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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO FACULDADE DE DIREITO MESTRADO EM DIREITO PÚBLICO DEOCLECIANO BATISTA A QUERELA NULLITATIS INSANABILIS COMO MEIO PERPÉTUO DE IMPUGNAÇÃO DA COISA JULGADA INVÁLIDA UFPE, março de 2003

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO FACULDADE DE DIREITO MESTRADO EM DIREITO PBLICO

DEOCLECIANO BATISTA

A QUERELA NULLITATIS INSANABILIS COMO MEIO PERPTUO

DE IMPUGNAO DA COISA JULGADA INVLIDA

UFPE, maro de 2003

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNANBUCO FACULDADE DE DIREITO MESTRADO EM DIREITO PBLICO

DEOCLECIANO BATISTA

A QUERELA NULLITATIS INSANABILIS COMO MEIO PERPTUO

DE IMPUGNAO DA COISA JULGADA INVLIDA

Dissertao apresentada como exigncia parcial para obteno do grau de Mestre em Direito Pblico Banca do Exame de Qualificao da Universidade Federal de Pernambuco.

Orientador: Professor Doutor GUSTAVO FERREIRA SANTOS.

UFPE, maro de 2003

Folha de Avaliao

UFPE, maro de 2003

Esta dissertao dedicada aos Professores Doutores

GUSTAVO FERREIRA SANTOS e

RAYMUNDO JULIANO RGO FEITOSA,

pessoas de admirveis virtudes.

RESUMO

A QUERELA NULLITATIS INSANABILIS COMO MEIO PERPTUO DE IMPUGNAO DA COISA JULGADA INVLIDA

Este trabalho aponta a anomia no direito legislado brasileiro de meio autnomo de impugnao perptua da coisa julgada invlida e sugere que a colmatao poderia ser alcanada com a recepo formal da querela nullitatis insanabilis. Atualmente, pelo direito posto, a garantia relativa da coisa julgada s pode ser impugnada pelas vias da ao rescisria e dos embargos execuo, ambas sujeitas a hipteses numerus clausus e prazos decadenciais relativamente curtos. A proposta de aperfeioamento da ordem jurdica precedida pela resenha da bibliografia, jurisprudncia e legislao de institutos que guardam correlao com o objeto da pesquisa, com nfase para o sistema de invalidades processuais, a querela nullitatis insanabilis e a res iudicatae. Discute, a partir de uma perspectiva crtica do pensamento fundado no mtodo lgico-formal, a definitividade e intangibilidade da coisa julgada diante da diversidade de situaes ofertadas pela realidade jurdica de ttulos judiciais aparentes, inconstitucionais ou nulos de pleno direito. Considera que a autoridade relativa de um instituto processual de direito intertemporal no pode ser sobreposta aos valores superiores da ordem jurdica e nem prevalecer sobre o princpio da supremacia da Constituio. E conclui com a proposta de que a anomia em relao a um meio autnomo de impugnao perptua seja colmatada com a recepo pelo ius scriptum da querela nullitatis insanabilis.

Palavras-chave: direito processual constitucional; vcios perptuos do ato judicial; coisa julgada invlida; querela nullitatis insanabilis; meios autnomos de impugnao.

ABSTRACT

QUERELA NULLITATIS INSANABILIS AS AN AUTONOMOUS PERPETUAL MEANS OF IMPUGNING INVALID RES IUDICATAE

This work evidences that Brazilian statutory law lacks an autonomous procedural means for the perpetual rejection of invalid res iudicatae, and also suggests that the filling of gaps left by such lack of laws can be reached if querela nullitatis insanabilis is formally recognized. Brazilians dogmatic legal system only admits that the relative guarantee of res iudicatae can be attacked by either the use of the action for rescission of final judgment, or via the procedural tool named stay of execution, both of them subject to numerus clausus hypotheses and short lapsing of time for the right of action term. The proposal of filling the gaps of Brazilians legal system is preceded by a summary of bibliography, court decisions and statutes of institutes which convey straight relationship with the proposed object of study, always emphasizing elements such as the procedural invalidity system, querela nullitatis insanabilis and res iudicatae. Res iudicataes qualities of being definite and intangible are discussed in critical perspective taking into account thoughts based on logical-formal methods, observing the diversity of judicial situations that come up with apparent, unconstitucional or even plenary null court decisions. It is considered that the relative authority of an intertemporal procedural institute should not prevail over either superior legal system values, neither over the principle of the supremacy of the Constitution. The conclusion is that the lack of laws related to an autonomous means of perpetual impugnation can be integrated into ius scriptums legal system by the acceptance and recognition of querela nullitatis insanabilis.

Keywords: procedural constitutional law; perpetual defects of judicial acts; invalid res iudicatae; querela nullitatis insanabilis; autonomous means of impugnation.

RSUM

LA QUERELA NULLITATIS INSANABILIS COMME MOYEN PERPTUEL DE CONTESTATION DE LA CHOSE JUGE INVALIDE

Ce travail montre lanomie, dans le droit brsilien, du moyen perptuel de contestation de la chose juge invalide et suggre que le colmatage pourrait tre atteint avec la rception formelle de la querela nullitatis insanabilis. Actuellement, selon le droit pos, la garantie relative de la chose juge ne peut tre conteste que par les voies daction rscisoires et des contraintes lexcution, toutes deux soumises aux hipotses numerus clausus et des dlais relativement courts. La proposition de perfeccionnement de lordre juridique est prcde dun rsum de la bibliographie, de la jurisprudence et de la lgislation des institutions qui ont une corrlation avec lobjet de cette recherche. On y met en valeur le systme des invalidits processuelles, la querela nullitatis insanabilis et la res iudicatae. On discute, partir dune perspective critique de la pense fonde sur la mthode logique-formelle, le dfinitif et lintangibilit de la chose juge en face de la diversit de situations offertes par la ralit juridique de titres judicaires apparents, inconstitutionnels ou nuls de plein droit. On considre que lautorit relative dune institution processuelle de droit intertemporel ne peut pas surmonter les valeurs suprieures de lordre juridique, ni prvaloir au principe de la suprmatie de la Constitution. Puis, on conclut en proposant que lanomie par rapport un moyen perptuel autonome de contestation soit colmate par la rception, de la part du ius scriptum, de la querela nullitatis insanabilis.

Mots-cl: droit processuel constitutionnel; vices perptuels de lacte juridique; chose juge invalide; querela nullitatis insanabilis; moyens autonomes de contestation.

LISTA GERAL DE REDUES

a. C. antes de Cristo

ADIn Ao Direta de Inconstitucionalidade

ADIQO Questo de Ordem em Ao Direta de Inconstitucionalidade

advs. - advogados

als. - alneas

ampl. ampliado

art. - artigo

atual. atualizado

BACEN Banco Central do Brasil

c/c Combinado com

can. cnone (do lat. canon)

cann. cnones (do lat. cannonis)

cap. - captulo

CC Cdigo Civil

CEF Caixa Econmica Federal

CF Constituio Federal (textos brasileiros de 1991, 1934, 1937, 1946 e 1967)

CIC Codex Iuris Canonici

cf. - confira

CLT Consolidao das Leis Trabalhistas

cd. - cdigo

Confl. Conflito de Competncia

CPC Cdigo de Processo Civil

CPP Cdigo de Processo Penal

CPPM Cdigo de Processo Penal Militar

CR Constituio da Repblica Federativa do Brasil, de 5.10.1988

d. C. depois de Cristo

Dig. - Digesto

DJU Dirio de Justia da Unio

DOCEGEO Rio Doce Geologia e Minerao S/A

EC Emenda Constitucional

ed. - edio

ERE Embargos em Recurso Extraordinrio

etc. e outras coisas (do lat. et coetera)

et al. e outros (do lat. et alii)

i. e. isto (do lat. id est)

ibid. indica referncia ao que j foi mencionado (do lat. ibidem)

id. o mesmo, a mesma (do lat. idem)

inc. - inciso

j. julgado em

LICC Lei de Introduo ao Cdigo Civil

liv. - livro

min. ministro

n., n e n. - nmero

Ord. - Ordenaes

p. - pgina

p. e. por exemplo

proc. processo

RE Recurso Extraordinrio

rel. - relator

Rp. - Representao

REsp Recurso Especial

rev. revisado

RMS Recurso em Mandado de Segurana

RTJ Revista Trimestral de Jurisprudncia

sic assim, deste modo ou reproduzido exatamente como no original

ss. seguintes

STF Supremo Tribunal Federal

STJ Superior Tribunal de Justia

t. tomo

TFR Tribunal Federal de Recursos

tir. tiragem

tt. - ttulo

TRF Tribunal Regional Federal

Ulp. - Ulpiano

v. - volume

v. g. por exemplo (do lat. verbi gratia)

SUMRIO

INTRODUO ................................................................................................................. 15 I PARTE BASES CONCEITUAIS, SISTMICAS E TERICAS ............................... 23 CAPTULO I SISTEMA DE NULIDADES DE ATOS E FORMAS NO ATUAL DIREITO PROCESSUAL CONSTITUCIONAL BRASILEIRO ......................................................................... 24

1.1 Compreenses bsicas ........................................................................................................................ 24 1.1.1 O porqu das formas processuais ............................................................................................ 24 1.1.2 O controle das formas .............................................................................................................. 25

1.2 O sistema brasileiro de anulabilidades e nulidades dos atos e formas processuais ........................... 26 1.2.1 A conformao histrica .......................................................................................................... 26 1.2.2 O direito legislado e a sistematizao ainda incerta. ............................................................... 28 1.2.3 Taxinomia ................................................................................................................................ 30 1.2.4 A nulidade kelseniana levaria aceitao da preclusibilidade definitiva dos vcios da

relao processual .................................................................................................................... 33 1.3 Direito Processual Constitucional ....................................................................................................... 34

1.3.1 O grau de nulidade dos atos judiciais contrrios Constituio ............................................. 35 1.3.2 A nulidade ab initio e perptua da coisa julgada inconstitucional .......................................... 37

CAPTULO II A QUERELA NULLITATIS INSANABILIS E OS DEMAIS MEIOS DE IMPUGNAO DA COISA JULGADA ...................................................................................... 41

