nesse momento,

explicando que os sentidos humanos são de uma imensa variedade19

e se

caracterizam por uma altíssima complexidade. Eles se ligam

intimamente uns aos outros, e também com todas as demais ―potencias

humanas‖ - como o poder de raciocínio, por exemplo. ―Somente em

virtude dessas interligações é possível o sentido da beleza‖, afirma o

antigo discípulo de Lukács (ibid., 183). Ou seja, o belo de um

determinado objeto não é experimentado por via de um único sentido,

mas por vários deles interligados, e esse objeto é também compreendido

no processo do gozo estético - isto é, o raciocínio participa ativamente

durante a atividade sensível. É só como um ser ―total‖ (―omnilateral‖),

pois, que o homem se apropria de uma determinada totalidade.

Assim, como diz o filósofo húngaro: ―Separar os sentidos - que

se tornaram, na prática, ‗imediatamente teóricos‘ – do raciocínio, para

subordinar os primeiros ao segundo, é, portanto, artificial e arbitrário

[grifo nosso]. É por isso que o retrato idealista dos sentidos deve ser

rejeitado‖ (ibid., 183). Contudo, é justamente essa separação e

19

Como diz o filósofo, ―seu número corresponde à riqueza infinita dos objetos com os quais os

sentidos humanos se relacionam‖ (ibid. 183).

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subordinação que ocorre com a alienação capitalista. No interior desse

sistema, afirma Mészáros, o homem ―não se apropria de ‗sua essência

omnilateral como um homem total‘, mas limita sua atenção à esfera da

mera utilidade. Isso acarreta um extremo empobrecimento dos sentidos

humanos‖ (ibid., 183).

Vale a pena, nesse contexto, transcrever uma passagem mais

longa onde o filósofo húngaro (ibid., 184) explica o efeito da alienação

na estrutura da sensibilidade humana:

Os objetos com que se defronta o indivíduo

isolado lhe aparecem apenas com seus aspectos

utilitários (por exemplo, valor comercial e não

beleza mineralógica) e essa utilidade não é de uso

humano – social - mas de uso limitadamente

individual. Assim, necessidade e gozo, numa

inversão direta do processo original de

humanização automediadora, adquirem uma nova

―natureza egoísta‖ no mundo da fragmentação

capitalista. E, como os sentidos só podem ser

chamados ―teoréticos‖ em virtude de sua

―distância‖ ante o imediatismo da necessidade

animal-natural – isto é, em virtude do fato de a

necessidade primitiva ter-se tornado uma

necessidade ―automediada‖; uma necessidade

humanamente mediada, humanamente

transformada – visto que hoje a mediação humana

da necessidade está sendo suprimida no processo

de privatização e fragmentação egoísta, os

sentidos perdem seu caráter ―teorético‖.

O ―gozo humano‖ implica um nível de satisfação

superior ao estreitamente individual na

espontaneidade da experiência. Esse nível só é

alcançável porque o sentido humanamente

satisfeito está inter-relacionado com todos os

outros sentidos e poderes humanos no ato mesmo

do próprio gozo. (A base dessa inter-relação é a

gênese histórica – isto é, a socialização e a

humanização automediadora – desses sentidos e

poderes.) Se, portanto, a complexa inter-relação

social dos sentidos particulares for interrompida

pela ―solidão bruta‖ da auto-satisfação egoísta,

isso significa inevitavelmente que o próprio gozo

perde sua significação humana geral – deixa de

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ser gozo humano, tornando-se mera auto-

satisfação do indivíduo isolado – e seu nível baixa

para o imediatismo bruto, ao qual nenhum padrão

pode ser aplicado.

Pois bem: Mészáros afirma que é também papel de uma

educação transformadora contribuir para a superação dessa condição,

isto é, para a ―emancipação dos sentidos humanos‖. A educação estética

é, nesse contexto, a promotora da transcendência positiva do

esfacelamento da sensibilidade levado a efeito pelas relações alienadas

do capitalismo. Ela é, finalmente, de acordo com o filósofo húngaro, a

―criadora do órgão do consumo estético‖ e ―uma condição vital para o

desenvolvimento da arte em geral‖ (ibid., 191).

Uma proposta de educação socialista deve, portanto, ter tais

coordenadas em mente. Se a alienação capitalista se caracteriza, dentre

outras coisas, por um processo que impõe ―de fora‖ as exigências para a

realização de um determinado tipo de trabalho, e a superação da

alienação depende da interiorização ativa e consciente dos imperativos

para a realização de uma produção social humana não antagônica, a

educação revolucionária não pode se converter em um tipo de práxis que

imponha também ―de fora‖, de cima para baixo, aquilo que os

indivíduos devem fazer. É por isso que, segundo o filósofo húngaro

(ibid., 172),

A educação é uma questão inerentemente pessoal,

interna; ninguém pode educar-nos sem nossa

própria participação ativa no processo. O bom

educador é alguém que inspira a auto-educação.

Apenas nessa relação pode-se conceber a

superação da mera exterioridade na totalidade das

atividades vitais do homem – inclusive, não a

abolição total, mas a crescente transcendência da

legalidade externa. Mas essa superação, devido às

condições necessárias a ela, não pode ser

concebida simplesmente como um ponto estático

da história para além do qual começa a ―idade do

ouro‖, mas somente como um processo contínuo,

com realizações qualitativamente diferentes em

suas várias fases.

Até aqui, então, podemos constatar que Mészáros já possui uma

teoria razoavelmente bem delineada acerca da educação transformadora.

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50

Esta é, em verdade, uma atividade que se define a partir de uma

perspectiva política e social radical de superação - ―transcendência

positiva‖ - da alienação. É um processo que se confunde mesmo com a

própria práxis revolucionária, por conta do fato de que o que é

necessário para a eliminação completa da alienação é uma mudança

profunda na forma de interiorização do mundo histórico-social por parte

dos indivíduos que o compõem. A educação que quer integrar tal projeto

alternativo não pode se centrar, pois, nos processos formais de ensino,

que se dão meramente no âmbito das salas de aula. Deve transcender,

pois, esses estreitos limites e abarcar fundamentalmente as atividades

informais de interiorização. Constituir-se-á, assim, num tipo específico

de mediação que auxiliará na abolição das mediações absolutamente

problemáticas da sociedade burguesa. Em A teoria da alienação...,

Mészáros estabelece que a educação transformadora precisa fomentar,

assim, o aparecimento do ―homem rico‖, capaz de sentir internamente a

necessidade de se apropriar de uma ―totalidade de manifestações

humanas de vida‖, superando a fragmentação produzida pela

propriedade privada, divisão do trabalho e troca capitalistas,

desenvolvendo-se plenamente. O bom educador, finalmente, é aquele

que inspira nas outras pessoas tal necessidade interior. Veremos, depois,

no devido tempo, quais dessas propostas permanecerão as mesmas na

concepção do filósofo húngaro e quais sofrerão modificação.

O próximo texto a ser analisado para a compreensão da teoria

de Mészáros acerca da política e da educação é Consciência de classe necessária e consciência de classe contingente,

20 um ensaio importante

onde são tratados temas fundamentais como a luta de classes e a relação

dialética entre classe e consciência de classe. Portanto, das relações

entre economia e política e entre infra e superestrutura no âmbito da

sociedade capitalista.

O filósofo húngaro discute tais questões com base numa

ontologia ancorada, como sempre, em Marx, e, logo no início da obra,

estabelece a forma de como se pode definir o ser de uma determinada

classe social. Conforme suas palavras (2008, 56),

Marx […] se refere ao ―ser‖ da classe: isto é, ele

indica a linha de solução [isto é, da definição do

20

Tal ensaio data do ano de 1971. Apareceu primeiramente no Brasil em 1993, numa

publicação da Editora Ensaio. Recentemente, recebeu uma nova publicação por parte da Editora Boitempo, como 2º capítulo do livro Filosofia, ideologia e ciência social – ensaios de

negação e afirmação (São Paulo: Boitempo, 2008). Esta é a versão de que nos servimos aqui.

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que é a classe] em termos dos determinantes

complexos de uma ontologia social em oposição a

um certo mecanismo econômico. É isso que faz

toda a diferença, pois o ―ser‖ de qualquer classe é

a síntese abrangente de todos os fatores atuantes

na sociedade, enquanto os proponentes de um

―determinismo econômico‖ […] isolam apenas

um fator e, grosseiramente, o sobrepõem a todos

os outros.

As classes sociais, portanto, não se definem somente em termos

econômicos, e sim, também, a partir de suas determinações sociais,

culturais, políticas - do mesmo modo, evidentemente, a luta de classes,

envolve todos esses fatores. Tais instâncias compõem o ser concreto da

classe por meio da manutenção de uma determinada ―interação

complexa‖ entre si ―nos mais variados campos da atividade humana‖ - e

isso apesar de haver, certamente, uma autonomia relativa entre as

―partes‖ constituintes dessa totalidade.

Um exemplo usado por Mészáros para demonstrar como a luta

de classes envolve uma multiplicidade de elementos históricos

estruturalmente interligados é o das greves. O filósofo húngaro (ibid.,

60) explica que

As greves […] eram entusiasticamente recebidas

por Marx – em nítido contraste com sua

condenação categórica do luddismo -, não

simplesmente porque contribuíam para o

desenvolvimento da consciência da classe

trabalhadora; ele tinha total consciência das

limitações das greves a esse respeito. […] Ele

insistia em seu significado para o

desenvolvimento das forças produtivas, uma vez

que elas forçavam a burguesia a introduzir

dispositivos poupadores de trabalho, mobilizando

a ciência a serviço de uma produtividade mais alta

e, dessa forma, apressando substancialmente a

maturação tanto dos potenciais produtivos quanto

das contradições do capitalismo. O fator político

adquire, desse modo, seu significado em termos

de um conjunto abrangente de determinação

recíprocas, em virtude de sua contribuição efetiva

para uma profunda modificação estrutural da

totalidade dos processos sociais – desde a

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transformação abrangente dos meios de produção

à criação de novas idéias, novos modos de

organização, e novos instrumentos de ação

defensiva e ofensiva – trazendo consigo a

impossibilidade de neutralizar ou anular seu

impacto total, apesar do sucesso temporário de

medidas destinadas a subjugar o movimento

sindical como força política.

As lutas de classes, então, que podem se expressar de várias

maneiras, englobam fatores econômicos, sociais, políticos, científicos,

culturais, etc., que interagem reciprocamente e afetam a estrutura de

uma dada sociedade em sua totalidade. Todos esses elementos exercem

uma profunda influência no desenvolvimento das classes e da

consciência de classe, e vice-versa.

As classes sociais formam, pois, uma relação antitética, um

―antagonismo estrutural‖, onde seus elementos constitutivos, sejam eles

pertencentes ao lado positivo ou negativo, não podem ser absolutizados

nem reconciliados. A consciência de classe, que deve se desenvolver a

partir desse antagonismo, não depende de um insight subjetivo dos

membros da classe, e sim de fatores objetivos. A superação desse

conflito exige a ―maturação‖ de certas condições também objetivas.

Contudo, tais condições só atingem a sua ―maturidade total‖ por meio

de uma ação ―autoconsciente‖ da própria classe social com ―cadeias

radicais‖. Mészáros explica, nesse sentido, que: ―Assim, o fator

‗subjetivo‘ adquire uma importância crucial como precondição

necessária de sucesso nesse estágio altamente avançado do

desenvolvimento humano, quando a questão em pauta é a extinção – a

auto-extinção – das condições de desumanização‖ (ibid., 64). É a ação

autoconsciente, portanto, realizada a partir de determinadas condições

reais, que pode superar a conflito de classes, por meio da efetivação de

uma sociedade emancipada.

Ainda nas pegadas de Marx, Mészáros estabelece que a classe

trabalhadora possui uma especificidade, sendo que esta reside no fato de

que a

condição para a emancipação da classe

trabalhadora é a extinção de todas as classes […].

A classe trabalhadora, no curso do seu

desenvolvimento, substituirá a velha sociedade

civil por uma associação que excluirá as classes e

seus antagonismos, e não haverá mais poder

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53

político propriamente dito, uma vez que o poder

político é precisamente a expressão oficial do

antagonismo na sociedade civil. (MARX, apud

Mészáros, ibid., 77)

A especificidade da classe proletária está, então, no fato de que

ela se situa, dentro da estrutura do sistema capitalista, numa posição tal

que a sua ação revolucionária, levada a cabo de acordo com os

interesses constituintes de seu ser, deve levar à dissolução da própria

estrutura na qual se situa. É nesse contexto que Mészáros afirma que o

proletariado é a classe para si. Tal conceito, diz o filósofo, implica uma

―universalidade autoconstituinte‖, isto é, que o ser do proletariado se

opõe não apenas à particularidade burguesa, mas a qualquer particularidade (isto é, de qualquer classe enquanto particularidade

constituinte da ―totalidade‖ capitalista). É, portanto, uma classe que,

como nos explica o autor de Filosofia, ideologia e ciência social (ibid.,

78),

como classe universal em si e para si – tem, ao

mesmo tempo, de se opor não apenas à burguesia

(uma classe da sociedade civil), mas também ao

princípio do privilégio e da própria

particularidade. [...] O proletariado é constituído

na sociedade civil no processo de alienação do

trabalho, como um ser oposto através do trabalho

alienado.

O proletariado não se opõe, portanto, somente a esta ou àquela

particularidade, mas ao próprio fundamento de haver particularismos de

classe. E por estar posicionado de tal maneira, ele só resolve o

antagonismo fundamental negando tanto o seu oponente direto, a

burguesia, quanto a própria forma da sociedade civil da qual é

componente – e, nesse movimento, nega também a sua própria forma

particular de classe como constituinte específico da sociedade

capitalista. Mészáros (ibid., 79), a fim de sintetizar sua explicação sobre

tal especificidade, afirma que

o proletariado é uma classe em si e para si apenas

na medida em que é objetivamente capaz de

estabelecer uma alternativa histórica viável à sua

própria subordinação estrutural, bem como à

necessidade de subordinar qualquer classe a

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qualquer outra. (A extinção das classes,

naturalmente, dá um fim à subordinação estrutural

necessária do indivíduo à classe, uma relação que

é substituída pela unidade não contraditória entre

a parte e o todo: o indivíduo social automediado).

É no seu processo de autoconstituição como classe para si que o

proletariado forma, enfim, a sua consciência de classe. Nesse ponto da

sua teorização, Mészáros faz - mais uma vez baseado em Marx - uma

distinção muito importante: entre consciência de classe necessária e

consciência de classe contingente. Que significam tais conceitos?

Apesar da extensão da citação seguinte, acreditamos que ele merece ser

transcrita na íntegra, pois resume de maneira exemplar a concepção do

filósofo húngaro a esse respeito. Mészáros (ibid., 89-90) afirma que

A diferença fundamental entre a consciência de

classe contingente e a consciência de classe

necessária é que, enquanto a primeira percebe

simplesmente alguns aspectos isolados das

contradições, a última as compreende em suas

inter-relações, isto é, como traços necessários do

sistema global do capitalismo. A primeira

permanece emaranhada em conflitos locais,

mesmo quando a escala da operação é

relativamente grande, enquanto a última, ao

focalizar a sua atenção sobre o tema

estrategicamente central do controle social [grifo

nosso], preocupa-se com uma solução abrangente,

mesmo quando seus objetivos imediatos parecem

limitados (por exemplo, uma tentativa de manter

viva, sob o controle dos operários, uma fábrica

que esteja sucumbindo à ―racionalização‖

capitalista). [...]

O desenvolvimento da consciência de classe

necessária não implica sua constituição como ―um

vínculo psicológico homogêneo‖ - que é uma

ficção, como vimos – mas a elaboração de

programas de ação estrategicamente viáveis, que

englobem uma multiplicidade de grupos sociais

específicos, em qualquer variedade de formas

organizacionais que possa ser necessária. O não

aparecimento do Godot de um vínculo psicológico

em comum é completamente irrelevante. O que

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55

liga vários grupos sociais em uma situação

histórica favorável – por exemplo, em uma greve

geral – não é algum poder psicológico misterioso,

mas programas práticos significativos, resultantes

da realidade empírica da subordinação estrutural

comum aos grupos ligados ao poder do capital. E

o desenvolvimento historicamente necessário da

consciência de classe consiste, precisamente,

nessa elaboração prática de um conjunto de

objetivos estratégicos que correspondam à

posição estrutural objetiva dos vários grupos

sociais que os formulam [grifo nosso].

Como conclusão, é preciso enfatizar que a

necessidade histórica em questão não tem relação,

em hipótese alguma, com qualquer forma de

fatalismo mecanicista, pois, apesar de o contexto

sócio-histórico, em que surge a consciência de

classe necessária, determinar inexoravelmente o

campo de ação do indivíduo, bem como a direção

geral do desenvolvimento, ele não define o ritmo

e as formas da mudança, nem mesmo a natureza e

o número de sacrifícios humanos que

acompanham grandes revoltas e transformações

sociais. Estes fatores dependem, primeiramente,

dos programas disponíveis e das formas de ação

institucionais pelas quais as atuações humanas

determinadas, mais ou menos autoconscientes,

têm de assumir a responsabilidade. Mesmo assim,

no entanto, a ação política autoconsciente se torna

significativa apenas em termos das necessidades

sócio-histórico que a originam, pois devido ao

fato, enfatizado por Marx, de que a tendência

objetiva do desenvolvimento em direção à

universalidade (essa necessidade histórica

―totalizadora‖) é inseparável da ―necessidade

existencial do indivíduo no que se refere à

universalidade e integralidade de

autodesenvolvimento‖, a verdadeira consciência

social é constituída – em uma reação inevitável ao

desafio sócio-histórico – como uma necessidade

interna; uma unidade dialética de determinações,

objetivas e subjetivas, internas e externas.

A consciência de classe necessária, portanto, no sentido que

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56

Mészáros atribui ao termo, é uma condição fundamental para a

superação da contradição entre a ―contingência sociológica de classe‖

(isto é, a estratificação e divisão do proletariado por interesses

particulares de segmentos de classe) e de ―seu ser [grifo nosso] como

constituinte do antagonismo estrutural do capitalismo‖ (ibid., 71). Ou,

em outros termos também utilizados pelo filósofo húngaro, a

consciência de classe necessária é a condição para a superação da

contradição entre o ser e a existência do trabalho.

E como superar na prática tais contradições entre a ―consciência

de grupo‖ e a ―consciência de classe‖, entre os grupos segmentados de

trabalhadores, com sua consciência limitada a interesses particulares, e o

conjunto do proletariado consciente de seu ser de classe? Aqui, diz o

filósofo, entra a questão das mediações coletivas, da organização e da

estratégia - que fizemos questão de grifar nas citações transcritas acima

e a seguir. Como explica Mészáros (ibid., 72), em mais uma passagem

lapidar:

O desenvolvimento da consciência de classe é um

processo dialético: é uma ―inevitabilidade

histórica‖ precisamente na medida em que a tarefa

é realizada através da mediação necessária de

uma atuação humana autoconsciente. Isso requer,

inevitavelmente, algum tipo de organização – seja

a constituição de partidos, ou de outras formas de

mediação coletiva [grifo nosso] – estruturada

segundo as condições sócio-históricas específicas

que predominam em uma época particular, com o

objetivo estratégico global de intervenções

dinâmicas no curso do desenvolvimento social.

[…] Em outras palavras, o desenvolvimento

―direto‖ e ―espontâneo‖ da consciência de classe

proletária – seja sob o impacto de crises

econômicas ou como resultado do auto-

esclarecimento individual – é um sonho utópico.

Não importa quanto (tendo em vista algumas

experiências passadas negativas) se possa desejar

o contrário, a questão da organização política não

pode ser desconsiderada [grifo nosso]. A questão

real é, portanto, a criação de formas

organizacionais e mediações institucionais que

sejam adequadas aos objetivos estratégicos

globais, considerando (a) as limitações sócio-

históricas que delimitam objetivamente as

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possibilidades de ação em cada época, e (b) os

limites necessários e os efeitos deturpadores da

própria forma institucional, pois um montante

indevido de ―feedback negativo‖ de (a) e (b) – que

é inevitável até certo ponto – pode não apenas

anular conquistas alcançadas com dificuldade,

mas também transformar a instituição

originalmente dinâmica em um freio poderoso e

um grande obstáculo a todo avanço posterior.

Claro está, portanto, que o ensaio Consciência de classe

necessária e consciência de classe contingente tem uma importância

seminal para nossa compreensão acerca da teoria mészáriana da política

e da educação. Já havia sido compreendido que a classe trabalhadora

necessita lutar para a superação da auto-alienação do trabalho com o uso

das mediações teórico-práticas que ela mesma tem de criar. Nesse

contexto, então, a educação socialista serve para quê? Serve para a luta

de classes, para auxiliar na formação de uma consciência de classe

(necessária), que possibilite aos trabalhadores compreenderem as

contradições históricas no interior das quais estão enredados, para ajudá-

los, enfim, a se organizar e elaborar estratégias eficazes de confrontação

coletiva consciente contra a ordem dominante, de acordo com a

conjuntura histórica concreta na qual se situam. É digno de nota também que, no referido ensaio, o filósofo

húngaro ressalta que a consciência – ou seja, a atividade consciente – é

um elemento fundamental para que os trabalhadores, no processo de sua

auto-emancipação, possam realizar o controle sobre a atividade

produtiva. O tema do controle, em Mészaŕos, passará a ser central daqui

por diante. Isto pode ser visualizado já ano de 1971, em outro ensaio

importante seu: A necessidade do controle social,21

justamente o texto

mészáriano no qual o conceito de controle do intercâmbio humano com

a natureza assume, possivelmente pela primeira vez, a centralidade.

Mészáros explicita e desenvolve aí temas que já estavam implícitos nas

suas reflexões de obras anteriores, alguns dos quais não serão mais

abandonados em suas teorizações dos anos posteriores. Mais uma vez

fundamentando-se no autor de O capital, o filósofo (2009, 53) assim

afirma a relevância dessa questão específica do controle:

21

Este texto foi produzido para a primeira conferência Isaac Deutscher Memorial (Londres),

realizada em 26/1/1971, na London School of Economics and Politcal Science. A versão de que nos servimos é a que está contida em A crise estrutural do capital (São Paulo: Boitempo,

2009).

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Marx compreendeu perfeitamente, já naquela

altura [isto é, na época da composição de A

ideologia alemã, com Engels], que uma

reestruturação radical do modo predominante de

intercâmbio e controle humano [grifo nosso] é o

pré-requisito necessário para um controle efetivo

[grifo nosso] das forças da natureza, que são

postas em movimento de forma cega e fatalmente

autodestrutivas sobretudo em virtude do modo

predominante [isto é, capitalista], alienado e

reificado22

de intercâmbio e controle humanos.

No processo de produção de seu ser social, os homens têm

necessariamente de entrar em relação com a natureza e estabelecer com

ela um modo determinado de intercâmbio. Como já esclarecido

anteriormente, a atividade produtiva responde pelas mediações de

primeira ordem e se constitui como a condição ontológica insuperável

da humanidade. Conforme o desenvolvimento histórico se processa, os

homens criam outros tipos de mediação – de segunda ordem – que se

articularão com as mediações primárias e conformarão uma modalidade

concreta de controle da sua relação dialética com a natureza. Nesse

contexto, o capital surge como um conjunto específico de mediações de

segunda ordem que, por razões históricas, passa a exercer o controle

desse intercâmbio. Observe-se, então, que, nesse momento, Mészáros

define o capital, justamente, como uma forma determinada de controle -

―[...] o capital, que pela sua própria natureza somente pode ser controle,

como um corpo reificado separado em oposição ao próprio corpo social‖

(2009, 56). Mais adiante (ibid., 57), lemos uma afirmação que

complementa tal definição:

O poder do capital, em suas várias formas de

manifestação, embora longe de ter se esgotado,

22

O que é reificar? Mészáros responde: ―no interior da estrutura do sistema socioeconômico

existente [dominado, pois, pelo capital], uma multiplicidade de interconexões potencialmente dialéticas é reproduzida na forma de dualismos, dicotomias e antinomias práticas perversas,

que reduzem os seres humanos à condição reificada (por meio da qual eles são trazidos a um

denominador comum com as ‗locomotivas‘ e outras máquinas e tornam-se substituíveis por elas) e à posição ignominiosa de ‗carcaça do tempo‘. E, uma vez que a possibilidade de

manifestar e realizar praticamente o valor inerente e a especificidade humana dos indivíduos

através de sua atividade produtiva essencial é bloqueada como resultado desse processo de redução alienante (que determina que ‗um homem de uma hora vale um outro homem‘) o

valor como tal torna-se um conceito absolutamente problemático‖ (2007, 43).

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não mais consegue se expandir. O capital – uma

vez que opera sobre a base da míope racionalidade

do estreito interesse individual, do bellum omnium

contra omnes: a guerra de todos contra todos – é

um modo de controle [grifo nosso], por princípio,

incapaz de prover a racionalidade abrangente de

um adequado controle social. E é precisamente a

necessidade deste que demonstra cada vez mais

sua dramática urgência.

Fica claro, aí, que esse ―modo de controle‖ se afirma sobre a

atividade produtiva humana de maneira a compor com ela um sistema

inerentemente antagônico e hierarquicamente estruturado de

relacionamento social. E também já nesse célebre ensaio, Mészáros

estabelece que esse modo de controle determinado estava passando,

naquele momento, por uma ―crise estrutural‖, que se manifestava na

família, na educação, na natureza (destruição ecológica), na economia e

na política.23

Uma crise, enfim, que abrangeria a ―estrutura da produção

capitalista atual como um todo‖ (ibid., 67), e não apenas as suas partes

isoladas.

É justamente a emergência dessa crise estrutural que estabelece

a necessidade da realização de uma forma alternativa de controle social,

não antagônica, não hierarquicamente estruturada, não destrutiva. Em

que consistiria tal alternativa? Mészáros afirma que, naquele período

histórico singular, o socialismo só podia ser definido no que concernia

ao seu ―caráter geral‖ e à sua ―direção‖, sem maiores especificações.

Nas suas palavras (ibid., 74),

as instituições socialistas de controle social não

podem ser definidas em detalhe antes da sua

articulação prática. Neste momento de transição

histórica [grifo nosso], as questões relevantes

dizem respeito ao seu caráter geral e à sua

direção: ambos determinados, em primeiro lugar,

pelo modo e pelas instituições de controle

predominantes, em relação aos quais devem

constituir uma alternativa radical. Nesse sentido,

as características centrais do novo modo de

controle social podem ser concretamente

identificadas – no grau em que isso se torne

necessário para a elaboração e a implementação

23

Baseando-se em Gramsci, Mészáros fala no ensaio de uma crise de hegemonia.

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de estratégias sociais flexíveis – pela apreensão

das funções básicas e das contradições inerentes

ao sistema de controle social em desintegração.

Assim, o socialismo é concebido pelo filósofo húngaro - note-

se: ―neste momento de transição histórica‖ - como uma formação social

que precisa, necessariamente, superar a mediação exercida pelo capital

sobre a atividade produtiva humana e instaurar uma outra,

qualitativamente diferente, sem os antagonismos presentes na anterior.

Deve, pois, apreender as funções básicas da atividade produtiva e dar-

lhes nova conformação. Com esse caráter geral e essa direção assim

definidos, Mészáros complementa sua argumentação dizendo que são

imprescindíveis também novos valores e uma nova consciência social.

Afirma o autor de A necessidade do controle social (ibid. 74):

O estabelecimento desse controle social

necessitará igualmente o consciente cultivo – não

em indivíduos isolados, mas em toda comunidade

de produtores, qualquer que seja sua ocupação –

de uma intransigente consciência crítica [grifo

nosso], associada a um intenso compromisso com

os valores de uma humanidade socialista [grifo

nosso].

Claro está que a efetivação prática de tal consciência crítica e de

tais valores comprometidos com uma comunidade humana emancipada

são, pois, tarefas precípuas da educação e da práxis revolucionária.

Temos até agora, então, o seguinte quadro teórico: a alternativa

histórica viável para a classe proletária é a transcendência positiva da

autoalienação do trabalho. A educação tem um papel tremendamente

importante dentro de uma práxis imbuída de tal objetivo, visto que pode

ajudar para a criação de novos valores, de novos padrões culturais, de

uma ―intransigente consciência crítica‖ acerca da organização social

atualmente estabelecida. Esta é a educação para a luta de classes, para a

formação da consciência de classe, da consciência da necessidade da

realização de uma nova forma de controle sobre a atividade produtiva

humana, onde estejam definitivamente superadas as contradições

responsáveis pela crise multidimensional e global que o capitalismo

estabeleceu. A educação transformadora deve participar ativamente,

pois, da elaboração da estratégia de atuação política radical, da

formação e da organização das mediações coletivas necessárias para se

ir em direção à sociedade dos ―homens ricos‖, no sentido definido por

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Marx, a comunidade humana emancipada.

Continuemos nossa análise. Em 1972, mais um ensaio relevante

de Mészáros aparece. Trata-se de Ideologia e ciência social,24

onde as

teorizações sobre os temas concernentes ao conhecimento, às

representações ideais, etc., avançam em profundidade. É nessa obra que

o filósofo começa a desenvolver, por exemplo, suas concepções sobre a

importante questão da ideologia.25

Em Ideologia e ciência social, Mészáros aprofunda também

alguns dos pontos anteriormente apresentados em sua teoria, tais como a

relação entre ―ser e consciência‖, ou, mais precisamente, a unidade e a

reciprocidade entre a formação sócio-histórica, a ideologia, a teoria e a

posição (de classe) de observação do pesquisador. Leiamos o que o

filósofo afirma (ibid., 37) a esse respeito:

toda teoria social [grifo nosso] que se preze

constitui-se com base em – e em resposta a – uma

situação histórica específica [grifo nosso], que,

como tal, requer a solução de um determinado

conjunto de tarefas práticas. É óbvio que uma

resposta coerente só pode ser concebível em

termos de um sistema inteiramente interligado de

conceitos [grifo nosso] – direta ou indiretamente

orientados para a prática. Isso significa que as

determinantes ideológicas [grifo nosso] atuam

necessariamente em todos os níveis, através de

todo o sistema em questão, e qualquer avanço

numa determinada posição ideológica exigiria a

modificação de todo o quadro conceitual dessa

teoria social.

Mészáros está a explicar, aqui, portanto, a complexa relação de

reciprocidade dialética que existe entre a ideologia, a teoria social e o

terreno sócio-histórico no qual tais formações ideais emergem. As

teorias nascem, como diz o filósofo, para dar conta de certas ―tarefas

práticas‖ postas pelo contexto histórico concreto. Mas entre a sociedade

em questão e a teoria que surge para resolver seus problemas práticos,

está a ideologia, e qualquer modificação num desses campos (sociedade,

24

A versão de que nos utilizamos é a que está contida como primeiro capítulo de Filosofia,

ideologia e ciência social - Ensaios de negação e afirmação. Op. cit. 25

Mais tarde, como se verá, Mészáros completará essa teorização e postulará como uma das

tarefas precípuas da práxis revolucionária – e, por conseguinte, da educação – a generalização

da ideologia emancipadora.

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ideologia, teoria) provoca alterações nos demais. Isso fica mais claro

quando Mészáros introduz na reflexão o tema – já tratado em obras

anteriores – da ―posição de observação específica‖ do teorizador.

Detenhamo-nos um pouco mais sobre esse ponto.

Numa formação social determinada, o pesquisador não se

posiciona de forma abstrata. O seu ponto de vista não é qualquer ponto

de vista. Numa sociedade de classes, ainda que possua uma autonomia

relativa para ―flutuar‖ entre uma perspectiva social e outra, na prática a

sua investigação - desde a colocação do problema a ser desvendado, a

elaboração das categorias, a seleção dos dados coletados, a análise desse

material e, por conseguinte, os resultados da pesquisa mesma - é

condicionada pelo ponto de vista de classe que ele adota. Mészáros

exemplifica com o caso específico de Marx e afirma que o autor de O

capital só chegou aos resultados que chegou porque assumiu uma perspectiva qualitativamente diferente da que foi utilizada pelos

economistas clássicos. Conforme as palavras do filósofo húngaro (ibid.,

38-9),

A posição de observação sócio-histórica

específica de Marx o habilita a apresentar

soluções para os complexos problemas do valor

que escaparam a seus predecessores, desde

Aristóteles até os clássicos da economia política

burguesa. Todavia, isso não significa que o

sistema marxiano se coloque ―acima da

ideologia‖, pois toda teoria social é

necessariamente condicionada pela situação sócio-

histórica dos pensadores específicos. E é

exatamente o conjunto específico de

determinações sócio-históricas que constitui a

dimensão ideológica de toda teoria social,

independentemente da posição de observação

histórica dos pensadores específicos.

Portanto, em se tratando das teorias sociais elaboradas numa

sociedade de classes, nenhuma delas está livre de posicionamentos de

classe determinados, nem de seus respectivos condicionamentos

ideológicos. Nenhuma obra deixa de ser afetada, de uma maneira ou de

outra, pela ―subjetividade‖ - socialmente construída - do pesquisador.

Subjetividade esta formada na relação mediada do indivíduo em questão

com a conjuntura histórica conflitiva na qual esteve inserido, onde ele

―se fez‖, internalizando as relações sociais, as estruturas materiais

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concretas que definem o ―ser‖ dessa sociedade específica e da classe à

qual por afinidade ele se vinculou. Uma vez assim formado o aparato

cognitivo e sensível do investigador, ele sempre – destaque-se: numa sociedade de classes - acaba adotando o ponto de vista de uma classe

determinada e com base nisso realiza suas investigações. O ponto de

vista específico que o sujeito assume está na raiz da sua ideologia e

oferece possibilidades e limites para suas teorizações.

Mas não é só isso. Mészáros diz ainda que nem todos as

perspectivas sociais de classe têm as mesmas possibilidades intelectuais.

Existem algumas que, num determinado contexto histórico, se situam

num patamar ―mais elevado‖ que as demais. No capitalismo, é o ponto

de vista do trabalho que fornece um horizonte ―mais amplo‖ para a

compreensão crítica dessa mesma sociedade. E Marx só pôde superar as

conquistas dos economistas burgueses porque adotou – criticamente -

exatamente essa perspectiva sui generis - com sua correspondente

ideologia, diz Mészáros – para a realização das suas pesquisas. A

ideologia – enquanto conjunto de pressupostos e interesses sociais de

classe que norteiam a racionalidade teórico-prática do sujeito

cognoscente - alimentada pelo autor de O capital interferiu na sua

maneira de compreender a sociedade burguesa de seu tempo.

Em que consiste, pois, nesse contexto, a especificidade de uma

determinada ideologia? Segundo Mészáros (ibid., 52-3),

O caráter ideológico específico de uma teoria

social particular é determinado pelo modo em que

nela se articulam as características estruturais

fundamentais da formação social dada, a partir de

uma perspectiva social particular, sob a forma de

alguns princípios teóricos básicos e pressupostos

(ou premissas) que constituem os pontos de

partida, bem como o esquema geral de orientação

das linhas de investigação particulares. […]

Na teoria social, é desnecessário dizer que o

―übergreifendes Moment‖ (momento

preponderante) para fazer as necessárias

reavaliações e reajustes é a própria situação sócio-

histórica predominante e a posição bem definida

de um pensador específico em seu interior. Os

problemas que permanecem um mistério total, sob

certo ângulo acabam se revelando muito simples

na realidade, quando abordados sob uma

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perspectiva social imune a implicações práticas

negativas da solução teórica exigida. Nesse

sentido, a adoção da perspectiva historicamente

mais avançada é de importância vital para a teoria

social. Deve-se enfatizar, todavia, que uma

perspectiva historicamente mais avançada não é

garantia em si da solução dos problemas em jogo.

Nem se justifica sugerir, como fazem muitos

vulgarizadores, que uma perspectiva social

historicamente retrógrada represente ipso facto o

fim de todo o avanço científico.

Uma teoria social é, portanto, o produto da articulação de uma

série de fatores objetivos e subjetivos. Ela resulta, fundamentalmente, de

uma investigação acerca de certos problemas específicos que aparecem

objetivamente/praticamente numa determinada circunstância histórica.

Nesse contexto, o próprio conjunto de problemas em questão possui

uma lógica interna que não está separada da lógica objetiva de seus

fundamentos históricos. Além disso, o próprio método que o

pesquisador utiliza – calcado em certos pressupostos ideológicos e em

uma posição de classe definida – expressa em sua forma a estrutura da

sociedade em questão. Todos esses elementos concatenados, isto é,

retroagindo uns sobre os outros, condicionam o movimento da pesquisa,

oferecendo limites e possibilidades para a sua teorização. Finalmente,

cada época histórica possui algumas perspectivas que são ―mais

elevadas‖ que outras dentro da mesma dada conjuntura. A unidade

dialética existente entre essas várias dimensões - entre pressupostos

reais, método e teoria - é sintetizada por Mészáros (ibid., 25) da seguinte

maneira:

Em princípio, o nível da ―metateoria‖ não pode

ser separado da teoria em si: é apenas enquanto

momento da análise que ele pode ser separado;

devendo, então, ser integrado novamente à síntese

global. Isso quer dizer: a metateoria é uma

dimensão integrante de toda a teoria e não um

setor privilegiado, regido por princípios

radicalmente diferentes. Não pode haver nenhuma

teoria coerente sem sua dimensão metateórica

própria e específica e, inversamente, não pode

haver nenhuma metateoria – nem mesmo aquela

dos pretensos ―tipos ideais‖ - que não esteja

profundamente arraigada em um conjunto de

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proposições teóricas inseparavelmente ligadas a

determinados valores sociais.

Eis, finalmente, como o filósofo (ibid., 25) completa o seu

raciocínio, ao resumir a interferência da ideologia no método de

pesquisa:

Os modelos e princípios da metateoria se

constituem com o apoio de um determinado

conjunto de dados já estruturados – isto é,

especificamente avaliados – que, por sua vez,

atuam como princípios gerais de toda seleção

posterior e da articulação dos dados disponíveis

[grifo nosso]. A recusa em considerar as

implicações ideológicas da elaboração de modelos

―societários‖ resulta na transformação não

intencional de um instrumento de análise em uma

ideologia auto-sustentada. (Não é de modo algum

fortuito que o século que produziu algumas das

formas de ideologia mais autocomplacente, a

pretexto da superação final de toda ideologia, viria

a se vangloriar de ser ―a era da análise‖.)

Isso significaria, então, que estamos defendendo

uma posição relativista nessa questão?

Exatamente o contrário. Pois é, precisamente, a

separação radical entre ―metateoria‖ e teoria, entre

―tipo ideal‖ e categorias da realidade empírica

que, necessariamente, levam ao relativismo, visto

que nenhum dos dois ―domínios‖ teóricos,

qualitativamente apostos, pode proporcionar

critérios de avaliação de adequação do outro.

Contudo, se concebermos seu relacionamento em

termos de uma reciprocidade dialética, e ambos

os níveis como inerentemente ligados às várias

manifestações da própria prática social, a questão

da ―objetividade‖ não precisará nem ser colocada

entre aspas, em constrangedor estilo weberiano,

nem muito menos confinada ao campo do tipo

ideal ―puramente lógico‖. Em outras palavras, não

haverá necessidade de se tentar o impossível: ou

seja, a solução de problemas basicamente

ontológicos no interior dos limites de critérios

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puramente epistemológicos.

Voltemos, pois, mais uma vez ao tema da nossa investigação.

Havíamos afirmado que, para Mészáros, a educação socialista deve se

voltar para a luta de classes, a fim de poder formar a consciência de

classe necessária dos trabalhadores, pressuposto fundamental para a

―transcendência positiva da auto-alienação do trabalho‖. Agora,

podemos completar essa tese dizendo que a consciência de classe

buscada tem um caráter necessariamente ideológico, sendo que tal

ideologia deve se constituir com base na assunção do ponto de vista

específico da classe trabalhadora. Partindo dessa perspectiva concreta é

que irão se articular os interesses (de classe) que darão a forma

adequada à investigação sobre a realidade e à tomada de consciência por

parte do proletariado do seu ser social na conjuntura histórica em

questão. Em outras palavras, a consciência de classe necessária, a teoria

– isto é, a ciência - e a estratégia política da classe trabalhadora devem

estar assentadas sobre uma ideologia e um ponto de vista adequados. A

educação socialista precisa, nesse contexto, saber como proporcionar

todos esses elementos.

Agora, devemos fazer uma pequena pausa nas reflexões acerca

dos temas da consciência, da teoria, da ideologia e da educação para

adentrarmos num importante ensaio de Mészáros cujo problema central

é a política. Trata-se de Poder político e dissidência nas sociedades pós-

revolucionárias26

, que veio à luz em 1977. Partindo de uma profunda

análise das revoluções socialistas ocorridas no século XX, bem como

dos antagonismos político-sociais que nelas se produziram, o filósofo

húngaro procura definir a natureza do poder político nesses lugares

onde se tentou realizar a transição para uma sociedade sem classes. Ao

fim do seu estudo, Mészáros apresenta-nos uma teoria do Estado

coerente e bem definida. Vejamos em que isso consiste.

O filósofo começa com a constatação de que, em tais formações

sociais – que ele nunca chama de socialistas, e sim de pós-

revolucionárias ou de pós-capitalistas -, o poder político, ao invés de se

dissolver entre a população, acabou tomando a forma de uma ditadura

sobre o proletariado. Ou seja, desenvolveu-se aí um profundo

antagonismo, onde as classes que aspiravam ao poder cindiram-se

26

No Brasil, esse texto apareceu pela primeira vez publicado em 1985, no número 14 da

revista Ensaio (São Paulo, Ed. Ensaio, 1985), e depois como o capítulo 22 de Para além do capital: rumo a uma teoria da transição (São Paulo: Boitempo, 2002). Para nosso trabalho,

iremos nos servir dessa última publicação.

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internamente e possibilitaram assim que uma de suas partes constituintes

passasse a exercer violenta dominação sobre as demais. A tarefa que

Mészáros se propôs a investigar no ensaio diz respeito, justamente, às

causas desse fenômeno singular. O filósofo húngaro (2002, 1023),

então, se questiona:

Quais eram essas determinações objetivas e

subjetivas que produziram a submissão do

proletariado à forma política pela qual assumiu o

poder? É possível superá-las? Como é possível

evitar as convulsões potenciais associadas à

necessidade imperativa de transformar

profundamente as formas vigentes de exercício de

poder político? Que condições são necessárias

para transformar as rígidas ―instituições da

necessidade‖ existentes, através das quais a

discordância é reprimida e a compulsoriedade é

imposta, em instituições mais flexíveis de

mobilização social, prenunciando aquele ―livre

desenvolvimento das individualidades‖ que

continua a nos escapar?

Em termos simplificados: por que, nas sociedades pós-

revolucionárias do século XX, aconteceu aquilo que aconteceu: um

segmento das classes revolucionárias se apartou das demais, passando a

exercer dominação sobre estas? E como proceder para que isso não

ocorra de novo nas próximas tentativas revolucionárias que poderão

emergir no horizonte da história? Descartando as teorias que buscam

compreender esses processos a partir de categorias problemáticas como

―burocratismo‖, ―capitalismo de Estado‖, ―traição‖ dos membros de

classe, Mészáros irá identificar as raízes de tais fenômenos nas

contradições objetivas inerentes à própria classe trabalhadora, mais

precisamente no antagonismo entre indivíduo e classe, fruto da divisão

hierárquica do trabalho mantida pelo domínio do capital sobre a

atividade produtiva.

É preciso dizer que essa não é necessariamente uma teorização

nova. Mészáros faz questão de ressaltar que Marx e Engels já se

referiam a esse tipo específico de antagonismo em A ideologia alemã. O

que o filósofo húngaro faz é retomar essa via interpretativa e aprofundá-

la, no objetivo de decifrar os meandros das estruturas de dominação que

se ergueram nas sociedades pós-revolucionárias do século passado. Qual

é, então, a base objetiva sobre a qual se ergueram essas contraditórias

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formas políticas? Segundo Mészáros, as coordenadas teóricas para

orientar a solução desse problema podem ser buscadas no célebre escrito

revolucionário de 1845:

Os proletários, caso venham a se impor como

indivíduos, terão que abolir a condição de

existência que tem prevalecido até o momento

(que tem sido, ademais, a das sociedades

conhecidas, especificamente, o trabalho). Assim,

eles se encontram diretamente opostos à forma na

qual, até hoje, os indivíduos, nos quais consiste a

sociedade, se deram expressão coletiva, isto é, o

Estado. Portanto, para que se imponham como

indivíduos, eles devem pôr abaixo o Estado.

(MARX e ENGELS, apud Mészáros, ibid., 1024)

Para que se afirmem, pois, plenamente como indivíduos, os

proletários precisam suprimir a relação antagônica que existe,

justamente, entre eles e o Estado. Mas a existência do Estado, por sua

vez, é expressão de uma contradição que se assenta na forma como se

organiza a atividade produtiva. Esta, configurada como trabalho – e

aqui trabalho deve ser entendido como a forma da atividade produtiva

tal como ela é organizada pelo capital -, se realiza de forma

interiormente cindida e controlada por uma estrutura hierárquica de

comando apartada dos sujeitos da produção. Tais são as profundas

contradições que fazem com que o indivíduo se encontre em profunda

oposição com o Estado e com a coletividade como um todo. Além disso,

diz Mészáros, tal antagonismo se verifica também no interior do próprio proletariado e se manifesta, nesse contexto, na contradição existente

entre o indivíduo e a sua classe. Mais uma passagem de A ideologia

alemã ajuda, aqui, o nosso esclarecimento acerca do raciocínio

mészáriano:

A classe, por sua vez, assume uma existência

independente em relação aos indivíduos, de modo

que estes últimos encontram sua condição vital

predeterminada, assim como sua posição na vida

e seu desenvolvimento pessoal destinados a eles

por sua classe, tornando-se assim subordinados a

ela. Este é o mesmo fenômeno da sujeição de

cada indivíduo à divisão do trabalho e só pode ser

eliminado através da abolição da propriedade

privada e do próprio trabalho. (MARX e

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ENGELS, apud Mészáros, ibid., 1025)

Trabalho, aqui, como dissemos acima, é definido como a forma

da atividade produtiva quando esta é controlada pelo capital. Libertar o

indivíduo do antagonismo e da subordinação à sua classe requer a

eliminação, justamente, do trabalho, isto é, das contradições inerentes à

estruturação hierárquica e fetichista da atividade produtiva. É importante

ressaltar a centralidade de tais contradições porque elas estão nas raízes

das formas políticas que assumiram as sociedades pós-revolucionárias

do século XX. Para Mészáros, é a divisão interna presente na própria

dinâmica do trabalho – portanto, da classe trabalhadora como tal - que

precede e está na origem do estabelecimento das ditaduras do

proletariado – na verdade, ditaduras sobre o proletariado – que vimos no

século passado.

Em suma, o antagonismo entre classe e indivíduo, a

fragmentação e a subordinação dentro da própria classe trabalhadora –

nesse sentido, a dominação do proletariado pelo próprio proletariado -,

todas essas coisas existem antes mesmo da tomada do poder, e, caso não

sejam superadas adequadamente durante o processo revolucionário,

acabarão inevitavelmente por se expressar, também, na nova forma política pós-revolucionária, não importando o lugar em que venha se dar

esse grande evento crítico-prático, pois essa dinâmica conflitiva no

interior das classes estruturalmente antagônicas em relação ao capital se

verifica, de acordo com o filósofo húngaro, tanto em países capitalistas

avançados, como nos menos desenvolvidos. Nas suas palavras (ibid.,

1025):

Sob qualquer (assim chamada) ―ditadura eleita de

ministros‖ (ou, do mesmo modo, sob qualquer

outra forma de democracia liberal [Mészáros está

se referindo aqui aos países mais avançados do

capitalismo]), se encontra a ―ditadura não eleita‖

da divisão hierárquico-social do trabalho, que

estruturalmente subordina uma classe a outra e, ao

mesmo tempo, também subjuga os indivíduos da

própria classe, destinando-os a uma posição e a

um papel estreitamente definidos na sociedade, de

acordo com os ditames materiais do sistema

socioeconômico prevalecente. Ela assegura

também, pouco cerimoniosamente, que, entrem ou

saiam os ministros conforme a vontade dos

eleitores, a estrutura de dominação em si

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permanece intacta [grifo nosso].

Qual é, então, o fundamento de ter havido a possibilidade de

uma ditadura do proletariado sobre o próprio proletariado e a

subordinação dos indivíduos à sua própria classe? Resposta: a

precedente existência de uma divisão hierárquica do trabalho. Ou, dito

por meio de outras palavras, a precedente existência do capital. É essa

forma da organização da atividade produtiva que deve ser superada caso

se pretenda que os indivíduos possam se afirmar como indivíduos e

abolir as estruturas sociais e políticas que os prendem ao jugo conflitivo

da alienação.

Observe-se como Mészáros chega, nesse momento, a um ponto

importantíssimo da sua reflexão, pois é aqui que o filósofo vai

estabelecer a diferença fundamental entre capital e capitalismo, que

nunca mais será abandonada ao longo do seu percurso intelectual. Nas

sociedades pós-revolucionárias do século XX, diz ele, aboliu-se apenas

e tão somente o capitalismo, mas não se eliminou a divisão hierárquica

do trabalho organizada pelo capital. O grande problema diante de tudo

isso foi que, uma vez tomado o poder, as não-eliminadas contradições

do trabalho e do capital acabaram por se acirrar, dando origem a uma

estrutura de comando apartada, opressora e violenta, sobre o

proletariado: uma ditadura sobre o proletariado.

Conseqüentemente, no plano da ideologia e da prática políticas,

ocorreu a formação daquilo que Mészáros designa como sendo uma

falsa representação27

: o pré-requisito para a emancipação de classe –

isto é, a cisão interna e a dominação da classe sobre a própria classe, que

deveriam ser superadas - foi apresentado como a condição suficiente de

sua total emancipação. Em outras palavras, a manutenção da divisão

hierárquica do trabalho foi prescrita como o modo próprio da

emancipação do trabalho.

O filósofo húngaro (ibid., 1026) esclarece, então, a respeito das

sociedades pós-revolucionárias e suas ditaduras efetivadas sobre o

proletariado, o seguinte:

É porque a ―condição de existência dos indivíduos

proletários, especificamente, o trabalho‖, não é

abolida como Marx defendia – é porque, em

27

Para Mészáros, ideologia não é sinônimo de falsa representação. A falsa representação é

uma das formas que assume a ideologia a partir de determinadas condições históricas

concretas.

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outras palavras, a divisão hierárquica do trabalho

social permanece a força reguladora fundamental

do sociometabolismo28

-, que o antagonismo,

28

Talvez seja esse o ensaio onde entra em cena – pela primeira vez, no primeiro plano - o

conceito de sociometabolismo (ou metabolismo social) na obra do filósofo húngaro. O que vem a ser isso? Mészáros responde, de forma sintética: ―O metabolismo social envolve o

intercâmbio necessário entre os próprios indivíduos e entre a totalidade dos indivíduos e a

natureza recalcitrante‖ (2007, 80). O sociólogo norte-americano John Bellamy Foster foi muito feliz, num artigo recente, ao ressaltar a importância de tal conceito na obra do filósofo húngaro

e a sua vinculação com o pensamento de Marx, dizendo que: ―A centralidade do conceito de

metabolismo no pensamento de Marx tem seu reconhecimento há bastante tempo, embora seu

completo significado tenha sido poucas vezes apreendido até recentemente. Marx definiu o

processo de trabalho em si em termos metabólicos. Conforme escreveu em O capital: ‗antes de

tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza‘. [...] De maneira

similar, uma formulação recente sobre o metabolismo ecológico, apoiada em Marx, convergiu

com a dialética de um sistema socialista viável de reprodução sociometabólica, como esboçado na obra de Mészáros, Para além do capital, em que as condições de uma sociedade futura

sustentável são delimitadas. [...] Como Marx, Mészáros utiliza a noção de metabolismo em

suas análises da sociedade humana, apresentando o capital como um sistema historicamente específico de ‗reprodução sociometabólica‘. Mészáros enfatiza que é importante constatar

como a lógica do capital é totalizadora, de tal forma que as preocupações ambientais não são

um assunto isolado. Ao contrário, estão intimamente vinculadas às relações socioecológicas da ordem de reprodução sociometabólica do capital, o que exige confrontar a questão do controle

social‖ (2010, 21-5). Apesar de longa, vale a pena mencionar ainda uma passagem de outra

obra de Foster – um profundo estudo acerca do conceito de metabolismo em Marx e sua importância para uma teoria crítica da devastação ecológica levada a cabo pelo capitalismo –

em que são elucidados aspectos importantes acerca das concepções do filósofo alemão: ―A categoria conceitual principal da análise teórica de Marx nesta área [isto é, na crítica marxiana

da degradação da natureza levada a efeito pela agricultura capitalista] é o conceito de

metabolismo (Stoffwechsel). A palavra alemã ‗Stoffwechsel‘ implica diretamente, nos seus elementos, uma noção de ‗troca material‘ subjacente à noção dos processos estruturados de

crescimento e decadência biológicos englobados pelo termo ‗metabolismo‘. Na definição do

processo de trabalho Marx tornou o conceito de metabolismo central a todo seu sistema de análise, enraizando nele a sua compreensão do processo de trabalho. Assim, na sua definição

do processo de trabalho em geral (contraposta às suas manifestações historicamente

específicas), Marx utilizou o conceito de metabolismo para descrever a relação do homem com a natureza através do trabalho: ‗[...] Ele [o processo de trabalho, JBF] é a condição universal da

interação metabólica [Stoffwechsel, JBF] entre o homem e a natureza, a perpétua condição da

existência humana imposta pela natureza‘‘. [...] Marx utilizou o conceito de metabolismo em todas as suas obras da maturidade, embora o contexto variasse. Até 1880, em Glosas a Adolph

Wagner, sua última obra de economia, Marx ressaltou a centralidade do conceito de

Stoffwechsel em toda a sua crítica da economia política, indicando que ‗eu empreguei a palavra... como o processo ‗natural‘ de produção de troca material [Stoffwechsel, JBF] entre o

homem e a natureza‘. ‗As interrupções da troca formal‘, na circulação de mercadorias,

enfatizou ele, ‗são posteriormente designadas como interrupções da troca material.‘ O fluxo circular econômico estava pois intimamente atrelado, na análise de Marx, à troca material

(fluxo circular ecológico) associada à interação metabólica entre os seres humanos e a

natureza. ‗Por toda parte, o processo químico regulado pelo trabalho‘, escreveu ele, ‗consistiu numa troca de equivalentes (naturais).‘ Desenvolvendo o caráter universal da troca material, da

qual a troca formal dos equivalentes econômicos na economia capitalista era uma mera

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esvaziado de sua justificativa pela expropriação da

classe oposta, se intensifica, criando uma nova

forma de alienação entre o indivíduo que constitui

a sociedade e o poder político que controla os seus

intercâmbios.

É porque a ditadura do proletariado não pode

remover as ―contradições da sociedade civil‖

abolindo ambos os lados do antagonismo social,

incluindo o trabalho – ao contrário, tem que visar

o apropriamento deste último em função da

absolutamente necessária ―base material‖ -, que o

―proletariado volta sua ditadura contra si mesmo‖.

Ou, para ser mais preciso: para manter seu

predomínio sobre a sociedade como uma classe, o

proletariado volta a sua ditadura contra todos os

indivíduos que constituem a sociedade, inclusive

os proletários.

Deve ficar claro, portanto, como tais considerações redefinem

radicalmente a estratégia a ser adotada pelos revolucionários para a

orientação do seu processo de emancipação. Em vez de envidarem seus

esforços para a tomada e ocupação do Estado, a fim de tentar comandá-

lo e, por meio dele, controlar a sociedade e seus antagonismos, o que

importa é primordialmente superar a divisão hierárquica do trabalho – o que exige, para tanto, a completa modificação das mediações que

regulam a atividade produtiva -, a contradição entre os indivíduos e sua

classe, a contradição inerente ao próprio proletariado.

Os esclarecimentos de Mészáros são sutis e extremamente

profundos e relevantes. Se não se abole a divisão hierárquica do

trabalho, o Estado – mesmo que seja ocupado por revolucionários

proletários (ou ligados ao proletariado) – é inevitavelmente chamado,

expressão alienada, Marx se referiu nos Grundrisse ao conceito de ‗sistema de metabolismo social geral, de relações universais, de necessidades globais e capacidades universais...

formado pela primeira vez‘ sob a produção generalizada de mercadorias. Marx portanto

empregava o conceito tanto para se referir à real interação metabólica entre a natureza e a sociedade através do trabalho humano (contexto em que o termo era normalmente usado nas

suas obras) quanto, num sentido mais amplo (sobretudo nos Grundrisse), para descrever o

conjunto complexo, dinâmico, interdependente, das necessidades e relações geradas e constantemente reproduzidas de forma alienada no capitalismo, e a questão da liberdade

humana suscitada por ele – tudo podendo ser visto como ligado ao modo como o metabolismo

humano com a natureza era expresso através da organização concreta do trabalho humano. O conceito de metabolismo assumia assim tanto um significado ecológico específico quanto um

significado social mais amplo‖ (2005, 221-3).

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conforme o filósofo (2002, 1027), a

regular, in toto e em detalhe, o processo de

produção e distribuição, determinando

diretamente a alocação de recursos sociais, as

condições e a intensidade do trabalho, a taxa de

extração do excedente e da acumulação, além da

participação de cada indivíduo naquela parcela do

produto social disponível para o consumo.

Ocorre, dessa forma, aquilo que Mészáros chama de

determinação política da extração do trabalho excedente. Isto significa

precisamente o seguinte: com a mera abolição do capitalismo – isto é,

com a supressão do sistema político/jurídico que assegura a propriedade

privada dos meios de produção – ainda permanece a divisão hierárquica

do trabalho, a extração fetichista do trabalho excedente. A diferença

reside apenas em que agora esse processo não é mais regulado por via

econômica – isto é, tendo como fonte da iniciativa da exploração de

trabalho excedente as unidades produtivas do sistema -, e sim política:

pelo próprio Estado proletário.

Em outras palavras, o que o filósofo húngaro está querendo

dizer é que, superado apenas o capitalismo, a extração do trabalho

excedente continua a se processar, só que agora utilizando critérios

extra-econômicos para sua realização - em última instância, a saber: o

critério da própria sobrevivência do Estado. É o contrário do Estado

liberal que, como explica Mészáros, não precisa ―regular diretamente a

extração de mais-valia, já que os complexos mecanismos da produção

de mercadorias se encarregam disso. Tudo o que ele tem a fazer é

assegurar indiretamente as salvaguardas do próprio sistema econômico‖

(ibid., 1027).

Devemos, nesse contexto, apresentar mais uma passagem

lapidar de Mészáros que esclarece a sua concepção a respeito de como o

Estado participa do processo de extração do trabalho excedente, tanto

nas sociedades capitalistas como nas pós-capitalistas. O filósofo

húngaro (ibid., 1027-8) afirma que:

nas presentes condições de desenvolvimento,

quando é possível testemunhar como tendência

que todo o sistema do capitalismo global se torna

extremamente ―disfuncional‖, o Estado é obrigado

a assumir cada vez maiores funções regulatórias

diretas, com implicações potencialmente sérias

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para a dissidência e a oposição.

Mas, mesmo nestas circunstâncias, as respectivas

estruturas são fundamentalmente diferentes, já que

o envolvimento político do Estado capitalista se

aplica indiretamente a um sistema de produção de

mercadorias dominante e o objetivo de fundo é a

reconstituição da função auto-regulatória deste

último, seja isto viável ou não [grifo nosso].

Em contraste, o Estado pós-revolucionário

combina, como norma, a função de controle do

processo político geral com a do controle do

processo de vida material da sociedade. É a

interação geral íntima entre os dois processos que

produz dificuldades aparentemente insuplantáveis

para a dissidência e oposição [grifo nosso].29

Estabelecida essa teoria do Estado e compreendido o porquê de,

nas sociedades pós-revolucionárias, haverem se formado ditaduras

contra o proletariado, Mészáros complementa suas teses afirmando que

o que os socialistas devem buscar é superar não meramente o

capitalismo, mas fundamentalmente o capital. Vale a pena ler uma vez

mais o filósofo húngaro (ibid., 1029):

Na verdade, o conceito de capital é muito mais

fundamental que o de capitalismo. O último está

limitado a um período histórico relativamente

29

Mészáros não é, certamente, o único autor a duvidar do caráter socialista das sociedades

que, no século XX, implementaram revoluções com o objetivo de suplantar de uma vez por

todas a ordem social burguesa. Citamos, a título de exemplo, a obra de Paul Sweezy (1981), pequena em tamanho, mas grande em lucidez, intitulada, justamente, A sociedade pós-

revolucionária. Neste livro, a partir de um debate realizado com, dentre outros autores,

Bettelheim e Mandel, e com base numa profunda análise crítica dos processos sociopolíticos que ocorreram principalmente na União Soviética, Polônia e China, o célebre economista

norte-americano chegou à conclusão de que o que havia se formado aí eram sociedades que

não se poderia chamar nem de capitalistas, nem de socialistas, mas de um tipo novo, qualitativamente diferente, e que precisavam ser compreendidas em suas determinações mais

essenciais, a fim de se extrair daí lições importantes para as tentativas revolucionárias futuras.

Nas sociedades pós-revolucionárias, afirma Sweezy, se verifica ―a politização do processo de utilização do excedente‖ (1981, 127) e uma visceral divisão entre os sujeitos que planejam e

tomam as decisões acerca dos processos produtivos e os que os realizam na prática. Apesar de

percebermos uma certa diferença entre os autores quanto ao entendimento do que seja o capital, acreditamos haver uma certa ―afinidade eletiva‖ entre as teorizações de Mészáros e

Sweezy.

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curto, enquanto o primeiro abarca bastante mais

que isto: ocupa-se, além do modo de

funcionamento da sociedade capitalista, das

condições de origem e desenvolvimento da

produção do capital, incluindo as fases em que a

produção de mercadorias não é abrangente e

dominante como no capitalismo. […]

O domínio do capital, fundado no atual sistema da

divisão do trabalho (que não pode ser abolido

apenas por um ato político, mesmo que radical e

livre de ―degeneração‖), prevalece assim durante

uma parte significativa do período de transição,

embora deva exibir características de uma

tendência decrescente, para que a transição possa

ter qualquer êxito. Mas isso não significa que as

sociedades pós-revolucionárias continuem

―capitalistas‖, da mesma forma que a sociedade

feudal e as anteriores não podem ser corretamente

caracterizadas como capitalistas em função do

maior ou menor uso de capital monetário e da

mais ou menos desenvolvida parcela nelas

ocupada, como elemento subordinado, pela

produção de mercadorias.

O que importa, então, fundamentalmente, para os socialistas, é

eliminar tal conjunto de relações sociais ―fundado no atual sistema da

divisão do trabalho‖: o capital. É isso – e não apenas a tomada do

Estado, com a conseqüente expropriação dos expropriadores e a

eliminação da propriedade privada (embora esses passos, no processo

revolucionário, possam e devam ser realizados) – que impedirá uma

nova forma política alienada de exercer arbitrariamente um comando

ditatorial sobre os trabalhadores, perpetuando assim o seu

aprisionamento dentro do conjunto de relações sociais dado. Capital,

portanto, deve ser bem distinguido de capitalismo. Como explica

Mészáros (ibid., 1029):

Capitalismo é aquela particular fase da produção

do capital na qual:

1. a produção para a troca (e assim a mediação e

dominação do valor-de-uso pelo valor-de-

troca) é dominante;

2. a força de trabalho em si, tanto quanto

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qualquer outra coisa, é tratada como

mercadoria;

3. a motivação do lucro é a força reguladora

fundamental da produção;

4. o mecanismo vital de extração da mais-valia,

a separação radical entre meios de produção e

produtores, assume uma forma inerentemente

econômica;

5. a mais-valia economicamente extraída é

apropriada privadamente pelos membros da

classe capitalista; e

6. de acordo com seus imperativos econômicos

de crescimento e expansão, a produção do

capital tende à integração global, por

intermédio do mercado internacional, como

um sistema totalmente interdependente de

dominação e subordinação econômica.

O capitalismo, diz Mészáros, pode ser eliminado sem que se

supere o capital. Foi o que ocorreu, segundo o filósofo, nas sociedades

pós-revolucionárias do século passado, onde os burgueses foram

derrotados e a propriedade privada, suprimida. Mas não aconteceu aí a

superação da dominação hierárquica do trabalho e a concomitante

exploração do trabalho excedente. Como esclarece mais uma vez

Mészáros (ibid., 1030):

O capital [manteve] o seu – de forma alguma

restrito – domínio nas sociedades pós-

revolucionárias principalmente através:

1. dos imperativos materiais que circunscrevem

as possibilidades da totalidade do processo

vital;

2. da divisão social do trabalho herdada que,

apesar das suas significativas modificações,

contradiz ―o desenvolvimento das livres

individualidades‖;

3. da estrutura objetiva do aparato produtivo

disponível (incluindo instalações e

maquinaria) e da forma historicamente

limitada ou desenvolvida do conhecimento

científico, ambas condições da divisão social

do trabalho; e

4. dos vínculos e interconexões das sociedades

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pós-revolucionárias com o sistema global do

capitalismo, quer estes assumam a forma de

―competição pacífica‖ (intercâmbio comercial

e cultural), quer assumam a forma de oposição

potencialmente mortal (desde corrida

armamentista até maiores ou menores

confrontações reais em áreas sujeitas a

disputa).30

Apesar de, nesse ensaio, Mészáros se centrar exclusivamente

em questões de cunho social e político, acreditamos que ele diz muito

para a teoria da educação. Para que, pois, educação revolucionária? Para

se ir além da divisão hierárquica do trabalho, da exploração de trabalho

excedente, das contradições inerentes ao próprio proletariado, suas

divisões internas e a subordinação do indivíduo à sua classe. Numa

palavra: educação para superar o capital, e não meramente o

capitalismo.31

Em 1982, Mészáros escreve mais um ensaio que diz respeito

diretamente às nossas pretensões investigativas, desta vez tratando

novamente sobre o tema do conhecimento: Marx filósofo.32

Nesse texto,

o filósofo aprofunda mais detalhes da questão referente ao ponto de

vista do trabalho e apresenta, salvo engano, pela primeira vez em sua

obra, uma definição do que consiste a ―ciência real, positiva‖, de Marx -

e que também será a sua.

Impossível ressaltar suficientemente, nesse contexto, a

importância da questão do ponto de vista de classe na teoria de

Mészáros. Como, afinal, uma determinada perspectiva social assumida

pelo pesquisador interfere na apreensão teórica de seu objeto histórico e

por que é importante saber como isso se dá? O filósofo húngaro (2008,

108) assim responde:

A razão pela qual isso é de importância capital é

que os mesmos fenômenos, desde que as classes

rivais estejam diretamente envolvidas, aparecem

de forma bem diferente se forem observados a

30

No próximo capítulo, veremos como Mészáros, nos anos seguintes, aprofundará sua

teorização sobre o capital, no sentido de apresentar todos os elementos que compõem o seu

sistema de mediações. 31

Há mais de trinta anos, portanto, Mészáros tem uma teoria da educação para além do

capital. 32

Mais uma vez, a versão de que nos servimos é a que está contida (como 3º capítulo) de

Filosofia, ideologia e ciência social – Ensaios de negação e afirmação. Op. cit.

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partir de um ponto de vista oposto e, portanto,

prestando-se a interpretações radicalmente

diferentes. Como Marx comentou em Grundrisse

der Kritik der politischen Ökonomie […]: ―Esse

processo de objetivação aparece, de fato, como

um processo de alienação a partir do ponto de

vista do trabalho, como apropriação do ponto de

vista do capital‖. A adoção crítica de Marx do

ponto de vista do trabalho significa uma

concepção do proletariado não apenas como uma

força sociológica diametralmente oposta ao ponto

de vista do capital – e permanecendo assim na

órbita deste – mas como uma força histórica

autotranscendente que não pode deixar de superar

a alienação (ou seja, a forma histórica de

objetivação) no processo da realização de seus

próprios fins, que coincidem com a

―reapropriação‖.

Como demonstrado por essa cristalina explicação de Mészáros,

um mesmo fenômeno aparece de forma diferente quando tomado por

perspectivas de classe distintas (a ―objetivação‖ aparece como

―alienação‖ do ponto de vista do trabalho e como ―apropriação‖ do

ponto de vista do capital). Ambos os pontos de vista não possuem jamais

as mesmas possibilidades cognitivas. O filósofo húngaro faz questão de

esclarecer, mais uma vez, em que consiste a especificidade do ponto de

vista do ―novo materialismo‖, mencionado por Marx em sua décima

Tese sobre Feuerbach. Essa nova perspectiva, segundo Mészáros (ibid.,

107), tem a

―subversão prática das relações sociais‖, como

princípio-guia e padrão de medida do sentido da

nova filosofia. Filosofia que surge em momento

particular da história a partir de uma práxis social

determinada. Uma filosofia que – em

conformidade com a unidade entre a teoria e a

prática – contribui de maneira vital para o

desdobramento e a realização completa das

potencialidades inerentes a essa práxis

emancipatória.

É com base em tal perspectiva social – interessada na subversão

prática das relações sociais - e em tal filosofia – que une teoria e prática

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para realizar esse propósito - que surge a nova ciência, a ―ciência real,

positiva‖, de Marx: ―Ali onde termina a especulação, na vida real,

começa também, portanto, a ciência real, positiva, a exposição da

atividade prática, do processo prático de desenvolvimento dos homens‖

(MARX, apud Mészáros, ibid., 103).

Mais uma passagem de Marx, citada por Mészáros, deve ser

apresentada a fim de deixar plenamente esclarecido o significado dessa

nova forma de apreender intelectualmente o ser social:

Essa concepção [isto é, a ―ciência real, positiva‖]

da história depende da nossa capacidade para

expor o processo de produção […] a partir da

produção material da vida imediata e em conceber

a forma de intercâmbio conectada a esse modo de

produção e por ele engendrada, quer dizer, a

sociedade civil em seus diferentes estágios, como

o fundamento de toda a história, tanto a

apresentando em sua ação como Estado como

explicando a partir dela o conjunto das diferentes

criações teóricas e formas da consciência –

religião, filosofia, moral etc. etc. - e em seguir o

seu processo de nascimento a partir dessas

criações, o que então torna possível,

naturalmente, que a coisa seja apresentada em sua

totalidade (assim como a ação recíproca entre

esses diferentes aspectos). Ela não tem

necessidade, como na concepção idealista da

história, de procurar uma categoria em cada

período, mas sim de permanecer constantemente

sobre o solo da história real; não de explicar a

práxis partindo da idéia, mas de explicar as

formações ideais a partir da práxis material e

chegar, com isso, ao resultado de que todas as

formas e [todos os - IM] produtos da consciência

não podem ser dissolvidos por obra da crítica

espiritual, […] mas apenas pela demolição

prática das relações sociais reais [realen - IM] de

onde provêm essas enganações idealistas; não é a

crítica, mas a revolução a força motriz da história

e também da religião, da filosofia e de toda forma

de teoria. (MARX, apud Mészáros, ibid., 103)

A importância de tais concepções para uma teoria socialista da

política e da educação é evidente. A ciência nova proposta por Marx é

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esta que está voltada para a compreensão dos ―homens reais e ativos‖,

como eles fazem a si mesmos a partir das condições legadas pelas

gerações passadas. Uma ciência que busca, pois, compreender o ―real processo de desenvolvimento, perceptível empiricamente‖, em suma, o

processo prático de desenvolvimento humano em sua totalidade. E

apesar de Marx designar essa sua ciência de ―positiva‖, não se deve

alimentar a ilusão de que o filósofo alemão esteja querendo com isso se

inserir no campo do positivismo filosófico. A diferença entre a ―ciência

positiva‖, no sentido que lhe atribui Marx, e as ―ciências positivas‖ dos

empiristas do século XIX é resumida por Mészáros (ibid., 104-5) da

seguinte maneira:

Outro ponto que não enfatizamos suficientemente

é a substituição do termo ―ciência positiva‖ - que

Marx usa no singular […] - pelo termo ―ciências

positivas‖ - usado pelos empiristas, sugerindo que

a nova filosofia simplesmente ―resume‖ os

resultados de tais ―ciências (―seus resultados‖)

positivas‖ (naturais) ―por meio do pensamento

dialético‖. Isso não é de maneira nenhuma um

lapso sem importância. Pelo contrário, suas

implicações são muito graves e de amplas

conseqüências. Esta é a passagem de Marx tão

significativamente transformada por Engels: ―A

filosofia autônoma perde, com a exposição da

realidade, seu meio de existência‖. É substituída,

no início, por uma ―síntese dos resultados mais

gerais que podem ser abstraídos do estudo do

desenvolvimento histórico dos homens‖. De uma

maneira clara, então, os ―resultados‖ mencionados

por Marx não são aqueles das ciências positivas

que deixam para a filosofia somente o papel de

―resumir seus resultados por meio do pensamento

dialético‖. […] Na visão de Marx, ao contrário, os

resultados de que estamos tratando são, eles

próprios, produzidos pela teoria que também os

sintetiza, e são produzidos através do exame do

real desenvolvimento histórico dos homens,

colocando em relevo suas características objetivas

mais significativas – constituídas de maneira

prática. Além disso, esse exame não é,

obviamente, um problema de simples observação,

mas um processo dialético para se apoderar do

imensamente rico ―processo de vida ativo‖ (em

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contraste marcante com a ―coleção de fatos

mortos, como acontece com os empiristas, que

ainda são abstratos‖) dentro de uma bem definida

estrutura orientada pela práxis, com a finalidade

de elaborar a grande variedade de fatores

envolvidos no exame da atividade prática dos

homens, desenvolvidos historicamente de acordo

com determinadas ―premissas materiais‖ e, desse

modo, reconstituindo de maneira dialeticamente

ativa a própria estrutura teórica que abarca

novamente o próximo ciclo de estudo. É isso que

Marx quer dizer com a ―ciência positiva‖ que é

necessariamente totalizante e por isso mesmo não

pode existir no plural – não no sentido marxista

do termo. Ele torna isso amplamente claro quando

insiste que na sua concepção – que explica todas

as manifestações teóricas, relacionando-as ao seu

terreno material, em associação com o princípio

da unidade entre a teoria e a prática - ―a questão

toda pode ser retratada na sua totalidade‖,

enquanto ―as ciências positivas‖ deixam

inevitavelmente a tarefa da totalização intocada, já

que esta situa-se para além de qualquer uma delas.

Essa é a forma de ciência que deve ser realizada, pois, pela

educação socialista. E ela só pode ser levada a efeito, como explicamos

anteriormente, se estiver calcada numa ideologia e num ponto de vista

de classes adequados. É somente tal tipo de ciência que pode ser capaz

de constituir a consciência de classe necessária para a elaboração de

uma estratégia de ação e organização políticas que possibilitem a

―transcendência positiva da auto-alienação do trabalho‖.

O próximo trabalho de Mészáros que deve ser consultado para

atender aos nossos propósitos é também de 1982: Política radical e transição para o socialismo – Reflexões sobre o Centenário de Marx.

