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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS O FREVO NO DISCURSO LITEROMUSICAL BRASILEIRO: ETHOS DISCURSIVO E POSICIONAMENTO JÚLIO CÉSAR FERNANDES VILA NOVA ORIENTADORA: Profª Drª NELLY CARVALHO Recife 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

O FREVO NO DISCURSO LITEROMUSICAL BRASILEIRO:

ETHOS DISCURSIVO E POSICIONAMENTO

JÚLIO CÉSAR FERNANDES VILA NOVA

ORIENTADORA: Profª Drª NELLY CARVALHO

Recife 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

O FREVO NO DISCURSO LITEROMUSICAL BRASILEIRO:

ETHOS DISCURSIVO E POSICIONAMENTO

JÚLIO CÉSAR FERNANDES VILA NOVA

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco como requisito para obtenção do título

de Doutor em Letras

Orientadora: Profª Drª Nelly Carvalho Área de Concentração: Linguística

Linha de Pesquisa: Linguagem, Trabalho e Sociedade

Recife 2012

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Catalogação na fonte Bibliotecária Gláucia Cândida da Silva, CRB4-1662

V695f Vila Nova, Júlio César Fernandes. O Frevo no discurso literomusical brasileiro: Ethos discursivo e posicionamento / Júlio César Fernandes Vila Nova. – Recife: O autor, 2012.

224p. + 1 CD

Orientador: Nelly Carvalho. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco, CAC. Letras, 2012.

Inclui bibliografia e anexos.

1. Linguística. 2. Frevo. 3. Análise do discurso. 4. Música popular – Brasil. I. Carvalho, Nelly (Orientador). II. Titulo. 410 CDD (22.ed.) UFPE (CAC2012-18)

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“São belos igualmente os usos peculiares a cada povo E tudo quanto manifesta as práticas estimadas

No seio de cada comunidade” (Aristóteles. Arte Retórica, livro primeiro, cap.IX)

“Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em

mim. Carnaval era meu, meu”.

(Clarice Lispector, Restos de Carnaval)

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Aos meus pais, Severino e Alzenir Vila Nova, que me ofereceram os primeiros acordes

do Frevo, ainda na infância.

A Cristiane e Lívia, esposa e filha, pelo amor incondicional, pelo incentivo integral

Ao amigo Marcos Rodrigues (in memorian), com quem compartilhamos, em família, os

últimos dias de 2011, pelo incentivo para concluir o trabalho.

Aos amigos e familiares todos, pelo apoio e incentivo.

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AGRADECIMENTOS

Ao Deus Supremo Criador, pela música que pulsa no coração

e embala os sonhos de todos nós.

A Nelly Carvalho, orientadora, pela confiança no trabalho e pela partilha generosa.

Aos professores do curso de Letras da UFPE, pela sabedoria e amizade compartilhadas,

ao longo de muito tempo.

Aos colegas de trabalho na UFRPE, pelo incentivo.

A Diva e Jozaías, funcionários da Pós-Graduação em Letras, pela atenção e

cordialidade.

Ao compositor e musicólogo Samuel Valente, pela gentileza e disponibilidade.

Aos amigos compositores Bráulio de Castro, Fátima de Castro e Edson Rodrigues, pela

amizade e pela colaboração.

Aos radialistas Mirian Leite e Hugo Martins, da Rádio Universitária da UFPE, pela

gentileza e disponibilidade.

Ao músico e colecionador Raimundo Floriano, pela disponibilização de seu acervo

musical.

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RESUMO Este trabalho enfoca o discurso literomusical brasileiro, com o objetivo central de

descrever e analisar a organização linguístico-discursiva do gênero Frevo-Canção, em

obras produzidas desde a década de 1930 até a década de 1970. A fundamentação

teórica é baseada nas contribuições de Dominique Maingueneau para a Análise do

Discurso; e na concepção dialógica de linguagem, de acordo com Mikhail Bakhtin.

Partindo da definição de canção como gênero discursivo, o estudo lança mão de

categorias como ethos discursivo, posicionamento e cena enunciativa para identificar os

processos de construção de sentido no Frevo-canção. O trabalho analisa, ainda, o

contexto sócio-histórico de emergência do Frevo, a partir do final do século XIX,

identificando aspectos de sua consolidação como marca da identidade cultural

pernambucana. As opções teórico-metodológicas e o recorte histórico definidos para

seleção do corpus justificam-se pela importância do Frevo-canção no cenário da música

carnavalesca do Brasil, ao longo do período de crescimento da indústria fonográfica no

país e de consolidação da popularidade do rádio como meio de comunicação, no século

XX. Nesse percurso, são identificados diferentes aspectos do posicionamento do Frevo,

através de canções que estabelecem um gesto afirmativo de inserção desse fenômeno

cultural no campo do discurso literomusical brasileiro.

Palavras-chave: Frevo. Discurso literomusical. Análise do discurso. Gênero do discurso

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RESUMEN

Este trabajo enfoca el discurso literomusical brasileño, con el objetivo central de

describir y analizar la organización lingüístico-discursiva del género “frevo-canção”, en

obras producidas desde la década 1930 hasta la década de 1970. La fundamentación

teórica está basada en los aportes de Dominique Maingueneau, para el Análisis del

Discurso; y en la concepción dialógica del lenguaje, de acuerdo con Mikhail Bakhtin.

Teniendo como punto de partida la definición de “canção” (canción) como género

discursivo, el presente estudio haz uso de categorías como ethos discursivos,

posicionamiento y escena enunciativa para identificar los procesos de construcción de

sentido en el “frevo-canção”. Este trabajo analiza, todavía, el contexto socio-histórico

de emergencia del “frevo”, a partir del final del siglo XIX, identificando aspectos de su

consolidación como marca de identidad cultural pernambucana. Las opciones teórico-

metodológicas y el recorte histórico definidos para la selección del corpus, se justifican

por la importancia del “frevo-canção” en el escenario de la música carnavalesca de

Brasil, a lo largo del período de crecimiento de la industria fonográfica en el país y de la

consolidación de la popularidad de la radio como medio de comunicación, en el siglo

XX. En esa trayectoria se identifican diferentes aspectos del posicionamiento del

“frevo”, a través de canciones que establecen un gesto afirmativo de inserción de ese

fenómeno cultural en el campo del discurso literomusical brasileño.

Palabras-clave: “Frevo”. Discurso Literomusical. Análisis del Discurso. Género del

Discurso.

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ABSTRACT

This paper focus on Brazilian song lyrics discourse (discurso literomusical) with the

main aim of describing and analyzing linguistic and discoursive organization of “Frevo-

Canção” (Frevo-Song) genre, in songs produced from the 1930’s to the 1970’s. The

study is framed by Dominique Maingueneau’s contributions to Discourse Analysis, as

well as by Mikhail Bakhtin’s theorization of language and discourse as “dialogic”. From

the definition of song as a discourse genre, categories such as discoursive ethos,

positioning and enunciation scene are dealt with, in order to identify processes of

construction of meaning in Frevo-Canção. It is also analyzed the social-historical

context of emergence of Frevo, from the late nineteenth century, so to identify aspects

of its consolidation as cultural identity mark of Pernambuco. The methodological and

theoretical options as well as the historic framing are justified by the importance of

Frevo-Canção in carnival music of Brazil, along the period of significant growth of

phonographic industry and the popularity of radio as a means of mass communication,

in the twentieth century. Different aspects of Frevo positioning are then identified in

songs which define an affirmative gesture of insertion in the field of Brazilian song

lyrics discourse.

Key words: Frevo. Song Lyrics discourse. Discourse analysis. Discourse genres.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ________________________________________________ 12 2. OPÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS PARA ANÁLISE DISCURSIVA

DO FREVO 2.1. Dialogismo e Gêneros do Discurso, contribuições do

Círculo de Bakhtin ______________________________________ 22 2.1.1. Os Gêneros, da Antiguidade Clássica à Atualidade ________ 28 2.1.2. O Gênero Canção __________________________________ 30 2.1.3. Frevo-Canção, um Gênero e Alguma Polêmica ___________ 35 2.1.4. Aspectos de Inter-relação Genérica: canção e crônica ______ 42

2.2. A Análise do Discurso 2.2.1. AD Francesa_______________________________________ 52 2.2.2. Segunda e Terceira Épocas____________________________ 55 2.2.3. Prática Discursiva___________________________________ 64 2.2.4. Posicionamento_____________________________________ 66 2.2.5. Comunidades Discursivas_____________________________ 69 2.2.6. Investimento Genérico _______________________________73 2.2.7. Ethos Discursivo ___________________________________ 74 2.2.8. Ethos e Incorporação ________________________________76 2.2.9. Ethos e Cena Enunciativa ____________________________ 79

2.3. Delimitando e Caracterizando o Objeto ______________________ 84 2.4. Definindo Objetivos e Anunciando Hipótese__________________ 88

3. O FREVO NO DISCURSO LITEROMUSICAL BRASILEIRO

3.1. Primeiros Movimentos _______________________________________ 92 3.2. A Marcha Rumo ao Frevo ____________________________________ 94 3.3. A Música no Disco, o Frevo na Música Popular ___________________ 100 3.4. Frevo e Identidade Cultural ___________________________________107 3.5. Frevedouro, Frevolência: a experiência sinestésica do Frevo nas ruas __ 109 3.6. Encontros, confrontos e gingados: a dança dos nomes e o aspecto guerreiro

do Frevo __________________________________________________ 119 3.6.1. O Nome da Música na Dança: Frevo, Festa, Folia e Coreografia _122

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3.6.2. Entre Saltos, Pernadas e Rasteiras, o Frevo que não é Brincadeira.143 3.7. Vozes do Frevo nas Ondas do Rádio ____________________________ 158

3.7.1. Passionalização da Canção e Regulação da Folia ____________ 165 3.7.2. Capiba, Cancionista Malabarista _________________________ 174

3.8. A Era da Rozenblit e Outros Passos do Frevo _____________________182

4. CONCLUSÕES ________________________________________________193 5. REFERÊNCIAS _______________________________________________ 196

6. ANEXOS 6.1. Canções analisadas _____________________________________205 6.2. Fontes discográficas ____________________________________ 215 6.3. Arquivos de áudio ______________________________________ 217

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1. INTRODUÇÃO

No processo de formação da cultura brasileira, com seus múltiplos gestos e vozes, a

canção popular exerce um papel de considerável importância, que vem sendo

reafirmado, no âmbito dos estudos acadêmicos, em um número crescente de

investigações em diferentes áreas das ciências humanas. No período de um século,

aproximadamente, ela deixou a condição de marginalidade que a estigmatizava até as

primeiras décadas do século XX, sendo artistas alvo de preconceito, em geral

vinculados à boemia e à malandragem (associadas a um instrumento musical, o violão),

e conquistou espaço privilegiado de enorme popularidade entre nossas manifestações

artísticas, passando a figurar como objeto de estudo sob enfoques diversos1. A canção

consolida, então, sua posição enquanto gênero discursivo2 de enorme circulação na

sociedade brasileira.

Isso ocorre ainda nas primeiras décadas do século XX, concomitantemente ao

surgimento e aprimoramento das técnicas de registro fonográfico e ao desenvolvimento

do rádio como veículo de comunicação de massa. Segundo Tatit (2004), é um período

de consolidação e disseminação de “uma prática artística que, além de construir a

identidade sonora do país, se pôs em sintonia com a tendência mundial de traduzir os

conteúdos humanos relevantes em pequenas peças formadas de melodia e letra.”

(TATIT 2004, p.11)

Em depoimento colhido no documentário Palavra (En)Cantada (2009), da

diretora Helena Solberg, José Miguel Wisnik argumenta que a importância da canção

deve-se à força das manifestações populares, essencialmente marcadas pelas práticas

orais, de grande importância na cultura brasileira, numa realidade reconhecida

historicamente pela carência de oportunidades de acesso à cultura letrada, ao longo das

diversas etapas do desenvolvimento do país. Conforme Wisnik, a canção cumpre, por

exemplo, o importante papel cultural de permitir a uma vasta parcela da população

brasileira o acesso às formas de expressão poética constituídas nas letras. Analisando a

1 COSTA (2001, p.17) enumera, em sua tese de doutoramento, sete tipos de produções sobre a MPB (historiografia, análises histórico-sócio-antropológicas, resenha jornalística, exegese literária, trabalhos de catalogação, análises semióticas e análises textuais) que empreendem análises discursivas. 2 Enfocamos a canção em sua dimensão discursiva, e por isso a consideramos como gênero discursivo, conforme abordaremos adiante.

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questão na perspectiva da produção, no momento histórico em que o surgimento da

tecnologia de gravação permite o registro fonográfico, Tatit (2004) salienta a

importância da canção como possibilidade de expressão artística com base em práticas

quotidianas:

A canção brasileira, na forma que a conhecemos hoje, surgiu com o século XX e veio ao encontro do anseio de um vasto setor da população que sempre se caracterizou por desenvolver práticas ágrafas. Chegou como se fosse simplesmente uma outra forma de falar dos mesmos assuntos do dia-a-dia, com uma única diferença: as coisas ditas poderiam então ser reditas quase do mesmo jeito e até conservadas para a posteridade. (TATIT 2004, p. 70)

Ao longo do século XX, então, muito daquilo que se disse em forma de canção foi

conservado para a posteridade e tem servido como objeto de estudo, em busca da

compreensão da sociedade e da cultura brasileiras, sob diferentes perspectivas.

Inúmeros autores têm dado sua contribuição para a construção do conhecimento em

áreas como a história social e política (v. TINHORÃO 1990, 1991, 2005; CALDAS

2005), a comunicação (v. MEDINA 1973) e a semiótica (v. TATIT 1986, 1996, 2004),

por exemplo. No âmbito dos estudos discursivos, entre os quais se incluem, de modo

abrangente, os trabalhos que privilegiam a análise das letras, há aqueles que se

debruçam sobre a obra de um determinado autor (v. CARVALHO 1982, sobre Chico

Buarque de Hollanda), ou sobre um tema específico – por exemplo, a sexualidade (v.

FAOUR 2006), a construção da imagem da mulher (SANTA CRUZ 1992) ou as

relações entre música popular3 e futebol (XAVIER 2009) e entre a música popular e a

literatura (SANT’ANNA 1986)

Há, ainda, uma vasta bibliografia de cunho eminentemente biográfico, que aborda a

produção discográfica de inúmeros artistas, sem empreender análises mais detalhadas de

sua obra, mas de qualquer forma cumprindo importante papel documental na história

cultural do país.

Em âmbito internacional, a produção acadêmica sobre música popular tem sido

divulgada através de instituições como a IASPM (International Association for the

3 A definição do conceito de música popular é complexa. No âmbito deste trabalho, música popular designa a música urbana produzida no Brasil a partir do século XX, com o advento das técnicas de registro fonográfico e da propagação pelo rádio. Incorporamos a posição de Shuker (1998), para quem “uma definição satisfatória de música popular deve dar conta tanto de suas características musicais quanto de suas características socioeconômicas. Essencialmente, toda música popular consiste de um híbrido de tradições, estilos e influências musicais, e também é um produto econômico investido de significados ideológicos” (SHUKER 1998, p.228, tradução nossa). Ressalta-se, ainda, o caráter autoral da música popular urbana, em oposição à música folclórica. Sandroni (2004) destaca, ainda, a vinculação da noção de música popular, no Brasil, a uma ideia de povo, a partir da consolidação de ideais republicanos: “Quem pensa em música popular brasileira tem em mente alguma concepção de ‘povo brasileiro’, tanto quanto quem adere a ideais republicanos.” (SANDRONI 2004, p.25)

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Study of Popular Music), criada na década de 1980, nos Estados Unidos, e pela sua

ramificação para a América Latina (IASPM-LA), que desde 1994 realiza congressos em

todo o continente, com participações de estudiosos da música popular do mundo inteiro.

De um modo geral, a perspectiva interdisciplinar que norteia a atuação dos

pesquisadores tem possibilitado o desenvolvimento de diálogos enriquecedores sobre

diferentes temas.

Entretanto, mesmo diante desse reconhecimento da importância da canção para a

interpretação da cultura brasileira, o número de estudos acadêmicos na área ainda

parece pequeno. Essa é uma impressão corroborada por Travassos (2005), que, fazendo

uma revisão de algumas das várias linhas de pesquisa sobre música popular no Brasil4,

afirma:

há tempos que a música popular atrai os eruditos, e o assunto nunca esteve de todo ausente das cogitações dos pesquisadores vinculados às universidades [...], a presença da música popular é constante, ainda que desproporcional ao seu lugar na cultura brasileira. (TRAVASSOS 2005, p. 94)

No âmbito dos estudos linguísticos que enfocam a canção, a análise do discurso

tem se mostrado um terreno profícuo. Teses, dissertações e outros trabalhos acadêmicos

têm abordado o discurso literomusical brasileiro, sobretudo na perspectiva da análise do

discurso de linha francesa, e especialmente a desenvolvida por Dominique

Maingueneau. Reconhecendo a validade das posições do autor francês, Costa (2007)

salienta que os trabalhos que se utilizam do dispositivo teórico-analítico baseado em

Maingueneau têm por característica principal “lançar um olhar atento à articulação entre

a materialidade da canção, ou seja, sua substância verbo-melódica, e o contexto mediato

ou imediato que ela pressupõe.” (COSTA 2007, p. 15). Entre as principais concepções

desse dispositivo teórico-analítico incorporadas ao nosso trabalho, destacamos as

noções, desenvolvidas adiante, de posicionamento e de ethos discursivo, integradas à

noção de cena enunciativa, na análise das canções que compõem o nosso corpus.

Optando por situar o trabalho nessa perspectiva, buscamos articular, com a análise das

obras selecionadas, “um funcionamento discursivo e sua inscrição histórica, procurando

pensar as condições de uma ‘enunciabilidade’ passível de ser historicamente

circunscrita.” (MAINGUENEAU 2008, p.17)

4 Após enumerar alguns estudos pioneiros, a partir de Sílvio Romero e de Mário de Andrade, que trataram a poesia popular e a música popular como “objetos de pesquisa séria” (TRAVASSOS 2005, p.94), a autora observa que a música popular foi, durante muito tempo, olhada com desconfiança no meio acadêmico por ser considerada como “tema associado ao entretenimento massificado e ao consumo, ou à festa e aos setores populares. Falar sobre música popular equivaleria, dessa perspectiva, a capitular perante a indústria cultural” (TRAVASSOS 2005, p.95).

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A tarefa, entretanto, não é simples. Estamos adentrando um terreno instável, este da

análise do discurso (AD), marcado pela heterogeneidade de conceitos e de

procedimentos, e lidando com um objeto de investigação não menos complexo, o

discurso literomusical brasileiro, também marcado por uma heterogeneidade de

posicionamentos, de opções artísticas e de orientações estéticas. Nossa proposta é

enfocar a produção linguístico-discursiva do Frevo, procurando compreender como se

dá a sua inserção no panorama da música popular brasileira, a partir das primeiras

décadas do século XX. Abordamos especificamente a produção literomusical do Frevo-

Canção, um dos dois tipos de Frevo que admitem a palavra cantada5, e cuja emergência

está vinculada à atuação dos primeiros clubes carnavalescos do Recife.

A noção de interdiscursividade, basilar para a AD, é incorporada ao nosso estudo na

perspectiva desenvolvida por Maingueneau (2008), nos termos de suas postulações

acerca do primado do interdiscurso: “o interdiscurso tem precedência sobre o discurso.

Isso significa propor que a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas um

espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos”.

(MAINGUENEAU 2008, p.20). Os procedimentos analíticos dão-se a partir de um

recorte que evidencie a constituição do discurso em um espaço de relação com outros, já

que “seria a relação interdiscursiva que estruturaria a identidade” (MAINGUENEAU

2008, p. 21). Nesse sentido, estabelecemos diálogo com a produção discursiva de outros

gêneros, sobretudo o samba, consagrado na tradição musical brasileira como

representativo de uma certa ideia de nacionalidade, conforme veremos no capítulo 4.

Para situar mais precisamente a esfera de ação do analista, Maingueneau (2008) propõe

as noções de universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo, de que

trataremos adiante, no capítulo 2, sobre o arcabouço teórico da pesquisa.

Com base nessas categorias, buscamos analisar a organização discursiva das

canções que integram o nosso corpus com o objetivo de identificar o posicionamento do

Frevo em relação a outros enunciados historicamente inscritos no campo do discurso

literomusical brasileiro. Sobre a noção de posicionamento, trata-se de “uma categoria de

base da análise do discurso, que diz respeito à instauração e à conservação de uma

identidade enunciativa” (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU 2004, p.392).

Definimos como recorte histórico deste trabalho o período dos anos 1930 aos anos

1970. Aí incluímos a Era de Ouro do Rádio (décadas de 1930, 1940 e 1950), quando o

5 O outro tipo de Frevo cantado é o Frevo-de-bloco, por nós abordado em trabalhos anteriores (cf. VILA NOVA 2007)

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Frevo-Canção recebeu inúmeras gravações no sudeste do país, por algumas das vozes

mais representativas da canção popular brasileira; incluímos também o período mais

significativo (décadas de 1950 a 1970) de atuação da Rozenblit, fábrica de discos

localizada no Recife, responsável por uma intensa produção de títulos voltados para a

música carnavalesca pernambucana e brasileira. Ao longo de todo o período, destaca-se,

por sua atuação como divulgador do Frevo, a figura do Maestro Nelson Ferreira, diretor

artístico da Rádio Clube de Pernambuco e, posteriormente, diretor musical da

Rozenblit.

Ao estabelecer este recorte, pretendemos oferecer uma contribuição para os estudos

discursivos sobre o Frevo cobrindo um período de reconhecida importância para a

história da música popular brasileira. A noção de posicionamento é desenvolvida por

Costa (2001, 2007, 2007a, 2009, 2009a), no âmbito do discurso literomusical

brasileiro6. Uma importante observação acerca da noção diz respeito à ideia da não

fixidez dos posicionamentos, sendo, portanto, frequente a ocorrência de artistas cuja

obra se caracteriza pelo investimento em mais de um posicionamento. Isto se explica,

em parte, pela postura de rejeição a rótulos, bastante comum na música brasileira, como

lembra o autor7. Outra explicação está na percepção de que os posicionamentos devem

ser encarados como momentos de um percurso, não sendo possível compreendê-los

como “um enquadramento de uma vez por todas dos sujeitos” (COSTA 2001, p. 167).

Reconhecemos aí uma importante marca distintiva do discurso literomusical, definidora

de sua heterogeneidade, quando comparado a outros campos discursivos, a exemplo da

religião e da ciência, em que “grupos, correntes, tendências [...] se definem, se

organizam e se estabilizam mediante estatutos e ideologias razoavelmente bem

definidos” (COSTA 2001, p. 169), através de textos fundadores que orientam as práticas

discursivas (o manifesto político, as obras de caráter doutrinário etc.).

Reconhecendo a validade das interlocuções entre a pesquisa em Análise do

Discurso e as teorias sobre gêneros, incorporamos contribuições que dão conta da

definição de gêneros enquanto formas de ação social e cultural (BAKHTIN, 1981, 1992,

2000; MARCUSCHI 2004, 2005, 2007, 2008; BAZERMAN 2005 e outros). A opção

revela-se coerente com a posição de Maingueneau (2008), ao observar que “há um 6 O autor identifica cinco formas de marcação identitária, a partir da aproximação de artistas de acordo com diferentes critérios, a saber: “a) movimentos estético-ideológicos [...]; b) agrupamentos de caráter regional [...]; c) agrupamentos em torno de temáticas [...]; d) agrupamentos em torno do gênero musical [...]; e) agrupamentos em torno de valores relativos à tradição [...]” (COSTA 2001, p. 169) 7 Ele observa, no entanto, que essa postura de rejeição a rótulos configura, em si mesma, um posicionamento, “o daqueles que se dizem acima de qualquer posicionamento” (COSTA 2001, p.167).

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consenso entre analistas do discurso de que a noção de gênero ocupa papel central na

disciplina” (MAINGUENEAU 2008a, p. 151) e que “a análise do discurso e as

correntes pragmáticas colocaram a categoria de gênero no centro de suas preocupações”

(MAINGUENEAU 2006, p. 229). Enfatizamos, no capítulo 2, as concepções de gêneros

do discurso em Bakhtin a partir de suas formulações acerca do princípio dialógico, que

embasam as contribuições do autor russo para o estudo dos fenômenos da linguagem,

ressaltando sua dimensão social. Enfocaremos as relações entre os gêneros primários e

secundários (BAKHTIN 2000), que ensejam uma interpretação da canção como

manifestação cultural da linguagem numa esfera de produção artística elaborada a partir

da fala cotidiana.

De fato, ao definirmos, com base em Costa (2007a), a canção como “gênero híbrido,

de caráter intersemiótico” (COSTA 2007a, p. 107), ressaltamos a compreensão de que

sua produção situa-se no limiar entre a oralidade e a escrita, conferindo-lhe um interesse

peculiar enquanto objeto de pesquisa. A redução das fronteiras entre oralidade e escrita,

com a superação de uma visão dicotômica por muito tempo presente na pesquisa

linguística, é uma perspectiva em geral vinculada à constituição de novos gêneros,

sobretudo a partir do desenvolvimento das tecnologias de comunicação, conforme

Marcuschi (2007). O autor salienta que um aspecto central desses gêneros é

a nova relação que instauram com os usos da linguagem como tal [com] a redefinição de alguns aspectos centrais na observação da linguagem em uso, como por exemplo a relação entre a oralidade e a escrita, desfazendo ainda mais as suas fronteiras. (MARCUSCHI 2007, p. 21)

Embora não estejamos lidando com um gênero novo, absolutamente, a inserção da

canção nessa perspectiva é sem dúvida pertinente. A palavra cantada é, de fato, uma das

mais antigas manifestações da linguagem, remontando aos primórdios da história

humana, disseminada praticamente em todas as culturas, e sua constituição dá-se a partir

dos padrões entoacionais da fala8. Tal compreensão fundamenta, por exemplo, a análise

de Tatit (1996, 1997, 2004, 2007) sobre a consolidação da canção brasileira ao longo do

século XX. O autor argumenta que ela se deve a um princípio entoativo segundo o qual

as melodias “mimetizam as entoações da fala para manter o efeito de que cantar é

também dizer algo, só que de um modo especial” (TATIT 2004, p. 73). Ao mesmo

tempo, é inegável que a canção tem uma dimensão escrita inquestionável a qual, de

acordo com Costa (2007a), está situada no momento da produção e da distribuição das

8 Em alguns gêneros musicais mais recentes, como o rap, por exemplo, esses padrões são mais evidentes, reconhecidos, de modo geral, como uma fala cantada.

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obras, sendo portanto sujeita à “análise das disciplinas que privilegiam a matéria

escrita” (COSTA 2007a, p.112), entre as quais inclui-se a literatura, como ele ressalta.

Para uma breve reconstituição do percurso sócio-histórico da canção, analisamos, a

partir de Matos (2008) e outros autores, alguns “laços de parentesco” verificados na

relação entre poesia e música, assim como a importância da canção em diferentes

práticas culturais. Recorremos ainda a Zumthor (2005) para ressaltar a importância da

voz na elaboração dessas práticas, bem como na elaboração da noção de performance.

Enfatizamos, ainda, alguns aspectos composicionais e contextos socioculturais

específicos, que caracterizam a elaboração, circulação e recepção do gênero, ao longo

da formação da cultura brasileira.

Propomos ainda uma aproximação entre o gênero canção e a crônica, considerando a

análise de muitas obras em que a organização discursiva e, sobretudo, os propósitos

comunicativos, permitem identificar nas canções analisadas traços comuns aos dois

gêneros discursivos. Em geral, são obras elaboradas na forma de narrativas sobre cenas

da vida cotidiana, descrevendo personagens, usos linguísticos e costumes, comentando

aspectos da vida política etc. Tal percepção não constitui propriamente um dado novo

na música popular brasileira, se considerarmos, com Tatit (2004), que “a prática musical

brasileira sempre esteve associada à mobilização melódica e rítmica das palavras, frases

e pequenas narrativas ou cenas cotidianas.” (TATIT 2004, p. 69). Nesse sentido, muito

já se disse acerca de, por exemplo, um Noel Rosa como cronista de Vila Izabel, seu

bairro de origem, no Rio de Janeiro; ou um João Santiago cronista do Batutas de São

José, bloco carnavalesco do Recife ao qual o artista dedicou quase integralmente a sua

obra. Pretendemos, então, identificar no corpus selecionado as obras que se enquadram

neste espaço de intersecção entre a canção e a crônica.

A definição das opções teórico-metodológicas, a partir da articulação entre a AD e

contribuições das teorias de gêneros, bem como as limitações de conhecimento técnico

da linguagem musical, de nossa parte, impõem-nos um direcionamento voltado mais à

análise da materialidade linguística das canções, em busca das configurações de sentido

que nos permitam identificar alguns dos posicionamentos do Frevo no discurso

literomusical brasileiro. Não obstante essa postura metodológica, lançamos mão das

contribuições de Tatit (1986, 1996, 1997) para apresentar, no desenvolvimento do

trabalho, considerações gerais acerca da estruturação harmônica e melódica das

canções, necessárias para que se cumpra, ainda que parcialmente, a proposta de

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Maingueneau formulada nos termos de uma semântica global (MAINGUENEAU 2008,

pp. 75-97), que enfocaremos adiante.

Abordando especificamente os gêneros literários, Maingueneau (2006) apresenta

uma reflexão que julgamos pertinente à análise de outros gêneros do discurso situados

na esfera da produção artística: “A obra não se limita a representar um real exterior a

ela, mas define igualmente um quadro de atividade que é parte integrante do universo de

sentido que ela simultaneamente pressupõe e pretende impor.” (MAINGUENEAU

2006, p.229). Considerando, ainda conforme Maingueneau (2008a, pp. 43-46), que a

definição de posicionamentos implica a existência de comunidades discursivas9, a

compreensão dos posicionamentos do Frevo no campo do discurso literomusical

brasileiro interessa-nos enquanto construção de sentidos para a afirmação de uma

comunidade discursiva cuja identidade é constituída pelos modos de dizer do Frevo, isto

é, pela configuração discursiva de suas letras em conjugação com a elaboração de sua

complexa estrutura musical. O conceito de comunidade discursiva será desenvolvido no

capítulo 2.

Apresentamos como justificativa adicional para a realização deste trabalho o

interesse que ele pode suscitar entre pesquisadores e estudiosos, e para a sociedade em

geral, dada a crescente valorização do Frevo no cenário nacional. Como evidência dessa

constatação, salientamos a resolução do Conselho Consultivo do IPHAN (Instituto do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), homologada pelo então ministro da Cultura,

Gilberto Gil, em reconhecimento do ritmo pernambucano como Patrimônio Imaterial do

Brasil, em 9 de fevereiro de 2007.10

O reconhecimento oficial representa uma etapa do longo processo de instituição das

formas imateriais como patrimônio histórico e artístico, num contexto mundial. No

Brasil, conforme destacam Barbosa e Couceiro (2008),

considerar danças, manifestações [...] ofícios e diversos costumes de comunidades específicas, como merecedores de ações especiais de proteção e salvaguarda por parte das políticas governamentais, é uma idéia com presença relativamente recente nos debates nacionais acerca do tema. (BARBOSA e COUCEIRO 2008, p.13)

9 Conforme o Dicionário de Análise do Discurso, uma comunidade discursiva “tem sua identidade marcada pelos saberes de conhecimento e de crença nos quais seus membros se reconhecem e dos quais dão testemunho ao produzirem discursos que circulam no grupo social”. (MAINGUENEAU, D. e CHARADEAU, P. 2004, p. 109) 10 A resolução foi anunciada pelo Ministro G.Gil após reunião do Conselho Consultivo do IPHAN realizada na sacristia da Igreja de São Pedro dos Clérigos, no Pátio de São Pedro, Recife, no dia em que oficialmente se comemorava o centenário do frevo, tomando como referência histórica a data do primeiro registro impresso da palavra frevo, publicada no Jornal Pequeno, do Recife, em 9 de fevereiro de 1907.

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É somente depois da Segunda Guerra que a visão de patrimônio cultural, antes

relacionada apenas às grandes obras de arte e aos monumentos, começa a ser revista,

sobretudo por influência dos países do Terceiro Mundo, cuja tradição e identidade se

expressam de modo intenso “a partir de manifestações, de artes e modos de fazer,

danças, folguedos e ritos.” (BARBOSA e COUCEIRO 2008, p.12). Conforme as

autoras, o Brasil antecipa-se, através do Decreto 3.551, do ano 2000, às deliberações da

Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, realizada pela

UNESCO, em Paris, em 2003. O decreto brasileiro já então estabelecia o Registro de

Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural de nosso país.

No entanto, o trabalho exaustivo da comissão de pesquisadores do projeto Formas de

Expressão da Cultura Imaterial em Pernambuco, desenvolvido em 2006, em todo o

Estado, apontou a escassez de registros de muitas das formas de expressão abordadas,

sejam eles através de publicações, imagens ou arquivos sonoros.

Nossa iniciativa constitui uma modesta contribuição, pequena parcela de um trabalho

extenso a se cumprir, para dar conta da riqueza do Frevo no cenário cultural brasileiro.

O contexto sócio-histórico de emergência do Frevo-Canção no panorama do carnaval

brasileiro será enfocado no capítulo 3. Inicialmente vinculada às primeiras agremiações

de rua do Recife, essa música cantada espraiou-se por todos os segmentos sociais

representados no palco da nossa maior festa popular, das elites responsáveis pelos

clubes de alegorias e críticas às camadas subalternas que formaram os clubes pedestres,

oriundos das associações de classes do trabalho proletário.

Esse importante dado sociológico relacionado ao Frevo-Canção - sua vinculação às

primeiras sociedades e clubes carnavalescos, agremiações que reproduziam no carnaval

as divisões sociais da cidade – é abordado assim por Araújo (1996):

A cidade dividida em segmentos e grupos étnicos e sociais distintos, portadores de interesses e visões de mundo próprios – e muitas vezes antagônicos, embora houvesse momentos e pontos de identificação e consenso – de práticas e expressões culturais específicas, era múltipla e mutante, assim como o Carnaval. (ARAÚJO 1996, p.210)

Por um lado, incluíam-se aí os clubes de alegorias e críticas, formados pelas camadas

da elite recifense e caracterizados pela influência do carnaval europeu e por um forte

apelo para a crítica de costumes. Por outro lado, os clubes pedestres, que começaram a

surgir a partir da década de 1880, sobretudo após a Abolição da Escravatura. Os nomes

dessas agremiações quase todos se referem ao mundo do trabalho proletário

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(Lenhadores, Caiadores, das Pás, Vassourinhas, Espanadores, Empalhadores do

Feitosa, Parteiras de São José, etc.) e, ao contrário dos primeiros, eram formadas por

pessoas pobres “oriundas de categorias de trabalhadores urbanos, como comerciários,

alfaiates, costureira, talhadores, estivadores, funileiros, gazeteiros, verdureiros [...]”

(SOUTO MAIOR e SILVA 1991, p. XXXVII).

Buscando, então, cumprir o objetivo geral do trabalho, que é definir o

posicionamento do Frevo no campo do discurso literomusical brasileiro, a partir das

opções teórico-metodológicas anunciadas, levantamos a hipótese de que a organização

linguístico-discursiva do Frevo-Canção se caracteriza, basicamente:

a) por configurar um projeto enunciativo de afirmação identitária do Frevo –

como gesto de demarcação de terreno no campo literomusical brasileiro, em

relação a outros gêneros musicais;

b) pela abordagem de uma temática variada, reveladora das peculiaridades da

obra dos autores enfocados, em diferentes contextos sócio-históricos ao longo

do período enfocado, com destaque para as canções cuja organização

linguístico-discursiva permite-nos apontar uma relação intergenérica com a

crônica, conforme já referido.

Esperamos, com a realização deste trabalho, oferecer uma contribuição para o

desenvolvimento dos estudos que visam à compreensão da dinâmica que rege a

evolução de uma manifestação cultural tão importante para os pernambucanos e para os

brasileiros de modo geral. Aliamo-nos a outros pesquisadores cientes da importância

das manifestações da cultura popular para a compreensão da vida brasileira, e nosso

trabalho representa um gesto de inserção desse universo de produção criativa nos

domínios da investigação acadêmica.

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2. OPÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGIAS

PARA UMA ANÁLISE DISCURSIVA DO FREVO

2.1. Dialogismo e Gêneros do Discurso, contribuições do Círculo de Bakhtin

O discurso literomusical brasileiro é caracterizado pela heterogeneidade, por uma

pluralidade de gêneros sobre os quais se elaboram diferentes posicionamentos e

propostas estéticas variadas, através de diversas formas composicionais - dentre as quais

se destaca a canção. Em nossa proposta de descrição e análise do posicionamento do

Frevo, deparamo-nos com duas tarefas básicas: primeiro, definir a canção enquanto

gênero discursivo, de caráter híbrido, dotado de uma materialidade linguística e de uma

materialidade musical, como veremos adiante; e segundo, definir o Frevo como

manifestação da cultura pernambucana, consolidada a partir de variadas influências na

música e na dança, desde o século XIX.

Neste capítulo, apresentamos nossas opções teóricas, a partir da concepção geral de

língua e discurso, com base nos postulados do Círculo de Bakhtin, assim como uma

breve discussão acerca dos gêneros do discurso, incorporando as contribuições de

Marcuschi (2004, 2005, 2007, 2008) e Bazerman (2005). Depois de definirmos o gênero

canção, com base em Costa (2001, 2007, 2007a), Tatit (1986, 1996, 2004) e outros,

desenvolvemos uma breve discussão acerca do gênero Frevo-Canção, nosso objeto de

estudo.

Em seguida, discorremos sobre a Análise do Discurso, traçando um panorama da

área sobre a qual nos debruçamos para fundamentar o trabalho, enfatizando as

contribuições de Maniguenau (1997, 2001, 2005, 2006, 2008, 2008a, 2008b, 2008c) e,

para uma definição do discurso literomusical, as contribuições de Costa (2001, 2007a).

Os estudos sobre gêneros têm constituído uma linha central de trabalho na pesquisa

linguística. No Brasil, com um significativo número de pesquisadores atuando em

projetos e grupos de trabalho em diversos centros, a bibliografia disponível contempla

áreas que incluem desde o ensino de línguas às diferentes correntes da Análise do

Discurso. Uma ideia da multiplicidade de interesses em torno das questões pertinentes

ao estudo dos gêneros (de texto ou de discurso) é apresentada por Meurer, Bonini e

Motta-Roth (2005), ao enumerarem alguns profissionais que, no Brasil assim como

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noutros países, “hoje, estão inclinados a discutir questões relacionadas aos gêneros”, e

que incluem, entre outros,

críticos literários, retóricos, sociólogos, cientistas cognitivistas, especialistas em tradução automática, linguistas computacionais, analistas do discurso, especialistas em inglês para fins específicos, professores de língua [...] (MEURER, BONINI e MOTTA-ROTH 2005, p.8).

Algumas perspectivas de estudos sobre gêneros em curso internacionalmente são

apontadas por Marcuschi (2008)11, dentre as quais se destaca a “perspectiva sócio-

histórica e dialógica”, sob influência de Bakhtin. Ao traçar um panorama sobre esses

estudos em nosso país, até a primeira década do século XXI, Marcuschi (2008) também

chama a atenção para a obra de Bakhtin, assinalando que tem havido no Brasil uma

enorme proliferação de trabalhos sob a sua influência, já que o autor russo “fornece

subsídios teóricos programáticos de ordem macroanalítica e categorias mais amplas”,

podendo ser “assimilado por todos de forma bastante proveitosa. Bakhtin representa

uma espécie de bom-senso teórico em relação à concepção de linguagem”

(MARCUSCHI 2008, p. 152).

De fato, a validade da obra de Bakhtin e a importância das suas concepções gerais

sobre a linguagem levam a que seja reconhecido como um importante filósofo da

linguagem, cujos postulados básicos configuram uma percepção da linguagem em sua

dimensão sociocultural, transcendendo as posições adotadas pela filosofia da linguagem

e pela Linguística de seu tempo quanto ao problema da delimitação do seu objeto de

estudo específico. A essas posições Bakhtin (Volochinov) (1992) chamou de

“subjetivismo idealista” e “objetivismo abstrato”, cujo foco de observação seria,

respectivamente, “o ato da fala, de criação individual” mobiliado pelo “psiquismo

individual”; e “o sistema lingüístico, a saber os sistemas das formas fonéticas,

gramaticais e lexicais da língua” (BAKTHIN/VOLOCHINOV 1992, pp.72-77).

A partir daí, o autor elabora os fundamentos da sua teoria dialógica, que permeia

todo o pensamento bakhtiniamo e que diz respeito, em suma, à percepção da realidade

social da língua. Trata-se de uma posição que fundamentará outros conceitos basilares,

tais como o de gêneros do discurso e de enunciado, que abordamos aqui, recorrendo

11 Com a advertência de que “não representam de modo completo todas as possibilidades teóricas existentes no momento, o autor enumera uma “perspectiva comunicativa”; uma “perspectiva sistêmico-funcional”; uma “perpsectiva sociorretórica de caráter etnográfico voltada para o ensino de segunda língua”; uma “perspectiva interacionista e sociodiscursiva de caráter psicolinguístico e atenção didática voltada para a língua materna”; uma “perspectiva da análise crítica”; e uma “perspectiva sociorretórica/sócio-histórica e cultural” (MARCUSCHI 2008, p. 152)

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também a considerações de outros autores, sobretudo Marcuschi (2004, 2005, 2007,

2008) e Bazerman (2005).

Na verdade, falar da obra de Bakhtin implica falar do Círculo12, como é conhecido o

grupo de intelectuais reunidos em torno do mestre, com os quais compartilhavam

interesses acerca de variados temas, divulgados como as ideias do Círculo de Bakhtin

em publicações que, em alguns casos, receberam dupla assinatura, a exemplo das obras

Marxismo e Filosofia da Linguagem (1992) e Discurso na Vida e Discurso na Arte –

sobre poética sociológica (mimeo, s/d), assinadas por Bakhtin e Volochinov.

As bases da concepção dialógica da linguagem, tal como desenvolvida em Marxismo

e Filosofia da Linguagem (Bakthin/Volochinov, 1992), estão assentadas na negação da

noção de língua fundada tanto na objetividade quanto na subjetividade pura, duas

perspectivas norteadoras do trabalho de pesquisa linguística até princípios do século

XX, com base no “estudo da enunciação monológica isolada”, de caráter filológico:

“Estudam-se documentos históricos em relação aos quais o filólogo adota uma atitude

de compreensão passiva” (Bakhtin/Volochinov 1992, p. 104). Para o pensamento do

Círculo, essa perspectiva de apreensão da língua não contempla a sua verdadeira

natureza dinâmica e criativa, que se materializa unicamente através da interação:

A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. [...] A língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema lingüístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes. (BAKHTIN/VOLOCHINOV 1992, p. 123)

O conceito de dialogismo funda-se, portanto, numa concepção de língua que

extrapola os domínios da Linguística – saussureana e estruturalista – e se volta para uma

perspectiva discursiva. Embora a leitura da obra de Bakhtin revele que ele nunca propôs

formalmente “uma teoria e/ou análise do discurso, no sentido em que usamos a

expressão para fazer referência, por exemplo, à Análise do Discurso Francesa” (BRAIT

2008, p.9), é inegável a relevância de suas contribuições, sobretudo as reflexões acerca

do princípio dialógico, para o desenvolvimento das teorias do texto e do discurso, no

século XX. Na verdade, indo um pouco mais além, autores como Cunha (1997)

12 Do Círculo de Bakhtin participavam intelectuais como Valentin Volochinov, Pavel Medvedev, o filósofo Matvei Kagan, o biólogo Ivan Kanaev, a pinaista Maria Yudina e o professor Lev Pumpianski. (FARACO 2009, p.13)

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sustentam que, a partir do conceito de dialogismo, “Bakhtin elaborou uma teoria do

discurso humano, que constitui a base da lingüística pós-estrutural” (CUNHA 1997,

p.304), incluindo aí diferentes contribuições para a Análise do Discurso, a Linguística

Textual, a Análise da Conversação e a Pragmática. O próprio Bakhtin (2000) defende,

por fim, que a concepção dialógica é uma realidade fundamental que deve nortear não

apenas a compreensão do fenômeno linguístico, mas o método de pesquisa nas ciências

humanas:

As ciências exatas são uma forma monológica de conhecimento: o intelecto contempla uma coisa e pronuncia-se sobre ela. Há um único sujeito: aquele que pratica o ato de cognição (de contemplação) e fala (pronuncia-se). Diante dele, há a coisa muda. Qualquer objeto do conhecimento (incluindo o homem) pode ser percebido e conhecido a título de coisa. Mas o sujeito como tal não pode ser percebido e estudado a título de coisa porque, como sujeito, não pode, permanecendo sujeito, ficar mudo; consequentemente, o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico. (BAKHTIN 2000, p. 403)

Assim, desde a descoberta, fora dos limites da URSS, da produção intelectual do

Círculo, a partir do final dos anos 1960, o pensamento bakhtiniano tem conquistado

significativo espaço, não apenas nas áreas destinadas ao estudo mesmo da linguagem –

a Linguística e a Literatura –, mas também, numa perspectiva transdisciplinar, peculiar

à visão de mundo do autor, nas áreas da educação, da filosofia, e da semiótica da

cultura.

A primeira obra em que o autor propõe as bases de sua teoria dialógica é Problemas

da Poética de Dostoievski, originalmente publicada em 1929 (a primeira tradução

brasileira é de 1981, que utilizamos aqui). A concepção de dialogismo está aí atrelada à

emergência de uma nova disciplina, a Metalinguística (Translinguística)13, apresentada

no capítulo 5 (O discurso em Dostoievski), em que Bakhtin anuncia que tem em vista “o

discurso, ou seja, a língua em sua integridade concreta e viva e não a língua como

objeto da lingüística” (BAKTHIN 1981, p.157). A sua proposta, entretanto, não

descarta a Linguística, mas, ao contrário, recomenda aplicar os seus resultados:

as nossas análises subseqüentes não são lingüísticas no sentido rigoroso do termo. Podem ser situadas na Metalingüística, subentendendo-a como um estudo – ainda não constituído em disciplinas particulares definidas –

13 O termo Metalinguística aparece em Problemas da Poética de Dostoievski (1981) para identififcar a nova disciplina que, segundo Bakhtin, ultrapassaria os limites da Linguística (sem ignorá-la), voltando-se para as relações dialógicas. No entanto, autores como Faraco (2009) e Fiorin (2006) preferem usar Translinguística para dar conta dessa proposta de abordagem extralinguística, já que, segundo Fiorin (2006), “metalingüística é imediatamente relacionada aos discursos que falam sobre a língua, que a descrevem, que a analisam” (FIORIN 2006, p.20).

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daqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam – de modo absolutamente legítimo – os limites da lingüística. As pesquisas metalingüísticas, evidentemente, não podem ignorar a lingüística e devem aplicar os seus resultados. (BAKHTIN 1981, p. 157)

O autor esclarece, nesse ponto que, afinal, a Linguística e a Metalinguística

(Translinguística) estudam o mesmo fenômeno, embora sob ângulos diferentes.

Refinando mais a sua definição, o autor propõe que o objeto da Metalinguística

(Translinguística) são, precisamente, “as relações dialógicas (inclusive as relações do

falante com a sua própria fala)” (BAKHTIN 1981, p. 158), situadas numa dimensão

extralinguística, ou seja, além dos limites da língua – a língua tal como concebida pela

Linguística estruturalista. Continua Bakhtin:

As relações dialógicas, deste modo, são extralinguísticas. [...] A linguagem vive apenas na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística etc.), está impregnada de relações dialógicas. Mas a lingüística estuda a ‘linguagem’ propriamente dita com sua lógica específica [...] como algo que torna possível a comunicação dialógica, pois ela abstrai conseqüentemente as relações propriamente dialógicas. Essas relações se situam no campo do discurso, pois esse é por natureza dialógico e, por isto, tais relações devem ser estudadas pela metalingüística, que ultrapassa os limites da lingüística e possui objeto autônomo e tarefas próprias. (BAKHTIN 1981, p. 158)

Estão assim definidas as bases da concepção de linguagem postulada pelo Círculo de

Bakhtin, levando em conta a complexidade das relações humanas, fundamentadas no

princípio da interação, para a construção de sentidos através da língua. Como se

depreende das considerações acima, essa compreensão aponta para contextos mais

amplos, numa perspectiva extralinguística, que pressupõe, no trabalho analítico e

interpretativo de textos, a identificação das relações interdiscursivas, a inserção

sociocultural e histórica do(s) discurso(s) e dos sujeitos dessa produção, concebida em

sua heterogeneidade. Além disso, observa Brait (2008), o trabalho deve ultrapassar a

necessária análise da materialidade linguística para também

reconhecer o gênero a que pertencem os textos e os gêneros que nele se articulam, descobrir a tradição das atividades em que esses discursos se inserem e, a partir desse diálogo como objeto de análise, chegar ao inusitado de sua forma de ser discursivamente, à sua maneira de participar ativamente das esferas de produção, circulação e recepção (BRAIT 2008, p.13)

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Daí a importância da concepção de gêneros do discurso proposta por Bakhtin e

desenvolvida, principalmente, em Estética da Criação Verbal (2000)14. Em resumo, a

noção de gênero diz respeito ao uso da língua em todas as esferas da atividade humana,

através de “enunciados (orais ou escritos), concretos e únicos, que emanam dos

integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana.” (BAKHTIN 2000, p. 279). É

assim, levando em conta a heterogeneidade das manifestações linguísticas em uma

imensa variedade de possibilidades de uso, que emerge a definição bakhtiniana de

gêneros como “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN 2000, p, 279),

podendo abarcar desde as réplicas do diálogo cotidiano até as obras literárias de

elaboração mais complexa.

Bakhtin distingue então os gêneros discursivos primários (que se constituem de

forma espontânea, na comunicação cotidiana,) dos gêneros discursivos secundários

(elaborados, de uma forma mais complexa, na comunicação cultural, principalmente

através da escrita). Essa distinção, porém, não configura uma proposta de dicotomia ou

hierarquização para classificação dos gêneros. O que Bakhtin postula, na verdade, é que

aos gêneros primários e secundários correspondem duas realidades interdependentes.

Faraco (2009) ressalta essa posição observando que

além de destacar essa perspectiva não dicotômica, mas de inter-relação entre os dois grandes tipos de gêneros, é importante chamar a atenção para o fato de que, em muitas de nossas atividades, há uma passagem constante do plano secundário para o primário e deste para aquele (FARACO 2009, p.133)

O autor exemplifica, então, com a atividade de uma conferência, gênero secundário

bastante elaborado, no domínio acadêmico, que pode ser desenvolvido de forma

relativamente estável, “mas que se mescla [...] com gêneros primários de vários tipos,

como, por exemplo, quando o expositor conta uma piada ou faz uma réplica a uma

observação espontânea” (FARACO 2009, p.133).

A ideia da relativa estabilidade diz respeito à natureza dinâmica dos gêneros,

considerando-se a sua historicidade, ao longo da evolução humana; e também “à

necessária imprecisão de suas características e fronteiras” (FARACO 2009, p. 127).

14 Na verdade, a discussão teórica sobre gêneros é desenvolvida em duas partes (I - Problemática e definição; II- O enunciado, unidade da comunicação verbal), reunidas sob o título de Os gêneros do discurso (BAKHTIN 2000, pp. 278-326). De acordo com Faraco (2009), é um texto inacabado, escrito “provavelmente em 1952/1953”, em que Bakhtin “está discutindo [...] caminhos para um estudo da linguagem como atividade sociointeracional e aponta algumas características da unidade deste estudo (o enunciado) em contraste com a unidade tradicional dos estudos lingüísticos (a sentença)” (Faraco 2009, p.124)

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Essa posição pressupõe a abertura de uma perspectiva bastante distinta da análise de

gêneros consagrada desde a Antiguidade, como veremos a seguir.

2.1.1. Os gêneros, da Antiguidade Clássica à atualidade

Os estudos sobre gêneros remontam, no mundo ocidental, à Antiguidade Clássica,

com as definições dos gêneros literários (lírico, épico e dramático) de Platão e dos

gêneros retóricos (deliberativo, judiciário e epidítico) de Aristóteles, a partir de

determinadas características formais tidas como canônicas, norteadores da definição dos

gêneros, encarados como produtos da criação artística ou retórica. Enfatizavam-se, pois,

os traços formais, tomados como propriedades fixas dos gêneros, muito embora, como

ressalta Faraco, “Aristóteles não separasse as formas de suas funções e das respectivas

atividades sociais em que ocorriam” (FARACO 2009, p.123)

A concepção clássica de gêneros, como foco em suas propriedades formais, norteará

os estudos linguísticos ao longo de muito tempo. No Renascimento, conforme analisa

Marcuschi (2004), a discussão dá-se em torno da definição de “formas hierarquicamente

mais elevadas, estando no cume em geral a tragédia.” (MARCUSCHI 2004, p.3

mimeo). É somente no Romantismo, quando se observa uma reação à hegemonia dos

modelos clássicos, que a teoria clássica dos gêneros é posta em xeque. Isso ocorre, por

exemplo, através da “percepção do anacronismo da epopéia” e do desenvolvimento do

romance, “gênero para o qual as teorias tradicionais não forneciam qualquer subsídio

analítico.” (FARACO 2009, p.124)

Atualmente, a noção de gênero é muito mais abrangente. Ela não está relacionada

unicamente à ideia de gêneros literários, mas inclui todas as realizações discursivas, na

língua falada ou escrita. Não são mais analisados apenas os aspectos formais, as

regularidades textuais verificadas nos gêneros, mas sim a sua relação com as práticas

sociais. Por isso, a visão dos gêneros como formas fixas, marcadas pela rigidez das

construções linguísticas definidas por determinados padrões, foi sendo redimensionada.

Hoje, a compreensão dos gêneros leva em conta seu caráter de plasticidade e a sua

variabilidade, moldados pelas práticas sociais e culturais em que estão inseridos. Para

Marcuschi (2005), por exemplo,

o estudo dos gêneros textuais é uma fértil área interdisciplinar com atenção especial para o funcionamento da língua e para as atividades culturais e sociais. Desde que não concebamos os gêneros como modelos estanques

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nem como estruturas rígidas, mas como formas culturais e cognitivas de ação social corporificadas de modo particular na linguagem, temos de ver os gêneros como entidades dinâmicas. (MARCUSCHI, 2005, p.18, ênfase do autor)

Daí advêm as dificuldades de categorização, dada a própria complexidade das

mudanças sociais e tecnológicas, a todo momento fazendo surgir novos gêneros. Sobre

isso, Marcuschi (2007) aponta que

hoje, em plena fase da denominada cultura eletrônica com o telefone, o gravador, o rádio, a TV e particularmente o computador pessoal e sua aplicação mais notável, a internet, presenciamos uma explosão de novos gêneros e novas formas de comunicação tanto na oralidade quanto na escrita. (MARCUSCHI 2007, p.19, grifo do autor)

A abordagem bakhtiniana sobre os gêneros é, portanto, embasada na compreensão do

caráter dinâmico dos fenômenos socioculturais e da comunicação humana, articulados,

por exemplo, à evolução tecnológica dos meios de armazenagem e circulação da

informação.

A noção de gênero como forma de ação social é desenvolvida, ainda, por Bazerman

(2005), autor cuja orientação teórica vincula-se a uma corrente sociorretórica, sócio-

histórica e cultural de estudos dos gêneros, influenciada por Bakhtin, e preocupada com

“a organização social e as relações de poder que os gêneros encapsulam”

(MARCUSCHI 2004a, mimeo), considerando a sua historicidade e a vinculação às

instituições que os produzem. Na visão de Bazerman (2005), a compreensão dos

gêneros não se limita à identificação de suas regularidades formais:

A definição de gêneros como apenas um conjunto de traços textuais ignora o papel dos indivíduos no uso e na construção de sentidos. Ignora as diferenças de percepção e compreensão, o uso criativo da comunicação para satisfazer novas necessidades percebidas em novas circunstâncias e a mudança no modo de compreender o gênero com o decorrer do tempo. (BAZERMAN 2005, p.31)

O autor considera os gêneros como formas de tipificação das ações humanas, ou seja,

são “parte do modo como os seres humanos dão forma às atividades sociais”

(BAZERMAN 2005, p.31). Ele apresenta como exemplo uma situação em que uma

torcida, no estádio, entoa um cântico de apoio ao seu time, fazendo assim com que

alguém reconheça e seja atraído “para o espetáculo e emoções de um evento atlético

comunitário” (BAZERMAN 2005, p.31). O exemplo nos remete às diferentes

possibilidades de ocorrência do gênero canção que extrapolam o ato individual de

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fruição, além do envolvimento emocional que atualiza toda uma experiência humana

associada à vivência musical culturalmente situada. Numa dimensão social, a variedade

possível de ações humanas em que a canção se faz presente inclui, por exemplo, a

participação em determinadas mobilizações coletivas, de caráter político-social

(comícios, passeatas, manifestações) religioso (procissões), cultural (o carnaval, por

exemplo); na celebração de momentos de euforia – como acontece nas celebrações

esportivas, mencionadas pelo autor – ou de tristeza, como as cerimônias fúnebres.

Retomando as posições de Bakhtin, a noção de gêneros como formas de ação social é

fundamental para a observação e estudo do fenômeno linguístico em suas relações

dialógicas, ou seja, enquanto discurso. Para Bakhtin, isso só pode ser realizado a partir

da afirmação do enunciado como verdadeiro objeto de análise (em oposição à oração –

ou sentença – enfocada pela Linguística do seu tempo), como “unidade real da

comunicação verbal” (BAKHTIN 2000, p. 295) em oposição à “unidade da língua” - a

oração. O enunciado é caracterizado pela noção de acabamento, que pressupõe sempre

uma atitude responsiva:

o acabamento do enunciado é de certo modo a alternância dos sujeitos falantes vista do interior; essa alternância ocorre precisamente porque o locutor disse (ou escreveu) tudo o que queria dizer num preciso momento e em condições precisas. [...] O primeiro e mais importante dos critérios de acabamento do enunciado é a possibilidade de responder – mais precisamente, de adotar uma atitude responsiva para com ele (por exemplo, executar uma ordem) (BAKHTIN 2000, p.299)

A noção de enunciado é pertinente a todas as instâncias da comunicação humana, já

que ele se molda aos gêneros do discurso que empregamos cotidianamente. Bakhtin

lembra que “todos os nossos enunciados dispõem de uma forma padrão e relativamente

estável de estruturação” (BAKHTIN 200, p.301), e suas considerações incluem desde as

réplicas num diálogo familiar até as obras de construção complexa no âmbito das

ciências e das artes, por exemplo. É sobre esse conjunto de orientações teóricas acerca

da concepção dialógica de língua e da noção de gêneros do discurso que desenvolvemos

o estudo da canção, considerando ainda alguns aspectos da relação intergenérica, de que

trataremos adiante.

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2.1.2. O gênero canção

Numa definição bastante sucinta do gênero canção, Costa (2007b) afirma que se trata

de “um gênero híbrido, de caráter intersemiótico, pois é resultado da conjugação de

dois tipos de linguagem, a verbal e a musical (ritmo e melodia).” (COSTA 2007a,

p.107, grifo do autor). A concisão da definição revela, no entanto, uma complexidade

com a qual inevitavelmente lidamos ao escolher esse gênero como objeto de estudo. De

início, é preciso considerar que a análise das configurações de sentido na canção deve

integrar as duas dimensões (a verbal e a musical), o que exige do analista, ainda

conforme Costa (2007a), “uma tripla competência: a verbal, a musical e a lítero-

musical, sendo esta última a capacidade de articular as duas linguagens” (COSTA

2007a, p.107). Advém daí o desafio para a constituição de um instrumental teórico e

analítico suficientemente adequado para dar conta de todos os processos criativos

engendrados na canção. No Brasil, no que diz respeito à área de estudos em Linguística,

duas correntes principais têm se destacado, sobretudo pela possibilidade de um trabalho

interdisciplinar: a Semiótica e a Análise do Discurso.

Como já assinalamos, optamos pela segunda perspectiva, enfocando a canção em sua

dimensão enunciativa, em conformidade com as orientações bakhtinianas acerca do

dialogismo e da definição de gêneros do discurso. Para identificar o Frevo no campo do

discurso literomusical brasileiro, compreendemos a produção artística da canção como

enunciados que, sempre numa perspectiva dialógica, instauram diferentes

posicionamentos definidos a partir de sua identificação genérica e de sua proposta

estética e ideológica, dentro da reconhecida heterogeneidade da música popular

brasileira.

Num breve levantamento do percurso sócio-histórico do gênero, consideramos, de

início, que a canção está vinculada a tradições orais em praticamente todas as culturas,

de todas as épocas, o que, de acordo com Finnegan (2008), faz com que ela possa “sem

dúvida ser considerada como um dos verdadeiros universais da vida humana.”

(FIINNEGAN 2008, p.15). Autores como Schurmann (1989) ressaltam as práticas

ritualísticas do passado, que conjugavam manifestações do canto e da dança15,

apontando como seus remanescentes, rituais “ainda em uso, por exemplo, no âmbito das

15 O autor cita como exemplo a lenda egípcia da filha do deus-sol Re, Telfnut, que só consegue ter a ira abrandada com a música: “É por isso que não se pode parar de cantar e dançar diante de Telfnut, a fim de não se permitir que a sua antiga ira torne a levantar-se” (SCHURMANN 1989, p.26)

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religiões afro-brasileiras, onde o som de batucadas e cantorias contribui com a dança

para a invocação dos orixás.” (SCHURMANN 1989, p. 27)

No mundo ocidental, a canção tem um claro vínculo original com a poesia, que

remonta, conforme o mesmo autor, à época dos poetas-músicos ambulantes – os bardos,

escaldos e rapsodos – cujas narrativas sobre façanhas notáveis e sobre a bravura dos

heróis suscitaram a criação de uma grande variedade de mitos e lendas. Na verdade,

como observa Matos (2008), “já é lugar-comum assinalar o enlace primordial entre

palavra poética e expressão musical, que andaram juntas em suas manifestações mais

primitivas e imemoriais” (MATOS 2008, p.83), assim como estiveram, por exemplo, na

origem da poesia épica. As múltiplas e complexas correspondências entre poesia e

música são evidenciadas, ainda, na denominação de algumas formas específicas que

originalmente definem-se na intersecção entre as duas linguagens. É o caso da balada

(lírica ou narrativa), da barcarola, do hino, do salmo, da ode, do madrigal, da cantata

etc.

O que sobressai na definição do gênero, entretanto, é a voz. Na obra de Zumthor

(2005), ela é analisada como fenômeno de grande importância para a cultura: “a voz é

verdadeiramente um objeto central [...] representa um conjunto de valores que não são

comparáveis verdadeiramente a nenhum outro, valores fundadores de uma cultura”

(ZUMTHOR 2005, p.61). Ela é o elemento fundamental na concepção de performance,

definida pelo autor como “o ato pelo qual o discurso poético é comunicado por meio da

voz” e que se dá, evidentemente, a partir da presença física do corpo: “Quanto à

presença, não somente a voz, mas o corpo inteiro está lá, na performance. O corpo, por

sua própria materialidade, socializa a performance” (ZUMTHOR 2005, p.84). Essa

noção de performance, com a ênfase primordial na importância da voz, associada à

presença de um corpo físico, enriquece a compreensão do gênero canção, em sua

dimensão social, que é enfocada pelo autor quando se refere à performance coletiva,

exemplificada pelo canto nacional, pelo canto revolucionário e pelos cantos religiosos.

A respeito do canto coletivo, ele diz:

O canto reivindica a totalidade concreta do homem. Eu estou aqui, numa multidão pela qual e para a qual é cantado esse canto, que age sobre ela, e que a transforma assim em uma espécie de ser coletivo; ouço um corpo múltiplo, com toda sua carga psico-física, suas paixões; meu corpo é parte dela, e eis que se põe a gesticular, dançar ou levantar o punho. (ZUMTHOR 2005, p. 89)

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Como veremos adiante, a contextualização sócio-histórica do Frevo-Canção revela

uma variedade de cenários de onde emerge a voz cantada, a partir da segunda metade do

século XIX. Primeiro, no calor das ruas, nos desfiles das primeiras agremiações do

Carnaval do Recife. Em seguida, nos salões dos clubes sociais, já nas primeiras décadas

do século XX; e depois nos palcos montados para a festa, a partir da segunda metade do

mesmo século. Essas mudanças articulam, no plano discursivo, diferentes configurações

da cena enunciativa da canção, possibilitando-nos, a partir da análise da construção de

sentidos nas letras – a face textual da canção -, perceber as mudanças sociais do período

enfocado.