2.1 Traos marcantes dos meios de impugnao no sistema jurdico romano ......................................... 41 2.1.1 Os dois sistemas processuais conhecidos pelo direito romano ................................................ 41 2.1.2 Como os romanos viam a nulla sententia ................................................................................ 43 2.1.3 A resistncia s nulidades da sentena nos processos de cognio e de execuo

(rectius: actio iudicati) da primeira fase do direito romano .................................................... 44 2.1.4 Os primeiros meios de impugnao da coisa julgada .............................................................. 46

2.2 A querela nullitatis insanabilis como meio autnomo de impugnao da coisa julgada................... 48 2.2.1 O aparecimento da querela nullitatis no Direito Medievo ...................................................... 48 2.2.2 O destino de pouca glria da querela ...................................................................................... 51 2.2.3 A imanncia do instituto em relao aos vcios processuais graves ........................................ 53

2.3 A preservao pelo direito cannico das duas espcies da querela nullitatis .................................... 55 2.3.1 Breves notas sobre a codificao do direito da Igreja .............................................................. 55 2.3.2 A disciplina da querela nullitatis no atual Codex Iuris Canonici ........................................... 58

2.4 A querela nullitatis insanabilis no direito brasileiro .......................................................................... 59 2.4.1 Expulsa do universo conceitual, mas com existncia clandestina assegurada pelas

imposies da realidade jurdica .............................................................................................. 59 2.4.2 O ostracismo conhecido com o surgimento de novos meios de impugnao ....................... 61 2.4.3 Outro fator que contribuiu para a proscrio equivocada ........................................................ 62 2.4.4 Os meios que, em tese, seriam idneos para impugnar a coisa julgada brasileira ................ 63

CAPTULO III COISA JULGADA E SUAS DEBILIDADES ....................................................... 69

3.1 A pretensa intangibilidade absoluta da coisa julgada ......................................................................... 69 3.1.1 Causas da m percepo dos limites da intangibilidade no direito brasileiro ........................... 69

3.1.2 A relatividade evidenciada at pelo direito legislado ............................................................. 71 3.1.3 A relatividade reafirmada pelas sentenas que no transitam materialmente em julgado ....... 73

3.2 A formao dogmtica da coisa julgada ............................................................................................. 75 3.2.1 A gnese e consolidao do instituto da res iudicatae na Roma Antiga ................................. 75 3.2.2 As principais contribuies tericas para a fundamentao do atributo da autoridade do caso

julgado ................................................................................................................................................ 79 3.2.3 A intangibilidade como decorrncia da certeza do direito afirmado pelos rgos judicirios

e da segurana jurdica devida pelo Estado ............................................................................. 82 3.3 A percepo fundada no imaginrio do justo ..................................................................................... 83

3.3.1 A res auctoritas iudicatae seria uma exigncia de ordem social estranha aporia de justia? ...................................................................................................................................... 83

3.3.2 A conformao dogmtica da coisa julgada excluiria a abordagem zettica? ......................... 88 3.4 Coisa julgada invlida e tenses normativas ...................................................................................... 91

3.4.1 Dificuldades prticas de concreo das normas constitucionais .............................................. 91 3.4.2 O falso problema das tenses constitucionais provocadas pela coisa julgada.......................... 95

II PARTE COISA JULGADA INVLIDA E PRTICA JURDICA......................... 102 CAPTULO IV AS POSSIBILIDADES AVENTADAS PELA DOUTRINA DE DECISES QUE SERIAM INIDNEAS PARA PASSAR EM JULGADO ................................................. 103

4.1 Pressupostos desta abordagem numerus apertus .............................................................................. 103 4.1.1 Adendo quanto s possibilidades infindveis de coisa julgada invlida que so

inconciliveis com a idia de ato normativo .............................................................................. 103 4.1.2 A compreenso terminolgica das trs espcies de invalidade perptua ............................... 104

4.2 Coisa julgada aparente ou inexistente .............................................................................................. 107 4.2.1 Quando no h relao processual ............................................................................................ 107 4.2.2 Aquilo que no pode ser tido como sentena ...................................................................... 109 4.2.3 Falsus procurator ............................................................................................................... 110

4.3 Coisa julgada inconstitucional .......................................................................................................... 111 4.3.1 Abrangncia e direito legislado ................................................................................................. 111 4.3.2 Algumas das possibilidades da coisa julgada inconstitucional .............................................. 113

4.4 Coisa julgada absolutamente nula ..................................................................................................... 115 4.4.1 Segunda sentena no mesmo processo e segunda sentena noutro processo .................... 115 4.4.2 Relao processual post mortem ............................................................................................ 116

CAPTULO V CASOS CONCRETOS DE TUTELAS JURISDICIONAIS TIDAS COMO INCOMPATVEIS COM A FORMAO DA COISA JULGADA .......................................... 118

5.1 Incidncia da quebra da coisa julgada e interesse da referncia a casos concretos .......................... 118 5.1.1 O grau da relatividade admitida pelos tribunais .................................................................... 118 5.1.2 A convenincia de aliar a teoria prtica .............................................................................. 120

5.2 Invalidades decorrentes de falta ou nulidade de citao (CPC, art. 741, inc. I) ............................ 120 5.2.1 Sucumbncia de quem compareceu a juzo para o fim certo de prestar depoimento

pessoal ................................................................................................................................... 120 5.2.2 Revelia em citao por fax que foi cumprida em telefone diverso do mencionado no

mandado ................................................................................................................................. 122 5.2.3 Nulidade declarada de ofcio em rescisria julgada improcedente ........................................ 124

5.2.4 Imvel inscrito em nome de terceiros que deixaram de ser citados em ao de prescrio aquisitiva ............................................................................................................................... 127

5.2.5 Fungibilidade dos meios de impugnao se o titular do registro imobilirio deixou de ser citado ...................................................................................................................................... 128

5.3 Invalidades reconhecidas por outros motivos ................................................................................... 130 5.3.1 Acrdo proferido em recurso j julgado por acrdo que transitou em julgado .................. 130 5.3.2 Sentena alterada depois da publicizao .............................................................................. 131

5.4 Modificaes dos efeitos materiais da coisa julgada ........................................................................ 132 5.4.1 Nova avaliao fundada no esprito de justia da Constituio ............................................ 132 5.4.2 Sopesamento de garantias constitucionais: sacrifcio da coisa julgada em favor da justa

indenizao ............................................................................................................................ 134 5.4.3 Prevalncia do princpio constitucional do justo preo e reviso da verba honorria ...... 136

CAPTULO VI O CASO SERRA PELADA: GOLPE EM JUZO QUE MATERIALIZOU AS TRS POSSIBILIDADES TERICAS DA COISA JULGADA INVLIDA ........................... 138

6.1 Adendos Iniciais ............................................................................................................................... 138 6.1.1 Os porqus deste estudo de caso ............................................................................................ 138 6.1.2 Compreenso mnima das relaes materiais evocadas na discusso em juzo .................... 139 6.1.3 O contexto processual que inspirou a propositura da querela nullitatis insanabilis ............. 141

6.2 Anatomia da fraude processual ......................................................................................................... 143 6.2.1 O desencadeamento do golpe ................................................................................................ 143 6.2.2 A frmula jurdica do conto da doao presumida .............................................................. 144 6.2.3 O universo dos doadores e dos terceiros interessados ......................................................... 145 6.2.4 O que proporcionou o sucesso da trama ................................................................................ 146

6.3 Fundamentos e obstculos para a impugnao do golpe judicial ..................................................... 147 6.3.1 O que foi considerado quando da propositura da querela .................................................... 147 6.3.2 O indeferimento da inicial e a reforma da deciso terminativa.............................................. 150 6.3.3 Reconhecimento, nas instncias recursais, da compatibilidade e indispensabilidade do

instituto no direito brasileiro .................................................................................................. 154

III PARTE INFERNCIAS QUE APONTAM PARA A NECESSIDADE DE COLMATAR O DIREITO LEGISLADO BRASILEIRO COM A RECEPO FORMAL DA QUERELA NULLITATIS INSANABILIS ................................................................... 156 CAPTULO VII A ESPCIE DE ACTIO NULLITATIS MELHOR TALHADA PARA A IMPUGNAO PERPTUA DA COISA JULGADA INVLIDA .......................................... 157 ...

7.1 A impugnao da coisa julgada invlida na atual ordem jurdica brasileira .................................... 157 7.1.1 A equivocada opo legislativa por meios de impugnao extraordinrios unicamente

preclusivos ............................................................................................................................. 157 7.1.2 Os instrumentos processuais de impugnao autnoma hoje admitidos pelo direito

legislado ................................................................................................................................. 159 7.1.3 A admisso de outros meios processuais pela doutrina e jurisprudncia mais

qualificadas............................................................................................................................ 160 7.1.4 A anomia cada vez mais sentida de um meio autnomo para a impugnao perptua de

ttulos invlidos ...................................................................................................................... 162 7.1.5 A identidade romano-germnica da querela e sua compatibilidade com a ordem jurdica

vigente no Brasil .................................................................................................................... 164

7.1.6 Possibilidades mais bvias de insero normativa ................................................................. 166 7.2 Coisa julgada passvel de ser impugnada a qualquer tempo ............................................................ 168

7.2.1 A conformao normativa e a natureza relativa da coisa julgada no direito brasileiro ......... 168 7.2.2 A fundamentao terica da coisa julgada e a contradio intrnseca dos topoi de sua

intangibilidade ..................................................................................................................... 169 7.2.3 As espcies de coisa julgada invlida que se sujeitam impugnao perptua pela via da

querela nullitatis insanabilis ................................................................................................. 172 CONCLUSO .............................................................................................................................. 176 BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................................... 187

INTRODUO

O direito legislado brasileiro ressente-se da falta de um instrumento

processual prprio para a impugnao, a qualquer tempo, da coisa julgada invlida. A

deciso de mrito que passa em julgado tida como apta produo de efeitos

substanciais to logo ocorra a precluso consumativa ou temporal dos recursos

ordinrios. E a autoridade da coisa julgada conhece o grau mximo de intocabilidade

quando restam vencidos os meios autnomos de impugnao extraordinria. Meios

estes que, por lei, restringem-se ao rescisria e aos embargos execuo, ambos

sujeitos a elencos exaustivos dos mais reduzidos e prazos decadenciais relativamente

curtos (CPC, arts. 485 a 495 e 741 a 744).