33

Diferentemente de A teoria da alienação..., onde as reflexões de

Mészáros sobre a superação das mediações antagônicas do capitalismo

possuíam um cunho muito mais filosófico, o que se apresenta agora é

uma teoria política calcada numa avaliação concreta sobre o capital em

33

A informação de que o referido ensaio foi escrito em 1982 deve-se a Antunes (2009).

Servimo-nos, nesta pesquisa, da versão publicada no Brasil em 1983, na revista Nova escrita ensaio (São Paulo: ano V, nº 11/12 p. 105-125), onde não aparece a data do original.

Posteriormente, o texto apareceu como capítulo 24 de Para além do capital.

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crise estrutural.34

O pensador húngaro define, nesse ensaio, nada menos

que o sentido de se ir para além do capital. O capital é aí conceituado,

mais uma vez, como algo diferente de capitalismo – o que será um

ponto crucial, como dissemos antes, para toda a teorização posterior de

Mészáros. Com base em tais especificações, o filósofo estabelece a

atualidade da ofensiva socialista, apresenta os sinais e os fatores da

crise estrutural do capital e da teoria da transição e funda o papel da

política radical. O primeiro ponto importante a ser explicitado é aquele,

justamente, em que Mészáros define o significado de se ir para além do

capital. Com Marx, o antigo discípulo de Lukács afirma que o objeto da

crítica teórico-prática radical deve ser fundamentalmente o capital - e

não somente o capitalismo. Nas suas palavras (1983, 107), a diferença

entre tais conjuntos de relações sociais fica assim conceituada:

―Capital‖ é uma categoria histórica dinâmica e a

força social a ela correspondente aparece – na

forma de capital ―monetário‖, ―mercantil‖ etc. -

vários séculos antes da formação social do

CAPITALISMO enquanto tal emergir e se

consolidar. De fato, Marx estava muito

interessado em apreender as especificidades

históricas das várias formas do capital e suas

transições de uma a outra, até que eventualmente

O CAPITAL INDUSTRIAL se torne a força

dominante do metabolismo sócio-econômico e

objetivamente defina a fase clássica da formação

capitalista [grifos e maiúsculas de Mészáros].

Assim, fica mais uma vez estabelecido que capital, para o

filósofo húngaro, é algo distinto e diverso de capitalismo. Capitalismo

diz respeito a uma fase específica da reprodução do capital - com

propriedade privada dos meios de produção, apropriação privada da

mais-valia, forma econômica de extração de trabalho excedente, lucro

como forma precípua de incentivo produtivo material, etc. -, enquanto

que capital tem a ver com a estrutura social hierárquica e fetichista de

controle sobre o trabalho. O capital se realiza de forma mais bem

34

Acreditamos que, em larga medida, esse ensaio complementa a teorização em curso desde

1977, no texto Poder político e dissidência nas sociedades pós-revolucionárias. E, finalmente, começa-se a explicitar o caráter estrutural da crise do capital, mencionada pela primeira vez em

1971.

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acabada no capitalismo, mas pode sobreviver a ele, como demonstrado

pelo exemplo das revoluções socialistas do século XX. Mészáros afirma

que o que surgiu daí não foram propriamente sociedades socialistas, e

sim pós-capitalistas, ou pós-revolucionárias, por haverem superado

apenas as determinações que compunham o capitalismo (propriedade

privada, etc.), mas não o capital em si. A meta dos socialistas deve ser,

portanto, ir além do capital, e não apenas do modo de produção

capitalista. Nas palavras do filósofo húngaro (ibid., 108):

O objetivo estratégico real de toda transformação

socialista é e continua sendo a radical

transcendência do próprio capital, em sua

complexidade global, e na totalidade de suas

configurações históricas dadas e potenciais, e não

meramente desta ou daquela forma particular do

capitalismo mais ou menos desenvolvido

(subdesenvolvido). É possível visualizar a

negação e a superação do capitalismo numa

estrutura sócio-histórica particular, dado que as

próprias condições específicas favorecem tal

intervenção histórica. Ao mesmo tempo, a

estratégia muito debatida do ―socialismo num só

país‖ é efetivável apenas como projeto pós-

capitalista. Em outras palavras, é realizável

apenas como um passo na direção de uma

transformação sócio-histórica global, cujo

objetivo não pode ser outro do que ir para além

do capital em sua totalidade.

A atualidade histórica da ofensiva socialista se assenta, então,

sobre essas coordenadas. No contexto histórico da crise estrutural do

capital - e aqui a teorização sobre esse tema ganha uma concretude

maior se se comparada às obras mészárianas anteriores (note-se que

agora a crise estrutural mencionada é do capital, e não mais do

capitalismo) -, essa nova estratégia política aparece, segundo Mészáros

(ibid., 110), em virtude dos seguintes fatos:

1. Crescente dificuldade e, por fim,

impossibilidade de obter ganhos defensivos – ao

molde do passado – através das existentes

instituições defensivas (e, em conseqüência, o fim

do consenso político, trazendo com isto uma

notória postura mais agressiva das forças

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dominantes do capital vis-à-vis ao trabalho).

2. A pressão objetiva pela reestruturação radical

das instituições de luta socialista existentes, para

se ser capaz de ir ao encontro do novo desafio

histórico, numa base organizacional que se

evidencie adequada à necessidade crescente de

uma estratégia ofensiva.

O que está em jogo, então, é a constituição de uma

estrutura organizativa capaz não só de negar a

ordem dominante, mas também, simultaneamente,

de exercer as funções vitais positivas de controle

[grifo nosso], na nova forma de auto-atividade e

autogestão, se, realmente, as forças socialistas

estão para romper o círculo vicioso do controle

social do capital e a sua própria dependência

negativa e defensiva em relação a ele.

Portanto, com base na diferenciação crucial entre capital e

capitalismo, Mészáros ressalta que o objetivo dos socialistas é o de

derrotar, fundamentalmente, o primeiro. Sua atitude deve ser ofensiva –

mais um conceito que será desenvolvido amplamente ao longo de toda

obra posterior do filósofo -, a partir de uma postura que seja

concomitantemente negativa e positiva. É, pois, a crise estrutural do

capital, com a conseqüente impossibilidade – ou, no mínimo, grandes

dificuldades – de ganhos defensivos, que fundamenta a atualidade da

ofensiva socialista.

Mas o que vem a ser precisamente essa nova modalidade de

crise? No curso de sua investigação, Mészáros identifica em fins da

década de 1960 um conjunto de fenômenos que sinalizariam um outro

tipo de situação crítica a acometer o sistema, desta vez não mais como

as tradicionais crises conjunturais comumente verificadas no

capitalismo. Esses fenômenos estariam representados pela Guerra do

Vietnã, o maio de 1968 francês e a repressão feita pela URSS, naquele

período, às reformas na Tchecoslováquia e na Polônia. Juntos, tais

fatores representariam precisamente o seguinte: 1) contradições

acontecendo em nível de relação dos países capitalistas “metropolitanos” com os subdesenvolvidos; 2) contradições entre os

países capitalistas avançados tomados em si mesmos; e 3) contradições

existentes nos próprios países pós-capitalistas.

E tais contradições, por sua vez, estariam relacionadas com a

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própria forma de produtividade capitalista, que teria se convertido em

produtividade destrutiva a partir das demandas crescentes do complexo

militar-industrial - que havia aumentado então enormemente o seu papel

na economia global; e com a emergência das áreas industrializadas do

chamado ―Terceiro Mundo‖, que estariam se afirmando cada vez mais

como competidoras do capitalismo ―metropolitano‖ e mantendo com ele

uma espécie de relação simbiótica perversa.

Segundo o filósofo húngaro, a superação desse estado de coisas

só pode ser feita se nos orientarmos por uma teoria da transição

coerentemente elaborada com base numa avaliação concreta da atual

estrutura do sistema do capital. Essa teoria não pode se limitar a pautar

as atuações políticas que se dão no plano do parlamento, a fim de

meramente ajudar a assegurar os direitos historicamente conquistados

dos trabalhadores. Precisa, necessariamente, transcender a postura

defensiva que caracterizou por muito tempo o movimento socialista.

Nas palavras de Mészáros, ―a necessidade, hoje, de uma teoria

compreensiva da transição aparece na agenda histórica da perspectiva de

uma ofensiva socialista [grifo nosso], no terreno de sua atualidade

histórica geral, em resposta à crescente crise estrutural do capital que

ameaça a verdadeira sobrevivência da humanidade‖ (ibid., 115).

A teoria da transição deve ser capaz de orientar a ofensiva

socialista para que se realize como política radical (de ―reestruturação

radical‖). Esta, para ter sucesso em seus propósitos, necessita, conforme

as palavras do filósofo húngaro (ibid., 123-4),

transmitir, no auge da crise, suas aspirações – na

forma de efetivos poderes de tomada de decisão –

ao próprio corpo social, do qual as demandas

materiais e políticas subseqüentes podem emanar

e, assim, sustentarem sua própria linha estratégica,

em lugar de militarem contra ela.

Tal transferência de poder político, juntamente

com a sua íntima ligação com a própria estrutura

sócio-econômica, só é possível em tempos de

grandes crises estruturais: quando, eis o ponto, as

premissas tradicionais do metabolismo sócio-

econômico dominante não só podem, mas

precisam ser questionadas. [...]

O único caminho […] no qual o momento

histórico da política radical pode ser prolongado e

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estendido – sem, eis o ponto, recorrer a soluções

ditatoriais, contra as intenções originais – é fundir

o poder de tomada de decisão política com a base

social [grifo nosso] da qual ele foi alienado

durante tanto tempo, criando, por esse meio, um

novo modo de ação política e uma nova estrutura

– determinada genuinamente pela massa – de

intercâmbios sócio-econômicos e políticos. É por

isso que uma ―reestruturação da economia‖

socialista só pode processar-se na mais estreita

conjugação com uma reestruturação política,

orientada pela massa, como sua necessária pré-

condição.

Pelo que foi exposto acima, fica clara a relevância do ensaio

Política radical e transição para o socialismo para a compreensão da

teoria da educação de Mészáros. Esta, em verdade, precisa se integrar

num projeto de política radical, orientada por uma teoria da transição

adequada, elaborada com base numa ―análise concreta da situação

concreta‖, isto é, das condições determinadas do capital em crise

estrutural.

O objetivo do filósofo húngaro, como vem expondo desde seus

primeiros escritos, é a ―transcendência positiva da auto-alienação do

trabalho‖, mas agora essa alienação começa a ser compreendida

concretamente a partir de seus fundamentos materiais estabelecidos, isto

é, como produto de uma conjuntura histórica específica, a da crise

estrutural do sistema do capital. Somente com essa nova realidade bem

compreendida é que se pode elaborar uma proposta de ação política

viável e coerente para a superação da – agora muito mais claramente

definida – relação-capital. É no interior, justamente, dessa teoria

revolucionária concreta que a educação possui papel fundamental.

Isto posto, devemos retornar neste momento ao tema da

ideologia. Em 1993, aparece no Brasil uma introdução de Mészáros

escrita para a edição de Filosofia, ideologia e ciência social. Tal

introdução é, possivelmente, a melhor síntese onde o filósofo húngaro

apresenta, de uma maneira ―positiva‖, esse conceito fundamental do seu

edifício teórico.35

35

A Introdução de que nos servimos aqui é a que foi publicada em Filosofia, ideologia e

ciência social - Ensaios de negação e afirmação (São Paulo: Editora Ensaio, 1993). Esse livro

foi originalmente lançado em inglês, em 1986. A introdução à essa edição brasileira não está datada, mas como ela faz referência, em seu interior, ao livro O poder da ideologia –

originalmente lançado, em inglês, em 1989 -, deduzimos que ela tenha sida escrita depois dessa

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Em que deve consistir uma forma de pensar o processo de

reprodução do capital que proporcione não só na a compreensão

concreta das determinações fundamentais desse sistema, mas que

contribua também para o enfrentamento prático e a superação do

mesmo, no sentido da realização de uma ordem social radicalmente

diferente, metabolicamente sustentável, humanamente emancipada?

A primeira afirmação contundente do filósofo a esse respeito é a

de que a ideologia se refere e se vincula necessariamente à prática, isto

é, ela influencia as práticas sociais para a manutenção da ordem social

ou para a sua superação.

Mészáros faz, então, uma diferenciação entre os tipos existentes

de ideologia. A ideologia da classe dominante, aquela que concorre para

a manutenção da ordem social, é inerentemente mistificadora. Como

podemos verificar pelas palavras do filósofo húngaro (1993, 10):

o poder da ideologia dominante é

indubitavelmente enorme, não só pelo esmagador

poder material e por um equivalente arsenal

político-cultural à disposição das classes

dominantes, mas sim porque esse poder

ideológico só pode prevalecer graças à posição de

supremacia da mistificação [grifo nosso], através

da qual os receptores potenciais podem ser

induzidos a endossar, ―consensualmente‖, valores

e diretrizes práticas que são, na realidade,

totalmente adversos a seus interesses vitais.

Entretanto, existe um outro tipo de ideologia cujo sentido é

exatamente a crítica da ordem estabelecida, e que deve ser, por isso,

data – isto é, depois de 1989. Em virtude de não haver sido fornecida a data da composição desse texto – concebido para apresentar uma série de ensaios produzidos entre os anos de 1971

e 1986, tomaremos, para fazer referência a ele, a data que apareceu na edição brasileira da

Editora Ensaio (1993). Deve-se mencionar, ainda, que a teoria da ideologia de István Mészáros, elaborada ao longo de várias décadas, teve na obra O poder da ideologia – lançada

originalmente, como dissemos, em 1989 – um dos seus principais veículos de expressão. Aí, o

conceito de ideologia é desenvolvido a partir do confronto com vários autores destacados do cenário filosófico e teórico-social do século XX – Weber, Habermas, Adorno, Marcuse,

Merleau-Ponty, só para citar alguns dos mais célebres. Infelizmente, em virtude das limitações

deste trabalho, não poderemos seguir passo a passo o percurso realizado por Mészáros no referido livro. Contudo, acreditamos que o texto que agora analisaremos – a Introdução à

Filosofia, ideologia e ciência social - oferece uma boa súmula da teorização exposta naquela

obra anterior, e, salvo engano, nada do que lá está aqui se perde. Cremos poder afirmar, então, que o conceito de ideologia que nessa Introdução se encontra delineado constitui a síntese do

pensamento de Mészáros a respeito do tema.

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justamente, desmistificadora. Nesse campo, situa-se a teoria de Marx -

que Mészáros concebe, sim, como já deve estar claro, como um tipo

específico de ideologia. Nas palavras do filósofo húngaro (ibid., 10):

As ideologias críticas, que procuram negar a

ordem estabelecida [grifo nosso], não podem

sequer mistificar seus adversários, pela simples

razão de não terem nada a oferecer – nem mesmo

subornos ou recompensas pela aceitação – àqueles

já bem estabelecidos em suas posições de

comando, conscientes de seus interesses imediatos

palpáveis. Portanto, o poder de mistificação sobre

o adversário é privilégio da ideologia dominante.

A ideologia dominante, conservadora por excelência, mistifica

as práticas sócio-reprodutivas estabelecidas, bem como as

representações feitas sobre essas mesmas práticas. A ideologia crítica,

por sua vez, que visa romper com a ordem estabelecida, é a que busca

superar essas mistificações. Ideologia, portanto, não é sinônimo de

―falsa consciência‖. Leiamos, nesse sentido, mais uma vez Mészáros

(ibid., 10):

Essa circunstância, por si só, já evidencia como

seria ilusória a tentativa de explicar a ideologia

meramente pelo rótulo de ―falsa consciência‖,

pois o que define a ideologia como ideologia não

é o seu alegado desafio à ―razão‖, nem sua

divergência em relação às normas pré-concebidas

de um ―discurso científico‖ imaginário, mas sua

situação real em um determinado tipo de

sociedade. As complexas funções da ideologia

surgem exatamente dessa situação, não sendo

minimamente inteligíveis em termos de critérios

racionalísticos e cientificistas abstratos a elas

contrapostos, o que constitui meramente uma

petição de princípio.

A ideologia é, assim, um tipo específico de consciência social.

Como tal, ela é inseparável das sociedades de classes. Nesse meio, a

ideologia se relaciona sempre com os processos que se vinculam ao

controle do metabolismo social. A ideologia é, aí, pois, uma forma de consciência prática da sociedade, ainda que possua uma ―autonomia

relativa‖ sobre algumas determinações da formação social da qual é

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expressão. Como explica resumidamente Mészáros (ibid., 11-2),

A ideologia, como forma específica de

consciência social, é inseparável das sociedades

de classe. Ela se constitui como consciência

prática inescapável de tais sociedades, vinculada

à articulação dos conjuntos de valores rivais e

estratégias que visam ao controle do metabolismo

social [grifo nosso] sob todos os seus principais

aspectos. Os interesses sociais, que se revelam ao

longo da história e que se entrelaçam de modo

conflituado, encontram suas manifestações no

plano da consciência social na grande diversidade

do discurso ideológico, relativamente autônomo

(mas, de forma nenhuma, independente), com seu

poderoso impacto mesmo sobre os processos

materiais mais tangíveis do metabolismo social.

[…]

Assim, as ideologias conflitantes de qualquer

período histórico constituem a necessária

consciência prática, através da qual as mais

importantes classes da sociedade se relacionam e

até mesmo, de certa forma, se confrontam

abertamente, articulando sua visão da ordem

social correta e apropriada como um todo

abrangente.

Os conflitos entre os interesses sociais de classe expressam-se

necessariamente na ideologia. O principal desses interesses é aquele que

concerne ao controle do metabolismo social. A ideologia é, então, uma

forma de consciência orientada para a prática, onde o que está em jogo é

a regulação do intercâmbio que os homens mantêm com a natureza. Por

meio dessas formas ideológicas, eles se tornam conscientes - uma

consciência contingente ou necessária, mistificadora ou não - desse

conflito de interesses práticos. Esse antagonismo, por fim, só pode ser

adequadamente resolvido por intermédio das lutas de classes.

Nesse contexto, a ideologia produz a articulação dos interesses de classe de modo a produzir ―indicadores práticos‖ e ―estímulos

mobilizadores‖ direcionados à ação. Conforme explica Mészáros (ibid.,

12-3),

É essa orientação prática que define também o

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tipo de racionalidade apropriada ao discurso

ideológico, pois seus interesses devem se articular

não como proposições teóricas abstratas (das

quais nada surgirá, a não ser outras proposições

teóricas da mesma espécie). Pelo contrário, devem

se articular como indicadores práticos bem

fundamentados e também como efetivos estímulos

mobilizadores, direcionados às ações socialmente

viáveis dos sujeitos coletivos reais (em contraste

com os ―tipos ideais‖ artificialmente construídos).

A ideologia é, enfim, um modo de racionalidade praticamente

orientada e, como tal, é circunscrita por sua época histórica. Vale a pena

ler, nesse contexto, mais uma passagem do filósofo húngaro (ibid., 14):

As ideologias são circunscritas pela época em

sentido duplo. Primeiro, no sentido de que, na

orientação conflitante das várias formas de

consciência social prática, sua característica

proeminente persiste enquanto a sociedade for

dividida em classes. Em outras palavras, a

consciência social prática de todas essas

sociedades não pode deixar de ser ideológica –

isto é, sinônima de ideologia – em decorrência do

caráter insuperavelmente antagônico de suas

estruturas sociais. [...] E, segundo, que o caráter

específico do conflito social fundamental, que

deixa sua marca indelével nas ideologias

conflitantes em períodos históricos diferentes,

surge do caráter historicamente mutável – e não a

curto prazo – das práticas produtivas e

distributivas da sociedade, e da necessidade

correspondente de se questionar sua continuada

imposição, à medida que se tornam

crescentemente minadas ao longo do

desenvolvimento histórico. Desse modo, os

limites de tais questionamentos são fixados pela

época, colocando em primeiro plano novas formas

de desafio ideológico, em íntima ligação com a

emergência de meios mais avançados de

satisfação das exigências fundamentais do

metabolismo social. Sem se reconhecer a

consciência social prática das sociedades de classe

como a determinação de época das ideologias, sua

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estrutura interna se mantém inteiramente

ininteligível.

Deve-se ressaltar mais uma vez que, na visão de Mészáros,

ideologia não é algo que seja necessariamente antagônico em relação à

ciência. Ambas essas instâncias mantêm uma unidade entre si, unidade

esta que é sempre praticamente orientada. A maneira como Mészáros

trata tais temas leva à conclusão de que uma ciência verdadeiramente

emancipadora só pode ser efetivada se estiver calcada em pressupostos

ideológicos solidamente construídos e adequados aos interesses da

alternativa hegemônica do trabalho.

Por último, mas não menos importante, é preciso tecer mais

algumas explicações sobre o sentido de que deve se revestir a ideologia crítica das classes revolucionárias. Esse sentido é o mesmo mencionado

anteriormente em referência à política radical: a articulação de negação

e afirmação na direção da superação da ordem do capital. A passagem

seguinte, ainda que longa, é necessária para a compreensão do que está

propondo Mészáros. Diz o filósofo (ibid., 17), a respeito dessa questão:

Limitações bem diferentes se manifestam nas

ideologias críticas, pois aqueles que tentam

articular os interesses das classes subordinadas

têm de assumir – novamente como questão de

determinação estrutural insuperável – uma

postura de negação [grifo nosso], não somente em

relação à pretensa ―organicidade‖ […] da ordem

estabelecida, mas também em relação às suas

determinações objetivas e instituições de controle

sócio-econômico e político-cultural. Portanto, não

é de forma alguma casual que o maior trabalho de

Marx tenha como subtítulo Crítica da Economia

Política: isto é, a crítica de um corpo de doutrinas

nas quais estão coerentemente conceituados os

pontos mais vigorosos do sistema capitalista. E

embora ninguém desejasse hoje negar essa

vinculação, ela é, contudo, convenientemente

obscurecida pelo discurso ideológico dominante,

que afirma que o mesmo tipo de determinação

prevalece em todas as ideologias críticas, em

todos os períodos históricos, pois as concepções

originais do credo liberal – hoje fortemente

envolvido na defesa do status quo – em sua época

negavam radicalmente a ―idade das trevas‖ e sua

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sobrevivência social em nome da ―Razão‖.

No entanto, deve-se reconhecer que a história não

pode terminar no ponto da total negatividade

[grifo nosso], pois nenhuma força social consegue

apresentar suas reivindicações como uma

alternativa hegemônica sem também indicar, pelo

menos em esboços gerais, a dimensão

positiva/afirmativa [grifo nosso] de sua negação

radical. Novamente, tal fato é verídico em

milhares de anos de história, e não apenas nos

séculos mais recentes. As ideologias que se

exaurem através da pura negação, via de regra

fracassam dentro de um curto período e, assim,

não logram sustentar nenhuma reivindicação real

para constituir uma alternativa viável. Além disso,

e de certa forma paradoxalmente, é um traço

característico exclusivo das ideologias dominantes

que, uma vez atingida a fase declinante do

desenvolvimento das forças sociais cujos

interesses expressam, elas são incapazes de

oferecer nada além de um quadro conceitual

inteiramente negativo, não obstante sua

identificação ―positiva‖ com o status quo.

Esta definição da ideologia crítica, como postura teórico prática

que deve articular negação e afirmação no sentido da superação do

sistema do capital, é crucial para a definição dos conceitos de política e

educação em Mészáros. Até aqui, sabemos, pois, que o que nos aliena é

o capital – e não o capitalismo -, um sistema de controle

sociometabólico que, a partir de fins da década de 1960, entrou numa

modalidade nova de crise – crise estrutural - que tem na produção destrutiva uma de suas determinações principais. É essa nova conjuntura

concreta que estabelece a necessidade de uma política radical e de uma

teoria da transição rumo à ―nova forma histórica‖. Tal teoria precisa

estar calcada numa ideologia e numa ciência concebidas do ponto de

vista - criticamente adotado - do trabalho, a fim de compor uma

estratégia de organização e ação viáveis no sentido da emancipação

humana. Imbuídas de uma ideologia, de uma ciência, de uma

consciência de classe necessária, de uma forma de organização e de uma

estratégia adequadas à realização de seus interesses, os trabalhadores

podem superar o capital. A educação – a internalização dos valores,

imperativos, conhecimentos e relações sociais que se dá nos planos

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formal e informal da atividade social - deve se articular a esse projeto

político. Ela consiste numa mediação absolutamente indispensável para

a práxis emancipatória. O sentido da educação e da política socialistas é,

enfim, o de uma postura teórico-prática que conjugue negação e

afirmação36

para a realização do socialismo. Esta é, então, a forma da

teoria de Mészáros, que se conjuga à forma do movimento crítico-

prático que visa à ―transcendência positiva da auto-alienação do

trabalho‖.

Compreendidas essas coordenadas teóricas fundamentais,

pode-se avançar agora ao estudo de Para além do capital, a obra maior

do filósofo húngaro: um profundo e complexo estudo acerca do sistema

36

A respeito das categorias de negação e afirmação, é deveras útil ler ainda o que Mészáros

escreve no verbete negação, elaborado para o Dicionário do Pensamento Marxista - editado

por Tom Bottomore - e lançado originalmente em 1983. Aí, o filósofo estabelece o seguinte: ―No sentido marxista, negação não é apenas o ato material de dizer não, tal como a filosofia

formalista/analítica a trata em sua circularidade, mas refere-se principalmente ao fundamento

objetivo desses processos de pensamento por negação, sem o qual o ato de ‗dizer não‘ seria uma manifestação de capricho gratuita e arbitrária e não um elemento vital do processo de

conhecimento. Assim, o sentido fundamental da negação é definido pelo seu caráter como

momento dialético imanente de desenvolvimento objetivo, ‗vir a ser‘, mediação e transição. Enquanto momento integrante de processos objetivos, com suas leis internas de desdobramento

e transformação, a negação é inseparável da positividade – daí a validade da frase de Spinoza,

‗omnis determinatio est negatio‘, toda determinação é negação – e toda ‗superação‘ é inseparável da ‗preservação‘. Como diz Hegel: ‗Desse lado negativo, o imediato submergiu-se

no Outro, mas o Outro não é, essencialmente a negativa vazia ou Nada que é considerada habitualmente o resultado da dialética: é o Outro do primeiro, a negativa do imediato; é, assim,

determinado como mediado – e contém a determinação do primeiro. O primeiro é, dessa forma,

essencialmente contido e preservado no Outro‘. Aceitando totalmente essa interpenetração em seus comentários sobre esse trecho, Lenin escreve: ‗Isso é muito importante para o

entendimento da dialética. Não é a negação vazia, a negação inútil, a negação cética, a

vacilação e a dúvida, que é característica e essencial na dialética – que sem dúvida contém o elemento de negação e, na verdade, o contém como o seu elemento mais importante – mas sim

a negação como um momento de ligação, como um momento de desenvolvimento, que

conserva o positivo.‘ […] Assim, por meio da negação, a ‗positividade‘ dos momentos anteriores não reaparece simplesmente. É preservada/superada, juntamente com alguns

momentos negativos, em um nível qualitativamente diferente e mais elevado social e

historicamente. A positividade, segundo Marx, nunca pode ser um complexo direto, sem problemas, não-mediado. Nem pode a simples negação de uma dada negatividade produzir

uma positividade que se sustenta por si mesma. Isso porque a formação conseqüente depende

da formação prévia pelo fato de que qualquer negação particular é necessariamente dependente do objeto de sua negação (Manuscritos econômicos e filosóficos). Assim sendo, o resultado

positivo do empreendimento socialista deve ser constituído através de sucessivas etapas de

desenvolvimento e transição (Crítica do Programa de Gotha)‖ (2001, 280). Ressalte-se, então, como Mészáros, ao conceituar dessa forma a essência da crítica – ou ―crítica imanente‖, como

designa em outro lugar (2009) -, rechaça certas concepções muito difundidas entre o

pensamento crítico de esquerda, assentadas sob a proposta da negação da negação, e apresenta uma nova visão que busca conjugar, isto sim, negação e afirmação para o enfrentamento do

sistema do capital.

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de controle sociometabólico atualmente estabelecido e sua crise

estrutural e uma conseqüente teorização sobre as formas possíveis de

enfrentar essa ordem com vistas à realização da comunidade humana emancipada. A compreensão do que Mészáros estabelece em tal livro é

de fundamental importância para os propósitos de nossa pesquisa, pois

aí se encontra uma ―análise concreta‖ da ―situação concreta‖ em que

vivemos e onde a educação alternativa socialista deverá necessariamente

intervir.

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3 A TRADIÇÃO QUE OPRIME COMO UM PESADELO E AS

FORMAS DE ENFRENTÁ-LA: PARA ALÉM DO CAPITAL –

RUMO A UMA TEORIA DA TRANSIÇÃO

...não distribuirei entorpecentes ou cartas de

suicida,

não fugirei para as ilhas nem serei raptado por

serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os

homens presentes,

a vida presente.

Carlos Drummond de Andrade

Sai, Câncer.

Furbo anão de unhas sujas e roídas

Monstrengo sub-reptício, glabro homúnculo

Que empestas as brancas madrugadas

Com teu suave mau cheiro de necrose

Enquanto largas sob as portas

Teus sebentos volantes genocidas

Vinícius de Moraes

Dialogar criticamente com Marx: este parece ser um destino

incontornável para todo sujeito, individual ou coletivo, imbuído do

anseio pela emancipação humana, que se auto-constitua como

revolucionário dentro da formação sócio-histórica cujos horizontes estão

conformados pelo limite da produção e reprodução da relação-capital.

Tantos foram os que assim o fizeram, tantos são os que assim ainda o

farão. Nesse meio, evidentemente, István Mészáros não representa uma

exceção. Pode-se dizer até que, em se tratando do filósofo húngaro, tal

exigência se apresenta de uma maneira muitíssimo clara ao longo de

toda sua produção teórica: dialogar com Marx a fim de auxiliar no

esforço das classes exploradas para encontrar mais uma vez o espírito da

revolução, e evitar desse modo que se parodie, desgraçadamente, as

lutas realizadas em conjunturas passadas.

―A história‖, diz Mészáros, em Para além do capital, ―não

merece o seu nome a não ser quando concebida como aberta [grifo

nosso] tanto em direção ao passado como em direção ao futuro‖ (2002,

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183). Trata-se, então, de, em nosso contexto específico, fazer valer a

abertura, em direção ao qualitativamente novo e superior, desse

processo por meio do qual homens e mulheres constroem a si mesmos

com base nas condições a eles transmitidas pelas gerações que lhes

precederam. Esse processo, enfim, que o sistema do capital busca a todo

custo – e, infelizmente, em certo sentido, nos últimos anos, tem

conseguido - encarcerar em limites bem estreitos, a fim de impedir que

os sujeitos da práxis histórica se tornem os condutores auto-conscientes

de seu destino e realizem, dessa maneira, plenamente, as vastíssimas e

ricas possibilidades inerentes a sua constituição íntima.

Nesse contexto, se a abertura é a condição para que a história

possa ser verdadeiramente concebida como digna do seu nome, também

o deve ser para as teorias que buscam interpretá-la e apreender as suas

determinações mais profundas e essenciais. Em assim sendo, podemos

concluir que a abertura da história exige também um esforço pela

concomitante abertura das teorias que pretendem dar conta de explicá-la

com vistas a orientar práticas que sejam capazes de transformá-la

positivamente e superar os seus antagonismos mais problemáticos. É

nesse sentido preciso, pois, que se deve considerar a obra de Marx como

uma obra aberta, que, em virtude de várias circunstâncias, parece ter

sido encerrada, amplamente, durante muitas décadas, numa forma que,

dentre outras coisas, impediu que o seu potencial crítico e explosivo

pudesse frutificar na direção da realização da libertação humana do jugo

alienante e fetichista do capital.

Em contraposição a essa dura realidade, István Mészáros tem se

situado, desde muitos anos, no grupo daqueles que, a despeito de todas

as adversidades, se dedicam a descerrar as construções intelectuais do

filósofo alemão, a fim de fazer com que sua vasta produção conceitual

seja capaz de mais uma vez proporcionar luzes fecundas para todos

aqueles que visam à transcendência definitiva das terríveis e destrutivas

contradições sobre as quais se sustenta atualmente a humanidade. Ora,

considerar que uma determinada teoria é necessariamente aberta

significa dizer que ela não tem nem apenas um e nem também uma

infinidade de sentidos imanentes. Uma teoria – assim como a própria

história, num dado momento específico – possui sempre alguns sentidos

possíveis. Nesse contexto, o que Mészáros pretende é, justamente,

apresentar, não a interpretação definitiva - e pretensamente única - de

Marx, mas uma leitura que seja, pois, possível da obra do autor de O

capital, leitura essa que esteja, por sua vez, guiada pela dinâmica

material e pelo ponto de vista dos movimentos sociais que, hoje, na

prática, se insurgem, pelo mundo afora, contra a ordem estabelecida.

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Entender, nesse contexto, como isso se dá é, com toda certeza, um dos

principais desafios do estudioso do pensamento do filósofo húngaro.

De acordo com o método de trabalho do antigo discípulo de

Lukács, para se realizar uma avaliação consistente e bem fundamentada

sobre as formulações de Marx, não basta meramente elencar uma ou

outra de suas obras particulares, considerando-a simplesmente como a

mais representativa ou a mais bem acabada em relação às demais. Na

sua visão, tentar afirmar a ―parte‖ que compõe uma produção intelectual

isolada sobre o ―todo‖ da obra de um autor poderia vir a corporificar um

tremendo erro metodológico. Mészáros, ao contrário, considera que um

legítimo balanço de Marx só pode ser feito se se toma como critério de

avaliação o movimento da própria obra global do pensador alemão.

Deve-se levar em conta, portanto, a totalidade das suas formulações

teóricas, e não apenas este ou aquele de seus escritos específicos.

Nesse contexto, é extremamente instigante, para o estudioso do

marxismo, acompanhar o desenrolar dessa interlocução crítica entre o

clássico e seu continuador filosófico. O desafio prático contra o qual

Mészáros se defronta está situado, obviamente, numa situação

profundamente diferente da de Marx, qual seja: confrontar e superar o

capital já não mais na sua fase histórica de ascendência, mas com este

sistema espalhado e arraigado por sobre a superfície inteira do globo,

lançando mão, para atender às suas exigências materiais, de uma forma

de produção eminentemente destrutiva, e, por isso mesmo,

potencialmente fatal para a humanidade como um todo – tudo isso,

lembre-se, numa conjuntura em que as experiências pós-revolucionárias

do século XX se mostraram um completo fracasso no que toca ao

objetivo outrora proclamado de realização da emancipação humana -,

cenário que dificilmente poderia ter sido vislumbrado pelo filósofo

alemão nas imediações de seu contexto histórico específico, o século

XIX. É essa conjuntura concreta, avaliada da perspectiva dos que se

encontram numa posição estruturalmente antagônica em relação à

ordem dominante, que servirá de critério de julgamento, para Mészáros,

de quais escritos marxianos se mostram fecundos para a interpretação

crítica do sistema de controle que atualmente se estabelece sobre o

sociometabolismo humano.

Em virtude disso, ao contemplarmos, pois, um bom número de

obras do pensador húngaro, parece-nos difícil apontar qual dos escritos

de Marx tem maior influência na formação de seu pensamento. Se é

verdade que alguns deles tem aí um peso, por assim dizer, mais

pronunciado, acreditamos que seria equivocado afirmar que existe uma

das obras do criador da dialética materialista como sendo a mais

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importante para Mészáros. Para que se possa ter uma idéia da

dificuldade de uma interpretação desse tipo, basta vermos algumas de

suas referências ao autor de O capital. Por exemplo, quando Mészáros

teoriza sobre a essência da crítica radical, faz referência tanto aos

Manuscritos econômico-filosóficos quanto à Crítica ao programa de

Gotha; quando busca em Marx um fundamento para a possibilidade de

superação do sistema do capital a partir da chegada deste aos seus

limites últimos, cita a Contribuição à crítica da economia política –

texto que também parece lhe servir para a formulação do seu conceito

de ideologia; quando fala da urgente necessidade de se formar, hoje,

uma consciência socialista de massa, lança mão de A ideologia alemã;

quando teoriza diretamente sobre o capital e o capitalismo, faz uso

certamente de O capital, mas também se serve amplamente dos

Grundrisse, das Teorias da mais-valia e dos Manuscritos de 1861-63.

Com base no conhecimento desses fatos, seria lícito afirmar que existe

uma, dentre todas as obras de Marx, que exerce mais peso sobre o

pensamento de Mészáros?

Não acreditamos que possa ser fecunda uma interpretação

nesses termos. Ao contrário, parece-nos mais apropriado afirmar que o

que Mészáros faz é, isto sim, se orientar pela obra global de Marx, ou,

como ele mesmo o proclama, pelo ―espírito‖ de sua crítica radical ao

sistema do capital. É interessante, pois, observar as explicações do

próprio filósofo húngaro a respeito de seu procedimento teórico-

metodológico, e isso não apenas na sua investigação sobre o autor de O capital. Por exemplo, no livro A obra de Sartre: busca da liberdade

lemos que o que é mais representativo na produção do autor de O ser e o

nada não é este ou aquele de seus escritos singulares, mas o tipo

específico de totalização que se pode verificar ao longo de todo o seu

percurso intelectual. Como explica Mészáros (1991, 23):

A obra de Sartre cobre uma área imensa e

apresenta enorme variedade [...] Não se pode

dizer, contudo, que as árvores ocultam o bosque.

Muito ao contrário. O que predomina é a obra

global de Sartre, e não determinados elementos

dela [grifo nosso]. Embora, sem dúvida, se possa

pensar em obras-primas específicas dentre seus

inúmeros escritos, elas não respondem por si sós

pela verdadeira importância que ele tem. Pode-se

até mesmo dizer que seu ―projeto fundamental‖

global, com todas as transformações e

permutações multiformes que sofreu, é que define

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99

a singularidade desse autor inquieto, e não a

realização sequer de sua mais rigorosa obra. Pois

é parte integrante de seu projeto que ele

constantemente mude e revise suas posições

anteriores; a obra multifacetada se articula

mediante as transformações dela mesma, e a

―totalização‖ é atingida mediante incessante

―destotalização‖ e ―re-totalização‖.37

Ou seja, mais que possuir ―obras representativas‖ – muitas

delas, certamente, magistrais -, Sartre é um autor que tem ―uma obra

global representativa‖. Não se pode, portanto, avaliar esse todo

tomando-se como base uma de suas partes. É o próprio processo de

produção da obra global do filósofo francês – definido, no caso de

Sartre, segundo Mészáros, por um movimento de ―objetivação

niilizadora‖ em busca da liberdade – que revela o caráter dessa obra

mesma, e é isto o que deve ser apreendido pelo crítico. Não acreditamos

estarmos longe da verdade, então, quando afirmamos que o que o

filósofo húngaro pretende em relação a Marx é apreender o espírito de

sua obra global e, com base nisso, partir para as suas próprias

elaborações conceituais. Se isso for verdade, não faz nenhum sentido

julgar a produção de Mészáros tomando-se como critério de avaliação

meramente a obra a ou b de Marx isoladas da totalidade da sua produção

teórica.

Foge aos objetivos de nosso trabalho realizar uma investigação

a fim de verificarmos como se dá a influência do filósofo alemão sobre

o pensamento do seu continuador húngaro. Contudo, parece-nos claro

que o que o antigo discípulo de Lukács faz é julgar a obra de Marx com

a ajuda da realidade histórica, tal como ela acabou por se constituir em

nossa era específica, a fim de verificar quais das idéias marxianas -

quais conceitos, quais categorias de análise, etc. - podem ter efetiva

utilidade para as lutas presentes dos socialistas. É por essa razão que

cremos ser inadequado avaliar a pertinência da obra de Mészáros

partindo-se apenas da mera comparação de seus escritos com o que

afirmou Marx neste ou naquele livro particular. Em outras palavras: não

acreditamos ser possível fazer um balanço verdadeiramente crítico da

37

Neste mesmo livro, Mészáros afirma que podem, certamente, haver autores que produzam

obras singulares representativas, tais como Marcel Proust (Em busca do tempo perdido) e

Thomas Mann (A montanha mágica). Contudo, com Marx e Sartre o que é representativo é a obra global, com sua forma específica passível de ser detectada somente com o estudo,

justamente, dessa totalidade.

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teoria de Mészáros com base somente na sua eventual aproximação ou

distanciamento em relação àquilo que escreveu o autor de O capital. O

critério, para esse balanço, deve ser muitíssimo mais radical: a própria práxis histórica, por meio da qual se pode refutar ou demonstrar a

realidade e o poder de um determinado pensamento – no nosso caso

preciso, as formulações do filósofo húngaro acerca da política e da

educação revolucionárias.

Assim como é a realidade histórica, tal como se configura

concretamente, a partir das ações conscientes de homens e mulheres,

que deve julgar quais das teorias e hipóteses de Marx ainda são válidas e

fecundas, é essa mesma realidade que deve avaliar Mészáros, se sua

leitura da sociedade contemporânea – calcada na sua interpretação

pessoal da obra do filósofo alemão - é ou não pertinente, tem ou não

efetividade para mostrar seu poder face aos homens. Pois, como nos

aconselhou o célebre autor das Teses sobre Feuerbach: ―A disputa sobre

a realidade ou não-realidade do pensamento isolado da práxis é uma

questão puramente escolástica‖. É a práxis, então, que dirá se Mészáros

acertou na elaboração de sua proposta, se possui validade a sua leitura

de Marx.

Esse julgamento, portanto, não caberá simplesmente a nós, mas

à classe trabalhadora como um todo, na luta por sua emancipação. O que

nos propomos, por ora, é algo sumamente mais modesto: tentar entender

como o conceito de educação de Mészáros se articula a uma teoria

política com vistas à superação do sistema do capital e à realização da

comunidade humana emancipada. Para tanto, é imprescindível analisar

como essa totalidade – a teoria de do filósofo húngaro - se formou a

partir de sua gênese, visto que é esse movimento auto-constitutivo

mesmo que dá, segundo cremos, uma chave para a interpretação de seu

pensamento. No capítulo anterior, já andamos alguns passos nesse

sentido. Devemos seguir agora, pois, mais ainda na direção do alvo

estabelecido, tentando compreender essa teoria revolucionária específica

a partir de sua própria historicidade.

*

Os socialistas do século XXI devem muito a István Mészáros.

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101

Seu livro Para além do capital: rumo a uma teoria da transição38

constitui uma das mais importantes sínteses das contradições sociais

vigentes em nosso tempo histórico. Com uma quantidade

impressionante de temas importantes tratados, sempre com

profundidade teórica, rigor metodológico e erudição exemplar. Uma

magistral análise do sistema do capital em crise estrutural e uma

formidável teoria política com vistas a expressar o ponto de vista da

alternativa hegemônica do trabalho e orientar os revolucionários do

presente rumo à sua plena emancipação.

O título do volume – Para além do capital -, como esclarece o

próprio autor, deve ser entendido em três sentidos: 1) a revolução

precisa se orientar pelo objetivo de superar o capital em si, e não apenas

o capitalismo; 2) deve-se ir além da teorização do próprio Marx sobre o

capital, ainda que, para isso, certamente, seja necessário se orientar pelo

espírito de sua obra;39

e 3) ir além do ―projeto marxiano em si‖, tal

como ele foi concebido no contexto da ascendência histórica do capital,

no século XIX, quando uma série de possibilidades de desenvolvimento

para o sistema ainda não eram passíveis de serem vistas e

compreendidas com a devida propriedade.

Partindo desse entendimento, cremos que o que deve ser

ressaltado,40

em primeiro lugar, nesta investigação, é a continuidade que

Para além do capital apresenta em relação ao projeto mészáriano

estabelecido em suas obras anteriores, qual seja, a transcendência

positiva da auto-alienação do trabalho. Isto fica claro logo na

introdução da obra, quando o filósofo afirma (ibid., 44) que:

O presente volume tenciona ser uma contribuição

para a tarefa de reavaliação e esclarecimento

teórico. Como já mencionado no Prefácio da

terceira edição de Marx's Theory of Alienation de

1971, todo o projeto surgiu a partir da análise da

crítica da alienação de Marx, em relação à

afirmação feita tanto no Oriente como no

Ocidente (e no Ocidente, especialmente nos

38

São Paulo: Boitempo, 2002. O livro foi lançado, originalmente, em inglês, em 1995. 39

Cf. MÉSZÁROS (2002, 520). 40

Impossível sintetizar, dentro dos estreitos limites de um trabalho como este, toda a

amplidão, magnitude e riqueza teórica contida em Para além do capital: rumo a uma teoria da

transição. Prenderemo-nos, pois, aqui, apenas aos aspectos mais essenciais dessa obra que estejam de acordo com a linha investigativa delineada no capítulo anterior e que servem aos

objetivos desta pesquisa.

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Estados Unidos, por pessoas como Daniel Bell) de

que a preocupação de Marx com a emancipação

da regra do capital pertencia ao século XIX, pois

não apenas as classes e os antagonismos de

classes, mas todos os aspectos da alienação

haviam sido irreversivelmente superados com

sucesso.41

Por ter duvidado de tais afirmações, a partir de sua experiência

de vida tanto no ―Oriente‖ (isto é, nos países pós-capitalistas do Leste

Europeu, mais precisamente na Hungria, até a repressão do levante de

1956) quanto no Ocidente (em vários países desde então, especialmente

a Inglaterra), que Mészáros sentiu a necessidade de escrever Para além do capital – rumo a uma teoria da transição. Importava, a seu ver, antes

de tudo, compreender os fundamentos objetivos que ainda estabeleciam

a realidade da alienação sobre os indivíduos sociais, bem como elaborar

estratégias viáveis para a sua definitiva superação.

Deve-se ressaltar, em segundo lugar, ainda que de forma

sumária, algo a respeito de como Mészáros manuseou o seu método a

fim de investigar o sistema do capital atualmente estabelecido. O ponto

de partida do filósofo foi a crítica radical das mediações reais – bem

como de suas expressões teóricas - envolvidas no processo de

reprodução sociometabólica da humanidade, com vistas a evidenciar sua

formação histórica, sua lógica e todas as suas contradições. Ou seja, as

―mediações de segunda ordem‖ do capital e a forma específica com que

estas subordinam as ―mediações de primeira ordem‖ da atividade

produtiva. Nesse processo, Mészáros (2002, 518) explica que

O empreendimento crítico parte da imediaticidade

do fenômeno investigado e, por meio da

compreensão e da explicação das condições e

pressuposições relevantes da sua composição

estrutural, age como parteira das conclusões que

emergem objetivamente. Essas, por sua vez,

41

No referido Prefácio, escrito em 1971, Mészáros afirma ainda que: ―Acontecimentos

recentes, desde o colapso da política longamente cultivada de bloqueio à China até a crise do

dólar, e desde o aparecimento de importantes contradições de interesses entre os principais

países capitalistas até a reveladora necessidade de ordens judiciais e outras medidas especiais contra grevistas desafiadores com freqüência cada vez maior nos Estados Unidos

(precisamente a terra da classe operária supostamente ‗integrada‘) – tudo isso ressaltou de

modo dramático a intensificação da crise estrutural do capital. É precisamente em relação a essa crise que a crítica marxiana da alienação mantém, hoje mais do que nunca, a sua vital

relevância sócio-histórica [grifo nosso]‖ (2006, 15).

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constituem as pressuposições e pré-condições

necessárias de outros conjuntos de relações neste

sistema dialético e inerentemente objetivo de

determinações recíprocas.

O tipo de teorização que Mészáros pratica, portanto, começa

analisando a imediaticidade do fenômeno em questão, transcende-o, vai

até as pressuposições da sua estrutura e, em seguida, às conclusões que

―emergem objetivamente‖, e que, por sua vez, se convertem em novas

pressuposições que irão formar um ―sistema dialético‖ sustentado por

―determinações recíprocas‖. Reconhecendo que sua tese pode ―soar um

pouco complicada‖, o filósofo ilustra-a com um trecho retirado dos

Grundrisse, onde Marx disserta sobre a estrutura da sua investigação

sobre o capital. Para nosso esclarecimento, pois, devemos ler a

passagem na íntegra:

Nesta primeira seção, onde examinamos valores

de troca, dinheiro, preço, as mercadorias

aparecem como já presentes. A determinação das

formas é simples. … Isto ainda se apresenta, até

mesmo na superfície da sociedade desenvolvida,

como o mundo de mercadorias diretamente

disponível. Mas, por si próprio, ele aponta para

além de si próprio em direção às relações

econômicas que são postas como relações de

produção. A estrutura interna da produção forma,

assim a segunda seção; a concentração do todo, a

terceira; a relação internacional, a quarta; o

mercado mundial, a conclusão, na qual a

produção é postulada como uma totalidade

juntamente com todos os seus momentos, mas

dentro da qual, ao mesmo tempo, todas as

contradições entram em jogo. O mercado mundial

então, novamente, forma a pressuposição do todo

assim como seu substrato [Träger, IM]. Crises são

então o anúncio geral que aponta para além da

pressuposição e o impulso [Drägen, IM] que

dirige para a adoção de uma nova forma

histórica.42

(MARX, apud Mészáros, ibid., 518-9)

42

O percurso de Mészáros em Para além do capital é análogo. O filósofo vai, grosso modo,

das mediações de segunda ordem do capital às mediações de primeira ordem da atividade produtiva. Depois, busca apreender a crise estrutural do sistema do capital que, por sua vez,

anuncia a possibilidade do surgimento da ―nova forma histórica‖.

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Incorporando essa idéia, Mészáros acredita estar realizando uma

―apropriação criativa da concepção original de Marx‖ (ibid., 520), e,

nesse percurso, faz questão de ressaltar três pontos que considera

fundamentais: o primeiro deles ―diz respeito à exigência de nos

orientarmos pelo espírito da obra de Marx‖ (ibid., 520), ou seja, o

propósito de, partindo-se de uma perspectiva estruturalmente antagônica

ao ponto de vista do capital, desenvolver uma teorização que vise à

superação desse sistema – em outras palavras: que busque a

transcendência positiva da auto-alienação do trabalho. Isto exige,

inevitavelmente, que se ―modifique significativamente‖ algumas das

proposições de Marx, em virtude das alterações históricas no conjunto

das relações reais em função das quais o instrumental conceitual fora

originariamente definido. Como diz o autor de Para além do capital (ibid., 521):

Apelar ao espírito da obra de Marx, portanto,

significa antes de tudo empreender a crítica

interna necessária, nas palavras do próprio Marx,

isto é, a ―modificação significativa‖ de algumas

proposições específicas, à luz da teoria como um

todo e, portanto, a remoção de todas as

―abstrações‖ e unilateralidades removíveis.

A segunda consideração teórico-metodológica está associada à

primeira e emerge do ―caráter incompleto do projeto de Marx‖. Diz

respeito ao fato de que, em virtude das transformações ocorridas na

história, surge para nós a exigência de colocarmos uma nova questão

vital, cuja resolução é uma das tarefas primordiais do empreendimento

crítico socialista atual. Sobre esse novo problema, que exige solução

premente, Mészáros (ibid., 521) afirma o seguinte:

a questão vital diz respeito ao possível

deslocamento das contradições do capital que não

podem sequer ser tocadas, para não dizer

examinadas sistematicamente, sem uma

investigação adequada da estrutura mais

abrangente em que tais contradições podem ser

deslocadas: a saber, a confrontação global do

capital na qualidade de totalidade complexa com a

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totalidade do trabalho.43

O terceiro ponto – o mais importante, segundo Mészáros – diz

respeito ao ―impacto dos acontecimentos sociais pós-marxianos sobre a

orientação da teoria‖ (ibid., 522). Isso não significa que, com uma

conjuntura histórica diferente, devamos desconsiderar completamente as

teorizações de Marx sobre o capital feitas no passado, e sim que estas

devem ser reavaliadas à luz do presente. ―Os horizontes de uma época

histórica definem inevitavelmente os limites de qualquer teoria, mesmo

das mais grandiosas‖ (ibid., 522), afirma o filósofo húngaro. Da época

de Marx até nossos dias, muitas coisas se passaram, revoluções

ocorreram e foram derrotadas, o capital se transformou, novos tipos de

crises e contradições surgiram, etc. Tudo isto deve ser levado em conta,

pois, no processo de atualização da teoria marxista.44

Como afirma

43

Explicando em que consistiam as preocupações teóricas de Marx em seu tempo histórico,

Mészáros comenta o seguinte: ―Vimos que as ‗pressuposições do todo‘, que têm um óbvio

significado condicionante para tudo o mais, incluindo a discussão anterior das ‗formas

simples‘, não poderiam ser explicitadas antes da ‗quinta seção‘. Esta última deveria analisar o mercado mundial como a estrutura na qual a ‗totalidade dos momentos‘ se torna visível, junto

com a ‗totalidade das contradições‘, conforme entram em jogo na forma de uma crise em

escala global‖ (ibid. 521). Em virtude da novidade do cenário histórico, da necessidade de uma

teoria da transição e do caráter aberto da teoria marxista, o filósofo húngaro colocará sob o

foco de sua análise, como vimos, a ―estrutura mais abrangente‖ que circunscreve as

possibilidades de deslocamento das contradições do sistema do capital. 44

Um dos acontecimentos históricos mais significativos para a atualização da crítica marxista

levada a efeito por Mészáros é, sem dúvida, o conjunto de experiências sociais e políticas das

sociedades denominadas por ele de pós-capitalistas (ou pós-revolucionárias), em especial a URSS. Como afirma categoricamente o filósofo: ―à luz da nossa própria experiência histórica,

a autocrítica da revolução socialista e seu desdobramento real – que encontramos em Marx

apenas como um princípio geral, mencionado brevemente em O 18 Brumário de Luís Bonaparte – devem ser parte integrante da compreensão da realidade contraditória do capital

também em suas variedades pós-capitalistas. Compreensivelmente, a obra de Marx não poderia

tratar dessa questão vital, já que ele não podia de maneira alguma levar em conta as especificidades históricas nas quais se deram os desconcertantes desenvolvimentos históricos

que ao final conduziram à implosão do tipo soviético de sistema pós-capitalista do capital‖

(ibid., 705-6). Para Mészáros, o capital não deixou de existir nas sociedades pós-revolucionárias, apenas se desenvolveu contraditoriamente, revelando novos e obscuros

aspectos de sua face monstruosa. É justamente essa original reestruturação do sistema que nos

dá uma chave para a consciência de sua ―anatonia‖ e permite, por consegüinte, que tenhamos uma compreensão mais concreta acerca de suas contradições fundamentais. A experiência

soviética é fundamental, portanto, para que o filósofo húngaro, depois de realizar um escrutínio

crítico sobre as ―formas mutantes de controle do capital‖, atualize as formulações teóricas de Marx, conceituando o capital com o auxilio de categorias mais adequadas, consistentes e

radicais do que habitualmente se tem visto na teoria marxista. (Como o tema se distancia dos

objetivos do presente trabalho, não poderemos aqui nos deter nele. Para um maior aprofundamento desta questão, ver o capítulo 17 de Para além do capital, intitulado,

justamente, Formas mutantes de controle do capital).

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Mészáros (ibid., 523):

Tal teoria [isto é, a teoria marxista da transição,

que se está buscando construir a partir da

reavaliação da obra de Marx à luz das novas

condições históricas] deve ser ao mesmo tempo

flexível em suas partes, conferindo todo peso às

circunstâncias reais que se deslocam

tortuosamente [grifo nosso], e firmemente sem

concessões em sua orientação estratégica para a

nova forma histórica. Hoje, dado o colapso das

sociedades do ―socialismo real‖ no ambiente geral

da crise estrutural do capital, o exame crítico

desses assuntos não é mais uma especulação

abstrata sobre algum futuro remoto, como

costumava ser na época em que Marx viveu. E,

embora Marx pudesse ainda condenar tais

especulações como um desvio das tarefas reais,

hoje a posição é completamente oposta. Evitar

esses problemas é que passa a constituir um

―desvio‖ intolerável da necessidade de produzir

algumas estratégias viáveis para o futuro em

construção.

Aí está, pois, o que Mészáros busca: uma teoria capaz de

auxiliar na orientação dos trabalhadores para que superem a alienação

inerente ao sistema do capital; uma teoria, portanto, da transição, que se

guie pelo ―espírito da obra de Marx‖, que seja, assim, fundamentalmente

autocrítica, que promova as modificações necessárias ao arcabouço

ricamente constituído, que o reavalie à luz das transformações históricas

e enfrente as novas questões que se impõem no presente histórico. Tal é

o calibre da tarefa que o filósofo húngaro impôs a si mesmo e que

buscou realizar em Para além do capital.

Imbuído, pois, de tal propósito, Mészáros irá se centrar, do

início ao fim de seu grande livro, na questão das mediações - o que

significa dizer, mais especificamente, que o filósofo está se inserindo no

interior de um debate que foi de preocupação de toda a tradição

filosófica ocidental, a saber: resolver o problema sobre o que é a

história, em que consiste a ação que leva às transformações históricas, e

qual é a relação entre a ―parte‖ e o ―todo‖ (ou entre o particular e o

universal) nesse movimento.

Assim, depois de descartar as concepções de Hegel e do Lukács

de História e consciência de classe - mostrando seus postulados acerca

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do particular, do geral e do universal, o ponto de vista adotado por estes

grandes pensadores, as premissas de que partiam, a forma como

desenvolviam suas reflexões, as inversões ideológicas realizadas, as

conseqüentes mistificações que suas conclusões acarretam e, sobretudo,

aquilo que tais tipos de formulações escondem -, o filósofo húngaro vai

se colocar ao lado de Marx quanto à concepção de particular, de geral,

de história e principalmente de mediação.

O conceito de história de Marx liga-se à concepção hegeliana de

―história do mundo‖, contudo tem uma grande diferença em relação a

ela, diz Mészáros (ibid., 85):

à grande visão idealista de Hegel da história do

mundo se desdobrando idealmente, a interpretação

marxista contrapôs um conjunto de

acontecimentos e fatos tangíveis, empiricamente

identificáveis, que dizem respeito a indivíduos

reais em seu ambiente institucional realmente

existente. (ibid., 85)

Contra a história que se fundamenta no mundo das idéias,

portanto, a história feita por homens reais através de suas ações

concretas. Mészáros (ibid., 86) explica, então, que, para Marx, a história

é concebida

como a difusão universal do modo de produção

mais avançado no quadro de um mercado mundial

plenamente desenvolvido – ou seja, como um

processo de real ―vir-a-ser‖, caracterizado por

atividades claramente identificáveis de produção e

consumo, dentro de seus parâmetros estruturais e

institucionais muito bem definidos -, [essa

concepção] trouxe com ela a visão correspondente

da saída dos antagonismos destrutivos da ordem

social prevalecente, pois, de um lado, ela visava,

como pré-requisitos de sua realização, o nível

mais elevado possível de produtividade – o que,

por sua vez, implicava a necessária transcendência

de determinadas barreiras e contradições locais e

nacionais, bem como uma total integração

benéfica e racionalização cooperativa da produção

material e intelectual numa escala global. Por

outro lado, como inevitável corolário do caráter

global da tarefa especificada, antecipava a ação

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conjunta das nações industrialmente mais

poderosas, de modo a produzir a nova ordem

social – em seu modo de funcionamento

―universal‖ objetivo e em seu espírito

conscientemente internacionalista.

Marx supera, portanto, Hegel, e Mészáros adota, pois, no

contexto de sua teorização, a mesma concepção de história do autor de

O capital. Contudo, ao assumir essas formulações, não o faz sem

realizar também uma concomitante crítica, levada a cabo a partir de uma

avaliação a respeito das respostas de Marx a ―duas questões

fundamentais‖: a primeira, o problema da transição; a segunda,

relacionada ao quadro histórico e global em que se poderia efetivar com

sucesso a transição para a nova ordem socialista.

O filósofo húngaro apresenta, então, a concepção de Marx. Para

o filósofo alemão, o capital, enquanto complexo de mediações

sociometabólicas, é necessariamente transitório. A viabilidade deste

sistema está confinada a uma fase histórica rigorosamente limitada e

que precisa ser superada pela intervenção prática radical do projeto

socialista. O sistema do capital consiste, pois, num conjunto de

mediações articuladas para a dominação do trabalho e que tem uma

dinâmica antagônica, destrutiva, e, em última análise, autodestrutiva.

Por isto, o sistema é finito, limitado no tempo. Diante de tal constatação,

o projeto emancipatório é definido como alternativa radical à ordem

material estabelecida. Se o capital aliena radicalmente o controle dos

indivíduos sobre o metabolismo social, o socialismo é a restituição aos

―produtores associados‖ desse controle perdido. Como explica Mészáros

(ibid., 88):

Em outras palavras, o projeto socialista teria de

ser realizado como um modo de controle

sociometabólico qualitativamente diferente: um

controle constituído pelos indivíduos de tal

maneira que não fosse deles alienável. Neste

aspecto, para ser bem-sucedido, teria de ser um

modo de controle capaz de regular as funções

produtivas materiais e intelectuais dos

intercâmbios de mediação dos indivíduos entre si

mesmos e, por natureza, não vindo de cima – a

única maneira em que a ―mão invisível‖ supra-

individual poderia afirmar seu poder nada

benevolente, usurpando os poderes

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interindividuais de tomada de decisão -, mas sim

emergindo da base social mais ampla possível.

Marx acreditava que o capitalismo se desenvolveria produzindo

uma massa cada vez maior de pobres e despossuídos nos países do

centro do sistema. Estes, atuando conjuntamente de forma

revolucionária, acabariam por enterrar definitivamente a formação social

degradante em que viviam, dando origem a uma outra, qualitativamente

superior. Mészáros, contudo, faz alguns ajustes críticos em relação às

teses originais do filósofo alemão, isto é, começa a confrontar tal teoria

com a própria história e conclui que esta, em certo sentido, superou a

teoria da transição de Marx. Ou seja, o quadro histórico é novo, o que

requer, justamente, uma nova teoria da transição. Mas o que se alterou

de lá para cá? As condições que superaram a teoria da transição de Marx

foram, principalmente, segundo o filósofo húngaro, o imperialismo, o

capital monopolista e os novos países capitalistas que se desenvolveram

ao redor do globo. As teorizações de Marx foram, portanto, limitadas

pela sua própria conjuntura de origem.

Contudo, na obra do próprio Marx há também uma outra

concepção não devidamente explorada: a idéia, exposta em uma carta a

Engels, em 8 de outubro de 1858, que dizia que o capital estava se

expandindo pelos quatro cantos do mundo e que, portanto, ainda estava

em ascensão. Mészáros explora essa hipótese não aprofundada por Marx

e passa a se preocupar em apontar as determinações fundamentais desse

quadro original, a nova situação histórica que se estabeleceu e que

superou a teoria da transição de Marx, exigindo, assim, a necessidade de

uma teoria diferente acerca da transição socialista.

O filósofo húngaro trata de delinear, então, a nova conjuntura

que se apresenta em nossos dias. Ele afirma que hoje está consumada a

fase histórica de ascendência do capital. Conforme suas palavras (ibid.,

92):

Ao longo do último século, é certo que o capital

invadiu e subjugou todos os cantos de nosso

planeta, tanto os pequenos como os grandes. No

entanto, ele se mostrou absolutamente incapaz de

resolver os graves problemas que as pessoas têm

de enfrentar na vida cotidiana pelo mundo afora.

No mínimo, a penetração do capital em cada um

dos cantos do mundo ―subdesenvolvido‖ só

agravou esses problemas. Ele prometia

―modernização‖, mas, depois de muitas décadas

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de intervenção trombeteada em alto e bom som,

só ofereceu a intensificação da pobreza, a dívida

crônica, a inflação insolúvel e uma incapacitante

dependência estrutural. [...]

As coisas mudaram bastante nessas últimas

décadas, em relação ao passado expansionista. O

deslocamento das contradições internas do capital

podia funcionar com facilidade relativa na fase da

ascendência histórica do sistema. Sob tais

condições, era possível tratar de muitos problemas

varrendo-os para baixo do tapete das promessas

não cumpridas, como a modernização no

―Terceiro Mundo‖ e uma prosperidade bem maior

nos países ―metropolitanos‖, afirmada com base

na expectativa da produção de um bolo que

cresceria infinitamente. Todavia, a consumação da

ascendência histórica do capital altera

radicalmente a situação. A esta altura, já não é

mais plausível fazer novas séries de promessas

vazias, mas as velhas promessas devem ser

varridas da memória, e determinadas conquistas

reais das classes trabalhadoras nos países

capitalistas avançados devem ser ―roladas‖, no

interesse da sobrevivência da ordem

socioeconômica e política vigente.

A consumação da ascendência histórica do capital produziu um

novo quadro histórico que é preciso agora conhecer em profundidade, a

fim de que se possa extrair daí a estratégia de superação do sistema e a

teoria da transição. Mészáros se debruça, então, sobre tal problema

visando demonstrar como o complexo sociometabólico atualmente

estruturado é de fato uma ―exceção e não a regra, no que diz respeito ao

intercâmbio produtivo dos seres humanos com a natureza e entre si‖

(ibid., 96).

Nesse sentido, o filósofo húngaro passa a discorrer sobre como

a atividade social humana é sempre uma atividade mediada.45

Em seu

45

Vale dizer que, no seu percurso para decifrar o enigma das mediações de segunda ordem do

capital, Mészáros afirma a necessidade de se lançar mão de uma abordagem ontológico-social

para o sucesso de tal empreitada. Nas suas palavras: ―Segundo Marx, a natureza do capital

permanece a mesma tanto em sua forma desenvolvida como na subdesenvolvida. Isto não é absolutamente uma sugestão de que o capital possa fugir às restrições e limites da história,

inclusive à delimitação histórica de seu período de vida. Para tornar inteligíveis esses

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processo de vida, em seu movimento constitutivo, em seu vir-a-ser,

homens e mulheres constroem os meios necessários para satisfazer as

suas mais variadas necessidades. A mediação mais fundamental de todas

é a atividade produtiva. É através dela que os indivíduos, em conjunto,

estabelecem o intercâmbio com a natureza, extraem dela os elementos

que precisam, modificam-nos conforme o seu desejo, dando à luz assim

criações riquíssimas. Nesse contexto, o capital também é um complexo

de mediações, constituído igualmente pela atividade produtiva, só que

terrivelmente problemático. O que define o capital é o fato de ele entrar

em conflito com os produtores, subjugando-os e extraindo deles muito

mais do que aquilo que de fato necessitariam para a satisfação das suas

necessidades – isto é, o trabalho excedente.46

O capital, diz Mészáros, é

problemas não devemos situá-los num ‗círculo dialético‘ hegeliano determinado pela classe, mas no quadro de uma ontologia social dialética de fundamentação objetiva [grifo nosso], que

não deve ser confundida com as tradicionais variedades teológicas ou metafísicas da ontologia.

A identidade das formas desenvolvida e subdesenvolvida do capital só se aplica à sua natureza mais profunda, não à sua forma e a seu modo de existência sempre historicamente adaptados‖

(ibid., 184). O tema da ontologia não é novo na obra de Mészáros. Em verdade, suas discussões

sobre o assunto remontam à década de 1960 – os aspectos ontológicos e morais da teoria da alienação, apresentados no 6º capítulo de seu magnífico ensaio dedicado aos Manuscritos

econômico-filosóficos, de Marx. Mas, à diferença daquele célebre escrito – constituído de um

comentário filosófico -, o que se apresenta em Para além do capital é uma investigação concreta, de cunho ontológico, sobre o sistema sociometabólico atualmente estabelecido. É

interessante perceber, nesse contexto, a profunda influência que tem o autor da Ontologia do

ser social sobre o pensamento de Mészáros. Essa influência se faz, evidentemente, a partir de um profundo diálogo crítico com as proposições lukácsianas enunciadas nos seus escritos de

maturidade. Por um lado, Mészáros não renuncia a uma abordagem ontológica do capital –

como queria Lukács; por outro, não assimila simplesmente, sem maiores considerações, as concepções de seu mentor filosófico: pelo contrário, submete-as a um radical escrutínio crítico,

tendo o conceito de mediação como objeto central de atenção. Nesse movimento, Mészáros

descarta o conceito de mediação de Lukács, por considerá-lo contraditório, e busca, por isso, ir além das formulações de seu mestre. Parece-nos mesmo que, para a teorização ontológica do

sistema do capital, Mészáros procede mesmo uma superação dialética (no sentido da

Aufhebung hegeliana) das concepções de Lukács quanto ao tema da mediação. Para uma compreensão mais exaustiva de como se dá essa interlocução crítica, remetemos à leitura dos

capítulos 6 a 10 de Para além do capital. 46

Como se sabe, Mészáros não é o primeiro autor a utilizar o conceito de excedente (como

trabalho excedente) – e não meramente o de mais-valia - como objeto central da teorização

marxista. Antes dele, Baran e Sweezy, nas décadas de 1950 e 1960, já o haviam feito. No

prefácio à edição norte-americana de A economia política do desenvolvimento, Baran estabeleceu – lançando mão, para sua teorização, além d‘O capital, também dos Grundrisse -

―a chave do entendimento dos princípios práticos do capitalismo: o conceito de ‗excedente

econômico‘‖ (1984, 16-7), conceito este explicado claramente por um comentador do seguinte modo: ―a parcela da produção corrente de uma sociedade que transcende as necessidades do

seu consumo corrente, incluindo-se no mesmo a depreciação dos equipamentos que ela

emprega num dado período de produção. O volume e a natureza dos investimentos adicionais efetuados por essa sociedade no referido período de produção dependem fundamentalmente

das dimensões e do modo de utilização do excedente econômico gerado pela sua produção

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corrente‖ (SZMRECSÁNYI, 1984, XV). É importante apreender também, nesse contexto, as

distinções que o célebre economista marxista norte-americano faz, já no capítulo II de seu

referido livro, sobre o conceito de excedente econômico. A primeira, diz Baran, é o excedente econômico efetivo, ―isto é, a diferença entre o produto social efetivo de uma comunidade e seu

efetivo consumo. O excedente econômico efetivo compreende, obviamente, parcela menor do

produto social que a abrangência pela noção marxista de mais-valia. Lembramos que a mais-valia é representada pela diferença entre o produto líquido global e a renda real da força de

trabalho. O ‗excedente econômico efetivo‘, definido acima abrange apenas a parcela de mais-

valia que é acumulada: em outras palavras, não inclui o consumo da classe capitalista, os dispêndios governamentais com a máquina administrativa, as forças armadas etc.‖ (1984, 51).

Depois, temos o excedente econômico potencial, como a ―diferença entre o produto social que

poderia ser obtido em um dado meio natural e tecnológico, com o auxílio dos recursos

produtivos realmente disponíveis, e o que se pode considerar como consumo indispensável.

Este tipo de excedente é, também, uma parcela de produto diferente do que poderia representar

a mais-valia, no sentido que lhe dá Marx. Exclui, de um lado, elementos de mais-valia como consumo indispensável dos capitalistas, os dispêndios indispensáveis da administração

governamental etc.; compreende, de outro lado, o que não é abrangido pelo conceito de mais-

valia – a produção que se perde em virtude do subemprego ou do mau emprego de recursos produtivos‖ (ibid., 52). Esse tipo específico de excedente aparece, segundo Baran, sob quatro

formas, ―a primeira das quais é o consumo supérfluo da sociedade (predominantemente por

parte dos grupos de mais alta renda, mas, em alguns países, como os Estados Unidos, também por parte das chamadas classes médias); a segunda é a produção que deixa de ser realizada face

à existência de trabalhadores improdutivos; a terceira é a produção que se perde em virtude da

organização irracional, e propensa ao desperdício, do aparelho produtivo existente; a quarta é a produção que não se obtém devido à existência de desemprego originado, fundamentalmente,

pela anarquia da produção capitalista e pela deficiência da produção efetiva‖ (ibid. 52).

Finalmente, temos o excedente econômico planejado, que ―é aplicável tão somente ao planejamento econômico global de uma sociedade socialista. Tal excedente é a diferença entre

o produto social ‗ótimo‘ que a sociedade pode realizar em ambiente natural e tecnológico historicamente dado, segundo uma planejada utilização ‗ótima‘ dos recursos produtivos

disponíveis, e um volume ‗ótimo‘, previamente escolhido, de consumo‖ (1984, 65). Nesse

contexto, Szmrecsányi explica que, ―quanto ao excedente econômico planejado, a comparação com a mais-valia se torna desnecessária, visto que tanto o nível do consumo como o volume do

excedente gerado pela produção deixam de ser determinados em termos de expropriação e de

acumulação capitalista, e passam a refletir as preferências da sociedade como um todo no que se refere ao consumo no presente e no futuro. Trata-se de uma modalidade de excedente apenas

alcançável no regime socialista‖ (1984, XVIII). Pelo que foi dito, fica claro, portanto, que, para

Baran, excedente econômico não é sinônimo de mais-valia. Mais tarde, Baran e Sweezy, no seu também clássico Capitalismo monopolista, desenvolverão largas análises com o auxílio desse

conceito, afirmando que o ―excedente econômico, na definição mais breve possível, é a

diferença entre o que a sociedade produz e os custos dessa produção. O volume do excedente é um índice de produtividade e riqueza, da margem de liberdade que a sociedade tem para atingir

as metas a que se proponha chegar. A composição do excedente mostra como é utilizada tal

liberdade: quanto é investido na expansão de sua capacidade de produção, quanto é consumido de várias formas, quanto é desperdiçado e de que modo. [...] numa sociedade onde impera o

regime do capitalismo monopolista altamente desenvolvida o excedente assume muitas formas

e disfarces. É por esta razão que preferimos o conceito de ‗excedente‘ à tradicional ‗mais-valia‘ marxista, que provavelmente se identifica para a maioria das pessoas conhecedoras da teoria

econômica marxista como igual à soma de lucros + juro + renda. É certo que Marx demonstra

– em passagens esparsas de O Capital e Teorias da Mais-Valia – que a mais-valia também compreende outros itens, como as receitas do Estado e Igreja, as despesas de transformação de

mercadoria em dinheiro e os salários dos trabalhadores improdutivos. Em geral, porém, tratou-

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uma forma de mediação antagônica, e esse antagonismo reside

exatamente no exercício de um controle hierárquico, fetichista,

perdulário e, hoje mais do que nunca, destrutivo sobre o metabolismo

social.

Ora, podemos ser levados a perguntar aqui: por que é preciso

que nos centremos em tais assuntos? Por que é necessário compreender,

primeiramente, as mediações de segunda ordem do capital para a

formulação de uma teoria da educação transformadora? Respondemos:

porque é unicamente com esse sistema concretamente avaliado que se

poderá elaborar uma estratégia política – dentro da qual uma proposta

de educação transformadora será inserida - capaz de orientar ações que

visem superar tal forma de regulação do metabolismo social humano. A

alternativa socialista é viável, diz o autor de Para além do capital,

―apenas na condição de que o antagonista do capital avalie

estrategicamente as potencialidades assim como as limitações estruturais

do seu adversário de um ponto de vista global‖ (ibid., 389). Somente um

escrutínio crítico radical desse sistema poderá nos mostrar possíveis

caminhos e formas de ação rumo a uma sociedade emancipada.