Não se trata, porém, de limitar o trabalho de leitura e interpretação à tentativa de

definir um determinado sentido dos textos, tendo-os como objetos em si mesmos; nem

tampouco considerá-los como uma mera representação da realidade. Na perspectiva da

Análise do Discurso, que enfocamos adiante, como parte de nossa fundamentação

teórica, trata-se de compreender o contexto sócio-discursivo e o processo histórico que

incidem sobre a produção de textos, como forma de intervenção no mundo. Resumindo

essa proposta de abordagem do texto, falando especificamente sobre a canção, Costa

(2009a) chama a atenção também para a necessidade de considerar a heterogeneidade e

a dialogicidade inerentes a qualquer produção discursiva

As palavras [..] estão irremediavelmente marcadas pelos usos sociais [...] além disso, qualquer enunciado só existe na medida em que responde a outros enunciados e antecipa outros; deve-se considerar portanto que todo texto é heterogêneo [...] e histórico, marcado irremediavelmente por uma memória e constituído de uma materialidade já habitada e em constante devir. (COSTA 2009a, mimeo)

A importância da voz para a definição do gênero canção também é ressaltada por

Tatit (2004), para quem “a atuação do corpo e da voz sempre balizou a produção

musical brasileira” (TATIT 2004, p.19). O autor considera o canto como uma

reelaboração da fala cotidiana, fazendo com que esta seja perenizada. Para Tatit, “o

canto sempre foi uma dimensão potencializada da fala” (TATIT 2004, p.41).

É a partir do estabelecimento das técnicas de registro fonográfico, no começo do

século XX, que as diferentes vozes que compõem o vasto terreno da música popular

brasileira, caracterizando a sua heterogeneidade, foram se constituindo, agrupando-se

segundo diferentes critérios de afinidade, que incluem desde posicionamentos de caráter

estético-ideológico – como na canção de protesto e no Tropicalismo, nos anos 1960; ou

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no Manguebeat, nos anos 1990 – até, por exemplo, posicionamentos definidos pela

vinculação a determinados gêneros (sambistas, forrozeiros, sertanejos etc.). A análise da

produção literomusical, articulada a outros discursos que circulam na sociedade, revela

a importância da canção para a cultura brasileira, ao longo do século XX. Ainda

segundo Tatit (2004),

A canção brasileira [...] surgiu com o século XX e veio ao encontro do anseio de um vasto setor da população que sempre se caracterizou por desenvolver práticas ágrafas. Chegou como se fosse simplesmente uma outra forma de falar dos mesmos assuntos do dia-a-dia, com uma única diferença: as coisas ditas poderia ser reditas quase do mesmo jeito e até conservadas para a posteridade. (TATIT 2004, p.70)

Considerando a classificação bakhtiniana dos gêneros do discurso, a canção é

definida como gênero secundário, por desenvolver-se em “circunstâncias de uma

comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída” (BAKHTIN 1992,

p. 281). Há, entretanto, de forma bastante evidente, uma inter-relação com gêneros

primários, como a saudação, a conversa informal, a conversa telefônica etc. Trata-se de

um fenômeno inerente À constituição dos gêneros, que explicita seu caráter de

plasticidade e permite uma melhor compreensão do fenômeno da comunicação verbal:

“A inter-relação entre os gêneros primários e secundários de um lado, o processo

histórico de formação dos gêneros secundários do outro, eis o que esclarece a natureza

do enunciado.” (BAKHTIN 2000, p.282) Na análise do discurso literomusical, com

aparato teórico da Análise do Discurso, essa relação é abordada a partir da noção de

cenografia, proposta por Maingueneau (2001, 2006, 2008a) e desenvolvida por Costa

(2011, 2009a) para a análise de canções. Este autor lembra que, na produção discursiva,

a elaboração de uma cenografia não diz respeito

aos elementos empíricos de suas circunstâncias de produção, mas à fundação, no nível do texto, de uma cena enunciativa, na qual se definem um enunciador, um co-enunciador, uma topografia e uma cronografia da enunciação. (COSTA 2009, mimeo)

Para mencionar um exemplo retirado do nosso corpus, um Frevo-Canção como Bye-

bye my baby (Nelson Ferreira, 1944) demonstra a inter-relação genérica, com a

elaboração de uma cenografia baseada na conversa informal. Trata-se de uma situação

de despedida de um namorado ou pretendente, que se dirige a sua amada, na primeira

estrofe, em inglês: “my baby, bye bye”. Na segunda estrofe, a canção assume um caráter

metadiscursivo, situando o contexto sócio-histórico de crescimento da influência da

língua inglesa no Brasil, no período da II Guerra Mundial:

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BYE, BYE MY BABY (Nelson Ferreira, 1944) Amor, eu vou-me embora Aí vem o teu papai Só te vejo amanhã My baby, bye bye! Atualmente só se fala o inglês Tudo está tão diferente Diferente pra chuchu É yes, kiss me okey Até eu só sei dizer I love you

A obra dialoga com outras composições, anteriores a esse período, que enfocam a

presença cada vez mais marcante da língua inglesa na vida brasileira. É o caso de duas

canções lançadas no ano de 1933 (Good bye16, marchinha de Assis Valente, com

gravação de Carmen Miranda; e Não tem tradução17, parceria de Noel Rosa, Ismael

Silva e Francisco Alves, gravada por este último) que têm o propósito comum de

empreender um gesto crítico em relação ao que muitos consideravam uma invasão

cultural, no contexto de propagação da música e do cinema norte-americanos. A canção

de Nelson Ferreira foi regravada, no início dos anos 1980, num momento em que se

reelabora o debate acerca da influência norte-americana na cultura brasileira, desta vez

pela popularização da disco music, no rádio a na televisão – curiosamente, a regravação

é feita pelo grupo vocal As Frenéticas, que alcançara grande sucesso exatamente com a

disco music, através da canção Dancing Days (Nelson Mota e Ruban Sabino) trilha

sonora de abertura da novela homônima exibida pela TV Globo entre 1978 e 1979. A

regravação está no disco Asas da América volume 2 (1981), produzido pelo compositor

Carlos Fernando.

2.1.3. Frevo-Canção, um gênero e alguma polêmica

O contexto sócio-histórico de aparecimento do Frevo, na segunda metade do século

XIX, será enfocado de maneira mais aprofundada no capítulo 4, que apresenta também

considerações acerca da configuração genérica do Frevo-Canção. O surgimento do

Frevo como fenômeno cultural no panorama das manifestações do Carnaval brasileiro

16 “Good bye, good bye boy / deixa a mania do inglês / […] / Não é mais boa noite, nem bom dia/ só se fala good morning, good night/ Já se desprezou o lampião de querosene/ lá no morro só se usa a luz da Light” (Good Bye, Assis Valente) 17 “Amor lá no morro é amor pra chuchu/ as rimas do samba não são I love you/ e esse negócio de alô/ alô boy, alô Johnny/ só pode ser conversa de telefone”

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dá-se, como veremos, num período de grandes transformações na sociedade, sobretudo

a partir da Abolição da escravatura. A identificação do gênero, pelo registro escrito em

discos e partituras, ocorre a partir dos anos de 1930, com a definição do Frevo-de-Rua

(instrumental), do Frevo-de-Bloco (ou marcha-de-bloco, característica dos blocos

mistos, com orquestras formadas basicamente por instrumentos de corda) e do Frevo-

Canção. Este se assemelha ao Frevo-de-Rua, pelo andamento acelerado e pela formação

orquestral similar, distinguindo-se pela presença do canto.

Mas a aposição de letras ao Frevo, que é a principal marca do Frevo-Canção, é

objeto de contestação. Duarte (1968), por exemplo, põe em dúvida a legitimidade

mesma do gênero, resumindo sua posição de modo lacônico: “Frevo não admite parte

cantada, letra.” (DUARTE 1968, p.66) Para ele, o Frevo-Canção seria uma distorção,

que “descaracterizou a autêntica e revolucionária música pernambucana”, sobretudo a

partir da interferência de “uns jornalistas e intelectuais que entenderam que frevo tinha

que apresentar uma letra, quando a música, pela sua própria natureza, não foi feita para

ter a parte de canto” (DUARTE 1968, p.58). A argumentação do autor baseia-se na

consideração de que o Frevo é música ligeira demais para comportar o canto. “Fazer

uma letra para um frevo seria obra de ficar na história” (DUARTE 1968, p.61), afirma

ele, apontando como origem do problema a instituição dos concursos de música

carnavalesca – primeiro pelos órgãos de imprensa, como o Diario de Pernambuco, e

depois pela Federação Carnavalesca de Pernambuco.

Ao que tudo indica, a opinião de Duarte reflete a posição crítica de outros

contestadores, anteriores a ele, já que, numa publicação trazida a público dezessete anos

antes, Ariano Suassuna (1951) então assinalava:

O frevo-canção tem sido detratado em Pernambuco como uma forma hibrida e não regional. Admitem somente estes detratores a forma orquestral do frevo. Este combate entretanto não tem razão de ser. Surgiu o frevo-canção da marcha e do dobrado, da mesma maneira que o orquestral; apenas o frevo-canção guardou daquela o canto, fato que não sucedeu com o outro. [...] Além disso, os primeiros frevos de que se tem notícia são cantados, o que bastaria para legitimar o frevo-canção [...]; mas é o próprio povo quem se encarrega de legitimá-lo, como sendo a forma popular de frevo que mais anima o carnaval (SUASSUNA 1951, p. 46)

A polêmica prossegue, com Duarte questionando a afirmação de Suassuna, na parte

final da citação acima - de que era o Frevo a música mais popular do carnaval. “A que

carnaval se refere, ao de rua ou ao dos salões?” (DUARTE 1968, p.67)

Compreendemos, então, que a discussão é embasada, da parte de Duarte, pela posição

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de rejeição à modernidade, conforme atestam suas palavras: “Tudo no Brasil, por mais

sério que seja, recebe as investidas dos inovadores, dos que acham que devem

modernizar, não percebendo que certas coisas não admitem essas alterações” (DUARTE

1968, p.67); mas que sua crítica é dirigida também às instâncias organizadoras do

Carnaval, responsáveis pela instituição dos concursos, como enfocaremos adiante.18 O

debate ainda situa, historicamente, o momento de crescimento da popularidade do

carnaval de salão, com um certo arrefecimento do carnaval de rua, evidenciado pelo

desaparecimento de algumas agremiações – questão que também será discutida no

capítulo 4.

Para Duarte (1968), a aposição de letra ao Frevo o faria transmutar-se em outro

gênero, a marchinha carioca: “Para transformar um frevo-canção em marcha, ou

marchinha, é bastante suprimir a introdução, substituindo-a por outra na feição carioca”

(DUARTE 1968, p.59), como fizera Ari Barroso, em 1932, ao apropriar-se da canção

Mulata, dos Irmãos Valença e, depois de alterar-lhe a letra e o título (para O Teu cabelo

não nega)19, lançá-la em seu nome apenas, com gravação do cantor Castro Barbosa

(com a indicação de que era adaptação sobre “motivo do Norte”). A questão ganhou

repercussão e é certamente um dos casos mais famosos de plágio na história da música

popular brasileira, levado às raias de justiça com ganho de causa pelos irmãos

compositores pernambucanos – a propósito da polêmica, Raul e Manoel Valença

compuseram o Frevo-Canção Mulata Imitada, lançado em 1979:

MULATA IMITADA (J. Raul Valença/ Manoel Valença, 1979) Mulata malvada Mulata danada Criada no norte E no sul imitada Mulata te encheram de fama e trama Pois quem primeiro te viu partiu

18 O autor aponta como problema dos concursos uma contradição principal: “De grande utilidade como incentivo, depois que alcançam essa finalidade, passam a desservir. As músicas, compostas especialmente para “ganhar o concurso”, perdem sua espontaneidade principalmente pela produção em massa que passam a ter. A ganância nos prêmios provoca discussões e brigas [...]” (DUARTE 1968, p.62) 19 A introdução é de Pixinguinha. A letra original da canção, “interessante mas de excessiva cor local”, como observa Alencar (1979, p.210) mantém um estilo semelhante ao de canções regionais levados ao sudeste por grupos como o Turunas da Mauricéia e Grupo de Caxangá (v. cap. 4): “Nestas terras do Brasil aqui/ não precisa mais prantá qui dá/ Feijão muito douto e giribita, muita mulata bonita/ O teu cabelo não nega , mulata/ que tu és mulata na cor/ mas como a cor não pega, mulata/ mulata, eu quero teu amor/ Me deste um curto-circuito, que bruito/ Que inté queimou-se os fusíveis, incríveis/ mulata nos teus dois quartos de fama/ passa a corrente da “Trama”/ Mulata tu não morre de fome, qui os home/ te dão sapato dos sarto bem arto/ pra tu arremexer no gereré/ nas chama dos coroné/ [...]” (in ALENCAR 1979, p.211)

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Partiu alucinado, enfeitiçado por ti Mulata igual nunca vi Mulata malvada Mulata danada Criada no norte E no sul imitada Mulata és carnavalença, Valença Grandeza nacional, sem igual Levada ao tribunal E o mundo inteiro cantou Rainha do carnaval

A observação feita acima, por Duarte (1968), de que seria bastante alterar a

introdução para transformar-se o gênero, de frevo para marchinha, não se revela

consistente. Essa conclusão é baseada, sobretudo, nas considerações feitas por

diferentes autores acerca das distinções entre um e outro gênero.

Enfocando especificamente a marchinha, Tatit (2007) assinala que ela dividia espaço

com o samba carnavalesco no gosto popular do público do Rio de Janeiro, mas ainda

assim conseguia conquistar maior preferência, sobretudo nos salões dos bailes de

carnaval. Segundo o autor, as marchinhas

eram velozes e, ao mesmo tempo, concentradíssimas: só refrão e segunda parte. Próprias para o cordão dos foliões que, sob sua inspiração, seguiam em fila até os limites do salão e voltavam ao ponto inicial, quando não giravam em círculos propondo brincadeiras em torno de um centro. (TATIT 2007, p. 200)

Essa análise dessa dinâmica do baile de carnaval, com a movimentação das pessoas

no salão, corresponde à própria definição do percurso da marchinha: “a marchinha é

uma forma musical que não vai a lugar nenhum. [...] Só conhece um caminho, que é o

caminho de volta. Refrão, refrão e mais refrão.” (TATIT 207, p.200). A descrição

inicial da marchinha, mencionando a velocidade do andamento, bem como a sua

vinculação aos salões dos clubes sociais, podem suscitar a imediata comparação com o

Frevo-Canção, considerando que em dado momento de sua evolução o frevo ocupará

também esse espaço. Não é, entretanto, o que assinala Valdemar de Oliveira (1985),

quando compara os dois gêneros, apontando duas principais características que os

diferenciam, muito embora admita a semelhança estrutural, com introdução

instrumental e parte cantada:

Primeira: a parte introdutória tem todas as características do frevo autenticamente pernambucano, rasgado, desabrido, furioso. Depois, ameniza,

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abrindo passagem ao canto. Segunda: o andamento da marchinha carioca é moderado: o do frevo-canção, bem mais vivo. (OLIVEIRA 1985, p. 36)

Enfocando a marchinha, Tatit (2007) ressalta a ideia de concentração, que se traduz

numa estrutura composicional mínima, formada por “refrão e segunda parte”.

Entretanto, se a observação mais atenta sobre a produção do Frevo-Canção, ao longo do

período enfocado neste trabalho, de fato revela uma regularidade com base nesse

esquema mínimo, muitos exemplos se destacam pela maior elaboração, extrapolando-o

para acrescentar, pelo menos, uma terceira parte da canção. É o caso, dentre outros,

deste Frevo de Luiz Bandeira:

NOVAMENTE (Luiz Bandeira, 1967) Meu Recife, Voltei novamente Alegre e contente Revendo o meu povo de novo Andei maluco batendo cabeça Pelo mundo afora Até parece mentira O que ouço agora, Pelo som só pode ser Vassoura Que vem rasgando um frevo Fazendo a gente vibrar Com licença vou fazer meu passo Estou meio fora de forma Vocês vão me desculpar... Vou fazer serenata em Casa Amarela Quero ver chegar à janela Uma bela morena de lá Vou lembrar ao Capiba, Carnera e Nelson Ferreira Que o frevo é nossa bandeira Não vamos deixar ninguém rasgar...

Outro exemplo é o Frevo nº 2 do Recife, de Antônio Maria, lançado em 1954:

FREVO Nº 2 DO RECIFE (Antônio Maria, 1954) Ai que saudade tenho do meu Recife Da minha gente que ficou por lá Quando eu pensava, chorava, falava Contava vantagem, marcava viagem Mas não resolvia se ia Vou-me embora Vou-me embora Vou-me embora Pra lá Mas tem que ser depressa

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Tem que ser pra já Eu quero sem demora O que ficou por lá Vou ver a Rua Nova, Imperatriz, Imperador Vou ver, se possível Meu amor.

Artistas cuja obra se desenvolve num período mais recente, a partir da década de

1980, também se destacam por uma produção que foge ao esquema típico de refrão e

primeira parte, como é o caso de boa parte das canções de Carlos Fernando, J. Michiles,

Bráulio de Castro, dentre outros.

Esclarecedoras, também, são as considerações de Sandroni (2011) a respeito das

peculiaridades do Frevo-Canção em relação a outros gêneros. A primeira observação é a

que o Frevo-Canção tem clara identidade genérica com o Frevo-de-Rua, que é

puramente instrumental. O autor assinala que a instrumentação do Frevo-Canção é

basicamente a mesma do Frevo-de-Rua, com a parte introdutória em geral obedecendo

às mesmas características gerais da configuração melódica do Frevo-de-Rua. Embora

saliente que o Frevo-Canção não é, simplesmente, o Frevo instrumental ao qual se

adicionou uma letra, como acontece com alguns choros cantados, Sandroni observa que,

dentre outras peculiaridades, os “saltos melódicos repetidos” e os “frequentes diálogos

entre naipes são alguns traços típicos” (SANDRONI 2011, p.44) tanto do Frevo-de-Rua,

instrumental, como do Frevo-Canção. E complementa:

Mesmo uma melodia como Vassourinhas, que originalmente era cantada e que, em si, não tem nada de especificamente instrumental, em sua versão consagrada pelas orquestras de frevo é tocada em forma dialogal, incorporando a diferença timbrística entre trompetes e saxofones. (SANDRONI 2011, p. 44)

As questões discutidas acima dizem respeito a uma tentativa de identificação de

alguns traços formais do gênero, que, evidentemente, são suscetíveis a mudanças, ao

longo de sua evolução. Para manter uma coerência teórica e metodológica, em relação

aos postulados bakhtinianos acerca da definição de gêneros do discurso, é preciso

considerar também os aspectos pertinentes à sua inserção sociocultural, para identificar

a esfera de atividade em que se dá a produção, a circulação e a recepção do gênero. Só

assim, então, será possível a compreensão mais clara dos enunciados elaborados nas

canções e sua relação dialógica com outros enunciados, demarcadores de outros

posicionamentos no campo do discurso literomusical brasileiro.

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Em linhas gerais, e ainda retomando as considerações de Sandroni (2011), o Frevo-

Canção, hoje, não está vinculado diretamente a um tipo de agremiação carnavalesca

específico. As primeiras ocorrências do Frevo cantado dão-se espontaneamente, ainda

no século XIX, através de versos improvisados pela população que acompanhava a

apresentação das bandas militares na rua, como veremos co Capítulo 3. Ao longo da sua

evolução, até o presente, o Frevo-Canção – assim como o Frevo-de-Rua - é o gênero

dos clubes e troças, que saem em desfile pelas ruas, de forma espontânea – sem contar

com incentivo financeiro institucional ou subvenção pública para custear suas despesas

–, ou que são filiados à Federação Carnavalesca de Pernambuco; ou ainda que recebem

algum apoio das instâncias públicas de organização do Carnaval, como as secretarias e

fundações de cultura. É também o gênero predominante em agremiações conhecidas

como “blocos de trio”, ou seja, cuja animação musical é feita por um grupo musical que

utiliza trios elétricos, ainda que esse tipo de agremiação tenha, de modo geral, uma

seleção de repertório bastante eclética, incluindo músicas não carnavalescas.

Sandroni (2011) observa, por fim, que o Frevo-Canção é “o que tem maior interface

com o mundo do espetáculo profissional e da indústria fonográfica”, destacando, por

exemplo, Frevos produzidos por artistas não pernambucanos, a exemplo de Edu Lobo,

Geraldo Vandré, Egberto Gismonti e Tom Jobim, cuja obra é vinculada a outros

gêneros; e também Caetano Veloso e Moraes Moreira, conhecidos por produzirem

Frevos conhecidos como frevos baianos. O autor analisa, então, que essas obras são

“frevos-canção, no sentido de serem canções populares para consumo amplo em rádios,

discos, espetáculos, e agora em CDs, DVDs e internet.” (SANDRONI, 2011, p. 41)

Voltando ao polêmico debate entre Ariano Suassuna e Ruy Duarte, acima enfocado,

acerca da legitimidade do Frevo-Canção, transcrevemos as considerações de Capiba,

publicadas na contracapa de um disco lançado em 1959, quando o artista completava 25

anos de carreira. Por essa razão mesma, o texto é investido de certa autoridade que lhe

confere a condição de artista criador, cuja especialidade maior era justamente o gênero

em disputa: o Frevo-Canção. Apesar de longa, a citação é esclarecedora:

Para falar no atual frevo canção, teria que rememorar a velha MARCHA PERNAMBUCANA. Seria contar um pouco da história de frevo e, ao mesmo tempo, contrariar algumas opiniões apressadas sobre a marcha pernambucana; desmentir algumas teorias de gabinete; reabilitar, enfim, essa música tida por alguns como bastarda. Teria que provar, pelo que se tem escrito e por testemunho de elementos que viveram desde fins do século passado até os dias atuais, que a marcha pernambucana, chamada hoje de

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frevo-canção, tem suas raízes plantadas nos primórdios deste famoso carnaval pernambucano. [...] E por que marcha pernambucana? Porque ela se diferençava da marcha universal pela sua introdução já sincopada, por aqueles tempos iniciais do carnaval de Pernambuco. [...] Era um novo gênero que surgia do sangue do povo, como um grito de libertação, ditado pelo prazer de se divertir, de esconder suas mágoas ao som das canções puxadas por trombones, pistons, clarinetas e demais instrumentos usados para animar os cordões dos clubes. [...] Que o chamado frevo-canção de nossos dias sempre existiu, ninguém de boa fé poderá negar sem negar a própria existência do nosso carnaval. Seria o mesmo que dizer que a marcha puramente instrumental, hoje conhecida unicamente pela palavra FREVO e que data do princípio do século atual, não existe. Seria negar que a palavra FREVO, introduzida em nosso carnaval há uns 50 anos, mais ou menos, não é uma corrutela de ferver, fervura etc. (CAPIBA 1959, contracapa do LP Capiba 25 Anos de Frevo, Rozenblit disco nº40039)

2.1.4. Aspectos de inter-relação genérica: canção e crônica

“[...] encher o filtro com batida de limão em dia de feijoada; ser apresentado a um rio famoso; [...] flores; frevo; escola de samba; aquarela de criança;”

(PAULO MENDES CAMPOS, Coisas Deleitáveis)

Nos estudos sobre gêneros, hoje, observa-se um predomínio das abordagens que

enfocam os seus propósitos comunicativos, nas diferentes esferas da comunicação,

mais do que as regularidades formais que definem a sua estrutura. Dada a definição

bakhtiniana de gêneros como “tipos relativamente estáveis de enunciados”, a sua

dinamicidade e flexibilidade, características de seu componente fundamental, a

linguagem, é o que tem atraído mais o olhar analítico: “hoje, a tendência é observar os

gêneros pelo seu lado dinâmico, processual, social, interativo, cognitivo, evitando a

classificação e a postura estrutural.” (MARCUSCHI, 2005, p.18). Isso não significa,

porém, desprezar por completo os aspectos estruturais dos gêneros.

Se, por um lado, convivemos em sociedade com um número de gêneros marcados

pelo alto grau de padronização, definidos por uma certa regularidade formal, por outro

lado, a diversificação das atividades comunicativas, a ampliação das possibilidades de

interação determinam a emergência de uma enorme variedade de novos gêneros, muitos

dos quais relacionados às novas formas de tecnologia. Nesse cenário, deparamo-nos

com o desafio crescente de investigar a complexa relação entre os gêneros, as práticas

sociais e as relações discursivas no interior da cultura.

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Um importante aspecto da observação e análise dos gêneros, nesta perspectiva, é a

relação intergenérica que se estabelece entre os gêneros primários e os gêneros

secundários, conforme as postulações de Bakhtin (2000), apresentadas acima. Além

disso, em diversas instâncias da atividade sociocultural, as práticas discursivas têm sido

cada vez mais reconhecidas pelo fenômeno do hibridismo, como se tem observado, por

exemplo, na literatura. De acordo com Goicochea (2007):

Assistimos a um proceso de configuración de ‘escenarios de hibridización’ en los que la circulación entre culturas (popular, alta, de masas) proyecta los gêneros literário em gêneros culturales, lo que impacta sobre la literatura ampliando sus fronteras. En este contexto, es necesario explicitar [...] que la preocupación por el gênero se sustenta en la idea de que estamos ante prácticas culturales de alta densidade simbólica caracterizadas fundamentalmente por la hibridización.... (GOICOCHEA, 2007, p.328)

A hibridização também está na base dos estudos sobre as relações entre a oralidade e

a escrita, enriquecendo, por exemplo, a compreensão das práticas de letramento, no

ensino de línguas. Nesse sentido, Marcuschi (2007) ressalta a importância do fenômeno

para a superação de uma visão dicotômica entre a oralidade e a escrita “ainda presente

em muitos manuais de ensino de língua.” (MARCUSCHI 2007, p.21)

No âmbito do discurso literomusical, igualmente, verifica-se o fenômeno da

hibridização, na própria definição do gênero canção, como uma marca distintiva de

heterogeneidade, num espaço definido pela pluralidade de formas musicais e propostas

estéticas. Trabalhando na perspectiva teórica da Análise do Discurso, Costa (2001)

aborda essa heterogeneidade a partir da noção de posicionamento, desenvolvida por

Maingueneau (1997, 2001, 2005, 2006, 2008a). Na descrição dos posicionamentos,

caracterizados por agrupamentos de artistas sob diferentes critérios de aproximação (por

exemplo, movimentos estéticos-ideológicos, identidade regional, identidade genérica

etc.), Costa (2001) analisa a produção de canções a partir da elaboração de uma cena

enunciativa, que é definida pela diversidade de cenografias. A canção pode, então,

assumir a forma de uma conversa cotidiana, de uma carta, de uma oração etc.

Em nossa tarefa de identificar o posicionamento do Frevo no campo do discurso

literomusical brasileiro, propomos a análise de canções que se constituem, no tocante à

sua abordagem temática e, sobretudo, aos seus propósitos comunicativos, por um certo

grau de hibridismo, definido pela aproximação com o gênero da crônica. Em geral, são

obras que se organizam discursivamente como pequenas narrativas sobre fatos e

personagens históricos, sobre a vida social, costumes, usos linguísticos da população

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etc. Compreendemos aí um aspecto da inserção do Frevo no campo do discurso

literomusical, contribuindo para a sua identificação em relação a outros dizeres

elaborados nesse espaço de trocas. Trata-se, na verdade, de um traço peculiar à música

popular brasileira, facilmente identificado ao longo de sua história, como observa Tatit:

“A prática musical brasileira sempre esteve associada à mobilização melódica e rítmica

de palavras, frases e pequenas narrativas ou cenas cotidianas.” (TATIT 2004, p.69)

Sem desconsiderar a complexidade intrínseca de cada gênero, com suas formas

peculiares de hibridização, nossa proposta de aproximação resume-se a um aspecto

comum, se considerarmos os propósitos comunicativos de cada um: por um lado, na

canção o artista pode “traduzir os conteúdos humanos relevantes em pequenas peças

formadas por melodia e letra” (TATIT 2004, p.11), ou, com o redimensionamento da

fala, na voz cantada e registrada em disco, “falar dos mesmos assuntos do dia-a-dia,

com uma única diferença: as coisas ditas poderiam ser reditas quase do mesmo jeito e

até conservadas para a posteridade.” (TATIT, 2004, p. 70); por outro lado, na crônica, o

artista da palavra pode falar das questões relativas ao seu tempo, em “textos feitos para

o momento e que, pela qualidade, vão ficar para sempre” (SANTOS, 2007, p.15)

A propósito da definição do gênero, Matos (2007) observa que, na etimologia grega,

a crônica está associada à ideia de tempo (chrónos) e, “em acepções que remontam à

Idade Média, sua função equipara-se à história, designando a compilação de fatos

cronologicamente” (MATOS 2007, p.13). Já a partir do século XIX, e por influência da

imprensa francesa, nasce no Brasil o folhetim20, gênero consagrado no jornal como

espaço de periodicidade semanal, para o relato dos fatos da semana. Aos poucos, com a

tarefa sendo assumida por figuras como Manuel Antonio de Almeida, Joaquim Manuel

de Macedo, José de Alencar e Machado de Assis, o folhetim foi ganhando uma

configuração de romance, publicado em capítulos. Matos (2007) esclarece, ainda, que o

folhetim e a crônica eram muitas vezes escritos pelos mesmos autores, ocupavam o

mesmo espaço no jornal e versavam sobre os mesmos temas – em geral, a sociedade

contemporânea.

Entretanto, são dois gêneros distintos, que em certo momento receberam o mesmo

nome, pelo fato de ocuparem o mesmo espaço no jornal, conforme esclarece Matos

(2007), acrescentando: “O folhetim era um produto ficcional [...], imaginativo,

20 Com características semelhantes ao feuilleton (artigo de literatura, ciências, crítica, que aparece com regularidae num jornal), conforme explica Faria (2004, p.XVII), retomando a definição do dicionário Petit Robert.

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construído dentro da estrutura narrativa do romance”, enquanto “a crônica cumpria uma

função bastante diversa do folhetim: era informativa, imediata e efêmera.” (MATOS

2007, p. 17).

Um importante aspecto da identidade genérica da crônica é o seu caráter híbrido,

definido muitas vezes como um espaço impreciso entre o jornalismo e a literatura.

Aimeé (2008) resume assim a questão:

A crônica é um gênero de considerável complexidade e hibridismo.[...] Mais poéticas ou mais bem humoradas, mais sensíveis ou mais debochadas, a vasta gama de possibilidades da crônica indica sua complexidade, seus limites imprecisos, as largas opções de desenvolvimento.(AIMÉE 2008, p. 5)

Abordando a mesma questão, Santos (2007) ressalta as aproximações com gêneros

vizinhos, como a prosa poética e o conto, concluindo: “Definitivamente, e eis uma de

suas graças, ela dialoga sem preconceitos com tudo que lhe vai ao redor” (SANTOS

2007, p.21). Incluímos aí, na perspectiva dialógica que norteia este trabalho, a canção

como gênero vizinho à crônica, aproximando-os por algumas peculiaridades comuns,

sobretudo a sua inserção na vida cotidiana e a sua larga disseminação na sociedade. É

interessante que, para destacar a relevância cultural da crônica entre os gêneros da

escrita, no Brasil, Santos (2007) o faça exatamente através de uma citação de Noel

Rosa, retirada da canção Coisas Nossas21: “Temos o samba, a prontidão e podemos

colocar a crônica entre o que Noel listou como outras bossas.” (SANTOS 2007, p.15)

O pequeno número de Frevos que incluímos a seguir exemplifica, na prática

discursiva da canção popular brasileira, a materialização de enunciados que dialogam

sobre diferentes problemas e inquietações humanas, sobre temas de alcance mundial,

como a Segunda Guerra e a Guerra Fria, e sua repercussão nas relações sociais. As três

primeiras canções listadas abaixo abordam o fim da guerra, com a derrocada dos

alemães e a tomada de Berlim. O tom geral, de exaltação à vitória dos aliados, é

pontuado pela ironia dirigida aos representantes do Eixo: Hitler é “Seu Fritz”, do

“bigodinho”, o “valentão” que afinal caiu. Hiroito “perdeu o passo” e Mussolini “de

fantoche está servindo”.

O tratamento jocoso em geral dado, na canção carnavalesca, a qualquer assunto -

mesmo um assunto tão sério como a guerra - ajuda a compreender a noção de

21 Samba gravado em 1932, pelo próprio Noel Rosa (disco Columbia 78rpm nº 22.089ª): “Queria ser pandeiro /pra sentir o dia inteiro/ a tua mão na minha pele a batucar/ saudade do violão e da palhoça/ coisa nossa, coisa nossa/ O samba, a prontidão e outras bossas/ são nossas coisas/ são coisas nossas/ [...] Baleiro, jornaleiro/ motorneiro/ condutor e passageiro/ prestamista e vigarista/ e o bonde que parece uma carroça/ coisa nossa, muito nossa

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cenografia, tal como proposta por Maingueneau (2001, 2006). A cenografia é a cena de

fala que instaura a enunciação, através da qual a obra cega ao leitor/ouvinte, com a

definição do enunciador, do co-enunciador, de uma cronografia e de uma topografia.

Afastando a ideia de uma simples mensagem, que poderia ser transmitida de diversas

formas, a cenografia é “tanto condição como produto da obra” (MAINGUENEAU

2006, 252), ao mesmo tempo está na obra e a constitui, ou seja, a cenografia, longe de

ser entendida como simples “procedimento” é, sim, “um dispositivo que permite

articular a obra sobre aquilo de que ela surge: a vida do escritor [compositor], a

sociedade.” (MAINGUENEAU 2001, p.134). Aparecendo, então, no contexto do

Carnaval, as obras assumem esse tom específico de irreverência, próprio da esfera

sociocultural em que o gênero circula.

A primeira canção, de 1943, celebra a derrota alemã no Mediterrâneo, com a invasão

da Itália por americanos e britânicos. O discurso nacionalista e ufanista, largamente

disseminado sob controle estatal no Estado Novo, aparece na terceira canção abaixo, em

que “o grande Vargas” alia-se ao Tio Sam e seu correspondente britânico, John Bull

CAI-CAI (Marambá 1943) Cai, cai, valentão Assim não vai não À procura da vitória O Seu Fritz padeceu Foi à França, foi à Grécia, Foi até ao Mar Egeu Mas Seu Fritz não tem sorte E por isso agora vai Descansar na geladeira Vai, vai, vai, vai Cai, cai, valentão Assim não vai não QUÉ MATÁ PAPAI, OIÃO? (Nelson Ferreira/ Sebastião Lopes, 1945) E foi assim, e foi assim Que preparam a invasão de Berlim Começou na Sicília, a história diz Entraram em Roma e depois Paris Seu Bigodinho, isso é que é façanha! Com mais um salto nós entramos na Alemanha Fazendo meu passo com satisfação E tratando de acabar coma goga do alemão Qué matá papai, oião?

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QUEBROU-SE A MOLA DO EIXO (Nelson Ferreira e Sebastião Lopes, 1945) SEM GRAVAÇÃO (fonte: OLIVEIRA, W. 1985, p.268) Nações unidas Marquem firme o compasso Que o Hiroito já perdeu o passo É dente ou beiço É língua ou queixo Ai, seu Adolfo Quebrou-se a mola do eixo Ai, ai , ai seu Adolfo Quebrou-se a mola do eixo Lá na Europa O bigodinho está sumindo E o Benito de fantoche Está servindo Mas Tio Sam, John Bull E o grande Vargas Acertaram uma escrita Pra acabar de uma vez Com a salsicha do alemão E o arroz do japonês.

A crônica da guerra é feita em canções carnavalescas de outros gêneros, como o

samba e a marcha. Entre os sucessos do carnaval de 1943, no Rio de Janeiro, incluem-

se, por exemplo, Adolfito Mata-Moros22 (João de Barro e Alberto Ribeiro) e Que passo

é esse, Adolfo?, de Haroldo Lobo e Roberto Roberti23. A respeito de Ruas do Japão,

marchinha de Haroldo Lobo e Cristovam de Alencar, gravada em 1944, Alencar (1979)

destaca o seguinte: “o brutal ataque à base naval norte-americana de Pearl Harbor

indispusera o nosso povo com os japoneses, antes admirados [...] pela colaboração que

nos davam através da numerosa colônia sediada em São Paulo”. A canção dizia: “Nas

ruas do Japão/ não há mão nem contramão/ lanterna de papel é lampião/ suicídio lá se

chama harakiri/ Aquilo é um verdadeiro abacaxi.”

O desenvolvimento da Guerra Fria, a partir dos anos 1950, com a polarização das

forças políticas internacionais entre Estados Unidos e União Soviética repercute, por

exemplo, na corrida espacial enfocada, em suas diversas etapas, na produção discursiva

da canção, na década de 1960. À velocidade dos foguetes é associada a rapidez da

transformação dos costumes:

22 “Adolfito bigodinho era um toureiro/ que dizia que vencia o mundo inteiro/ [...] /E agora o Adolfito caracoles/ Soprado pelos foles/ perdeu o seu cartaz” 23 “Que passo é esse, Adolfo/ que dói a sola do pé/ [...] Mas a dança não pegou, ô/ Ô Adolfo,a cigana te enganou/ ô ô ô/ sai pra outra que a turma não gostou”

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MENINA DE HOJE (Manuel Gilberto, 1960) Menina de hoje não quer fantasia só vai à escola pra fazer folia a vida pra ela é sempre carnaval e ainda acha que isso é muito natural de calça comprida, cigarro e boné já fez seu programa, vou dizer o que é dar o braço ao seu playboy, entrar no Lunik ir lá detrás da lua fazer piquenique

AMOR DE HOJE (Carnera, 1962) Amor de hoje, Amor espacial... Passa veloz como um foguete, É amor de carnaval... Primeiro dia, aperto de mão... Segundo dia, abraço apertado Terceiro dia, um beijo no escuro... Quarta-feira, tudo terminado... (Tá, como é que é!)

A diversidade de cenografias revela a habilidade dos compositores para articular, no

ato criativo, a sua voz ao contexto social em que está situada a sua obra. Na cena

enunciativa da canção, torna-se possível, então, o diálogo entre Yuri Gagarin e a lua, a

respeito dos atrativos do nosso Carnaval, apresentado a partir de uma topografia

validada (o Brasil, Olinda). No caso da canção de Capiba, o título já anuncia a

elaboração de uma cenografia baseada na contagem regressiva, tal como nos

lançamentos de foguete transmitidos pela televisão para o mundo inteiro. Na canção, a

contagem anuncia a preparação para o folião entrar no Frevo.

A LUA DISSE (Gildo Branco, 1962) Gagarin subiu, subiu, subiu Foi até ao espaço sideral Chegou perto da lua e sorriu Vou embora pro Brasil Que o negócio é carnaval A lua disse ‘não vá, demore mais Já ouvi que lá na Terra querem me passar pra trás’ Mas o Gagá nada ligou e deu no pé Vou mesmo pro Brasil Eu quero é conhecer Pelé HINO DE CEROULA (Milton Bezerra de Alencar, 1969) Eu vou este ano à lua Não é privilégio

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Foguete já tem Eu quero ver se o carnaval de rua Collin, Aldrin, Armstrong Falam que vai bem Eu quero ver se tem troça que escolha Como em Olinda, que tem a Ceroula Mas se tiver, para mim é legal Passarei lá na lua todo o carnaval

5 – 4 – 3 – 2 – 1 – FREVO (Capiba, 1970) Estão me convidando Para eu ir dançar Numa festa ao luar Eu sei que nessa festa não se dança o frevo O que vou fazer lá? Sair daqui não posso Isso eu nem me atrevo Vai começar A contagem regressiva Para entrar o frevo 5 – 4 – 3 – 2 – 1 – Frevo!

Esse aspecto da produção discursiva do Frevo, caracterizado pela abordagem de

assuntos do dia-a-dia, tal como a crônica nas páginas dos jornais, é observado com

maior destaque sobretudo a partir dos anos de 1950, com a abertura de um espaço

privilegiado de divulgação, a gravadora Rozenblit, instalada no Recife em 1954. Na

aproximação que fazemos entre os dois gêneros, a canção e a crônica, reiteramos a

compreensão dos gêneros do discurso tal como concebido por Brait (2005), a respeito

da posição de Bakhtin. Para a autora, os gêneros discursivos devem ser vistos em suas

finalidades comunicativas e expressivas [...] como manifestações da cultura. Nesse sentido, não é espécie nem tampouco modalidade de composição; é dispositivo de organização, de troca, divulgação, armazenamento, transmissão e, sobretudo, de criação de mensagens em contextos culturais específicos. (BRAIT 2005, p.158)

Muitos outros exemplos se incluem nessa perspectiva. A seleção do corpus de

pesquisa revelou significativo número de canções que se enquadram aí, pela variedade

de temas elaborados criativamente. Alguns compositores, como Sebastião Lopes,

revelam particular interesse e habilidade em construir canções com o material

linguístico que circulava à sua época, evidenciando a relação intergenérica definida por

Bakhtin (2000), acima. A fala espontânea surge na elaboração das canções de Sebastião

Lopes, trazendo a voz coloquial, circulante nas ruas, através de expressões e ditados

populares, que dão título a algumas de suas obras. É assim com É peia, seu doutô!

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(Sebastião Lopes e Inaldo Vilarim, 1952), É rim! (1957), Qual é o pó? (1959), Mesmo

que queijo (1961), Está pra nós (Nelson Ferreira e Sebastião Lopes, 1962), Olha o

dedinho! (1963), entre outras.

A escuta e a análise dessas canções permitem-nos, enfim, ressaltar a dimensão

dialógica da produção discursiva do Frevo-Canção. Considerando o caráter híbrido dos

dois gêneros colocados aqui numa relação de aproximação, a partir de algumas traços

peculiares a cada um, reiteramos as considerações e Brait (2005) sobre a validade da

concepção bakhtiniana de língua, que enfatiza a emergência e a circulação dos gêneros

como fenômeno sociocultural de grande importância para a compreensão da produção

discursiva nas diversas esferas de atuação humana. Conforme a autora, “o dialogismo,

ao valorizar o estudo dos gêneros, descobriu um excelente recurso para ‘radiografar’ o

hibidrismo, a heteroglossia e a pluralidade de sistemas de signos da cultura” (p. 153). A

observação põe em destaque a emergência das vozes que se constituem socialmente

através dos gêneros, ao longo do tempo ajudando a moldar, dialogicamente, os traços

distintivos de uma dada cultura, como se verifica com o Frevo, no campo do discurso

literomusical brasileiro.

2.2. A Análise do Discurso

Nos muitos trabalhos introdutórios sobre a Análise do Discurso (AD), nos últimos

anos, seja numa perspectiva histórica, seja numa perspectiva de revisão teórica, quase

sempre se apresentam dificuldades de delimitação e categorização dos estudos

empreendidos na área. Em geral, argumenta-se que essas dificuldades decorrem do

crescimento do interesse de estudiosos no mundo inteiro, fazendo ampliar-se o escopo

da AD, cujo estatuto de inter (ou multi-) disciplinaridade, ao mesmo tempo que lhe

confere valor, pela riqueza de possibilidades de abordagens nas ciências sociais,

configura-se também como um dado complicador, pela falta de unidade apontada por

muitos.

De fato, o percurso da AD nos últimos anos tem sido marcado pela ampliação de seu

alcance analítico, com a reformulação e o refinamento de alguns de seus postulados.

Esse caminho é também definido pela abordagem de novos corpora, possibilitando a

emergência de novos diálogos – com os estudos em comunicação, ou no domínio das

manifestações culturais e artísticas, para mencionar apenas alguns.

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Relativamente recentes, por exemplo, são as abordagens do campo de estudos do

discurso literomusical brasileiro, no qual inserimos este trabalho. De modo geral, trata-

se de um empreendimento de leitura que busca compreender as configurações de

sentido da canção popular, desenvolvendo-se em grande parte sobre bases teóricas

elaboradas a partir das contribuições de Dominique Maingueneau (1997, 2001, 2005,

2008, 2008a, 2008b, 2008c), eminente analista de discurso francês. Apresentamos, a

seguir, um breve resumo do percurso da AD, com ênfase na obra desse autor, a fim de

definir alguns aspectos centrais do discurso literomusical, incorporando a abordagem de

Costa (2001, 2007, 2007a, 2009), autor que se tem destacado pelo trabalho na área.

De início, é importante salientar que o contexto de surgimento da AD é marcado por

uma redefinição do enfoque estruturalista adotado na pesquisa linguística, até meados

do século XX. A partir daí, começam a se desenhar os contornos da nova área de

estudos, com o estabelecimento de algumas posições teóricas fundamentais, muito

sucintamente resumidas a seguir:

1. A AD nasce numa perspectiva de superação da dicotomia saussureana langue x

parole, com o foco das atenções voltado para a linguagem em diferentes

contextos de uso, ou seja, a linguagem concebida em sua dimensão

sociodiscursiva;

2. A AD nasce da necessidade de empreenderem-se análises linguísticas que deem

conta de sua dimensão ideológica, extrapolando os limites de uma linguística

imanente, centrada no próprio código linguístico, e superando uma visão de

língua de caráter representacionista ou enquanto mero instrumento de

comunicação. A AD funda-se, portanto, na noção de linguagem enquanto

discurso, ou seja, como um modo de produção de sentidos a partir da interação

humana, concebendo-se a língua em sua dimensão sociocultural e histórica.

Explicando as diferenças básicas entre as duas perspectivas, para aprofundar o

esclarecimento da noção de discurso, Charaudeau (2006) enfatiza:

A língua é voltada para sua própria organização [...]. Descrever a língua é, de um modo ou de outro, descrever regras de conformidade, a serem repertoriadas em gramáticas e dicionários. Já o discurso está sempre voltado para outra coisa além das regras de uso da língua. Resulta da combinação das circunstâncias em que se fala ou escreve (a identidade daquele que fala e daquele a quem se dirige, a relação de intencionalidade que os liga e as condições físicas da troca) com a maneira pela qual se fala. É, pois, a imbricação das condições extradiscursivas e das realizações intradiscursivas que produz sentido. (CHARAUDEAU 2006, p. 40)

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Portanto, o objeto da AD não é propriamente a língua, mas a atividade de construção

de sentidos elaborada a partir das relações sociodiscursivas por ela engendradas,

necessariamente situadas numa dimensão extralinguística, o que permite chegarmos,

com Faraco (2009) à conclusão de que “de todas as disciplinas contemporâneas, é a

análise do discurso aquela da qual mais diretamente se aproximaria o projeto de uma

translinguística” (FARACO 2009, p.117), tal como desenvolvida por Bakhtin, conforme

já abordado.

Uma ideia fundamental para a compreensão dos postulados da AD é, portanto, a

superação de uma visão imanentista e representacionista de língua, assim como de uma

concepção de língua enquanto mero instrumento de comunicação, posições que

dominaram o cenário da Linguística até a metade do século XX. Sintetizando a questão,

Marcuschi (2001) lembra que

a língua é algo muito mais fundamental que um simples instrumento de comunicação e informação e não pode ser vista apenas no seu aspecto formal. Parece incontornável [...] a noção de língua como trabalho ou atividade e como fenômeno sócio-histórico de modo que os sentidos são sempre produzidos na convergência de fatores mais complexos do que uma relação biunívoca entre linguagem e mundo ou relações formais (MARCUSCHI 2001, p.4, grifos do autor)

2.2.1. AD Francesa

Na década de 1960, emerge a corrente que passou a ser denominada escola francesa

de Análise do Discurso, e que nasce, de acordo com Maingueneau (1997), sob a égide

do estruturalismo, numa conjuntura intelectual marcada pela reflexão sobre a

“escritura”, que articulava “a lingüística, o marxismo e a psicanálise”

(MAINGUENEAU 1997, p.10). O autor argumenta ainda que o surgimento da AD na

França e seu desenvolvimento posterior estão vinculados a uma prática escolar, a da

“explicação de textos”, “presente sob múltiplas formas em todo o aparelho de ensino, da

escola à Universidade” (1997, p.10), estando aí uma das explicações para o sucesso da

AD naquele país.

Em linhas gerais, questiona-se uma visão idealista de sujeito, como origem

enunciadora do seu discurso. Ou seja, o sujeito é na verdade atravessado pela ideologia.

O discurso é concebido, então, como

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uma máquina autodeterminada e fechada sobre si mesma, de tal modo que um sujeito-estrutura determina os sujeitos como produtores de seus discursos; os sujeitos acreditam que ‘utilizam’ seus discursos quando na verdade são seus ‘servos’ assujeitados, seus ‘suportes’ (PÊCHEUX 1990, p. 311)

Em termos metodológicos, propõe-se a análise automática do discurso, pela qual

se busca a interpretação dos efeitos de sentido do discurso a partir da constituição de um

corpus fechado, pertencente a uma determinada formação discursiva. De início, então, a

AD se debruça, basicamente, sobre discursos doutrinários, sobretudo o discurso político

das forças atuantes na sociedade da época, recolhido em manifestos, em documentos de

partidos ou na mídia. Segundo Costa (2005), a proposta baseia-se na

construção de um dispositivo capaz de produzir a leitura automática de um conjunto de discursos previamente selecionados e organizados segundo critérios que garantissem homogeneidade e estabilidade em termos de circunstâncias históricas e sociais de produção, numa palavra, em termos de condições de produção A esse corpus convencionou-se chamar de arquivo. (COSTA 2005, p. 17)

A noção de formação discursiva foi concebida por Foucault (em Arqueologia do

Saber, escrito em 1969) como possibilidade de descrição dos “sistemas de dispersão”

pelos quais se elabora a construção do conhecimento histórico. Uma formação

discursiva poderia ser identificada então como um conjunto de enunciados associado a

um mesmo sistema de regras historicamente determinadas, “no caso em que entre os

objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se poderia definir

uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,

transformações)” (FOUCAULT 1972, p. 51)

O conceito é reformulado por Pêcheux e integrado à AD, na perspectiva teórica do

marxismo althusseriano, segundo a qual toda formação social implica uma formação

ideológica, operando nas diversas instâncias de poder e controle social do Estado, com

posições políticas e ideológicas agindo sobre os indivíduos e os assujeitando.

Maingueneau (2008a) apresenta restrições ao conceito de formação discursiva, tal como

elaborado por Foucault, sobretudo por conta da imprecisão que, segundo ele, emerge

das possibilidades de interpretação das noções de “sistema” e de “dispersão”. Ele

observa: “Essa dupla linguagem, bem condensada naquilo que pretende ser talvez um

oximoro (‘sistema de dispersão’) dá trabalho aos exegetas da obra de Foucault”

(MAINGUENEAU 2008a, p.13).

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Para o autor, o conceito de formação discursiva é desenvolvido de forma mais clara

em Pêcheux, com grande êxito na AD, embora tenha enfrentado, a partir dos anos 80,

“mais dificuldade em encontrar o seu lugar”, à medida que se desenvolve o interesse

crescente de pesquisa sobre corpora não doutrinais. Em todo caso, a noção de formação

discursiva está mais diretamente ligada aos discursos doutrinais, e aí encontra-se o cerne

da crítica geralmente feita a essa primeira fase da AD: o fato de ter-se voltado para

discursos fechados, em textos “emanados de formações discursivas previamente

supostas como homogêneas (discurso comunista, discurso cristão etc.)” (COSTA 2005,

p. 28). Assim,

as propostas iniciais da AD estão preocupadas com os condicionamentos da produção discursiva, o que as leva a excluir de seu campo de estudo as produções mais espontâneas (a linguagem do cotidiano, a conversação mundana etc.) ou mais propensas à transgressão dos limites impostos especialmente pela língua (a literatura). Por outro lado, a preocupação política, pressuposta na própria fundamentação marxista, leva a que o discurso político presente quer nos manifestos ou regimentos dos partidos e forças políticas em disputa na época ou na mídia seja o objeto preferido dos analistas. (COSTA 2005, p. 21)

As restrições acerca do conceito de formação discursiva não invalidam a sua

importância nesta fase inicial da AD, assim como no desenvolvimento da assim

chamada segunda época. Conforme Mussalim (2001, p.118), o conceito de formação

discursiva “é o dispositivo que desencadeia o processo de transformação na concepção

do objeto de análise da Análise do Discurso”. Isso ocorre a partir da superação da noção

de “máquina discursiva”, presente na primeira fase da AD, para o empreendimento da

análise automática do discurso.

Outro conceito básico da AD é o de condições de produção, segundo o qual se define

o que pode e deve ser dito no interior de uma determinada formação discursiva.

Conforme Orlandi (2003, p. 30), as condições de produção podem ser compreendidas,

em sentido estrito, como “as circunstâncias da enunciação” ou o “contexto imediato” de

produção do discurso. Num sentido mais amplo, a autora assinala que “as condições de

produção incluem o contexto sócio-histórico, ideológico.” (ORLANDI 2003, p.30)

Charaudeau e Maingueneau (2004, p.114) esclarecem que, segundo as formulações

de Pêcheux, as condições de produção englobam as relações do sujeito no interior do

discurso, resumidas num quadro em que ele apresenta o que denomina de “jogo de

imagens de um discurso” (PÊCHEUX 1969, apud MUSSALIM 2001, p.136). A

respeito desse quadro, Charaudeau e Maingueneau (2004, p.114) o definem como “um

dispositivo em que as situações objetivas do locutor e de seu interlocutor são

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desdobradas em representações imaginárias dos lugares que um atribui ao outro”,

observando que “as relações entre os lugares não constituem comportamentos

individuais, não remetem nem à parole saussuriana nem à psicologia, mas dependem da

estrutura das formações sociais”. Por outras palavras, considera-se que o sujeito não é

livre para dizer o que quer, e que as opções do que ele tem para dizer são determinadas

“pelo lugar que ocupa no interior da formação ideológica à qual está submetido”

(MUSSALIM 2001, p. 137)

2.2.2. Segunda e Terceira Épocas

Como assinalamos acima, a noção de formação discursiva, à qual se relaciona a de

condições de produção, desempenha papel central na passagem da primeira para a

segunda fase da AD. Em termos metodológicos, a principal mudança está em que a AD

não se volta mais apenas aos discursos fechados, mas às formações discursivas

concebidas “numa relação de confronto ou aliança” (MUSSALIM 2001, p. 119). O

papel do analista do discurso é, portanto, descrever os sistemas de dispersão que

caracterizam as formações discursivas, conforme a definição de Foucault. De acordo

com Costa (2005, p.25), nessa fase da AD os empreendimentos analíticos se voltam à

compreensão das relações “entre formações discursivas ou entre uma formação

discursiva e o interdiscurso, ou ainda, entre uma formação discursiva e o ‘pré-

construído’ ou ‘memória discursiva’”, daí porque o autor referir-se a esse momento da

AD como o momento em que “se instaura o primado da relação” (COSTA 2005, p.25)

Entre as contribuições de Maingueneau para a AD, sobretudo a partir dos anos 1980,

inclui-se precisamente o questionamento sobre a articulação entre os conceitos de

formação discursiva e de condições de produção, categorias que “são frequentemente

vistas segundo a fórmula conjunto/subconjunto, como um exterior que se opõe a um

interior, ou um anterior a um posterior.” (COSTA 2001, p. 27). Para superar essa

concepção dualista, segundo a qual a produção discursiva, no interior de uma dada

formação, estaria condicionada às coerções impostas pelo contexto de produção, a

proposta de Maingueneau concebe a formação discursiva como indissociável das

comunidades que a produzem e a difundem. O autor propõe então o conceito de prática

discursiva para integrar essas duas vertentes do discurso, ou seja, “para designar essa

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reversibilidade essencial entre as duas faces, social e textual, do discurso.”

(MAINGUENEAU 1997, p.56).

Trabalhando sobre a noção de discursos constituintes, definidos como aqueles

discursos que “dão sentido aos atos da coletividade” e são fundados a partir de “um

corpo de enunciadores consagrados” (os exemplos são o discurso religioso, o filosófico,

o literário, o científico), Maingueneau (2008a, pp. 37-54) desenvolve os conceitos de

posicionamento e de comunidade discursiva, imbricados na configuração da prática

discursiva.

A ideia de posicionamento é então definida como “a construção de uma identidade

enunciativa que é tanto ‘tomada de posição’ como recorte de um território cujas

fronteiras devem ser incessantemente redefinidas.” (MAINGUENEAU 2006, p.151) O

autor esclarece que o posicionamento está indissociavelmente ligado a “grupos que os

elaboram e os fazem circulam, gerindo-os”. E prossegue:

o posicionamento supõe a existência de redes institucionais específicas, de comunidades discursivas que partilham um conjunto de ritos e normas. [...] A forma tomada por uma ‘comunidade discursiva’, que não existe senão na e pela enunciação de textos,às vezes, varia em função do tipo de discurso constituinte em questão e de cada posicionamento. Este último não é somente um conjunto de textos, um corpus, mas uma imbricação entre um modo de organização social e um modo de existência de textos. (MAINGUENEAU 2008a, p.44)

As noções de posicionamento e comunidade discursiva são fundamentais para o

desenvolvimento do nosso trabalho. Conforme veremos adiante, são categorias básicas

para o estudo do discurso literomusical brasileiro. Para uma melhor compreensão da

identidade enunciativa do Frevo no discurso literomusical brasileiro, tomamos a noção

de posicionamento articulada à categoria de gênero do discurso, com ênfase nos

aspectos sociocomunicativos de sua organização, no âmbito da vida cultural e social,

conforme abordamos acima. Salientamos, conforme Charaudeau e Maingueneau (2004,

p.393), que “o posicionamento não diz respeito apenas aos ‘conteúdos’, mas às diversas

dimensões do discurso: ele se manifesta também na escolha destes ou daqueles gêneros

do discurso, no modo de citar etc”. O estudo do Frevo no discurso literomusical

brasileiro enfoca, portanto, uma prática discursiva empreendida no âmbito de uma

comunidade que se caracteriza pela produção de sentidos marcada em diversas esferas

da produção cultural no estado de Pernambuco, com destaque para o trabalho

desenvolvido sobre o gênero canção, nosso objeto de estudo.

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Tomando as considerações de Pêcheux (1997), no balanço histórico da AD, ao longo

de “três épocas”, Costa (2005) caracteriza a terceira como a fase de desenvolvimento do

que ele denomina “primado do outro”. A denominação busca ressaltar uma nova

vertente da AD, ainda bastante atual, marcada pela predominância da noção

fundamental de heterogeneidade discursiva. Trata-se de uma perspectiva que nasce a

partir das críticas comumente feitas às fases anteriores, em que se procedem a análises

de caráter homogeneizador, baseadas na constituição de corpus discursivos fechados, na

identificação de “sequências organizadas em torno de unidades lexicais consideradas

‘chaves’ ou ‘pivôs’” (BRANDÃO 2004, p. 88). Segundo o próprio Pêcheux, é nesta

fase que ocorre a definitiva “desconstrução das maquinarias discursivas”: “o primado

teórico do outro sobre o mesmo se acentua empurrando até o limite a crise da noção de

máquina discursiva estrutural” (PÊCHEUX 1990, p. 314)

A terceira fase da AD é então o momento em que se afirma o primado do

interdiscurso, que define uma perspectiva teórica segundo a qual

os diversos discursos que atravessam uma FD [Formação Discursiva] não se constituem independentemente uns dos outros para serem, em seguida, postos em ação, mas se formam de maneira regulada no interior de um interdiscurso. Será a relação interdiscursiva, portanto, que estruturará a identidade das FDs em questão. (MUSSALIM 2001, p.120)

A afirmação do primado do interdiscurso sobre o discurso configura uma das teses

fundamentais da AD francófona, constituída a partir da influência de orientações que

vêm enriquecer os estudos sobre o discurso, redirecionando o enfoque sobre a produção

discursiva em diferentes corpora. Dentre essas orientações, destaca-se com especial

relevância a teoria dialógica proposta pelo Círculo de Bakhtin.

A identidade de um discurso é definida, então, com base na interdiscursividade, que

diz respeito à presença do “Outro”. Conforme as formulações teóricas elaboradas por

Jaqueline Authier-Revuz (1990), essa presença é identificada através de marcas

explícitas (a negação, o discurso relatado) ou não, configurando, respectivamente, o

conceito de heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva do discurso. A

autora argumenta acerca da “heterogeneidade mostrada como formas linguísticas de

representação de diferentes modos de negociação do sujeito falante com a

heterogeneidade constitutiva do seu discurso” (AUTHIER-REVUZ 1990, p.26) e se

refere ainda, entre as formas da heterogeneidade mostrada o “discurso direto, aspas,

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formas de retoque ou de glosa, discurso indireto livre, ironia” (AUTHIER-REVUZ

1990, p.25).

Em Gênese dos Discursos (publicado originalmente em 1984, com edição brasileira

de 2008), algumas importantes contribuições de Maingueneau para a AD são

desenvolvidas, numa perspectiva metodológica de trabalho sobre um corpus que fugia à

regra como objeto da AD24. Dentre as proposições mais relevantes apresentadas pelo

autor, a primeira diz respeito exatamente à prevalência do interdiscurso: “o interdiscurso

tem precedência sobre o discurso. [...] a unidade de análise pertinente não é o discurso,

mas um espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos.

(MAIGUNEAU 2008, p.20)”

A seguir, o autor propõe que “o discurso não deve ser pensado somente como um

conjunto de textos, mas como uma prática discursiva” (MAINGUENEAU 2008, p.22)

que é ao mesmo tempo concebida como uma “prática intersemiótica que integra

produções pertencentes a outros domínios semióticos (pictórico, musical etc.)”

(MAINGUENEAU 2008, p. 23)

Essas proposições são particularmente interessantes para o desenvolvimento de nosso

trabalho, tendo em vista dois dos principais traços constitutivos do discurso

literomusical, que são a multiplicidade de vozes e o caráter intersemiótico da produção

artística da canção e de outros gêneros produzidos pela comunidade discursiva do Frevo

– encartes, capas de discos, comentários, críticas etc. Acerca dessas particularidades do

discurso literomusical, Costa (2001) assinala que

Diferentemente de outros campos discursivos, como é o caso da religião e da ciência, onde grupos, correntes, tendências etc. se definem, se organizam e se estabilizam mediante estatutos e ideologias razoavelmente bem definidos, o discurso lítero-musical brasileiro aparece dilacerado por uma heterogeneidade complexa e inconsistente. (COSTA 2001, p. 169)

Em sua tese de doutoramento, o autor enfoca a interdiscursividade entre o discurso

literomusical brasileiro e os discursos literário, científico e religioso, definindo a Música

Popular Brasileira como lugar de atuação e de interação entre diversos posicionamentos,

que “disputam lugares sobre o campo discursivo, procurando orientá-lo, defini-lo, nele

marcar posições ou mesmo questionar sua existência ou apagar suas fronteiras.”

(COSTA 2001, p. 58)

24 O objeto de pesquisa de Maingueneau é o discurso religioso, especificamente o espaço discursivo humanismo devoto/jansenismo

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Para o nosso propósito de identificar os posicionamentos do Frevo, a análise da

organização linguístico-discursiva das canções que compõem o nosso corpus será

empreendida numa perspectiva interdiscursiva, o que pressupõe a compreensão das

configurações de sentido a partir das relações estabelecidas entre as canções em foco e

outros dizeres, demarcadores de outros posicionamentos no campo do discurso

literomusical brasileiro. É assim que, ao longo da análise, a identidade discursiva do

Frevo será posta em relação, por exemplo, ao posicionamento do samba e da bossa

nova.

É ainda em Gênese dos Discursos (2008) que Maingueneau propõe uma maior

especificação do conceito de interdiscurso, reformulando-o nos termos de uma tríade:

Universo discursivo: “conjunto de formações discursivas de todos os tipos que

interagem numa conjuntura dada.” É uma noção de pouca utilidade para o analista, dada

a sua amplitude, mas serve então para definir uma extensão máxima, “o horizonte a

partir do qual serão construídos domínios suscetíveis de ser estudados, os ‘campos

discursivos’” (MAINGUENEAU 2008, p.35).

Campos discursivos: “conjunto de formações discursivas que se encontram em

concorrência, delimitam-se reciprocamente em uma região determinada do universo

discursivo”. (MAINGUENEAU 2008, p.35) O autor observa que a delimitação desses

campos não se dá de forma evidente: “não basta percorrer a história das ideias para vê-

los oferecer-se por si mesmos à apreensão do analista”. Assim, eles são definidos a

partir do enfoque analítico da pesquisa, das escolhas feitas e das hipóteses levantadas.