Tem-se a a sntese legalista das possibilidades de impugnao dos errores in

iudicando et in procedendo da deciso com trnsito em julgado. Com o transcurso dos

prazos preclusivos da rescisria e dos embargos, a invalidade do ato processual perde a

existncia jurdica e j no pode mais ser argda pelo prejudicado ou mesmo ser

conhecida pelo Poder Judicirio.

O propsito, aqui, ser o de explicitar a anomia que reclama ser colmatada

com a recepo do medieval instituto da querela nullitatis insanabilis. A omisso

legislativa em prever a impugnao perptua da coisa julgada invlida teria sido

consciente, dada a exigncia social de que haja certeza quanto ao direito afirmado na

relao processual e segurana de todos quanto s situaes jurdicas atingidas pela

composio do conflito de interesses. Seria insuportvel conviver com o estado de

dvida que existiria se as relaes entre as pessoas ficassem, ad aeternum, merc da

incerta iniciativa do jurisdicionado eventualmente prejudicado por nulidades

processuais.

Essa realidade levou o Estado a optar pela consolidao do caso passado em

julgado assim que a jurisdio esgotada ou quando da presuno de renncia pela

expirao de prazo ensejado para o exerccio de inconformismo. As vantagens de tal

poltica legislativa seriam muitas, a comear pela contribuio que a estabilidade

jurdica aporta para o esforo estatal de pacificao social. A certeza e a segurana

jurdicas proporcionam melhores condies para a administrao da justia ao evitar

novas apreciaes judiciais sobre a mesma controvrsia e frustrar a tendncia humana

de eternizar o litgio, o que parece justificar a afirmativa de que a inexistncia de um

instituto processual com as caractersticas da coisa julgada poderia comprometer

seriamente a credibilidade do direito objetivo perante os seus destinatrios.

O problema desse binmio de legitimao da definitividade da res iudicatae

est em que a ordem jurdica acaba episodicamente derrogada em situaes to

diversas quanto extraordinrias.1 A estabilidade alcanada em uma situao concreta

com a aceitao de um ttulo judicial aparente, inconstitucional ou nulo de pleno

direito h de ser vista sempre como a negativa implcita de algum preceito que deveria

incidir na composio do conflito levado a juzo. A certeza e segurana jurdicas

constituiriam, assim, valores diferenciados que se sobrepem a toda valorao contida

em normas aplicveis situao ftica. As conseqncias prticas dessa opo

dogmtica de lgica formal, ainda que se abstraia o fator justia, geram

perplexidades como a de saber se os marcos preclusivos devem realmente condicionar

o ordenamento normativo e, em particular, a supremacia da Constituo. Afinal, de

que vale estar certo e seguro de que um simples instrumento processual incidir

mesmo quando o caso passou em julgado com afronta a clusulas como as do due

process of law, isonomia ou legalidade?

A questo cresce em importncia quando se sabe que a regra constitucional

de direito intertemporal para a proteo da coisa julgada limita-se lei nova (CR, art.

5., inc. XXXVI). Excetuada essa nica referncia ao instituto na atual Constituio, a

1 CALAMANDREI, Piero. Vicios de la Sentencia y Medios de Gravamen: estudios sobre el

proceso civil. Buenos Aires: EJEA, 1961. p. 463.

disciplina normativa, inclusive a proibio de a magistratura decidir novamente a

mesma lide, est toda posta no ordenamento infraconstitucional (CPC, arts. 467 a 476;

LICC, art. 6., 3.; et passim). As indagaes, sob esse aspecto, poderiam ser de

outra ordem. Exemplos: A essncia relativa da coisa julgada prevalece sobre o

princpio da supremacia da Constituio?; O ttulo judicial aparente, cuja inexistncia

jurdica decorre de ele ser um no-ato, teria a chancela estatal para produzir todos os

seus supostos efeitos?

A carga de legitimao dogmtica que a coisa julgada alcanou com o

discurso fundado na necessidade de certeza e segurana jurdicas tem condicionado

fortemente a prestao jurisdicional no Brasil. No raro, direito, justia, moral e

valores elegidos como superiores pela prpria ordem jurdica so sacrificados por

esses topoi ideolgica e politicamente conformadores. As dificuldades prticas que

da resultam, como as tenses entre direitos fundamentais, tomam propores de

grande vulto. S para ilustrar: admitir-se-ia equiparar, em termos de proteo ltima,

o direito vida e o de propriedade (CR, art. 5., caput e inc. XXII)?; a sentena penal

transitada em julgado poderia ser cumprida se a pena fosse de tortura ou tratamento

degradante (id., ibid., inc. XXXVI c/c III)?

Essa classe de tenso provocada pela coisa julgada talvez pudesse ser

obviada com frmulas e tcnicas de hermenutica, como a do sopesamento dos bens e

interesses jurdicos constitucionalizados. Mas, no se estaria, ento, mitigando o

princpio da supremacia da norma constitucional em favor de uma garantia processual

relativa? A aplicao do princpio da proporcionalidade poderia assegurar efeitos ex

nunc declarao de incompatibilidade com a Constituio?

Algumas das respostas para essas e outras indagaes podero ser conhecidas

com a leitura deste texto. Nele esto consolidados os resultados de pesquisas

bibliogrfica, jurisprudencial e legislativa sobre os institutos jurdicos que guardam

estreita correlao com o objeto da pesquisa, especialmente os da nulidade processual,

querela nullitatis insanabilis e res iudicatae. Tambm podem ser encontradas

reflexes crticas ao pensamento jurdico fundado no mtodo clssico de lgica-formal

e vrias referncias comparativas de aspectos pontuais da ordem jurdica brasileira e

de outros Estados. H ainda algumas modestas contribuies para o aprofundamento

do estudo da impugnao extraordinria, como seriam as caracterizaes da

impugnao perptua, do gnero coisa julgada invlida e das espcies de invalidades

da coisa julgada que foram classificadas, para facilitar a compreenso, em aparentes,

inconstitucionais e nulas de pleno direito.

A abordagem da anomia observada no nosso ius scriptum pressupe

domnios conceituais, sistmicos e tericos que foram antecipados nos trs primeiros

do total de sete Captulos. Aqueles trs, em realidade, vo alm. No primeiro deles, a

incurso pelos defeitos de fundo, como a ilicitude do objeto, ou a referncia aos

defeitos de forma, como a desconformidade com a prescrio legal, mostra que as

nulidades so comuns a todos os campos jurdicos e constituem objeto da Teoria Geral

do Direito. Evidencia, tambm, que o estudo das invalidades da coisa julgada est

contingenciado pelos valores superiores da ordem jurdica contempornea e parece

inteiramente pautado pelo princpio da supremacia da Constituio. Admitidas essas

premissas, a classificao dos vcios extremos apresentados por atos e formas

processuais teria de contemplar ao menos trs espcies bsicas, quais sejam as da

aparncia ou inexistncia jurdica, inconstitucionalidade e nulidade ipso iure.

Os segundo e terceiro Captulos compem o ncleo da estrutura do texto.

Neles esto as resenhas dos institutos da querela nullitatis insanabilis e da coisa

julgada, desde as gneses havidas nos dois sistemas processuais conhecidos pelo

direito romano at as compreenses aceitas em nossos dias. A querela, que foi uma

criao dos legisladores estatutrios de algumas cidades italianas do incio do perodo

medieval e logo foi incorporada em definitivo pelo direito cannico, deve ser

apreendida como uma das mais perfeitas snteses proporcionadas pelo princpio

germnico da fora formal da sentena e pela distino romana entre a sententia nulla

e a sententia iniusta. Banida do nosso universo conceitual pela exacerbada pretenso

cientificista dos dois ltimos sculos, ela encontrou meios de subsistir

clandestinamente no contexto de outros institutos de impugnao, inclusive de forma

pouco velada nos embargos execuo exigidos em lei para a postulao de nulidades

citatrias e inexigibilidade de ttulos judiciais proferidos com ofensa Constituio

(CPC, art. 741, inc. I e pargrafo nico).

O considervel espao reservado no Captulo III para o desenvolvimento da

idia da res iudicatae justifica-se pela compreenso equvoca que se lhe empresta. A

investigao procurou caracterizar a formao dogmtica iniciada na Roma Antiga, a

hierarquia normativa conhecida no direito nacional e as possibilidades ensejadas para a

resoluo de tenses pelo princpio da proporcionalidade ou razoabilidade. O ponto de

maior interesse, no entanto, talvez esteja na seqncia de consideraes crticas

ensejadas pelo confronto da coisa julgada com a aporia da justia.

Os trs Captulos seguintes foram dedicados doutrina e praxis de

situaes nas quais a coisa julgada no faz do branco preto, do crculo quadrado, nem

do falso verdadeiro. So casos e hipteses que obrigam o reconhecimento pela

doutrina e jurisprudncia de que humanamente impossvel para o legislador chegar a

uma enumerao numerus clausus de decises judiciais definitivas que jamais podero

passar em julgado. O transcurso dos prazos para a impugnao desses ttulos no

muda a natureza perptua dos vcios e nem exclui a possibilidade permanente da

propositura da querela nullitatis insanabilis. 2

O Captulo IV dedicado s possibilidades tericas de coisa julgada invlida

e principia com a advertncia quanto a ser de todo impensvel pretender esgotar aquilo

que, em tese, deve ser tido como pseudo-sentena. As hipteses coligidas parecem

extremar a certeza de que a coisa julgada invlida atenta contra as compreenses

bsicas do que vem a ser o Direito e a Justia. A retirada do mundo jurdico seria

2 CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil: estudos sobre o processo civil. Traduo

Luiz Abezia e Sandra Drina Fernandez Barbery. Campinas: Bookseller, 1999. p. 253-254.

assim um imperativo lgico e racional a ser alcanado pela via segura do processo

cognitivo da ao de declarao da nulidade insanvel (rectius: querela nullitatis

insanabilis).