Analisemos, então, como Mészáros busca decifrar as potencialidades e

as limitações estruturais do capital.

Como mencionamos, o capital é, segundo o filósofo húngaro,

um sistema de mediações de segunda ordem, profundamente

antagônico, que se sobrepõe às mediações de primeira ordem da

atividade produtiva. Nas palavras do autor de Para além do capital (ibid. 71):

As mediações de segunda ordem do capital – ou

seja, os meios alienados de produção e suas

―personificações‖; o dinheiro; a produção para a

troca; as variedades de formação do Estado pelo

capital em seu contexto global; o mercado

mundial – sobrepõem-se, na própria realidade, à

atividade produtiva essencial dos indivíduos

sociais e na mediação primária entre eles.47

os como fatores secundários, excluindo-os de seu esquema teórico básico. Afirmamos que sob

o capitalismo monopolista este procedimento já não se justifica, e esperamos que uma

modificação de terminologia ajude a efetuar as modificações necessárias na posição teórica‖ (1966, 19-20). É importante mencionar as teorizações desses dois importantes autores porque

Mészáros – com algumas sutis modificações conceituais – se mostrará, em Para além do

capital, bastante influenciado por ambos. 47

Em outro ponto de sua argumentação, Mészáros (ibid. 180) apresenta uma lista detalhada

das mediações de segunda ordem do capital, a saber: a família nuclear; os meios alienados de

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Tais mediações constituem um ―círculo vicioso do qual

aparentemente não há fuga‖ (ibid., 179), visto que elas se interpõem

entre os seres humanos e as condições fundamentais para a sua

reprodução, a atividade produtiva e a natureza. Em virtude da

preponderância dessas mediações de segunda ordem, esconde-se o fato

de que as condições da reprodução social só podem ser garantidas,

justamente, pela mediação da atividade produtiva, que, diz Mészáros,

―não somente em nossa própria era, mas enquanto a humanidade

sobreviver – é inseparável da atividade produtiva industrial altamente

organizada‖ (ibid., 179).

A formação das mediações do sistema do capital foi um

processo cumulativo. O filósofo explica que, em termos históricos, é

possível identificar ―três conjuntos de determinações que permanecem

incorporadas à constituição do sistema do capital, como se fossem

‗camadas geológicas‘ ou ‗arqueológicas‘‖ (ibid., 206). Em termos

cronológicos, a camada mais recente pertence à fase capitalista do

desenvolvimento do capital, que vem de cerca de quatrocentos anos

atrás. A camada intermediária envolve um espaço de tempo maior,

abarcando os séculos em que ―emergem e se consolidam algumas

mediações particulares de segunda ordem do capital, como acontece por

exemplo com o capital monetário e comercial‖ (ibid., 206). Tais formas

de mediação correspondem, diz Mészáros, àquilo que Marx chama de

subordinação formal do trabalho ao capital – isto é, a exploração que se

baseia no prolongamento do tempo do trabalho -, em contraposição à

subordinação real do trabalho ao capital, tal como ocorre nas condições

históricas específicas do capitalismo – ou seja, a exploração

produção e suas personificações; o dinheiro; os objetivos fetichistas da produção (submetidos

às exigências de expansão e acumulação do capital); o trabalho ―estruturalmente separado da possibilidade de controle‖ - e que nas sociedades capitalistas aparece como trabalho assalariado

e nas sociedades de capital pós-capitalistas assume a forma de ―força de trabalho politicamente

dominada‖; as várias formas de Estado do capital; e o ―incontrolável mercado mundial‖, em cuja estrutura os participantes do sistema devem se integrar e se adaptar. O filósofo lista

também (ibid. 213) as mediações de primeira ordem da atividade produtiva: a regulação da

atividade reprodutora biológica em conformidade com o tamanho da população sustentável e os recursos disponíveis; a regulação do intercâmbio com a natureza, que produz os bens, os

instrumentos, as ―empresas produtoras‖ e os conhecimentos necessários ―para gratificação do

ser humano‖; o estabelecimento de ―relações adequadas de troca‖; organização, coordenação e controle de atividades de modo que se assegurem e preservem os recursos materiais e culturais

exigidos por uma adequada reprodução sociometabólica; a alocação racional de recursos a fim

de combater a escassez; e normas e regulamentos para a ordenação da sociedade em conformidade com as demais mediações. Nenhum desses elementos de mediação, diz

Mészáros, exige hierarquias estruturais para o controle da reprodução sociometabólica.

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caracterizada ―pela produção em larga escala envolvendo ciência e

maquinaria e assegurando o predomínio da mais-valia relativa‖ (ibid.,

708). Por fim, a ―camada geológica‖ mais antiga do desenvolvimento do

capital é aquela que produziu, segundo o filósofo húngaro (ibid., 206-7),

formas de dominação que absolutamente não são

características do modo de funcionamento do

sistema do capital, mas nele são posteriormente

reproduzidas numa forma adequada à tendência

geral de seu desenvolvimento. Assim, a divisão

hierárquico-estrutural do trabalho, que, em seu

devido momento, assume uma série de formas de

dominação de classes, precede historicamente até

as mais embrionárias manifestações do modo de

controle do processo sociometabólico pelo capital.

Contudo, através das mediações de segunda

ordem do capital, a antiga divisão hierárquica do

trabalho social assume uma forma historicamente

específica, que pode explorar plenamente e de

início utilizar para acumulação do capital a

subordinação formal do trabalho ao capital – base

em que o cada vez mais poderoso capital pode

chegar à incomparavelmente mais produtiva e

lucrativa subordinação do trabalho a si mesmo,

resultando no triunfo global do sistema do capital

plenamente desenvolvido, sob a forma da

produção de mercadorias universalmente

difundida. O mesmo acontece com todas as

formas de dominação historicamente precedentes:

elas se subordinam ou são incorporadas às

mediações de segunda ordem específicas do

sistema do capital, da família às estruturas de

controle do processo de trabalho, e das variadas

instituições de troca discriminadora até o quadro

político de dominação de tipos muito diferentes de

sociedades.

Portanto, os elementos constitutivos do sistema do capital

(capital monetário, produção de mercadorias, divisão hierárquica do trabalho, etc.) existem desde muito tempo - alguns deles vêm de

milênios atrás. Nas sociedades antigas, por exemplo, onde algumas de

tais mediações já se faziam presentes – articuladas de forma sui generis com outros tipos diversos de mediações -, não foram dominantes, e sim

subordinados a tais sistemas específicos de controle sociometabólico.

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Somente nos últimos séculos, quando do advento da burguesia, o capital

- articulando-se, agora, como sistema, a vários novos elementos -,

começou a se afirmar de modo a dominar o metabolismo social humano.

Esse sistema, com o passar da história, se fez como totalidade

subordinando a si, justamente, todos os demais elementos do complexo

social, e realizando-se, enfim, como ―produção generalizada de

mercadorias‖. No seu interior, pois, todas as coisas se tornam passíveis

de serem compradas e vendidas, tudo passa a ser negociado no mercado,

inclusive a própria força de trabalho.

As formas anteriores de controle sociometabólico, explica

Mészáros, orientavam sua produção para o uso e possuíam um ―alto

grau de suficiência‖. Mas, justamente, por causa disso, elas eram

vulneráveis aos elementos que viriam a compor o sistema do capital -

que já operavam no interior desses complexos, ainda que em escala

limitada - pois estes não precisavam se restringir aos limites da

autosuficiência.

O capital, como sistema, se formou pela libertação das

restrições das formações sociais anteriores, afirmando-se como modo de

controle sociometabólico e abandonando a auto-suficiência, deixando

para trás, também, nesse processo, as considerações pelo uso (isto é,

pelo valor de uso) e subordinando esse elemento ao valor de troca. A

produção passou a se organizar, portanto, a partir dos ―imperativos

fetichistas do valor de troca‖, fenômeno que exige sempre um processo

de expansão continuada. Configurou-se, assim, uma nova forma

histórica de controle do metabolismo social, o sistema do capital, que

adotou a forma econômica de extração do trabalho excedente como

produção de mais-valia.

A conformação concreta da nova ordem social só foi possível,

como explica Mészáros, ―pelo redimensionamento qualitativo dos

antecedentes históricos do capital, ao contrário do que diz a explicação

eternizadora do pensamento burguês, concebido do ponto de vista do

sistema já desenvolvido do capital‖ (ibid., 207). Isto é, aquelas diversas

mediações, que existiam desde há muito tempo, nas mais variadas

formações sociais, quando se articularam em torno do sistema do capital, adquiriram uma nova forma específica, qualitativamente

diferente daquilo que eram antes dessa fusão acontecer.

O filósofo explica que, durante o período histórico de formação

do sistema, esse ―redimensionamento qualitativo‖ se deu com base na

afirmação de algumas tendências, as quais listamos brevemente: 1) uma

tendência econômica para a produção e para o controle sobre o processo

de reprodução social; 2) um alto grau de homogeneização das formas e

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instituições de intercâmbio social, sempre subordinadas ao princípio

econômico citado (a conseqüência disso é que tal processo favoreceu a

coesão global do sistema e facilitou o seu controle sobre os indivíduos);

3) a busca pela expansão e acumulação, que aparecem agora como meta

fundamental da atividade econômica; e 4) ―a instituição e o

aperfeiçoamento da igualdade formal e da desigualdade substantiva‖

(ibid., 209), de acordo com a tendência de homogeneização do princípio

econômico.

Deve ser sublinhado, ainda, nesse contexto, que as tendências

acima listadas puderam se afirmar exclusivamente na fase de ascensão

do desenvolvimento histórico do capital. Mészáros esclarece que, nas

últimas décadas do século XX, houve, em contrapartida, ―uma

significativa inversão de todas as tendências aqui mencionadas‖ (ibid.

209), fruto da aproximação do sistema do capital de seus limites absolutos.

48

São tais elementos, o conjunto de mediações de segunda ordem

do capital, que entram em relação de antagonismo com a atividade

produtiva humana, produzindo efeitos devastadores. Como explica

apropriadamente o filósofo húngaro (ibid., 213),

graças às mediações de segunda ordem do capital

cada uma das formas primárias é alterada de modo

a se tornar quase irreconhecível, para adequar-se

às necessidades expansionistas de um sistema

fetichista e alienante de controle sociometabólico,

que subordina absolutamente tudo ao imperativo

de acumulação do capital.

Ressalte-se que Mészáros chega, aqui, a um ponto central de

sua análise, a saber: todo o conjunto de mediações que mencionamos,

com suas ―camadas geológicas‖ e tendências históricas, não compõe,

simplesmente, um aglomerado de ―entidades materiais‖. Em verdade,

constituem, ―em última análise, uma forma incontrolável de controle

sociometabólico‖ (ibid., 96). Esse conjunto dinâmico de relações sociais

é, de fato, como explica o autor de Para além do capital (ibid., 96), a

mais poderosa

estrutura ―totalizadora‖ de controle à qual tudo o

mais, inclusive seres humanos, deve se ajustar, e

48

Veremos em seguida em que consistem os limites absolutos do sistema do capital.

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assim provar sua ―viabilidade produtiva‖, ou

perecer, caso não consiga se adaptar. Não se pode

imaginar um sistema de controle mais

inexoravelmente absorvente – e, neste importante

sentido, ―totalitário‖ - do que o sistema do capital

globalmente dominante, que sujeita cegamente

aos mesmos imperativos a questão da saúde e a do

comércio, a educação e a agricultura, a arte e a

indústria manufatureira, que implacavelmente

sobrepõe a tudo seus próprios critérios de

viabilidade, desde as mais íntimas relações

pessoais aos mais complexos processos de tomada

de decisão dos vastos monopólios industriais,

sempre a favor dos fortes e contra os fracos.

Impossível ressaltar suficientemente este ponto: o capital é uma

estrutura totalizadora de controle, que se estabelece sobre a atividade

produtiva de maneira a lhe extrair compulsivamente o trabalho excedente. A relação de produção que aí se afirma é de dominação e

subordinação, onde todos os sujeitos envolvidos nessa dinâmica se

tornam interdependentes uns dos outros. Nesse contexto, uma das

conseqüências mais perniciosas é que esse conjunto de práticas esconde

o substrato das relações reais sob uma aparência de relações entre

coisas. Mészáros explica como isso se dá com auxilio de passagem

marcante de Marx:

A constante venda e compra de capacidade de

trabalho, e a confrontação constante entre o

trabalhador e a mercadoria produzida pelo próprio

dono, como comprador da sua capacidade de

trabalho e como capital constante, aparece apenas

como a forma mediadora da sua submissão ao

capital... Mascara como mera relação de dinheiro

a real transação e a dependência perpétua que são

constantemente renovadas por essa mediação de

venda e compra. As condições deste comércio não

são apenas constantemente reproduzidas; além

disso, o que um compra, e o que o outro é

obrigado a vender, é o resultado do processo. A

renovação constante desta relação de venda e

compra só medeia a permanência da relação

específica de dependência, conferindo a ela a

aparência enganosa de uma transação, um

contrato entre proprietários de mercadoria que

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têm direitos iguais e que se confrontam de modo

igualmente livre. (MARX, apud Mészáros, ibid.,

776-7)

Nesse processo, o sistema exige ininterruptamente a formação

de personificações do capital, isto é, indivíduos que internalizam os

imperativos dessa forma social histórica e assumem como sentido de

suas vidas realizar na prática as determinações fetichistas do complexo

em questão. Aqui, mais uma vez, vale a pena transcrever uma passagem

bastante sintética de Mészáros, onde são listados estes e os demais

elementos fundamentais da dinâmica do capital citados anteriormente.

Afirma o filósofo húngaro (ibid., 781):

As características essenciais que definem todas as

possíveis formas do sistema do capital são: a mais

elevada extração praticável do trabalho

excedente por um poder de controle separado, em

um processo de trabalho conduzido com base na

subordinação estrutural hierárquica do trabalho

aos imperativos materiais da produção orientada

para a acumulação - “valor sustentando-se a si

mesmo” (Marx) – e para a contínua reprodução

ampliada da riqueza acumulada. As formas

particulares de personificação do capital podem

variar consideravelmente, contanto que as formas

assumidas se moldem às exigências que emanam

das características definidoras essenciais do

sistema.

O capital é, assim, um sistema de mediações que exerce,

alienada e fetichisticamente, uma forma de controle hierarquicamente

estruturada sobre a atividade produtiva, de modo a lhe extrair o trabalho

excedente, buscando acumulação e expansão infinitas. Aqui, é preciso

ressaltar mais um ponto importante: não são os indivíduos que

compõem o conjunto de personificações do capital que controlam o

sistema. O capital é, de fato, como diz Mészáros, incontrolável. Isso

quer dizer que é o próprio conjunto de relações sociais que compõe o

sistema que se processa automaticamente, submetendo os indivíduos inseridos em seus limites à sua dinâmica auto-constitutiva. Essa

estrutura é, em verdade, ―um sistema de controle sem sujeito‖ (ibid.,

125) que se afirma sobre os indivíduos sociais. Apesar de longo,

devemos transcrever mais um excerto através do qual o filósofo húngaro

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(ibid., 126) explica a natureza de tal processo:

Esse modo peculiar de controle sem sujeito, em

que o controlador é na verdade controlado pelas

exigências fetichistas49

do próprio sistema do

capital, é inevitável, devido à separação radical

entre produção e controle no âmago deste sistema.

No entanto, uma vez que a função de controle

assume uma existência à parte, devido ao

imperativo de subjugar e manter

permanentemente sob sujeição os produtores,

apesar de seu status formal de ―trabalho livre‖, os

controladores particulares dos microcosmos50

reprodutivos do capital devem sujeitar-se ao

controle do próprio sistema, pois, ao deixar de

fazê-lo, estariam destruindo sua coesão como

sistema reprodutivo viável. […]

O sistema do capital se baseia na alienação do

controle dos produtores. Neste processo de

alienação, o capital degrada o trabalho, sujeito

49

Fetichismo, segundo Mészáros, significa, resumidamente, que, sob o modo de controle

sociometabólico do capital, um determinado tipo de relação entre os homens assume diante

deles ―a forma fantástica de um relacionamento entre coisas‖, para que ―sua própria ação social

assuma a forma de ação de objetos que dominam os produtores em vez de serem por eles

dominados‖ (MARX, apud Mészáros, ibid., 281). Em outro lugar, temos uma definição ainda

mais completa: ―Isso [o fetichismo] significa que todas as classes de pessoas ativas no interior

da estrutura de determinações inter-relacionadas do capital são confrontadas por um conjunto

de inescapáveis imperativos estruturais. Por isso – precisamente porque são imperativos

estruturais objetivos – eles devem se refletir nas conceituações, assim como adequadamente

implementados por meio de ações tanto da administração como do trabalho. Daí o papel do

‗fetichismo da mercadoria‘ que dela emerge. Pois, no plano das tradicionais confrontações

competitivas e ‗disputas trabalhistas‘, a estrutura de mercadoria desvia a atenção de uma

alternativa estratégica viável ao sistema dominante e faz a disputa se centrar em questões

econômicas parciais. Como resultado, o trabalho, mesmo quando bem-sucedido em suas

demandas formuladas em tais termos – em uma fase expansionista do desenvolvimento -,

permanece firmemente acorrentado ao círculo vicioso do sistema do capital‖ (ibid., 626). Para

superar esse ―poder das coisas‖, que ―impõe os imperativos materiais da ordem orientada-para-

a-expansão do capital sobre todos os membros da sociedade, incluindo as personificações do

capital‖ (ibid. 929), é necessária, como veremos mais à frente, a superação da ―determinação

conflitante do processo de trabalho‖. 50

Microcosmos quer dizer, aqui, precisamente, ―as unidades socioeconômicas reprodutivas‖

(ibid., 118) do sistema. É preciso deixar claro isto, pois, em outros contextos da sua teorização, o filósofo usa o termo microcosmos para fazer referência à família enquanto micro-unidade da

formação social abrangente.

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real da produção social, à condição de

objetividade reificada – mero ―fator material de

produção‖ - e com isso derruba, não somente na

teoria, mas na prática social palpável, o

verdadeiro relacionamento entre sujeito e objeto.

Para o capital, entretanto, o problema é que o

―fator material de produção‖ não pode deixar de

ser o sujeito real da produção. Para desempenhar

suas funções produtivas, com a consciência

exigida pelo processo de produção como tal – sem

o que deixaria de existir o próprio capital -, o

trabalho é forçado a aceitar um outro sujeito

acima de si, mesmo que na realidade este seja

apenas um pseudo-sujeito. Para isto, o capital

precisa de personificações que façam a mediação

(e a imposição) de seus imperativos objetivos

como ordens conscientemente exeqüíveis sobre o

sujeito real, potencialmente o mais recalcitrante,

do processo de produção. (As fantasias sobre a

chegada do processo de produção totalmente

automatizado e sem trabalhadores são geradas

como a eliminação imaginária deste problema.)

A forma de controle - alienada dos produtores - exercida pelo

sistema do capital sobre o metabolismo social subverte, portanto, a

relação entre sujeito e objeto. Os produtores, sujeitos reais da atividade

produtiva, passam a ser controlados pelos frutos de sua produção.

Transformam-se, assim, em ―coisas‖ (―condição de objetividade

reificada‖), ao passo que o capital configura-se como o ―pseudo-sujeito‖

dessa dinâmica. O fetichismo compõe, assim, a lógica do sistema. Tudo

isso se processa automaticamente, independentemente da vontade

consciente dos indivíduos que realizam tais processos. As

personificações do capital apenas se adaptam ao conjunto de

imperativos determinados pelo sistema. Eles não controlam, de fato, o

complexo em que estão inseridas. É este que, em verdade, os controla e

os subjuga. O capital não pode, pois, ser controlado; pode apenas ser

superado. Mészáros (ibid., 140) explica que:

o sistema do capital permanece incontrolável

precisamente porque o relacionamento estrutural

objetivo entre a intenção consciente e a exigência

expansionista objetiva não pode ser revertido

dentro dos parâmetros deste sistema

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sociometabólico particular em favor de intenções

verdadeiramente controladoras (isto é, intenções

que deixariam a própria expansão sujeita ao teste

das limitações positivamente justificadoras). Não

pode haver espaço para intenções operacionais

conscientemente executadas – ou seja, realmente

autônomas – no quadro de referências estrutural

do capital, porque os imperativos e as exigências

rigorosamente instrumentais do sistema como um

todo devem ser impostos e internalizados pelas

personificações do capital como ―suas intenções‖

e ―suas motivações‖. Qualquer tentativa de

afastamento da necessária instrumentalidade

resulta em intenções frustradas e nulificadas, ou

seja, inteiramente quixotescas. O sistema segue (e

implacavelmente afirma sobre todos os

indivíduos, inclusive suas personificações

―controladoras‖) as próprias ―determinações

férreas‖, não importando a gravidade de suas

implicações até para a sobrevivência humana e

num prazo nem assim tão longo.

A constatação de que o capital constitui um conjunto de

relações sociais que se processa automaticamente, independente das

―intenções operacionais conscientemente executadas‖, que obriga de

fato os indivíduos que participam da sua dinâmica a realizar seus

imperativos de expansão, acumulação e extração de trabalho excedente e

converterem-se assim em suas ―personificações‖, tem enormes

conseqüências políticas. Tudo isso significa, segundo o filósofo

húngaro, que o capital não pode ser eliminado por meio de reformas.

São inúteis, nesse sentido, as propostas e intenções dos social-

democratas de todos os matizes. Mészáros (ibid., 836) deixa isso claro

ao afirmar que:

O fato de o capital, como um modo de reprodução

sociometabólico, ser incontrolável – a verdadeira

causa sui compatível com ―melhorias e

corretivos‖ dos efeitos e conseqüências, mas não

da base causal do sistema (…) - significa não

somente que o capital é irreformável, mas também

que não pode compartilhar o poder, mesmo no

curto prazo, com forças que pretendam

transcendê-lo como ―objetivo final‖, não importa

quão longo seja o prazo. Esta é a razão pela qual

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as estratégias de ―reforma gradual‖ da

socialdemocracia tinham que resultar em

absolutamente nada em termos de potencial

transformador socialista. Enquanto o capital

permanecer como o regulador efetivo do

sociometabolismo, a idéia de ―luta igual‖ entre

capital e trabalho está destinada a permanecer

uma mistificação. Isso porque essa é uma idéia

perpetuada e realçada pelos rituais de

enfrentamento parlamentar dos ―representantes do

trabalho‖ com seus adversários legislativos: um

enfrentamento ―sem competição‖, cuja premissa

autocontraditoriamente aceita é a permanência da

posição material do capital. As limitadas disputas

políticas no parlamento, estritamente reguladas

por instrumentos e instituições da ―violência

legítima‖ que se apóiam na estrutura global de

comando político do capital, não podem ser um

enfrentamento contra o capital, mas entre alguns

dos seus componentes mais ou menos

diferenciados.

Todas essas reflexões lançam novas luzes para a compreensão

do que significa o Estado dentro da ordem do capital. Na maior parte

das vezes, ao longo de sua história, os partidos com raízes nas classes

trabalhadoras envidaram seus melhores esforços para a tomada do

Estado com vistas a usá-lo instrumentalmente de acordo com seus

objetivos de combate ao sistema. Nesse sentido, agiam como se essa

mediação específica permitisse a manipulação – a bel-prazer dos que

ocupavam os postos estatais centrais – das relações de produção

mercantis. Mas Mészáros, seguindo a trilha de Marx, mostra que o

capital não pode ser controlado, e que ele é, em si mesmo, um conjunto

de mediações de segunda ordem que se define, justamente, por controlar

o metabolismo social humano e não compartilhar poder acerca de tais

processos. Portanto, contra a concepção de que o Estado pode controlar

o capital e impor-lhe limites, o autor de Para além do capital estabelece

que o Estado nada mais é do que uma mediação que compõe o sistema.

Em outras palavras, o capital toma o Estado como meio – como, para

usar as palavras do filósofo húngaro, uma ―estrutura de comando

singular‖ - para a realização de sua dinâmica de extração de trabalho

excedente, sempre expansiva e acumulativa.

Mészáros explica que a formação do Estado moderno foi uma

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exigência absoluta para garantir a produtividade do sistema do capital.

Conforme suas palavras: ―O capital chegou à dominância no reino da

produção material paralelamente ao desenvolvimento das práticas

políticas totalizadoras que dão forma ao Estado moderno‖ (ibid., 106).

Nesse contexto, quais as tarefas que precisaram ser realizadas por essa

mediação específica? Continuemos com a explicação do filósofo

húngaro (ibid., 107):

Em sua modalidade histórica específica, o Estado

moderno passa a existir, acima de tudo, para poder

exercer o controle abrangente sobre as forças

centrífugas insubmissas que emanam de unidades

produtivas isoladas do capital, um sistema

reprodutivo social antagonicamente estruturado.

[…] Tomando o lugar do princípio que regia o

sistema reprodutivo feudal, passa a existir um

novo tipo de microcosmo socioeconômico,

caracterizado por grande mobilidade e dinamismo.

Contudo, a eficácia desse dinamismo depende de

um ―pacto faustiano com o diabo‖, sem nenhuma

garantia de que no momento devido apareça

algum deus salvador para derrotar Mefistófeles,

quando este vier a reclamar o preço acertado.

O Estado moderno constitui a única estrutura

corretiva compatível com os parâmetros

estruturais do capital como modo de controle

sociometabólico. Sua função é retificar – deve-se

enfatizar mais uma vez: apenas até onde a

necessária ação corretiva puder se ajustar aos

últimos limites sociometabólicos do capital – a

falta de unidade em todos os três aspectos

referidos na seção anterior.51

A ação das ―forças centrífugas‖ que Mészáros constantemente

menciona tem um significado preciso: quer dizer que os microcosmos

do capital entram frequentemente ―em conflito ou oposição‖ (ibid., 29),

51

Os três aspectos dos microcosmos do capital aos quais falta unidade são os seguintes: 1) a

produção e seu controle; 2) a produção e o consumo; 3) a produção e a circulação. Mészáros

afirma que, nessas três situações, ocorre uma ausência de unidade (ou uma fragmentação) que

leva frequentemente à formação de antagonismos sociais. É com a finalidade de corrigir essa ausência de unidade e evitar tais antagonismos que age o Estado moderno. Ele é, de fato, a

―única estrutura‖ corretiva capaz de realizar tal tarefa.

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e requerem, para a sua momentânea harmonização, a ação de um

corretivo. Ora, o elemento que promove a retificação dos ―microcosmos

antagonicamente estruturados‖ no contexto do sistema é, justamente, o

Estado. É nesse sentido que o Estado moderno compõe uma ―estrutura

de comando fundamental e sui generis‖ (ibid., 120) dentro da ordem de

reprodução sociometabólica vigente. Por essa razão, continua o filósofo

húngaro, tal instituição pertence de fato à ―materialidade do sistema do

capital‖ (ibid., 121), visto que corporifica a dimensão coesiva das suas

exigências estruturais orientadas para a expansão, acumulação e

extração do trabalho excedente. Continua Mészáros: ―É isto que

caracteriza todas as formas conhecidas do Estado que se articulam na

estrutura da ordem sociometabólica do capital‖ (ibid., 121). O Estado

não está, portanto, além, ou à parte, dessa estrutura material mais ampla.

Ele constitui um dos seus elementos fundamentais e participa

ativamente no deslocamento das contradições inerentes ao sistema.52

Por causa disso, Mészáros afirma que é completamente

equivocado considerar o Estado como uma superestrutura que se ergue

sobre um conjunto determinado de forças e relações de produção. Ao

contrário, ele deve ser entendido como elemento constituinte da própria

base do sistema. Argumentando a fim de defender essa tese, o filósofo

(ibid., 122-3) estabelece o seguinte:

Para fazer prevalecer o impulso incontrolável da

potencialidade produtiva do capital, as múltiplas

unidades reprodutivas interatuantes devem ser

transformadas em um sistema coerente, cujo

princípio definidor geral e o objetivo orientador é

a mais alta extração possível do trabalho

excedente. (Em relação a isto, não importa se esta

extração será regulada por via política ou

econômica, ou mesmo por qualquer combinação e

proporcionalidade praticável de ambas.) Sem uma

estrutura de comando totalizadora adequada –

firmemente orientada para a extração do trabalho

excedente -, as unidades dadas do capital não

constituem um sistema, mas apenas um agregado

mais ou menos acidental e insustentável de

entidades econômicas expostas aos riscos do

desenvolvimento deformado ou da franca

52

Mészáros afirma que há uma ―reciprocidade dialética‖ (ibid., 124) entre capital e Estado. E

ao ilustrar o sentido da complementaridade entre ambas essas instâncias, o filósofo, em outro

ponto de sua obra, compara o Estado a uma ―ama-de-leite‖ para o capital (ibid., 913).

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repressão política. […]

Sem a emergência do Estado moderno, o modo

espontâneo de controle metabólico do capital não

pode se transformar num sistema dotado de

microcosmos socioeconômicos claramente

identificáveis – produtores e extratores dinâmicos

do trabalho excedente, devidamente integrados e

sustentáveis. Tomadas em separado, as unidades

reprodutivas socioeconômicas particulares do

capital são não apenas incapazes de coordenação

e totalização espontâneas, mas também

diametralmente opostas a elas, se lhes for

permitido continuar seu rumo disruptivo,

conforme a determinação estrutural centrífuga de

sua natureza. Paradoxalmente, é esta ―ausência‖

ou ―falta‖ de coesão básica dos microcosmos

socioeconômicos constitutivos do capital –

devida, acima de tudo, à separação entre o valor

de uso e a necessidade humana espontaneamente

manifesta – que faz existir a dimensão política do

controle socioeconômico do capital na forma do

Estado moderno.

Mais à frente, Mészáros (ibid. 124-5) completa esse raciocínio

afirmando que

O Estado moderno – na qualidade de sistema de

comando político abrangente do capital – é, ao

mesmo tempo, o pré-requisito necessário da

transformação das unidades inicialmente

fragmentadas do capital em uma síntese viável, e

o quadro geral para a completa articulação e

manutenção deste último como sistema global.

Neste sentido fundamental, o Estado – em razão

de seu papel constitutivo e permanentemente

sustentador – deve ser entendido como parte

integrante da própria base material do capital

[grifo nosso]. Ele contribui de modo significativo

não apenas para a formação e a consolidação de

todas as grandes estruturas reprodutivas da

sociedade, mas também para seu funcionamento

ininterrupto.

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A ―base material do capital‖, portanto, consiste num complexo

sistema de mediações que controlam a reprodução sociometabólica

humana, sendo o Estado, dentro dessa dinâmica, um dos elementos mais

importantes. O Estado não é, então, um ente superestrutural, embora

tenha, como diz Mészáros, ―sua própria superestrutura – a que Marx se

referiu apropriadamente como ‗superestrutura legal e política‘ –

exatamente como as estruturas reprodutivas materiais diretas têm suas

próprias dimensões superestruturais‖ (ibid., 119). Como exemplo dessas

―dimensões superestruturais‖ presentes nas estruturas reprodutivas

materiais, o filósofo cita as teorias e práticas de relações públicas, de

―administração científica‖ (como a de F. W. Taylor), de ―relações

industriais‖, etc. Como exemplo, por sua vez, da superestrutura legal do

Estado, afirma que esta ―pode assumir as formas parlamentarista,

bonapartista ou até de tipo soviético pós-capitalista, além de muitas

outras, conforme exijam as circunstâncias históricas específicas‖ (ibid.,

121). O Estado é, pois, a estrutura de comando político que o sistema

usa para dar coesão aos seus microcosmos, nos momentos em que estes

entram em antagonismo, ameaçando comprometer assim a viabilidade

do complexo total. O Estado desloca esses antagonismos e ―harmoniza‖,

momentaneamente, a dinâmica expansiva do capital.53

O capital se serve, então, do Estado para extrair trabalho

excedente.54

Mészáros explica que essa extração pode se dar de duas

53

Mas é equivocado pensar que a relação entre capital e Estado é perfeitamente harmoniosa.

Na verdade, apresenta tremendas contradições em seu âmago. Um exemplo dado por Mészáros

sobre a ―dissonância‖ entre capital e Estado reside no fato dos capitais nacionais que, muitas vezes, entrelaçados aos seus respectivos Estados nacionais, entram em conflito com outros

Estados nacionais e seus capitais nativos. O capital ―global‖, assim, tende a se integrar, ao

passo que é incapaz de, nesse mesmo movimento, alcançar uma forma política estatal global, fato que por si só constitui uma grande – e explosiva - contradição. 54

A extração de trabalho excedente como elemento central do capital é ressaltada ao longo de

todo Para além do capital. Parece mesmo que essa determinação possui centralidade na definição mészáriana do que seja o capital. Citamos, a título de exemplo, algumas passagens:

―A condição material necessária para afirmar com sucesso o imperativo estrutural

expansionista do capital é a constante extração do trabalho excedente de uma forma ou de outra, de acordo com as mudanças das circunstâncias históricas‖ (ibid., 120); ―É obsceno

chamar de ‗livre e democrático‘ um sistema econômico que tem como sua condição material

prévia a alienação absoluta das condições de produção dos produtores, e, para seu modo de operação, a imposição permanente de uma estrutura de comando autoritária – tanto nos locais

de trabalho como na sociedade em geral – por meio da qual a extração de trabalho excedente é

assegurada com a finalidade da reprodução ampliada do capital‖ (ibid, 938). Mészáros cita também passagens de Marx para fundamentar sua tese: ―É uma lei do capital criar trabalho

excedente, tempo disponível; e só pode fazê-lo se acionar o trabalho necessário – ou seja, se

entrar em intercâmbio com o trabalhador. É sua tendência, portanto, criar tanto trabalho quanto possível; do mesmo modo, é igualmente sua tendência reduzir o trabalho necessário ao

mínimo. […] O capital deve, portanto, constantemente postular o trabalho necessário para

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postular o trabalho excedente; ele precisa multiplicá-las (a saber, as jornadas de trabalho

simultâneas) para multiplicar seu excedente; mas ao mesmo tempo deve suspendê-las como

necessárias, para poder postulá-las como trabalho excedente‖ (MARX, apud Mészáros, ibid, 620-1). A respeito desse conceito, contudo, devemos destacar o fato de que, nas traduções dos

capítulos seis ao vinte da edição brasileira (Boitempo, 2002), realizadas por Sérgio Lessa,

parece haver, em alguns momentos, uma certa ambigüidade de definição, isto é, quando as categorias de mais-valia e trabalho excedente parecem – veja-se bem: parecem – ser usadas

como sinônimos. Cristina Paniago, percebendo a contradição, depois de haver feito uma

comparação da tradução brasileira com o original em inglês, enviou uma nota à editora Boitempo dizendo, dentre outras coisas, o seguinte: ―‗extraction of surplus-labour is regulated

politically..‘ – ‗surplus-labour‘ é ‗trabalho excedente‘ e não ‗mais-valia‘ como foi traduzido.

Esse equívoco pode ter ocorrido em outras passagens do livro. (p.737-português e 631-inglês)‖

(2002, 2). De nossa parte, sem fazermos uma comparação exaustiva, pudemos perceber

problemas semelhantes (por exemplo: no capítulo 2 da edição brasileira, mais precisamente à

altura da página 121, onde se lê ―garantir e proteger as condições gerais da extração da mais-valia do trabalho excedente‖, na edição original encontramos simplesmente o seguinte:

―securing and safeguarding the overal conditions of surplus labour extraction [grifo nosso]‖

(MÉSZÁROS, 1995, 61). Note-se, então, como o termo surplus value (―mais-valia‖) não aparece no original em inglês. Parece, portanto, haver alguns problemas de tradução que

podem comprometer o entendimento da teoria do filósofo húngaro acerca do que é o capital.

Esse sistema explora, afinal, mais-valia ou trabalho excedente? Ou seriam sinônimos esses conceitos? A tradução de Ana Cotrim e Vera Cotrim para o livro de Mészáros O desafio e o

fardo do tempo histórico: o socialismo no século XXI (São Paulo: Boitempo, 2007) também

traz algumas passagens ambíguas, embora seja mais sugestiva de que o que o capital faz, de fato, é explorar trabalho excedente, sendo a mais-valia a forma como esse trabalho excedente

aparece nas condições do capitalismo, isto é, extraído por via econômica. Transcrevemos uma

passagem da mencionada tradução onde isto é sugerido: ―É altamente significativo nesse respeito que, de fato […] o sistema do capital não pôde ser completado como um sistema

global em sua forma capitalista apropriada; isto é, fazendo prevalecer universalmente o modo esmagadoramente econômico de extração e apropriação do trabalho excedente como mais-

valia [grifo nosso]‖ (MÉSZÁROS, 2007, 57). A passagem seguinte, no entanto, é muito mais

esclarecedora: ―primordialmente, no sistema chinês a apropriação política do trabalho excedente ainda prossegue e, com efeito, em uma escala maciça. Nesse sentido, quando nos

voltamos ao problema da conversão a partir do ângulo do trabalho excedente, e não da mais-

valia – que deve estar presente em uma variedade particular do sistema do capital -, percebemos que na variedade capitalista (baseada na mais-valia) é essencial operar com a

indeterminação da conversão [do valor em preço], cujos detalhes particulares são

historicamente contingentes‖ (ibid., 67). Em Para além do capital, encontramos trechos semelhantes, onde o filósofo parece se referir à mais-valia e ao trabalho excedente como coisas

diferentes. Por exemplo: ―As impressionantes diferenças na ocupação de um alto posto político

que testemunhamos no século XX podem ser explicadas em termos da diferença bastante significativa com que o trabalho excedente é extraído nos dois sistemas. No capitalismo

privado (seja ele ‗avançado‘ ou ‗subdesenvolvido‘), enquanto prevalecer, a bem-sucedida

extração econômica do trabalho excedente (na forma capitalista de apropriação e acumulação da mais-valia) atribuirá aos políticos e à tomada de decisão política direta funções muito

diferentes das existentes nas variedades pós-capitalistas do sistema do capital. Nestas, o

controle da extração do trabalho excedente está no terreno da política (para o bem ou para o mal) e o tipo soviético das ‗personificações do capital‘ não cumpre suas funções sem envolver-

se diretamente nas formas altamente centralizadas de tomada de decisão política, em que

sempre há muito em jogo e cujas conseqüências têm longo alcance‖ (Cf. MÉSZÁROS, 2002, 291-2); ―A expropriação de não importa quanto trabalho excedente e mais-valia pelo capital,

correspondendo a quantidades e a intensidades cada vez maiores de tempo de trabalho

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maneiras: econômica e política. A forma de extração econômica do

trabalho excedente é a que ocorre no âmbito do capitalismo privado e

assume a forma de apropriação e acumulação de mais-valia. Nessas

circunstâncias, diz Mészáros, o envolvimento do Estado se dá

indiretamente – no sentido acima comentado, de promover a coesão dos

microcosmos do sistema – e seu objetivo precípuo é reconstituir ao

próprio sistema de produção de mercadorias a função auto-regulatória

de sua dinâmica. A forma de extração política do trabalho excedente,

por sua vez, é aquela cujo controle se situa, justamente, no terreno da

política. Aí – Mészáros tem em mente, principalmente, o caso das

sociedades pós-revolucionárias do século XX -, o Estado combina ―a

função do controle do processo político geral com a do controle do

processo de vida material da sociedade‖ (ibid., 1028). Ou, como explica

sinteticamente o filósofo húngaro, em outro lugar: ―nos sistemas de

capitalismo privado, o papel essencial da política [isto é, o Estado] é o

de facilitadora (e, em seu devido momento, também o de codificadora

legal) de mudanças que se desdobram espontaneamente – e não de

iniciadora [como no caso das sociedades pós-capitalistas do século

passado]‖ (ibid., 292).

Há, por fim, a forma híbrida de extração de trabalho excedente,

isto é, que a combina meios econômicos e políticos para a sua

realização. A hibridização é, em síntese, a intrusão progressiva e cada

vez mais intensa do Estado no processo de reprodução socioeconômica,

excedente, seria um fundamento verdadeiramente miserável para as exigências de um processo

de trabalho socialista que visa a produção e a satisfação das ‗ricas necessidades humanas‘‖ (ibid., 979). As passagens transcritas parecem deixar claro que os conceitos de trabalho

excedente e mais-valia, no pensamento de Mészáros, são diferentes – sendo a mais-valia o

produto da forma econômica como o trabalho excedente é extraído nas condições do capitalismo. Seguiremos, então, tal linha de raciocínio, embora acreditemos que somente uma

investigação mais pormenorizada do original em inglês poderia trazer maiores esclarecimentos

a esse respeito. (Um caso curioso de equívoco de interpretação derivado de um erro de tradução da obra do filósofo húngaro é dado pelo próprio Mészáros, sendo que o intérprete em

questão, com a vista obnubilada em virtude de uma versão para o português não rigorosa, era

ninguém menos que Florestan Fernandes. Mészáros explica isso numa entrevista: ―Li na ENSAIO, na coletânea Marx, hoje, um artigo de F. Fernandes, no qual o meu livro sobre Marx

é referido e há um engano, exatamente na p. 145. Não estou em desacordo com ele, mas nota-

se que, talvez, a tradução do meu livro não esteja precisa [grifo nosso]. Porque o que eu digo, no meu texto, é que o problema não pode ser formulado simplesmente como a conquista do

poder. A conquista do poder é só o início do processo de superação do capital. Não vou dizer,

obviamente, que não é necessário, é mais do que necessário! É o primeiro passo! O primeiro passo encarando os grandes problemas do domínio do capital, que permanece na sociedade

como estrutura objetiva, que não é diretamente modificável por decretos políticos, leis, mas é

um complexo processo de reestruturação‖ (2009 b, 155). Se o próprio Florestan Fernandes, portanto, foi traído por uma tradução mal feita de Mészáros, nós é que não estamos livres

desse risco...)

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fenômeno que, como explica Mészáros, surgiu em razão das

necessidades de se atender às exigências da expansão do capital e às

várias tentativas fracassadas por parte do sistema de lidar com os seus

próprios limites. Foi porque o capital não pôde, ao longo da história, se

completar como um sistema global de extração de trabalho excedente

por via econômica que precisou, cada vez mais, da intervenção do

Estado para realizar seus imperativos internos.55

Demorar-se em tais temas é necessário, pois eles estão no cerne

de uma distinção fundamental da teoria de Mészáros: a diferenciação

entre capital e capitalismo.56

O capital, como sistema de mediações de

segunda ordem que controla hierarquicamente a atividade produtiva,

pode sobreviver ao capitalismo – e, de fato, já demonstrou isso, como

atestam os casos das sociedades pós-revolucionárias do século XX. Essa

conceituação será essencial para a formulação da teoria política de

Mészáros como veremos adiante.

Deve ficar claro, neste ponto, então, o seguinte: os componentes

fundamentais e inseparavelmente entrelaçados do sistema atualmente

estabelecido de controle sociometabólico, seja em sua forma capitalista

ou pós-capitalista, segundo Mészáros (ibid., 917), são:

1. CAPITAL, representando não só as

condições materiais alienadas de produção, mas,

também, - na qualidade de personificação dos

imperativos materiais do capital, inclusive o

imperativo-tempo […] -, a subjetividade que

comanda e se opõe ao trabalho;

2. TRABALHO, estruturalmente privado do

controle das condições necessárias de produção,

reproduzindo o capital em uma escala ampliada,

ao mesmo tempo em que, como sujeito real da

produção e personificação do trabalho, confronta

defensivamente o capital; e

3. ESTADO, como a estrutura global de

comando político do sistema antagônico do

capital que oferece a garantia final para a

contenção dos antagonismos inconciliáveis e para

a submissão do trabalho, já que o trabalho retém o

55

Este fenômeno, a hibridização, é facilmente notável, por exemplo, diz Mészáros, na China

atual. 56

Já apontada, como vimos, no capítulo anterior. As características do capitalismo que

Mészáros delineia no ensaio Poder político e dissidência nas sociedades pós-revolucionárias,

de 1977, são as mesmas utilizadas para sua teorização em Para além do capital.

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poder potencialmente explosivo de resistência,

apesar da compulsão econômica inigualável do

sistema.

Como o filósofo húngaro explica, dada a necessária interligação

entre capital, trabalho e Estado, bem como sua relação de auto-sustentação recíproca, esses elementos só podem ser eliminados

simultaneamente, ou seja, ―como resultado de uma transformação

estrutural radical de todo o sociometabolismo. Neste sentido, nenhum

dos três poderia ser ‗derrubado nem abolido‘, mas apenas ‗transcendido

e superado‘‖ (ibid., 576).57

Nesse contexto, para que a pretendida superação do sistema

possa ocorrer, necessária se faz uma compreensão profunda acerca dos

limites relativos e absolutos do capital. Segundo Mészáros, é somente a

ativação dos últimos que abre a possibilidade objetiva para que a ordem

atual seja definitivamente transcendida.58

Antes de passar a esse ponto, contudo, sintetizemos, por ora,

juntamente com o filósofo húngaro, em que consiste o sistema do capital

em sua constituição e lógica internas. Mészáros afirma que (ibid., 131):

O sistema do capital é um modo de controle

sociometabólico incontrolavelmente voltado para

a expansão. Dada a determinação mais interna de

sua natureza, as funções políticas e reprodutivas

materiais devem estar nele radicalmente separadas

(gerando assim o Estado moderno como a

estrutura de alienação por excelência),

exatamente como a produção e o controle devem

nele estar radicalmente isolados. No entanto, neste

sistema, ―expansão‖ só pode significar expansão

57

Por isso, apesar de bem intencionada, está equivocada a resenha de Plínio de Arruda

Sampaio Jr. no ponto em que afirma que ―A superação das teias que atam a humanidade às determinações da lógica do capital requer não apenas a negação da santíssima trindade que

sustenta o sistema de metabolismo do capital - propriedade privada, trabalho assalariado e

Estado como aparelho de poder [grifo nosso] – como também a afirmação de um modo alternativo de organizar a vida material - a produção planejada de valores de uso por indivíduos

sociais livremente associados‖ (2009). A ―santíssima trindade‖ do sistema de controle

sociometabólico atualmente estabelecido é, na verdade, como mostramos, capital, trabalho e Estado. 58

E aqui chegamos, enfim, na nova questão – a dos deslocamentos dos limites do capital -,

colocada pelo próprio desenvolvimento histórico, que deve estar no cerne do nosso raciocínio para a compreensão do sistema do capital, bem como das possibilidades abertas para seu

enfrentamento e superação.

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do capital, a que deve se subordinar tudo o mais, e

não o aperfeiçoamento das aspirações humanas e

o fornecimento coordenado dos meios para sua

realização. É por isso que, no sistema do capital,

os critérios totalmente fetichistas da expansão têm

de se impor à sociedade também na forma de

separação e alienação radicais do poder de tomada

de decisões de todos – inclusive as

―personificações do capital‖, cuja ―liberdade‖

consiste em impor a outros os imperativos do

capital – e em todos os níveis de reprodução

social, desde o campo da produção material até os

níveis mais altos da política. Uma vez definidos à

sua maneira pelo capital os objetivos da existência

social, subordinando implacavelmente todas as

aspirações e valores humanos à sua expansão, não

pode sobrar espaço algum para a tomada de

decisão, exceto para a que estiver rigorosamente

preocupada em encontrar os instrumentos que

melhor sirvam para atingir-se a meta

predeterminada.

Em contrapartida a essa situação onde os ―objetivos da

existência social‖ são ditados fetichisticamente pelo sistema do capital,

a meta a ser buscada pelos socialistas é a realização de uma humanidade

emancipada, condição esta que só pode ser obtida por intermédio da

ruptura com a estrutura onde prevalece a radical separação entre funções

políticas e funções reprodutivas, como a que se verifica atualmente. Para

que tal projeto possa se efetivar, o sistema do capital deve ser,

necessariamente, como disse Mészáros, superado. O sistema de

mediações de que é composto – incluindo-se aí, como vimos, o seu

antagonista estrutural, o trabalho, e a sua estrutura de comando

totalizadora, o Estado – deve ser completamente substituído por novas

mediações materiais isentas de antagonismos.

Existem, contudo, diz o filósofo, certas condições objetivas que

devem estar estabelecidas para que a transcendência definitiva do capital

possa se realizar. A principal delas é que os limites absolutos do sistema

tenham sido ativados. Mészáros aqui compartilha da mesma convicção

de Marx de que uma determinada formação social só pode perecer

depois de ter se desenvolvido plenamente. Assim, lê-se na Contribuição

à crítica da economia política a célebre passagem: ―nenhuma formação

social desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas

que ela contém, e jamais podem aparecer relações de produção novas e

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mais elevadas antes de amadurecerem no seio da própria sociedade

antiga as condições materiais de sua existência‖ (MARX, apud

Mészáros, ibid., 467). Na opinião, pois, do autor de Para além do capital, a atual crise estrutural do sistema do capital é um forte indício

de que já estejamos em vias de atingir tal situação.

A necessidade de compreensão dos limites do capital se impõe,

portanto, neste momento. É importante ressaltar, aqui, como

mencionamos acima, a distinção fundamental, efetuada por Mészáros,

entre limites relativos e limites absolutos do sistema. Afinal, que vêm a

ser tais coisas? De maneira bastante clara, o filósofo (ibid., 175) o

explica:

Os limites relativos do sistema são os que podem

ser superados quando se expande

progressivamente a margem e a eficiência

produtiva – dentro da estrutura viável e do tipo

buscado – da ação socioeconômica, minimizando

por algum tempo os efeitos danosos que surgem e

podem ser contidos pela estrutura causal

fundamental do capital. Em contraste, a

abordagem dos limites absolutos do capital

inevitavelmente coloca em ação a própria

estrutura causal. Conseqüentemente, ultrapassá-

los exigiria a adoção de estratégias reprodutivas

que, mais cedo ou mais tarde, enfraqueceriam

inteiramente a viabilidade do sistema do capital

em si. Portanto, não é surpresa que este sistema de

reprodução social tenha de confinar a qualquer

custo seus esforços remediadores à modificação

parcial estruturalmente compatível dos efeitos e

conseqüências de seu modo de funcionamento,

aceitando sem qualquer questionamento sua base

causal – até mesmo nas crises mais sérias.

Em suma, os limites relativos do sistema dizem respeito àquelas

contradições com as quais se pode lidar dentro da ordem mesma, sem

que se precise para isso alterar substancialmente seus fundamentos. Os

limites absolutos, ao contrário, são os que só podem ser eliminados pela

transformação estrutural do próprio sistema, com a sua conseqüente

substituição por outro modo de organização sociometabólica

qualitativamente diferente.

Mészáros explica, nesse contexto, que o capital busca sempre ir

além dos seus limites. Melhor dizendo: ―o capital em si é absolutamente

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incapaz de se impor limites‖ (ibid., 251), independentemente das

circunstâncias concretas onde se insere. O filósofo húngaro lança mão

de mais uma passagem dos Grundrisse para explicar as determinações

mais íntimas que compõem a dinâmica desse sistema:

O capital é o impulso infinito e ilimitado de

ultrapassar as barreiras que o limitam. Qualquer

limite (Grenze) é e tem de ser uma barreira

(Schranke) para ele. Caso contrário, ele deixaria

de ser capital – dinheiro que se auto-reproduz. Se

tivesse percebido algum limite não como uma

barreira, mas se sentisse bem dentro dessa

limitação, ele teria renunciado ao valor de troca

pelo valor de uso, passando da forma geral de

riqueza para um modo tangível e específico desta.

O capital em si cria uma mais-valia específica

porque não tem como criar uma infinita; ele é o

movimento constante para criar mais da mesma

coisa. Para ele, a fronteira quantitativa da mais-

valia é uma simples barreira natural, uma carência

que ele tenta constantemente violar, além da qual

procura chegar. A barreira se apresenta como um

acidente a ser conquistado. (MARX, apud

Mészáros, ibid., 251)

No movimento de produção e reprodução do capital, toda

barreira ou medida de restrição deve ser eliminada. Qualquer força que

se contraponha, interna ou externamente, ao seu processo de expansão,

que pretenda impedi-lo, dominá-lo, etc., é tomada pelo sistema como

um obstáculo. Mas esses antagonismos que surgem em seu caminho, ao

longo de sua ascendência histórica, não são de fato resolvidos. Eles são

apenas deslocados. Mészáros assim explica a natureza desse processo:

―Deslocamento significa postergar (não liquidar) a saturação das

válvulas de escape disponíveis e a maturação das contradições

fundamentais. Também significa estender as fronteiras historicamente

dadas do capital, mas não eliminar seus limites estruturais objetivos e

explosivos‖ (ibid., 588).

O autor de Para além do capital afirma, então, que os limites

relativos do capital podem ser expandidos historicamente. Isto é viável

de ser feito tanto por meio da ―abertura de novos territórios‖, protegidos

originariamente por impérios coloniais de todo tipo, quanto através

daquilo que o filósofo chama de ―colonização interna‖, isto é, ―pelo

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estabelecimento implacável de novas válvulas de escape nos próprios

países, protegendo as condições de sua expansão sustentada por uma

exploração mais intensiva tanto do produtor como do consumidor etc.

sem se livrar dos limites estruturais e contradições do próprio capital‖

(ibid., 586). E em uma passagem luminosa, o filósofo (ibid., 797)

conclui, pois, que

Os limites imediatos podem ser ampliados de três

modos diferentes:

(a) modificação de algumas partes de um

complexo em questão;

(b) mudança geral de todo o sistema ao qual os

subcomplexos pertencem; e

(c) alteração significativa da relação do complexo

global com outros complexos fora dele.

Por conseguinte, quanto maior a complexidade de

uma estrutura fundamental e das relações entre ela

e outras com as quais é articulada, mais variadas e

flexíveis serão suas possibilidades objetivas de

ajuste e suas chances de sobrevivência até mesmo

em condições extremamente severas da crise.

Mészáros explica, então, que as contradições do capital – isto é,

neste contexto, seus limites relativos - são deslocadas somente no interior dos limites últimos do sistema. Esclarece também que o modo

normal de o capital lidar com suas contradições é ―intensificá-las,

transferi-las para um nível mais elevado, deslocá-las para um plano

diferente, suprimi-las quando possível, e quando elas não puderem mais

ser suprimidas exportá-las para uma esfera ou um país diferente‖ (ibid.,

800). Esse deslocamento prossegue até que estejam completamente

saturadas as ―válvulas de escape expansionistas‖ desse modo de controle

sociometabólico. É um processo que não pode, pois, ocorrer

indefinidamente, como nos adverte o filósofo, visto que vivemos numa

realidade social finita, com finitas possibilidades de recursos e, portanto,

de expansão.

Como dissemos antes, o período de ascendência histórica do

capital favoreceu o deslocamento das suas contradições – os limites

relativos -, em virtude do fato de que o sistema teve à sua disposição um

espaço considerável ao redor do globo terrestre para conquistar e fincar

aí raízes. Mas uma vez tomado o planeta inteiro, o sistema de controle

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sociometabólico do capital começou a encontrar dificuldades acerbas

para eliminar os obstáculos para seu crescimento. A dinâmica de

processos calcada na exploração de trabalho excedente se chocou, então,

com os seus limites últimos, isto é, aqueles que só podem ser

transcendidos com uma radical transformação da própria estrutura social

que lhe serve de fundamento.

Para esclarecer suas teses a esse respeito, Mészáros (ibid., 216)

argumenta que

Todo sistema de reprodução sociometabólica tem

seus limites intrínsecos ou absolutos, que não

podem ser transcendidos sem que o modo de

controle prevalecente mude para um modo

qualitativamente diferente. Quando esses limites

são alcançados no desenvolvimento histórico, é

forçoso transformar os parâmetros estruturais da

ordem estabelecida – em outras palavras, as

―premissas‖ objetivas de sua prática – que

normalmente circunscrevem a margem global de

ajuste das práticas reprodutivas viáveis sob as

circunstâncias existentes. Isto significa sujeitar a

um escrutínio fundamental nada menos do que os

princípios orientadores mais essenciais,

historicamente dados de uma sociedade, e seus

corolários instrumentais-institucionais, pois, sob

as circunstâncias da mudança radical inevitável,

eles deixam de ser os pressupostos válidos e o

quadro estrutural aparentemente insuperável de

toda a verdadeira crítica teórica e prática, e

transformam-se em restrições paralisantes.

Com o final da era de ascendência do capital - ocorrido,

segundo Mészáros, em nossa época histórica -, quando o sistema já

domina, pois, completamente, até os ―bolsões mais distantes‖ do

planeta, a sua dinâmica expansiva se choca com tal dilema. A margem

de deslocamento das suas contradições fica cada vez mais estreita. Por

conseguinte, os seus limites absolutos são, como explica o autor de Para

além do capital, ativados.

O filósofo húngaro faz questão de frisar que tais limites são

absolutos apenas para o capital. Não significa, pois, que sejam algo

impossível de ser transcendido. Além disso, o fato de essas barreiras se

apresentarem como absolutas para o sistema não quer dizer que o capital

não vise constantemente superá-las. O modo de controle

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sociometabólico atualmente estabelecido nunca estanca o seu incansável

impulso para ir além de seus limites, sejam eles absolutos ou relativos.

Como diz Mészáros, ―o mais provável é que se tente tudo para lidar com

as contradições que se intensificam, procurando ampliar a margem de

manobra do sistema do capital em seus próprios limites estruturais‖

(ibid., 220). Contudo, como o sistema é incapaz de colocar em questão

as ―fundamentações causais responsáveis pela ativação dos limites

absolutos desse modo de controle‖ (ibid., 220), ele tende a procurar a

correção dos problemas mais explosivos que daí emergem em paliativos

que nunca, de fato, resolvem as contradições.

Quais são, então, esses limites absolutos, cada vez mais

explosivos, contra os quais o sistema se choca e que é incapaz de

transcender em virtude de não poder colocar os seus próprios

fundamentos em questão? Mészáros os divide em quatro grupos: 1) A

contradição entre o capital transnacional e os Estados nacionais; 2) A

―eliminação das condições de reprodução sociometabólica‖, isto é, a

contradição entre a necessidade de expansão infinita do capital e a

finitude dos recursos naturais e humanos disponíveis; 3) A

impossibilidade de as mulheres adquirirem, dentro do sistema do capital,

a ―igualdade substantiva‖; e 4) A questão do desemprego crônico.

Segundo o filósofo húngaro, esses quatro conjunto de conflitos, e a

incapacidade do capital em solucioná-los, são indícios de que o sistema

se chocou com seus limites últimos. Em outras palavras, isto quer dizer

que a resolução satisfatória de tais contradições exige uma modificação

estrutural da própria forma de regulação sociometabólica que hoje se

caracteriza pela exploração do trabalho excedente.59

Comentaremos

59

Mészáros afirma que, durante o período histórico de ascensão do sistema de extração de

trabalho excedente, esses quatro conjuntos de determinantes foram ―constituintes positivos da

expansão dinâmica e do avanço do capital‖, isto é, ajudavam o sistema a se desenvolver. Em

nossa era, contudo, esses elementos se tornaram ―um impedimento atuante para a acumulação tranqüila do capital e o funcionamento futuro do sistema global do capital‖ (ibid., 226-7) – daí

a severidade da crise que o modo de controle sociometabólico vigente hoje vivencia. O filósofo

húngaro explica ainda que os limites absolutos do sistema ―não estão separados, mas tendem, desde o início, a ser inerentes à lei do valor [grifo nosso]. Neste sentido, eles correspondem de

fato à ‗maturação‘ ou plena afirmação da lei do valor sob condições marcadas pelo

encerramento da fase progressista da ascendência histórica do capital. E, vice-versa, pode-se dizer que a fase progressista de ascendência histórica do capital chega ao encerramento

precisamente porque o sistema global do capital atinge os limites absolutos além dos quais a lei

do valor não pode ser acomodada aos seus limites estruturais‖ (ibid., 226). Infelizmente, em razão das limitações deste trabalho, só podemos tocar a questão da teoria do valor de forma

muito breve. Mészáros afirma que essa determinação tem vigência enquanto existir a

exploração do trabalho excedente. Nas suas palavras: ―A teoria do valor-trabalho só pode deixar de ser operante como resultado de uma transformação socialista radical. [...] Para abolir

a teoria do valor-trabalho, temos de abolir a extração e a alocação de trabalho excedente por

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apenas brevemente alguns aspectos dessas contradições estruturais.

O primeiro dos limites absolutos mencionados, o antagonismo

estrutural entre o capital global, ―irrestritamente transnacional em sua

um corpo externo de qualquer espécie, seja político ou econômico. Mas, para aboli-las, é

preciso mudar o sistema como um todo. [...] a teoria do valor-trabalho é válida para o período histórico em que o capital é oniabrangente, em que a regulação do próprio processo é

fundamentalmente irracional‖ (2007, 67-8). O filósofo discute essa questão de forma mais

aprofundada quando trata do conflito entre trabalho produtivo e improdutivo. Segundo suas palavras: ―a eficácia (ou valor) do trabalhador produtivo pode ser objetivamente avaliada na

estrutura capitalista de contabilidade [isto é, pelo tempo socialmente necessário gasto na

produção] com considerável exatidão, no mesmo sentido da locomotiva – e este é precisamente

o modo como a máquina pode se tornar um competidor direto do trabalhador produtivo. Ao

mesmo tempo, o ―valor‖ atribuído aos constituintes improdutivos e parasitários do processo

capitalista de produção e distribuição (dos manipuladores fraudulentos do mercado de ações aos ―experts‖ das relações anti-sindicais e agentes publicitários comerciais ou políticos) está

aberto às mais arbitrárias determinações. Na verdade, quanto mais nos aproximamos dos

estágios mais desenvolvidos do “capitalismo avançado”, mais pronunciada é a mudança na direção dos constituintes não-produtivos e parasitários [grifo nosso]‖ (ibid., 616). Essa

distinção entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo (ou não-produtivo) é importante para

entendermos o modo como Mészáros lida, justamente, com a teoria do valor (e do antivalor). O filósofo raciocina da seguinte maneira: se o propósito da produção é dar à luz criações (valores

de uso) que satisfaçam necessidades humanas – neste caso, só os trabalhadores produtivos

participam do processo -, nas condições onde o capital domina (de separação entre valor de uso e valor de troca - com a subordinação do primeiro ao segundo – e de trabalho produtivo e

improdutivo), ―a utilidade pode ser perfeitamente igualada à antinecessidade, e neste sentido à

afirmação prática negadora-de-necessidade do antivalor‖ (ibid., 617). Ou seja, sob o domínio do capital, as necessidades que se afirmam não são as necessidades humanas, que careceriam

de valores de uso para serem satisfeitas, mas as necessidades de produção de valores de troca, isto é, as necessidades de expansão do capital (portanto, não-necessidades humana, ou

antinecessidades – aqui entram a publicidade, propaganda, ―vigilância‖ sobre o trabalho,

relações públicas, administradores, etc. - identificadas grotescamente com utilidade) que, para serem satisfeitas, não precisam de valores genuínos, mas de algo que na verdade negue o valor

de uso (e, por isso, negue a necessidade humana): os antivalores. Deve ser isso que Mészáros

tenha querido dizer quando afirma que ―nas condições prevalecentes […] a utilidade pode ser perfeitamente igualada à antinecessidade, e neste sentido à afirmação prática negadora-de-

necessidade do antivalor‖ (ibid., 617). São úteis – nas atuais condições – as antinecessidades e

os antivalores, as objetificações que servem às necessidades de expansão do capital. O trabalho não-produtivo, portanto, é gerador de antivalor, embora os responsáveis pela sua realização

recebam valores originados do excedente criado pelos trabalhadores produtivos. Em outras

palavras, os trabalhadores não-produtivos não realizam trabalhos que atendem às necessidades humanas genuínas, mas às necessidades de expansão do capital (antinecessidades); não

produzem valor (trabalho objetivado), e sim algo ―negador-de-necessidades‖ (humanas),

antivalor. Esses antivalores (e os seus artífices) tendem a assumir um papel maior nas condições do capitalismo avançado. Para Mészáros, então, os trabalhadores produtivos, os que

participam diretamente da produção do trabalho excedente, tem o seu ―valor‖ medido com

―considerável exatidão‖, tal como é feito com uma locomotiva. Os trabalhadores não-produtivos (de excedente), os ―constituintes improdutivos e parasitários do sistema‖,

justamente por não participarem diretamente da produção, não tem o seu ―valor‖ medido com

―exatidão‖, mas receberão também uma parcela do excedente produzido pelo trabalho. Para uma compreensão mais aprofundada do tema, remetemos à leitura principalmente – mas não só

– do capítulo 14 de Para além do capital.

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tendência objetiva‖, e os Estados nacionais, é composto, segundo o

filósofo húngaro (2002, 222), de pelo menos três contradições

fundamentais:

as que existem entre (1) Monopólio e competição;

(2) a crescente socialização do processo de

trabalho e a apropriação discriminatória e

preferencial de seus produtos (por várias

personificações do capital – de capitalistas

privados às auto-eternizadoras burocracias

coletivas); e (3) a divisão internacional do

trabalho, ininterrupta e crescente, e o impulso

irreprimível para o desenvolvimento desigual,

que, portanto, deslocam necessariamente as forças

preponderantes do sistema global do capital (no

período posterior à Segunda Guerra Mundial,

basicamente os Estados Unidos)60

para a

dominação hegemônica.

O filósofo húngaro explica que é a concatenação dialética

dessas contradições objetivas que está na raiz do antagonismo entre as

estruturas de reprodução material do capital - mundialmente integradas -

e suas estruturas de comando político, os ―diversos Estados nacionais

com sua individualidade ‗intranscendível‘‖ (ibid., 244). O capital, então,

apesar de realizar a integração econômica de suas unidades, não

consegue afirmar uma formação estatal que seja também global. Nesse

contexto, a ―individualidade‖ dos vários Estados é intranscendível

porque, em todos os cantos do mundo, o sistema é obrigado a ―operar

em situação inerentemente conflitante‖, em virtude dos seus próprios

antagonismos estruturais ―desde o menor ‗microcosmo‘ de sua

reprodução até as empresas de produção e distribuição mais

60

Contra os que acreditam que hoje, depois de tremenda crise financeira dos últimos anos,

estaríamos vivendo o ―declínio do império americano‖, talvez seja interessante ler o que afirmou recentemente (2010) Tariq Ali, exímio analista de conjuntura e especialista sobre o

tema. Ao receber o seguinte questionamento: ―Com a crise nos EUA e na Europa, fala-se muito

do poder dos emergentes, do BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China). A hegemonia dos EUA está em risco?‖, respondeu que: ―Não. Acho que os EUA continuam a ser o poder hegemônico

global, e no momento não há quem possa mudar isso. Talvez no fim deste século as coisas

possam ficar mais claras. Há reclamações, irritação. Mas sempre foi assim. Os EUA, ironicamente, estão mais fortes agora do que nos anos 1960 e 70. A ilusão que as pessoas têm

sobre a China está mal colocada. Acho que a liderança chinesa, no futuro previsível,

dificilmente vai desafiar a hegemonia americana. De certo modo precisa dela, a China como a maior potência econômica e os EUA como a maior potência militar. O BRIC não é uma coisa

séria.‖

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gigantescas‖ (ibid., 244).

Mészáros esclarece, então, que essa impossibilidade é

expressão, em última instância, da contradição existente entre capital e

trabalho. Nesse contexto, apesar da citação seguinte ser, mais uma vez,

um tanto longa, vale a pena atentar para a argumentação que o filósofo

aí delineia. O autor de Para além do capital (ibid., 244-5) afirma que

a ―individualidade‖ [do Estado nacional] em

questão é uma determinação negativa [isto é, que

se estabelece como antagonismo] inalterável, que

não pode ser preenchida com um conteúdo

positivo [ou seja, neste contexto, como superação

do conflito rumo a uma formação auto-

sustentada]. Nesse sentido, encontramos no plano

da reprodução material inúmeros capitais que se

opõem uns aos outros e, o que é mais sério, aos

grupos de trabalho sob seu controle, todos lutando

- inexoravelmente e, por sua própria natureza,

descontroladamente - para a dominação total em

seu próprio território e além de suas fronteiras

nacionais. Ao mesmo tempo, no plano político

totalizador, o Estado do sistema do capital é

articulado como uma série de Estados nacionais

opostos entre si (e, naturalmente, à força de

trabalho nacional sob seu controle

―constitucional‖) como ―Estados soberanos‖

particulares. A determinação negativa do capital –

no singular ou no plural – não pode ser

transformada em positiva, porque o capital é

parasitário do trabalho, que estruturalmente tem

de dominar e explorar. Isto significa que o capital

nada é sem o trabalho, nem mesmo por um

instante, o que torna absoluta e permanente a

determinação negativa do capital – em termos de

sua dependência do trabalho. Igualmente, a

formação do Estado no sistema do capital é

impensável se este não reproduzir, à sua própria

maneira, a mesma multiplicidade de

determinações negativas intranscendíveis,

articulando por meio de sua estrutura de comando

político totalizador – numa forma hierárquica

invertida, correspondente à hierarquia estrutural

do processo de reprodução material – a absoluta

dependência do capital ao trabalho.

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Neste sentido, é intelectualmente coerente falar da

―soberania do Estado‖ como fronteira negativa

que separa e opõe todos os Estados uns aos outros,

por mais problemático que seja, sob outros

aspectos, no plano das verdadeiras relações de

poder entre eles. Esperar que o Estado do sistema

do capital se transforme numa formação positiva

para adquirir a capacidade de reunir e ―conciliar‖

debaixo de si mesmo as contradições dos Estados

nacionais num ―governo mundial‖ ou numa ―liga

das nações‖ kantiana é pedir o impossível. O

―Estado‖ do sistema do capital (que existe na

forma de Estados nacionais particulares) nada é

sem sua oposição ao trabalho e sem a

autodeterminação negativa em relação a ele.

Pensar o Estado como instrumentalidade política

de autodeterminações positivas (auto-sustentadas)

significa esperar a restituição de suas funções

controladoras alienadas em relação ao corpo

social e, com isso, o necessário ―estiolar‖ do

Estado. Na situação existente sob o domínio do

capital, prevalece a negatividade que se afirma

com implacável eficácia no plano da reprodução e

no político, internamente e por meio das relações

conflituosas entre os Estados.

Em suma, é a negatividade inerente ao capital em sua relação

com o trabalho que funda a contradição entre a integração das unidades

produtivas do sistema e a impossibilidade de superação da

―individualidade‖ dos seus Estados nacionais constituintes.

O segundo limite absoluto que mencionamos, que envolve as

questões ambientais, está intimamente vinculado ao primeiro. Mészáros

afirma, nesse sentido, que ―a irrevogável extrapolação do capital no

plano das condições elementares da reprodução sociometabólica‖ é

conseqüência inevitável da contradição que existe entre ―a sempre

crescente socialização da produção (em direção à plena globalização) e

seu controle hierárquico restritivo por diferentes tipos de

personificações do capital‖ (ibid., 256-7). Mais uma vez, leiamos como o filósofo húngaro (ibid., 257)

esclarece a natureza contraditória dessa dinâmica expansiva:

No decorrer do desenvolvimento histórico, a

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constante expansão da escala das operações ajuda

a deslocar por muito tempo essas contradições,

liberando a pressão dos ―gargalos‖ na expansão do

capital com a abertura de novas rotas de

suprimento de recursos humanos e materiais, além

de criar as necessidades de consumo determinadas

pela continuidade da auto-sustentação, em escala

cada vez maior, do sistema de reprodução.

Contudo, além de certo ponto, de nada adianta um

aumento maior dessa escala e a auto-usurpação da

totalidade dos recursos renováveis e não-

renováveis que o acompanha, mas, ao contrário,

ele aprofunda os problemas implícitos e se torna

contraproducente. É o que se deve entender por

ativação do limite absoluto do capital com relação

à maneira como são tratadas as condições

elementares de reprodução sociometabólica.

Mészáros discute tais problemas de forma muito rica e

detalhada – e que só podemos tratar aqui de modo breve -, relacionando-

os freqüentemente com os processos de criação artificial de

necessidades sociais levados a cabo pelo capital, nos múltiplos pontos

que compõem o seu sistema, para satisfazer seus imperativos

expansionistas imanentes. Mencionamos apenas, a título de exemplo,

uma passagem de Para além do capital onde fica bastante saliente o

argumento do autor sobre o vínculo entre tais necessidades e o

desperdício dos recursos de que a humanidade dispõe para a sua

reprodução sociometabólica. O filósofo (ibid., 260) afirma que

não são apenas as necessidades legítimas que são

historicamente criadas – o ―vale tudo‖ é adotado

como princípio orientador da produção (e do

julgamento do valor em geral), limitado pela única

cláusula implícita de que tudo o que for praticado

deve contribuir para a expansão do capital.

Com isso, abre-se a possibilidade – na verdade, a

necessidade – da busca de ―soluções‖ arbitrárias e

manipulativas para os novos problemas e

contradições emergentes na vida econômica e

social. As conseqüências negativas são visíveis

em relação aos consumidores e ao sistema

produtivo. Com relação aos indivíduos,

prepondera a criação e manipulação de ―apetites

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artificiais‖, já que a ―administração da demanda‖

deve estar subordinada aos imperativos do valor

de troca que se expande. Se as necessidades reais

dos indivíduos couberem nos limites desse valor

de troca de maneira vantajosa para o sistema (com

sua necessidade de bens produzidos em massa

para serem distribuídos com a eficácia máxima no

mercado global), elas podem ser correspondidas

ou pelo menos consideradas legítimas; se assim

não for, deverão ser frustradas e substituídas por

qualquer coisa produzida em conformidade com o

imperativo da expansão do capital.

A utilização predatória dos recursos renováveis e

não-renováveis e o correspondente desperdício em

escala monumental é o corolário fatal dessa

maneira alienada de se relacionar com a

necessidade humana individual. No que se refere à

influência desse mesmo fato no sistema produtivo

em si, descobrimos que a série de carências

historicamente criadas (e dos bens

correspondentes, não importando sua

artificialidade) estão incorporadas num quadro

reprodutivo altamente ampliado, com dificuldade

cada vez maior de garantir a exigida continuidade

da produção e das necessárias ―realização‖ e

―valorização‖ do capital em escala sempre

crescente.