Costa (2005) esclarece que os campos discursivos incluiriam o político, o pedagógico, o

filosófico etc. “ou subconjuntos desses, que comporiam, dentre desses campos maiores,

uma configuração relativamente autônoma” (COSTA 2005, p.37). O discurso

literomusical pode ser incluído aí como exemplo, quando, no empreendimento da

análise, articula-se com o discurso histórico, midiático etc. Essa articulação definiria,

assim, a emergência de Espaços discursivos, ou seja, “subconjuntos de formações

discursivas que o analista, diante de seu propósito, julga relevante pôr em relação”,a

partir das hipóteses “fundadas sobre um conhecimento dos textos e um saber histórico”

(MAINGUENEAU 2008, p. 35)

Outra importante contribuição teórica de Maingueneau para os estudos do discurso é

o que ele chama de “semântica global”, uma proposta de que visa a integrar os

diferentes planos do discurso, ao invés de privilegiar apenas um deles – como os

modelos de análise lexicológica, que dá como exemplo de empreendimento analítico

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que privilegia, nesse caso, o plano do vocabulário. Salienta o autor que a identidade de

um discurso integra múltiplas dimensões textuais, e não é “somente uma questão de

vocabulário ou de sentenças”. (MAINGUENEAU 2008, p.18) Sua crítica dirige-se a

uma concepção “estática” e “arquitetural” do discurso, própria de algumas abordagens

estruturalistas que o concebiam como um “sistema de ideias” ou como “uma totalidade

estratificada que poderíamos decompor mecanicamente” (MAINGUENEAU 2008,

p.19)

No capítulo de Gênese dos Discursos dedicado ao desenvolvimento da proposta

(intitulado Uma Semântica Global), Maingueneau ressalta que a definição dos “planos”

do discurso não se baseia em nenhuma hierarquização das categorias propostas, e

também “não é objeto de uma elaboração teórica suficiente para pretender definir um

modelo de textualidade”. A única finalidade da lista de planos elaborada pelo autor é a

de “ilustrar a variedade das dimensões abarcadas pela perspectiva de uma semântica

global” (MAINGUENEAU 2008, p.77).

Dentre esses planos do discurso, destacam-se os seguintes:

- A intertextualidade, que é propriedade constitutiva de qualquer texto, entendendo-se

a produção textual como um processo elaborado na base de uma dinâmica intertextual,

ou seja, todo texto é, de fato, um intertexto, composto por uma teia de referências

anteriores ou atuais, muitas vezes irrecuperáveis. A intertextualidade é analisada por

Costa (2001) como uma marca definidora do caráter constituinte do discurso

literomusical brasileiro, a partir da menção elogiosa ou da citação direta de “trechos de

canções famosas, de autoria ou interpretação marcante de arquienunciadores, citadas,

parafraseadas ou aludidas” (COSTA 2001, p. 339), que o autor exemplifica com

citações como a de Ronda (Paulo Vanzolini, 1953) na canção Sampa (Caetano Veloso,

1978), nos respectivos versos: “cena de sangue num bar da Avenida São João” e “Que

só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João”; ou ainda na canção Jack Sou

Brasileiro (Lenine, 1999), em que são inseridos trechos da Cantiga do Sapo (Jackson do

Pandeiro e Buco do Pandeiro), O Canto da Ema (Ayres Vianna e João do Vale) e

Chiclete com Banana (Jackson do Pandeiro e Gordurinha).

Em nosso corpus, a canção Frevotheque (Inaldo Vilarim e Duda) é um interessante

exemplo de referência intertextual, que evidencia um aspecto do posicionamento do

Frevo em relação a outras formas musicais, para enfatizar a importância dele no cenário

da música popular. Não se trata propriamente de uma menção elogiosa, como se

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depreende da negativa observada na letra (“eu não quero discotheque”). A obra foi

gravada em 1979, no auge do sucesso da disco music no Brasil:

FREVOTHEQUE (Inaldo Vilarim / Duda, 1979) Vou tomar o meu pileque Eu não quero discotheque O meu caso é carnaval E vou dar uma de moleque Vou fazer o passo E mostrar que sou o tal E nesse frevo pulo, bebo, E com prazer Estou nessa com você

Há citações musicais diretas da canção Dancing Days (Nelson Mota e Ruban

Sabino), na introdução e no refrão, reproduzindo frases melódicas daquela obra, com

utilização do recurso sonoro da sirene para estabelecer uma cenografia de pista de

dança.

- O vocabulário: o procedimento mais pertinente à análise discursiva do vocabulário é a

observação das “explorações semânticas contraditórias das mesmas unidades lexicais

pelos diversos discursos” (MAINGUENEAU 2008, p. 80), já que não faz sentido falar

de um vocabulário específico desse ou daquele discurso, “como se um discurso

possuísse um léxico que lhe fosse próprio.” O autor dá como exemplo o lexema doçura,

definido como uma palavra-chave do discurso humanista devoto, por ele pesquisado.

Ele salienta, ainda, que, “além de seu estrito valor semântico, as unidades lexicais

tendem a adquirir o estatuto de signos de pertencimento. Entre vários termos a priori

equivalentes, os enunciadores serão levados a utilizar aqueles que marcam sua posição

no campo discursivo”. Como exemplo, cita a voga extraordinária da palavra estrutura

(quando outras, como sistema, organização, totalidade, plano teriam dito a mesma

coisa) na crítica literária dos anos 1960. Enfocaremos, em nossa análise, o

desenvolvimento do plano do vocabulário para a construção da identidade discursiva do

Frevo, enfocando o processo de definição do nome do gênero musical, marcado por

uma complexidade maior, se comparado ao de outros gêneros da música brasileira;

- Os temas: Maingueneau adverte que a noção de tema de um discurso pode ser

concebida em variados níveis (“microtemas de uma frase, de um parágrafo...;

macrotemas de uma obra inteira, de várias obras”), mas prefere optar por uma definição

mais ampla, tratando de tema como “aquilo de que um discurso trata, em qualquer nível

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que seja” (2008, p.81). Ele salienta que definir uma hierarquia dos temas e um

determinado discurso não é de grande interesse, bastando perceber que os temas mais

importantes podem ser observados em todos os pontos do texto. Assim como no caso do

vocabulário, o importante não é exatamente o tema em si, mas o tratamento semântico a

ele dado na análise da construção de sentidos;

- A dêixis enunciativa: refere-se à delimitação espaço-temporal de todo ato de

enunciação. Essa dupla orientação “delimita a cena e a cronologia que o discurso

constrói para autorizar sua própria enunciação”, mas não se trata “das datas, dos locais

em que foram produzidos os enunciados efetivos, tanto mais que o estatuto textual dos

enunciadores não coincide com a realidade biográfica dos autores” (MAINGUENEAU

2008, p.89). Em Novas Tendências em Análise do Discurso (1987, publicado no Brasil

em 1997), o autor fala em dêixis discursiva no quadro de uma cena enunciativa, em que

se instauram, na enunciação, o locutor e o destinatário discursivos, a cronografia e a

topografia. Como exemplo, ele cita sua análise de manuais escolares do período da

Terceira República Francesa25, em que o termo República recobre os três lugares:

a República é, a um só tempo, o locutor discursivo (é ela que se dirige às crianças), a topografia (a República delimita o território da pátria) e a cronografia (a República é a última fase da história da França, de onde este discurso é enunciado). Apenas o destinatário, o aluno, parece escapar deste termo; mas é unicamente o afastamento que faz com que tudo funcione: o discurso escolar tem exatamente por função integrar estes alunos à República, sob a forma do ‘cidadão’ (MAINGUENEAU 1997, p. 41);

- O estatuto do enunciador e do destinatário: para legitimar o seu dizer, o enunciador

deve se conferir – e conferir a seu destinatário – certo status, que em geral está

vinculado a uma posição institucional. No trabalho sobre o discurso humanista devoto,

por exemplo, Maingueneau lembra que “o enunciador se considera integrado a uma

‘Ordem’: é membro de uma comunidade religiosa reconhecida, bispos, mestre-escola...e

dirige-se a destinatários também inscritos em ‘Ordens’ socialmente bem caracterizadas”

(MAINGUENEAU 2008, p.87). Essa dimensão institucional estabelece uma relação do

enunciador e do destinatário com as fontes de um saber. Tal relação é evidenciada, por

exemplo, no caso dos discursos constituintes.

25 MAINGUENEAU, D. 1979. Lês livres d’école de la Republique, 1870-1914 – Discours et idéologie, Paris, Le Sycomore.

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Os discursos constituintes cumprem, na produção simbólica de uma sociedade, a

função de archéion26, ou seja, a função de registrar “um corpo de enunciadores

consagrados e uma gestão da memória” (MAINGUENEAU 2008a, p. 38). Além disso,

eles são caracterizados pelo fato de “não reconhecer outra autoridade além da sua

própria, de não admitir quaisquer outros discursos acima deles”. São discursos que “dão

sentido aos atos da coletividade” e são, ao mesmo tempo “auto e heteroconstituintes”;

portanto, “só um discurso que se constitui tematizando sua própria constituição pode

desempenhar um papel constituinte para outros discursos.” (MAINGUENEAU 2008a,

pp. 37-38 ). Propondo a tese de que o discurso literomusical brasileiro pode ser

considerado como discurso constituinte - em processo de construção -, Costa (2001)

assinala que

os enunciados de um discurso constituinte são inscrições em uma rede institucional que só existe na e pela enunciação de textos. Inscrições que supõem necessariamente um caráter exemplar: seguem exemplos e dão exemplo. Assim, inscrever-se em uma comunidade discursiva implica, por um lado, associar-se a modelos de posicionamento e, em última instância, à Fonte que funda o discurso constituinte: a Beleza, a Verdade, a Justiça... Por outro lado, inscrever-se é, ao mesmo tempo, abrir-se à possibilidade de reatualização, se dar a citar, criando condições de possibilidade de ser citado. (COSTA 2001, p. 72)

O autor argumenta ainda que o discurso literomusical se articula por meio de “uma

rede de posicionamentos mais ou menos intrincada” (COSTA 2001, p. 333), que é outra

característica dos discursos constituintes. Além da própria canção, essa rede inclui a

produção de outros gêneros, que configuram o que o autor denomina “discursos

secundários (comentários, crítica, obras não-cancionistas de cantores ou compositores)”

(COSTA 2001, p. 336)27

- O modo de enunciação: além de vincular-se a uma posição institucional e de

relacionar-se a fontes de saber, o discurso é também uma certa maneira de dizer - ou um

modo de enunciação. Este é o plano sobre o qual Maingueneau elabora a noção de ethos

discursivo, desenvolvida ao longo de vários momentos, em sua obra, e articulada à

noção de cena enunciativa, através da qual se definem os posicionamentos em

determinado campo discursivo. Trata-se de um conjunto de conceitos de particular

interesse para o desenvolvimento do nosso trabalho, e que por essa razão serão

retomados adiante.

26 Termo grego, étimo do latino archivum, ligado a arché, fonte, princípio, e a partir daí comando, poder. “O archéion é a sede da autoridade; por exemplo, um palácio, um corpo de magistrados, mas também os arquivos públicos.” (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU 2004, p. 126) 27 Cf. COSTA 2001 (pp. 333-473). Música Popular Brasileira: discurso constituinte? (cap. 4).

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De início, ressaltamos que o ethos discursivo extrapola os limites de um quadro

retórico, de base aristotélica, caracterizado pela persuasão por meios argumentativos,

com a construção de uma imagem positiva do orador perante um auditório. A noção de

ethos discursivo integra um tom, um caráter e uma corporalidade. Na verdade, essa ideia

de que todo discurso está associado a uma determinada “voz” já era, conforme

Mussalim (2008)

uma dimensão bem conhecida da retórica antiga, que entendia por ethe as propriedades que os oradores se conferiam implicitamente, não pelo que diziam de si mesmos, mas pela aparência que lhes conferia o próprio modo de enunciarem seus discursos: o ritmo, a entonação, a escolha das palavras e dos argumentos revelavam determinadas características desses oradores. (MUSSALIM 2008, p.71)

Maingueneau retoma a noção de ethos retórico, mas não a limita às manifestações da

oralidade, estendendo-a também à linguagem escrita. Por isso, prefere falar em “tom”

para referir essa “vocalidade” presente em qualquer texto. Para ele, “o termo ‘tom’ tem

a vantagem de valer tanto para o escrito quanto para o oral”. (MAINGUENEAU 2008a,

p. 64). Além disso, sua concepção de ethos relaciona o discurso a uma fonte

enunciadora que confere autoridade ao que é dito, e que desempenha o papel de fiador,

investido de um caráter (conjunto de traços psicológicos que o leitor-ouvinte atribui ao

enunciador, pelo seu modo de dizer) e uma corporalidade (representação do corpo físico

– do enunciador e, indiretamente, do enunciatário - associada à compleição, a um modo

de vestir-se e de mover-se no espaço social).

2.2.3. Prática Discursiva

No debate sobre os caminhos da AD, hoje, é evidente o reconhecimento da

pluralidade de enfoques que a define, refletindo o contexto de redução das fronteiras

teóricas entre os diversos campos de saber nas ciências humanas e revelando a

popularidade que a disciplina alcançou, por exemplo, no Brasil. Quanto aos objetos de

estudo da AD, Charaudeau e Mainguenau (2004) atestam que

Os corpora da análise do discurso tornaram-se progressivamente diversificados. Assistimos a uma descompartimentalização generalizada das pesquisas. Isso se deve à abertura de um diálogo entre as diferentes disciplinas que trabalham com o discurso e entre as diversas correntes de análise do discurso. (CHARAUDEAU e MANIGUENEAU 2004, p. 45)

As contribuições teóricas de Maingueneau desempenham aí um papel importante,

sobretudo com a compreensão do discurso enquanto prática discursiva, a partir de uma

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articulação fundamental entre os discursos e o funcionamento de grupos que gerem

esses discursos. A sua proposta é “articular o discurso e instituições através de um

sistema de restrições semânticas comuns” (MAINGUENEAU 2008, p. 121).

Conforme já assinalamos, o discurso em Maingueneau é concebido como uma prática

discursiva de caráter intersemiótico, integrando diferentes domínios que, em geral, estão

submetidos às mesmas restrições que subjazem, por exemplo, às noções de escola ou de

movimento – como no caso da “escola romântica em pintura, e música, em arquitetura,

assim como em literatura...” (MAINGUENEAU 2008, p. 138). De modo sucinto, ele

afirma que seu propósito é não restringir exclusivamente ao domínio textual, mas

“definir a prática discursiva como a unidade de análise pertinente, que pode integrar

domínios semióticos variados: enunciados, quadros, obras musicais...”

(MAINGUENEAU 2008, p.139). Na verdade, esse tipo de concepção integradora não é

algo novo. O próprio Maingueneau apresenta como exemplo anterior as pesquisas de

Erwin Panofsky28 sobre as relações entre a arquitetura gótica e o pensamento

escolástico.

Na história recente da música popular brasileira, a articulação entre discurso e

instituições pode ser encontrada, por exemplo, a partir dos anos de 1960, com a criação

do CPC (Centro Popular de Cultura), cujo embrião foi o grupo de teatro Arena, de São

Paulo, com forte ligação com o Partido Comunista Brasileiro. Vale salientar, ainda,

como influência para a criação do CPC, a atuação do MCP (Movimento de Cultura

Popular), desenvolvido no Recife durante a gestão do prefeito Miguel Arraes, com a

participação de renomados intelectuais e artistas29.

A partir da chegada do Arena no Rio de Janeiro, para uma bem sucedida temporada

de um ano e meio, o grupo passa a utilizar as dependências da UNE (União Nacional

dos Estudantes). A partir de 1962, o sucesso do CPC espalha-se pelo Brasil inteiro

através da Une Volante, em que

uma comitiva de cerca de 25 dirigentes da entidade e integrantes do CPC percorreu os principais centros universitários do país [...] levando adiante suas propostas de intervenção dos estudantes na política universitária e na política nacional, em busca das reformas de base, no processo da revolução brasileira (RIDENTI 2000, p. 108)

28 PANOFSKY, E. Gothic Architecture and Scholasticis. Latrobe: The Archabbey Press, 1951. 29 Paulo Freire, Abelardo da Hora, Francisco Brennand, Ariano Suassuna, Hermilo Borba Filho, José Cláudio, Luis Mendonça, dentre outros

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Com a proposta de utilizar as diversas manifestações artísticas em sua tarefa de

conscientização, o CPC tinha atuação destacada no teatro, mas a música sem dúvida

exercia papel fundamental. Sobre esse papel, Ridenti (2000) transcreve depoimento de

Aquiles Reis, músico integrante do conjunto musical MPB-4 (fundado em Niterói, Rio

de Janeiro, em 1963, com o nome de Quarteto do CPC, tendo mudado de nome após o

golpe militar de 1964): “A música era um instrumento daquilo que eu acreditava, que

era conscientizar as pessoas através da arte. Tentar modificar a cabeça das pessoas [...]

através dessa atuação com a música” (RIDENTI 2000, p.112)

Em 1963, é lançado o disco compacto O Povo Canta, cuja vendagem ajudaria a

angariar fundos para a construção do Teatro do CPC da UNE. O disco, com canções de

Carlos Lyra e outros autores30, seria proibido após o golpe, quando os militares

atacaram a sede da UNE e incendiaram o teatro.

Uma análise das práticas discursivas integradas a diferentes domínios semióticos, ao

longo do desenvolvimento do discurso literomusical brasileiro, revelará, ainda, uma

produção artística de indiscutível importância para a nossa cultura, em diferentes

momentos históricos. Sant’anna (1986), por exemplo, ressalta a aproximação de

compositores da bossa nova com o ideário da esquerda e sua incursão pela canção de

protesto – caso do próprio Carlos Lyra, que também trabalhou para o cinema,

compondo trilhas sonoras de filmes como Couro de Gato, dirigido por Joaquim Pedro

de Andrade, e Gimba, de Gianfrancesco Guarnieiri, dirigido por Flávio Rangel.

Sant’anna continua:

Esse inter-relacionamento da música com outros gêneros artísticos continua com Sérgio Ricardo, também provindo da Bossa Nova e que agora faz a música da peça O Coronel de Macambira, de Joaquim Cardozo, e dos filmes Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha e O Auto da Compadecida [...] de Ariano Suassuna. Nessa linha está Geraldo Vandré compondo a partitura de A Hora e a Vez de Augusto Matraga, basedo na novela de João Guimarães Rosa. (SANT’ANNA 1986, p.227)

Importante ressaltar, ainda a esse respeito, o movimento Tropicalista, cujos

principais representantes são Caetano Veloso e Gilberto Gil, e o movimento Armorial,

encabeçado por Ariano Suassuna, no Recife, ambos caracterizados pelas interlocuções

entre música, literatura, teatro e artes plásticas, embora com propostas estéticas

30 O repertório do disco é este: 1 - O Subdesenvolvido (Carlos Lyra / Francisco de Assis); 2 - João da Silva (Billy Blanco); 3 - Cancão do Trilhaozinho (Carlos Lyra / Francisco de Assis); 4 - Grileiro Vem (Rafael de Carvalho); 5 - Zé da Silva (Geny Marcondes / Augusto Boal)

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completamente distintas, que são analisadas por Costa (2007) na perspectiva teórica

oferecida por Maingueneau31.

No caso do Frevo, especificamente, ainda há muito a se explorar por este caminho, e

aqui não objetivamos cumprir senão uma ínfima parte desta tarefa, que não é pequena -

a saber, o empreendimento de um esforço interpretativo sobre sua elaboração

discursiva, articulada a diferentes manifestações simbólicas da arte – da literatura e da

dança, por exemplo, como veremos adiante.

Para isso, retomamos a seguir alguns dos conceitos apresentados por Maingueneau, e

desenvolvidos em diversas pesquisas recentes – na análise do discurso político,

jornalístico, literário, por exemplo – dada a sua relevância para o nosso trabalho. Vale

salientar que essas categorias - posicionamento, comunidade discursiva e ethos

discursivo - se desenvolvem articulando-se a outras, igualmente importantes para os

estudos discursivos – a noção de gêneros, por exemplo, concebida no quadro da teoria

dialógica do Círculo de Bakhtin, e também a noção de investimento, desenvolvida pelo

próprio Maingueneau. Igualmente importante é o conceito de cena enunciativa, que será

empregada na análise das canções que compõem o nosso corpus de pesquisa.

2.2.4. Posicionamento

A noção de posicionamento aparece em O Contexto da Obra Literária, em que

Maingueneau apresenta restrições a algumas abordagens que “tentaram relacionar a

obra literária com a configuração histórica da qual ela emerge” (MAINGUENEAU

2001, p.1), a saber, a filologia no século XIX, o marxismo e o estruturalismo.

Tais restrições incidem sobre a complexa questão do contexto de produção da obra

literária. Para o empreendimento filológico, ao qual a história literária é estreitamente

vinculada – Maingueneau lembra que é pelo menos desde o século III a.C., com os

gramáticos alexandrinos, que se reflete sobre a relação entre um texto literário e o

contexto histórico no qual ele surgiu – importa recuperar no texto o “espírito e os

costumes da sociedade da qual pretensamente era a ‘expressão’” (MAINGUENEAU

31 Cf. COSTA, Nelson Barros da (2007) Armorialistas X tropicalistas: elementos de uma interincompreensão? Em COSTA, N.B da. O Charme dessa nação – música popular, discurso e sociedade brasileira. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora.

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2001, p.2). O texto é encarado então como um documento através do qual se busca

recuperar um momento histórico, caracterizando-se o seu autor como representativo de

sua época. Em síntese, o problema aí é que

com muita freqüência, a vontade de restabelecer o texto impede a indagação das próprias condições de possibilidade da enunciação literária, do surgimento enigmático de uma obra num determinado local e num determinado momento (MAINGUENEAU 2001, p.6)

Sobre a crítica marxista, o autor aponta como problema a falta de uma preocupação

maior com o funcionamento do texto, já que o foco incide sobre a questão da obra

literária como reflexo da luta de classes. Sobre a questão dos gêneros, por exemplo,

Maingueneau pondera que, na abordagem marxista eles “ocupam decerto um lugar

importante, mas em função do tipo de ‘reflexo’ da sociedade que implicam, não

enquanto instituições da comunicação literária” (MAINGUENEAU 2001, p.8)

Por sua vez, o estruturalismo apresentaria uma dificuldade quanto à sua visão

imanentista da obra literária, referida pelo termo “clausura” e por outros que

Mainguneau assinala como “metáforas mecânicas ou geométricas” que são trazidas para

o primeiro plano na análise estrutural – por exemplo, “funcionamento”, “isomorfismos”,

“rede”, níveis” etc. (MAINGUNEAU 2001, p.13). Para o autor, o problema do contexto

é tido como secundário, já que, “antes de relacionar a obra com um contexto, deve-se

compreender seu ‘funcionamento’” (p.14). Há, entretanto, pontos positivos no

estruturalismo, que são reconhecidos por Maingueneau. Ele afirma que, ao dissociar

“‘história literária’ e ‘estilística’, contexto e texto”, o estruturalismo “preparou as

condições de uma renovação” já que, “diferentemente da maioria das abordagens

anteriores dos textos literários, ele indagou a natureza e o modo de organização dos

textos” (MAINGUENEAU 2001, p. 15)

A proposta geral de Maingueneau baseia-se, então, no estudo da literatura numa

perspectiva enunciativa, que incorpora contribuições de correntes diversas cujo ponto

comum “é concentrar sua atenção na inscrição sócio-histórica das obras através de uma

reflexão sobre a comunicação literária” (p.15). Aí se incluem as correntes da

pragmática, da análise do discurso, da retórica, além dos trabalhos que reivindicam

M.Bakhtin, dentre outras perspectivas que “impuseram uma nova concepção do fato

literário, a de um ato de comunicação no qual o dito e o dizer, o texto e seu contexto são

indissociáveis.” (MAINGUENEAU 2001, p.IX)

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Como se percebe, sua proposta extrapola tanto uma visão representacionista quanto

as concepções imanentistas que marcaram o estudo literário, sobretudo ao longo do

século XX. A literatura é concebida como forma de ação, elaborada a partir mesmo de

sua enunciação. Quanto a isso, ele esclarece:

não se conceberá a obra como uma representação, um arranjo de ‘conteúdos’ que permitiria ‘exprimir’ de maneira mais ou menos desviada ideologias ou mentalidades. As obras falam efetivamente do mundo, mas sua enunciação é parte integrante do mundo que pretensamente representam. [...] A literatura também consiste numa atividade; não apenas ela mantém um discurso sobre o mundo, mas gere sua própria presença nesse mundo. As condições de enunciação do texto literário não são uma estrutura contingente da qual este poderia se libertar, mas estão indefectivelmente vinculadas a seu sentido. (MAINGUNEAU 2001, p. 19)

Essa perspectiva leva o autor a debruçar-se sobre o processo de imbricação entre

os sujeitos, sua enunciação e o contexto de produção literária, tendo em vista as relações

institucionais necessariamente presentes. Assim, ele analisa a condição do escritor,

considerando os espaços institucionais e grupos aos quais este se vincula. Sua proposta

contempla, ainda, a polêmica questão da biografia autoral, que, como salienta Costa

(2005), sempre foi “rechaçada pelas vertentes estruturalistas de análise do texto literário

que a acusam de tentar explicar a obra com base na vida do autor.” (COSTA 2005,

p.42). Não é, entretanto, uma proposta de caráter subjetivista, na medida em que não

dissocia o sujeito das práticas discursivas no campo em que ele se inscreve. Em resumo,

ele afirma que “a obra é indissociável das instituições que a tornam possível: não existe

tragédia clássica ou epopéia medieval fora de uma certa condição dos escritores na

sociedade, [...] de certos modos de elaboração ou de circulação de textos”

(MAINGENEAU 2001, p.19).

Ao explicitar o propósito do livro O Contexto da Obra Literária, o autor afirma que

serão estudados “os modos de inserção da condição de escritor no campo literário”. É

através do campo que “devem ser pensadas a pertinência das obras a gêneros e correntes

estéticas, mas igualmente aos traçados biográficos dos autores.” (MAINGUENEAU

2001, p.23). Nessa perspectiva, os aspectos biográficos são redimensionados no sentido

de favoreceram a compreensão dessa imbricação vida/obra/instituição/sociedade (v.

COSTA 2005, p.42). Maingueneau então assinala:

Ao relacionar o escritor a seu espaço institucional, esforçamo-nos por mostrar o caráter ilusório de uma oposição entre uma individualidade criadora e uma sociedade concebida como um bloco. Nem por isso

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invalidaremos a existência dos criadores no funcionamento de um campo literário. A Literatura como configuração institucional condiciona os comportamentos, mas, para criar, o escritor deve explorar esse condicionamento e interferir nele. (MAINGUENEAU 2001, p.45)

O conceito de posicionamento é desenvolvido aí, portanto, para referir os gestos de

inserção no campo discursivo. Posicionar-se, segundo o autor, significa colocar em

relação um certo percurso em uma determinada esfera (a literária, por exemplo, mas

também a religiosa, a filosófica etc.) com o lugar que o autor se confere no campo, por

meio de sua obra. Essa inserção pode se dar em uma trilha já aberta ou pode ser

“fundada no próprio gesto da enunciação dessa obra, no campo discursivo”, como

esclarece Costa (2005, p.43). Maingueneau exemplifica com autores franceses:

Escrevendo ‘baladas’, Victor Hugo volta, para além do classicismo, a um gênero medieval, traça como que um percurso na esfera literária afirmando-se como ‘romântico’. Quando Baudelaire escreve um pantum, gênero poético de origem malásia, abre a poesia para o alhures, como poeta simbolista obsedado pela nostalgia de alguma ‘vida anterior’. Como,porém, o pantum já foi utilizado por poetas românticos, essa escolha assinala igualmente uma filiação. (MAINGUENEAU 2001, p. 69)

Desse modo, os posicionamentos correspondem, na história literária, à ideia de

doutrinas, escolas ou movimentos. Nesse sentido, o autor acrescenta que é explorada a

polissemia de posição em dois eixos principais: o de uma “tomada de posição” e o de

“uma ancoragem num espaço conflitual (fala-se de uma ‘posição’ militar).”

(MAINGUENEAU 2001, p. 69). Ele adverte, porém, que a noção de posição aqui

diverge da noção corrente nas primeiras fases da AD: “o posicionamento se define no

interior de um campo discursivo, enquanto a ‘posição’, da qual fala Pêcheux, é inscrita

no espaço da luta de classes.” (MAINGUENAU 2008a, p.14). Considerando as

possibilidades de aplicação do conceito, pode-se acrescentar ainda que, de maneira mais

ampla,

o termo posicionamento designa apenas o fato de que, por meio do emprego de tal palavra, de tal vocabulário, de tal registro da língua, de tais construções, de tal gênero de discurso etc., um locutor indica como ele se situa num espaço conflituoso: utilizando a lexia ‘luta de classes’, posiciona-se como de esquerda; falando em tom didático e com um vocabulário técnico, posiciona-se como especialista etc. (CHARAUDEAU e MAINUENEAU 2004, p.392)

Mas, num campo discursivo, posicionamento define o que os autores denominam de

“uma identidade enunciativa forte” e “um lugar de produção discursiva bem específico”.

E mais: “designa ao mesmo tempo as operações pelas quais essa identidade enunciativa

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se instaura e se conserva num campo discursivo, e essa própria identidade.”

(CHARAUDEAU e MAINGUENEAU 2004, p.392). Isso pressupõe a ideia de um

permanente trabalho de reconfiguração dessa identidade, que não pode ser considerada

como algo fechado, cristalizado, nem tampouco limitado aos conteúdos - o

posicionamento diz respeito às diversas dimensões do discurso, podendo se manifestar

através da escolha deste ou daquele gênero, pelas maneiras de citar etc.

2.2.5. Comunidades Discursivas

Para evitar interpretações de caráter subjetivista de sua proposta, Maingueneau

aprimora o conceito de posicionamento, articulando-o à noção de comunidade

discursiva, redes institucionais específicas que “partilham um conjunto de ritos e

normas.” (p.44). Assim, ele esclarece:

O interesse recai sobre os modos de vida, os ritos dessas comunidades restritas que disputam um mesmo território institucional. É nessa zona que se travam realmente as relações entre o escritor e a sociedade, o escritor e sua obra, a obra e a sociedade. (MAINGUENEAU 2001, p.30, grifo do autor),

Um aspecto importante das comunidades discursivas é a reciprocidade entre as

instâncias de produção e de gestão dos discursos. Maingueneau define dois tipos de

comunidades discursivas, estreitamente imbricadas: “as que gerem e as que produzem o

discurso.” (MAINGUENEAU 2008a, p.44). Na esfera literária, por exemplo, outros

papéis sociodiscursivos são mobilizados além dos autores – o papel dos críticos,

comentaristas etc. Enfatiza-se, portanto, a importância dessas duas instâncias para a

consolidação do campo discursivo em questão, através da imbricação dos papéis aí

desempenhados: “falar de ‘comunidade discursiva’ é afirmar que, por um movimento de

envolvimento recíproco, a comunidade é cimentada por discursos que são produto dessa

mesma comunidade.” (p.45)

Fica então evidente a importância dos “lugares institucionais” de onde emergem os

textos, e que de certa forma os moldam através de um conjunto de normas internas dos

grupos aí envolvidos. Vale mais uma vez assinalar que o objeto de Maingueneau é o

discurso literário, mais precisamente o período entre o século XVI e o século XX, na

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literatura francesa, “com algumas incursões contudo nas culturas vizinhas.”

(MAINGUNEAU 2001, p.23). Para exemplificar a imbricação entre as comunidades

discursivas, seus modos de vida e as redes institucionais aos quais elas se vinculam,

nesse contexto, ele afirma:

Não se pode conceber o romantismo sem a ‘boêmia’, nem os escritores das Luzes, do século XVIII, fazendo-se abstração da rede internacional da ‘República das Letras’. Não há independência entre as normas que regem os modos de vida da comunidade e o ‘conteúdo’ de seus posicionamentos.” (MAINGUENEAU 2008a, p.44)

Ele justifica seu recorte aludindo ao que Regis Debray propôs chamar de

grafosfera32, ou seja, a era de predomínio da tipografia e de consolidação da escrita no

mundo ocidental, em que “a imagem é subordinada ao texto, em que o autor coloca sua

singularidade como caução soberana” (MAINGUENEAU 2001, p.23). Trata-se da

época considerada como idade de ouro da Literatura, com a emergência de uma

intelligentsia “para quem o legível é o único fundamento do verdadeiro” (p.23)

Por fim, avaliando a situação presente da literatura, Maingueneau afirma:

Essa ‘grafosfera’ está se acabando sob nossos olhos. É claro que o escrito impresso desempenha ainda um papel essencial, existe ainda um campo literário ativo, mas a literatura, dominada pelo audiovisual, não tem mais o poder de criar acontecimentos, de impor seus ritos à sociedade. (MAINGUENEAU 2001, p.24)

Embora o enfoque de Maingueneau seja a literatura, entendemos que as

considerações teóricas por ele desenvolvidas são perfeitamente adequadas a outros

campos discursivos, ensejando a pesquisa acerca da relação entre sujeitos concretos e a

produção discursiva. Suas observações, acima, acerca da condição atual da literatura,

marcada pela diluição de seu poder de “criar acontecimentos” e “impor seus ritos à

sociedade”, graças à emergência de outras formas de produção simbólica, permitem-nos

inserir aí o discurso literomusical, essencialmente marcado pela constituição de um

espaço de confluência entre diferentes domínios semióticos. Como veremos adiante, as

contribuições de Maingueneau têm sido incorporadas de maneira exitosa ao estudo

dessa área, sobretudo a partir de Costa (2001).

32 In DEBRAY, R. Cours de médiologie générale. Paris, Gallimard, 1991.

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2.2.6. Investimento genérico

A definição dos conceitos de posicionamento e comunidade discursiva traz à

discussão a problemática dos gêneros do discurso, já abordado acima. Maingueneau

ressalta a importância das reflexões sobre gêneros para as abordagens que se ocupam da

linguagem em uso:

Ao se desenvolver em torno de uma reflexão sobre a interação enunciativa e sobre a pertinência contextual dos enunciados, as correntes pragmáticas tornaram a reflexão sobre os gêneros um eixo principal de qualquer abordagem dos enunciados. Qualquer enunciação constitui um certo tipo de ação sobre o mundo cujo êxito implica um comportamento adequado dos destinatários, que devem poder identificar o gênero ao qual ela pertence. (MAINGUENEAU 2001, p. 65)

Articulando a noção de posicionamento a essas reflexões, ainda se ocupando do

campo literário, Maingueneau assinala que a identificação de obras literárias com

determinados gêneros, quando feita pelos próprios autores – através de um subtítulo, de

uma indicação no prefácio etc. – reflete “escolhas que remetem às estratégias de

posicionamento dos autores” (MAINGUENEAU 2001, p.65)

Surge daí a concepção de investimento genérico, que entretanto não deve ser

concebida como um meio a serviço de um fim, mas como “definindo a própria

identidade de um posicionamento: o recurso a tais gêneros em vez de outros é, de fato,

parte constitutiva do posicionamento” (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU 2004,

p.290). Maingueneau esclarece:

Os gêneros literários não poderiam, portanto, ser considerados como ‘procedimentos’ que o autor ‘utilizaria’ da maneira que lhe aprouvesse para ‘passar’ de forma diversa um conteúdo estável, mas como dispositivos de comunicação em que o enunciado e as circunstâncias de sua enunciação estão implicados para realizar um macroato de linguagem específico. (MAINGUENEAU 2001, p. 66)

Para Costa (2005), o investimento não supõe uma ação individual definida por uma

opção, de acordo com intenções, mas um gesto enunciativo que se define pelas próprias

condições da enunciação. Assim, como esclarece o autor, “o sujeito é ativo e pode, a

partir de sua posição enunciativa e nos limites que ela circunscreve, gerir sua relação

com os constrangimentos (genéricos, linguísticos, institucionais etc.) que essa posição

implica.” (COSTA 2005, p.44). A título de exemplo, ele apresenta a hipótese de um

professor, que já tem um papel enunciador legitimado por seus co-enunciadores

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(alunos), poder investir, em determinadas circunstâncias, em um gênero diferente, que

quebre as expectativas de sua aula – uma conversação familiar. Entretanto, esse

professor não deve investir em uma piada grosseira, por exemplo, “a não ser que queira

perder suas credenciais de enunciador privilegiado” (COSTA 2005, p.44)

2.2.7. Ethos discursivo

O conceito de ethos, retomado da retórica grega é redimensionado, na obra de

Maingueneau, como ethos discursivo. Trata-se de uma noção que começou a ser

explorada nas teorias da linguagem, numa perspectiva discursiva, a partir dos anos

1980, e que recentemente tem sido objeto de grande interesse, por exemplo, para os

estudos de comunicação, para os estudos culturais e para a análise do discurso. Segundo

Maingueneau, esse interesse crescente pelo ethos “está ligado a uma evolução das

condições de exercício da palavra publicamente proferida, particularmente com a

pressão das mídias audiovisuais e da publicidade” (MAINGUENEAU 2008b, p.11)

Na retórica aristotélica, ethos designa a imagem de si que o locutor constrói em seu

discurso. Constitui, junto com o logos e o pathos, a triologia dos meios de prova

(Retórica, Livro I) que se emprega para garantir a persuasão. Para resumir esse triângulo

da retórica, Maingueneau alude a Gilbert (século XVIII): “instrui-se pelos argumentos;

comove-se pelas paixões; insinua-se pelas condutas: os ‘argumentos’ correspondem ao

logos, as ‘paixões’ ao pathos, as ‘condutas’ ao ethos”. (MAINGUENEAU 2008b, p.14)

A prova pelo ethos está relacionada à boa impressão que se deve construir no discurso, a

fim de convencer o auditório. A citação de Barthes33, apresentada por Amossy (2005), é

esclarecedora:

São os traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importa sua sinceridade) para dar uma boa impressão (...) O orador enuncia uma informação e, ao mesmo tempo, diz: eu sou isto aqui, não aquilo lá (BARTHES 1970, p.212, apud AMOSSY 2005, p.10).

O ponto central para a compreensão do ethos, entretanto, é a percepção de que ele

não está ligado a um saber extradiscursivo sobre o locutor, mas é pertinente à própria

enunciação. Maingueneau esclarece que, embora seja associado a um locutor, fonte da

enunciação, o ethos é definido por uma forma de dizer, - é, portanto, essencialmente 33 Bathes, R. (1970) L’ancienne rhétorique. Aide-mémoire. In: Communications, n.16, 1970, pp.172-223

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intradiscursivo. Há que se considerar, porém, que em sua elaboração intervêm “dados

exteriores à fala propriamente dita (mímica, trajes...)” (MAINGUENEAU 2008b, p.14).

De toda forma, é importante ressaltar que o ethos é algo distinto dos atributos reais

do locutor. Por isso, a tradução de ethos como “caráter”, frequentemente verificada em

português, é “bastante infeliz”, de acordo com Maingueneau (2005, p.70). Na Retórica,

claro está que se trata de uma noção ligada à própria instância discursiva:

Persuade-se pelo caráter (ethos) quando o discurso é de tal natureza que torna o orador digno de fé, porque as pessoas honestas nos inspiram uma confiança maior e mais imediata. [...] Mas é necessário que esta confiança seja o efeito do discurso, não de um juízo prévio sobre o caráter do orador (ARISTÓTELES, Retórica II, 1356a, apud MAINGUENEAU 2005, p.70)

Não obstante, alguns teóricos reconhecem aquilo que se convencionou denominar de

ethos prévio,34 ou seja, as representações do ethos que o público constrói antes mesmo

que o enunciador fale. O exemplo mais comumente referido é o domínio do discurso

político, em que os enunciadores ocupam com muita freqüência os espaços midiáticos,

sendo associados a um ethos que cada enunciação pode confirmar ou não. Além disso,

adverte Maingueneau,

mesmo que o co-enunciador não saiba nada previamente sobre o caráter do enunciador, o simples fato de que um texto pertence a um gênero de discurso ou a um certo posicionamento ideológico induz expectativas em matéria de ethos. (MAINGUENEAU 2005, p. 71)

Há, por outro lado, tipos de discurso e circunstâncias para os quais se supõe que o

co-enunciador não dispõe de representações prévias do enunciador. É o caso, por

exemplo, da leitura de um novo romance ou da audição de uma nova canção, de autores

ou intérpretes desconhecidos.

Alguns princípios mínimos, para a compreensão da dimensão sociodiscursiva do

ethos são apresentados assim, por Maingueneau:

- o ethos é uma noção discursiva, ele se constrói através do discurso, não é uma ‘imagem’ do locutor exterior a sua fala; - o ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro; - é uma noção fundamentalmente híbrida (sócio-discursiva), um comportamento socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação precisa, integrada ela mesma numa determinada conjuntura sócio-histórica. (MAINGUENEAU 2008b, p.17)

34 Cf., por exemplo, HADDAD, G. Ethos prévio e ethos discursivo: o exemplo e Romain Rolland, in AMOSSY, R. (2005, pp. 145-165). Vale salientar que o próprio Maingueneau (2005, 2008a, 2008b) reconhece a distinção entre ethos pré-discursivo e ethos discursivo.

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2.2.8. Ethos e incorporação

Trabalhando também com textos de comunicação, sobretudo no discurso

publicitário, Maingueneau introduz a noção de incorporação, para designar a ação do

ethos sobre o co-enunciador. Sua proposta amplia o alcance da compreensão do ethos na

retórica clássica, que o associa primordialmente à oralidade, “em situações de fala

pública (assembléia, tribunal...)” (MAINGUENEAU 2008b, p.17). O autor busca

enfocar também o texto escrito, considerando que “todo texto escrito, mesmo que o

negue, tem uma ‘vocalidade’ que pode se manifestar numa multiplicidade de ‘tons’,

estando eles, por sua vez, associados a uma caracterização do corpo do enunciador”

(MAINGUENEAU 2008b, p.18) – que não deve ser confundido com o corpo físico do

enunciador efetivo, ou seja, “a instância que assume o tom de uma enunciação

evidentemente não coincide com o autor efetivo da obra” (MAINGUENEAU 2001, p.

139)

Essa instância enunciativa assume o papel de fiador, cuja figura o co-enunciador

deve construir a partir de certos indícios, com base em duas categorias: o caráter e

corporalidade. O caráter constitui “um feixe de traços psicológicos”, que, no caso

específico da literatura, são “apenas estereótipos específicos de uma época, de um lugar,

que a literatura contribui para validar e nos quais se apóia” (MAINGUENEAU 2001, p.

139). A corporalidade é associada a “uma compleição física e a uma forma de se vestir e

de se movimentar no espaço social” (MAINGUENEAU 2008c, p.98). A noção de

incorporação é baseada, portanto, na identificação desse fiador e na apreensão do ethos

aí constituído. Na verdade, conforme Maingueneau salienta, a incorporação ultrapassa

a simples identificação a uma personagem fiadora. Ela implica um mundo ético [de ethos] do qual o fiador é parte pregnante e ao qual ele dá acesso. Esse ‘mundo ético’, ativado por meio da leitura, é um estereótipo cultural que subsume determinado número de situações estereotípicas associadas a comportamentos. (MAINGUENEAU 2008a, p.65)

Os exemplos apresentados situam-se no campo da publicidade, que explora

intensamente o mundo ético de estereótipos do tipo “o executivo dinâmico”, “os ricos

emergentes”, as “celebridades” etc.; o mundo ético das estrelas de cinema também é

mencionado por Maingueneau, que cita, por exemplo, “cenas como a subida dos

degraus do palácio do Festival de Cannes, entrevistas à imprensa, seções de filmagem

etc.” (MAINGUENEAU 2008c, p.18). No campo da música, ele argumenta que “a

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simples participação de um cantor num videoclipe tem como efeito inserir o fiador num

mundo ético particular” (2008c, p.18). Se tomarmos o campo do discurso literomusical

brasileiro, em particular, o processo de incorporação pode ser exemplificado através dos

diversos posicionamentos aí verificados, incluindo desde o mundo ético do sambista

malandro, a partir dos anos 20 do século passado até, mais recentemente, o mundo dos

mangueboys e das manguegirls consagrado a partir dos anos 90, com a emergência do

Manguebeat na cena musical brasileira, a partir do Recife.

O processo de incorporação se baseia, portanto, num conjunto de representações

sociais, avaliadas positiva ou negativamente, que ganham forma, na configuração

discursiva, através de estereótipos sobre os quais se apóia a enunciação. Conforme

ressalta o autor, “Esses estereótipos culturais circulam nos registros mais diversos da

produção semiótica de uma coletividade” (MAINGUENEAU 2005, p. 72), podendo ser

encontrados, por exemplo, na iconografia, no teatro, na pintura etc.; ou seja, “através da

iconografia [...], da música, da estatutária, do cinema, da fotografia..., circulam

esquematizações do corpo, valorizadoras, ou desvalorizadoras, que encarnam vários

modos de presença no mundo.” (MAINGUENEAU 2001, p.139)

Em resumo, o autor define a noção de incorporação como a maneira como o co-

enunciador se apropria do ethos instituído na enunciação, o que ocorre por meio de “três

registros indissociáveis”:

- a enunciação da obra confere uma corporalidade ao fiador, ela lhe dá corpo; - o co-enunciador incorpora, assimila um conjunto de esquemas que correspondem à maneira específica de relacionar-se com o mundo, habitando seu próprio corpo; - essas duas primeiras incorporações permitem a constituição de um corpo, da comunidade imaginária dos que aderem a um mesmo discurso. (MAINGUENEAU 2005, p.73)

As formulações do conceito de incorporação complementam, assim, uma proposta de

estudo do ethos que oferece, no quadro da análise do discurso, uma perspectiva

integradora de abordagem de diferentes manifestações da linguagem, coerente com uma

prática discursiva de caráter intersemiótico, característica do momento atual da AD,

conforme vimos acima. De fato, a proposta de Maingueneau para a abordagem do ethos

“ultrapassa bastante o quadro da argumentação”, como elaborado na retórica. Afinal,

ressalta o autor, “não vivemos no mesmo mundo da retórica antiga, e a fala não é mais

governada pelos mesmos dispositivos” (MAINGUENEAU 2008a, p.63).

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Um aspecto fundamental desta nova fase da AD é a abordagem de corpora bastante

diferenciados daqueles comumente trabalhados em seus períodos iniciais. Agora,

observa-se que o interesse de pesquisa se volta para um considerável número de gêneros

discursivos. Neste contexto, a noção de ethos se desenvolve no sentido de possibilitar a

reflexão “sobre o processo mais geral de adesão dos sujeitos a determinado

posicionamento” (2008a, p.64), analisando a sua incidência “em textos escritos e em

textos que não apresentam nenhuma sequencialidade de tipo argumentativo”

(MAINGUENEAU 2005, p.69)

A validade dessa proposta para a análise do discurso literomusical tem sido reiterada

no desenvolvimento de diversos trabalhos publicados recentemente35, enfocando, por

exemplo, a Bossa Nova, analisada como posicionamento estético que marca um

momento crucial no percurso da música popular em nosso país. Furtado (2007) salienta

que os posicionamentos bossanovistas são em geral caracterizados por um ethos de

jovem enamorado e contemplativo, que convida à intimidade de sua música e de seu espaço, do sujeito carinhoso [...] que anseia por carinho e amor, e com a sua corporalidade compõe igualmente um ethos emocionalmente frágil e sensível (FURTADO 2007, p.448)

A autora observa, ainda, que a bossa nova se define também, em termos de

incorporação, por um certo modo de executar o canto cujo modelo pode ser encontrado

em um João Gilberto, por exemplo, com seu jeito de “cantar baixinho quase falando,

numa música voltada para o detalhe e num extraordinário jogo rítmico entre o violão, a

bateria e a voz do cantor” (FURTADO 2007, p. 448)

A opção de integrar à fundamentação teórica de nosso trabalho as contribuições de

Maingueneau acerca do ethos discursivo se revela coerente com a proposta que

assumimos, para uma análise dos posicionamentos do Frevo numa perspectiva de

prática intersemiótica. Embora nos concentremos nos aspectos discursivos da canção,

nosso objeto de estudo – com ênfase nas configurações de sentido elaboradas nas letras

- buscaremos não perder de vista as outras manifestações que constituem uma semântica

global do Frevo, e que, em geral, colaboram para a definição dos diferentes

posicionamentos no campo do discurso literomusical brasileiro – a dança, a iconografia

etc.

35 Cf., por exemplo, COSTA (org.) O Charme Dessa Nação: música popular, discurso e sociedade brasileira. Fortaleza: Expressão Gráfica (2007)

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Entendemos, assim, que uma proposta de abordagem do discurso que evidencie a

importância da presença de um corpo em movimento, ou seja, de uma “concepção

encarnada do ethos”, conforme estabelecida pela noção de incorporação, recobrindo

“não só a dimensão verbal, mas também o conjunto de determinações físicas e psíquicas

ligado ao ‘fiador’ pelas representações coletivas estereotípicas” (MAINGUENEAU

2008b, p.18), oferece ferramentas de análise que nos permitirão dar conta da riqueza de

linguagens do Frevo – ou, pelo menos, nos aproximarmos desse intento, tendo em vista

que nossa pretensão não é empreender uma análise exaustiva dessa semântica global,

que se reveste de significativa importância enquanto marca identitária da cultura

pernambucana. Afinal, como ressalta o próprio Maingueneau,

Em última instância, a questão do ethos está ligada à da construção da identidade. Cada tomada da palavra implica, ao mesmo tempo, levar em conta representações que os parceiros fazem um do outro e a estratégia de fala de um locutor que orienta o discurso de forma a sugerir através dele certa identidade. (MAINGUENEAU 2008a, p.59)

2.2.9. Ethos e cena enunciativa

Incorporamos também como embasamento teórico de nosso trabalho as formulações

de Maingueneau acerca da cena enunciativa, que têm sido empregadas na análise do

discurso literomusical brasileiro (cf. COSTA 2009), para situar o ethos discursivo e

definir o quadro geral da enunciação, em que se identificam o enunciador, o co-

enunciador, a cronografia e a topografia da enunciação. Como ressalta Costa (2001), as

figuras do enunciador e do co-enunciador são representações construídas pela

enunciação, e evidentemente não equivalem aos sujeitos empíricos. Isso permite,

segundo ele, a elaboração de “jogos e disfarces enunciativos muito comuns nos diversos

tipos de produções verbais literárias ou não” (COSTA 2001, p.68) – como exemplo, cita

as personagens femininas das canções de Chico Buarque, que são enunciadas em

primeira pessoa, e que não devem ser confundidas nem com a voz do compositor nem

com a voz do locutor/intérprete da obra.

Maingueneau fala em cena englobante, cena genérica e cenografia para indicar as

condições de efetivação da enunciação, dentro de

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um quadro profundamente interativo, em uma instituição discursiva inscrita em uma certa configuração cultural e que implica papéis, lugares e momentos de enunciação legítimos, um suporte material e um modo de circulação para o enunciado. (MAINGUENEAU 2005, p.75)

Na verdade, a ideia de encenação é relativamente recorrente entre os analistas do

discurso influenciados pelas correntes pragmáticas, com base numa metáfora teatral -

Charaudeau e Maingueneau (2004) assinalam, ainda, que o termo “cena” pode ser

empregado para caracterizar “qualquer gênero do discurso que implica um tipo de

dramaturgia”. A proposta de Maingueneau se aplica, no entanto, a quaisquer outros

gêneros do discurso, evidenciando de fato a sua importância no desenvolvimento da

enunciação.

Um aspecto fundamental da noção de cena enunciativa é que a cena de fala, aquela

que interpela o co-enunciador - e que Maingueneau denomina de cenografia – não pode

ser concebida como “um simples quadro, uma decoração, como se o discurso

sobreviesse no interior de um espaço já construído e independente desse discurso. Ela é

constitutiva dele.” (CHARAUDEAU e MAINGUENEAU 2004, p.95) Está aí o que o

autor denomina processo de “enlaçamento”, observado na cenografia para descrever a

emergência de um ethos na enunciação que, “de fato, se valida progressivamente por

meio da própria enunciação.” (MAINGUENEAU 2008a, p.71). Essas considerações

afastam qualquer possibilidade de interpretação de caráter representacionista do

discurso, conforme se depreende desta afirmação:

O discurso não resulta da associação contingente entre um ‘fundo’ e uma ‘forma’: é um acontecimento inscrito em uma configuração sócio-histórica e não se pode dissociar a organização e seus conteúdos e o modo de legitimação de sua cena enunciativa. (MAINGUENEAU 2005, p. 74)

O conceito de cena enunciativa proposta pelo autor integra, de fato, três cenas, que

ele propõe chamar de cena englobante, cena genérica e cenografia, assim definidas:

1. A cena englobante diz respeito ao tipo de discurso em questão (literário,

filosófico, religioso etc.). Maingueneau esclarece com o seguinte exemplo:

“Quando recebemos um folheto na rua, devemos ser capazes de determinar a

que tipo de discurso ele pertence: religioso, político, publicitário etc., ou seja,

qual é a cena englobante na qual é preciso que nos situemos para interpretá-lo,

em nome de quê o referido folheto interpela o leitor, em função de qual

finalidade ele foi organizado.” (MAINGUENEAU 2008c, p.86).

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2. A cena genérica corresponde ao gênero do discurso – editorial, sermão, guia

turístico, consulta médica etc. – com o qual o co-enunciador se depara.

3. A cenografia corresponde à cena de fala propriamente dita. Ela não é imposta

pelo gênero, mas “construída pelo próprio texto: um sermão pode ser enunciado

por meio de uma cenografia professoral, profética etc.” (MAINGUENEAU

2005, p.75). A cenografia é considerada como a instância discursiva “de onde o

discurso vem e aquela que ele engendra”, ao mesmo tempo: “ela legitima um

enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, deve estabelecer que essa cena de

onde a fala emerge é precisamente a cena requerida para enunciar, como

convém, a política, a filosofia, a ciência...” (MAINGUENEAU 2005, p.77). No

discurso publicitário e no discurso político, por exemplo, o uso de cenografias

variadas faz parte das estratégia de persuasão que visam a “disfarçar” os

verdadeiros objetivos da comunicação. Conforme analisa Costa (2009, p.6), no

discurso publicitário a cena englobante, que pressupõe uma relação entre

sujeitos na qual se desempenha “o papel de interessado no dinheiro do outro,

que, por sua vez, é posto na condição de consumidor” é estrategicamente

encoberta, por meios de inúmeras cenografias que, a depender da criatividade

das agências publicitárias, podem captar o imaginário do co-enunciador -

atribuindo-lhe uma identidade, por exemplo.

Ressaltando a importância dos gêneros de discurso para a compreensão de sua

formulação teórica, Maingueneau aponta que há, por um lado, gêneros de discurso cujas

cenas de enunciação se reduzem à cena englobante e à cena genérica, gêneros que “se

conformam às rotinas de uma cena genérica fixa”, que organizam atividades cotidianas

em certas esferas da atividade social e profissional – os exemplos oferecidos pelo autor

são “o despacho administrativo ou os relatórios do especialista”; por outro lado, há

gêneros que se caracterizam por uma “maior possibilidade de suscitar cenografias que

se afastam de um modelo preestabelecido” (MAINGUENEAU 2005, p. 75). Ele então

conclui que, em termos das possibilidades de desenvolvimento de cenografias variadas,

os gêneros podem ser distribuídos num continuum cujos pólos extremos podem ser

indicados assim:

- de um lado, os gêneros que se atêm a sua cena genérica, que não admitem cenografias variadas (a lista telefônica, as receitas médicas etc.); - de outros, os gêneros que, por sua natureza, exigem a escolha de uma cenografia: é o caso dos gêneros publicitários, literários, filosóficos...Há publicidades que apresentam cenografias de conversação, outras, de discurso

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científico etc. Assim, há grande diversidade de cenografias narrativas em um romance. O discurso político é igualmente propício à diversidade das cenografias: um candidato poderá falara seus eleitores como jovem executivo, como tecnocrata,como operário, como homem experiente etc. (MAINGUENEAU 2005, p. 76)

Entre esses dois pólos situam-se os gêneros suscetíveis de cenografias variadas, “mas

que, na maioria das vezes, limitam-se ao cumprimento de sua cena genérica rotineira.”

(MAINGUENEAU 2008c, p.90). O exemplo, apresentado pelo autor em Análise de

Textos de Comunicação (2008c), é o de um guia turístico, o Guide Du Routard, que

“em vez de se contentar com a cena genérica do tipo didático, habitual nos guias em que

o enunciador apaga as marcas de sua presença [...] desenvolve uma cenografia original”,

que se manifesta em expressões como “realmente delirante”, “um montão de obras-

primas” etc. Para Maingueneau, essa cenografia não foi definida por acaso, mas cumpre

o objetivo de “harmonizar-se com o perfil do ‘mochileiro’” (MAINGUENEAU 2008c,

p.89).

Podemos situar também a canção, como objeto de estudo privilegiado no campo do

discurso literomusical, nesse espaço intermediário de elaboração da cena enunciativa.

Na verdade, o jogo das cenas enunciativas interessa ao estudo do discurso literomusical

brasileiro porquanto contribui para a definição de posicionamentos - de caráter estético

ou ideológico, por exemplo - em diferentes contextos históricos.

A título de exemplo, podemos mencionar o tipo de samba-canção em voga no

período entre o final dos anos 40 e início dos 60, que Matos (2005) denomina de

“samba de fossa” – e que é conhecido também como samba de “dor-de-cotovelo -, “com

letras fortemente intimistas e sentimentais” (MATOS 2005, p. 121), marcados por

cenografias elaboradas em torno de um ethos discursivo em circunstâncias de

sofrimento suscitado pelo sentimento de perda ou pela desilusão amorosa. Embora a

autora assinale que se trata de um subgênero do samba “muito praticado por

compositoras e intérpretes femininas, como Maysa e Dolores Duran” (MATOS 2005,

p.121), é grande o número de canções escritas por autores como Herivelto Martins,

Antônio Maria e outros. Ainda um aspecto interessante a ser observado na cenografia

dessas canções é que a sua interpretação, via de regra, é marcada por uma impostação

vocal peculiar, com alongamento das vogais, reiterando o efeito dramático que se

coaduna à temática em geral aí desenvolvida. O acompanhamento, marcado por

orquestrações com incidência marcante de instrumentos de corda (violinos, violoncelos,

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violas) na estruturação harmônica, completa a cena dramática, com forte influência do

bolero e da balada (MATOS 2005, p.121)

Outros exemplos interessantes da importância da cena enunciativa são apresentados

por Costa (2009) em relação ao Tropicalismo. Ele ressalta que, em várias canções, os

tropicalistas põem em evidência a cena englobante, “gerando um efeito de

estranhamento junto ao ouvinte habituado com o esquema tradicional da canção”, que

ele denomina de “narrativo”. Canções como Tropicália e Irene - ambas de Caetano

Veloso -, por exemplo, apresentam sequências em que se percebe o ambiente da

gravação, criando um efeito de sentido que permite ao ouvinte capturar um pouco do

contexto de produção da obra, evidenciando na enunciação a cena englobante que

caracteriza o discurso literomusical. A advertência feita por Costa (2009) é crucial para

a compreensão desse processo:

Atenção: a cena englobante não é esse contexto empírico e situacional em si mesmos, mas o discurso que possibilita esse contexto e que esse contexto evoca. Trata-se do mundo discursivo da música popular, que institui autoria, obras, competências; legitima e/ou consagra enunciadores, modos midiáticos de enunciação e de recepção; prestigia ou não gêneros e temáticas, timbres e dicções; funda tradições e elabora uma memória (COSTA 2009, p.5)

Essas considerações bem podem ser lidas em consonância com a interpretação de

Naves (2010) sobre a proposta tropicalista de “desconstrução da canção”, baseada em

dois movimentos básicos, a saber, a ruptura com os padrões composicionais da estética

bossanovista e a articulação com outras manifestações artísticas. Conforme Naves,

a canção tropicalista não é mais o artefato completo, totalmente contido na unidade música-letra, que fora a canção bossa-nova, pois ela só se completa com elementos externos – arranjo, interpretação, até mesmo capa de disco. (NAVES 2010, p.98)

Retirado do nosso corpus, um exemplo interessante de elaboração criativa da

cenografia na canção é Selo do Frevo, composição de Nelson Ferreira, lançada em

1976, que assume a cenografia de uma carta convite para conhecer o carnaval de

Pernambuco, endereçada a um destinatário indefinido (“Sr. Fulano de tal”):

SELO DO FREVO (Nelson Ferreira, 1976) Ilustríssimo senhor Fulano de Tal Residência mundo inteiro Onde exista Carnaval Nestas mal traçadas linhas Desculpe-as por favor Receba o convite

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Que lhe faço com ardor Venha ver o Carnaval Brasileiro Especialmente o de Pernambuco Sim, senhor! Pernambuco do frevo sensacional Dança de valor No mundo sem igual Venha, você vai gostar De na rua com o povo engrenar E ao som de um frevo danado Mergulhar na onda do passo Sem mais para sua resposta Com um forte abraço Segue um selo do frevo Meu endereço, com todo apreço Nelson Ferreira, Capital do Frevo

2.3 Delimitando e caracterizando o objeto

Situar o Frevo no campo do discurso literomusical brasileiro é uma tarefa

desafiadora. Trata-se de uma música cuja trajetória é marcada, há mais de um século,

por um traço original de fundamental importância para qualquer tentativa de

interpretação: ela é imediata e inconfundivelmente associada à terra onde nasceu – o

estado de Pernambuco. Qualquer análise do Frevo deve, portanto, dar conta de sua

dimensão simbólica enquanto marca da identidade cultural, não apenas dos

pernambucanos, mas de todo o Nordeste, se considerarmos a presença do Frevo no rico

panorama do carnaval brasileiro, diante das muitas variadas formas constituintes da

maior festa popular do país.

Assim como outras formas musicais, o Frevo nasceu da confluência de diferentes

gêneros, em um processo de configuração cujos momentos iniciais é difícil de precisar,

mas cujo período determinante pode ser localizado a partir de meados do século XIX,

quando se acentua o desenvolvimento urbano nas principais cidades do país. Assim

como o samba, para no Rio de Janeiro, o Frevo tem uma contribuição seminal para

moldar as feições do carnaval de Pernambuco, além de ter exercido grande influência

para o desenvolvimento da festa em outro centro carnavalesco importante: a Bahia.

Apesar disso, percebe-se que ele não recebe atenção à altura de sua importância, seja

nos espaços midiáticos, seja como objeto de estudo acadêmico, sobretudo nas principais

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áreas das ciências humanas – nas publicações de caráter histórico, ou de análise

sociológica sobre a produção musical brasileira, por exemplo, em geral o Frevo aparece

pouco. Analisar as razões para esse problema foge ao escopo do presente trabalho, que

desenvolvemos como uma contribuição para suprimir a lacuna, numa perspectiva de

estudos linguístico-discursivos com fundamentação teórica na Análise do Discurso

(AD) e nas concepções de Mikhail Bakhtin acerca da concepção dialógica e da teoria

dos gêneros do discurso.

A consolidação da AD como área de estudos acadêmicos no Brasil é constatada pela

atuação de grupos estabelecidos em diferentes centros, pela quantidade de títulos

publicados e pela realização de eventos de grande porte, em todo o país. Entre as razões

geralmente apresentadas para explicar o desenvolvimento da área, está a de que “ela

trouxe, para nosso contexto acadêmico, um novo e instigante olhar para a compreensão

da linguagem”, conforme salienta Faraco (in COSTA 2005, p.9). Compreendemos que

esse olhar, voltado para as relações entre língua, cultura e sociedade, definitivamente

imbricadas no desenvolvimento da atividade discursiva nas diferentes instâncias da vida

humana, tem ampliado seu alcance e profundidade quando se detém sobre

manifestações da cultura popular, com a seleção de objetos de estudo que favoreçam a

compreensão da cultura brasileira.