O Captulo V traz uma amostra da jurisprudncia mais representativa de

casos julgados invlidos. Nada de animador, pois a quase totalidade das invalidades

acolhidas dizem respeito nulidade pleno iure de inexistncia jurdica da relao

processual por vcios de citao (CPC, art. 741, inc. I). O alento, mais uma vez, fica

por conta de magistrados-juristas que, avessos ao legalismo estrito, no hesitam em

afirmar que a querela nullitatis insanabilis deve ser tida como o meio processual mais

indicado para o ataque das invalidades passadas em julgado. 3

O Captulo VI seria algo prximo a estudo de caso. Trata-se do resumo de

uma experincia profissional que motivou a elaborao desta pesquisa. O embate

forense consistiu em inusitado golpe processual que materializa de forma perfeita as

trs possibilidades tericas da coisa julgada invlida. A responsabilidade pela

representao em juzo foi assumida depois do trnsito em julgado das decises de

mrito proferidas em aes declaratria e de cobrana. Com a recusa da patrocinada

em autorizar a propositura de rescisria contra acrdo do Supremo Tribunal Federal,

3 P. e.: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinrio n 96.696/RJ. Recorrente:

Hindenburg Mrio Daruj e outro. Recorrido: Daniel de Souza Rocha e sua mulher. Relator: Min. Relator para o

acrdo. Alfredo Buzaid. Min. designado: Soares Muoz. Braslia, 22 de maro de 1982. Revista Trimestral de

Jurisprudncia, Braslia, dez. 1982. n. 104, p. 826-836; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso

Extraordinrio n 63.677/GO. Recorrente: Jos Romo Carneiro, sua mulher e outros. Recorrido: Joaquim Pedro

Neto e sua mulher. Relator: Min. Amaral Santos. Braslia, 21 de agosto de 1969. Revista Trimestral de

Jurisprudncia, Braslia, 1969. n. 50, p. 703-705; BRASIL. Superior Tribunal de Justia. Processual Civil

Nulidade da citao (inexistncia) Querela nullitatis. Recurso Especial n 12.586/SP. Recorrente: Condomnio

Shopping Center Iguatemi. Recorrido: Ponto Um Planejamento e Publicidade LTDA. Relator: Min. Waldemar

Zveiter. Braslia, 8 de outubro de 1991. Dirio da Justia, Braslia, 4 nov. 1991. Seo 1, p. 15684.

a autoridade da coisa julgada revestiu-se de definitividade quando da precluso do

binio decadencial. A alternativa que se oferecia pareceu ser a propositura da

inominada querela nullitatis insanabilis, cujos detalhes e desdobramentos podero ser

conhecidos com a leitura do captulo.

As principais inferncias sobre o papel reservado querela nullitatis

insanabilis na impugnao da coisa julgada invlida esto concentradas no stimo e

ltimo Captulo. Nele so enfrentadas perplexidades como a gerada pela prevalncia

de um instituto processual de hierarquia normativa infraconstitucional sobre todo o

conjunto de valores superiores da ordem jurdica. Tambm so postas questes e

respostas pertinentes colmatao do direito legislado com a introduo formal da

querela nullitatis insanabilis. Uma dessas indagaes busca aclarar se a funo

diretiva da coisa julgada na ordem jurdica positivada impediria a identificao do

Direito com a Justia.

As maiores dificuldades no trato da omisso legislativa observada em nossa

ordem jurdica, como poder notar o leitor, esto basicamente naquilo que os romanos

chamavam de autoridade ou santidade da coisa julgada e na tentativa observada nos

ltimos tempos de reduzir o direito letra da lei. Mas, a coisa julgada seria mesmo

um direito absoluto, com autoridade revestida de definitividade e intangibilidade? O

direito posto no poderia tolerar ao menos o elenco numerus apertus para as situaes

che possono presentarsi nella pratica (...) e dei quali no possibile fissare in anticipo

una compiuta elezione, nei quali la sentenza inidnea materialmente, si direbbe

quasi fisicamente, a passare in giudicato 4 ?

Sejam quais forem as respostas, a importncia desta pesquisa remanescer ao

menos para aqueles que vivem a prtica jurdica e esto sujeitos a assistir a ilgica e

irracional prevalncia da coisa julgada invlida.

4 CALAMANDREI, Piero. Sopravvivenza della querela di nullit nel processo civile italiano.

Rivista di Diritto Processuale, [S.l.], 1951. p. 144.

I PARTE BASES CONCEITUAIS, SISTMICAS E TERICAS

CAPTULO I SISTEMA DE NULIDADES DE ATOS E FORMAS NO ATUAL

DIREITO PROCESSUAL CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

Sumrio 1.1 Compreenses bsicas 1.1.1 O porqu das formas processuais 1.1.2 O controle das formas 1.2 O sistema brasileiro de anulabilidades e nulidades dos atos e formas processuais 1.2.1 A conformao histrica 1.2.2 O direito legislado e a sistematizao ainda incerta 1.2.3 Taxinomia 1.2.4 A nulidade kelseniana levaria aceitao da preclusibilidade definitiva dos vcios da relao processual 1.3 Direito Processual Constitucional 1.3.1 O grau de nulidade dos atos judiciais contrrios Constituio 1.3.2 A nulidade ab initio e perptua da coisa julgada inconstitucional.

1.1 COMPREENSES BSICAS

1.1.1 O porqu das formas processuais

A forma existe para emprestar autenticidade, certeza e segurana ao ato

processual. Este, como espcie do ato jurdico, pressupe a exigncia da forma porque

a vontade somente interessa quando manifestada por sinais exteriores, palavras,

gestos, smbolos 5. O que deve ser evitado no ordenamento das formas processuais o

formalismo, e no um mnimo de formalidade que garanta s partes a oportunidade de

participar dos procedimentos tendentes formao do juzo e ao magistrado o

conhecimento seguro dos fatos objeto do conflito.

A diminuio ou supresso das formas comprometeria em igual medida a

liberdade dos jurisdicionados e resultaria em proporcional aumento do poder do

Estado-juiz6. Elas so tidas por todos os juristas como indispensveis ao atual Estado

de Direito, embora no devam ser confundidas com exigncias inteis, onerosas,

5 KOMATSU, Roque. Da Invalidade no Processo Civil. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.

6 COUTURE, Eduardo Juan. Fundamentos de Derecho Procesal Civil. 3. ed. (pstuma). Buenos

Aires: Depalma, 1978. p. 374. VESCOVI, Enrique. Derecho Procesal Civil: teoria general del proceso. Bogot:

Temis, 1984. v. 3, p. 296.

procrastinatrias. Muito menos com simplificaes que pequem pelo exagero e

enfraqueam a confiabilidade dos atos.

A busca permanente nesse campo deve ser a do equilbrio entre celeridade e

segurana; um meio termo onde sobressaiam princpios informadores como os da

brevidade, economia e simplicidade processuais.

1.1.2 O controle das formas

O desrespeito s formas preestabelecidas pode comprometer de diferentes

modos a prestao jurisdicional. Porm, por mais danosa que seja a repercusso para a

relao jurdica processual, o defeito formal nem sempre chega a justificar a drstica

declarao de nulidade do ato.

A forma tida de h muito como meio, e no como um fim em si mesma 7.

De modo que o ato processual carece de autonomia e s existe para que a relao

processual proporcione s partes a concreo da vontade da lei ao conflito de

interesses submetido a juzo.

A idia base a de que los actos del proceso tienen una finalidad u objetivo

(fines) y se desarrollan conforme a reglas predeterminadas (formas) 8. Seria

desarrazoado, portanto, declarar a nulidade de um ato que tenha alcanado

satisfatoriamente o fim pretendido. Antes de inquin-lo de nulo, preciso indagar se a

7 RODRIGUEZ, Luiz A. Nulidades Procesales. Buenos Aires: Universidad, 1983.

8 VESCOVI, Enrique. Los Recursos Judiciales y Dems Medios Impugnativos en Iberoamrica.

Buenos Aires: Depalma, 1988. p. 13.

finalidade atribuda pela lei foi alcanada e se o descumprimento da forma trouxe

prejuzo ao processo.

Reflexes dessa ordem levaram ao surgimento de diferentes sistemas de

controle das nulidades processuais. Em comum, a busca da uniformidade de critrios

e do equilbrio entre liberdade e rigorismo das formas. O objetivo seria evitar que o

ato invlido produza efeitos, embora a eventual falta de validade no importe em

ausncia de eficcia. S depois de declarado nulo que o ato deixa de produzir

efeitos, de ser eficaz.

1.2 O SISTEMA BRASILEIRO DE ANULABILIDADES E NULIDADES DE

ATOS E FORMAS PROCESSUAIS

1.2.1 A conformao histrica

Na Roma Antiga, o excesso de formalismo tinha como nulo e ineficaz

qualquer ato que deixasse de observar as leis procedimentais. O nulo sequer precisava

ser assim declarado, pois todos entendiam que lhe faltava um mnimo de validade para

a produo de qualquer efeito.

As primeiras distines entre nulidades e vcios sanveis comearam a surgir

no fim do perodo clssico e incio da Idade Mdia. Tambm teriam surgido por essa

poca as bases para a discusso do que anulvel, inexistente ou nulo. 9

9 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado da Ao Rescisria das Sentenas e

de Outras Decises. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 28 e ss.

Pouco depois, com a fuso dos direitos romano e germnico, apareceram os

primeiros instrumentos voltados ao ataque das invalidades. Esses instrumentos, de que

so exemplos as espcies sanabilis e insanabilis da querela nullitatis, fizeram com que

o direito medieval ganhasse em organicidade e acabou por levar o processo romano-

cannico a incorporar a idia de impugnao dos atos viciados.

Inovaes de maior monta, no entanto, s seriam conhecidas por volta da

metade do sculo XVIII. At ento, o direito civil continuava influenciando os demais

ramos da experincia jurdica, a ponto de o denominado direito de forma ser

confundido com o direito de fundo.10 O processo era visto como simples apndice

daquele que o mais antigo dos direitos materiais e costumava ser classificado entre

os segmentos do Direito Privado.