O terceiro limite absoluto se refere à questão da emancipação

das mulheres. Mészáros argumenta que o controle social hierárquico e

discriminatório que vigora no plano do ―macrocosmo‖ da atividade

produtiva e reprodutiva se expressa inevitavelmente ―em todos os níveis

do intercâmbio humano‖ (ibid., 268), isto é, também nos ―microcosmos‖

e ―microestruturas‖ da reprodução e do consumo – ou seja, no interior

da família propriamente dita.61

A superação da discriminação das

61

Mészáros retoma, a seu modo, aqui, uma frente de crítica já aberta por Marx – e que

infelizmente parece ter passada quase despercebida por seus posteriores discípulos – em um

artigo de 1846, Sobre o suicídio (São Paulo: Boitempo, 2006 b), uma brochura de algumas dezenas de páginas em que analisava situações de suicídio, a maioria de mulheres, ocorridos na

França, durante aquele período histórico singular. O filósofo mostrava em seu texto como o

capitalismo era uma formação social que oprimia não somente os trabalhadores, mas indivíduos das mais diversas origens e segmentos sociais. Entre as vítimas ―não-proletárias‖

levadas ao desespero e ao auto-aniquilamento pelas pressões da sociedade burguesa, estavam,

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mulheres e a sua conseqüente libertação real exige, portanto, mais que o

reconhecimento formal por parte do Estado da sua ―igualdade de

oportunidades‖ em comparação com os homens. Como explica o

filósofo húngaro (ibid., 268), em virtude da estruturação hierárquica e

fetichista que ocorre no plano da atividade produtiva dominada pelo

capital,

Seria um milagre se o ―microcosmo‖

62 do sistema

do capital fosse ordenado segundo o princípio da

igualdade real. Em seu conjunto, este sistema não

pode se manter sem reproduzir, com sucesso e de

maneira constante, as relações de poder

historicamente específicas pelas quais a função de

controle se encontra radicalmente separada da, e

de maneira autoritária imposta sobre a, força de

trabalho pelas personificações do capital, mesmo

nas variedade pós-capitalistas do sistema. Os

complexos sociais sempre funcionam com base

em reciprocidades dialéticas.

Qual a alternativa a tal estado de coisas? Vale a pena, aqui,

transcrever mais uma passagem importante de Para além do capital.

Afirma Mészáros (ibid., 303) que

sem mudanças fundamentais no modo de

reprodução social, não se poderão dar sequer os

primeiros passos em direção à verdadeira

emancipação das mulheres, muito além da retórica

da ideologia dominante e de gestos de legislação

que permanecem sem a sustentação de processos e

remédios materiais adequados. Sem o

sobretudo, as mulheres. Na visão de Marx, era a opressão sócio-político-econômica do

capitalismo, articulada à, nas suas palavras, ―tirania familiar‖ (patriarcal) – que permitia aos homens tratarem suas esposas como objetos -, que levava as mulheres à trágica decisão de

liquidarem com suas próprias vidas. O suicídio, nesse contexto, foi interpretado pelo pensador

alemão como uma espécie de protesto contra uma condição bárbara e degradante, e por isso deveria estar isento de todo e qualquer tipo de julgamento moralista ou condenação

preconceituosa. Para Marx, uma ―sociedade‖ que pratica atrocidades desse teor não merece

nem mesmo ser chamada de sociedade, pois ―mais parece uma selva habitada por feras selvagens‖. Esse artigo constituiu-se, então, numa crítica radical e sem concessões da

subordinação feminina e da natureza opressiva do tipo de organização familiar vigente na

sociedade capitalista. 62

Note-se que, aqui, microcosmos tem o sentido de família, diferentemente de outros

contextos, quando o termo aparece associado ao conceito de ―unidades de produção‖.

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estabelecimento e a consolidação de um modo de

reprodução sociometabólica baseado na

verdadeira igualdade, até os esforços legais mais

sinceros voltados para a ―emancipação das

mulheres‖ ficam desprovidos das mais

elementares garantias materiais; portanto, na

melhor das hipóteses, não passam de simples

declaração de fé. Jamais se enfatizará o bastante

que somente uma forma comunitária de produção

e troca social pode arrancar as mulheres de sua

posição subordinada e proporciona a base material

da verdadeira igualdade.63

O último dos limites absolutos é o desemprego crônico, que,

durante o século XX, se afirmou até mesmo nos países do centro do

sistema do capital – inclusive na China e na extinta URSS -, como uma

―tendência irresistível‖, sempre ignorada e deturpada ―como se fosse

devida apenas a desenvolvimentos tecnológicos e às descobertas

científicas básicas, e portanto como se fosse devida à ‗aparência de leis

naturais‘‖ (ibid., 320). De acordo com Mészáros, essa tendência está

vinculada, dentre outras coisas, à diminuição do tempo de trabalho necessário que o capital tem levado a efeito ao longo de sua história.

Nas palavras do filósofo húngaro (ibid., 341),

a atual ―explosão populacional‖ sob a forma do

aumento do desemprego crônico nos países

capitalistas mais avançados representa um perigo

sério para a totalidade do sistema, pois acreditava-

se no passado que o desemprego maciço fosse

algo que só afetasse as áreas mais ―atrasadas‖ e

―subdesenvolvidas‖ do planeta. Na verdade, a

ideologia associada a este estado de coisas poderia

ser – e, com um toque de cinismo, ainda é - usada

para acalmar o operariado dos países ―avançados‖

com relação à sua suposta superioridade

concedida por deus. Entretanto, como uma grande

63

Mészáros afirma ainda que ―de forma paradoxal e inesperada (pois a classe das mulheres

atravessa todos os limites de classes sociais), a emancipação feminina comprova ser o ‗calcanhar de Aquiles‘ do capital: ao demonstrar a total incompatibilidade de uma verdadeira

igualdade com o sistema do capital nas situações históricas em que essa questão não

desaparece, não pode ser reprimida com violência (ao contrário do que acontecia com a militância de classes no passado) nem esvaziada de seu conteúdo e ‗realizada‘ na forma de

critérios formais vazios‖ (ibid., 224).

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ironia da história, a dinâmica interna antagonista

do sistema do capital agora se afirma – no seu

impulso inexorável para reduzir globalmente o

tempo de trabalho necessário a um valor mínimo

que otimize o lucro – como uma tendência

devastadora da humanidade que transforma por

toda parte a população trabalhadora numa força

de trabalho crescentemente supérflua.

Ainda conforme Mészáros, esse fenômeno é carregado de ―uma

carga potencialmente explosiva extremamente instável‖ capaz de

produzir ―dinamite social‖ no interior do próprio sistema, dando origem

a conflitos de todo tipo envolvendo criminalidade, marginalização,

miséria extrema, etc., que acabam por minar a própria estabilidade

social. Assim, afirma o filósofo húngaro (ibid., 342), os trabalhadores de

todos os países se vêem hoje brutalmente atacados em duas frentes:

Hoje estamos testemunhando [...] 1) um

desemprego que cresce cronicamente em todos os

campos de atividade, mesmo quando é disfarçado

com ―práticas trabalhistas flexíveis‖ – um

eufemismo cínico para a política deliberada de

fragmentação e precarização da força de trabalho

e para a máxima exploração administrável do

trabalho em tempo parcial; e 2) uma redução

significativa do padrão de vida até mesmo daquela

parte da população trabalhadora que é necessária

aos requisitos operacionais do sistema produtivo

em ocupações de tempo integral.

É, portanto, a impossibilidade de o capital ―exportar‖ suas

contradições – como o fez sempre ao longo de sua fase de ascendência

histórica – que ativa esses limites absolutos e a simultânea crise estrutural do sistema de reprodução sociometabólica.

Nesse contexto, Mészáros explica que ―não há nada especial em

associar-se capital a crise‖ (ibid., 795). Na verdade, o capital ―vive‖

mesmo de produzir crises. Mas há que se fazer uma diferenciação

fundamental entre as modalidades de crise que o sistema dá à luz. Enquanto a dinâmica de exploração de trabalho excedente vivia a sua

fase de ascendência histórica, isto é, enquanto encontrava válvulas de

escape para deslocar seus limites relativos e assim exportar seus

conflitos, as crises – que apareciam no horizonte histórico ciclicamente -

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possuíam certas especificidades. Completada a fase histórica de

ascendência, o capital se confrontou com os seus limites absolutos e isso

acabou trazendo novas determinações para as suas possibilidades de

movimento. A crise, por isso mesmo, agora possui uma natureza

completamente diferente. Conforme esclarece o filósofo húngaro (ibid.,

796),

A novidade histórica da crise de hoje torna-se

manifesta em quatro aspectos principais:

1. seu caráter é universal, em lugar de restrito a

uma esfera particular (por exemplo, financeira

ou comercial, ou afetando este ou aquele ramo

particular de produção, aplicando-se a este e

não àquele tipo de trabalho, com sua gama

específica de habilidade e graus de

produtividade etc.);

2. seu alcance é verdadeiramente global (no

sentido mais literal e ameaçador do termo), em

lugar de limitado a um conjunto particular de

países (como foram todas as principais crises

do passado);

3. sua escala de tempo é extensa, contínua, se

preferir, permanente, em lugar de limitada e

cíclica, como foram todas as crises anteriores

do capital;

4. em contraste com as erupções e os colapsos

mais espetaculares e dramáticos do passado,

seu modo de se desdobrar poderia ser

chamado de rastejante, desde que

acrescentemos a ressalva de que nem sequer

as convulsões mais veementes ou violentas

poderiam ser excluídas no que se refere ao

futuro: a saber, quando a complexa maquinaria

agora ativamente empenhada na

―administração da crise‖ e no ―deslocamento‖

mais ou menos temporário das crescentes

contradições perder sua energia. Tal crise, como dissemos, é o resultado do confronto do capital

com seus limites absolutos. Nela se manifesta uma tendência existente

desde há muito no seio do sistema, mas que só em nossa época histórica

se torna dominante e desenvolvida de forma plena: a utilização

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decrescente dos produtos do trabalho humano, fenômeno que se

expressa hoje fundamentalmente como destrutividade em todos os

pontos da atividade de reprodução sociometabólica. Vejamos, pois, o

modo como Mészáros desenvolve seu argumento.

De acordo com Para além do capital, a tendência à geração do

desperdício e o combate da durabilidade não são acidentes em relação

ao capital, e sim componentes importantes de sua dinâmica geral. Nesse

contexto, a utilização decrescente dos produtos do trabalho humano

acaba ganhando contornos tremendamente problemáticos. De que forma

isso ocorre? Leiamos primeiramente a seguinte passagem, onde o

filósofo húngaro (ibid., 639-40) afirma que:

No curso da história, avanços na produtividade

inevitavelmente alteram o padrão de consumo,

bem como a maneira pela qual serão utilizados

tanto os bens a serem consumidos, como os

instrumentos com os quais serão produzidos

[grifo nosso]. Tais avanços, além do mais, afetam

profundamente a própria natureza da atividade

produtiva, determinando, ao mesmo tempo, a

proporção segundo a qual o tempo disponível

total de uma dada sociedade será distribuído entre

a atividade necessária para o seu intercâmbio

metabólico básico com a natureza e todas as

outras funções e atividades nas quais se engajam

os indivíduos da sociedade em questão.

A taxa de utilização decrescente está, em certo

sentido, diretamente implícita nos avanços

realizados pela própria produtividade [grifo

nosso]. Ela se manifesta, em primeiro lugar, na

proporção variável, segundo a qual uma

sociedade tem que alocar quantidades

determinadas de seu tempo disponível total para a

produção de bens de consumo rápido (por

exemplo, produtos alimentícios), em contraponto

aos que continuam utilizáveis (isto é, reutilizáveis)

por um período de tempo maior: uma proporção

que obviamente tende a se alterar a favor dos

últimos. Sem essa alteração seria inconcebível um

desenvolvimento sustentável e potencialmente

emancipatório.

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A taxa de utilização decrescente – e o consumo, em geral -

mantém íntima relação, pois, com a produtividade. As alterações que

porventura aí ocorram acarretam mudanças na referida taxa. Nesse

contexto preciso da argumentação de Para além do capital, o problema

que norteia os esforços teóricos do autor é a necessidade de desvendar

quais são os efeitos que o capital imprime na taxa de utilização

decrescente, em virtude da forma específica que o sistema possui de

organizar a atividade produtiva humana.

O filósofo húngaro traça, então, uma analogia com outras

formações sociais. Em comparação, por exemplo, com a forma da taxa

de utilização decrescente realizada numa sociedade onde predomina o

trabalho artesanal, Mészáros (ibid., 641-2) assinala que:

Este tipo de ―subutilização‖ [...] é radicalmente

diferente da que experimentamos sob as condições

do capitalismo, pois o próprio mestre-artesão não

está de maneira alguma ocioso quando usa a serra

em vez do formão ou do martelo. Em contraste, o

instrumento de produção capitalista – um

maquinário produtivo crescentemente

interdependente, articulado por meio de minuciosa

divisão e reunificação do trabalho, de acordo com

as determinações verticais e horizontais do

processo de trabalho capitalista – é pela sua

própria natureza um instrumento social que só

pode ser empregado em conjunto.

A articulação inerentemente social da maquinaria

produtiva capitalista implica, como precondição

para seu estado saudável, a necessidade de sua

utilização contínua. Esta é uma exigência que

deve ser satisfeita, caso se queira evitar a ―reação

em cadeia‖ das assim chamadas ―disfunção

temporárias‖, que resultam em conseqüências

mais ou menos destrutivas. Conseqüentemente, a

subutilização (ou não-utilização) da maquinaria

produtiva capitalista em determinadas condições

socioeconômicas (por exemplo, crises periódicas:

porém, como logo veremos, cada vez menos

apenas nas circunstâncias de tais crises) é a

manifestação de uma séria doença social. Isso

contrasta fortemente com a inevitável

normalidade do sistema artesanal do

deslocamento de um segmento de processo

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individualmente coordenado do exercício de

múltipas habilidades para outro. Porque este está

em plenas concordância e adequação com as

características inerentes ao modo de produção

dado e com o nível de desenvolvimento

historicamente alcançado das habilidades e

instrumentos produtivos socialmente acumulados.

Como dissemos, então, transformações na produtividade

repercutem mudanças no modo como a sociedade consome e utiliza seus

produtos, na duração da ―vida útil‖ destes, na maneira como o tempo de

trabalho é distribuído, etc. Com base nesse postulado, o filósofo húngaro

realiza algumas comparações a fim de demonstrar as variações e os

problemas que acabam se vinculando à taxa de utilização decrescente

em formações sociais diversas com suas respectivas maneiras

específicas de organização da atividade produtiva. Assim, a

subutilização de um determinado objeto, num contexto onde, por

exemplo, predomina o artesanato, pode ser considerado algo ―normal‖,

enquanto que numa sociedade onde a atividade mercantil é dominante,

como no caso capitalismo, isso pode ser profundamente problemático.

Mészáros desenvolve essa argumentação a fim de poder desvendar o que

acontece com a taxa de utilização decrescente no contexto da crise

estrutural do sistema do capital. Aí, em virtude da ―absurda reversão dos

avanços produtivos em favor dos produtos de ‗consumo‘ rápido e da

destrutiva dissipação dos recursos‖, a humanidade se torna exposta ao

―mais perverso tipo de existência que produz para o consumo imediato

(hand to mouth economy): absolutamente injustificada com base nas

limitações das forças produtivas e nas potencialidades da humanidade

acumuladas no curso da história‖ (ibid., 642). Estabelecido esse ponto, o

filósofo afirma que é preciso entender como esse cenário veio a se

configurar ao longo da história.

Mészáros explica, nesse sentido, que, conforme se afirmava

como modo de produção dominante, o capitalismo reabilitou o luxo – o

supérfluo, isto é, aquilo que não é imediatamente necessário para a

reprodução da vida humana - como ―estrutura orientadora da [sua]

expansão produtiva‖ (ibid., 643), reconfigurando, conseqüentemente, os

valores culturais a fim de que se adequassem às exigências – de modo a endossá-las - da nova ordem que se desenvolvia. Assim, a produção do

luxo se estabeleceu como uma tendência objetiva do desenvolvimento

do sistema. Mas as tendências que surgem objetivamente no interior das

formações sociais calcadas em antagonismos reais, explica o filósofo,

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são sempre acompanhadas por suas concomitantes contratendências.

Como assinala Mészáros (ibid., 653),

Dada a natureza imanente do capital,

caracterizada por Marx como a ―contradição

viva‖, cada tendência principal desse sistema de

produção e distribuição só se faz inteligível se

levamos plenamente em conta a contratendência

específica à qual aquela está objetivamente ligada.

Isso acontece mesmo quando, no relacionamento

entre elas, um dos lados das indeterminações

contraditórias necessariamente predomina, de

acordo com as circunstâncias sócio-históricas

prevalecentes. Assim, a tendência do capital ao

monopólio é contrabalançada pela concorrência;

igualmente, a centralização pela fragmentação, a

internacionalização pelos particularismos

nacionais e regionais, o equilíbrio pela quebra do

equilíbrio etc.

E como, portanto, essa dinâmica contraditória se expressou, em

se tratando da taxa de utilização decrescente e do luxo, no interior do

capitalismo, desde seus primórdios até a atual época histórica de crise

estrutural? Leiamos mais uma vez Para além do capital (ibid., 653):

O mesmo vale para a lei tendencial da taxa de

utilização decrescente que, como vimos acima, se

afirma, no início, como a reabilitação do ―LUXO‖

e da ―PRODIGALIDADE‖ – junto com a

expansão do círculo de consumo, que passa assim

a abarcar também um número cada vez maior de

―Pobres que trabalham‖; a estes é proporcionada

uma gama crescente de mercadorias à medida que

o desenvolvimento das forças produtivas o torna

possível como necessário – sem, porém, deixar de

lado a ―FRUGALIDADE‖, a ―ECONOMIA‖ e a

―POUPANÇA‖ como momentos subalternos do

capitalismo em sua ascensão. A mesma tendência

[isto é, a taxa de utilização decrescente], sob as

condições do capitalismo plenamente

desenvolvido, assume a forma de extrema

PERDULARIDADE e DESTRUIÇÃO, mas é de

novo contrabalançada – em vários graus – pelo

imperativo de poupar, bem como pela inevitável

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necessidade de reconstituir o capital depois da

periódica destruição de sua magnitude

―superproduzida‖, no interior da sobrevivência do

sistema do capital.64

Em síntese, pois, temos que o modo pelo qual se configura a

produtividade de uma formação social específica interfere na maneira

como os produtos são aí utilizados. Se numa sociedade onde, como

afirma Mészáros, predomina o trabalho artesanal, a subutilização de um

determinado produto pode ser considerada não problemática, vindo a

fazer com que esse objeto, assim subutilizado, se configure em ―luxo‖,

em outro contexto diferente, com a atividade produtiva se organizando

de forma completamente diversa, o mesmo conjunto de determinações

pode vir a se tornar uma tremenda disfunção. Na atualidade, vemos

essas tendências se afirmarem como perdularidade e destrutividade,

fenômenos acompanhados por uma contratendência que se expressa nas

práticas determinadas pelas necessidades de poupar e reconstituir o

capital, apesar dos recursos naturais e humanos se tornarem

progressivamente escassos.65

Mas, ainda assim – deve-se frisar bem este

ponto -, neste contexto específico, a tendência dominante é, de fato, a da

taxa de utilização decrescente voltada para a perdularidade e a

destrutividade.

A raiz profunda dessa intensificação da taxa de utilização

decrescente é localizada pelo filósofo húngaro na própria separação

radical entre os produtores e os seus meios de produção. Mészáros

explica, nesse sentido, que, numa sociedade onde os trabalhadores estão

de posse dos seus instrumentos de trabalho, a produção é fortemente

restringida pelas limitações da demanda e a taxa de utilização de

qualquer produto tende aí a ser alta. Contudo, quando se efetiva a

referida separação, a atividade produtiva adquire um caráter muito mais

64

As maiúsculas são de Mészáros. 65

O filósofo húngaro complementa seu argumento aqui fazendo duas importantes colocações.

A primeira diz respeito à lei do desenvolvimento desigual, que determina que as tendências

mencionadas podem se manifestar de modo muito diverso ao redor do mundo, ―dependendo do

nível mais ou menos avançado de desenvolvimento dos capitais nacionais dados, bem como da posição mais ou menos dominante destes últimos no interior da estrutura do capital global‖

(ibid., 653). A segunda se refere ―às determinações interiores das várias tendências, bem como

ao peso relativo dessas tendências na totalidade dos desenvolvimentos capitalistas. Quaisquer que sejam suas transformações, mudanças de ênfase e variações em relação umas às outras ou

em relação às suas contratendências específicas, em diferentes lugares e em épocas

amplamente diferenciadas da história [...], elas também possuem uma lógica imanente própria de acordo com a qual se desdobram através da história e, por isso, circunscrevem

objetivamente os limites do desenvolvimento capitalista global‖ (ibid., 653).

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dinâmico e com características totalmente diferentes. Como assinala o

autor de Para além do capital (ibd., 660):

Dessa forma [isto é, com a alienação dos

trabalhadores em relação aos meios de produção],

os objetivos da produção não mais estão

diretamente atados (e subordinados) às limitações

do consumo dado, mas podem antecipar-se

significativamente a ele, estimulando, na forma de

sua nova reciprocidade, tanto a produção como a

―demanda conduzida pela oferta‖.

Mas essa separação, que estimula o desenvolvimento e a adoção

por parte do capital de um papel de estimulador ativo em relação à

demanda, também lhe causa problemas: a perda de sua capacidade de

pôr limites aos seus próprios procedimentos produtivos. A formação

social não se regula mais, pois, pelo relativo equilíbrio, mas pela

necessidade de acumulação e expansão. O que se verifica aí, então, é

explicado por Mészáros (ibid., 660) com as seguintes palavras:

O capital não trata meramente como separados

valor de uso (que corresponde diretamente à

necessidade) e valor de troca, mas o faz de modo

a subordinar radicalmente o primeiro ao último.

Como já mencionado, na sua própria época e

lugar, isto representou uma inovação radical que

abriu horizontes antes inimagináveis para o

desenvolvimento econômico. Uma inovação

baseada na percepção prática de que qualquer

mercadoria, num extremo da escala, pode estar

constantemente em uso ou, no outro extremo das

possíveis taxas de utilização, absolutamente nunca

ser usada, sem perder com isso sua utilidade no

que se refere às exigências expansionistas do

modo de produção capitalista.

Como resultado, novas potencialidades produtivas

se abrem ao capital, cujo sistema não sofrerá

qualquer conseqüência se a relação de alguém

com um dado produto for caracterizada pela taxa

de utilização mínima ou máxima, pois essa taxa

não afeta em absolutamente nada a única coisa

que realmente importa do ponto de vista do

capital, a saber: que uma certa quantidade de valor

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de troca foi realizada na mercadoria em questão

através do próprio ato de venda

independentemente de ser ela, na seqüência,

sujeita a uso constante, a pouco ou nenhum uso

[...], conforme for o caso. O capital define ―útil‖ e

―utilidade‖ em termos de vendabilidade: um

imperativo que pode ser realizado sob a

hegemonia do próprio valor de troca.

O que é vantajoso, portanto, para a expansão do sistema, não é

um incremento na taxa com que uma mercadoria é utilizada, mas sim o

contrário, isto é, o decréscimo de suas horas de uso diário, acompanhada

da manutenção da demanda por esse produto. Foi, pois, a combinação

de tais processos que se converteu num dos principais meios pelos quais

o capital conseguiu o seu desenvolvimento incomensurável ao longo da

história. Por outro lado, são exatamente essas determinações que,

orientadas pelo princípio da lucratividade, fazem com que o sistema do

capital se realize de forma cada vez mais perdulária e desperdiçadora –

e, conseqüentemente, explosiva – em nossa época histórica de transição.

Segundo o filósofo húngaro, então, é o ―imperativo da

lucratividade‖ que determina as operações do sistema do capital. É essa

exigência específica que deve ―sobrepujar todas as outras considerações,

quaisquer que sejam as implicações‖ (ibid., 662). Por conseguinte,

mesmo que um certo empreendimento se revele extremamente

perdulário de recursos, ou mesmo de material humano, se ele apresentar

lucratividade, será considerado economicamente viável, e, portanto,

racional. Como esclarece Mészáros, ―contanto que [um determinado]

produto possa ser lucrativamente imposto ao mercado, ele deve ser

saudado como manifestação correta e apropriada da ‗economia‘

capitalista‖ (ibid., 663). O autor de Para além do capital coloca, aqui, a

palavra economia entre aspas, porque, para ele, o capitalismo em nada

se mostra de fato ―econômico‖ (no sentido de economizar, poupar, etc.).

Sua dinâmica é, na realidade, extremamente desperdiçadora. Conforme

suas palavras: ―As práticas obviamente perdulárias aqui envolvidas são

plenamente justificadas desde que satisfaçam aos critérios capitalistas de

‗eficiência‘, ‗racionalidade‘ e ‗economia‘ em virtude da lucratividade

comprovada da mercadoria em questão‖ (ibid., 663).

A intensificação da taxa de utilização decrescente, orientada

pela lucratividade, com seus efeitos tremendamente perniciosos nas

mais variadas esferas da atividade humana, só se torna inteligível, pois,

quando relacionada com a separação do trabalhador dos meios de

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produção. Uma vez que esse fato se afirme, os meios de produção se

convertem em mediações componentes do capital. Conseqüentemente,

passarão a ser regidos pela lógica auto-expansiva que rege a dinâmica

desse sistema. Não estarão, pois, dirigidos para a satisfação das

necessidades humanas. Ao contrário, se voltarão contra elas e se

orientarão, justamente, para a realização das ―necessidades da produção‖, tornando-se, pois, determinadas por esse conjunto de

processos. A única saída possível para tais contradições seria a adoção

do ―tempo disponível como o princípio orientador da reprodução

societária‖, mas isso, diz Mészáros, ―é, naturalmente, um anátema para

o capital, pois [essa proposta] não pode ser adaptada à sua estrutura de

valorização e de auto-reprodução expansiva‖ (ibid., 668).

A taxa de utilização decrescente está, portanto, como dissemos,

umbilicalmente vinculada à dinâmica expansiva do sistema do capital.

Com a sua intensificação em nossos dias, ela passa a afetar

negativamente, segundo Mészáros, todas as três dimensões

fundamentais da produção e do consumo capitalistas: 1) bens e serviços;

2) instalações e maquinaria; e 3) a própria força de trabalho. Em relação

à primeira, o filósofo explica que essa lei tendencial é perceptível na

―crescente velocidade de circulação e do turnover do capital‖ (ibid.

670). Para superar a crise da expansão da produção, faz-se necessário

―divisar meios que possam reduzir a taxa pela qual qualquer tipo

particular de mercadoria é usada, encurtando deliberadamente sua vida

útil, a fim de tornar possível o lançamento de um contínuo suprimento

de mercadorias superproduzidas no vórtice da circulação que se acelera‖

(ibid., 670). Como esclarece o filósofo húngaro (ibid., 670-1), são

expressão deste fenômeno

A notória ―obsolescência planejada‖ em relação

aos ―bens de consumo duráveis‖, produzidos em

massa; a substituição, o abandono ou o

aniquilamento deliberado de bens e serviços que

oferecem um potencial de utilização

intrinsecamente maior (por exemplo, o transporte

coletivo) em favor daqueles cujas taxas de

utilização tendem a ser muito menores, até

mínima (como o automóvel particular) e que

absorvem uma parte considerável do poder de

compra da sociedade; a imposição artificial da

capacidade produtiva quase que completamente

inutilizável (por exemplo, o ―superdesperdício‖ de

um complexo computador usado como

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―processador de texto‖ num escritório onde uma

simples máquina de escrever seria perfeitamente

suficiente); o crescente desperdício resultante da

introdução de tecnologia nova, contradizendo

diretamente a alegada economia de recursos

materiais (por exemplo, o ―escritório

informatizado sem papel‖, que consome cinco

vezes mais papel do que antes); o ―extermínio‖

deliberado das habilidades e dos serviços de

manutenção, para compelir os clientes a comprar

dispendiosos produtos ou componentes novos,

quando os objetos descartados poderiam

facilmente ser consertados (por exemplo, compelir

as pessoas a comprar sistemas completos de

silenciosos para carros ao preço de 160 libras, em

lugar de um serviço de solda de 10 libras, que

seria perfeitamente adequado ao propósito) etc.

Tudo isso pertence a essa categoria, dominada

pelos imperativos e determinações subjacentes

para perdulariamente diminuir as taxas de

utilização praticáveis.

Em relação às fábricas e ao maquinário, também vemos a ação

da mesma tendência. Aqui, diz Mészáros, a taxa de utilização

decrescente se manifesta na forma de substituição crônica, vinculada a

uma pressão crescente que, para se contrapôr à própria tendência,

diminui artificialmente o ―ciclo de amortização‖ desses elementos.

Assim explica o filósofo (ibid., 671-2):

Nossa atual ―sociedade descartável‖

freqüentemente lança mão da desconcertante

prática ―produtiva‖ de sucatear maquinário

totalmente novo após uso muito reduzido, ou

mesmo sem inaugurá-lo, a fim de substituí-lo por

algo ―mais avançado‖ ou, sob as condições de

uma ―pressão depressiva‖ na economia, deixá-lo

sem uso. Naturalmente, tal perdularismo absurdo

no campo da utilização da capacidade produtiva

não pode se tornar a regra geral. Não obstante,

também a regra geral foi significativamente

modificada no século XX, particularmente nas

últimas quatro décadas, se comparada ao ―ritmo

moderado‖ com que [no século XIX] se

descartavam instalações industriais e maquinário

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perfeitamente utilizáveis.

E em relação à força de trabalho, finalmente, também se

verifica tal fenômeno, configurando assim aquilo que Mészáros chama

de ―a contradição mais explosiva do capital‖ (ibid., 672). A contradição

aí é tão explosiva porque, para o sistema, o trabalho não é apenas um

fator de produção, mas igualmente a massa consumidora que deve

realizar a mais-valia das mercadorias. A taxa de utilização decrescente

se manifesta, então, no âmbito do trabalho, como desemprego crescente,

o que acarreta, segundo o filósofo húngaro, ―uma fastidiosa

contradição‖ (ibid., 673). O processo de expansão do capital necessita

que as pessoas possuam meios para consumir as mercadorias que são

produzidas. Contudo, sua própria dinâmica interna tem exigido, ao

longo das últimas décadas, a dispensa de cada vez mais força de

trabalho. Como as pessoas desempregadas poderão consumir os

produtos que o sistema coloca no mercado? ―De um lado, encontramos

o apetite sempre crescente do capital por ‗consumidores de massa‘

enquanto, de outro, a sua necessidade sempre decrescente de trabalho

vivo‖ (ibid., 673). Daí, a dramaticidade da contradição que o trabalho

vivencia por conta da intensificação da taxa de utilização decrescente.

Enquanto essa lei tendencial conseguiu produzir meios para a

expansão do capital, multiplicando bens e serviços e acelerando a taxa

de amortização de instalações e maquinário, a ―terceira e mais perigosa

dimensão‖ de suas contradições pôde permanecer latente. Mas quando o

potencial das duas primeiras dimensões entrou em vias de esgotamento,

passou-se a se realizar, segundo Mészáros (ibid. 674)

o selvagem mecanismo de expulsão em

quantidades maciças de trabalho vivo do processo

de produção. Isto assume a forma de desemprego

em massa, mesmo nos países mais avançados,

independentemente de suas conseqüências para a

posição da ―massa consumidora‖, e das

necessárias implicações da decadência da posição

do consumidor na ―espiral descendente‖ de

desenvolvimento das economias envolvidas.

O autor de Para além do capital argumenta ainda que, apesar

dessa ―cínica prática‖ de obsolescência planejada, não é fácil continuar a

garantir ―a motivação para o descarte perdulário de bens perfeitamente

utilizáveis‖ (ibid., 671), em razão das restrições econômicas que

objetivamente se impõem aos consumidores individuais, mesmo nos

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países mais ricos. Em razão disso, o capital precisará de garantias mais

seguras, em escala ampla e numa forma ―diretamente

institucionalizável‖, a fim de assegurar o seu impulso à expansão

combinado com sua tendência de reduzir a taxa de utilização. Essa

segurança, explica o filósofo, será proporcionada ―pela emergência e

consolidação patrocinada pelo Estado do ‗complexo militar-industrial‘,

que temporariamente desloca várias das contradições mais importantes‖

(ibid., 671) do sistema. Como o complexo militar-industrial realiza essa

tarefa? Explica Mészáros (ibid., 671):

Ele se apropria e dissipa recursos e fundos de

capital excedentes aparentemente ilimitados, sem

absolutamente nada acrescer aos problemas da

realização e das pressões competitivas, como

necessariamente o faria a expansão do capital

orientada para o consumo real. Ao mesmo tempo,

o astronômico perdularismo (que seria totalmente

incompatível com os critérios em geral

glorificados da eficiência econômica e da ―boa

economia doméstica‖) encontra sua justificativa e

sua legitimação automáticas no apelo à ideologia

do ―interesse‖ e da ―segurança nacional‖, sob a

ação combinada dos poderes legislativo, judiciário

e executivo, em uníssono com os complexos

industriais/militares correspondentes. Dessa

maneira, não somente deixam de ser

imediatamente sentidas as conseqüências

negativas da taxa de utilização decrescente, mas,

ao contrário, graças à sustentação institucional

direta, proporcionada pelo Estado em escala

maciça e em praticamente todas as áreas de

atividade econômica, essas conseqüências, por um

período histórico determinado, podem ser

convertidas em poderosas alavancas de expansão

capitalista, anteriormente inimagináveis.

Percebe-se, assim, como a taxa de utilização decrescente

constitui uma das leis tendenciais mais importantes e abrangentes do desenvolvimento do capital. Ela cumpre, pois, diversas funções em fases

distintas do processo de realização do sistema. E a emergência do

complexo militar-industrial expressa a realização dessa tendência levada

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às suas últimas – e mais perniciosas – conseqüências.66

É onde melhor

se pode observar as manifestações destrutivas dessa lei tendencial.

Segundo Mészáros, essa destrutividade – cujo grau elevadíssimo que

podemos constatar hoje dificilmente poderia ter sido visualizada por

Marx em seu tempo – entrou em cena ―com ênfase dramática no século

XX, particularmente nas últimas quatro ou cinco décadas‖ (ibid., 673),

isto é, desde os anos 1940 e 1950 do século passado.

O capital, portanto, põe em movimento não apenas grandes

potenciais produtivos, mas também amplas e abrangentes forças de

destruição. O complexo militar-industrial tem sido, nesse sentido, desde

a grande crise de 1929/33, o ―instrumento disposto e capaz de romper o

nó górdio de como combinar a máxima expansão possível com a taxa de

utilização mínima‖ (ibid., 685). Como explica Mészáros (ibid., 686-7),

Indubitavelmente, desde o início, o complexo

militar-industrial norte-americano ocupou a

posição esmagadoramente dominante, seguido

pelos de Grã-Bretanha, França e Itália, de acordo

com as suas possibilidades econômicas.

Entretanto, não se deve ter a ilusão de que o

desenvolvimento econômico do pós-guerra do

Japão e da Alemanha nada tem a ver com a sorte

do complexo militar-industrial. Na realidade, estes

países estão conectados a ele tanto no plano de

suas economias nacionais como no da

internacional. […]

Em sua capacidade para sustentar os níveis de

produção existentes em seus próprios países, todas

as sociedades capitalistas avançadas são

profundamente dependentes do mercado em

66

Em uma entrevista recente ao jornal espanhol El País, o escritor uruguaio Eduardo Galeano,

comentando a necessidade de as grandes potências terem sempre um inimigo externo, a fim de manterem seu sistema econômico capitaneado pela economia de guerra, sintetizou com

magnífica clareza o espírito do complexo industrial-militar: ―Hay una demonización de

Chávez. Antes Cuba era la mala de la película, ahora ya no tanto. Pero siempre hay algún malo. Sin malo, la película no se puede hacer. Y si no hay gente peligrosa, ¿qué hacemos con los

gastos militares? El mundo tiene que defenderse. El mundo tiene una economía de guerra

funcionando y necesita enemigos. Si no existen los fabrica. No siempre los diablos son diablos y los ángeles, ángeles. Es un escándalo que hoy, cada minuto, se dediquen tres millones de

dólares en gastos militares, nombre artístico de los gastos criminales. Y eso necesita enemigos.

En el teatro del bien y del mal, a veces son intercambiables como pasó con Sadam Husein, un santo de Occidente que se convirtió en Satanás‖ (2010). Este raciocínio está perfeitamente de

acordo com a teorização de Mészáros.

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expansão dos Estados Unidos, o que, por sua vez,

é absolutamente impensável sem assegurar os

astronômicos orçamentos (e déficits) de defesa,

sobre os quais tão fortemente se apóia a dinâmica

expansionista do conjunto da economia

americana. […]

Essas considerações […] se aplicam não só ao

Japão e à Alemanha, mas também a todos os

outros países de capitalismo avançado. Dessa

maneira, mesmo no caso de países em que a

participação direta do complexo militar-industrial

local na economia nacional é relativamente

pequena (se comparada à dos Estados Unidos e à

de alguns outros países), a contínua expansão

produtiva das economias nacionais em questão

não pode ser separada da importância global da

produção militarista no que se refere à sua

aparentemente incurável dependência da

economia norte-americana e do preponderante

complexo militar-industrial no seu interior.

O filósofo húngaro esclarece, então, que a grande inovação

levada a efeito pelo complexo militar-industrial é eliminar na prática a

distinção entre consumo e destruição. Se, num momento anterior de sua

história, o capital produzia mercadorias e estas, até serem consumidas,

exigiam um certo intervalo relativamente amplo de tempo, agora, com

as mercadorias específicas do complexo militar-industrial, esse intervalo

é eliminado, visto que consumo e destruição se identificam.

Com vistas a definir a natureza de tal fenômeno, Mészáros

(ibid., 809) explica desta maneira o papel do complexo militar-industrial

em nosso mundo contemporâneo:

O complexo industrial-militar cumpre com grande

eficiência duas funções vitais, deslocando

temporariamente duas poderosas contradições do

capital ―superdesenvolvido‖.

A primeira (…) é a transferência de uma porção

significativa da economia das incontroláveis e

traiçoeiras forças do mercado para as águas

seguras do altamente lucrativo financiamento

estatal. Ao mesmo tempo mantém intacta a

mitologia da empresa privada economicamente

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superior e eficiente nos custos, graças à absolvição

a priori da perdularidade total e da falência

estrutural pela ideologia de fervor patriótico.

A segunda função não é menos importante:

deslocar as contradições devidas à taxa

decrescente de utilização que se evidenciaram

dramaticamente durante as últimas décadas de

desenvolvimento nos países de capitalismo

avançado.

O capital ―vive‖, então, hoje mais do que nunca, de destruição,

se ―alimenta‖ desses processos absolutamente antagônicos e

potencialmente mortais. Para que tais mercadorias específicas possam

ser ―consumidas‖, é vantajoso que guerras e conflitos bélicos possam

existir. Nesse contexto, o sistema, com o auxílio direto do Estado,

estimula, justamente, tais eventos, visto que assim poderá satisfazer seu

imperativo mais íntimo de lucro. Mészáros afirma que é a produção

destrutiva que movimenta o capital em nossa atual conjuntura

histórica.67

67

Em 1995, quando lançou seu grande livro, todos esses elementos já eram claramente

discerníveis aos olhos de István Mészáros. Nos dias atuais, não só os fenômenos analisados não perderam sua centralidade, como as teses defendidas pelo filósofo húngaro passaram a ser

confirmadas por mais pessoas. Em um artigo recente, publicado no jornal argentino Página 12, o cientista social Atilio Boron parece expressar um raciocínio que talvez se possa chamar de

―mészáriano‖, quando afirma que: ―Son muchas las pruebas que, en la actualidad, demuestran

la inviabilidad del capitalismo como modo de organización de la vida económica. Uno de sus máximos apologistas, el economista austríaco-americano Joseph Schumpeter, gustaba

argumentar que lo que lo caracterizaba era un continuo proceso de ‗destrucción creadora‘:

viejas formas de producción o de organización de la vida económica eran reemplazadas por otras en un proceso virtuoso y de ininterrumpido ascenso hacia niveles crecientes de

prosperidad y bienestar. Sin embargo, las duras réplicas de la historia demuestran que se ha

producido un desequilibrio cada vez más acentuado en la ecuación schumpeteriana, a resultas del cual los aspectos destructivos tienden a prevalecer, cada vez con más fuerza, sobre los

creativos: destrucción cada vez más acelerada del medio ambiente y del tejido social; del

Estado y las instituciones democráticas y, también, de los productos de la actividad económica mediante guerras, la obsolescencia planificada de casi todas las mercancías y el desperdicio

sistemático de los recursos productivos. […].‖ E, diante dos episódios mais recentes

envolvendo a crise financeira mundial e suas conseqüências mais imediatas, conclui: ―Los principales países de la economía mundial, nucleados en el G-7, dedicaron a la cooperación

internacional apenas el 0,22 por ciento de su PIB. A diferencia de lo ocurrido con las grandes

empresas oligopólicas, el ‗rescate‘ de los pobres queda en manos del mercado. Para los ricos hay Estado, los pobres tendrán que arreglárselas con el mercado [grifo nosso]. Y si aparece el

Estado es para reprimir o desorganizar la protesta social. Alguien dijo una vez que las crisis

enseñan. Tenía razón" (2010). De quinze anos para cá, depois das guerras do Afeganistão e do Iraque, da reativação da IV Frota norte-americana, dentre outros eventos, vê-se que a produção

destrutiva capitaneada pelo complexo militar-industrial só se reforçou. Nesse contexto, qual o

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São essas determinações que estão na raiz da já mencionada

crise estrutural do sistema de reprodução sociometabólica atualmente

estabelecido.68

Em suma, o capital, com o auxílio do Estado, conseguiu

deslocar seus limites relativos durante toda sua fase de ascensão

histórica. Com a superfície de planeta tomada por inteiro, no entanto,

passou a sentir os efeitos dos limites absolutos inerentes à sua estrutura.

Em virtude disso, o sistema teve de lançar mão de novas estratégias, a

fim de conseguir manter a sua lucratividade e perpetuar o seu controle

sobre a atividade produtiva. A produção destrutiva se tornou, com isso,

a dinâmica predominante – com a sua conseqüente forma de consumo

destrutivo. Tal destrutividade invadiu progressivamente todos os

complexos de relações humanas, inclusive suas dimensões mais

comezinhas. E, dessa maneira, teve início uma crise qualitativamente

diferente se comparada às anteriores, que se assemelha, em realidade,

segundo Mészáros, ao processo de progressão de um câncer.69

Aí está

remédio fornecido para neutralizar os efeitos da crise? Para os ricos foram doses cavalares de

Estado; para os pobres, as cada vez mais degradantes relações do mercado. Boron e Mészáros estão de acordo neste ponto. É preciso que se diga, no entanto, que, em se tratando de tais

questões, ambos os autores são tributários das reflexões estabelecidas anteriormente por Paul

Baran (1984). 68

Em obra posterior, Mészáros enfatizará também as seguintes características do sistema do

capital em crise estrutural: ―Primeiro, ao contrário do presente [isto é, no contexto histórico da

crise estrutural], a forma original de invasão do capital nas partes mais remotas do mundo não

surgiu das grandes pressões internas das transformações monopolistas e semimonopolistas da

economia dos países imperialistas dominantes em uma escala maior. Segundo, mesmo em

comparação com o início do século XX, o imperialismo de nosso tempo é significativamente

diferente da forma que provocara a explosão maciça da Primeira Guerra Mundial em 1914. [...]

os Estados Unidos tornaram-se a potência dominante da nova variedade de imperialismo, e em

nosso tempo age – mesmo sob a forma da deflagração de grandes guerras, do Vietnã ao Oriente

Médio – como protetor do imperialismo hegemônico global. [...] O terceiro e mais importante

ponto a ser destacado é o de que as forças político-econômicas que se beneficiam

primariamente da dominação ‗globalizante‘ do mundo são as gigantescas corporações

transnacionais – com freqüência nomeadas, de modo errôneo, a seu próprio serviço como

‗multinacionais‘ – agindo com o total apoio de seus Estados nacionais. Novamente, as

companhias dos Estados Unidos lideram esses novos desenvolvimentos imperialistas. Nesse

contexto, é também relevante que a determinação econômica da globalização em andamento no

plano monetário seja caracterizada pelas forças especulativas e parasitárias, assim como

perigosamente instáveis mesmo em um prazo de tempo relativamente curto, do capital

financeiro e de forma alguma sem a cumplicidade do Estado capitalista‖ (2009, 250-1).

Voltaremos a comentar as características da crise estrutural do sistema do capital, ainda que

brevemente, na parte final deste trabalho. 69

Aqui é a vez de François Chesnais concordar com o filósofo húngaro. Em um artigo sobre a

crise financeira de 2008, depois de analisar alguns dos limites históricos a que o sistema expansivo de reprodução do capital havia chegado e a tremenda gravidade dos problemas daí

decorrentes, o economista francês afirmou que: ―Por todo esse quadro, concluo que isto é

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uma metáfora adequada para ilustrar a novidade dos fenômenos em

questão. (O filósofo usa mesmo, freqüentemente, o termo crescimento

canceroso para se referir à crise estrutural do sistema do capital).70

É em virtude de todas essas determinações, com seus

antagonismos específicos que conformam uma trágica condição, uma

crise de proporções jamais vistas, que o autor de Para além do capital afirma que vivemos hoje uma era de transição, ou seja, um período

histórico em que o sistema de controle sociometabólico dominante já

aceita, para resolver temporariamente suas contradições, tomar medidas

muito mais que uma crise financeira, mesmo que estejamos agora nessa fase, [...] mas essa

crise é muitíssimo mais ampla. [...] Na realidade, creio que estamos diante do risco de uma catástrofe, mas já não do capitalismo, e sim de uma catástrofe da humanidade. De certa forma,

se tomarmos em conta a crise climática, possivelmente já existe algo do tipo… Eu opino (junto

com Mészáros, por exemplo, mas somos muito poucos os que dão importância a isto) que estamos diante de um perigo iminente. O dramático é que, pelo momento, isto afeta

diretamente populações que não são levadas em conta: o que se pode estar passando no Haiti

parece que não tem a menor importância histórica; o que ocorre em Bangladesh no tem peso para além da região afetada; tampouco o ocorrido na Birmânia, porque o controle da junta

militar impede que transcenda. E o mesmo na China: se discutem os índices de crescimento

mas não sobre as catástrofes ambientais, porque o aparato repressivo controla as informações sobre as mesmas. E o pior é que essa opinião que está sendo constantemente construída pelos

meios, está interiorizada muito profundamente, inclusive em muitos intelectuais de esquerda.

Eu havia começado a trabalhar e a escrever sobre tudo isso, mas com o começo da crise de

alguma maneira tive que voltar a ocupar-me das finanças, ainda que não o faça com muito

gosto, porque o essencial me parece que ocorre em um campo distinto. [...] Desde setembro do

ano passado [2007], o discurso dos círculos dominantes vem sustentando, uma vez ou outra, ‗que o pior já passou‘, quando o certo era que ‗o pior‘ ainda estava por vir. Por isso insisto no

risco de minimizar a gravidade da situação, e sugiro que em nossas análises e forma de enfocar

as coisas deveríamos incorporar a possibilidade, como mínimo a possibilidade, de que inadvertidamente estejamos interiorizando também esse discurso de que, definitivamente ‗está

tudo bem‘…‖ (2008). 70

Por exemplo, em uma entrevista ao site Brasil de Fato, encontramos a seguinte explicação:

―Brasil de Fato: O senhor cunhou o conceito de ‗crescimento canceroso‘. O que isso

significa?‖ Mészáros: ―Na ideologia capitalista, crescimento canceroso significa que o capital

precisa crescer cada vez mais para não entrar em colapso. O sistema precisa acumular sem parar. Mesmo que não corresponda às necessidades humanas, o capital precisa crescer – e isso

pode ser extremamente destrutivo. É um conceito totalmente incriticável e destrutivo no

sentido de que, por exemplo, produz um tipo de crescimento parasita, como o militarismo. Colossais recursos são investidos na produção militarista e em aventuras de guerra como a do

Afeganistão, de onde se esvai mais de um bilhão de dólares por ano. O sistema capitalista tem

operado cada vez mais na produção destrutiva. Você nem mesmo tem que usar o que produz nesse setor. Há produção militarista que sequer tem sido usada. A questão crucial não é crescer

ou não crescer, mas o tipo de crescimento, porque crescimento destrutivo é o que eu chamei de

crescimento canceroso [grifo nosso]‖ (2004). É importante frisar bem esse ponto, pois a assim chamada crise estrutural do sistema do capital não quer dizer, como vemos em algumas

interpretações simplistas, que o sistema esteja em vias de desaparecer, ou mesmo ―morrendo‖.

O capital continua bem vivo, mas vivo como um câncer... E é por causa de toda essa destrutividade e agressividade que se torna urgente estabelecer medidas práticas para a

superação de nossa atual condição.

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que, em épocas de ―condições normais‖, jamais admitiria realizar. Nas

palavras do filósofo húngaro (2002, 557),

Em uma escala historicamente relevante, uma era

de transição se inicia no momento em que as

forças dominantes da velha ordem são forçadas

por uma crise aguda a adotar remédios que seriam

totalmente inaceitáveis a elas sem aquela crise,

introduzindo, desse modo, um corpo estranho na

estrutura original, com conseqüências em última

instância destrutivas, não importa o quanto sejam

benéficos os resultados imediatos.

Nesta era de transição, em que o capital adota remédios

amargos até para si mesmo e onde verificamos uma destrutividade que

se manifesta em variados planos da atividade social, a humanidade tende

a rumar na direção de um dilema que se apresenta como cada vez mais

incontornável: ou sucumbe diante da destrutividade do capital, que

progressivamente passa a ameaçar a viabilidade da presença humana por

sobre o planeta, ou escolhe conscientemente a sua libertação de tais

relações sociometabólicas degradantes. É nesse contexto que, segundo o

filósofo húngaro, a alternativa socialista demonstra a sua atualidade.

Leiamos novamente o que afirma (ibid., 858):

a atualidade histórica da ofensiva socialista […]

não significa que o sucesso esteja assegurado nem

que sua realização esteja próxima. ―Histórica‖,

aqui, significa, por um lado, que a necessidade de

instituir algumas mudanças fundamentais na

organização e a orientação do movimento

socialista se apresentou na agenda histórica; e, de

outro lado, que o processo em questão se desdobra

sob a pressão de determinações históricas

poderosas, empurrando a função social do

trabalho na direção de uma ofensiva estratégica

prolongada caso queira realizar não apenas os

seus objetivos potencialmente globais, mas

também os seus objetivos mais limitados. O

percurso à frente é provavelmente muito árduo e,

certamente, não tem atalhos nem pode ser evitado.

Para que a humanidade possa superar o domínio do capital e

tomar nas mãos o seu destino, faz-se necessária, então, a criação de

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novas mediações materiais – desta vez, não antagônicas – por meio das

quais ela possa organizar seu sociometabolismo de uma forma

verdadeiramente sustentável, em contraposição ao modo essencialmente

destrutivo como o que ocorre em nossos dias. É com vistas a contribuir

para que essa era de transição seja orientada na direção da comunidade

humana emancipada que Mészáros elabora a sua teoria política, a

estratégia da ofensiva socialista.

Na obra do filósofo húngaro, portanto, a teoria da transição é

uma elaboração conceitual que parte, conforme suas palavras (ibid.,

451),

da premissa de que o ―radicalmente novo‖ da

―nova forma histórica‖ antecipada não é

concebível sem o doloroso empreendimento de

uma reestruturação material totalmente

abrangente das relações produtivas e distributivas

da sociedade. Empreendimento que envolve, por

sua vez, o estabelecimento prático das formas

necessárias de mediação material por meio das

quais no devido tempo a erradicação do capital do

processo sociometabólico se torna viável.

Mészáros define, pois, ainda, que a tarefa de tal

empreendimento teórico é ―articular as questões específicas do processo

social em andamento, identificando com precisão suas limitações

temporais, na estrutura ampla dos princípios mais abrangentes que

orientam a avaliação de cada detalhe‖ (ibid., 517). Partir, portanto, das

mediações reais estabelecidas, dentro da situação histórica específica da

crise estrutural, compreendendo radical e criticamente seus

antagonismos, para, com base nessa consciência, realizar a forma viável

e necessária da superação. ―Uma teoria de transição adequada é uma

exigência essencial para o avanço em tais circunstâncias‖ (ibid., 520),

diz Mészáros. Nessa teoria da transição, argumenta o autor de Para

além do capital (ibid. 464), o que está em jogo é exatamente

a criação das formas indispensáveis da concreta

mediação material e institucional que tanto

responda flexivelmente às demandas imediatas da

situação sócio-histórica dada como, ao mesmo

tempo, assuma a função de reestruturar o sistema

metabólico de uma divisão social do trabalho

hierárquica, profundamente iníqua.

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166

Ora, o filósofo húngaro parte, como vimos anteriormente, do

princípio de que o capital é um sistema de mediações de segunda ordem

que controla hierarquicamente a atividade produtiva, de modo a extrair e

acumular o trabalho excedente. Para realizar tal objetivo, toma como

meio, pois, o Estado. Capital, trabalho e Estado são os polos principais

desse sistema perverso de exploração e acumulação que deve ser

superado em sua totalidade. A forma da atividade revolucionária deve

ser, nesse contexto, radicalmente crítica, isto é, articular negação e

afirmação com vistas a atingir a ―transcendência positiva da auto-

alienação do trabalho‖. A conjugação de negação e afirmação é de

extrema importância no pensamento de Mészáros, pois é isso que vai

definir, como veremos logo mais adiante, a sua proposta de ofensiva

socialista.

No plano da atividade revolucionária, nesse ponto específico da

sua teoria política, a negação consiste na atuação que se dá ainda no

âmbito do Estado. Aqui, pois, negação é sinônimo de defensiva. A

defensiva não deve ser desprezada para os objetivos político-sociais

emancipatórios dos trabalhadores. O grande problema, no entender de

Mészáros, não é o de se levar a cabo atividades defensivas – por

exemplo, lutar no interior do parlamento pela manutenção de direitos

conquistados historicamente -, mas o de somente se estabelecer na

prática tais ações. Isto porque elas devem ser complementadas pela

formação de mediações que estejam além do Estado, que sejam, como

diz o filósofo, extraparlamentares. A ofensiva socialista é essa

conjugação de ação negativa e afirmativa, de práxis que se dá também

no plano do Estado, mas que ocorre fundamentalmente fora dele, a fim

de se levar a efeito a formação das devidas mediações materiais que

conduzirão os trabalhadores rumo à ―nova forma histórica‖, a sociedade

emancipada.

Em síntese: a teoria da transição de Mészáros é esta que, no seu

movimento ofensivo – de formação das referidas mediações

extraparlamentares de atuação sócio-política –, engloba a práxis

defensiva - que se desenrola no plano do Estado - e, evidentemente, a

transcende. É preciso conjugar, portanto, ambas as dimensões de ação,

mas - devemos ressaltar mais uma vez - orientando-se pelo objetivo de

se instaurar na realidade material as mediações que possibilitarão aos

―produtores livremente associados‖ assumirem o controle consciente do

metabolismo social.

É por isso que Mészáros afirma que nossa tarefa é

―simultaneamente ‗negar‘ o Estado e atuar no seu interior‖ (ibid., 597).

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Conseqüentemente, conforme suas palavras (ibid., 597),

a tarefa se define como um duplo desafio,

visando:

1. instituir órgãos não-estatais de controle social e

crescente auto-administração que podem cada vez

mais abarcar as áreas de maior importância da

atividade social no curso da nossa ―transição na

transição‖; e, conforme permitam as condições,

2. produzir um deslocamento consciente nos

próprios órgãos – em conjunção com (1) e através

das mediações globais e internamente necessárias

– de modo a tornar viável a realização das

perspectivas históricas últimas do projeto

socialista.

Como fica claro, todos esses imperativos devem ser conduzidos

na direção de uma progressiva distribuição do poder de decisão aos

―produtores livremente associados‖, para que estes cada vez mais se co-

responsabilizem pela regulação consciente dos processos

sociometabólicos, a partir de uma forma horizontal – superando assim a

divisão hierárquica do trabalho conformada pelo capital –, e

promovendo o fenecimento do Estado. Assim, o movimento de

transformação socialista, que deve abarcar todos os aspectos

constitutivos da inter-relação entre capital, trabalho e Estado, é

concebido como um modo de reestruturação completa e radical das

mediações materiais herdadas.

Deve-se frisar que a formação dessas mediações, na visão de

Mészáros, não significa gradualismo ou reformismo, o que seria uma

contradição em termos. O capital não pode ser controlado, não

compartilha poder, não pode ser reformado. É ele que controla o

sociometabolismo humano e usa as mediações que conformam esse

sistema de acordo com os imperativos de expansão, acumulação e

exploração do trabalho excedente. Nesse contexto, a única alternativa

viável é a superação dessa ordem, e não a tentativa de fazê-la submissa

a algum tipo de ―rédea‖. É a reformulação total da divisão do trabalho atualmente estabelecida, e não a sua ―melhoria‖, que se deve buscar. É

com vistas, portanto, a cumprir esse objetivo que se fazem necessárias

as novas mediações materiais não-antagônicas da ―nova forma

histórica‖, segundo o autor de Para além do capital.

A alternativa que resulta dessas exigências radicais de

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transformação tem, então, um nome: socialismo. É este o projeto

político-social que deve se contrapor à ordem existente, com vistas a

transcendê-la, e não somente a remediá-la. A alternativa socialista deve

se definir como a restituição, sob todos os aspectos, das funções de

controle historicamente alienadas aos sujeitos da atividade produtiva.

Consiste, pois, de acordo com Mészáros, na realização de ―um modo de controle sociometabólico qualitativamente diferente […] capaz de

regular as funções produtivas materiais e intelectuais dos intercâmbios

de mediação dos indivíduos entre si mesmos […] não vindo de cima

[…], mas sim emergindo da base social mais ampla possível‖ (ibid.,

88).

Daí a necessidade de uma estratégia coerente e abrangente, que

o filósofo procura estabelecer a partir do estudo crítico das contradições

da ordem do capital. A este projeto qualitativamente novo, elaborado

para o confrontamento das novas determinações da época histórica de

transição materializada na crise estrutural do sistema do capital,

Mészáros chama, na esteira de Marx, de revolução permanente.

Entramos, agora, no cerne da teoria política do autor de Para além do

capital. Vejamos de forma um pouco mais detalhada o que isto significa.

O pensador húngaro relaciona a chamada ―crise do marxismo‖

com o fato de os representantes dessa filosofia, em sua maioria,

adotarem uma postura defensiva em relação à ordem do capital. E isso

―numa época em que, tendo acabado de virar uma página histórica

importante, deveríamos nos engajar numa ofensiva socialista [grifo

nosso] em sintonia com as condições objetivas‖ (ibid., 786). Ou seja,

para que se possa interromper a longa série de derrotas históricas que o

capital vem infligindo à classe trabalhadora e para que os inimigos de

Marx não continuem ―colocando mais pregos em seu caixão‖, o

contexto histórico precisa ser compreendido em sua especificidade, isto

é, como crise estrutural que, justamente, por se aproximar dos limites

absolutos do sistema, deve ser confrontada por um projeto que não se

limite a assegurar ganhos defensivos (―estratégias de pleno emprego‖,

―Estado de bem-estar-social‖, etc. - mesmo porque, segundo Mészáros,

os ganhos nesse sentido, em nossa conjuntura histórica, tendem a estar

―objetivamente bloqueados‖), e que busque, portanto, tomar

conscientemente das mãos do capital o controle sobre o metabolismo

social humano.

A atualidade histórica da ofensiva socialista diz respeito, pois,

a essa nova situação histórica que confronta o proletariado com o

dilema: socialismo ou barbárie? Isto é: haveremos de sucumbir à

destrutividade cada vez mais intensa do capital ou modificaremos

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radicalmente a forma de nos organizarmos e agirmos em sociedade, com

vistas à construção das mediações materiais capazes de promover

conscientemente o intercambio entre os seres humanos e a natureza, de

uma maneira não antagônica, sustentável, emancipada, que possibilite

enfim o surgimento dos ―homens verdadeiramente ricos‖, tal como

Marx propôs nos seus Manuscritos econômico-filosóficos, de 1844?

Ora, se se optar pelo caminho da emancipação humana, é

preciso descartar todas aquelas formas de organização política socialista

que, no passado, se orientaram de forma defensiva, isto é, com o

objetivo precípuo de conquistar os múltiplos espaços do Estado sem

promover a devida transferência do poder de decisão sobre os rumos da

atividade produtiva aos trabalhadores – atitude que acabou reforçando,

conseqüentemente, a ruptura entre a esfera sócio-reprodutiva e o poder

político dentro da ordem atual. O filósofo, nesse ponto, tece críticas a

Lenin e ao bolchevismo, por entender que tal movimento se orientou,

justamente, de modo defensivo. Esclarece o autor de Para além do capital (ibid., 789):

Não se deve esquecer que Lenin, brilhantemente –

e realisticamente -, definiu os objetivos dos

bolcheviques entre fevereiro e outubro de 1917

como assegurar ―Paz, Terra e Pão‖ de modo a

criar uma base social viável para a revolução.

Mas, até mesmo em termos organizacionais

básicos, o ―partido de Vanguarda‖ foi constituído

de forma a poder se defender dos ataques cruéis

de um Estado policial, sob as piores condições

possíveis de clandestinidade, das quais

inevitavelmente decorreu a imposição do segredo

absoluto, de uma estrutura rígida de comando, de

centralização, etc. Se compararmos a estrutura

autodefensivamente fechada deste partido de

vanguarda [grifo nosso] com a idéia original de

Marx de produzir ―consciência comunista em

escala de massa‖ - com a conseqüência necessária

de uma estrutura organizacional inerentemente

aberta -, teremos uma medida da diferença

fundamental entre uma postura defensiva e uma

ofensiva.71

71

Em uma entrevista, que entre nós apareceu na Revista Crítica Marxista, em 1995 (mas que

esteve presente na edição original, em inglês, de Para além do capital – curiosamente, na

tradução brasileira do livro o referido texto está ausente), Mészaŕos rechaçou completamente a

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Mészáros afirma que, apesar dessa orientação defensiva dos

bolcheviques, Lenin sabia da necessidade de uma ofensiva, assim como

Marx também esteve consciente de uma exigência como essa em seu

tempo. Contudo, ambos não foram devidamente consistentes em apontar

as mediações materiais capazes de realizar essa ofensiva. Isso se deveu,

fundamentalmente, no dizer do filósofo húngaro, às próprias condições

históricas objetivas em que esses lumiares do socialismo viveram, o

possibilidade do bolchevismo como método de atuação política nas circunstâncias históricas da

crise estrutural do sistema do capital. Quando o entrevistador elaborou o seguinte

questionamento: ―O que eu tinha em mente eram mais os partidos extraparlamentares como os

bolcheviques de Lenin ou o Partido Comunista Chinês, que foram bem-sucedidos em destruir o capitalismo. Eles estão historicamente superados?‖, o filósofo húngaro respondeu, categórico:

―Sim, completamente. Mesmo eles permaneceram constrangidos pela perspectiva do

parlamentarismo e o próprio Lenin era a favor de que operassem no quadro parlamentar. Assim, o que constitui certamente um imenso problema para a agência histórica da

transformação é que o capital é, por definição e de forma bastante efetiva, em seu modo de agir

e funcionar, uma força extraparlamentar. Os sindicatos de trabalhadores seriam uma força extraparlamentar, mas eles se identificaram com os partidos reformistas, o que os refreou. Não

haverá avanço algum até que o movimento da classe operária, o movimento socialista, seja

rearticulado de forma a se tornar capaz de ação ofensiva, por meio de suas instituições apropriadas e de sua força extraparlamentar. O parlamento, se deve se tornar de algum modo

significativo no futuro, deve ser revitalizado e somente poderá sê-lo se assumir uma força

extraparlamentar em conjunção com o movimento político radical, que também pode ser ativo através do parlamento [grifos nossos]‖ (1995 b, 136). Note-se o quanto Mészáros reforça a

importância da atividade organizada extraparlamentar, que deve se constituir enquanto mediação coletiva capaz de superar o sistema do capital em crise estrutural, por meio da

retomada consciente do controle das ―mediações de primeira ordem‖ da atividade produtiva, no

sentido da realização do socialismo. Deve ser dito, ainda, que a recusa do bolchevismo como método de atuação política não significa que o partido não possa se constituir como mediação

efetiva da luta de classes. Ele pode e deve. No entanto, precisa estar orientado de forma

ofensiva. Mészáros deixa isso claro em uma entrevista anterior, originalmente publicada em 1984, quando afirma que: ―É verdade que nos encontramos num período de crise estrutural do

capital, e é verdade também que as organizações da classe operária não são adequadas para

enfrentar este desafio. É necessário encontrar novas formas de articulação para a ação socialista. Para isto não vejo uma possibilidade a não ser a interação dialética entre as forças

parlamentares e as extraparlamentares.‖ E, quando perguntado sobre ―Qual é o papel do

partido revolucionário?‖, responde: ―Nesta dinâmica, as forças parlamentares da política devem se articular, não de forma autônoma e auto-suficiente, mas com as forças

extraparlamentares. Essa extraparlamentariedade não significa opor-se ao partido, à superação

da própria política. A reestruturação da política, no sentido social, deve se manifestar dessa forma, ou seja, as forças extraparlamentares devem agir em conjunto com as forcas políticas,

isto é, os partidos‖ (2009 b, 158). É importante deixar clara essa questão, pois quando

Mészáros fala, em Para além do capital e em obras posteriores, que o sucesso do empreendimento revolucionário depende da superação da fratura existente entre o ―braço

político‖ e o ―braço sindical‖ da classe trabalhadora, tal proposta deve ser entendida no sentido

específico, precisado acima, de ―interação dialética entre as forças parlamentares e as extraparlamentares‖. O partido revolucionário deve se inserir conscientemente no interior dessa

relação dialética.

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período de ascendência histórica do sistema, que não permitia que se

vislumbrasse ainda a forma das mediações necessárias para a superação

da ordem do capital. Em virtude de todas essas condições limitadoras,

em Para além do capital Mészáros afirma que: ―Dado o modo pelo qual

foram constituídos – como partes integrantes de uma estrutura

institucional complexa -, os órgãos de luta socialista poderiam ganhar

batalhas individuais, mas não a guerra contra o capital‖ (op. cit., 793).

Ora, como explicado anteriormente, o modo de controle

sociometabólico do capital se serve, para realizar seus fins, do Estado

como um componente fundamental do seu sistema de mediações. Mas o

capital transcende o Estado para realizar o controle fetichista sobre a

atividade produtiva. Mészáros explica que, justamente pelo fato de o

capital se constituir em um sistema que vai além do Estado, ele só pode

ser confrontado por meio de uma força político-social extraparlamentar.

Na visão do filósofo húngaro, ―toda atividade política parlamentar está

condenada – tanto no governo como na oposição – à estabilização ou

reestabilização do sistema do capital‖ (ibid., 826).72

É necessário,

portanto, ir além da atuação que se dá nos marcos do parlamento – e

quando Mészáros fala em atuação que se dá nos marcos do parlamento,

está querendo se referir ao Estado como um todo, incluindo-se aí

também o setor ―executivo‖ -, pois essa instituição tem como funções

precípuas – e são estas que determinam as suas possibilidades em

relação ao sistema – legitimar a imposição das regras (e, portanto,

promover a ―internalização‖) da ―legalidade constitucional‖ sobre o

trabalho e equilibrar a pluralidade de capitais por meio do controle das

forças centrífugas do sistema.

É em razão disso que se deve transcender a ação parlamentar e

instituir novas mediações materiais pelas quais os ―produtores

livremente associados‖ possam exercer o poder de decisão consciente

sobre o sentido e os rumos do metabolismo social. Numa forma

socialista de tomada de decisão, como explica Mészáros, o processo

legislativo deve ser fundido ao processo de produção. Ou seja, não pode

haver alienação entre as instâncias que arbitram sobre a atividade

produtiva e as que a põem em movimento. A divisão hierárquica do

trabalho, bem como a ruptura entre economia e política, devem assim

ser suprimidas para dar lugar a uma divisão horizontal do processo de

intercâmbio sociometabólico, coordenada conscientemente pelos

sujeitos da produção.

72

Eis aí, pois, os limites da mera negatividade.

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172

É essa orientação estratégica que permite aos trabalhadores, em

seu movimento de luta revolucionária, passar da defensiva para a

ofensiva socialista. Tal postura qualitativamente nova se impõe cada vez

mais pelo fato de os ganhos defensivos serem tremendamente

dificultados no contexto da crise estrutural do capital - o que por sua vez

torna as propostas reformistas completamente anacrônicas. As condições

objetivas, portanto, exigem uma orientação adequada a este novo

contexto histórico. Como bem explica Mészáros (ibid., 843-4),

Somente a adoção de uma estratégia global viável

[isto é, articulada a partir da avaliação da

conjuntura concreta] permite que os passos

parciais se tornem cumulativos, em nítido

contraste com todas as formas conhecidas do

trabalhismo reformista que desapareceram sem

deixar traços, como gotas de água nas areias do

deserto.

Tal proposta ofensiva, com vistas a construir as novas

mediações materiais não-antagônicas capazes de permitir aos produtores

livremente associados o controle consciente do metabolismo social, é

que configura a revolução permanente defendida por Mészáros. Isto é

completamente diferente de agir politicamente com o objetivo de ocupar

meramente o parlamento e tentar, a partir daí, ―encilhar‖ e ―domar‖ o

capital. Como explica o filósofo húngaro (ibid., 830-1) numa passagem

luminosa,

a medida da validade da crítica radical ao sistema

de representação parlamentar [isto é, a medida de

uma política que se pode verdadeiramente chamar

de socialista] é o empreendimento estratégico de

não só exercitar a ―soberania do trabalho‖ em

assembléias políticas, - não importa o quão diretas

elas possam ser em relação à sua organização e a

seu modo de tomada de decisão política -, mas na

atividade de vida produtiva e distributiva

autodeterminada dos indivíduos sociais em todo

domínio singular e em todos os níveis do processo

sociometabólico [grifo nosso]. Isto é o que traça a

linha de demarcação entre a revolução socialista,

que é socialista em sua intenção – como a

Revolução de Outubro de 1917 -, e a ―revolução

permanente‖ de transformação socialista efetiva.

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Sem a transferência progressiva e total da tomada

de decisões reprodutivas e distributivas materiais

aos produtores associados não pode haver

esperança para os membros da comunidade pós-

revolucionária de se transformarem em sujeitos do

poder.

Portanto, para a realização da revolução permanente no sentido

acima descrito, o movimento socialista deve se empenhar, segundo o

filósofo húngaro (ibid., 820-1), em investigar como seria possível

(1) produzir uma mudança radical e ao mesmo

tempo salvaguardar a continuidade necessária do

sociometabolismo (que pede a aplicação prática

contínua do princípio metodológico marxiano

relativo à reciprocidade dialética entre

continuidade e descontinuidade);

(2) reestruturar ―de alto a baixo‖ todo o edifício

da sociedade, que simplesmente não pode ser

derrubado com a finalidade de uma reconstrução

total [...];

(3) passar da atual fragmentação das forças

sociais à sua coesão no empreendimento criativo

dos produtores associados (que implica o

desenvolvimento da consciência de massa

socialista, resultado de se assumir

responsabilidade pelas conseqüências das práticas

produtivas e distributivas auto-administradas);

(4) realizar genuínas autonomia e

descentralização dos poderes de decisão, em

oposição à sua concentração e à sua centralização

existentes, que não podem de modo algum

funcionar sem ―burocracia‖;

(5) transcender a divisão e a ―inércia circular‖

entre sociedade civil e Estado político pela

unificação das funções de trabalho e tomada de

decisão;

(6) abolir o segredo de governo, predominante por

toda parte, instituindo uma nova forma de

autogoverno aberto pelas pessoas interessadas.

O objetivo precípuo do movimento alternativo é, pois, o

controle consciente do metabolismo social que hoje se encontra

dominado pela relação-capital. Mas – é importante ressaltar mais uma

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vez – isto não significa que o Estado não tenha que ser tomado no

processo revolucionário. Se é correto afirmar que o Estado não pode

controlar o capital, é igualmente verdadeiro que esse espaço específico,

ocupado a partir de uma orientação estratégica adequada, pode ter um

papel no processo revolucionário. Como explica Mészáros, chegar até o

Estado é fundamental. Mas a tarefa que cumpre realizar com o

intermédio desse complexo não é a de tentar controlar o capital – o que

seria uma contradição em termos –, mas generalizar o poder de decisão

aos trabalhadores sobre a atividade produtiva. Para tanto, uma

transformação radical das instituições políticas se faz absolutamente

necessária. O filósofo húngaro (ibid., 847-9) argumenta desta maneira

sobre sua proposta:

Como antagonista do capital, a grande dificuldade

do trabalho é que, apesar de o único objetivo

viável de sua luta transformadora ser o poder

sociometabólico do capital […], esse objetivo

fundamental não pode ser alcançado sem a

conquista do controle da esfera política. […]

Como vimos […], o sistema do capital é

composto de elementos incorrigivelmente

centrífugos, complementados pela dimensão

coesiva do poder de controle da ―mão invisível‖, e

das funções legal e política do Estado moderno. O

fracasso das sociedades pós-capitalistas está no

fato de terem se oposto à determinação centrífuga

do sistema herdado sobrepondo aos seus

elementos particulares conflitantes a estrutura de

comando extremamente centralizada de um

Estado político autoritário. Elas, ao contrário,

deveriam ter atacado o problema crucial de como

solucionar – por meio da reestruturação interna e

da instituição do controle democrático substantivo

– o caráter contraditório e o correspondente modo

centrífugo de funcionamento das unidades

reprodutivas e distributivas particulares. […]

É claro que a reconstituição e a substantiva

democratização da esfera política são a condição

necessária para uma intervenção sobre o controle

sociometabólico do capital [grifo nosso], pois o

poder do capital não está, e nunca estará, limitado

a estritas funções produtivas. Para controlá-las, o

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capital deve ser complementado pelo seu próprio

modo de controle político. Isso significa que a

estrutura material de comando do capital não pode

afirmar-se sem a estrutura de comando político

global do sistema. Assim, uma alternativa ao

controle sociometabólico do capital deve

abranger todos os aspectos complementares do

processo de reprodução social, desde as funções

estritamente produtivas e distributivas até as

dimensões mais amplas da direção política [grifo

nosso]. Como está no controle real de todos os

aspectos vitais do sociometabolismo, o capital

pode dar-se ao luxo de definir a esfera de

legitimação política como questão estritamente

formal, eliminando desse modo, a priori, a

possibilidade de ser legitimamente contestado em

sua esfera de ação substantiva. Ao se dobrar a tais

determinações, o trabalho, como real antagonista

do capital existente, pode apenas condenar-se à

permanente impotência, pois a instituição de uma

ordem sociometabólica alternativa só será viável

pela articulação da democracia substantiva,

definida como atividade autodeterminada dos

produtores associados tanto na política como na

produção material e cultural.

A reestruturação radical da estrutura social vigente não se limita

aos âmbitos produtivo e reprodutivo, mas engloba também a dimensão

política. O Estado também precisa ser ocupado, com vistas a ser

―reestruturado internamente‖ no sentido de se promover o mais amplo e

progressivo ―controle democrático substantivo‖, isto é, a atividade

autodeterminada dos produtores associados e o conseqüentemente

fenecimento do próprio Estado no tempo devido. Note-se, pois, que o

papel do Estado dentro de uma estratégia ofensiva – promover a

democratização substantiva – é completamente diferente do de uma

proposta defensiva – ―pleno emprego‖, ―Estado de bem-estar‖, etc.

