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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS

Programa de Pós-Graduação em Educação

Faculdade de Educação

Tese de Doutorado

ESCRITURAS DO CORPO BIOGRÁFICO E SUAS

CONTRIBUIÇÕES PARA A EDUCAÇÃO: UM ESTUDO A

PARTIR DO IMAGINÁRIO E DA MEMÓRIA

Andrisa Kemel Zanella

Pelotas, 2013

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ANDRISA KEMEL ZANELLA

ESCRITURAS DO CORPO BIOGRÁFICO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A

EDUCAÇÃO: UM ESTUDO A PARTIR DO IMAGINÁRIO E DA MEMÓRIA

Tese de doutorado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Educação da Universidade Federal de

Pelotas, como requisito parcial à obtenção

do título de Doutor em Educação.

Orientador: Profª. Drª. Lúcia Maria Vaz Peres

Pelotas, 2013

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Banca examinadora:

___________________________________________________________

Profª. Drª. Lúcia Maria Vaz Peres (Orientadora)

___________________________________________________________

Profª. Drª. Margaréte May Berkenbrock Rosito (UNICID/SP)

___________________________________________________________

Profª. Dr. Valeska Maria Fortes de Oliveira (UFSM/RS)

___________________________________________________________

Profª. Drª. Magda Floriana Damiani (UFPEL/RS)

___________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Denise Marcos Bussoletti (UFPEL/RS)

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho...

... Aos meus amados pais, Irineo e Marta, os meus primeiros

professores e grandes incentivadores. Com coragem, trabalho e

muita dedicação eles me ensinaram os valores essenciais da vida e,

principalmente, a lutar pelos meus sonhos. Sempre presentes,

acompanharam cada passo dado ao longo deste processo. Mesmo

sabendo a dor da distância e da saudade, apoiaram-me quando

decidi sair de nossa cidade para fazer o doutorado. E, assim, eles

contribuíram para eu descobrir tantos “outros mundos”.

... Aos meus queridos irmãos, Ângela e Andrigo, meus grandes

companheiros. Dois anjos que vi crescer e que sempre estiveram do

meu lado, apoiando minhas escolhas e vibrando com minhas

conquistas. Duas pessoas incríveis que muito têm me ensinado ao

longo desta vida.

... À minha admirável e querida orientadora, Lúcia Peres, grande

mestre da vida e da Academia, que abriu as portas para que eu

pudesse exercitar uma forma mais livre e menos temerosa de me

colocar diante do mundo. Com sua alma transparente e energia

contagiante, esteve de mãos dadas comigo nesta caminhada,

apostando em meu potencial e, principalmente, desafiando-me a

outros voos. Por tudo isto, este trabalho não é somente meu, mas é

nosso!

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AGRADECIMENTO

Agradeço...

- Às quatro acadêmicas do Curso de Pedagogia – as protagonistas deste trabalho – pela generosidade, ao abrirem mão do seu tempo livre, para contribuírem com esta pesquisa. Pela alegria, dedicação e disponibilidade com que participaram dos encontros... Por apostarem em meu trabalho e com isto potencializarem este estudo. E as demais estudantes que em algum momento fizeram-se presentes nos encontros, mas não puderam colaborar até o final.

- Ao Prof.º PhD. Danis Bois, professor catedrático da Universidade Fernando Pessoa-Porto/Portugal, que com disponibilidade me recebeu como co-orientador do estágio doutoral. Agradeço por todo o seu esforço para eu ser bem acolhida, pelo trabalho que realizamos juntos e pela sua generosidade em compartilhar comigo suas experiências.

- Às queridas professoras que compõem a banca examinadora desta Tese: Margaréte May

Berkenbrock Rosito, Magda Floriana Damiani, Denise Marcos Bussoletti, e também à professora Eliane Teresinha Peres (que participou na defesa do projeto de qualificação). Pela leitura cuidadosa e pelas valiosas contribuições para o aprimoramento desta pesquisa. Ao aceitarem o convite para compor a banca examinadora apostaram na temática, reforçando, assim, o investimento nesta pesquisa. - À Valeska Maria Fortes de Oliveira (também componente da banca examinadora) e minha querida orientadora do mestrado. Uma pessoa fantástica e grande incentivadora que tem contribuído muito em minha caminhada. - Ao Zé Antônio Leivas, uma pessoa muito importante que colaborou para, na evocação de minhas experiências vividas, pensar sobre os processos pelos quais eu me tornei e venho me tornando no decorrer de meu trajeto formativo.

- A CAPES – duplamente – pela bolsa durante o Doutorado e pela possibilidade de, também com bolsa, realizar o estágio doutoral em Portugal; - À Universidade Federal de Pelotas, especialmente à Faculdade de Educação, através do Programa de Pós-Graduação em Educação que abriu as portas para eu desenvolver esta Tese; - Aos coordenadores do PPGE que sempre estiveram presentes, e, principalmente, incentivaram a realização do estágio doutoral, dando-me total apoio e ajuda no que precisei. - Às funcionárias do PPGE por sempre atenderem e providenciarem minhas solicitações, bem como à Comissão de Bolsas pelo acompanhamento neste período. - Aos queridos professores do PPGE, grandes mestres que muito contribuíram em minha caminhada, compartilhando experiências e tantos saberes. - Aos colegas de turma do doutorado pelos momentos de estudos, de encontros... de companheirismo. - Aos demais colegas... E, em especial, àqueles que estiveram comigo na representação discente, somando esforços para uma maior aproximação entre os alunos e o Programa de Pós-Graduação;

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- Ao Curso de Licenciatura em Teatro por ceder o espaço para a realização dos encontros da pesquisa. Em especial ao Prof.º Dr.º Adriano Moraes de Oliveira por viabilizar o acesso. - Ao querido GEPIEM/UFPEL, meu atual Grupo de Pesquisa. Lugar de muitas partilhas, estudos, aprendizagens, confraternizações, de processo autoformativo. Um Grupo que me incentivou a experimentar caminhos até então desconhecidos. Obrigada pela parceria, pelo carinho, pela ajuda nos momentos de dificuldade, pelos momentos de alegria e pelas contribuições a esta Tese. - Ao querido GEPEIS/UFSM, meu primeiro Grupo de Pesquisa. Lá muito aprendi e continuo aprendendo. Cada encontro revela-se uma oportunidade de estarmos juntos e compartilharmos novas experiências. Grupo que ocupa um lugar especial em minha trajetória pessoal e profissional. - À Samara Peres de Oliveira, ao Seu Nei Peres que, juntamente com a Lúcia, acolheram-me como parte de sua família, deixando meus dias mais alegres e os finais de semana menos solitários. Muito obrigada pelo carinho e por me proporcionarem tantos momentos inesquecíveis. Vocês estarão sempre em meu coração! -À Flávia Mancini, colega, amiga, companheira, que muito contribuiu a esta pesquisa e me ensinou com sua experiência, disciplina e alegria. Tantas foram as conversas... como tínhamos assuntos! Seja na Faculdade ou fora dela, aproveitamos cada minuto que a vida tinha a nos oferecer. - À Neridiana Stivanin e Cátia Vighi, colegas, mas acima de tudo duas grandes amigas. Juntas, compartilhamos nossas pesquisas, aventuramo-nos pelos eventos da vida... VIVEMOS intensamente este período doutoral. - Ao Irapuã Martins e ao Alexandre Assunção, colegas de Grupo de Pesquisa, mas também amigos, que estiveram presentes e muito me ajudaram ao longo desta caminhada. - Aos amigos de cá... Pelos muitos momentos em que convivemos juntos, pelos encontros, pelos telefonemas, pelas conversas on-line, pelos afetos partilhados. Por estarem presentes nesta trajetória e fazerem parte da minha vida. Em especial... Annanda Jablonski, Fabiane

Tejada, Jessié Gutierres, Mônica Zavacki, Regina Pellenz Irgang, Ricardo Rodrigues, Roselusia Morais. - Aos amigos de lá... Por terem me acolhido de uma maneira tão carinhosa e generosa. Alguns abriram suas casas para me receber, outros deram total auxílio em meus estudos, já houve aqueles que foram parceiros nas minhas descobertas culturais e geográficas. Cada momento de ontem constitui uma preciosa memória no dia de hoje. Em especial... Anna

Rosenberg, Hélène Bourhis, Jaime Lourenço, Catarina Santos, Maria Júlia Granato, Adriano Zanin, Elizabeth, Bernadete Corseuil, Halia Pereira, Marina Pelle, Paul Michalet, Andrea Tonini. - E a todos aqueles que de uma forma ou de outra contribuíram para a realização deste trabalho.

Muito obrigada!

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RESUMO

ZANELLA, Andrisa Kemel. Escrituras do Corpo Biográfico e suas contribuições para a Educação: um estudo a partir do Imaginário e da Memória. 2013. 218f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS.

Este trabalho inscreve-se na linha de pesquisa Cultura Escrita, Linguagens e Aprendizagem; teve por objetivo realizar um estudo sobre as memórias do trajeto formativo inscritas no corpo de acadêmicas do Curso de Pedagogia. O foco foi direcionado à interpretação do gesto como tradução do imaginário nas escrituras do Corpo Biográfico. O campo teórico está ancorado nos estudos do Imaginário e do Corpo Biográfico, tendo como principais autores-guia, Gilbert Durand e Gaston Bachelard, Danis Bois e Marie-Christine Josso, no que concerne ao Imaginário e ao Corpo Biográfico, respectivamente. A Tese que emergiu é de que a memória do corpo faz parte do trajeto formativo de cada pessoa, cujas experiências significativas ficam registradas como uma escritura. A partir dos estudos do Imaginário, tais experiências compõem o reservatório imaginário do sujeito, neste caso visibilizado

através dos gestos das estudantes. A questão que embasou a pesquisa foi a

seguinte: a visibilização da memória inscrita no corpo poderia auxiliar a pensar o projeto de (auto)formação? Para responder tal questão, contei com a participação de quatro acadêmicas do Curso de Pedagogia, que através de seis encontros focados exercitaram a biografização corporal pela improvisação teatral. Os encontros foram registrados em vídeo e também no Diário da Experiência (caderno de registro das

repercussões do trabalho corporal). Portanto, nesta Tese, buscou-se evidenciar o

corpo como um saber silenciado, porém relevante para pensar e projetar a Educação de modo singular-plural. Finalmente, o processo de análise desta pesquisa seguiu três passos: 1) análise descritiva e hermenêutica dos registros de vídeo; 2) análise do diário da experiência das quatro estudantes em três etapas: classificatória, fenomenológica e hermenêutica; 3) convergência dos achados da

pesquisa em núcleos simbólicos para chegar aos mitemas. A saber: A infância presente no Corpo-terno; O desejo do voo no Corpo-cativo; Um Ser de carne que pensa, outro que age no Corpo-fracionado; A busca pela liberdade

desejada no Corpo-comedido. A partir destes mitemas, ficou evidenciado que o

corpo é uma escritura viva das experiências que foram significativas na vida do ser humano e ficaram inscritas em sua anatomia, repercutindo em sua dimensão física, cognitiva, afetiva e psíquica, compondo a dimensão biográfica do corpo. Portanto, a visibilização dessas memórias revelou algumas das experiências que foram significativas na vida das acadêmicas, principalmente no período da infância, levando-me a perceber como estas memórias, reverberadas, constituem o seu repertório gestual compondo as escrituras do Corpo Biográfico.

Palavras-chave: imaginário; corpo biográfico; formação; memória; educação.

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ABSTRACT

ZANELLA, Andrisa Kemel. Writings of the Biographical Body and their Contributions to Education: a study based on Imaginary and Memory. 2013.

218p. Doctoral Dissertation – Post-graduation Program in Education. Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brazil.

This thesis, which belongs to the line of research named Written Culture, Languages and Learning, aimed at describing a study of memories that were inscribed in Pedagogy students‟ bodies during their education process. The focus was the interpretation of gestures as a translation of the imaginary in the writings of the Biographical Body. The research was supported by studies of the Imaginary, whose main theoreticians are Gilbert Durand and Gaston Bachelard, and of the Biographical Body, based on Danis Bois and Marie-Christine Josso. The thesis that has emerged from it says that the memory of the body is part of everybody‟s developmental process. i. e., every meaningful experience is recorded and can be written down. Based on studies of the Imaginary, such experiences comprise a subject‟s imaginary reservoir which was, in this case, visualized by the students‟ gestures. The following question was the starting point of the research: could the visualization of the memory inscribed in the body help to think about somebody‟s (self)development project? In order to answer this question, four Pedagogy students participated in six meetings whose focus was the exercise of body biographyzation through theatrical improvisation. These meetings were video-recorded and reported in the Diary of Experience (a notebook in which the repercussion of the body work was recorded). Therefore, this thesis aimed at showing that the body has silent knowledge which is relevant to think about and plan Education in a singular-plural way. Finally, the analysis process followed three steps: 1) the descriptive and hermeneutic analysis of video records; 2) the analysis of four Diaries of Experiences written by four Pedagogy students in the classificatory, phenomenological and hermeneutic steps; and 3) the convergence of the research findings in symbolic kernels in order to get to the mythemes, which were: Childhood in the Suit-body; The wish to fly in the Captive-body; A being made of flesh that thinks while the other one acts in the Fractioned-body; and The search for freedom in the Moderate-body. Based on these mythemes, there is evidence that the body is a live writing of the experiences that were meaningful in a human being‟s life and were inscribed in his/her anatomy, with consequences to his/her physical, cognitive, affective and psychic dimensions to compose the body‟s biographical dimension. Therefore, the visualization of these memories has revealed some of the experiences that were meaningful in the students‟ lives, mainly in childhood, a fact that made me perceive how these reverberated memories constitute one‟s gestures to compose the writings of the Biographical Body. Key words: imaginary; biographical body; teacher education; memory; Education

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – Esquema Paradigma Sensível............................................................51

FIGURA 2 – Figura pontos de convergência entre Imaginário e Corpo

Biográfico..................................................................................................................55

FIGURA 3 – Diagrama processo de análise...........................................................88

FIGURA 4 – Figura mitema estudante L.................................................................90

FIGURA 5 – Figura mitema estudante Cm. ...........................................................96

FIGURA 6 – Figura mitema estudante M. ............................................................101

FIGURA 7 – Figura mitema estudante C. .............................................................106

FIGURA 8 – Imagens Diários da Experiência.......................................................204

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .................................................................................................... 15

1 PREGNÂNCIAS DO MEU TRAJETO DE FORMAÇÃO RUMO À PESQUISA ..... 19

1.1Movimentos a partir da qualificação................................................................. 25

2 CENÁRIO METODOLÓGICO ................................................................................ 29

2.1 As protagonistas ............................................................................................... 35

3 CONCEITOS MOTORES ....................................................................................... 39

3.1 O Imaginário: o grande denominador de todas as criações humanas ......... 39

3.2 O corpo tem memória! ...................................................................................... 44

3.3 Da fenomenologia do sensível ao processo de biografização corporal pela

improvisação teatral: inspirações à pesquisa ...................................................... 48

4 AS CONVERGÊNCIAS ENTRE IMAGINÁRIO E CORPO BIOGRÁFICO ............ 52

5 A PESQUISA COMO ATO DE AVENTURAR-SE NO DESCONHECIDO ............ 63

5.1 Experimentos corporais ................................................................................... 65

5.1.1 O que o corpo fala? .......................................................................................... 66

5.1.2 O corpo na narração de si ................................................................................ 69

5.1.3 Dos experimentos aos indícios ......................................................................... 72

5.2 Inspirações Metodológicas para esta pesquisa ............................................. 73

5.2.1 Como a pesquisa foi realizada? ....................................................................... 74

5.2.2 A biografização corporal pela improvisação teatral .......................................... 76

5.3 Análise ................................................................................................................ 83

6 AS ESCRITURAS DO CORPO BIOGRÁFICO .................................................... 89

6.1 Estudante L. ....................................................................................................... 90

6.2 Estudante Cm. ................................................................................................... 96

6.3 Estudante M. .................................................................................................... 101

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6.4. Estudante C. ................................................................................................... 106

7 O PROCESSO DE ANÁLISE PASSO A PASSO ................................................ 112

7.1 Análise dos registros de vídeo....................................................................... 112

7.2 Intepretação do gestos ................................................................................... 140

7.3 Diário da Experiência: análise classificatória ............................................... 140

7.4 Diário da Experiência: análise a partir da perspectiva fenomenológica .... 149

7.5 Diário da Experiência: interpretação do Corpo Biográfico a partir de uma

perspectiva hermenêutica .................................................................................... 157

7.6 As pregnâncias ................................................................................................ 163

PRIMEIRAS CONCLUSÕES SOBRE AS ESCRITURAS DO CORPO BIOGRÁFICO

E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A EDUCAÇÃO... ............................................. 174

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 182

APÊNDICES ........................................................................................................... 189

ANEXOS ................................................................................................................. 203

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APRESENTAÇÃO

Esta Tese de Doutorado é resultado de quatro anos de caminhada no

Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas.

Está inserida na linha de pesquisa Cultura Escrita, Linguagens e Aprendizagem,

vinculada ao Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Imaginário, Educação e Memória

(GEPIEM). Teve por objetivo geral a realização de um estudo sobre as memórias do

trajeto formativo inscritas no corpo das acadêmicas do Curso de Pedagogia da

UFPel; como objetivos específicos, a visibilização das escrituras impressas nos

corpos das referidas acadêmicas, relacionando-as com a percepção atual atribuída

ao corpo, bem como a identificação do papel das memórias do trajeto formativo na

construção da biografia do corpo como um repertório para o imaginário corporal.

O que desencadeou o estudo foi o pressuposto de Tese de que a memória

do corpo está nos reservatórios do trajeto formativo de cada pessoa. O que

quero dizer com isto é que o ser humano, no decurso de sua existência, vivencia

uma infinidade de acontecimentos que poderão ficar registrados nos estratos mais

profundos de si. A somatória de cada registro integra o que aqui denomino

reservatório do trajeto formativo do sujeito, que nesta Tese é visibilizado a partir da

interpretação que faço dos gestos das estudantes como uma tradução do imaginário

na escritura do Corpo Biográfico, evidenciando assim a memória inscrita no corpo.

Este enfoque foi fundador para aprofundar tal pressuposto e investir na relação entre

Imaginário e Corpo Biográfico.

A partir disso, eis a questão de pesquisa que embasou este estudo: a

visibilização da memória inscrita no corpo poderia auxiliar a pensar o projeto

de (auto)formação?

Ela foi construída com base na proposição de que a maneira como o corpo é

vivenciado no decurso do trajeto formativo poderia influenciar o modo como o ser

humano vai constituindo os aspectos relacionados ao pessoal e ao profissional.

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Interferindo, assim, nas suas escolhas e no modo de interação com o meio. Dessa

maneira, atribuir um status ao corpo, como um saber silenciado a ser contemplado

no processo formativo, possibilitaria outras maneiras de pensar e projetar a

formação, a partir de um conhecimento imanente1 advindo da subjetividade do

corpo, contemplando as dimensões de um sujeito singular-plural2.

Assim, originou-se a Tese aqui apresentada com o objetivo de introduzir na

área da Educação uma discussão sobre o Imaginário3 e a dimensão biográfica do

corpo – a partir do conceito de Corpo Biográfico – como elementos a embasar a

formação humana. Pontualmente, desenvolvi esta pesquisa para legitimar o corpo

como um saber relevante a ser abordado na formação de professores, pois dá

visibilidade a uma linguagem não valorizada na Educação. Linguagem que é

reveladora da história do sapiens, pois está relacionada à maneira como cada

sujeito se constitui no decorrer de sua vida a partir das experiências vividas em

conexão com as heranças bio-psico-sociais herdadas de seus ancestrais.

A pesquisa foi desenvolvida em dois campos teóricos: o Imaginário e o Corpo

Biográfico. O Imaginário inseriu-se como um campo teórico potencializador para

abordar o ser humano e a teia simbólica que o constitui. Centrei-me nos conceitos

de trajeto antropológico, reservatório e gesto como âncora na discussão de como as

interações corporais no decorrer do trajeto formativo foram assimiladas e

acomodadas pelo sujeito em forma de escrituras em seu corpo, compondo assim,

seu reservatório pessoal. Como autores principais a embasar a discussão: Gilbert

Durand, Gaston Bachelard, Alberto Filipe Araújo, André Leroi-Gourhan.

O Corpo Biográfico inseriu-se como o campo teórico que sustenta a

premissa de que o ser humano guarda nele (corpo) uma memória. Esta memória

está relacionada às experiências que foram marcantes na vida de cada ser humano

e, por isso, ficam impressas em seu corpo, gerando mudanças por afetar o estado

afetivo e emocional de cada pessoa. O conceito de Corpo Biográfico abrange a

vivência, a memória e o imaginário. Para abordá-lo é necessário evidenciar essas

três dimensões inter-relacionando-as, para apreender as escrituras referentes à 1 Para Bois e Rugira (2006), o conhecimento imanente está relacionado diretamente à experiência

corporal imediata. Trata-se de um conhecimento elaborado na matéria silenciosa do corpo, em nível experiencial. Está melhor explicitado no capítulo em que abordo a Fenomenologia do Sensível. 2 Este conceito é embasado em Josso (2009) que designa a problemática existente entre a tensão

permanente que advém das exigências do coletivo ao qual pertencemos e da evolução das aspirações, sonhos e desejos individuais. 3 Ao longo do texto utilizo Imaginário, com letra inicial maiúscula, para enfatizá-lo como um campo

teórico e epistemológico de estudos.

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biografia do corpo. Como autores principais, destaco Danis Bois, Marie-Christine

Josso, Nadine Queré e Jeanne-Marie Rugira.

Diante do que já foi exposto, é necessário ressaltar o que entendo por

escrituras. Escritura, neste contexto, é entendida como os registros que ficam

inscritos no corpo de cada estudante, no âmbito físico e psíquico, a partir das

experiências vivenciadas no decurso de seu trajeto formativo de vida e que, de

alguma maneira, refletem na sua interação com/no mundo.

Para efetivar um estudo sobre as inscrições do corpo no decurso do trajeto

formativo das acadêmicas do Curso de Pedagogia, elaborei um plano de trabalho

focado no exercício de biografização corporal pela improvisação teatral, inspirada na

obra de Janusz Korczak, “Quando eu voltar a ser criança”. Esta proposta foi

desenvolvida no primeiro semestre de 2011, em seis encontros, com quatro

acadêmicas do Curso de Pedagogia da UFPel, privilegiando o gesto como

linguagem à biografização de si, num movimento de evocação das memórias dos

acontecimentos vividos e visibilização das inscrições corporais.

Para visibilizar as memórias inscritas no corpo das acadêmicas do Curso de

Pedagogia da UFPel faço uma análise qualitativa, a partir da: 1) análise descritiva e

hermenêutica dos registros de vídeo, com base na interpretação dos gestos, como

intuito de agrupar em núcleos simbólicos as repetições significativas; 2) análise do

Diário da Experiência das quatro estudantes em três etapas: classificatória,

fenomenológica e hermenêutica, buscando as imagens simbólicas presentes na

escrita; 3) convergência dos dados empíricos da pesquisa em núcleos simbólicos

para chegar aos mitemas4.

Ressalto ainda que no decorrer desta escrita utilizo quadros elucidativos

(Apêndice A) para aprofundar aspectos que julgo pertinentes a este estudo, sem

“quebrar” o fluxo do texto. Nele, tecerei argumentos entre teoria e minhas

realizações referentes ao trabalho. Esses quadros são uma espécie de “fotografia

mental” que presentifica a maneira como organizei meu pensamento, apresentando-

se também como um convite para o leitor desvendar o que há nos quadros, visto sua

função de complementação ao texto principal5.

4 Os mitemas, por serem a representação dos núcleos simbólicos em uma pequena unidade

simbólica. Nesta pesquisa, eles agregam o sentido latente subsumido na memória inscrita no corpo. No capítulo 2, 5 e 6, busco clarear a ideia. 5 A ideia dos quadros foi inspirada na dissertação de mestrado de Michelle Reinaldo Protasio,

defendida no ano de 2007, no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPel.

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Frente a isto, dividi este trabalho em 8 capítulos, a fim de dar visibilidade ao

objeto de estudo: as memórias do trajeto formativo inscritas no corpo, isto é, as

escrituras do Corpo Biográfico.

No capítulo 1, faço uma escrita direcionada ao que me leva a pesquisar o que

eu pesquiso, enfocada no meu trajeto de vida e trago os movimentos por mim

realizados após a qualificação do projeto de Tese.

O capítulo 2 caracteriza-se pela apresentação do cenário metodológico desta

Tese, em que destaco os estudos do Imaginário como basilar ao trajeto investigativo.

A seguir, no capítulo 3, trago os conceitos motores que sustentam esta Tese.

Enfoco novamente o Imaginário, abordando os conceito de trajeto antropológico e

reservatório. Em seguida, problematizo sobre a dimensão biográfica do corpo e

finalizo trazendo a contribuição da fenomenologia do sensível a esta pesquisa.

O capítulo 4 pode ser considerado o capítulo central desta Tese, em que

busco tecer as convergências entre o Imaginário e o Corpo Biográfico. A minha

intenção é mostrar a relação existente e legitimar o Imaginário como fundador do

conceito de Corpo Biográfico.

O capítulo 5 é dedicado à descrição do cenário metodológico, iniciando pelos

experimentos que constituíram a base para a construção da proposta metodológica

deste estudo. Em seguida, descrevo como foram realizados os encontros e no que

consiste o exercício de biografização corporal pela improvisação teatral. Finalizo o

capítulo apresentando o processo de análise.

Rompendo com a estrutura até então apresentada e, sobretudo, com o modo

estruturado como fui compondo a análise, no capítulo 6, apresento os mitemas de

cada estudante. Posteriormente, utilizo a linguagem ficcional para mostrar como

apreendi os dados empíricos e a relação que faço com o mitema. Por fim, explicito a

interpretação que faço dos gestos que emergiram do exercício de biografização

corporal.