Com a autonomia do processo e o crescente interesse pelo seu estudo, a

declarao de nulidade formal deixou de ser condicionada apenas pela letra da lei para

levar em conta tambm uma srie de princpios que informam a teoria dos atos

processuais. A legalidade das formas, na experincia forense, passou ento a conviver

com princpios de grande apelo para o desejvel equilbrio entre celeridade e

segurana na prestao jurisdicional; dentre os quais figuram os da economia

processual, instrumentalidade das formas e aproveitabilidade ou renovao dos atos. 11

10 CAMUSSO, Jorge P. Nulidades Procesales. Buenos Aires: Ediar, 1983. p. 19.

11 A primeira das funes desempenhadas por esses princpios seria a de inspirar o legislador na

construo do sistema de nulidades processuais. Tanto que o vigente estatuto processual civil brasileiro traz uma

srie de artigos que correspondem fielmente formulao dos mencionados princpios. Outra funo de igual

Em nossos dias, prevalece a idia de que o ato s deve ser declarado nulo

quando deixa de atingir sua finalidade. Se alcana o fim exigido ou o objetivo

esperado, no h falar em prejuzo ou em nulidade. Um bom exemplo seria a falta de

citao, tida em muitos ordenamentos como o maior dos vcios, que seria sanada na

hiptese de o citando comparecer espontaneamente para integrar o plo passivo da

relao jurdica processual.

1.2.2 O direito legislado e a sistematizao ainda incerta

As nulidades so comuns a todos os campos jurdicos e, por isso, constituem

tema da Teoria Geral do Direito.12 Elas podem decorrer de um defeito de fundo, como

a ilicitude do objeto, ou de forma, como a desconformidade com a prescrio legal ou

a prtica defesa em lei. S essas ltimas, que viciam atos e formas da relao

processual, compem o verdadeiro objeto dos vrios ramos processuais do Direito

Pblico.

No Brasil, devido realidade da evoluo do ordenamento legislativo, as

nulidades ainda so disciplinadas de modo genrico em ramo do Direito Privado (CC

de 1916, arts. 145 e ss.; CC de 2002, art. 166 e ss.). Particularidade essa que traz

dificuldades nada desprezveis quando se trata de aplicar tais regras s diversas reas

do Direito Pblico.

importncia seria a orientao que os princpios processuais imprimem hermenutica do direito legislado

(PINTO, Teresa Arruda Alvim. Nulidades Processuais. 2. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 148).

Um exemplo basta para dimensionar o grau dessa dificuldade. No direito

material civil, o vcio do ato jurdico cominado de nulo de pleno direito e o juiz no

pode supri-lo nem a requerimento das partes. 13 e 14 No direito processual,

diversamente, as nulidades institudas para atender interesses particulares sempre

puderam ser sanadas e at convalidadas.

De modo resumido, tem-se assim que o ato jurdico observa duas regras bem

definidas no sistema civilista das invalidades: 1.) a nulidade deve ser decretada de

ofcio, com efeito ex tunc, e jamais se imuniza; 2.) a anulabilidade s pode ser

reconhecida por provocao da parte e o eventual saneamento do ato opera efeitos ex

nunc.

O sistema processual, por sua vez, apresenta diferentes nuanas. A essencial

diz respeito possibilidade de sanao at mesmo de nulidade absoluta ou pleno jure.

Tome-se como exemplo o vcio gravssimo da citao invlida (CPC, arts. 214, 2., e

247).

12 BLANC, Ernesto Nieto. Nulidad de los Actos Jurdicos. Buenos Aires: Abileido Perrot,

1971. p. 15.

13 O tratamento da codificao anterior (CC, art. 146, pargrafo nico) foi mantido pelo atual

Cdigo Civil (Lei n 10.406, de 10 de janeiro de 2002, art. 168, pargrafo nico. Disponvel em:

http://wwwt.senado.gov.br/servlets/NJUR.Filtro?tipo=LEI&secao=NJUILEGBRAS&. Acesso em: 6 mar. 2003).

14 Alis, na Roma Antiga, o negcio jurdico que contivesse defeito substancial sequer dava

entrada no mundo do Direito (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado;

validade, nulidade, anulabilidade. Campinas: Bookseller, 2000. p. 179).

Alheios gama de particularidades, muitos ainda procuram fazer valer nas

relaes processuais as nulidades lato sensu da codificao privada. Equvoco esse

que no parece ser exclusivo dos brasileiros, como prova o alerta de conhecido jurista

italiano para que no se infira que o instituto das anulabilidades e nulidades possa vir a

ter no campo processual o mesmo papel que lhe reservado no plano do direito

material.15 Advertncia que se mostra das mais oportunas porque o vcio processual

deve ser entendido como autntico freio atuao do juiz. Tanto que os defeitos de

atos e formas que deixam de ser declarados de ofcio ou por provocao acabam, em

regra, convalidados ou sanados.

A nfase no tocante s nulidades adjetivas, como se nota, posta na relao

jurdica processual ainda em curso, no na julgada. Mesmo porque as nulidades que

sobrevivem ao julgado so tidas hoje em dia como excepcionalssimas, em especial as

relacionadas jurisdio. A prpria inexistncia da relao jurdica processual em

face de uma das partes no impede, em regra, a formao da coisa julgada.

1.2.3 Taxinomia

Os atos processuais formalmente viciados costumam ser classificados em

inexistentes, absolutamente nulos, relativamente nulos, anulveis e irregulares.

15 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituies de Direito Processual Civil: as relaes processuais a

relao processual de cognio. Traduo da 2. ed. italiana de J. Guimares Menegale. Notas de Enrico Tullio

Liebman. So Paulo: Acadmica e Saraiva, 1942-1943. 2 V. v. 2. p. 433-435.

A inexistncia atribuda aos que no alcanam a condio de ato. Pode

ocorrer, por exemplo, quando h permisso legal para que o advogado atue sem

mandato na prtica de atos reputados urgentes (CPC, art. 37, caput). Esses atos, no

entanto, so havidos por inexistentes se no ratificados no prazo (id., ibid.,

pargrafo nico).

A nulidade absoluta manifesta-se quando a norma tutela interesse pblico e

impe a decretao de ofcio. Embora em pequeno nmero, ela est longe de ser um

acontecimento raro na rotina forense. Dois exemplos marcantes seriam a

incompetncia rationae materiae ou personae e a ausncia na relao jurdica do

rgo ministerial que atua como custos legis.

A nulidade relativa verifica-se quando a norma cogente, tutela interesse

particular indisponvel e determina que o vcio seja pronunciado de ofcio. Trs das

muitas hipteses seriam: (1.) a citao que pretere solenidade essencial; (2.) a falta de

assistncia, autorizao ou representao; e (3.) a penhora contra legem.

A anulabilidade ocorre quando a norma dispositiva, tutela interesse

exclusivamente particular e veda a apreciao de ofcio. O que significa que somente

as partes podem aleg-la. So exemplos: (1) a penhora de bens sem observar a ordem

de prioridade; e (2) as citaes de (2a) doente em estado grave, (2b) do cnjuge ou de

qualquer outro parente do morto no dia do falecimento, (2c) dos noivos nos primeiros

dias das bodas e (2d) do funcionrio pblico em sua repartio.

A irregularidade, como ltima das espcies dessa classificao, tida como

um defeito de pouca ou nenhuma importncia. Sua eventual correo dispensa

maiores formalidades e chega a ser simplesmente desnecessria.

Uma outra formulao terica igualmente til toma o aspecto objetivo dos

atos processuais para dividi-los em essenciais e no essenciais.16 Os no essenciais

repercutem pouco interesse porque a falta ou m conformao do ato constitui simples

irregularidade sanvel. Os essenciais, quando contaminados por vcios de forma,

seriam insanveis (ou absolutamente nulos), relativamente nulos ou anulveis.

O critrio de distino desses vcios leva em considerao a finalidade e a

natureza da norma violada. Se a carga maior de interesse pblico, a nulidade ser

absoluta, insanvel. A ttulo de exemplos, os casos de: (a) ato de f pblica praticado

por quem no serventurio de justia ou compromissado na funo; (b) o processo

simulado ou fraudulento; e (c) o recurso fora de prazo.

Se a prevalncia for do interesse particular, como na hiptese de inpcia da

inicial, a nulidade ser relativa e sanvel.

Um pouco distinta a situao do vcio objeto de norma dispositiva, dado

que o defeito apresentado pelo ato constituiria mera anulabilidade e poderia ser

imunizado. A eventual omisso do interessado, no entanto, implica sempre em

precluso e conseqente convalidao porque o interesse em jogo afasta a atuao ex

officio do juiz. Dentre os inmeros exemplos, incluem-se os de: (a) no recolhimento

16 LACERDA, Galeno. Despacho Saneador. 3. ed. Porto Alegre: Fabris, 1990. p. 124-132.

de custas; (b) litigncia quando existe compromisso; (c) ausncia de tentativa de

conciliao; e (d) omisso de cauo.

Essa diviso dos vcios processuais em essenciais e no essenciais ignora a

figura do ato inexistente. O ato tomado como objeto de interesse para a classificao

apenas aquele que tem existncia tanto no sentido fsico como no jurdico.

O ato no materializado visto como algo que deixou de alcanar qualquer

repercusso na esfera do Direito. Da dizer-se que o no-ato h de ser, no mximo,

aparncia de ato. Entretanto, razovel admitir que a clareza e segurana possam

motivar algum a promover em juzo a declarao de inexistncia dele, a fim de que a

suposio de existncia no cause prejuzos ou embaraos ao interessado. 17

1.2.4 A nulidade kelseniana levaria aceitao da preclusibilidade definitiva dos

vcios da relao processual

A influncia do jurista austraco gerou entre ns certa compreenso

reducionista dos diferentes vcios processuais. A nulidade (ou inexistncia jurdica)

seria apenas o grau mais alto de anulabilidade e estaria praticamente excluda do

direito positivado pelo Estado. 18

Hans Kelsen acreditava que a melhor formulao do problema estaria em

Wellington et al. Petitionners, 16 Pick, 87 (Mass, 1834), onde se l que:

17 FABRCIO, Adroaldo Furtado. Ru revel no citado. Querela nullitatis e ao rescisria.

Revista de Processo, So Paulo, n. 48, p. 27-44, out./nov./dez. 1987. p . 27.

Talvez (...) seja muito bem possvel duvidar de que um ato formal de legislao possa, alguma vez, com propriedade jurdica estrita, ser considerado nulo: parece mais coerente com a natureza do assunto, e os princpios aplicveis a casos anlogos, trat-lo como anulvel. 19

A deciso judicial nula seria ento apenas um exemplo de nulidade absoluta

ou ato juridicamente inexistente. Isto porque, embora possa apresentar-se como

norma, ela dispensa qualquer procedimento jurdico para que seja declarada nula ab

initio.