O projeto político-social que Mészáros propõe para a transição

para o socialismo exige, portanto, atuar em ambas as frentes, no interior do Estado e fora dele. Envolve, pois, necessariamente, o momento

negativo – atuação defensiva que pode se dar no interior do parlamento,

etc., mas que deve buscar aí ser já afirmativa, por meio da

reestruturação completa de tais mediações, no objetivo de promover a

democracia substantiva -, mas vai além dele, isto é, dirige-se para a

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ofensiva, para a criação de mediações materiais extraparlamentares

capazes de regular conscientemente o metabolismo social.73

Neste momento, chegamos a mais um ponto decisivo da teoria

de Mészáros: justamente, as novas mediações não-antagônicas da ordem

alternativa socialista. Segundo o autor de Para além do capital, elas

participam, já no movimento de sua implementação prática, tanto em

termos de objetivos a serem perseguidos como em nível de forma dessa

intervenção material. Vejamos o que o filósofo afirma (2002, 859) a esse

respeito:

As mediações históricas necessárias, vistas como

passos viáveis para a realização da ordem

sociometabólica alternativa do trabalho são

inerentes tanto à perseguição do objetivo – uma

intervenção radical das estruturas materiais da

própria relação-capital que subsume o trabalho às

condições reificadas e alienadas de seu exercício,

condenando o sujeito do processo de produção à

total impotência dos trabalhadores isolados –

como à forma de ação necessariamente

extraparlamentar pela qual este objetivo pode ser

progressivamente traduzido em realidade. Pois,

dada a própria natureza deste empreendimento,

para haver qualquer chance de sucesso, é

necessário enfrentar e superar já nos primeiros

passos – ainda que no início apenas em contextos

73

Nesse sentido, a resenha de Para além do capital feita por Hector Benoit para o número 16

da revista Crítica Marxista (2003) passa longe de compreender o essencial da proposta de

Mészáros. Benoit afirma que ―para Mészáros, a noção de ‗transição‘ designa uma espécie de programa de governo para o futuro‖ (2003, 7). Na verdade, não é nada disso. Como

mostramos, a teoria da transição de Mészáros é uma teoria para, com base numa avaliação

concreta de uma conjuntura histórica concreta, orientar a construção das mediações materiais não antagônicas necessárias para superar as mediações antagônicas do sistema do capital, e

possibilitar assim aos ―produtores livremente associados‖ a regulação consciente e sustentável

do sociometabolismo humano. O texto de Benoit, superficialmente escrito e com uma má vontade evidente, parece condenar Mészáros pelo simples fato de o filósofo húngaro não

concordar com as propostas de Trotsky – seu programa de ―reivindicações transitórias‖ - e por

descartar o partido de tipo leninista, bem como a formação de uma Associação Internacional dos Trabalhadores – instituições que Mészáros critica, em Para além do capital, justamente,

por terem sido erigidas a partir de uma orientação estratégica defensiva. Ademais, a

argumentação de Benoit se apega fetichisticamente a esses elementos, tomando-os como se fossem ainda adequados, mas sem fazer uma única avaliação da viabilidade dessas entidades

com base em uma análise da conjuntura histórica atualmente estabelecida. As propostas de

Benoit são, portanto, abstratas, desvinculadas da realidade material, fato que, aliado à má leitura que faz de Mészáros, torna a sua crítica absolutamente inconsistente e indigna de

crédito.

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limitados – a perniciosa disjunção entre economia

e política, que serve apenas ao modo

sociometabólico de controle do capital, assim

como a separação entre os seus braços ―político‖ e

―sindical‖, que por si própria derrota o trabalho,

como se comprovou com dolorosa contundência

nos últimos cem anos.

A disjunção entre a política e a economia, entre a decisão

consciente e a execução prática dos processos que envolvem a atividade

produtiva, levadas a efeito pelo sistema do capital, devem ser

combatidas. O objetivo da alternativa socialista é, pois, a superação

desse antagonismo. A forma da sua atuação deve ser, em conseqüência,

crítica da referida disjunção. E isso só pode ser feito com ações

extraparlamentares capazes de ir às raízes dos problemas que afetam os

trabalhadores, isto é, o próprio sistema do capital como força

extraparlamentar de controle do sociometabolismo humano. De que

modo deve atuar esse movimento? Leiamos mais uma vez Para além do

capital (ibid., 859-60):

o papel do movimento extraparlamentar é duplo.

Em vez de auxiliar a reestabilizar o capital nas

crises, como ocorreu em situações importantes do

passado reformista, ele deve, por um lado, afirmar

seus interesses estratégicos como alternativa

sociometabólica pelo confronto e pela necessária

negação, em termos práticos, das determinações

estruturais da ordem estabelecida que se

manifestam na relação-capital e na concomitante

subordinação do trabalho no processo

socioeconômico de reprodução material. Por outro

lado, o poder político do capital dominante no

Parlamento precisa e deve ser contestado por meio

da pressão que as formas de ação

extraparlamentares podem exercer sobre o

Legislativo e o Executivo, como testemunhamos

pelo impacto causado pelo movimento de ―uma

única questão‖ contra a taxação por cabeça, que

desempenhou papel decisivo na queda de

Margareth Thatcher do cimo da pirâmide política.

Sem a contestação extraparlamentar

estrategicamente orientada e sustentada, os

partidos que se alternam no governo podem

continuar a se oferecer álibis recíprocos para o

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fracasso estrutural do sistema em relação ao

trabalho, confinando efetivamente o movimento

do trabalho ao papel de um apêndice

inconveniente, mas marginalizado, no sistema

parlamentar do capital. Portanto, em relação tanto

ao domínio reprodutivo material como ao político,

a constituição de um movimento socialista

extraparlamentar de massas estrategicamente

viável – em conjunção com as formas tradicionais

de organização política do trabalho, hoje

desesperançadamente sem rumo e fortemente

necessitadas do apoio e da pressão radicalizantes

de tais forças extraparlamentares – é uma

precondição vital para a contraposição ao maciço

poder extraparlamentar do capital.

Após estabelecer tais princípios, Mészáros passa a teorizar – de

acordo com o seu projeto de crítica, para o qual não basta somente

negar as mediações materiais antagonicamente estabelecidas, mas

também estabelecer a posição de um sistema qualitativamente diferente

– sobre algumas características do sociometabolismo a ser efetivado na

―nova forma histórica‖, a comunidade humana emancipada.

Aí, segundo o filósofo, as atividades deverão ser realizadas

orientadas para proporcionar tempo disponível para os produtores

associados, ao contrário do que acontece no sistema do capital, onde o

tempo necessário para extrair trabalho excedente é o que domina. Com

base em Marx, Mészáros estabelece que ―a verdadeira riqueza é o poder

desenvolvido por todos os indivíduos. Então, a medida de riqueza não é

mais, de modo algum, o tempo de trabalho, e sim o tempo disponível‖

(MARX, apud Mészáros, ibid., 869). Dizer que as atividades estarão

organizadas de acordo com o imperativo de proporcionar tempo

disponível aos produtores livremente associados significa que a práxis

humana estará voltada para ―o uso qualitativo do tempo‖, isto é, a

utilização do tempo com vistas à realização do ―indivíduo social rico‖,

no sentido que Marx atribuía a esse conceito.

Por sua vez, a troca no sistema comunal não será mais baseada

na permuta de mercadorias, mas na troca de atividades ―determinada

por necessidades e propósitos comunais‖ (ibid., 873). Mészáros explica

que a troca é uma mediação inseparável da relação dos seres humanos

particulares entre si e com a natureza (intercâmbio sociometabólico).

Mas na modalidade específica de troca capitalista, esse tipo de mediação

é reduzido ―à sua dimensão material fetichizada e decretada como

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idêntica à forma de mercadoria eternizada‖ (ibid., 883). Diferentemente

da produção de mercadorias e seus imperativos fetichistas de trocas, o

tipo de intercâmbio do sistema comunal deverá estar calcado sobre a

troca de atividades, configurando um conjunto de relações onde os

produtos e a sua circulação ficarão subordinados às decisões

conscientemente tomadas por seus produtores. Como explica o filósofo

húngaro (ibid., 883),

A alocação de produtos, certamente, decorre da

própria atividade produtiva comunalmente

organizada, e espera-se que corresponda ao seu

caráter diretamente social. Porém, o importante no

presente contexto é que na relação de troca de tipo

comunal a primazia caiba à autodeterminação e à

correspondente organização das próprias

atividades nas quais os indivíduos se engajam,

conforme as suas necessidades como seres

humanos ativos. Neste tipo de relação de troca, os

produtos constituem o momento subordinado,

tornando possível alocar, de modo radicalmente

diferente, o tempo disponível total da sociedade,

em lugar de ser predeterminado e constrangido

pela predominância dos objetivos produtivos

materiais, sejam eles mercadorias ou produtos

não-mercantilizados.

É compreensível a dificuldade de conceituar a

relação de troca nestes termos, pois o fetichismo

da mercadoria prevalece de tal modo sob o

domínio do capital que as mercadorias se

sobrepõem à necessidade, mensurando e

legitimando (ou não) a necessidade. Este é o

horizonte normativo a que nos acostumamos em

nossa vida cotidiana. A alternativa seria submeter

os produtos a alguns critérios significativos de

avaliação baseados na necessidade, e acima de

tudo de acordo com a necessidade básica de uma

vida ativa humanamente realizada.

A superação do sistema do capital rumo a uma humanidade

emancipada exige, portanto, ir de uma ordem social organizada pela

troca de produtos ou mercadorias a uma outra, qualitativamente

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diferente, calcada na troca de atividades.74

A ―nova forma histórica‖

exige, assim, um planejamento auto-administrado ―de baixo pra cima‖,

com vistas a ser orientado para o atendimento às necessidades humanas,

75 e não para os imperativos estabelecidos de acordo com a

realização do capital, impostas sobre os trabalhadores de uma maneira

hierárquica e fetichista. E isso só pode ser efetivado se se transcende o

círculo vicioso daquilo que Mészáros chama de linha de menor

resistência do sistema sociometabólico vigente.76

Portanto, as características do modo comunal de intercâmbio,

listadas pelo filósofo húngaro (ibid., 880-1) na esteira dos Grundrisse de

Marx, devem ser as seguintes:

a determinação da atividade de vida dos

74

O tema da troca de atividades será retomado e ficará mais claro no próximo capítulo. 75

Mészáros afirma que a nova forma histórica deve dar origem a um novo tipo de utilidade,

diferente da que existe no interior das relações pragmáticas do capital. Como explica o

filósofo, somente segundo os parâmetros do sistema comunal, é possível ―divisar uma

redefinição radical da utilidade – não apenas materialmente limitante, mas também alienante e reificante sob o sistema do capital - no sentido expresso por Marx em A miséria da filosofia

[...], segundo o qual o tempo de produção dedicado a um artigo é determinado pelo grau de sua

utilidade social [grifo nosso], não cabendo à tirania do tempo mínimo ter a palavra final na

questão da utilidade social – o que seria considerado de grande bom senso por todos os

indivíduos que trabalham se estes não tivessem interiorizado os ditames da contabilidade de

custos capitalista‖ (ibid., 892). Assim, a utilidade social dos produtos seria definida em função da constituição dos ―indivíduos sociais ricos‖, e não mais em termos da riqueza reificada do

capital. 76

O que é a linha de menor resistência? Mészáros explica que os sistemas de mediações

―cristalizados‖ ao longo da história possuem uma certa ―inércia‖ que continua se afirmando

mesmo quando esses complexos passam por crises profundas e movimentos revolucionários

atentem contra a ordem consolidada. Seguir a linha de menor resistência significa, quando do momento da intervenção que pretende debelar a crise, agir-se em conformidade com a lógica

das relações sociais já em processo, ao invés de reestruturá-las radicalmente. Por exemplo: se,

diante de uma grave crise, o capital ―encontrar um equivalente funcional capitalisticamente mais viável ou fácil a uma linha de ação que suas próprias determinações materiais de outro

modo predicariam (‗de outro modo‘ significando a expansão da produção correspondendo ao

desenvolvimento da ‗rica necessidade humana‘, como descrita por Marx), o capital deve optar por aquela que esteja mais obviamente de acordo com sua configuração estrutural global,

mantendo o controle que já exerce, em vez de perseguir alguma estratégia alternativa que

necessitaria o abandono de práticas bem estabelecidas‖ (ibid., 679-70). Deve-se sublinhar aqui que a linha de menor resistência pode ser perseguida tanto pelo capital, quanto por um

movimento revolucionário socialista. Em relação a uma revolução socialista, seguir a linha de

menor resistência significaria simplesmente passar a um pólo a outro de um conjunto de relações sócio-políticas estabelecidas, sem mudar essa ordem mesma. Por exemplo: tomar o

Estado e não buscar superar as mediações de segunda ordem do capital, mantendo-se assim os

fundamentos estruturais que dão sustentação à existência do próprio Estado e sua função de controle político. É nesse sentido que, segundo Mészáros, a linha de menor resistência deve ser

absolutamente evitada pelos próximos movimentos a se insurgir contra o sistema.

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sujeitos trabalhadores como um elo necessário e

individualmente significativo na produção

diretamente geral, e na sua correspondente

participação direta no mundo de produtos

disponíveis;

a determinação do próprio produto social

como produto inerentemente comunal, produto

geral desde o início, em relação às necessidades e

aos propósitos comunais, com base na parte

especial que os indivíduos particulares adquirem

na produção comunal em andamento;

a plena participação dos membros da

sociedade no próprio consumo comunal:

circunstância extremamente importante devido à

inter-relação dialética entre produção e consumo,

com base na qual o último é correta e

positivamente caracterizado no sistema comunal

como ―consumo produtivo‖;

a organização planejada do trabalho (em

vez de sua alienante divisão, determinada pelos

imperativos auto-afirmadores do valor de troca na

sociedade de mercado), de tal modo que a

atividade produtiva dos trabalhadores particulares

seja mediada não de forma reificada-objetivada

por meio da troca de mercadorias, mas pelas

condições intrinsecamente sociais do próprio

modo de produção dado no interior do qual os

indivíduos são ativos.

Por tudo o que foi apresentado até aqui, fica claro que, para

Mészáros, ―a questão-chave é se estabelecer um modo historicamente

novo de mediar a troca metabólica da humanidade com a natureza e das

cada vez mais autodeterminadas atividades produtivas dos indivíduos

sociais entre si‖ (ibid., 881). Por outro lado, também fica igualmente

esclarecido que não se trata de projetar sobre a realidade um conjunto de

exigências morais, mas sim promover ―a articulação de práticas

materiais absolutamente tangíveis e as correspondentes formas

institucionais‖ (ibid., 881) capazaes de se responsabilizar pela realização

dessas práticas. Como explica mais uma vez o filósofo húngaro (ibid., 881),

a viabilidade histórica do sistema comunal,

defendido por Marx como alternativa auto-

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sustentada e positiva para a divisão antagonista do

trabalho e sua relação-valor, só pode ser

estabelecida se as condições de sua realização

forem expressas em termos de tarefas concretas e

seus correspondentes instrumentos. Essa definição

de Marx corresponde à sua crítica permanente da

posição utópica do futuro socialista, que funciona

como um ideal abstrato ao qual a realidade tem

que se adequar.

Mészáros delineia ainda mais alguns pontos concernentes às

características de uma organização social e política alternativa, tal como

deve ser a nova forma histórica: o planejamento, a ser realizado de uma

maneira radicalmente democrática pelos produtores livremente

associados, é uma condição necessária para manter por um período de

longo prazo a dinâmica sociometabólica não antagônica; a

sustentabilidade, como o resultado da instauração das novas mediações

materiais reguladas consciente e coletivamente, a partir de um modo

horizontal de efetivação da atividade produtiva; o aumento da taxa de

utilização dos produtos, que deve ser levado a cabo a fim de suplantar o

desperdício e a perdularidade destrutiva praticados pelos processos de

realização do capital; finalmente, a contabilidade socialista, que precisa

ser instaurada, segundo o filósofo húngaro (ibd., 952-3), com base em

critérios qualitativos na avaliação dos recursos

materiais e humanos da sociedade como a

regulamentação dos intercâmbios produtivos e

distributivos dos indivíduos – com base na troca

de atividades -, segundo o princípio ―de cada um

de acordo com a sua capacidade, para cada um de

acordo com a sua necessidade‖.

Isso tudo, para poder ser materialmente implementado, exige

uma práxis política que vá muito além dos tradicionais pleitos eleitorais,

que não proporcionam mudança estrutural alguma, nem na forma de

regência do metabolismo social, nem no modo como a estrutura de

comando político do sistema se organiza. Mészáros afirma

categoricamente que as mudanças que realmente precisamos não vão se

dar por meio de eleições. Conforme o que está posto em Para além do capital (ibid., 898):

não passa de pura fantasia a idéia defendida por

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183

alguns antigos socialistas, para quem a via para a

mudança radical será aberta por uma grande

vitória eleitoral do movimento dos trabalhadores,

a ser aceita com boa vontade pelas forças

repressivas políticas e materiais do capital como

um mandato claro para a transformação socialista.

Somente uma revolução permanente, da maneira como

explicitamos, poderá realizar o objetivo da emancipação humana

preconizada pelos socialistas desde o século XIX.

Mas aqui permanece uma dúvida: é possível, afinal, que um

grande número de pessoas possa organizar sua atividade coletiva de

modo a não só romper com uma certa ordem estabelecida, mas também

estabelecer de modo duradouro uma nova forma de organização social e

política calcada na cooperação, ao invés da competição individualista?

Sim, diz Mészáros, e usa, para fundamentar sua tese, exemplos bastante

significativos. Leiamos uma vez mais o que escreve o filósofo (ibid.,

927-8):

sabemos bem pela experiência histórica tão

recente da Segunda Guerra Mundial que, em

determinadas circunstâncias, não só milhões mas

centenas de milhões de indivíduos são capazes de

agir solidariamente uns com os outros. Portanto,

se sob a ameaça de um inimigo, tal como a

Alemanha nazista de Hitler, a busca racional de

um objetivo comum, que requer solidariedade e

sacrifício pessoal para a realização do propósito

compartilhado, é possível. Por que, então, a

solidariedade seria ―inconcebível‖ quando as

questões em jogo são ainda maiores, pressagiando

a destruição total da humanidade se o sistema do

capital não for posto sob controle duradouro pela

vontade humana racional e pela solidariedade

correspondente? Só porque assim o decretou o

interesse cegamente autocomplacente dos

apologistas do capital. Mas, para tomar um

exemplo ainda mais recente, a solidariedade dos

mineiros britânicos – positivamente demonstrada

na sua greve que durou um ano entre 1984-85 –

foi, por fim, derrotada não pela ―complexidade de

uma grande sociedade industrial‖. Pelo contrário,

só foi subjugada pelo poder econômico

plenamente mobilizado e pela força repressiva do

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Estado capitalista, cruelmente aplicada pelos

defensores da ordem governante conscientes de

sua própria classe contra o ―inimigo interno‖, nas

palavras reveladoras de Margareth Thatcher.

Fica demonstrado, assim, que os seres humanos podem se

organizar coletivamente, a partir de um grande número, para se

contrapor a uma situação que os degrada e os oprime e para afirmar a

sua determinação de permanecerem vivos e livres. Ainda que até agora

as forças do capital tenham derrotado as organizações coletivas que

buscaram superar a ordem estabelecida, os trabalhadores podem vencer

se articularem conscientemente suas ações e estiverem orientados por

um quadro estratégico adequado. Essa vitória, como afirma o filósofo

húngaro, terá que estar calcada, sobretudo, na solidariedade, esse

―incentivo moral coletivo par excelence‖ (ibid., 968) dos movimentos

revolucionários vindouros.

Finalmente, um último ponto importante da teoria política de

Mészáros deve ser mencionado: o que concerne ao pluralismo socialista. Hoje, com o fim da fase histórica de ascendência do capital,

quando surge, portanto, a possibilidade objetiva para uma ofensiva socialista verdadeiramente consistente e eficiente em seus propósitos, é

preciso ter cuidado para não se cair num equívoco grave: o de se exigir

unidade entre os movimentos de trabalhadores que buscam a

emancipação social. Segundo o pensador húngaro, a unidade não é pré-

requisito necessário para o êxito do projeto revolucionário enquanto tal.

A unidade, que, muitas vezes, para se realizar, faz com que os

trabalhadores paguem um preço altíssimo, como a supressão da

autocrítica e a barganha sobre princípios, precisa ser substituída pelo

pluralismo socialista. Para fundamentar tais considerações, o filósofo

lança mão de algumas reflexões feitas pelos próprios Marx e Engels

que, já no século XIX, condenavam a exigência de unidade entre as

organizações políticas de trabalhadores socialistas.77

A unidade não pode ser um objetivo porque a própria classe

77

Duas passagens servem para ilustrar as concepções de Marx e Engels sobre tal questão. A

primeira é de uma carta de Engels a A. Bebel, datada de 1º-2 de maio de 1891, condenando a

influência de Wilhelm Liebknecht sobre a redação do Programa de Gotha: ―Da democracia

burguesa ele trouxe e manteve uma verdadeira mania de unificação‖ (ENGELS, apud Mészáros, ibid., 811). A segunda é de uma carta de Marx a Wilhelm Bracke, de 5 de maio de

1875, onde o autor de O capital afirma que ―é um engano acreditar que este sucesso

momentâneo [isto é, a unificação dos trabalhadores em um movimento político ocorrida naquele momento] não será comprado a um preço muito alto‖ (MARX, apud Mészáros, ibid.,

811).

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trabalhadora não é, por sua própria condição, unificada. Na verdade, ela

constitui um complexo de setores muito variados e com significativas

diferenças, muitas vezes antagonicamente estruturado, em contraponto à

própria pluralidade de capitais do sistema vigente. Por isso, o que é

desejável no movimento revolucionário é a articulação – e não unidade,

que pressupõe camuflar diferenças artificialmente - dos diversos grupos de trabalhadores. Como explica Mészáros (ibid., 812),

Assim como naqueles dias, mais uma vez este

assunto é um assunto de suprema importância.

Pois hoje – talvez mais que nunca, em vista das

experiências amargas do passado recente, e do não

tão recente – não é mais possível conceber as

formas imprescindíveis de ação comum sem uma

articulação consciente de um pluralismo socialista

que não só reconhece as diferenças existentes,

mas também a necessidade de uma adequada

―divisão do trabalho‖ na estrutura geral de uma

ofensiva socialista. Em oposição à falsa

identificação da ―unidade‖ como o único meio de

patrocinar princípios socialistas (enquanto, na

realidade, a perseguição irreal e a imposição de

unidade trouxeram com elas as necessárias

concessões sobre princípios), permanece válida a

regra de Marx: não pode haver barganha sobre

princípios.

Nesse movimento fundamentalmente pluralista, é essencial que

os trabalhadores consigam articular as suas demandas parciais com as

exigências gerais de superação do sistema. Vale a pena, mais uma vez,

ler o que escreve o autor de Para além do capital (ibid., 818) acerca de

sua proposta revolucionária:

as demandas mais urgentes de nossa época, que

correspondem diretamente às necessidades vitais

de uma grande variedade de grupos sociais –

empregos, educação, assistência médica, serviços

sociais decentes, assim como as demandas

inerentes à luta pela libertação das mulheres e

contra a discriminação racial -, podem, sem uma

única exceção, ser abraçadas sem restrições por

qualquer liberal genuíno. Entretanto, é

absolutamente diferente quando não são

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consideradas como questões singulares,

isoladamente, mas em conjunto, como partes do

complexo global que constantemente as reproduz

como demandas não realizadas e sistematicamente

irrealizáveis.

Desse modo, o que decide a questão é a sua

condição de realização (quando definidas em sua

pluralidade como demandas socialistas

conjuntas), e não o seu caráter considerado

separadamente. Por conseguinte, o que está em

jogo não é a enganosa ―politização‖ destas

questões isoladas, pela qual poderiam cumprir

uma função política direta numa estratégia

socialista, mas a efetividade de afirmar e sustentar

tais demandas ―não-socialistas‖, tão largamente

automotivadoras no front mais amplo possível.

E para que haja, enfim, essa articulação das exigências parciais

com as gerais, de modo a se constituir um movimento socialista

coerente e radical, é imprescindível, diz Mészáros, a formação de uma

―consciência de massa socialista‖, que deve se desenvolver no processo

mesmo de confrontação prática com a ordem do capital.78

78

Este é um ponto bastante importante – e, talvez devamos dizer também, ―espinhoso‖ - da

teoria política de Mészaŕos. A consciência de classe necessária, que o filósofo húngaro

estabelecia em seus escritos anteriores, não mais será mencionada. Em seu lugar, surge um

outro conceito que, este sim, assumirá o primeiro plano de sua reflexão política: consciência de massa socialista (ou comunista, conforme outras passagens). Não saberíamos precisar

exatamente o momento nem a razão de tal modificação conceitual, mas é um fato que o

filósofo abandona completamente o conceito de consciência de classe necessária – que não possui absolutamente nenhum papel na teoria política de Para além do capital – por

consciência de massa socialista - um conceito retirado de A ideologia alemã – como a

consciência da necessidade radical de uma revolução social. Uma hipótese que nos parece plausível para essa substituição conceitual é a seguinte: talvez, aos olhos de Mészáros, o

conceito de consciência de classe necessária apareça agora como estando ainda muito ligado

―ao objeto da sua negação‖, a sociedade de classes estruturada de acordo com a dinâmica do capital. O filósofo pode estar querendo, pois, estabelecer um conceito que seja negativo e

afirmativo ao mesmo tempo, isto é, que também esteja formulado em conjunção com o futuro a

ser realizado – e não somente com o passado a ser recusado -, qual seja, a ―comunidade humana emancipada‖. Daí, a proposta da consciência de massa socialista passar a assumir um

papel tão preponderante no arcabouço teórico desenvolvido pelo filósofo húngaro. Nesse

contexto, já podemos ressaltar aqui que é justamente para a formação dessa consciência de massa socialista, dentro de um projeto político-social revolucionário, que a educação terá uma

tarefa imprescindível. Voltaremos a esse tema posteriormente.

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187

*

Fica evidenciada, portanto, a grandiosa importância de Para

além do capital para uma teoria alternativa da educação emancipadora.

O grande livro de Mészáros traz nada menos que o ponto de partida para

a formulação de tal teoria. Apresenta a essência do sistema do capital em

crise estrutural e, em seguida, uma estratégia política conseqüente para o

seu enfrentamento e superação. É justamente no interior dessas

determinações que se articula a nova proposta radical para o campo da

educação.

Compreendidos, então, tais pontos fundamentais concernentes à

teoria social e política de Para além do capital, podemos voltar agora à

questão da educação propriamente dita, analisando os textos de

Mészáros posteriores a 1995 onde esse tema é tratado em conjunção

com os conceitos que aprofundam a proposta radical da ofensiva socialista.

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189

4 UM MUNDO A GANHAR: A AUTO-EDUCAÇÃO

PERMANENTE DOS IGUAIS NO PROCESSO DA

EMANCIPAÇÃO HUMANA

Que é mais nobre para a alma: sofrer os dardos e

flechas de um destino cruel, ou pegar em armas

contra um mar de calamidades para pôr-lhes fim,

resistindo?

William Shakespeare

...que los justos avancen

aunque estén imperfectos y heridos

que avancen porfiados como castores

solidarios como abejas

aguerridos como jaguares

y empuñen todos sus noes

para instalar la gran afirmación

Mario Benedetti

As concepções de Mészáros acerca do sistema do capital podem

suscitar, certamente, divergências e polêmicas. Como comentamos

anteriormente, o filósofo húngaro não busca a – pretensamente única -

leitura de Marx, mas uma leitura que seja possível da obra do insigne

filósofo alemão. Em nossa opinião, sua avaliação acerca da essência do

capital como modo de controle sociometabólico calcado na exploração

de trabalho excedente é consistente, convincente e válida. Sabemos,

contudo, que ela poderá não agradar a todos os estudiosos da questão

que se encontram do lado emancipador da linha que separa as classes.

Isto é verdade não só pelo fato de a obra do autor de O capital ser

suscetível de mais de um tipo de interpretação – apesar de não o ser de

infinitas interpretações –, mas também pelo fato de que há vários pontos

de vista possíveis – relacionados com as diferentes perspectivas

concernentes aos diversos setores das classes trabalhadoras – pelos quais

se pode analisar a realidade histórica constituída.

Isso, no entanto, não deve impedir os socialistas de

desenvolverem ações críticas em conjunto contra a sociedade do capital.

A proposta do pluralismo socialista diz respeito exatamente a este fato:

apesar de que, no movimento de luta contra a ordem burguesa, serem

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possíveis leituras diferentes acerca da seqüência dos obstáculos a serem

vencidos, isto não deve poder nos impedir de levarmos a efeito, de

forma articulada, um complexo de medidas práticas radicais, mirando o

capital como alvo supremo a ser batido. Mais do que a falsa unidade –

calcada, muitas vezes, na barganha sobre princípios – é necessário o

pluralismo, isto é, articulação de grupos diversificados, com concepções

também algo diferentes sobre a realidade que se quer superar.

Acreditamos que, mais do que nunca, em tempos de profunda

crise do sistema de controle que rege o metabolismo social humano, é

preciso que construamos essa capacidade de atuar em conjunto, mesmo

não tendo concepções rigorosamente idênticas acerca dos passos a

serem dados rumo à emancipação. Se continuarmos mergulhados na

inépcia no que diz respeito a travarmos ações coletivas – e, muitas

vezes, as questões que nos afastam uns dos outros são secundárias -,

estaremos com toda certeza perdidos. Se, ao contrário, conseguirmos

envidar esforços coletivos articulados, mesmo que tenhamos entre nós

algumas eventuais divergências teóricas, teremos alguma chance. Daí a

importância do tema do pluralismo que, segundo cremos, não é um

ponto menor dentro da teoria política de István Mészáros.

Dito isto, podemos seguir, agora, no estudo dos textos do

filósofo posteriores a Para além do capital79

e que complementam a

teorização em curso sobre a política e, sobretudo, a educação. Para esse

período da produção intelectual do filósofo húngaro, o primeiro texto

que deve ser consultado é o ensaio Outro mundo é possível e necessário,

escrito entre agosto de 2003 e fevereiro de 2004, e que apareceu como

introdução à segunda edição brasileira de O poder da ideologia.80

Nessa obra, a educação é relacionada com o tema da ideologia crítica - a consciência prática necessária para orientar a política radical -

e com questões referentes à própria práxis revolucionária socialista em

seus múltiplos aspectos. Sigamos, pois, passo a passo o raciocínio do

autor.

79

Entre 1995, data do lançamento de Para além do capital, e 2004, quando apareceu o texto

que trataremos agora - Outro mundo é possível e necessário, como introdução a O poder da ideologia -, Mészáros produziu uma série de textos, entrevistas, conferências, etc., sobre teoria

social e política. Impossível, dentro dos limites de um trabalho como este, nos atermos a todos

eles. Tivemos que nos centrar, aqui, em analisar os ensaios onde o filósofo húngaro relaciona mais diretamente suas reflexões políticas com a questão da educação, mostrando como esta

modalidade específica de mediação se integra a uma teoria mais abrangente para orientar o

sujeito social da revolução no processo de enfrentamento e superação do sistema do capital. 80

MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. A

primeira edição brasileira deste livro veio à luz em 1996, pela Editora Ensaio.

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A questão central colocada pelo filósofo húngaro é, justamente,

a da práxis revolucionária e a ideologia capaz de orientá-la. O texto

inicia com uma crítica ao mito da neutralidade ideológica - tendo

Keynes e o reformismo como principais adversários - e ao Estado de

ideologia única - personificado pelo consenso neoliberal -, que são

considerados por Mészáros como perigosas tendências de nosso tempo

de crise estrutural do sistema do capital.

O filósofo esclarece, então, a relação que existe entre essa

―nova época histórica‖ e as suas repercussões no âmbito das ideologias.

É o surgimento da crise estrutural do sistema do capital, diz Mészáros,

que afirma a exigência de um determinado tipo de consenso ideológico

adequado às novas condições vigentes.

O autor de O poder da ideologia não se detém muito, aqui, no

ponto da crise estrutural, visto que o mesmo é tratado exaustivamente,

como vimos, em outros escritos anteriores. Comenta apenas

rapidamente (2004 b, 16) que estamos num novo período histórico, onde

o capital se apresenta como

um sistema orgânico de reprodução

sociometabólica, dotado de lógica própria e de um

conjunto objetivo de imperativos, que subordina a

si – para o melhor e para o pior, conforme as

alterações das circunstâncias históricas – todas as

áreas da atividade humana, desde os processos

econômicos mais básicos até os mais mediados e

sofisticados.

Depois de mencionar alguns dos limites absolutos - desemprego

crônico, etc. - do sistema do capital em crise estrutural, Mészáros volta a

bater de frente com a tese reformista de que o Estado pode controlar e

resolver completamente as contradições da atual ordem

sociometabólica. O filósofo explica, então, que o Estado não pode fazer

isso porque ele é, em si mesmo, uma estrutura hierárquica de comando a

serviço do capital, isto é, faz parte do sistema, não podendo transcender

a ele e exercer seu controle ―de fora‖ sobre o mesmo.

Logo após criticar tais concepções, Mészáros começa a delinear

alguns dos elementos gerais de uma estratégia política para a superação

do sistema de extração de trabalho excedente do capital. O primeiro

ponto importante dessa reflexão diz respeito à necessidade premente de

articulação entre as dimensões nacional e internacional da luta

revolucionária. Por que é preciso chamar a atenção sobre isso?

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Responde o filósofo: ―Um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento

futuro do indispensável movimento de massas é o descaso persistente

pela questão nacional na ideologia socialista [grifos nossos]‖ (ibid., 21).

Para o sucesso, portanto, das novas empreitadas crítico-práticas radicais

no sentido de levar a efeito a alternativa socialista, é preciso ter bem

esclarecida tal questão. Há que se compreender bem a estrutura iníqua de relações existente, em nossos dias, entre o conjunto de Estados que

se constituiu de acordo com os imperativos da auto-expansão do capital.

Mészáros (ibid., 23) explica, então, que esse sistema foi

obrigado, no seu processo de vir-a-ser, a impor

a posição altamente privilegiada do punhado de

nações preparadas para o imperialismo e, ao

mesmo tempo, teve de impor, com todos os meios

disponíveis, inclusive os mais violentos

―sistematicamente inventados‖, uma condição de

subordinação a todas as outras nações. Essa forma

de articular a ordem internacional prevaleceu não

somente contra nações menores, mas até quando

os países dominados tinham populações

incomparavelmente maiores do que seus

opressores estrangeiros, como foi o caso da Índia

sob o Império Britânico. Com relação às nações

colonizadas, suas condições de dependência

econômica e política eram impostas de modo

implacável pelas potências imperialistas, graças

também à cumplicidade subserviente das classes

dominantes nativas. Portanto, as mudanças pós-

coloniais não tiveram nenhuma dificuldade em

reproduzir, em todas as relações substantivas, os

modos anteriores de dominação, ainda que

formalmente modificada, mantendo, até o

presente, o sistema há muito estabelecido de

dominação estrutural e dependência.

É justamente esse quadro de dominação estrutural hierárquica

entre os Estados contemporâneos que não permite mais que os

socialistas releguem o problema da questão nacional a um segundo

plano. Nesse sentido, como devem agir os revolucionários na sua luta

pela transformação radical da atual ordem sociometabólica dominada

pelo capital? O autor de O poder da ideologia defende, aqui, que um

certo nacionalismo defensivo pode e deve ser articulado com uma

postura de internacionalismo ofensivo no movimento de crítica contra o

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sistema, e busca inspiração em ninguém menos que Lenin para a

fundamentação de sua tese.

Refletindo exatamente sobre a questão do direito das nações

mais débeis em suprimir a sua condição de subordinação e

vulnerabilidade em relação às mais fortes, Mészáros (ibid., 24)

argumenta que:

Lenin sempre defendeu o direito das várias

nacionalidades à completa autonomia ―até o ponto

da secessão‖, ao passo que Stalin as reduziu a

nada mais do que ―regiões de fronteira‖, a serem

mantidas a qualquer custo na mais estrita

subordinação, em nome dos interesses da Rússia.

Por isso, Lenin o condenou em termos bem claros,

insistindo que, caso prevalecessem as posições

defendidas por Stalin, ―a ‗liberdade de secessão

da união‘, pela qual nos justificamos será apenas

um pedaço de papel, incapaz de defender os não-

russos do assassinato por parte daquele legítimo

homem russo, o grande chauvinista russo‖. Ele

insistiu na gravidade dos danos causados pelas

políticas adotadas e nomeou claramente os

culpados: ―A responsabilidade política por tudo

isso deve, evidentemente, ser lançada sobre Stalin

e Dzerjinski‖.

Lenin jamais deixou de enfatizar a importância da

completa – não apenas formal, mas substantiva –

igualdade de todos os grupos nacionais. Insistiu

repetidamente na seriedade das violações da

solidariedade proletária internacional, tendo

também reiterado o ponto de vista marxiano sobre

a necessidade de tornar ―desigual a igualdade‖ em

favor daqueles que estavam em desvantagem e

oprimidos.

Mészáros endossa, pois, plenamente tal posição de Lenin

quanto ao nacionalismo defensivo e, em seguida, fazendo referência

também às formulações de Marx sobre a ―classe com cadeias radicais‖, afirma que essa postura deve ser complementada com o

internacionalismo positivo, sem o qual a superação do capital se torna

impraticável. Leiamos mais uma vez o que estabelece o filósofo húngaro

(ibid., p. 29), a fim de complementar o seu raciocínio:

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o potencial de solidariedade internacional que

Marx pôs em relevo, com referência a ―uma

classe que em todas as nações tem o mesmo

interesse e para o qual a nacionalidade já está

morta‖, não somente não ficou perto de se

realizar, como, na verdade, sofreu um retrocesso

com o desenvolvimento bem-sucedido do

imperialismo moderno e de sua subseqüente

transformação em um sistema de dependência

estrutural neocolonial e neo-imperialista após a

Segunda Guerra Mundial. Essa nova versão do

imperialismo foi (e ainda é) uma forma de

dominação tão iníqua para as grandes massas

trabalhadoras quanto sua antecessora. Assim, é

inconcebível realizar um internacionalismo

verdadeiro sem a emancipação radical de muitas

nações oprimidas – não somente na América

Latina – da dominação por parte das nações

opressoras. Esse é o significado atual do legítimo

nacionalismo defensivo, como enfatizado desde o

início por Lenin. Um nacionalismo defensivo que,

para vencer, precisa ser complementado pela

dimensão positiva do internacionalismo [grifo

nosso].

A solidariedade internacional é um potencial

positivo apenas para o antagonista estrutural do

capital. Está em harmonia com o patriotismo, que

é habitualmente confundido, até nas discussões

teóricas da esquerda, como chauvinismo burguês.

É imprescindível, neste contexto, mencionar mais uma

passagem que, apesar de longa, sintetiza de maneira exemplar a

proposta estabelecida pelo filósofo húngaro acerca da articulação entre

nacionalismo defensivo e internacionalismo positivo na luta contra a

ordem do capital. Mészáros (ibid., p. 31) defende intransigentemente

que

a negação radical do sistema há muito

predominante das relações desiguais entre Estados

é uma exigência que a teoria socialista não pode

deixar de cumprir. Ela oferece a base conceitual

do nacionalismo defensivo. Mas a necessária

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alternativa positiva à ordem social do capital não

pode ser defensiva, pois todas as posições

defensivas padecem do problema da instabilidade,

pelo fato de que as melhores defesas podem ser

vencidas quando submetidas a fogo concentrado,

o que ocorrerá caso haja uma alteração da relação

de forças em favor do adversário. Sob esse

aspecto, em resposta à globalização perversa do

capital, é indispensável a articulação de uma

alternativa positiva viável. Ou seja, uma ordem

reprodutiva social internacional instituída e

administrada com base na autêntica igualdade de

seus muitos constituintes, uma igualdade material

e culturalmente substantiva, não meramente

formal. Assim, a estratégia do internacionalismo

positivo implica substituir o absolutamente iníquo

– e inevitavelmente conflituosos – princípio

estruturador dos ―microcosmos‖ reprodutivos do

capital (as empresas produtoras e distribuidoras

particulares que constituem o ―macrocosmo‖

abrangente do sistema) por outra alternativa

totalmente cooperativa.

O impulso destrutivo do capital transnacional não

pode ser aliviado, muito menos superado

positivamente, se isto ocorrer apenas no plano

internacional, por meio da ação de governos

nacionais particulares, pois a existência

continuada de ―microcosmos‖ antagonistas e sua

inclusão dentro de estruturas cada vez maiores do

mesmo tipo conflituoso (como as gigantescas

corporações transnacionais de nossos dias) mais

cedo ou mais tarde reproduzem inevitavelmente

os conflitos temporariamente abafados. Assim, o

internacionalismo positivo define-se como a

estratégia para ir além do capital [grifo nosso]

como modo de controle sociometabólico ao ajudar

a articular e coordenar de maneira abrangente uma

forma não hierárquica de tomada de decisão no

plano material reprodutivo, bem como no cultural-

político. Noutras palavras, uma forma

qualitativamente diferente de tomada de posição

em que as funções de controle vitais de

reprodução social possam ser positivamente

transferidas aos membros dos ―microcosmos‖ e,

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ao mesmo tempo, em que as atividades desses

últimos sejam apropriadamente coordenadas para

incluir os níveis mais abrangentes, visto que estes

não estariam separados por antagonismos

inconciliáveis.

Assim, para se romper radicalmente com o sistema de

dominação estrutural existente hoje entre as nações, para cortar esse mal

pela raiz, a solidariedade internacional deve constituir uma prática

fundamental e um valor precípuo entre os trabalhadores de todos os

países. Esse internacionalismo positivo – que engloba a legítima postura

nacionalista defensiva, no sentido acima explicitado, e que a transcende

–, que busca difundir ―as funções de controle de reprodução social‖ aos

produtores livremente associados, é a própria estratégia para superar o

sistema de controle hierarquicamente estruturado sobre a atividade

produtiva que embasa a relação de poder assimétrica entre os Estados.

Sem articular adequadamente todos esses momentos constitutivos da

práxis revolucionária permanente, os socialistas não conseguirão levar a

bom termo suas aspirações emancipatórias.

Tão logo o filósofo afirma tais pontos, passa a delinear outro

elemento central da estratégia socialista: a articulação entre as

dimensões temporais concernentes aos momentos imediato e de longo

prazo no processo de luta pela emancipação humana. Assim, contra a

tendência reformista, que esteve representada na história das teorizações

socialistas principalmente por Bernstein, que estabelecia na estratégia

política uma divisão rígida entre fins e meios, Mészáros propõe a

superação dessa falsa oposição. Criticando a postura do socialismo evolucionário, o filósofo húngaro (ibid., 37) desenvolve o argumento

que

Em seu início, o credo reformista de Bernstein

estipulava que defender a fidelidade ao objetivo

final do movimento – ou seja, o objetivo

estratégico de mudança estrutural radical – era um

grave erro, porque a única coisa que realmente

tinha importância era a busca reformista de alguns

limitados objetivos imediatos.

É essa posição que está na raiz da criação da falsa dicotomia

entre os grandes objetivos estratégicos e as exigências imediatas do

movimento socialista. Mas a conjuntura atual de crise estrutural não

permite mais que se continue a alimentar tamanha ilusão. Isso equivale

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dizer que a articulação dialética entre objetivos imediatos e fins últimos

é uma exigência premente para a realização da alternativa socialista.

Como afirma o autor de O poder da ideologia (ibid., 39),

em nossos dias – em que o capital só pode

oferecer benefícios estritamente táticos ao

trabalho, com o objetivo de retomá-los

―acrescidos de juros compostos‖ na primeira

oportunidade -, mesmo a realização dos objetivos

mais limitados só é viável como parte essencial e

subsidiária da alternativa hegemônica do

movimento socialista à ordem estabelecida. Dessa

forma, pode-se buscar o imediato apenas se for

concebido como imediato estratégico, definido

por sua inseparabilidade do longo prazo

estratégico e orientado pela primazia geral deste

último.

Após fazer essa recomendação crítica contra a estéril divisão

entre meios e fins no processo de luta revolucionária, Mészáros passa a

detalhar um ponto bastante recorrente em toda sua teoria política: a

questão da igualdade substantiva. O presente ensaio é, diga-se de

passagem, possivelmente, o lugar onde isso é apresentado de forma mais

clara entre todos os escritos do filósofo. A igualdade substantiva é aqui

postulada como alternativa para se corrigir a ―desigualdade estruturalmente imposta entre o mundo ‗capitalista avançado‘ e o que é

tendenciosa e paternalisticamente caracterizado como o ‗mundo

subdesenvolvido‘‖ (ibid., 39). Sigamos, pois, o raciocínio de Mészáros a

fim de tornar clara sua formulação.

Contra as concepções que postulam que o crescimento

econômico das nações independe da relação estrutural que elas mantém

entre si, o filósofo húngaro propõe uma visão dialética sobre o tema,

onde a articulação entre os países no âmbito econômico, político, social

e cultural é compreendida concretamente. Com base nisso, o filósofo

defende uma ―redefinição qualitativa de crescimento‖ com base,

justamente, na igualdade substantiva, e que incluiria toda a humanidade

como sujeito da sua efetivação.

A igualdade substantiva, explica Mészáros, é diferente da

igualdade formal assegurada pelo capitalismo. Também não equivale ao

―nivelamento por baixo‖ que muitos acusam o socialismo de querer

preconizar. O filósofo húngaro recorre a Marx e às influências

intelectuais do pensador alemão, especialmente François Babeuf e

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Felippe Buanorroti, para fundamentar essa proposta. A igualdade

substantiva, diz Mészáros, deve ser definida qualitativamente, e não de

forma meramente quantitativa. O autor de O poder da ideologia retoma,

assim, as palavras de Babeuf que foram endossadas por Marx:

A igualdade deve ser medida pala capacidade do

trabalhador e pela carência do consumidor, não

pela intensidade do trabalho nem pela quantidade

de coisas consumidas [grifo nosso – isto é o que é

feito no interior do sistema do capital]. Um

homem dotado de certo grau de força, quando

levanta um peso de dez libras, trabalha tanto

quanto outro homem com cinco vezes a sua força

que levanta cinqüenta libras. Aquele que, para

saciar uma sede abrasadora, bebe um caneco de

água, não desfruta mais do que seu camarada que,

menos sedento, bebe apenas um copo. O objetivo

do comunismo em questão é igualdade de

trabalhos e prazeres, não de coisas consumíveis e

tarefas dos trabalhadores. (BABEUF, apud

Mészáros, ibid., 42)

Tais são os princípios que regem a igualdade substantiva e que

devem organizar o tipo de produção e distribuição na fase superior da

sociedade socialista. Não a igualdade de coisas consumidas, nem de

tarefas ou horas de trabalho realizadas, mas a igualdade medida pelas

capacidades e carências não alienadas dos indivíduos sociais. É nisso

que deve se basear o projeto alternativo socialista para superar o modo

de controle sociometabólico do capital e instaurar uma nova forma

qualitativamente diferente de intercâmbio entre os homens e a natureza,

no seu processo de produção e reprodução. Leiamos mais uma vez o que

afirma Mészáros (ibid., 43-4):

A natureza da nova forma [isto é, a comunidade

humana emancipada] pode ser resumida, citando

as palavras de Marx, como um sistema baseado

em ―um plano geral de indivíduos livremente

combinados‖. Isso quer dizer, em termos mais

simples, a substituição das cadeias de trabalho

impostas pelo capital pelos elos cooperativos dos

indivíduos e os vários grupos a que eles

pertencem. Por meio dessa mudança qualitativa,

eles terão condições de estabelecer uma forma

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superior e potencialmente muito mais produtiva

de coordenação geral do que a que é viável com

base no controle externo autoritário da mão-de-

obra no sistema de trabalhos forçados do capital.

Só o controle sociometabólico instituído e realizado por

―indivíduos livremente combinados‖ pode garantir a sustentabilidade da

relação entre os seres humanos e a natureza. A sustentabilidade é

entendida por Mészáros, justamente, como o ―controle consciente do

processo de reprodução sociometabólica pelos produtores livremente associados‖ (ibid., 44). Deve ficar claro, também, nesse contexto, por

tais palavras, a importância que o filósofo atribui ao tema do

planejamento para uma formação social e econômica socialista. A

sustentabilidade, diz ele, é inconcebível sem um sistema adequado de

planejamento que deve ser assentado, por sua vez, sobre uma

democracia substantiva levada a efeito pelos produtores de maneira

livre e autônoma.

O tema do planejamento, em Mészáros, pode ser melhor

compreendido se vinculado a outro, com o qual mantém íntima relação,

e que é tratado pelo filósofo na seqüência: a contabilidade socialista.81

Que vem a ser isto? Para se realizar o planejamento que garante a

sustentabilidade e a igualdade substantiva, a forma de contabilidade a

ser empregada não pode ser aquela quantitativamente definida, tal como

é utilizada pelo capital. Ela deve ser de um tipo que organize as trocas

entre os indivíduos a partir de parâmetros qualitativos, a fim de se poder

assim combater as práticas que combinam ao mesmo tempo desperdício,

abundância e escassez, como vemos em nossos dias. Segundo o filósofo

húngaro, de acordo com o já estabelecido a respeito da igualdade

substantiva, a troca de mercadorias deve ser substituída pela ―troca de

atividades entre indivíduos autogeridos, como proposto por Marx‖

(ibid., 49).

Mészáros (ibid., 46-7) sintetiza assim suas idéias a respeito de

tal questão:

O processo genuíno e viável de planejamento de

um novo modo de reprodução sociometabólica se

81

Note-se que estes temas – igualdade substantiva, sustentabilidade, planejamento,

contabilidade, etc. - já apareceram antes, em Para além do capital. Aqui, contudo, são

retomados e melhor detalhados. Acreditamos que esta Introdução a O poder da ideologia é o texto mais esclarecedor, dentre todos os de Mészáros, desses pontos específicos da sua teoria

política.

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distingue das formas conhecidas de planejamento

parcial e superposto por ser firmemente orientado

por uma contabilidade socialista qualitativamente

diferente, em contraste com a fetichista estreiteza

quantificadora das variedades passadas.

É ela que reúne as duas principais dimensões do

tempo – o tempo de vida dos indivíduos

particulares e as mais vastas determinações

temporais de sua sociedade. A contabilidade

socialista é impensável sem um processo de

planejamento em que os objetivos adotados,

baseados nas necessidades dos indivíduos – em

sua grande variedade e potencial dinâmico para

ativar completamente as pessoas envolvidas no

atendimento de suas próprias necessidades -,

aglutinam-se num modo viável de ação coletiva. É

o que dá significado ao ―plano geral de indivíduos

livremente combinados‖.

A questão é em si eminentemente qualitativa,

porque tanto as necessidades dos indivíduos (que

são qualitativamente diferentes por sua própria

natureza) e as condições para sua realização

exigem trocas contínuas (verdadeiramente não

conflitantes e, portanto, mutuamente

modificáveis) entre os indivíduos

cooperativamente associados dentro de uma

estrutura social completamente adaptável. Os

resultados dessas trocas podem ser flexivelmente

modificados à luz do reexame racional do

resultado das políticas livremente adotadas, em

contraste com o ―tráfego em mão única‖,

predeterminado estruturalmente, de todos os

sistemas que são comandados de cima.

Nessa forma alternativa de contabilidade, a troca de atividades é

que baliza as relações sociais, e não a troca de mercadorias, tal como é

praticado no sistema do capital. Mészáros trata aqui, então, de forma dialética e inter-relacionada os temas da igualdade substantiva,

sustentabilidade, planejamento, contabilidade e troca socialistas. O

sistema do capital, enquanto modo de controle hierarquicamente

estruturado sobre o metabolismo social, incontrolável em si mesmo,

destrutivo, perdulário, substantivamente desigual e insustentável, deve

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ser enfrentado e superado por uma estratégia adequada, onde a

produtividade e o consumo sejam organizados não de forma quantitativa

e alienada, mas qualitativa e não-alienada; onde as necessidades e

capacidades humanas – e não as do capital – estejam na base da

estruturação da atividade produtiva, das trocas e da contabilidade, onde

haja, finalmente, a igualdade de prazeres e trabalhos, diferentemente da

igualdade de tarefas e coisas consumíveis, tal como é vigente na

formação social atualmente estabelecida.

É com vistas à realização desse novo modo de organização

social e à estruturação de uma nova forma de controle sociometabólico

que o papel da educação é fundamental. Mészáros afirma que, sem uma

concepção de educação coerente com tais princípios estratégicos, a

superação da ordem existente não é possível. Que educação é essa? Com

certeza, bem diferente da que está de acordo com os imperativos de

expansão do capital, feita ―de cima pra baixo‖, com conteúdos,

interesses, valores, atividades pré-estabelecidas e adequadas às

exigências do sistema e comandada por um professor, uma escola, uma

instituição, que recolhem em si toda a atividade e iniciativa inerente às

práticas educacionais.

Contrariamente a isso, a educação para a superação do sistema

do capital que Mészáros (ibid., 48-9) propõe é

a auto-educação cooperativamente administrada

dos produtores livremente associados, inspirada

por, e orientada para, a produção e satisfação de

suas necessidades genuínas – não há como sair do

circuito vicioso da produção de escassez em

escala sempre crescente. Na ausência da auto-

educação cooperativa de iguais capazes de

compreender o significado real de economia, tudo

continuará à mercê dos interesses investidos na

reprodução máxima de necessidades artificiais,

inseparáveis da perpetuação lucrativa da escassez.

[…]

A nova concepção de educação não é confinada a

um número limitado de anos na vida dos

indivíduos, mas, em virtude de suas funções

radicalmente alteradas, refere-se à vida inteira. A

―auto-educação de iguais‖ e a ―auto-gestão da

ordem reprodutiva social‖ não podem ser

separadas uma da outra. A auto-gestão - pelos

indivíduos associados – das funções vitais do

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processo sociometabólico é um empreendimento

contínuo, e inevitavelmente em mudança. O

mesmo se aplica às práticas educacionais, pois são

elas que permitem aos indivíduos executar essas

funções constantemente redefinidas de acordo

com as mudanças requeridas das quais são os

agentes ativos. Nesse sentido, a educação é

verdadeiramente uma ―educação continuada‖.

Não pode ser ―vocacional‖ (o que nas nossas

sociedades significa confinar as pessoas em

funções utilitárias estritamente predeterminadas,

desprovidas de todo poder de decisão), nem

―geral‖ (que deve ensinar aos indivíduos, de

forma condescendente, as ―técnicas de pensar‖)

[…]. Em contraste, a ―educação continuada‖,

como constituinte necessário dos princípios

reguladores socialistas, é inseparável da prática

significativa da autogestão. É parte fundamental

desta última por representar, por um lado, a fase

formativa na vida dos indivíduos autogeridos, e,

por outro, por tornar possível uma realimentação

positiva dos indivíduos educacionalmente

enriquecidos, com suas necessidades mutantes e

eqüitativamente redefinidas, para a determinação

geral dos princípios e objetivos orientadores da

sociedade.

A auto-educação dos iguais não pode, portanto, estar separada

da auto-gestão social dos produtores livremente associados. Ambas as

atividades se articulam e se complementam dialeticamente. Por essas

simples afirmações, percebe-se, mais uma vez, o peso imenso que

Mészáros atribui à educação, elencando-a como um elemento

fundamental dentro de uma teoria política revolucionária. A educação

socialista é aquela que se compõe no interior de um projeto mais amplo

de reestruturação radical da sociedade, que deve superar os

antagonismos do sistema do capital e erigir uma sociedade autogerida,

sustentável, livre dos antagonismos econômicos, sociais, políticos e

culturais presentes na ordem atual.

Mészáros, portanto, quando fala em educação, tem como horizonte a auto-gestão da ordem reprodutiva social, onde deve imperar

a coordenação horizontal geral das atividades, base da ―nova forma

histórica‖. É no interior de tais determinações que o filósofo húngaro

tenta inserir a prática específica da educação.

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Depois disso, mais dois pontos de máxima importância são

afirmados dentro de sua teoria política: os concernentes ao sujeito social

da emancipação e à forma da ação necessária para a práxis revolucionária. Vejamos brevemente em que consistem essas reflexões.

A crise estrutural do sistema do capital deve ser enfrentada,

segundo Mészáros, ―por uma força capaz não somente da necessária

negação radical, mas também de instituir positivamente uma ordem

alternativa sustentável‖ (ibid., 50). Ao longo dos últimos anos, em

vários pontos do mundo, muitos movimentos sociais apareceram

empunhando a bandeira da necessidade do enfrentamento das forças

constitutivas da sociedade do capital.82

Uma variedade composta de

distintos agrupamentos tomando as ruas com o objetivo de denunciar as

mazelas engendradas pela sociedade burguesa e protestar contra a ordem

estabelecida. Como explica o filósofo húngaro, tais grupos ―encararam

algumas questões realmente fundamentais de nosso tempo, desde as

decisões econômicas adotadas da forma autoritária usual em reuniões

governamentais de cúpula e em congressos pré-fabricados da OMC até

o anúncio cínico de guerras baseadas em pretextos totalmente falsos‖

(ibid., 51).

Com o surgimento desses movimentos de luta, diz Mészáros, o

que se impõe na agenda histórica é exatamente a necessidade de uma

―combinação de grupos de protesto multifacetados‖, onde devem estar

incluídos todos aqueles que se encontram numa posição de antagonismo

estrutural em relação ao capital, desde os elementos radicais da esquerda

tradicional até os milhões de campesinos e de desempregados

espalhados pelo mundo e oprimidos pelo sistema. Essa articulação de

grupos diversificados deve ser capaz de formar ―uma força

emancipadora capaz de lutar conscientemente pela alternativa desejada‖

(ibid., 51). São estes, finalmente, que devem negar a ordem atual e

afirmar uma outra, qualitativamente diferente.

Durante muito tempo, diz o filósofo, as teorias políticas de

esquerda deixaram-se envolver por uma pressuposta certeza quanto ao

sujeito da emancipação. Mas este não pode de forma alguma ser

definido de forma arbitrária e voluntarística. O sujeito da emancipação,

esclarece Mészáros (ibid., 51),

82

Lembre-se que o título do ensaio é Outro mundo é possível e necessário, uma retomada

criativa do slogan principal do Fórum Social Mundial. Mészáros está, aqui, certamente, pensando, sobretudo, no movimento altermundista, que se reuniu em torno desse grande

evento.

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só estará apto para criar as condições do sucesso

se abranger a totalidade dos grupos sociológicos

capazes de se aglutinar em uma força

transformadora efetiva no âmbito de um quadro

de orientação estratégica adequado. O

denominador comum ou o núcleo estratégico de

todos esses grupos não pode ser o ―trabalho

industrial‖, tenha ele colarinho branco ou azul,

mas o trabalho como antagonista estrutural do

capital. Isto é o que combina objetivamente os

interesses variados e historicamente produzidos da

grande multiplicidade de grupos sociais que estão

do lado emancipador da linha divisória das classes

no interesse comum da alternativa hegemônica do

trabalho à ordem social do capital. Pois todos

esses grupos devem desempenhar seu importante

papel ativo na garantia da transição para uma

ordem qualitativamente diferente.

Uma articulação de grupos sociais diversos, com interesses

certamente variados, mas que estejam numa posição estruturalmente

antagônica em relação ao capital, que possam se aglutinar por isso em

torno do objetivo de realizar uma alternativa viável ao sistema, e que

estejam, nesse movimento, amparados por um quadro de orientação

estratégica adequado. O sujeito da emancipação, diz Mészáros, não pode

deixar estar composto por tais elementos.

É a consciência do interesse comum objetivo – isto é, o

interesse de se libertar da degradante estrutura de relacionamento social

organizada em torno das determinações do capital, à qual todos estão

invariavelmente aprisionados - que torna possível a identificação das

demandas vitais de nosso tempo, em redor das quais a multiplicidade de

grupos sociais pode ser reunida. Afirma o filósofo (ibid., 51):

Essa é a base sobre a qual é possível superar os

interesses conflitantes de grupos de trabalhadores

secionalmente opostos, antecipando de modo

realista a rearticulação bem-sucedida do

movimento socialista com o objetivo de combinar

grupos extremamente variados em um sujeito

social emancipador verdadeiramente abrangente.

É dessa maneira que o trabalho pode se articular para enfrentar

o capital. Não há um único sujeito que deve se estabelecer para a

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resistência e a luta. O sujeito é, necessariamente, plural, ou seja,

constitui-se pela multiplicidade de grupos sociais alijados do controle

sobre a dinâmica sociometabólica da humanidade e que está, por isso,

―do lado emancipador da luta de classes‖. O sujeito social da

emancipação assim formado deve buscar superar, nesse contexto, o

antagonismo entre partido e o ―interesse comum objetivo‖ da classe. O

partido, diz Mészáros, para poder servir como instrumento de uma

práxis emancipadora, não pode estar separado dos grupos sociais

estruturalmente contrapostos ao capital.

E é preciso, finalmente, que esse sujeito plural dê origem a um

novo modo de operação, onde o movimento socialista apareça de uma

forma radicalmente rearticulada. Esse novo modo de operação não pode

espelhar, na luta contra a ordem vigente, a maneira de se estruturar do

próprio capital – isto é, hierarquicamente. Apesar de, em momentos

anteriores da luta de classes, em virtude do tremendo peso das condições

objetivas vigentes, isso ter sido necessário, a emergente e multifacetada

força social emancipadora só conseguirá ter êxito em seus propósitos no

presente se se articular a partir de princípios radicalmente diferentes de

ação e de organização.

A reconstrução do próprio movimento socialista já deve estar

baseada, assim, na igualdade substantiva, que é totalmente diferente da

forma inalteravelmente hierárquica de realização do capital. Isso

significa que a estruturação interna do movimento necessita apresentar,

em seu processo constitutivo, ―prenúncios de uma nova forma –

genuinamente associativa – de cumprir as tarefas que possam se

apresentar‖ (ibid., 52).

Mészáros traz, aqui, ao centro do debate o conceito de

participação, que vale tanto para o novo movimento de luta quanto para

a sociedade emancipada do futuro. E o filósofo define bem o que está

querendo dizer com tal termo. Segundo ele (ibid., 52), a participação

não é apenas um envolvimento mais ou menos

limitado em discussões, geralmente reduzidas ao

ritual vazio da ―consulta‖ (seguido pelo superior

descaso), mas a aquisição progressiva dos

poderes alienados de tomada de decisão [grifo

nosso] por parte do antagonista estrutural do

capital que se transforma, no devido tempo, em

corpo social de produtores livremente associados.

Numa sociedade emancipada, a participação significará,

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portanto, justamente, ―o exercício criativo, em benefício de todos, dos

poderes de tomada de decisão adquiridos, trazendo à tona os ricos

recursos humanos dos indivíduos, reunidos a um ponto jamais sonhado

nas formas anteriores de sociedades‖ (ibid., 52).

É desse modo, garante Mészáros, que a sociedade emancipada

poderá conjugar o princípio da autonomia significativa com a

necessidade de coordenação estrutural horizontal geral do metabolismo

social humano. ―Somente assim se concebe a transformação da operação

do processo sociometabólico de reprodução num todo integrado – por

ser coerente e cooperativo, e não dilapidado e antagônico – e libertador‖

(ibid., 52-3).

O filósofo conclui, então, seu ensaio afirmando as necessidades

de: 1) reconstruir a solidariedade entre as forças que lutam pela

concretização de uma ordem alternativa; e 2) ativar o poder da ideologia emancipadora, pois, na sua visão (ibid., 54)

sem esta, as classes trabalhadoras dos países

capitalistas avançados não serão capazes de se

tornar ―conscientes de seus interesses‖, muito

menos de ―lutar por eles‖ – em solidariedade e

espírito de efetiva cooperação com as classes

trabalhadoras das ―outras‖ partes do único mundo

real – até uma conclusão positiva.

Como já deve estar claro pelo que foi exposto nesta

investigação, a formação dessa ideologia emancipadora, organizada a

partir das coordenadas acima explicitadas, é uma das tarefas precípuas

da ―auto-educação permanente dos iguais‖.

Devemos passar agora ao escrito seguinte da obra de Mészáros,

onde a educação aparece como problema central: A educação para além

do capital, texto que veio à luz em 2004, elaborado para uma

conferência a ser proferida no Fórum Mundial de Educação, em Porto

Alegre.83

Nesse ensaio, a reflexão do filósofo se realiza no sentido de

mostrar a importância da educação para um projeto político

revolucionário, ampliar o sentido dessa educação e da aprendizagem - a

fim de deixar de identificá-las somente com as dimensões formais de

ensino - e, finalmente, relacionar a atividade educativa com o processo de internalização, isto é, com a forma como os seres humanos

83

Pela Editora Boitempo, o texto foi lançado pela primeira vez em 2005. A versão que

utilizamos aqui é a que constitui o capítulo 8 de MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do

tempo histórico (São Paulo: Boitempo, 2007).

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ativamente se apropriam de todo tipo de criação histórica desenvolvida

pela humanidade no processo de produção e reprodução de sua vida

social.

A concepção de que a aprendizagem não se resume ao âmbito

da escola fica evidente já na passagem de Paracelso que Mészáros toma

como uma das epígrafes escolhidas para o ensaio: ―A aprendizagem é a

nossa própria vida, desde a juventude até a velhice, de fato quase até a

morte: ninguém passa dez horas sem nada aprender‖. A segunda

epígrafe, de José Marti, também deve ser mencionada, pois

complementa a anterior: ―A educação começa com a vida, e só acaba

com a morte‖. A terceira passagem, que finalmente completa o conjunto

de epígrafes, é a celebre crítica de Marx, nas Teses sobre Feuerbach, da

concepção iluminista de mundo – que divide a sociedade em duas

partes, os homens e as circunstâncias, os educadores e os educandos – e

a conseqüente afirmação da práxis revolucionária como única forma de

se fazer coincidir a modificação dos homens com a modificação das

circunstâncias:

A teoria materialista de que os homens são

produto das circunstâncias e da educação e de

que, portanto, homens modificados são produto de

circunstâncias diferentes e de educação

modificada, esquece que as circunstâncias são

modificadas precisamente pelos homens e que o

próprio educador precisa ser educado. Leva, pois,

forçosamente à divisão da sociedade em duas

partes, uma das quais se sobrepõe à sociedade.

[…] A coincidência da modificação das

circunstâncias e da atividade humana só pode ser

apreendida e racionalmente compreendida como

prática transformadora. (MARX, apud Mészáros,

2007, 195)

Fica assim claro, desde o início, que a educação, para

Mészáros, confunde-se com a própria práxis revolucionária, ou, melhor,

está integrada nela como uma de suas partes fundamentais.84

Tal é a

premissa de que parte o filósofo húngaro. Vale a pena contemplar, pois, os desdobramentos da sua teoria em cada um dos tópicos em que está

subdividido o ensaio.

O primeiro dos itens tem o título A incorrigível lógica do

84

Como vimos, esta é uma tese defendida pelo filósofo desde A teoria da alienação em Marx.

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capital e seu impacto sobre a educação. Seus objetivos são,

precisamente: 1) esclarecer em que consiste a essência do movimento do

capital em nossos dias; 2) como esse sistema conforma a educação de

modo a fazer que ela contribua para a realização das suas exigências; e

3) mostrar que uma transformação radical da educação exige também

uma modificação profunda do sistema de reprodução sociometabólica

ao qual ela está atrelada.

A educação, por si só, assevera o filósofo, não pode mudar o

mundo, não pode ―corrigir‖ o capital. Este sistema é, na verdade, uma

estrutura de controle hierarquicamente estabelecida sobre a atividade

produtiva. É ele que regula, inclusive, nesse contexto, até mesmo os

processos formais de aquisição de conhecimentos e valores. Apesar de

não ser absoluto, tal controle é efetivo. O capital é, pois, em si mesmo,

um conjunto de relações sociais que se desdobra automaticamente e que

é, por isso, impossível de ser ―domado‖ por algum elemento constituinte

de sua estrutura. Como explica Mészáros (ibid., 197-8),

A razão para o fracasso de todos os esforços

anteriores, e que se destinavam a instituir grandes

mudanças na sociedade por meio de reformas

educacionais lúcidas, reconciliadas com o ponto

de vista do capital, consistia – e ainda consiste –

no fato de as determinações fundamentais do

sistema do capital serem irreformáveis. Como

sabemos muito bem pela lamentável história da

estratégia reformista, que já tem mais de cem

anos, desde Edward Bernstein e seus

colaboradores – que outrora prometiam a

transformação gradual da ordem capitalista numa

ordem qualitativamente diferente, socialista -, o

capital é irreformável porque, pela sua própria

natureza, como totalidade reguladora sistêmica, é

totalmente incorrigível. Ou bem tem êxito em

impor aos membros da sociedade, incluindo-se as

personificações ―carinhosas‖ do capital, os

imperativos estruturais do seu sistema como um

todo ou perde a sua viabilidade como regulador

historicamente dominante do modo bem-

estabelecido de reprodução metabólica universal e

social. Conseqüentemente, em seus parâmetros

estruturais fundamentais, o capital deve

permanecer sempre incontestável, mesmo que

todos os tipos de corretivo estritamente marginais

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sejam não só compatíveis com seus preceitos, mas

também benéficos, e realmente necessários a ele

no interesse da sobrevivência continuada do

sistema. Limitar uma mudança educacional

radical às margens corretivas interesseiras do

capital significa abandonar de uma só vez,

conscientemente ou não, o objetivo de uma

transformação social qualitativa. Do mesmo

modo, contudo, procurar margens de reforma

sistêmica na própria estrutura do sistema do

capital é uma contradição em termos. É por isso

que é necessário romper com a lógica do capital

se quisermos contemplar a criação de uma

alternativa educacional significativamente

diferente.

A educação não pode, portanto, estar resumida à sua dimensão

formal se quer auxiliar na superação da ordem do capital. Não é a

educação formal que vai revolucionar a sociedade – assim como

também não é a política formal, institucional. Essas atividades devem

ser entendidas a partir de uma perspectiva mais ampla, que compreenda

criticamente a estrutura do capital como um sistema antagônico de

mediações que regulam o sociometabolismo humano, para assim se

articularem de uma forma coerente e radical como projeto, justamente,

de afirmação de novas mediações, que concentre assim o seu potencial

crítico na raiz dos problemas que afetam a humanidade. O capital é,

como dissemos, um modo de controle que não se deixa controlar. As

tentativas de reformá-lo são, por isso, nesse sentido, impossíveis.

Somente o rompimento total com essa lógica que governa as relações

produtivas na formação social vigente pode nos levar no rumo da

emancipação humana.

As soluções reformistas, iluministas e utópicas, com o

gradualismo e parcialidade que lhe são inerentes, são todas elaboradas,

diz Mészáros, a partir do ponto de vista do capital. Por esse motivo, não

conseguem enxergar a incontrolabilidade do sistema. Tanto essas

propostas, quanto o ponto de vista que lhes fundamenta, devem ser

descartadas. Apenas partindo-se de um horizonte social e intelectual

diverso é que se chega à compreensão de que o que deve ser buscado

não é o controle do capital e sim a sua superação. A educação pode

colaborar para esse fim, garante o filósofo (ibid., 2001), na medida em

que conseguir

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rasgar [a] camisa-de-força da lógica incorrigível

do sistema [e] perseguir de modo planejado e

consistente uma estratégia de rompimento do

controle exercido pelo capital, com todos os meios

disponíveis, bem como com todos os meios ainda

a ser inventados e que tenham o mesmo espírito.

Isto posto, sigamos ao item posterior do ensaio, intitulado As

soluções não podem ser apenas formais: elas devem ser essenciais,

onde são aprofundadas tais reflexões.

O papel da educação dentro da sociedade do capital, explica o

filósofo, é fornecer o conhecimento, os valores, os interesses e o pessoal

que vai realizar as exigências de reprodução desse sistema. A educação

formal funciona, assim, ―em sintonia com as determinações

educacionais gerais da sociedade como um todo‖ (ibid., 206). Do ponto

de vista da ordem dominante, a questão crucial é assegurar que cada

indivíduo assuma como o sentido de sua existência realizar os

imperativos práticos que auxiliem para garantir a continuidade do

complexo mais amplo dentro do qual vivem. Mas a assunção desses

imperativos não se dá única e exclusivamente através da escola ou da

universidade, e sim por intermédio da internalização ativa que ocorre

em todas as relações sociais fundamentais em que os indivíduos

participam, e onde prevalece, justamente, o domínio do capital. Por essa

razão, é preciso compreender o ―sentido verdadeiramente amplo do

termo educação‖ (ibid., 206.). O sentido assim ampliado da educação,

estabelecido por Mészáros, tem a ver exatamente com a internalização

que se verifica por meio de todas as atividades que os sujeitos

desempenham em sociedade ao longo da vida, e não apenas nas

instituições de ensino. Como explica o filósofo húngaro (ibid., 206-7),

As instituições formais de educação certamente

são uma parte importante do sistema global de

internalização. Mas apenas uma parte [grifo

nosso]. Quer os indivíduos participem ou não –

por mais ou menos tempo, mas sempre em

número de anos bastante limitado – das

instituições formais de educação, eles devem ser

induzidos a uma aceitação ativa (ou mais ou

menos resignada) dos princípios reprodutivos

orientadores dominantes na própria sociedade,

adequados a sua posição na ordem social e de

acordo com as tarefas reprodutivas que lhe foram

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atribuídas. Sob as condições de escravidão ou

servidão feudal isto é, naturalmente, um problema

bastante diferente daquele que deve vigorar no

capitalismo, mesmo que os trabalhadores não

sejam (ou sejam muito pouco) educados

formalmente. Todavia, ao internalizar as

onipresentes pressões externas, eles devem adotar

as perspectivas globais da sociedade

mercantilizada como inqüestionáveis limites

individuais a suas aspirações pessoais. Apenas a

mais consciente das ações coletivas poderá livrá-

los dessa grave e paralisante situação.

Nessa perspectiva, fica bastante claro que a

educação formal não é a força ideológica primária

que consolida o sistema do capital; tampouco ela é

capaz de, por si só, fornecer uma alternativa

emancipadora radical. Uma das funções principais

da educação formal nas nossas sociedades é

produzir tanta conformidade ou ―consenso‖

quanto for capaz, a partir de dentro e por meio dos

seus próprios limites institucionalizados e

legalmente sancionados. Esperar da sociedade

mercantilizada uma sanção ativa – ou mesmo

mera tolerância – de um mandato que estimule as

instituições de educação formal a abraçar

plenamente a grande tarefa histórica do nosso

tempo, ou seja, a tarefa de romper com a lógica

do capital no interesse da sobrevivência humana,

seria um milagre monumental. É por isso que,

também no âmbito educacional, as soluções ―não

podem ser formais; elas devem ser essenciais‖.

Em outras palavras, elas devem abarcar a

totalidade das práticas educacionais da sociedade

estabelecida.