No capítulo 7 retomo, novamente, a análise, mostrando cada passo dado e

como cheguei aos núcleos simbólicos que resultaram nos mitemas já apresentados

no capítulo anterior.

Finalizo com uma escrita focada nos meus aprendizados e como uma defesa

dos achados que compuseram esta pesquisa. Afinal, o que tenho a dizer sobre a

Tese que ora defendo?

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1 PREGNÂNCIAS DO MEU TRAJETO DE FORMAÇÃO RUMO À PESQUISA

Quando olho para a trajetória que percorri, instantaneamente deparo-me com

o “elemento-motor” à realização desta pesquisa, qual seja: investigar sobre a

dimensão biográfica do corpo pelas lentes do Imaginário. Esta proposição

surgiu durante minha prática como professora e pesquisadora ao me questionar

sobre a memória do corpo e se era possível ativá-la por meio de um trabalho com a

linguagem teatral. Além disso, comecei a pensar o quanto essa memória seria

determinante na maneira do sujeito ser, estar e agir no seu meio. Estas questões

foram a mola propulsora no desejo de continuar os meus estudos, tendo em vista a

opção de seguir a carreira docente.

Com o ingresso no doutorado e a minha inserção no Grupo de Estudos e

Pesquisa sobre Imaginário, Educação e Memória (GEPIEM), coordenado pela minha

orientadora, Prof.ª Dr.ª Lúcia Maria Vaz Peres, aprofundo-me nos estudos do

Imaginário, em uma perspectiva antropológica, e nos estudos das pesquisas

(auto)biográficas, repercutindo no meu objeto de estudo que se focou na realização

de um estudo sobre as memórias do trajeto formativo inscritas no corpo das

acadêmicas do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Pelotas/RS. A

experiência no interior do Grupo de Pesquisa contribuiu para uma focalização de

minha proposta investigativa, mas também a um constante pensar sobre o que me

levou a pesquisar o que eu pesquiso. Dessa maneira, passei a me perguntar: Seria

somente a experiência como professora e pesquisadora a despertar o meu interesse

em aprofundar sobre a dimensão biográfica do corpo?

Logo vi que não, ao constatar, pelo exercício da escrita narrativa de minha

história de vida realizada para o projeto de qualificação, que o meu objeto de estudo

1

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estava arraigado na minha história de vida, ou seja, nas experiências6 que foram

significativas no decurso de meu trajeto formativo, bem como na maneira que fui

assimilando afetiva e subjetivamente o vivido em consonância com os estímulos do

contexto no qual estava inserida.

A (re)memoração dessas experiências levou-me a identificar três pregnâncias

de sentido na minha trajetória e detonadoras desta Tese: o corpo, a linguagem

teatral e o imaginário. O corpo como centro da aprendizagem e reservatório de

nossa história individual, o qual carrega os registros temporais e psíquicos de sua

história, cuja inscrição fica em sua carne. A linguagem teatral como meio de

expressão e comunicação deste corpo no mundo. E o imaginário como

potencializador para abordar o ser humano e a teia simbólica que o constitui.

Evidenciar o corpo como uma pregnância de sentido no decurso de meu

trajeto formativo representou reconhecê-lo como elemento central na maneira como

eu me (inter)relacionei com o mundo e o processo de aprendizagem. O que de

algum modo me afetou, seja de ordem emocional, afetiva ou mesmo cognitiva, ficou

nele registrado, potencializando ações que hoje contribuem à pesquisa que realizo.

De tudo que vivi, destaco dois momentos distintos: as primeiras vivências na Escola

de Educação Infantil e a criação de um espetáculo de teatro solo no Curso de Artes

Cênicas.

Na escola de Educação Infantil, destaco a vivência de uma abordagem

efetiva do meu corpo no espaço educacional. Um corpo que estava atento e

presente a todo o momento7, sendo considerado elemento central a perpassar o

processo de construção do conhecimento. Lembro que a experimentação era o

elemento principal em nossas aulas. Eu era estimulada a me manifestar e a

compartilhar com meus colegas o que eu aprendia nas atividades. Essas

lembranças chegam-me recheadas de gestos e falas de um corpo que interagia em

cada situação vivida.

A relação aprendizagem, conhecimento e corpo foi tão significativa em meus

primeiros anos escolares, que ouso dizer que as experiências vivenciadas naquele

período foram propulsoras para a pessoa e a profissional que fui me tornando. Digo

6 O termo experiência para Josso (2009) significa aquelas vivências que escolhemos ou então que

aceitamos como fonte de aprendizado ou formação de vida. As vivências constituem o tecido do nosso cotidiano, porém nem sempre elas ficam em nossa memória ou proporcionam um aprendizado. Para que isto aconteça, é necessário, segundo a autora, um processo reflexivo sobre o vivido. 7 Ou seja, um corpo que se conectava integralmente: dos gestos às falas.

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2

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isto, pois as imagens daquela época estão sempre presentes em minha prática

pedagógica, como professora de crianças e adultos, incitando-me a defender e a

propor um trabalho em que o corpo perpassa a construção do conhecimento. Tenho

a sensação que hoje busco compreender, de algum modo, as experiências que vivi

na infância, pois elas estão e ainda são muito presentes em meu corpo.

Vinte anos mais tarde às experiências vivenciadas na Educação Infantil, outro

encontro íntimo com o corpo no Curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de

Santa Maria, especificamente, durante a criação de um espetáculo de teatro solo, no

ano de 2003. Naquele momento, tive a oportunidade de vivenciar um processo de

trabalho cujo foco principal na elaboração do monólogo foi o corpo baseado no texto

“Valsa nº6”8, de Nelson Rodrigues. Tudo que produzi para o espetáculo partiu de um

intenso trabalho corporal, a partir de um treinamento baseado no Método das Ações

Físicas de Constantin Stanislavski9.

O envolvimento na construção do monólogo pelo método acima citado

proporcionou-me um contato profundo e íntimo com o meu corpo. Cada exercício

realizado provocava uma gama de sensações, sentimentos, imagens relacionadas a

um passado vivido e herdado. Atribuo tudo isso a um despertar da memória do meu

corpo. Naquele momento, eu tinha a percepção do processo que vivia, mas não

tinha consciência da dinâmica, muito menos uma análise e uma reflexão da

dimensão biográfica de meu corpo.

O despertar dessa memória ocasionou um impacto tão grande na maneira

como eu me colocava diante do mundo, que decidi, somada às experiências

anteriores, principalmente a vivida na Educação Infantil, mobilizar o corpo de outras

pessoas por meio do teatro. Optei então pela carreira da docência, a fim de trabalhar

o corpo pela via teatral.

A linguagem teatral – como a manifestação efetiva do corpo no espaço em

que vivemos – teve um papel determinante em minha história de vida. Digo isso

8 Para concluir o Curso de Artes Cênicas na Habilitação Interpretação Teatral, cada aluno deveria

trabalhar durante um ano na elaboração de um monólogo, sendo este o trabalho de conclusão de Curso. 9 Método sistematizado por Constantin Stanislavski no final do século XIX e início do século XX. Tem

como base o domínio pelo ator dos elementos da ação cênica. No processo criativo do ator, calcado no princípio da ação física, inicialmente trabalha-se a partir de pistas, ideias e imagens relativas à matéria ficcional, pela qual se chega às ações físicas e à elaboração do comportamento do personagem. Pode-se dizer que a ação é a vivência do ator no momento presente do universo ficcional, uma vez que este busca concretizar cada imagem numa integralidade psicofísica para a construção de uma linha de ação. A verdade em cena é construída a partir do comprometimento do ator com os objetivos da ação, momento a momento, para resultar o efeito personagem.

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alicerçada na representação que construí sobre o teatro na escola, que se associa a

um processo de experimentação que eu não vivia habitualmente no dia-a-dia da sala

de aula, mas nas aulas de teatro10, que eram atividades extracurriculares.

A vivência teatral levou-me ao reconhecimento de potencialidades

inesperadas, como a criatividade, por exemplo. Fez-me perceber que era possível,

na escola, colocar meu corpo em ação, e expressar minhas vontades, meus desejos,

vivenciando em muitos momentos uma educação diferenciada, isto é, para além do

convencional e conhecido. Uma educação que permitia resgatar “outros aspectos da

aprendizagem, como o prazer, o devaneio, a alegria” (PIEGAZ11, 2005, p. 62).

Sentia-me realizada com o fato de fazer teatro, mas ainda não tinha

consciência de que esta satisfação associava-se diretamente ao corpo e a um

processo de biografização corporal que era instaurado por meio da linguagem

teatral12.

O encantamento dos tempos da escola levou-me a cursar Artes Cênicas no

ano de 2000. No Curso, vivenciei algumas das experiências que foram formadoras13

em meu trajeto de vida e que considero determinantes para justificar a pertinência

em realizar este estudo, como a experiência de bolsista de iniciação científica em

projetos de extensão e pesquisa. Digo formadora, pois foi a partir desta experiência

que ingressei no contexto educacional e que nasceu o desejo de fazer Pós-

Graduação e de cursar Pedagogia.

O trabalho desenvolvido nas escolas levou-me a perceber o quanto a

presença da arte teatral modificava o cotidiano e os corpos das pessoas lá

presentes, incitando-as a interagirem umas com as outras; expressarem-se

espontaneamente, dando vazão para seus desejos, sentimentos e também para a

criatividade. A relação entre professores e estudantes era ressignificada, havendo

10

O teatro no contexto educacional caracteriza-se por ser um saber particular, que envolve a expressão corporal do ser humano e possibilita outra forma de agir, ser, estar e olhar para o ambiente escolar. Não há uma preocupação com o conteúdo curricular a ensinar, mas com a experiência e com o aprendizado que dela resulta. 11

Primeira dissertação que tratou de teatro na escola, defendida no GEPIEM. Esta pesquisa teve como objetivo investigar os matriciamentos que potencializam o trajeto de professores que trabalham com ensino de teatro nas escolas de Pelotas, RS, Brasil, sob a perspectiva do Imaginário. 12

Por meio do teatro, a partir de um processo de confronto entre a criança que eu era e o desejo de quem eu gostaria de ser, eu corporificava gestos, atitudes e ação que configuravam uma forma narrativa de estar em cena e de me posicionar diante do mundo. 13

Utilizo o termo experiência formadora baseada na obra de Josso (2004). Para a autora, uma experiência para ser considerada formadora deve simbolizar atitudes, comportamentos, pensamentos, saber-fazer, sentimentos que caracterizam uma subjetividade e identidades na vida do ser humano, influenciando na sua maneira de ser, agir, pensar e estar no mundo.

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uma expansão do diálogo verbal e corporal, como também partilhas de outros

saberes e experiências.

Chamou-me atenção, também, o fato do teatro geralmente ser considerado

algo recreativo e o corpo como um coadjuvante no espaço educacional. Observei

que havia momentos instituídos para o trabalho com o teatro (resumidos a datas

comemorativas) e de expressão do corpo de maneira mais espontânea. A maior

parte do tempo, a atenção voltava-se à execução de ações pontuais, com o objetivo

de “aquietar”14 o corpo como um todo, privilegiando-se somente o ato de ouvir e de

executar tarefas.

Insatisfeita com a abordagem em relação ao teatro e ao corpo, comecei a

trabalhar com a formação inicial e continuada de professores, pois acreditava que

para haver ressignificação do corpo no contexto educativo seria necessário

promover ações também com os professores. Apostava na ideia de que a partir de

um trabalho prático e sistemático, tanto na formação inicial quanto na formação

continuada, seria possível conscientizar que o teatro, como área de conhecimento e

o corpo, como elemento essencial no processo de aprendizagem, poderiam estar

presentes na formação do ser humano, haja vista a importância desses saberes.

Dessa maneira, chego à terceira pregnância desta Tese: o imaginário. A

inserção no Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e Imaginário Social

(GEPEIS)15, coordenado pela minha orientadora de mestrado, Prof.ª Dr.ª Valeska

Fortes de Oliveira, proporcionou-me adentrar no campo teórico16 do Imaginário, a

partir de uma pesquisa, em nível de mestrado, com acadêmicas do Curso de

Pedagogia da Universidade Federal de Santa Maria, centrada nas representações

em torno do teatro antes e depois de cursarem a disciplina de Jogo Teatral I e Jogo

Teatral II17. A investigação proporcionou-me acompanhar a relação das acadêmicas

14

Aquietar, segundo estudo realizado por Márcia Strazacappa (2001), no artigo “A educação e a fábrica de corpos: a dança na escola” equivale a “disciplinar”, visto que a noção de disciplina no espaço escolar no decorrer dos tempos vem sendo entendida “como um „não movimento‟”, segundo a autora. 15

Participar do Grupo foi muito significativo em minha formação, pois nele vivenciei outra maneira de aprender baseada no compartilhamento de experiências. Estar no grupo possibilitou-me ampliar o foco de discussão da arte teatral e conhecer novas possibilidades de estudos, uma vez que passei a realizar leituras sobre Formação de Professores, Saberes Docentes, História de Vida, Imaginário e Representações Sociais. 16

O Imaginário estudado pelo GEPEIS alicerça-se numa perspectiva sociológica, tendo como principal representante teórico Cornelius Castoriadis. 17

Naquele momento, reafirmei minhas constatações ao observar que o corpo ainda “está fora” das matrizes curriculares formadoras das futuras pedagogas. O trabalho com o corpo fica restrito a poucos semestres, quando acontece.

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com o teatro, as representações instituídas e como estas representações foram

sendo modificadas no decorrer da disciplina, bem como estar atenta às

manifestações corporais de cada pessoa. Neste período, as pesquisas

(auto)biográficas passaram também a fazer parte do meu universo acadêmico,

incitando-me a aprofundar mais sobre o assunto e a fazer relações com a pesquisa

que eu desenvolvia naquele momento.

A pesquisa de mestrado revelou possibilidades para pensar a biografia do

corpo. Isso aconteceu em função da minha inserção no campo empírico e da minha

participação como ministrante dos jogos para a turma que eu pesquisava. Ao propor

jogos direcionados para a exploração corporal, muitas foram as vezes que as

estudantes compartilharam memórias que haviam decorrido das atividades

realizadas. Memórias relacionadas a imagens de acontecimentos vividos, que

proporcionavam entrar em contato com os sentimentos adormecidos e os gestos não

habituais, visibilizando as experiências que foram significativas em sua vida.

Observei que o contato com as memórias que emergiam do corpo causavam um

impacto e uma transformação perceptiva das estudantes sobre si mesmas e seus

corpos, repercutindo em sua atitude nas aulas e também no Curso18.

Diante disso, vislumbrei a possibilidade do trabalho com a linguagem teatral

ser um caminho à dimensão biográfica do corpo, bem como a necessidade de

abordar o corpo na formação de professores, como um elemento revelador do trajeto

formativo de cada ser humano.

Tais percepções despertaram o interesse em estudar a dimensão biográfica

do corpo, levando-me a direcionar meus trabalhos e pesquisas para este foco e

realizar o doutorado. Este novo direcionamento em meus estudos pode ser

destacado como uma verdadeira transformação que aconteceu a nível existencial19.

Intimada pelas observações e indagações surgidas no decorrer de minha

prática, passei a investigar sobre o assunto20, levando-me a direcionar meus

18

Da turma que participou da pesquisa de mestrado, a maioria abordou o corpo nas atividades desenvolvidas durante o período de Estágio. 19

Este conceito é apresentado por Danis Bois em sua tese intitulada “Le corps sensible et la transformation des représentations chez l´adulte” (2007), a partir da referência dos estudos de Marie-Christine Josso. Para a autora, uma experiência para ser considerada existencial ou fundadora deve promover uma verdadeira metamorfose do ser, envolvendo a pessoa como um todo, desde sua identidade profunda até a maneira como vive a sua vida como ser. 20

As investigações sobre o assunto me levaram ao trabalho desenvolvido por Danis Bois e Marie-Christine Josso sobre o corpo e sua dimensão biográfica. Bois foi quem desenvolveu o conceito de Corpo Biográfico a partir de suas pesquisas com a fascioterapia e a somato-psicopedagia. Outros

4

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trabalhos e pesquisas para este foco. A intenção foi pensar outras propostas à

formação humana, especificamente, a formação do professor, atribuindo status e

importância ao corpo e sua dimensão biográfica.

O ingresso no doutorado no ano de 2009 deu continuidade ao meu processo

no campo do Imaginário, porém direcionada a uma perspectiva antropológica, a

partir dos estudos preconizados por Gilbert Durand e Gaston Bachelard,

principalmente. Assim, comecei a estudar e a desenvolver uma pesquisa focada na

dimensão biográfica pelas lentes do Imaginário, buscando as interfaces dessa

conjuntura.

Desta maneira, a pesquisa que aqui apresento tem a sua gênese nos três

núcleos pregnantes anteriormente apresentados. As experiências no decurso de

meu trajeto formativo levaram-me a investir na proposição de que a linguagem

teatral, a partir de um trabalho específico, colocaria em movimento um processo de

biografização corporal, visibilizando a dimensão biográfica do corpo. Tal

investimento instigou-me a estudar como poderia acontecer este processo,

evidenciando o campo teórico em que estou inserida: o Imaginário.

1.1Movimentos a partir da qualificação

Com o objetivo de ampliar e de aprofundar os estudos sobre a dimensão

biográfica do corpo e sua relação com o Imaginário, elaborei uma pesquisa focada

nas memórias do trajeto escolar inscritas no corpo, em forma de grafias21, de

acadêmicas do Curso de Pedagogia da UFPel, apresentada na forma de projeto de

Tese em março de 2011. Minha proposição centrava-se na premissa de que as

estudantes que realizavam a formação-professor deveriam ter consciência da

memória do corpo decorrente do seu trajeto formativo, especificamente do período

escolar.

estudos em torno deste eixo epistemológico vêm sendo trabalhados por Josso e outros autores também. Desde o II Congresso Internacional sobre Pesquisa (Auto)biográfica (CIPA), realizado em Natal/RN (2008), as produções com essa temática começaram a ter maior visibilidade no Brasil. 21

Cabe ressaltar que no momento da qualificação eu tinha a intenção de visibilizar as grafias. No entanto, ao longo do processo de pesquisa, percebi que o que eu estava querendo visibilizar eram escrituras – pois agrega um sentido mais amplo que reporta a uma inscrição de si. Sendo assim, abandono o termo grafias e passo a utilizar o termo escrituras.

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Naquele momento, apostava em jogos teatrais, como meio de viabilizar um

trabalho focado no corpo, a partir de um processo em que as acadêmicas tomariam

a si mesmas como objetos de reflexão. Ou seja, atribuía a elas, a partir da palavra,

fazer a “leitura” de seus gestos, identificando as memórias inscritas no seu corpo,

tendo em vista promover um processo de conscientização.

Entretanto, por mais que eu quisesse focar nas inscrições corporais, meu

projeto atribuía um estatuto maior para a palavra do que para o gesto. Esta

observação foi muito bem pontuada pelos professores que compuseram a banca

examinadora de qualificação, chamando-me a atenção para a necessidade de dar

visibilidade para a voz do corpo, a partir da elaboração de uma metodologia de

análise do gesto, que seria realizada por mim, enquanto pesquisadora, e não pelos

sujeitos da pesquisa. Não era necessário descartar a palavra, mas evidenciar

primordialmente o gesto, que é a grande tônica do campo teórico que estudo: o

Imaginário. Outra questão mencionada pela banca foi não focar em um período

específico, mas nas experiências no decorrer do trajeto formativo, considerando o

que aparecesse como um forte indício das memórias que ficaram inscritas no corpo.

E a conscientização como algo que requereria outro foco de trabalho para além de

visibilizar as memórias do corpo, algo que poderia ocorrer posteriormente.

Diante das considerações, ingressei no campo empírico e desenvolvi uma

proposta que contemplou os gestos e os sons vocais como expoentes máximos da

voz do corpo, ignorando a palavra durante os encontros com as participantes da

pesquisa. Cabe ressaltar que adotar este viés causou certo estranhamento, tanto em

mim, quanto nelas. Na minha concepção, a palavra deveria aparecer posteriormente

à prática corporal, como resultado de um pensamento que emanava do próprio

corpo. Em relação às estudantes, o fato de não usar a palavra gerava certa

angústia, pois a mobilização corporal ocasionava uma necessidade de expor as

repercussões22 produzidas no corpo pelo trabalho. Assim, introduzi o Diário da

Experiência como um instrumento para registrar o que havia sido sentido pelo corpo.

A etapa após o ingresso no campo empírico foi marcada pela descrição dos

dados e pela leitura atenta do material escrito. Ressalto que havia uma clareza no

22

A repercussão representa aquilo que toca o ser humano de maneira profunda, instigando-o a um aprofundamento e reflexão sobre si. Segundo Bachelard (1993, p. 7), “a repercussão opera uma inversão do ser”. A repercussão tem um caráter fenomenológico, determinando um verdadeiro despertar criador, a partir de uma única imagem poética, ocasionando a experimentação de ressonâncias, repercussões sentimentais, recordações do passado.

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modo como eu realizaria o trabalho prático, mas muitas dúvidas sobre como faria a

leitura dos gestos e de que maneira eu utilizaria o Diário da Experiência – e se

utilizaria.

Com o objetivo de encontrar um caminho para a análise dos gestos e

aprofundar o entendimento sobre o conceito de Corpo Biográfico, realizei o estágio

doutoral, com o professor PhD. Danis Bois23, vinculado à Universidade Fernando

Pessoa – Porto/Portugal. Durante os quatro meses de estágio, realizei estudos

referentes ao conceito de Corpo Biográfico e à fenomenologia do sensível, entrando

em contato com o seu método de trabalho. Neste período, foquei-me em dissertar

sobre a contribuição desta Tese aos estudos referentes às pesquisas (auto)

biográficas, uma vez que eu trago a improvisação como um caminho à biografização

corporal e escritura de si, apresentando um complemento à narrativa escrita e oral.

Também dedicamos (eu e o professor Danis Bois) uma atenção especial ao

processo de análise dos dados. Cabe ressaltar que o professor trabalha a leitura do

corpo a partir da palavra. Palavra como resultado “do sentir do corpo e que nasceria

diretamente do pensamento próprio ao corpo, e não de um pensamento nascido no

cérebro para se dirigir ao corpo” (BOIS, 2008b, p. 101). A análise acontece via

palavra, através de entrevista verbal mediada pela prática corporal.

Por mais que eu já tivesse contato com sua produção, nutria a expectativa de

que além da entrevista houvesse uma metodologia de leitura do corpo, desvinculado

da palavra. Percebi que não, tendo em vista o seu método de trabalho que buscava

criar um espaço de fala que permitisse às pessoas encontrarem um lugar para a

expressão de si, a partir do testemunho descritivo do vivido como resultado de um

pensamento que emanasse do próprio corpo.

Dessa maneira, nos quatro meses em que estive sob sua orientação,

trabalhamos demoradamente na análise dos Diários da Experiência, em três etapas:

análise classificatória, análise fenomenológica e análise hermenêutica24. O professor

Danis Bois teve o cuidado de auxiliar em cada passo da análise, a partir de um dos

23

Danis Bois é fisioterapeuta, osteopata, psicopedagogo clínico e doutor em ciências da educação. Sua metodologia de pesquisa e formação está direcionada à integração da relação com o corpo sensível na reconquista do corpo biográfico a serviço da reconfiguração do sujeito. Sua abordagem está voltada à área terapêutica. Professor Catedrático da Universidade Fernando Pessoa, vinculado à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Atua no Mestrado em Psicopedagogia Perceptiva. É diretor do CERAP (Centro de Estudos e Pesquisas Aplicadas em Psicopedagogia Perceptiva). Fonte: (BOIS, JOSSO, HUMPICH, 2008). 24

Serão explicadas no capítulo 5 desta Tese.

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Diários. Para ele, a palavra traduzia o testemunho da experiência que as

acadêmicas vivenciaram com a pesquisa, sendo um indício forte sobre o Corpo

Biográfico.

Em consequência disso, a partir do campo teórico do Imaginário, elaborei um

caminho para a análise dos gestos usando registros de vídeo.

O que isto ocasionou em meu trabalho? Um confronto de ideias entre a voz

do corpo e a palavra que parte da prática corporal. Como priorizar somente o gesto,

quando há um material escrito que dizia muito sobre a dimensão biográfica do

corpo?

Então fiz as seguintes escolhas: trabalhar prioritariamente com a leitura do

gesto, sem descartar a escrita no Diário da Experiência, investindo fortemente na

metodologia de convergências – já anunciada no projeto de Tese. A convergência

levou-me aos núcleos simbólicos, e, consequentemente, aos mitemas25 que deram

visibilidade às escrituras do Corpo Biográfico das acadêmicas do Curso de

Pedagogia. Diante disso, passo a problematizar sobre os caminhos percorridos e

os achados da pesquisa.

25

Serão explicados no Cenário Metodológico da Tese, capítulo a seguir.

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2 CENÁRIO METODOLÓGICO

Tendo como problema de pesquisa o corpo como um saber relevante no

processo formativo optei por uma metodologia que contemplasse, prioritariamente, a

interpretação do gesto a partir das pregnâncias que emergiram da proposta

desenvolvida. Nesse âmbito, eis o Imaginário como “carro-chefe” 26 que guiou o

trajeto investigativo.

As pesquisas do Imaginário, segundo Kurek27 (2009, p. 38) vão se ocupar de

“mostrar aquilo que não se mostra”, que não é visto a “olho nu”. Isto quer dizer, “um

tipo de conhecimento que faz parte de nossas vidas, mas não aparece na forma

explicativa comprometida com a racionalidade” (idem). Que extrapola a lógica binária

– lógica que compreende apenas dois valores, um verdadeiro e um falso – para

abranger um terceiro incluído, a partir de um movimento instaurador e abrangente de

múltiplas possibilidades.