No caso da canção popular, uma natural inquietação pode emergir devido à relação

passional que ela pode suscitar, enquanto objeto de estudo, colocando em risco a

validade da pesquisa. Costa (2007) aponta uma solução para o problema, apresentada

por Amorim36, que consiste no gesto de estranhamento diante do objeto, um

estranhamento paradoxalmente considerado como “a própria condição de possibilidade

de conhecimento desse objeto” e concebido como “sentimento de perplexidade, de

interrogação, de suspensão da evidência do objeto” (AMORIM 2002, apud COSTA

2007, p.29). No caso da canção, tal estranhamento corresponderia, segundo Costa, a

uma “despassionalização provisória da relação pesquisador-objeto de pesquisa”, através

de, por um lado, “um processo de desconstrução da canção (separação

letra/melodia/outras semióticas)” e, por outro lado, pelo trabalho de “reaudição, que

torna momentaneamente a escuta desprazerosa, pela superação do limite em que a

repetição deixa de ser gozosa para se situar no plano da cognição” (COSTA 2007, p.30)

36 Costa (2007) cita dois trabalhos de Marília Amorim: O texto de pesquisa como objeto cultural e polifônico, publicado em Arquivos Brasileiros de Psicologia. V. 50, n.4, Instituto de Psicologia, UFRJ/Imago/CNPq (1998); e Vozes e silêncio no texto de pesquisa em ciências humanas, publicado em Cadernos de Pesquisa da Fund. Carlos Chagas. São Paulo: Autores Associados, n.116. (2002)

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O autor ressalta, ainda, a importância da teoria dialógica de Bakhtin, para que não se

deixe de contemplar o caráter polifônico do objeto de pesquisa em ciências humanas,

sem o controle higienizador das “técnicas quantitativas, [...] e de tratamentos estatísticos

que convertem sujeitos-objetos em dados, expurgam o aleatório, o imprevisível, o

assistemático” - procedimentos típicos da “maneira positivista de pensar a relação

sujeito-objeto na pesquisa científica em ciências humanas” (COSTA 2007, p.24). O

autor alude à posição de Amorim (1998), segundo a qual, por essa concepção, a palavra

do outro é desprovida de caráter enunciativo: “ela é de tal modo enquadrada e

desmembrada pelos questionários, pelas grades e pelas escalas de medida que se torna

comportamento e deixa de ser enunciação dirigida a alguém” (AMORIM 1998 apud

COSTA 2007, p.24).

A pesquisa em AD permite encarar o objeto em sua dimensão polifônica, levando em

conta a perspectiva bakhtiniana que explica a relação entre pesquisador e sujeito

pesquisado como uma relação dialógica. Nesse sentido, explica o autor, “mesmo o

produto material da cultura assume, diante do pesquisador, uma posição ativa” (COSTA

2007, p.24). No caso da canção, o termo polifonia, em seu sentido musical mesmo,

explica apenas uma das maneiras – “a mais óbvia”, como ele salienta – de apreender o

caráter polifônico desse objeto. Para Costa, a canção é polifônica

sobretudo por ser uma produção coletiva. Em uma única canção popular ouve-se de uma só vez uma torrente de vozes que advêm seja do(s) autor(es), do cantor, dos personagens figurados na canção, do arranjador, dos instrumentistas, do produtor musical, da gravadora, do meio de comunicação que a veicula etc. (COSTA 2007, p.25)

A decisão de enfocar o Frevo como objeto de estudo foi norteada pela convicção de

que estamos enveredando por duas áreas de especial interesse cultural: a canção popular

e o carnaval. De fato, uma olhada no percurso histórico da canção popular no Brasil

revela a força enunciativa de vozes que ao longo do tempo se foram configurando em

breves registros da alma brasileira, incorporando diversos elementos constitutivos da

nossa identidade – incluindo, evidentemente, as vozes que cantam o carnaval.

Nosso esforço descritivo-analítico sobre a organização discursiva do Frevo será

direcionado ao Frevo-Canção, que se caracteriza pela presença da palavra cantada, em

oposição à forma instrumental do Frevo-de-Rua. Nossa opção justifica-se por três

razões básicas, que atestam sua importância como objeto de estudo:

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1 . O Frevo-Canção é a música vinculada às primeiras agremiações do carnaval

do Recife – os clubes carnavalescos;

2 . O Frevo-Canção é a música que introduz o Frevo no cenário musical

brasileiro, através do registro em disco, em gravações realizadas no sudeste

do país, por alguns dos maiores intérpretes da música brasileira, a partir dos

anos 1930;

3 . O Frevo-Canção acompanha a dinâmica da evolução do carnaval nos

diferentes espaços da festa. Aparece, primeiro, no espaço público das ruas, no

vinculado aos clubes carnavalescos, a partir da segunda metade do século

XIX; depois, sem deixar de ter a rua como espaço fundamental de circulação,

passa a dominar também os salões dos clubes, a partir de meados do século

XX; e, por fim, ocupa também os palcos, nos pólos oficiais que compõem a

programação organizada pelas instâncias de poder (secretarias de cultura de

municípios e do governo do Estado), incluindo também os palcos móveis,

como a Frevioca e os trios elétricos.

Quanto à estruturação musical, sua principal característica é a interpretação por uma

voz solo, com acompanhamento de orquestra de metais. É uma música originada do

Frevo-de-Rua (puramente instrumental), e suas primeiras manifestações encontram-se

nas letras elaboradas de improviso pelo povo acompanhando a execução das bandas

militares, a partir da segunda metade do século XIX. Como é o gênero do Frevo que

“tem maior interface com o mundo do espetáculo e da indústria fonográfica”

(SANDRONI 2001, p. 41), seu acompanhamento musical é também feito com

instrumentos eletrônicos – teclados, contrabaixo, guitarras.

Consideramos que a análise das canções selecionadas em nosso corpus favorece a

compreensão da identidade discursiva do Frevo, em relação a outras manifestações

concorrentes no campo do discurso literomusical. Aqui, empregamos a noção de

“concorrência” no sentido amplo advogado por Maingueneau (2008), incluindo “tanto o

confronto aberto quanto a aliança, a neutralidade aparente etc...” (MAINGUENEAU

2008, p.34). Buscamos ressaltar que a constituição da identidade discursiva do Frevo,

através de seu posicionamento, dá-se por meio de um conjunto de práticas que incluem

não apenas o domínio estritamente musical (no caso do Frevo-de-Rua, instrumental) e

literomusical (letras, comentários, análises, interpretações), mas também outras

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estruturas semióticas. Essa percepção nos leva a tomar como válida a proposta de

Maingueneau (2008), para um procedimento de interpretação na perspectiva de uma

semântica global, que “não apreende o discurso privilegiando este ou aqueles dentre

seus ‘planos’, mas integrando-os todos ao mesmo tempo”. (MAINGUENEAU 2008,

p.75)

2.4. Definindo objetivos e anunciando hipóteses

Nosso objetivo geral é analisar a organização linguístico-discursiva das obras

selecionadas, com vistas à definição do posicionamento do Frevo no campo do discurso

literomusical brasileiro. Considerando, conforme Maingueneau (2008a, pp. 43-46), que

a definição de posicionamento implica a existência de comunidades discursivas, a

compreensão do posicionamento do Frevo no campo do discurso literomusical

brasileiro interessa-nos enquanto construção de sentidos para a afirmação de uma

comunidade cuja identidade constitui-se, dentre outras formas, pelos modos de dizer do

Frevo.

Para a realização desse objetivo, tomamos como base o referencial teórico-

metodológico da AD, bem como as contribuições advindas da teoria dialógica de

Bakhtin, incluindo suas formulações sobre os gêneros do discurso, conforme já

assinalamos. A opção pelo enfoque sobre os gêneros revela-se coerente com a posição

do próprio Maingueneau, ao observar que “há um consenso entre analistas do discurso

de que a noção de gênero ocupa papel central na disciplina” (MAINGUENEAU 2008,

p. 151)

Definimos um recorte histórico que compreende o período entre os anos de 1930 até

o final dos anos de 1970. Como salientamos na introdução do trabalho, trata-se de um

período de reconhecida importância para a música popular brasileira, de um modo geral

– com o florescimento da indústria fonográfica e a grande popularização do rádio – e

para o Frevo, especificamente, com a atuação da Fábrica de discos Rozenblit, no Recife.

A partir da definição desse recorte, levantamos a hipótese de que o posicionamento do

Frevo no discurso literomusical brasileiro se define, basicamente, por:

1. Canções que cumprem um papel de demarcação no terreno da música popular

brasileira, ou seja, empreendem um gesto de afirmação identitária do Frevo no campo

do discurso literomusical. Esse gesto afirmativo é definido, discursivamente, a partir da

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elaboração dos planos (vocabulário, dêixis enunciativa, temas etc.) que integram a

perspectiva de apreensão do discurso através de uma semântica global, conforme

proposta de Maingueneau acima;

2. Canções que se constituem por um caráter descritivo-narrativo, cuja organização

discursiva permite-nos identificar traços de uma relação intergenérica com o gênero

literário-jornalístico da crônica, definido por Moisés (1998, p.133) como “expressão

literária híbrida, ou múltipla [...] lugar geográfico entre a poesia (lírica) e o conto.” Esse

aspecto do posicionamento do Frevo diz respeito às peculiaridades da obra dos

diferentes compositores abordados, e é um traço característico de outros

posicionamentos no campo do discurso literomusical brasileiro.

Partindo das considerações de Maingueneau acerca da cena enunciativa (constituída

pela subdivisão cena englobante, cena genérica e cenografia), argumentamos que, no

primeiro caso acima definido, as canções põem em evidência a cena genérica, em que o

discurso é elaborado a partir das referências ao universo estritamente musical do Frevo.

Porém, os gestos enunciativos de marcação identitária extrapolam os limites do registro

cancional, e são fortemente baseados numa perspectiva integradora de outras

manifestações, sobretudo da dança do Frevo. Assim, reconhecemos um posicionamento

elaborado a partir de uma semântica global, pela qual o discurso do Frevo se organiza,

por exemplo, na elaboração de um ethos discursivo fortemente marcado, por exemplo,

pelos movimentos da dança, através do processo de incorporação. Assim, na análise das

obras, buscamos contemplar a elaboração do plano do vocabulário e da dêixis

enunciativa para uma caracterização do posicionamento do Frevo através dos diferentes

nomes de suas manifestações na música e na dança; e através da identificação explícita

de uma topografia validada, para a reiteração dos traços identitários do Frevo.

No segundo caso, analisamos canções elaboradas com base em cenografias que

articulam diferentes aspectos sócio-históricos do período enfocado na pesquisa. Os

exemplos de canções cujo projeto enunciativo assume uma feição de crônica incluem

obras que se destacam pela abordagem de costumes, fatos históricos e manifestações

linguísticas captadas do cotidiano da vida brasileira, fenômeno comum a outras

manifestações do campo literomusical, na música carnavalesca do mesmo período,

como o samba e a marchinha carioca, por exemplo.

Aspectos da inter-relação genérica, conforme proposta por Bakhtin (2000), foram

tomados como base para a análise dessas obras, a partir da hipótese de que dois gêneros

secundários, ou seja, gêneros que “aparecem em circunstâncias de uma comunicação

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cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída” (BAKHTIN 2000, p.281) –

neste caso a canção e a crônica -, se aproximam, tanto pela incorporação de gêneros

primários, como pela definição de seus propósitos comunicativos.

Tais considerações sobre a relação intergenérica são relevantes para uma

compreensão da canção num quadro geral da enunciação, ou seja, em sua dimensão

discursiva. Para abordar a canção enquanto enunciado, como unidade fundamental da

comunicação, conforme o autor russo, duas observações de Tatit (2004) se revelam

esclarecedoras: 1) “o canto sempre foi uma dimensão potencializada da fala”; e 2) “a

prática musical brasileira sempre esteve associada à mobilização melódica e rítmica de

palavras, frases e pequenas narrativas ou cenas cotidianas.“ (TATIT 2004, p.69).

Percebe-se, então, a partir dessas ponderações, que o caráter narrativo/descritivo das

letras é um traço genérico constitutivo da canção.

A definição das opções teórico-metodológicas do trabalho - com a articulação entre

a AD e contribuições das teorias de gêneros -, bem como as limitações de conhecimento

técnico da linguagem musical, de nossa parte, impuseram-nos um direcionamento

voltado mais à análise da materialidade linguística das canções, em busca das

configurações de sentido que nos permitam identificar alguns aspectos do

posicionamento do Frevo. Isso não significa, porém, que a configuração musical do

Frevo foi deixada de lado. Afinal, o caráter híbrido da canção, em sua materialidade

verbo-musical, pressupõe um olhar analítico que busque a integralidade da obra, para a

sua compreensão. A fim de cumprir essa parte do objetivo do trabalho, lançamos mão

das contribuições de Tatit (1986, 1996, 1997) para a compreensão de processos de

elaboração de sentido como a reiteração melódica e a passionalização, observados em

algumas obras.

Levando em consideração que a finalidade do trabalho não é uma descrição

exaustiva de todos os aspectos do posicionamento do Frevo no campo do discurso

literomusical brasileiro, optamos pelo critério de ordenação cronológica para a seleção

do corpus, formado por 64 (sessenta e quatro) canções que contemplam as diferentes

fases de produção do Frevo-Canção, ao longo das cinco décadas definidas como recorte

histórico da pesquisa. Após a audição de cerca de 600 obras, buscamos oferecer, na

seleção do corpus, um panorama geral dessa produção, a partir dos registros

fonográficos iniciados na década de 1930, quando o Frevo teve inúmeras gravações, no

formato 78 rotações por minuto (rpm) por algumas das vozes mais importantes da

música brasileira, no período conhecido como Era de Ouro do rádio.

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Na seleção das obras, buscamos contemplar o processo de nomeação do gênero, pela

sua inscrição nos selos dos discos, até a década de 1930, quando a denominação Frevo-

Canção passa a ser utilizada na identificação dos discos e partituras. Assim, foram

incluídas canções que sinalizam esse processo, em uma variedade de denominações,

desde “marcha”, “marcha do norte”, “marcha pernambucana” até “frevo”, simplesmente

e, finalmente, “frevo-canção” Trata-se de importante aspecto de constituição de sua

identidade genérica, ao avaliarmos que esse registro impresso marca simbolicamente a

inserção do gênero no domínio da língua escrita, nos momentos iniciais da história do

registro fonográfico no Brasil.

As fontes discográficas e bibliográficas foram selecionadas a partir de acervos

pessoais (inclusive arquivos gentilmente disponibilizados por colaboradores da

pesquisa, através de meio eletrônico, via internet, de gravações em formato original 78

rpm, digitalizados) e acervos institucionais (Rádio Universitária FM, Arquivo Público

Estadual e Casa do Carnaval) (cf. anexos). Catálogos contendo a lista das gravações em

diferentes formatos (78 rpm, LP e CD), a exemplo de Carnaval: textos, imagens e sons

(SOUTO MAIOR, CÂMARA e SPENCE, 2011), disponibilizado no site da FUNDAJ

(cf. bibliografia) e 100 Anos de Frevo (CÂMARA 2007) , bem como encartes de LPs e

CDs foram também utilizados para a composição do corpus.

Disponibilizamos, ainda, dos CD-roms Memória do Frevo – Acervo de Partituras,

publicado pela Casa do Carnaval (Prefeitura do Recife); e História do Carnaval –

Século XIX e Século XX, pelo Arquivo Público Estadual, para a consulta a periódicos

carnavalescos.

A título de ilustração da análise empreendida neste trabalho, disponibilizamos em

compact disc as gravações de 12 canções que fazem parte do corpus da pesquisa, (v. 6.3

anexo, página 218).

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3. O FREVO NO DISCURSO LITEROMUSICAL BRASILEIRO

3.1. Primeiros movimentos

Ao lado das manifestações culturais dos diversos povos indígenas, primeiros

habitantes do Brasil, e dos grupos de origem africana trazidos para cá sob o jugo da

escravidão, o processo de desenvolvimento da atividade musical no período colonial

está ligado aos ciclos econômicos da colônia, com destaque para as cidades do Recife,

Salvador e Rio de Janeiro, além das cidades históricas de Minas Gerais. Conforme

Cardoso (2008), essa atividade musical, inicialmente a cargo dos padres - com destaque

para a figura do mestre-de-capela - teve um significativo impulso com o

desenvolvimento econômico do ciclo do açúcar, fazendo surgir “com destaque na Bahia

e em Pernambuco, aquilo que podemos identificar como os primeiros sinais de vida

musical organizada no Brasil colonial” (CARDOSO, 2008, p. 36), tendo como palco

principal as igrejas. No caso de Minas, a intensa atividade musical nas principais

cidades é “fruto da grande preocupação com o ensino de música” (MIRANDA, 2007, p.

471) durante o desenvolvimento do ciclo do ouro.

Além dos grupos formados a partir do trabalho nas igrejas, destacam-se também

as bandas de música, que terão atuação importante na vida social brasileira do período

colonial. Saldanha (2008) aponta a presença, ainda no século XVII, de formações

musicais de caráter militar, denominadas Charamelas37, desde o período da ocupação

holandesa em Pernambuco. Diferentemente do que ocorre no resto do país, segundo o

autor, todas as corporações militares do Recife, Olinda e Goiana já tinham bandas

militares “formadas e mantidas pelo poder público” na metade do século XVIII,

“durante o governo de D. Tomás José de Melo [...] (1787-1798)” (SALDANHA 2008,

p.33).

Segundo Cardoso (2008), data também do século XVIII a organização das bandas

de música em Portugal, com a criação da Brigada Real da Marinha, que veio

acompanhando a família real para o Brasil, em 1808. A partir daí, cresce a importância

das bandas, que se apresentam em ocasiões como, por exemplo, “desfiles, procissões,

37 Denominação para grupo de instrumentos de que faz parte o chalumeau, instrumento francês antecessor do clarinete (cf. DOURADO 2004, p.75)

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casamentos e batizados” (CARDOSO, 2008, p. 132). Na verdade, num primeiro

momento, a ausência de músicos de qualidade, sobretudo de instrumentistas de sopro,

representava grande dificuldade na formação das bandas militares, o que resultou, no

futuro, numa situação de privilégio dos músicos dentro das corporações, como analisa

Tinhorão (2005). O autor lembra que, por conta de sua rara formação, músicos civis

eram atraídos para os quadros militares, “vestiam a farda e passavam a fazer parte do

corpo da tropa levando muitas vezes os próprios instrumentos, e passando a comportar-

se como simples funcionários, aos quais se davam frequentemente a vantagem do

pagamento do soldo de oficial.” (TINHORÃO, 2005, p.109)

A situação melhora após a proclamação da Independência, quando, além das

bandas dos regimentos de Primeira Linha, surgem também as bandas da Guarda

Nacional38, que foram “as primeiras a incluir em seu repertório, além das marchas e

dobrados de estilo, números de música clássica e popular” (TINHORÃO, 2005, p. 111).

A valorização dessas bandas garantiu a centenas de músicos de origem popular a

oportunidade de viver de sua arte e talento, conforme analisa o autor.

Destaca-se também o papel das bandas nos primeiros momentos da história do

disco no Brasil, dada a qualidade das gravações por elas realizadas, em discos de cera à

base de carnaúba, na primeira década do século XX39, no Rio de Janeiro. Conforme

Franceschi (2002), Fred Figner (tcheco de nascimento, pioneiro da indústria fonográfica

no Brasil, fundador da Casa Edison) acertou em cheio ao confiar às bandas militares a

gravação dos maiores sucessos da época. O autor descreve assim o percurso geralmente

traçado para a divulgação das composições:

As composições, editadas em partitura para piano, ao atingirem sucesso de vendagem eram solicitadas para apresentação em público. Exigiam orquestração que, em alguns casos, chegava a 50 figuras ou mais, especialmente nas grandes apresentações em teatro. Figner, na posse dos direitos de gravação fonográfica de todas as músicas, e dispondo de várias bandas militares, confiou a elas a execução de grande parte da gravação dos seus discos. (FRANCESCHI, 2002, p. 117)

Franceschi (2002) salienta que nessa época o Rio de Janeiro contava com o

melhor e mais numeroso conjunto de bandas militares do Brasil, com destaque para a

Banda do Corpo de Bombeiros, criada em 1896. Contava com o maestro Anacleto de

38 A Guarda Nacional era uma organização paramilitar de responsabilidade de grandes proprietários, criada por lei em 18 de agosto de 1831, conforme Tinhorão (2005, p.111) 39 Os discos de cera eram remetidos à Alemanha para receberem tratamento que resultava em masters negativos em cobre para posterior prensagem dos discos postos à venda (cf. FRANCESCHI, 2002)

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Medeiros como regente e incluía em seu corpo vários chorões talentosos, a exemplo do

trompetista Casemiro Rocha – autor da polca Rato Rato, sucesso em 1904 – e do

trombonista Irineu de Almeida, que era conhecido como Irineu Batina e que foi o único

professor de Pixiguinha. Segundo o autor, essa banda “soava com uma maciez de

interpretação inesperada para uma banda militar e, ao contrário das outras, com

surpreendente rendimento técnico”, tendo suas gravações um resultado “melhor do que

as gravações feitas com cantores acompanhados de piano e conjuntos de flauta, violões

e cavaquinho” (FRANCESCHI, 2002, p.118)

A importância das bandas militares para o Frevo é notória, reafirmada por

inúmeros estudiosos, como Tinhorão (2005), que o faz de forma inequívoca: “No que se

refere à música popular brasileira, a maior contribuição das bandas militares foi,

inegavelmente, a criação do frevo em Pernambuco” (TINHORÃO, 2005, p. 113).

Outros autores salientam também o papel das bandas civis - a exemplo da Charanga do

Recife, Matias Lima e Afogadense -, citadas por Silva (1991). Juntamente com as

bandas militares, essas bandas civis “eram a força do carnaval de rua do Recife. Sem

elas não havia animação nos coretos e nenhum dos grandes clubes, ou mesmo pequenas

troças, não se aventuravam a vir às ruas” (SILVA, 1991, p. XLVIII).

É ainda um militar, o Capitão Zuzinha (José Lourenço da Silva, 1889-1952)40, o

músico reconhecido como o artista que completou a transição entre as formas musicais

amalgamadoras do Frevo – em especial a polca, música de enorme popularidade nos

centros urbanos do Brasil, em fins do século XIX – e a marcha-frevo, como passou a se

chamar inicialmente. De acordo com Melo (1991), havia as polcas “saltitantes e as de

ritmo muito violento. Às últimas davam o nome de marcha-polca ou de polca-marcha.

[...] E os clubes pedestres começaram a adotar a marcha-polca e esta foi-se tornando

independente.” (MELO, 1991, p. 256). A distinção entre a polca-marcha e a marcha-

frevo consiste, segundo Silva (1991), no fato de que a primeira tinha uma segunda parte

em andamento mais lento, destinada ao canto, enquanto na marcha-frevo essa segunda

parte era também instrumental e mantinha o andamento rápido da primeira parte. Mário

Melo relembra composição que ouvira nos primeiros anos do século XX, cuja autoria

equivocadamente atribuíra a Benedito Lacerda - mas que, em conversa com o Capitão 40 Segundo o jornalista Mário Melo, o Capitão Zuzinha, vindo de Paudalho, “onde era mestre da banda de música”, chegou ao Recife “como regente da banda do 40º Batalhão de Infantaria aquartelado nas [no Forte das] Cinco Pontas [...]” e assumira a função de “ensaiador da Brigada Militar do Estado” (MELO, Mário. Origem e Significado do Frevo, in SOUTO MAIOR, M. e SILVA, Leonardo D. Antologia do Carnaval do Recife, Massangana, 1991, originalmente publicado em Anuário do Carnaval Pernambucano. Recife, 1938)

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Zuzinha, certificou-se de que era este mesmo o seu autor. Para Melo, trata-se do mais

antigo frevo, a obra que estabelece “a linha divisória entre o que depois passou a

chamar-se frevo e a marcha-polca” (MELO, 1991, p. 256), embora essa conclusão seja

contestada por autores como, por exemplo, o musicólogo e compositor Samuel Valente

(2007). Segundo Valente, foi o próprio Mário Melo que, tendo esquecido o título da

referida obra, sugeriu batizá-la de Divisor de Águas, sendo incluída pelo maestro Nelson

Ferreira no repertório da coletânea Carnaval do Recife Antigo, lançada pelo selo

Mocambo (LP n. 10021), da Gravadora Rozenblit, em 1957.

Saldanha (2008) assinala ainda que a marcha-frevo escrita por Zuzinha tinha

uma característica importante, que viria a definir o formato do Frevo instrumental

(posteriormente denominado Frevo-de-rua): a segunda parte, chamada de resposta,

configurava, na elaboração musical da obra, um diálogo “de perguntas e respostas, entre

metais (trompetes, trombones e tubas) e palhetas (clarinetes, requinta e saxofones)”

(SALDANHA, 2008, p. 47).

É fato que a presença das bandas militares na evolução histórica do Frevo não se

resume a esse período inicial, mas se prolonga até o século XXI. Uma evidência disso é

a participação da Banda da Polícia Militar de Pernambuco nas gravações dos discos da

série O Tema É Frevo, coordenada pelo radialista Hugo Martins, que comanda o

programa homônimo desde 1967, na Rádio Universitária, emissora da Universidade

Federal de Pernambuco. A série de discos, originalmente lançada em LP, em dez

volumes (de 1977 a 1999), é também apoiada pelo CEMCAPE (Centro da Música

Carnavalesca de Pernambuco), entidade fundada em 1986, que funciona numa sala da

Casa da Cultura, antiga Casa de Detenção, no centro do Recife. Dentro do programa de

ações comemorativas pelo centenário do Frevo, em 2007, a Prefeitura do Recife editou

uma caixa com os dez discos da série em formato CD (compact disc).

Também é notória a contribuição de militares para o Frevo tocado nas ruas, nos

dias de hoje, mesmo que as corporações militares não se apresentem no carnaval.

Conforme salienta o maestro Ivan do Espírito Santo, arranjador da Banda da

Aeronáutica e maestro da orquestra Henrique Dias (civil), em entrevista realizada em

25/09/2006 e publicada no volume História do Frevo, Acervo de Partituras - trabalho

realizado como ação do plano integrado de salvaguarda do Frevo, após a elevação do

Frevo à condição de patrimônio cultural imaterial do Brasil -, “quase todos os músicos

das orquestras de frevo que tocam principalmente no Recife e em Olinda são militares, é

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muito normal eles estarem nas orquestras de frevo, além de um prazer é um rendimento

extra”. (RECIFE, 2010, p. 23)

3.2. A marcha rumo ao Frevo

Claro está, portanto, que o processo de configuração do Frevo, como gênero

musical, é tributário da atuação das bandas, ainda no século XIX. A música – assim

como as formas de dança - executada então nas apresentações das agremiações variava

bastante, incluindo desde a valsa até a quadrilha, o scottish, o galope, o dobrado e a

polca. É o que se vê, por exemplo, nesta notícia publicada no Diario de Pernambuco, já

no início do século XX (em 4 de fevereiro de 1906), anunciando a estréia da Troça

Carnavalesca dos Acendedores, com o seguinte programa:

Overture, pelo grande corpo de profanos Zé Pereira e seu rancho. [...] o bailado ‘Meu Bem vai dá’ [...] o tanguinho Maria [...] a cançoneta Vacina Obrigatória [...] Finalmente, será organizada uma quadrilha em que tomarão parte toda companhia. (in RABELLO, 2004, p.117, grifo nosso)

Entretanto, na evolução das formas musicais incorporadas pelas agremiações

destaca-se a marcha, gênero embrionário de boa parte da música carnavalesca no Brasil,

em geral – e do Frevo, em particular. A marcha é, por exemplo, matriz da música

levada às ruas pelos ranchos, no Rio de Janeiro, e pelos clubes, no Recife. Também dela

originou-se a marchinha, gênero inicialmente consagrado nos salões de bailes de

carnaval do Rio, depois levada para outras partes do país. Conforme definição de

Dourado (2004, p. 194), a marcha é uma música apropriada ao acompanhamento de

desfiles, “em compasso binário ou quaternário, fortemente acentuado”. A esta liga-se o

dobrado, designação genérica para a música das bandas militares41. A marcha

consolidou-se definitivamente a partir do Barroco, sobretudo entre os franceses,

“tradicionalmente seus grandes cultores” (o autor lembra, inclusive, que a Marseillaise

“não é exatamente um hino, mas uma marcha.”) (DOURADO, 2004, p. 194).

Após o período em que se verifica maior influência do carnaval europeu no

Brasil – até meados do século XIX, aproximadamente - com a realização de bailes em

teatros e salões fechados, além das mascaradas a cavalo, os grupos carnavalescos no

Recife, sobretudo clubes e troças, tomam definitivamente as ruas, a partir da década de

1880, caracterizando-se suas apresentações pela execução de manobras e coreografias

41 O termo advém da utilização do dobramento, ou seja, a execução de uma mesma parte musical em uníssono ou em oitava, por mais de um instrumento, para melhor projeção do som do conjunto, conforme definição do Dicionário de Termos Musicais (DOURADO 2004)

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ensaiadas. Segundo Araújo (1996), algumas dessas manobras, as mais elaboradas,

“exigiam semanas de ensaios [e] representavam temas” (ARAÚJO, 1994, p. 338).

Notícia do extinto Jornal do Recife sobre o Clube Caiadores traz, por exemplo, a

programação para o domingo e a terça-feira do carnaval de 1890, com a denominação

dos passos e manobras:

O Clube Carnavalesco Caiadores sairá em passeata amanhã e terça-feira dançando em pontos indeterminados os seguintes passos: Evolução, Águas de Beberibe, Como porque Gosto, Torneio das Flores, Canção do Amor, Ai Caiador e fazendo as seguintes manobras: Viagens ao Pólo Norte, Parafuso. Zig-zag, Ao Redor do Mundo,Jardim Botânico e 15 de Novembro. (RABELLO, 2004, p. 144)

A popularização da marcha e a sua transmutação nas primeiras formas do Frevo

coincide, então, com a mudança do tipo de exibição dos clubes e troças, já nos primeiros

anos do século XX. Se a execução das manobras e passos ensaiados requeria a

disposição dos dançarinos em círculo, como analisa Silva (2000), o surgimento do

Frevo fez com que a dinâmica das apresentações se caracterizasse então por um

“movimento único de toda uma massa em desfile, trazendo os passistas numa só onda, a

invadir as ruas como se fizessem parte de um mesmo rio caudaloso” (SILVA, 2000, p.

105).

Constata-se, portanto, que o surgimento do Frevo dá-se no contexto de formação

das primeiras agremiações do carnaval do Recife, com a redefinição de sua forma de

apresentação pública. A descrição e análise da formação e da atuação desses grupos, por

autores como Araújo (1996), revelam também a complexidade das relações sociais aí

estabelecidas, no mundo do carnaval, refletindo a própria complexidade de uma

sociedade marcada por tensões e contradições, recém-saída de um longo período de

escravidão. Em resumo, esse contexto sócio-histórico é definido assim pela autora:

Desse mundo em ebulição, perpassado por transformações econômicas, políticas e sociais, de reformulação do espaço e do modo de vida urbanos, em que formas de associações e de manifestações coletivas antigas e tradicionais conviviam e, até mesmo, geravam outras novas, em meio a tudo isso, nasceram os clubes carnavalescos pedestres e, junto com eles, o frevo. (ARAÚJO, 1996, p. 335)

Em linhas gerais, a autora destaca os seguintes aspectos pertinentes à formação e

à atuação dos clubes carnavalescos:

1. São herdeiros de tradições variadas, “mantenedoras de costumes, elementos e

formas de organização e de manifestação pública e coletiva de longa existência

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histórica”, dentre as quais se destacam as corporações militares – dos quais

incorporaram a música e as manobras (incorporaram, por exemplo, a figura da

“baliza puxante”) - e as corporações religiosas, das quais assimilaram a

formação processional dos desfiles, percorrendo um mesmo itinerário e tendo à

frente um estandarte42;

2. São organizados nos moldes de outras associações civis – sociedades religiosas,

beneficentes, dramáticas, literárias, artísticas e recreativas -, regidas sob um

estatuto que define uma hierarquia rígida, sendo eleita periodicamente uma

diretoria que comandava um corpo de associados dividido em várias categorias.

3. Seus integrantes têm afinidades de diferentes ordens, seja a origem nacional

(como o Canna Verde e os Immigrantes Contractados, formados por

portugueses), sejam as relações de parentesco ou de vizinhança, seja ainda o

pertencimento a uma mesma categoria profissional.

Analisando a formação desses últimos grupos, constituídos por profissionais de uma

mesma categoria, a autora pondera que “as associações carnavalescas funcionavam,

enfim, como um canal de expressão e de acesso da classe trabalhadora ao mundo da

ordem constituída”, valendo como um mecanismo de “fortalecimento de uma identidade

social e cultural para os membros da classe trabalhadora” (ARAÚJO, 1996, p. 347),

num momento de profundas mudanças, que incluíam a emancipação dos escravos, o

crescimento do fluxo migratório para a capital e a consequente proletarização do

homem do campo, além da expansão das atividades e serviços urbanos. Como evidência

dessas mudanças, nos termos do crescimento populacional da capital, Araújo lembra

que, no período entre 1872 e 1920 “a população da cidade mais que duplicou, passando

de um total de 116.671 para 238.843 habitantes.” (ARAÚJO, 1996, p. 312).

Até as primeiras décadas do século XX, a música das agremiações passa por um

processo intenso de reconfiguração, vindo a sofrer várias influências. Trata-se de um

fenômeno comum no panorama da música brasileira, analisada por inúmeros autores

(cf. TATIT, 2004; NAPOLITANO, 2007) e reconhecido como um traço delineador da

originalidade e da riqueza de nossa música popular, considerando-se, por exemplo, a

riquíssima contribuição africana, além das manifestações dos povos indígenas e da

42 No caso dos blocos carnavalescos, cuja música característica é o Frevo-de-bloco (ou marcha de bloco), o símbolo conduzido à frente do grupo chama-se flabelo, espécie de leque ou ventarola usada em antigas celebrações litúrgicas. Além disso, trata-se de um tipo de agremiação influenciada, em sua formação e no tipo de música, pelas jornadas de pastoril.

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influência europeia – no Recife, por exemplo, destacam-se as contribuições portuguesas

e italianas para a música carnavalesca (cf. SILVA, 2000; ARAÚJO, 1994). Enfocando o

século XX, período de consolidação e disseminação da canção enquanto prática artística

de reconhecida relevância na cultura brasileira, Tatit (2004) ressalta que, ao longo desse

período, nossa canção incorporou

uma grande variedade de fisionomias que, embora não trouxesse qualquer obstáculo para o pronto reconhecimento da maioria dos ouvintes, tornou trabalhosa sua definição artística e, acima de tudo, sua apreciação crítica (TATIT, 2004, p. 11)

Como veremos adiante, é a partir desse momento que a música das bandas passa

a receber letras, configurando o que posteriormente – na década de 1930 – seria

denominado Frevo-canção. Nesse processo, a música recebeu designações diversas, nos

registros impressos (nas partituras vendidas nas casas especializadas e nos selos dos

discos) desde as primeiras gravações. A partir de 1923, quando a primeira canção

carnavalesca pernambucana é gravada (Borboleta Não é Ave, parceria de Nelson

Ferreira e J. Borges Diniz, interpretada por Baiano e identificada como marcha no selo

do disco Odeon, nº 122.384) os nomes empregados para identificar o gênero musical

variavam de simplesmente marcha a marcha pernambucana, marcha nortista e marcha

carnavalesca pernambucana, dentre outros. Era, na verdade, o Frevo, ainda sem o seu

nome de batismo musical, empregado àquele momento para designar a folia nas ruas43.

A compreensão desse processo interessa-nos para uma tentativa de definição dos

primeiros aspectos do posicionamento do Frevo no campo do discurso literomusical

brasileiro. Reconhecendo a complexidade do fenômeno caracterizado pela hibridização

das formas musicais, nesse momento, marcado, no caso do Frevo, pela transformação

nos desenhos rítmicos dos arranjos e orquestrações, consideramos como Frevos-canção,

em nosso corpus, inclusive as obras desse período identificadas por outros nomes, tais

como aqueles acima referidos.

De fato, as primeiras ocorrências do nome Frevo na história do disco no Brasil

são do início dos anos de 1930. Primeiro, na letra de Sá Zeferina Tá de Vorta, de

Valdemar de Oliveira (sob pseudônimo e José Capibaribe), disco Victor 78 rpm nº

43 Em biografia recente do Maestro Nelson Ferreira (Nelson Ferreira, o Dono da Música, lançado em 2009), a autora, Ângela Belfort, afirma que “uma música de Nelson foi o primeiro frevo gravado em disco, Borboleta não é Ave” (BELFORT 2009, p.33, grifo nosso)

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50160, de 18 de janeiro de 1930, com interpretação de Mário Pessoa44; depois, no título

de uma parceria de Luperce Miranda e Osvaldo Santiago, Frevo Pernambucano, de

1931, interpretada por Francisco Alves e Orquestra Copacabana, (disco Odeon 78 rpm

nº 10.757-A), gravada sob a classificação de “marcha carnavalesca”, segundo inscrição

no selo do disco. Além disso, conforme salienta Samuel Valente (2007, p. 11), outras

composições famosas do mesmo período, reconhecidamente frevos, “aparecem nos

selos dos discos como marchinhas”, a exemplo de Dobradiça (de Nelson Ferreira,

interpretada pela Orquestra Diabos do Céu, pela gravadora Victor) e É de Amargar (de

Capiba, interpretada por Mário Reis, também pela Victor).

Ainda em termos estritamente musicais, a comparação entre o desenvolvimento

da marcha no Sudeste do país – especialmente no Rio de Janeiro – e no Recife, onde

culminaria no Frevo, é estabelecida assim pelo alagoano Diegues Jr. (1991):

Nas marchas dos clubes carnavalescos o ritmo do frevo, ritmo verdadeiramente do Nordeste, está melhor acentuado. É preciso antes de tudo frisar um ponto: a diferença entre a marcha do Sul e a do Nordeste. A do Sul se marca por [ser] quase sempre descendente, coisa, aliás, muito notada na música brasileira. A do Nordeste é mais vibrante (quando falo em marcha do Nordeste me refiro, em particular, ao frevo). Mais sensual. Animada de um sabor tropical. (DIEGUES JR., M.1991, p.241)

3.3. A música no disco, o Frevo na música popular

A importância desse período na história da música, especialmente da música

popular, com o surgimento da tecnologia de gravação, é analisada sob diferentes

enfoques por autores como Heloísa Valente (2007) e Tatit (2004). A primeira,

remetendo-se ao conceito de performance, definido por Zumthor, salienta que “a

midiatização técnica da música é responsável pela multiplicação das possibilidades da

performance”. Noção inicialmente aplicada à poesia oral, a performance é definida

como “o ato pelo qual um discurso poético é comunicado por meio da voz e, portanto,

percebido pelo ouvido” (ZUMTHOR, 2005, p. 86). Assim, a performance musical

compreende não apenas o ato de cantar e tocar os instrumentos, mas “todos os

elementos que participam da ação cênica, ou seja, os gestos, o teatro, a reação da

44 A informação é um achado do pesquisador Renato Phaelante, da FUNDAJ (Fundação Joaquim Nabuco) publicado em 19 de maio de 2011 em http://artepesquisa.blogspot.com/2011/05/o-frevo-na-discografia-brasileira.html <acesso em 30 de julho de 2011>

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audiência” (VALENTE, 2007, p. 81). A partir do desenvolvimento da tecnologia de

gravação, portanto, as possibilidades de performance ampliam-se significativamente,

através do suporte do disco e, quase concomitantemente, através das ondas sonoras do

rádio. Antes disso, como salienta a autora, “a única relação que um ouvinte tinha com a

música dava-se através da performance ao vivo” (VALENTE, p. 81).

Tatit (2004), por sua vez, recorre à semiótica para explicar não apenas esse

momento, mas todo o percurso criativo da música popular brasileira no século XX,

através da oposição dos conceitos de mistura – caracterizada pelo processo de

assimilação, em geral tomado como fenômeno de enriquecimento da cultura brasileira –

e de triagem, esta marcada pelo processo de extração, que, ao contrário da assimilação,

“contínua e gradativa, tem caráter de intervenção cultural e, portanto, de demarcação

histórica.” (TATIT, 2004, p. 92). Segundo o autor, a extração se manifesta

por uma operação simultânea de eliminação e seleção de valores, considerados respectivamente como indesejáveis e desejáveis, de acordo com a visão de mundo de um grupo social num período histórico determinado. (TATIT, 2004, p. 93)

Ele argumenta, então, que a chegada da tecnologia de gravação no país marca a

ocorrência de uma triagem “de ordem técnica, que deixou de fora toda a sonoridade

refratária aos novos recursos” (TATIT, 2004, p. 93), incluindo aí os gêneros musicais

associados, por exemplo, à dança (congada, lundu etc.), às procissões e à luta (como a

capoeira), já que eles “pouco tinham a oferecer à nova técnica uma vez que sua

sonoridade dependia diretamente da expressão do corpo e da elaboração cênica”

(TATIT, 2004, p. 93). Da mesma forma, a batucada teria sido eliminada nesse processo

de triagem, devido ao alto volume percussivo, muito além da capacidade de captação

das precárias máquinas de gravação do começo do século. O autor aponta, então, o

samba cantado, em sua forma de partido alto, como o gênero selecionado para figurar

como objeto privilegiado da nova tecnologia, que já se mostrara eficaz no registro da

voz humana.

A esse respeito, aproximamos a análise de Tatit (2004) às considerações de

Cabral (1996), que destaca algum avanço nas condições técnicas de registro da

produção musical do período, no Rio de Janeiro, apenas a partir da década de 1930.

Desse ano mesmo, ele aponta como exemplo os sambas Na Pavuna (Almirante e

Candoca da Anunciação) e Dá Nela (Ari Barroso), observando que Na Pavuna foi o

primeiro samba gravado com acompanhamento dos instrumentos de percussão

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tipicamente usados nas execuções ao vivo, uma verdadeira façanha que, “para ser

levada a termo, levou Almirante a discutir muito tempo com o técnico de gravação, um

alemão que considerava impossível ser levado para o disco o som do surdo, do

tamborim e do pandeiro.” (CABRAL, 1996, p. 25). Já o samba Dá Nela “inaugurou

uma nova era para a marcha carnavalesca, dando-lhe, com o emprego de instrumentos

de sopro [...] um vigor que Ari Barroso classificou de ‘militar’” (CABRAL, 1996, p. 25)

Cabral vê aí, nessa declaração de Ari Barroso, uma influência da “dinâmica do

frevo - música e dança que começava a se espalhar pelo país“ (CABRAL, 1996, p. 26).

A observação revela-se interessante, considerando que, em geral, a presença do Frevo –

ou da marcha pernambucana, como ainda era denominada – no cenário musical do

período é geralmente negligenciada na bibliografia sobre a história da nossa música

popular, que toma como referência o que se produzia na então capital federal, onde veio

a florescer a indústria fonográfica do país. Não obstante a ausência de um olhar crítico

mais aprofundado sobre a importância da música carnavalesca pernambucana no

panorama da música brasileira desse período, é grande a lista de intérpretes consagrados

em cuja obra se encontram gravações de Frevo (especialmente o Frevo-canção),

sobretudo a partir do desenvolvimento do rádio como fenômeno de comunicação de

massa, constituindo-se como fator determinante para a consolidação de uma tradição

cultural com base na canção popular, como veremos adiante.

A popularização do rádio, a partir da década de 1930, juntamente com a

institucionalização do carnaval como nossa maior festa popular, são os dois eventos

apontados como marcos referenciais do que Tatit (2004) chama de segunda triagem na

nossa música popular. Para o autor, essa segunda triagem “delineou de uma vez por

todas a linguagem da canção popular brasileira”, com o desenvolvimento das principais

formas de compatibilização entre melodia e letra, baseadas numa fórmula “que previa

sempre um refrão como primeira parte e uma variação melódica (sobre a qual se

dispunham as diferentes estrofes da canção) como segunda.” (TATIT, 2004, p. 97) Até

então, as experiências de registro em disco incluíam, em geral, canções que se

desdobravam “em três ou quatro partes com ritmos distintos, mais sintonizadas com a

instabilidade das brincadeiras de roda do que com as soluções bem definidas das

canções de consumo” (TATIT, 2004, p. 96). Um exemplo desse tipo de canção é Pelo

Telefone, considerado como primeiro samba gravado, em 1916, originalmente uma

criação coletiva dos músicos e boêmios frequentadores da casa Tia Ciata (Hilária de

Almeida, baiana fundadora do Rancho Rosa Branca), registrado na Biblioteca Nacional

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pelo compositor Ernesto dos Santos (o Donga) como obra sua em parceria com Mauro

de Almeida.

Por esse tempo, as possibilidades de gravação em disco haviam se estendido a

gêneros populares provenientes do meio rural e folclórico, a canções de Catulo da

Paixão Cearense e Cândido das Neves e a grupos regionais como os Turunas da

Mauricéia, que haviam saído do Recife para conquistar o Rio de Janeiro, fazendo

grande sucesso. Concomitantemente, seguia nas ruas o processo de consolidação dos

dois grandes gêneros da música carnavalesca brasileira: a marcha e o samba.

Em relação à marcha carnavalesca, esse processo é marcado por significativas

diferenças verificadas nos dois principais centros carnavalescos do país, o Rio de

Janeiro e o Recife. Embora a música tenha servido, nos dois contextos, para definir uma

nova dinâmica da festa na rua - com os clubes no Recife e os ranchos, que, “ao

adotarem a formação das procissões religiosas, instituíram um mínimo de disciplina em

meio ao caos do carnaval”, no Rio de Janeiro, segundo Tinhorão (1991, p. 119), as

configurações de ordem musical são bastante distintas. No Recife, como já vimos, o

desenvolvimento da marcha dá-se a partir da música das bandas militares, contando

com ferrenhos seguidores em seus desfiles pelas ruas, ensaiando os primeiros

movimentos da dança do Frevo, com nítida influência da capoeira como veremos

adiante. Já no Rio de Janeiro, a marcha é caracterizada inicialmente como música da

classe média, com “influências rítmicas do final da Primeira Grande Guerra [...] o

sentimentalismo da modinha brasileira, a alegria dos rimos americanos do charleston e

do one-step e muito das marchas das revistas portuguesas” (FRANCESCHI, 2002, p.

269). Segundo Tinhorão (1991) a marcha, “criada cerebrinamente por uma compositora

de classe média [Chiquinha Gonzaga] em 1899” (TINHORÃO, 1991, p. 119), teria que

esperar pelo menos duas décadas para se vulgarizar. Aqui, o autor analisa o processo de

“curiosa ascensão social” dos ranchos, que aos poucos deixou de ser “coisa exclusiva de

negros para admitir a mestiçagem e o semi-eruditismo de músicos que os

transformariam em verdadeiras orquestras ambulantes” (TINHORÃO, 1991, p. 119).

Enquanto no Recife a marcha - já designada no sudeste como marcha pernambucana -

evoluiria para o Frevo, no Rio de Janeiro ela evoluiu para “uma forma de marcha

cadenciada e dolente, mais tarde fixada como gênero sob o nome de marcha-rancho.”

(TINHORÃO, 1991, p. 121).

No mundo incipiente do disco, então, a marcha carioca, que depois evoluiria

para a marcha-rancho e também para a marchinha, é tomada como referencial do

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gênero, nos registros fonográficos. Ainda que se reconheça, conforme vimos acima, de

acordo com Cabral (1994), a influência do Frevo - materializada sobretudo na presença

de instrumentos de sopro, principalmente o trompete, em algumas gravações - , é

verdade também que o resultado do Frevo gravado no Rio de Janeiro não agradava aos

compositores pernambucanos, dadas as particularidades do seu registro no disco - as

configurações harmônicas de sua orquestração, o andamento etc. A questão é analisada

sob diferentes perspectivas, ora numa visão determinista, por Oliveira (1985), por

exemplo, ao avaliar que, para atender às expectativas de seus autores, o Frevo só

poderia ser executado por músicos pernambucanos (“Reclama, a execução do frevo,

sangue pernambucano nas veias.” OLIVEIRA 1985, p. 54); ora numa percepção da

exploração mercadológica das gravadoras, conforme avalia Tinhorão (1991):

É verdade que, ao serem lançados em Pernambuco esses frevos gravados nas fábricas estrangeiras com filiais no Rio de Janeiro – principalmente a RCA-Victor, pioneira da tentativa da conquista dos mercados regionais usando matéria-prima musical local -, o público reagiu desfavoravelmente ante a contrafação rítmica que os cariocas lhes mandavam. O descontentamento se refletiu na aceitação dos discos, o que foi resolvido de uma maneira bastante exemplificativa do imperialismo econômico-cultural exercido pelo sul do Brasil em relação ao nordeste, no plano da música popular: um maestro pernambucano foi enviado ao Rio de Janeiro para ensinar aos músicos cariocas como deveriam usar, de maneira exata, a matéria-prima musical que logo, transformada em produto industrial sob a forma de discos, seria enviada para colher lucros no seu mercado (TINHORÃO 1991, p.145)

É assim que, diante da insatisfação gerada pelas gravações realizadas no Rio de

Janeiro, a Federação Carnavalesca envia àquela cidade o Capitão Zuzinha, responsável

por ensaiar e orientar os músicos nas gravações dos frevos vencedores do concurso

anual promovido pela entidade, já nos anos de 1930. Conforme analisa Oliveira (1985),

antes disso o que chegava do Rio de Janeiro tinha qualidade sofrível, “as notas

certinhas, sim, mas o andamento, errado, o ritmo, frouxo. Foi necessário reescrever as

instrumentações, controlar a execução, encrespar os músicos.” (OLIVEIRA 1985, p. 54)

É ainda ao longo das duas primeiras décadas do século XX que se inicia o

processo de consolidação do samba como gênero da nossa música popular a que se

vinculará de maneira mais efetiva uma certa ideia de nacionalidade, instaurando na

música popular brasileira uma tradição cultural que se desdobrará em novas formas dele

derivadas ao longo do século, incluindo, por exemplo, o samba-canção, o samba-enredo

e a bossa nova. A possibilidade de gravação em disco constitui um fator decisivo para

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esse processo, sobretudo a partir de 1927, quando é introduzido o sistema de gravação

elétrica no país, melhorando a qualidade dos registros fonográficos.

A consagração do samba como música representativa da brasilidade é explicada,

numa perspectiva sociocultural, como resultado de um duplo movimento: “por um lado,

das elites e das camadas médias escolarizadas, em processo de afirmação de valores

nacionalistas [...]; por outro lado, das classes populares, em busca de reconhecimento

cultural e ascensão social.” (NAPOLITANO, 2007, p. 27) Em termos estéticos, a

valorização do samba ia ao encontro do projeto modernista de valorização das

manifestações mais autenticamente brasileiras, das quais o novo gênero musical era uma

boa tradução. Evidentemente, porém, esse processo não se desenvolve sem conflitos.

Para Tinhorão (1991), por exemplo, a história do samba nesse momento é marcada por

um certo amaciamento do gênero, em termos musicais, para atender ao gosto das

camadas médias da sociedade carioca, já que a sonoridade ainda muito vinculada aos

requebrados do maxixe revelava-se “um pouco rude ao ouvido” desse público, mais

afeito “à tradição melódica européia das valsas, schottisches, polcas e mazurcas do que

à complicação rítmica herdada dos negros africanos, através dos seus filhos e netos”

(TINHORÃO, 1991, p. 126). O autor argumenta ainda que processo semelhante teria se

dado com o Frevo, no Recife, como maneira de controlar a ebulição do frevedouro na

rua, refreando também a atuação dos capoeiristas que acompanhavam as bandas e

fanfarras em desfile. Citando Oliveira (1985) e outros autores, Tinhorão aponta como

evidências desse refreamento da música a criação dos blocos, as dificuldades técnicas

para a consolidação de uma produção maior do frevo instrumental, devido ao

virtuosismo que o caracteriza, e a emergência de um novo gênero, o Frevo-canção.

Conforme veremos adiante, sua argumentação apresenta lacunas que suscitam alguns

questionamentos.

De toda forma, a inserção do samba no panorama cultural do país é um

acontecimento definitivo que marca o estabelecimento de uma linha mestra no

desenvolvimento da tradição musical brasileira, cuja importância pode ser

compreendida simbolicamente através da própria designação do novo gênero, em torno

do qual será elaborada toda uma prática discursiva, a partir de então. Conforme analisa

Tatit (2004):

a palavra samba congregava sonoridade e significados africanos, práticas corporais (batuque e umbigada) dos ritos negros dos séculos anteriores, ambientes rural e urbano, gêneros como choro e maxixe e, ao mesmo tempo, libertava a canção da métrica tradicional, cedendo espaço à voz que fala com seus acentos imprevisíveis (TATIT 2004, p.147)

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O início da consolidação do samba é simbolicamente marcado, então, pela

inscrição do gênero musical desde a primeira gravação, no selo do disco Pelo Telefone,

em 1916. Na análise desse período inicial da nossa música popular, considerando a

afirmação dos gêneros que definirão os diversos posicionamentos no campo do discurso

literomusical brasileiro, ressaltamos a importância desse registro impresso, contendo

informações básicas sobre a gravação (título da obra, gênero, autoria), por duas razões:

em primeiro lugar, ele configura um gesto inicial de inserção de uma manifestação

artística essencialmente circunscrita à oralidade – a música popular - no universo da

cultura letrada (a identificação do gênero era feita também nas partituras

comercializadas nas lojas de instrumentos e de discos). Posteriormente, na era dos

discos em formato LP, essa inserção será ampliada com a confecção de álbuns contendo

informações escritas sobre todos os indivíduos envolvidos na produção da obra (ou seja,

sua ficha técnica), além das letras, fotografias etc.; em segundo lugar, ele revela a maior

complexidade do processo de consolidação do Frevo como gênero musical - em relação

ao próprio samba, por exemplo -, dada a variedade de termos pelos quais a música

pernambucana foi inicialmente designada, até finalmente estabelecer-se com os seus

nomes definitivos (Frevo-de-rua, Frevo-de-bloco e Frevo-canção), a partir dos anos de

1930.

Para compreender o seu posicionamento no campo do discurso literomusical

brasileiro, consideraremos as práticas discursivas elaboradas em torno do Frevo, a partir

do Frevo-Canção, desde os momentos iniciais, quando a música ainda era denominada

marcha pernambucana (e suas variantes, como marcha nortista, por exemplo), no

contexto sociocultural de desenvolvimento do carnaval pernambucano, desde fins do

século XIX. Consoante a proposta de Maingueneau (2008) de apreender um discurso

tendo em vista uma semântica global, contemplamos, assim, o plano do vocabulário,

dentre outros planos discursivos (temas, modos de enunciação etc.), de forma a integrá-

los em nossa análise, numa tentativa de descrever alguns aspectos de uma semântica

global do Frevo, elaborada a partir do ethos discursivo desenvolvido nas canções, ao

longo do século XX.

Diante da grande diversidade que sempre caracterizou a produção do campo

discursivo literomusical, na história de nossa música popular, marcada, como lembra

Costa (2001), por “conflitos e congraçamentos entre a grande variedade de ritmos e

tradições poéticas, melódicas e harmônicas”, claro está que o samba “tomou a cena e foi

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eleito ‘ritmo oficial’ do Brasil” (COSTA, 2001, p. 132). Essa posição, porém, não se dá

sem o devido reconhecimento das múltiplas influências exercidas no processo de

configuração de nossa música popular, como um todo, marcado pela pluralidade de suas

formas artísticas e de seus posicionamentos estéticos, políticos e ideológicos. Na

interpretação de Napolitano (2007):

O fio da tradição da música popular brasileira construía-se a partir de nós múltiplos, pontos de contato que iam sendo reunidos conforme os influxos e as demandas do presente. Nos anos 1930, o samba passou a ser a categoria-chave desse alinhavo. (NAPOLITANO 2007, p.31)

Se, como afirma o autor, o samba é a categoria-chave desse alinhavo, o Frevo é,

sem dúvida, um dos nós fundamentais de que se compõe o tecido multifacetado da

música popular brasileira. A identificação de diferentes aspectos de seu posicionamento

no campo do discurso literomusical, através da análise de canções produzidas ao longo

da evolução do gênero, permite-nos dimensionar a sua importância para a cultura

brasileira. A análise das configurações de sentido elaboradas a partir da cena

enunciativa e do ethos construído nessas obras possibilitará, por exemplo, a

compreensão do caráter identitário que subjaz à produção do Frevo.

3.4. Frevo e Identidade Cultural

Autores como Shuker (1998) apontam a música popular como um aspecto

relevante na tentativa de definição da identidade, em diferentes níveis: identidade

individual, ou subjetividade, identidade comunitária e identidade nacional. Noções

como as de sons locais e cena local, referidas pelo autor, bem como a promoção de

políticas culturais com vistas à valorização da produção local, embasam a compreensão

da música popular na definição de identidade comunitária. Considerando a noção de

identidade nacional como um constructo social associado a um espaço físico, Shuker

(1998) lembra a associação entre territórios nacionais e determinados gêneros musicais

– por exemplo, a salsa para os países do Caribe -, mas salienta, retomando Anderson

(1983), que as comunidades nacionais, construídas ou imaginadas, “são mobilizadas por

interesses particulares e emergem parcialmente em relação às diferenças de ‘outras’

[identidades]” (SHUKER, 1998, p. 169)

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Hall (2004) também postula a compreensão da identidade a partir do

reconhecimento das diferenças. Para ele, “em vez de pensar as culturas nacionais como

unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que

representa a diferença como unidade ou identidade.” (HALL, 2004, p. 61, grifo do

autor). No caso do Frevo, a rede de significações que se estabelece a partir do seu

surgimento, no século XIX - inicialmente como fenômeno festivo de mobilização e

aglutinação popular -, ao lado de outras manifestações que vieram a compor o panorama

multifacetado do carnaval brasileiro, aos poucos o elevará à condição de fenômeno

característico da identidade cultural pernambucana. Conforme salienta Hall (2004) a

noção de identidade cultural diz respeito aos aspectos de nossas identidades que

“surgem de nosso ‘pertencimento’ a culturas étnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e,

acima de tudo, nacionais.” (HALL, 2004, p. 8, grifo do autor).

Com a consolidação da música e da dança, associadas a outras manifestações

(indumentária, filmografia, pintura, estatuária), essa marca identitária do Frevo será

efetivamente consolidada e empregada, por exemplo, em ações governamentais do

Estado de Pernambuco para a área de turismo, com exposição de imagens alusivas ao

Frevo e veiculação de peças publicitárias com trilha sonora incluindo a música em suas

diferentes configurações (Frevo-de-rua, Frevo-de-bloco, Fravo-canção). No campo do

discurso literomusical, a noção de identidade cultural relacionada ao Frevo é ressaltada,

por exemplo, através do processo de validação da topografia, na elaboração da

cenografia de inúmeras canções analisadas neste trabalho. Numa canção como, por

exemplo, Pernambuco Você é Meu (Nelson Ferreira e Aldemar Paiva, 1955), a

cenografia é elaborada a partir da ênfase valorativa da topografia, corroborando o

sentido identitário do Frevo, ao lado de outros aspectos da cultura pernambucana (a

paisagem do rio Beberibe, a manifestação do maracatu, os sabores :

PERNAMBUCO, VOCÊ É MEU

(Nelson Ferreira e Aldemar Paiva, 1955)

Terra boa, meu Pernambuco Que faz frevo bom e maracatu Tem mais: banho em Beberibe Cachaça gostosa, mangaba cheirosa ai, ai, ai Tudo isso minha terra tem [...]

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De acordo com o documento do IPHAN que acompanha o parecer45 referente à

solicitação de registro do Frevo no Livro das Formas de Expressão como Patrimônio

Cultural Brasileiro, encaminhada pela Secretaria de Cultura da Prefeitura do Recife ao

Ministério da Cultura em 20 de fevereiro de 2006, uma compreensão do caráter

identitário do Frevo deve contemplar

[...] transformações e continuidade histórica; suas diferentes modalidades musicais, instrumentais, rítmicas; seus emblemas e iconografias; seus compositores, músicos e poetas; suas bandas e orquestras; seus dançarinos, coreógrafos e brincantes; seus passos, gestos, danças, coreografias; os sentidos atribuídos pelos sujeitos, apreciadores e estudiosos do frevo às suas diferentes expressões; os conflitos e tensões que também constituem o frevo, e/ou são constituídos por ele [...] (BRASIL. Ministério da Cultura.)

Ao recomendar “vivamente a inscrição do frevo no Livro de Registro das

Formas de Expressão e seu reconhecimento como Patrimônio Cultural do Brasil”, o

documento do IPHAN ressalta “a força do frevo enquanto símbolo identitário – não de

um grupo étnico específico, mas como símbolo de ‘pernambucanidade’, e, num sentido

mais amplo, de ‘brasilidade’”, concluindo que “conhecer o frevo é conhecer um pouco

mais do Brasil” (BRASIL, Ministério da Cultura, disponível em

http://www.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=13515&sigla=Institucional&ret

orno=detalheInstitucional, <acesso em 26/08/2010>)

3.5. Frevedouro, Frevolência: a experiência sinestésica do Frevo nas ruas

“Não se pode fazer ideia do que era o povo do Recife, solto nas ruas do Recife, após a declaração irreversível do carnaval. Faziam parte da corte

imperial mulheres morenas, que suavam, em bolinhas, na boca e no nariz. Mulheres de olhos ansiosos, presas de todos os atavismos de religião e de

dor, a dançar a mais verdadeira de todas as danças – o frevo.” (Antônio Maria, Carnaval Antigo...Recife)

O reconhecimento do Frevo como marca identitária da cultura pernambucana e

como traço de brasilidade dá-se a partir de uma rede complexa de significações, que

45 Parecer nº 007/06, emitido pela Gerência de Registro do Departamento de Patrimônio Imaterial do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) do Ministério da Cultura, referente ao processo nº 01450.002621/2009-96 (disponível em http://www.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=13515&sigla=Institucional&retorno=detalheInstitucional, acesso em 26/08/2010)

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inclui a compreensão do contexto sócio-histórico de desenvolvimento da música, em

articulação com a dinâmica de evolução da festa nas ruas do Recife e de Olinda. No

plano discursivo, a análise de canções produzidas em diferentes momentos históricos

nos permite identificar a construção de um ethos revelador dessa identidade, a partir da

elaboração das letras, contemplando, por exemplo, a noção de incorporação, que diz

respeito à presença de um corpo físico investido dos valores culturais pertinentes à

dança e à música do Frevo. Além da canção, outros gêneros somam-se nessa rede

complexa de significações, através da qual o Frevo assume papel de destaque no cenário

da cultura brasileira.

Para enfocar o plano do vocabulário, conforme proposta de Maingueneau (2008)

referida acima, desenvolvemos algumas reflexões acerca da importância dos nomes que

definem a presença do Frevo no campo do discurso literomusical. Incorporamos um

aspecto fundamental da concepção bakhtiniana de linguagem, que é a compreensão do

seu caráter sócio-ideológico, base da teoria do dialogismo. Trata-se da necessária

vinculação entre a palavra - a língua - e a situação concreta em que se dá a sua

emergência, no discurso. Em resumo, Bakhtin postula que a compreensão do fenômeno

linguístico só é possível a partir da interação verbal, que é “a realidade fundamental da

língua” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992, p. 123), em sua dimensão histórica, social e

cultural. Ou seja, o estudo da língua deve contemplar

o estudo das relações entre a interação concreta e a situação extralingüística – não só a situação imediata, mas também, através dela o contexto social mais amplo. [...] A comunicação verbal não poderá jamais ser compreendida e explicada fora desse vínculo com a situação concreta. (BAKHTIN; VOLOCHINOV, 1992, p. 124)

Nessa perspectiva, a palavra ganha uma importância fundamental, porque não é

mais enfocada apenas a partir da análise gramatical ou filológica, tal como no século

XIX e início do século XX. Conforme assinala Stella (2005), na visão bakhtiniana de

linguagem a palavra deixa de ser encarada como um elemento abstrato, “desvinculada

de sua realidade de circulação e posta como centro imanente de significados captados

pelo olhar/ouvido fixo do observador” (STELLA, 2005, p. 177). Ela é reposicionada

“em relação às concepções tradicionais, passando a ser encarada como um elemento

concreto de feitura ideológica.” (STELLA, 2005, p. 178).

Para isso, a palavra deve ser apreendida em sua relação direta com a vida,

considerando o contexto extraverbal do enunciado, que compreende três fatores: “1) o

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horizonte espacial comum dos interlocutores [...], 2) o conhecimento e a compreensão

comum da situação por parte dos interlocutores, e 3) sua avaliação comum dessa

situação” (BAKHTIN; VOLOCHINOV, 1929). Assim, conforme Bakhtin

(Volochinov), a situação extraverbal “se integra ao enunciado como uma parte

constitutiva essencial da estrutura de sua significação.” (BAKHTIN/ VOLOCHINOV

1929).