Portanto, o problema da educação é o problema da

internalização.85

A internalização diz respeito à apropriação ativa e

reprodução no plano da subjetividade das relações sociais objetivas, com seus conseqüentes imperativos, pressões, valores e interesses

constituídos de acordo com uma lógica que está atrelada ao controle do

85

Desnecessário dizer, mais uma vez, que este é um tema discutido por Mészáros, como

mostramos, desde seus escritos datados da década de 1960 e 1970.

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metabolismo social. Esse metabolismo é subordinado, em nossos dias,

aos imperativos do sistema do capital. Romper com tal sistema não

depende só de mudanças no plano da educação formal. Exige, isto sim,

que se modifique ―de cima a baixo‖ a forma como os sujeitos sociais

agem, se relacionam, se apropriam e internalizam as suas próprias

elaborações objetivas no processo de produção e reprodução das suas

vidas. A educação buscada pelos socialistas não pode deixar de ter essa

consciência.

Um projeto de educação revolucionária deve abarcar não

somente aquilo que é feito na escola, mas todo o conjunto de atividades

que define o sistema social, que deve ser transformado radicalmente. É

por isso que Mészáros afirma que não basta reformar a escola, visto

que, se a transformação se restringir ao âmbito das instituições de

ensino, aquilo que existia antes dessa reforma poderá retornar, mais

cedo ou mais tarde. Como explica coerentemente o autor de A educação

para além do capital (ibid., 207):

O que precisa ser confrontado e alterado

fundamentalmente é todo o sistema de

internalização, com todas as suas dimensões,

visíveis e ocultas. Romper com a lógica do capital

na área da educação equivale, portanto, a

substituir as formas onipresentes e profundamente

enraizadas de internalização mistificadora por

uma alternativa concreta abrangente.

No tópico seguinte, intitulado A aprendizagem é a nossa própria vida, desde a juventude até a velhice - uma referência, mais

uma vez, à citação de Paracelso tomada como epígrafe do ensaio -, o

filósofo húngaro aprofunda essa teorização sobre a internalização.

Mészáros insere agora tal questão na reflexão sobre o problema da

relação de reciprocidade dialética que existe entre cultura e história.

É certo, pois, que os homens são aquilo que fazem de si mesmos

a partir das condições a eles transmitidas pelas gerações passadas. A

formação das idéias, símbolos, significados, cultura em geral, emerge

dessa dinâmica material sócio-reprodutiva. Mas tal relação não é

unilateral, não tem um sentido único e linear. É, isto sim, dialética. A

cultura, formada no interior do processo de produção e reprodução das

condições materiais de existência, volta a interferir sobre essa mesma

realidade. Mészáros, assim, na esteira de Marx, reforça a tese de que

uma ideologia pode contribuir para manter ou para transformar um

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determinado status quo social.

As formações ideológicas, contudo, não podem ser mudadas

simplesmente segundo a vontade de uma entidade especial, apartada da

coletividade. Em outras palavras, tais modificações não podem vir ―de

cima‖, isto é, por parte de políticos ou de intelectuais de qualquer tipo.

As idéias se transformam apenas na medida em que se modificam

radicalmente as formas de agir e se relacionar em sociedade. A questão

decisiva, para Mészáros, é, então, como foi dito, transformar o modo de

internalizar o mundo sócio-histórico. E isso só pode ser feito a partir de

um esforço coletivo, prático e material. Como diz o filósofo húngaro

(ibid., 210-1),

a questão fundamental é a necessidade de

modificar, de uma forma duradoura, o modo de

internalização historicamente prevalecente.

Romper a lógica do capital no âmbito da educação

é absolutamente inconcebível sem isso. E, mais

importante, essa relação pode e deve ser expressa

também em uma forma concreta. Pois através de

uma mudança radical no modo de internalização

agora opressivo, que sustenta a concepção

dominante do mundo, o domínio do capital pode

ser e será quebrado.

Talvez se possa chamar essa formulação de ―teoria ampliada da

educação‖, visto que o próprio Mészáros se refere a ela nesses termos –

p. ex.: ―Nunca é demais salientar a importância estratégica da

concepção mais ampla da educação [grifo nosso]‖ (ibid., 211). A

educação - internalização, aprendizagem, apropriação do mundo

humano, etc. - não se restringe, portanto, àquilo que é feito nos estreitos

limites do ambiente formal de ensino. Conceber as coisas dessa maneira

seria um equívoco completo por parte dos socialistas. Ao contrário, os

processos educacionais, como explica Mészáros (ibid., 211),

comportam tudo, desde o surgimento de nossas

respostas críticas em relação ao ambiente material

mais ou menos carente em nossa primeira

infância, do nosso primeiro encontro com a poesia

e a arte, passando por nossas diversas experiências

de trabalho, sujeitas a um escrutínio racional, feito

por nós mesmos e pelas pessoas com quem as

partilhamos e, claro, até o nosso envolvimento, de

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muitas diferentes maneiras e ao longo da vida, em

conflitos e confrontos, inclusive as disputas

morais, políticas e sociais dos nossos dias. Apenas

uma pequena parte disso tudo está diretamente

ligada à educação formal. Contudo, os processos

acima descritos têm uma enorme importância, não

só nos nossos primeiros anos de formação, como

durante a nossa vida, quando tanto deve ser

reavaliado e trazido a uma unidade coerente,

orgânica e viável, sem a qual não poderíamos

adquirir uma personalidade e nos

fragmentaríamos em pedaços sem valor,

deficientes mesmo a serviço de objetivos

sociopolíticos autoritários.

Não é demais frisar, então, que a educação que o projeto

socialista deve ter em mente necessita transcender os limites da escola,

isto é, deve se voltar para o mundo da atividade sócio-reprodutiva humana e tomá-lo como objeto de sua atenção. Aí, desde os encontros

com a poesia e a arte, passando pelo trabalho e indo até os confrontos e

conflitos morais, sociais e políticos, a forma de atividade, para poder

emancipar a humanidade do domínio do capital, precisa ser

radicalmente diferente daquelas ações que meramente realizam os

imperativos do sistema.

Limitar a nova forma revolucionária de educação – apropriação

ativa do mundo – ao âmbito das instituições formais seria, nesse sentido,

um tremendo engano, visto que, como explica Mészáros (ibid., 212),

da maneira como as coisas estão hoje, a principal

função da educação formal é agir como um cão-

de-guarda ex-offício e autoritário para induzir um

conformismo generalizado em determinados

modos de internalização, de forma a subordiná-los

às exigências da ordem estabelecida. O fato de a

educação formal não poder ter êxito na criação de

uma conformidade universal não altera o fato de,

no seu todo, ela estar orientada para aquele fim.

Os professores e alunos que se rebelam contra tal

desígnio fazem-no com a munição que adquiriram

tanto dos seus companheiros rebeldes, dentro do

domínio formal, quanto a partir da área mais

ampla da experiência educacional ―desde a

juventude até a velhice‖.

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A reversão da forma de internalização que realiza os

imperativos de extração de trabalho excedente é chamada por Mészáros

de contra-internalização, uma atividade que necessariamente deve

negar o conjunto de mediações que compõe o capital e criar um outro

modo de relacionamento social-humano ―concretamente sustentável ao

que já existe‖ (ibid., 212). A educação revolucionária dos trabalhadores

precisa, então, abarcar a totalidade das práticas político-educacionais-culturais, organizando-as no sentido de que possam auxiliar na

superação do sistema existente. Esse movimento prático de negação de

uma ordem fetichista e alienadora e a conseqüente afirmação de uma

outra, qualitativamente diferente, sustentável e emancipada, exige essa

contra-internalização (ou contraconsciência), sem a qual a tarefa da

construção do socialismo não é possível.

À educação formal cabe, então, duas tarefas precípuas: 1)

Romper com a lógica do capital nas suas atividades constituintes (no

âmbito da própria instituição – por exemplo, ir além das atividades

estruturadas hierarquicamente, ―de cima para baixo‖); e 2) Abrir-se para

articular-se com todos os demais tipos de atividades político-

educacionais-revolucionárias não formais. Nas palavras de Mészáros

(ibid., 214):

os princípios orientadores da educação formal

devem ser desatados do seu tegumento da lógica

do capital, de imposição de conformidade, e em

vez disso mover-se em direção a um intercâmbio

ativo e efetivo com práticas educacionais mais

abrangentes. Eles (os princípios) precisam muito

um do outro. Sem um progressivo e consciente

intercâmbio com processos de educação

abrangentes como ―a nossa própria vida‖, a

educação formal não pode realizar as suas muito

necessárias aspirações emancipadoras. Se,

entretanto, os elementos progressistas da educação

formal forem bem-sucedidos em redefinir a sua

tarefa num espírito orientado em direção à

perspectiva de uma alternativa hegemônica à

ordem existente, eles poderão dar uma

contribuição vital para romper a lógica do capital,

não só no seu próprio e mais limitado domínio,

mas também na sociedade como um todo.

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Tais são as possibilidades e os princípios que devem orientar a

educação formal realizada numa perspectiva revolucionária.

Estabelecidos esses pontos, Mészáros passa a sintetizar a sua teorização

―ampliada‖ da educação transformadora. O tópico seguinte, intitulado A

educação como ―transcendência positiva da auto-alienação do

trabalho‖ tem justamente esse propósito.86

Sigamos uma vez mais o

raciocínio do filósofo húngaro.

Superar o capital exige intervenções conscientes em todos os

níveis da existência social humana. O sentido dessas intervenções deve

ser dado pelo objetivo da reestruturação radical da forma da organização

produtiva e reprodutiva, de modo a que se possa assim transcender

definitivamente a alienação e o fetichismo inerentes ao sistema de

exploração de trabalho excedente. Trata-se, pois, de arranjar uma nova

lógica capaz de reger o metabolismo social, por meio da qual os

antagonismos presentes na formação atualmente estabelecida possam ser

jogados ―na lata de lixo da história‖. Para tanto, é necessário levar a

efeito um conjuntos de ações que sejam eminentemente negativos do

atual estado de coisas, mas que não se limitem a essa negatividade, visto

que, como diz Mészáros, ―as formas de negação permanecem

condicionadas pelo objeto da sua negação‖ (ibid., 215). A estratégia

socialista precisa ser eminentemente afirmativa de uma ordem diferente.

Nesse movimento, o que cabe à educação realizar? Explica o filósofo

húngaro (ibid., 215):

é aqui que a educação – no sentido mais

abrangente do termo, tal como foi examinado

anteriormente – desempenha um importante papel.

Inevitavelmente, os primeiros passos de uma

grande transformação social na nossa época

envolvem a necessidade de manter sob controle o

estado político hostil que se opõe, e pela sua

própria natureza deve se opor, a qualquer idéia de

uma reestruturação mais ampla da sociedade.

Nesse sentido, a negação radical de toda a

estrutura de comando político do sistema

estabelecido deve afirmar-se, na sua inevitável

negatividade predominante, na fase inicial da

transformação a que se vise. Mas, mesmo nessa

fase, e na verdade antes da conquista do poder

político, a negação necessária só é adequada para

86

Novamente, um tema já antigo na reflexão de Mészáros.

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o papel assumido se for orientada efetivamente

pelo alvo global da transformação social visada,

como uma bússola para toda a caminhada.

Portanto, desde o início o papel da educação é de

importância vital para romper com a

internalização predominante nas escolhas políticas

circunscritas à ―legitimação constitucional

democrática‖ do Estado capitalista que defende

seus próprios interesses. Pois também essa

―contra-internalização‖ (ou contraconsciência)

exige a antecipação de uma visão geral, concreta e

abrangente, de uma forma radicalmente diferente

de gerir as funções globais de decisão da

sociedade, que vai muito além da expropriação, há

muito estabelecida, do poder de tomar todas as

decisões fundamentais, assim como das suas

imposições sem cerimônia aos indivíduos, por

meio de políticas como uma forma de alienação

por excelência na ordem existente.

Contudo, a tarefa histórica que temos de enfrentar

é incomensuravelmente maior que a negação do

capitalismo. O conceito para além do capital é

inerentemente concreto. Ele tem em vista a

realização de uma ordem social metabólica que

sustente concretamente a si própria, sem

nenhuma referência autojustificativa para os

males do capitalismo. Deve ser assim porque a

negação direta das várias manifestações de

alienação é ainda condicional daquilo que ela

nega e, portanto, permanece vulnerável em virtude

dessa condicionalidade.

A tarefa da educação é, portanto, muito grande e importante.

Ela precisa articular-se com todas as outras atividades sociais, políticas,

culturais, que estejam também orientadas para enfrentar o sistema do

capital. Deve contribuir para fazer vir à luz uma maneira de agir, de

relacionar-se, de apropriar-se, de internalizar o mundo humano, que seja

diferente da que é levada a cabo pelo atual sistema de exploração de

trabalho excedente. Necessita fundamentalmente auxiliar nas práticas de

negação da ordem estabelecida, bem como nas de afirmação da

comunidade humana emancipada, fato que só será possível se a

estratégia revolucionária de orientação de todas essas atividades

transformadoras estiver guiada pelo ―alvo global‖, pela ―visão geral,

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concreta e abrangente‖ da nova forma de controle sociometabólico a ser

estabelecida. É responsabilidade precípua, pois, da educação socialista,

tomada ―em seu sentido amplo‖, auxiliar na elaboração desse alvo global e na sua implementação prática.

O papel da educação para a política radical é, como fica

esclarecido, soberano. Ela participa em muitas esferas de crítica, sejam

elas teóricas ou práticas – essas dimensões na verdade não estão

separadas na práxis revolucionária –, da sociedade burguesa. A educação

pode, pois, auxiliar na construção da própria estratégia de superação do

sistema do capital, bem como na realização material das novas

mediações não antagônicas de regulação do metabolismo social. A

emancipação humana exige que tanto as condições reais de existência

quanto a consciência dos sujeitos envolvidos nesse projeto sejam

radicalmente modificadas. No processo de transformação socialista, diz

Mészáros, os indivíduos sociais necessitam se recriar consciente e

permanentemente. ―Portanto, não é surpreendente que na concepção

marxista a efetiva transcendência da auto-alienação do trabalho seja

caracterizada como uma tarefa inevitavelmente educacional‖ (ibid.,

217).

A transcendência positiva da auto-alienação do trabalho, isto

é, a realização da nova forma histórica, da comunidade humana

emancipada, depende, portanto, da universalização da educação – assim

concebida, como contra-internalização, como contraconsciência, como

parte essencial de uma práxis revolucionária -, bem como do trabalho

―altamente formativo em todos os sentidos e altamente revolucionário‖

– isto é, como uma forma de mediação não antagônica e

horizontalmente organizada de regulação do intercâmbio entre os

homens e a natureza.

A universalização da atividade produtiva e da educação assim

concebidas necessita ser orientada pelo objetivo de realizar a igualdade

substantiva, que é, como dissemos anteriormente, a superação da

igualdade formal levada a cabo pelo sistema do capital. Tais práticas

devem, pois, contribuir para a sustentabilidade, definida mais uma vez

por Mészáros (ibid., 220) como o

controle consciente do processo de reprodução

metabólica social por parte de ―produtores

livremente associados‖, em contraste com a

insustentável e estruturalmente estabelecida

conflitualidade/adversidade e a destrutividade

fundamental da ordem reprodutiva do capital. É

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inconcebível que se introduza esse controle

consciente dos processos sociais – uma forma de

controle, que por acaso também é a única forma

factível de autocontrole: o requisito necessário

para os ―produtores serem associados livremente‖

– sem ativar plenamente os recursos da educação

no sentido mais amplo do termo.

Daí a necessidade da instauração das novas mediações não

antagônicas de segunda ordem em lugar das já cristalizadas mediações

do capital, inerentemente antagônicas e essencialmente fetichistas. A

educação deve, pois, participar da elaboração dessas mediações e dos

valores adequados para a sua sustentação.

A educação para além do capital só pode se efetivar, enfim, se

for concebida como um processo de educação continuada atrelada aos

movimentos materiais que lutam pela transformação radical da ordem

sociometabólica vigente. Em verdade, essa educação, como mediação

específica, necessita estabelecer uma relação de reciprocidade dialética

com todas as demais mediações político-sociais atuantes no sentido da

revolução socialista. Nesse contexto, vale a pena ler mais uma vez o que

estabelece, sobre tais questões, o filósofo húngaro (ibid., 223):

A transformação social emancipadora radical

requerida é inconcebível sem uma concreta e ativa

contribuição da educação no seu sentido amplo,

tal como foi descrito neste texto. E vice-versa: a

educação não pode funcionar suspensa no ar. Ela

pode e deve ser articulada adequadamente e

redefinida constantemente no seu inter-

relacionamento dialético com as condições

cambiantes e as necessidades da transformação

social emancipadora e progressiva em curso. Ou

ambas têm êxito e se sustentam, ou fracassam

juntas.

A educação socialista é, pois, para Mészáros, como fica

claramente demonstrado, uma parte extremamente importante da

política revolucionária.87

87

Depois de havermos percorrido o percurso desde os textos mais antigos de Mészáros até

aqui, pode parecer algo repetitiva esta exposição. Contudo, é bastante proveitoso que isso se dê desse modo. A educação para além do capital é, como vimos, um brilhante ensaio de síntese

das concepções de Mészáros sobre a educação - e, quiçá, de sua obra como um todo -

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Neste percurso para o entendimento da concepção de Mészáros

acerca da educação revolucionária, devemos agora fazer um pequeno

parêntese para que possamos mencionar um artigo onde o filósofo não

trata desse tema, mas que enriquece sobremaneira a sua teoria política e,

desenvolvidas desde a década de 1960. A comparação deste com os escritos anteriores do autor pode lançar muitas luzes sobre o seu pensamento, como por exemplo, nas questões referentes

aos elementos de continuidade e descontinuidade em sua teoria e a compreensão daquilo que

apareceu de qualitativamente novo desde A teoria da alienação em Marx até aqui. Ademais, ler os textos dessa forma pode nos ajudar a superar certos equívocos interpretativos, como os que

são apresentadas por Emir Sader no Prefácio de A educação para além do capital. Quem lê

desavisadamente esse Prefácio pode ser levado a crer que as preocupações de Mészáros são as

mesmas de Sader, a saber: como fortalecer a esfera pública em contraposição ao domínio do

privado. Se não, vejamos: ―No reino do capital, a educação é, ela mesma, uma mercadoria. Daí

a crise do sistema público de ensino, pressionado pelas demandas do capital e pelo esmagamento dos cortes de recursos dos orçamentos públicos. Talvez nada exemplifique

melhor o universo instaurado pelo neoliberalismo, em que ‗tudo se vende, tudo se compra‘,

‗tudo tem preço‘, do que a mercantilização da educação. Uma sociedade que impede a emancipação só pode transformar os espaços educacionais em shoppings centers, funcionais à

sua lógica do consumo e do lucro. O enfraquecimento da educação pública, paralelo ao

crescimento do sistema privado, deu-se ao mesmo tempo em que a socialização se deslocou da escola para a mídia, a publicidade e o consumo‖ (Cf. SADER, 2005, 16). Desnecessário dizer

que os termos de referência e as preocupações de Mészáros são completamente outros. Em

primeiro lugar, porque não é o neoliberalismo que mercantiliza tudo – inclusive a educação -, e sim, nesse contexto, o sistema do capital. Em segundo lugar, a questão realmente importante

não é exatamente o ―enfraquecimento da educação pública‖ em comparação com o crescimento

do ensino privado. Ao colocar as questões desse modo, Sader tenta fazer-nos crer que a preocupação de Mészáros seria com um eventual fortalecimento do setor público em

contraposição ao setor privado – seria, portanto, combater precipuamente o ―neoliberalismo‖. Evidentemente, Mészáros não é tão ingênuo assim e não mistifica dessa maneira o setor

―público‖ (o Estado). Antes disso, está muito mais interessado em demonstrar como é o

sistema do capital – e não somente o ―neoliberalismo‖ -, incluindo-se aí o próprio Estado, que deve ser superado. A educação pode contribuir com esse propósito, desde que não se limite

apenas ao âmbito formal de ensino – note-se, então, que não se trata de colocar a questão em

termos de ―público‖ e ―privado‖ - e se volte para a formação das mediações materiais não antagônicas de regulação do sociometabolismo humano. E isso só pode ser feito se a educação

em questão for radicalmente crítica, isto é, articuladora teórico-prática de negação e afirmação

no sentido da construção do socialismo – ponto importantíssimo que nem sequer é tocado neste curioso prefácio. A preocupação de Mészáros, portanto, é em firmar uma educação

revolucionária, e não meramente ―pública‖. Ademais, em Para além do capital, o filósofo

húngaro deixa bem claro que o objetivo dos socialistas é a socialização do poder de decisão sobre todos os âmbitos da atividade humana, e não a estatização das coisas. Em terceiro lugar,

é um equívoco completo afirmar alguma coisa parecida com ―a socialização se deslocou da

escola para a mídia, a publicidade e o consumo‖. Na verdade, a socialização - isto é, o aprendizado das relações, normas e valores sociais, a internalização do mundo humano, a

apropriação ativa das produções histórico-culturais -, nunca poderia ter feito esse percurso

porque ela é, na verdade, como a educação, ―a própria vida‖, ou seja, se confunde com a própria vida, seja na escola ou fora dela. O referido Prefácio, portanto, desvia o foco da nossa

atenção para pontos que não são preocupações centrais de Mészáros. Constitui, enfim, o

cômico – ou tragicômico! - registro de um caso de prefaciador que apresentou como se fossem do prefaciado idéias que na verdade não lhe pertenciam. (Acreditamos que mistificação seja

um termo bastante apropriado para designar o sentido desse tipo de operação intelectual).

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justamente por esse motivo, nos diz respeito diretamente, visto que tais

formulações compõem o quadro conceitual mais amplo dentro do qual

suas reflexões acerca da educação se integrarão. O artigo em questão,

pouco conhecido, é Bolívar e Chávez: o espírito da determinação

radical,88

escrito em 2002, e que estabelece uma teorização importante

sobre o problema da possibilidade e da necessidade da revolução

socialista acontecer em pontos periféricos do sistema do capital, como a

América Latina, por exemplo.

Nesse texto, Mészáros afirma a exigência de se retomar o

espírito da determinação radical, isto é, um empenho firme dos povos

dominados em retomar conscientemente as rédeas de seu destino nas

mãos, com vistas à ―instauração da desejada alternativa hegemônica à

lei do capital cada vez mais aventureira e destrutiva‖ (2009, 108). A

reflexão do filósofo húngaro tem como base a história das lutas sociais

realizadas na América Latina contra as dominações imperialistas e

contra a ordem do capital.

O primeiro personagem célebre considerado é o venezuelano

Simon Bolívar, grande líder histórico dos processos de independência de

vários países latino-americano em relação ao domínio espanhol, que

defendia a igualdade como sendo ―a lei das leis‖, o principio

fundamental que uma sociedade deveria adotar a fim de garantir a

existência digna de todos os membros que a compõem. Mészáros

sustenta a vital importância do resgate dessas lutas históricas para os

socialistas, afirmando que todas as conquistas das gerações anteriores,

em termos de luta e experiência social e política, devem ser criticamente

incorporadas pelos movimentos atuais, a fim de que o rico arcabouço

daí surgido possa contribuir para que se instaure a comunidade humana

emancipada. Como diz o filósofo (2009, 95),

apenas a partir de uma apropriação significativa

da tradição progressista que precedeu as tentativas

em curso se poderão instaurar realizações radicais

duradouras – sustentadas cumulativa e

conscientemente – e seguir caminhando na mesma

direção, apesar de todas as adversidades. […]

Não podemos ter êxito se não construirmos

conscientemente sobre a herança que eles nos

88

O texto foi publicado no Brasil primeiramente na revista Margem Esquerda, nº 8, 2002. A

versão de que aqui nos servimos é a que foi lançada em MÉSZAŔOS, István. A crise estrutural

do capital. São Paulo: Boitempo, 2009.

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legaram algo como uma tarefa para o futuro

redefinida no presente, de acordo com as

circunstâncias vigentes.89

Depois de fazer uma breve retomada das idéias de Bolívar e

mencionar as lutas de José Martí - que seguiu em Cuba muitas das idéias

do libertador venezuelano -, Mészáros chega até os nossos dias,

passando a teorizar sobre a forma como o princípio da igualdade – que

deve ser transformado agora, de acordo com as condições presentes, em

imperativo de igualdade substantiva - pode se converter em princípio

orientador de uma prática político-social voltada para o objetivo de

construção de socialismo.90

Até aqui, portanto, nada de novo em relação ao que o filósofo já

havia desenvolvido em textos anteriores. Há um ponto do artigo,

contudo, que devemos considerar original e importante para o

entendimento da teoria política de Mészáros, a saber: a questão da

possibilidade de uma revolução socialista em países da periferia do

capitalismo. Afinal, é possível que uma transformação social de grande

envergadura tenha início em uma região marginal do sistema ou deve-se

esperar que esses processos radicais comecem em países hegemônicos

da ordem mundial? O antigo discípulo de Lukács (2009, 102) esclarece

que:

embora seja verdade que o socialismo como

ordem reprodutiva social alternativa deva ser

classificado como uma abordagem viável

universal, abrangendo também as áreas

capitalistas mais desenvolvidas do mundo,

incluindo os Estados Unidos, não podemos pensar

nesse problema em termos de uma seqüência

89

Tal proposta é reafirmada em texto recente, onde o filósofo proclama: ―en contraste con la

perpetuación del capital firmemente enraizado y los intereses jerárquicos creados cumplidos, sólo una aproximación radicalmente socialista puede prometer algunas respuestas viables e

históricamente sustentables a tan urgentes preguntas. Esto significa una aproximación basada

en un apasionado compromiso con los objetivos humanos de un futuro mejor y basada al mismo tiempo también en una evaluación crítica del pasado [grifos nossos]. En otras palabras,

los principios orientadores de una crítica no comprometida con el orden social reproductivo del

capital debe ser combinada con las potencialidades creativas de la auto-crítica atendiendo no solo a las razones emanadas de los fracasos del pasado sino también a las tentaciones

desviacionistas de la cotidianidad‖ (2010). 90

Para Mészáros, é o líder político venezuelano Hugo Chávez Frías que, em nosso tempo

histórico, tenta recuperar o espírito da determinação radical, manifestado anteriormente por

Bolívar e Martí, através de uma ―renovação criativa‖ do bolivarismo.

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temporal, de acordo com a qual uma futura

revolução social nos países de capitalismo

avançado tenha de tomar a precedência sobre a

possibilidade de mudança radical geral. Longe

disso [grifo nosso]. Visto que, diante da inércia

maciça gerada pelos interesses adquiridos do

capital nos países capitalistas privilegiados, ao

lado da cumplicidade consensual reformista dos

sindicatos em seu desenvolvimento auto-

satisfatório, é muito mais provável, num futuro

não muito distante, que se verifique o rebentar de

uma revolução social na América Latina e não nos

Estados Unidos ou na Europa ocidental, com

implicações de longo alcance para o resto do

mundo.

Isso significa, pois, que devemos evitar uma certa tradição

linear de pensamento que acredita que a revolução deve acontecer

primeiro no país de capitalismo mais desenvolvido, e que aqueles que se

encontram nos países periféricos devem esperar pelos acontecimentos

nos países centrais – ou, ainda, desenvolver bastante o capitalismo

nessas regiões marginais para só então começar a lutar pelo socialismo.

O que Mészáros propõe, ao contrário, é que se pode – e se deve -, sim,

efetivar lutas revolucionárias socialistas nas regiões periféricas do

sistema.91

Tal ponto nos parece de fundamental importância dentro da

teoria política do filósofo húngaro. Não poderíamos, acaso, especular

sobre as conseqüências dessa proposta para a educação? Não seria, pois,

uma tarefa fundamental da educação socialista, nos países periféricos,

insuflar o ânimo e a convicção sobre a possibilidade da revolução nesses

contextos específicos? E, quem sabe, também fomentar o sentimento de

empatia para com todos aqueles que se encontram na mesma posição de

marginalizados dentro do sistema mundial, bem como o ímpeto para

91

É evidente que pensar a revolução em locais como a América Latina exigiria, em primeiro

lugar, compreender a especificidade de como o sistema do capital aí se estrutura, para somente em seguida se poder delinear uma estratégia política coerente e viável. As proposições de

Mészáros nos ajudam nesse sentido, embora não resolvam, de antemão, todos os problemas

concernentes à práxis revolucionária. Mesmo porque existem problemas cujas soluções dependem, justamente, de seu aparecimento e de seu conseqüente enfrentamento no plano da

práxis material. Queremos dizer, com isso, que as teorias revolucionárias não podem ser

aplicadas mecanicamente em qualquer parte e que cabe a cada nação, país ou comunidade ―inventar‖ o seu próprio processo revolucionário. A interlocução que os sujeitos de cada região

particular precisam fazer com as teorias ―universais‖ deve ser, pois, crítica e dialética.

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assimilar criticamente a rica história de luta de todos esses povos. Essas

nos parecem questões pertinentes para estimular um debate fecundo a

respeito de uma educação transformadora nos locais periféricos do

sistema com base na teoria de Mészáros.

Feito esse parêntese, voltemos novamente ao tema da educação

de acordo com a linha investigativa que havíamos delineado. O texto

que devemos consultar agora é O socialismo no século XXI, de 2007.92

Talvez se possa considerar esses escritos como o ápice da teorização de

Mészáros sobre o papel revolucionário da educação. O que aí se

desenvolve é uma ampla formulação estratégica com o propósito de

orientar ações revolucionárias no sentido de superar o sistema do capital

em crise estrutural e instaurar a alternativa hegemônica do trabalho

emancipado. São discutidos, então, oito princípios, em torno dos quais

se estrutura a teoria política do filósofo. Esses pontos não são

elaborados de uma forma hierárquica, isto é, o filósofo não considera

que alguns deles sejam mais importantes que os demais. Eles são, de

fato, articulados de modo que cada um ilumine e dê sustentação aos

outros. É importante observar bem como Mészáros (2007, 225) explica

a estrutura desse ensaio e de sua teorização:

No presente capítulo, apenas se poderá indicar

brevemente os principais objetivos e

características da necessária transformação

socialista, como princípios orientadores para a

elaboração de estratégias viáveis para nosso futuro

próximo e mais distante. A seqüência em que os

tópicos particulares são aqui apresentados não

pretende sugerir uma ordem de importância, à

qual os tópicos subseqüentes devam subordinar-

se. Pela própria natureza das questões em jogo,

seria artificial e deturpador classificá-las dessa

maneira. Pois as características que definem uma

genuína transformação socialista constituem uma

totalidade estreitamente integrada. Todas elas são,

em certo sentido, pontos arquimedianos que

sustentam a si mesmos e uns aos outros por meio

de suas determinações recíprocas e implicações

globais. Em outras palavras, todas elas têm igual

importância, no sentido de que nenhuma deve ser

negligenciada ou omitida no curso mais longo a

92

Este ensaio compõe o capítulo 9 de MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo

histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.

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partir da estratégia geral, seja qual for sua

relevância imediata no início da jornada.

A educação, então, que será apresentada como um dos

princípios orientadores, não é concebida como um ponto menor da

teoria política de Mészáros. Ela é equivalente em importância aos

demais princípios e mantém com eles uma relação de

complementaridade dialética, sustentando e sendo sustentada por todos,

iluminando-os e sendo por eles iluminada. Por algumas indicações feitas

anteriormente, e por outras que serão desenvolvidas adiante, perceber-

se-á que essa maneira de teorização, que mantém uma articulação

horizontal e de complementaridade recíproca entre os conceitos, tem a

ver com a própria forma da atitude crítica preconizada por Mészáros,

bem como com a forma proposta pelo filósofo para a organização da

comunidade humana emancipada, o socialismo. Examinemos, pois, os

princípios orientadores da teoria política socialista da maneira como o

autor de O desafio e o fardo do tempo histórico as apresenta.

O primeiro item diz respeito ao ―imperativo de uma ordem

alternativa historicamente sustentável‖. O princípio da sustentabilidade

é novamente retomado, de acordo com que o que já havia sido

defendido em outras obras. Nada de novo é, aqui, de fato apresentado.

Possivelmente por ser esse um tema recorrente da sua obra, o filósofo

não aprofunda o que fora dito em ensaios anteriores. Apenas reafirma a

proposta de que a sustentabilidade equivale ao tipo de organização da

sociedade onde os sujeitos da produção controlam conscientemente seu

intercâmbio com a natureza e superam assim, em definitivo, a forma

fetichista de controle do metabolismo social humano efetuada pelo

capital.

O segundo princípio é o da participação, ―a progressiva

transferência do poder de decisão aos ‗produtores associados‘‖, tema

também já tratado por Mészáros, agora retomado e desenvolvido. Para

filósofo (ibid. 229), a participação é

o único meio pelo qual as grandes massas do povo

podem adquirir um interesse duradouro em sua

sociedade e, com isso, identificar-se com os

objetivos e modalidades de reprodução das

condições de sua existência social, determinadas

não apenas a defendê-las contra todas as tentativas

de restauração, mas também a expandir

constantemente suas potencialidades positivas.

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226

É a transferência do poder de decisão sobre o processo

produtivo, em todos os níveis, para os trabalhadores, que poderá

transformá-los nos sujeitos do poder. Participação em todos os níveis

significa, pois, para Mészáros, superar ―as falsas dicotomias que opõem

a ‗pequena‘ à ‗larga-escala‘, ou a ‗local‘ à ‗global‘‖ (ibid., 230), em se

tratando das dimensões de atuação e decisão por parte dos produtores

associados.

Para podermos ir além da costumeira divisão entre os âmbitos

―local‖ e ―global‖ da existência política e social vigentes atualmente,

Mészáros propõe que se compreenda a questão crucial da relação entre

os microcosmos e o macrocosmo sociais. A ordem reprodutiva

atualmente estabelecida, diz o filósofo, se afirma a partir de uma relação

de conflitualidade/adversidade entre os microcosmos e o macrocosmo,

entre as ―partes‖ do sistema social e o seu ―todo‖, onde os primeiros

devem necessariamente se subordinar ao último, a partir de uma forma

hierárquica de determinação geral e a fim de que se possa assim realizar

as exigências do capital. Já a ―ordem sociorreprodutiva alternativa‖ - o

socialismo -, por sua vez, como esclarece o filósofo (ibid., 231),

é inconcebível sem a a superação das

determinações conflituais/adversar recônditas e

autoritárias dos microcosmos herdados do capital.

Isso só se torna possível pela instituição de um

modo qualitativamente novo de intercâmbio

reprodutivo, baseado nos interesses vitais

plenamente compartilhados dos membros dos

microcosmos sociais não-conflituais/adversos

reestruturados. Só assim eles podem ser

propriamente coordenados em uma forma

correspondente de macrocosmo não

conflitual/adverso.

Para atingir esse objetivo é que se faz necessário um tipo de

participação onde os poderes de decisão, em todos os âmbitos, estejam

de posse dos produtores associados. O que esta em jogo é, então, a

realização de uma ―coordenação genuína não-hierárquica‖ a respeito da

atividade produtiva humana. Este é, segundo Mészáros, o grande ―desafio que enfrentamos em nossas tentativas de assegurar o futuro‖

(ibid., 232).

O terceiro princípio mencionado no ensaio é o da igualdade substantiva, a ―condição absoluta para a criação de uma ordem

alternativa historicamente sustentável‖ (ibid., 236), portanto, para o

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socialismo. Como já comentado na Introdução à O poder da ideologia, a

igualdade substantiva é a superação da igualdade formal/jurídica

preconizada pelo capital. Ela tem a ver não apenas com a igualdade de

direitos, mas com ―a igualdade de trabalhos e prazeres‖, definida pela

máxima ―de cada um conforme sua capacidade, a cada um conforme

sua necessidade‖. Sem esse tipo de igualdade, diz Mészáros, não é

possível que a ordem social alternativa se realize de forma sustentável a

longo prazo. Para atingir tal propósito, é preciso realizar uma atividade

social e política capaz de negar a atual ordem e afirmar, sem vacilação, a

alternativa hegemônica do trabalho. A postura que coaduna negação e

afirmação é, nesse contexto, fundamental. É só esse tipo de práxis que

pode, pois, dar à luz a sociedade da igualdade substantiva. Afirma o

filósofo húngaro, nesse sentido, que (ibid., 235):

A única ordem de reprodução socialista viável não

é simplesmente a negação do modo cada vez mais

destrutivo de controle sociometabólico destrutivo

do capital. Ela não pode sustentar-se a longo prazo

a menos que possa se articular simultaneamente

como uma alternativa positiva às condições ora

predominantes. A igualdade substantiva é, nesse

caso, um traço necessário da definição positiva da

ordem sociorreprodutiva alternativa. Pois é

impossível eliminar a determinação

conflitual/adversa interna das células constitutivas

de nosso macrocosmo social existente sem

reestruturá-las sobre a base da igualdade

substantiva.

A maneira como o filósofo desenvolve sua argumentação deixa

bastante claro como todos os princípios de sua estratégia política

mantêm uma relação de reciprocidade complementar. Nesse contexto, o

autor de O socialismo no século XXI afirma ainda que a igualdade

substantiva requer, para sua efetivação, a universalização do trabalho -

que, no contexto da argumentação de Mészáros, deve ser entendido,

como explicamos anteriormente, como atividade produtiva não

alienada, como conjunto de mediações não antagônicas estabelecidas com o fim de regular o sociometabolismo de maneira sustentável a

longo prazo - e da repartição eqüitativa, entre os produtores livremente

associados, dos frutos desse trabalho. Somente assim se pode instaurar,

na prática, a democracia socialista, a comunidade humana emancipada.

O quarto princípio é o do planejamento e diz respeito à

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necessidade de ―superar o abuso do tempo cometido pelo capital‖.

Mészáros (ibid., 237) argumenta, aqui, que o planejamento genuíno, que

se embasa numa perspectiva de longo prazo, diferentemente da

temporalidade de curto prazo do capital,

é um traço essencial do modo socialista de

controle sociometabólico. Pois o nosso modo de

controle deve ser viável não apenas no que se

refere ao impacto imediato da atividade produtiva

sobre as condições de reprodução individual e

societária, mas também indefinidamente, tão

distante no tempo quanto se pode e se deve

entrever no interesse de instituir e manter vivas as

salvaguardas apropriadas.

Mészáros discorre, então, sobre o tempo ―decapitado e em

curto-circuito do capital‖. Que significa isso? Esclarece o filósofo

húngaro (ibid., 239):

A única modalidade de tempo diretamente

significativa para o capital é o tempo de trabalho

necessário e seus corolários operacionais,

exigidos para assegurar e salvaguardar as

condições de contabilidade de tempo orientada

para o lucro e, com isso, a realização do capital

em uma escala ampliada.

A exploração de trabalho excedente, o controle sobre o

metabolismo social, a necessidade de lucro, acumulação, expansão, etc.,

todos esses imperativos fazem com que o capital articule os variados

ritmos particulares das atividades sociais em uma única e exclusiva

temporalidade reificada e homogênea adaptada a seus fins. Essa forma

de tratar o tempo impede um planejamento no sentido genuíno do termo.

Para que um planejamento real e efetivo rumo a uma organização social

sustentável se dê, é preciso romper com a concepção de tempo do

capital. Mészáros fala que é necessário um ―conceito de tempo

humanamente significativo‖ e qualitativamente diferente daquele que a

ordem atual preconiza. O filósofo afirma, então, (ibid., 241) que

o planejamento em questão não pode ser

visualizado sem sua correspondente dimensão de

tempo histórico. A esse respeito, o conceito de

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tempo exigido para se compreender o

planejamento em seu significado apropriado – em

oposição ao estreitamento técnico – não é o de um

tempo cósmico abstrato e genérico, mas do tempo

humanamente significativo. Pois, no curso da

história, e especialmente ao longo do

desdobramento da história humana, o conceito de

tempo é significativamente alterado no sentido de

que com o desenvolvimento dos seres humanos –

e a concomitante ―humanização da própria

natureza‖ (Marx) – entra em cena uma dimensão

de tempo radicalmente nova.

O fato de que a humanidade, ao contrário do

mundo animal, é feita de indivíduos

historicamente criados e, sob condições variáveis,

que se desenvolvem historicamente, não pode ser

divorciado da circunstância de que os indivíduos

humanos, como opostos à sua espécie, têm um

tempo de vida estritamente limitado. Por

conseguinte, graças a um longo desenvolvimento

histórico, o problema do tempo não se apresenta

no contexto humano simplesmente como a

necessidade de sobreviver desde o primeiro dia

até a última hora do curto período de vida dos

indivíduos particulares, mas também, ao mesmo

tempo, como o desafio que lhes defronta

diretamente da criação de uma vida significativa,

no mais alto grau possível, como sujeitos reais de

sua própria atividade vital. Em outras palavras, o

desafio de obter sentido de sua própria vida como

―autores‖ reais de seus próprios atos, em estreita

conjunção com as potencialidades cada vez mais

intensificadas de sua sociedade, da qual eles

mesmos são parte integrante e ativamente

contribuinte. Eis como a consciência individual e

a consciência social podem realmente se reunir no

interesse do avanço humano positivo.

O capital, a fim de se perpetuar na história, estabelece uma

forma de tempo reificada, que organiza os processos que lhe compõe, de

modo a fazer com que todos eles se movimentem no mesmo sentido da

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230

extração do trabalho excedente.93

Para a realização de uma organização

93

A teorização de Mészáros acerca de como o capital domina e reifica o tempo da humanidade

é bastante complexa e as limitações deste trabalho só nos permitem tocar de leve esse tema.

Acreditamos, contudo, que duas passagens da obra do pensador húngaro talvez possam ajudar

a clarificar o assunto. Na primeira delas, em outro ponto de O desafio e o fardo do tempo histórico, o filósofo afirma que: ―Indivíduo nenhum e nenhuma forma concebível de sociedade

hoje ou no futuro podem evitar as determinações objetivas e o correspondente fardo do tempo

histórico, bem como a responsabilidade que necessariamente emerge de ambos. Em termos gerais, talvez a maior acusação contra nossa ordem social dada é que ela degrada o fardo

inescapável do tempo histórico significativo – o tempo de vida tanto dos indivíduos como da

humanidade – à tirania do imperativo do tempo reificado do capital, sem levar em conta as

conseqüências. O modo historicamente único de reprodução sociometabólica do capital

degrada o tempo porque a determinação objetiva mais fundamental de sua forma própria de

intercâmbio humano é a condução irreprimível à contínua auto-expansão, definida pelas características intrínsecas a esse modo de intercâmbio societário como a necessária expansão

do capital, alcançada na sociedade de troca apenas por meio da exploração do tempo de

trabalho. O capital, portanto, deve tornar-se cego com relação a todas as dimensões do tempo diversas da dimensão relativa ao trabalho excedente explorado ao máximo e o correspondente

tempo de trabalho‖ (ibid., 33). A segunda passagem é de uma conferência proferida no Brasil,

em 2004, e afirma o seguinte: ―Para se compreender a evidência desses limites absolutos [do capital], há que se considerar que: a) O horizonte de tempo do sistema é necessariamente de

curto prazo, e não pode ser nada mais do que isso, tendo em vista as sucessivas pressões da

concorrência e do monopólio e as resultantes formas de imposição da dominação e subordinação, com o intuito do ganho imediato. b) Esse horizonte de tempo possui também um

caráter post festum, ou seja, só é capaz de adotar métodos corretivos após o dano ter sido

cometido, e mesmo assim tais medidas corretivas só podem ser introduzidas de uma maneira muito limitada. c) Como resultado dessas duas determinações supramencionadas, o sistema se

torna incompatível com qualquer tipo de planejamento que não seja no sentido mais míope possível do termo. Isso acontece com as gigantes e quase monopolísticas empresas

transnacionais, pois mesmo as maiores corporações só podem instituir um limitado

planejamento post festum em determinadas empresas (se chegam a tanto), mas são incapazes de controlar sozinhas os seus próprios mercados globais, exceto de maneira estritamente

limitada e conflituosa. A importância dessa limitação sistêmica não pode ser exagerada,

especialmente sob as circunstâncias históricas hoje observáveis, tendendo em direção a uma integração econômica global, aliada às contradições fatais, quando a necessidade de uma forma

viável de planejamento completo seria inteiramente vital [...]‖ (2008 b, 133). Portanto, o capital

subordina todas as atividades humanas, com suas diversificadas temporalidades, e as articula em torno de uma única forma de tempo: o tempo de trabalho necessário para a contínua

expansão do capital. É o caráter post festum desta temporalidade que impede qualquer tipo de

planejamento verdadeiramente digno deste nome. Para vencer esse fardo extremamente duro, os socialistas devem romper com o sistema do capital, instaurar uma forma de intercâmbio

social organizada pelo tempo humanamente significativo, ou seja, aquele que permita aos

indivíduos sociais a livre realização das suas potencialidades, por meio do estabelecimento de um planejamento genuíno, não mais post festum, isto é, não mais efetivado de forma a corrigir

eventuais obstáculos somente após os problemas terem acontecido. Aí está, pois, todo o desafio

de nosso tempo histórico. Como afirma Mészáros: ―O desafio histórico [para os trabalhadores] é, pois, progredir na ordem sociometabólica alternativa, da vigência do tempo congelado do

capital como determinante alienador para torná-lo livremente determinado pelos próprios

indivíduos sociais que dedicam, de modo consciente à realização de seus objetivos escolhidos, seus recursos incomparavelmente mais ricos do tempo disponível que aquilo que se poderia

extorquir deles por meio da tirania do tempo de trabalho necessário. Essa é uma diferença

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social alternativa e sustentável, é preciso negar esse conjunto de

determinações e afirmar um planejamento concebido com base numa

concepção radicalmente diferente de tempo. O tempo que deve

organizar as atividades rumo à comunidade humana emancipada é

aquele que permitirá aos homens uma vida significativa. Isto quer dizer,

como Mészáros explica, uma modalidade de existência onde os

indivíduos sociais sejam os sujeitos de sua própria atividade vital, e não

meramente os meios reificados para a realização dos fins do capital.

O quinto princípio estabelecido é o crescimento qualitativo em

utilização dos produtos do trabalho. Essa proposta vem na esteira das

teorizações de Mészáros sobre a destrutividade inerente à lógica do

capital em crise estrutural. De acordo com o que vinha estabelecendo

em suas obras anteriores, o filósofo afirma que, hoje, reprodução do

capital e produção destrutiva são na verdade sinônimos, fato que

encurta dramaticamente o tempo de vida útil dos produtos. A alternativa

hegemônica do trabalho, que deve necessariamente negar esse estado de

coisas, precisa afirmar uma forma de consumo diferente.

Como explica o autor de O desafio e o fardo do tempo histórico

(ibid., 249),

a produtividade aliada ao crescimento capitalista,

na forma da realidade ora dominante de produção

destrutiva, é um adversário dos mais

ameaçadores. Para transformar a potencialidade

positiva de desenvolvimento produtivo em uma

tão necessária realidade, que seja capaz de

retificar muitas das desigualdades e injustiças

gritantes de nossa sociedade existente, seria

preciso adotar os princípios reguladores de uma

ordem social qualitativamente diferente. Em

outras palavras, o potencial de produtividade da

humanidade, ora destrutivamente negado, teria de

ser libertado de seu invólucro capitalista para se

tornar força produtiva socialmente viável.

De acordo com essa necessidade, Mészáros propõe um outro

tipo de ―crescimento‖, um crescimento ―positivamente sustentável no futuro a longo prazo‖. Como isso deve vir à tona? Rompendo-se com os

absolutamente vital. A adoção do tempo histórico é o único meio concebível e correto pelo qual o tempo pode ser transformado de determinante tirânico em componente autônoma e

criativamente determinado do processo de reprodução‖ (2007, 257).

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imperativos de tempo de curto prazo do capital, com seu fetichismo da

quantidade, com seu modo destrutivo e perdulário de realizar a

produção. Finalmente, com a efetivação do imperativo do crescimento qualitativo em utilização dos produtos do trabalho – ponto que

complementa, por sua vez, a exigência da sustentabilidade, preconizada

anteriormente. Na ‖nova forma histórica‖, os produtos não poderão ser

confeccionados para serem destruídos num curto espaço de tempo, pois

isso se choca com a finitude dos recursos que os seres humanos têm à

sua disposição no planeta. Como afirma o filósofo húngaro (ibid., 258-

9),

O desperdício sempre crescente – e, por suas

implicações últimas, catastrófico – no sistema do

capital é inseparável da maneira mais

irresponsável como os bens e serviços produzidos

são utilizados, a serviço da lucrativa expansão do

capital. Perversamente, quanto menor a sua taxa

de utilização, maior o escopo de substituição

lucrativa, no espírito da equação já mencionada,

absurda e no futuro totalmente intolerável,

segundo a qual não se pode inferir, da perspectiva

do capital, uma distinção significativa entre

consumo e destruição. Pois a destruição

totalmente desperdiçadora satisfaz a demanda

requerida pelo capital auto-expansivo por um

novo ciclo de produção lucrativo de maneira tão

adequada quanto o consumo genuíno

correspondente ao uso seria capaz. Entretanto, o

momento da verdade chega quando o preço a

pagar pela economia criminalmente irresponsável

do capital é alto, no curso do desenvolvimento

histórico. É esse o momento em que o imperativo

de adotar uma taxa de utilização cada vez melhor

e incomparavelmente mais responsável dos bens e

serviços produzidos - e, com efeito,

conscientemente produzidos com esse objetivo,

em relação à necessidade e uso humano

qualitativo – torna-se absolutamente vital. Pois a

única economia possível – significativamente

economizadora e com isso sustentável no futuro

próximo e no mais distante – só pode ser o tipo de

economia administrada de maneira racional,

orientada para a utilização otimizada dos bens e

serviços produzidos. Não pode haver crescimento

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de um tipo sustentável além desses parâmetros de

economia racional orientada pela necessidade

humana genuína.

O sexto princípio elencado também já havia sido estabelecido

em outros momentos da teorização de Mészáros: a complementaridade entre as dimensões nacional e internacional nas lutas pela emancipação

humana. Isto é, o internacionalismo positivo, que deve estar de acordo

com o patriotismo que defende os interesses legítimos dos trabalhadores

das nações mais fragilizadas e oprimidas pelos países líderes do sistema

do capital.

O filósofo húngaro propõe, então, a criação de formas de

intercâmbio cooperativo positivo entre os trabalhadores das várias

nações, as desenvolvidas e as subdesenvolvidas. Conforme suas

palavras (ibid., 267):

Desde sua primeira formulação, a teoria marxista

insistiu que uma nação que domina outras nações

priva a si mesma de sua liberdade: uma máxima

que Lenin nunca deixou de reiterar. Não é difícil

ver por que isso se verifica. Pois qualquer forma

de dominação interestatal pressupõe uma estrutura

estritamente regulada de intercâmbio social em

que o exercício do controle é expropriado por

relativamente poucos. Um Estado nacional

constituído de modo a ser capaz de dominar outras

nacionalidades, as chamadas ―regiões marginais‖

ou ―periféricas‖, pressupõe a cumplicidade de seu

coletivo de cidadãos politicamente ativos no

exercício da dominação, mistificando e

enfraquecendo assim as massas trabalhadoras em

sua aspiração à emancipação.

A identificação entre as classes oprimidas de todos os países do

sistema do capital deve levar os trabalhadores das nações mais

desenvolvidas a reconhecer e apoiar o patriotismo genuíno dos

trabalhadores das menos avançadas, a fim de que assim se possa romper

com as relações de subordinação interestatal estabelecidas ao longo da

história.

É dessa maneira que o internacionalismo deve se articular com

o nacionalismo legítimo entre os povos do mundo. Para tanto, negar o

tipo de relação subordinada que existe hoje é fundamental. Nesse

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contexto, desnecessário dizer que a estratégia para a superação do

capital não pode ser apenas negativa e defensiva, e sim profundamente

afirmativa e ofensiva. Daí, justamente, a proposta do internacionalismo positivo.

Para ilustrar a sua concepção acerca da complementaridade

dialética que deve haver entre o nacional e o internacional na luta pela

superação do sistema do capital em crise estrutural, Mészáros mais uma

vez faz menção ao prócer cubano José Martí, para quem ―patria es humanidad‖, isto é, a humanidade é a nossa pátria. Essa concepção de

pátria, diz o filósofo húngaro, se caracteriza por uma identificação

consciente com os valores da nossa comunidade e também com os

valores positivos dos habitantes de outras comunidades que estão na

mesma posição de antagonismo estrutsural em relação ao sistema do

capital. Esse conceito específico de pátria, segundo o filósofo húngaro

(ibid., 273),

é a única ordem social permanentemente

sustentável que não pode ser dilacerada por

antagonismos devastadores. Como tal, ela não é

um ideal remoto, mas o alvo, bússola e medida

necessários ao êxito da estratégia socialista de

transformação, que visa a instituição do modo

alternativo de controle sociorreprodutivo em que

não pode haver lugar para discriminação nacional

e as queixas concomitantes. Essa é a única ordem

internacional viável, na mais profunda acepção do

termo, em contraste com todas as tentativas de

impor uma ordem internacional a partir de fora e

de cima: fracassadas no passado e destinadas a

fracassar no futuro. O que faz viável e sustentável

é que a pátria de Martí, definida em direta ligação

com a humanidade, emerge das determinações

interiores positivas de suas partes constitutivas

que harmonizam as inúmeras manifestações

particulares de patriotismo genuíno com as suas

condições globais de realização contínua. Essas

duas dimensões são inseparáveis na estratégia

socialista, como seu alvo geral necessário e sua

bússola orientadora. Não pode haver intercâmbio

global/internacional sustentável – essa, também, é

uma necessidade absoluta de nosso tempo – sem a

união positiva das grandes variedades de

identificação patriótica das pessoas com as

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condições de vida efetivas de sua comunidade. E

vice-versa. Não pode haver patriotismo digno

desse nome sem instituir e fortalecer com êxito a

pátria global/internacional da humanidade, capaz

de adaptação recíproca e harmonização

cooperativa, a única que pode conferir as

necessárias características definidoras positivas do

próprio patriotismo. Nesse sentido, a

complementaridade dialética do nacional e do

internacional permanece um princípio orientador

vital dos intercâmbios humanos no futuro

próximo.

Mészáros explica ainda que o que torna urgente a necessidade

do internacionalismo positivo em nossos dias é, justamente, a crise

estrutural do capital, que afeta o sistema em todas as suas múltiplas

dimensões e nações constituintes.

O sétimo ponto estabelecido por Mészáros em sua estratégia

revolucionária é a unificação das esferas da reprodução material e da política. Este item – mais um que já havia sido discutido anteriormente -

é intimamente articulado com o tema da participação.

A separação entre as esferas da política e da reprodução

material é estabelecida, em nosso tempo histórico, pelo capital. Isso não

significa que o Estado seja separado da economia. Mészáros explica que

o sistema do capital é composto por uma série de mediações, dentre as

quais se encontram os ―microcosmos‖ (as unidades produtivas) e o

Estado. Esse sistema mantém certamente a sua unidade. Mas essa é uma

unidade contraditória na medida em que as decisões sobre a

organização da vida material – ainda que tais decisões sejam os próprios

imperativos do processo de reprodução ampliada do capital - são

administradas por um pequeno número de pessoas (personificações do

capital), enquanto que a execução prática dessas determinações é

realizada pela grande massa da população. Quem decide, não faz; quem

faz, não decide. Esse antagonismo acaba por se cristalizar e se

institucionalizar em certas estruturas complexas, como, por exemplo, o

parlamento e seus corolários institucionais.

Se isto é assim, não se pode conceber a revolução como um ato que acontece apenas no plano do Estado. Ela deve ser necessariamente

um conjunto de práticas que rearticule as esferas de reprodução material

e de decisão consciente, com ambas sendo desempenhadas pelos

sujeitos da produção. Esse projeto exige, portanto, que as lutas históricas

se desenvolvam para além do campo de atividade política institucional.

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Mészáros mais uma vez se posiciona, assim, contra uma

tendência de ação política que se dá com vistas a ocupar meramente o

plano responsável pelas elaborações legislativas e jurídicas da

sociedade. Pois não é o Estado que controla o capital. É o capital que

controla o Estado e, com o auxílio deste, realiza o seu domínio sobre o

metabolismo social. Nas palavras do filósofo (ibid., 286-7),

A dificuldade, intransponível dentro da estrutura

parlamentar, é que uma vez que o capital detém

efetivamente o controle de todos os aspectos vitais

do metabolismo social, ele pode arcar com a

definição da esfera constituída de modo separado,

de legitimação política como uma questão

estritamente formal/jurídica, excluindo assim,

necessariamente, a possibilidade de ser desafiado

de forma legítima na sua esfera substantiva de

operação socioeconômica reprodutiva. Direta ou

indiretamente, o capital controla tudo, inclusive o

processo legislativo parlamentar, ainda que este

último se suponha, em muitas teorias que

hipostasiam de modo fictício a ―igualdade

democrática‖ de todas as forças políticas que

participam do processo legislativo, plenamente

independente do capital. Para visar uma relação

muito diversa dos poderes de decisão em nossa

sociedade, ora completamente dominados pelas

forças do capital em todos os âmbitos, é

necessário desafiar radicalmente o próprio capital

como controlador geral da reprodução

sociometabólica.

O capital é, então, uma força que controla o metabolismo da

sociedade, incluindo-se aí o próprio Estado, que pode ser considerado

como uma de suas vértebras. O capital é, em síntese, ―uma força

extraparlamentar por excelência cujo poder de controle

sociometabólico não pode de maneira alguma ser restringido pelo

parlamento‖ (ibid., 288). Dessa forma, o sistema não revela temor

algum quanto a possibilidade de reformas políticas. A única maneira de

contestar o seu poder é se a alternativa hegemônica do trabalho se

articular, também ela, como força extraparlamentar e assumir assim as

funções produtivas do sistema, bem como retomar o controle sobre os

processos políticos de decisão correspondentes em todas as esferas.

Somente assim podem se unificar essas esferas, uma condição essencial

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para que ocorra o fenecimento do Estado, que não é outra coisa que não

a reaquisição progressiva dos poderes de decisão pelos indivíduos sobre

o seu processo sociometabólico.

Por tudo isso, diz Mészáros (ibid., 290-1):

o movimento em questão não pode ser

simplesmente um partido político orientado a fim

de assegurar concessões parlamentares, que via de

regra acabam por anular-se mais cedo ou mais

tarde pelos interesses extraparlamentares

autovantajosos da ordem estabelecida vigente

também do parlamento. O movimento socialista

não pode obter êxito diante da hostilidade dessas

forças a menos que seja rearticulado como um

movimento revolucionário de massa,

conscientemente ativo em todas as formas de luta

social e política: local, nacional e

global/internacional, utilizando plenamente as

oportunidades parlamentares quando disponíveis,

por mais limitadas que possam ser, sobretudo sem

se esquivar de asseverar as demandas necessárias

da desafiadora ação extraparlamentar.

O papel do movimento extraparlamentar é, primeiro, formular e

defender, do ponto de vista do trabalho, os interesses estratégicos

alternativos à dinâmica sociometabólica vigente. Em segundo lugar,

desafiar, por meio de formas extraparlamentares de ação, os poderes

abertos e ocultos do capital. ―Somente por meio desses

desenvolvimentos organizacionais que envolvem diretamente também as

grandes massas do povo, pode-se divisar a realização da tarefa histórica

de instituir a alternativa hegemônica do trabalho, no interesse da

emancipação socialista oniabrangente‖ (ibid., 293).

O oitavo princípio orientador da teoria política de Mészáros é,

finalmente, a educação como o desenvolvimento contínuo da

consciência socialista. Aqui, mais uma vez se demonstra como o

filósofo atribui, em sua obra, uma grande importância ao papel da

educação para a transformação revolucionária do mundo. Nesse

contexto, o autor de O desafio e o fardo do tempo histórico faz questão

de novamente frisar que a educação que está propondo nada tem a ver

com o que é tradicionalmente relacionado a esse conceito, isto é, a

educação formal, ―um período estritamente limitado da vida dos

indivíduos‖, e sim o desenvolvimento contínuo, permanente, da

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consciência socialista da sociedade como um todo. Essa proposta se

afasta assim, radicalmente, das práticas educacionais vigentes no

capitalismo.

Nessa formação social, diz Mészáros, a educação se tornou, em

todos os níveis, completamente absorvida pelo utilitarismo, pela

racionalidade instrumental, e teve suas práticas organizadas pelo

objetivo de produzir riqueza reificada. Dessa maneira, a educação,

caminhando de mãos dadas com o desenvolvimento do sistema de

exploração de trabalho excedente, apenas auxiliou na ―doutrinação da

esmagadora maioria das pessoas com os valores da ordem social do

capital‖ (ibid., 294), fazendo-as crer na eternidade dessa ordem

sociometabólica, na sua naturalidade e inalterabilidade. Com a absorção

da educação pelo sistema, explica o filósofo húngaro (ibid., 294),

as condições reais da vida cotidiana foram

plenamente dominadas pelo ethos capitalista,

sujeitando os indivíduos – como uma questão de

determinação estruturalmente assegurada – ao

imperativo de ajustar suas aspirações de maneira

conforme, ainda que não pudessem fugir à áspera

situação da escravidão assalariada. Assim, o

―capitalismo avançado‖ pôde seguramente

ordenar seus negócios de modo a limitar o período

de educação institucionalizada em uns poucos

anos economicamente convenientes da vida dos

indivíduos e mesmo fazê-lo de maneira

discriminatória/elitista. As determinações

estruturais objetivas da ―normalidade‖ da vida

capitalista realizaram com êxito o restante, a

―educação‖ contínua das pessoas no espírito de

tomar como dado o ethos social dominante,

internalizando ―consensualmente‖, com isso, a

proclamada inalterabilidade da ordem natural

estabelecida.

A educação formal, reduzida a poucos anos no capitalismo,

serve para preparar o pessoal especializado para desempenhar as tarefas

políticas e econômicas que este tipo de sociedade exige. Mas, além disso, um outro tipo de ―educação‖ se realiza, esta fora da escola, com a

imersão dos sujeitos nas relações sociais capitalistas, que passam a ser

internalizadas por eles, e que irão formar o ethos e os valores

correspondente às exigências do sistema. A sociedade capitalista

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―educa‖ permanentemente os seus indivíduos, seja por meio da

educação formal, seja através das próprias relações sociais que aí se

estabelecem. A educação assim praticada é uma das maiores

contribuidoras para a preservação acrítica da ordem estabelecida.

A educação socialista deve ser, pois, radicalmente diferente. Ela

necessita ser elaborada do ponto de vista da alternativa hegemônica do

trabalho e se realizar através do enfrentamento crítico das determinações

estruturais da ordem social do capital. Como explica Mészáros (ibid.,

298),

o preceito ideal e o papel prático da educação no

curso da transformação socialista consistem em

sua intervenção efetiva continuada no processo

social em andamento por meio da atividade dos

indivíduos sociais, conscientes dos desafios que

têm de confrontar como indivíduos sociais, de

acordo com os valores exigidos e elaborados por

eles para cumprir seus desafios. Isso é

inconcebível sem o desenvolvimento da sua

consciência moral. Mas a moralidade em questão

não é uma imposição sobre os indivíduos

particulares a partir de fora, muito menos de cima,

em nome da um discurso moral destacado e

abstrato de tem de ser, como a inscrição cinzelada

no mármore em muitas igrejas inglesas: ―Teme

teu Deus e obedece teu Rei!‖. Tampouco é o

equivalente secular a esses comandos externos

pseudo-religiosos impostos sobre os indivíduos

em todas as sociedades governadas pelos

imperativos do capital. Ao contrário, a moralidade

da educação socialista se preocupa com a

mudança social de longo alcance racionalmente

concebida e recomendada. Seus preceitos se

articulam com base na avaliação concreta das

tarefas escolhidas e da parte exigida pelos

indivíduos em sua determinação consciente de

realizá-las. É desse modo que a educação

socialista pode definir-se como o desenvolvimento

contínuo da consciência socialista que não se

separa e interage contiguamente com a

transformação histórica geral em andamento em

qualquer momento dado. Em outras palavras, as

características definidoras da educação socialista

emergem e interagem profundamente com todos

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os princípios orientadores relevantes do

desenvolvimento socialista discutidos neste

capítulo [isto é, no ensaio O socialismo no século

XXI].

A educação que assim se articula ajuda a combater a falsa

consciência e o fetichismo que se originam das relações sociais do

capital.94

Também rompe com o individualismo vigente na ordem

burguesa, pois toma os sujeitos como indivíduos sociais, isto é, seres

que só se constituem como indivíduos a partir de sua relação com os

demais. Nas palavras de Mészáros (ibid., 3010), a educação socialista

concerne

aos indivíduos cuja autodefinição como

indivíduos – em contraste com o discurso

genérico abstrato da filosofia tradicional sobre a

individualidade isolada auto-referenciada – não

pode sequer ser imaginada sem a relação mais

estreita com seu meio social real e com a situação

histórica específica claramente identificável de

que seus desafios humanos inescapavelmente

emergem.

A educação dos indivíduos sociais deve ser, segundo Mészáros,

a auto-educação permanente para uma sociedade sustentável e

emancipada, situada além das determinações fetichistas do capital.

Somente aí pode surgir o ―indivíduo social rico‖, no sentido que Marx

estabelece nos seus Manuscritos econômico-filosóficos. Como afirma o

autor de O socialismo no século XXI (ibid., 301):

Só é possível assumir a responsabilidade social

não como o tem de ser moralista e abstrato do

discurso filosófico tradicional, que defende algum

―ideal‖ externo ―a quem os indivíduos devem se

94

Como já esclarecido anteriormente, o conceito de falsa consciência utilizado pelo filósofo

não se confunde com o de ideologia. Em O desafio e o fardo..., Mészáros relaciona a falsa

consciência a um tipo de representação que ―personifica as coisas e reifica as pessoas‖ (esse

modo de representação deve ser combatido, justamente, pela educação e pela práxis política revolucionária.). Já o conceito de ideologia é diferente: quer dizer, como explicamos antes,

uma ―consciência prática‖ que, em sua racionalidade, articula interesses de classe de modo a

produzir ―indicadores práticos‖ e ―estímulos mobilizadores‖ para a ação. Em síntese, a falsa consciência é uma das formas que assume a ideologia a partir de certas condições objetivas

específicas.

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conformar‖, mas como a força real que se integra

à situação histórica e social efetiva, com base na

concepção da própria educação como um órgão

social estrategicamente vital, isto é, como a

prática social inseparável do desenvolvimento

contínuo da consciência socialista. E isso, por sua

vez, só é plausível pela postura radicalmente

diferente com relação à mudança no interior da

estrutura da ordem hegemônica alternativa.

Por tudo isso, compreende-se claramente porquê a educação

socialista não deve se limitar ao seu âmbito meramente

formal/institucional. Ela necessita se constituir, na verdade, como um

conjunto de ações articuladas com outras no plano mais amplo da

sociedade. Precisa se estabelecer em conformidade com o imperativo da

superação do capital. Somente assim a educação se torna revolucionária,

quando se converte em postura crítica teórico-prática, coadunada às

demais de igual sentido, para fins de transformação radical da ordem

burguesa. Esse envolvimento ativo dos indivíduos sociais nas mudanças

societárias é que pode ser identificado, segundo Mészáros, como

interação social no melhor sentido do termo.

É fundamental, então, a articulação da educação com as ações

políticas, e vice-versa. Mészáros afirma que o ―pensamento radical não

pode ser bem-sucedido em seu preceito de mudar a consciência social

sem uma articulação organizacional adequada‖ (ibid., 313). Ou seja,

para que a consciência crítica radical seja generalizada e se torne eficaz

no propósito de auxiliar a transformação social, a educação socialista

não pode se limitar aos bancos escolares e acadêmicos, e sim se dirigir

para os vários movimentos políticos e sociais que buscam confrontar as

determinações do capital. O filósofo húngaro explica que não foi por

outra razão que Marx e Engels aderiram ao movimento social de seu

tempo e, a partir dessa inserção, escreveram o Manifesto Comunista, a

fim de contribuir, a partir dessas formulações críticas, para ―a necessária

intervenção organizada inflexível no progressivo processo histórico

global‖ (ibid., 313).

Mészáros lança mão ainda de uma passagem lapidar dos autores

d'A Ideologia Alemã para fundamentar a necessidade da articulação da

educação – que deve generalizar a consciência crítica radical de massa –

com o movimento revolucionário da sociedade:

Tanto para a criação em massa dessa consciência

comunista quanto para o êxito da própria causa

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faz-se necessária uma transformação massiva dos

homens, o que só se pode realizar por um

movimento prático, por uma revolução; que a

revolução, portanto, é necessária não apenas

porque a classe dominante não pode ser derrubada

de nenhuma outra forma, mas também porque

somente com uma revolução a classe que derruba

detém o poder de desembaraçar-se de toda a

antiga imundície e de se tornar capaz de uma nova

fundação da sociedade. (MARX e ENGELS, apud

Mészáros, ibid., 313)

As práticas educacionais críticas radicais devem se articular no

interior da práxis revolucionária, de modo a contribuir assim para a

superação do ethos social herdado da ordem reprodutiva do capital.

Nesse movimento, a educação deixa de ser mera atividade que reproduz

as práticas e relações da sociedade burguesa e se converte num processo

de auto-educação radical dos indivíduos sociais no sentido da afirmação

da comunidade humana emancipada. Leiamos mais uma vez o que

escreve o filósofo húngaro (ibid., 314) a esse respeito:

Somente nesse processo podem os indivíduos

sociais tornar-se simultaneamente educadores e

educados. Essa é a única maneira concebível de

superar a dicotomia conservadora de todas as

concepções elitistas que dividem a sociedade em

seletos ―educadores‖ misteriosamente superiores e

o resto da sociedade consignada à sua posição

permanentemente subordinada de ―educados‖,

como realçado por Marx.

A educação é, portanto, uma mediação, que deve compor, com

outros tipos de mediações, uma força material prática capaz de tomar

das mãos do capital o controle consciente sobre o sociometabolismo

humano. Nas palavras, mais uma vez, de Mészáros (ibid., 315),

Os expedientes mediadores efetivamente

disponíveis – as mediações95

práticas

95

Exatamente neste ponto de sua passagem, Mészáros coloca a seguinte nota de rodapé que

julgamos por bem transcrever também aqui: ―Em termos filosóficos, a categoria de mediação adquire uma importância particularmente grande no período histórico de transição à nova

ordem social‖ (ibid, 315).

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identificáveis entre o presente e o futuro

sustentável – são os únicos modos e meios pelos

quais os princípios orientadores gerais da

transformação socialista podem tornar-se forças

operadoras e acentuar de maneira crescente as

potencialidades e realizações positivas percebidas,

bem como reduzir o poder dos componentes

negativos herdados.

Como dissemos acima, O socialismo no século XXI é

possivelmente o texto que constitui o ápice da teorização mészáriana

sobre a educação. Pensamos que é um ensaio importante não só por

aquilo que traz em seu conteúdo, mas também na forma: os conceitos

são pontos arquimedianos que horizontalmente se auto-sustentam.96

Um

texto, portanto, que rompe em sua própria estrutura interior com um

certo modo hierárquico tradicional de organização conceitual. Tal como

dito anteriormente, o capital é uma forma de controle do metabolismo

social que se organiza hierarquicamente sobre a atividade produtiva. Em

contrapartida, o sujeito social da revolução precisa ser crítico desse

modo de relação social, isto é, deve negar a maneira de se articular do

capital por meio da afirmação de uma nova relação qualitativamente

diferente. Portanto, no processo de enfrentamento da ordem, não pode

espelhar a maneira de se estruturar dessa mesma ordem. Acreditamos,

pois, que o ensaio O socialismo no século XXI é, em sua forma, a

materialização coerente dessa proposta numa expressão textual, teórica.

Tal deve ser, também, a forma do movimento prático que supera o

sistema do capital.

Por fim, vale a pena mencionar a mais recente obra de

Mészáros,97

que reafirma e reforça algumas das questões fundamentais

96

Ainda que o conceito de igualdade substantiva seja considerado por Mészáros, não

exatamente o mais importante, mas como ocupando uma espécie de ―posição-chave‖ entre os

demais, como se constituísse o princípio de organização formal da teoria do filósofo húngaro. Em um pequeno ensaio de 2008, intitulado Princípios orientadores da estratégia socialista

(Margem Esquerda – ensaios marxistas nº 11. São Paulo, Boitempo, 2008 c, p. 57-69),

Mészáros afirma que ―a igualdade substantiva ocupa a posição de primus inter pares [isto é, primeiro entre iguais] na complexa relação de reciprocidade dialética [entre os princípios

orientadores da estratégia socialista], que não é apenas compatível com a correlação dialética

historicamente exposta e reciprocamente enriquecedora em pauta, mas também exigida por esta. Os outros princípios categoriais orientadores não são menos importantes ou mais

negligenciáveis, porém mais específicos e presos a um contexto, se comparados com a

igualdade substantiva.‖ (2008 b, 63) 97

É preciso mencionar que entre O desafio e o fardo do tempo histórico, lançado em 2007, e A

atualidade histórica da ofensiva socialista, trazido à luz em 2010, Mészáros nos brindou ainda,

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de sua teoria política para o revolucionamento do sistema do capital

estabelecidas desde alguns de seus primeiros escritos.

O que é que deve ser, pois, a práxis revolucionária no contexto

do século XXI? Pelo que e como devemos lutar? Quais princípios

devem orientar a luta pela emancipação humana em nosso tempo

histórico? Quais coordenadas devem balizar nossas ações políticas? Em

A atualidade histórica da ofensiva socialista – uma alternativa ao

sistema parlamentar,98

Mészáros nos proporciona uma valiosa síntese sobre suas concepções a respeito de tais problemas. Trata-se de uma

defesa intransigente e sem concessões da tese de que os socialistas e os

trabalhadores só podem ter sucesso, no seu intuito de superar a ordem

do capital, se se constituírem fundamentalmente como movimento

extraparlamentar imbuído do objetivo precípuo de retomar

conscientemente as rédeas dos processos que regulam o metabolismo

social humano. Qual a base dessa idéia?

O filósofo inicia seu ensaio definindo aquilo que chama de

caráter alienado da política institucional em nossas sociedades, isto é, o

divórcio radical que existe entre o parlamento e as grandes massas, e a

conseqüente impossibilidade – fruto de tal divisão - de que estas se

associem, livre e autonomamente, e decidam por si mesmas acerca dos

rumos de sua atividade laboral.

A política tradicional, aquela que se circunscreve ao âmbito da

instituição parlamentar, possui limites muitíssimo estreitos. Mészáros

explica que decretos legislativos ou reformas políticas de qualquer tipo

não podem proporcionar aos trabalhadores aquilo que é essencial: a

capacidade de assumirem os poderes sobre o processo reprodutivo de

sua vida material. Em nosso mundo, como já explicado, essa regência é

exercida pelo capital. É este que, em sua dinâmica, toma o Estado – e,

por conseguinte, o parlamento - como meio para resolver

temporariamente suas crises esporádicas. Não é o Estado – frisemos

mais uma vez - que controla o capital e a produção humana. É o próprio

sistema de produção de mercadorias que organiza e domina o complexo

em 2009, com o magnífico ensaio Estrutura social e formas de consciência: a determinação social do método. Em virtude da natureza deste livro – que trata, dentre outras coisas, de

questões metodológicas muito específicas – preferimos analisar seu conteúdo no apêndice de

nosso trabalho. 98

MÉSZÁROS, István. A atualidade histórica da ofensiva socialista – uma alternativa ao

sistema parlamentar. São Paulo: Boitempo, 2010 b. Este livro consiste numa republicação do

capítulo 18 de Para além do capital – rumo a uma teria da transição. Limitaremo-nos aqui a comentar as formulações contidas na sua Introdução, de cerca de 40 paginas, que é o que há de

original na publicação em relação às obras anteriores de Mészáros.