Essa perspectiva instauradora, que descarta a classificação e redução dos

achados como uma lógica pré-estabelecida, caracterizou o cenário metodológico

desta Tese. O gesto como uma tradução do imaginário na escritura do Corpo

Biográfico foi o elemento fundador à promoção de uma amplificação das imagens e

seu conteúdo simbólico voltada a discussão sobre o Imaginário e o Corpo Biográfico

no contexto da educação.

A partir de uma proposta focada na biografização corporal pela improvisação

teatral através do exercício de imaginação simbólica cada estudante lançou-se a

uma “garimpagem28” do seu reservatório pessoal. Isto é, propus ativar, via

26

Termo muito usado pelo colega de grupo, Profº. Drº. Alexandre Vergínio Assunção, com o intuito de defender e profundizar a função dos estudos do Imaginário tão caro às pesquisas do GEPIEM. 27

Primeiro doutorando do GEPIEM. Sua tese intitulada “Ensaio sobre a dor na docência: um ensaio antropofenomenológico” foi defendida em dezembro de 2009. 28

Utilizo o termo garimpagem no sentido de explorar as memórias que compõem o patrimônio vivencial de cada pessoa, visibilizando um tipo de conhecimento que nem sempre é abordado como

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“conhecimento indireto”, as memórias inscritas no corpo no decurso do trajeto

formativo: memórias decorrentes de acontecimentos presentes e sempre lembrados;

acontecimentos adormecidos, escondidos, ou que nunca haviam sido pensados.

Para Durand (1988, p. 11-12), esta via de acesso à consciência, proporciona re-

(a)presentar o objeto ausente através de uma imagem no sentido amplo do termo.

O exercício de evocação das memórias dos acontecimentos vividos mobilizou

uma consciência imaginante que criou novas narrativas. Narrativas oriundas dos

matizes das escrituras a que cada participante deu visibilidade no decorrer da

pesquisa. Ou seja, ao remexer nos seus guardados interiores, elas acessaram uma

esfera mais profunda, que para além dos fatos, trouxeram à tona as repercussões

que estes causaram em si, atribuindo uma “tonalidade” (BOIS, 2008a, 2008b)29 aos

gestos como uma tradução do imaginário na escritura do Corpo Biográfico,

efetivando, assim, a construção de uma narrativa corporal. Esse processo pode ser

visto como resultado de uma atividade de imaginação simbólica que deu vazão para

uma história atualizada e fundadora do que cada pessoa vem sendo e se tornando

no percurso de sua vida.

A imaginação simbólica constitui a própria atividade dialética do espírito, já que, no nível do “sentido próprio” da imagem, copia da sensação, no nível da vulgar palavra do dicionário, ela desenha sempre o “sentido figurado”, a criação perceptiva, a poesia da frase que, no seio da limitação nega essa mesma limitação (DURAND, 1988, p. 97)

Na perspectiva criadora, ela é enriquecedora de um pensamento, neste caso,

pensamento corporal, e está na base, conforme Araújo, (2009) de um imaginário

dotado de “pregnância simbólica” (CASSIRER, 1929a) que se abre para a criação e

a recepção de outras obras, mundos, experiências. Segundo Cassirer (1929a, p.

238), o conceito de pregnância simbólica está associado ao “modo como uma

vivência perceptual, isto é, considerada como vivência „sensível‟ entranha ao mesmo

tempo um determinado „significado‟ não intuitivo que é representado concreta e

relevante à problematização sobre os modos como cada uma vem se tornando e sendo no decurso de seu trajeto formativo. 29

Danis Bois utiliza o termo tonalidade para indicar as sensações experimentadas durante as situações de terapia manual ou introspecção sensorial. Aproprio-me do termo para indicar as sensações experimentadas no decorrer do trajeto formativo do sujeito e que de alguma maneira ficaram registradas em seu corpo, sendo fundantes na maneira de interagir no mundo, atribuindo diferentes intenções à ação. Ação expressa através dos gestos durante o processo de biografização corporal pela improvisação teatral.

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imediatamente por ela”. Diante de tudo isso, a imaginação simbólica caracteriza-se

por ser reprodutiva à medida que busca material no repertório proveniente da

experiência perceptiva e, também, por ser irrigadora dos processos cognitivos mais

abstratos (WUNNENBURGER, 2003).

Nesse sentido, o imaginário apropria-se do dinamismo e da força criadora que

a imaginação tem em produzir imagens de um real latente, depreendendo uma

atividade conotativa e figurativa. Propicia enxergar além do que a consciência é

capaz de elaborar, produzindo novas imagens que excedem as informações

inerentes ao significado e aos conceitos, conferindo força ao objeto ausente. Tais

imagens, segundo os estudos de Bachelard e Durand, contribuem para o

enriquecimento da representação de mundo. Assim, a imaginação surge como

expressão da liberdade do ser humano em confronto com as coisas que lhe

assolam, principalmente as faces do tempo que representam a dissolução de um

devir, propiciando extrapolar um determinismo temporal.

Dessa maneira, a imaginação pode ser vista como a “potência maior da

natureza humana” (BACHELARD, 1993, p. 18) que incita olhar o passado pelas

lentes do presente e lançar-se a um futuro que poderá redimensionar a forma de

cada sujeito colocar-se no mundo. “A imaginação desempenha portanto, na espécie

humana, um papel essencial no que diz respeito à adaptação vital, à criação de um

meio cultural, à compensação das dificuldades de viver através da arte, da religião

ou da fabulação” (WUNENBURGER, 2003, p. 37-38).

Diante disso, a imaginação tem a função de eufemização, promovendo um

“dinamismo prospectivo que, através de todas as estruturas do projeto imaginário,

tenta melhorar a situação do homem no mundo” (DURAND, 1988, p.101). Esta

função eufemizadora proporciona ao ser humano confrontar-se consigo mesmo e no

ato de imaginar vivenciar um processo dinâmico de equilibração psicossocial.

A imaginação simbólica, nesta Tese, exerceu sua função eufemizadora à

medida que promoveu a emersão de memórias decorrentes do trajeto formativo das

acadêmicas do Curso de Pedagogia, presentificada na proposta de biografização

corporal pela improvisação teatral, a partir de uma temporalidade outra, que

transgrediu a lógica de um tempo cronológico. A transgressão colocou no mesmo

nível o passado, o presente e o futuro, assegurando uma continuidade da

consciência humana, bem como a possibilidade de regressar, regredir e transfigurar

as necessidades do destino, propiciando pela re-(a)presentação de um tempo vivido,

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o que elas foram e se tornaram, o que estão sendo e se tornando e como projetam-

se daquele momento em diante, por meio de uma linguagem que não se reduz à

palavra, mas se amplifica pelo gesto. Ou seja, pela imaginação simbólica as

estudantes puderam acessar uma esfera mais profunda de si, a memória do seu

corpo.

Nesse viés, o gesto representou a presentificação de ações que ficaram

“radicadas no corpo” (PEREIRA, 2010). Nesta pesquisa, são abordados como a

tradução do imaginário nas escrituras do Corpo Biográfico e conteúdo simbólico que

revelou algo preexistente relativo à experiência do mundo, à vida humana e ao

processo de assimilação e acomodação do vivido.

As imagens podem ser compreendidas como representações repletas de

significação e portadoras de uma força de transformação. Sua dinâmica criadora,

segundo Wunenburger (2003, p.26), a partir dos estudos de Bachelard, encontra-se

na experiência do corpo, seja pela atividade física de expressão linguística; pela

atividade muscular manifestada através dos movimentos, ritmos e gestos; ou então,

por uma temporalidade descontínua envolvida por um ritmo. Estudá-las significa

acentuar a virtude de sua origem, “apreender o próprio ser de sua originalidade e em

beneficiar-se, assim, da insigne produtividade psíquica que é a imaginação”

(BACHELARD, 2009, p. 3).

Focar as imagens tendo o Imaginário como campo epistemológico, levou-me a

estruturá-las em uma lógica, com o intuito de efetivar a realização do estudo focado

nas memórias inscritas no corpo e decorrentes do trajeto formativo das estudantes

do Curso de Pedagogia da UFPel. O estudo do Imaginário permite “elaborar uma

lógica dinâmica de composição de imagens (narrativas ou visuais)”

(WUNENBURGER, 2003, p. 28), que independente do regime30 que pertençam,

organizam os instantes psíquicos em uma determinada “ordem histórica”.

É necessário ressaltar que o universo simbólico, apreendido a partir de uma

perspectiva recondutora e amplificadora, surge dos movimentos do inconsciente

coletivo e arquetipológico31. Tal universo criador do homem e da cultura preenche

30

A lógica dinâmica de composição de imagens organiza-se a partir de dois regimes, um diurno e um noturno, que são produzidos ao longo do trajeto antropológico a partir da conjunção entre o psicofisiológico e o sociocultural, desdobrando-se em três estruturas polarizantes: uma heróica; uma mística e, por fim, uma sintética. 31

A arquetipologia para Durand está assentada nos reservatórios sociais oriundos dos arquétipos. Eles são estruturas psíquicas, inatas ou herdadas, quase universais, como uma espécie de consciência coletiva. Exprimem-se por meio de símbolos específicos, de grande potência energética.

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33

uma função favorável à sua vida pessoal e social (CHEVALIER & GHEERBRANT,

2009), bem como aspectos profundos da realidade. Isto significa que o símbolo

transcende “a um sentido comum interpretativo para ser e, pois, ser compreensível;

existe um sentido original, e apenas a compreensão permite as derivações

terrestres. O símbolo seria, então, produto de uma construção mental autônoma”

(LEGROS; MONNEYRON; RENARD; TACUSSEL, 2007, p. 113).

A apreensão do sentido simbólico colocou-me diante de três dimensões

concretas (a cósmica, a onírica e a dimensão poética) e da sua epifania32. Cósmica

no sentido do símbolo figurar-se a partir do mundo que nos rodeia; onírica ao

enraizar-se na biografia mais íntima do ser humano, contemplando as lembranças,

os gestos que emergem dos sonhos/devaneios e poética ao apelar para a

linguagem. A epifania como um emergir súbito de uma imagem simbólica, que se

revela pregnante e formadora.

Assim, a interpretação do gesto contemplou os aspectos que envolvem o ser

humano e a maneira que ele interage no mundo, como resultado de uma somatória

de inscrições corporais decorrentes das experiências vividas no decurso de sua vida,

a partir de um processo de interpretação dos diferentes níveis de sentido.

Com o intuito de fazer emergir os sentidos latentes, a partir da perspectiva

simbólica, propus um exercício de biografização corporal pela improvisação teatral.

A pesquisa foi registrada em vídeo por mim, e no Diário da Experiência por elas

(acadêmicas). Mediante o que foi desenvolvido, fiz dois procedimentos: 1) descrevi o

exercício de biografização, a partir dos registros de vídeo. Após a descrição

selecionei os gestos que considerei pregnantes em cada cena. Busquei no gesto

apreender o seu sentido, em um processo de desvelar o indizível subsumido no

gestual, valorizando a transfiguração da representação concreta, de significado

manifesto e imediato, ao aparecimento de um sentido abstrato, secreto, misterioso;

2) selecionei na escrita do Diário da Experiência de cada estudante as imagens

simbólicas associadas a relação Imaginário e Corpo Biográfico, com o objetivo de

encontrar indícios a contribuir no estudo sobre as memórias que ficaram inscritas no

corpo. Esse direcionamento contemplou os aspectos que elenquei como fundadores

Desempenham um papel unificador e motor considerável na evolução da personalidade. Apresenta forma dinâmica, estruturando-se pela organização de imagens. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009). 32

Baseio-me em Durand (1988) que aborda sobre isto alicerçado nos estudos de Ricoeur.

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34

da constituição do sujeito e visibilizadores das memórias inscritas no corpo das

acadêmicas do Curso de Pedagogia.

Diante deste encaminhamento metodológico, deparei-me com uma infinidade

de imagens que individualmente dispersavam-se. Para construir uma unidade

simbólica de sentido foi necessário fazê-las convergir.

A metodologia de convergência é fundamentada nos estudos de Durand

(2002) e caracteriza-se por estruturar vastas constelações de imagens semelhantes,

de diferentes domínios de pensamento, e que tendem a se agrupar a partir de certo

isomorfismo de símbolos convergentes. A convergência busca a homologia33 dos

elementos semelhantes, para unificar as variações de um mesmo tema.

Durand (2002, p. 43) constatou a necessidade percebida por Bergson em

conservar um isomorfismo semântico ao reconhecer que as imagens, mesmo com

suas diferenças, exigiam a mesma espécie de atenção, o mesmo grau de tensão,

constituindo verdadeiros conjuntos simbólicos. Era em torno desses conjuntos que

as imagens convergiam, a partir de núcleos organizadores, aos quais a

arquetipologia antropológica deveria esforçar-se por distinguir através de todas as

manifestações humanas da imaginação. (DURAND, 2002, p. 43-44).

A convergência insere-se neste trabalho como caminho para agrupar as

imagens que emergiram da proposta desenvolvida. Nesse sentido, os esforços

foram direcionados para encontrar nas imagens referentes a cada acadêmica os

laços em comum, extraindo um sentido que representasse o conjunto das relações

estabelecidas e evidenciasse a memória que ficou inscrita no corpo. Isto é, da

convergência das repetições significativas provenientes dos gestos e das imagens

simbólicas do Diário da Experiência busquei os núcleos simbólicos com o intuito de

encontrar o mitema de cada estudante que, a partir da minha leitura, traduzia e

visibilizava a memória inscrita nos seus corpos, congregando o que o corpo diz e o

que é escrito sobre o que foi vivido pelo corpo.

A ideia de mitema é baseada em Durand a partir de Lévi-Strauss que o definiu

como uma espessa unidade constitutiva, uma espécie de “átomo” basilar à

33

A homologia representa uma equivalência morfológica, uma semanticidade que está na base de todo o símbolo. Busca a materialidade dos elementos semelhantes e não apenas a sintaxe. É diferente da analogia que privilegia o reconhecimento de semelhança entre relações diferentes quanto aos seus termos. Enquanto a analogia pode ser comparada à arte musical da fuga, a homologia é variação temática. Exemplificando: os símbolos constelam porque são desenvolvidos a partir de um mesmo tema arquetipal, pois são variações de um mesmo arquétipo (DURAND, 2002, p. 43).

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35

construção do discurso mítico. “É a menor unidade do discurso mítico que é

redundantemente significativa, isto é, repetitividade” (TEIXEIRA; ARAÚJO, 2011,

p.63). Não se reduz a uma única palavra ou mesmo sintaxe, constituindo-se por um

conjunto semântico, abarcando a palavra significada, o atributo e o verbo. Assim,

entende-se por mitema o agrupamento de palavras que de algum modo exercem o

papel mitêmico. O mitema que para Durand (1996, p. 256) “é o elemento significativo

mais pequeno de um mito, caracterizado por sua redundância, a sua metábole”, é

constituído por um “pacote de relações”, imbuído de significação impregnadas de

filamentos condensados. Nesta Tese o mitema representa o sentido latente que está

subsumido na memória inscrita no corpo de cada estudante.

Assim cheguei a quatro mitemas: A infância presente no Corpo-terno; O

desejo do voo no Corpo-cativo; Um ser de carne que pensa, outro que age no

Corpo-fracionado; A busca pela liberdade desejada no Corpo-comedido que

emergiram das pregnâncias que apareceram no decorrer da pesquisa. Estes

mitemas representam, de algum modo, como cada acadêmica assimilou, no decorrer

de seu trajeto formativo, os valores e a história herdadas de seus ancestrais e as

experiências vividas, revelando o sentido que perpassa seus gestos e define sua

maneira de ser, estar e agir no mundo.

2.1 As protagonistas

A minha inserção como discente do doutorado em atividades de Prática de

Pesquisa, de Extensão e Estágio de Docência proporcionaram-me um contato direto

com o Curso de Pedagogia da UFPel. Essa aproximação foi um elemento que

contribuiu à criação de um grupo para que a pesquisa fosse desenvolvida. Das

turmas que tive contato, selecionei dois grupos distintos: 1) acadêmicas que

integraram o projeto “A vida como escrita e leitura - interfaces entre arte e

imaginário”34; 2) e acadêmicas que participaram da disciplina “Estudos sobre

34

O projeto – do qual eu participei como ministrante – teve por objetivo retomar o trabalho sobre a reconstrução da trajetória educativa do aluno em formação inicial do Curso de Pedagogia da UFPel, buscando interfaces com as linguagens da arte e do imaginário. Participaram do projeto 20 acadêmicas de 2º e 4º semestre do Curso de Pedagogia.

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36

imaginário, educação e cultura: o entorno do cotidiano escolar”35, com ênfase em

Teatro e Imaginário.

Os dois grupos somavam um total de 43 pessoas, todas mulheres. Entre o

final do ano de 2010 e início do ano de 2011 enviei o convite36 para as acadêmicas

via e-mail. Houve um interesse de 9 para participar. Dessa maneira, agendei uma

reunião, em março de 2011, com o intuito de reunir em grupo aquelas que

demonstraram interesse, explicar a pesquisa – sua importância dentro do contexto

da Educação e da Formação de Professores – e como seriam realizados os

encontros. Cabe ainda ressaltar a participação de mais uma acadêmica, que no ano

de 2011 estava no primeiro semestre do Curso, contabilizando assim 10 pessoas. A

sugestão foi de minha orientadora – na época, professora da acadêmica – que

considerou relevante a participação da estudante na pesquisa, tendo em vista a sua

interação corporal em aula.

No primeiro encontro da pesquisa, em abril de 2011, estiveram presentes 8

das 10 acadêmicas que estavam na primeira reunião, havendo a participação efetiva

de 5 até o final. Das 5, 4 foram sujeitos desta Tese, pois considerei aquelas que

tiveram 80% de presença. A seguir, passo a apresentá-las37, trazendo,

sumariamente, os relatos sobre o significado da pesquisa para cada uma delas.

L.; Cm.; M.; C.38 ... Quatro futuras professoras, mulheres, sujeitos que

biografaram corporalmente passagens de seu trajeto formativo, construindo em

cena, a partir do seu gestual, um cenário rico de imagens simbólicas. Imagens que

visibilizaram aspectos do seu reservatório imaginário. Reservatório que conjuga o

sujeito e o cosmos, o pessoal e o coletivo, a história da pessoa e do homo sapiens.

35

Trata-se da disciplina em que desenvolvi o Estágio de Docência. De caráter optativo, agrupou 23 acadêmicas de diversas turmas do Curso de Pedagogia. O objetivo centrou-se em introduzir e contextualizar as bases dos estudos do Imaginário e do teatro e suas possibilidades no trabalho junto aos alunos de séries iniciais. E, também, promover a experienciação teatral, a fim de sensibilizar o educador dos anos iniciais do ensino fundamental para a importância dessa linguagem, no desenvolvimento e na aprendizagem do aluno, levando-o a reconhecer o valor educativo do teatro na escola como um importante elemento a compor sua prática pedagógica. (Fonte: Plano de Ensino da disciplina). 36

Em apêndice segue o convite enviado às estudantes. 37

Foi encaminhado um e-mail para as estudantes com o objetivo de solicitar informações necessárias para eu apresentá-las na Tese. Nele eu fiz o seguinte pedido: “gostaria que em poucas linhas vocês se descrevessem – nome completo, idade, Pedagogia Diurno ou Noturno, qual semestre e algo mais que gostariam que aparecesse em relação a vocês na Tese”. L., M. e C. escreveram sobre o que significou a pesquisa em sua vida e Cm. trouxe uma frase que tem um significado para si. 38

Para me referir às protagonistas da pesquisa, utilizo somente letras que correspondem à inicial do seu nome. Todas elas concordaram com esta maneira de mencioná-las.

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37

Invariavelmente, tudo isso vai sendo inscrito, no decorrer dos tempos, na memória

do corpo de cada pessoa, influenciando a maneira de ser e estar no mundo.

L. tem 22 anos. Sua participação na pesquisa aconteceu enquanto cursava o

5º semestre do Curso de Pedagogia Diurno. O convite para integrar este estudo

aconteceu devido a sua participação no projeto de extensão. Para ela, a pesquisa

significou a oportunidade de explorar o seu corpo, conhecendo seus próprios limites

e suas possibilidades. “Passei a me enxergar um pouco mais não só „por fora‟ mas

também „por dentro‟. Pude relembrar e compartilhar tanto alguns dos melhores

momentos que vivi quanto outros que não foram tão bons."

Cm. tem 51 anos. Quando participou da pesquisa, estava no 1º semestre do

Curso de Pedagogia Diurno. Foi indicada pela minha orientadora. Mostrou-se desde

o início disposta a colaborar com a pesquisa. Cm. gostou demais do encontros. A

partir da sua escrita no Diário da Experiência39, manifestou o desejo em continuar

participando: “Espero poder participar sempre, mesmo sabendo que, em certos

momentos, não consigo expressar meus sentimentos de forma mais clara. Ainda

existem cadeias a serem abertas”. A sua participação na pesquisa remete também

à seguinte frase de Eça de Queiroz: “Ame como se nunca te houvessem ferido e

dance como se ninguém estivesse olhando".

M. tem 39 anos. Sua participação na pesquisa aconteceu quando estava no

5º semestre do Curso de Pedagogia Diurno. Chegou até a pesquisa por meio de

convite, pois participou da disciplina optativa um ano e meio antes. Sua presença no

decorrer dos encontros mostrou seu comprometimento e interesse. Para ela, a

participação neste estudo foi muito boa, pois além de ser divertido, levou-a a refletir

sobre muitas coisas da sua vida e também lembrar da sua infância e dos familiares

que não estão mais aqui, mas com certeza em seu coração.

C. tem 26 anos. Ao participar dos encontros estava cursando o 6º semestre

do Curso de Pedagogia Noturno. Recebeu o convite por ter participado do referido

39

Optei por buscar no Diário da Experiência de Cm. um fragmento que remetesse ao significado da pesquisa para si.

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projeto de extensão e também por ter cursado a disciplina optativa. Participou de

todos os encontros, demonstrando dedicação, comprometimento e empolgação com

a pesquisa. Ela coloca que até hoje, pelo menos uma vez por semana lembra-se dos

encontros. Segundo C. “Aqueles momentos estão bem presentes em mim”.

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3 CONCEITOS MOTORES

Para compreender teoricamente os pilares que sustentam esta Tese, faz-se

necessário problematizar o objeto de estudo a partir dos conceitos que alicerçaram

esta pesquisa. Neste capítulo, abordo no item 3.1 o campo teórico do Imaginário, a

partir dos conceitos de trajeto antropológico e reservatório, como centrais à

discussão. Bem como aspectos decorrentes do trajeto formativo das estudantes com

suas experiências vividas, em forma de escrituras, constituindo, assim, os seus

repertórios e as suas representações. No 3.2, amplio esta discussão, focando-me na

dimensão biográfica do corpo, evidenciando a ideia de que o corpo tem memória

que se instala de maneira indelével nos estratos mais profundo de cada ser humano.

Finalizo, com o item 3.3, apresentando a fenomenologia do sensível como conceito

inspirador ao desenvolvimento da proposta prática desta Tese.

3.1 O Imaginário: o grande denominador de todas as criações humanas

O ser humano, no decurso de sua existência, vivencia uma infinidade de

acontecimentos que poderão ficar registrados na forma de memória nos estratos

mais profundos de si. A somatória de cada memória integra o que aqui denomino os

conteúdos imaginários do trajeto formativo do sujeito, que compõem seu reservatório

imaginário. Reservatório que agrega um conjunto de crenças e valores pertencentes

a uma pessoa (DURAND, 1996). Penso ser necessário acrescentar que o imaginário

de cada sujeito está vinculado a um imaginário coletivo. Isto é, as imagens pessoais

estão de alguma maneira conjugadas as imagens arquetipais. São estas imagens,

somadas aos sentimentos, aos gestos, as lembranças, as experiências e as visões

do real que proporcionam realizar o imaginado (MACHADO DA SILVA, 2006). Enfim,

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as tonalidades de tudo que foi vivido e que de alguma maneira repercutiu e

repercute no ser humano cotidianamente. Diante disso, o reservatório imaginário

pode ser caracterizado como a impressão (gráfica) do mundo no corpo, ao longo do

processo formativo de cada pessoa.

No entanto, para acessar essa dimensão do corpo e visibilizar o reservatório

imaginário que impulsiona o ser humano a agir, é necessário um processo de

retomada do que foi vivido de algum modo. Foi este processo de retomada e

visibilização do que está inscrito no corpo, a partir de um trabalho focado na

biografização corporal pela improvisação teatral, que me alicercei para tematizar

sobre o Imaginário e o Corpo Biográfico.

O ser humano, nas interações com o meio, constrói um repertório de saberes

e experiências definidores da maneira como ele vai se constituindo. Nesse processo,

o imaginário tem um papel fundamental, sendo o grande denominador onde se

encontram todas as criações do pensamento humano, ativando, assim, a partir de

uma perspectiva simbólica, diferentes modos de compreensão do mundo.

O imaginário é como um lago existencial “que dá significado para nossa

existência individual ou grupal”, segundo Machado da Silva (2004, p. 22). Sobretudo,

ele é uma bacia semântica (DURAND, 2001), de onde derivam imagens, afetos,

experiências e sensações. Nesse “lugar” fica acumulado tudo o que é significativo

para nós e que nos impulsiona a agir cotidianamente.

Diante disso, pode-se dizer que o imaginário contempla as aptidões inatas e

as heranças ancestrais ao meio social e cultural em que o sujeito está inserido.

Portanto, ele é o conector que estrutura o entendimento humano; que, para Durand

(2001), passa a ser um conector obrigatório pelo qual se forma qualquer

representação humana40, que é tramada nas articulações simbólicas que advêm das

intimações de toda a ordem do vivido, arraigado numa bio-história pessoal.