O estabelecimento desse vínculo, com a diluição das fronteiras entre a palavra e

a vida - o mundo extraverbal, o contexto sócio-ideológico que a engendra -, é percebido

de maneira mais evidente através da entoação. Para Volochinov/ Bakhtin (1929),

A entoação estabelece um elo firme entre o discurso verbal e o contexto extraverbal – a entoação genuína, viva, transporta o discurso verbal para além das fronteiras do verbal. [...] Na entoação, o discurso entra diretamente em contato coma vida. E é na entoação sobretudo que o falante entra em contato com o interlocutor ou interlocutores – a entoação é social por excelência. Ela é especialmente sensível a todas as vibrações da atmosfera social que envolve o falante. (VOLOCHINOV/BAKHTIN 1929, mimeo)”

À luz dessas considerações, a emergência do Frevo na cultura brasileira pode ser

compreendida a partir das vozes que começam a tecer uma rede de significações que

emerge no espaço da rua, consolidando-se depois por meio de diversos gêneros do

discurso. Em geral, essas vozes assumem um tom exclamativo, de exaltação diante da

onda frenética que evolui ao som da música, numa mistura dos sentidos do corpo em

movimento, como veremos adiante. Elas são recuperadas em diversos registros na

forma escrita, em artigos, poemas, textos em prosa, letras de canção.

“Olha o Frevo!” é um enunciado que traduz o significado dessas vozes, numa

entoação exclamativa que recupera a impressão de eufórica exaltação diante do novo

fenômeno cultural vivido nas ruas do Recife. Aos poucos, o enunciado assume também

a forma de registro verbal impresso, transformado, por exemplo, em título de música

(música nº. 4 do repertório do Clube Lanceiros Camaragibenses, publicado na edição de

21 de fevereiro de 1909 do Jornal O Lanceiro – órgão do Club Carnavalesco Lanceiros

Camaragibenses ) e de poema, assinado por um certo Máscaras Avulsos:

Olha o Frevo!... Lá vem a Troça desenfreada Por entre guizos. Jasmins e rosas Fazendo versos, deitando prosas Ao som gostoso da Gargalhada!

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(O Fantoche – órgão do Clube Fantoches do Recife, Carnaval de 1913. In: PERNAMBUCO 2004)

A mesma exclamação está também no início do texto intitulado simplesmente O Frêvo,

publicado no Jornal O Sapato e assinado por Vitopolis:

- Olha o frêvo! Olha o frêvo! Que balbúrdia infernal. Que vozerio ensurdecedor! Que endiabrada mixórdia! [...] E lá surge, na esquina de uma rua toda engalanada de bandeiras e folhagens, o ‘cordão’ [...] (O Sapato, orgam [sic] da Troça Carnavalesca Sapateiros, Recife, 2, 3 e 4 de fevereiro de 1913, nº 2. In: PERNAMBUCO 2004)

Uma análise do contexto sociocultural que define o processo de configuração do

Frevo revela, porém, que a exclamação destacada assume outras significações, além do

mero sentido de exaltação à folia. A complexidade do momento de transição por que

passa a sociedade brasileira, na segunda metade do século XIX, também se reflete

nessas vozes, revelando tensões e conflitos. Assim, “Olha o Frevo!” também

significará, em determinado momento da história, um sinal de advertência, um alerta

das classes dominantes frente ao crescimento de um carnaval popular, que ganhará as

ruas com força incontrolável.

De fato, mudanças significativas ocorrem no século XIX, sobretudo nas décadas

que se seguem à proclamação da Independência. Aos poucos, a brincadeira do Entrudo,

vivenciada “entre famílias nas moradas senhoriais ou nas ruas e nos largos onde

geralmente se divertiam os escravos e os homens livres pobres” (ARAÚJO, 2008, p.

85), que atiravam entre si limões e limas de cheiros46, pós, vasilhames d’água e de

outros líquidos, dava lugar a um carnaval que “passou a agregar diferentes sujeitos

sociais e a promover diversificados modos de convívio entre eles: pacíficos, de disputas

ou de confronto” (ARAÚJO, 2008, p. 85). A brincadeira do Entrudo, vista pelos

segmentos dominantes da sociedade como sinal de atraso, costume pouco civilizado

ligado ao passado colonial, passa a ser reprimida pelo governo Imperial. As elites

urbanas do país buscam, então, um modelo europeu para o carnaval, que é vivenciado

nos desfiles de mascarados a cavalo e nos bailes realizados em espaços fechados, como

os teatros e os salões dos clubes, enquanto nas ruas o povo se diverte brincando “nos 46 Duarte (1968) esclarece que as limas de cheiro eram um costume português trazido para o Brasil. Consistia num espécie de ovo, confeccionado com cera, cheio de água perfumada que era atirado nas pessoas. [...] Com o correr dos tempos, tais limas passaram a ser cheias de água-forte e outras drogas venenosas, constituindo seu emprego em grande perigo” (DUARTE 1968, p.14)

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sambas, maracatus, cambindas, fandangos, caboclinhos, nos bumba-meu-boi, grupos de

Zé Pereira e máscaras improvisadas.” (ARAÚJO, 2008, p. 86)

A partir da Abolição da escravatura, como vimos acima, o surgimento de

inúmeras agremiações, com destaque para os clubes pedestres, formados por indivíduos

pertencentes a uma mesma categoria profissional, resultará no expressivo aumento da

popularidade da festa. Apesar da intolerância dos segmentos dominantes da sociedade,

inclusive com gestos de repressão violenta, esses clubes, acompanhados de suas bandas,

arrastam cada vez mais pessoas, e é nesse contexto de ebulição da festa, ao som das

marchas e dobrados, que se moldam os primeiros gestos do Frevo, cujos protagonistas

incluem as pessoas comuns que acompanham essas agremiações, a gente pobre das

classes desfavorecidas, “desocupados, vadios, moleques de rua, capoeiras” (ARAÚJO,

2008, p. 86).

É esse, enfim, o contexto de surgimento da palavra Frevo no panorama da

cultura brasileira, empregada para designar precisamente o movimento frenético da

onda humana ao som da música das bandas. Compreendemos, assim, que a experiência

cultural elaborada a partir das manifestações do Frevo, desde o seu aparecimento no

cenário musical no carnaval brasileiro, tem um caráter sinestésico, porquanto se define,

nos estudos literários, o conceito de sinestesia, a saber, “a transferência de percepção de

um sentido para outro, isto é, a fusão, num só ato perceptivo, de dois sentidos ou mais.”

(MOISÉS, 1988, p. 478). Quanto a isso, são exemplares algumas descrições,

encontradas em obras como, por exemplo, o romance Seu Candinho da Farmácia, de

Mário Sette, publicado em 1933 e destacado por Tinhorão (1991, p.151). A citação é

consideravelmente longa, mas exemplar:

Aquela massa de corpos e de almas vinha numa obediência absoluta e gostosa à cadência voluptuosa, ardente e volúvel da marcha. A cada vez que a orquestra repetia num enfarofado de acordes a introdução todo o povo redemoinhava, refervia nas atitudes mais caprichosas, mais cômicas, mais delirantes. Dir-se-ia que tentavam misturar, confundir, trocar os membros, os troncos, as cabeças, para depois ir procurá-los de novo. E no soerguimento da música lá se iam todos na impetuosidade da ‘onda’ no esbandalhamento do ‘passo’, de pernas abertas em tesouras, de cócoras em saca-rolhas, de bustos empinados para a frente em rapidez, de nádegas oferecidas ao alto, de mãos trançadas nas nucas, de narizes a farejar os cangotes femininos, de braços dados em cordões, de barrigas coladas, caras rentes, de bocas grudadas... [...] De súbito uma rápida e brusca estacada da música. A multidão empaca, endurece, espera. Cada um guardando a posição em que foi recolhido. Numa esplêndida mostra de modelos. Dentes de fora, risos escancarados, testas suadas, lábios abertos, olhos esbugalhados... Segundos apenas. Vence-se a síncope dos instrumentos. A orquestra recomeça num renovado empurrão de marcha. E de novo todos se movimentam, se

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esfregam, se torcem, se enlaçam, se verticalizam, se cheiram, se beijam, se apalpam, se agacham, como se a música lhes penetrasse veias adentro para ir fazer-lhes cócegas no sangue. E seguem rua afora, dançando e cantando, na confusão carnavalesca dos coloridos, dos trajes, dos azougues, dos olhares, das quenturas dos contatos, dos hálitos de lascívia, dos cheiros de suores, das escalas das risadas, das tonalidades das peles, dos contrastes das posições, das harmonias das canções, dos mistérios dos sentimentos. (SETTE, Mário. Seu Candinho da Farmácia, 1933, p. 61 in TINHORÃO,J.R. 1991, p.151)

Nesse fragmento, observa-se como o autor percebe a experiência vivida pelas

suas personagens no fulgor da “onda” que o Frevo embala, numa mistura de elementos

sensoriais que conjugam estímulos auditivos, visuais, tácteis, olfativos – “harmonias”,

“tonalidades de pele”, “quenturas”, “cheiros” – em clima de sensualidade que se

manifesta nos movimentos da dança e nos gestos daqueles que “se esfregam, se torcem,

se enlaçam, se verticalizam, se cheiram, se beijam, se apalpam.”

A descrição apresenta, com detalhes, o clima de intensa euforia vivido nas ruas

durante o carnaval, e ajuda a compreender o sentido do termo Frevo, em sua origem,

como variação do verbo ferver47 para designar o rebuliço do povo nas ruas, durante o

carnaval. Silva (2000, p. 102) lembra a definição de Luís da Câmara Cascudo48, para

quem o Frevo indica “confusão, movimentação desusada, rebuliço, agitação popular”.

Há, portanto, uma motivação sinestésica na etimologia do Frevo (e de seus

derivados frevolência, frevedouro etc.), de início associada claramente à imagem da

movimentação do povo nas ruas e ao calor dos corpos em movimento, ainda no século

XIX, num momento em que a palavra não designa propriamente a dança, nem a música,

mas sim o frevedouro que se verificava nos desfiles dos clubes, conforme destaca Silva:

“Naquela confusão e rebuliço, efervescência de sons e vozes, apertões de corpos suados,

estava surgindo aquilo que, anos depois, a sabedoria popular veio sintetizar num só

vocábulo: frevo.“ (SILVA, 1991, p.XL, grifo do autor). Ao longo de sua história,

consolidando-se enquanto manifestação poético-musical, através da indústria

fonográfica e do rádio, a palavra também subsumirá a música e a dança.

Como já anunciamos acima, buscamos identificar, a partir da análise do Frevo-

Canção, alguns elementos delineadores de uma semântica global do Frevo, que deve

integrar, conforme a proposta de Maingueneau (2008), diferentes planos discursivos,

imbricados, por exemplo, na elaboração do ethos discursivo em diferentes aspectos do

47 O Dicionário do Frevo registra que é “forma metatética de fervo, deverbal regressivo de ferver” (in CARVALHO, MOTA e BARRETO, 2000, p. 56) 48 CASCUDO, C. Locuções Tradicionais no Brasil, 1977

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posicionamento no campo do discurso literomusical. Um desses planos é o do

vocabulário, que, nesse caso, organiza-se a partir da consolidação da palavra Frevo na

cultura brasileira.

É no calor da onda frevolenta que as melodias das marchas e dobrados

executados pelas bandas aos poucos vão recebendo letras, ainda no século XIX. De

início sem autoria definida, elas surgiam da criatividade popular, motivada por questões

diversas, como a rivalidade entre os entusiastas seguidores das bandas, ou a sátira sobre

situações quotidianas. Nos seus desfiles, executando dobrados e arrastando a multidão,

as bandas traziam à frente os capoeiristas abrindo caminho e não raro protagonizando

cenas de violência, motivadas pela rivalidade. De acordo com os registros históricos (cf.

TINHORÃO, 1991; ARAÚJO, 1996; SILVA, 2000; SALDANHA, 2008 e outros), as

mais famosas eram a do Quarto Batalhão de Artilharia (ou simplesmente O Quarto) e a

do Corpo da Guarda Nacional, conhecida como Espanha, porque seu mestre regente era

o espanhol Pedro Garrido. Entre alguns dos versos anotados neste período, Silva (2000)

cita os seguintes, marcados por um forte sentido de desafio e confronto:

Não venha! Chapéu de lenha Partiu, caiu Morreu, fedeu”

ou ainda estes:

Viva o Quarto Morra Espanha Cabeça seca É quem apanha. (In SILVA 2000, p. 98)

Acerca desses últimos versos, Tinhorão (1991) esclarece que a expressão cabeça

seca “era uma injúria para os assim alcunhados, porque equivalia ao mesmo que chamá-

los de escravos”, já que, ao toque do sino da Matriz de Santo Antônio, “os escravos

eram obrigados a correrem para a casa dos seus senhores às nove horas da noite, não

podendo assim gozar do sereno, e por isso jamais podendo ter a cabeça molhada.”

(TINHORÃO, 1991, p.139)

Da mesma época são os versos atribuídos pelo povo ao dobrado intitulado

Banha Cheirosa, anotados por Francisco Augusto Pereira da Costa (1851-1923).

Segundo esse autor

Levavam os capoeiras partidários de música o seu entusiasmo por certas peças, a ponto de comporem versos apropriados ao canto de alguns passos

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dobrados [...] E estes outros, cantados no trio de um dobrado do 4º Batalhão de Artilharia, a quem denominavam de Banha Cheirosa, dobrado que levava ao delírio os partidários do Quarto, principalmente quando chegava a parte de uma pancada em falso dada pelo bombo no trio da peça (in SOUTO MAIOR; SILVA 1991, p.195)

Percebe-se nos versos o espírito inventivo da população, revestidos de um teor

de propaganda do produto anunciado, em tom jocoso e irreverente:

Quem quiser Comprar banha cheirosa Vá na casa Do Doutor Feitosa. Quem quiser comprar banha de cheiro vá na casa do Doutor Teixeira. Banha cheirosa Para o cabelo Banha de cheiro Pro corpo inteiro (in SOUTO MAIOR e SILVA 1991, p.196)

Aos poucos, essa música cantada, que em breve será levada ao sudeste do país e

entrará no mundo fonográfico com o nome de marcha pernambucana, espraia-se por

todos os segmentos sociais representados no carnaval, através dos clubes carnavalescos

das elites (chamados de clubes de alegorias e críticas) ou dos clubes pedestres, formados

por pessoas das camadas subalternas e vinculados ao mundo do trabalho, como vimos

acima49.

O Frevo mais conhecido do carnaval pernambucano, até hoje, está vinculado a

um desses clubes pedestres. É Vassourinhas, de Matias da Rocha e Joana Batista,

composta em 1909, originalmente uma marcha cantada, com esta letra, que aproveita

um motivo folclórico:

Se esta rua fosse minha Eu mandava ladrilhar

Com pedrinhas de brilhantes Pra Vassourinhas passar

Ah! Reparem meus senhores

O Pai deste pessoal Que nos faz sair às ruas Dando viva ao carnaval

Somos nós os Vassourinhas

Todos nós em borbotão Vamos varrer a cidade

49 Notícia do Jornal Pequeno, de 7 de fevereiro de 1906, anuncia, por exemplo, a realização do primeiro ensaio da “Troça Verdureiros em Greve” (In RABELLO 2004, p.164)

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Com cuidado e precisão

Bem sabeis do compromisso Que nos leva a assim fazer: E mostrar nossas insígnias

E a cidade se varrer

O Clube Carnavalesco Misto Vassourinhas foi fundado em 1889. A canção,

batizada de Marcha n. 1 do Vassourinhas, exalta o símbolo da agremiação (“nossas

insígnias”) com o qual os integrantes assumem o compromisso de varrer a cidade. De

acordo com Araújo (1996), a vassoura, assim como os símbolos de outras agremiações,

tinham valor polissêmico. Nomes como, por exemplo, “vassoura, pá, espanador,

abanador, vasculhador, ciscador”, usados para batizar alguns clubes pedestres,

pertencem a uma mesma categoria de “utensílios cuja função principal era a de limpar,

varrer, lustrar, assear, clarear etc.” e que, além de evocarem a realidade do trabalho,

“eram utilizados com o sentido de fazer a crítica à moral e aos costumes”, no contexto

carnavalesco da Primeira República. Nesse aspecto, continua Araújo, “os clubes

pedestres, formados por indivíduos pertencentes aos segmentos populares,

demonstravam partilhar, a seu modo, valores e práticas especialmente cultivados pelas

camadas dominantes” (ARAÚJO, 1996, p. 352). Na prática, a crítica elaborada por

esses grupos se dirigia, em geral, às esferas de atuação da própria comunidade,

raramente extrapolando esse limite para atingir, por exemplo, figuras públicas e

autoridades políticas50. No final das contas, conforme analisa a autora, os clubes

terminavam por reproduzir, em grande parte, um discurso moralizante subjacente à ação

de disciplinamento empreendida pelo Estado, como veremos adiante.

A referência ao “pai desse pessoal” pode ser explicada a partir da descrição feita

por Silva (1991) acerca da formação típica e das apresentações dos clubes pedestres:

[...] essas associações profissionais vinham às ruas do Recife com suas dezenas de morcegos [fantasia muito popular à época], abrindo frente na multidão, seus cordões vestidos com camisas de seda japonesa e calça de flanela, liderados por dois balizas encarregados da evolução, seus porta-estandartes [...], quatro balizas ‘serra-filas’ abrindo alas para a apresentação dos estandartes, sócios mais graduados trajando fina seda, com sobrinhas cobertas pelo mesmo tecido [...] trazendo ao centro o Papai do Clube – um tipo gordo, fantasiado de palhaço de circo, com um ‘buquet’ numa mão e na outro um grosso bastão, fazendo graça para o povo (SILVA, Leonardo D. 1991, p.XXXVII, grifo do autor)

50 Araújo aponta apenas três clubes como exceções: Vasculhadores, Caiadores e Emboca (ARAÚJO 1996, p.353)

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O processo de configuração do Frevo-canção é, portanto, marcado pela

complexidade de um período rico em transformações na sociedade brasileira. Como

todo gênero cancional, ele incorpora a voz à estruturação harmônica e melódica de um

determinado gênero musical – no caso do Frevo, investido de reconhecido valor

identitário. “Olha o Frevo!” é, como dissemos acima, o enunciado que sintetiza a reação

popular diante da força do novo fenômeno cultural. Trata-se de um enunciado revestido

de caráter eminentemente social, que exemplifica ainda a noção bakhtiniana de

acabamento, pelo qual se confere a todo enunciado a força de uma atitude resposiva

ativa:

A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa. [...] O locutor postula esta compreensão responsiva ativa: o que ele espera, não é uma compreensão passiva [...] o que espera é uma resposta, uma concordância, uma adesão, uma objeção, uma execução etc. (BAKHTIN, 2000, pp.290-291)

A noção de acabamento do enunciado é o que possibilita, então, essa atitude

responsiva: “o acabamento do enunciado é de certo modo a alternância dos sujeitos

falantes vista do interior” (BAKHTIN, 2000, p. 299). Essas considerações de Bakhtin

fundamentam a sua teoria do dialogismo. Em certa medida, essa visão da língua como

fenômeno eminentemente social é ressaltada por Zumthor (2005), ao analisar a

importância da voz para a cultura. Ao chamar a atenção para o enunciado destacado

acima, reiteramos a sua posição, resumida na afirmação de que “as diversas sociedades,

em vários momentos no curso da História, valorizaram esta existência

fundamentalmente social da voz.” (ZUMTHOR, 2005, p.66)

A seguir, analisamos canções gravadas a partir dos anos de 1930 para a

descrição de alguns aspectos do posicionamento do Frevo, com base na elaboração da

cenografia e do ethos discursivo nessas obras. É a partir desse momento, como veremos,

que o Frevo-canção será registrado por algumas das vozes mais importantes da história

da música popular brasileira.

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3.6. Encontros, confrontos e gingados: a dança dos nomes e o aspecto guerreiro do

Frevo

As canções Sá Zeferina Tá de Vorta e Frevo Pernambucano têm a importância

histórica dos primeiros registros da palavra Frevo no mundo do disco. A primeira,

composição de Valdemar de Oliveira (sob pseudônimo de José Capibaribe) lançada em

1930 pela gravadora Victor, com interpretação de Mário Pessoa, traz pela primeira vez

o nome do Frevo numa letra. A segunda, uma parceria de Luperce Miranda e Oswaldo

Santiago, lançada um ano depois, ou seja, em 1931, pela Odeon, com interpretação de

Francisco Alves, é o registro pioneiro da palavra Frevo no título de uma obra musical

gravada51. Além da importância histórica, nesse momento de inserção do novo gênero

no panorama da música brasileira, as obras se destacam por revelarem, na análise das

cenas enunciativas, alguns aspectos delineadores do posicionamento do Frevo no campo

do discurso literomusical brasileiro a partir de um projeto enunciativo comum de

afirmação identitária – gesto de demarcação de terreno no campo literomusical

brasileiro –, de que trataremos a seguir.

A propósito da definição da noção de posicionamento, lembramos, com

Maingueneau (2006), que ela trata da “construção de uma identidade enunciativa que é

tanto ‘tomada de posição’ como recorte de um território cujas fronteiras devem ser

incessantemente redefinidas” (MAINGUENEAU, 2006, p. 151). Essa definição de

posicionamento está de acordo com a posição de Costa (2001), para quem

posicionamentos devem ser encarados como “momentos de um percurso”. O autor

salienta, ainda, que

Posicionamentos implicam não apenas idéias, mas a existência de comunidades discursivas, que partilham um conjunto de ritos, normas e modos de ser correspondentes a uma série de papéis sócio-discursivos, que produzem, reproduzem, consomem, fazem circular textos. (COSTA, 2001, p. 166, grifo do autor)

Claro está, portanto, que a identificação de diferentes aspectos do

posicionamento do Frevo no discurso literomusical brasileiro, a partir da análise do

Frevo-Canção, levará em conta também a produção de outros textos – além das letras

51 A primeira referência ao Frevo como gênero musical aparece em janeiro de 1931, no selo do disco com a gravação de Vamos se acabá, de Nelson Ferreira. Trata-se de um Frevo-de-rua, ou seja, uma obra instrumental, com interpretação da Orquestra Guanabara (disco 78 rpm, Parlophon nº 13.259)

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das canções - que circulam entre os membros da comunidade discursiva do Frevo, e que

incluem, por exemplo, notícias, comentários, análises.

O primeiro aspecto que incide na delimitação desse novo território no campo do

discurso literomusical brasileiro diz respeito à inserção do Frevo e a sua afirmação a

partir da sua forma na dança, considerando as configurações de sentido elaboradas com

base no caráter polissêmico do binômio Frevo/passo. Embora a dança do Frevo seja

recorrentemente referida como passo, observamos um conjunto de canções cujo projeto

enunciativo empreende um gesto afirmativo a partir da reafirmação do nome Frevo,

inclusive para designar a sua coreografia. Consideramos que tais canções contribuem,

com seu gesto afirmativo, para a consolidação da identidade discursiva do Frevo como

fenômeno cultural fortemente baseado na imagem do corpo em movimento. Como

vimos acima, a palavra Frevo é empregada inicialmente – desde os fins do século XIX –

como sinônimo da movimentação frenética da multidão em festa. Ela não designa

propriamente a música, nem a dança especificamente. É somente a partir de 1936 que se

dá a categorização da música, com a identificação dos três tipos de Frevo (de rua, de

bloco e canção) que passa a ser inscrita nos selos dos discos, no lugar das antigas

denominações – marcha nortista, marcha pernambucana etc. Belfort (2009) assinala que

essa definição foi resultado do trabalho de uma comissão formada, dentre outros, pelo

jornalista Mário Melo e pelo compositor Nelson Ferreira, que, na condição de diretor

artístico da Rádio Clube de Pernambuco, teve uma contribuição fundamental para a

ascensão do Frevo no mundo do disco. Saldanha (2008) ressalta a importância desse

momento, como reflexo, por um lado, das exigências da mídia e, por outro, dos anseios

dos próprios artistas pernambucanos:

Como produto de exportação divulgado através da grande mídia da época – o rádio –, esse gênero musical requeria nomenclatura própria e distintiva, que facilmente o identificasse entre os demais [...]. Isso, não só, já era um anseio por parte dos pernambucanos, principalmente entre os músicos que, naturalmente percebiam na sua música as nuances distintivas de gênero, se tornando alguns compositores prediletos nessa ou aquela especialidade, como também, era uma necessidade mercadológica. A indústria fonográfica e a mídia radiofônica precisavam de rótulos para melhor identificar esses produtos, fato que também aconteceu a outros gêneros musicais por todo o Brasil, como por exemplo, no caso do samba que se tornou de Breque, Exaltação, Partido Alto, etc... (SALDANHA, 2008, p. 167)

Para a dança, costumava-se empregar – como, aliás, ainda hoje, em grande parte

– o nome de passo, de acordo com a definição de Valdemar de Oliveira, feita de forma

categórica: “O passo é a dança que se dança com o frevo.” (OLIVEIRA, 1985, p. 99).

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O segundo aspecto da inserção do Frevo no campo do discurso literomusical a

partir do Frevo-canção relaciona-se à sua caracterização como manifestação de

excessiva virilidade e força, como resultado do ambiente de acirrada disputa em que

surgiu, marcado pelo confronto entre partidários das bandas militares responsáveis pela

música, como acima referido. Trata-se de um aspecto abordado por diversos autores

(DUARTE, 1968; OLIVEIRA, 1985; ARAÚJO, 1994; SILVA, 2000, entre outros) e

registrado na imprensa do Recife, desde os fins do século XIX até os primeiros anos do

século XX (v. RABELLO, 2004), com o relato de confrontos sangrentos, com feridos e

mortos. Em geral, a explicação apresentada para o fenômeno está na atuação dos

praticantes da capoeira, motivados, como analisa Duarte (1968), pela rivalidade pura e

simples entre integrantes de agremiações distintas ou, ainda, por um sentimento de

aversão à figura do português, sentimento construído ao longo de séculos de resistência.

Esse autor considera, em resumo, que a violência é uma característica seminal do Frevo:

O frevo foi feito para ferir. E foi mesmo. Tudo nele denuncia esse atavismo sangrento, a música marcial, os símbolos estranhos, se prestando, como nenhuma outra coisa, como eles, aparentemente inocentes, para a agressão, para a briga, como arma de ataque, a dança, uma caricatura da capoeira, enfatizando a parte ofensiva dessa arte de defesa pessoal. (DUARTE, 1968, p. 53)

Embora não seja um trabalho de cunho científico, e algumas de suas posições

sejam passíveis de contestação, a obra de Duarte representa um válido esforço

interpretativo sobre esse aspecto do Frevo, enraizado na memória coletiva do povo

pernambucano. De acordo com Araújo (1996), esses traços “violentos, guerreiros e

belicosos” do Frevo remetem, na interpretação de Duarte (1968), ao “passado de lutas e

guerras, rebeliões e revoluções em que esteve mergulhada a província, desde os tempos

coloniais até a primeira metade do século XIX.” (ARAÚJO, 1996, p. 39) De acordo

com essa interpretação, portanto, o Frevo traz em si uma marca de resistência, que é

negada por outros autores, como veremos adiante.

A canção Frevo Pernambucano exemplifica, assim, a construção de um ethos

viril e belicoso, caracterizado pela imagem da violência dos confrontos em pleno

movimento frenético da folia. Trata-se, na verdade, de uma configuração de sentidos

poucas vezes registrada nas letras do Frevo-canção, embora encontrada em diversos

títulos de Frevos-de-rua. Aos poucos, ela vai sendo redefinida, restringindo-se ao caráter

vigoroso e à energia do movimento da dança, em um contexto de ação política de

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ordenação, regulação e controle da atividade carnavalesca das agremiações, já a partir

de meados dos anos de 1930, com a criação da Federação Carnavalesca Pernambuca.

Apresentamos, a seguir, uma breve análise das duas obras, a fim de observar esse

segundo aspecto do posicionamento do Frevo. Começamos por Sá Zeferina Tá de Volta

(Valdemar de Oliveira) e, mais adiante, em 3.6.2 (página 141), enfocamos Frevo

Pernambucano (Luperce Miranda e Oswaldo Santiago).

3.6.1. O nome da música na dança: Frevo festa, folia e coreografia

SÁ ZEFERINA TÁ DE VORTA (Valdemar de Oliveira, sob pseudônimo de José Capibaribe)_1930 No carnaval buscando alguém De vorta está Sá Zeferina meu bem O passo faz como ninguém E sempre é Sá Zeferina meu bem Vem cá dançar que o Frevo já começou E o meu amor ainda não se acabou Aguenta o passo e trata bem No carnaval Sá Zeferina meu bem A sua graça ninguém tem E podes crer Sá Zeferina meu bem Vem cá dançar que o Frevo já começou E o meu amor ainda não se acabou O carnaval só graça tem Se nele está Sá Zeferina meu bem E quando se sabe que ela vem A gente diz Sá Zeferina meu bem Vem cá dançar que o Frevo já começou E o meu amor ainda não se acabou

Sá Zeferina Tá de Vorta ilustra a complexidade do processo de nomeação do

novo fenômeno cultural do carnaval brasileiro, com a dupla designação – Frevo e passo

– empregada para referir diferentes aspectos da sua emergência no campo do discurso

literomusical, como se vê na letra. No primeiro verso do refrão (“vem cá dançar que o

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Frevo já começou”), “Frevo” tanto pode indicar o ajuntamento, a onda humana também

denominada popularmente de frevedouro, como pode também indicar a música ou a

dança. No verso “o passo faz como ninguém”, passo indica a coreografia do frevo, a

dança. Mas em “aguenta o passo e trata bem”, a palavra passo designa também o vigor

físico e a resistência necessários para acompanhar o ritmo frenético que caracteriza a

festa.

Destacando a presença de uma personagem feminina, Sá Zeferina, a cenografia

da canção é elaborada no sentido de valorizar o aspecto festivo da dança, através da

qualificação da personagem (“a sua graça ninguém tem”) e da exaltação a sua

habilidade (“o passo faz como ninguém”). Em resumo, o enunciador associa a presença

da personagem ao sentimento de alegria e à promessa de amor, conforme se depreende

da leitura do segundo verso do refrão (“E o meu amor ainda não se acabou”). A canção

tem uma introdução elaborada, com estruturação harmônica baseada num sincopado

vigoroso, mas é, de fato, uma canção bastante simples, a qual inserimos na categoria

canção de encontro, definida por Tatit (2004) como aquela “com melodia contendo

termos recorrentes, centrada no refrão e com letra celebrando a união do enunciador ou

dos personagens com seus objetos e seus valores” (TATIT, 2004, p. 97). De modo geral,

as canções carnavalescas inserem-se nessa categoria, que é exemplificada pelo autor

com as marchinhas e os sambas carnavalescos.

Assim como em outras obras, interessam-nos, nessa canção, as ocorrências de

Frevo e passo, palavras-chave na elaboração da rede de significações em torno do novo

gênero de música e dança, para uma tentativa de definição de uma semântica global do

Frevo. Ao longo da evolução do gênero na história da música brasileira, observamos

que elas incidem sobre os vários planos de elaboração discursiva - quais sejam: o

vocabulário, os temas e a dêixis enunciativa, por exemplo - conforme proposta de

Maingueneau (2008). A dupla designação, empregada sobretudo a partir dos anos de

193052, serve para distinguir as peculiaridades da música – o Frevo – e da dança – o

passo –, cuja emergência no cenário cultural brasileiro é abordada assim pelo próprio

autor da canção, Valdemar de Oliveira:

52 De acordo com Maria Goretti de Oliveira (in Danças Populares como espetáculo público no Recife – 1970-1988, Recife, Ed. do autor, 1991), o primeiro registro impresso do termo passo identificando a dança do Frevo foi publicado por Valdemar de Oliveira em 1947 (OLIVEIRA ,M.G. 1991 apud LÉLIS, Carmen 2011, p.19)

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foi, de fato, no Recife [...] dos fins do século XIX, começos deste [século XX], que a música foi aparecendo, conduzindo a dança, ou a dança foi tomando corpo, sugerindo a música. É impossível distinguir bem: se o frevo, que é a música, trouxe o passo ou se o passo, que é a dança, trouxe o frevo. As duas coisas se foram inspirando uma na outra – e complementaram-se. (OLIVEIRA, 1985, p.11)

Desde então, essa dupla designação tem sido aceita e reproduzida em diversas

instâncias discursivas – por exemplo, na imprensa, na própria produção literomusical e

na esfera oficial de promoção e divulgação do carnaval (a Prefeitura do Recife promove

anualmente, por exemplo, concurso de passistas para eleger os melhores dançarinos de

Frevo). Entretanto, a complexidade da questão suscita polêmica dentro da própria

comunidade discursiva do Frevo, como se depreende, por exemplo, das posições de

Valéria Vicente (2009), artista e estudiosa da dança Frevo – a autora prefere essa

denominação em lugar de passo. Para ela, o nome passo restringe a compreensão da

dança do Frevo, em sua riqueza coreográfica, haja vista o uso corrente da palavra como

“nomeação comum a várias danças populares” (VICENTE, 2009, p.48). Como

exemplo, lembra-nos que “no samba [...], os dançarinos que se desenvolvem com

destreza também são chamados de passistas.” (VICENTE, 2009, p. 48). Essa posição,

em favor da atribuição do nome Frevo também à dança, é reiterada por Walmir Chagas,

músico, ator e dançarino, ex-integrante do Balé Popular do Recife. Em entrevista

publicada em Lélis (2011), ele afirma: “O que ficou como frevo foi a música e o passo

dividiu-se como o que dança, só que na verdade frevo é a música e a dança juntos”

(LÉLIS, 2011, p. 19)

Outro problema apontado por Vicente (2009) diz respeito à restrição da

conceituação da dança Frevo como manifestação folclórica – compreendida como

criação anônima, nascida espontaneamente nas ruas do Recife, em oposição ao caráter

de Cultura Popular conferido à música. Essa compreensão, encerrada na distinção entre

passo e Frevo, é apresentada, dentre outros autores, pelo próprio Valdemar de Oliveira,

quando escreve sobre a música: “o frevo foi invenção dos compositores de música

ligeira, feita para o carnaval, enquanto o passo brotou mesmo do povo, sem regra nem

mestre, como por geração espontânea.” (OLIVEIRA, 1985, p. 11) E complementa:

Ao encarar o frevo como obra musical, é bom considerá-lo, desde logo, em sua verdadeira posição de música popular – e não folclórica , pois não revela uma ascendência – ou um ‘passado’ a que esteja o povo ligado de qualquer modo. [...] O autor do frevo não é anônimo e os elementos de que se serve não se envolvem no anonimato, como sucede na música folclórica. (OLIVEIRA, 1985, p. 41)

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Para Vicente (2009), há aí uma contradição, que revela, ao mesmo tempo, uma

visão discriminatória sobre a população marginalizada a quem se atribuem as primeiras

manifestações da dança do Frevo, com influência direta da capoeira; e uma concepção

excludente de povo, que não considera como pertencentes a essa categoria os músicos

das bandas e as classes trabalhadoras ligadas aos clubes responsáveis pelos primeiros

movimentos da música do Frevo. Assim analisa a autora:

A dança do frevo, a destreza de ‘fazer o passo’, é oriunda das camadas mais pobres e subversivas da sociedade recifense. [...] de forma predominante, jogar capoeira e ‘fazer o passo’ eram práticas dos grupos marginais, não aceitos socialmente. Assim, quando da teorização e categorização do frevo, a música do frevo, composta pelos músicos das bandas e integrantes de clubes, foi considerada parte da Cultura Popular, e a dança do Frevo, batizada como Passo, foi considerada Folclore. [...] Segundo Valdemar de Oliveira, para uma expressão cultural ser considerada folclore, deve revelar ‘uma ascendência – ou um passado a que o povo esteja ligado de qualquer modo’. Como para ele a música do frevo não está ligada ao povo, concluímos que ele não considera como povo as camadas trabalhadoras pobres e os músicos das bandas. (VICENTE, 2009, p.47)

O ponto central do questionamento da autora sobre a posição de Valdemar de

Oliveira é a ausência de uma perspectiva evolutiva na abordagem da questão. Para a

compreensão desse questionamento é necessário considerar, contudo, a diferença dos

contextos de produção das duas obras, separadas por mais de meio século. Frevo,

Capoeira e Passo, de Valdemar de Oliveira, cuja primeira edição foi publicada em livro

em 1971, é um texto baseado em seu estudo sobre o Frevo originalmente publicado em

194653, período em que estão em voga os estudos folclóricos, de caráter eminentemente

tradicionalista.

De fato, a compreensão do Frevo limitada à concepção da dança como

manifestação folclórica, como criação anônima, deixa de considerar importantes

contribuições de artistas que tiveram atuação reconhecida ao longo da história. A esse

respeito, a autora destaca o depoimento de Nascimento do Passo, um dos mais famosos

passistas de Frevo do Recife, segundo o qual a autoria de muitos passos do Frevo era

certa e sabida, “referindo-se a Egídio Bezerra, passista famoso na década de 40”

(VICENTE, 2009, p. 47). Curiosamente, o próprio Valdemar de Oliveira reconhece o

papel de Egídio para o enriquecimento da dança. Entretanto, a maneira como ele aborda

53 O texto original, conforme apresentação do autor, (OLIVEIRA, 1985, p. 5), foi publicado no Boletim Latino Americano de Música. Rio de Janeiro; Montevidéu, Instituto Interamericano de Musicologia, 1946, ano 6, v.6, p.157-192, e pode ser encontrado em http://www.jangadabrasil.com.br/realejo/artigos/frevo.asp <acesso em 25 de agosto de 2011>

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as “criações momentâneas” ou “nascidas da cachola dos dançarinos” e, por fim, o

questionamento da validade do trabalho pedagógico do artista, atestam a posição

restritiva do autor:

À proporção que surgem novos passistas, com eles surgem [...] criações momentâneas, umas provocadas pelos atritos imprevisíveis dos corpos em promiscuidade, outras nascidas da cachola dos dançarinos, um deles, Egídio Bezerra tendo, há poucos anos passados, introduzido, no passo recifense, um série de figurações que decerto enriqueceram a sua coreografia, embora aqui e ali a desvirtuassem. Não foi útil que algumas de suas novidades se tivessem difundido entre alunos de um curso por ele mesmo fundado (OLIVEIRA, 1985, p. 103)

Por um lado, é impossível negar a configuração do Frevo como amálgama das

contribuições individuais de centenas, milhares de foliões anônimos na ação de

extravasamento de sua criatividade em gestos transfigurados nos passos frenéticos da

dança. Para essa população, a dança do Frevo reveste-se de significados que exprimem

a sua condição e a sua inserção no mundo da cultura. A esse respeito, Araújo (1994)

observa que

Os segmentos populares, sobrevivendo do trabalho de suas mãos e de sua força física, desenvolveram uma cultura que se impôs, antes de tudo, pelo gesto, pelo corpo, pelo movimento, associados, quase sempre, ao ritmo musical e ao canto. [...] Poder-se-ia dizer que, para o povo comum, para a arraia-miúda, o Carnaval estava mais próximo da carne e do corpo, enquanto que, para a elite, o Carnaval era, idealmente, um exercício do espírito e da razão (ARAÚJO, 1994, p. 364)

Por outro lado, a limitação dessa compreensão da dança do Frevo como

manifestação folclórica, conforme visto acima, desconsidera importantes contribuições

de frevistas54 reconhecidos para a sua evolução coreográfica. O estudo de Vicente

(2009) cumpre, então, a relevante tarefa de documentar parte significativa desse

trabalho, desenvolvido, por exemplo, por várias companhias de dança em Pernambuco a

partir dos anos de 1970.

Compreendemos a importância da discussão proposta pela autora como

contribuição para a construção de uma rede de significações e para identificação de um

aspecto fundamental da semântica global do Frevo, que é a própria atribuição dos

nomes que o definem. Evidenciam-se aí pelo menos dois planos discursivos, dentre

aqueles descritos por Maingueneau (2008): o plano do vocabulário e o plano da dêixis

enunciativa. Ao considerar o primeiro, o autor ressalta que “além de seu estrito valor

semântico, as unidades lexicais tendem a adquirir o estatuto de signos de

54 Frevista é o termo usado por Carmela Cárdenas no lugar de passista, em O uso do folclore na educação: o frevo na didática pré-escolar (CÁRDENAS 1981, p.53)

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pertencimento” (MAINGUENEAU, 2008, p. 80), lembrando que o enunciador, diante

de várias opções equivalentes, elegerá aquela que marca sua posição no campo

discursivo. Daí porque a opção pela designação de Frevo para a dança reveste-se de um

caráter afirmativo da identidade do novo gênero. Ao enfocar o segundo plano, o da

dêixis enunciativa, o autor refere-se à delimitação espaço-temporal da enunciação,

instaurando, na cenografia de uma obra, o locutor e o destinatário discursivos, a

cronografia e a topografia. A propósito da importância desses dois planos discursivos,

particularmente no tocante à definição da topografia, na dêixis, é ilustrativa a polêmica,

iniciada a partir dos anos de 1960, sobre a produção do Frevo fora de Pernambuco,

especialmente entre os baianos, integrantes do movimento Tropicalista. Além de

questões estéticas pertinentes à concepção musical das canções produzidas, sobretudo,

por Caetano Veloso, a polêmica girava em torno mesmo da validade da caracterização

dessa produção enquanto Frevo, pelo fato de não estar situada em Pernambuco.

Conforme destaca Teles (2008):

o que mais irritava compositores como Capiba, Nelson Ferreira, Valdemar de Oliveira, era chamar o frevo eletrizado de Caetano Veloso de ‘frevo baiano’. Para eles não havia ‘frevo baiano’, ‘frevo carioca’, o que existia era o frevo, e este era de Pernambuco. (TELES 2008, p.74)

Compreendemos, enfim, que a opção da autora por atribuir a palavra Frevo à

manifestação da dança, no lugar de passo, configura uma ação afirmativa da identidade

discursiva do Frevo, respaldada, por exemplo, na certidão conferida pelo Departamento

do Patrimônio Imaterial do IPHAN, na conclusão do processo de homologação do

Frevo como patrimônio imaterial da cultura brasileira. No documento, lê-se que “o

Frevo é uma forma de expressão musical, coreográfica e poética densamente enraizada

em Recife e Olinda, no Estado de Pernambuco” (BRASIL, 2007, p.1, grifo nosso)55,

definição que engloba, sob o mesmo nome, a música, a dança e a produção discursiva

em torno do Frevo.

O reconhecimento dos traços delineadores da identidade discursiva do Frevo dá-

se, portanto, na esfera da produção literomusical, a partir de canções cujo projeto

enunciativo define um posicionamento de afirmação identitária – como gesto de

demarcação de terreno no campo literomusical brasileiro. A escolha do nome Frevo, em 55 disponível em http://www.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=13515&sigla=Institucional&retorno=detalheInst

itucional, <acesso em 27 de agosto de 2011>

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detrimento de passo, para designar a dança que acompanha a música, é reveladora de tal

projeto enunciativo. A reafirmação do emprego dessa palavra-chave está, portanto, na

base da constituição de uma coerência global sobre a qual se estabelecem as práticas

discursivas desenvolvidas pelos enunciadores, no processo de consolidação da

identidade do Frevo. Duas das principais obras que exemplificam esse gesto são os

Frevos-canção O Frevo é Assim (Nelson ferreira e Nestor de Holanda) e É Frevo, Meu

Bem! (Capiba), apresentadas a seguir.

Consideramos, com Maingueneau (2008), que “a identidade de um discurso não é

somente uma questão de vocabulário ou de sentenças, [e] que ela depende de fato de

uma coerência global que integra múltiplas dimensões textuais” (MAINGUENEAU

2008, p. 18). Essa coerência global se desenvolve através de um sistema de restrições

semânticas que “fixa os critérios em virtude dos quais certos textos de distinguem do

conjunto de textos possíveis como pertencendo a uma formação discursiva

determinada.” (p. 48). Tal sistema de restrições não privilegia nenhum aspecto

particular do discurso, mas se elabora sobre “um princípio dinâmico que rege o

conjunto dos planos de uma língua” (p.76), incluindo, além do vocabulário, as relações

intertextuais, a definição do estatuto do enunciador e do destinatário, a dêixis

enunciativa, o modo de coesão – a “maneira pela qual um discurso constrói sua rede de

remissões internas” (MAINGUENEAU, 2008, p. 94) e os modos de enunciação, que

dizem respeito a “uma maneira de dizer específica”, ou à construção de um ethos

definido pelo gênero discursivo, pelo tom, pelo caráter e pela corporalidade do

enunciador (MAINGUENEAU, 2001, 2005, 2008)

Observamos, nas canções a seguir, que o ethos discursivo é definido por meio de

uma cenografia que apresenta uma caracterização valorizadora do Frevo dança, através

da enunciação de outras manifestações simbólicas. A noção de incorporação,

desenvolvida por Maingugeneau (2001, 2005, 2008, 2008a), é especialmente relevante

para uma interpretação da cenografia elaborada nas canções, ressaltando a importância

dessas obras para uma definição do posicionamento do Frevo no campo discursivo

literomusical brasileiro.

O FREVO É ASSIM (Nelson Ferreira e Nestor de Holanda, 1945) Eu danço tango, danço conga e danço samba Danço boogie-woogie danço até na corda bamba Mas o tal frevo original de Pernambuco Fui tentar dançar e fiquei maluco

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É uma dança bem quente, oi! que remexe com a gente, oi! E faz a cintura girar Joga as pernas pra frente, oi! Mexe feito serpente, oi! E a cabeça fica fora do lugar Eu danço tango, danço conga e danço samba Danço boogie-woogie danço até na corda bamba Mas o tal frevo original de Pernambuco Fui tentar dançar e fiquei maluco

É FREVO, MEU BEM! (Capiba,1951) Pernambuco tem uma dança Que nenhuma terra tem Quando a gente entra na dança Não se lembra de ninguém É maracatu? Não, mas podia ser É bumba-meu-boi? Não, mas podia ser Não será o baião? Não, mas podia ser É dança de roda? Quero ver dizer! É uma dança que vai e que vem Que mexe com a gente É frevo, meu bem!

Lançada pela gravadora Victor (disco nº 80.0353-A), em 78 rpm (rotações por

minuto), em dezembro de 1945, a canção O Frevo é Assim foi gravada por um dos

nomes mais importantes da Era de Ouro do rádio, o cantor Carlos Galhardo (1913-

1985), acompanhado por Zacarias e sua Orquestra, artistas reconhecidos por extensa

produção musical. Galhardo, nascido em São Paulo, atuou em diversas rádios do

sudeste, e participou também de produções cinematográficas nas décadas de 1940 e

1950. Zacarias teve carreira de sucesso, inclusive com excursões internacionais. Ambos

gravaram diversos gêneros musicais (além de frevos, também sambas, boleros, valsas

etc.)

É Frevo, Meu Bem! foi lançada originalmente em 1951, pela gravadora

Continental. Além dessa gravação com a cantora Carmélia Alves, outro nome

importante da Era de Ouro do Rádio, a canção tem pelo menos três regravações: pelo

cantor Claudionor Germano, em 1978 (LP Carnaval Capiba II – Carnaval começa com

C de Capiba, pela Rozenblit) e em 2002 (CD Mestre Capiba, por Raphael Rabello e

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Convidados, BMG Brasil Acari Records); e pelo cantor Expedito Baracho, em 1980 (LP

Carnaval do Nordeste nº 2, Rozenblit);.

Para ressaltar a importância das duas canções na definição dos posicionamentos

do Frevo no discurso literomusical brasileiro, analisamos brevemente como se elabora a

cena enunciativa das obras, recorrendo a considerações de Costa (2001) e Maingueneau

(1997, 2001, 2005, 2008, 2008a) acerca da cenografia e do ethos, a partir da noção de

incorporação, desenvolvida pelo autor francês.

No desenvolvimento de sua tese de doutoramento, que discute a configuração do

discurso literomusical brasileiro como discurso constituinte, Costa (2001) aponta os

elementos da estrutura enunciativa, que, de acordo com Maingueneau (1997, p. 41),

constitui-se pela definição de um enunciador, um co-enunciador, uma topografia e uma

cronografia, como já referido acima. Sabemos, ainda conforme Maingueneau, que a

cena da enunciação inclui a cena englobante (que corresponde ao tipo de discurso em

questão), a cena genérica (correspondendo ao gênero discursivo em que se elabora o

discurso) e a cenografia, que é “construída pelo próprio texto [...] é a cena de fala que o

discurso pressupõe para poder ser enunciado e que, por sua vez, deve validar através de

sua própria enunciação.” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 70).

A cenografia é, pois, a instância sobre a qual nos debruçamos para compreender

melhor como se engendra a definição dos posicionamentos do Frevo. Nas duas canções,

o gesto afirmativo de posicionamento do Frevo dá-se a partir da ênfase na dança,

apresentada em oposição a outras formas simbólicas dessa arte. No primeiro caso, são

elencadas algumas manifestações de origem estrangeira (tango, conga, boogie-woogie),

além do samba. No segundo caso, a oposição, que dá relevo ao Frevo, faz-se pela

menção a outras manifestações culturais do Nordeste brasileiro. Nas duas canções,

destaca-se o aspecto empolgante e inebriante na caracterização da dança: “...é uma

dança [...] que mexe com a gente” (É Frevo, Meu Bem!); “...é uma dança bem quente /

que remexe com a gente”[...] “...e a cabeça fica fora do lugar” (O Frevo é Assim).

As duas canções empreendem, em relação ao Frevo, um gesto de inserção no

campo do discurso literomusical brasileiro comparável ao que ocorre, por exemplo, com

as canções Baião (Luiz Gonzaga, 1946) e Desafinado (Newton Mendonça e Tom

Jobim, 1958). Essas canções cumprem o papel de “apresentar” no cenário da música

popular, respectivamente, o baião e a bossa nova, contribuindo para situar os dois

gêneros musicais no campo do discurso literomusical brasileiro.

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Em É Frevo, Meu Bem! esse gesto afirmativo está presente já no título,

exclamativo, que é reiterado no final da canção, como resposta à série de indagações

apresentadas anteriormente. O texto é elaborado numa sequência de perguntas e

respostas, criando um efeito retórico, no sentido estrito do termo56, de modo a

evidenciar o traço de diversidade que marca a cultura pernambucana e nordestina,

através dos nomes de algumas manifestações da dança, de modo geral, e do carnaval,

particularmente (baião, dança de roda, bumba-meu-boi, maracatu).

Em ambas as canções, o ethos discursivo do enunciador se constitui a partir de

uma cenografia valorizadora da identidade cultural pernambucana, com uma topografia

marcada explicitamente já no primeiro verso de É Frevo, meu Bem! (“Pernambuco tem

uma dança que nenhuma terra tem”). Em O Frevo é Assim, a topografia é associada à

característica de originalidade do Frevo (“...o tal frevo original de Pernambuco”). Em

sua abordagem sobre o ethos, Maingueneau propõe extrapolar a noção retórica,

associada à argumentação, ao afirmar que “além da persuasão por argumentos, a noção

de ethos permite, de fato, refletir sobre o processo mais geral da adesão de sujeitos a

uma certa posição discursiva.” (MAINGUENEAU 2005, p. 69). O autor desenvolve,

então, o conceito de incorporação, através do qual o discurso assume um caráter e uma

corporalidade, configurados a partir de um tom, de uma vocalidade específica do

enunciador (que não deve ser confundido com o autor efetivo da obra), como vimos no

capítulo 2.

O ethos discursivo constitui-se a partir de um conjunto de representações que

configuram uma corporalidade, com a qual o co-enunciador se identifica no espaço

social, “através da iconografia [...], da música, da estatutária, do cinema, da

fotografia...” (MAINGUENEAU, 2001, p. 140)

O gesto afirmativo das canções enfocadas integra essa dimensão do ethos, baseada

na incorporação, ou na “movimentação de um corpo investido de valores historicamente

especificados” (MAINGUENEAU, 2005, p.73), representados pelas formas simbólicas

da dança do Frevo. Mesmo que as obras analisadas apenas vagamente definam como se

dá essa movimentação (“é uma dança que vai e que vem” / “Joga as pernas pra frente

[...] Mexe feito serpente [...]”), há um componente persuasivo (“que mexe com a gente”,

“que remexe com a gente”) a suscitar a adesão do ouvinte a partir de um ethos

dançarino (em O Frevo é Assim). Já em É Frevo, meu Bem!, o tom exclamativo que

56 Como “emprego ornamental ou eloquente da palavra”, segundo Massaud Moisés (1988, p.430)

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fecha a série de perguntas retóricas põe em evidência o projeto enunciativo de

valorização do Frevo enquanto manifestação carnavalesca destacada entre outras

presentes no cenário cultural pernambucano e brasileiro.

Em conjunto, as cenografias das duas canções evidenciam a figura de um corpo

que se movimenta, reiterando sua presença a “mover-se no espaço social”, podendo ser

identificado através de “um conjunto difuso de representações” (MAINGUENEAU,

2008a, p. 65) às quais se associam a manifestação musical do Frevo. Considerando,

ainda com Maingueneau (2008a), que a definição de uma identidade discursiva se dá

numa relação interdiscursiva - ou seja, a identidade discursiva é construída na relação

com o outro - observamos que, ao longo dos momentos iniciais de desenvolvimento da

música popular brasileira, o processo de fixação e formalização do Frevo é marcado por

uma maior complexidade se comparado, por exemplo, do samba - gênero tomado como

referencial para a análise do período, a partir da gravação de Pelo Telefone (1917), e já

identificado pelo nome, para designar a música e a dança, desde então. Considerando,

nesse processo, a importância do registro impresso nos selos dos discos, sabemos que a

definição do Frevo levou mais tempo, tendo ocorrido somente na década de 1930, como

assinalamos acima.

São ainda dessa época – anos 1930 - os registros da chegada do Frevo no

carnaval do Rio de Janeiro, com a criação de agremiações por iniciativa de

pernambucanos residentes na capital do país, contando com o incentivo do prefeito,

Pedro Ernesto do Rego Batista, nascido no Recife57. A primeira foi o Clube Misto

Vassourinhas, fundado em 1934, no bairro da Saúde. Eneida Moraes (1987) lembra que,

já na década de 1950, além do Vassourinhas, “desfilam na Avenida nos dias de carnaval

[...] o Pás Douradas, Lenhadores, Batutas da Cidade Maravilhosa, Misto Toureiros e

Brasil Frevo.” (MORAES, 1987, p. 234) Além disso, de acordo com Alencar (1979), há

influência do Frevo na reconfiguração do samba dançado no carnaval do Rio de Janeiro

no mesmo período: “A chegada do frevo pernambucano, com a realização dos

chamados ‘bailes de frevo’, é outra contribuição que consolida a nova coreografia

carnavalesca.” (ALENCAR, 1979, p. 226). Segundo ele, a partir dos anos de 1930 o

samba deixa de ser uma “dança comum, dos pares enlaçados” e passa a exibir uma

coreografia mais individualizada, em que os dançarinos “se soltam as mãos [...] e

passam a sambar, simplesmente”. O autor vê aí a influência do carnaval de rua trazido

57 cf. SILVA, Leonardo Dantas. O frevo exportação. In SILVA, L. Dantas. Carnaval do Recife. Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2000.

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aos salões dos clubes, avaliando que “para a nova coreografia, por vezes exagerada com

pulos, contribui também a grande freqüência dos bailes.” (ALENCAR, 1979, p. 226)

As canções aqui enfocadas cumprem papel afirmativo da identidade do Frevo no

campo literomusical brasileiro, num momento significativo para a música

pernambucana e brasileira. A opção pela palavra Frevo para designar a dança atesta esse

gesto afirmativo, já que a denominação de uso corrente para a dança do Frevo é passo,

seja no domínio do próprio discurso literomusical (inclusive em outras composições dos

próprios autores, Nelson Ferreira e Capiba), seja na imprensa em geral ou nas esferas da

comunicação oficial, como vimos acima. Conforme assinala Maingueneau, “Entre

vários termos a priori equivalentes, os enunciadores serão levados a utilizar aqueles que

marcam sua posição no campo discursivo.” (MAINGUENEAU, 2008, p. 81). Já que a

distinção entre Frevo e passo é objeto de discussão dentro da própria comunidade

discursiva, consideramos que a importância de O Frevo é Assim e É Frevo, Meu Bem!

está num projeto enunciativo comum, que se baseia na ênfase dada à palavra Frevo,

contribuindo significativamente para marcar posição no campo discursivo literomusical

brasileiro.

Outra canção que exemplifica esse gesto afirmativo do Frevo por oposição a

outros gêneros musicais é a composição Ai, Como Sufro! (1949), também de Nelson

Ferreira, interpretada pela cantora Marlene (Vitória Bonaiutti De Martino), artista de

grande popularidade, eleita Rainha do Rádio no mesmo ano do lançamento da canção,

em concurso promovido pela Associação Brasileira de Rádio (ABR). O título da obra

faz referência ao bordão (frase de efeito repetida por uma personagem de programa de

rádio ou televisão) de Cuquita Carballo, cantora cubana de rumba, música de raízes

africanas que se popularizou internacionalmente a partir da década de 1940, com grande

sucesso no Brasil.

De acordo com Samuel Valente58, a cantora apresentou-se no Recife, na Rádio

Jornal do Commercio, pouco tempo depois da inauguração da emissora. A artista

também atuou em produções cinematográficas brasileiras, como as comédias musicais

Aviso aos Navegantes (1950) e Carnaval Atlântida (1952). A canção foi gravada com

acompanhamento da orquestra da Copacabana, para o carnaval de 1949. Eis a letra:

58 (Samuel Valente, in encarte do CD Nelson Ferreira – Carnaval, sua História, sua Glória, volume 28, CD 6. Curitiba: Gravadora Revivendo)

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AI, COMO SUFRO! (Nelson Ferreira, 1949) Depois que eu voltei de Cuba Ai, ai, ai, como sufro! Tenho saudade da rumba Até parece macumba Ai, como sufro! Mas agora que ao meu Brasil eu voltei Bem na hora do frevo gostoso cheguei Remelexo, não quero mais! Muita rumba assim faz mal! Eu quero, quero, quero é Carnaval!

Assim como nas duas canções analisadas acima, a cenografia de Ai, como sufro!

evidencia as qualidades do Frevo em oposição a outro gênero musical, a rumba, que é

também o nome da dança, caracterizada na letra pelo “remelexo” : “remelexo não quero

mais! / muita rumba assim faz mal!”. Aqui, observa-se o uso polissêmico da palavra

Frevo, que em “bem na hora do frevo gostoso cheguei”, tanto pode significar a festa

quanto a música ou a dança.

Da mesma forma, outras canções apresentam cenografias valorizadoras do Frevo

em oposição a outros gêneros musicais. As duas canções abaixo, ambas gravadas na

década de 1960, constituem bons exemplos do projeto enunciativo de exaltação ao

Frevo em meio à profusão de ritmos que caracterizou o cenário musical brasileiro do

período, com importantes influências internacionais, sobretudo da música dos Estados

Unidos e da Inglaterra.

A TURMA DA PEDRA LASCADA (Capiba, 1963) No carnaval é tudo alegria Na pracinha ou na rua ou no clube elegante Todos dançam, todos cantam Para bossa nova transviado ou não Dançar twist é uma devoção Mas quem é da turma da pedra lascada Não resiste a Vassourinhas não E cai de corpo e alma no salão Pula, pula, pula Dança dança dança Até quando o sol desponta

FREV-IÊ-IÊ (Nelson Ferreira, 1966)

Iê, iê, iê, iê moçada! Iê, iê, iê e frevo pra você, que tal? Com os braços pra lá e pra cá

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Com a cabeça faz que vai faz que vem Com as palmas assim, assim O iê, iê, iê vai indo muito bem Mas agora prepara o corpo todo Que do frevo está chegando a hora Iê, iê, iê azeite nas canelas Porque o frevo também é brasa viva Para!

Ao longo do período enfocado neste trabalho, muitas outras canções se destacam

por caracterizarem esse gesto afirmativo do Frevo, a partir da opção de seus autores pela

reiteração do emprego da palavra para recobrir diferentes aspectos do fenômeno

cultural, além da dança. É o caso, por exemplo, de Sonhei que Estava em Pernambuco,

do compositor paulista (da cidade de Santa Cruz do Rio Pardo) Clóvis Mamede, lançada

em 1949, gravada com a orquestra comandada pelo próprio autor - tendo como líder

vocal o cantor Roberto Amaral - e depois também por Carmem Costa (Carmelita

Madriaga, 1920-2007). A partir dos anos 1990, a obra foi regravada por artistas

pernambucanos como Alceu Valença, Lenine e Antônio Carlos Nóbrega, o que

demonstra a sua perenidade ao longo de um período marcado pelo registro de

memoráveis criações do cancioneiro carnavalesco de Pernambuco e de todo o país. A

canção foi escolhida para abrir o segundo CD da série Recifrevoé, em 1999, meio século

depois do seu lançamento original. Os discos dessa série foram produzidos pela

Prefeitura do Recife, com a proposta de reunir numa mesma obra canções do passado,

regravadas por artistas em evidência no cenário artístico nacional naquele momento

(neste caso, a gravação é de Lenine, nos vocais), e composições vencedoras do

Concurso de Músicas Carnavalescas promovido anualmente na cidade:

SONHEI QUE ESTAVA EM PERNAMBUCO (Clóvis Mamede, 1949) Sonhei que estava em Pernambuco Fiquei maluco Quando o frevo passou Mas, quando estava no melhor da festa Ora essa, alguém me despertou Quando acordei, ai, ai Até chorei. ai, ai Tudo mentira, ai, ai O que sonhei Mas agora vou brincar O Frevo eu vou cantar

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O Frevo eu vou dançar Para me consolar

As três ocorrências da palavra Frevo na letra da canção recobrem diferentes

significados: primeiro, como festa, ajuntamento, frevolência inebriante (“fiquei maluco

quando o frevo passou”, na primeira estrofe), depois como música, especificamente

caracterizada como canção (“o frevo eu vou cantar”) e, por fim, como dança (“o frevo

eu vou dançar”), na última estrofe.

Considerando a elaboração da cena enunciativa, a obra exemplifica aquilo que

Costa (2009a) chama de cenografia encaixada, que ocorre quando, “no âmbito da

cenografia são relatados fatos do passado, narrativas imaginárias, sonhos, versões de

fatos etc.” (COSTA, 2009a, p. 9). O projeto narrativo da canção é dividido em três

partes, graficamente marcadas pela disposição das estrofes. A cenografia encaixada

corresponde ao relato de um sonho, interrompido no momento em que enunciador

afirma que “alguém me despertou”, na primeira estrofe. Na segunda, elaborada ainda no

tempo pretérito, o enunciador relata o sentimento de desencanto pela interrupção do

sonho (“até chorei”). A última estrofe da letra manifesta a disposição do enunciador em

superar a decepção, a partir de uma decisão indicada pelo dêitico “agora”, que sinaliza a

mudança de perspectiva, para o futuro (“[...] vou brincar / o frevo eu vou cantar / o

frevo eu vou dançar”), atualizando o discurso e marcando a determinação de buscar no

Frevo, afinal, o alívio para sua tristeza (“para me consolar”).

A respeito do encaixamento de cenografias, Costa (2009a) lembra que se trata de

um procedimento bastante comum, por exemplo, na publicidade, em que se busca

desviar a atenção do leitor em relação às outras cenas (genérica e englobante), “que

põem o enunciador na constrangedora situação de estar, no fim das contas, em busca do

dinheiro do consumidor.” (COSTA, 2009a, p. 9). O autor argumenta ainda que o

fenômeno é também recorrente no âmbito da literatura e do discurso literomusical, que

lidam com o imaginário, conferindo legitimação estética e contribuindo para a definição

de posicionamentos. Na canção de Clóvis Mamede, o percurso narrativo desenvolvido

pelo enunciador a partir de uma cenografia inicial, de sonho, que é interrompido

gerando insatisfação, configura um projeto enunciativo de vinculação do Frevo a um

sentimento de superação diante de frustrações e dificuldades sentimentais e existenciais,

já que é através dele que o enunciador afirma buscar consolo. Um significativo conjunto

de canções, do qual enfocaremos alguns exemplos, adiante, enquadra-se nessa proposta

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de valorização do Frevo com base em seu caráter festivo, efusivo e revigorante,

colaborando para sua caracterização como antídoto para a melancolia e a tristeza.

Como afirmamos acima, a mudança de atitude do enunciador, em busca de

superar seu desconsolo pela interrupção do sonho, é marcada textualmente pelo dêitico

“agora”, em Sonhei que Estava em Pernambuco. Ressaltamos que a dêixis enunciativa é

um dos planos que integram a semântica global de um discurso, segundo Maingueneau

(2008, 2008a). Trata-se, em resumo, de um conjunto de coordenadas espaciotemporais

instituído no ato da enunciação, elaborado em função de uma dada formação discursiva

– ou, para usar a noção desenvolvida por Maingueneau, em função de um dado

posicionamento. Para o autor, “essa dêixis, em sua dupla modalidade espacial e

temporal, define de fato uma instância de enunciação legítima, delimita a cena e a

cronologia que o discurso constrói para autorizar sua própria enunciação.”