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de atividades sociais, políticas, econômicas e culturais dentro do qual

nos inserimos. O capital é, pois, essencialmente, uma força

extraparlamentar de atuação, e é somente dessa maneira que ele pode

ser confrontado e vencido.

A política socialista, então, para Mészáros, não pode ser

confundida com as ações exercidas nos marcos parlamentares. Diz

respeito, na verdade, a algo muito mais amplo: a perspectiva de os

―produtores livremente associados‖ exercerem conscientemente o

comando do metabolismo social. Esse é o ponto central da questão

política para os trabalhadores, segundo o filósofo húngaro. No sistema

do capital, esses sujeitos estão apartados de tal possibilidade. A

superação dessa contradição é o objetivo supremo da práxis

revolucionária a ser levada a cabo por todos aqueles que buscam a

emancipação humana.

Aí está, portanto, a raiz do problema que nos atinge a todos: a

práxis humana e suas determinações históricas. Em virtude disto, da

forma específica como se estruturam hoje as atividades que estão na

base da nossa sociabilidade, a necessidade de se transcender a via

institucional de atuação é premente, pois, como diz Mészáros, ―sem o

estabelecimento de uma alternativa radical ao sistema parlamentar não

pode haver esperança de desembaraçar o movimento socialista de sua

atual situação, à mercê das personificações do capital que existem em

suas próprias fileiras‖ (2010 b, 15). O problema a ser atacado é

exatamente o da separação entre política – a decisão consciente dos

―produtores livremente associados‖ – e a esfera reprodutiva material da

sociedade. E isso só pode ser feito se se vai além da política

―tradicional‖, visto que o que está em jogo é, justamente, não a mera

ocupação e posse do Estado – que não pode, por definição, se tornar

instrumento de controle do capital -, mas a regulação livre e consciente

da produção por parte dos sujeitos que a realizam. Mészáros, então,

(ibid., 39-40) argumenta que

nenhuma mudança significativa é viável sem que

se volte a essa questão, tanto por meio de políticas

capazes de desafiar o poder e os modos de ação

extraparlamentares do capital como na esfera da

reprodução material. Portanto, o único desafio

que poderia, de modo sustentável, afetar o poder

do capital seria aquele que assumisse as funções

de produção decisivas do sistema e, ao mesmo

tempo, adquirisse o controle sobre todas as esferas

correspondentes da tomada de decisão política,

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em vez de ser irremediavelmente condicionado

pela prisão circular da ação política

institucionalmente legitimada pela legislação

parlamentar.

O que deve ser, então, a alternativa socialista? Leiamos mais

uma vez o que afirma o filósofo húngaro (ibid., 24):

O estabelecimento de uma forma socialista de

tomada de decisão, em conformidade com os

princípios da inalienabilidade do poder de

determinar as regras (isto é, a “soberania” do

trabalho não como uma classe particular, mas

como condição universal da sociedade) e da

delegação de papéis e funções sob condições

específicas, bem definidas, com distribuição

flexível e supervisão adequada, exigiria invadir e

uma radical reestruturação de todos os domínios

materiais antagônicos do capital. Um processo

que realmente deve ir muito além do princípio de

soberania popular inalienável de Rousseau e seu

corolário delegatório. Ou seja, em uma ordem

socialista, o processo ―legislativo‖ deveria ser

fundido ao próprio processo de produção de tal

modo que a necessária divisão horizontal do

trabalho fosse adequadamente complementada em

todos os níveis, do local ao global, por um sistema

de coordenação autodeterminada do trabalho.

Fundir o processo de legislar – decidir, estabelecer

conscientemente as regras, etc. - ao de produzir – fazer, executar,

realizar –, de uma maneira em que os próprios produtores se

autodeterminem e se organizem de forma horizontal, tal deve ser o

objetivo principal dos socialistas. É por essa razão que a nossa práxis

não pode se limitar ao campo do parlamento. Devemos, justamente,

superar a fissura estabelecida pelo sistema do capital entre o político

(institucional) e a esfera produtiva. Para se confrontar a ação

extraparlamentar do capital – aquela que, bem entendido, controla o

metabolismo social humano e que utiliza, para esse fim, o Estado – é

preciso que nos constituamos, também, como força extraparlamentar.

Como isso deve ser feito?

Para que tal projeto se efetive, o poder de decisão, sobre todos

os âmbitos da atividade social humana, deve ser cada vez mais

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transposto para os trabalhadores. A participação ampla e consciente dos

―produtores livremente associados‖ é uma exigência decisiva nesse

processo. Como Mészáros (ibid., 16) esclarece,

A alternativa necessária ao sistema parlamentar

está em íntima relação com a questão da

verdadeira participação, definida como

autogestão plenamente autônoma da sociedade

pelos produtores livremente associados em todos

os domínios [grifo nosso], muito além das restritas

mediações (obviamente ainda necessárias durante

algum tempo) do Estado político moderno.

E é somente a verdadeira participação numa forma

autogestionária de sociedade que pode promover o fenecimento do

Estado, ponto defendido pelos socialistas desde os primórdios de seus

embates políticos no século XIX. Ressalte-se que Mészáros não descarta

a ―oportunidade parlamentar‖, mas subordina essa prática à exigência de

se formar uma força de combate extraparlamentar capaz de arrancar das

mãos do capital o poder de decisão sobre a atividade produtiva e

transferi-lo cada vez mais aos trabalhadores. Esse movimento,

genuinamente revolucionário, deve estar apto a ―formular e defender

organizacionalmente os interesses estratégicos do trabalho como

alternativa sociometabólica historicamente viável‖, bem como

―enfrentar conscientemente e negar vigorosamente‖ (ibid., 44) as

determinações estruturais da ordem de reprodução material do capital,

superando assim, definitivamente, seu poder, que hoje prevalece no

parlamento e fora dele. Nesse processo, as exigências parciais podem

ser reivindicadas, desde que, evidentemente, estejam articuladas com as

exigências sistêmicas mais amplas do projeto revolucionário como tal: a

superação da relação-capital em si.

Note-se, finalmente, como tal proposta redefine toda uma série

de ações que hoje se encontra cristalizada na prática política da

esquerda, que de uns anos para cá tem se mostrado preocupada,

sobretudo, em atingir maioria no parlamento, formar alianças espúrias

que lhe garantam a ―governabilidade‖, administrar com

―responsabilidade‖ as crises do capital e instituir, quando muito,

paliativos para os males radicais da classe trabalhadora. Contra isso, o

que devemos fazer? Não nos iludir quanto às possibilidades do

parlamento e da democracia burguesa, compor uma força de atuação

política que vá além desses limites, formar novas mediações

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extraparlamentares de combate, organizar os trabalhadores, transferir a

eles cada vez mais o poder de decisão sobre a atividade produtiva – os

processos sociometabólicos da humanidade -, fomentar

intransigentemente a verdadeira participação, promover o fenecimento

do Estado por meio de uma luta que articule o local e o global, o

nacional e internacional. Tais são as preciosas recomendações que

Mészáros fornece aos revolucionários do presente. Diante de todas essas

tarefas, que envolvem sobremaneira a atividade consciente dos

envolvidos no processo, a educação tem uma tarefa imprescindível.

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5 COMO A PEDRA DE UMA FUNDA: UM HOMEM DE

ATITUDE FIRME, VIGOROSA E CERTEIRA

Así es mi vida,

piedra,

como tú. Como tú,

piedra pequeña;

como tú,

piedra ligera;

como tú,

canto que ruedas

por las calzadas

y por las veredas; (...)

como tú, que no has servido

para ser ni piedra

de una lonja,

ni piedra de una audiencia,

ni piedra de un palacio,

ni piedra de una iglesia;

como tú,

piedra aventurera;

como tú,

que tal vez estás hecha

sólo para una honda,

piedra pequeña y ligera...

León Felipe

Ao longo da história, as classes exploradas têm demonstrado

uma capacidade notável para estabelecer formas materiais organizadas

de resistência contra a opressão e luta pela sua emancipação. Nesse

contexto, surgem, de tempos em tempos, produções no campo da cultura

que procuram dar voz a esses movimentos, a fim de que melhor possam

enfrentar e romper com a ordem sociometabólica antagônica dentro da

qual se inserem. Essas formulações estão, pois, ligadas por fios

subterrâneos ao terreno histórico que as produz, às classes em disputa,

aos múltiplos grupos sociais em conflito, aos desejos alimentados, às

expectativas cultivadas, aos impulsos de libertação conservados e

mantidos, ora velada, ora abertamente.

Os filósofos, pensadores, cientistas, artistas, que são alguns dos

que tentam sintetizar esses desejos, expectativas, representações e

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práticas, não são pessoas que contemplam de fora a realidade, como

alguém que salta de uma carruagem99

e a observa percorrer seu curso

rumo à linha do horizonte. Eles possuem ligações orgânicas,

dialeticamente recíprocas e complexamente mediadas com essa

realidade que por eles é pensada, sentida e retratada. Estão dentro da

carruagem, portanto: vivem o processo, estão atrelados a ele.

Podemos concluir então que, no momento mesmo em que

determinados indivíduos estão realizando seu projeto de interpretação

do mundo social que os cerca, coisas muito importantes se passam,

concomitantemente, com tais sujeitos: eles agem ininterruptamente

dentro desse mesmo mundo, se posicionam, amam, odeiam, desejam,

relacionam-se, preocupam-se, identificam-se afetivamente,

compartilham sonhos, anseios, objetivos, ideologias, utopias. São seres

que sofrem junto, que procuram expressar e sistematizar as aspirações

não somente suas, mas do grupo humano em relação ao qual mantêm

empatia. Por causa disso, seus escritos estarão indelevelmente marcados,

em muitos sentidos, por essa realidade na qual estão imersos.

A esse respeito, peguemos, a título de exemplo, as teorias

socialistas de Marx e Engels no século XIX: de quantas pessoas é o

sentimento presente em tais formulações? Quantas morreram, sofreram,

lutaram, se organizaram, debateram, reivindicaram, labutaram, suaram,

choraram, para que os filósofos alemães, inseridos ativamente naquela

conjuntura histórica concreta, reunissem todas essas experiências e

produzissem suas obras, com determinada forma, com características

específicas, resumindo os interesses e expectativas de toda uma

coletividade?

Diante disso, acreditamos que não podemos nos furtar ao

esforço de também tentar, neste trabalho, resgatar algo desse processo.

Daí, portanto, as reflexões que compõem o presente capítulo – apesar de

que elas só possam, simplesmente, ser aqui, no máximo, esboçadas, e

não aprofundadas à exaustão.

A teoria da revolução permanente, surgida a partir das lutas dos

trabalhadores do século XIX, teve sua primeira expressão sistemática

realizada por Marx e Engels, em 1850, na Mensagem da direção central à Liga dos Comunistas. Ela resume todo um enorme conjunto de

experiências históricas levadas a cabo pela ―classe com cadeias

99

Servimo-nos aqui da alegoria utilizada por Michael Löwy (2000) em seu relativamente

conhecido ensaio As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e

positivismo na sociologia do conhecimento.

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radicais‖.100

A proposta central dessa moção era, justamente, a de tornar

a revolução permanente. Os filósofos alemães defendiam, dentre outras

coisas, a tomada de poder pelo proletariado, sendo que o caráter desse

movimento deveria se constituir como essencialmente auto-

emancipatório. A tarefa da Liga dos Comunistas, nesse contexto,

consistiria em lutar pela organização do partido proletário de massas, no

interior do qual ela, a Liga, exerceria o papel de fração mais consciente

e mais ativa. Em sua luta revolucionária auto-libertadora, os proletários

necessitariam constituir o seu próprio poder em oposição ao poder

burguês, pela formação dos conselhos operários. Em outras palavras,

eles precisariam estabelecer seus próprios governos, ao lado das

instituições políticas oficiais, a fim de fazer com que estas perdessem o

apoio das massas e os burgueses se sentissem vigiados e ameaçados por

outras autoridades. Para que esses conselhos pudessem exercer o seu

poder, seria necessário que os proletários estivessem armados e se

organizassem como guarda autônoma, na qual os chefes, eleitos pela

massa, estariam sob as ordens dos conselhos revolucionários. Os

próprios trabalhadores deveriam, assim, como escreveram Marx e

Engels (1982, 182),

fazer o máximo pela sua vitória final,

esclarecendo-se sobre os seus interesses de classe,

tomando o quanto antes a sua posição de partido

autônoma, não se deixando um só instante induzir

em erro pelas frases hipócritas dos pequenos-

burgueses democratas quanto à organização

independente do partido do proletariado. O seu

grito de batalha tem de ser: a revolução em

permanência [grifo nosso].

Em nossos dias, a proposta da revolução permanente é

retomada com vigor, como mostramos, pela obra de István Mészáros.

Em Para além do capital, por exemplo, o filósofo húngaro (2002, 726)

defende que a superação do sistema do capital só é possível por meio de

uma ―revolução social‖ constantemente renovada

(ou ―revolução permanente‖) dos produtores

associados que deve ―subordinar todos os

100

A respeito desse tema, acreditamos que é deveras útil ler o interessante estudo de Löwy

(2002 b), intitulado A teoria da revolução no jovem Marx, sua tese de doutorado elaborada sob

a orientação de Lucien Goldmann na década de 1960.

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elementos da sociedade a ela‖. Ao mesmo tempo

deve criar, a partir do sistema orgânico herdado,

mas progressivamente reestruturado, ―os órgãos

de que ainda carece‖ – para ser capaz de se tornar

seu próprio tipo qualitativamente diferente de

totalidade orgânica e irreversível. Um novo

sistema orgânico irreversível para o passado

retrógrado, mas criativamente aberto para com o

futuro.

O projeto da ofensiva socialista é, então, a defesa intransigente

de uma revolução permanente, que supere a relação de exploração do

trabalho pelo capital e transforme radicalmente toda a dinâmica do

metabolismo social. Dessa maneira, Mészáros retoma as formulações de

Marx e Engels feitas no século XIX, modificadas em certos aspectos

para adequar sua forma às condições históricas atuais.

Ora, talvez uma das características mais interessantes, em se

tratando das produções culturais humanas - como são as teorias sociais e

políticas e mesmo as criações no campo da arte - é o fato de elas

servirem para fomentar a reflexão crítica em uma época bastante

afastada do seu contexto histórico de origem, mas onde os dilemas

coletivos aí presentes guardem algum grau de semelhança. É como se,

apesar de o tempo passar e de algumas das condições materiais de

existência se modificarem, pudéssemos sentir, em virtude da

permanência de determinadas contradições, o eco das vozes de outrora

clamando em nossa direção. É como se, enfim, um sopro do ar frio que

envolveu aos que nos precederam afagasse de leve o nosso rosto.101

Neste contexto, portanto, em que examinamos alguns dos

principais antagonismos sociais existentes em nossa ―era de transição‖,

importa, pois, tecer ainda algumas palavras sobre como a vastamente

complexa e mediada macro-estrutura de relacionamento social de nosso

tempo pode ter sido plasmada no pensamento de Mészáros. Isso é

necessário, enfim, para podermos compreender um pouco melhor como

uma teoria como a da revolução permanente, depois de parecer haver

sido relegada à lata de lixo da história, retorna agora com uma

configuração tão ou mais radical que a original.

Por que, então, um conjunto de conceitos desse tipo pôde voltar

ao nosso cenário histórico? Quais as razões – históricas e individuais -

de um ilustre pensador, como o autor de Para além do capital, haver se

101

A alegoria, desta vez, é devida a Walter Benjamin (2005).

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interessado por tais assuntos? De onde vem, afinal, esse filósofo? Quem

é István Mészáros?

*

Hermanos de las tierras desoladas

aquí tenéis como un montón de espadas

mi corazón dispuesto a la batalla.

Pablo Neruda

―I. Mészáros é um homenzarrão de alma doce, maneiras

delicadas e inteligência vibrante. Ama o desconhecido: homens e

cenários‖ (2009 b, 137). Tal foi a impressão deixada pelo filósofo

húngaro aos organizadores da Revista Ensaio, quando de uma entrevista

sua realizada no Brasil, em 1984, para José Chasin, Ester Vaisman,

Carlos Eduardo Berriel, Narciso Rodrigues, Ivo Tonet e Sérgio Lessa. É

uma pena que este seja um dos raros materiais de que dispomos em

português em que são relatados fatos de relevo a respeito da vida do

autor de Para além do capital.

Por informações colhidas aqui e ali, em entrevistas e mesmo em

seus livros, sabemos que nasceu em Budapeste, no dia 19 de dezembro

de 1930, e teve uma infância bastante difícil, em condições muito

pobres. Seu avô paterno foi um mineiro que ―morreu tragicamente na

mina de carvão onde trabalhava, em acidente causado pela negligência

criminosa dos proprietários e gerentes com os equipamentos de

segurança‖ (2006 b). Esse acontecimento foi profundamente impactante

na vida do filósofo e na de sua família.

Aos oito anos de idade, conheceu a ventura e o encanto através

da obra do poeta húngaro Attila Jószef, que viria a ser o seu ―professor

notável‖, e também o ―companheiro desde então, todos os dias‖, do

filósofo (2008 d, 54). A poesia de Jószef e de outros escritores magiares,

bem como o ambiente cultural de Budapeste, marcaram Mészáros

tremendamente. O próprio filósofo comenta que, nessa cidade, ―o desenvolvimento cultural - especialmente no que se refere às relações

estreitas entre a literatura criativa e o pensamento social e político - era

muito especial, talvez único‖ (2006 b). Isso se deve, em parte, ao fato de

que os principais poetas da literatura húngara de então – tais como

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Sándor Petofi, Endre Ady e o já mencionado Jószef - eram também

grandes pensadores da sociedade e da política. Como nos informa

Mészáros: ―A literatura na Hungria, por tradição, sempre foi muito

politizada, talvez, em função da ausência de um pensamento político

enquanto tal. Os problemas políticos e as contradições da sociedade

acabaram por ficar na mão dos escritores‖ (2009 b, 146).102

Foi uma grande vantagem formativa, para um jovenzinho já

ávido de leituras, entrar em contato com uma literatura de preocupações

tão amplas: ―Nos seus apaixonados escritos líricos, tanto quanto em suas

reflexões teóricas, eles trataram dos mais desafiadores temas da

sociedade na sua perspectiva histórica, oferecendo soluções

revolucionárias, elevada e abrangentemente perspicazes, capazes de

102

Não é muito fácil encontrar em português informações precisas e detalhadas sobre a

história da Hungria, mas acreditamos que talvez seja possível formar minimamente uma idéia do que era esse envolvimento entre os literatos e a política de que fala Mészáros, bem como do

clima político-cultural vigente no país magiar durante as primeiras décadas do século passado,

com a seguinte passagem extraída de Michael Löwy: ―Podem-se resumir estas breves observações sobre a intelligentsia radicalizada na Hungria nos seguintes termos: a formação

social húngara, enquanto articulação específica do capitalismo e de estruturas semi-feudais,

resultante de um desenvolvimento desigual e combinado, apresenta múltiplas semelhanças com a formação russa. Em ambos os casos, a sociedade está prenhe de uma revolução de caráter

combinado, democrático e proletário, ao mesmo tempo. Nos dois casos, a ausência de uma

burguesia democrático-revolucionária e o peso específico do proletariado tendem a rejeitar a intelligentsia sublevada no campo do movimento operário, o qual entretanto, na Hungria, por

seu caráter profundamente reformista, não pode desempenhar o papel de pólo de atração. A ala ‗vermelha‘ da intelectualidade, representada por Ady, Szabo, e a corrente por eles influenciada,

que é ao mesmo tempo jacobino-democrática e anticapitalista (próxima às tendências européias

neo-românticas), aspira confusamente a uma mudança total da sociedade húngara; a ausência da força social revolucionária, burguesa ou proletária, faz dela uma camada isolada ‗flutuante‘

(freischwebende). Até 1917, quanto mais radicalmente opostos estavam estes pensadores,

escritores, filósofos, etc., ao status quo feudal e burguês, mais o seu isolamento e impotência diante da estabilidade do sistema conduziu a um sentimento de desespero, a uma visão trágica

do mundo. Esta visão trágica se distingue da visão alemã de princípio do século por seu

caráter mais radical, pela ausência de resignação, por uma potencialidade revolucionária real [grifo nosso]. Potencialidade intensificada por um princípio de proletarização dos intelectuais

[…]. A dupla aspiração antifeudal e antiburguesa da intelectualidade húngara revolucionária

encontrará uma resposta histórica e uma síntese concreta com a Revolução Húngara de 1918-1919, quando o proletariado, dirigido por sua vanguarda comunista, aparece na cena sócio-

política como sujeito da dupla revolução, democrática e socialista. O Partido Comunista funde

em seu programa de ‗revolução ininterrupta‘ ou ‗permanente‘ os dois aspectos, o jacobino e o anticapitalista, latentes intuitivamente (Ady) ou como contradição não resolvida (Szabo) junto

à intelligentsia ‗vermelha‘. A adesão massiva dos intelectuais, influenciados por Ady e Szabo,

ao Partido Comunista da Hungria e à República dos Conselhos será a saída lógica e coerente de sua crise ideológica. Com o aparecimento do Partido Comunista e do proletariado

revolucionário como força social massiva, seu desespero amargo e angustiado se transforma

em explosão fulgurante, em esperança imensa, apaixonada e messiânica‖ (1979, 91-2). Esse ambiente político-cultural influenciou não somente Mészáros, mas também, evidentemente,

seu grande mestre Lukács.

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resistir ao teste do tempo‖ (2006 b).

Os anos de formação de Mészáros foram vividos no Liceu

Clássico. Aos doze anos, teve a primeira experiência de trabalho, que

deveria realizar para ajudar com os gastos do lar, onde morava com as

duas irmãs e a mãe – esta uma enfermeira que, no tempo da crise de

1929-33, viu-se obrigada a mudar de profissão para operária

metalúrgica. Nesse período, como o jovem Mészáros não tinha ainda a

idade mínima permitida por lei para trabalhar, falsificou a carteira de

trabalho, fato que lhe permitiu, paradoxalmente, ganhar um salário

maior que o da sua própria mãe.103

Trabalhou, então, em fábricas de aviões, de tratores, têxteis,

tipografias, e até no ―departamento de manutenção de uma ferrovia

elétrica, que demandava o trabalho mais pesado de todos‖. Comentando

sobre o quanto pôde aprender em tais ocasiões, Mészáros (ibid.) afirma

que

a solidariedade compartilhada entre as pessoas

nesses diferentes locais de trabalho foi uma

experiência comovente e compensadora. Uma

compensação necessária para as privações e

dificuldades que os trabalhadores, entre os quais,

eu mesmo, por algum tempo, tiveram de enfrentar.

[…]

O que aprendi em minha variada experiência

laboral facilitou meu comprometimento com a

visão de uma ordem mundial muito diferente, que

precisamos ter como alternativa à nossa presente

sociedade. Não aprendi sobre as condições de vida

da classe trabalhadora por meio dos livros, eu as

vivi diretamente e de muitas formas. […] Esses

―fatos da vida‖ foram tão óbvios que era

impossível ignorá-los ou esquecê-los. Pelo

contrário, eles se tornaram orientações sobre meu

modo de pensar todas as questões maiores.

Percebi cedo que o mundo social, organizado com

103

Esse também foi um acontecimento que lhe causou profundo impacto. Mészáros pôde

dizer, mais tarde, sobre o quanto isso foi marcante para seu aprendizado a respeito do tipo de sociedade discriminatória em que vivia: ―não aprendi nos livros [grifo nosso] a total

insustentabilidade da desigualdade feminina - sobre a qual discuti no capítulo 5 de ‗Para além

do capital‘. Era suficiente comparar o meu pagamento, de um trabalhador muito jovem, com o da minha mãe, que recebia menos apesar de realizar um trabalho muito mais qualificado‖

(ibid.).

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base nas desigualdades que presenciei

diretamente, não poderia ser justificável nem

sustentável. […] Essa é a maneira pela qual uma

experiência formadora mais ou menos difícil se

torna, para melhor ou pior, uma parte orgânica do

próprio modo de pensar e escrever [de uma

pessoa].

Em 1945 – portanto, aos quinze anos de idade -, começou o seu

―cuidadoso e não sistematizado‖ estudo de alguns dos textos de Marx,

Engels, Kant e Hegel. No ano seguinte, essa leitura sofreu uma

―mudança qualitativa‖, após o jovem leitor encontrar numa livraria uma

coletânea com ensaios críticos de Lukács sobre literatura, sociedade e

política. Mészáros conta que esses textos causaram-lhe uma grande

impressão por tocarem diretamente em seus anseios mais íntimos, tanto

intelectuais como existenciais. Pelas palavras citadas a seguir (ibid.),

podemos compreender algumas das razões desse espanto:

Eles representaram uma revelação para mim,

porque nunca tinha lido antes uma análise de

textos literários - totalmente contextualizados e

iluminados pelas suas relevantes conexões

históricas e filosóficas - como foram apresentados

graficamente nesses escritos. Além disso, a

principal mensagem desse volume, insistindo com

paixão na responsabilidade dos intelectuais,

tocou-me diretamente. Após o término da leitura

desses ensaios de crítica político-literária, comprei

todos os livros de Lukács disponíveis em húngaro

e me dediquei a um intenso estudo, não apenas

das suas análises estéticas e filosóficas, mas

também do amplo material literário e teórico ao

qual ele se referia em sua discussão crítica. Foi

assim que decidi que Lukács seria o intelectual

militante com quem eu gostaria de estudar e

trabalhar no futuro.

Aos dezoito anos, em 1949, graças ao fato de haver se formado com notas máximas, ganhou uma bolsa de estudos na Universidade de

Budapeste, onde pôde conhecer o seu tão admirado filósofo György

Lukács. No ano seguinte, escreveu um ensaio a respeito de um clássico

da literatura húngara: Csongor és Tünde (1830), de Mihály Vörösmarty,

graças ao qual veio a receber, em 1951, o prêmio Attila Jószeff. Sobre

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tal episódio, Jinkings nos informa que: ―A leitura desse estudo fez ainda

Lukács nomear Mészáros seu assistente no Instituto de Estética da

Universidade de Budapeste‖ (ibid.). Mais tarde, nessa mesma

universidade, Mészáros iria graduar-se com honras em Filosofia. É

digno de nota, também, que, entre os anos de 1950 e 1956, foi membro

da Associação de Escritores Húngaros, onde participou ativamente de

importantes debates culturais e literários da época.

Em 1951, ―com a recomendação de Lukács‖, Mészáros tornou-

se membro do Partido Comunista, pois este constituia o espaço mais

propício naquele contexto ao debate sobre a política cultural. Além

disso, era uma profunda convicção de seu antigo mestre que ―o único

meio de intervir de modo eficaz e positivo [na realidade histórica] era

através da mediação do Partido‖ (2009 b, 147).

Mészáros foi assitente, pois, de Lukács entre 1951 e 1956,

quando resolveu emigrar de seu país natal, em virtude das dificuldades

aí existentes, geradas pelos conflitos políticos, que afetavam a ele e a

seu querido amigo e professor. Sobre tal período de sua vida, o filósofo

(2009, 132) relata o seguinte:

Sempre nos olhamos nos olhos – é por isso que eu

queria estudar com ele. Então, aconteceu uma

ocasião em que ele estava sendo feroz e

abertamente atacado em público. Eu não agüentei

aquilo e o defendi; e isso o levou a uma série de

complicações. [...] A razão pela qual deixei o país

foi precisamente porque estava convencido de que

o que acontecia era uma variedade de problemas

fundamentais que o sistema não poderia resolver.

Eu tentei formular e examinar esses problemas em

meus livros, desde então. Em particular em A

teoria da alienação em Marx e Para além do

capital.

Da Hungria, Mészáros foi para a Itália, onde trabalhou na

Universidade de Turim. A partir de 1959, seu destino foi a Grã-

Bretanha, onde lecionou em vários lugares: no Bedford College da

Universidade de Londres (1959-1961), na Universidade de Saint

Andrews, na Escócia (1961-1966), e na Universidade de Sussex, em

Brighton, na Inglaterra (1966-1971). Em 1971, trabalhou na

Universidade Nacional Autônoma do México, e, em 1972, foi nomeado

professor de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade de York, em

Toronto, no Canadá. Em janeiro de 1977, retornou à Universidade de

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Sussex, onde veio a receber o título de Professor Emérito de Filosofia

em 1991. Afastou-se das atividades docentes em 1995 e atualmente vive

na cidade de Rochester, próxima a Londres.

A consciência desses fatos é importante para nós em mais de

um sentido. Acreditamos que, por mais limitadas e escassas que sejam

tais informações - principalmente por se tratar da vida de um filósofo do

quilate de Mészáros, que como vimos teve uma vida riquíssima em

experiências intelectuais, culturais, existenciais e políticas -, elas podem

nos dar algumas luzes a respeito da constituição da teoria do pensador

húngaro.

Por exemplo: a experiência de haver nascido e vivido no seio de

um família da classe trabalhadora, com uma história peculiar de

dificuldades e tormentos, mas onde, ao que tudo indica, se privilegiava a

formação escolar, o estudo, a prática da leitura, a arte - tudo isso não só

como fonte de conhecimento, mas também de ânimo, de consolo, de

energia e de ímpeto de resistência104

para uma alma que não quer

simplesmente se entregar às pressões da adversidade, e por isso arrisca,

apesar dos obstáculos, se afirmar -, pode bem ter servido para que

Mészáros, mais tarde, se interessasse pelo tema da alienação e se

aproximasse de autores – tanto na literatura, como na filosofia e na

teoria social - que envidaram seus esforços na direção da crítica radical

dos fundamentos materiais desse fenômeno.

Não só, evidentemente, os episódios vividos no âmbito familiar

foram importantes, mas sobretudo a vivência prática do trabalho, a

atividade política e cultural já na vida adulta, a experiência adquirida

tanto em países capitalistas como pós-capitalistas, essas coisas todas

acabaram por dar os toques particulares de seu pensamento: um

pensamento voltado a compreender as causas da alienação e os meios

para superá-la; a não ilusão quanto aos países do Leste europeu haverem

logrado chegar à ―nova forma histórica‖; a consciência de que o que

importa é mudar a forma de regulação do intercâmbio dos homens entre

si e entre estes e a natureza; a proposta da negação das mediações

materiais estabelecidas e a conseqüente afirmação de outras, superiores;

o projeto que estabelece a necessidade de se transcender a via

parlamentar propriamente dita para se poder tomar das mãos do capital o

controle sobre a atividade produtiva. A convicção de que a história é um

processo aberto e de que, portanto, os homens e as mulheres não estão

104

Lembremos de um poema de Drummond escrito durante a Segunda Guerra Mundial: ―Mas

um livro, por baixo do colchão,/ era súbito um beijo, uma carícia,/ uma paz sobre o corpo se

alastrando [...]‖ (2007, 203).

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eternamente condenados a uma vida bárbara e degradante. A dispensa do

otimismo ingênuo e a esperança, apesar de todas as dificuldades, na

capacidade coletiva de se libertar do jugo extremamente duro do

capital.105

Enfim, todo um conjunto de problemas, categorias, conceitos,

termos de referência, etc. surgidos a partir da complexa e ricamente

mediada relação do indivíduo com seu tempo histórico. E, além disso,

nesse contexto, também todas as conclusões obtidas acerca da

possibilidade humana de emancipação. Como podemos observar, por

exemplo, nesta singela passagem da entrevista realizada com Ivana

Jinkings (2006 b):

Minha atuação na fábrica de aviões de carga foi

apenas a primeira das muitas que exerci, por

exemplo, na fundição de aço em uma fábrica de

tratores, em duas diferentes funções em fábricas

têxteis (uma delas em um galpão gigantesco e

ensurdecedor, com duzentas máquinas em

operação) […] Ao mesmo tempo, a solidariedade

compartilhada entre as pessoas nesses diferentes

locais de trabalho foi uma experiência comovente

e compensadora. […] Sempre que escrevo sobre a

necessidade vital de solidariedade em qualquer

sociedade viável do futuro, sem a qual a

sobrevivência da espécie humana é inconcebível,

eu o faço com a certeza de que a solidariedade não

é um postulado idealizado, mas um poderoso

princípio prático que guia e enriquece as relações

humanas ainda hoje. […] Não aprendi sobre as

condições de vida da classe trabalhadora por meio

dos livros, eu as vivi diretamente e de muitas

formas.

E foram essas mesmas experiências fundamentais, marcadas a

ferro e fogo em sua personalidade, que levaram o filósofo a, quando

questionado sobre ―como construir uma alternativa de esquerda?‖,

responder sem hesitação: ―Com o ‗coração animado‘ e uma firme

determinação‖ (ibid.). Esse ânimo no coração e essa determinação firme

em auxiliar na construção de uma humanidade emancipada, cultivados

105

Lembramos aqui de uma palestra - realizada em agosto de 2009, na Universidade Federal

do Rio Grande do Sul – na qual pessoalmente assistimos o filósofo, depois de expor aspectos de sua leitura sobre o mundo contemporâneo, afirmar, mais ou menos nestas palavras, que

―diante de tudo isso, não sou otimista, mas tenho esperanças‖.

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por Mészáros, levaram os organizadores da Revista Ensaio a afirmar

sobre ele, depois de haverem constatado a grande inteligência e

delicadeza do ―homenzarrão de alma doce‖: ―Só uma coisa rompe com

o encanto dessa dimensão íntima, e a rompe precisamente para a

confirmar: a aversão, o ódio permanente por tudo que derive da

dominação do capital, em qualquer de suas formas, ou seja, a barbárie

capitalista e a barbárie stalinista‖ (2009 b, 137).

Não temos, com tais palavras, a pretensão de estarmos

desnudando por completo a complexa relação que existe entre Mészaŕos

e seu tempo, a maneira específica como a contraditória dinâmica social

em que viveu foi por ele incorporada ativamente e cristalizada em sua

personalidade, moldando dessa forma suas motivações e anseios mais

íntimos. Em verdade, não dispomos nem de muitas informações para

tanto, nem das ―condições objetivas‖ adequadas para um estudo desse

calibre. Pretendemos, meramente, chamar a atenção para alguns fatos e

levantar questões que poderão, quiçá, ter utilidade para os que, em

pesquisas futuras, se dedicarem a conhecer mais e melhor o pensamento

deste insígne filósofo húngaro.

Por exemplo: ao nos depararmos com a gigantesca tentativa de

síntese teórica realizada por Mészáros em Para além do capital, não

poderíamos nos perguntar, por exemplo, sobre o peso que teve nessa

construção o fato de ele ter vivido na Hungria, um país europeu

―marginal‖, periférico em relação ao sistema, daqueles dias?

Comentando sobre a influência da posição marginal106

de alguns

filósofos sobre a construção das suas filosofias particulares, o próprio

Mészáros (2006, 71) escreveu, em A teoria da alienação em Marx, o

seguinte:

As generalizações filosóficas exigem sempre uma

certa distância ou (―posição marginal‖) do

filósofo em relação à situação concreta sobre a

qual baseia suas generalizações. Isso se deu,

evidentemente, na história da filosofia de Sócrates

106

Aqui, Mészáros não está falando a respeito da posição de classe, mas da posição, digamos

assim, ―sócio-cultural-espacial‖ de um filósofo em relação ao seu contexto histórico específico.

Marx, por exemplo, explica o filósofo húngaro, era ―duplamente marginal‖. Primeiro, por ser

alemão num tempo em que a Alemanha era uma região menos desenvolvida econômica e politicamente que outros países do capitalismo mundial. Segundo, por ser de uma família judia,

o que naquela época implicava em diversos tipos de discriminação. Para Mészáros, essa

condição de dupla marginalidade experimentada por Marx interferiu diretamente na maneira de pensar do filósofo alemão e, conseqüentemente, no modo como acabou por realizar sua grande

obra de síntese teórica.

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a Giordano Bruno, que foram liquidados por

serem marginais radicais. Porém mesmo mais

tarde, os ―marginais‖ desempenharam um papel

extraordinário no desenvolvimento da filosofia: os

escoceses em relação à Inglaterra

economicamente muito mais adiantada; os

filósofos da atrasada Nápoles (de Vico a

Benedetto Croce) em relação à Itália do Norte,

mais adiantada do ponto de vista do capitalismo; e

exemplos semelhantes podem ser encontrados

também em outros países. Um grande número de

filósofos pertence a essa categoria de marginais,

de Rousseau e Kiekegaard até Wittgenstein e

Lukács, em nossos dias.

Ora, sabe-se que o ponto de vista que se adota para a

observação de um determinado fenômeno condiciona o ―horizonte

intelectual‖ do observador em questão. Tal perspectiva, assim definida,

irá responder por uma certa maneira especial de colocar as questões, de

elaborar categorias de análise, de interpretar o material coletado, de

concluir a respeito do objeto que se está estudando, etc. Nesse caso,

além do ponto de vista da ―alternativa hegemônica do trabalho‖, que

Mészáros adota criticamente, o quanto pesou no resultado do seu

monumental trabalho de síntese o fato de ele haver vivido num país

marginal como a Hungria? Quais as possibilidades intelectuais e

sensíveis que essa posição específica facultou ao filósofo? São questões

que, certamente, aguardam ainda uma investigação adequada para que

possam vir à luz as devidas respostas.

Outra questão sobre a qual se pode especular é a seguinte:

Mészáros viu a Segunda Guerra Mundial, a queda do nazi-fascismo, o

nascimento e a morte de muitas revoluções, a Guerra Fria e suas

múltiplas conseqüências, a emergência da crise estrutural do sistema do

capital - expressa em inúmeros acontecimentos sociais, econômicos,

políticos e culturais -, a derrubada do muro de Berlim, o fim da União

Soviética - dentre outros eventos históricos mundialmente relevantes.

Viu também a ascendência de novos e variados movimentos de luta ao

redor do planeta inteiro. Dentre estes, o mais destacado talvez tenha sido o movimento altermundista, o ―movimento dos movimentos‖

107, que

tem se expressado nos Fóruns Sociais, regionais ou mundiais, nas

grandes manifestações contra as guerras imperialistas, contra

107

Para retomar a bela expressão de Löwy e Besancenot (2009).

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organismos internacionais de todo tipo, OMC, FMI, G-8, etc., um

movimento que tem formado, enfim, uma ampla rede descentralizada,

múltipla, diversa e heterogênea, envolvendo sindicatos operários,

movimentos camponeses, ONGs, organizações indígenas, movimentos

de mulheres, associações ecológicas, intelectuais e jovens ativistas por

todo o globo.

Ora, nestes últimos anos, um dos pontos ao qual Mészaŕos tem

retornado constantemente é, justamente, o que diz respeito ao ―sujeito

social da revolução‖, que deve, na sua luta radical pela crítica da ordem

estabelecida do capital, se organizar e agir de um modo já diferente

dessa forma de controle sociometabólico. Nesse sentido, parece-nos

mesmo que Mészáros chegou a formalizar na estrutura conceitual de sua

teoria política o modo de articulação prática desses movimentos sociais.

Com base nisso, poderíamos, pois, dizer que a teoria de Mészáros é a

expressão no plano teórico desses processos materiais, que nos últimos

anos temos visto se realizar? Esta é mais uma questão para a qual, no

momento, não podemos fornecer a resposta, e sim apenas delineá-la, a

fim de que sejam submetidas ao crivo daqueles pesquisadores que, no

futuro, puderem se interessar em verificar a sua pertinência.

De nossa parte, o que seríamos capazes de de afirmar com

segurança sobre Mészáros é que ele não se dirige a todas as pessoas.

Também não procura expressar o ponto de vista de todos. Não busca

uma teoria universal, acabada, fechada, pronta para ser aceita e acatada

cegamente em qualquer local e em qualquer tempo. Não pretende a

elaboração de uma concepção de mundo que explique abstratamente a

totalidade do processo de vida de homens e mulheres, de modo

indistinto, na contemporaneidade. Seu projeto é mais modesto: entender

como é possível aos trabalhadores libertarem-se dos grilhões postos pelo

capital. Quer, sobretudo, pensar a formação social e econômica

atualmente estabelecida em seu processo de mudança, de

transformação, numa palavra, a possibilidade de sua superação.

Aqueles que também compartilham tal projeto tenderão naturalmente a

valorizar a importância das teorizações levadas a cabo pelo autor de

Para além do capital.

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6 CONCLUSÃO: POR UMA EDUCAÇÃO QUE NOS LEVE A

UMA VIDA PLENAMENTE VIVIDA

En la lucha de clases

todas las armas son buenas:

Piedras

Noches

Poemas

Paulo Leminski

O ponto-chave que orienta toda teorização de Mészáros sobre a

educação é já firmemente estabelecido e plenamente visível em seus

primeiros escritos: a realização da transcendência positiva da auto-alienação do trabalho. Desde A teoria da alienação em Marx até seus

textos mais recentes - especialmente A educação para além do capital e

O socialismo no século XXI -, é este o princípio de organização e síntese

de sua reflexão a respeito das maneiras que os homens devem empregar

para se educar se quiserem realmente se emancipar do jugo alienante do

capital.

A crítica radical da alienação do trabalho é o elemento decisivo

para se entender não apenas a proposta de ―contra-interiorização‖ da

realidade histórico-social, que precisa se dar em ambientes formais e

informais de aprendizagem, mas de sua teoria social e política em sua

totalidade. Sem compreender isso, qualquer empreendimento que vise

elucidar criticamente as proposições do filósofo húngaro sobre as

formas – atuais e vindouras - de mediar o sociometabolismo humano

fica tremendamente prejudicado.

A educação é importante para um projeto político-social

alternativo porque a superação da alienação só pode ser feita por meio

de uma atividade autoconsciente. Esta é, pois, a condição para

passarmos de uma situação onde nos encontramos completamente

fragmentados, cindidos, diminuídos, submissos às nossas próprias

criações materiais e estranhos em relação aos nossos semelhantes, para

uma outra, na qual poderemos nos desenvolver ao máximo e nos

tornarmos ricos no sentido qualitativo da palavra: sujeitos que sentem

intimamente a carência de uma multiplicidade de manifestações

humanas de vida.

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Mészáros assume completamente a tese marxiana de que os

homens não estão separados das circunstâncias que os rodeiam.108

Não

há, na história, homem em si, nem circunstância em si. Não existe, de

fato, um abismo entre esses dois termos, e sim uma unidade dialética,

onde os indivíduos sociais transformam a realidade e a si mesmos a

partir de um mesmo movimento, que é mediado sempre pela atividade

consciente. Nesse contexto, se entendemos que a educação não é

simplesmente uma relação de ensino e de aprendizagem que se dá no

âmbito da sala de aula, mas uma forma prática de apropriação ativa do

mundo que ocorre em todos os momentos da nossa vida, podemos

concluir que a educação que os socialistas buscam se confunde com a

própria práxis transformadora (ou revolução permanente). Pois o que

está em jogo, para a emancipação humana, é, justamente, a modificação

radical de como agimos e nos relacionamos no mundo hoje controlado

pelo capital. Em outras palavras: é o próprio modo como hoje nós

interiorizamos as coisas – modo este hierarquicamente estruturado, ―de

cima para baixo‖ –, em todas as esferas da vida, que deve ser mudado.

Nesse sentido específico, é correto afirmar, com Mészáros, que a

atividade revolucionária é uma tarefa educacional.

A educação para a superação da alienação é uma educação,

portanto, que se insere conscientemente na luta de classes. Nesse meio,

ela se desenvolve a partir da adoção crítica de um ponto de vista

adequado, isto é, estruturalmente antagônico em relação ao sistema do

capital. Essa nova práxis compreende tal perspectiva, os interesses que

lhe são inerentes, articula-os em torno de uma ideologia capaz de

proporcionar os devidos ―estímulos mobilizadores‖ para as ações sócio-

políticas da ―classe com cadeias radicais‖ rumo à sua emancipação. É

uma educação que está, pois, consciente de que só uma revolução pode

libertar os trabalhadores da prisão configurada pelos processos alienados

e alienantes de produção e reprodução do capital.

A ciência trabalhada por tal educação, calcada na ideologia e no

ponto de vista específicos aos antagonistas estruturais do capital, é a que

se dedica à ―exposição da atividade prática, do processo prático de

desenvolvimento dos homens‖ (MARX, apud Mészáros, 2008, 103), isto

é, que busca conscientizar sobre como os ―homens reais e ativos‖ fazem

a si mesmos e ao seu mundo exterior a partir das condições transmitidas

pelas gerações que lhes precederam. A educação estética socialista, por

sua vez, é a que combate o esfacelamento da sensibilidade levado a

108

Conforme assinalam as famosas Teses sobre Feuerbach (1978 b).

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efeito pelas relações alienadas do capital e que cria os ―órgãos do

consumo estético‖ exigidos para uma sociedade emanciapada.

Nesse contexto, todas as mistificações sobre as relações dos

homens com os produtos do seu trabalho, onde estes lhes aparecem

como auto-constituídos e dotados de propriedades humanas, devem ser

combatidas. A educação socialista é, por definição, uma educação

desmistificadora dos processos atualmente estabelecidos de controle

sociometabólico, realizados de acordo com as exigências do capital. É,

pois, numa palavra, crítica radical dos fetiches de um sistema que vive

de produzir fetiches.

*

Miren cómo sonríen los presidentes

cuando le hacen promesas al inocente.

Miren cómo le ofrecen al Sindicato

este mundo y el otro los candidatos.

Miren cómo redoblan los juramentos,

pero después del voto doble tormento. (...)

Miren cómo relumbran carabineros

para hacerle premios a los obreros.

Miren cómo se visten cabo y sargento

para teñir de rojo los pavimentos. (...)

Miren cómo le muestran una escopeta

para quitarle al pobre su marraqueta.

Miren cómo sonríen, angelicales,

miren como se olvidan que son mortales.

Violeta Parra

Se as traduções de que dispomos estiverem coerentes com o

original e se o escrutínio que realizamos tiver sido minimamente bem

feito, podemos identificar alguns elementos de descontinuidade no

pensamento de Mészáros ao longo do seu percurso intelectual. Por

exemplo, o conceito de consciência de classe necessária deu lugar ao de

consciência de massa socialista – possivelmente pelo fato de o primeiro

conceito estar condicionado pelo objeto de sua negação e o segundo, ao

contrário, ser afirmativo de uma nova realidade (mas sem dispensar,

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evidentemente, a negatividade).109

Além disso, a crise estrutural do

capitalismo foi substituída, finalmente, pela crise estrutural do sistema

do capital. Talvez possamos afirmar, com base nesse raciocínio, que essas

novidades, que aparecem nos escritos do filósofo húngaro, articuladas

de forma sui generis àqueles elementos de continuidade que permeiam

seu pensamento desde A teoria da alienação em Marx, configuram

aquilo que há de específico em sua teoria da educação: isto é, uma

educação para além do capital – e não apenas do capitalismo, como são

as reflexões educacionais majoritárias no campo teórico da esquerda.

Como mostramos antes, desde a década de 1960 até nossos dias,

a reflexão de Mészáros nunca perde de vista a questão das mediações.110

Essa teorização avança, pois, em profundidade com o passar dos anos. O

filósofo define que, em nossa sociedade, o sistema de mediações de primeira ordem da atividade produtiva é controlado hierarquicamente

pelo sistema de mediações de segunda ordem do capital. A essência

desse processo está no fato de o capital entrar em relação de

antagonismo com os sujeitos da atividade produtiva, subjugando-os e

extraindo deles muito mais do que aquilo que precisariam para suprir

suas carências: o trabalho excedente.

É plenamente adequado, portanto, definir o capital como um

sistema de mediações. Dentro dessa complexa estrutura, uma das suas

partes constituintes mais importantes é o Estado. É por meio, dentre

outras coisas, do Estado, que o capital se auto-organiza, afasta

temporariamente as suas crises, seus limites relativos, etc., sejam eles

internos ou externos. Em síntese: o capital controla o metabolismo

social humano e usa, para tal fim, como meio, essa estrutura específica

que constitui o Estado. É completamente equivocado, pois, de acordo

109

Possivelmente, o mesmo deve ocorrer também com o conceito de ponto de vista do

trabalho. Parece-nos que há algumas sutis modificações a respeito desse tema ao longo da

evolução teórica de Mészáros, embora não saibamos afirmar com precisão o local exato onde a

―ruptura na continuidade‖ se dê. Nossa impressão é de que a noção de ponto de vista do trabalho, por estar ainda determinada pelo objeto de sua negação – o trabalho como

constituinte do sistema do capital -, é substituído depois pelo ―ponto de vista da humanidade

social‖, ―ponto de vista do novo materialismo‖ (ambos os termos são de Marx), ―ponto de vista da alternativa hegemônica do trabalho‖. Talvez isso signifique que o ponto de vista adotado

não pode se constituir apenas tendo-se como referência o objeto de sua negação, mas, ao

contrário, precisa ser afirmativo da ―nova forma histórica‖. Além de uma investigação detalhada sobre essa questão específica, a solução deste problema requer, ainda, uma precisão

maior sobre a terminologia empregada pelo filósofo húngaro, cuja tradução para o português,

como comentamos anteriormente, pode ter sido acometida de imprecisões. 110

É difícil, de fato, ressaltar suficientemente a importância do conceito de mediação dentro

de sua teoria social e política.

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com a teoria de Mészáros, acreditar que o Estado pode controlar o

capital. O que ocorre é exatamente o contrário: o capital se serve do

Estado para momentaneamente harmonizar os seus microcosmos. Ao

longo de sua história, verifica-se que o sistema utilizou, de fato, de

maneira cada vez mais crescente, esse meio para deslocar as suas

contradições, e até mesmo aquilo que se costuma chamar de

neoliberalismo só pôde ser implementado por intermédio de maciças e

profundas ações estatais.

Em virtude de sua própria dinâmica interna, o capital, enquanto

sistema de mediações de segunda ordem que controla e subjuga as

mediações primárias da atividade produtiva, passou por um longo

processo histórico de ascendência até chegar ao ponto de se tornar

hegemônico por todo o globo. Durante sua ascensão, podia solucionar

suas crises imanentes por meio de um processo expansivo, impondo sua

forma de sociabilidade a novos povos e nações. Contudo, uma vez

conquistado o planeta inteiro, encontrou limitações acerbas para sua

expansão (para, portanto, deslocar suas contradições).

Nesse momento, o sistema teve desenvolvidas por completo

certas tendências que já trazia em seu bojo, e que, assim realizadas,

passaram a comprometer sua própria viabilidade. O capital se chocou,

desse modo, com os seus limites absolutos, isto é, limites que não

podem ser transcendidos se não se modifica radicalmente a estrutura de

relações sociais que lhes dão sustentação. Entrou, pois, numa era de

transição, na qual começou a adotar determinados tipos de remédios que

são amargos até para si mesmo.

É exatamente aí que tem início aquilo que Mészáros chama de

crise estrutural do sistema do capital, um período histórico onde a única

maneira encontrada pela ordem sociometabólica vigente para continuar

existindo é fomentar uma forma de produção essencialmente destrutiva,

isto é, tendo a destrutividade como ―motor‖ da dinâmica social. A

destrutividade do capital se expressa sob vários aspectos: na

precarização do trabalho, na degradação ambiental, na obsolescência

planejada – mercadorias produzidas propositalmente para, num

curtíssimo espaço de tempo, se tornarem obsoletas, a fim de que outras

mercadorias sejam fabricadas para substituí-las – no ―complexo militar-

industrial‖, setor chave da economia mundial atual, onde as mercadorias

– artefatos bélicos, etc. – se destroem imediatamente no ato mesmo do

seu consumo, e nas próprias guerras onde todos esses aparatos são

convocados a atuar.

Ora, é exatamente a crise estrutural do sistema do capital, em

razão de sua imensa e cada vez mais abrangente destrutividade – que

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invade até mesmo as relações sociais mais comezinhas –, que confronta

a humanidade com a necessidade de elaborar uma alternativa radical ao

atual estado de coisas.

Para Mészáros, essa alternativa tem nome: socialismo. E isso

depende, justamente, da criação de novas formas de mediações

materiais, que superem de uma vez por todas o sistema de mediações do

capital e permitam à humanidade regular de um modo consciente e não

antagônico o seu sociometabolismo. A ofensiva socialista de que o

filósofo fala é a estratégia para, transcendendo-se a ação política

tradicional situada dentro dos limites do parlamento - e do Estado como

um todo -, levar a efeito tais mediações materiais com a correspondente

forma de consciência e de valores que o movimento alternativo requer.

O projeto socialista exige, portanto, que nos orientemos a partir

de um quadro estratégico adequado de atuação nacional e internacional,

com vistas a irmos para além do capital: para além das mistificações

ideológicas que querem nos manter paralisados e entorpecidos com mais

e mais consumo, para além das mediações práticas antagônicas e

destrutivas que controlam hierarquicamente o metabolismo social

humano. Este é o padrão para definir um projeto qualitativamente

diferente, verdadeiramente alternativo (e não a maior posse, por parte

dos trabalhadores, das múltiplas formas de expressão do capital – por

exemplo: mercadorias ou dinheiro).

A educação para além do capital é a que, pois, concebendo-se

como mediação indispensável, se integra conscientemente nesse projeto

de transição que deverá fazer vir à luz uma sociedade capaz de

proporcionar tempo disponível para a realização de todas as

potencialidades humanas.111

111

Em um estudo lançado recentemente, Justino de Sousa Júnior (2010) se propôs a

estabelecer uma reflexão crítica sobre a educação com o auxílio da teoria de, dentre outros autores, István Mészáros. Infelizmente, no entanto, parece ter tido uma compreensão algo

ambígua a respeito de alguns pontos das formulações do filósofo húngaro, além do que deixou

de fora elementos importantes da reflexão deste autor. Em primeiro lugar, usa como referência termos como Estado ―fraco‖ e ―forte‖, para pensar a específica mediação estatal no contexto de

crise estrutural do capital, e parece atribuir a Mészáros uma teorização semelhante. Se não,

vejamos: ―Acontece que em face da dinâmica mundializada do capital, segundo a estrutura que apresenta, os Estados se mostram relativamente fracos. Essa é a compreensão de Mészáros,

para quem o alcance do controle político dos Estados-nacionais necessariamente se mostra

limitado diante da mundialização do capital‖ (2010, 189). Acontece que, na verdade, Mészáros não só não postula que o Estado é ―relativamente fraco‖ diante da ―mundialização do capital‖

como também não usa essa terminologia. O sistema do capital, em seu movimento de

ascendência histórica, lançou mão cada vez mais dessa mediação específica – o Estado – para harmonizar o movimento centrífugo das unidades produtivas – os ―microcosmos‖ do capital. O

que ocorre é que, no contexto da crise estrutural do capital, o Estado tem cada vez mais

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dificuldades para efetivar essa harmonização, sendo levado de roldão pela produção destrutiva inerente à dinâmica do sistema. Mas isso não quer dizer que ele seja ―fraco‖. A instituição

estatal norte-americana, por exemplo, tem tido tremendas dificuldades, nos últimos anos, para

debelar as crises econômicas naquele país, mas isso não significa que aí o Estado seja ―fraco‖

(Além do mais, a crise estrutural da política, apontada por Mészáros, que leva os Estados do

centro do sistema a cada vez mais intensificarem suas tendências autoritárias ―não apenas no

âmbito internacional, mas também no interior dos países imperialistas dominantes [grifo nosso], a fim de subjugar toda resistência provável [à dominação do capital]‖ (2007, 361)

demonstra cabalmente que não há nada de ―fraco‖ nessa mediação específica do sistema). Em

segundo lugar, e em conseqüência dos conceitos que adota, Sousa Júnior advoga, para que se possa viabilizar uma alternativa à ordem atual, um ―fortalecimento do Estado‖ que é

completamente estranho à teoria de Mészáros. Vejamos o que afirma o autor brasileiro: ―Além

dessa transformação política, o Estado precisaria estar assente sobre transformações econômicas que pudessem redirecionar o sentido da vida social contra a exploração e o

movimento autodestrutivo do metabolismo do capital. Essas transformações poderiam

significar um fortalecimento político e econômico do Estado frente ao mercado mundial, o que é uma condição sine qua non para qualquer possível reconstrução da escola num sentido

democrático e igualitário‖ (2010, 194). Se Sousa Júnior acredita nisso, não pode se basear em

Mészáros para fundamentar tal proposta. Para o filósofo húngaro, o Estado pode e deve ser usado dentro de um projeto alternativo radical de sociedade, mas não é no sentido de seu

―fortalecimento‖, e sim no de sua completa reestruturação a fim de que se possa cada vez mais transferir o poder de decisão sobre os processos sociometabólicos aos produtores associados.

Mas isso – frise-se bem – deve ser realizado concomitantemente à formação das ―mediações

materiais extraparlamentares‖, estruturadas horizontalmente e de modo não-antagônico, capazes de regular conscientemente a atividade produtiva. (Tal medida revolucionária pode

mesmo ser implementada antes da tomada do Estado propriamente dita, de acordo com as

reflexões estabelecidas pelo filósofo húngaro – feitas já desde 1977 e retomadas em Para além do capital - de que, se não eliminados os antagonismos da divisão hierárquica estrutural do

trabalho antes da tomada do Estado, este fato poderá levar à produção de uma ditadura sobre o

proletariado, tal como ocorreu nas sociedades pós-revolucionárias do século XX. Em outras palavras, a tomada do Estado deve estar fundada em uma revolução social radical e

conseqüente.) Tal ponto para Mészáros é fundamental, pois evita, justamente, o surgimento das

ditaduras sobre o proletariado, como as que vimos no decorrer do século passado. Outra questão: Sousa Júnior critica de forma abstrata a ―divisão social do trabalho‖ (ibid., 190), mas

esquece de dizer que o elemento problemático do capital é que essa divisão aí ocorre de forma

hierárquica, e que a emancipação humana – pelo menos da forma como Mészáros a concebe – não dispensa uma certa divisão de tarefas, que deve ser realizada de modo horizontal e

conscientemente decidida pelos produtores associados. Isto não é, para o filósofo húngaro,

contraditório com a sustentabilidade e com o livre desenvolvimento das múltiplas potencialidades dos indivíduos. Finalmente, Sousa Júnior parece não explorar adequadamente

a concepção ―ampliada‖ de Mészáros de que a educação não se dá somente na escola, mas

fundamentalmente fora dela, nos âmbitos informais de interiorização do mundo (salvo engano, há em seu texto uma única menção tímida ao assunto, feita numa nota de rodapé na penúltima

página do livro).

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*

Vai o feijão, vai o café

Vai o amor daquela mulher

Mesmo não tendo dinheiro

Mesmo perdendo a razão

Me resta ainda o direito de ser

Consciente da situação

Josias Sobrinho

Citações de Marx, Engels, Lenin, ou de quem quer que seja, não

podem constituir o ponto de partida para uma educação transformadora.

Em verdade, esse ponto de partida deve ser buscado na crítica das

mediações materiais antagônicas que compõem o sistema do capital – as

―condições realmente dadas‖, de que o filósofo húngaro fala, bem como

as suas ―conceituações tendenciosas‖ (2009 c, 261). Acreditamos que,

de acordo com a teoria de Mészáros, sem tocar tais problemas, não há a

mínima possibilidade para se delinear nem mesmo um esboço primário

de uma proposta alternativa de educação capaz de auxiliar o projeto da

emancipação humana. Somente com o desvelo dessas questões se torna

possível elaborar uma estratégia política – que envolverá, pois, a

educação - para o enfrentamento e superação da ordem sociometabólica

vigente.112

Compreendendo-se, por exemplo, que o capital é uma forma

112

Estratégia esta, como esclarecemos anteriormente, definida em oito pontos arquimedianos:

o primeiro deles, o imperativo de trazer à luz uma ordem alternativa historicamente sustentável, a fim de superar o enorme desperdício de recursos naturais e humanos levados a

cabo pela lógica capitalista do lucro; o segundo, promover a real participação dos ―produtores

associados‖, com a conseqüente transferência progressiva do poder de decisão a estes, com vistas a transformá-los em sujeitos do poder de uma forma de atividade produtiva estruturada

de maneira não-hierárquica; o terceiro princípio, o da igualdade substantiva, ilustrada

historicamente na máxima socialista ―de cada um conforme sua capacidade, a cada um conforme sua necessidade‖, proposta lançada para substituir a igualdade meramente formal

vigente no sistema do capital; o quarto princípio é o do planejamento, que deve ser realizado

pelos produtores associados, no intuito de fazer vir à tona um modo de existência social que não agrida as condições materiais de existência e que torne possível a reprodução do gênero

humano sobre o planeta numa perspectiva de longo prazo; o quinto princípio é do crescimento

qualitativo em utilização dos produtos do trabalho, para que se possa combater a destruição totalmente perdulária que satisfaz as demandas do capital auto-expansivo; o sexto princípio diz

respeito à complementaridade entre os âmbitos nacional e internacional nas lutas pela

emancipação humana; o sétimo princípio refere-se à unificação das esferas da reprodução material e da política, que foram separadas pelo capital durante seu movimento auto-

constitutivo; o oitavo e último principio envolve, pois, a educação, formal e não formal, como

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de controle hierarquicamente estabelecida sobre o trabalho, pode-se

conseqüentemente negar essa estrutura e afirmar uma nova forma –

articulada horizontalmente e calcada na igualdade substantiva - de

organização da atividade produtiva.

A educação é, assim, parte de um projeto político-social -

mediação coadunada com outras mediações - que deve

progressivamente negar a sociabilidade cristalizada e afirmar uma

alternativa viável em relação a ela. É esse movimento que constitui a

crítica radical, a práxis revolucionária rumo à comunidade humana

emancipada, a sociedade regulada pelos produtores livremente

associados.113

É importante ressaltar essas questões, pois Mészáros volta a elas

constantemente. É a crítica teórico-prática da ordem do capital que

deve constituir a forma da educação transformadora. Não se pode ter

equívocos quanto a isso. Sabemos, por exemplo, de algumas correntes

de interpretação que propõem o ―trabalho‖ como ―princípio educativo‖

de uma educação emancipadora. Não vamos afirmar aqui que isso não

possa ser tentado como alternativa às práticas estéreis atualmente

estabelecidas no capitalismo - com divisão entre matérias e conteúdos,

separação de teoria com a prática, etc. -, que só reproduzem a ordem

vigente. Mas se esse ―trabalho‖ for implementado e mantido de uma

forma hierarquicamente estruturada, então não cumprirá com sua

intenção revolucionária. Nesse sentido, se tivéssemos que estipular um

―princípio orientador‖ para a educação socialista, talvez pudéssemos

dizer que este deveria ser a crítica radical do sistema do capital, ou,

para retomar as palavras de Mészáros, a transcendência positiva da

auto-alienação do trabalho - e não meramente o ―trabalho‖ tomado de

maneira abstrata.

O mesmo vale para as linhas interpretativas que estabelecem

que a tarefa precípua da educação é transmitir o ―conhecimento

universal‖ para as classes trabalhadoras. Talvez se possa, de fato,

considerar isso algo desejável – parece-nos mesmo muito melhor que a

proposta de desenvolvimento de ―competências‖ para a pessoa se inserir

acriticamente na dinâmica do mercado -, mas se esse ―conhecimento

universal‖ for trabalhado, como dissemos, da forma como se estabelece

alavanca para produzir o desenvolvimento contínuo da consciência e dos valores socialistas necessários para a realização da comunidade humana emancipada, uma educação que se

converta, em última instância, em auto-educação permanente para uma sociedade que supere

definitivamente as determinações fetichistas do sistema produtor de mercadorias. 113

Mais um ponto da obra de Mészáros que é difícil frisar suficientemente: seu conceito de

critica.

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a dinâmica do capital – hierarquicamente estruturada, fetichista,

alienante –, esta lógica de relações sociais será somente reproduzida, ao

invés de superada.

Ora, Mészáros não autoriza nenhuma proposta de educação

calcada meramente no ensino de ―conhecimentos‖, sejam estes de que

ordem forem. O que ele propõe é o ser consciente, a consciência de massa socialista, e, ainda, uma ―ideologia emancipadora‖, ―crítica‖, o

que não se faz exatamente com a difusão de ―conhecimentos‖, mas por

meio de uma prática adequada. Não se pode, aqui, correr o risco de se

cair num projeto ―iluminista‖ de educação, revestido com uma

terminologia marxista idealisticamente articulada. Erudição pode até ser

algo desejável e útil para uma educação transformadora, mas ela por si

só não é sinônimo de crítica, nem mesmo de consciência socialista. É

perfeitamente possível haver, por exemplo, um sujeito qualquer repleto

de ―conhecimentos universais‖ - digamos que saiba as obras completas

de Shakespeare (se é que se pode de fato considerar tal conteúdo como

―universal‖...) – e que não seja consciente nem crítico no sentido de

negar a ordem do capital e afirmar a nova forma histórica. Uma

educação transformadora é, em verdade, muito mais uma questão de

ideologia crítica do que de ―conhecimentos universais‖ – embora,

evidentemente, uma coisa não exclua a outra.

A proposta de Mészáros é, parece-nos, mais radical e coerente,

pois se orienta, justamente, pela crítica – ressaltemos mais uma vez:

conjugação de negação e afirmação – do sistema de exploração de

trabalho excedente hierarquicamente estruturado que constitui o capital.

Exige, pois, uma ampla e profunda modificação de práticas e relações

materiais – ou seja, dos sistemas de mediações atualmente estabelecidos

-, que deve se dar com base no objetivo de transferir o poder de decisão

sobre os processos sociometabólicos da humanidade para os produtores

associados. Por isso, a reflexão sobre educação não pode se realizar

meramente tendo-se em vista os ambientes formais de ensino, mas sim,

sobretudo, as esferas informais de apropriação dos produtos históricos.

Nessas duas ―frentes de batalha‖, ela necessita se estabelecer como

prática que é, assim como a revolução, permanente e auto-determinada. Nesse sentido, acreditamos poder dizer que a teoria socialista

da educação deve ser concebida primeiramente como teoria política,

isto é, como teoria da transformação revolucionária do mundo. É a

crítica das mediações de segunda ordem do sistema do capital que nos

dá, pois, a chave para a formulação de um projeto consistente de

educação para um período histórico de transição, como o que vivemos

atualmente.

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273

*

Mais honra o meu estilo aquele que aprende como

superar o mestre.

Walt Whitman

Essas reflexões nos ajudam a aclarar mais a questão da

especificidade da educação transformadora no pensamento de Mészáros,

mencionada mais acima. O trabalho é um processo ininterrupto pelo

qual os seres humanos se apropriam do mundo objetivo e se objetivam

nessa mesma realidade. Em momentos históricos idos, a apropriação e a

transmissão de conhecimentos se confundiam mesmo com a própria

dinâmica do trabalho, isto é, não se separavam dele. Foi em virtude de

determinadas circunstâncias históricas concretas que uma certa prática

de ―aquisição de conhecimentos‖ se apartou da atividade produtiva e se

―cristalizou‖ como ―educação‖, como pedagogia, etc.

Numa sociedade emancipada, contudo, é razoável crer que essas

duas formas de atividade não estejam mais desvinculadas entre si.

Quando Mészáros fala, portanto, que ―a educação é a própria vida‖, está

querendo propor, com isso, que nós não podemos mais conceber a

educação como algo ―à parte‖ de todos os outros âmbitos da atividade

social, e que o que se nos impõe é a necessidade de rearticularmos essas

esferas todas que a sociedade dividida em classes separou. Nesse sentido

―ampliado‖, a educação se confunde com a vida – porque o trabalho se

confunde com a vida - e, mais, com a própria práxis revolucionária –

isto é, com a práxis coletiva auto-consciente que supera a separação

entre a economia e a política, entre a atividade produtiva e a decisão

sobre os seus rumos.

Mas essa proposta que mescla a educação com a própria vida, e

também com a práxis revolucionária, em Mészáros, é apenas um lado da

moeda, o lado, por assim dizer, ―geral‖ da educação. Há, também, nesse

meio, um elemento específico, que fica claro em muitos pontos da obra do filósofo húngaro: a proposta da generalização de um pensamento

crítico, como esclarecemos antes. Mas, crítico de que? Crítico do capital

– e não somente do capitalismo -, e este ponto faz a diferença toda.

Isto deve ficar claro, a nosso ver, para que os educadores

revolucionários não alimentem ilusoriamente a idéia da especificidade

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da educação como ―transmissão de conhecimentos‖ – mesmo porque, a

rigor, a transmissão de conhecimentos pode ocorrer em praticamente

qualquer âmbito da atividade social humana. Por exemplo: um sujeito

que passe algumas horas pesquisando por conta própria na internet pode

adquirir mais conhecimentos do que num semestre inteiro de faculdade,

feito muitas vezes num ambiente hostil, maçante e enfadonho.

Não queremos dizer com isso – frisemos mais uma vez este

ponto – que a transmissão de conhecimentos não possa, ou não deva, se

dar num processo educacional transformador, nem que não haja uma

diferença de saberes e de papéis que num primeiro momento se

verificaria na relação entre professor e aluno. Afirmamos, isto sim, que

tal coisa pode ocorrer de início, mas a prática envolvida precisa se

orientar, progressiva e permanentemente, rumo a uma situação em que

se minimize essa distância e, além disso, na qual o educando se torne

cada vez mais autônomo frente ao educador, numa relação que, também,

cada vez mais, seja vivida pelos sujeitos participantes de uma forma

horizontal.

Tal prática é fundamental para a generalização do pensamento

crítico – porque este, precisamente, não pode vir à luz a não ser se

estiver, justamente, acompanhado por um conjunto de práticas e relações

sociais correspondentes. Se o controle hierárquico da atividade vital é

uma condição para a existência do capital, esse tipo de situação deve ser

quebrado também por meio da atividade educacional. O pensamento

crítico – do capital! -, enquanto negação de uma dada realidade e

afirmação de uma nova, não pode ser ―transmitido‖ do alto por quem

quer que seja. Ele só pode ser construído em conjunto por meio de

práticas conseqüentemente adotadas, no interior das quais, ―educadores‖

e ―educandos‖ perdem gradativamente – não de forma linear, mas no

sentido da Aufhebung hegeliana – a condição de pólos opostos entre si.

A especificidade do educador socialista, em resumo, é que ele trabalha

por generalizar o pensamento crítico, mas o faz não ―de cima‖, e sim por

meio de uma relação prática adequada – não só em ambientes formais,

mas sobretudo informais - e fundamentalmente articulada com um

projeto político mais amplo, com um sentido coerente, no qual pode

ocorrer, sim, a ―transmissão‖ de algum conhecimento.

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275

*

Quereis saber

como eu me faço

ou de mim como eu me quero?

é fácil:

cultivo em mim os meus contrários

e a síntese dos termos cultivo,

sabendo que o canto é quando

e a palavra é onde,

e que ela o ultrapassa

mais que o complementa.

Affonso Romano de Sant‘Anna

É o projeto de crítica radical da sociedade do capital, como

mencionamos, que nos impõe a necessidade de concebermos a educação

dentro de uma perspectiva mais ampla, não só restrita às instituições

formais, mas na qual todas as atividades sociais de interiorização do

mundo passam para o centro das preocupações.

Como Marx demonstrou, os homens fazem a sua própria

história a partir das condições legadas pelas gerações passadas.

Constituem-se como tais através da sua práxis, das relações que

estabelecem com os outros homens e com a natureza no seu movimento

de vir-a-ser. Apropriam-se do mundo, incorporam-no às suas práticas

sociais, modificam-no e criam uma nova realidade, interna e

externamente, onde são impressas características humanas. Nesse

contexto, ao longo da sua formação histórica, a humanidade, em razão

de circunstâncias muito específicas, acabou por produzir um

determinado conjunto de mediações de segunda ordem, essencialmente

antagônico, que passou a controlar e a organizar os processos primários

por meio dos quais o ―real‖ era apropriado e transformado. O capital se

tornou, assim, o responsável pela conformação da interiorização

humana, e é tal estrutura, justamente, que tem de ser transcendida.

As formas de apropriação do mundo que o capital controla não se dão somente na escola ou na universidade, mas na vida como um

todo. Por causa disso, a educação revolucionária não pode visar apenas

os ambientes formais de ensino, mas sim se voltar para todas as outras

atividades em que a interiorização (ou internalização) ocorre, a fim de

produzir uma contra-interiorização radical. Não mais hierárquica,

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fetichista, perdulária, destrutiva, e sim sustentável, cooperativa,

consciente, emancipada, numa palavra, socialista. Por tal razão, uma

educação alternativa só pode ser bem fundamentada se estiver amparada

por uma teoria política concretamente produzida para fins específicos

de confrontação de um sistema determinado de relacionamento social.

Isto deve estar claro para os sujeitos envolvidos com atividades formais

de ensino, pois eles necessitam ser capazes de fazer com que a sua

instituição específica se abra para toda a sociedade, a fim de poder se

articular com os movimentos materiais que visam superar a ordem do

capital rumo à ―nova forma histórica‖.

A teoria de Mészáros é, portanto, uma defesa intransigente e

sem concessões de que as instituições de ensino e seus participantes –

educadores, educandos, trabalhadores da educação, comunidade escolar

– entrem numa relação dialética com os processos políticos e sociais

que, em nosso tempo, visam à construção do futuro emancipado da

humanidade. Isto não significa, contudo, que tal teoria não diga algo

digno de poder ser utilizado para orientar ações dentro do âmbito da

escola ou da universidade. Por exemplo: se a atividade organizada pelo

sistema fetichista de exploração de trabalho excedente é estruturada

hierarquicamente, a prática superadora de tal conjunto de relações

precisa se ordenar de modo diverso. Isso pode ocorrer tanto no que toca

à própria estrutura institucional como no interior da sala de aula: um

movimento progressivo de transcendência da forma da interiorização

que se dá de acordo com a lógica do capital, para uma outra, não

fetichista, horizontal, cooperativa, auto-determinada. É esse novo tipo

de prática social que, implementado de modo adequado, torna possível a

generalização do pensamento crítico do capital e a formação da

consciência de massa socialista de que fala Mészáros.

A respeito dessas questões, vale dizer ainda que, apesar de ser

um pouco mais raro no conjunto de sua obra, o tema da ação dos

professores em sala de aula não é estranho ao pensamento do autor de A

educação para além do capital. Nesse sentido, é útil mencionar duas de

suas entrevistas recentes. Na primeira delas, ao receber o

questionamento, ―qual papel cabe ao professor da escola formal?‖, o

filósofo (2009 d) respondeu:

O grande desafio de nosso tempo é o de como

ampliar as margens do pensamento crítico - tarefa

para a qual tanto a educação formal quanto a não

formal podem contribuir substantivamente. As

pessoas que participam das instituições

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educacionais formais podem dar sua importante

contribuição de duas formas distintas, mas

interligadas. Em primeiro lugar, podem fazer com

que seus alunos estejam atentos para o papel vital

da consciência crítica, remetendo os temas

maiores da crise de nossa ordem social, contra a

tendência dominante de evasão institucionalizada.