Esta conexão proporciona uma maneira singular do indivíduo interagir,

intimando-o a um movimento de expansão e renovação embasado em processo de

simbolização que o fazem efetivamente participar da totalidade do mundo. É na

confluência dessas articulações que se dá a composição de imagens. Imagens que

40

Para Durand (1988, 1996, 2002), a representação é sempre uma re-(a)presentação do objeto ausente. Por isso, ao longo do texto é utilizado as duas formas de escrita: representação e re-(a)presentação.

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41

partem de um trajeto antropológico com suas trocas entre as pulsões sociais,

culturais e psíquicas.

Sendo assim, ao propor um trabalho para evocar a memória dos

acontecimentos vividos com o intuito de visibilizar as escrituras inscritas no corpo,

por meio do gesto, busco contemplar as imagens que compõem o trajeto

antropológico de cada acadêmica. Cabe ressaltar que ao falar em trajeto, estou me

referindo às experiências significativas ao longo do processo formativo das

estudantes, seja na escola ou fora dela, e que ao serem re-(a)presentadas fornecem

indícios para identificar as escrituras dos seus corpos.

Isto porque a noção de trajeto antropológico (DURAND, 1988, 1996, 2001,

2002) engloba aspectos que vão desde o nível neurobiológico até o nível cultural.

Isto quer dizer que a imagem, pregnante de conteúdo, vai ser produzida pelos

imperativos do sujeito que estão associados à forma como ele assimilou e

acomodou41 as experiências vividas (experiências afetivas e subjetivas) e os

estímulos do universo que lhe rodeia. Nessa relação subsume-se um jogo que

acontece via imaginário entre os gestos pulsionais, o meio social e material em que

está inserido, bem como suas matrizes fundadoras. Tais matrizes são frutos da

herança dos antecessores e das diferentes demandas que advêm do meio,

compondo assim a base sobre como cada pessoa se constituiu e interage em seu

contexto.

É na psique de cada indivíduo que pode ser identificado geneticamente,

segundo Durand (1988), diversos níveis matriciais42 que vão constituir a força que

impulsiona as suas atitudes psicofisiológicas de que derivam os “padrões simbólicos-

culturais” de uma determinada sociedade, isto é, os elementos “simbolizantes” do

símbolo.

O homo sapiens traz como característica uma atividade psíquica – salvo

algumas exceções – reflexiva, que não possui o imediatismo, a segurança nem

mesmo a univocidade do instinto. Isto é o que o diferencia dos outros animais e o

41

Cabe ressaltar que a articulação dos conceitos de assimilação, acomodação e adaptação, propostos por Piaget, com o campo teórico do Imaginário, foi empreendida por Durand. 42

Os níveis matriciais estão associados à potencialidade simbólica das imagens arquetípicas como fundantes nas escolhas do ser humano. É a partir desta ideia que Peres (1999) cunha o conceito de matriciamento, referindo-se aos conteúdos existenciais que se tornam motores de buscas e projetos de vida, revelando o conjunto de forças ainda não conscientes que movem cada pessoa, associado à representação do Imaginário enquanto “capital cultural humano”.

9

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transforma em Homo Symbolicus. Isto decorre de um “terceiro cérebro” que vem no

sapiens, “subsumir os dois cérebros histológica e fisiologicamente tidos já como

distintos: o do mamífero (o rinencéfalo, o cérebro límbico) e o vertebrado (o

palencéfalo)” (DURAND, 1996, p. 78). O que isto quer dizer? Que a partir desse

terceiro, a agressividade como a emotividade são interpretadas e reforçadas com

efeitos reflexivos, representativos e fantasiosos, atributo do neo-encéfalo. Isto nada

mais é que o processo de simbolização típico do universo humano.

Para o autor (1988, p. 79), o fator geral de equilibração que anima todo o

simbolismo se manifesta pela fisiologia de três esquemas de ação (chamado de

“verbais”, uma vez que o verbo é a parte do discurso que exprime ação),

manifestando a energia biopsíquica tanto no inconsciente biológico como no

consciente. Os esquemas constituem a referência dos gestos da espécie humana,

como uma expressão corporal, um registro da motricidade dos membros, da posição

postural e da mão43, sendo autenticamente anteriores à palavra e à escrita. O estudo

do gesto está relacionado diretamente à aparelhagem nervosa e ao fato do cérebro

constituir a sua última aquisição. O enriquecimento progressivo da sensibilidade tátil,

segundo Leroi-Gourhan (1965, p. 38), e do dispositivo neuro-motor, contribuiu

qualitativamente a este processo, sem alterar a natureza da aparelhagem

fundamental.

Para Durand (2001, p. 91),

as estruturas verbais primárias representam, de alguma forma, os moldes ocos que aguardam serem preenchidos pelos símbolos distribuídos pela sociedade, sua história e situação geográfica. Reciprocamente, contudo, para sua formação todo símbolo necessita das estruturas do comportamento cognitivo inato do sapiens. Assim, os níveis “da educação” se sobrepõem na formação do imaginário: em primeiro lugar encontra-se no ambiente geográfico (clima, latitude, localizações continentais, oceânicas, montanhosas, etc.), mas desde já regulamentado pelos simbolismos parentais da educação, o nível dos jogos (o lúdico) e das aprendizagens por último. E, finalmente, pelo nível que René Alleau denomina de “sintomático”, ou o grau dos símbolos e alegorias convencionais determinados pela sociedade para a boa comunicação dos seus membros entre si.

43

A mão na evolução do homem deixou de ser o utensílio (antes exercia o papel de manipulação, preensão, moldagem, trituração) para se tornar o motor. Isto é, os utensílios, nos primórdios da história do ser humano, confundiam-se com os gestos. Pela ação da motricidade da mão, o utensílio separou-se do gesto motor. Dessa maneira, o valor do gesto humano integrou o domínio do aparelho cerebral. Esse afastamento, que se deu entre a mão e o utensílio, refletiu no distanciamento que a sociedade assumiu em relação ao grupo zoológico, pois muito mais do que libertação do utensílio, a libertação do verbo – propriedade única que o homem dispõe, trouxe a possibilidade de situar, segundo Leroi-Gourhan (1965, p. 31), “a sua memória à margem de si próprio, no organismo social”.

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Isto é, a formulação do imaginário, a partir da noção de trajeto antropológico,

demonstra a complementaridade que existe entre as aptidões inatas do ser humano,

os esquemas de ação – que Durand teoriza a partir da noção de “gestos

dominantes” de Betcherev e o nível pedagógico e cultural relativos à formação do

indivíduo. Em outras palavras, é no decurso do trajeto, perpassado por uma

temporalidade e fluxo descontínuo, que os conteúdos do imaginário são produzidos,

racionalizando-se em uma “teatralização de usos legalizados, positivos ou negativos”

(DURAND, 2001, p.96), os quais conferem suas estruturas e valores provenientes

das diversas demandas sociais.

Assim, o trabalho de biografização corporal pela improvisação teatral ao

enfocar a (re)memoração de acontecimentos vividos no decorrer do trajeto formativo,

colocou-me em contato com os conteúdos imaginários concernentes ao movimento

bio-psico-histórico-cósmico-social vivido pelas estudantes ao longo de sua vida,

atribuindo uma intencionalidade aos seus gestos, que deflagraram as memórias

inscritas no corpo.

Os gestos atribuem sentido para a ação. Sua aparição reforça, atenua,

compensa ou mesmo substitui a palavra. O gesto enlaça, segundo Pereira (2010, p.

560),

o fora ao dentro e vice-versa; margem na qual se incluem a pluralidade dos sujeitos e do conhecimento; que integra o singular, o próprio ao comum, sem necessariamente subsumi-lo; antes, pelo contrário, que acolhe esse próprio na inteireza de sua diferença.

É no reservatório imaginário que os gestos encontram as referências que atribuem

uma intencionalidade à ação, visibilizando, assim, a força que impulsiona os seres

humanos cotidianamente.

“Garimpar” esse reservatório significou, nesta Tese, incitar as acadêmicas, a

partir de um processo de exploração de seus conteúdos imaginários, a evocação do

seu próprio viver, fazendo-as deparar-se consigo mesmas e dar visibilidade, por

meio dos gestos, às memórias inscritas no seu corpo. Essas inscrições, decorrentes

das experiências que foram marcantes ao longo da sua trajetória de vida,

constituem-se como fundadoras no que elas foram se tornando. Tudo isto para dar

conta de uma linguagem que não é valorizada no contexto educacional, mas é

primordial para uma abordagem do corpo na formação.

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3.2 O corpo tem memória!

Ao afirmar que o corpo tem uma memória, estou delimitando os aspectos que

sustentam esta Tese. Cabe ressaltar que não tenho a intenção de aprofundar a

discussão sobre sua anatomia ou fisiologia. Contudo, existiu o desejo de apresentar

uma discussão teórica que sustenta essa premissa e evidencia a concepção que

construí sobre o corpo, justificando os caminhos por mim percorridos ao longo da

pesquisa.

O corpo segundo Corbin (2009, p. 8) “é uma ficção, um conjunto de

representações mentais, uma imagem inconsciente que se elabora, se dissolve, se

reconstrói através da história do sujeito, com mediação dos discursos sociais e dos

sistemas simbólicos”. Desta maneira, ao investigarmos o corpo, também

investigamos o patrimônio existencial da humanidade. Para Leroi-Gourhan (1965, p.

23), ao nascer

o indivíduo encontra-se em presença de um corpo de tradições próprias à sua etnia, e, desde a infância, vai-se estabelecer um diálogo a diversos níveis entre ele e o organismo social. A tradição é biologicamente tão indispensável à espécie humana quanto o condicionamento genético o é às sociedades de insectos: a sobrevivência étnica baseia-se na rotina, enquanto que o diálogo que vem a estabelecer-se suscita o equilíbrio entre rotina e progresso, simbolizando a rotina o capital necessário à sobrevivência ao grupo, enquanto progresso representa a intervenção das inovações individuais, tendo em vista uma sobrevivência melhorada. (grifo meu)

Nesta relação entre rotina e progresso, o sujeito vai se constituindo. Quero

dizer que a partir da rotina que constitui os valores, a cultura, as crenças e demais

elementos que envolvem a existência do ser humano e sua integração ao grupo

social, surge a necessidade deste ser movimentar-se, evoluir. Motivado por este

desejo de evolução, inicia-se, então, o processo de criação e transformação do

meio, via imaginação criadora.

É necessário reconhecer a complexidade da noção de corpo, vislumbrando “o

papel que nele desempenham as representações, as crenças, os efeitos de

consciência” (CORBIN; COURTINE; VIGARELLO, 2009, p. 8) que para eles nada

mais é que uma “aventura aparentemente „fictícia‟, com seus pontos de referência

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imediatos, reorientando sua força e seu sentido” (idem). Frente a isso, cabe destacar

que a forma como o corpo é abordado, seja na vida cotidiana ou num espaço

determinado, tem relação direta com as escrituras que vão sendo inscritas nos

corpos dos sujeitos.

Investigar a dimensão biográfica nele impressa é também investigar alguns

indícios e vestígios da história do homem na sua temporalidade. Partindo desta

constatação de que a representação de corpo se constrói na relação das diferentes

interações que o ser humano tem ao longo da vida em formação, percebe-se a

complexidade subsumida neste processo.

Assim, a abordagem do corpo neste estudo está associada à ideia de

habitáculo (JOSSO, 2009a), que abarca a concepção de “suporte” onde ficam

registradas as experiências humanas. Ao mesmo tempo, associa-se a ideia de

protagonista das assimilações e acomodações de elementos conhecidos e não

conhecidos, a partir de uma linguagem que não necessita prioritariamente da

palavra, mas que fala a partir da rigidez e fluidez dos gestos. Gestos que trazem

vestígios das experiências que foram significativas no decorrer do trajeto formativo e

que deixaram registros no corpo do indivíduo. Tais registros integram a biografia do

corpo e constituem a referência do modo como o ser humano se expressa no

mundo. A somatória de tudo isto compõe o que estou chamando de memória do

corpo.

Leloup (1998) considera o corpo como o lugar de nossa memória mais

arcaica, onde nada é esquecido. Seja na primeira infância ou na vida adulta, cada

acontecimento vivido deixa sua marca no corpo de maneira profunda. Grotowski

(2010) também discute sobre a ideia de que o corpo é memória, tendo como

premissa que o corpo-memória é determinante na maneira que o ser humano se

relaciona com certas experiências ou ciclos de experiências no decorrer de sua vida.

Essa memória constitui-se na relação do ser humano (corpo) com o meio em

que está inserido, perpassada por diferentes dimensões44, que dilatam a relação do

ser humano com/no mundo a partir da ideia de que para estar vivo em diferentes

níveis é necessária uma vinculação e relação consigo mesmo e o cosmos. São

essas interações que ficam na memória do corpo, registradas no reservatório de

44

Esta ideia é alicerçada em Josso (2008b, 2009), que teoriza sobre as “dimensões do nosso ser no mundo”.

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cada pessoa, podendo ser resgatadas em algum momento, através de uma escuta

do que emerge de si.

Em outras palavras, os acontecimentos vividos pelo ser humano no decorrer

de sua vida e que de algum modo lhe tocaram instalam, segundo Bois (2008b), “um

estado particular”, sendo armazenados em forma de memória em suas células e no

seu universo cognitivo, afetivo e gestual. Essa memória é “constituída por uma

mistura de hábitos, de crenças e de saberes oriundos de tempos imemoriais,

transmitidos a cada um por meio de condições específicas à sua inscrição sócio-

histórica” (LAPOINTE; RUGIRA, 2012, p. 53).

A constatação que o corpo possui uma memória foi definidora para os

caminhos e os estudos realizados por Bois (2008a, 2008b). No decurso de seu

trajeto pessoal e profissional como terapeuta – que se iniciou no interior de uma

racionalidade e objetividade médica – deparou-se com a memória do corpo humano,

como uma subjetividade, rica e transbordante. Esta subjetividade tomava a forma de

um Movimento Interno, de variações de estados que portavam informações

significantes para o sujeito. Sua dedicação ao estudo das propriedades desse

Movimento inicialmente por meio da Osteopatia encaminhou-lhe a uma exploração

da força interna de todas as partes do corpo, principalmente nas fáscias45.

Da sua escuta atenta ao Movimento Interno sob suas mãos, ele percebeu que

este movimento não se tratava apenas de uma comunicação silenciosa, mas estava

relacionado ao sentido pelo qual o corpo do homem se torna humano46. Dessa

maneira, empenhou-se na atmosfera tissular, que percorria o centro do corpo,

acessando uma profundidade que não suspeitava. Bois descobre, então, “um corpo

impregnado de tonalidades adormecidas (...) que tinham ficado densas, nós que

pareciam conter uma sensação gelada, como se o corpo fosse constituído por

camadas, algumas das quais fossilizadas, gelificadas, anestesiadas” (BOIS, 2008b,

p. 52).

As constatações do autor dizem respeito a uma memória corporizada,

resultado dos modos como o sujeito, ao longo do seu trajeto formativo, foi tocado

pelos acontecimentos que lhe sucederam. Tudo o que tocou, roçou, acariciou, os

golpes que recebeu, as feridas que se formaram, os traumas, as emoções e os

45

Tecidos onipresentes no corpo. 46

Ele percebeu que suas percepções não correspondiam às descritas pela Osteopatia, levando-o a elaborar um novo conceito terapêutico: a Fasciaterapia e posteriormente a Somato-psicopedagogia.

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afetos sentidos, ligadas a situações positivas ou não, a maneira que assimilou as

experiências vividas, mesmo reelaboradas pelo intelecto, esquecidas e/ou

apagadas, por terem se instalado de forma indelével no corpo, ficaram armazenadas

em suas camadas mais profundas, nos estratos mais subterrâneos do ser (SINGER,

2005). Diante disso, podemos pensar no corpo do ser humano como uma memória

viva do trajeto que ele percorreu no decurso de sua vida, repercutindo na forma dele

interagir no e com o mundo.

As inscrições no corpo projetam-se também, segundo Queré (2008, p. 208),

nos “sistemas de regulação e adaptação (sistemas nervosos neurovegetativo,

neurovascular, imunológico)” a partir de dois caminhos: um físico e outro psíquico.

Físico, que engloba a integridade do organismo e psíquico, a esfera psicológica.

Na esfera psíquica, cabe ressaltar que muitas das experiências que são

significativas na história do ser humano são percebidas através da vivência de uma

emoção. Para Queré (2008), as emoções primárias como alegria, medo, raiva,

tristeza, são inatas, estando presentes desde o nascimento. No decorrer da vida,

principalmente na fase adulta, elas se tornam mais complexas e numerosas,

compondo a estrutura das sensações que a linguagem se torna capaz de nomear.

A emoção participa da capacidade de raciocinar apropriadamente. Quando a emoção é demasiado forte ou, pelo contrário, não existente, a pessoa vê-se incapacitada de ter um raciocínio adequado. Se os circuitos fossem diretamente da percepção ao pensamento, ou do corpo ao pensamento, sem passar pelo cérebro emocional, o sujeito não sentiria a si mesmo nem seria afetado por eventos externos e ou internos, permanecendo assim distanciado de parte de sua vivência (QUERÉ, 2008, p. 211).

As emoções assumem um papel de extrema importância no processo de

inscrição corporal, ao mesmo tempo em que imprimem uma tonalidade à

presentificação das memórias, pois atribuem uma intenção específica ao gesto no

momento da re-(a)presentação do vivido.

Nesse sentido, a relação homem-mundo perpassa o corpo em dois sentidos:

como repercussão de uma história herdada e de acontecimentos vividos, que

produzem memórias que se inscrevem no corpo e podem afetar tanto o aspecto

anatômico/fisiológico quanto o aspecto psíquico/emocional; e, como elemento motor

à ação, pois busca nessas inscrições as bases que servem de referências para sua

interação efetiva no mundo.

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Este trabalho de biografização corporal que usou, prioritariamente, a

improvisação teatral, contemplou esse duplo movimento, pois incitou as estudantes

a lançarem-se em um processo de “garimpagem” dos acontecimentos marcantes de

sua vida, tendo em vista a re-(a)presentação do vivido por meio do gesto. Por sua

vez, o gesto buscou nos registros corporais a tonalidade necessária para “colorir” a

cena, sendo um indício de visibilidade da escritura do corpo. Investir nesta

visibilização foi o caminho em que apostei para mostrar a importância do corpo como

um saber relevante a ser contemplado na formação de professores e que poderia

auxiliar a pensar o projeto de (auto)formação.

A seguir, apresento a fenomenologia do sensível como conceito inspirador ao

desenvolvimento do trabalho prático desta Tese.

3.3 Da fenomenologia do sensível ao processo de biografização corporal pela

improvisação teatral: inspirações à pesquisa

O contato com a metodologia de Bois (2006, 2008a, 2008b) em relação à

abordagem do corpo, em um primeiro momento através dos seus textos e depois

durante o estágio doutoral realizado em Portugal, serviu de inspiração à construção

da proposta relacionada à biografização corporal, objeto desta Tese. A

fundamentação do corpo como elemento central da aprendizagem e fonte de

conhecimento foi o quesito em que me centrei ao desenvolver tal processo pela

improvisação teatral. Tentei descartar a palavra em favor do gesto, para buscar uma

abordagem fenomenológica do corpo, com o intuito de romper com a representação

instituída de corpo como função utilitária, para abordar a sua dimensão sensível47.

Tal abordagem que proporciona a pessoa colocar-se em um processo de

investigador de si e acessar os seus reservatórios interiores.

Para compreender o paradigma do sensível é necessário, segundo Bois; e

Rugira (2006, p. 32), de uma nova teoria do conhecimento, que acompanhe a

47

Bois e Rugira (2006) chamam a atenção para a necessidade de uma ressignificação da representação instituída sobre o corpo, propondo outra abordagem conhecida como o paradigma do sensível.

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ruptura da imagem de corpo apenas como objeto. Isso para considerá-lo o centro da

aprendizagem e a fonte de conhecimento.

A abordagem de Bois sobre o corpo acontece na experiência pela mediação

corporal e cria as condições de entrelaçamento entre o “eu conhecedor” e o “eu

perceptivo”. O sujeito, ao colocar-se num processo de observação de si, tem a

possibilidade de acessar um conhecimento “imanente corporizado”, sustentado

numa fenomenologia do sensível que, segundo Bois, nasce da experiência do

momento vivido no aqui-agora. O que significa tratar de

um conhecimento experiencial que oferece vivências interiores significantes. Como é que este pensamento que se deixa pensar através de uma relação corporal se revela à consciência daquele que a vive? O conhecimento imanente elabora-se na matéria silenciosa. Vista desta maneira, a autorização noética do sensível consiste em “deixar-se pensar” ou em “deixar-se reflectir” e não tanto em pensar ou reflectir “sobre qualquer coisa”. O corpo habitado não é apenas sede de uma fusão de sensações, nem de variações de tonalidades, mas é um lugar de emergência de uma forma singular do pensamento que acontece na vida imediata da vivência corporal (BOIS; RUGIRA, 2006, p. 33-34).

Nesse sentido, o corpo sensível, ou então, o corpo fenomenológico é

resultado de uma experiência concreta, que se foca na vivência do sujeito e nas

ressonâncias do que esta vivência provoca em si. Resulta de um “deixar-se pensar”

e “deixar-se reflectir”, que são consequências de um pensamento que acontece no

ato da vivência corporal, e não de uma atividade mental de pensar ou refletir sobre

alguma coisa já vivida, por exemplo. É um corpo presente ao aqui-agora e

extremamente atento a tudo que lhe acontece no interior da experiência. Ao assumir

tais características, esse corpo, segundo Josso (2010, p.178-179), passa a ser

plenamente ator de sua vida e capaz de engendrar a vida como um companheiro, de início. Um corpo consciente de si e cuidando de si para o outro que tem dentro de si. Uma relação com seu corpo de fora, seu corpo de dentro e um corpo dentro que é uma parte de si.

Neste processo, o sujeito é consciente e percebe tudo o que vive e sente,

deixando emergir da relação com seu corpo as subjetividades corporais, imaginárias

e metafóricas. Ou seja, há um interesse pela criação corporal que acontece no

decorrer do vivido. A pessoa é convidada a assumir uma postura de sujeito ator-

espectador e “vivenciar” o que se passa durante o momento da experiência

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concreta: “„vivenciar‟ o corpo, o movimento, suas percepções, seu pensamento” (...)

tomar consciência do que é sentido de forma mais clara e distinta, mais

aprofundada; (...) para cercar os contornos ou compreender o significado” (BOIS,

2008b, p. 143-144). O significado é construído pela descrição da experiência vivida a

nível fenomenológico, metafórico e simbólico.

A percepção é o ponto fundamental no processo da relação com o corpo

sensível. Poderia assim dizer que, o corpo sensível corresponde à análise da

percepção corporal e os sentidos que se criam da relação privilegiada com o corpo.

A questão do corpo provém da análise da percepção: o acesso ao mundo faz-se pelo corpo, toda a percepção repousa sobre as cinestesias, ativas e passivas. E, como fenomenologia é, ao mesmo tempo, uma filosofia da consciência e uma filosofia do sentido, a questão que se coloca é saber a natureza de consciência que tenho de meu próprio corpo e o sentido que se desprende dessa relação privilegiada com meu próprio corpo. (AUSTRY, 2008, p. 125)

A tomada de consciência e a compreensão dos significados do que foi

vivenciado a partir da experiência concreta possibilita a descoberta de algo novo,

levando o outro a pensar de forma diferente do habitual. Uma “nova ancoragem

identitária” (BOIS; RUGIRA, 2006, p. 39) surge, gerando uma ação efetiva da pessoa

no mundo. Há uma renovação da matéria corporal em sua densidade, tonicidade,

seus eixos, influenciando, segundo Danis Bois (2008a, 2008b) diretamente a

maneira de ser, estar e agir de uma pessoa após este encontro profundo com seu

corpo. O autor denomina esta transformação de “Eu renovado” (BOIS, 2008b). Um

eu que se construiu na base da experiência, que levou a uma vivência e,

consequentemente, à tomada de consciência do sujeito com o seu corpo, com suas

ações e também com o mundo e os outros ao seu redor.

Para Danis Bois (2008b, p. 50-51), o “eu renovado” é um

eu do presente, plástico, já que tem a faculdade de renovar-se a todo momento e em todas as idades, ao contato com a experiência vivenciada e compreendida. Aqui, o “saber do corpo” é solicitado, percepcionado, revisitado pela percepção, operação que põe em jogo “o movimento das idéias”. A noção de Eu renovado contém a idéia de uma possibilidade de maneiras de ser.

Abaixo segue um esquema para exemplificar as etapas acima mencionadas

numa perspectiva do corpo a partir da abordagem do paradigma do sensível:

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Fig. 1 – Esquema elucidativo sobre as etapas que envolvem um trabalho focado no Paradigma do Sensível

A partir do quadro exposto, importa dizer que nesta pesquisa eu me utilizo da

experiência, da vivência e da significação. Dessa maneira, a fenomenologia do

sensível foi fonte de inspiração à medida que elaborei uma experiência concreta com

o intuito de evocar a memória e visibilizar as escrituras do corpo, o que aconteceu

por meio de uma vivência específica de biografização corporal. Tal direcionamento

evidenciou o corpo como protagonista na narrativa das acadêmicas. Essa postura

colocou-as como investigadoras de si e porta-vozes do que emanava do corpo a

partir do gestual. Gestual que visibilizou as escrituras corporais que compõem o

reservatório imaginário de cada uma delas. Isto ocasionou uma significação, que não

foi o foco desta Tese, mas apareceu principalmente na escrita do Diário da

Experiência.