(MAINGUENEAU, 2008, p. 89)

A configuração da cenografia de uma obra dá-se, com efeito, pela definição de

um enunciador, um co-enunciador, uma topografia e uma cronografia da enunciação,

que validam as mesmas instâncias responsáveis por sua existência. Costa (2001) ressalta

que “a topografia e a cronografia se constituem respectivamente pela representação de

um espaço e de um tempo validados, onde se desenrola a enunciação construída pelo

texto.” (COSTA 2001, p. 75), lembrando que “validado” – da mesma forma que

“legitimado” – significa, conforme Maingueneau (2001), “já instalado no universo de

saber e de valores do público” (MAINGUENEAU, 2001, p. 126).

No conjunto de canções analisadas aqui, gravadas nesse período inicial de

inserção do Frevo no campo do discurso literomusical brasileiro, em geral observa-se

uma dêixis enunciativa com identificação explícita da topografia em Pernambuco (em É

Frevo, Meu Bem!, O Frevo É Assim e Sonhei que Estava em Pernambuco, por

exemplo59) e no Brasil (em Ai, Como Sufro!), o que ressalta o caráter identitário do

Frevo, “como símbolo de ‘pernambucanidade’, e, num sentido mais amplo, de

‘brasilidade’”, conforme o documento do IPHAN que acompanha o parecer da

instituição confirmando o registro do Frevo no Livro das Formas de Expressão como

Patrimônio Cultural Brasileiro (conferir 4.5 Frevo e Identidade Cultural, acima).

59 Incluem-se ainda Frevo Pernambucano (Luperce Miranda/Oswaldo Santiago, 1931), Vou Pra Pernambuco (Nássara/ Frazão, 1945), Conhece o Recife? (Gildo Moreno, 1950), Frevo nº 1 do Recife (Antônio Maria, 1951), Micróbio do Frevo (Genival Macedo, 1954), entre outros.

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Passamos a enfocar agora uma canção de Nelson Ferreira que sintetiza a

proposta de inserção do Frevo no campo do discurso literomusical a partir da ênfase no

plano do vocabulário. Lançada em 1967, já no contexto de consolidação da televisão

como meio de comunicação de massa, ao lado do rádio, A Palavra é... faz alusão ao

famoso programa Esta Noite se Improvisa, comandado pelo apresentador José Blota Jr.

na TV Record, São Paulo, nos anos de 1960. Eis a letra da canção:

A PALAVRA É... (Nelson Ferreira, 1967) A palavra é... FREVO! E a turma foi ligeiro no botão! Todo mundo quis mostrar Que sabia frevar Fechou-se o tempo Deu a louca no salão Frevo...Passo... Bloco...Momo... Riso...Alegria... No delírio da folia São palavras fáceis Pra se improvisar... Portanto seu Blota Vencemos de barbada... Se a palavra é FREVO Vamos “se esbaldar!”

A letra da canção estabelece uma rede semântica em torno da palavra-chave

Frevo, formada pela sequência nominal “passo-bloco-Momo-riso-alegria-delírio-folia”,

que busca dar conta do caráter festivo da manifestação cultural do Frevo, com especial

relevo para a dança, identifica na forma verbal derivada do nome, na primeira estrofe

(“todo mundo quis mostrar que sabia frevar”) e na primeira palavra da série acima

descrita (“passo”). A escuta da canção revela, ainda, uma interessante elaboração da

cenografia da obra quando, logo após a introdução instrumental, a melodia é

interrompida por uma pausa ao final do primeiro verso, que dá título à canção, criando

assim um efeito de suspense para a complementação da frase, revelando-se afinal a

resposta. Trata-se de uma representação da dinâmica do programa televisivo em que se

baseia a canção. Essa dinâmica é explicada pelo cantor e compositor Silvio César, em

seu blog:

[...] Era assim: o apresentador (Blota Jr.) propunha: "a palavra é..." e os participantes tinham de apertar uma campainha, ir ao microfone e cantar uma música que tivesse a palavra proposta. Se cantasse a música inteirinha,

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marcava 6 pontos. Se não, ponteava conforme os critérios de uma comissão julgadora. (http://www.silviocesar.com/historias3.htm <acesso em 01/08/2010>)

A Palavra é... tem, assim, uma cenografia elaborada com base em um cenário

validado, o de um programa de auditório, muito em voga na televisão brasileira, a partir

da segunda metade dos anos 1950. Neste caso, um programa voltado ao entretenimento

baseado no próprio discurso literomusical. A observação desse contexto de produção da

obra traz-nos à reflexão de Costa (2009) acerca do caráter autoconstituinte do discurso

literomusical brasileiro. Segundo ele,

a MPB é uma instituição que se auto-constitui. Entendendo as práticas discursivas como uma rede enunciativa, que formula seu discurso heterogeneamente, isto é, não apenas através de um único gênero de discurso (no caso, a canção), mas sob a forma de uma variedade de gêneros (crônicas, artigos, livros), e mesmo através de ações ou de comportamentos, que comentam, divulgam, citam, reverberam os textos primeiros, podemos afirmar que o que se chama comumente de MPB não pode ser definida essencialmente: trata-se de um discurso cotidianamente gerado pela própria prática discursiva de artistas e consumidores. (COSTA, 2009, p. 4)

A Palavra é... merece destaque, assim, por situar um período de redefinição da

música popular brasileira, sob o ponto de vista da influência exercida pela televisão, que

ajuda a inaugurar, segundo Napolitano (2007), a “moderna indústria cultural brasileira”,

marcada, de início, pela aliança da “MPB engajada e nacionalista” com o novo veículo

de comunicação, implantado no Brasil em 1950. O autor lembra que, ao longo da sua

primeira década de existência em nosso país, a televisão “permaneceu como novidade,

extravagância, acessível às faixas mais ricas da população das grandes cidades”

(NAPOLITANO, 2006, p. 54), conquistando maior popularidade na década seguinte e

exercendo enorme influência no processo de massificação da música popular. Além dos

programas de auditório e de variedades, com significativo número atrações musicais60,

eram destaques de audiência programas como O Fino da Bossa (lançado em maio de

1965), Bossaudade (julho de 1965) e Jovem Guarda (setembro de 1965), que

contribuíram para definir uma segmentação do público telespectador consumidor de

música popular. Como lembra Napolitano (2006), os primeiros eram voltados “para um 60 Além de Esta Noite se Improvisa, de Blota Jr., fizeram muito sucesso também os programas Noite de Gala (direção de Geraldo Casé e Carlos Thiré), O Céu é o Limite (apresentado por J. Silvestre), entre outros, a partir da década de 1950. Em Pernambuco, são inauguradas, em junho de 1960, com intervalo de apenas duas semanas, a TV Rádio Clube de Pernambuco, operando no canal 6, e a TV Jornal do Commercio, canal 2. Nesta última, destacou-se, entre outros, o programa Você Faz o Show, apresentado por Fernando Castelão, aos domingos, até o ano de 1967.

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público mais adulto ou intelectualizado”, enquanto o Jovem Guarda para “o público

mais adolescente e descompromissado”, se bem que, como o autor salienta “também era

muito comum que houvesse pessoas assistindo aos dois programas, sem problemas.”

(NAPOLITANO, 2006, p. 55)

Até aqui, enfocamos uma amostragem das obras que definem, sobretudo a partir

do plano do vocabulário, um gesto de inserção do Frevo demarcando território no

campo do discurso literomusical com a ênfase no substantivo que o distingue de outros

gêneros musicais. Como vimos, esse gesto afirmativo define-se, inicialmente, pela

reiteração da dança como síntese do fenômeno cultural do Frevo, nascida a partir da

movimentação frenética que a distingue de outras formas simbólicas da mesma arte.

Além da caracterização de um ethos elaborado a partir da incorporação do movimento

inebriante, sugerido na cenografia das obras, ressaltamos a contextualização sócio-

histórica evidenciada, por exemplo, na menção a algumas das agremiações mais antigas

do carnaval Pernambucano - como o Clube das Pás Douradas e o Clube Vassourinhas -,

assim como no emprego polissêmico do nome do Frevo, para dar conta de sua

emergência como rico fenômeno da cultura carnavalesca de Pernambuco e do Brasil.

Consideramos, ainda, que a configuração do plano do vocabulário, para a

definição de uma semântica global que nos possibilite compreender diferentes aspectos

do posicionamento do Frevo, deve incluir as obras instrumentais, pertencentes ao

gênero Frevo-de-rua, cujos títulos são, em grande parte, reveladores desse

posicionamento. Não obstante fugirem ao escopo deste trabalho, o caráter inebriante do

Frevo e o contexto sociocultural de seu aparecimento estão aí presentes, nesses títulos,

já a partir da obra Divisor de Águas (Capitão Zuzinha), que revela, como já observamos,

um momento de definição da estrutura musical do Frevo, após um processo de transição

marcado pelas influências da música produzida pelas bandas militares. Entre muitos

outros, são bastante significativos os Frevos-de-rua Fogão (Sérgio Lisboa), Tá

Esquentando (Zumba), Tá Fervendo (David Vasconcelos), Tá Pegando Fogo (Hermann

Barbosa), Tempo Quente (Edgard Moraes), Vamo se Acabá (Nelson ferreira), O

Caldeirão Está Fervendo (Jones Johnson), Espalha Brasa (Marambá), O Pau Cantou,

Satanás na Onda, Comendo Fogo, Aguenta o Cordão (todas de Levino Ferreira),

Aguenta a Virada (Edivaldo Pessoa) etc.

Da mesma forma importantes são os Frevos-canção que nomeiam a dança do

Frevo como passo. Em alguns casos, a especificação do termo é complementada pela

ocorrência do próprio nome Frevo, já que passo, como observamos acima, é usado para

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designar os movimentos de outros gêneros de dança. A menção aos diferentes nomes

dos movimentos da coreografia do Frevo – tesoura, dobradiça, ferrolho, britadeira,

passeio na pracinha, chã-de-barriguinha etc. – e a compreensão dos seus significados

contribuem para a definição de uma rede semântica organizada em torno do fenômeno

cultural, já que, de acordo com Maingueneau (2008), “além de seu estrito valor

semântico, as unidades lexicais tendem a adquirir o estatuto de signos de

pertencimento” (MAINGUENEAU, 2008, p. 80).

Destacamos abaixo alguns exemplos:

DIARBUCO, ÓIA A VIRADA (Nelson Ferreira, 1933) Vira, vira, óia virada, ô! Vem cair no passo moreninha do amô. Lá em casa todo mundo Virá pó no carnavá Até mesmo a minha sogra Se esfarinha de pulá (...olha a curva...) Vira, vira... [...] DOBRADIÇA (Nelson Ferreira, 1934) Dobra! Dobra! Vem pra dobradiça! Caboquinha do amor É o frevo que te atiça Quando chega a folia A gente fica que nem ioiô Pra cá, pra lá [...] MICRÓBIO DO FREVO (Genival Macedo, 1954) Eu só queria que um dia O frevo chegasse a dominar Em todo Brasil O micróbio do frevo é de amargar Quando entra no salão É o que o povo prefere pra dançar E cai na dobradiça Não há quem faça parar [...] FREVO Nº 1 DO RECIFE (Antônio Maria, 1951) [...] Saudade que eu sinto Do Clube das Pás, do Vassouras, Passistas traçando tesouras Nas ruas repletas de lá.

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[...] BOM DANADO (Luiz Bandeira) Êita frevo bom danado, Êita povo animado Quando o frevo começa Parece que o mundo já vai se acabar, Quem cai no passo Não quer mais parar [...]

A análise desses nomes indica, por exemplo, as múltiplas influências exercidas

por outras manifestações, para a configuração da dança. Lélis (2011) observa, por um

lado, a “influência dos musicais americanos, que inspiram o passeio na pracinha; e do

balé clássico, como os passos pontinha de pé, festival de bailarina e britadeira.”

(LÉLIS, 2011, p. 61, grifos da autora). A autora lembra, ainda, a identificação do

contexto de surgimento dos clubes pedestres, formados por trabalhadores de diferentes

categorias profissionais: “Curiosamente, instrumentos ou objetos presentes no cotidiano

do trabalho estão associados à denominação de muitos passos: dobradiça, alicate, chave

de cano, serrote, tesoura, ferrolho, parafuso, martelo e britadeira.” (LÉLIS, 2011, p.

62). Por fim, ressalta o papel de artistas que contribuíram para a evolução coreográfica

do Frevo, e cujo reconhecimento é reivindicado por Vicente (2009), ao negar a

caracterização da dança exclusivamente enquanto manifestação folclórica, conforme

analisamos acima. É Lélis quem continua:

Outros [passos] são batizados, devido à escolarização, por dançarinos, pesquisadores e foliões que lhes davam nomes miméticos, como saci, patinho, coice de burro, faz que vai mas não vai, banho de mar e grilo. Egídio Bezerra, Nascimento do Passo e, posteriormente, o Balé Popular do Recife são responsáveis pela criação, ‘batismo’ e releitura de vários passos. (LÉLIS, 2011, p. 62)

É, no entanto, a influência da capoeira que tem maior destaque na configuração

da dança do Frevo. Trata-se, como veremos adiante, de uma das mais relevantes

contribuições das camadas mais pobres da sociedade recifense do século XIX – ex-

escravos e excluídos em geral, desempregados e trabalhadores de diversas categorias do

proletariado – para a consolidação do Frevo como rica e vigorosa manifestação da

cultura carnavalesca pernambucana, para todo o Brasil.

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3.6.2. Entre Saltos, Pernadas e Rasteiras, o Frevo que não é brincadeira

“Meteram uma peixeira no bucho de Colombina que a pobre, coitada, a canela esticou!

Deram um rabo-de-arraia em Arlequim, um clister de sebo quente em Pierrô!

“E somente ficaram os máscaras da terra : Parafusos, Mateus e Papangus... e as Bestas-Feras impertinentes, os Cabeções e as Burras-Calus...

realizando, contentes, o carnaval do Recife, o carnaval mulato do Recife,

o carnaval melhor do mundo !”

(Ascenso Ferreira, Carnaval do Recife. In: Catimbó, 1927)

FREVO PERNAMBUCANO (Luperce Miranda e Osvaldo Santiago, 1931)

Lá vem Catirina a sambá Na frente do Clube das Pá Lá vem Sá Chiquinha do angu De braço com o Zé Papangu Viva o frevo, a pagodeira Viva a farra e o amô! Viva o amô! Dei um saco de confete Para minha flô A faca num cabra enterrei Por que, não me lembro, não sei, Só sei que no frevo caí E dele aos pedaços saí

A canção Frevo Pernambucano exemplifica um relevante aspecto do

posicionamento do Frevo no campo do discurso literomusical brasileiro, observado em

um número reduzido de canções que constituem nosso corpus, mas que se manifesta,

por exemplo, em diversos títulos de Frevos-de-rua, como vimos acima. Trata-se da

elaboração de um ethos agressivo do enunciador, em meio aos excessos da folia. Esse

pequeno grupo de canções (além de Frevo Pernambucano, analisamos O Caminho é

Perigoso, de Capiba, e Vou Pra Pernambuco, de Nássara e Frazão) ilustra a

compreensão do fenômeno cultural do Frevo em seus momentos iniciais de

configuração da música e da dança, ainda no século XIX. Como enfatizamos acima, o

contexto sócio-histórico do período é marcado por intensas transformações em

Pernambuco e no Brasil como um todo, sobretudo a partir da Abolição da escravatura,

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com o crescimento populacional nas cidades e o consequente aprofundamento das

contradições sociais.

A rede de significações que se estabelece na definição desse aspecto da

emergência do Frevo inclui dois elementos principais: o espírito de rivalidade que

marca a atuação das bandas militares e das primeiras agremiações de rua; e a influência

da capoeira na configuração da dança do Frevo, a partir da movimentação do gingado

daqueles que se exibiam à frente das bandas, abrindo caminho para sua passagem. A

respeito do primeiro, Oliveira (1985) lembra que a rivalidade entre as bandas sempre foi

bastante comum não apenas no Recife, mas também nas cidades do interior, a exemplo

de Nazaré da Mata, onde se destacam as bandas Revoltosa e Capa-Bode, e Goiana, com

a Saboeira e a Curica. Duarte (1968), por sua vez, vai buscar no passado de revoltas,

rebeliões e revoluções que marcam a História de Pernambuco uma explicação para esse

espírito belicoso que perpassa as diferentes manifestações do Frevo, desde a escolha dos

nomes das agremiações até o uso da sombrinha (ou chapéu-de-sol, como prefere o

autor) como arma, apontando como motivação clara para o fenômeno o sentimento de

aversão contra o colonizador português.

De toda forma, o clima de acirramento dos ânimos e de predisposição para o

confronto é algo que caracteriza os primeiros momentos do Frevo, sucintamente

descritos por Câmara (2007, p. 14), assim:

O desfile desse pessoal era feito em moldes de verdadeiro delírio, pulando, gingando, jogando capoeira, armados de cacetes e aos gritos, desfiando adversários para a luta. Isso acontecia quando uma banda cruzava com outra. [...] A confusão era o ponto alto do desfile. A música tocando, o pau cantando e o frevedouro estourando.

A esse respeito, são ilustrativos os versos de Frevo Pernambucano. A cenografia

dessa canção situa o ouvinte no contexto de um desfile pelas ruas, de uma das mais

antigas agremiações do carnaval do Recife, o Clube das Pás Douradas61. O enunciador

descreve então o gesto violento de ataque (“a faca num cabra enterrei”), aparentemente

sem qualquer razão (“por que, não me lembro, nem sei”), e finaliza a canção referindo

sua condição física depois de sair da frevolência da folia (“só sei que no frevo caí / e

61 Conforme registra o Catálogo das Agremiações Carnavalescas do Recife e Região Metropolitana, publicado pela Prefeitura do Recife em 2009, o Clube das Pás foi fundado em 19 de março de 1888, no bairro de São José, por um grupo de carvoeiros que trabalhava no Porto do Recife. Inicialmente foi batizada como Bloco das Pás de Carvão, em referência aos seus instrumentos de trabalho. Em 1890, muda o nome para Clube Carnavalesco Misto Pás Douradas. (RECIFE 2009, p. 40)

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dele aos pedaços saí”). A canção registra, portanto, cenas semelhantes às descritas nas

páginas dos jornais, desde o século XIX, quando eram frequentes as notícias de

confrontos sangrentos por ocasião do encontro das agremiações pelas ruas do Recife.

Esta, por exemplo, do Diario de Pernambuco, de 25 de fevereiro de 1909, dá conta dos

fatos ocorridos no confronto entre o próprio Clube das Pás e o Clube Lenhadores:

Assassinato Mais uma lamentável cena de sangue veio por um momento turvar a alegria das festas de carnaval, lançando uma nota de pesar no seio da população desta cidade. [...] De algum tempo é constatada visível divergência entre os Lenhadores e as Pás, dois clubes cujas sedes se acham estabelecidas no bairro da Boa Vista [...] Quiz ante-ontem [sic] o acaso que os dois rivais se encontrassem no Pátio de Santa Cruz às 5 1/2 horas da tarde travando logo violenta discussão as respectivas orquestras. Nesse local, não sabemos porque motivo se achava o popular de nome Paizinho, barbeiro de profissão e residente no Pombal, brigando com uns músicos desses referidos clubes que o espancaram a valer. Daí a pouco o brigar tornou-se geral, sendo então exibidas muitas armas e começando sério conflito da orquestra de Lenhadores composta de músicos do 49º batalhão de caçadores, com os das Pás, constituída por músicos do 27º batalhão de infantaria. Foi nessa ocasião que o soldado do 1º corpo de polícia de nome Joaquim Jerônimo Pessoa, destacado no distrito de Pombal, recebeu mortal ferimento de punhal no baixo ventre, vibrado por mão traiçoeira e cobarde. A notícia do sucedido correu veloz, chegando rapidamente ao conhecimento das autoridades. [...] (DIARIO DE PERNAMBUCO, 25/02/1909, in RABELLO, 2004, p. 118)

De fato, registros da violência da festa estão presentes na imprensa desde a

primeira metade do século XIX, pelo menos. A questão é analisada por diversos

autores, que a identificam em diferentes momentos da história, desde a época do

Entrudo, nome da festa em Portugal. SILVA (1991, p.XVI), por exemplo, reproduz

matéria do Diario de Pernambuco de 6 de fevereiro de 1837, que

trata dos ‘jogos de lima ou balas de cera, contendo águas odoríferas’, ressaltando que ‘um abuso grosseiro e porco, vai porém aviltando o nosso entrudo (que bom fora que fosse abandonado com todas as más galanterias) introduzindo águas, tintas e pós a que chamam vapor [...] (SILVA, 1991, p. XVI)

Esta outra notícia, também do Diario de Pernambuco, publicada em 1842, deixa

transparecer claramente o clima de animosidade motivado por diferenças sociais:

Os nossos bons camponeses, que nos trazem ao mercado os produtos de sua agricultura, e que vem fazer o seu negócio são furiosamente acometidos até por escravos, que os molham, que os enxuvalham de tintas, de lama etc.etc. [...] são incalculáveis as desconfianças, os ódios as rixas e até os homicídios,

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que se tem originado dos chamados brinquedos do entrudo. (in RABELLO 2004, p. 47)

A análise desses registros enseja uma reflexão acerca da validade de uma

compreensão, bastante recorrente, do carnaval como festa democrática de igualdade e

integração social, em diferentes contextos. O registro dos acontecimentos verificados no

carnaval da pequena cidade francesa de Romans, no século XVI, constituem um

exemplo de como a insatisfação política e as tensões sociais podem eclodir no carnaval,

sob diferentes formas, fazendo-nos lançar, portanto, um questionamento sobre essa

visão do carnaval como festa democrática. Os fatos, relatados por Ladurie (2002),

ocorreram em apenas duas semanas: “Mas que semanas! As do Carnaval de Romans,

em fevereiro de 1580, no decorrer do qual os participantes dos dois lados mascararam-

se, depois se mataram entre si.” (LADURIE, 2002, p. 9). O clima de revolta, motivado

por problemas econômicos, como a cobrança abusiva de impostos, ou pela violência da

nobreza contra artesãos e camponeses, resultou em derramamento de sangue. Medeiros

(2005), abordando a questão, esclarece que “Em 1580 há dois carnavais em Romans, o

dos plebeus e o dos notáveis, e a forte tensão desencadeará o pesadelo de mortos e

feridos.” (MEDEIROS, 2005, p. 17).

Em Pernambuco, as razões para as manifestações de violência são explicadas,

como já assinalamos, pela rivalidade entre partidários das bandas, inicialmente, e

posteriormente entre as próprias agremiações do nosso carnaval. Mas há também uma

motivação clara a partir das diferenças de classe, ao longo do período de transição entre

o declínio do carnaval organizado pelas elites, nos moldes do carnaval europeu, e a

emergência de um carnaval eminentemente popular. Araújo (1996) analisa que as

camadas dominantes – ou seja, “os proprietários de terra, os grandes comerciantes,

agentes financeiros e industriais”, aos quais estava ligada a classe média urbana, “por

laços de parentesco, dependência ou identidade sociocultural e ideológica” (ARAÚJO,

1996, p. 304) – viam com preocupação e até com certo temor o fortalecimento desse

carnaval criado pelas camadas subalternas:

A invasão das ruas pelo povo, pelo mísero habitante dos mangues e das marés, era vista com apreensão pelos membros das camadas dominantes. Intimidava-os, amedrontava-os e levava-os a abandonarem os espaços públicos ou a refugiarem-se no interior dos carros e automóveis, divertindo-se no corso, entre famílias. Até aquele momento, a elite praticamente ignorara a existência daquela gente que mourejava de sol a sol [...] A imagem que vislumbrava ao ver passar aquela multidão ensandecida, recém-saída dos mocambos e da lama, dos fornos das padarias, dos fundos das oficinas, das mesas das tipografias, dos galpões insalubres das fábricas e detrás dos

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balcões das lojas e boticas, era a de um verdadeiro monstro popular (ARAÚJO, 1996, p. 302)62

A cenografia elaborada na canção Frevo Pernambucano recupera, assim, em

certa medida, o contexto social desse período de grande ebulição no carnaval, refletindo

conflitos da vida social da época.

A análise dos versos revela ainda um aspecto interessante, de caráter

propriamente linguístico, em ocorrências como “na frente do Clube das Pá”, “viva a

farra e o amô!” e “dei um saco de confete para minha flô”, que exemplificam, no

primeiro caso, um desvio de concordância nominal em relação à norma padrão da

gramática normativa e, nos outros dois, a supressão do fonema /r/ final nos substantivos

amor e flor, fenômeno comum também nas desinências de infinitivo63. Compreendemos

as ocorrências como opções dos compositores para caracterizar, na elaboração da cena

enunciativa da canção, o falar dos integrantes dessas camadas subalternas responsáveis

pela emergência do tal “monstro popular” no carnaval.

É importante assinalar que os trechos destacados exemplifiquem fenômenos

observados tanto entre falantes da cidade como das áreas rurais de várias regiões do

país64, e que ocorrências semelhantes aparecem também em canções de grupos como

Turunas da Mauricéia e Grupo de Caxangá, que saíram de Pernambuco e fizeram

sucesso no Rio de Janeiro a partir da primeira década do século XX, contribuindo muito

para a popularização de gêneros sertanejos do Nordeste, como o coco e a embolada. A

respeito do sucesso dos Turunas, Cabral (1996) observa: “Vestidos com roupas típicas e

cantando gêneros musicais tradicionais do sertão, como o coco e a embolada, os

músicos pernambucanos estrearam com grande sucesso no Teatro Lírico” (CABRAL,

1996, p. 23). Em novembro do mesmo ano, a gravadora Odeon lançaria dez discos do

Turunas da Mauricéia, com vinte músicas gravadas, ao todo. Do grupo fazia parte um

dos autores de Frevo Pernambucano, o bandolinista Luperce Miranda (1904-1977)

62 A autora cita os versos publicados no Jornal Pequeno, Recife, em 11 de fevereiro de 1907: “Aos saltos por entre risos/ sem carros de alegorias, / pois symbolos são são precisos/ p’ra as cousas dos nossos dias, / [...] / E o carnaval enorme,/ - parece imensa cobra/ quando a espiral desdobra/ é o ‘MONSTRO POPULAR’,/ que o misero que dorme/ à sonho solto, após/ o diuturno lidar [...]” (ARAÚJO, 1996, p. 303) 63 Marroquim (2008) observa que o fenômeno ocorre em registros coloquiais da modalidade oral do português falado em várias partes do mundo, assim como em outras línguas neolatinas, a exemplo do romeno, que suprimiu o r em todos os infinitivos verbais. (v. MARROQUIM 2008, p.35) 64 Araújo (1996) assinala que boa parte dessa população chegava ao Recife como resultado do fluxo migratório oriundo da zona rural de Pernambuco, “da área açucareira, sobretudo” (ARAÚJO, 1996, p.313)

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O sucesso dos grupos pernambucanos influenciou toda uma geração de músicos

cariocas de talento, dentre os quais se incluem Almirante (Henrique Foréis Domingues),

Braguinha (Carlos Alberto Ferreira Braga), Noel Rosa, Donga (Ernesto Joaquim Maria

dos Santos) e Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna). Os três primeiros integraram o

grupo Flor do Tempo (grafado Frôr do Tempo), depois rebatizado de Bando de

Tangarás; os dois últimos participaram do Grupo de Caxangá, fundado pelo violonista

João Pernambuco (João Teixeira Guimarães, 1883-1947). Máximo e Didier (1990)

assinalam que Almirante, líder e fundador do Bando de Tangarás, “estabelece que seu

repertório será, basicamente, nordestino, [...] de preferência nos moldes dos turunas lá

de cima” (MÁXIMO; DIDIER, 1990, p. 108). Daí considerarmos que alguns títulos das

canções que integram esse repertório revelam a proposta de apresentar uma certa

caracterização geral do falar nordestino: Vamo Falá do Norte, Vaca Maiada, Mulata

Mal Inducada, Coisas da Roça, Pra Vancê (MÁXIMO; DIDIER, 1990, p. 108).

Levando em conta esse contexto histórico, marcado pelo sucesso dos referidos grupos,

compreendemos que semelhante proposta norteou as opções de Luperce Miranda e

Osvaldo Santiago - pernambucanos já há algum tempo radicados no Rio de Janeiro -

observadas na letra de Frevo Pernambucano.

Por fim, merece atenção ainda o primeiro verso de Frevo Pernambucano, (“Lá

vem Catirina a sambá”) que evidencia a importância dessa obra não apenas pelo registro

da inserção do Frevo no campo do discurso literomusical, mas também por sinalizar, em

seus versos, um momento do processo de afirmação do samba no cenário da música

urbana brasileira. Aqui, o verbo “sambá” (em “Lá vem Catirina a sambá”) designa a

movimentação eufórica da dança, remetendo o ouvinte a um período de transição no

processo de definição do samba como música e dança. A constatação baseia-se na

análise desse processo, tal como desenvolvida por Sandroni (2001), que menciona, na

edição de 3 de fevereiro de 1838 do jornal recifense O Carapuceiro, o registro a palavra

samba indicando a “‘dança do samba’, referida como diversão da gente da roça, por

contraste com a da capital (Recife)65” (SANDRONI, 2001, p. 86).

Assim, além dos aspectos especificamente relacionados à inserção do Frevo no

discurso literomusical brasileiro, os versos de Frevo Pernambucano remetem àquele

65 Em suas considerações acerca das configurações de sentido da palavra samba, ao lado de outras designações de origem africana - semba, batuque, umbigada e especialmente lundu – o autor observa que “já haveria, pois, em meados do século XIX, uma versão do lundu perfeitamente urbanizada e aceita pela ‘boa sociedade’, enquanto o samba era signo do atraso rural (era ‘tatamba’, como diz rimando o jornal)” (SANDRONI, 2001, p. 86)

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momento histórico já referido acima, na passagem do século XIX para o século XX,

marcado por uma redefinição da sociedade e da cultura brasileiras, quando também se

observa a sedimentação dos gêneros da nossa música popular, principalmente nos

centros urbanos, com múltiplas influências advindas também das áreas rurais do nosso

país. Nesse percurso, evidencia-se a importância da cultura africana na definição de

nossas manifestações culturais. No caso do Frevo, como já vimos, a configuração da

dança recebe decisiva influência da capoeira.

A influência da capoeira na dança do Frevo é abordada por todos os estudiosos

que veem nos movimentos daqueles partidários das bandas postados à frente das

mesmas, por ocasião dos desfiles na rua, o embrião dos passos da dança. As

demonstrações de ameaça e provocação são registradas, por exemplo, em forma de

canção, como esta, citada por Araújo (1996):

Se ouço na rua Tocar a Charanga Me ponho na frente Alegre a saltar Não conto desgraças Quebrando cabeças Virando moleques De pernas p’ra o ar ( versos da cançoneta O Capadócio, publicada no jornal A Pimenta, 14 de novembro de 1908. In ARAÚJO 1996, p.335)

Em seu livro de memórias, o compositor Lourenço da Fonseca Barbosa (Capiba)

(1985) relembra um funcionário do Banco do Brasil, no Recife, para onde o autor veio

trabalhar, a partir de 1930. Era um contínuo (office-boy), de nome João de Lima, que

vivera nas ruas esse período de rivalidade intensa entre as bandas. Assim Capiba se

refere ao colega:

Ensinou-me muita coisa a respeito do passo e do frevo do Recife de seu tempo de rapaz. Fazia parte da turma da pesada. Da turma da capoeira, que ficava toda assanhada quando alguém dava o grito de guerra diante das bandas de música rivais. [...] Esse grito do qual me falava João de Lima era ‘Arriba Espanha!’ E a negrada entrava direta na capoeira, com pernadas de feder a chifre queimado; peixeiradas, cacetadas, tiros e o diabo a quatro. (BARBOSA, 1985, p.236, grifo do autor)

O autor relembra que nem ele nem o próprio João de Lima sabiam explicar o

porquê daquela expressão, vindo a ter conhecimento ele, Capiba, somente “depois de ler

muito sobre o frevo” (BARBOSA, 1985, p. 237), a respeito da rivalidade entre as

bandas do 4º Batalhão de Artilharia e da Guarda Nacional, comandada pelo regente

Pedro Garrido, espanhol de nascimento.

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Se no Recife a presença dos capoeiristas é marcada por essa peculiaridade da

participação nos desfiles das bandas militares cuja música moldou as primeiras feições

do Frevo, era comum encontrá-los também noutras partes, em diferentes ocasiões,

conforme exemplifica Tinhorão (1991): “o costume dos valentões abrirem caminho de

desfiles gingando e aplicando rasteiras sempre fora comum em outros centros urbanos,

como o Rio de Janeiro e Salvador, principalmente nas saídas de procissões.”

(TINHORÃO 1991, p. 138)

Uma composição bastante peculiar de Capiba, possivelmente o compositor mais

importante do Frevo-canção (ao lado do maestro Nelson Ferreira), pelo conjunto de sua

obra no gênero, dá conta desse contexto de configuração da dança do Frevo, em meio

aos perigos da frevolência das ruas, no carnaval. A peculiaridade da canção diz respeito

à própria temática, pouco enfocada nas letras do Frevo-canção, de modo geral, e

particularmente na obra de Capiba, cujos principais eixos temáticos são o romantismo e

a exaltação à beleza da própria festa do carnaval do Recife. O título da obra, O Caminho

é Perigoso, sintetiza esse aspecto do posicionamento do Frevo no discurso literomusical

brasileiro.

O CAMINHO É PERIGOSO (Capiba)_1932 (sem gravação) Requebra a dobradiça No chã de barriga Pra frente e pra trás Cuidado com a poliça Se ela te pegar Não te solta mais Aguenta firme rapaziada Que uma onda vem O pirão é gostoso... Mas toma cuidado repara bem mal Não vai estrepar Que o caminho é perigoso Eu entro com a macacada No rojão do frevo, Para me arrasá A turma que é da virada Diz: ‘não tem é sopa, viva o Carnaval’ Na rua do Imperador U’a morena fogo Quase se acabou Fiquei doido de amor (CÂMARA e PAES BARRETO 1986, p.60)

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De acordo com Paes Barreto e Câmara (1986), a canção, composta para o

carnaval de 1932, não chegou a ser gravada. Seu único provável registro está na edição

de 1º de fevereiro de 1932, “onde a marcha aparece de corpo inteiro, verso por verso,

ocupando o espaço de 17 cm por duas colunas, mostra de sua importância” (CÂMARA

e PAES BARRETO 1986, p.60):

A cenografia dessa canção é elaborada com base na advertência expressa no

título, que evoca o clima de acirramento, disputa e rivalidade vivenciado nas ruas

durante o carnaval, daí muitas vezes resultando confrontos violentos durante a festa,

sendo por isso reprimida (“cuidado com a poliça / se ela te pegar não te solta mais”). A

letra registra a efervescência do Frevo no calor da onda humana que se arrastava nas

ruas (o “rojão do frevo”), assim como o aspecto de sensualidade presente nos encontros

em meio à folia (“u’a morena fogo / quase se acabou / fiquei doido de amor”). A

primeira estrofe é particularmente interessante porque registra os nomes de alguns

passos da dança (“dobradiça”, “chã de barriga”) ressaltando a dinâmica do movimento

da onda (“pra frente e pra trás”).

Aí está, na definição dos passos do Frevo, a evidência da influência da capoeria. A

própria denominação da dança como passo, aliás, é explicada por essa influência. Lélis

(2011) observa que aspectos como a ginga, o vigor e o improviso são partilhados nas

duas manifestações. Os versos da canção de Capiba (“cuidado com a poliça, se ela te

pegar não te solta mais”) exemplificam as considerações da autora, quando afirma que

“a repressão da polícia faz o capoeira disfarçar seus golpes e criar uma coreografia de

modo a acompanhar a multidão, com movimentos que passam a ter denominações

específicas” (LÉLIS, 2011, p.61). A esperteza dos praticantes da capoeira para driblar a

repressão policial é descrita, então, como aspecto interessante da inspiração criadora dos

passos do Frevo. Segundo Araújo (1996, p. 363), por exemplo:

Havia passos que retratavam cenas do cotidiano, mas com a clara intenção de dissimular, de enganar, de desviar a atenção do outro, que podia ser um inimigo pessoal ou a polícia: Fiz um passo de quem vae ali e já volta...; ou ainda: O camaradinha fez um passo, assim de quem vai comprar cigarros na venda e entrou num concerto...Esses movimentos denunciavam a origem social do passo e do passista: indivíduos pertencentes às camadas populares, muitos afeitos à desordem e ao crime, para quem a perseguição policial era uma constante e a dissimulação uma arma ou estratégia de sobrevivência.

O capoeirista é, portanto, frequentemente apontado como protagonista das cenas

de violência e distúrbios, segundo o olhar de cronistas e da imprensa em geral. Mario

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Sette (1981), por exemplo, assinala, fazendo referência ao fenômeno também no Rio de

Janeiro:

A capoeiragem, no Recife, como no antigo Rio, criou tais raízes que se julgava um herói sobrenatural quem tivesse forças de acabar com ela. Que nada! Saísse uma música para uma parada ou uma festa e lá estariam infalíveis os capoeiras à frente, gingando, piruetando, manobrando cacetes e exibindo navalhas. (SETTE, 1981, p. 86)

Não obstante sua vinculação às camadas mais pobres da sociedade, Araújo

(1996) assinala que, mais tarde, “outros segmentos sociais aderiram à capoeira”, dentre

os quais incluíam-se “senadores, deputados, funcionários públicos, oficiais da marinha e

do exército e gente da polícia” (ARAÚJO, 1996, p. 332). A autora salienta, ainda, o

papel dos capoeiras como protegidos de pessoas influentes e abastadas, tais como

políticos e chefes de partido, no período entre o fim do Império e começo da República,

quando “tornaram-se elementos cruciais nos processos eleitorais, decidindo votações

por meio de fraudes e na ponta da faca” (ARAÚJO, 1996, p.333)

A capoeira é, porém, apenas um dos aspectos que definiriam, segundo a

interpretação de alguns autores - como Oliveira (1985) e Duarte (1968), por exemplo -,

o caráter viril e belicoso do Frevo. Para o primeiro, trata-se de uma marca original e

definitiva da música pernambucana, que ele procura explicar através da comparação

com a marchinha carioca. Falando especificamente do Frevo-de-rua, o autor escreve:

A marchinha carioca é assexuada. O frevo é viril. Ela convida a cantar, a entrar no coro, a assobiar baixinho o estribilho contagioso, a fazer ‘cobra’ no salão, de braços para cima. Ele não convida: arrasta. Sua efervescência tem qualquer coisa de magnético, contra a qual é difícil resistir. (OLIVEIRA, 1985, p.37)

Duarte (1968), por sua vez, analisa a questão sob diferentes ângulos, e procura

explicar essa faceta do Frevo a partir da simbologia dos nomes e insígnias das

agremiações, bem como do uso da sombrinha. A respeito da fundação dos clubes

Vassourinhas (1889) e Lenhadores (1897), o autor afirma sua estranheza da escolha dos

respectivos símbolos das duas agremiações:

Vassourinhas tem como símbolo – seu nome está indicando – uma vassoura. Fato estranho! Povo revolucionário, no auge de uma luta de quase um século, inclusive com líderes fuzilados a todo momento pelas autoridades constituídas [...] na hora de arranjar um símbolo para uma agremiação popular, criada por gente sofredora da classes mais baixas da sociedade, escolhe a vassoura, que lembra a mulher, que lembra o trabalho doméstico [...]

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Do outro lado as coisas não eram diferentes. O clube que reuniu os adversários do Vassourinhas recebeu o nome de Lenhadores, com o símbolo apropriado ao nome, ou seja, um machado. É verdade que o recife nunca teve florestas nem, consequentemente, os profissionais da derrubada de árvores, os lenhadores, como classe. E era estranho que uma entidade se fundasse, pretendendo agrupar os lenhadores, quando tais lenhadores não existiam. (DUARTE, 1968, p. 21-22)

Na interpretação do autor, as escolhas só se justificavam pela intenção de

disfarçar, nesses símbolos, as armas a serem usadas nos confrontos na rua – o cabo da

vassoura e o cabo do machado, respectivamente. Sobre a vassoura, ele assinala:

A moda era andar armado de cacete, os valentões descalços [...] Ora, o símbolo do clube carnavalesco que andava fazendo exibições pelas ruas era uma vassoura, isto é, o cabo dessa vassoura [...] exatamente o cacete, a arma tradicional dos valentões [...] (DUARTE, 1968, p.22)

No capítulo intitulado O Chapéu-de-sol no Frevo, Duarte (1968) analisa a função do

chapéu-de-sol (ou guarda-chuva, ou sombrinha) como elemento constitutivo da

indumentária do Frevo. O autor conclui, então, que

Enquanto a bengala ou o cacete armavam os integrantes dos cordões dos clubes, fantasiados, os que não pertenciam a esses mesmos cordões permaneciam desarmados. Para resolver essa situação, valeram-se do chapéu-de-sol.(DUARTE, 1968, p. 38)

Em sua argumentação buscando explicar essa belicosidade inerente ao Frevo,

Duarte (1968) chega a equivocar-se quanto à letra da canção Vou Pra Pernambuco, dos

compositores cariocas Nássara e Frazão. Escreve assim o autor:

A sugestão belicosa é constante na palavra [Frevo]. Quando não lembra briga, lembra valentia. Veja-se esta letra de Nássara, numa música que fez sucesso no Rio de Janeiro nos últimos dez anos: “Eu vou embora Vou pra Pernambuco, Fiquei maluco Sem saber porquê Não sei se foi Aquele frevo ardente Que me fez valente Ou se foi você Não se sabe se foi o frevo que o fez valente!...

(DUARTE, 1968, p.51)

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Na verdade, a canção citada, lançada para o carnaval de 1945, com interpretação

do cantor Deo, não tem o verso para o qual Duarte chama a atenção (destacado acima

em negrito). A letra diz o seguinte:

VOU PRA PERNAMBUCO (Nássara/Frazão, 1945) 66 Eu vou me embora Vou pra Pernambuco Eu fiquei maluco Sem saber por que Não sei se foi Aquele frevo ardente Que me pôs demente Ou se foi você Eu não aguento morena Tanta ansiedade, morena Ai, ai que tormento Ai, ai que saudade Pra Pernambuco Tomara eu voltar já Ai, ai, ai Minha saudade morena Ficou lá, ai !

O equívoco do autor quanto à transcrição da letra revela um descuido de sua

parte, na caracterização do Frevo como uma manifestação excessivamente violenta. Na

verdade, a análise da canção revela, mais do que a sugestão belicosa (a briga ou a

valentia), um ethos saudosista, comum a várias outras canções, como veremos adiante.

A cenografia é elaborada a partir de um enunciador tocado pelo efeito inebriante do

Frevo “ardente” que o faz ficar “maluco” e o põe “demente”. Trata-se de uma proposta

de caracterização do Frevo que se observa em outras canções, como esta, gravada por

Nelson Gonçalves em 1944:

NÃO AGUENTO MAIS (Capiba, 1944) Morena que vem de outras terras Porque tu não entra no frevo É bom demais E se tem bate-bate a onda Começa pra frente, pra trás Quando chega meia-noite Não aguento mais!

66 Presente na trilha sonora do filme Não Adianta Chorar, uma comédia da produtora de cinema Atlântida lançada em 1945 (com roteiro e direção de Watson Macedo, tendo Oscarito e Grande Otelo nos papéis principais), a canção é interpretada nas telas por Marion e Moacir Ferreira, com participação do Clube das Pás Douradas.

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Não aguento mais Frevo assim é bom Mas já é demais Quem quiser que eu fique Nesta confusão Me segure, me segure Senão eu vou ao chão!

Aqui, a cena enunciativa da canção enfatiza a movimentação intensa da dança do

Frevo, até o limite da exaustão expressa no enunciado do título. Não há qualquer

indicação de ocorrências violentas em meio à folia, mesmo com o emprego do

substantivo “confusão”, comumente tomado como sinônimo de briga, mas neste caso

significando mesmo a agitação ruidosa da coreografia do Frevo, da multidão em festa.

Nesse caso, a descrição da “onda” movimentando-se “pra frente e pra trás” sugere a

localização do espaço físico do salão, sinalizando, portanto, o contexto de adoção do

Frevo pela classe média recifense, nos bailes de carnaval realizados nos clubes do

Recife, já a partir dos anos 1930.

O caráter belicoso do Frevo, conforme analisado por Duarte (1968), é uma

manifestação dos primeiros momentos da história do fenômeno, interpretado pelo autor

como fruto do espírito libertário do povo de Pernambuco contra os portugueses, como

uma forma subliminar de combate desenvolvida diante da repressão advinda das lutas

travadas ao longo da História. A respeito da revolução praieira, por exemplo, o autor

afirma:

Perdeu a guerra mas saiu para outra modalidade de luta. Passou a fazer guerrilhas. A matar português com os ponteagudos canos de chapéu-de-sol disfarçados em estandartes de blocos carnavalescos ou de grupos de capoeiras gingando ao lado das bandas militares dos batalhões aquartelados na cidade. Passou a combater o português de uma maneira clandestina, subterrânea (DUARTE, 1968, p. 34)

Reconhecida a importância crucial da capoeira para a definição do Frevo, num

contexto social marcado pela forte repressão às manifestações populares, sobretudo

aquelas vinculadas à herança africana, é preciso considerar, na sua expressão corporal -

mistura de luta, jogo e dança -, o sentido de resistência e autoafirmação da cultura de

origem africana em nosso país. Conforme observa Lélis (2011), a capoeira é

uma criação dos negros, no Brasil, nascida como instinto natural de preservação da vida, autodefesa e luta ela liberdade. Sendo uma linguagem de dança, além da beleza e arte dos movimentos, não se pode desvinculá-la do tempo, do espaço social e da relação íntima entre o homem, seu corpo e o meio, ou seja, das suas várias maneiras de existir. (LÉLIS 2011, p.20)

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Essa presença marcante da capoeira na configuração do Frevo contribui para

evidenciá-lo como espaço de resistência dessa parcela da população que dava corpo ao

carnaval popular do Recife, sob a vigilância das autoridades, muitas vezes transformada

em repressão violenta67. O processo de consolidação da forma musical e da coreografia

do Frevo exemplifica a complexidade das manifestações da cultura popular brasileira

que buscam legitimar-se em meio aos embates de caráter estético-ideológicos e aos

questionamentos acerca de sua validade, em geral promovidos, em diferentes momentos

históricos do país, por setores da assim chamada elite pensante, composta por críticos,

formadores de opinião e ideólogos da cultura.

É o que aconteceu também com o samba. Não obstante a sua consagração como

gênero popular mais caracteristicamente brasileiro, sendo inclusive reconhecido

oficialmente pelo Estado Novo,68 não ficou isento de violenta crítica, frequentemente

embasada numa visão preconceituosa de base racista. Napolitano (2007, p. 41) lembra

que

a maior parte dos detratores do samba lembrava não apenas o ar de malandro e cafajeste de muitas letras, mas, sobretudo, as raízes africanas do gênero [...] A crítica mais comum ao samba tinha fundo racista e estava ligada à sua vinculação à tradição negra e africana

No caso do Frevo, há ainda quem o considere isento de qualquer sentido de

resistência ou de protesto, como Oliveira (1985), ao rejeitar a interpretação de Aydano

do Couto Ferraz, considerando inapropriada esta

“tecla batida por sociólogos: atribuir ao passo e ao frevo, aqui considerados como forma individual e forma coletiva de dança, um extravasamento de anseios longamente reprimidos [...] A praga do protesto ainda o não atingiu” (OLIVEIRA, 1986, p. 125).

Atualmente, porém, o reconhecimento do Frevo como espaço de resistência das

camadas mais pobres e oprimidas da população, reunida em torno do interesse legítimo

de manifestar-se culturalmente para a afirmação de sua identidade, está claramente

67 Silva (2000) lembra que a prática da capoeira era classificada como crime pelo Código Penal do Império e pelo Código Penal de 1890, “tratando, este último, em seu capítulo XIII Dos vadios e capoeiras, sendo seus infratores condenados a cumprir penas no presídio da Ilha de Fernando de Noronha” (SILVA 2000, p. 129) 68 Napolitano (2007) aponta como marco referencial desse reconhecimento a realização do Dia Nacional da Música Popular Brasileira, em 4 de janeiro de 1939, como parte da Exposição Nacional do Estado Novo. “A idéia era realizar um grande show ao vivo com Francisco Alves, Aracy de Almeida, Almirante, Orlando Silva, Silvio Caldas, o Bando da Lua [...] culminando na escolha, por votação direta, do melhor samba e da melhor marcha [...] Conforme o Correio da Manhã, compareceram cerca de 200 mil pessoas” (NAPOLITANO 2007, p. 36)

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definido no documento do IPHAN emitido em favor do reconhecimento do Frevo como

patrimônio imaterial da cultura brasileira:

“O parecer da Superintendência Regional afirma suas razões favoráveis ao registro: [...] o caráter de resistência de um ritmo que surgiu das camadas menos favorecidas, que “resistiam” ao poder das elites, e que hoje resiste aos poderes do mercado, que não o privilegiam; a diversidade cultural condensada no frevo, num processo dinâmico de diálogo entre várias tradições, e mantendo-se um símbolo “vivo” da identidade cultural e da história de um povo69”

Assim, ao longo de sua evolução, observamos que a história do Frevo é marcada

por diferentes facetas da resistência cultural, sendo hoje definida, por exemplo, como

luta contra a exclusão dos meios de comunicação – sobretudo o rádio, à exceção dos

poucos comunicadores que ainda o mantêm em sua programação – e mesmo contra a

falta de maior consistência dos poderes públicos nas ações relacionadas ao gênero

musical mais importante – há uma crítica permanente, por exemplo, sobre a realização

do Concurso de Músicas Carnavalescas promovido anualmente pela Prefeitura do

Recife, por conta da má divulgação e da falta de promoção do disco gravado com as

músicas vencedoras.

69 Parecer nº 007/06, emitido pela Gerência de Registro do Departamento de Patrimônio Imaterial do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) do Ministério da Cultura, referente ao processo nº 01450.002621/2009-96 (disponível em http://www.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=13515&sigla=Institucional&retorno=detalheInstitucional, acesso em 26/08/2010)

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3.7. Vozes do Frevo nas Ondas do Rádio

“Devo ao rádio ter me interessado pelo gênero de música mais próprio e mais querido de minha região, o frevo [...]

O frevo tem uma força mágica, diabólica! Fanatiza qualquer um. Não serei só eu...Creio que dentro de pouco tempo,

o Brasil inteiro irá adotar o frevo. Música como essa não é capaz de ficar regional a vida inteira.”

(Nelson Ferreira, entrevista à Revista Carioca, p.36, s/d in BELFORT 2009, p.59)

A previsão otimista do maestro Nelson Ferreira acerca da propagação do Frevo pelo

Brasil afora, reproduzida na citação acima, não se cumpriu inteiramente, e as razões

para isso até hoje ensejam acaloradas discussões no Recife, entre músicos, produtores,

jornalistas, estudiosos e aficcionados do Frevo em geral. Os argumentos incluem desde

a elevada exigência técnica para a boa execução da música, difícil demais para as novas

gerações de instrumentistas e compositores, até a sua exclusão das grades de

programação das rádios, particularmente as FMs, cuja produção, em sua maior parte, é

centralizada no Sudeste. Em todo caso, as ponderações do maestro, diretor artístico da

Rádio Clube de Pernambuco (PRA-8) e um dos maiores responsáveis pela criação e

pela divulgação do Frevo a partir da década de 1930, foram embaladas pela euforia de

ver a música pernambucana ganhar as ondas do rádio brasileiro na voz dos maiores

intérpretes do país, àquela época.

No período compreendido entre as décadas de 1930 e 1950, conhecido como Era

de Ouro do Rádio, o processo de definição da identidade discursiva do Frevo passa por

um momento bastante significativo, com a elaboração de outros aspectos do

posicionamento do gênero pernambucano no cenário cultural do país. Enfocaremos a

seguir uma amostra dessa produção, que é marcada por uma profusão criativa

estimulada exatamente pela possibilidade de propagação através do rádio.

De acordo com Charaudeau (2006), o rádio é um exemplo de dispositivo que

“constitui o ambiente, o quadro, o suporte físico da mensagem” (CHARAUDEAU,

2006, p.104). Compreende um ou vários tipos de materiais (a voz e a sonoridade da

instrumentação nas canções, por exemplo) e se constitui como suporte (ondas sonoras)

com o auxílio de uma tecnologia (todo o equipamento utilizado nas transmissões e os

aparelhos receptores). As considerações do autor afastam-se do ponto de vista ingênuo

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dos primeiros modelos de comunicação, baseados na alternância entre emissor e

receptor na transmissão de mensagens. O dispositivo, segundo ele, não é “um simples

vetor indiferente”, mas participa da configuração de sentidos daquilo que veicula, “da

mesma forma que uma peça de teatro não faria muito sentido sem o seu dispositivo

cênico” (CHARAUDEAU, 2006, p. 105),

Ainda segundo Charaudeau (2006), o rádio é, essencialmente, o dispositivo da

voz e da música, o que o faz inscrever-se “numa tradição oral, ainda mais que não é

acompanhada de nenhuma imagem, nenhuma representação figurada”

(CHARAUDEAU, 2006, p. 105). Para a compreensão das condições de produção do

discurso literomusical brasileiro, é necessário salientar, pois, a importância fundamental

do rádio, responsável pela propagação, em escala nacional, da música popular a partir

dos anos 1920. O desenvolvimento do rádio no Brasil contribuiu definitivamente para a

redefinição da música popular brasileira, em diferentes períodos da história, ao espalhar

a produção composicional de inúmeros artistas através das vozes de renomados cantores

e cantoras, muitos deles alçados à condição de ídolos populares.

De fato, o rádio constitui-se como elemento catalisador no processo de

sedimentação da música popular como manifestação cultural da brasilidade. O seu

aparecimento demarca uma etapa crucial no desenvolvimento de uma tradição cultural

erigida sobre a canção, que, segundo alguns autores, alcança um momento fundamental

a partir dos anos 1950 e chega ao seu ápice nos anos 1960. Para Naves (2010), por

exemplo, esse período marca o surgimento da canção crítica, categoria que a autora

define a partir da constatação de que a canção popular torna-se “o lócus por excelência

dos debates estéticos e culturais, suplantando o teatro, o cinema e as artes plásticas, que

constituíam, até então, o foro privilegiado dessas discussões” (NAVES, 2010, p. 19)

O surgimento da canção de protesto e a consolidação da MPB70, na década de

1960, corroboram o advento da canção crítica, ao mesmo tempo em que a figura do

compositor popular passa a ter importância maior na vida cultural do país. Para a autora,

é a partir daí que o compositor também passa a ser considerado como intelectual, como

70 COSTA assinala que a sigla MPB foi criada a partir da Bossa Nova para designar “um tipo de canção urbana dotada de um certo nível de qualidade de difícil definição objetiva, consumida por uma faixa da população normalmente de classe média (COTA 2001, p. 317). Para Naves (2010), a sigla reúne “músicos de uma geração posterior à da bossa nova, [que] procuraram conciliar a veia experimental de compositores e intérpretes como Tom Jobim e João Gilberto com as informações políticas e culturais de um momento marcado pela busca de igualitarismo social, de liberdade política e pelo sentimento de brasilidade. Mesmo que a inspiração musical viesse de Recife, como é o caso de Edu Lobo, familiarizado com a cidade onde desde menino passava as férias de verão, não se tratava de uma proposta regionalista, mas da criação de uma linguagem que expressasse o Brasil.” (NAVES 2010, p.40).

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pensador da cultura. Em geral, a Bossa Nova e a MPB – além do samba – são os

gêneros considerados como marcos referenciais para a consolidação de uma tradição

cultural no campo da música popular. A exclusão de outras manifestações é explicada

por alguns autores pela própria natureza conflituosa do processo, entre “contradições e

mediações as mais diversas, que, em linhas gerais, acompanham a própria formação da

nossa moderna identidade nacional” (NAPOLITANO, 2007, p. 6). Não é difícil

considerar, ainda, que, além dos fatores estético-ideológicos e artísticos pertinentes aos

três gêneros, fatores externos como a localização geográfica nos centros econômicos

produtores da indústria fonográfica foram determinantes na definição dos três gêneros

como basilares na construção dessa tradição cultural.

Assim, para Napolitano (2007)

as convenções, os debates, as estéticas e as ideologias em torno desses três gêneros acabaram por legar uma tradição que, obviamente, não faz jus à riqueza e à diversidade de todas as manifestações musicais do Brasil. Por isso mesmo, a hegemonia dessa tradição vem sendo cada vez mais questionada, na busca de uma liberdade maior de criação e pesquisa musicais por parte dos músicos. (NAPOLITANO 2007, p.6)

A despeito da importância dos três gêneros referidos por Napolitano como

“espinha dorsal da idéia de música popular brasileira” (NAPOLITANO, 2007, p. 6),

entre os anos 1930 e 1960, a produção literomusical é enriquecida pela emergência e

pelo desenvolvimento de outros gêneros, sobretudo a partir dos anos 1950. Destacamos,

nesse contexto, o surgimento do baião, ainda na década de 1940, e a evolução do Frevo,

cuja profusão criativa ensejará, ainda na década de 1950, a criação de uma gravadora no

Recife, a Rozenblit, para dar conta de sua numerosa produção.

Pernambuco tem um papel de destaque na história da radiofonia brasileira, desde

os seus primeiros momentos. De fato, o registro pioneiro da instalação do rádio no

Brasil está no Recife, com a criação da Associação Rádio Club (depois Rádio Clube de

Pernambuco), em 6 de abril de 1919, por um grupo de amadores entusiastas da

novidade, à época denominada TSF (telegrafia sem fio). A iniciativa em Pernambuco,

comandada pelo Sr. Augusto Joaquim Pereira, exemplificava a prática da radiodifusão

amadora pelo país afora, “na organização de tais experiências em caráter de clubes – os

famosos rádio clubes que acabariam dando nome a tantas difusoras em todo o Brasil”,

conforme esclarece Tinhorão (1981, p. 33). Em geral, os curiosos e interessados pela

novidade reuniam-se na casa de um dos sócios, com a aparelhagem extremamente

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simples dos primeiros receptores, em buscar de captar alguma transmissão, de forma

aleatória.

Não obstante o pioneirismo do Rádio Clube de Pernambuco, lavrado nas páginas

da imprensa da época71, em geral considera-se como data oficial da chegada do rádio no

Brasil o 7 de setembro de 1922, na inauguração da Exposição do Centenário da

Independência, realizada no Rio de Janeiro. Na ocasião, conforme relata Cabral (1996)

foi transmitido o discurso do presidente Epitácio Pessoa, além das óperas realizadas no

Teatro Municipal e no Teatro Lírico, para “os cidadãos contemplados com 80 receptores

(alguns instalados em praça pública de São Paulo, Niterói e Petrópolis)” (CABRAL,

1996, p. 9).

O Recife, entretanto, já nas primeiras décadas do século XX, vivia um período

de destaque quanto à possibilidade de acesso aos novos meios e recursos da tecnologia

de comunicação da época. De acordo com Barreto (2009), a modernidade estava ao

alcance dos recifenses, com o telefone, o telégrafo, o rádio e o cinema, nesse período.

Escrevendo a respeito da história da propaganda em Pernambuco, o autor assinala que a

Rádio Clube foi “reorganizada em 18 de outubro de 1923, [mas] somente sete anos mais

tarde, a PRA-8 veicularia anúncios em sua programação.” (BARRETO, 2009, p. 45)

Em sua tese de doutoramento, Saldanha (2008) evidencia a importância do novo

veículo de comunicação – e em particular da Rádio Clube de Pernambuco – para a

propagação do Frevo:

Por intermédio desse veículo, alguns dos grandes nomes da marcha pernambucana ficaram conhecidos e se tornaram ícones da música popular brasileira. O período de surgimento, consolidação e apogeu do rádio em Pernambuco se confunde com o palco da consolidação, ampla divulgação e massificação do frevo como gênero popular urbano representativo da cultura pernambucana. (SALDANHA, 2008, p. 52)

Nas décadas de 1940 e 1950, porém, o maior sucesso do país, a partir das

transmissões radiofônicas do Sudeste, é mesmo o samba-canção, gênero marcado por

71 Na edição do Jornal do Recife do dia 7 de abril de 1919, sob o título de Rádio Clube, a notícia da fundação da nova associação é publicada assim: “Consoante convocação anterior, realizou-se ontem na Escola Superior de eletricidade, a fundação do Rádio Clube de Pernambuco, sob os auspícios de uma plêiade de moços que se dedicam ao estudo da eletricidade e da telegrafia sem fio. Ninguém desconhece a utilidade e o proveito dessa agremiação, a primeira do gênero fundada no País. Foram tomadas diversas medidas, como sejam, designações de comissões para se entenderem com as autoridades do Estado” (in ALCIDES 1997, p.46). Além disso, os fundadores enviaram o seguinte telegrama ao ministro da Viação e Obras do Governo Delfim Moreira, o Sr. Afrânio de Melo Franco: “Amadores telegrafia sem fio, hoje reunidos na Escola Superior de eletricidade, fundaram Rádio Clube fim propagar conhecimentos técnicos associados. Confiam vosso patriótico apoio. Augusto Pereira, presidente.” Segundo Alcides (1997), o grupo obteve resposta do ministro: “sinceros votos de prosperidade”. (ALCIDES 1997, p.46)

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um padrão musical de harmonias grandiloquentes e interpretações vocais com inflexão

melodramática, em geral versando sobre temas como a desilusão amorosa, a traição etc.

Posteriormente, com o advento da Bossa Nova (influenciada pelo jazz, com harmonias

consideradas sofisticadas e interpretações vocais intimistas), os excessos do samba-

canção serão considerados, em geral, como mau gosto musical.

Embora saliente que “a cena musical dos anos 1950 era mais rica do que se pode

supor”, Napolitano (2007, p. 63) analisa que, em geral,

a década de 1950 foi relegada a uma espécie de entrelugar da história da música popular brasileira [...] espécie de limbo entre os gloriosos anos 1930 e a mítica década de 1960, os anos 1950 passaram a ser sinônimo de música de baixa qualidade, representada por bolerões exagerados, sambas pré-fabricados e trilha sonora de quermesse

Devido a essa referência de escuta musical, definida em boa parte pelo viés

mercadológico, com a grande popularização do rádio – de que são evidência os

programas de auditório, a criação de fãs-clubes de vários artistas e a eleição da Rainha

do Rádio –, o espaço para os outros gêneros da nossa música nas rádios do Sudeste é

limitado. Entre as exceções, apontamos a realização do programa No Mundo do Baião,

lançado pela Rádio Nacional em 1951, na esteira do sucesso de Luiz Gonzaga entre os

imigrantes nordestinos, a partir da metade da década de 1940. Com a proximidade do

período de carnaval, o Frevo então disputa com o samba e com a marcha (marchinha e

marcha-rancho) a preferência dos ouvintes, através de algumas vozes destacadas nesse

cenário, a exemplo de Nelson Gonçalves:

SEGURE NO MEU BRAÇO (Capiba, 1945) Nesse mundo quem não faz o passo Não tem amor nem tem prazer na vida Viver triste assim, pra quê viver Pra quê, querida? Vamos, morena, cantar e dançar O frevo gostoso e ardente Que bole com a alma da gente Para você não sair do compasso Segure, meu bem, no meu braço, E vá repetindo o que eu faço Segure meu bem, no meu braço, E vá repetindo o que eu faço

A elaboração da cena enunciativa desta canção evidencia, de maneira

semelhante ao já observado em outras obras, o investimento em um ethos folião, que

tem no Frevo solução para a tristeza da vida. A noção de incorporação destaca-se pelo

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caráter persuasivo da letra, sugerindo o envolvimento do corpo físico nos movimentos

da dança. A obra também se insere no conjunto de canções que corroboram a definição

de posicionamento do Frevo a partir do plano do vocabulário, integrando a dupla

designação Frevo e passo para a música (neste caso, em sua forma cancional) e a dança.