Essa dispensa de qualquer procedimento jurdico, no entanto, no implica em

ausncia de verificao quanto ocorrncia de nulidade absoluta. O ataque da deciso

pelas partes haveria de pressupor a existncia de uma tal possibilidade na ordem

jurdica, com o que no estaramos diante de algo nulo ab initio ou de um nada

jurdico.

O fenmeno, portanto, precisaria ser visto como norma passvel de ser

anulada com fora retroativa pela eventual declarao de nulidade ab initio. Dito de

outra maneira, a norma que anulada pela ordem jurdica precisa antes ser considerada

como norma objetivamente vlida e conforme ao Direito. Na linguagem figurada do

18 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Traduo de: Joo Baptista Machado. So Paulo:

Martins Fontes, 2000. p. 298.

19 ______. Teoria Geral do Direito e do Estado. Traduo Lus Carlos Borges. So Paulo:

Martins Fontes, 2000. p. 230, n. 22.

autor, do mesmo modo em que tudo o que era tocado pelo rei Midas tornava-se ouro,

tudo a que se refere o Direito torna-se Direito. 20

Depreende-se desse contexto kelseniano, ento, que a hiptese de invalidade

perptua seria um fenmeno estranho realidade do direito estatal e que a

inexistncia jurdica precisa ser obviada por procedimento especfico constatao

do vcio. Procedimento especfico que estaria sujeito a prazos preclusivos, de modo a

assegurar a definitividade e imutabilidade das decises proferidas na relao

processual.

1.3 DIREITO PROCESSUAL CONSTITUCIONAL 21

20 ______. Teoria Pura do Direito. Traduo Joo Baptista Machado. So Paulo: Martins Fontes,

2000. p. 296-297. Idem, Teoria Geral do Direito e do Estado. Traduo Lus Carlos Borges. So Paulo: Martins

Fontes, 2000. p. 231-232.

21 O Direito Processual Constitucional compreende as normas processuais constantes da

Constituio (CORREIA, Marcus Orione Gonalves. Direito Processual Constitucional. So Paulo: Saraiva,

1998. p. 2). Sua rea de influncia inclui a conformao de toda a legislao adjetiva infraconstitucional ao

imprio ou supremacia das normas processuais constitucionalizadas. Em outras ordens jurdicas, comum

dizer-se didaticamente que existe um Direito Constitucional Processual, para significar o conjunto das normas de

Direito Processual que se encontra na Constituio Federal, ao lado de um Direito Processual Constitucional, que

1.3.1 O grau de nulidade dos atos judiciais contrrios Constituio

da tradio do nosso Direito prestigiar o princpio da supremacia da

Constituio. Idia essa que tem como nula ipso jure et ex tunc toda relao jurdica

constituda a partir de ofensa direta Lei Fundamental.

O mesmo cabe ser observado em relao ao ato processual assim praticado,

pois o princpio da supremacia no pode coexistir com o exerccio inconstitucional de

funo estatal bsica..

A desconformidade com a norma constitucional deve ser vista como a maior

das iliceidades que comprometem de modo irreversvel a existncia jurdica do ato

processual. Em julgamentos de controle abstrato, o Supremo Tribunal Federal tem

reafirmado que a admisso de inconstitucionalidade, ainda que temporria, significaria

virtual ruptura com o princpio da supremacia da Constituio. Reconhece, tambm,

que inconstitucionalidades no geram direitos e nem obrigaes. Chega mesmo a ter

como legitima a oposio pelo jurisdicionado de toda a sorte de resistncia deciso

contrria Constituio. 22

Um exemplo que sinaliza tal linha foi o que se viu quando do julgamento de

representao da Procuradoria-Geral da Repblica contra ato do Governador do Estado

de So Paulo. Este havia baixado decreto normativo com a determinao de que os

rgos da administrao estadual abstivessem de cumprir disposies legais que

seria a reunio dos princpios para o fim de regular a denominada jurisdio constitucional (NERY JNIOR,

Nelson. Princpios do Processo Civil na Constituio Federal. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 15).

22 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdio Constitucional. 2. ed. So Paulo: Saraiva, 1998. p. 256

et passim.

desconsiderassem vetos fundados em argio de inconstitucionalidade e viessem a ser

promulgadas pela mesa da Assemblia Legislativa. O relator, Min. Moreira Alves,

externou em voto vencedor a seguinte convico:

No tenho dvida em filiar-me corrente que sustenta que pode o Chefe do Poder Executivo deixar de cumprir assumindo os riscos da decorrentes lei que se lhe afigure inconstitucional. A opo entre cumprir a Constituio ou desrespeit-la para dar cumprimento a lei inconstitucional concedida ao particular para a defesa do seu interesse privado. No o ser ao Chefe de um dos Poderes do Estado, para a defesa, no do seu interesse particular, mas da supremacia da Constituio que estrutura o prprio Estado? 23

O Min. Soares Muoz o secundou com a considerao de que qualquer

pessoa pode negar-se a cumprir a lei inconstitucional. A seu ver, a lei

inconstitucional no gera obrigao, nem cria direito, o que teria sido bem apreendido

pelo relator ao referendar lio muito conhecidade Rui Barbosa.

Essas compreenses do rgo de superposio mxima encontram eco em

vrias passagens do prprio texto constitucional. Citem-se, como algumas das

evidncias da supremacia assegurada pelo constituinte originrio, (a) as clusulas de

aplicao imediata dos direitos fundamentais e de vinculao dos rgos estatais aos

princpios constitucionais, (b) o procedimento especial para a reforma do corpo de

normas e (c) o princpio bsico do Estado de Direito. 24

23 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Representao n 980/SP. Representante: Procurador-

Geral da Repblica. Representado: Governador do Estado de So Paulo. Relator: Min. Moreira Alves. Braslia,

21 de novembro de 1979. Disponvel em: http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/it/in_ processo.asp. Acesso em:

24 nov. 2002.

24 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdio Constitucional. 2. ed. So Paulo: Saraiva, 1998. p. 256.

A magistratura teria, assim, o dever-poder de negar cumprimento ao ato

judicial em desacordo com as normas constitucionais. O prejudicado, por sua vez,

dispe da possibilidade de oferecer a mais ampla resistncia, com o nico risco de as

presunes de obrigatoriedade e validade da coisa julgada virem a ser ratificadas

quando do novo pronunciamento.

Esse quadro claramente emoldurado pelo constituinte permite manter

inclume a ordem jurdica constitucional. Sua lgica reside na negativa de eficcia ao

ato processual inconvalidvel, que sequer pode ser sanado pelo instituto de precluso

mxima ao fim do binio ensejado propositura da ao rescisria. A concesso que

poder-se-ia cogitar em casos extremos seria a de ponderar os bens jurdicos envolvidos

para admitir, de modo parcimonioso, a incidncia de efeitos ex nunc. O sopesamento

seguiria o esprito que inspirou as excees comportadas pela declarao de

inconstitucionalidade concentrada (Lei n 9.868/99, art. 27) e argio de

descumprimento de preceito fundamental (Lei n 9.882/99, art. 11).

1.3.2 A nulidade ab initio e perptua da coisa julgada inconstitucional

Todos os graus de jurisdio da magistratura contam com poder para negar

validade a atos e normas que contrariem o texto constitucional, mesmo que o ato seja

judicial e esteja coberto pela definitividade do trnsito em julgado (CR, arts. 97 e 102,

inc. III, als. a a c). No fosse assim, o Constituinte de 1988 teria institudo

autntica brecha para a derrogao episdica das normas fundamentais e as

disposies nelas contidas cederiam quando contrapostas mera garantia da coisa

julgada.

preciso reconhecer, no entanto, que a aceitao da relatividade da garantia

da coisa julgada ainda gera polmica, embora venha diminuindo o sectarismo em torno

das idias de certeza e segurana das relaes jurdicas. Uma prova do arrefecimento

da tradicional resistncia foi dada h pouco pelo legislador ordinrio ao introduzir

importante novidade no estatuto processual civil e na consolidao das leis

trabalhistas. Ambas codificaes agora tm como inexigvel o ttulo judicial fundado

em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal

ou em aplicao ou interpretao tidos por incompatveis com a Constituio Federal

(CPC, art. 741, pargrafo nico, e CLT, art. 884, 5.).

Essa flexibilizao da garantia de inatacabilidade do ttulo judicial passado

em julgado no chega a ser indita em nosso direito legislado. A citao inexistente

ou invlida, por exemplo, sempre foi motivo legal para a oposio de embargos

execuo (CPC, art. 741, inc. I). Tambm a deciso judicial desfundamentada, na

atual ordem jurdica, ganhou foros de inconstitucionalidade em norma com carga

sancionadora, o que constitui importante exceo tradicional tcnica descritiva e

principiolgica dos textos polticos rgidos (CR, art. 93, inc. IX).

Ainda que possam ser tidas como casusticas e pontuais, essas positivaes

denotam clara percepo de que a coisa julgada constitui simples qualidade da deciso

judicial que reclama ser despojada da veste de ato normativo quando proferida em

descompasso com a Constituio. A sentena assim prolatada nasce maculada pelo

supremo dos vcios e conseqentemente jamais poder produzir qualquer efeito na

vigncia do Estado de Direito.

precisamente a que reside o interesse maior deste estudo, seja pela nfase

posta em questes relativas preservao da ordem jurdica ou pelo modo processual

de assegur-la. Soa intolervel que algum, em especial a autoridade investida da

funo estatal bsica de dizer o Direito, defenda a prevalncia da proteo

relativssima da coisa julgada sobre o princpio da supremacia da Constituio.