Sem mencionar a autocomplacência pretensiosa

do tipo Pangloss [preceptor do jovem Cândido em

Cândido e o Otimismo, de Voltaire (1694-1778),

caracterizado por visão ingenuamente otimista

dos homens e das coisas], pregando que ―vivemos

no melhor de todos os mundos possíveis‖.

Em segundo lugar, podem trabalhar com diversas

outras pessoas que têm as mesmas preocupações,

incluindo aqueles da mídia que se recusam a

aceitar o papel apologético a eles destinado,

criando formas alternativas e estruturas auto-

sustentáveis de educação. Devemos nos lembrar

que nas fases iniciais do desenvolvimento do

movimento trabalhista havia muitas experiências

educacionais gerenciadas - com a finalidade de

seu próprio desenvolvimento político e intelectual

- pelos seus participantes. Uma das principais

figuras do movimento socialista, Rosa

Luxemburgo, foi professora de economia política

em uma dessas escolas informais, de criação e

sustentação autônomas.

As pessoas que atuam no campo da educação

formal não podem desempenhar plenamente seu

papel emancipador caso se mantenham isoladas

desse potencial - viável na prática e socialmente

necessário - de desenvolvimento educacional

alternativo. Mas o que elas podem atingir juntas é

de grande importância.

Na segunda entrevista, quando perguntado sobre ―Como podem

os professores universitários contribuir para o processo de ir para além

do capital?‖, Mészáros (2009 e, 537-8) assinalou:

Os professores universitários têm uma importante

tarefa no sentido de desenvolver a consciência

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sobre o que está agora em risco em nosso período

histórico de crise sem precedente. Eles podem

fazer isso se assumirem seu papel de intelectuais

críticos, no sentido mais amplo do termo.

Infelizmente, os termos ―crítico‖ e ―teoria crítica‖

não são somente freqüentemente mal usados, mas

utilizados de uma forma bastante enviesada, seu

uso é também ―abusado‖ para propósitos

apologéticos. Isso é feito quando se fala sobre a

necessidade de engajamento crítico com as

questões da atualidade, mas com a fala envolta em

várias camadas de jargão acadêmico a tal ponto

que, como resultado, até mesmo as próprias

questões tornam-se irreconhecíveis e totalmente

inadequadas para o objetivo de implementar

qualquer mudança. Ao invés de intervir da forma

exigida, a aparência de uma crítica

academicamente respeitável – que afirma ver pelo

menos três lados de uma moeda em particular –

isenta as pessoas envolvidas de qualquer oposição

real às questões debatidas. Assim, ao invés de

crítica efetiva, temos uma curiosa forma de

acomodação aos interesses subjacentes escusos.

Tal ―crítica‖ é, de certo ponto, uma parte integral

da ideologia dominante e é generosamente

promovida nesse sentido. [...]

Professores universitários podem fazer muito

melhor do que isso. Eles deveriam não ter receio

de acusações – tendenciosamente feitas contra

eles pelos defensores da ordem estabelecida –

pois, ao insistir na relevância prática das questões

que eles levantam, eles são promotores de uma

ideologia, enquanto a própria ideologia dominante

firmemente arraigada se situa ―acima da

ideologia‖. Essas são manobras bem estabelecidas

do status quo, feitas para desarmar os adversários

potenciais não por argumentos, mas por meio de

uma desqualificação falaciosa e prevista. O que

deve ser claramente e fortemente expresso pelos

professores universitários genuinamente críticos é

(1) que não é possível produzir mudança juntando

aqui e acolá a ordem cultural e social dada, como

já demonstrado de forma conclusiva pelo

completo fracasso do passado reformista, já que a

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crise estrutural profunda de nosso tempo exige

uma transformação abrangente sem paralelos; e

(2) que as próprias questões tornem a intervenção

prática defendida, em um sentido substantivo e

não somente convenientemente formal,

extremamente urgente. Pois em nosso tempo não

estamos somente testemunhando o mais

irresponsável ataque à natureza feito pela ordem

metabólica social indefensável do capital, mas

também o surgimento e busca de guerras

genocidas como tentativa absurda de superar a

crise estrutural do sistema.

E, finalmente, quando perguntado acerca de qual o papel dos

educadores sociais comprometidos com a transformação dos processos

sociais que regem atualmente o metabolismo da humanidade, o filósofo

húngaro (ibid., 538-9) asseverou:

O compromisso dos educadores com os

movimentos sociais e seu dedicado trabalho em

ajudar a aumentar a influência desses movimentos

em nossa sociedade podem ter um papel

importante positivo hoje. Já que estamos sujeitos à

crise estrutural do modo do capital de reprodução

metabólica em geral, as instituições tradicionais

que tomam as decisões políticas, como regra,

fracassam em atender a esse desafio. Ao contrário,

eles tendem à inércia das determinações quase

automáticas do sistema, completamente em

sintonia com os interesses escusos dominantes,

independentemente de quão desastrosas as

conseqüências possam ser. Movimentos sociais, a

exemplo do Movimento dos Trabalhadores Rurais

Sem Terra (MST), oferecem a perspectiva da

alternativa positiva possível nesse aspecto no

domínio da atividade. [...]

É, portanto, muito importante colaborar com as

pessoas que têm um papel militante em

movimentos sociais como o MST, para fortalecer

sua posição e estender a influência de sua

atividade na sociedade como um todo. Há também

tarefas educacionais vitais que devem ser

diretamente feitas nesse sentido, de tal forma a

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estabilizar e reforçar as comunidades do MST

específicas e fazer de seu funcionamento normal –

incluindo o desenvolvimento intelectual e humano

das gerações mais jovens – um funcionamento

sustentável e positivamente satisfatório. Neste

sentido, educadores que se comprometem a

trabalhar com grande dedicação em tais

movimentos são realmente parte de uma iniciativa

que certamente contribui, em tempo devido, para

uma mudança histórica significativa.114

114

Apesar de, na obra de Mészáros, como dissemos, não serem muito numerosas as

referências positivas às práticas educativas formais – sejam elas no âmbito da escola ou da

universidade – as passagens acima citadas mostram que o filósofo húngaro não está alheio ao tema e não desconsidera sua importância. Acreditamos que são justamente tais reflexões que

permitem que estimulemos um profícuo diálogo e intercâmbio crítico entre as suas proposições

e as teorias de outros pensadores situados do lado emancipador da luta de classes. Um destes, segundo nosso entendimento, seria o psicólogo marxista soviético Lev Semionovitch Vigotski,

que teorizou amplamente, nas décadas de 1920 e 1930, sobre a aprendizagem e o

desenvolvimento psicológico, centrando sua análise, dentre outras coisas, sobre o tema da internalização. Em um de seus textos mais instigantes, Psicologia concreta do homem - um

manuscrito de 1929 - Vigotski defendeu a tese de que as relações que constituem as funções

psicológicas complexas – ou superiores, isto é, aquelas que os seres humanos controlam conscientemente - são internalizações das relações reais, estabelecidas entre pessoas em

sociedade. É por essa razão que toda função psicológica complexa aparece em cena, no

indivíduo, duas vezes, em dois planos – primeiro, social; depois, psicológico: ―primeiro entre as pessoas como categoria interpsicológica, depois – dentro da criança‖ (2000, 26). A

passagem ―de fora para dentro‖, isto é, a internalização – ou interiorização -, da relação social, por ser um movimento ativo, transforma o processo, sintetiza-o. Nesse contexto, continua o

psicólogo soviético: ―paráfrase de Marx: a natureza psicológica da pessoa é o conjunto das

relações sociais, transferidas para dentro e que se tornaram funções da personalidade e formas da sua estrutura‖ (ibid., 27). As operações psicológicas são sempre originadas, então, a

partir da influência social sobre o indivíduo, com ajuda de mediações, e se estabelecem

primeiramente na forma de relação entre duas pessoas. A forma dessas operações é, por assim dizer, a união de duas pessoas em uma pessoa, ou, noutras palavras, a atividade de sintetização

interna (psicológica) de uma relação externa (social). Daí Vigotski estabelecer que: ―A sócio-

gênesis é a chave para a conduta superior‖ (ibid., 31). Em um outro escrito, igualmente instigante e esclarecedor, o célebre psicólogo marxista desenvolveu mais ainda tais idéias.

Trata-se do 4 º capítulo de A formação social da mente, intitulado de Internalização das

funções psicológicas superiores. Nessa obra, o autor aprofunda, detalha e esclarece, justamente, o que consiste o processo de internalização. Leiamos, pois, uma passagem lapidar

da teorização do genial psicólogo marxista: ―Um bom exemplo desse processo [de

internalização] pode ser encontrado no desenvolvimento do gesto de apontar. Inicialmente, este gesto não é nada mais do que uma tentativa sem sucesso de pegar alguma coisa, um

movimento dirigido para um certo objeto, que desencadeia a atividade de aproximação. A

criança tenta pegar um objeto colocado além de seu alcance; suas mãos, esticadas em direção àquele objeto, permanecem paradas no ar. Seus dedos fazem movimentos que lembram o

pegar. Nesse estágio inicial, o apontar é representado pelo movimento da criança, movimento

este que faz parecer que a criança está apontando um objeto – nada mais que isso. Quando a mãe vem em ajuda da criança, e nota que o seu movimento indica alguma coisa, a situação

muda fundamentalmente. O apontar torna-se um gesto para os outros. A tentativa mal-sucedida

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281

da criança engendra uma reação, não do objeto que ela procura, mas de uma outra pessoa.

Conseqüentemente, o significado primário daquele movimento mal-sucedido de pegar é

estabelecido por outros. Somente mais tarde, quando a criança pode associar o seu movimento à situação objetiva como um todo, é que ela, de fato, começa a compreender esse movimento

como um gesto de apontar. Nesse momento, ocorre uma mudança naquela função do

movimento: de um movimento orientado pelo objeto, torna-se um movimento dirigido para uma outra pessoa, um meio de estabelecer relações. O movimento de pegar transforma-se no

ato de apontar. Como conseqüência dessa mudança, o próprio movimento é, então, fisicamente

simplificado, e o que resulta é a forma de apontar que podemos chamar de um verdadeiro gesto. De fato, ele só se torna um gesto verdadeiro após manifestar objetivamente para os

outros todas as funções do apontar, e ser entendido também pelos outros como tal gesto. Suas

funções e significado são criados a princípio, por uma situação objetiva, e depois pelas pessoas

que circundam a criança‖ (1990, 63-4). Portanto, um determinado gesto é, de início, ―bruto‖,

sem significado, um movimento que se pode chamar de ―em si‖. Em seguida, uma pessoa

―madura‖, isto é, que possui as funções psicológicas superiores desenvolvidas, que já internalizou signos e controla conscientemente seu comportamento, atribui um significado ao

movimento da criança. O ato se torna, então, para outro. Finalmente, a criança internaliza o

significado e passa ela mesma a, toda vez que deseja realizar tal ação, controlá-la voluntariamente. É o momento em que o ato é para si. Temos, então, que: em si, para outro,

para si consiste no esquema geral do processo de internalização e de construção das funções

psicológicas superiores, da unidade consciente entre pensamento e ação. A internalização é, portanto, um processo de reconstrução psicológica da atividade social tendo por base as

operações com mediadores especiais, os signos. Os signos, existentes primeiro no plano da

relação interpessoal, são radicalmente modificados e reconstruídos interiormente. Ainda em A formação social da mente, Vigotski delineia raciocínios sobre as conseqüências e implicações

de suas pesquisas para a prática pedagógica – especificamente nos capítulos 7 e 8, sobre o

brinquedo e a escrita, respectivamente. O mesmo se dá em outros lugares, quando o psicólogo marxista teoriza sobre a zona de desenvolvimento proximal e a importância do papel da

imitação na aprendizagem. Cabe aqui a questão: seria possível que tais idéias, assimiladas criticamente, enriquecessem o arcabouço mészáriano na tentativa de formulação de uma teoria

da educação transformadora radical e verdadeiramente consistente? Infelizmente, não

dispomos de espaço para desenvolvermos maiores reflexões sobre esses importantes assuntos. De qualquer forma, vale a pena mencionar ainda que, em um de seus estudos mais importantes,

o clássico A construção do pensamento e da linguagem (2001), Vigotski demonstra

detalhadamente como se dá a internalização em relação a essas duas fundamentais funções psicológicas humanas. A fala, diz ele, é, num primeiro momento, social. Em seguida, passa por

um estágio intermediário, a chamada linguagem egocêntrica. Só depois é que ela se torna

linguagem interior. Enquanto a fala não é internalizada ela não serve de instrumento do pensamento. O instrumento que a criança utiliza são os outros, fazendo apelos verbais a estes

para que lhe satisfaçam as necessidades. A esta fala, o psicólogo marxista chama de discurso

socializado. Depois de interiorizada a linguagem, a criança se torna capaz de apelar para si mesma na resolução de um problema. O discurso agora é interior. Desse modo, a linguagem

adquire uma função planejadora. É como se a criança estabelecesse, interiormente, um diálogo

consigo mesma em busca da solução de um desafio. A comunicação, bem como as ações em geral, que antes eram algo ―desorganizado‖, tornam-se controladas a partir do interior, a partir

do pensamento tornado verbal. Para finalizar, devemos dizer ainda que, segundo Vigotski

afirma no 5º volume de suas Obras escogidas (1997), o esquema geral desses processos de internalização, de aprendizagem e de desenvolvimento psicológico vale também para as assim

chamadas pessoas com necessidades educativas especiais, fato que acarreta suas devidas

implicações no plano pedagógico (esta breve menção à educação especial é para lembrar que esse ramo específico da atividade educativa também deve merecer atenção por parte dos

educadores revolucionários).

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282

*

Há homens que lutam um dia, e são bons.

Há outros que lutam um ano, e são melhores.

Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito

bons.

Mas há os que lutam por toda a vida: estes são os

imprescindíveis.

Bertolt Brecht

Tais foram, pois, os resultados a que chegamos a partir da

pesquisa sobre o conceito de educação em István Mészáros, construído

em íntima relação com sua teoria social e política. Devido às limitações

de nossa capacidade crítica e investigativa, entregamos ao público um

trabalho certamente repleto de lacunas. Seguimos, contudo, o conselho

de Paul Baran: ―é melhor tratar imperfeitamente o que é importante do

que atingir habilidade extrema no trato de questões irrelevantes‖ (1984,

51).

Apesar disso, cremos que os elementos aqui tratados a respeito

das formulaçãoes teóricas do ilustre pensador húngaro podem ter

alguma valia para as lutas pela emancipação humana no século XXI.

Serão essas idéias ouvidas? Conseguirão novamente os trabalhadores

perceber que ―é só porque estão de joelhos que os grandes lhes parecem

grandes‖, e então compor uma força material, organizada e coesa, a fim

de se levantar e confrontar a estrutura de relacionamento social que lhes

aprisiona e oprime? Sem cair em desvarios ingênuos sobre facilidades

ou pretensas ―inevitabilidades‖ do caminho, guardamos somente uma

profunda esperança nessa possibilidade e assumimos de corpo e alma a

aposta conseqüente.

Queremos fazer, por fim, uma última reflexão acerca de nosso

objeto de estudo: por tudo o que foi exposto até agora sobre o

pensamento de Mészáros, de que maneira seria possível resumir, em

breves palavras, sua concepção sobre a educação transformadora,

radicalmente crítica, urgentemente necessária para a definitiva

superação da ordem do capital rumo à comunidade dos homens e

mulheres emancipados? Cremos, pois, que existam algumas passagens

de sua extensa obra - de textos seus menos conhecidos - que se adequam

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a um propósito sintetizador de maneira bastante eficaz.

A primeira delas é de um artigo escrito em homenagem a Paul

Sweezy, trazido à luz logo após o falecimento deste grande intelectual

marxista. Mészáros afirma, de forma contundente, que esse excepcional

economista norte-americano havia levado, sem sobra de dúvida, ―uma

vida plenamente vivida: uma vida dedicada até o fim ao serviço do

nosso futuro socialista‖ (2004). Há que se ressaltar bem aqui o profundo

significado que o filósofo húngaro está atribuindo a tais palavras: uma

vida na qual nos recusamos a perder aquilo que nos define como

humanos - a possibilidade de nos auto-determinarmos conscientemente -

e em que lutamos para afirmar essa causa que transcende a nossa restrita

e limitada individualidade – a completa emanciapação das classes

trabalhadoras -, é uma vida que, nas circunstâncias atuais, é plena – e,

portanto, digna de ser vivida. Não há que se preocupar, portanto, em se

isolar da comunidade humana, em ter mais, em tomar o outro como

concorrente ou como meio para a realização dos nossos fins individuais,

em competir desmesuradamente, em adquirir muitas posses e luxos, em

ocupar posições sociais e status desprovidos de maior significação

quando comparados com o potencial para a realização de uma totalidade de manifestações humanas de vida. Uma vida plenamente vivida,

certamente, se assenta sobre princípios éticos, políticos e existenciais

bem diversos.

Nesse sentido, a passagem supra-citada sobre Sweezy é

perfeitamente complementada com um comentário realizado acerca da

célebre figura intelectual e política de Jean-Paul Sartre, sobre o seu

irrestrito engajamento em relação aos assuntos humanos, atitude esta

que lhe permitia desafiar, ―com orgulho e dignidade imensos, toda e

qualquer instituição que se interpusesse entre ele e a realização dos

valores que prezava‖ (1991, 15). Como afirma Mészáros (ibid., 16),

É esse engajamento apaixonado com os assuntos

do mundo conhecido [grifo nosso], o ―Finito‖ (ao

contrário da perseguição ilusória da

―imortalidade‖ literária), que atua como poderoso

catalisador no presente, e como uma medida do

feito que vincula o presente ao futuro. Não o

futuro remoto, sobre o qual o indivíduo vivo não

tem qualquer espécie de controle, mas o futuro

imediato, aquele que está a nosso alcance e que,

por isso, modela e estrutura nossa vida presente.

Fora de tal engajamento com a própria, ainda que

sofrida, temporalidade, o que existe é apenas o

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mundo da evasão e da ilusão. ―Esta é a medida

que propomos ao escritor: enquanto seus livros

despertarem irritação, mal-estar, vergonha, ódio,

amor, mesmo que nada mais seja que uma

sombra, ele viverá. Depois disso, o dilúvio.

Defendemos uma ética e uma arte do finito‖, diz

Sartre. E, em todos os sentidos, ele vive de acordo

com essa sua medida.

Parece-nos evidente que Mészáros não se restringiria em

recomendar tal atitude somente aos planos da ética e da literatura, e sim,

sobretudo, aos da política e da educação. Pois é esse mesmo

engajamento – homólogo à ―vida plenamente vivida‖ de Sweezy - que

pode servir como matriz para algumas características que se fazem cada

vez mais imprescindíveis aos revolucionários do presente,

principalmente em um contexto de tremenda crise social como o que

vivemos. E as primeiras dessas características talvez fossem o ―conjunto

de crenças firmemente mantidas‖ aliadas a ―um ego muito forte‖, que,

conforme Mészáros assinala, permitiam a Sartre desafiar tão

corajosamente a ordem estabelecida de seu tempo. Segundo as palavras

do filósofo húngaro (ibid., 18),

Não há dúvida de que Sartre possui ambas as

coisas. A articulação da obra de toda sua vida

caracteriza-se por um orgulho e uma dignidade

imensos. Pois quê poderia ele ter realizado com

humildade dentro de um ambiente hostil? ―É

preciso um orgulho insano para escrever – só é

possível permitir-se ser modesto depois de se

haver enterrado o orgulho em sua obra‖, escreve

Sartre.

Esse mesmo orgulho e essa mesma dignidade - por sua vez,

causadores e produtos do seu engajamento radical, que levava o filósofo

francês a ―levantar questões a respeito de tudo‖ e a ―desafiar a

humanidade como um todo‖, sendo essa a matéria e o substrato, na sua

visão, de uma escrita, de uma arte e de uma postura existencial

verdadeiramente críticas - devemos, os revolucionários do século XXI,

aprender a ter. A conseqüência de tal decisão – ou projeto fundamental -

é comentada magnificamente por Mészáros (ibid., 18-9) da seguinte

maneira:

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Não é uma decisão nada fácil assumir a carga

desse desafio, e fazê-lo conscientemente, como é

o caso de Sartre. Uma vez, porém, que o projeto

fundamental do escritor se define nesses termos,

ele não pode esquivar-se à magnitude de sua

tarefa sem perder a própria integridade (ou

autenticidade). Aconteça o que acontecer, tem de

articular as preocupações de sua época como um

todo e não afastar-se delas.

Sua visão do todo traz consigo a lembrança

permanente de sua própria responsabilidade por

isso tudo. Mesmo que se queira absolvê-lo dessa

responsabilidade, ele deve, questionando todas as

coisas, afirmar e reafirmar seu direito inalienável

de assumir a carga da responsabilidade total. Por

―sua época como um todo‖ e ―pela humanidade

como um todo‖. Eis porque não pode deixar de ser

intransigente numa era dominada pela evasão e

pelo subterfúgio, pela acomodação e pela fuga;

em suma, pela auto-segurança institucional

reificada, ao invés de enfrentar e atracar-se com as

contradições que, em sua irresolução crônica, faz

antever finalmente a perspectiva de um suicídio

coletivo. E uma vez que essa verdade

desagradável não consegue penetrar ouvidos

ensurdecidos pelo ruído autocomplacente da

acomodação confortável, a não ser mediante o

grito mais alto possível da voz da intransigência, a

intransigência moral e intelectual não acomodada

(que não se deve confundir com a busca facciosa

de um estreito interesse pessoal) torna-se a virtude

fundamental da época, um sine quan non da

realização significativa.

A mesma intransigência intelectual e moral, junto com o

orgulho desafiador, a dignidade potencializadora de energias, o

engajamento radical com os assuntos humanos e com a causa

generalizada da emancipação, todas estas qualidades devem se constituir

em parâmetros para orientar a política e a educação revolucionárias no

século XXI. O bom educador socialista, certamente, é aquele que inspira

tais virtudes.

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7 APÊNDICE - COMO RASTROS PELO MAR: COMENTÁRIOS

ACERCA DO MÉTODO DESTA PESQUISA

Caminante, son tus huellas

el camino, y nada más;

caminante, no hay camino,

se hace camino al andar.

Al andar se hace camino,

y al volver la vista atrás

se ve la senda que nunca

se ha de volver a pisar.

Caminante, no hay camino,

sino estelas en la mar.

Antonio Machado

Em seu longo estudo sobre a relação dialética entre a história e

as teorias que daí emergem a fim de tentar interpretar essa mesma

história,115

István Mészáros estabelece que os métodos têm,

necessariamente, um fundamento social. Mas essa fundamentação não

se dá em nível de conteúdo, e sim no âmbito da estrutura (ou forma) da

sociedade, que se expressa sempre na estrutura (ou forma) do método

utilizado. Na breve passagem que transcrevemos a seguir, o filósofo

húngaro (2009 c, 9) explica sua tese, centrando a análise no caso

específico das determinações levadas a efeito pelo sistema de controle

sociometabólico do capital:

Como sabemos, a formação social dominada pelo

poder do capital estende-se ao longo de um amplo

período social cujo fim ainda não está à vista.

Contudo, além das mudanças materiais de vasto

alcance que caracterizam a fisionomia intelectual

das fases específicas do desenvolvimento do

sistema capitalista, há também algumas grandes

continuidades.

São estas últimas, em específico, que

circunscrevem os grandes parâmetros

115

Trata-se do livro Estrutura social e formas de consciência: a determinação social do

método, de 2009.

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metodológicos, de acordo com as circunstâncias

da era do capital como um todo, com

características identificáveis de forma nítida. […]

[Desse modo,] compreende-se que as fases

particulares do desenvolvimento socioeconômico

são marcadas por significativas inovações teóricas

e metodológicas, de acordo com as circunstâncias

em modificação. É importante salientar, porém,

que todas essas mudanças metodológicas e

transformações teóricas têm de se acomodar em

relação aos limites restritivos da moldura

estrutural comum que define a época em sua

totalidade [grifos nossos].

Para Mészáros, portanto, as formas dos métodos são

estruturalmente homólogas às formas das sociedades das quais eles são

expressão. Em nossa formação social atual, por exemplo, segundo o

filósofo, podemos verificar plenamente como isso se dá: o sistema do

capital se modifica com o tempo (―mudanças materiais de vasto

alcance‖), em virtude de suas próprias contradições internas. Contudo,

apresenta algumas continuidades em sua estrutura, e são estas que,

justamente, ―circunscrevem os grandes parâmetros metodológicos‖ das

produções teórico-sociais significativas do período histórico em que nos

situamos.

Mészáros (ibid., 10) afirma, ainda, para complementar sua

reflexão, que

os parâmetros metodológicos fundamentais das

épocas históricas são circunscritos pelos limites

estruturais últimos de sua força dominante de

controle sociometabólico e, como tal, são

definidos segundo as potencialidades (e,

evidentemente, também de acordo com as

limitações) inerentes ao modo dominante de

atividade produtiva e à correspondente

distribuição do produto social total.

Assim, são os limites estruturais do sistema de controle estabelecido sobre o metabolismo social que se expressam nas

principais características metodológicas - e nas teorias - que surgem

numa conjuntura histórica concreta.

Nesse contexto, o filósofo húngaro faz questão de ressaltar que

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a determinação social do método não acontece de maneira unilateral,

nem mecânica. Trata-se, em verdade, de uma ação recíproca entre as

práticas sociais e as suas formas de representação. Conforme suas

palavras (ibid., 11),

a complexa dinâmica do desenvolvimento

histórico só pode ser propriamente compreendida

com base em uma reciprocidade dialética. É

precisamente assim que Marx caracterizava, já em

uma de suas primeiras obras, A ideologia alemã –

numa vigorosa crítica da abordagem idealista que

na época predominava nos debates filosóficos -,

sua visão da ―ação recíproca‖, que está em

evidência entre os diversos fatores e forças que

constituem o complexo social total.116

A determinação social do método também não consiste numa

imposição aos intelectuais das determinações realizadas pelo sistema do

capital. O que ocorre, de fato, é que os acadêmicos, cientistas e

filósofos, vivendo sua vida inteira enredados nas relações sociais

capitalistas, acabam formando o seu aparato cognitivo e sensível por

meio da internalização dessas mesmas relações, fato que resulta na

elaboração de uma ideologia que irá permanecer na base do modo como

os pesquisadores investigam e teorizam sobre o seu ―objeto‖ histórico

específico.117

116

Vale a pena mencionar a passagem citada por Mészáros, onde Marx e Engels estabelecem a

reciprocidade entre a sociedade e suas formas de consciência. O trecho destacado é o seguinte:

―Essa concepção da história [isto é, a concepção materialista] consiste, portanto, em desenvolver o processo real de produção a partir da produção material da vida imediata e em

conceber a forma de intercâmbio conectada a esse modo de produção e por ele engendrada,

quer dizer, a sociedade civil em seus diferentes estágios como o fundamento de toda a história, tanto a apresentando em sua ação como Estado como explicando a partir dela o conjunto das

diferentes criações teóricas e formas da consciência – religião, filosofia, moral, etc. etc. - e em

seguir o seu processo de nascimento a partir dessas criações, o que então torna possível, naturalmente, que a coisa seja apresentada em sua totalidade (assim como a ação recíproca

entre esses diferentes aspectos) [grifo nosso]‖ (MARX e ENGELS, apud Mészáros, ibid., 11). 117

Sobre o modo como se dá a internalização das relações sociais que formam o aparato

cognitivo e sensível dos pesquisadores, Mészáros dá a seguinte explicação: ―A determinação

social do método não significa – e não pode significar – que a posição metodológica e

ideológica correspondente ao ponto de vista do capital seja imposta aos pensadores em questão [isto é, aos teóricos que representam os interesses capitalistas], incluindo as figuras mais

destacadas da economia política burguesa e da filosofia. Eles próprios incorporam-na

ativamente como sua, ao longo da articulação – e do processo criativo dessa articulação – da posição que integra os interesses fundamentais, bem como os valores, de uma ordem

sociorreprodutiva com a qual se identificam. Eles são participantes conscientes numa

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Para Mészáros, então, os parâmetros metodológicos das épocas

históricas particulares são determinados pelos limites estruturais últimos

da sua força de controle sociometabólico dominante, ―em conformidade

com o tipo prevalecente de atividade produtiva e a correspondente

modalidade de distribuição. Qualquer tentativa teórica de escapar dessas

determinações, na equivocada busca de ‗metateorias‘ evasivas, pode

apenas prejudicar o empreendimento filosófico‖ (ibid., 17). Isso

significa que não se pode discutir o método sem compreender a estrutura

real da qual ele é uma reprodução ideal. Em outras palavras, elaborar o

conjunto de categorias intelectuais que permitem mediar e apreender

concretamente um determinado ―objeto‖ exige que se discuta,

concomitantemente, a formação social – o conjunto de suas mediações

práticas específicas constituintes – de onde o próprio método deverá se

originar. Como afirma o autor de Estrutura social e formas de consciência, ―uma concepção apropriada da mediação em qualquer

campo de análise é impensável sem uma apreensão abrangente do

campo de estudo em questão, quer pensemos na ‗metaética‘ ou na

metodologia em geral‖ (ibid., 17).

Claro está, portanto, que a discussão do método exige o

delineamento das mediações que permitem a apreensão teórica de um

ser concreto determinado. Tais mediações intelectuais (abstrações), por

sua vez, nesse processo, não podem ser concebidas fora da sua relação

com as mediações práticas que definem a sociedade específica a ser

estudada e que lhes servem de fundamento real. É nesse sentido que

Mészáros (ibid., 277) afirma que

Com relação ao método, a mediação é a categoria

mais importante tanto teórica como prática em

nossa época de transição histórica. Não pode

haver surpresa nisso. Teórica porque em vista da

magnitude do desafio que temos de enfrentar,

nada pode ser conquistado com êxito sem uma

concepção intelectualmente coerente e

verdadeiramente abrangente da mediação. E, na

prática, porque é impensável instituir na ordem

empreitada que sempre envolve o conflito e o confronto com os defensores de conjuntos de

valores potencialmente rivais – ainda que os interesses sociais correspondentes não sejam (ou não possam ser, em virtude da imaturidade histórica das forças sociais relevantes) inteiramente

explicitados por seus adversários -, pois mesmo a ideologia dominante mais arraigada jamais

pode ser absolutamente dominante. Em outras palavras, não é possível que ela seja tão completamente dominante a ponto de poder ignorar inteiramente uma posição alternativa que

tenha ao menos o potencial de adquirir um grande alcance (ibid., 12).‖

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social estabelecida as mudanças qualitativas

exigidas sem adotar as formas apropriadas de

mediação prática que podem fazer historicamente

viável no futuro nosso iniludível modo de

reprodução sociometabólica – como seres

mediados por si próprios da natureza que devem

assegurar até no mais longo prazo suas condições

de existência numa interação plenamente

adequada com a natureza.

Assim, se o método constitui um conjunto de mediações

intelectuais fundado historicamente, o ponto de partida para sua

elaboração deve ser, justamente, a análise crítica das mediações reais

estabelecidas pelos homens para a efetivação do seu processo de

reprodução sociometabólica. Como estabelece, mais uma vez, Mészáros

(ibid., 261),

Qualquer solução apontando na direção da

alternativa hegemônica historicamente sustentável

do trabalho, vislumbrada através do inevitável

período de transição, deve partir das condições

realmente dadas da ordem sociometabólica

dominante, com suas premissas e seus imperativos

práticos frequentemente ocultos mas impostos de

modo fetichista. Uma abordagem metodológica

válida da teoria de transição exigida nesse sentido

é viável apenas se satisfizer duas condições

necessárias: (1) a clara definição de seu ponto de

partida em relação às determinações objetivas do

arcabouço estrutural efetivamente dado da

sociedade, com suas contradições realmente

existentes e antagonismos inextirpáveis (o que

implica, de maneira evidente, a crítica de suas

conceituações tendenciosas e, especialmente na

fase descendente do desenvolvimento do sistema,

a distorção cada vez mais apologética do estado

de coisas historicamente dado a partir da

perspectiva privilegiada, serviente a si mesma, do

capital); (2) a indicação dos traços gerais da

alternativa hegemônica do trabalho sustentável a

longo prazo à ordem estabelecida.

Se partirmos, como preconiza o filósofo, das condições

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materiais dadas, e objetivando a ―alternativa hegemônica do trabalho

sustentável a longo prazo‖, devemos fazer, então, uma diferenciação.

Para se compreender as ―determinações objetivas do arcabouço

estrutural efetivamente dado da sociedade‖, é preciso entendê-las como

um conjunto de distintas – embora concretamente articuladas -

mediações de primeira e de segunda ordem e a forma específica de

relação que ocorre entre ambas essas instâncias. É isto o que está na

base da reorientação do método levada a cabo por Marx. Como explica

Mészáros (ibid., 192),

O ponto de partida necessário nesse aspecto, para

a reorientação do método herdado do passado, é

submeter a uma crítica radical a modalidade

estabelecida de mediação de reprodução social

sob o domínio do capital [grifo nosso]. Esse ponto

pode ser resumido a partir da diferença

fundamental entre mediações de primeira e de

segunda ordem. Estas, como as conhecemos, são

mediações irremediavelmente antagônicas,

constituindo um sistema de controle

sociometabólico que precisa ser superado em sua

totalidade, como um ―sistema perversamente

orgânico‖, e substituído por sua alternativa

hegemônica, constituída e consolidada,

novamente, como um sistema orgânico

historicamente viável e totalmente cooperativo.

Isto quer dizer que o método que Marx elaborou para suas

pesquisas é qualitativamente diferente do método que herdou dos

economistas políticos, seus antecessores. O autor de O capital

promoveu, como explica Mészáros, uma reorientação do método

baseada não somente na crítica dos procedimentos teóricos levados a

cabo por seus adversários intelectuais burgueses, mas também numa

profunda análise das mediações reais das quais aquelas categorias eram

a expressão. É por isso que discutir método, enquanto um determinado

conjunto de mediações teóricas – ou de abstrações -, exige o debate

sobre as relações práticas que mediam o processo de reprodução

sociometabólica estabelecido entre os homens e a natureza. O ponto de

partida de Marx foi, portanto, a crítica radical da modalidade de

mediações reais estabelecidas com o fim de atender às exigências do

sistema do capital.

Deve-se entender, então, o seguinte: de acordo com Marx, como

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esclarece Mészáros, existem mediações que são constituintes

inelimináveis da existência humana por sobre a terra. Essas mediações

de primeira ordem são necessárias para todas as formas viáveis de

reprodução social e existirão enquanto as sociedades humanas habitarem

a superfície do globo - ainda que venham a possuir, por causa das

condições históricas, configurações diversas.

Na esteira do filósofo alemão, Mészáros (ibid., 192) define

assim a essência de tais mediações de primeira ordem:

1. a regulação necessária, mais ou menos

espontânea, da atividade biológica reprodutiva

e o tamanho da população sustentável, em

conjunção com os recursos disponíveis;

2. a regulação do processo de trabalho por meio

do qual o necessário intercâmbio da

comunidade com a natureza possa produzir os

bens necessários para a satisfação humana,

como também as ferramentas de trabalho,

empreendimentos produtivos e conhecimento

apropriados pelos quais o próprio processo

reprodutivo possa ser mantido e aprimorado;

3. o estabelecimento de relações de troca

adequadas sob as quais as necessidades

historicamente cambiantes dos seres humanos

possam ser interligadas com o propósito de

otimizar os recursos naturais e produtivos

disponíveis – incluindo os culturalmente

produtivos;

4. a organização, a coordenação e o controle da

multiplicidade de atividades por meio das

quais as exigências materiais e culturais do

processo de reprodução sociometabólico bem-

sucedido de comunidades humanas

progressivamente mais complexas possam ser

asseguradas e protegidas;

5. a alocação racional dos recursos materiais e

humanos disponíveis, lutando contra a tirania

da escassez por meio da utilização econômica

(no sentido de economizar) dos modos e

meios de reprodução da sociedade dada, na

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medida do viável sobre a base de um nível de

produtividade alcançável e dentro dos limites

das estruturas socioeconômicas estabelecidas;

6. e a promulgação e a administração de regras e

regulamentos da sociedade dada como um

todo, em conjunção com outras funções e

determinações primárias mediadoras.

Tais mediações, que compõem a assim chamada atividade

produtiva humana e respondem primariamente pelo intercâmbio do

metabolismo dos homens entre si e dentre estes e a natureza, estão

presentes, necessariamente, em todo tipo de formação social. Contudo, o

que define uma sociedade específica não são essas mediações de

primeira ordem e sim o arranjo específico que os seres humanos dão a

elas, em cada época, em conjunção com as mediações de segunda ordem

(estas, sim, criadas historicamente, e variáveis, portanto, conforme o

contexto em que se inserem).

Mészáros explica ainda que, na era em que vivemos, as

mediações de segunda ordem do capital dominam e subordinam

hierarquicamente as mediações de primeira ordem da atividade

produtiva, compondo, assim, uma situação fetichista em que o trabalho

passa a ser completamente controlado, a fim de satisfazer às exigências

de reprodução do capital.

O sistema do capital é constituído, enfim, por um conjunto

específico de mediações de segunda ordem, que é resumido pelo

filósofo húngaro (ibid., 193) com as seguintes palavras:

1. a família nuclear articulada como o

―microcosmo‖ da sociedade, o qual, além de

seu papel na reprodução da espécie, participa

em todas as relações reprodutivas do

―macrocosmo‖ social, incluindo a mediação

necessária das leis do Estado para todos os

indivíduos e, assim, diretamente necessária

também para a reprodução do Estado;

2. os meios de produção alienados e suas

―personificações‖ por meio das quais o capital

adquire ―vontade férrea‖ e consciência rígida,

estritamente demandado a impor sobre todos a

conformidade com relação às exigências

objetivas desumanizantes da ordem

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sociometabólica dada;

3. o dinheiro assumindo uma multiplicidade de

formas mistificantes e progressivamente mais

dominantes no curso do desenvolvimento

histórico, chegando ao domínio total do

sistema monetário internacional dos dias de

hoje;

4. objetivos de produção fetichistas, submetendo

de uma forma ou de outra a satisfação de

necessidades humanas (e a provisão

correspondente de valores de uso) aos

imperativos cegos da expansão e acumulação

do capital;

5. trabalho estruturalmente divorciado da

possibilidade de controle, seja nas sociedades

capitalistas, nas quais deve funcionar como

trabalho assalariado coagido e explorado pela

compulsão econômica, seja sob o controle

pós-capitalista do capital sobre a força de

trabalho politicamente dominada;

6. variedades de formação de Estado do capital

em seus terrenos globais, nos quais podem

confrontar-se uns contra os outros (por vezes

com os mais violentos meios, deixando a

humanidade à beira da autodestruição), como

Estados nacionais orientados a si mesmos;

7. e o descontrolado mercado mundial em cuja

estrutura os participantes, protegidos por seus

respectivos Estados nacionais por meio das

relações de poder dominantes, devem se

acomodar às precárias condições de

coexistência econômica enquanto se

empenham em obter a mais alta vantagem

praticável para si ao ludibriar suas

contrapartes concorrentes, aqui lançando

inevitavelmente as sementes de mais conflitos

destrutivos.

Essa sobredeterminação específica das mediações de segunda

ordem em relação às mediações de primeira ordem se dá, diz o filósofo

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húngaro, desde o momento em que o capital se tornou o modo de

controle dominante do metabolismo social da humanidade.

Segundo Mészáros, as mediações que compõem o capital não

sofreram modificações essenciais desde então, mas adquiriram novas

determinações, a partir do momento em que esse sistema entrou em

crise estrutural, que acabaram por dar uma nova configuração à sua

lógica. É preciso, pois, nesse contexto, esclarecer quais são as

mediações específicas do capital em crise estrutural. O filósofo (ibid.,

250-1) assim as resume, numa passagem que, ainda que longa, merece

ser transcrita na íntegra:

Enquanto é perfeitamente correto frisar que a

lógica interna do desenvolvimento expansionista

do capital é inseparável da necessidade de impô-la

ao mundo todo, há também algumas differentia

specifica que devem ser sublinhadas em relação às

tendências atuais.

Primeiro, ao contrário do presente, a forma

original de invasão do capital nas partes mais

remotas do mundo não surgiu das grandes

pressões internas das transformações

monopolistas e semimonopolistas da economia

dos países imperialistas dominantes em uma

escala maior.

Segundo, mesmo em comparação com o início do

século XX, o imperialismo de nosso tempo é

significativamente diferente da forma que

provocara a explosão maciça da Primeira Guerra

Mundial em 1914. Não apenas porque a ocupação

político-militar dos antigos territórios coloniais

após a Primeira Guerra Mundial provou ser

totalmente instável, como também contestada

interna e externamente, e teve de ser seguida por

uma descolonização no pós-Segunda Guerra

Mundial, assim como por uma variedade algo

distinta da dominação ―neoimperialista‖. Ainda

mais significativo nesse âmbito foi o fato de que

os Estados Unidos tornaram-se a potência

dominante da nova variedade de imperialismo, e

em nosso tempo age – mesmo sob a forma da

deflagração de grandes guerras, do Vietnã ao

Oriente Médio – como protetor do imperialismo

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hegemônico global. Desse modo, os Estados

Unidos não estão inclinados a tolerar rivais em

suas aventuras imperialistas – não importando o

quão problemático esse tipo de monopólio esteja

fadado a se tornar em um futuro não tão distante –

em contraste até mesmo com o projeto de Hitler

de, no passado, compartilhar a dominação global

como Japão.118

O terceiro e mais importante ponto a ser destacado

é o de que as forças político-econômicas que se

beneficiam primariamente da dominação

―globalizante‖ do mundo são as gigantescas

corporações transnacionais – com freqüência

nomeadas, de modo errôneo, a seu próprio serviço

como ―multinacionais‖ – agindo com o total apoio

de seus Estados nacionais. Novamente, as

companhias dos Estados Unidos lideram esses

novos desenvolvimentos imperialistas. Nesse

contexto, é também relevante que a determinação

econômica da globalização em andamento no

plano monetário seja caracterizada pelas forças

especulativas e parasitárias, assim como

perigosamente instáveis mesmo em um prazo de

tempo relativamente curto, do capital financeiro e

de forma alguma sem a cumplicidade do Estado

capitalista. […]

Outro problema de grande importância nesse

contexto, sublinhando a necessidade de

qualificação da análise das determinações

sistêmicas seminais que enfrentam uma grande

mudança da fase ascendente para a descendente

do desenvolvimento do capital, é a total perversão

da categoria de consumo. A importância dessa

questão para o processo de reprodução social em

sua totalidade não pode ser destacada em demasia.

Sua forma mais extrema emerge sob o impacto

direto da modalidade de produção mais

perniciosa e potencialmente destrutiva da

segunda metade do século XX [grifos nossos].119

118

Sobre as concepções do filósofo húngaro acerca do tema imperialismo, vale a pena ver

também o ensaio O século XXI: socialismo ou barbárie? (2003). 119

As características da crise estrutural do sistema do capital que Mészáros estabelece,

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Diante disso, é preciso dar o devido destaque ao fato de que

todas as mediações do capital mencionadas acima são profundamente

antagônicas, e a possibilidade de sua superação, tanto teórica como

prática, exige que se tenha definido, pelo menos em suas linhas gerais,

uma certa estratégia social e política orientada para a realização de um

conjunto de novas mediações sociometabólicas, onde tais antagonismos

estejam definitivamente eliminados. A mediação procurada pelos

socialistas deve ser, portanto, não-antagônica. E o que vem a ser uma

mediação não-antagônica? O filósofo húngaro (ibid., 302) assim as

explica:

Nas relações interpessoais dos indivíduos sociais,

mediação não antagônica significa seu

envolvimento cooperativo genuíno na atividade

com o propósito conscientemente escolhido de

resolver alguns problemas, ou de fato resolver

algumas disputas que possam surgir de suas

relações. O que torna o contraste desse tipo de

intercâmbio conscientemente regulado muito

claro, em comparação com a modalidade de

mediações antagônicas agora dominantes, é que a

solução projetada para os próprios problemas que

devem ser encarados no interior da estrutura de

um sistema de mediações não antagônicas não

pode se solidificar e perpetuar na forma de

interesses parciais estruturalmente consolidados.

No curso histórico em andamento, de constituição

da nova modalidade de mediações não

antagônicas, os interesses parciais herdados

devem ser radicalmente suplantados por meio da

ação cooperativa sustentada, assegurando ao

mesmo tempo as condições objetivas e subjetivas

para impedir sua reconstituição.

A ação cooperativa sustentada deve ser, então, a forma das

mediações não-antagônicas que devem substituir as mediações

antagônicas do capital. Esses elementos, definidos de tal maneira,

também entram na medida da reorientação do método, e são

constituintes fundamentais da estratégia de abordagem investigativa que

sinteticamente, em Estrutura social e formas de consciência, naturalmente, englobam as

teorizações já realizadas em Para além do capital.

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a pesquisa calcada na teoria de Marx deve adotar.

Dito isto, deve-se entender que criticar as mediações reais e

intelectuais que realizam os imperativos do capital é apenas o primeiro

ponto. O segundo, mas não menos importante, é identificar as formas de

mediação material que deverão estar presentes na ―nova forma

histórica‖, a comunidade humana emancipada. É preciso, então, nesse

sentido, delinear com clareza – pelo menos, algumas concepções básicas

- de como serão as mediações não-antagônicas do modo de produção

comunal. Com base na leitura dos Grundrisse, Mészáros (ibid., 198) as

enumera da seguinte maneira:

1. a determinação da atividade vital dos sujeitos

trabalhadores como um vínculo necessário e

individualmente significativo na produção

diretamente geral e sua correspondente

participação direta no mundo de produtos

disponíveis;

2. a determinação do próprio produto social

como inerentemente comunal e geral desde o

início, em relação às necessidades e

propósitos comunais, baseando-se na cota

especial que os indivíduos particulares

adquirem na produção comunal em

andamento;

3. a participação plena dos membros da

sociedade também no consumo comunal

propriamente dito; uma circunstância que

acaba por tornar-se deveras importante, em

vista da inter-relação dialética entre produção

e consumo, sobre cuja base está caracterizada

de modo adequado sob o sistema comunal

como definitivo ―consumo produtivo‖;

4. a organização planificada do trabalho (ao

invés de sua divisão alienante, determinada

pelos imperativos autoafirmativos do valor de

troca na sociedade mercantilizada) de tal

modo que a atividade produtiva dos sujeitos

particulares do trabalho seja mediada de uma

forma não reificada-objetificada, por meio da

troca de mercadorias, mas por meio das

condições intrinsecamente sociais do próprio

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modo de produção dado, no interior do qual os

indivíduos são ativos.

Essas colocações deixam claras qual deve ser a essência das

novas mediações de controle sociometabólico que precisarão vir à tona

para a superação dos antagonismos do capital. Com base nessas

categorias, como ficou estabelecido, deverá imperar a atividade

produtiva autodeterminada entre os indivíduos sociais.

Por que é importante definir tais coisas? Porque, como afirma

Mészáros (ibid., 213),

o princípio orientador fundamental da concepção

marxiana de ciência [grifo nosso] se converte em

como assumir o controle sobre todos os aspectos

do processo de reprodução social, desde aqueles

diretamente envolvidos nas condições materiais

básicas de existência da humanidade até as mais

mediadas atividades artísticas teóricas e criativas

da vida dos indivíduos sociais.

Aí está a razão: tal objetivo – o controle consciente da atividade

produtiva por parte dos ―produtores livremente associados‖ – é o

princípio que deve, necessariamente, orientar a concepção marxiana de

ciência, assim como o próprio fazer científico, isto é, o modo como se

há de proceder para a apropriação teórica de um determinado ser

concreto.

Revela-se, neste ponto da argumentação de Mészáros, um dos

principais elementos constituintes da sua concepção acerca da

reorientação marxiana do método: a questão do ponto de vista

socialmente determinado do pesquisador. A crítica das mediações

antagônicas de segunda ordem do capital e o objetivo de atingir as novas

mediações que possibilitam a emancipação humana pressupõem um

ponto de vista diverso daquele que se adéqua às necessidades de

realização do capital. O filósofo húngaro (ibid., 194) explica essa tese

do seguinte modo:

A concepção que vislumbra a superação das

mediações de segunda ordem antagônicas do

capital é insuperável da reavaliação radical do

contraste metodologicamente seminal entre o

ponto de vista da filosofia, herdado da típica

caracterização burguesa da ordem social, e o

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qualitativamente diverso ponto de vista oferecido

pelo próprio Marx. Do modo como formulara da

décima de suas ―Teses sobre Feuerbach‖, Marx

insistiu que o ―ponto de vista do velho

materialismo é o da sociedade civil; o ponto de

vista do novo é o da sociedade humana, ou

humanidade social‖.

Por que essa diferença entre as perspectivas sociais? Porque o

ponto de vista que se adota, os pressupostos de que se parte, os objetivos

sociais visados, etc. condicionam o movimento do aparato cognitivo-

sensível do investigador, repercutindo efeitos na forma de colocar os

problemas, elaborar as categorias (mediações), teorizar sobre o objeto

apreendido, etc. Dá-lhe, por assim dizer, limites e possibilidades. Diante

disso, o ponto de vista de Marx deveria ser qualitativamente diferente do

dos economistas políticos contra os quais ele se punha. Estes, em suas

pesquisas, adotavam o horizonte intelectual da sociedade burguesa, com

a conseqüente mistificação que o fetichismo inerente ao sistema do

capital lhes provocava.

O autor de O capital partiu da perspectiva mais elevada dos

segmentos estruturalmente antagônicos ao capital e que visavam à

emancipação humana. Ao adotar esse ponto de vista, lançou problemas

diversos daqueles dos economistas burgueses, elaborou diferentes

mediações teóricas, em conjunção com as mediações reais que visavam

se afirmar e realizar na prática a ―nova forma histórica‖, a formação

social onde os antagonismos do capital estariam definitivamente

superados. A perspectiva nova, que envolve o futuro (isto é, aquilo que

pode vir a ser concretizado), interfere diretamente na formação das

categorias de análise. Mészáros (ibid., 197) explica que

Essa é a razão pela qual ele [Marx] frisou com

muita ênfase na última de suas Teses sobre

Feuerbach, que ―os filósofos apenas

interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o

que importa é transformá-lo‖. A mudança

qualitativa vislumbrada por Marx –

metodologicamente vital para a crítica da

economia política como anatomia dos

antagonismos estruturais da sociedade civil – foi

resumida por ele como o estabelecimento

necessário do sistema comunal de produção e

distribuição. Pois apenas por meio desse tipo de

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intercâmbio sociometabólico entre a humanidade

e a natureza, e entre os próprios indivíduos, o

círculo vicioso da mediação antagônica poderia

ser rompido e substituído por um novo modo de

mediação comunal não antagônica.

São esses pressupostos e objetivos que devem orientar a

formação das mediações teóricas e práticas numa era de transição,

voltadas, pois, para a transcendência das determinações

sociometabólicas do sistema do capital. Como ficou acima esclarecido,

eles estão na base da reorientação marxiana do método.

Compreende-se, dessa forma, que o método criado por Marx a

partir do ponto de vista da alternativa hegemônica do trabalho, orientado

para a crítica das mediações reais específicas da sociedade burguesa e

para a conseqüente realização da emancipação humana, não pode estar

separado de uma práxis correspondente. ―Toda investigação teórica [dos

socialistas] deve estar firmemente focada na prática transformadora‖,

diz Mészáros (ibid., 207). E se a reorientação marxiana do método exige

mudar o ponto de vista, os objetivos para os quais se dirige a pesquisa (a

emancipação humana), a práxis sócio-política do pesquisador (que de

contemplativa passa a ativa), tomando assim o futuro como elemento

constituinte da nova postura de intervenção sobre a realidade, a

abordagem histórica se torna a única adequada aos propósitos do

investigador. Como explica o filósofo húngaro (ibid., 213),

Naturalmente, dado o caráter dinâmico dos

problemas em questão, tanto em relação ao

desenvolvimento humano da maneira como

progrediu no passado quanto em relação à sua

trajetória conscientemente planejada no futuro, a

abordagem inteira precisa ser histórica de forma

inevitável. Em contraste com as concepções

filosóficas do passado não poderia haver dúvida

sofre um desfecho histórico ideologicamente

conveniente. Pois os desafios emancipatórios do

ser social envolvido não poderiam de forma

alguma tornar-se inteligíveis sem manter em

mente sua dimensão histórica de maneira

constante [grifo nosso].

Para estar de acordo com tal abordagem, o método exige que se

analise, portanto, como um determinado ser se tornou aquilo que ele é,

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303

isto é, o processo de sua formação enquanto totalidade. Ou, ainda, em

outras palavras, como ele se constitui como sistema. A fim de esclarecer

esse ponto, Mészáros lança mão de uma passagem de Marx, onde o

filósofo alemão explicita elementos importantes sobre a aplicação de seu

método para a compreensão da formação do capital, seu objeto de

estudo principal. Marx afirma que

seu desenvolvimento [o do capital] em sua

totalidade consiste precisamente em subordinar

todos os elementos da sociedade a ele, ou criar a

partir dela os órgãos que ainda lhe faltam. É assim

que se torna uma totalidade historicamente. O

processo de tornar-se totalidade constitui um

momento de seu processo, de seu

desenvolvimento. (MARX, apud Mészáros, ibid.,

225)

É dessa maneira, com uma abordagem histórica do objeto

estudado, que explicita a maneira pela qual ele veio a se constituir como

totalidade, que se pode chegar a compreender o que é específico neste

ser.120

Tal abordagem, enfim, deve ser acompanhada, como já

dissemos, por uma ação igual e radicalmente crítica. E crítica radical, na visão de Mészáros, possui um sentido bem definido, a saber:

articulação de negação e afirmação no objetivo da superação da ordem

do capital e da conseqüente instauração da ―nova forma histórica‖. Nas

palavras do filósofo húngaro (ibid., 302):

A real mediação em questão […] concentra-se em

articular conscientemente os intercâmbios

reprodutivos não antagônicos de uma ordem

120

Acreditamos que a melhor maneira de definir tal método é conceituando-o como crítica

imanente. Mészáros faz, nesse sentido, a seguinte afirmação, com base na qual nos

fundamentamos: ―Os pontos da crítica definidos por Marx […] para suplantar de maneira

permanente as generalizações teóricas representativas formuladas pelas figuras clássicas da

economia política a partir do ponto de vista do capital, adquirem sua validade apenas se as

raison d'être – ou seja, as determinações estruturais objetivas na raiz das teorias referidas –

forem destacadas no sentido de uma ‗crítica imanente‘. Isso quer dizer, uma crítica que

reconheça também as circunstâncias especiais e as motivações históricas dos pensadores em

questão, e não apenas suas limitações de classe como as visualizadas a partir do ponto de vista

qualitativamente diverso e da distância necessária da ‗nova forma histórica‘ vislumbrada‖

(ibid., 202-1).

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societal qualitativamente diversa tanto como o

objetivo e destino claramente identificados a ser

alcançados e a bússola da jornada emancipatória

levada a cabo já em e através do processo

histórico em progresso. Nesse sentido, a tarefa

radical por princípio buscada de modo consciente

para superar os antagonismos da ordem existente

é inseparavelmente negativa e positiva ao mesmo

tempo. E esse é o único significado apropriado

que podemos dar ao termo radical, que não pode

se permitir continuar atado a uma –

definitivamente insustentável – postura puramente

negativa. Sobretudo quando o que está em jogo é

a questão de uma alternativa hegemônica

historicamente viável. Portanto, não é de forma

alguma surpreendente que Marx tenha definido o

socialismo como ―consciência de si positiva do

homem‖.

O objetivo de articular negação e afirmação, na teoria e na

prática, no sentido da superação do sistema do capital e da realização da

comunidade humana emancipada, foi, portanto, o elemento constitutivo

central do nosso método de trabalho.

Dito isto, falta demonstrar de que modo tais premissas puderam

orientar uma pesquisa teórica como a que realizamos sobre a obra do

próprio Mészáros. Aqui, duas outras obras do filósofo húngaro devem

ser consultadas. A primeira delas é A teoria da alienação em Marx,121

onde o autor (2006, 27) afirma o seguinte:

Este estudo visa, em primeiro lugar, apresentar a

gênese e o desenvolvimento interno da teoria da

alienação de Marx, concentrando a atenção não só

no pano de fundo histórico e intelectual de suas

principais idéias, mas, sobretudo, no dinamismo

interno de sua estrutura de pensamento como um

todo [grifos nossos].

Essa proposição foi extremamente importante para uma pesquisa como a nossa. Estabeleceu, pois, que deveríamos tratar,

121

Op. cit. Esta obra consiste numa pesquisa teórica sobre o conceito de alienação em Marx, e

centra-se principalmente nas reflexões desenvolvidas pelo filósofo alemão nos Manuscritos econômicos-filosóficos, de 1844. Vários foram os momentos desta pesquisa em que tomamos

tal obra como fonte de inspiração.

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simultaneamente, da gênese, do desenvolvimento e da dinâmica interna

do conceito de educação na obra de Mészáros. Tal abordagem, que

permite apreender o processo de formação dos conceitos, possibilita

também a compreensão da sua lógica e de seu encadeamento. Para tanto,

seria preciso ler o máximo possível da obra do autor em questão

(Mészáros fala, em seu referido livro, na exigência de se ler a totalidade

da obra do autor, mas como em nosso caso isso é impossível, em virtude

de que não temos em mãos a obra completa do filósofo húngaro,

fizemos uso apenas de algumas das mais importantes das que estão

traduzidas em português).

O outro estudo mészáriano é A obra de Sartre: busca da

liberdade.122

Aí, discorrendo sobre os procedimentos a serem realizados

ao se contemplar a obra global de um autor, o filósofo húngaro (1991,

112) adverte:

Para considerar o conjunto de uma obra global, é

preciso integrar a totalidade de cada um dos

pontos e fases num movimento dinâmico.

Qualquer tentativa de universalizar diretamente

uma determinada fase – que é sempre constituída

de elementos mais, ou menos, conflitantes –

resultará apenas numa projeção histórica de uma

parte específica sobre o todo e, ao mesmo tempo,

na liquidação da tensão dinâmica a ele inerte. Pois

qualquer fase específica representa ipso facto

também um nível específico de realização e de

ponto de repouso, o qual, se generalizado,

inevitavelmente se cristaliza o movimento (que

chegou até ele e que prosseguirá depois dele) e

distorce seriamente a figura como um todo. Em

contraposição, o único modo de proceder

propriamente histórico é utilizar o próprio

movimento como princípio de seleção aplicado a

todos os pontos e fases específicos.

Tal princípio foi adotado por Mészáros, como se pode constatar,

tanto no seu estudo sobre Sartre, como na sua investigação a respeito do

conceito de alienação em Marx. Em A teoria da alienação... (2006, 26) lemos o seguinte:

122

Neste caso, a edição usada é: MÉSZÁROS, István. A obra de Sartre: busca da liberdade.

São Paulo: Ensaio, 1991. Trata-se, também, de uma pesquisa teórica a respeito do conceito de

liberdade na obra do autor de O ser e o nada.

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A estrutura da interpretação e da avaliação desses

manuscritos [isto é, os Manuscritos econômico-

filosóficos, de 1844] é a totalidade da obra de

Marx sem o que as descrições de sua primeira

síntese não podem passar de uma caricatura, por

mais que não se pretenda isso. Não apenas porque

as ―observações enigmáticas‖ e sugestões

aforísticas dos Manuscritos de Paris não podem

ser decifradas sem referência às suas obras

posteriores, mas principalmente porque atribuir o

conceito de alienação exclusivamente ao período

de juventude é falsificar grosseiramente o ―Marx

Maduro‖ [...], solapando a unidade e a coerência

interna de seu pensamento [grifos nossos].

Nesse contexto, tanto em seu estudo sobre Sartre, quanto na

pesquisa sobre o conceito de alienação em Marx, Mészáros afirma que

se deve buscar as questões principais debatidas pelo autor investigado.

No que concerne a Marx, por exemplo, Mészáros se preocupa em

apreender, nos Manuscritos econômico-filosóficos, os problemas que

estruturam a teorização do filósofo alemão e o seu übergreifendes Moment (―momento predominante‖ - no caso da teoria da alienação em

Marx, segundo Mészáros, este é o conceito de transcendência positiva

da auto-alienação do trabalho123

). Este procedimento também foi

utilizado, nesta pesquisa, em relação à teoria do filósofo húngaro sobre a

sociedade, a política e a educação.

Mészáros (ibid., 21) estabelece ainda que, num sistema teórico

determinado, como de Marx,

cada ponto particular é ―multidimensional‖: liga-

se a todos os outros pontos do sistema marxiano

de idéias: está implicado por eles assim como os

implica. (O problema da relação entre alienação e

consciência, por exemplo, nunca é examinado

isoladamente, mas – em agudo contraste com

outras abordagens filosóficas do problema – como

algo que ocupa um lugar determinado no sistema

das atividades humanas; porquanto apoiado sobre

a base socioeconômica e em constante interação

com ela).

123

Isto é repetido e enfaticamente sublinhado em várias páginas do livro.

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307

O mesmo deve valer para a teoria de Mészáros. De acordo com

os pressupostos teóricos que adotamos aqui, os conceitos particulares de

educação e política só adquirem seus significados específicos se

compreendidas as suas relações com o amplo complexo categorial

desenvolvido pelo autor de Para além do capital. Tais conceitos são

―partes‖ que estão intimamente vinculadas a um ―todo‖, um sistema de

idéias coerente. Dentro dessa estrutura, cada ponto é

―multidimensional‖, ou seja, é determinado por uma multiplicidade de

conceitos, assim como também os determina.

Sobre isso, em A teoria da alienação... encontramos ainda outra

informação digna de ser sublinhada. Afirma Mészáros: ―Tendo em vista

o fato de que toda a estrutura da teoria de Marx é dialética, seus

conceitos fundamentais simplesmente não podem ser entendidos fora da

sua inter-relação dialética (e, com freqüência, aparentemente

autocontraditória)‖ (ibid., 18-9). Logo, um conceito só pode ser

devidamente compreendido se se estabelece a sua relação com toda a

estrutura teórica do autor estudado, para que alguns dos conceitos

possam ir gradativamente iluminando os demais. Os conceitos

apresentam, pois, como ressalta o filósofo húngaro, uma ―unidade

dialética‖ que não se pode perder de vista.

Em A obra de Sartre..., Mészáros afirma, justamente, que é

necessário se preocupar em encontrar a unidade interna que prevalece

ao longo do desenvolvimento teórico do autor estudado,

independentemente da sua variação temática e das suas tensões. Nas

suas palavras (1991, 25),

Essa é uma unidade em evolução que emerge

mediante explorações mais ou menos espontâneas

dos ―caminhos da liberdade‖ [Mészáros aqui se

refere ao problema precípuo de Sartre: a

liberdade] – ou, nesse caso, dos múltiplos

obstáculos à liberdade – sejam eles quais forem. A

unidade é, pois, estrutural e não temática: esta

última seria por demais restritiva para a obra de

toda uma vida.

Além disso, mesmo que o autor estudado seja um

contemporâneo e a sua obra esteja, por definição, incompleta – isto é,

mesmo que ele venha a produzir ainda mais escritos durante sua vida -,

esta unidade pode e deve ser buscada. Da mesma forma, argumenta

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Mészáros, mesmo que haja a possibilidade de que o autor venha a

modificar algumas suas concepções, ainda assim, são os elementos

estruturadores de seu pensamento que necessitam ser compreendidos.

Isto porque, conforme as palavras do filósofo (ibid., 27),

todas as modificações [no desenvolvimento

intelectual de um autor] representam uma

mudança ―à l'interieur d'une permanence‖, de

conformidade com a dialética da continuidade e

descontinuidade. Os elementos estruturadores de

uma obra global original podem-se perceber com

toda a clareza em idade relativamente precoce; as

tendências da busca de um escritor se mostram

pelo tipo de variações que cada uma das obras

individuais representam em relação umas às

outras.

Seguindo essa linha de raciocínio, Mészáros explica que o

desenvolvimento intelectual de um autor pode conter várias rupturas e

revisões das suas posições originais. Ele apresenta, contudo, uma

―dialética entre continuidade e descontinuidade‖. É preciso entender

como isso se dá, e, mais, compreender ―a forma ou configuração

específica dessa unidade‖. Nas palavras do filósofo húngaro, ―podemos

pensar nesse problema em termos de um espectro [grifo nosso] dentro

do qual as continuidades ou descontinuidades predominam mais ou

menos extensamente em graus variáveis de intensidade‖ (ibid., 88).

Acreditamos que o significado dessas afirmações para uma

pesquisa como a que realizamos foi fundamental, pois nos iluminaram

de modo que percebêssemos que o significado dos conceitos de

educação e política em Mészáros não poderiam ser procurados

exclusivamente nas obras em que o filósofo trata explicitamente desses

temas. Deveriam ser buscados, como esclarecido, no movimento da obra

do autor, na unidade e na forma124

que permanece ao longo da sua obra

124

A questão pela procura da forma é deveras importante na obra de Mészáros. Não por acaso,

esse conceito aparece no título de seu grande ensaio sobre o método - Estrutura social e formas

de consciência: a determinação social do método. É a expressão, sem dúvida, da filiação filosófica específica – criticamente assimilada - do autor dentro da tradição marxista, isto é, a

corrente que se vincula ao nome de György Lukács. Nesse sentido, Roberto Schwarz, num

ensaio importante, onde buscava apresentar os pressupostos teórico-metodológios empregados por seu mestre, Antonio Candido, em suas célebres análises literárias – nas quais o grande

crítico brasileiro tentava compreender, justamente, a forma das narrativas sobre as quais se

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global, mesmo com a variação dos temas tratados, e mesmo com a

permanência de tensões ao longo de suas construções teóricas.

Foi preciso, então, recorrer à obra do autor em seu conjunto,

tentando relacionar cada uma das suas formulações particulares a fim de

compreender o movimento interno que as constitui e as define. Aquilo

que se descobriu nas partes não pôde ser mecanicamente generalizado

sobre o todo, assim como não se pôde tomar as obras singulares

isoladamente. Ao contrário, foi preciso procurar entender a unidade

existente na obra global do filósofo, ainda que ele variasse sua temática

e ainda que apresentasse tensões não resolvidas entre um escrito

particular e outro. Como o próprio Mészáros nos explica, é o

movimento, a unidade, a estrutura global da realização teórica de um

autor que dá a chave para a compreensão de cada uma de suas partes. O

filósofo (ibid., 88) afirma que, se se proceder corretamente ao tomar o

movimento de seu pensamento como princípio para o entendimento da

obra global de um autor,

esses elementos [isto é, os pontos e fases

particulares de sua obra] serão iluminados em

todos os pontos específicos do desenvolvimento

[...], os quais representam os elos do movimento

global e, assim, mostram a tendência fundamental

de seu desenvolvimento. Desse modo, a

universalização surgirá como a estrutura global –

uma estrutura dinâmica e não estática – cujos

elementos individuais possuem pesos relativos

que variam. Pois aquilo que domina um ponto ou

fase específicos pode, em outros, ocupar posição

muito subordinada, e vice-versa; e é o padrão

debruçava -, escreveu o seguinte: ―a forma social é objetiva, isto é, posta pelo processo de reprodução social e independente das consciências individuais. [...] Vale a pena insistir neste

ponto para assinalar o fundamento prático-histórico da articulação das esferas estética e social,

donde a diferença com o estruturalismo, que também busca formas em esferas diversas. Dentro do marxismo, enfim, também é preciso distinguir: apesar da nenhuma semelhança vocabular,

estamos na área de tradição alemã e influência lukacsiana [grifo nosso], cujas construções

estéticas dependem, justamente, da objetividade e historicidade das formas sociais, isto em contraste com a linha dos althusserianos, para os quais, como para os positivistas, a forma é

uma construção científica sem realidade própria‖ (1979). Em certo sentido, o que tentamos

realizar neste trabalho foi, dentre outras coisas, decifrar a forma do conceito de educação em Mészáros. Mas é preciso que se diga, nesse contexto, que, de acordo com a tradição filosófica

que aqui seguimos, a forma de uma obra só pode ser entendia em sua íntima relação dialética

com o conteúdo. Ou seja, a forma não existe separada do conteúdo. A forma é, como dizem alguns autores, a ―lógica interna do conteúdo‖, e, enquanto tal, intrínseca a este e que dele não

se separa.

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global – o todo dinâmico – que, em última

instância e objetivamente, determina as

correlações estruturais respectivas, talvez

atribuindo um peso relativo muito maior a um

dado elemento de força embrionária do que aos

elementos temporariamente dominantes, mas

transitórios, cuja importância global diminui à

medida em que se expande o padrão do

desenvolvimento global.

Na tentativa de compreensão desses elementos estruturadores,

como proceder? Uma das proposições de Mészáros é a de que se deve

buscar descobrir fatos da experiência pessoal e da relação de um autor

com seu tempo, a dialética da atividade que ele mantém com sua época,

e, fundamentalmente, o modo como aborda os problemas que a

realidade lhe apresenta. Nesse contexto, é preciso desvendar os ―termos

essenciais de referência‖ utilizados, a malha de conceitos desenvolvida,

as categorias de análise, a relação destes com os pilares de sustentação

de seu pensamento, etc.

Deve-se dar atenção especial, ainda, aos motivos interiores do

autor, ao ―impulso de transcendência crítica‖ que apresenta. É preciso

analisá-lo ―de fora‖, isto é, pela época que o envolve e de que maneira

esta se constitui em matéria-prima para as suas elaborações. E é

necessário, também, compreendê-lo a partir ―de dentro‖. Como explica

Mészáros (ibid., 78),

sejam as oposições ou as afinidades que dêem o

tom [entre o autor investigado e o objeto de suas

reflexões], não se pode cumprir adequadamente a

tarefa da investigação reveladora sem combinar os

pontos de vista de ―dentro‖ e de ―fora‖: a

compreensão solidária das motivações interiores,

por mais marcantes que sejam os contrastes, e o

ardente impulso de transcendência crítica, por

mais estreitas que sejam as afinidades.

Em se tratando da relação dialética entre o autor e a sua época, a

dificuldade apontada pelo filósofo é dupla: deve-se verificar sua individualidade e autonomia, por um lado, e as determinações sociais,

por outro. Além disso, é preciso entender a relação dialética entre os

dois momentos desta unidade – o autor e sua obra. Na já citada A obra de Sartre..., Mészáros estabelece a idéia de que ―cada uma das fases do

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desenvolvimento de Sartre não é simplesmente resultado de

determinações externas, mas de uma interação complexa [grifo nosso]

entre as determinações internas de sua estrutura de pensamento e os

eventos sociais e políticos de sua época‖ (ibid., 100).

Nesse trajeto, é necessário, finalmente, que a teorização seja

elaborada em conjunção com os princípios orientadores vitais de uma

autocrítica radical, visto que, sem isso, é impossível a implementação

das mediações que viabilizam a efetivação da comunidade humana

emancipada. Deve haver, portanto, segundo afirma Mészáros (2009 c, p.

230-1):

uma correlação dialética entre o tipo de sistema

orgânico qualitativamente diverso necessário no

futuro e o princípio orientador da autocrítica

requerido em conjunção como qual aquele novo

tipo se torna viável […] Na verdade, a correlação

dialética entre o novo sistema orgânico e o órgão

da autocrítica se define precisamente como a

mutualidade do auxílio recíproco até mesmo em

um estágio muito prematuro de seu

desenvolvimento histórico, uma vez que a

necessidade de instituir a alternativa hegemônica

do trabalho emerge da crise estrutural profunda da

ordem de reprodução social cada vez mais

destrutiva do capital.

Por que, pois, afirmar e frisar este ponto? Porque é o privilégio

da autocrítica que nos leva a aprender com as experiências históricas.

Mészáros lança mão de uma passagem de O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte para mostrar como Marx estava consciente da importância

fundamental da autocrítica, de como ela deve, na teoria e na prática,

orientar a práxis revolucionária socialista de interpretação e

transformação do mundo burguês. Para o filósofo alemão, as revoluções

proletárias

se criticam constantemente a si próprias,

interrompem continuamente seu curso, voltam ao

que parecia terminado para recomeçá-lo outra vez,

escarnecem com impiedosa consciência as

deficiências, as fraquezas e as misérias de suas

primeiras tentativas, parecem derrubar seu

adversário apenas para que este possa retirar da

terra novas forças e erguer-se novamente,

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agigantando, diante delas, recuam constantemente

ante a magnitude infinita de seus próprios

objetivos até que se cria uma situação que torna

impossível qualquer retrocesso e na qual as

próprias condições gritam:

Hic Rhodus, Hic Salta!

Aqui está Rodes, salta aqui! (MARX, apud

Mészáros, ibid., 238-9).

Não há crítica, portanto, sem autocrítica. Não há como elaborar

mediações teórico-práticas que subvertam a ordem do capital sem

aprender permanentemente com a experiência histórica a respeito do

objeto que se quer superar.

*

Tais foram os fundamentos teóricos que orientaram a presente

pesquisa. Conforme o estabelecido, analisamos o ponto de vista, os

conceitos, as questões, os elementos, os toques particulares e

fundamentais do pensamento de Mészáros, a gênese do seu conceito de

educação em íntima relação com sua teoria política e social. Procuramos

articular as partes desse pensamento num todo, de modo a tentar

evidenciar como o autor desenvolveu seus pressupostos até chegar às

suas conclusões. Buscamos a lógica interna de suas formulações, a

relação dessa lógica com a história, o modo como a história se plasmou

numa forma e num conteúdo específicos na obra do filósofo húngaro.

Agora, como prescrito, devemos ―voltar ao que parecia terminado para

recomeçá-lo outra vez‖: tem, pois, continuidade o movimento da

autocrítica.

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313

REFERÊNCIAS

Qualquer idéia que te agrade,

Por isso mesmo... é tua.

O autor nada mais fez que vestir a verdade

Que dentro em ti se achava inteiramente nua...

Mário Quintana

Oh! Bendito o que semeia

Livros... livros à mão cheia...

E manda o povo pensar!

O livro caindo n'alma

É germe — que faz a palma,

É chuva — que faz o mar.

Castro Alves

Empunha o livro, faminto! É uma arma!

Estás chamado a ser um dirigente.

Não temas perguntar, companheiro!

Não te deixes convencer!

Compreende tudo por ti mesmo.

Bertolt Brecht

Desdobro minhas páginas

– tropas em parada,

e passo em revista

o front das palavras.

Vladimir Maiakovski

Si he sufrido la sed, el hambre, todo

lo que era mío y resultó ser nada,

si he segado las sombras en silencio,

me queda la palabra.

Blas de Otero

Lutar com palavras

parece sem fruto.

Não tem carne e sangue...

Entretanto, luto.

Carlos Drummond de Andrade

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