A canção exemplifica um processo de construção de sentidos, no âmbito do

discurso literomusical, que Tatit (1986) denomina de Tematização Melódica, e que

Costa (2001) analisa como “manifestação autoconstituinte da prática discursiva da

canção popular” (COSTA, 2011, p. 356), especialmente verificada em gêneros como o

samba, o frevo e o chorinho. A tematização melódica é o processo de reiteração de

sequências melódicas, ou seja, dos temas (caracterizados pelo ritmo, pelos intervalos

etc., que definem o desenho melódico da canção), de modo que a própria melodia ganha

relevo, destacando-se em relação à letra. Segundo Tatit (1986, p. 49):

O ritmo e as acentuações do componente melódico fundam os gêneros que estamos acostumados a ouvir: samba, roque, bolero, baião, marcha etc. Os arranjos instrumentais extraem sua pulsação, seu balanço e seus motivos melódicos dos temas fornecidos pela melodia da canção (...). Assim sendo, o processo intensivo de tematização conduz a uma supervalorização do gênero. Por isso, não raro, a tematização cobre um texto exaltando o próprio gênero.

De acordo com o autor, em geral as letras das canções que se destacam pela

tematização melódica têm como característica básica a exaltação ao próprio gênero: “O

correspondente textual da tematização é a exaltação” (TATIT, 1986, p. 50). Essa

exaltação pode não se restringir aos valores do gênero musical, mas também englobar

“diversos aspectos referentes a seu universo”, segundo Costa (2001, p. 355), que

exemplifica com o samba, mencionando a dança, os aspectos étnicos, as formas

sensuais, o cotidiano dos músicos, o morro, a favela etc. como objetos de exaltação.

No exemplo destacado acima, sobretudo na segunda parte - o refrão -, a

exaltação ao Frevo é apresentada através da sua caracterização positiva (“gostoso e

ardente”) enquanto energia que ao mesmo tempo mobiliza o corpo e eleva o estado de

espírito (“bole com a alma da gente”). A tematização é, de fato, um processo de

significação recorrente na música carnavalesca em geral, fortemente baseada na

pulsação vibrante dos padrões rítmicos acelerados – no caso do Frevo, ainda mais, pela

sua própria configuração genérica de música ligeira, com influência direta da polca,

dentre outros gêneros. A reiteração dos temas resulta, afinal, na mobilização do corpo

físico em movimento, como explica Tatit (1996, p. 10):

Os contornos [melódicos] são, então, rapidamente transformados em motivos e processados em cadeia. O centro da tensividade instala-se na ordenação

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regular da articulação, na periodicidade dos acentos e na configuração de saliências, muito bem identificadas como temas. A aceleração dessa descontinuidade melódica, cristalizada em temas reiterativos, privilegia o ritmo e sua sintonia natural com o corpo: de um lado, as pulsações orgânicas de fundo (batimento cardíaco, inspiração/expiração) refletem de antemão a periodicidade, de outro, a gestualidade física reproduz visualmente os pontos demarcatórios sugeridos pelos acentos auditivos. Daí o tamborilar dos dedos, a marcação do tempo com o pé, [...] o envolvimento integral da dança espontânea ou projetada.

O processo de tematização melódica é empregado de maneira particularmente

criativa por Nelson Ferreira, em um conjunto de obras compostas por encomenda da

companhia Tecelagem Seda e Algodão de Pernambuco (TSAP). Nessas obras,

originalmente criadas como propaganda de produtos da TSAP (o brim Caroá, o brim

Carrapicho e o estampado Derby), a reiteração do tema musical está a serviço da

exaltação ao carnaval e particularmente à dança do Frevo, como se vê nos exemplos

abaixo:

O PASSO DO CAROÁ (Nelson Ferreira e Sebastião Lopes, 1941) No passo do caroá, á á á á Eu quero ver como é é é é é É muito fácil, menina Nada tem de encrencado É só na ponta do pé Do pé do pé do pé Repare bem Que não tem nada de Capote, nem de Fox Minueto, nem Quadrilha Nem Lanceiro, Pas de quatre Pois é! Pra dançar o passo do caroá Basta um mexido no corpo E um trançado Sim senhor, muito bem! DANÇA DO CARRAPICHO (Nelson Ferreira e Sebastião Lopes, 1942) [...] Agora vou mostrar pra você aprender A dança do carrapicho Um passo pra frente e outro pra trás A mão na cabeça e o dedo na boca E depois que começar a confusão Você vai ver que coisa louca!

Nesse período de consolidação do rádio como fenômeno de comunicação de

massa, e sobretudo a partir da criação da Fábrica de Discos Rozenblit, no Recife, há

uma significativa ampliação da produção do Frevo, de que resultará uma diversidade de

abordagens temáticas caracterizadora do seu posicionamento no campo do discurso

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literomusical brasileiro. Alguns aspectos se destacam, através da elaboração do ethos

discursivo, em inúmeras obras: primeiro, temos a incorporação de motivos passionais,

com a presença de um ethos sentimental; segundo, há um conjunto de canções que se

destacam pela constituição de um ethos saudosista, particularmente notável na obra de

alguns compositores cuja trajetória artística é marcada pela saída do Recife para o

sudeste; e terceiro, um significativo grupo de canções cuja cenografia revela o

interessante aspecto da relação intergenérica entre a canção e a crônica, com a

abordagem de fatos da vida social e da história de Pernambuco e do país. Trata-se, neste

caso, de um traço comum a diversos posicionamentos na história da música popular

brasileira, definido por uma predominância das letras narrativas curtas, versando sobre

temas de alcance internacional como, por exemplo, a Segunda Guerra Mundial, ou

ainda fatos políticos da vida brasileira, como a construção de Brasília, entre muitos

outros exemplos.

3.7.1. Passionalização da canção e regulação da folia

Sempre lançando mão do aparato teórico da semiótica, Tatit (1986, 1996, 1997,

2004, 2007) propõe que o trabalho do cancionista72 equivale ao de um malabarista, pela

habilidade que tem de equilibrar as tensões entre melodia e letra. Essa metáfora

corrobora a sua concepção de canção como uma forma especial de registro da fala

coloquial. Para Tatit (1996, p. 9), “cantar é uma gestualidade oral, ao mesmo tempo

contínua, articulada, tensa e natural, que exige um permanente equilíbrio entre os

elementos melódicos, linguísticos, os parâmetros musicais e a entoação coloquial.”

A complexidade dessa atuação de malabarista é analisada pelo autor em

diferentes momentos da história da canção brasileira, na obra de vários cancionistas (cf.

TATIT, 1997). Em síntese, a habilidade do cancionista no equilíbrio das tensões é

definida pelo autor nos termos de uma oposição entre continuidade e segmentação das

72 Cancionista é o termo utilizado pelo autor para designar o artista criador de canções, ou seja, o compositor – que frequentemente também é o intérprete – cuja formação é, em grande parte, intuitiva e não acadêmica (ou seja, não domina a escrita e a leitura de partituras). É o responsável pela configuração da canção popular brasileira no século XX, graças ao trabalho criativo de reproduzir na canção, através de um gesto entoativo específico, a voz que fala. O cancionista reelabora o domínio coloquial da oralidade na canção, definindo “a entoação da linguagem oral como centro propulsor de todas as soluções melódicas que resultaram nos gêneros e estilos até hoje praticados.” (TATIT, 2004, p.75)

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sequências melódicas, “fundando um princípio de tensividade que a habilidade do

cancionista vai administrar e disseminar ao longo da obra.” (TATIT, 1996, p.10).

Por um lado, a noção de segmentação diz respeito ao processo de tematização

melódica, referido acima, caracterizado por uma maior aceleração do ritmo (pulsação),

em sintonia com o movimento do corpo – movimento frenético e contagiante, no caso

do Frevo, através do investimento num ethos definido pela incorporação, na imagem do

passista em ação. Por outro lado, a configuração de sentidos identificada com a noção

de continuidade diz respeito ao processo de passionalização, que se constitui,

basicamente, em termos linguístico-musicais, a partir do prolongamento das vogais,

geralmente com a exploração das regiões agudas da escala musical, conforme esclarece

o autor:

É a tensão que se expande em continuidade, explorando as frequências agudas (aumento de vibrações das cordas vocais) e a capacidade de sustentação de notas (fôlego e energia de emissão). É a tensão do perfil melódico, em si, que alinhava as vogais. (TATIT, 1996, p.10)

O processo de passionalização é, por sua própria definição, característico de

gêneros musicais mais lentos. Analisando a canção romântica, no campo do discurso

literomusical brasileiro, Costa (2001) aponta, por exemplo, a balada, o blues, a valsa, o

bolero, além daqueles que são “resultantes de um processo de suavização de gêneros

ligeiros, como o samba-canção - abrandamento do samba; o rock-canção - rock lento;

etc.” (COSTA, 2001, p. 272). A configuração musical favorece, no plano discursivo, a

instauração de “um estado passional de solidão, esperança, frustração, ciúme, decepção,

indiferença etc., ou seja, de um estado interior, afetivo” (TATIT, 1997, p. 103), que se

afigura compatível com as tensões decorrentes da ampliação da duração, ou seja, da

continuidade melódica. Daí, então, que as letras em geral tenham conteúdo baseado em

pequenas narrativas elaboradas em torno de inúmeras variações a partir de um estado de

disjunção ou de conjunção afetiva, do enunciador em relação ao seu objeto.

Analisamos, com Tatit (1986), que a tensão composicional deve-se a “um

desequilíbrio narrativo e a uma necessidade de recobrança do equilíbrio, através de um

novo estado de conjunção” (TATIT 1986, p. 26), como, por exemplo, em Foi um rio

que passou em minha vida (Paulinho da Viola): “[...] Carregava uma tristeza, não

pensava em novo amor/ quando alguém que não me lembro anunciou/ Portela, Portela

[...] Ah, minha Portela, quando vi você passar/ senti meu coração apressado/ todo o

meu corpo tomado/ Minha alegria voltar”; ou, de outra forma, “o reequilíbrio narrativo

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seria adquirido com a disjunção” (TATIT, 1986, p. 27), como, por exemplo, em Para

me livrar do mal (Ismael Silva, Noel Rosa e Francisco Alves): “Tô vivendo com você/

num martírio sem igual/ vou largar você de mão/ com razão/ para me livrar do mal”.

Embora tipicamente observado em gêneros de andamento mais lento – com

destaque para o samba-canção, ou samba de meio de ano, como também ficou

conhecido o gênero, devido às determinações mercadológicas –, o processo de

passionalização está disseminado em praticamente todas as formas musicais, porquanto

o tema das relações amorosas seja universal e atemporal. É ainda Tatit quem observa:

“A passionalização na canção funciona como um reduto emotivo da intersubjetividade.

Todas as épocas necessitaram dessas expressões individuais registradas na

especificidade da curva melódica” (TATIT, 1996, p. 23). Variam, evidentemente, as

dicções peculiares de cada cancionista, definidas pelo autor como a habilidade de cada

um em estabelecer “um revezamento das dominâncias desses dois processos” (TATIT,

1996, p. 24). Um exemplo por ele apresentado é a obra de Roberto Carlos, que iniciou a

carreira musical com a réplica nacional do iê-iê-iê dos Beatles, passando depois à

condição de maior cantor romântico do Brasil – os próprios Beatles, aliás, são

mencionados por Tatit como exemplos de um percurso pelo qual os artistas ingleses

iniciam “com os temas dançantes de I Wanto to Hold Your Hand para, bem depois, se

consagrarem como, talvez, os melhores melodistas e arranjadores da canção romântica

em todo o mundo (Girl, Something, Yesterday).” (TATIT, 1996, p.24)

Na música brasileira, o processo de passionalização também se verifica no

samba e na música carnavalesca em geral, como atestam os exemplos de sambistas

cariocas, apresentados acima. O autor aponta ainda a canção Agora é Cinza (Bide e

Marçal), grande sucesso do carnaval de 1934, no Rio de Janeiro, como exemplo de

canção que define a consolidação do estilo passional na música brasileira. Nessa obra,

observa-se a

melodia construída com alongamento das vogais e a consequente dilatação dos motivos em nome da desaceleração geral do percurso musical [...] letra versando sobre a desunião, o desencontro amoroso, enfim, o distanciamento entre sujeito e objeto73 [...] A valorização da trajetória melódica corresponde, em boa parte, à necessidade de restabelecimento do laço afetivo, da continuidade rompida e do próprio equilíbrio interno do sujeito (o personagem carente da canção) (TATIT, 2007, p. 154)

73 “Você partiu /saudade me deixou/ eu chorei/ o nosso amor foi uma chama/ que o sopro do passado desfaz/ agora é cinza / tudo acabado e nada mais/ Você partiu de madrugada/ e não me disse nada / isso não se faz/ me deixou cheio de saudade e ilusão/ não me conformo com a sua ingratidão (chorei porque)/ [...]” (Agora é Cinza, Bidê e Marçal, 1934, in ALENCAR, E. 1979, p.229)

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No Frevo, analisamos a ocorrência da passionalização na definição de um

importante aspecto do seu posicionamento, marcado por um significado conjunto de

canções cuja organização discursiva é baseada em letras narrativas versando sobre

temas que incluem as relações amorosas, em que o Frevo e o carnaval frequentemente

aparecem como elementos de equilíbrio para a resolução do estado de tensão.

Interessante exemplo é o desta canção de Nelson Ferreira, gravada ainda na década de

1930:

QUE FIM VOCÊ LEVOU ? (Nelson Ferreira, 1937) Olá, como vai você? Nunca mais lhe vi E que fim levou? A última vez que falei com você Foi na terça-feira Do carnaval que passou Eu bem me lembro como se hoje fosse Era de cor verde a sua fantasia Tão bonita como a esperança Que em meu coração vive De você ser meu um dia E agora volta louco o carnaval O seu ruído já domina o espaço Vamos unir os nossos corações E de braço com a ilusão Amar com o frevo e com o passo

Observa-se aqui o desenvolvimento de um estado inicial de tensão, provocado

pela ausência do co-enunciador, numa cenografia baseada em um simulacro de diálogo,

marcado textualmente nas interrogações sem resposta, na primeira estrofe. A

organização do texto em três estrofes revela um projeto narrativo simples, que tem

como fio condutor o carnaval. Ele representa o estado inicial de conjunção do

enunciador, cuja última lembrança do seu objeto de desejo é exatamente o carnaval

passado, mencionado já na primeira estrofe. Depois, já a imagem da fantasia verde (“tão

bonita como a esperança”) aparece como uma preparação para a solução do estado

disjuntivo, que não chega a efetivar-se, mas é sugerido na estrofe final, quando o

enunciador afirma a disposição de “unir nossos corações” e “amar com o frevo e com o

passo”.

O processo de passionalização é particularmente notável na obra do compositor

Lourenço da Fonseca Barbosa (Capiba) - que explora os temas românticos em profusão.

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Também se identifica o mesmo processo em canções cuja cenografia é baseada na

elaboração de um ethos saudosista em relação ao carnaval do Recife, suas figuras,

paisagens e manifestações culturais, a partir da década de 1940, com destaque para

composições de Antônio Maria e Luiz Bandeira.

As análises desse período da música popular brasileira (TINHORÃO, 1990,

1991; CABRAL, 1996; NAPOLITANO, 2007; TATIT, 2004; ARAÚJO, 2008 e

outros), em que se destacam as obras elaboradas com base no processo de

passionalização, revelam um contexto histórico de importantes mudanças, motivadas

pela nova ordem sociopolítica instaurada com o Estado Novo, com evidentes

repercussões na vida cultural do país. A consolidação do rádio como fenômeno de

comunicação de massas favorecerá a confirmação do samba como gênero musical

símbolo de identidade nacional, como já mencionamos acima. Costuma-se ressaltar,

nesse processo, as influências exercidas pela ação direta do Estado, através da censura

da produção musical, pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), no sentido

de empreender a “higienização” do samba, produto das camadas marginalizadas da

sociedade do Rio de Janeiro. Na prática, isso consistia em desconstruir a imagem

positiva do malandro e da boemia, por exemplo, conforme analisa Tatit (2004, p. 77):

Percebendo a força enunciativa da canção popular no final da década de 1930, o Estado Novo de Getúlio Vargas chegou a encomendar aos compositores temas mais ‘edificantes’ e, sobretudo, posturas mais disciplinadas e pedagógicas para os personagens gerados na instância do ‘eu’. Seria útil ao regime ditatorial recém-instalado que os influentes enuncidaores da canção trocassem o tema da orgia, do amor e do samba pelo do trabalho e da vida regrada.

Na visão de Napolitano (2007), trata-se de um processo complexo que reflete, de

um lado, a incorporação dos valores do samba por uma parcela da classe média,

incluindo, por exemplo, compositores (Noel Rosa, Orestes Barbosa, Nássara, Mário

Lago, entre outros) e jornalistas ligados às manifestações populares; e, de outro lado, o

interesse do poder político no crescimento da música popular e do rádio, tomado como

eficiente veículo de propaganda oficial. Além disso, vislumbrava-se aí o

desenvolvimento de um grande mercado consumidor, em consonância com o projeto

nacionalista posto em prática na Era Vargas, conforme pondera Tinhorão (1990, p.

236):

Transformada, assim, em artigo de consumo nacional vendido sob a forma de discos, e como atração indispensável para sustentação de programas de rádio [...], a música popular brasileira ia dominar no mercado durante todo o

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período de Getúlio Vargas – 1930-1945, em perfeita coincidência com a política econômica nacionalista de incentivo à produção brasileira e à ampliação do mercado interno.

Em suma, é esse o período em que se começa a desenhar os contornos iniciais de

uma tradição da canção popular na cultura brasileira, como define Napolitano (2007), a

partir da ideia de um “encontro sociocultural” em que figuram, como mediadores,

aqueles agentes acima citados. Assim, para o autor

É preciso reconhecer que o nacionalismo na música popular, principalmente a partir de uma parte do samba e do Carnaval, não era produto apenas do controle e da instrumentalização do Estado Novo, materializada através da ação do DIP [...]. Também correspondia a uma estratégia de buscar reconhecimento do samba como paradigma de música popular de ‘bom gosto’, símbolo e síntese da brasilidade musical, desenvolvida tanto por jornalistas entusiastas do Carnaval e da música popular como pelos próprios sambistas. (NAPOLITANO, 2007, p. 38)

Evidentemente, esse embate não excluiria o samba da ação “civilizadora”

promovida por “muitos nomes da burocracia oficial da cultura”, em busca de

instrumentalizá-lo “para fins de pedagogia cívica e ideológica” (NAPOLITANO, 2007,

p. 28). Entre os exemplos mais conhecidos de canções produzidas nesse contexto estão

dois grandes sucessos do carnaval de 1941, com letras que exaltam o trabalho: O Bonde

de São Januário (Wilson Batista e Ataulfo Alves) e Eu Trabalhei (Roberto Roberti e

Jorge Faraj)74. Cabral (1996) destaca ainda o samba É negócio casar, da dupla Ataulfo

Alves e Felisberto Martins (gravado também em 1941, por Orlando Silva), pela

exaltação explícita ao Estado Novo: “Vejam só a minha vida como está mudada/ não

sou mais aquele/ que entrava em casa alta madrugada/ [...] O Estado Novo veio para nos

orientar/ No Brasil não falta nada/ mas precisa trabalhar”.

Notório resultado desse contexto é também a emergência do samba-exaltação,

decantando em tom grandiloquente e ufanista as belezas da Pátria. A obra referencial

desse gênero de samba é Aquarela do Brasil (Ary Barroso, gravada pela primeira vez

em 1939, na voz de Francisco Alves), aos quais se somam outros: Onde o céu é mais

azul (Alcir Pires Vermelho, João de Barro e Alberto Ribeiro) e Brasil (Benedito

Lacerda e Aldo Cabral), por exemplo.

Em Pernambuco, assim como no Rio de Janeiro, os anos 1930 são marcados por

ações oficiais de ordenação da festa do Carnaval. No Rio, é criada a UES (União das

74 “Quem trabalha é quem tem razão/ eu digo e não tenho medo de errar/ O bonde São Januário leva mais um operário/ sou eu que vou trabalhar/ [...]” (O Bonde de São Januário); “Eu hoje tenho tudo, tudo que um homem quer/ tenho dinheiro, automóvel e uma mulher/ Mas, pra chegar até o ponto em que eu cheguei/ Eu trabalhei, trabalhei, trabalhei” (Eu Trabalhei)

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Escolas de Samba), em 1934. No ano seguinte, no Recife, é fundada a Federação

Carnavalesca de Pernambuco (FECAPE), cuja ação política de regulamentação

repercutirá na produção literomusical.

A nova entidade tem o papel de organizar uma festa que, até então, desenvolvia-

se de maneira espontânea, cabendo ao Estado a manutenção da ordem - para isso não

raramente empregando a força da repressão75. Não era, entretanto, uma iniciativa

pioneira, porque em 1911 já ocorrera o Primeiro Congresso Carnavalesco em

Pernambuco. Notícia publicada na edição de 14 de janeiro de 1911 anuncia a ideia de

realização do evento, ressaltando que a finalidade maior seria coibir as práticas do

Entrudo, essencialmente vinculadas, de acordo com a opinião expressa nos jornais, às

agremiações menos organizadas, responsáveis pelo carnaval popular espontaneamente

levado às ruas, geralmente formadas pelas camadas marginalizadas da sociedade.

Segundo as vozes dominantes na imprensa, essas agremiações faziam um tipo de

brincadeira considerada como exemplo de atraso e de mau gosto, sendo por isso

execradas sob a classificação de

’papa-angus’ esfarrapados, emporcalhando transeuntes, [...] troças destroçadas, sem bandeira e sem destino, zombando dos nossos créditos de progressistas. O ‘Congresso Carnavalesco’ veio de certo modo, formar um dique a umas tantas velharias observadas entre cordões carnavalescos, e acabar de uma vez para sempre com intrigas soeses e pequeninas que davam em resultado lutas sangrentas. (Jornal Pequeno, 14/01/1911, in RABELLO 2004, p.174)

O evento seria realizado em maio, com a participação de representantes de

agremiações como Lenhadores, Clube das Pás, Clube Filhos de Candinha e Clube

Dezoito de Março, que prestaram, ao final, a devida reverência ao “ilustre dr. Ulysses

Costa, digno chefe de segurança pública” presenteando-o com um retrato em ampliação

fotográfica e um cartão de prata, entregues pelos participantes na Chefatura de Polícia,

conforme notícia do Jornal Pequeno, edição de 15 de maio de 1911 (v. RABELLO,

2004, p.175). Mas o resultado dos seus trabalhos não teria efeito prolongado. Araújo

(2008, p. 89) assinala que:

o Carnaval do Recife seguia seu rumo: a burguesia divertindo-se nos salões e no corso em automóveis [...]; o frevo vibrando e arrastando a massa popular;

75 Araújo (2008) lembra que as autoridades “proibiam os jogos do Entrudo; regulamentavam o uso de máscaras, definindo o horário e as categorias sociais que poderiam, usar o disfarce, como também o horário e itinerário dos cavaleiros; usavam e abusavam da força policial para reprimir comportamentos e diversões considerados excessivos ou ameaçadores à ordem pública.” (ARAÚJO 2008, p.87)

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a cavalaria da polícia no meio dos cordões [...] quase sempre deixando um folião pisado e esbordoado.

Somente com a criação da FECAPE76 é que o poder público efetivamente

passará a atuar na regulamentação da festa, seja através da distribuição de recursos às

agremiações filiadas, seja através da promoção dos desfiles oficiais e da divulgação do

Carnaval no interior e nos Estados vizinhos; ou, ainda, através de uma proposta de

orientação ideológica, resumida no artigo 5º do seu estatuto, que define como um dos

objetivos da entidade “moldar o carnaval no sentido do tradicionalismo histórico e

educacional, fazendo reviver costumes nossos, tipos de nossa História, fatos que nos

eduquem” (SANTOS, 2010, p. 195). O discurso subjacente ao documento busca

evidenciar o caráter de identidade cultural do Frevo e do Carnaval de Pernambuco, com

a preocupação em ressaltar a festa como manifestação original e democrática, conforme

a mensagem enviada pelo presidente Joseph Prior Fish (também presidente da

Pernambuco Tramways) à Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco, em 26 de

agosto de 1936: “Finalmente clubes pedestres que representam a união dos três

elementos étnicos e tomaram caráter puramente pernambucano, com a criação do frevo,

que é tipicamente nosso.”77 (ARAÚJO, 2008, p. 93)

O papel “educativo” da FECAPE extrapolava os limites circunscritos à

organização da festa. Entre as suas atribuições está, de acordo com o mesmo documento

enviado à Assembléia Legislativa, a de “não permitir a propaganda política de qualquer

natureza [...], preservar os clubes filiados de ideologias exóticas, prejudiciais às

instituições” (ARAÚJO, 2008, p. 93). Na verdade, a direção da entidade, composta por

indivíduos da elite econômica e política do Estado, além de intelectuais e formadores de

opinião78, manifestava clara preocupação com a influência do comunismo no Carnaval

do Recife, justificada pelo fato de que grande parte das agremiações era formada por

indivíduos pertences às categorias do trabalho proletário. De fato, o ideário socialista

andava em grande evidência nesse período, graças à atuação do Partido Comunista do

76 Para a compreensão do contexto de fundação e das linhas de atuação da FECAPE, cf. Souto Maior e Silva (1991), Araújo (2008) e Santos (2010), sobretudo o capítulo 3 (SANTOS 2010, pp. 189-226) 77 A FECAPE foi oficialmente reconhecida através da Lei Estadual nº 212, sancionada pelo governador Carlos de Lima Cavalcanti em 3 de dezembro de 1936 (cf. SILVA 1991, p.LXXVI). 78 Além de J.P. Fish, compunham a direção da FECAPE os Srs. Arlindo Luz (superintendente da Great Western), 1º vice-presidente; Pedro Allan Teixeira (deputado estadual), 2º vice-presidente; Mário Melo (jornalista), 1º secretário; Samuel Campello (teatrólogo), 2º secretário; J. Pinheiro (engenheiro da Tramways), 1º tesoureiro; e Renato Silveira (ex-presidente da Federação pernambucana de Desportos), 2º tesoureiro. A Diretoria de Honra compunha-se do governador Carlos de Lima Cavalcanti e do prefeito do Recife, Lima Castro, além de outras autoridades, como os comandantes militares da 7ª Região Militar e da Brigada Militar do Estado (ARAÚJO 2008, p. 92)

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Brasil nas lutas trabalhistas, e também graças à repercussão da Intentona Comunista, em

1935.

No plano musical, a ação da FECAPE é empreendida através do rádio e da

promoção dos concursos anuais de música carnavalesca, geralmente com o apoio dos

jornais e rádios da cidade. “Ouvia-se aquilo que o Estado queria e a FECAPE

selecionava” (SANTOS, 2010, p. 214). No concurso de 1938, o primeiro do Estado

Novo, foi escolhido o Hino do Carnaval de Pernambuco, canção de autoria de Marambá

e Aníbal Portela, com letra exaltando o Carnaval de Pernambuco e a própria Federação:

HINO DO CARNAVAL DE PERNAMBUCO (Marambá e Aníbal Portela, 1937) Foliões, viva o prazer! Viva o frevo original! O ideal é sorrir E ao passo aderir Aderindo ao Carnaval! Evohé! Evohé! O carnaval de Pernambuco É vibração, é gozo, é o suco Graças ao Frevo e à Federação (bis) Carnaval como se faz Nesta bela capital Vale a pena se ver Pois é bom de doer É de fato Carnaval! [...]

A canção ficou conhecida como “Evoé!”, mas não caiu no gosto popular, ao

ponto de a FECAPE determinar a sua execução obrigatória na abertura dos desfiles

oficiais, no palanque montado na Praça da Independência, em frente ao Diario de

Pernambuco. A postura autoritária da FECAPE, na organização do Carnaval, renderia

críticas à instituição (cf. SANTOS, 2010, p. 216 e ss.), como esta, do compositor

Capiba, anotada por Câmara e Paes Barreto (1986), a respeito da ação política de

organização do Carnaval: “um erro, pois as coisas do povo não se organizam de cima

para baixo” (CÂMARA e PAES BARRETO 1986, p.79). Os autores registram, ainda, o

único caso de censura à obra do compositor, o veto do DIP à canção Pergunte aos

canaviais, um maracatu, de 1936, por conta dos versos “quem quiser saber se eu

padeço/ pergunte aos canaviais” (cf. CÂMARA e PAES BARRTEO 1986, p.80).

Embora manifestando-se contrário à atuação da FECAPE - “Aquilo era mais

uma associação política do que mesmo incentivadora do carnaval”, disse ele

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(BARBOSA, 1985, p. 296) -, Capiba se tornaria, juntamente com Nelson Ferreira, um

dos maiores vencedores dos concursos realizados pela entidade. O autor não enfrentaria

problemas posteriores com a censura, visto que a maior parte de sua obra seria

elaborada sobre temas que variam da própria celebração do Carnaval e do Frevo até as

alegrias e dissabores da experiência amorosa79.

3.7.2. Capiba, cancionista malabarista

Com uma trajetória musical marcada pela diversidade de gêneros nos quais

desenvolveu a sua técnica e talento (canções, sambas, choros, valsas, maracatus),

Capiba notabilizou-se mesmo como compositor de frevos-canção. A análise feita, ainda

no início da segunda metade do século XX, por Suassuna (1951), atesta a prevalência

desse gênero na obra de Capiba: “Sempre manifestou Capiba preferência por esta forma

[...] que é mais própria para o espírito romântico, não só da região, como do próprio

compositor.” (SUASSUNA, 1957, p. 46). Em seus 93 anos de vida (1904-1997), Capiba

destaca-se, também ao lado de Nelson Ferreira, como um dos nomes mais

representativos do Frevo no cenário artístico do país, gravado por alguns dos maiores

nomes da Era de Ouro do rádio. Abaixo, elencamos alguns desses registros fonográficos

que ganharam destaque em gravações feitas no Sudeste do país, ainda em 78rpm:

• Mário Reis (É de amargar, 1934);

• Almirante (Vou cair no frevo, 1935)

• Francisco Alves (Júlia, 1938)

• Araci de Almeida (Mande embora essa tristeza, 1936)

• Carlos Galhardo (Casinha Pequenina, 1939; Teus olhos, 1943; O tocador de

trombone, 1946; Quando se vai um amor, 1950)

• Ciro Monteiro (Quem tem amor não dorme, 1939; Quero Essa, 1940; Gosto de

te ver cantando, 1940; Linda flor da madrugada, 1941; Quem me dera, 1942;

Dance Comigo, 1942)

79 Além dessas duas principais vertentes temáticas, canções como Casinha pequenina (1939), Quero essa (1940), Linda flor da madrugada (1941) e O anel que tu me deste (1965) revelam o interesse do autor por alguns “temas apanhados na mais popular poesia folclórica” (CÂMARA E PAES BARRETO 1986, p.89), a exemplo das cantigas de roda.

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• Nelson Gonçalves (Não aguento mais, 1944; Que bom vai ser, 1944; Quando é

noite de lua, 1945; Segure no meu braço, 1945; Que será de nós, 1947; Morena

cor de canela, 1947; O que é que eu vou dizer, 1955)

• Carmélia Alves (É frevo, meu bem!, 1951; Deixa o homem se virar, 1952; A

pisada é essa, 1953; Ninguém é de ferro, 1954; Vamos pra casa de Noca, 1954;

Amanhã eu chego lá, 1956; Nem que chova canivete, 1957)

Posteriormente, na era dos discos long-playing (LP), a obra de Capiba provomeu a

ascensão de vozes consagradas na música do Nordeste, a exemplo de Claudionor

Germano, Expedito Baracho e Mêves Gama, dentre outros, em gravações realizadas

pela Rozenblit. Até hoje, desde a consolidação da tecnologia do compact disc (CD), a

obra do artista vem sendo regravada com reiterado sucesso, executada em todos os

carnavais em Pernambuco.

Desse rico universo cancional, enfocamos apenas uma pequena parte dos frevos-

canção que exemplificam as principais linhas temáticas de sua obra. No primeiro caso,

destacam-se canções que exaltam o Frevo e o Carnaval, algumas delas com uma

configuração melódica baseada no processo de tematização. Além de Não aguento mais

(1944), Segure no meu braço (1945) e É frevo, meu bem! (1951), já mencionadas,

apresentamos a seguir outras duas, cuja elaboração das cenas enunciativas apontam para

uma contextualização do Frevo em momentos distintos, com uma preocupação acerca

da manutenção da sua vitalidade e originalidade no panorama da música brasileira:

A TURMA DA PEDRA LASCADA (Capiba, 1963) No carnaval é tudo alegria Na pracinha e na rua ou no clube elegante Todos dançam, todos cantam Para bossa nova transviado ou não Dançar twist é uma devoção Mas quem é da turma da pedra lascada Não resiste a vassourinhas não E cai de corpo e alma no salão Pula, pula, pula Dança dança dança Até quando o sol desponta TROMBONE DE PRATA (Capiba, 1979) Ouvi dizer que o mundo vai-se acabar Que tudo vai pra cucuia Que o sol não mais brilhará

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Mas se deixarem um bombo e uma mulata E um trombone de prata O frevo bom viverá Pode acabar o petróleo Pode acabar a vergonha Pode acabar tudo enfim Mas deixem o frevo pra mim

Na primeira, já abordada acima, o Frevo é destacado frente à bossa nova e ao

twist, gênero norteamericano estreitamente vinculado ao rock’n’roll, que já dera seus

passos iniciais para conquistar definitivamente um espaço na cultura ocidental,

sobretudo entre os jovens, no final da década de 1950. A cena enunciativa da obra põe

em evidência a ideia de uma oposição de interesses culturais, na música e na dança, por

dois grupos etários: de um lado a bossa nova e o twist, pela juventude – “transviado ou

não” remete o ouvinte à expressão “juventude transviada”, tradução brasileira para o

título do filme norteamericano Rebel Without a Cause (1955); de outro lado, o Frevo,

ironicamente vinculado à “turma da pedra lascada” que, apesar de colocada em

oposição aos jovens, tem disposição e energia para pular e dançar “até quando o sol

desponta”.

Pouco mais de dez anos depois do lançamento da canção, Capiba reconsiderará

essa oposição, com o Frevo-canção Juventude Dourada (1976), propondo a superação

do preconceito quanto a essa vinculação do Frevo a uma camada da população adulta de

idade mais avançada:

JUVENTUDE DOURADA (Capiba, 1976) Eu quero ver este ano a juventude dourada Na rua que é do povo, camisa aberta no peito Fazendo o que seus avós Fizeram em tempos passados Ao som de um frevo bem quente O passo sem preconceito Estou aqui para ver a juventude dourada Nessa alegria de novo Entrando na madrugada

A manifestação do desejo do enunciador, de ver a “juventude dourada” fazendo

o passo da mesma forma que seus avós, reflete a discussão travada então, ao longo de

mais de uma década, acerca da perda de espaços do Frevo nas manifestações do

Carnaval do Recife, a partir dos anos de 1960, quando se verifica, por exemplo, notável

crescimento do número de escolas de samba - estudo da antropóloga Katarina Real

publicado em 1967 revelava, na primeira metade da década de 1960, a presença de 40

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escolas de samba, contra apenas 11 clubes de Frevo (REAL, 1967, p.150), com a

consideração de que “as Escolas de Samba são hoje uma força crescente, até o ponto de

causar preocupações às agremiações mais tradicionais e aos defensores dum carnaval

estritamente pernambucano” (REAL, 1967, p. 59).80

O período é marcado também por um sensível declínio da força do carnaval de

rua, concomitantemente ao crescimento do prestígio do Carnaval realizado nos salões

dos clubes sociais. Na letra de A turma da pedra lascada ainda se observa o tratamento

indistinto quanto à importância dos espaços em que se vive a alegria do Carnaval –“na

pracinha e na rua ou no clube elegante” –, mas a questão do esmorecimento do Carnaval

de rua suscitou acalorado debate nesse período, levado a público pelos jornais, e ensejou

a criação de novas agremiações, motivada por essa preocupação, a exemplo do Bloco da

Saudade (1973) e do Clube de Máscaras Galo da Madrugada (1978), entre outros.

A letra de Trombone de prata também manifesta preocupação quanto ao futuro

do Frevo. Na cenografia desta canção, o enunciador elege o Frevo como prioridade em

relação à “vergonha”, “o petróleo” e a “tudo, enfim” que está ameaçado de acabar,

contextualizando um momento de crise internacional no escoamento da produção de

petróleo pelos países árabes produtores, ao longo da década de 1970.81

São, entretanto, os Frevos-canção cuja temática inclui as relações amorosas, suas

alegrias e dissabores, os que se destacam na obra de Capiba, revelando ao mesmo tempo

a força criativa do compositor e caracterizando um aspecto do posicionamento do Frevo

comum a outros gêneros musicais. Esse numeroso conjunto de canções, em que se

verifica a elaboração de um ethos romântico e amoroso – que às vezes sofre as dores da

separação ou da não realização do encontro com o seu objeto de desejo – será dividido

em dois grupos, para uma breve análise: o primeiro é composto pelos frevos cuja cena

enunciativa é marcada por uma tensão narrativa provocada pelo sentimento de

disjunção, em que o enunciador elege o Frevo e o carnaval como instâncias de

superação desse estado, provocado pela desilusão e tristeza. Trata-se de uma estratégia

de reiteração que consiste em decantar os valores do próprio gênero, a partir da

80 Para uma compreensão dessa discussão, cf. também Teles (2008). SILVA (1991) analisa o arrefecimento do carnaval de rua (“carnaval participação”) como decorrência das ações oficiais de regulação da festa, incluindo a promoção do “carnaval espetáculo”, a partir dos anos de 1950 (SILVA 1991, p. LXXXIV) 81 Do mesmo ano é a canção O Frevo é imortal, de autoria de Reinaldo Tenório, enfocando a mesma questão a respeito da valorização do Frevo e revelando elementos intertextuais, sobretudo na primeira estrofe, em relação a Trombone de Prata, de Capiba: “Enquanto houver um bombo/ Ninguém segura o frevo/ Enquanto houver trombone/ O frevo não vai morrer/ [...]”

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elaboração de um ethos investido de um caráter e de uma corporalidade característicos

do corpo físico que se movimenta, nesse caso, para alcançar um estado de superação da

dor e do sofrimento, num plano emocional e afetivo. O Frevo é, então, o lugar da

euforia que representa o alívio e a restauração82.

A primeira canção que ilustra essa configuração de sentidos é exatamente o

primeiro grande sucesso de Capiba, É de Amargar, escrita em 1933 e vencedora do

concurso promovido pelo Diario de Pernambuco, para o carnaval de 1934, gravada em

seguida por um dos grandes nomes da Era de Ouro do Rádio, o cantor carioca Mário

Reis:

É DE AMARGAR (Capiba)_ 1934 Eu bem sabia que esse amor um dia Também tinha seu fim, essa vida é mesmo assim Não penses que estou triste nem que vou chorar Eu vou cair no frevo que é de amargar Eu já arranjei outra morena bonita Anda bem vestida cheia de laço de fita Gosta de mim com toda emoção E já se diz a dona do meu coração Minha morena sempre diz quando me vê Gosto de você não sei como nem por quê Me faz carinho a todo momento Porém eu tenho medo do seu juramento

Os versos “Não penses que estou triste nem que vou chorar/ Eu vou cair no frevo

que é de amargar” sintetizam a decisão de encontrar na folia do Frevo a solução de

alívio para o sentimento de desamparo provocado pela perda do amor. Na segunda

estrofe, o enunciador parece declarar a superação do seu estado inicial de desconsolo

(“já arranjei outra morena bonita”, mas o verso final da canção (“porém eu tenho medo

do seu juramento”) evidencia uma indefinição quanto à resolução do desequilíbrio. É

curioso observar que, embora a cenografia da canção apresente, em versos simples, as

circunstâncias do fim de um amor e a tentativa de encontrar alento em um novo objeto

82 Evidentemente, outros autores têm contribuição na definição desse aspecto dos posicionamentos do Frevo. Dentre inúmeras outras, podem ser apontadas como exemplos as seguintes obras: Vamos cair no Frevo (Marambá,1943): Já faz um ano que a Teresa desapareceu / Que foi-se embora então sem me dizer adeus/ [...] / Agora é alegria muita alegria meu pessoal / Vamos cair no frevo / que a vida só é boa quando chega o carnaval; Tá Faltando Alguém (José Menezes, 1960): Tá faltando alguém/ tá faltando, sim/ tá faltando uma pessoa / pra gostar de mim/[...] / Com tanto frevo e tanta confusão / será que não encontro / a quem dar meu coração; Quando se quer bem (Manoel Gilberto):Você me fez esperar demais/ Francamente, isso não se faz [...] eu gostava tanto de você/ mas não faz mal/ agora vou brincar meu carnaval

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de desejo passional, a primeira parte da obra na verdade foi inspirada numa perda

familiar vivida pelo autor - a morte de um irmão querido, com a infeliz coincidência de

ter acontecido no mesmo dia do aniversário do compositor. Discorrendo sobre a

excursão da Jazz-Band Acadêmica, orquestra comandada por Capiba, à cidade do Rio

de Janeiro, com reconhecido êxito para os jovens músicos, Câmara e Paes Barreto

(1986) escrevem:

1933, que começara com a vitoriosa temporada no Rio de Janeiro, iria terminar amargamente. Tantão, o irmão-exemplo, amigo, ídolo e conselheiro, destinatário das cartas mais íntimas e depositário das esperanças mais sonhadas, morreria exatamente no dia em que Lourenço iria comemorar 29 anos de idade, vítima de uma injeção mal aplicada. Ainda hoje, o dia 28 de outubro guarda um travo de amargura nas muitas festividades aniversárias de Capiba. (CÂMARA e PAES BARRETO 1986, p. 71)

Outras canções elaboradas na mesma perspectiva de exaltação do Frevo a partir

da temática das relações amorosas estão presentes ao longo da extensa produção do

autor. Em geral, são obras que revelam o talento de Capiba no jogo das tensões

narrativas, ao mesmo tempo recorrendo à tematização melódica que ressalta os valores

positivos do gênero – procedimento típico da música de carnaval – e desenvolvendo

conteúdos passionais, mais característicos daquilo que ficou convencionado chamar de

música de-meio-de-ano. A imagem de equilibrista, empregada por Tatit (1996) para

definir a arte do cancionista, revela-se bastante apropriada, neste caso, para ressaltar a

qualidade do trabalho de Capiba.

Alguns outros exemplos, a destacar:

VOU CAIR NO FREVO (Capiba, 1935) Eu gosto tanto de você Mas você nem sequer Me presta atenção porque Talvez você não compreenda O mal que está fazendo ao meu coração [...] No carnaval vou brincar de namorar Vou cair no frevo desta vez vou me acabar E sendo assim pra que amar em vão O amor só traz para nós indecisão

MANDA EMBORA ESSA TRISTEZA (Capiba, 1936) Manda embora essa tristeza, manda, por favor Pode ser que essa tristeza mate nosso amor [...] Tu pensas que eu levo de inverno a verão A dançar e cantar com meu violão

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Mas não é verdade, te digo afinal Eu só faço isso pelo carnaval

FREVO, ALEGRIA DA GENTE (Capiba, 1969) O carnaval aparece Da dor a gente se esquece A cidade fica a vibrar Todo mundo quer ver Vassourinhas passar Lá vem Toureiros trazendo Na frente seu estandarte [...] VOCÊ ESTÁ CHORANDO (Capiba, 1971) Você parece que está amando Você está chorando Deixe esse choro para depois Venha cá dançar o frevo E esqueça por um momento A tristeza [...]

No segundo grupo de canções de Capiba versando sobre o tema do amor e suas

tramas, verifica-se, de modo geral, a elaboração de uma cena enunciativa pautada em

narrativas de caráter passional, mas sem qualquer referência ao Frevo ou ao carnaval.

Nestas obras, é ainda mais evidente um projeto de construção de sentidos baseado na

noção de passionalização referida acima, conforme as considerações de Tatit (1986,

1996, 1997, 2004, 2007), com sequências melódicas marcadas pelo alongamento das

vogais, em interpretações vocais expansivas, características de um padrão dominante

nesse período da canção brasileira, dos anos 1930 até a década de 1950.

TENHO UMA COISA PARA LHE DIZER (Capiba, 1935) Tenho uma coisa para lhe dizer Mas não digo não Porque faz mal ao coração Não confessarei o meu segredo Só porque você é convencida Pois seu eu lhe contar você vai rir E sem querer eu vou chorar Por você minha querida Eu sei que você gosta de outro Mas eu lhe queria mesmo assim O meu coração eu lhe darei Porém com uma condição Se você disser que sim! TEUS OLHOS (Capiba, 1943) Intérprete: Carlos Galhardo

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Acorda, minha querida E vem ver o luar Vem ver a lua que brilha no céu Refletindo no mar Vem, que eu quero também Nos teus olhos olhar E matar a saudade Que vive a me atormentar Não há nada mais belo que o teu olhar Nem o céu, nem o mar Se não fossem os teus olhos Eu vivia na treva a vagar VOCÊ FAZ QUE NÃO SABE (Capiba, 1950) Eu tive na vida tantos amores Que me fizeram sofrer Porém, de todos eu esqueci Só um não posso esquecer Sabe quem é esse amor? É você Eu não devia dizer Você faz que não sabe Para me fazer sofrer

Outras canções de Capiba, que podem ser incluídas nessa perspectiva de

construção de sentidos a partir da passionalização como aspecto delineador do

posicionamento do Frevo, são: Quando se vai um amor (1949) e Os melhores dias de

minha vida (1951)83. Uma análise da elaboração discursiva dessas obras - todas grandes

sucessos carnavalescos, a maioria regravada a partir da década de 1960 - revela, em

grande parte, um percurso narrativo comum às canções conhecidas como música-de-

meio-de-ano, cuja referência maior do período era o samba-canção, como já

assinalamos. Analisando a configuração narrativa dessas canções em oposição às

músicas de carnaval, com base na oposição entre as noções de alteridade e identidade,

respectivamente, Tatit (2004) ressalta que os temas em geral tratam de

desencontros amorosos e de disjunções entre personagens. Trata-se sempre de um sujeito que necessita do ‘outro’ para compor a própria identidade: sente-se ligado a esse outro no plano temporal (recorda-se de alguém ou de algo do passado ou mantém a esperança de um encontro futuro), mas reconhece que dele se encontra afastado no plano espacial. Daí decorre o conflito subjetivo e a tensão tipicamente passional: a relação entre o eu e o outro é simultaneamente conjuntiva e disjuntiva. (TATIT, 2004, p. 185)

83 A vida é triste, seu moço/ cheia de dissabores/ caminho cheio de espinhos/ coberto às vezes de flores/ há tanta gente que chora/ quando um amor vai deixar [...] (Quando se vai um amor); Os melhores dias de minha vida/ eu passei contigo, querida/ porém o tempo, que tudo destrói/ quis destruir nosso grande amor/ eu fiquei chorando quando foste embora/ quem sente saudade é quem chora (Os melhores dias de minha vida)

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É talvez essa habilidade com o manejo das diferentes possibilidades de criação,

o domínio criativo para a composição de melodias fortes, com boa estruturação

harmônica, elaborada sobre estruturas narrativas simples, mas eficazes, do ponto de

vista da abordagem de variados aspectos da experiência humana e da vida cultural de

sua gente, o que tenha conferido a Capiba lugar de destaque na produção literomusical

do Frevo, com uma obra até hoje amplamente executada no carnaval de Pernambuco.

3.8. A era da Rozenblit e outros passos do Frevo

O aperfeiçoamento da qualidade técnica dos registros fonográficos ao longo das

décadas de 1930, 1940 e 1950 repercutirá na redefinição dos padrões sonoros da música

popular, em geral, e do Frevo, em particular. O processo de consolidação do Frevo-

canção dá-se em meio à polêmica levantada, por exemplo, por Duarte (1968), a respeito

da própria legitimidade do gênero – para esse autor, seria uma degeneração do Frevo-

de-rua, pela atribuição de letras, como resultado da ação de agentes externos ao meio

artístico de criação, como jornalistas e intelectuais (v. capítulo 2), responsáveis pela

organização dos concursos de música carnavalesca (cf. DUARTE 1968, p. 58). No

plano discursivo, o Frevo-canção teria sofrido uma ação “civilizatória”, para atender ao

gosto de camadas mais amplas da sociedade, que se constituíam como ouvintes e,

sobretudo, consumidores de música popular. A esse respeito, Saldanha (2008, p. 30)

observa:

Como produto da mídia, passa por um processo “civilizador”, de adequação a grande exposição, divulgação e consumo obtidos através dos meios de comunicação. O frevo perde a rusticidade advinda dos primeiros momentos, assimila novos coloridos sonoros a sua estrutura instrumental e sofre um abrandamento no conteúdo jocoso de suas letras, se tornando mais romântico, saudosista e fortemente auto-referente.

Esse processo de “abrandamento” ocorre de forma distinta, menos incisiva do que se

observa com o samba, no tocante à ação institucional dos órgãos responsáveis pela

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censura, no Estado Novo84. A esse respeito, a obra de Capiba serve como parâmetro

para uma observação dos eixos temáticos mais recorrentes na produção literomusical do

Frevo, sobretudo a partir dos anos 1950, confirmando a observação de Saldanha, acima,

acerca de uma feição mais romântica e auto-referente – não obstante as canções de

caráter jocoso e irreverente também se fazerem presentes, embora com menos destaque

do que a marchinha carioca, por exemplo – nesse sentido, destaca-se o compositor

Bráulio de Castro, que lançou, para o carnaval de 1964, o Frevo-canção Maria Tereza85,

em alusão à primeira-dama, reconhecida pela sua beleza. Ao longo de sua produção de

músicas carnavalescas, o compositor se notabiliza pelos Frevos-canção com letras no

mesmo espírito irreverente, sobretudo a partir dos anos 1990. Alguns exemplos:

Viagramol (Bráulio de Castro e Ricardo Testão), O Tubarão Pedófilo (B. de Castro e

Maestro Forró), Guaiamun Treloso, As Virgens do Bairro Novo e A Pomba (B. de

Castro e Fátima de Castro)

Para Tinhorão (1991), a emergência do Frevo-canção – assim como do Frevo-de-

bloco, cuja configuração musical sofre influência das manifestações culturais do ciclo

natalino, como o pastoril – é explicada como um “enfraquecimento” do gênero, por

duas razões principais: a dificuldade técnica para a composição, que exige qualidade

musical elevada, e o crescimento da participação da classe média no carnaval. Assim

analisa o autor:

Esse caráter virtuosista do frevo de rua, puramente orquestral, ia ser de certa maneira responsável pelo enfraquecimento do gênero, através da criação de um produto híbrido: a marcha-frevo, ou frevo-canção. [...] Foi, pois, para atender à necessidade de um ritmo mais acessível, destinado às delicadezas desses novos grupos de carnavalescos da classe média, que se criaram os frevos de ritmo marchado e com parte de canto. (TINHORÃO 1991, p. 144)

Essa interpretação se aproxima das considerações de Duarte (1968), citado, aliás,

pelo autor, para evidenciar as semelhanças entre essa “forma híbrida” – o Frevo-canção

– e a marchinha carioca, como parte desse processo de “amaciamento” do Frevo, para

que pudesse adentrar o espaço dos salões dos clubes da classe média. Entretanto, à parte

84 Cf. Silva (2008) para um aprofundamento do tema, inclusive com interessantes considerações acerca da ação de cooptação de artistas pelo Estado, exemplificada pela adesão da SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, que tinha um Departamento de Compositores), em reconhecimento pela regulamentação do direito autoral, dentre outras razões. O autor analisa ainda a atuação do DIP, órgão inspirado no Ministério da Propaganda na Alemanha Nazista, concluindo que “muito mais do que no papel repressivo, o Estado Novo investiu recursos, intelectuais, equipamentos e instalações num intenso trabalho de propaganda política como forma de obtenção da hegemonia.” (SILVA 2008. P. 91) 85 “Maria Tereza vai ser uma beleza/ não bote o seu biquíni/ já achei a solução/ vou sair de Adão e você de monoquíni/ de monoquíni, ai que beleza/ de monoquíni vai ser legal/ quero ver a Maria Tereza/ abafando neste carnaval (Bráulio de Castro, 1964)

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a relação genética comum dos dois gêneros, derivados da marcha, como já observado

em 4.2, as diferenças já haviam sido assinaladas por Oliveira (1985):

O frevo-canção ou marcha-canção se parece com a marchinha carioca: uma parte introdutória, outra cantada, começando ou acabando por estribilho. Duas coisas, porém, as diferenciam. Primeira: a parte introdutória tem todas as características do frevo autenticamente pernambucano, rasgado, desabrido, furioso. Depois, ameniza, abrindo passagem ao canto. Segunda: o andamento da marchinha carioca é moderado; o do frevo-canção, bem mais vivo. (OLIVEIRA 1985, p. 36)

Se, de fato, em determinado momento de sua evolução, o gênero sofreu adaptações

que viabilizaram a sua inserção noutros espaços, saindo do calor das ruas para o

contexto dos bailes nos clubes sociais, a avaliação de que isso resultou no seu

empobrecimento é bastante redutora, quando consideramos o seu percurso desde então.

De fato, em sua configuração musical, o gênero evolui a partir da obra de artistas que se

destacam no cenário nacional pelos traços inovadores, a exemplo de Jackson do

Pandeiro, intérprete de grandes sucessos de carnaval, nas décadas de 1950 e 1960, a

maioria com letras de caráter jocoso e irreverente: Naquela base, Me dá um cheirinho,

Papel crepom, Micróbio do frevo, Quem não chora não mama, entre outros. Uma

evidência da vitalidade dessa obra é que ela tem recebido releituras – as mais recentes,

em regravações de artistas como Lenine e Silvério Pessoa, por exemplo – em

reconhecimento do caráter inovador das interpretações vocais de Jackson, em diversos

gêneros (coco, baião e Frevo). Ressalta-se, em especial, o deslocamento dos acentos

rítmicos nos frevos cantados por ele, reiterando o sincopado, que é uma das marcas

distintivas do gênero, em relação à marchinha carioca.

A obra inovadora de compositores como, por exemplo, Genival Macedo, também

tem grande importância para a consolidação do Frevo-canção a partir dos anos 1960.

Acerca de sua obra, Câmara (2010) observa que o compositor

colocou um molho diferente no frevo, cujos versos, não obedecendo à métrica tradicional, tornaram-se verdadeira inovação e caíram como uma luva no gogó ritmado e personalizado de Jackson do Pandeiro. Genival é, sem dúvida, um dos precursores da modernidade na música pernambucana, o frevo. (CÂMARA 2010)

A sua canção Micróbio do Frevo é referendada como exemplo de melodia de difícil

execução, com a energia vibrante e compasso acelerado do Frevo-de-rua, a que se

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conjuga uma letra de exaltação ao gênero, manifestando o desejo de vê-lo alçado ao

merecido lugar no cenário da música brasileira.86

A esse respeito, merece destaque o trabalho de artistas pernambucanos radicados no

Rio de Janeiro, como Antônio Maria e Luiz Bandeira, que tiveram sua obra marcada por

Frevos-canção elaborados a partir de um ethos saudosista, que canta os carnavais do

Recife, suas figuras e manifestações culturais. São canções que receberam também

inúmeras regravações, ajudando a manter o Frevo em evidência no panorama da música

brasileira, ao longo da década de 1950. Algumas delas são executadas ainda hoje no

carnaval do Recife, como os Frevos No. 1, No. 2 e No. 3 (Antônio Maria) e Voltei,

Recife (Luiz Bandeira), transcritas a seguir:

FREVO No. 1 DO RECIFE (Antônio Maria)_1951 Ô,ô,ô,ô,ô, saudade Saudade tão grande Saudade que eu sinto do Clube das Pás, Do Vassouras, Passistas traçando tesouras Nas ruas repletas de lá [...] Que adianta, se o Recife está longe A saudade é tão grande Que eu até me embaraço [...] FREVO Nº. 2 (Antônio Maria, 1954) Ai que saudade tenho do meu Recife Da minha gente que ficou por lá Quando eu pensava, chorava, falava Contava vantagem, marcava viagem Mas não resolvia se ia Vou-me embora Vou-me embora Vou-me embora Pra lá Mas tem que ser depressa Tem que ser pra já Eu quero sem demora O que ficou por lá Vou ver a Rua Nova, Imperatriz, Imperador Vou ver, se possível Meu amor. FREVO Nº3 DO RECIFE (Antônio Maria, 1957)

86 Reconhece-se, ainda, na obra de Genival Macedo, influência sobre o trabalho de compositores como J.

Michiles, reconhecido como um dos melhores do gênero na atualidade, tendo sua obra gravada pelo

cantor Alceu Valença, a partir dos anos 1980, com sucesso nacional.

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Sou do Recife Com orgulho e com saudade Sou do Recife Com vontade de chorar E o rio passa Levando barcaça Pro alto do mar [...] Rua antiga da Harmonia Da Amizade, da Saudade e da União São lembranças noite e dia Nelson Ferreira toque aquela introdução VOLTEI, RECIFE (Luiz Bandeira, 1958) Voltei, Recife Foi a saudade que me trouxe pelo braço Quero ver novamente Batutas na rua abafando Tomar umas e outras e cair no passo Cadê Toureiros, cadê Bola de Ouro, As Pás e os Lenhadores E o Bloco Batutas de São José? Quero sentir a embriaguez do frevo Que entra na cabeça depois toma o corpo E acaba no pé

Essas canções assemelham-se não apenas pela elaboração discursiva sobre o tema da

saudade, mas também por uma configuração melódica que revela a conjugação dos

processos de tematização e passionalização, conforme descritos acima. A respeito desse

último aspecto, a regravação do Frevo No. 1 por Maria Bethania87 constitui uma

releitura que evidencia mais explicitamente o processo de passionalização,

caracterizado, como vimos acima, pelo alongamento das vogais e pela continuidade

melódica, em andamento mais lento. Em todas elas, a cenografia é elaborada com base

em um ethos saudosista, que é bastante recorrente na música carnavalesca em geral,

dada a efemeridade da celebração. Na música pernambucana, o tema é enfocado em

inúmeras obras do gênero Frevo-de-bloco, especialmente nas marchas-regresso, canções

entoadas pelos blocos carnavalescos líricos quando se despedem da jornada pelas ruas.

As canções em destaque também se destacam pela reiteração de uma topografia

validada, para ressaltar a exaltação ao fenômeno cultural do Frevo e do carnaval, às

vezes identificada pelos topônimos de ruas da cidade do Recife, recuperando, assim,

uma tradição poética que remonta à obra modernista de Manuel Bandeira, Evocação do

Recife, e outras vezes identificada, por um processo metonímico, nas denominações de

87 Recife Frevoé, CD Virgin/ Prefeitura da Cidade do Recife (disco nº 841.402.2), 1996.

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algumas agremiações representativas do Carnaval (os clubes Toureiros, Pás,

Lenhadoures, Vassourinhas, Bola de Ouro, além do Bloco Batutas de São José).

O grande impulso do Frevo, a partir do final dos anos 1950 é dado, sem dúvida,

pela criação da Fábrica de Discos Rozenblit, inaugurada no Recife em 11 de junho de

1954, e que teve o já consagrado Maestro Nelson Ferreira como diretor artístico.

Idealizada pelo empresário José Rozenblit, juntamente com os irmãos Isaac e Adolfo, a

Rozenblit surge num contexto de incentivo à consolidação da indústria nacional,

iniciada no período Pós-1930 e levada adiante no governo de Juscelino Kubitschek.

Segundo Valadares (2007), o empreendimento resulta também, em certa medida, de

uma “ideologia regionalista inspirada nas teorias de Gilberto Freyre, que salvaguardava

os valores de uma ‘pernambucanidade’ cultural” (VALADARES 2007, p. 86)

A motivação maior para a criação da Rozenblit foi, segundo o seu fundador88, a

injustiça do esquema de seleção das músicas de carnaval adotado pelas gravadoras do

sudeste, no Recife: os representantes das lojas comerciais da cidade (Rozenblit era

proprietário das Lojas Bom Gosto) eram convocados para uma audição, realizada

geralmente no início do último trimestre do ano pela Banda da Polícia Militar, na sede

da instituição, no bairro do Derby. A partir daí, os lojistas escolhiam as preferidas, que

entretanto só eram gravadas se os pedidos alcançassem o número mínimo de três mil

cópias.

Indignado com o procedimento, que era garantia de lucro certo às gravadoras, sem

nenhum risco, Rozenblit decidiu-se pelo empreendimento, dando preferência ao registro

de ritmos regionais – com destaque para o Frevo. Conforme observa Valadares (2007),

a Rozenblit tornou-se

a indústria fonográfica mais completa de sua época, por possuir fábrica de discos, um imenso estúdio de gravação que comportava uma orquestra, o maior parque gráfico do Nordeste e uma oficina mecânica para manutenção das máquinas (VALADARES 2007, p.84)

Esses dados revelam a ousadia do empreendimento, com a intenção de deter o

controle de todo o processo de produção dos discos, o que em breve garantiria à

Rozenblit um papel de destaque no cenário nacional. Assim, na década de 1960,

considerado o período áureo da gravadora, ela detinha “22% da produção de discos do

mercado nacional e 50% do mercado regional (Nordeste)” (VALADARES 2007, p.85),

contando com escritórios em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Porto Alegre, e

88 Cf. Valadares (2007), entrevista com José Rozenblit

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incluindo em seus lançamentos desde nomes internacionais do jazz e do blues

(Thelonious Monk, Brownie McGee, Lightnin’ Hopkins) e da música latina

(Bienvenido Granda, Célia Cruz, Trio Ypacaraí, Trio Los Panchos, entre outros), até

artistas de renome nacional (Ismael Silva, Herivelto Martins, Claudete Soares, Zé Kéti).

O maior filão comercial da Rozenblit, porém, foi mesmo a música carnavalesca,

especialmente o Frevo. Em 1957, o Frevo-de-bloco Evocação, de Nelson Ferreira, com

gravação do Coral do Bloco Batutas de São José, estoura como sucesso nacional. A

partir de 1959, a Rozenblit reedita velhos sucessos de Capiba e Nelson Ferreira (os LPs

Capiba 25 anos de Frevo e O que eu fiz e você gostou, respectivamente) consagrados na

voz de cantores do Sudeste, desta vez registrados com o jovem cantor Claudionor

Germano. A proposta se repete em 1961, com os LPs Carnaval começa com C de

Capiba e O que faltou e você pediu (Nelson Ferreira). Conforme avalia Teles (2008), o

sucesso de vendagem desses discos despertou o interesse das gravadoras do Sudeste

a atentar para o efervescente mercado do frevo não mais como um fenômeno limitado a uma única cidade, e sim a uma região inteira. Em 1961, por exemplo, a RCA lançou o LP Na onda do frevo e Frevo 40 graus, com Zaccarias e sua Orquestra. (TELES 2008, p.55)

O complexo de fatores que desencadeiam o declínio da Rozenblit, a partir da

segunda metade da década de 1960, inclui desde a catástrofe natural das enchentes que

atingem o Recife, a partir de 1966, até as mudanças radicais no cenário cultural do país,

sobretudo na cena musical redefinida pela avassaladora influência do rock (com os

interesses das gravadoras multinacionais), assimilada pelo Tropicalismo, mas não

acompanhada pela direção da empresa. Sobre a questão, assim discorre Belfort (2009):

A Rozenblit começou a definhar...numa tentativa de soerguer o seu negócio, José Rozenblit deu entrada, em fevereiro de 1967, num pedido de ampliação na Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) que previa um investimento de Cr$ 1,5 bilhão com recursos emprestados pela autarquia. No meio do caminho da Rozenblit, havia muitas pedras e vários interesses em jogo...Até hoje, há quem diga que a gravadora incomodava muito às multinacionais que também fabricavam discos no Sudeste do País...Junto com todo esse cenário, o rock explodiu a partir de 1966 em todo o Brasil...Em 1968, um novo movimento musical estourava no cenário tupiniquim: o tropicalismo [...] (BELFORT 2009, p.113)89

A Rozenblit ainda atravessaria toda a década de 1970, enfrentando dificuldades, até

fechar definitivamente as portas em 1983. Ao longo de sua trajetória de três décadas

89 Para outras abordagens, cf. Valadares (2007), Teles (2000, 2008) e Lélis (2011)

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está registrada uma intensa produção discográfica do Frevo, com significativo número

de canções que definem novos aspectos do seu posicionamento a partir da elaboração de

diferentes cenas enunciativas, das quais enfocaremos uma pequena parte, para

exemplificar a riqueza do Frevo-canção no cenário da música carnavalesca brasileira.