Se a coisa julgada inconstitucional, a invalidade h de ser reconhecida to

logo sobrevenha a impugnao incidental no processo de execuo ou quando houver

a propositura de ao especfica de nulidade. Esta ltima, para alguns, objetivaria a

anulao da deciso e teria natureza constitutiva, pois, at ser desconstituda, a coisa

julgada pressupe efeitos legais definidos que precisam ser reconhecidos no mundo

jurdico antes de serem tidos como nulos. Por tal raciocnio, a nulidade ab initio s

pode ser assim considerada se o direito posto prever uma existncia jurdica passvel

de ser desconstituda com fora retroativa. 25

H quem distinga a nulidade do ato processual, assim entendido o acrdo ou

a sentena com trnsito em julgado, da inexistncia da relao jurdica. Embora, ao

faz-lo, incorra em clara confuso quanto aos diferentes regimes jurdicos das

nulidades. o que se nota na obra de um dos mais reputados juristas brasileiros,

quando assevera que a ao para se decretar a nulidade [do ato jurdico, inclusive do

ato jurdico processual] constitutiva negativa; a ao para se declarar a inexistncia

25 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Traduo Lus Carlos Borges. So

Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 231-232. Id., Teoria Pura do Direito. Traduo Joo Baptista Machado. So

Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 296-297.

da relao jurdica, que se pretende derivada do ato jurdico nulo, declarativa

negativa. 26

A controvrsia tem pouco interesse prtico porque o nosso sistema jurdico

sempre conviveu com o mais perfeito dos meios autnomos de impugnao da coisa

julgada invlida, que vem a ser a querela nullitatis insanabilis. O que se passou nesse

meio tempo de reinado incontrastvel do dogma da res iudicatae que a querela

sobreviveu confinada hiptese legal do defeito ou falta de citao (CPC, art. 741, inc.

I). Atualmente, no entanto, o instituto medievo tem tudo para recuperar o espao

perdido com a perspectiva de releitura crtica do caso passado em julgado. Tanto que,

no faz muito, o legislador provisrio introduziu a aludida inexigibilidade do ttulo

judicial formado com afronta Constituio (CPC, art. 741, pargrafo nico, e CLT,

art. 894, 5.).

O consenso a ser alcanado, por ora, diria respeito to-s necessidade de

ser reconhecida a invalidade da coisa julgada aparente, inconstitucional ou nula de

pleno direito. Necessidade essa que ser melhor atendida com a institucionalizao da

possibilidade de o jurisdicionado propor aquela actio nullitatis (CR, art. 5., inc.

XXXV). Mesmo porque no existe entre ns outro meio de impugnao que tenha

sido talhado para obviar, a qualquer tempo, toda sorte de coisa julgada invlida.

26 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil (de

1973). Rio de Janeiro: Forense, 1976. t. XI, p. 93-94.

CAPTULO II A QUERELA NULLITATIS INSANABILIS COMO MEIO DE

IMPUGNAO DA COISA JULGADA INVLIDA

Sumrio 2.1 Traos marcantes dos meios de impugnao no sistema jurdico romano 2.1.1 Os dois sistemas processuais conhecidos pelo direito romano 2.1.2 Como os romanos viam a nulla sententia 2.1.3 A resistncia s nulidades da sentena nos processos de cognio e de execuo (rectius: actio iudicati) da primeira fase do direito romano 2.1.4 Os primeiros meios de impugnao da coisa julgada 2.2 A querela nullitatis insanabilis como meio autnomo de impugnao da coisa julgada 2.2.1 O aparecimento da querela nullitatis no Direito Medievo 2.2.2 O destino de pouca glria da querela 2.2.3 A imanncia do instituto em relao aos vcios processuais graves 2.3 A preservao pelo direito cannico das duas espcies da querela nullitatis 2.3.1 Breves notas sobre a codificao do direito da Igreja 2.3.2 A disciplina da querela nullitatis no atual Codex Iuris Canonici 2.4 A querela nullitatis insanabilis no direito brasileiro 2.4.1 Expulsa do universo conceitual, mas com existncia clandestina assegurada pelas imposies da realidade jurdica 2.4.2 O ostracismo conhecido com o surgimento de novos meios de impugnao 2.4.3 Outro fator que contribuiu para a proscrio equivocada 2.4.4 Os meios que, em tese, seriam idneos para impugnar a coisa julgada brasileira.

2.1 TRAOS MARCANTES DOS MEIOS DE IMPUGNAO NO SISTEMA

JURDICO ROMANO.

2.1.1 Os dois sistemas processuais conhecidos pelo direito romano

No direito contemporneo de origem romano-germnica, a exacerbada

pretenso ao cientificismo dos ltimos sculos resultou em gradual perda de espao

para os meios de impugnao dos vcios da deciso judicial. Preocupao essa que

no existiu nos 1.262 anos de histria do Direito Romano. 27

Roma conheceu nesse perodo dois sistemas processuais de composio dos

conflitos de interesses privados. Ambos tiveram a marca da lenta e progressiva

27 A histria do Direito Romano abrange o perodo da monarquia 754 a.C. a 510 a. C. -, da

Repblica 510 a. C. a 27 a. C. -, e do Imprio 27 a. C. a 568 d. C., com a invaso dos brbaros e a queda do

publicizao. O primeiro deles, chamado de sistema dos iudicia privata, surgiu das

formas observadas nos tempos arcaicos e perdurou at o ano de 209 (d. C.). 28

Na vigncia desse sistema, que mais tarde viria a ser referido como ordo

iudiciorum privatorum, as caractersticas essenciais do direito privado foram

preservadas e a administrao da justia procurava alcanar unicamente uma melhor

disciplina da defesa dos interesses particulares. O Estado estava interessado em

substituir a antiga justia privada, mas, naquele momento, o propsito maior era o de

conseguir que os demandantes viessem a submeter os seus conflitos de interesses

magistratura. Esta limitava-se a declarar se o autor tinha direito e, em caso afirmativo,

ordenava a um juiz privado que apreciasse as provas para prolatar a sentena de

absolvio ou condenao do ru.

O segundo sistema processual do direito romano recebeu o nome de cognitio

extra ordinem. Por ele, as partes instauravam o processo e a partir da a administrao

da justia passava a ser funo exclusiva do Estado. Era um processo extraordinrio

(cognitio extraordinaria) que, no incio, foi observado apenas em dadas

circunstncias, nas quais o magistrado atuava investido de imperium e compunha a

lide sem a interveno de juiz privado.

Imprio Romano (MACEDO, Alexander dos Santos. Da Querela Nullitatis Sua Subsistncia no Direito

Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998. p. 18).

28 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado da Ao Rescisria das Sentenas e

de Outras Decises. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 26; JUSTO, A. Santos. Direito Privado Romano

I: parte geral introduo, relao jurdica, defesa dos direitos. Coimbra: Coimbra, 2000. p. 263 e ss. [ 56, n.

56.1].

Mais adiante, o que era extraordinrio tornou-se regra graas concentrao

de poderes no imperador e a nova organizao administrativa e hierrquica dos

magistrados. Nem mesmo:

[...] a circunstncia de ocasionalmente as declaraes das partes se fixarem numa frmula escrita e o facto de o magistrado delegar, por vezes, as suas faculdades jurisdicionais num juiz no eliminam a caracterstica essencial do novo processo que se apoia no imperium do magistrado, que verifica se os factos alegados so verdadeiros e d a respectiva sentena. Por isso, enquanto no processo ordinrio (agere per formulas) a actividade das partes era preeminente e, portanto, conferia ao processo um carcter eminentemente privado, na cognitio extra ordinem prepondera a interveno estatal e a litis contestatio perde o seu valor de contrato arbitral para se tornar uma mera designao sem contedo: refere, to-s, um momento nem sempre bem preciso do processo. E a sentena, que antes se apoiava nesse contrato arbitral e, por isso, era, em princpio, insusceptvel de recurso, converte-se numa deciso do magistrado que admite recurso para um magistrado superior. 29

2.1.2 Como os romanos viam a nulla sententia

Tanto o sistema do ordo iudiciorum privatorum (754 a. C. a 209 d. C.)

quanto o da cognitio extra ordinem (209 d. C. a 568 d. C.) sempre negaram

repercusso jurdica deciso judicial contaminada por qualquer nulidade ou vcio

processual mais grave. A sentena era tomada como nula. E nulo, como o prprio

termo exprime (nec ullus), nenhum, ou seja, o que no repercute normalmente no

plano do direito. 30

29 JUSTO, A. Santos. Direito Privado Romano I: parte geral introduo, relao jurdica,

defesa dos direitos. Coimbra: Coimbra, 2000. p. 266.

30 BRANCO, Elcir Castello. Nulo. In: ENCICLOPDIA Saraiva do Direito. So Paulo: Saraiva,

1977. v. 55, p. 176.

A nulla sententia assumia, assim, o exato sentido de algo inexistente

(rectius: de sentena juridicamente inexistente). O julgado afetado por defeito

substancial simplesmente no tinha existncia jurdica e o sucumbente estava

desobrigado de cumprir o seu dispositivo. Dentre as nulidades mais recorrentes por

aquela poca incluiam-se: a) o julgado fundado em frmula elaborada por magistrado

incompetente, omisso quanto a ponto essencial ou que prescrevesse algo impossvel;

b) a condenao de escravo; falecido; pessoa ainda no nascida e daquele considerado

incapaz de negociar sem assistncia de curador ou tutor; c) a deciso proferida em dia

festivo - sem o necessrio assentimento das partes -, ou com afronta manifesta a

direito, pressupostos processuais ou coisa julgada. 31

Esse breve apanhado ratifica a assertiva de que os vcios tidos como graves

compreendiam desde os erros de atividade ou procedimento (errores in procedendo)

at os de flagrante equvoco no julgar (errores in iudicando). Dir-se-ia que a nulla

sententia romana no distinguia o defeito produzido pela desviacin de los medios

que seala el Derecho procesal daquele surgido com a aplicacin de una ley

inaplicable, la no aplicacin de la que fuere aplicable, o en la errnea aplicacon de

ella.32 Toda injustia substancial ou desvio processual grave tornava a sentena

31 JUSTO, A. Santos. Direito Privado Romano I: parte geral introduo, relao jurdica,

defesa dos direitos. Coimbra: Coimbra, 2000. p. 376.

32 VESCOVI, Enrique. Los Recursos Judiciales y Dems Medios Impugnativos en Iberoamrica.

Buenos Aires: Depalma, 1988. p. 37.

nenhuma, uma verdadeira no sentena a cujo respeito sequer cabe falar-se de

precluso ou coisa julgada. 33

2.1.3 A resistncia s nulidades da sentena nos processos de cognio e de

execuo (rectius: actio iudicati) da primeira fase do direito romano

Ao tempo do ordo iudiciorum privatorum no se cogitava de algo como o

atual recurso de apelao para infirmar a sentena maculada por vcio grave. O

julgado era tido como simplesmente nulo e a invalidade podia ser objetada como

matria de defesa em qualquer oportunidade, embora costumasse ser deduzida em

contraposio actio iudicati do vencedor.