Para finalizar este capítulo, é necessário ressaltar que a discussão em torno

dos estudos do Imaginário, do Corpo e da Fenomenologia do Sensível constitui a

base para o próximo capítulo, que pode ser considerado o núcleo central desta

Tese. Busco, a partir dos conceitos motores aqui apresentados, elucidar as

convergências entre o Imaginário e o Corpo Biográfico.

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4 AS CONVERGÊNCIAS ENTRE IMAGINÁRIO E CORPO BIOGRÁFICO

O principal intuito deste capítulo foi tecer as convergências e as relações

entre Imaginário e Corpo Biográfico, como fundamento teórico e analítico da Tese.

Pretendo, mostrar a relação intrínseca existente entre eles, com o objetivo de

legitimar a importância do campo teórico do Imaginário para o conceito de Corpo

Biográfico.

Desde já, é necessário elucidar que a abordagem do corpo neste estudo está

ancorada em uma concepção ampla que o considera como matéria (pele, músculos,

ossos, órgãos) e também suporte de um ser que é percipiente, sentiente e pensante

(BOIS, 2008a, 2008b). Um corpo que é “habitáculo” das representações (JOSSO,

2009a), onde ficam registradas as experiências humanas. Que também pode ser

comparado a uma caixa de ressonância de nossa história individual (QUERÉ, 2008,

p. 207), repercutindo aspectos relativos às heranças dos nossos ancestrais, a

cultura, as fases da vida, a sociedade, bem como as relações que estabelecemos

com e no mundo. Ou mesmo, segundo Crema (1998, p.9), “escritura de argila que

somos”, revelando ser o corpo o nosso texto mais concreto, um registro vivo48.

Estas concepções em torno do corpo do ser humano reforçam o pressuposto

de que a nossa história, de acordo com Queré (2008, p. 208), “inscreve-se em nosso

corpo, na nossa carne e nos nossos grandes sistemas de regulação e adaptação”,

ideia já referida anteriormente, encontrando-se com uma história biológica herdada

dos que nos antecederam e que traz os vestígios da história da humanidade.

Os estudos de Leroi-Gourhan (1965) apontam para a inscrição de uma

história individual e coletiva, na medida em que revela que o ser humano traz 48

Outra ideia de corpo no sentido amplo do termo pode ser encontrada na obra de Vitrúvio (arquiteto e engenheiro romano que viveu no século I a.C.). Para ele, o corpo humano era um reflexo do universo, um microcosmo, servindo de base para construir toda a sua teoria em torno da Arquitetura, a partir da comparação entre a simetria do corpo e a harmonia entre as partes de um edifício, continuando a antiga tradição de um edifício sagrado. Tal visão é embebida na harmonia geomântica antiga entre o homem e o mundo. (PENNICK, 1980)

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consigo uma história proveniente de seus ancestrais. No decorrer de sua vida, um

diálogo é estabelecido em diversos níveis entre as tradições herdadas de sua etnia e

o organismo social em que está imerso, abrindo a possibilidade de uma ampliação e

atualização da história do indivíduo. É nesta confluência entre o herdado e o vivido,

entre as funções inatas e as relações com o meio, que as escrituras vão sendo

inscritas e somadas a este corpo, sendo visibilizadas nos gestos de cada pessoa.

Essas articulações são construídas a partir de um processo de assimilação49,

acomodação50 e adaptação51 (PIAGET, 1975) que acontecem na relação sujeito

versus meio e vice-versa. Esse é o momento em que há a apreensão e a

ressignificação do mundo exterior para dentro de si (PERES, 2009).

É nesta conjuntura entre as intimações subjetivas e objetivas, entre os

imperativos humanos a nível psíquico e fisiológico, imanentes da espécie zoológica

e o que provém do meio social, cultural e histórico que o Homem evolui e o

imaginário é produzido. O imaginário, para Durand (1996, p. 65) “é o reservatório

concreto da representação humana em geral, onde se vem inscrever o trajecto

reversível que, do social ao biológico, e vice-versa, informa a consciência global, a

consciência humana”.

As representações humanas, enquanto imagens pregnantes de sentido, nada

mais são do que

esse trajeto no qual a representação do objeto se deixa assimilar e modelar pelos imperativos pulsionais do sujeito, e no qual, reciprocamente, como provou magistralmente Piaget, as representações subjetivas se explicam “pelas acomodações anteriores do sujeito” (DURAND, 2002, p. 41).

Podemos pensar o corpo como a inscrição viva e concreta do trajeto formativo

de cada pessoa. Nesse sentido, é importante pensar que cada acadêmica, ao

chegar ao Curso de Pedagogia, traz em seu corpo os registros de um vivido.

Registros que compõem a dimensão biográfica do corpo e que são fundadores a

49

Assimilação acontece quando o sujeito depara-se com um elemento estranho, havendo modificações em sua estrutura orgânica para que haja a assimilação desse elemento, que passa a integrar os esquemas de ação do sujeito. Os esquemas são estruturas cognitivas ou padrões de comportamento ou pensamento ocasionados na integração de unidades mais simples e primitivas em um todo mais amplo, mais organizado e mais complexo. Eles não são fixos, transformando-se e refinando-se continuamente (PULASKI, 1986). 50

A ação do elemento sobre o sujeito resulta em uma modificação em sua estrutura, caracterizando assim a acomodação (PULASKI,1986). 51

É a inserção do elemento, que em um primeiro momento era estranho, na estrutura mental do sujeito (PULASKI, 1986).

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54

nível físico, cognitivo, afetivo e psíquico do que elas se tornaram e vêm se tornando

no decorrer de sua vida. Tudo isto integra o reservatório imaginário onde cada

estudante busca suas referências para interagir no espaço em que está inserida.

Por mais que o corpo esteja presente, como bem evidenciou Josso (2010),

em tudo o que elas fazem ao longo de sua vida, nem todas têm consciência do seu

Corpo Biográfico, pois para acessá-lo e visibilizá-lo é necessário assumir uma

postura de pesquisador de si, lançando-se a uma “garimpagem” minuciosa de seu

patrimônio vivencial. Assim, eis este estudo, que enfocou o Corpo Biográfico das

estudantes do Curso de Pedagogia da UFPel, a partir de um processo de evocação

das memórias e re-(a)presentação do vivido por meio da linguagem gestual. Este

direcionamento envolveu as experiências marcantes na vida do indivíduo, abarcando

traços bio-psico-cósmico-sociais, históricos e também culturais da história de cada

um, por meio do exercício de biografização corporal pela improvisação teatral.

O conceito de Corpo Biográfico, inicialmente cunhado por Danis Bois (2008a,

2008b) e, posteriormente, estudado por Marie-Christine Josso (2008a, 2008b,

2009a, 2010) e outros pesquisadores, constitui-se na tecetura de três dimensões: a

vivência, a memória e o imaginário, permeada por uma temporalidade, aqui

nomeada como motores (a)temporais no trajeto antropológico. A ideia de motores

(a)temporais é entendida como o movimento que o sujeito empreende ao garimpar

seu reservatório imaginário com vistas à presentificação das memórias que foram

significativas no decurso de seu trajeto de vida. Este movimento recorre às

experiências do passado, atualizando a situação vivida no presente, projetando-se

também em direção ao futuro.

Vejamos o diagrama:

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55

Fig. 2 – Figura elucidativa da relação entre a teoria de Danis Bois e a Antropologia do Imaginário: pontos de convergência entre o modelo teorizado por Danis Bois e o campo teórico do Imaginário

Para compreender o diagrama faz-se necessário elucidar sobre a vivência e a

memória, para então tecer as relações entre o Imaginário e o Corpo Biográfico.

Vejamos.

A vivência, na teoria de Bois, pode ser compreendida como a dimensão

fundamental para o desenvolvimento de um trabalho focado no Corpo Biográfico.

Neste estudo, ela é caracterizada pelo exercício de biografização corporal,

enfocando a linguagem gestual como primordial na narração de si. A partir do

momento em que foquei na relação entre a vivência e o Corpo Biográfico ancorada

na teoria em questão, fui adentrando na dimensão fenomenológica (dimensão

sensível). Nela, o corpo não é meramente objeto52, mas protagonista de

reservatórios e memórias.

52

Na cultura ocidental, a supremacia de paradigmas que privilegiaram o pensamento analítico, do estatuto da razão como único legitimador do conhecimento verdadeiro, incidiu na subestimação, ofuscamento e até a denegação do corpo. Esta concepção resultou numa interpretação do homem e do universo baseada em “leis naturais”. A abordagem do corpo limitava-se a um conjunto de órgãos que estavam interligados por leis biofísicas (numa perspectiva anatômica, mecânica, fisiológica, bioquímica...), segundo ressalta Silva; Almeida; Romero e Beresford (2004). Esse olhar sobre o corpo reforçou a dicotomia entre corpo e alma instituída a partir dos estudos de René Descartes. Esta

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Desse modo, a vivência no contexto desta Tese caracterizou-se pela postura

de sujeito ator-espectador que cada estudante assumiu durante o momento de

experienciação com o seu corpo, exigindo uma atenção voltada ao aqui-agora. Isto

significou estar presente ao exercício corporal e a si mesmo o tempo todo. Foi o que

aconteceu com as estudantes que participaram deste estudo. Em cada encontro,

foram desafiadas a biografarem-se somente com a linguagem gestual, re-

(a)presentando, em cena, momentos do seu trajeto formativo. Percebe-se que a

partir do momento em que elas exercitaram seus corpos atuantes no seio da

experiência, deixaram-se tocar pelo que foi significativo em suas vidas. E, assim,

revelaram indícios que me auxiliaram a perceber as inscrições em seus corpos.

Assumiram o papel de sujeito consciente, pela percepção do que viviam e sentiam,

deixando emergir da relação com o corpo as suas subjetividades corporais, que

acionaram a memória, concedendo o acesso aos seus reservatórios imaginários.

Neste processo, tentei apreender suas memórias. Elas são um registro do

vivido que assegura ao ser humano, não apenas a consciência da sua existência,

mas, acima de tudo, representa a possibilidade de regressar e (re)criar os momentos

que foram fundantes em uma vida. Em outras palavras, a memória comporta um

caráter eufemizante, constituindo um dos caminhos para driblar o tempo e o destino.

Nesta pesquisa, significou a possibilidade de reencontro com um tempo vivido,

experimentando uma relação experiencial com o corpo. Rompeu-se com a lógica

temporal, buscando os acontecimentos significativos do passado, que marcaram

cada uma. É fruto de uma criação que atribui uma espessura ao que foi vivido, a

partir de uma esfera fantástica, desvinculando-se das ordens do tempo.

Neste sentido, a memória possibilita organizar, a partir de um fragmento, o

conjunto que compõe o todo, impregnada pelas significações do momento. Para

Durand (2002, p. 403),

a organização que faz com que uma parte se torne “dominante” em relação a um todo é bem a negação da capacidade de equivalência irreversível que é o tempo. A memória – como imagem – é essa magia vicariante pela qual um fragmento existencial pode resumir e simbolizar a totalidade do tempo reencontrado (...) que motiva todas as nossas representações e aproveita todas as férias da temporalidade para fazer crescer em nós, com a ajuda

subestimação prevaleceu também no contexto escolar, associando a ideia de corpo apenas a sua anatomia e a uma abordagem mecânica, de um corpo-objeto, direcionada a ouvir e executar funções, ou seja, a favor da razão (DESCARTES, 2001).

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57

das imagens das pequenas experiências mortas, a própria figura da nossa esperança essencial.

A memória é essa magia vicariante, à medida que possibilita ao ser humano,

a partir de um processo (a)temporal, reencontrar-se com o que foi significativo em

sua vida, em forma de imagens que remetem às experiências vividas. Imagens que

atribuem um novo sentido ao tempo presente, renovando a esperança diante das

adversidades de um tempo que a todo o momento relembra a esse ser, a sua

finitude.

A memória, segundo Izquierdo (1989)53, é resultado das coisas que no

decorrer da vida a pessoa percebe ou sente. Relaciona-se diretamente ao

armazenamento e evocação, também chamada de recordação ou lembranças, de

informações adquiridas pelas experiências vividas. A aquisição destas memórias

chama-se aprendizado. Para o autor (1989, p.90),

o aprendizado e a memória são propriedades básicas do sistema nervoso; não existe atividade nervosa que não inclua ou não seja afetada de alguma forma pelo aprendizado e pela memória. Aprendemos a caminhar, pensar, amar, imaginar, criar, fazer atos-motores ou ideativos simples e complexos, etc.; e nossa vida depende de que nos lembremos de tudo isso.

Nesse sentido, a memória assume um papel fundamental, pois o

armazenamento de tudo que aprendemos no decorrer da vida, em forma de

lembrança, é fator determinante à evolução do ser humano. Assim, a aquisição de

outras aprendizagens dependerá da memória produzida anteriormente.

Diante disso, é necessário também fazer outra ressalva: a não mobilidade de

desejos e sentimentos ou mesmo a indiferença diante um fato vivido “pode não ser

incorporado como conhecimento e aprendizado” (BRANDÃO, 2008, p. 10). Isso

geralmente repercute na não recuperação desse fato, pois ele não se transformou

em memória de longa duração. Nesse sentido, podemos pensar que somente ficam

gravados aqueles acontecimentos que tiveram um significado para a pessoa. Assim,

visibilizá-los possibilita refletir sobre momentos que foram fundantes no decorrer do

trajeto formativo. Desta maneira, a memória, a partir de Brandão, pode ser pensada

como um processo autoformativo.

53

Médico, pesquisador da área de Neurociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

14

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58

É pertinente acrescentar também, que a formação das memórias do indivíduo

está associada a experiências não vividas diretamente, mas transmitidas de geração

para geração através do grupo familiar e social que integra. Isto é, uma memória

decorrente de um processo grupal/coletivo.

Leroi-Gourhan (1965, p. 13) relaciona a memória como uma manifestação

grupal/coletiva baseada na linguagem, em que o grupo social “apenas sobrevive

através do exercício de uma verdadeira memória na qual se inscrevem os

comportamentos”. A educação insere-se nesse contexto para agir no

comportamento operatório do homem, que traz um condicionamento genético e

também um condicionamento nascido da experiência individual.

A memória de construção individual, assim como a inscrição dos programas de comportamento pessoal, são totalmente canalizados pelos conhecimentos, cuja conservação e transmissão são asseguradas em cada comunidade étnica pela linguagem. Surge assim um autêntico paradoxo: as possibilidades de confrontação e de libertação do indivíduo baseiam-se numa memória virtual cujo conteúdo é pertença da sociedade (LEROI-GOURHAN, 1965, p. 22).

Do ponto de vista da memória autobiográfica em histórias narradas, a

linguagem encaminha um processo de reflexão, compreensão, reorganização e

ressignificação de trajetórias e projetos de vida e também de trabalho, numa

articulação de memórias individuais e também grupais/coletivas, dando-lhes,

conforme Brandão (2008, p. 15), um “sentido-significado”. Para ela, “essa história,

que é nossa e dos grupos aos quais pertencemos, diz-nos quem somos, auxilia e

fortalece a nossa identidade, ilumina nosso caminho na busca de sentidos para

nosso ser-estar no mundo” (idem).

Conforme Izquierdo (2004), tanto a formação quanto a extinção da memória

relaciona-se ao resultado de interação bioquímica que pode facilitar ou dificultar a

cognição, o aprendizado, a utilização e a sua formação. O processo consiste em

entender que tudo o que incide nos sentidos é reelaborado, podendo vir a ser uma

aprendizagem e, consequentemente, uma nova memória. Brandão insere-se nesta

discussão, ressaltando a influência de dois aspectos em relação a este processo.

Segundo ela,

de um lado, temos as condições neurobiológicas que permitem a formação e a consolidação das memórias; por outro, a emoção que acompanha o fato

15

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vivido, sem a qual não haveria esta chamada consolidação e, portanto, a possibilidade de resgate ou rememoração. Nada somos além do que recordamos... Mas também do que esquecemos, seja as lembranças silenciadas (voluntárias ou involuntariamente), seja os não-ditos (BRANDÃO, 2008, p. 12).

Nesse sentido, a memória pode ser caracterizada como flutuante (DELORY-

MOMBERGER, 2010), pois ela é constituída tanto das lembranças quanto dos

esquecimentos. Portanto, a formação de memórias concretiza-se via corpo, que

assume o papel de refletor das experiências vividas. O corpo está presente em todas

as circunstâncias da vida do ser humano. É através dele que sentimos cada

sensação, emoção e que nos aventuramos em ações exploratórias e concretizamos

o processo de aprendizagem.

Nesta Tese, ele foi o evocador das memórias decorrentes dos eventos vividos

ao longo da vida do sujeito (o leitor poderá observar que a pesquisa enfocou mais o

período da infância e da escola, tendo em vista a obra de Janusz Korczak (1987),

que foi inspiração à pesquisa), com o intuito de acessar os reservatórios de imagens

pessoais, para daí visibilizar as escrituras que foram sendo assimiladas e

acomodadas no corpo das estudantes. Ressalto que as escrituras que se mostraram

pregnantes advieram das experiências provenientes da infância e da demanda da

educação formal e não formal (família e escola). Esta abordagem alicerçou-se na

premissa de Bérgson (1999, p. 178) ao afirmar que “é do presente que parte o apelo

ao qual a lembrança responde, e é dos elementos sensório-motores da ação

presente que a lembrança retira o calor que lhe confere vida”. Ou seja, para que ela

reapareça à consciência é necessário o encontro da memória pura até o ponto

preciso em que se realiza a ação.

Nessa perspectiva, o foco foi direcionado às memórias de longa duração e

declarativas de ordem episódica ou autobiográfica – ligadas ao período da infância

em conexão com o momento presente. Este direcionamento teve como objetivo

evocar os acontecimentos significativos desta época e buscar, no gesto de cada

acadêmica, indícios a evidenciar o Corpo Biográfico. Levei em consideração as

tonalidades que perpassaram o gesto durante o exercício de biografização corporal,

como um indício de como determinado acontecimento tocou e reverberou na

maneira como elas se constituíram no que são hoje. Esta abordagem efetiva-se

como o caminho escolhido para acessar o reservatório imaginário de cada

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estudante, evidenciando o trajeto antropológico que compõe a sua história bio-

psíquica-social. É neste ponto que se evidencia a relação Imaginário e Corpo

Biográfico, pois o Imaginário permite acessar um conjunto de imagens, símbolos,

crenças, valores, sentimentos, afetos, vestígios que constituem a história biográfica

do indivíduo.

Para Durand (2002), o imaginário, como já mencionado anteriormente, vai se

produzir na conjuntura entre o pessoal e o meio cultural, o subjetivo e o objetivo,

constituindo-se na trajetividade entre o gesto pulsional e o meio material e social.

São nos entrelaçamentos entre os gestos do corpo, os centros nervosos e as

representações simbólicas que o imaginário ganha uma ancoragem corporal que se

alicerça na ligação entre a motricidade primária, inconsciente e a representação.

Para a Antropologia do Imaginário, a representação parte de um trajeto

antropológico que resulta da constante troca, ao nível imaginário, entre os impulsos

subjetivos e assimiladores do sujeito e as intimações objetivas que partem do meio

cósmico e social. (DURAND, 2002). Neste trajeto, a representação é

a afirmação na qual o símbolo deve participar de forma indissolúvel para emergir numa espécie de “vaivém” contínuo nas raízes inatas da representação do sapiens e, na outra “ponta”, nas várias interpelações do meio cósmico e social. Na formulação do imaginário, a lei do “trajeto antropológico”, típica de uma lei sistêmica, mostra muito bem a complementaridade existente entre o status das aptidões inatas do sapiens, a repartição dos arquétipos verbais nas estruturas “dominantes” e os complementos pedagógicos exigidos pela neotonia humana. (DURAND, 2001, p. 90)

No cenário desta Tese, o trajeto contempla as experiências que foram

significativas na vida das estudantes no decorrer de sua história de vida. Isto é, que

inscrições relativas a estes acontecimentos ficaram impressas no corpo, abarcando

uma perspectiva relativa ao movimento que envolve o trajeto antropológico do

anthropos54, a partir da interpretação dos gestos que apareceram na proposta

metodológica do estudo aqui apresentado.

Ressalta-se que os gestos são considerados, por Durand, como primórdios do

imaginário. O autor, em seu livro “As Estruturas Antropológicas do Imaginário” (2002,

p. 41), refere-se a Bachelard para evidenciar que

54

O movimento pode ser seguido no sentido da fisiologia em direção à sociedade ou ao contrário, sociedade em direção à fisiologia (DURAND, 1988).

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os eixos das invenções fundamentais da imaginação são os trajetos dos gestos principais do animal humano em direção ao seu meio natural, prolongado pelas instituições primitivas tanto tecnológicas como sociais do homo faber.

Isso significa que nossos gestos são construídos a partir das vivências no

meio (social, cultural e histórico) no qual estamos inseridos, bem como pelo

movimento subjetivo da relação do homem com e no mundo, a partir do pensamento

simbólico. Cabe ressaltar que o ser humano também traz vestígios de gestos

passados, seja do seu trajeto pessoal, seja do trajeto do antrophos. Por isso, a

Antropologia do Imaginário defende que “qualquer gesto chama a sua matéria e

procura o seu utensílio, e que toda a matéria extraída, quer dizer, abstraída do meio

cósmico, e qualquer utensílio ou instrumento é vestígio de um gesto passado”

(DURAND, 2002, p. 41-42).

Neste contexto, os gestos adquirem o papel de protagonistas do movimento

de interação e simbolização do homem no mundo. Assim, a linguagem gestual

apresenta-se como potente e detonadora de imagens das quais muitas vezes a

palavra não consegue dar conta. Desta maneira, “o „corpo inteiro colabora na

constituição da imagem‟ e as „forças constituintes‟ que coloca na raiz da organização

das representações parecem-nos muito próximas das „dominantes reflexas‟” (ibidem,

p. 50).

Conforme mencionei no quadro 10, três são as dominantes reflexas: a

postural, que rege a postura vertical; a digestiva, relacionada à ingestão e expulsão

das substâncias e a copulativa, determinante de um ritmo corporal. Para o autor,

essa divisão forma as matrizes nas quais as representações humanas se convergem

e se integram, constituindo desta maneira as principais classes de formação das

imagens. “As imagens, não importa a que regime pertençam, ao contato com a

duração pragmática e com os acontecimentos, organizam-se no tempo, ou melhor,

organizam os instantes psíquicos em uma „história‟” (DURAND, 1988, p. 78).

A união entre os gestos e as representações acontece através do “schème55”,

que é a generalização dinâmica e afetiva da imagem, promovendo a junção entre os

gestos inconscientes da sensório-motricidade, as dominantes reflexas e as

representações. É o esboço, ou mesmo, o esqueleto dinâmico e funcional da

55

Traduzido em português como “esquema” (utilizo neste trabalho as duas formas de escrita). Durand busca o termo em Sartre, Burloud e Revault d´Allonnes que beberam em Kant.

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imaginação, que constitue as principais classes de formação das imagens. O

“schème” aparece como “o „presentificador‟ dos gestos e das pulsões inconscientes”

(DURAND, 2002, p. 60). É pela motricidade do corpo que Durand, conforme

ressaltam Teixeira e Araújo (2011), identifica a linguagem primeira do homem, o

verbo, que nada mais é do que a expressão corporal de cada ser humano.

Desta maneira, o imaginário expresso na motricidade do corpo revela a

dimensão fundante na constituição do conceito do Corpo Biográfico, uma vez que

direciona a pensar o corpo como um manancial racional e não-racional de impulsos

para a ação. Por ser possuidor de sentidos, emoções, sentimentos, afetos, imagens,

símbolos e valores decorrentes do trajeto antropológico de cada sujeito traz os

vestígios da história individual e também da história da humanidade. Estes são os

fomentos dos reservatórios imaginários humanos!

Diante do que foi exposto e retomando a imagem do diagrama, a relação

entre o Imaginário e o Corpo Biográfico nesta Tese, efetiva-se por uma ideia motora

que agregou as outras dimensões que integram a constituição do conceito. Ou seja,

sem uma vivência específica – o exercício de biografização corporal pela

improvisação teatral – não haveria a evocação de memórias dos acontecimentos

vividos e, consequentemente, não seria possível tentar visibilizar este imaginário e,

por sua vez, problematizar o Corpo Biográfico.

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5 A PESQUISA COMO ATO DE AVENTURAR-SE NO DESCONHECIDO

Necessita, sim, o pesquisador de sua própria bússola e de saber o que procura. Não de saber as respostas, mas do saber perguntar ao que lhe vier pela frente, na perspectiva do tema-centro de seu desejo de mais e melhor saber e sob o contínuo acicate e a inspiração da hipótese-guia de seus passos (MARQUES, 2001, p. 115).

Pensar a pesquisa como ato de aventurar-se no desconhecido foi a maneira

encontrada para apresentar os passos percorridos no decorrer deste estudo. Como

ressalta Mário Osório Marques no fragmento acima citado, o pesquisador, ao lançar-

se a um processo investigativo, não precisa ter respostas, muito menos caminhos

definidos, mas uma postura de explorador que, animado por suas intenções de

pesquisa, vai dando passo após passo. Neste sentido, ter a “sua própria bússola” e

a atenção voltada para o que se procura são os elementos fundamentais à

elaboração de um percurso metodológico. Obviamente, ancorada em referências

que o sustentem.

Acrescento mais, a maneira como cada pessoa se constituiu pesquisadora

também é um elemento fundamental e necessário a ser levado em consideração.

Digo isto alicerçada em minha trajetória de pesquisa que é resultado de uma

caminhada que teve início no Curso de Artes Cênicas Bacharelado da Universidade

Federal de Santa Maria, já relatado. Daquelas experiências, fui assimilando uma

forma de fazer pesquisa, qual seja: a necessidade de elaborar um trabalho prático

adentrando nos indícios para obter os dados, decorrentes de um processo individual

e coletivo, que englobasse as transformações ocorridas no decorrer deste período.