Enfatizamos, sobretudo, as obras cuja cenografia extrapola o universo cancional

típico da música carnavalesca, em geral definido pelo processo de reiteração e exaltação

ao próprio gênero, a ponto de colocar “o texto (letra) em situação secundária e

subordinada” conforme assinala Costa (2001, p.300). Corroborando a definição da

música popular como prática discursiva de grande importância na cultura brasileira, em

geral as letras dessas obras versam sobre temas relacionados à vida social e política, à

mudança de costumes etc., configurando, como vimos no capítulo 2, um aspecto da

relação intergenérica entre a canção e a crônica, definida numa perspectiva

sociocomunicativa de compreensão dos gêneros discursivos. Observamos, assim, que a

produção literomusical do Frevo também se constitui como espaço para o embate de

ideias, situado em relação a outros posicionamentos característicos dos variados estilos,

propostas estéticas e posições ideológicas definidoras da heterogeneidade do campo, em

diferentes momentos da história do país.

Particularmente interessante é este período que marca, a partir da segunda metade

dos anos 1950, o declínio do samba-canção como maior referência de escuta da canção

nacional, concomitantemente ao surgimento da Bossa Nova. A análise de Tinhorão

(1990) aponta aí a influência do bolero para a descaracterização do samba-canção, com–

“chegando-se à tentativa de criação de um hibridismo chamado de sambolero”

(TINHORÃO 1990, p.245), bem como a exclusão do autêntico samba do morro pelas

gravadoras – à exceção do samba-enredo – como fatores de mobilização de um grupo de

artistas emergentes na zona sul carioca, a partir de Copacabana, para a definição de uma

nova proposta musical. A localização geográfica, aliás, constitui um dado importante na

definição geral do ethos privilegiado nas canções do movimento. Conforme avalia

Costa (2001), é um ethos marcado por uma certa fragilidade emocional e por uma

sensibilidade que oscila facilmente entre a tristeza e a alegria. Assim:

os bossanovistas privilegiarão, como lugar de pré-difusão, o aconchego dos apartamentos da zona sul carioca e, como espaços de difusão, a intimidade dos pequenos ambientes, bares e boates em que houvesse condições de entoação de um canto falado, quase sussurrado, acompanhado de um pequeno grupo musical ou apenas de um violão tocando ‘baixinho’ (COSTA 2001, p. 179)

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Para Tinhorão (1990), essa proposta resultava de um rompimento com a herança do

samba popular, “para modificar o que lhes restava de original, ou seja, o próprio ritmo”

(TINHORÃO 1990, p.246) – a novidade da batida do violão bossanovista, marcada por

uma descontinuidade do acento rítmico, foi “apelidada de violão gago”, observa o autor.

De fato, a emergência da Bossa Nova traz como marca distintiva “a estilização do

samba através de informações provenientes do cool jazz e de outros gêneros” como

resume Naves, para concluir que “evidentemente, a bossa nova dividiu a crítica”

(NAVES 2010, p.11). Se, por um lado, o movimento é associado à modernidade e à

possibilidade de inserção da música brasileira no mercado internacional, por outro lado

é concebido como um desvirtuamento do samba em sua originalidade.

Paralelamente, no contexto sociopolítico, há de um lado o clima de entusiasmo pela

perspectiva de crescimento da economia, com base num impulso de industrialização,

aliada a um cenário positivo, por exemplo, nos esportes, com a conquista do primeiro

título mundial de futebol, em 1958; e do outro as críticas da oposição ao governo e à

própria figura de JK, cuja imagem pública era associada a um certo espírito de

modernidade (recebia artistas e atletas no palácio, tinha aula de violão com Dilermano

Reis e era reconhecidamente carismático), mas era atacado, por exemplo, pelo fato de

dividir o seu tempo em voos entre o Rio de Janeiro e Brasília, após a inauguração da

capital (a “Nova Cap”).

Essas questões se elaboram discursivamente na canção popular. Se na obra de João

Gilberto, Tom Jobim, Newton Mendonça, dentre outros, estão as diretrizes da proposta

cultural bossanovista, interpretada como símbolo de modernidade – ou como

degeneração da tradição do samba, conforme a perspectiva adotada – e associada ao

presidente JK, apelidado de “Presidente Bossa Nova”, a crítica irreverente aparece, por

exemplo, na canção homônima, de Juca Chaves, lançada em 1957.90 Ou ainda num

samba como Não Vou pra Brasília, do compositor Billy Blanco (Willian Trindade,

1924-2011), lançada em 195891:

90 “Bossa nova mesmo é ser presidente/ desta terra descoberta por Cabral/ Para tanto, basta ser tao simplesmente/ Simpático, risonho, original/ [...] voar da Velha Cap pra Brasília/ ver Alvorada e voar de volta ao Rio/ voar, voar, voar pra bem distante/ [...]/ mandar parente a jato pro dentista/ [...] Isso é viver como se aprova/ É ser um presidente Bossa [...]” (Presidente Bossa Nova, Juca Chaves, 1957) 91 “Eu não sou índio nem nada/ não tenho orelha furada/ nem uso argola dependurada no nariz/ [...] Não vou, não vou pra Brasília/ nem eu nem minha família/ mesmo que seja pra ficar cheio de grana/ a vida não se compara/ mesmo difícil e tão cara/ quero ser pobre sem deixar Copacabana” (Não Vou pra Brasília, Billy Blanco, 1958)

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No Frevo-canção, duas canções de Sebastião Lopes, lançadas no início da década de

1960, marcam posição favorável à ideia de progresso representada pela construção da

nova capital. A canção reverencia, ainda, a Miss Brasil Emília Correa Lima:

Adeus, Emília (Sebastião Lopes, 1960) Adeus, adeus Emília, O JK me mandou para Brasília. Brasília não tem carnaval Nem é Cidade Maravilhosa, Não tem praia de Copacabana Com a garota tão bacana Não tem o Cristo Redentor A Guanabara com seu esplendor Não tem o Colosso do Maracanã Mas será o Brasil de amanhã

O verso final da canção exalta a nova capital, símbolo do “Brasil de amanhã”, mas a

cenografia da obra, elaborada com base numa sequência de enunciados negativos,

evidencia o descontentamento de uma parcela da população – políticos e funcionários

públicos, principalmente – que teria de deixar a Cidade Maravilhosa para viver no

centro-oeste do país. O contexto de criação da obra é esclarecido por Gayoso (2007).

Segundo a autora, o compositor foi

influenciado pelo êxodo de milhares de nordestinos que foram trabalhar na construção da nova capital do Brasil abrindo estradas, tudo sob os olhares desconfiados dos brasileiros e a revolta dos políticos que iriam perder a mordomia de morarem na Cidade Maravilhosa, do Rio de Janeiro, Estado da Guanabara. (GAYOSO 2007, p.30)

Em Palácio da Alvorada, o tom de exaltação é ainda mais expressivo:

Palácio da Alvorada (Sebastião Lopes, 1961) Ai, ai, meu JK Brasília é o futuro E eu preciso ir pra lá Eu sou o José O irmão da Emília E Quero trabalhar lá em Brasília, No Palácio da Alvorada Todo cheio de esplendor Brasília é um sonho encantador. Parabéns meu presidente Do José e da Emília Vamos já, já para Brasília

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Aqui, podemos reconhecer o José da canção como representante da leva de

nordestinos que migraram para o Centro-oeste em busca das oportunidades de trabalho,

lá empregando sua força de trabalho para a construção da nova capital.

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4. CONCLUSÕES A articulação entre o referencial teórico da Análise do Discurso e os estudos sobre

gêneros tem se constituído como um caminho interessante para a pesquisa da produção

discursiva em nossa sociedade. As contribuições oferecidas por Dominique

Maingueneau e incorporadas à investigação do discurso literomusical brasileiro são um

exemplo disso. Trata-se, como assinalamos no início deste trabalho, de uma área de

investigação relativamente recente, no âmbito da produção acadêmica e, como tal, ainda

em processo inicial de definição dos seus contornos.

Evidentemente, esse é um processo permanente, em constante e criativa

reconfiguração, a partir das inter-relações estabelecidas no seio da cultura. Essas

incluem a multiplicação das formas de comunicação, a emergência de novos gêneros

discursivos a moldar as nossas interações e a definir outras possibilidades de construção

de sentido, fenômenos explicados a partir da concepção bakhtiniana de língua e da

teoria dos gêneros elaborada no Círculo, sempre aberta a novas leituras. A canção está

aí situada, como instigante espaço de produção discursiva, entre a oralidade e escrita,

reinventando-se como tradição cultural de inegável importância em nosso país,

possibilitando a ouvintes e leitores a inserção em um mundo de criação artística através

da palavra e do som, conjugando essas duas materialidades em composições, em geral,

bastante curtas, com a duração de alguns minutos, mas dotadas de uma força

enunciativa capaz de perenizá-las ao longo da História.

Como gênero de grande circulação na sociedade, a canção está em toda parte, dando

contornos estéticos às vozes que se elaboram nos espaços da vida privada ou da vida

pública. No Brasil, como noutras partes, a canção dá corpo a grandes mobilizações

populares, de caráter político ou religioso, por exemplo, em diferentes momentos da

vida sociocultural.

Nosso propósito, ao escolher o Frevo-Canção como objeto de estudo, foi o de

empreender um esforço de compreensão desse gênero, intrinsecamente vinculado ao

Carnaval do Recife, a partir do século XIX, quando o Frevo surge como fenômeno

arrebatador, no contexto do Carnaval, legitimando-se depois como forte marca

identitária da cultura pernambucana.

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Inicialmente associado aos primeiros clubes carnavalescos da capital, o Frevo-

Canção é o gênero do Carnaval pernambucano que teve maior circulação nos espaços

midiáticos do rádio, em todo país, nas primeiras décadas do século XX, cantado por

algumas das vozes mais importantes da música brasileira.

A partir dos anos 1950, com a criação da Fábrica de Discos Rozenblit, teve

significativa ampliação de espaços para divulgação, numa época em que o samba e a

marcha eram os gêneros dominantes da canção carnavalesca. Como forma de produção

discursiva, imbricada nas relações sociais, também sofreu – embora de maneira menos

direta do que o samba, por exemplo - ação regulatória das instâncias de poder, a partir

da instauração do Estado Novo. A criação da Federação Carnavalesca de Pernambuco,

nos anos 1930, com o projeto de ordenação da festa popular, repercutiu na atividade de

criação, estimulada pela promoção dos concursos de música.

Ao longo de sua evolução, o Frevo-Canção acompanha a mobilidade do Carnaval,

ocupando inicialmente o espaço da rua e dos salões dos clubes, e depois se

consolidando também como gênero predominante nos palcos. Nesse percurso,

procuramos identificar alguns aspectos que definem o posicionamento do Frevo no

discurso literomusical brasileiro, através de um esforço de análise das configurações de

sentidos elaboradas na junção da letra com a melodia.

Em geral, a música carnavalesca é tomada como exemplo do que Tatit (1986, 1996)

chama de processo de reiteração, baseado num esquema de repetição da melodia,

concentrada em duas partes e, no plano textual, numa elaboração metadiscursiva, em

que há uma tendência à exaltação ao próprio gênero. Costa (2001) argumenta que,

tipicamente, nesse caso, o texto (a letra) é colocado em situação secundária e

subordinada: “É tanta a sedução do gênero musical (melodia e ritmo) que [...] se pode

prescindir da letra, sendo que esta, para existir, parece se obrigar a decantar os valores

da música.” (COTA 2001, p. 300)

A análise que empreendemos neste trabalho revela, entretanto, que a elaboração

discursiva do Frevo-Canção em muitos casos ultrapassa esse esquema, de resto bastante

presente, de fato, na produção musical do Carnaval brasileiro. As exceções se destacam

particularmente na obra de alguns compositores, como é o caso de Capiba e Luiz

Bandeira, que extrapolam aquele esquema mínimo de refrão e segunda parte, em que se

baseia o processo de reiteração, como procuramos mostrar.

Há que se destacar, ainda, a parte da produção discursiva do Frevo-Canção que

procuramos aproximar, levando em consideração propósitos comunicativos comuns, do

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gênero literário da crônica, marcado por um hibridismo peculiar e pela grande

circulação na sociedade, através dos jornais. Enfocamos algumas canções que se

destacam por se organizarem discursivamente como narrativas de onde emergem vozes

que dialogam acerca de fatos da vida cotidiana, da mudança de costumes etc. Esses são

alguns exemplos da habilidade dos cancionistas do Frevo na elaboração de variadas

cenografias em canções que instauram, na cena da enunciação, diferentes aspectos da

inserção do Frevo na cultura brasileira.

Procuramos abordar também a complexidade dos momentos iniciais do processo de

nomeação do gênero musical, a partir da dança, com o nome inicialmente designando

propriamente a movimentação frenética do povo nas ruas, a acompanhar as bandas de

música, muitas vezes com excessiva e desmedida empolgação. Esse processo é

enfocado a partir da proposta de compreensão do discurso na perspectiva de uma

semântica global, integrando diferentes planos discursivos na análise, conforme postula

Maingueneau (2008). Considerando, por exemplo, o plano do vocabulário, observamos

como a emergência do nome Frevo no universo carnavalesco da cultura brasileira está

associado a um momento de ebulição social, marcado por confrontos e lutas, trazidas do

mundo cotidiano para o cenário da festa.

A partir da consolidação do nome para identificar também a música, nos anos 1930,

diferentes aspectos do posicionamento do Frevo são elaborados, em oposição a outras

formas simbólicas, para ressaltar, na definição de sua identidade, as qualidades da

dança, da música, do seu espírito inebriante no panorama multifacetado do Carnaval

brasileiro.

Assim, pensamos ter cumprido uma pequena parte da tarefa desafiadora de situar o

Frevo no campo do discurso literomusical brasileiro, compreendendo a importância

desse gênero para a compreensão da dinâmica sócio-histórica do Carnaval

pernambucano e brasileiro, articulando a produção discursiva da canção a diferentes

discursos em circulação na sociedade, ao longo do período histórico enfocado.

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6. ANEXOS 6.1. Canções analisadas O quadro-resumo abaixo apresenta o título de cada obra, o ano de gravação, a autoria e o intérprete. Na transcrição das letras, logo após o título, com indicação da autoria e do ano de gravação, entre parênteses, há as seguintes especificações sobre a gravação: - o gênero, conforme registro no selo do disco (marcha, frevo-canção etc.); - o formato da gravação: 78 rpm (rotações por minuto) ou LP (long-playing); - a empresa gravadora; - o título do disco (no caso dos LPs); - o número de série do disco Os títulos indicados com (*) abaixo indicam as obras gravadas no CD ilustrativo que acompanha este trabalho (v. 6.3 abaixo).

TÍTULO ANO DA

GRAVAÇÃO AUTOR(ES) INTÉRPRETE(S)

Sá Zeferina Tá de Vorta 1930 Valdemar de Oliveira Mário Pessoa

* Frevo Pernambucano 1931 Luperce Miranda e

Osvaldo Santiago

Francisco Alves

O Caminho é Perigoso 1932 Capiba SEM GRAVAÇÃO

Diarbuco, Óia a Virada 1933 Nelson Ferreira Breno Ferreira

É de amargar 1934 Capiba Mário Reis

Dobradiça 1934 Nelson Ferreira Almirante

Vou Cair no Frevo 1935 Capiba Almirante

Tenho uma Coisa para lhe

Dizer

1935 Capiba Leda Baltar

Já Faz um Ano 1936 Nelson ferreira Aracy de Almeida

Mande embora Essa Tristeza 1936 Capiba Aracy de Almeida

Hino do Carnaval de

Pernambuco

1937 Marambá e Aníbal

Portela

Coro e Orquestra

Columbia

Que Fim Você Levou? 1937 Nelson Ferreira Neide Martins

Vivo Cantando 1938 Felinto Nunes Almirante

* O Passo do Caroá 1941 Nelson Ferreira e

Sebastião Lopes

Joel e Gaúcho

Dança do Carrapicho 1942 Nelson Ferreira e

Sebastião Lopes

Joel e Gaúcho

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Lá no Derby 1943 Nelson Ferreira e

Sebastião Lopes

Carlos Galhardo

Vamos Cair no Frevo 1943 Marambá Carlos Galhardo

* Bye Bye My Baby 1943 Nelson Ferreira Carlos Galhardo

Cai-Cai 1943 Marambá Carlos Galhardo

* Teus Olhos 1943 Capiba Carlos Galhardo

Não Aguento Mais 1944 Capiba Nelson Gonçalves

* O Frevo é Assim

1945

Nelson Ferreira e

Nestor de Holanda

Carlos Galhardo c/

Zacarias e sua

Orquestra

Vou Pra Pernambuco 1945 Nássara e Frazão Deo

Segure no meu Braço 1945 Capiba Nelson Gonçalves

Qué Matá Papai, Oião? 1945 Sebastião Lopes e

Nelson Ferreira

GilbertoAlves

Quebrou-se a Mola do Eixo 1945 Sebastião Lopes e

Nelson Ferreira

SEM GRAVAÇÃO

Ai, Como Sufro! 1949 Nelson Ferreira Marlene

* Sonhei que Estava em

Pernambuco

1949 Clóvis Mamede Clóvis Mamede e

Orquestra

Conhece o Recife? 1950 Gildo Moreno Carlos Galhardo e

Orquestra Zacarias

Você faz que não Sabe 1950 Capiba Francisco Carlos

* É Frevo, Meu Bem! 1951 Capiba Carmélia Alves

Frevo nº 1 do Recife 1951 Antônio Maria Trio de Ouro

* Micróbio do Frevo 1954 Genival Macedo Claudionor Germano

Frevo nº 2 do Recife 1954 Antônio Maria

Pernambuco, você é meu 1955 Nelson Ferreira e

Aldemar Paiva

Raimundo Santos

To Sentindo uma Coisa 1955 Sebastião Lopes Nelson Gonçalves e

Orquestra Zaccarias

É de Fazer Chorar 1957 Luiz Bandeira Carmélia Alves

Voltei, Recife 1958 Luiz Bandeira Luiz Bandeira

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Frevo nº 3 1958 Antônio Maria Claudionor Germano

À procura de Alguém 1958 Capiba Expedito Baracho

Short ou Baby-Doll 1959 Carnera Os Três Boêmios

Qual é o Pó? 1959 Sebastião Lopes Marize Paiva

Adeus Emília 1960 Sebastião Lopes

* Menina de Hoje 1960 Manoel Gilberto Raimundo Santos

Óia a Virada 1960 Nelson Ferreira Claudionor Germano

* Palácio da Alvorada 1961 Sebastião Lopes Edilásio Lopes

A Lua Disse 1962 Gildo Branco Evaldo França

Amor de Hoje 1962 Carnera Meves Gama

A Turma da Pedra Lascada 1963 Capiba Ângela Maria

Garota Vedete 1964 Carnera

Maria Tereza 1964 Bráulio de Castro Milton Arruda

Frev-iê-iê 1966 Nelson Ferreira Claudionor Germano

A Palavra é... 1967 Nelson Ferreira Otávio Santiago

Novamente 1967 Luiz Bandeira Dóris Sandra

Vão me Levando 1969 Genival Macedo e

Dozinho

Marlene

Frevo, Alegria da Gente 1969 Capiba Claudionor Germano

Hino do Ceroula 1969 Milton Bezerra de

Alencar

Orquestra e Coral

Maestro Duda

5 -4 -3 -2 -1 - FREVO 1970 Capiba Claudionor Germano

Você Está Chorando 1971 Capiba Claudionor Germano

* Selo do Frevo 1976 Nelson Ferreira Claudionor Germano

Juventude Dourada 1976 Capiba Claudionor Germano

Trombone de Prata 1979 Capiba Expedito Baracho

Mulata Imitada 1979 J. Raul Valença e

Manoel Valença

Cezar Bismarck

* Frevotheque 1979 Inaldo Vilarim /

Duda

Ray Miranda

Hino do Elefante 1980 Clídio Nigro/ Clóvis

Vieira

Coral Mocambo

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LETRAS 1. SÁ ZEFERINA TÁ DE VORTA (Valdemar de Oliveira, sob pseudônimo de José Capibaribe , 1930) Intérprete: Mário Pessoa (78rpm Victor disco nº 50160 ) No carnaval buscando alguém De vorta está Sá Zeferina meu bem O passo faz como ninguém E sempre é Sá Zeferina meu bem Vem cá dançar que o Frevo já começou E o meu amor ainda não se acabou Aguenta o passo e trata bem No carnaval Sá Zeferina meu bem A sua graça ninguém tem E podes crer Sá Zeferina meu bem Vem cá dançar que o Frevo já começou E o meu amor ainda não se acabou O carnaval só graça tem Se nele está Sá Zeferina meu bem E quando se sabe que ela vem A gente diz Sá Zeferina meu bem Vem cá dançar que o Frevo já começou E o meu amor ainda não se acabou 2. FREVO PERNAMBUCANO * (Luperce Miranda e Osvaldo Santiago, 1931) Intérprete: Francisco Alves (Marcha, 78 rpm Odeon disco n. 10757-A Lá vem Catirina a sambá Na frente do Clube das Pá Lá vem Sá Chiquinha do angu De braço com o Zé Papangu Viva o frevo, a pagodeira Viva a farra e o amô! Viva o amô! Dei um saco de confete Para minha flô A faca num cabra enterrei Por que, não me lembro, não sei,

Só sei que no frevo caí E dele aos pedaços saí 3. O CAMINHO É PERIGOSO (Capiba,

1932) (sem gravação) Requebra a dobradiça No chã de barriga Pra frente e pra trás Cuidado com a poliça Se ela te pegar Não te solta mais Aguenta firme rapaziada Que uma onda vem O pirão é gostoso... Mas toma cuidado repara bem mal Não vai estrepar Que o caminho é perigoso Eu entro com a macacada No rojão do frevo, Para me arrasá A turma que é da virada Diz: ‘não tem é sopa, viva o Carnaval’ Na rua do Imperador U’a morena fogo Quase se acabou Fiquei doido de amor (letra publicada no Diário de Pernambuco em 1º de fevereiro de 1932. In: CÂMARA e PAES BARRETO 1986, p.60) 4. DIARBUCO, ÓIA A VIRADA (Nelson Ferreira, 1933) Intérprete: Breno Ferreira e Orchestra Columbia (Marcha do Norte, Columbia 78rpm, disco nº 22.201-B 1, 2 e 3, vira, vira! Oia a virada, ô! Vem cair no passo Moreninha do amo (V-A, V-E, V-I!) oia a curva! (Tira o cisco do olho , morena!) Não respeito nem o cão Quando chega o Carnavá Saio de casa no domingo Só na cinza vô vortá

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Lá em casa todo mundo Vira pó no Carnavá Até mesmo a minha sogra Se esfarinha de pulá Carnavá só tem três dia Valha-me São Salvadô! Carnavá nasceu no céu Foi os anjo que inventô! 5. DOBRADIÇA (Nelson Ferreira, 1934) Intérprete: Almirante (Marcha pernambucana, Victor 78 rpm, disco nº 33.754-A) Dobra! Dobra! Vem pra dobradiça! Caboquinha do amor É o frevo que te atiça Quando chega a folia A gente fica que nem ioiô Pra cá, pra lá E sobe e desce e se atrapalha E se embaraça todo No cordão do Carnavá Caboquinha do outro mundo Pra lá do céu Olha pra mim, não sê tão má! E pelo menos no Carnavá Dá aqui teu corta-jaca Um tiquinho desse olhar 6. É DE AMARGAR (Capiba, 1934) Intérprete: Mário Reis (Victor 78 rpm disco nº 33.752) Eu bem sabia que esse amor, um dia Também tinha seu fim, essa vida é mesmo assim Não penses que estou triste nem que vou chorar Eu vou cair no frevo que é de amargar Eu já arranjei outra morena bonita Anda bem vestida cheia de laço de fita Gosta de mim Com toda emoção E já se diz a dona do meu coração Minha morena sempre diz quando me vê Gosto de você não sei como e o porquê Me faz carinho a todo momento Porém eu tenho medo do seu juramento 7. VOU CAIR NO FREVO (Capiba, 1935) Intérprete: Almirante

(Marcha Pernambucana, 78rpm Victor disco nº 33.910-A) Eu gosto tanto de você Mas você nem sequer Me presta atenção porque Talvez você não compreenda O mal que está fazendo ao meu coração Eu já não sei nesta vida o que fazer Pra você meu bem novamente me querer Não me conformo com essa ingratidão Porque faz mal muito mal ao coração No carnaval vou brincar de namorar Vou cair no frevo desta vez vou me acabar E sendo assim pra que amar em vão O amor só traz para nós indecisão 8. TENHO UMA COISA PARA LHE DIZER (Capiba, 1935) Intérprete: Jazz Band Acadêmica (Frevo-Canção, gravação particular/ CD Revivendo Capiba o Poeta do Frevo Tenho uma coisa para lhe dizer Mas não digo não Porque faz mal ao coração Não confessarei o meu segredo Só porque voce é convencida Pois seu eu lhe contar você vai rir E sem querer eu vou chorar Por você minha querida Eu sei que você gosta de outro Mas eu lhe queria mesmo assim O meu coração eu lhe darei Porém com uma condição Se você disser que sim! 9. JÁ FAZ UM ANO (Nelson Ferreira, 1936) Intérprete: Aracy de Almeida e Conjunto Diabos do Céu (Frevo-Canção, Victor 78rpm nº. 34.019) Já faz um ano que eu conheci você Foi pelo Carnaval, foi pelo Carnaval E desde então fiquei sabendo o porquê De todo o meu mal, de todo o meu mal Ao som de guizos, estalar de serpentina Foi que nasceu a ilusão de um grande amor Foi ilusão, foi sonho que passou E hoje mascarada trago a minha dor Os dias passam tão ligeiro, vão voando E do destino, tudo passa afinal! Temos três dias de loucura intensa

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Assim vou lhe esquecer, chegou o Carnaval 10. MANDA EMBORA ESSA TRISTEZA (Capiba, 1936) Intérprete: Aracy de Almeida (Frevo-Canção, Victor 78 rpm disco nº. 34019) Manda embora essa tristeza, manda por favor Pode ser que essa tristeza mate nosso amor Tu andas tão triste, somente a chorar Mas por isso eu não vou me privar de dançar Tu sabes que eu faço o passo na rua Mas é pensando na imagem tua Tu pensas que eu levo de inverno a verão A dançar e cantar com meu violão Mas não é verdade, te digo afinal Eu só faço isso pelo carnaval 11. HINO DO CARNAVAL DE PERNAMBUCO (Marambá e Aníbal Portela, 1937) Intérprete: Coro e Orquestra Columbia (Frevo-Canção, Cemcape/Prefeitura do Recife CD O Tema é Frevo Vol.2) Foliões, viva o prazer! Viva o frevo original! O ideal é sorrir E ao passo aderir Aderindo ao Carnaval! Evohé! Evohé! O carnaval de Pernambuco É vibração, é gozo, é o suco Graças ao Frevo e à Federação (bis) Carnaval como se faz Nesta bela capital Vale a pena se ver Pois é bom de doer É de fato Carnaval! 12. QUE FIM VOCÊ LEVOU ? (Nelson Ferreira, 1937) Intérprete: Neide Martins Olá, como vai você? Nunca mais lhe vi E que fim levou? A última vez que falei com você Foi na terça-feira Do carnaval que passou Eu bem me lembro como se hoje fosse

Era de cor verde a sua fantasia Tão bonita como a esperança Que em meu coração vive De você ser meu um dia E agora volta louco o carnaval O seu ruído já domina o espaço Vamos unir os nossos corações E de braço com a ilusão Amar com o frevo e com o passo 13. VIVO CANTANDO (Felinto Nunes, 1938) Intérprete: Almirante (Frevo-Canção, Odeon 78 rpm disco Nº11.699-B) Antigamente eu era triste Não sabia onde encontrar felicidade Mas hoje vivo assim cantando Só porque já conquistei sua amizade Quando vivia só sem você Longe do seu carinho Tudo me faltava Faltavam-me seus olhos Pra vir iluminar o meu caminho Antigamente eu era triste Não sabia onde encontrar felicidade Mas hoje vivo assim cantando Só porque já conquistei sua amizade Porém um dia tudo mudou Senti-me transformado Ri do meu passado, sorri para o futuro Porque você estava ao meu lado 14. O PASSO DO CAROÁ * (Nelson Ferreira e Sebastião Lopes, 1941) Intérprete: Joel e Gaúcho (Frevo, Odeon 78rpm disco nº12.100-B) No passo do caroá, á á á á Eu quero ver como é é é é é É muito fácil, menina Nada tem de encrencado É só na ponta do pé Do pé do pé do pé Repare bem Que não tem nada de Capote, nem de Fox Minueto, nem Quadrilha Nem Lanceiro, Pas de quatre Pois é! Pra dançar o passo do caroá Basta um mexido no corpo E um trançado Sim senhor, muito bem!

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15. TEUS OLHOS * (Capiba, 1943) Intérprete: Carlos Galhardo (Frevo-canção, Victor 78 rpm disco n.80.0056-B) Acorda, minha querida E vem ver o luar Vem ver a lua que brilha no céu Refletindo no mar Vem, que eu quero também Nos teus olhos olhar E matar a saudade Que vive a me atormentar Não há nada mais belo que o teu olhar Nem o céu, nem o mar Se não fossem os teus olhos Eu vivia na treva a vagar 16. DANÇA DO CARRAPICHO (Nelson Ferreira e Sebastião Lopes, 1942) Intérprete(s): Joel e Gaúcho (Frevo, Odeon 78rpm disco nº 12.100-A) Morena eu já sei! Me largue, me solte! Deixa eu me espalhar, ei, no Carnaval! Eu quero virar bicho, uh, uh Agora vou mostrar pra você aprender A dança do carrapicho Um passo pra frente e outro pra trás A Mao na cabeça e o dedo na boca E depois que começar a confusão Você vai ver que coisa louca! 17. LÁ NO DERBY (Nelson Ferreira e Sebastião Lopes, 1943) Intérprete: Carlos Galhardo (Frevo-Canção, 78rpm RCA Victor, disco nº P-275-A) Mandei parar o bonde lá na Praça do Derby Saltei e dei o braço a Maria das Dores Com a minha Maria vai ser meu Carnaval Escondido entre as flores Lá na ilha dos amores Com a Das Dores a correr pra lá, pra cá E a água em redor chuá chuá chuá chuá Que bom! Minha folia vai ser bem original Estampado lá no Derby vai ficar meu carnaval 18. VAMOS CAIR NO FREVO (Marambá, 1943) Intérprete: Carlos Galhardo (Frevo Canção, 78rpm Victor disco nº 80.0056-A)

Já faz um ano que a Teresa desapareceu Que foi-se embora então sem me dizer adeus Hoje porém arrependida chora pra voltar Mas eu não posso por enquanto concordar Agora é alegria muita alegria meu pessoal Vamos cair no frevo que a vida só é boa quando chega o carnaval 19. CAI- CAI (Marambá, 1943) Intérprete: Carlos Galhardo (Frevo-Canção, Victor 78rpm disco no. 80-0140/3) Cai, cai, valentão Assim não vai não À procura da vitória O Seu Fritz padeceu Foi à França, foi à Grécia, Foi até ao Mar Egeu Mas Seu Fritz não tem sorte E por isso agora vai Descansar na geladeira Vai, vai, vai, vai Cai, cai, valentão Assim não vai não 20. BYE, BYE MY BABY * (Nelson Ferreira, 1944) Intérpretes: Carlos Galhardo e Zacarias e sua Orquestra (Frevo-Canção, Victor, 78rpm disco nº 80.142-B) Amor, eu vou-me embora Aí vem o teu papai Só te vejo amanhã My baby, bye bye! Atualmente só se fala o inglês Tudo está tão diferente Diferente pra chuchu É yes, kiss me okey Até eu só sei dizer I love you Amor, eu vou-me embora Aí vem o teu papai Só te vejo amanhã My darling, bye bye!

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21. NÃO AGUENTO MAIS (Capiba, 1944) Intérprete: Nelson Gonçalves (Frevo-Canção, Victor, 78 rpm disco nº 80.0234-A) Morena que vem de outras terras Porque tu não entra no frevo É bom demais E se tem bate-bate a onda Começa pra frente, pra trás Quando chega meia-noite Não aguento mais! Não aguento mais Frevo assim é bom Mas já é demais Quem quiser que eu fique Nesta confusão Me segure, me segure Senão eu vou ao chão! 22.O FREVO É ASSIM (Nelson Ferreira e Nestor de Holanda, 1945) Intérprete: Carlos Galhardo (Frevo Canção, 78rpm Victor disco nº 80.0353-A) Eu danço tango, danço conga e danço samba Danço boogie-woogie danço até na corda bamba Mas o tal frevo original de Pernambuco Fui tentar dançar e fiquei maluco É uma dança bem quente, oi! que remexe com a gente, oi! E faz a cintura girar Joga as pernas pra frente, oi! Mexe feito serpente, oi! E a cabeça fica fora do lugar Eu danço tango, danço conga e danço samba Danço boogie-woogie danço até na corda bamba Mas o tal frevo original de Pernambuco Fui tentar dançar e fiquei maluco 23. VOU PRA PERNAMBUCO (Nássara/Frazão, 1945) Intérprete: Déo (Frevo, 78rpm Continental disco nº 15.247-A) Eu vou me embora Vou pra Pernambuco Eu fiquei maluco Sem saber porque Não sei se foi Aquele frevo ardente Que me pôs demente

Ou se foi você Eu não aguento morena Tanta ansiedade, morena Ai, ai que tormento Ai, ai que saudade Pra Pernanbuco Tomara eu voltar já Ai, ai, ai Minha saudade morena Ficou lá, ai ! 24. SEGURE NO MEU BRAÇO (Capiba, 1945) Intérprete: Nelson Gonçalves (Frevo-Canção, RCA 78rpm disco nº 800351) Nesse mundo quem não faz o passo Não tem amor nem tem prazer na vida Viver triste assim, pra quê viver Pra quê, querida? Vamos, morena, cantar e dançar O frevo gostoso e ardente Que bole com a alma da gente Para você não sair do compasso Segure meu bem, no meu braço, E vá repetindo o que eu faço Segure meu bem, no meu braço, E vá repetindo o que eu faço 25. QUÉ MATÁ PAPAI, OIÃO? (Nelson Ferreira/ Sebastião Lopes, 1945) Intérprete: Gilberto Alves (Frevo-Canção, Odeon 78rpm disco nº 12538-A, CD Revivendo Nelson Ferreira, CD 6) E foi assim, e foi assim Que preparam a invasão de Berlim Começou na Sicília, a história diz Entraram em Roma e depois Paris Seu Bigodinho, isso é que é façanha! Com mais um salto nós entramos na Alemanha Fazendo meu passo com satisfação E tratando de acabar coma goga do alemão Qué matá papai, oião? 26. QUEBROU-SE A MOLA DO EIXO (Nelson Ferreira e Sebastião Lopes, 1945) SEM GRAVAÇÃO (fonte: OLIVEIRA, W. 1985, p.268) Nações unidas Marquem firme o compasso Que o Hiroito já perdeu o passo É dente ou beiço É língua ou queixo

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Ai, seu Adolfo Quebrou-se a mola do eixo Ai, ai , ai seu Adolfo Quebrou-se a mola do eixo Lá na Europa O bigodinho está sumindo E o Benito de fantoche Está servindo Mas Tio Sam, John Bull E o grande Vargas Aceraram uma escrita Pra acabar de uma vez Com a salsicha do alemão E o arroz do japonês. 27. AI, COMO SUFRO! (Nelson Ferreira, 1949) Intérprete: Marlene (Frevo-Canção, 78rpm Star disco nº 75-A) Depois que eu voltei de Cuba Ai, ai, ai, como sufro! Tenho saudade da rumba Até parece macumba Ai, como sufro! Mas agora que ao meu Brasil eu voltei Bem na hora do frevo gostoso cheguei Remelexo, não quero mais! Muita rumba assim faz mal! Eu quero, quero, quero é Carnaval! 28. SONHEI QUE ESTAVA EM PERNAMBUCO * (Clóvis Mamede, 1949) Intérprete: Clovis Mamede e orquestra, com cantor Roberto Amaral (Frevo-canção, 78rpm Elite Special N-1001-B) Sonhei que estava em Pernambuco Fiquei maluco Quando o frevo passou Mas, quando estava no melhor da festa Ora, esta alguém me despertou Quando acordei, ai, ai Até chorei. ai, ai Tudo mentira, ai, ai O que sonhei Mas agora vou brincar O Frevo eu vou cantar O Frevo eu vou dançar Para me consolar

29. CONHECE O RECIFE ? (GildoMoreno, 1950) Intérprete: Carlos Galhardo (Frevo-Canção, Victor 78rpm no. 80-0608-A) Quem não conhece o Recife Ainda não brincou o carnaval Não sabe o quanto o frevo é bom E o povo como é igual Algum dia você há de ver Se é verdade ou não E se fizer o passo com a turma Verá que eu tenho razão 30. VOCÊ FAZ QUE NÃO SABE (Capiba, 1950) Intérprete: Francisco Carlos (Frevo-canção, RCA Victor 78 rpm, disco n. 800.708) Eu tive na vida tantos amores Que me fizeram sofrer Porém, de todos eu esqueci Só um não posso esquecer Sabe quem é esse amor? É você Eu não devia dizer Você faz que não sabe Para me fazer sofrer 31. É FREVO, MEU BEM! * (Capiba, 1951) Intérprete: Carmélia Alves (Frevo-Canção, 78rpm Continental disco nº 16.322-A) Pernambuco tem uma dança Que nenhuma terra tem Quando a gente entra na dança Não se lembra de ninguém É maracatu? Não, mas podia ser É bumba-meu-boi? Não, mas podia ser Não será o baião? Não, mas podia ser É dança de roda? Quero ver dizer! É uma dança que vai e que vem Que mexe com a gente É frevo, meu bem! 32. FREVO Nº 1 DO RECIFE (Antônio Maria, 1951) Intérprete: Trio de Ouro

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Ô ô ô saudade Saudade tão grande Saudade que eu sinto Do Clube das Pás, do Vassouras Passistas traçando tesouras Nas ruas repletas de lá Batidas de bombos São maracatus retardados Chegando à cidade, cansados, Com seus estandartes no ar. Que adianta se o Recife está longe E a saudade é tão grande Que eu até me embaraço Parece que eu vejo Valfrido Cebola no passo Haroldo Fatias, Colaço Recife está perto de mim. 33. MICRÓBIO DO FREVO * (Genival Macedo, 1954) Intérprete: Jackson do Pandeiro (Frevo-Canção, Copacabana 78rpm disco Nº 5.331-A) Eu só queria que um dia O frevo chegasse a dominar Em todo Brasil O micróbio do frevo é de amargar Quando entra no salão É o que o povo prefere pra dançar E cai na dobradiça Não há quem faça parar Eu queria Que você um dia Fosse a Pernambuco Pra ver Como é feito o passo Ao som de uma orquestra Pra valer Empunhamos um chapéu de sol E botamos uma dona de lado E daí começamos a fazer O passo rasgado

34. FREVO Nº 2 DO RECIFE (Antônio Maria, 1954) Intérprete: Luiz Bandeira (Frevo-canção, Continental 78rpm disco no. 16.881) Ai que saudade tenho do meu Recife Da minha gente que ficou por lá Quando eu pensava, chorava, falava Contava vantagem, marcava viagem Mas não resolvia se ia Vou-me embora

Vou-me embora Vou-me embora Pra lá Mas tem que ser depressa Tem que ser pra já Eu quero sem demora O que ficou por lá Vou ver a Rua Nova, Imperatriz, Imperador Vou ver, se possível Meu amor. 35. PERNAMBUCO, VOCÊ É MEU (Nelson Ferreira e Aldemar Paiva, 1955) Intérprete: Raimundo Santos (Frevo-Canção, Rozemblit/Mocambo 78rpm disco nº 15.207-B) Terra boa, meu Pernambuco Que faz Frevo bom e maracatu, Tem mais Banho em Beberibe, Cachaça gostosa, Mangaba cheirosa, Ai! Ai! Ai! Tudo isso minha terra tem! Tem rede macia Pra gente sonhar, Buchada, peixada, Bate-bate pra enganchar. Tem morena formosa Que seu coração não me deu... Mas por isso, não choro porque, Pernambuco, você é meu! . 36. TÔ SENTINDO UMA COISA (Sebastião Lopes, 1955) Intérprete: Nelson Gonçalves e Orquestra de Zacarias Eu já vou, você quer ir, Vamos pro Frevo, morena Vamos embora Pegue a sua vez Pra mim não tem mais hora To sentindo uma coisa eu vou me acabar Ou virar o copo Pra poder esquentar Mas depois do arrasta pé Quero sombra e água fresca Carinho e cafuné.

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37. É DE FAZER CHORAR (Luiz Badeira, 1957) Intérprete: Carmélia Alves (Frevo-Canção. Copacabana 78rpm disco nº 5699-A) É de fazer chorar Quando o dia amanhece E obriga o frevo a acabar Oh, quarta-feira ingrata Chega tão depressa Só pra contrariar Quem é de fato bom pernambucano Espera um ano e se mete na brincadeira Esquece tudo quando cai no frevo E no melhor da festa vem a quarta-feira 38. VOLTEI, RECIFE (Luiz Bandeira, 1958) Intérprete: Luiz Bandeira (LP Voltei, Recife, Polydisc - disco nº 512.404.117 (s/d) Voltei, Recife Foi a saudade que me trouxe pelo braço Quero ver novamente Vassoura na rua abafando Tomar umas e outras E cair no passo Cadê Toureiros? Cadê Bola de Ouro? As Pás, os Lenhadores E o Bloco Batutas de São José Quero sentir A embriaguez do frevo Que entra na cabeça Depois toma o corpo E acaba no pé 39. FREVO Nº 3 DO RECIFE (Antônio Maria, 1957) Intérprete: Claudionor Germano (Frevo-canção, Rozenblit/ Mocambo 78rpm disco no. 15. 188)

Sou do Recife Com orgulho e com saudade Sou do Recife Com vontade de chorar E o rio passa Levando barcaça Pro alto do mar E em mim não passa Essa vontade de voltar Recife mandou me chamar Capiba e Zumba Esta hora onde é que estão?

Inês e Rosa Em que reinado reinarão? Ascenso me mande um cartão

Rua antiga da Harmonia Da Amizade, da Saudade e da União São lembranças noite e dia Nelson Ferreira toque aquela introdução

40. À PROCURA DE ALGUÉM (Capiba, 1958) Intérprete: Expedito Baracho (Frevo-Canção, RCA Victor 78rpm disco nº 802018)

Eu ando à procura de alguém Que me queira bem Mas que seja meu Somente meu E de mais ninguém Quando isso acontecer Eu nunca mais na vida Hei de sofrer

Eu não quero um amor Desses que vão e vêm Quero um amor de verdade Que me queira também

41. QUAL É O PÓ? (Sebastião Lopes, 1959) Intérprete: Marize Paiva (Frevo-canção, Rozenblit/ Mocambo disco no. 15.265) Qual é o pó? Qual é o pó? É entrar na folia É arranjar um xodó Ai, essa não Não sou de casamento Nem dou meu coração Cachaça eu só tomo na cuia Meu fraco é namorar Aquelas tulhas 42. MENINA DE HOJE * (Manuel Gilberto, 1960) Intérprete: Raimundo Santos (Frevo-canção, Rozenblit/ Mocambo 78rpm disco no. 15.288) Menina de hoje não quer fantasia só vai à escola pra fazer folia a vida pra ela é sempre carnaval e ainda acha que isso é muito natural de calça comprida, cigarro e boné já fez seu programa, vou dizer o que é dar o braço ao seu playboy, entrar no Lunik

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ir lá detrás da lua fazer piquenique

43. ÓIA A VIRADA (Nelson Ferreira, 1960) Intérprete: Claudionor Germano Frevo-Canção, Roznblit/ Mocambo)

Vira, vira, óia virada, ô! Vem cair no passo moreninha do amô. Lá em casa todo mundo Virá pó no carnavá Até mesmo a minha sogra Se esfarinha de pulá (...olha a curva...) Vira, vira... Carnavá só tem três dia Valha-me São Sarvadô carnaval nasceu no céu Foi os anjos que inventou (...tira o cisco do olho, morena...) Vira, vira... Não respeito nem o chão Quando chega o carnavá Saio de casa no domingo Só nas cinzas vou vortá... 44. ADEUS, EMÍLIA (Sebastião Lopes, 1960) Adeus, adeus Emília, O JK me mandou para Brasília. Brasília não tem carnaval Nem é Cidade Maravilhosa, Não tem praia de Copacabana Com a garota tão bacana Não tem o Cristo Redentor A Guanabara com seu esplendor Não tem o Colosso do Maracanã Mas será o Brasil de amanhã 45. PALÁCIO DA ALVORADA * (Sebastião Lopes, 1961) Intérprete: Edilásio Lopes (Frevo-canção, Rozenblit/ Mocambo disco no. 15.251 Ai, ai, meu JK Brasília é o futuro E eu preciso ir pra lá Eu sou o José O irmão da Emília E Quero trabalhar lá em Brasília, No Palácio da Alvorada Todo cheio de esplendor Brasília é um sonho encantador. Parabéns meu presidente Do José e da Emília Vamos já, já para Brasília

46. AMOR DE HOJE (Carnera, 1962) Intérprete: Mêves Gama (Frevo Canção, Mocambo 78 rpm disco nº 15.388-A Amor de hoje, Amor espacial... Passa veloz como um foguete, É amor de carnaval... Primeiro dia, Aperto de mão... Segundo dia, Abraço apertado Terceiro dia Um beijo no escuro... Quarta-feira Tudo terminado... (Ta, como é que é!) 47. A LUA DISSE (Gildo Branco, 1962) Intérprete: Evaldo França (Frevo-canção, Rozenblit/Mocambo 78 rpm disco no. 15.391) Gagarin subiu, subiu, subiu Foi até ao espaço sideral Chegou perto da lua e sorriu Vou embora pro Brasil Que o negócio é carnaval A lua disse ‘não vá, demore mais Já ouvi que lá na Terra querem me passar pra trás’ Mas o Gagá nada ligou e deu no pé Vou mesmo pro Brasil Eu quero é conhecer Pelé

48. A TURMA DA PEDRA LASCADA (Capiba, 1963) Intérprete: Ângela Maria (Frevo Canção, RCA LP Zaccarias e Sua Orquestra Frevos) No carnaval é tudo alegria Na pracinha e na rua ou no clube elegante Todos dançam, todos cantam Para bossa nova transviado ou não Dançar twist é uma devoção Mas quem é da turma da pedra lascada Não resiste a vassourinhas não E cai de corpo e alma no salão Pula, pula, pula Dança dança dança Até quando o sol desponta

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49. GAROTA VEDETE (Carnera, 1964) Intérprete: Expedito Baracho (Frevo Canção, Mocambo 78rpm disco nº 15.535-A) Você é Garota Vedete Tem um corpo de abafar! Quero ver você brilhando Na passarela, Você nasceu pra desfilar! (e rebolar!) Você sai no Cruzeiro e na Manchete, Seja Miss, Manequim ou Vedete... Muita classe, pouca roupa E todo mundo com água na boca! (OBA!) 50. MARIA TEREZA (Bráulio de Castro, 1964) Intérprete: Milton Arruda (Frevo-Canção, RCA, compacto disco nº VCS 003) Maria Tereza Vai ser uma beleza Não bote o seu biquíni Já achei a solução Vou sair de Adão E você de monoquíni De monoquíni, ai que beleza De monoquíni vai ser legal Quero ver a Maria Tereza Abafando neste carnaval 51. FREV-IÊ-IÊ (Nelson Ferreira, 1966) Intérprete: Claudionor Germano (Frevo, RCA Victor, disco LC-6279-A, CD Revivendo Nelson Ferreira CD5) Iê, iê, iê, iê moçada! Iê, iê, iê e frevo pra você, que tal? Com os braços pra lá e pra cá Com a cabeça faz que vai faz que vem Com as palmas assim, assim O iê, iê, iê vai indo muito bem Mas agora prepara o corpo todo Que do frevo está chegando a hora Iê, iê, iê azeite nas canelas Porque o frevo também é brasa viva Para!

52. A PALAVRA É... (Nelson Ferreira, 1967) Intérprete: Otávio Santiago (Frevo Canção, Rozemblit compacto) A palavra é... FREVO E a turma foi ligeiro no botão! Todo mundo quis mostrar Que sabia frevar Fechou-se o tempo Deu a louca no salão Frevo... “Passo”... Bloco... Momo... Riso... Alegria... No delírio da folia São palavras fáceis Pra se improvisar... Portanto seu Blota Vencemos de barbada... Se a palavra é FREVO Vamos “se esbaldar!” 53. NOVAMENTE (Luiz Bandeira, 1967) Intérprete: Dóris Sandra (Frevo-Canção, Polydisc LP Voltei Recife disco nº 512.404.117, coletânea lançada em 1985) Meu Recife, Voltei novamente Alegre e contente Revendo o meu povo de novo, Andei maluco batendo cabeça Pelo mundo afora Até parece mentira O que ouço agora, Pelo som só pode ser Vassoura Que vem rasgando um frevo Fazendo a gente vibrar Com licença vou fazer meu passo Estou meio fora de forma Vocês vão me desculpar... Vou fazer serenata em Casa Amarela Quero ver chegar à janela Uma bela morena de lá Vou lembrar ao Capiba, Carnera e Nelson Ferreira Que o frevo é nossa bandeira Não vamos deixar ninguém rasgar...

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54. VÃO ME LEVANDO (Genival Macedo e Dozinho, 1969) Intérprete: Marlene (Frevo-Canção, CID, LP Carnaval dos 7 Grandes) Eu não vou, vão me levando Vão me empurrando Desse jeito eu tenho que ir Se bato em um, se piso em outro Vocês vão me desculpando Eu não vou, vão me levando Não posso nem fugir Não posso nem parar Com tanta gente me empurrando Pra dançar Estou cansado Estou bambeando Eu não vou, vão me levando 55. FREVO, ALEGRIA DA GENTE (Capiba)_1969 Intérprete: Claudionor Germano (Frevo-Canção, Rozenblit/ Passarela – LP Carnaval de Capiba III- Frevo, Alegria da Gente, disco nº 60.060) O carnaval aparece Da dor a gente se esquece A cidade fica a vibrar Todo mundo quer ver Vassourinhas passar Lá vem Toureiros trazendo Na frente o seu estandarte No meio da multidão Eu não sei se sou Pedro, Joaquim ou João Vejo passista passando Na minha mente, no olhar Eu carrego flores nas mãos Procurando a quem ofertar É para Maria? Mariazinha de quê? Se eu não tenho Maria E nem tenho você! Rouco de tanto gritar Eu não posso mais nem falar Caminhar eu já não me atrevo Depois de três dias no passo, no frevo Quando a manhã já vem vindo Os cordões pra longe partindo Eu vou deixando a cidade Trazendo comigo somente a saudade

56. HINO DE CEROULA (Milton Bezerra de Alencar, 1969) Intérprete: Coral e Orquestra Maestro Duda Frevo-Canção LP Olinda Carnaval Mocambo Rozemblit disco nº 20.000 Eu vou este ano à lua Não é privilégio Foguete já tem Eu quero ver se o carnaval de rua Collin, Aldrin, Armstrong Falam que vai bem Eu quero ver se tem troça que escolha Como em Olinda, que tem a Ceroula Mas se tiver, para mim é legal Passarei lá na lua todo o carnaval 57. 5 – 4 – 3 – 2 – 1 – FREVO (Capiba, 1970) Intérprete: Claudionor Germano (Frevo-Canção, Rozenblit/ Passarela – LP Carnaval de Capiba III- Frevo, Alegria da Gente, disco nº 60.060) Estão me convidando Para eu ir dançar Numa festa ao luar Eu sei que nessa festa não se dança o frevo O que vou fazer lá? Sair daqui não posso Isso eu nem me atrevo Vai começar A contagem regressiva Para entrar o frevo 5 – 4 – 3 – 2 – 1 – Frevo!

58. VOCÊ ESTÁ CHORANDO (Capiba, 1971) Intérprete: Claudionor Germano (Frevo Canção, Passarela, LP Capiba III, Frevo Alegria da Gente, disco nº 60060) Você parece que está amando Você está chorando Deixe esse choro para depois Venha cá dançar o frevo E esqueça por um momento A tristeza E quem fez você chorar tanto Enxugue logo esse pranto De amor se chora, eu bem sei Eu também um dia chorei.

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59. JUVENTUDE DOURADA (Capiba)_1976 Intérprete: Claudionor Germano (Frevo-Canção, Eu quero ver este ano A juventude dourada Na rua que é do povo Camisa aberta no peito Fazendo o que seus avós Fizeram em tempos passados Ao som de um frevo bem quente O passo sem preconceito Estou aqui para ver A juventude dourada Nessa alegria de novo Entrando na madrugada 60. SELO DO FREVO * (Nelson Ferreira)_1976 Intérprete: Claudionor Germano (Frevo-Canção, Rozenblit, Mocambo LP 60.075) Ilustríssimo senhor Fulano de Tal Residência mundo inteiro Onde exista Carnaval Nestas mal traçadas linhas Desculpe-as por favor Receba o convite Que lhe faço com ardor Venha ver o Carnaval Brasileiro Especialmente o de Pernambuco Sim, senhor! Pernambuco do frevo sensacional Dança de valor No mundo sem igual Venha, você vai gostar De na rua com o povo engrenar E ao som de um frevo danado Mergulhar na onda do passo Sem mais para sua resposta Com um forte abraço Segue um selo do frevo Meu endereço, com todo apreço Nelson Ferreira, Capital do Frevo 61. MULATA IMITADA (J. Raul Valença/ Manoel Valença, 1979) Intérprete: Cezar Bismarck

(Frevo-Canção, Rozenblit/ Passarela LP Capital do Frevo 79, disco nº 60.117) Mulata malvada Mulata danada Criada no norte E no sul imitada Mulata te encheram de fama e trama Pois quem primeiro te viu partiu Partiu alucinado, enfeitiçado por ti Mulata igual nunca vi Mulata malvada Mulata danada Criada no norte E no sul imitada Mulata és carnavalença, Valença Grandeza nacional, sem igual Levada ao tribunal E o mundo inteiro cantou Rainha do carnaval Mulata malvada... 62. TROMBONE DE PRATA (Capiba) 1979 Intérprete: Expedito Baracho (Frevo-Canção, Rozenblit LP Capital do Frevo 79 nº 60.117) Ouvi dizer que o mundo vai-se acabar Que tudo vai pra cucuia Que o sol não mais brilhará Mas se deixarem um bombo e uma mulata E um trombone de prata O frevo bom viverá Pode acabar o petróleo Pode acabar a vergonha Pode acabar tudo enfim Mas deixem o frevo pra mim 63. FREVOTHEQUE * (Inaldo Vilarim / Duda)_1979 Intérprete: Ray Miranda (Frevo-canção, Rozenblit/Passarela, LP Capital do Frevo 79, disco nº 60.117 Vou tomar o meu pileque Eu não quero discotheque O meu caso é carnaval E vou dar um ade moleque Vou fazer o passo E mostrar que sou o tal E nesse frevo pulo, bebo,

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E com prazer Estou nessa com você 64. HINO DO ELEFANTE (Clídio Nigro e Clóvis Vieira, 1980) Intérprete: Coral Mocambo (Frevo-Canção, Rozenblit/ Mocambo, disco nº 20.000 Ao som dos clarins de Momo O povo aclama com todo ardor O Elefante exaltando a sua tradição E também seu esplendor Olinda, esse meu canto Foi inspirado em seu louvor Entre confetes e serpentinas Venho lhe oferecer Com alegria, o meu amor Olinda, quero cantar A ti esta canção Teus coqueirais, o teu sol, o teu mar Faz vibrar meu coração de amor a sonhar Minha Olinda sem igual Salve o teu carnaval!

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6.2. Fontes discográficas / CD-ROM

A. Long-Plays 1. CAPIBA 25 ANOS DE FREVO (Rozenblit) – Rozenblit disco nº. 40039 (1959) 2. O QUE EU FIZ...E VOCÊ GOSTOU (Nelson Ferreira) – Rozenblit disco

nº40040 – (1959) 3. NA TRANSA DO FREVO (Rozenblit) – Nº 60.039 (1973) 4. CARNAVAL RECIFE 1975 (Rozenblit) – disco n. 60.072 (1974) 5. BAILE DA SAUDADE – Orquestra de José Menezes e Coral Bandeirantes

disco nº BR 73.000 (1980) 6. CARNAVAL DE CAPIBA III – Frevo, Alegria da Gente 1934/1974 (Rozenblit)

disco nº 60.060 – (1974) 7. CARNAVAL PERNAMBUCANO (Rozenblit) (1974) 8. EVOLUÇÃO DO FREVO – Nunes e Orquestra (Rozenblit) (1978) 9. CARNAVAL RECIFE 1978 – (Cactus) – nº CPDF 006 1978 10. CARNAVAL COMEÇA COM C DE CAPIBA – Rozenblit – nº 60.106 – (197)8 11. VIVA O FREVO (Rozenblit) nº 60.020 - 1979 12. BRASIL – CARNAVAL DO NORDESTE (Rozenblit) nº 90.018 1979 13. NELSON FERREIRA – 50 ANOS EM 7 NOTAS – MEIO SÉCULO DE

FREVO-CANÇÃO (Rozenblit) nº 60.042 – (1980) 14. CAPITAL DO FREVO 79 (Rozenblit) 1979 15. OLINDA CARNAVAL (Rozenblit) disco Nº 20.000 – (1980) 16. II FREVANÇA – RGE – disco nº 306.3134 – (1980) 17. CAPITAL DO FREVO (Rozenblit) disco nº 20.017 18. CLAUDIONOR GERMANO O BOM DO CARNAVAL – RCA – nº 1070317 –

(1980) 19. CAPITAL DO FREVO 83 – Duda e Orquestra – (Rozenblit (1982) 20. CARNAVAL DO NORDESTE N. 2 (Mocambo) – nº 20.021 – (1982) 21. 22. CLAUDIONOR GERMANO O BOM DO CARNAVAL – Polydisc – nº 304058

(1985) 23. VOLTEI RECIFE Luiz Bandeira (Polydisc) disco nº 512.404.117 (s/d) 24. EVOÉ – Guedes Peixoto e Orquestra (Rozenblit) – nº 20.009 – (1981) 25. EVOÉ VOL. 2 (Rozenblit) (1982) 26. OLINDA CARNAVAL (Rozenblit) (1982)

B. Compact Disc (CD) 1. O BOM SEBASTIÃO – Coletânea de Canções de Sebastião Lopes

(independente), 2007 2. TRIBUTO A GENIVAL MACEDO – (Via Som), 2009 3. CENTENÁRIO DO FREVO – FESTA NA MPB (Cepe), 2007

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4. HISTÓRIA DO CARNAVAL – FREVO CANÇÃO – 20 SUPERSUCESSOS (Polydisc) 1996

5. RECIFE MANHÃ DE SOL – 20 SUPERSUCESSOS (Polydisc) s/d 6. PARANAMBUCO – CLAUDIONOR GERMANO FREVO-CANÇÃO

(Sonopress) s/d 7. CARNAVAL DE CAPIBA (Inter Records CD) s/d 8. MÚSICA POPULAR DO NORDESTE VOL.1 (Marcus Pereira) s/d 9. HISTÓRIA DO CARNAVAL – NELSON FERREIRA – 20

SUPERSUCESSOS (Polydisc) s/d 10. COLEÇÃO O TEMA É FREVO – 10 VOLUMES (Cemcape) – 2007 11. COLEÇÃO CARNAVAL, SUA HISTÓRIA SUA GLÓRIA – NELSON

FERREIRA – 6 volumes (Revivendo) 2002 12. DALVA TORRES CANTA ANTONIO MARIA (Sonopress) 2007 13. GALO DA MADRUGADA O MAIOR BLOCO DOMUNDO (Seleto) 1995 14. FREVO DO MUNDO (Candeeiro Records) 2007 15. 100 ANOS DE FREVO – É DE PERDER O SAPATO (Biscoito Fino) 2007 16. HISTÓRIA DO CARNAVAL CAPIBA - Polydisc, 1998 17. O POETA DO FREVO CAPIBA 100 ANOS VOL.33 – CD 1 – Revivendo,

2004 18. O POETA DO FREVO CAPIBA 100 ANOS VOL.34 – CD 2 – Revivendo,

2004 19. CLAUDIONOR GERMANO –FREVO CANÇÃO PARANAMBUCO ,

Funcultura S/D 20. O BOM SEBASTIÃO – produção independente, 2007 21. CARNAVAL DE CAPIBA – Claudionor Germano – Inter recordes CD, S/D 22. MÚSICA POPULAR DO NORDESTE 1- Discos Marcus Pereira S/D 23. CARNAVAL NÃO É BRINCADEIRA 1-Discos Marcus Pereira S/D 24. EVOCANDO NELSON FERREIRA – Prefeitura do Recife, 2000 25. AO AMOR, ONDE O AMOR FOI DEMAIS – Prefeitura do Recife, 2007 26. RECIFE FREVOÉ – Prefeitura do Recife, 1996 27. NELSON FERREIRA CARNAVAL SUA HISTÓRIA,SUA GLÓRIA-

VOL.24– CD 2 REVIVENDO, 2002 28. NELSON FERREIRA CARNAVAL SUA HISTÓRIA,SUA GLÓRIA-

VOL.25– CD 3-REVIVENDO, 2002 29. NELSON FERREIRA CARNAVAL SUA HISTÓRIA,SUA GLÓRIA-

VOL.26–CD 4-REVIVENDO, 2002 30. NELSON FERREIRA CARNAVAL SUA HISTÓRIA,SUA GLÓRIA-

VOL.27–CD 5-REVIVENDO, 2002 31. GRANDES CARNAVAIS – POLYDISC, S/D 32. ANTONIO NÓBREGA NA PANCADA DO GANZÁ- Brincante, 1996 33. ANTONIO NÓBREGA NOVE DE FREVEREIRO- Brincate, 2004 34. RECIFE MANHÃ DE SOL – polydisc, S/D 35. 20 SUPER SUCESSOS CLAUDIONOR GERMANO VOL 2 – POLYDISC,

S/D

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C. CD/ROM - SALVAGUARA DO FREVO – Acervo de Partituras. Prefeitura do Recife (s/d) - HISTÓRIA DO CARNAVAL – Arquivo Público Estadual Séculos XIX / XX (2004)

6.3 ARQUIVOS DE ÁUDIO

Relação das músicas constantes do CD anexo para audição

1. O FREVO É ASSIM (Nelson Ferreira e Nestor de Holanda, 1945) Intérprete: Carlos Galhardo (Frevo Canção, 78rpm Victor disco nº 80.0353-A) 2. MENINA DE HOJE (Manuel Gilberto, 1960) Intérprete: Raimundo Santos (Frevo-canção, Rozenblit/ Mocambo 78rpm disco no. 15.288

3. BYE, BYE MY BABY (Nelson Ferreira, 1944) Intérpretes: As Frenéticas (Frevo-Canção, CD Asas daAmérica vol.2)

4. SELO DO FREVO (Nelson Ferreira)_1976 Intérprete: Claudionor Germano (Frevo-Canção, Rozenblit, Mocambo LP 60.075)

5. FREVOTHEQUE (Inaldo Vilarim / Duda)_1979 Intérprete: Ray Miranda (Frevo-canção, Rozenblit/Passarela, LP Capital do Frevo 79, disco nº 60.117

6. É FREVO, MEU BEM! (Capiba, 1951) Intérprete: Carmélia Alves (Frevo-Canção, 78rpm Continental disco nº 16.322-A)

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7. SONHEI QUE ESTAVA EM PERNAMBUCO (Clóvis Mamede, 1949) Intérprete: Lenine (Frevo-canção, CD RECIFE FREVOÉ – Prefeitura do Recife, 1996)

8. FREVO PERNAMBUCANO (Luperce Miranda e Osvaldo Santiago, 1931) Intérprete: Francisco Alves (Marcha, 78 rpm Odeon disco n. 10757-A

9. O PASSO DO CAROÁ (Nelson Ferreira e Sebastião Lopes, 1941) Intérprete: Joel e Gaúcho (Frevo, Odeon 78rpm disco nº12.100-B)

10. TEUS OLHOS (Capiba, 1943) Intérprete: Carlos Galhardo (Frevo-Canção, Victor 78 rpm disco nº 80.0056-B)

11. MICRÓBIO DO FREVO (Genival Macedo, 1954) Intérprete: Coral Feminino (Frevo-Canção, CD TRIBUTO A GENIVAL MACEDO – (Via Som), 2009)

12. PALÁCIO DA ALVORADA (Sebastião Lopes, 1961) Intérprete: Edilásio Lopes (Frevo-canção, Rozenblit/ Mocambo disco no. 15.251