Um pouco mais tarde, na vigncia da cognitio extra ordinem e em especial

no perodo republicano, o sucumbente j contava com alguns institutos processuais

para resistir nulla sententia. Mas, em regra, valia-se ainda da contestao como

defesa na actio iudicati (ou pro iudicato), que era a relao processual prpria para

que o credor executasse o ttulo judicial passado em julgado ou exigisse desde logo os

direitos confessados (confessio) pelo ru.. Antes dessa actio, ainda ao tempo do

processo das legis actiones, o demandante podia pedir autorizao ao magistrado para

executar os seus direitos sobre a pessoa do demandado. Era a chamada legis actio per

manus iniectionem, autntico resqucio da primitiva vingana privada de contrapor um

direito livre disposio do corpo do obrigado.

33 FABRCIO, Adroaldo Furtado. Ru revel no citado. Querela nullitatis e ao rescisria.

Revista de Processo, So Paulo, n. 48, p. 27-44, out./nov./dez. 1987. p. 29.

Durante a fase da cognitio, a sentena gozava de fora executiva prpria e os

seus efeitos prticos eram assegurados pela autoridade do magistrado. Para tanto,

bastava ao vencedor instaurar a actio iudicati, que deixara de ser um instrumento de

coao para se tornar uma autntica ao de execuo. O sucumbente, por sua vez,

costumava opor-se a essa actio pro iudicato com o argumento de que a sentena

continha vcio que a tornava juridicamente inexistente. Qualquer que fosse o

fundamento, porm, a instruo em juzo seguia o procedimento tpico de relao

processual executiva.

O vcio contido em sentena coberta pela autoridade da coisa julgada,

independentemente de ser processual ou de injustia substancial, podia assim ser

alegado a todo tempo, seja como defesa contra a actio iudicati ou como rplica

exceo de coisa julgada, e talvez tambm diretamente com a revocatio in duplum. 34

2.1.4 Os primeiros meios de impugnao da coisa julgada

No correr da cognitio extra ordinem, a sentena continuou a ser nula sempre

que prolatada com erro de atividade ou manifesto equvoco em questo jurdica

abstrata (ius constitutionis). A grande novidade introduzida por essa poca foi a

criao da appellatio, que teria sido legalmente regulamentada por Augusto [68 a. C.

14 d. C.] e depois por constitutiones imperiais recolhidas no Cdigo de Teodsio

[347 395] e na compilao de Justiniano [482 565]. 35

34 LIEBMAN, Enrico Tullio. Citao inicial (falta nulidade absoluta da sentena, embora j

transitada em julgado). Revista dos Tribunais, So Paulo, 1944. p. 444-445.

35 JUSTO, A. Santos. Direito Privado Romano I: parte geral introduo, relao jurdica,

defesa dos direitos. Coimbra: Coimbra, 2000. p. 378.

A appellatio surgiu com o fim certo de impugnar os errores in iudicando

substanciais de questes jurdicas concretas, o que parece corroborar a ilao de que

teria sido a real precursora dos chamados recursos propriamente ditos. Seu

aparecimento, contudo, em nada alterou a doutrina da nulidade de sentena no tocante

aos errores in procedendo.

Pouco depois, criou-se a supplicatio como meio de impugnao a ser dirigido

ao imperador para que fosse revista a sentena proferida em apelao pelos prefeitos

dos pretrios.36 Quando interposta no prazo de dez dias, ela suspendia a execuo da

sentena e a possibilidade da execuo provisria ficava condicionada prestao de

fiana. Os romanistas sempre viram a splica como uma tentativa ficcional de

equilibrar a justia, desde que as sentenas dos mais altos dignitrios, formadores do

Corpo do prncipe, eram inapelveis. 37

Outro meio caracterstico de impugnao que apareceu nesse meio tempo foi

a restitutio in integrum. Conhecida tambm por restitutio praetoria, pois teria sido

criada e implementada pelos pretores no final do perodo republicano, ela tinha como

36 O direito germnico antigo, que tinha a sentena como irrecorrvel por emanar da Assemblia

do Povo e ser ditada em nome de Deus, tambm iria adotar recursos extraordinrios como a supplicatio e a

restitutio in integrum. Estes, a exemplo do que ocorria no direito romano, eram admitidos quando alguien

sufra alguna grave lesin por una sentencia dictada en un proceso en el cual no haba podido defender-se por

razones de edad, enfermedad, ausencia o error debido a deficiencia intelectual, proveniente del dolo del

adversrio o del juez (VESCOVI, Enrique. Los Recursos Judiciales y Dems Medios Impugnativos en

Iberoamrica. Buenos Aires: Depalma, 1988. p. 338).

nica finalidade a correo dos efeitos injustos das decises judiciais formalmente

vlidas. Com a concesso da restitutio, toda a discusso havida em juzo era

desconsiderada para que fosse restabelecida a situao jurdica anterior. 38

Essa restituio integral dos romanos no se confundia em nada com os

meios prprios para o questionamento de injustias substanciais ou nulidades de

forma. O seu fundamento era a eqidade, e no a eventual existncia de graves

errores in iudicando ou in procedendo. Estava muito mais prxima de ser um pedido

de proteo extraordinria em face de um ato judicial plenamente conforme com o

direito vigente, com o que a postulao s chegava a ser apreciada se inexistisse um

direito subjetivo e a correspondente actio para assegur-lo. Por outras palavras,

algum pedia o auxlio do magistrado (postulatio, impetratio, supplicatio) e a

concesso traduzia uma simples ajuda (subvenire, adiuvare, succurrere, indulgere). 39

Mais tarde, com a chegada do perodo ps-clssico, a restitutio in integrum

deixa de atender a simples interesses e passa a proteger o direito subjetivo ento

denominado de beneficium restitutionis. Com isso, unificou-se na mesma pessoa de

um mesmo magistrado a competncia para conhecer e decidir o conflito e,

eventualmente, conferir o iudicium rescissorium.

37 SIDOU, J. M. Othon. Ordenaes: sistema recursal. In: ENCICLOPDIA Saraiva do Direito.

So Paulo: Saraiva, 1977. v. 56, p. 277-287.

38 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Dez Anos de Pareceres. Rio de Janeiro:

Forense, 1975. v. 4, p. 109.

39 JUSTO, A. Santos. Direito Privado Romano I: parte geral introduo, relao jurdica,

defesa dos direitos. Coimbra: Coimbra, 2000. p. 432-433.

Pouco ou nada mudaria no tocante a essas impugnaes at que sobreviesse a

debacle definitiva do sistema poltico dos romanos. Tambm as nulidades da sentena

continuaram a ser atacadas com a contestatio actio iudicati ou mediante a

propositura daquilo que se denominava actio praeiudicialis. Esta, de modo muito

semelhante nossa contempornea declarao incidental, apenas autorizava que

fosse pedido um pronunciamento judicial sobre questo subjacente para facultar futura

discusso em outra relao processual. Algo como um esclarecimento sobre a questo

suscitada, sem que o juiz acolhesse ou rejeitasse o objeto principal do litgio.

2.2 A QUERELA NULLITATIS INSANABILIS COMO MEIO AUTNOMO DE

IMPUGNAO DA COISA JULGADA

2.2.1 O aparecimento da querela nullitatis no Direito Medievo

Veio ento a Idade Mdia e a forte influncia do direito germnico levou

algumas cidades italianas a criarem em suas legislaes estatutrias um meio de

impugnao das sentenas nulas que resultava de aspectos comuns aos dois sistemas

jurdicos. O novo instituto, que logo seria incorporado ao direito cannico, objetivava

aumentar a estabilidade das relaes jurdicas e recebeu o nomen iuris de querela

nullitatis.

No era, ainda, uma tpica ao, mas sim algo como um pedido de

deferncia dos bons ofcios jurisdicionais (rectius: imploratio officit iudicis) para que

fosse oficialmente reconhecida a existncia de algum erro de atividade.

At ento, o direito visigtico tratava como no-vlida a sentena nula que os

romanos tinham como inexistente. Essa poltica jurdica nada tinha em comum com

a idia de invalidade ou nulidade ipso iure e tornava sem interesse a distino entre o

erro de atividade e o de julgamento. Com a introduo da querela nullitatis em

estatutos de cidades italianas, fez-se ento uma espcie de sntese entre o princpio

germnico da fora formal da sentena e a distino romana entre sententia nulla e

sententia iniusta. 40

O direito francs contemporneo ao aparecimento da querela nullitatis

admitia a interposio de recurso ao monarca (lettres de justice) de decises finais da

justia feudal (courts de baronnies). Com a rpida absoro da atividade jurisdicional

pelo Estado, o rei baixou uma ordonnance no dia 23 de maio de 1382 para permitir

que lhe fosse dirigida petio (rectius: requte) quando a sentena apresentasse

evidncias de erros graves (lettres de grce et de proposition derreur). Se a

impugnao viesse a ser acolhida, los matres des requtes libraban al recurrente

una orden del rey para que el consejo Real (...) revisara el fallo.41 A requte

acabaria por originar um pouco mais tarde o recurso de reviso, meio extraordinrio

40 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentrios ao Cdigo de Processo Civil [de

1973]. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 64.

de reapreciao da sentena que ainda hoje continua a ser adotado por muitas ordens

jurdicas filiadas ao sistema romano-germanstico.

A appellatio, nesse meio tempo, conservou inalterada a caracterstica romana

de meio prprio para a impugnao da sentena vlida. Os julgados nulos, que

dispensavam a propositura de ao autnoma de declarao de nulidade no sistema

jurdico de Roma, eram agora impugnados pela querela nullitatis. 42

A novidade exigiu que os diferentes vcios da sentena viessem a ser

classificados em sanveis e insanveis. O prazo para a alegao dos primeiros

costumava coincidir com o da appellatio e, em caso de precluso, o vcio era

convalidado. Os segundos, tidos como mais graves, podiam ser argidos em igual

tempo do prazo de prescrio do direito material em jogo, pois sobreviviam ao

decurso dos prazos e formao da coisa julgada e podiam alegar-se com a quer