No doutoramento, houve uma transformação desta postura investigativa,

mediada pela orientadora, que contribuiu para eu experimentar outra maneira de

pesquisar. Esta outra postura foi construída lentamente, decorrente de um processo

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de reflexão e reconhecimento, levando-me a valorizar cada momento da pesquisa

como basilar à construção de uma trajetória investigativa.

O caráter indiciário assumido está fundamentado no paradigma indiciário de

Carlo Guinzburg (1989). Este paradigma caracteriza-se como um tipo de saber que

busca sinais e pistas para decifração de uma realidade aparentemente opaca. Ou

seja, não experimentada ou perceptível diretamente pelo observador.

Para Guinzburg, as origens deste paradigma remontam à evolução da

humanidade. Emergiu no âmbito das Ciências Humanas, somente no século XIX,

baseado no modelo de semiótica. Este dado é levantado pelo autor a partir de seus

estudos com o foco centrado na análise comparativa de práticas indiciárias

desenvolvidas por Giovanni Morelli, Arthur Conan Doyle – criador do personagem

Sherlock Holmes e Freud. Tais práticas baseavam-se no modelo da semiótica

médica, ou seja, “uma disciplina que permite diagnosticar as doenças inacessíveis à

observação direta na base de sintomas superficiais, às vezes irrelevantes aos olhos

do leigo” (GUINZBURG, 1989, p. 151). Nos três casos, o autor observa que pistas

infinitesimais possibilitam captar uma realidade mais profunda, que de outra maneira

seria inatingível. Estas pistas foram denominadas de sintomas para Freud, indícios

para Holmes e signos pictóricos para Morelli.

Para captar uma realidade mais profunda é necessário, conforme afirma

Rodrigues (2005, p. 220)56, sobre os pressupostos de Guinzburg, “transformar a

realidade num enigma, duvidar do óbvio e tratar a prova e a retórica como partes

integrantes e importantes de um mesmo processo”. Um processo que num primeiro

momento pode se apresentar de difícil compreensão, mas que a partir de pontos

privilegiados, que seriam os indícios, torna-se possível desvendar o que num

primeiro momento era indecifrável. Isto porque os dados levantados, segundo

Guinzburg (1989, p. 152), “são sempre dispostos pelo observador de tal modo a dar

lugar a uma seqüência narrativa, cuja formulação mais simples poderia ser „alguém

passou por lá‟”. É pela observação atenta e o registro minucioso de todos os indícios

que é possível elaborar “histórias” precisas de cada realidade investigada.

A valorização de cada etapa como componente importante e essencial à

pesquisa possibilitou-me trabalhar com a ideia de terceiro incluído de Gilbert Durand

(2001). Esta ideia sustenta a premissa de que nada se exclui, mas tudo se soma.

56

Autora comentadora da obra do referido autor.

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Cada relação e cada laço que possa existir é fundamental para os passos e

escolhas posteriores. Este direcionamento foi o alicerce para a construção da

metodologia.

Tendo em visa a questão de pesquisa – “a visibilização da memória inscrita

no corpo poderia auxiliar a pensar o projeto de (auto)formação? –, que

impulsionou à realização desta Tese, é possível mapear três etapas, que, juntas,

constituem o cenário metodológico. São elas:

1) experimentos corporais com acadêmicas do Curso de Pedagogia da UFPel,

os quais resultaram em indícios que colaboraram para a elaboração de uma

proposta metodológica de pesquisa;

2) elaboração e realização da proposta de pesquisa, a partir da descrição do

processo vivido, isto é, do convite à proposta de biografização corporal pela

improvisação teatral, e, também, apresentação dos sujeitos;

3) e o processo de análise, da realização à interpretação dos achados.

Diante do exposto, dedico-me a aprofundar, a partir de agora, cada uma das

etapas que compõe o quadro metodológico desta Tese de Doutorado,

contemplando-as de maneira particular, mas com o foco direcionado ao todo.

5.1 Experimentos corporais

As experiências como atriz, professora e pesquisadora despertaram o meu

interesse em estudar a dimensão biográfica do corpo, ocasionando a necessidade

de continuar minha trajetória de pesquisadora e ingressar no doutorado, como já

mencionei anteriormente. Assim, direcionei meus estudos à memória do corpo,

investigando uma maneira de acioná-la, via linguagem teatral. Meu interesse

centrava-se na conscientização sobre o papel das experiências vividas na

construção da biografia do corpo, com vistas à subjetividade corporal.

No início, muitas eram as suposições, mas ainda faltava uma experiência

concreta, elaborada exclusivamente para pensar sobre a dimensão biográfica do

corpo. Desse modo, realizei dois experimentos, como um caminho a buscar indícios

para aprofundar questões relativas a esta temática rumo à elaboração de uma Tese

de Doutorado.

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Os experimentos realizados tiveram o seguinte direcionamento: 1)

desenvolver um trabalho com a linguagem teatral tendo como foco a experienciação

e a percepção corporal, partindo da ideia de que ao tomar consciência do corpo é

possível apropriar-se dele; 2) experienciar modos de dizer e pensar sobre si a partir

do corpo, bem como visibilizar as memórias corporais que emergiram com o

trabalho.

A seguir, compartilho tais experimentos, destacando os indícios encontrados.

O primeiro experimento, intitulado “O que o corpo fala?”, foi realizado no 1º

semestre de 2009 e o segundo, “O corpo na narração de si”, no decorrer do

segundo semestre de 2010.

5.1.1 O que o corpo fala?

“O que o corpo fala?” foi o experimento a marcar as primeiras investigações

em torno do corpo e sua dimensão biográfica, desenvolvido como um exercício da

Prática de Pesquisa57, atividade relacionada ao Curso de Doutorado em Educação.

O exercício teve por objetivo realizar um trabalho em torno da temática da pesquisa

de doutorado em questão, em um projeto de extensão com sete acadêmicas do

Curso de Pedagogia da UFPel58.

Diante da intimação em fazer o experimento, elaborei uma proposição de

trabalho com vivências corporais, com foco voltado à aproximação das acadêmicas

com o seu corpo e sua corporeidade. Esse direcionamento enfatizou a

experienciação e a percepção corporal, partindo da ideia de que ao tomar

consciência do corpo é possível apropriar-se dele.

A proposta de trabalho contemplou dois momentos: a vivência, em que se

buscou propiciar um espaço de experimentação sem uma intenção definida para que

as acadêmicas pudessem explorar diversas possibilidades com o seu corpo sem

planejar previamente; e a produção de escritas em relação ao vivido, direcionada

para a seguinte pergunta: o que o corpo me fala?

57

A Prática de Pesquisa consiste em uma proposta de trabalho em que o acadêmico participa de pesquisas desenvolvidas pelo seu/sua professor(a) orientador(a). 58

Este experimento integra o livro “Escritas de Autobiografias Educativas – o que dizemos e o que elas dizem?”, publicado pela Editora CRV e organizado pela minha orientadora e por mim, como resultado do projeto que ela desenvolveu ao longo de quatro anos.

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A vivência caracterizou-se pelo trabalho corporal com o objetivo de dar vazão

para imagens, sensações, sentimentos, lembranças de cada acadêmica. O jogo

dramático foi o meio escolhido para o sujeito olhar para si e vasculhar nos

guardados de suas experiências as vivências que foram fundantes ao longo de sua

vida.

Trabalhei com jogo dramático baseado na concepção de Olga Reverbel e

Viola Spolin, principalmente. O jogo dramático, a partir da definição de Nunes

(2003), estudiosa das autoras citadas, tem como objetivo o desenvolvimento da

totalidade da pessoa, tanto no campo físico como emocional. A base, cujo elemento

principal é o jogo de faz-de-conta, é centrada na improvisação de ações que são

executadas pelos jogadores, com o intuito de propiciar trabalhar a percepção de si,

do outro e da realidade em que estão inseridos.

O trabalho iniciou com um jogo de apresentação. Cada acadêmica deveria

fazer um gesto que a representasse. A partir desse jogo foi feito o seguinte

questionamento: por que eu escolhi esse gesto para me representar? Uma das

participantes manifestou, pela escrita, a escolha do seu gesto.

Acredito na força das palavras! Mas acredito que elas ficam mais fortes quando acompanhadas de (diferentes) olhares e gestos. Escolhi este gesto porque, sempre que falo, uso as mãos para me ajudar. São elas que, muitas vezes, dão o tom para meu assunto. É um gesto simples, que caracteriza/representa muitos outros usados a cada conversa, briga, reivindicação, momento de euforia. Enfim, minhas mãos são uma extensão

de minha boca, e me ajudam muito em meus diálogos (Helena59).

Pelo relato de Helena é possível reconhecer a força e a potência da

linguagem gestual. Os gestos apresentam-se como detonadores de imagens que

muitas vezes a palavra não consegue traduzir. Ao enfatizar o gesto, a intenção

esteve voltada para o universo simbólico que motiva as ações de cada ser humano e

o constitui, voltando a atenção para a representação que este tem de si e do mundo

em seu entorno.

No momento seguinte foi realizado um exercício de interiorização e reflexão

corporal, bem como de exploração das partes do corpo através do toque, de

alongamento e de movimentos. O objetivo esteve centrado em estimular as

acadêmicas no sentido de possibilitar apropriações sobre como estavam percebendo

59

Utilizam-se ao longo do texto nomes fictícios para as acadêmicas participantes desta proposta de trabalho.

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68

e sentindo aquele momento de intimidade com o corpo, abrindo espaço para uma

abordagem direcionada à dimensão fenomenológica, centrada no corpo como

elemento principal na aprendizagem e fonte de conhecimento, que se dá na

experiência, pela mediação corporal.

Para Laura, a “voz de seu corpo” levou-a a fazer a seguinte reflexão: hoje somos meio máquinas, tomamos banho sem sentir que neste momento estamos “acariciando” nosso corpo, penteamos o cabelo sem nos darmos conta que estamos tocando parte do nosso corpo; vestimos, comemos e falamos como máquinas. No momento que somos “convidados” a tocar e sentir nosso corpo, é que nos damos conta dele e tocar cada parte deste corpo, sinto uma sensação de bem estar e conforto, bem como uma forte vontade de continuar tocando meu corpo que a tanto tempo não parava para fazê-lo. Deveríamos fazer esses exercícios mais vezes para podermos sentir sensações e lembrar que fazemos esses gestos automaticamente sem nos darmos conta. Gostei deste momento e me senti em paz.

A atividade que marca o terceiro momento do trabalho foi caracterizada pela

utilização de diversos objetos, com o objetivo de observar o que a interação com

eles suscitava nos corpos das estudantes durante o jogo. Cabe ressaltar que, além

dos objetos que haviam sido escolhidos e espalhados sem uma intenção pré-

estabelecida, as acadêmicas também trouxeram objetos que marcaram a sua

história de vida. Sofia compartilhou o motivo com o grupo participante do trabalho,

bem como as impressões de interagir com o seu objeto pessoal.

O objeto que eu escolhi foi a boneca da Mônica, a qual eu ganhei quando eu fiz o meu 1º aninho. Adorei a oportunidade de poder estar revivendo alguns momentos da minha infância, pois cada gesto, cada movimento me fazia lembrar das brincadeiras, dos diversos cheiros, dos sabores que sempre se fizeram presente na minha infância. A boneca da Mônica sempre me acompanhou, e com ela vivenciei as mais diferentes situações, ela era a minha companheira para os banhos de piscina, para as escavações na areia, na hora das refeições. Foi um momento muito gostoso. Por mais que nem todas as lembranças sejam boas, é sempre muito bom relembrar. (SOFIA)

O trabalho foi finalizado com uma roda de conversa, momento em que as

acadêmicas compartilharam suas impressões e opiniões sobre a experimentação

corporal. Este momento culminou em uma escrita que contemplou a questão já

referida anteriormente: o que o meu corpo me fala?

Para Afrodite, os dois encontros foram muito bons, porém ela destaca o último

como o melhor.

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Desde que me tornei mãe, isto a 9 anos atrás, não consigo imaginar e pouco me lembro da minha vida sem a companhia do meu filho. E hoje não foi diferente, lembrei de momentos marcantes junto a ele. Quando rolei no chão lembrei de quando vamos para fora – no interior, e brincamos juntos de descer a ladeira coberta de capim/grama, rolando junto, ou ainda quando brincamos de “rolo-compressor”, onde um vem de encontro ao outro na cama e quem é mais rápido passa por cima do outro. Às vezes quando tô assistindo TV ele me convida: “mãe vamos nos divertir?” e lá vamos nós brincar de cosquinhas, rolo compressor, guerra de travesseiro... É muito bom. Outra coisa que chamou minha atenção foram as bolachas Marias. Lembrei das merendas que comia na escola, as bolachas eram ótimas, mas o leite era terrível! Hoje vi que ainda tenho muito pique e que ainda vou brincar muito!

A experiência com o corpo propiciou às acadêmicas garimparem os seus

reservatórios interiores, num processo de reconhecimento, reflexividade e

apropriação das experiências que deixaram marcas em sua trajetória de vida. Por

meio dos jogos, um processo de ativação da memória foi instaurado. Pelo ato de

jogar foi possível presentificar em cena as experiências vividas anteriormente e que

deixaram marcas em suas vidas.

5.1.2 O corpo na narração de si

O segundo experimento, “O corpo na narração de si” foi realizado como

atividade do projeto de extensão “A vida como escrita e leitura – interfaces entre arte

e imaginário”, já mencionado anteriormente. Como ministrante do projeto,

desenvolvi atividades direcionadas para a narrativa de si através dos gestos. Esta

experiência foi muito significativa para a pesquisa de Doutorado em andamento.

Digo isso, pois percebi que a proposta focada na re-invenção de modos de dizer e

pensar sobre si a partir do corpo proporcionou não apenas trabalhar aspectos

simbólicos da formação escolar, mas também foi detonadora para a emersão de

memórias esquecidas ou que nunca haviam sido pensadas pelas acadêmicas.

Ocasionando, assim, um (re)conhecimento de outros momentos fundantes em seus

trajetos formativos.

A proposta de atividade girou em torno de fotografias, de encenação teatral e

escritas direcionadas à experiência vivida. Foram solicitadas, num primeiro

momento, fotos de escola, porém quem não tivesse fotos poderia fazer uma

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montagem ou mesmo levar uma imagem que estivesse associada às memórias

deste período.

O exercício com as fotografias caracterizou-se por evocar lembranças do

período escolar. Cada acadêmica deveria mostrar a foto que havia levado, contando

porque havia escolhido e quais eram suas lembranças. Para K.60, compartilhar suas

memórias foi uma experiência muito significativa.

Quando comecei a mostrar as fotos e contar aqueles momentos da minha história, me veio em mente muitos outros que me marcaram... e parece que quanto mais eu contava, me expressava, falava, vinha mais e mais momentos em meu pensamento, e por mim, eu poderia ficar horas e horas contando acontecimentos da minha infância, foi essa a vontade que senti.

K. demonstra em seu relato um envolvimento com a atividade. Envolvimento

também percebido no restante do grupo, que conforme escutava as lembranças,

compartilhava outras memórias que foram relembradas a partir da sua narrativa e da

narrativa das colegas em relação às fotografias. Conforme ressalta Delory-

Momberger (2008), este rememoramento deve-se ao fato de que a compreensão de

uma narrativa pessoal é enriquecida a partir da escuta ou da leitura da narrativa do

outro. Desta maneira, escutar o outro é uma maneira de experimentar a própria

biografia. Neste caso, ouvir as memórias das colegas proporcionou lembrar de

acontecimentos que muitas vezes haviam sido esquecidos.

No contexto proposto pelo projeto de extensão, as fotografias foram

dispositivos evocadores de lembranças, proporcionando às acadêmicas lembrar o

dia ou o evento fotografado, deparar com a criança que um dia foram, bem como

recriar, pela narrativa, a cena vivida “pela primeira vez em sua emergência de

origem” (DELORY-MOMBERGER, 2010, p. 102). Isto é, a partir de um olhar

mediado pelas intimações do aqui e agora e pelo trajeto de vida.

Isto pode ser evidenciado na escrita de C., que descreve que o trabalho

encaminhou a outro olhar para a foto. Um olhar reflexivo do passado para o

presente, da pessoa que é para a criança que foi. “Representar a C. da foto foi

difícil, pois percebi que a reação do meu corpo naquela imagem continua até hoje.

Não digo que aprendi, mas, sim, que venho aprendendo. Venho aprendendo a ouvir,

a dividir meus guardados, a me remexer...”

60

Usarei somente letras para identificar as participantes do projeto.

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Esse fragmento além de ilustrar a reflexão de C. diante da sua foto, já

anunciou a próxima etapa do trabalho, que foi representar corporalmente a foto

apresentada. No entanto, essa representação deveria ser em grupo e estar inserida

numa história, escrita e publicada posteriormente no blog do projeto de extensão,

que englobasse as memórias de todas as pessoas que faziam parte do grupo. Após

algum tempo de preparação, cada grupo apresentou para as demais colegas.

Cabe ressaltar que a encenação teatral foi o instrumento escolhido para

trabalhar a narrativa de si através do gesto, num processo de experimentação

corporal, e, consequentemente, de presentificação das memórias da escola.

Na escrita de D. é possível perceber como o seu grupo se mobilizou para criar

a história.

Nossa ideia foi de a partir da experiência de cada uma ligar com a da outra. Foi bárbaro juntar a minha infância agitada com a da furiosa C., a sonhadora L., com a tímida G. e ir ao encontro com a agitada, furiosa e frágil A. Nossas infâncias felizes e nem tão isoladas histórias de vida.

Já o enfoque da escrita de G. foi direcionada para suas impressões em

relação ao trabalho. “No início fiquei assustada por ter que representar, mas depois

tentei me soltar e aproveitar o momento para fazer algumas peraltices que não fiz na

escola...”

Recriar corporalmente a cena da foto caracterizou um momento de intensa

entrega ao trabalho e de um processo de rememoração que agregou os aspectos

emotivo, imaginativo e sensorial61. Ou seja, emotivo ao englobar lembranças,

sentimentos, impressões e sensações quando a imagem foi apresentada ao grupo.

Imaginativo diante do desafio de criar uma história que representasse as fotos. E

sensorial no sentido de fazer reaparecer os sentimentos do momento em que a foto

foi tirada.

Considero necessário ressaltar que o portfólio62 foi a fonte inicial onde as

acadêmicas foram buscar momentos que gostariam de revisitar. No entanto, a

proposição de narrar-se a partir das linguagens da arte, no caso relatado acima,

através da arte dramática, encaminhou a um processo de cutucar memórias

61

Baseio-me no texto “Álbuns de fotos de família, trabalho de memória e formação de si” de Delory-Momberger (2010) para expor sobre esses três aspectos. A autora busca em Jean-Yves e Marc Tadié sua referência para teorizar acerca da fotografia e da memória. 62

Elaborado pelas acadêmicas no primeiro semestre do Curso de Pedagogia, no Bloco temático Práticas Educativas I.

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esquecidas e visibilizar tantos outros momentos significativos e marcantes na sua

constituição como pessoas e que não estavam presentes na escrita do portfólio.

Nas memórias esquecidas estão as dormências que durante anos podem

ficar latentes e, com uma fotografia, como foi o caso da atividade acima relatada,

despertar o reservatório em que ficaram agregadas lembranças, ressentimentos,

raivas, angústias, dentre tantos outros sentimentos que passam a ser revisitados,

num processo de reflexão que pode levar à (re)apropriação de um vivido.

“Os encontros me deram a oportunidade de refletir sobre minha infância! Aspectos que não pareciam ter importância para mim até aquele momento, hoje são importantíssimos” (M.). “Consegui através dos exercícios resgatar muito mais de mim” (M.R). “Através da dinâmica proposta, foi possível enxergar com outros olhos, aqueles momentos adormecidos na minha memória, vistos agora de uma forma mais significativa na minha vida” (C.R).

Pelos fragmentos acima, é possível perceber que o trabalho realizado

proporcionou uma reflexão a partir de uma experiência vivida, num âmbito

(auto)formativo. Por meio da escrita das acadêmicas, constata-se que a arte, neste

caso, a arte teatral, revela-se como outro caminho para abordar as histórias de vida

na formação de professores. A narrativa de si, através de gestos, resultou em um

despertar de memórias adormecidas que foram revividas no ato teatral.

5.1.3 Dos experimentos aos indícios

Os dois experimentos acima relatados, realizados especificamente para

problematizar a dimensão biográfica do corpo, revelaram-se como ações

importantes à construção de uma metodologia de pesquisa. O trabalho desenvolvido

demonstrou a necessidade de considerar o corpo como um elemento importante à

formação humana do professor. A história de vida foi mobilizada, em um primeiro

momento pela palavra, mas também, pelos gestos, pelas imagens, pelas

expressões, pelos sentimentos e pelas ações. Tal mobilização revelou aspectos

importantes relacionados à maneira com que foram assimilando as experiências

vividas no decorrer de seus trajetos formativos e que são determinantes ao modo

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como se constituíram e as escolhas que realizaram até chegar ao Curso de

Pedagogia.

Pelas manifestações e escritas das acadêmicas, percebi a importância de

abordar a dimensão biográfica do corpo e o quanto ela é reveladora da maneira

como o sujeito foi se constituindo no decorrer de sua vida. Através dos dois

experimentos, vislumbrei a possibilidade de acessar um reservatório de imagens,

lembranças, sentimentos, sensações que compõem a história dos sujeitos

envolvidos num processo de aproximação e exploração das potencialidades do seu

corpo e sua corporeidade. Três foram os indícios pontuais encontrados nos referidos

experimentos: a) o corpo, como motor de visibilização da memória escolar,

presentificou gestos, sentimentos e lembranças. b) o corpo tem uma memória e é

possível acioná-la; c) há a possibilidade de abordar a dimensão biográfica do corpo

como um dos elementos a fazer parte da formação humana do professor.

Diante disso, percebi que é possível acionar a memória do corpo, quando o

trabalho com a linguagem corporal amplia e possibilita a inserção no conceito de

Corpo Biográfico e suas aproximações no campo da Educação. Juntamente com o

conceito de Imaginário usado para compreender como o ser humano, a partir de

suas heranças ancestrais e de sua relação com o meio, assimila escrituras, como

repertórios de representações. Desta experiência surgiram inspirações para o

trabalho ora desenvolvido.

5.2 Inspirações Metodológicas para esta pesquisa

Tendo em vista a descrição anterior, apostei em um processo de

biografização corporal pela improvisação teatral inspirada na obra de Janusz

Korczak “Quando eu voltar a ser criança” (1987). Pelo exercício ficcional, as

acadêmicas foram provocadas a re-(a)presentarem acontecimentos vividos em seu

trajeto formativo. Nos gestos, como a tradução do imaginário nas escrituras do

Corpo Biográfico, busquei pistas que me levassem às inscrições corporais das

estudantes.

Por meio dos elementos encontrados na interpretação dos dados, resultantes

das convergências advindas de indícios e achados do empírico em confluência com

o campo teórico, é que a Tese foi construída.

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Com vistas à presentificação do cenário metodológico desta pesquisa,

descrevo, a partir de agora, cada etapa do trabalho prático e a forma como foi

realizada a análise.

5.2.1 Como a pesquisa foi realizada?

Através de um relato descritivo, busco, neste subcapítulo, detalhar o processo

de pesquisa, englobando aspectos referentes à cronologia, ao local onde foi

realizado, bem como aos instrumentos utilizados.

O dia 25 de abril de 2011 marcou o início dos encontros que compõem a

parte empírica da pesquisa. Eles foram realizados na sala preta, do Curso de

Licenciatura de Teatro da UFPel, localizada próxima à Faculdade de Educação. De

abril a junho, foram seis encontros. A sala preta é uma sala de teatro que está sendo

estruturada. Suas paredes são pretas com uma iluminação geral. É composta de um

tablado de madeira e cadeiras pretas. Este lugar foi escolhido tendo em vista o

espaço adequado para se trabalhar com o corpo. Todos os encontros ocorreram na

segunda-feira, das 17h às 19h.

Os encontros ocorreram em torno do trabalho de biografização corporal pela

improvisação teatral, inspirada na obra de Janusz Korczak, “Quando eu voltar a ser

criança”. Conforme a atividade era solicitada, acontecia a participação individual, em

duplas ou com todo o grupo. Em todos os encontros havia a preparação corporal,

aqui nomeada como aquecimento. Após, desenvolvia-se a proposta focada na

Tese, qual seja: realizar um estudo focado nas memórias inscritas no corpo no

decorrer do trajeto formativo das acadêmicas do Curso de Pedagogia. O final de

cada encontro era caracterizado pela escrita no Diário da Experiência63 ou pelas

conversas partilhadas com o grupo. Cabe ressaltar que no decorrer dos encontros,

além dos jogos, eu trabalhei com imagens e desenhos, porém este material não foi

levado em consideração na análise, tendo em vista a escolha em explorar somente o

Diário da Experiência.

63

O Diário da Experiência é caracterizado por ser um caderno em que as estudantes registravam suas impressões em relação ao vivido. Não havia um modelo a ser seguido, foram sugeridas algumas possibilidades como: relatar, através de palavras, desenhos, imagens ou texto narrativo. Cada uma tinha total liberdade de escrita. Durante o período em que foram realizados os encontros, solicitei o diário uma vez, para acompanhar os seus registros e também tomar conhecimento de como o trabalho que desenvolvíamos estava repercutindo nelas.

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O Diário da Experiência pode ser caracterizado como um instrumento de

manifestação das repercussões que o trabalho causou em cada uma das

acadêmicas. A ideia da escrita centrou-se em dar vazão para um conhecimento

gerado pelo próprio corpo, conhecimento este relacionado diretamente à vivência e

às memórias dos acontecimentos vividos que foram evocadas pela proposta corporal

no espaço da formação de professores.

Como a proposta focou o corpo, optei pela realização de registros de vídeo

para captar o máximo possível das manifestações corporais em cena. É um recurso

que facilita a descrição do que foi vivido, visto que registrar e apreender as ações

humanas, enquanto o trabalho é desenvolvido, é um processo complexo e difícil de

ser realizado por um único observador, conforme Gaskell (2002). Este foi o recurso

mais apropriado que encontrei, pois eu fazia o papel de ministrar as atividades e

observar ao mesmo tempo.

Tais registros foram compartilhados com as acadêmicas em três momentos

distintos: 1) no segundo encontro; 2) no último encontro; 3) e em DVD (com todos os

encontros registrados) para assistirem em casa64. Os vídeos tiveram dupla função:

além de ser o material a compor a análise, podem ser considerados elemento

provocador a intimar as acadêmicas a olharem para o seu corpo e manifestarem as

repercussões da vivência corporal em seu Diário da Experiência. Também fotografei

alguns momentos durante os encontros, porém as fotografias não foram utilizadas

na análise, somente como material de registro da pesquisa.

É necessário ressaltar que no primeiro encontro foi esclarecido às

acadêmicas quanto à realização de tais registros, bem como foi solicitado que

assinassem a carta de cessão sobre uso da imagem65. Para não haver uma

interferência no trabalho, ou mesmo um constrangimento, optou-se por uma câmera

digital amadora, de tamanho pequeno (Modelo: Camera Sony CyberShot 12.1.), com

o intuito de não chamar tanta atenção. Desde o primeiro encontro, a câmera foi

utilizada para que houvesse uma familiarização com o instrumento de registro. Após

os esclarecimentos, iniciamos o exercício de biografização corporal pela

improvisação teatral, priorizando somente a linguagem do corpo, isto é, o gesto no

processo de narração de si.

64

Foi dado um período de dois meses para a realização desta atividade. 65

A Carta de Cessão digitalizada encontra-se no Apêndice C deste trabalho.

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5.2.2 A biografização corporal pela improvisação teatral

Como o objetivo foi realizar um estudo sobre as memórias inscritas no corpo

das acadêmicas do Curso de Pedagogia no decorrer de seu trajeto formativo,

busquei elaborar uma proposta de trabalho prático em que o corpo fosse o

protagonista e o porta-voz das escrituras do “ser de carne” (JOSSO, 2008a, 2008b,

2009a). Para isto, foi necessário deixar de lado a palavra, para entrarmos em

contato com uma linguagem específica, revelada através de intenção e atitude do

gesto no ato de re-(a)presentar momentos vividos, valorizando a experiência do

aqui-agora. Ou seja, instaurar um processo de biografização, deixando de lado o

processo mental e reflexivo da narração, para focar-se na representação da

narrativa, tendo como base a expressão teatral. Neste viés, o corpo assumiu um

papel importante, pois passou a ser o elemento organizador e revelador das

experiências vividas a partir da lógica da estrutura narrativa.

Dessa maneira, minha intenção foi elaborar um trabalho evidenciando o corpo

no processo de biografização de si. Apostei em minha bagagem como professora de

teatro e nos meus estudos sobre Imaginário e pesquisas (Auto)biográficas para

selecionar as ferramentas necessárias para tal empreendimento e estruturar uma

maneira de desenvolver a proposta de pesquisa.

Investi no trabalho de biografização por ser uma atividade que se apresenta,

segundo Delory-Momberger (2008, 2011), como uma “hermenêutica prática”, que

evidencia “um marco de estruturação e de significação da experiência que permite

ao indivíduo criar uma história e uma forma própria – uma identidade ou

individualidade – para si mesmo” (DELORY-MOMBERGER, 2011, p. 342),

proporcionando acessar os espaços biográficos da experiência humana. A

(re)criação de sua história encaminha o indivíduo a uma investigação de si, que o

leva a escolher e também refletir sobre as experiências que para ele são fundadoras

da maneira que vem se constituindo. Este processo é perpassado por um

movimento de temporalidade, à medida que cada pessoa, ao biografar-se, parte das

intimações que lhe mobilizam no momento presente rumo ao passado, em uma

garimpagem do seu reservatório interior, deparando-se com as experiências

marcantes de sua vida, que ficaram guardadas na forma de imagens, sensações,

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cheiros, sentimentos, tonalidades. O encontro com os seus guardados possibilita

atualizar o presente e projetar o futuro. Nesse processo, ele participa de uma ação

permanente de figuração de si, assumindo-se como protagonista de sua vida. Assim,

apostei no exercício de biografização como elemento detonador e revelador das

memórias inscritas no corpo e que podem ter sido fundadoras no decorrer do trajeto

formativo das acadêmicas do Curso de Pedagogia.

Para instaurar um processo de biografização, na perspectiva corporal,

incitando o sujeito a aventurar-se a um caminhar para si (JOSSO, 2010) e

experimentar sua construção biográfica a partir do exercício de re-(a)presentação do

vivido pela prática corporal, utilizei a improvisação teatral.

A improvisação teatral, segundo definição de Desgranges (2006), caracteriza-

se por exercícios teatrais em que seus atuantes executam uma cena de maneira

improvisada, isto é, sem ensaio, a partir de uma combinação prévia ou de uma

situação proposta pelo coordenador do processo. No contexto da Educação, tem por

objetivo promover o desenvolvimento pessoal de cada pessoa, isto é, o

enriquecimento dos meios de expressão, a partir de jogos de caráter dramático ou

teatral66, com foco voltado à criação no momento presente, valorizando as ações, os

gestos, a maneira que cada um se envolve no ato de criação.

Conforme Chacra (2005, p. 14), “podemos chamar de improvisação, como

algo inesperado ou inacabado, que vai surgindo no decorrer da criação artística”.

Para a autora, o caráter fundamental da improvisação e base para a arte do atuante,

é a espontaneidade, ou seja, a arte da flexibilidade, do imprevisto, como também

das surpresas, englobando o corpo como um todo, desde as emoções até a razão.

Pela improvisação teatral é possível desenvolver um trabalho de caráter

experimental, incitando o atuante a elaborar e exprimir “maneiras particulares de

compreender o mundo, os acontecimentos cotidianos, tanto no que concerne à vida

pessoal, quanto no que refere às questões sociais, coletivas” (DESGRANGES, 2006,

p. 89). Faz-se necessário, então, inventar uma forma particular de compreender

estas coisas, como também colocar a imaginação em ação, em um processo de

invenção que concretizará uma determinada ideia em cena. Para isto, o ser humano

66

O jogo dramático traz uma visão mais contextualista – como referenciam os estudos de Olga Reverbel – a autora vislumbra no jogo a possibilidade de utilizá-lo como instrumento para auxiliar no ensino e na aprendizagem de outras disciplinas. O jogo teatral, visão essencialista – Viola Spolin e Ingrid Koudela, como autoras principais – acreditam que a arte e o fazer artístico se sustentam por si e são uma forma de conhecimento.

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busca, em suas experiências, no decorrer de sua vida, e que ficaram guardadas em

seu reservatório interior, os elementos que lhe darão suporte para efetivar a criação

em cena. Ou seja, pelo trabalho teatral mobiliza-se o corpo-memória, como já

mencionei em outro momento, através do exercício de imaginação simbólica,

propiciando a re-(a)presentação de sensações experimentadas anteriormente.

O caráter da improvisação teatral, como um processo de experimentação,

focado no exercício de imaginação simbólica, foi o que me levou a investir como

ferramenta potente de mobilização das memórias dos acontecimentos vividos e,

consequentemente, das inscrições no corpo no decorrer do trajeto formativo das

estudantes do Curso de Pedagogia.

Diante disso, inspirei-me na obra já referida de Janusz Korczak para elaborar

temas que contemplassem a minha proposta – memórias do trajeto formativo

inscritas no corpo – e possibilitassem às acadêmicas o exercício de improvisação,

convocando-as corporalmente67 para realizar a pesquisa.

A obra de Korczak trata de um professor primário que, ao retomar os

guardados na memória, presentifica sua infância. O adulto volta a ser criança,

tomando como dimensão o jogo ficcional, como um lugar de todas as invenções que

incita à recriação. Esta obra, segundo Belinky, pode ser vista como uma espécie de

“ficção psicológica”, por ser escrita em primeira pessoa e trazer o relato de um

professor primário que, ao se transformar em criança novamente, expõe as

dificuldades que as crianças enfrentam em seus primeiros anos de vida:

incompreensões, arbitrariedades, autoritarismo, injustiças, violências morais, que

cada uma suporta calada e submissa. Korczak problematiza, ao longo de sua

narrativa, a tirania e a superioridade dos adultos em relação às crianças. A sua

capacidade de colocar-se no lugar da criança é um dos fatores que tornam esta obra

tão significativa.

Desse modo, a ficção inseriu-se nesta pesquisa como um exercício de

imaginação simbólica, a partir da convocação do corpo à re-(a)presentação, de

maneira improvisada – sem uma elaboração prévia68, de momentos relacionados a

determinados períodos da vida das acadêmicas, incitando-as a vasculharem em

seus guardados e, pelo gesto, visibilizarem as escrituras que ficaram impressas nos

67

Foi priorizada somente a linguagem corporal, descartando a palavra. 68

Foi proposta a atividade e imediatamente elas começavam a encenar. Houve momentos em que foi dado um tempo para breves combinações, quando era realizado em duplas.

16

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seus corpos. A partir do momento em que se reportaram ao passado, corporificando-

o no presente, elas puderam experienciar uma (re) invenção de si, o que resultou na

presentificação de memórias de acontecimentos lembrados, mas também que

haviam sido esquecidos.

Abaixo segue o modo como foram estruturados os encontros, bem como a

descrição das atividades realizadas.

Encontros

Tema ficcional a partir do livro

“Quando eu voltar a ser

criança” e proposta

Comentário

Aquecimento

O aquecimento foi comum a todos os encontros. Caracterizou-se por ser um momento de

preparação do corpo. Por meio de jogos, busquei direcionar um trabalho focalizado na

exploração e na consciência do corpo em movimento. A partir de exercícios como: caminhadas

pelo espaço, exploração dos movimentos do corpo, brincadeiras tradicionais, criava-se um

ambiente propício para começar o trabalho corporal. Este momento estendia-se de 15 a 30

minutos do total de 2h de encontro.

25/abr/2011

1º encontro

Quem sou eu? – Apresentação

corporal

Inspirada na ideia do adulto que o

autor se tornou e que aparece no

início e no final do livro, propus às

estudantes se apresentarem

corporalmente para o grupo

utilizando somente gestos.

Esta proposta teve por objetivo conhecê-

las, criar um vínculo entre o grupo e

também introduzir o trabalho corporal. A

apresentação corporal foi o primeiro

exercício no qual apostei para visibilizar

a memória inscrita no corpo, pois a

maneira como cada uma se apresentou,

revelou aspectos importantes relativos a

como interagem com/no mundo. A

atividade causou certo estranhamento,

pois diferentemente do habitual –

apresentar-se usando a palavra – o

corpo foi o porta-voz de suas

apresentações.

02/mai/2011

2º encontro

O que está registrado no meu

corpo?

A improvisação neste momento centrou-

se na representação do que para elas

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Ainda inspirada na ideia inicial e

final do livro, em que o autor

reflete sobre o adulto que se

tornou, busquei evidenciar como

as experiências vividas no

decorrer da vida das estudantes

ficaram inscritas no seu corpo.

Isto é, em duplas, elas deveriam

criar uma cena para presentificar

o que ficou registrado no corpo no

decorrer do seu trajeto formativo.

Assistir aos registros de vídeo

do primeiro encontro

ficou registrado nos seus corpos. Neste

exercício, a imaginação criadora foi o

elemento primordial para a construção de

uma cena que representasse a proposta

solicitada. A atividade revelou vários

indícios sobre as memórias inscritas no

corpo das acadêmicas e como isto

influenciou no que elas estão sendo no

tempo presente.

A atividade centrou-se em assistir aos

vídeos do primeiro encontro, escrevendo

no Diário da Experiência as impressões

que surgiram por meio do ato de se olhar

no vídeo.

09/mai/2011

3º encontro

Nesse encontro, houve a participação somente de duas estudantes. Propus

exercícios de aquecimento e um exercício de representação através de uma

imagem corporal. Como somente uma das estudantes faz parte dos sujeitos

que integram esta Tese, optei por não utilizar o que foi realizado nesse dia.

06/jun/2011

4º encontro

Autorretrato da criança que um

dia eu fui

No início da sua obra, Korczak

lembra-se de quando era criança.

Baseada na ideia da criança que

um dia cada uma foi, propus que

construíssem o seu autorretrato

de criança em cena.

Se eu voltasse a ser criança,

que cena eu viveria novamente?

Esta atividade foi trabalhada a

partir de um fragmento da obra de

Janusz Korczak, onde o

Ao propor o autorretrato da criança que

um dia cada acadêmica foi, imaginava

que elas se representariam apenas com

um gesto. Porém observei que esta

atividade possibilitou a ativação da

memória, levando-as a representar em

cena acontecimentos vividos no período

da infância. Ao construírem uma cena,

com várias nuances e gestos, a

imaginação foi protagonista da re-

(a)presentação do vivido.

Nesta atividade, percebi fortes indícios

em relação ao que foi marcante e ficou

impresso nos seus corpos. A

presentificação da infância trouxe à tona

gestos que já haviam sido representados

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protagonista tem a possibilidade

de voltar a ser criança e viver

naquele tempo novamente, mas

com a consciência de que é

adulto. Inspirado nesta cena,

imediatamente, após um exercício

de escuta da história, foi solicitado

às acadêmicas representarem que

cena elas viveriam novamente.

Autorretrato do que sou hoje

Tendo em vista o adulto retratado

por Korczak no início do seu livro,

que faz uma viagem imaginária a

sua infância e depara-se com o

que se transformou, propus que

as estudantes fizessem o

autorretrato de si.

anteriormente, como também gestos até

então não revelados. A mobilização da

memória encaminhou as acadêmicas a

uma investigação de suas fontes

imaginárias, suscitando lembranças que

foram re-(a)presentadas em cena,

corporificando, no tempo presente, o

acontecimento vivido naquele período.

No autorretrato do que sou hoje a

imaginação simbólica ganhou força à

medida que elas criaram em cena

imagens de objetos que retrataram seu

pensamento sobre si e a sua relação

com o mundo.

13/jun/2011

5º encontro

Se eu voltasse a ser criança

agora, o que eu faria com o meu

corpo?

Esta atividade foi trabalhada a

partir do mesmo fragmento que a

proposta acima mencionada “Se

eu voltasse a ser criança que

cena eu viveria novamente”.

Inspirada na cena do livro, solicitei

às acadêmicas representarem o

que elas fariam com o seu corpo

se voltassem a ser crianças.

Sou criança e estou me

preparando para ir à escola;

Sou criança e estou a caminho

da escola; Sou criança e estou

na escola.

Esta atividade foi baseada

diretamente no livro Janusz

Korczak. Busquei na obra literária

Nesta atividade, assim como nas outras,

encontrei indícios em relação às

escrituras do corpo das acadêmicas.

Percebo que a linguagem teatral é um

elemento motor a acionar as imagens

que compõem o reservatório imaginário

das estudantes, resultando na

presentificação em cena de gestos da

infância.

O exercício ficcional pode ser

considerado um elemento potente que

possibilitou cutucar as memórias das

acadêmicas e dar vazão à imaginação

simbólica. Em duplas, elas criaram uma

cena que abarcou dois contextos, duas

histórias de vida representadas na

mesma narrativa corporal.

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três momentos (o personagem em

casa, preparando-se para a

escola; o caminho que ele faz de

ida e volta da escola; e os fatos

vividos na escola) que

possibilitariam o exercício ficcional

de voltar a ser criança e re-

(a)presentar lembranças daquele

período.

O que eu faço hoje com o meu

corpo?

Inspirada na cena do final do livro

em que o personagem retorna ao

tempo presente, propus que as

estudantes representassem em

cena o que hoje elas fazem com o

seu corpo. Esta proposta foi feita

no final, com a intenção de criar

um contraponto com as propostas

anteriores que estavam focadas

no período da infância.

Esta atividade foi proposta para as

acadêmicas como último exercício de

biografização corporal pela improvisação

teatral. O que mais me chamou a

atenção foi perceber que o imaginário

atual sobre o corpo está relacionado a

um automatismo, que em cena é

representado por gestos cotidianos em

ritmo acelerado. A temporalidade

também é outra. Havia uma corrida

contra o tempo. Outro ponto que cabe

ressaltar é o fato da associação do corpo

ligado somente ao cumprimento de

tarefas e obrigações e não ao prazer ou

à ludicidade. A ideia que passa é a de

que isto é permitido somente na infância,

e não no corpo adulto.

20/jun/2012

6º encontro

Assistir aos vídeos de todos os

encontros

A atividade proposta centrou-se em

assistir aos vídeos de todos os

encontros, escrevendo no Diário da

Experiência as repercussões do ato de

se olhar no vídeo.

Escrita no Diário da Experiência

Escrever no Diário da Experiência as repercussões geradas pelo trabalho corporal. Expressar

de maneira livre as impressões e as sensações sentidas no corpo. Dar vazão para um

pensamento que partiu do próprio corpo.

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5.3 Análise69

Após os encontros acima relatados, passei para a etapa seguinte da

pesquisa. Inicialmente, selecionei os instrumentos que eu iria utilizar na análise.

Optei pelos registros de vídeo e os Diários da Experiência, descartando os demais

instrumentos – imagens e desenhos – que eu não daria conta de analisar, devido à

quantidade de material e o tempo, que seria insuficiente.

Assim, direcionei a análise à visibilização e interpretação dos gestos a partir

dos registros de vídeo e para a análise do Diário da Experiência, evidenciando as

imagens simbólicas presentes na escrita. Das repetições significativas retiradas da

análise dos vídeos e das imagens simbólicas encontradas na análise do Diário,

cheguei aos núcleos simbólicos que, ao convergirem, levaram-me a encontrar a

menor unidade simbólica, ou seja, o mitema (DURAND, 1996).

A fim de tornar claro o processo de análise, utilizo novamente a descrição,

apresentando passo a passo o caminho percorrido.

Passo 1:

O primeiro passo dado foi a realização da análise gestual, a partir dos

registros de vídeos, com o intuito de perceber a “voz” que emanava do corpo através

dos gestos.

Quais foram os procedimentos?

a) Inicialmente, assisti aos vídeos e realizei a edição70, atribuindo um título

conforme a atividade realizada (os vídeos, compilados em um DVD, estão

disponíveis na versão impressa da Tese).

b) O momento seguinte caracterizou-se pelo trabalho com os dados empíricos

registrados em vídeos. Optei por criar uma tabela composta de três colunas. A

primeira coluna está relacionada com a nomeação da proposta desenvolvida; a

segunda, com a descrição de cada atividade, evidenciando minhas impressões e a

terceira, a seleção dos gestos que considerei pregnantes ao meu objeto de estudo e

reveladores de indícios relativos ao Corpo Biográfico das estudantes. Cabe ressaltar

69

É necessário ressaltar que a análise foi devolvida para as protagonistas da pesquisa com o intuito de que elas tomassem conhecimento da maneira como trabalhei com os dados empíricos. Foi dada total liberdade para elas fazerem alterações se achassem necessário. Elas fizeram alguns comentários, mas não interferiram na análise realizada, aprovando a utilização do texto na íntegra. 70

A edição, feita por um profissional, contemplou além da atribuição de um título, um trabalho de clareamento dos vídeos, pois o lugar em que foram realizados os encontros tinha pouca iluminação.

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que nesta terceira coluna busquei atribuir um significado a cada gesto,

caracterizando, assim, o primeiro movimento de interpretação.

c) A partir disso, dediquei-me à interpretação do gesto como o resultado de uma

ação que ficou radicada no corpo e traz os registros de toda uma história vivida e

herdada do ser humano, pelo viés da hermenêutica. Tal abordagem “trata do

significado humano ou humanado, bem como da significação simbólica ou do

sentido pregnante (axiológico)” (ORTIZ-OSÉS, 2003, p. 99), apresentando-se como

uma representação que extrapola o imediatismo para valorizar o envolvimento ativo

do sujeito na exploração do nível imediato. É, portanto, uma disciplina que engloba a

totalidade da experiência humana no sentido de reconhecer, na imagem, expressões

da humanidade. No viés da hermenêutica, o sentido é algo oculto que surge de um

modo pré-consciente da vivência, sendo impossível acessá-lo de forma direta, visto

que ele se constrói pelo ato de recriação. Como venho constantemente reiterando,

a interpretação do gesto como uma tradução do imaginário na escritura do Corpo

Biográfico foi determinante para aprofundar o entendimento em torno da relação

Imaginário e Corpo Biográfico e investir no pressuposto que sustentou esta Tese de

que a memória do corpo está nos reservatórios do trajeto formativo de cada

pessoa.

Passo 2:

O segundo passo foi a análise do Diário da Experiência de cada estudante.

Este momento evidencia a contribuição do estágio doutoral realizado na

Universidade Fernando Pessoa – Porto/Portugal à pesquisa. É um método de

análise utilizado pelo Professor Danis Bois, que privilegia a palavra que emana do

corpo como elemento de análise de uma vivência corporal específica. Tendo em

vista seu método de trabalho, que se apóia em um estruturalismo, levei em

consideração o Diário da Experiência das acadêmicas, porém busquei as imagens

simbólicas que apareceram na escrita, evidenciando as dimensões do Corpo

Biográfico como núcleos pregnantes que contribuíam para um pensar sobre a

biografia do corpo e a relação com o Imaginário.

Quais foram os procedimentos?

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a) Primeiramente, li e digitei os Diários71 das quatro acadêmicas, utilizando a

ferramenta “numeração de linhas do Word” para enumerar as linhas do texto escrito.

Posteriormente, passei para a análise realizada em três etapas: análise

classificatória, análise a partir de uma perspectiva fenomenológica e análise a partir

de uma perspectiva hermenêutica, momento de interpretação do Corpo Biográfico.

b) A análise classificatória foi realizada com o objetivo de “identificar, revelar,

nomear, resumir, tematizar, quase linha a linha, o propósito desenvolvido no interior

do corpus sobre o qual a análise se incide.” (PAILLÉ, 1994, p. 154). A organização

dos dados teve por objetivo extrair o que concernia ao meu objeto de estudo. Assim,

após a digitação, realizei a leitura do Diário, classificando a escrita em três núcleos

pregnantes, organizados em uma tabela: vivência, memória e imaginário. Cada

fragmento foi colocado na tabela, seguido de sua referência entre parênteses, ou

seja, a numeração da linha para a localização direta no Diário da Experiência.

Exemplo: - Foi emocionante eu representar um dia em especial da minha infância (l.

22).

c) A etapa seguinte foi a abordagem dos achados a partir de uma perspectiva

fenomenológica72, atribuindo um enunciado aos fragmentos retirados da escrita das

estudantes. A organização estrutural da análise fenomenológica retoma a análise

classificatória, fazendo uma primeira interpretação ancorada exclusivamente no texto

escrito. Tal perspectiva engloba a descrição, a compreensão e a interpretação dos

fenômenos que se apresentam à percepção. É necessário ressaltar que a análise

fenomenológica constitui-se fundante, pois ela dá visibilidade a cada núcleo

pregnante individualmente, propiciando elementos para a realização da etapa

posterior.

d) Por fim, a análise a partir de uma perspectiva hermenêutica que se focalizou

no aprofundamento do texto para descobrir o seu sentido e suas variações,

extrapolando apenas o conteúdo (STRAUSS; CORBIN, 2004). Neste momento,

evidenciei as imagens simbólicas que encontrei na escrita do Diário da Experiência

associada à dimensão do imaginário, com o objetivo de fazer uma primeira reflexão

71

Os Diários foram escritos em cadernos de tamanho pequeno com caneta e/ou lápis. Como já referi anteriormente, a escrita foi livre, através de palavras, desenhos, imagens ou texto narrativo, como poderá ser observado no ANEXO A. Cabe ressaltar que eu optei por analisar somente o texto escrito, descartando as imagens. 72

Destaco os estudos de Edmund Husserl como autor principal no embasamento dessa perspectiva.

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sobre o Corpo Biográfico demarcando a relação Corpo Biográfico e Imaginário,

perpassada pela outras duas dimensões: vivência e memória.

Passo 3:

O passo 3 é resultado dos dois passos anteriores. Caracteriza-se pelo

processo de convergência (DURAND, 2002) dos achados da pesquisa, tendo em

vista o agrupamento em núcleos simbólicos. Dessa maneira, criei mais uma tabela

onde coloquei os gestos e as pregnâncias que emergiram da análise dos registros

de vídeo, buscando agrupar as repetições significativas em núcleos com o mesmo

sentido simbólico associados às escrituras do corpo, juntamente com as imagens

simbólicas do Diário da Experiência. Isto possibilitou adentrar em um campo

simbólico de sentidos, significações e representações, desencadeadas por um

conjunto de fragmentos, frases curtas, enunciados (Peres, 1999) e imagens visuais.

Das análises realizadas encontrei os núcleos que me propiciaram chegar aos

mitemas. São eles:

A afetividade, a infância e o corpo adulto em conjunção com a infância

como elemento motor das ações do presente e novamente a afetividade,

expressam uma infância presente no Corpo-terno, mitema da estudante L.

O corpo livre x corpo aprisionado, a repressão, reverenciar/servir/cuidar

o outro em conjunção com a imagem simbólica de pássaro preso em cativeiro e

do aprisionamento, expressam o desejo do voo no Corpo-cativo, mitema da

estudante Cm.

A execução de tarefa e ilustração do vivido, tempo, dicotomia entre o

corpo que age e o corpo que pensa em conjunção com a imagem simbólica do

mundo do relógio, expressam um ser de carne que pensa, outro que age no

Corpo-fracionado, mitema da estudante M.

Por fim, a liberdade, a repressão e a máscara em conjunção com a caixa, a

placa de pare, a bola cheia querendo esvaziar e o nariz de palhaço expressam a

busca pela liberdade desejada no Corpo-comedido, mitema da estudante C.

O mitema é a representação dos núcleos simbólicos, a partir de um pequeno

tema de caráter simbólico. Agrega, neste estudo, o sentido latente subsumido na

memória inscrita no corpo de cada acadêmica, constituindo-se o marco das

conexões realizadas ao longo da pesquisa. Penso ser necessário destacar que os

encaminhamentos metodológicos e a interpretação que faço dos dados empíricos

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estão apoiados no meu repertório. Tantos outros caminhos poderiam ser percorridos

se a análise e a interpretação fossem realizadas por outra pessoa.

Para finalizar, escrevo uma narrativa ficcional para mostrar como eu apreendi

as memórias inscritas no corpo através do exercício de biografização corporal,

fazendo relação com o mitema.

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Construção de uma narrativa ficcional –

da memória ao mitema

Destacar as pregnâncias visibilizadas

no exercício de biografização corporal

e as imagens presentes no Diário da

Experiência rumo aos núcleos

simbólicos.

Interpretação dos gestos.

MITEMAS

DIAGRAMA DO PROCESSO DE ANÁLISE

Registros de vídeo Diário da Experiência

Fig. 3 – Diagrama elucidativo ao processo de análise

A partir da leitura dos

Diários da Experiência das

estudantes, realização da

análise classificatória – as

dimensões que constituem

o Corpo Biográfico

Assistir os vídeos e a partir de uma tabela apresentar

a proposta desenvolvida, a descrição da cena e os

gestos como escrituras do Corpo biográfico.

Análise, através de uma

perspectiva

fenomenológica.

Contextualização da

classificação realizada e

criação de um enunciado a

partir dos fragmentos da

escrita.

Leitura hermenêutica do

Corpo Biográfico,

evidenciando as imagens

simbólicas.

Interpretação dos gestos.

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6 AS ESCRITURAS DO CORPO BIOGRÁFICO

O capítulo que agora apresento tem por objetivo dar visibilidade ao gesto como

uma tradução do imaginário nas escrituras do Corpo Biográfico das protagonistas da

pesquisa. Para isso, busquei romper com a lógica do processo de análise,

apresentado no capítulo anterior, colocando, em primeiro plano, a interpretação que

faço do gesto. Assim, minha abordagem é dividida em três momentos: inicialmente,

trago o mitema que agrega o sentido subsumido na memória inscrita no corpo; a

seguir, a narrativa ficcional enfatizando a relação entre a memória e o mitema; e

finalizo com a interpretação dos gestos que emergiram no exercício de biografização

corporal. Optei por dividir este capítulo em quatro partes: Estudante L., Estudante

Cm., Estudante M. e Estudante C. Em cada parte, apresento os três momentos

juntos.

No primeiro momento, trago uma abordagem pontual sobre as memórias

inscritas no corpo das acadêmicas estudadas. Primeiramente, mostro, através de

uma figura elucidativa, a convergência entre as repetições significativas decorrentes

da análise dos registros de vídeo agrupadas em núcleos simbólicos e as imagens

simbólicas do Diário da Experiência. Da convergência, cheguei ao mitema como a

representação destes núcleos que agregam, em um pequeno tema simbólico, o

sentido latente das escrituras do Corpo Biográfico visibilizadas neste estudo.

No segundo momento, faço uma narrativa ficcional com o objetivo de mostrar

a relação das memórias inscritas no corpo como um grande núcleo simbólico que

me levou ao mitema. Nela, mostro como eu apreendi as memórias que emergiram

do exercício de biografização.

O último momento caracteriza-se pela interpretação que faço dos gestos. Os

gestos – emergidos da presentificação das memórias dos acontecimentos vividos –

trazem vestígios dos registros que estão inscritos no corpo, revelando aspectos

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fundantes da maneira como cada sujeito se constituiu no decurso de seu trajeto

formativo. Neste trabalho, represento o caminho escolhido para acessar o

reservatório imaginário das acadêmicas.

6.1 Estudante L.

O mitema da estudante L.

Fig. 4 – Figura elucidativa do mitema da estudante L.

Nesta convergência de imagens emergidas do processo de pesquisa, cheguei

a “A infância presente no Corpo-Terno”, mitema que caracteriza L. Este mitema

agrega o sentido latente presente nos seus gestos e dá visibilidade à memória

inscrita no corpo.

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Terno, segundo o dicionário Michaelis, significa afetuoso, meigo, brando,

suave, que tem sentimentos afetuosos; que causa dó ou inspira compaixão;

lastimoso, carinhoso, afável. No dicionário Aurélio, a palavra é associada também a

uma inclinação à amizade ou ao amor: coração terno. Ao relacionar L. a um

CORPO-TERNO, estou enfatizando a afetividade – no sentido amplo, concernente a

sentimentos ligados à dor ou ao prazer – intrínseca em seus gestos e que se coloca

como mediadora de sua relação com o mundo, remetendo-me também a uma

imagem associada à pureza e à inocência da infância. Assim, a docilidade, o

acolhimento, a amorosidade presentes no corpo de L., são representados por uma

emoção encarnada como atributo dos gestos da acadêmica. A ternura de seu corpo

apresenta uma conexão com as experiências vividas na infância, evidenciado no

exercício de biografização corporal que trouxe à tona o elemento infantil presente no

corpo adulto. Isto me levou a considerar os acontecimentos da infância de L. como

uma imagem motriz que impulsiona sua ação, a partir de um processo eufemizante

diante das adversidades encontradas em seu caminho.

A eufemização insere-se no Regime Noturno da imagem, a partir de um

dinamismo prospectivo, integrada a uma estrutura mística – conjugando uma

vontade de união e certo gosto de intimidade secreta73 – que busca melhorar a

situação do homem no mundo. A imaginação, neste universo, ganha um caráter

participativo, invertendo os valores simbólicos não para combater o que é temido,

mas para promover sua assimilação, a partir de um processo de “negação do

negativo numa quietude cósmica de valores invertidos, com os terrores exorcizados

pelo eufemismo” (DURAND, 2002, p. 281).

Em L., evidencio a negação do negativo no momento em que o elemento

infantil aparece em seus gestos, como uma transmutação da imagem atual do seu

corpo, imagem que causa incômodo, certa vergonha e uma não-aceitação de si, a

favor de uma imagem de um corpo de criança, dócil, afetuoso, satisfeito, acolhedor,

reconhecido e aceito, como um alento que lhe dá sustentação e esperança diante

dos desafios da vida, encaminhando-a a um constante movimento de reconhecer o

lado bom das coisas. Movimento ligado a uma viscosidade74 eufemizante que,

73

Evoca a valorização da descida, da penetração ligada à intimidade digestiva, ao gesto de deglutição (DURAND, 2002). 74

Manifestada em diversos domínios, desde o social ao afetivo, passando pelo perceptivo e representativo (DURAND, 2002).

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segundo Durand (2002, p. 279), se caracteriza pela “utilização da antífrase75, recusa

de dividir, de separar e de submeter o pensamento ao implacável regime da

antítese76”.

A viscosidade remete à afetividade presente no corpo de L., representada nos

gestos associados às ações de ligar, aproximar, abraçar, cuidar, mostrar, emocionar.

Tais ações caracterizam um movimento, já interiorizado por ela, de eufemização das

sombras do presente com vistas à luminosidade vivida no seu passado.

Dessa maneira, A INFÂNCIA PRESENTE NO CORPO-TERNO configura o

mitema de uma mulher que busca suas memórias de infância, refugiada na esfera

mais íntima e profunda de si, ou seja, nos registros inscritos em seu corpo, a

segurança desejada e a força necessitada para viver. Pela convergência dos dados

empíricos, foi possível identificar a infância – elemento simbólico da criança – como

elemento pregnante deste mitema.

A criança é a representação da infância que, segundo Chevalier & Gheerbrant

(2009, p. 302), está relacionada ao símbolo de inocência, que se associa ao estado

embrionário e anterior ao pecado, conjugando simplicidade, naturalidade,

espontaneidade, tranquilidade e concentração. A infância remete a um período em

que a figura da mãe77 é muito presente. Mãe que cuida, alimenta, ensina, mas

também repreende, podendo até sufocar. É a fase da vida em que há temores,

perpassada por uma proteção do adulto em relação à criança, bem como um

otimismo e uma esperança em relação às coisas da vida.

Evidencio nos gestos de L. uma inversão que acontece no exercício de

biografização corporal. A mulher de hoje transforma-se na criança de ontem,

modificando a relação que ela tem com seu corpo – de incômodo para satisfação.

De sofrimento para felicidade. De obrigação para ociosidade.

Diante disso, penso que o movimento eufemizante que L. empreende em

direção às memórias de sua infância associam-se à busca de uma segurança e

estabilidade que a vida de adulta não lhe propicia totalmente. A um refúgio que lhe

75

Emprego de uma palavra, frase, expressão ou ideia no sentido oposto ao usual. Inserida no contexto aqui apresentado, a antífrase, para Durand (2002, p. 206), “não se contenta com uma censura que apenas filtre a expressão e recalque o afeto, exige agora um acordo pleno entre o significante e o significado”. 76

Está relacionada ao movimento dos contrários, enfatizando a oposição entre duas ideias. 77

“Mãe é a segurança do abrigo, do calor, da ternura e da alimentação; é também, em contrapartida, o risco da opressão pela estreiteza do meio e pelo sufocamento através de um prolongamento excessivo da função de alimentadora e guia” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 580).

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dê coragem para driblar as adversidades no seu presente e abstrair o lado positivo

de cada experiência.

Nesse universo, A INFÂNCIA PRESENTE NO CORPO-TERNO conjuga os

sentimentos vividos na infância que, em seu conjunto, compõe a afetividade de L..

Afetividade que se revela como uma inscrição evidenciada no corpo da estudante e

que, na proposta de biografização corporal pela improvisação teatral, várias vezes

veio à tona como um registro dos acontecimentos que foram marcantes em sua vida.

A INFÂNCIA PRESENTE NO CORPO-TERNO

(Narrativa ficcional)

E foi assim:

Numa tarde de segunda-feira, ela estava ali. Com um caminhar tranquilo,

olhou e sorriu. Vimos, então, o corpo de uma mulher que tem muito da criança que

um dia já foi. No fundo do seu olhar, uma pureza e ingenuidade que revelavam certa

afetividade. Um corpo que tem em sua inscrição a emoção. Emoções de todas as

origens, alegres ou tristes, descontraídas ou preocupadas, que repleto de

tonalidades compõe seus gestos e, consequentemente, suas ações. Em suas

atividades cotidianas, os compromissos são inevitáveis e a rotina muito corrida. É

necessário se arrumar, olhar o relógio para não perder o horário. Há momentos de

espera, preocupação, angústia, desespero. Há também aqueles de descontração,

encontros, alegria, disposição.

No corpo da mulher de hoje deparamo-nos com a menina que um dia já foi. O

presente e o passado encontram-se e, por um momento, a presentificação de um

vivido se torna possível. E então, vemos ela se transformar em menina novamente.

Ela pula corda, brinca com suas bonecas e organiza seus brinquedos. Logo

mais para, pois é hora de se alimentar, mas tem que ser rápido, logo seu programa

favorito vai começar. Encantada com o que assiste na televisão sonha e delicia-se

com o mundo da ficção. Será que ela gostaria de ser um dos personagens que

assiste?

Em sua rotina infantil, prepara-se para ir à escola. Alegre, ajuda sua mãe a

arrumar o seu cabelo. Que linda a menina com “duas chiquinhas”! Para a escola ela

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parte, puxando sua mochila de rodinhas, sempre acompanhada, pois criança não

anda sozinha. Em sala de aula, concentrada e comportada, copia toda a matéria no

seu caderno. Olha para um lado, olha para o outro lado. Com a cabeça apoiada na

mão, pensa. Sua perna começa a balançar ansiosamente, mas de maneira discreta.

Será que ela aguarda tocar o sinal?

É hora de brincar... Lá vai ela, divertir-se em cada brinquedo da pracinha da

escola.

Chega a hora de ir embora. Guarda suas coisas na mochila rapidamente e sai

puxando. Logo já está em casa, faz suas tarefas e brinca.

E o grande momento: apresentar, com o seu grupo de dança, as coreografias

que imita da televisão. Prepara-se toda: arruma seu cabelo, coloca sua roupa e sai.

Para o público começa a dançar. Emociona-se no palco. Cumprimenta as pessoas

que lhe assistem. Está feliz.

O tempo nos chama a atenção e aquele corpo faceiro retoma sua

temporalidade: o presente. A mulher está em cena novamente. Seu ritmo muda,

suas ações são realizadas num ritmo acelerado. É necessário correr, pois muitas

são as coisas para fazer. Porém é impossível esquecer que o que corre é um corpo

de muita afetividade. Ele está implicado em todos os momentos, determinando sua

forma de ser, estar, agir no mundo. O coração é o seu símbolo máximo, revelando

uma mulher que nunca deixou de ser menina, que traz consigo a pureza e a

ingenuidade típicas de uma criança.

A interpretação dos gestos de L.

A partir do processo de biografização corporal pela improvisação teatral, vejo

um corpo repleto de tonalidades ligadas à sensibilidade, à emoção e à afetividade

(JOSSO, 2010). Um corpo que expressa todo o tipo de emoções, sejam elas

agradáveis ou não, manifestando-se no dia a dia, em cada momento vivido consigo

mesmo ou com os outros. Em que as valorizações interiorizadas conscientes ou não

conscientes têm uma importância fundamental na maneira que se relaciona e

relacionou com o mundo, bem como na construção de julgamentos e reações. Neste

viés, a percepção de mundo e a percepção que constrói sobre si, perpassando o

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sensível, têm um importante papel na forma como L. foi atribuindo sentido ao vivido,

influenciando diretamente o seu imaginário, que se alimenta dessas informações

acumuladas ao longo do trajeto formativo, a partir das experiências vividas.

Pelo processo de biografização corporal pela improvisação teatral, deparei-

me com um corpo diretamente implicado e ativo em tudo que faz. Os gestos

revelaram um corpo adulto, mas que traz em sua essência muitos aspectos da

infância. Uma infância que está sempre sendo requisitada como uma necessidade,

um elemento motor, que a faz ter força para seguir a vida.

O caminho do presente para o passado, rumo à evocação de memórias,

proporcionou para L. (re)criar momentos de sua infância, acessando uma memória

viva, que pôde ser atualizada no momento da representação, levando-a a deparar-

se com suas valorizações, seus sonhos, seus desejos, suas expectativas que se

constituem como elementos fundantes na maneira como se constituiu e que está

sendo, estando imbricados numa projeção ao futuro. Percebo que seus gestos em

cena eram naturais, leves, fluidos como que vivendo no aqui-agora da cena a

nostagia de ser criança por alguns momentos novamente. É interessante observar

que ela cria uma série de ações para se representar. É como se uma ação não

pudesse existir sem a outra. Outro ponto relevante é a seriedade que ela atribui ao

fato de voltar a ser criança. Relaciono isso à importância que esta fase teve para o

que é hoje. Da memória evocada encontro algumas imagens marcantes: a menina

que brinca; que ao assistir à televisão sonha; que se apresenta em público; que se

emociona; que tem um zelo pela escola e cumpre suas tarefas com toda a atenção.

Tais memórias remetem-me a um corpo presente, ativo, sensível e afetivo. Um corpo

que traz inscrito em si os sonhos, os desejos e as vontades de L.. Que vem sendo

protagonista de suas ações e da forma que esta se relaciona com o meio. Tudo

perpassa pelo gestual do corpo.

O exercício de biografização corporal encaminhou-a à evocação de suas

memórias, trazendo elementos pregnantes do seu imaginário, que pode ser

claramente visualizado no “Autorretrato do que sou hoje” que L. fez de si. O

autorretrato mobilizou a estudante à investigação de si, promovendo a visibilização

no presente do que se tornou, abarcando também as expectativas direcionadas a

um futuro. Neste exercício, seus gestos enfatizaram a dimensão afetiva que está

contida em seu corpo através do beijo, do abraço e da satisfação representada. O

coração, feito através de desenho no espaço e depois com as mãos, pode ser

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encarado como símbolo máximo de um corpo afetivo, contemplando aí as

valorizações da estudante, a maneira como interage com o mundo e como assimila

e acomoda as coisas que lhe assolam.

6.2 Estudante Cm.

O mitema da estudante Cm.

Fig. 5 – Figura elucidativa do mitema da estudante Cm.

Pela convergência, chego ao mitema de Cm.: O DESEJO DO VOO NO

CORPO-CATIVO. Este mitema agrega o dualismo da antítese presente na vida da

estudante. Cativo está relacionado a um ser escravizado, apreendido, encarcerado,

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preso, dominado78. Estes atributos caracterizam-na como as experiências no

decorrer do trajeto formativo de Cm. resultaram num aprisionamento interno que a

faz servir e colocar-se à disposição, seja de um outro, ou de uma determinada

situação. Porém, este mitema converte-se em um cativar, que abrange a ideia de

atrair, encantar, seduzir, receber a estima ou simpatia, transformando o lado mórbido

do ser aprisionado em um ser que cuida do outro e aprendeu a se satisfazer por este

ato de doação. Doação que direciona o seu olhar sempre para fora e nunca para si.

Associo o sentido que perpassa o mitema a uma postura heróica que Cm.

assumiu em sua vida para driblar o aprisionamento que a condicionou a uma

determinada maneira de agir, fazendo-a aceitar tal condição de vida. A estrutura

heróica gira em torno da luta constante do herói contra o monstro, hiperbolizada

através de símbolos antitéticos que englobam a luta do bem contra o mal por meio

de um combate das trevas pela luz e da queda pela ascensão, por exemplo

(DURAND, 2002). Ela insere-se no Regime Diurno das imagens, associada a uma

dominante postural e gira em torno dos verbos de ação, separação, segregação.

Esta estrutura centra-se em um personagem que com sua arma combaterá o

monstro.

Vejo nos gestos representados por Cm., durante o exercício de biografização

corporal, que as repressões vividas ao longo de sua vida representam o monstro que

hoje ela tem que combater para viver. Isto porque essas repressões levaram-na a

assimilar uma forma de se colocar no mundo, atrelada a um corpo que está a serviço

de alguma coisa. Por isso, a ideia de aprisionamento, relacionada ao corpo preso a

uma situação de vida, mas que na sua expressão em outro contexto, como nos

encontros, demonstra o desejo pela liberdade.

A espada, neste universo, pode ser vista como o elemento simbólico ligado ao

mitema e que conjuga a luta do herói contra o monstro. A espada, segundo o

dicionário de símbolos de Chevalier & Gheerbrant (2009, p. 392), representa a

bravura, possuindo dupla função: de destruição e de construção. Símbolo do

guerreiro é também associada à guerra santa. Também se vincula à justiça, pela

imagem da balança, livrando o bem do mal e golpeando o culpado.

Nesse sentido, vejo a espada como a postura que Cm. adotou em sua vida

para conseguir driblar as dificuldades e adaptar-se ao que foi imposto, numa

78

Fonte: Dicionários on line - Michaelis e Dicionário do Aurélio

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esperança latente de que a luz prevaleça sobre as trevas. A espada separa a figura

da “dor” causada pelo aprisionamento que sente e que está atrelada a uma servidão,

para neste ato de servir encontrar o conforto – representado na compaixão do outro

pelos seus atos de bravura – que necessita para seguir a vida. O DESEJO DO VOO

NO CORPO-CATIVO abarca um olhar sempre de dentro para fora, ou seja, não há

espaço para manifestar os desejos, as vontades, as necessidades de si. Sempre

que há o movimento contrário, há uma proibição que acredito que esteja vinculada a

uma solicitação que parte de si própria em relação ao que tem que cumprir,

impedindo-a de continuar, fazendo-a parar e retomar o estado anterior.

No entanto, percebi que o exercício de biografização corporal pela

improvisação teatral representou a possibilidade de, ao olhar para si, expressar

livremente seus desejos, levando-a a se deparar com outro monstro: os medos que

a envolvem e que talvez sejam a causa que a fazem continuar e aceitar sua

condição de aprisionamento. Como se o confronto consigo mesma representasse

seu maior inimigo.

Assim, observo em Cm., a partir de suas memórias re-(a)presentadas, o

registro de uma repressão que ficou inscrita em seu corpo. Repressão determinante

na maneira como ela age cotidianamente e que foi relacionada a um corpo dócil,

amoroso e também expressivo – como antítese de um corpo que poderia estar

enrijecido. Cabe ressaltar que associo essa repressão a Cm. não querer rememorar

a infância, como um forte indício de que esta fase foi determinante do que hoje ela

se transformou.

O DESEJO DO VOO NO CORPO-CATIVO; UM CORPO

(Narrativa ficcional)

E ela está ali...

A tarde já está quase no fim, mas ainda há diversas coisas que terá que fazer

até a hora de dormir. Já passa das 17h, seu corpo denuncia a fadiga de um dia que

começou cedo e repleto de compromissos. Enquanto aguarda o início da próxima

atividade, encosta-se na parede. Em alguns segundos, o cansaço toma conta de si

e, num breve suspiro, entrega-se ao cochilo. Quem diria que o corpo ali encostado,

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tão pequeno, mas enorme pelos seus atos de coragem, garra, generosidade,

solidariedade e disponibilidade, traga vestígios de um ser que anseia por liberdade?

Em seu “ser de carne”, as memórias de momentos vividos durante toda uma vida.

Sejam felizes ou não, eles compõem o corpo ali parado...

E o cochilo a leva para longe. No embalo de seus sonhos, um corpo entra em

ação... Está em uma sala preta, com um grupo de pessoas. Não conhece ninguém

ali. Com um gesto de reverência, apresenta-se. Seu corpo demonstra a seriedade na

mesma medida que a humildade em colocar-se à disposição das pessoas ali

presentes. Com singeleza, expressa a sua afetividade. O que será que seu corpo

está querendo dizer?

Solta-se pelo espaço, embalada por movimentos de um corpo que vivencia a

liberdade e a expressividade. Sua gargalhada é a manifestação máxima de uma

satisfação e integralidade. Acaricia e beija o seu corpo, sente-se inteira e viva.

Porém, uma voz a paralisa: É PROIBIDO FAZER ESTE TIPO DE COISA! É

PROIBIDO EXPRESSAR SEUS SENTIMENTOS.

Em uma reação imediata àquela voz, seu corpo amontoa-se no chão, sua

vivacidade é sucumbida, os gestos paralisam... Eis que vemos um corpo que, de não

em não, vai sendo aprisionado. E ela pensa: por que as coisas têm que ser assim?

De repente, não se sabe bem como, encontra com a criança que um dia foi.

Mas como assim? É possível?

E outra voz lhe diz: É HORA DE IR À ESCOLA. Hoje tem aula!

Como aquele espaço a encanta. Já em sala de aula, comprometida e muito

dedicada, cumpre suas tarefas com atenção. É tão bom estar ali, com seus colegas.

Mas um sentimento de tristeza lhe assola e na fala silenciosa de seu corpo, a

expressão mais alta de seu ser: eu não quero ser criança, eu desejo ser adulta.

E assustada ela desperta. Ao olhar para o relógio depara-se com o tempo

presente. Há ainda muitas coisas para fazer. O ritmo é acelerado, é necessário dar

conta da casa, da família, dos estudos, dos compromissos profissionais, das

atividades extracurriculares, de tantas coisas. Mas ela segue em frente, firme e forte,

com esperança e uma vontade de conquistar a liberdade. A liberdade de um corpo

que no decorrer do tempo foi assimilando uma determinada forma de colocar-se no

mundo, sempre presa a amarras invisíveis. E ela começa a pensar... mas logo uma

pessoa lhe chama... sua próxima atividade vai começar. E ela parte!

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A intepretação dos gestos de Cm.

Pelo trabalho de biografização corporal pela improvisação teatral, visibilizo o

corpo da estudante Cm.. Um corpo que tem como escritura forte a docilidade, o

cuidado com o outro, mas que traz em seu registro mais profundo as diversas

limitações que foram sendo impostas em sua vida, levando-a a assimilar uma

determinada maneira de se colocar no mundo.

Ao observar os gestos de Cm., percebo uma disponibilidade e doação ao

outro. Percebo também um corpo ativo e expressivo, com uma força inesgotável. No

entanto, tenho a impressão de que Cm. tem o seu foco direcionado sempre para

fora de si. Ou seja, ela se preocupa tanto com os outros que seu corpo, suas

vontades, seus desejos vão sendo deixados de lado. Talvez isto aconteça em

função dela não querer deparar-se de frente com uma série de lembranças que lhe

desacomodariam, como os diversos “nãos” que foi recebendo no decorrer de sua

vida.

Nas cenas, percebo que a temporalidade do presente a anima. O presente é o

alicerce para os projetos futuros e o passado, algo que não gostaria de ser

lembrado. O passado aparece como uma sombra, com grandes dificuldades de ser

re-(a)presentado por ela. Isto é visivelmente percebido nas atividades que teve

oportunidade de participar e que solicitavam as memórias de acontecimentos

passados. Mesmo havendo uma dificuldade em presentificar o vivido, em uma das

cenas foi possível perceber o seu encantamento pela escola. Isto pode ser

considerado indício forte de como as experiências vividas no espaço escolar ficaram

inscritas em seu corpo, podendo ser um elemento significante que a trouxe à

Universidade e ao curso de Pedagogia. Seu corpo caracteriza-se então por tudo isto.

É um misto de praticidade e afeto. De transparência, pois fala por si só, mas ao

mesmo tempo, de esconderijo, deixando muito bem guardado um turbilhão de

vivências que deixaram marcas profundas e nem tão prazerosas. Vejo a vontade e a

dedicação como motores paras as ações do presente. Talvez uma esperança de

mudança e transformação da realidade.

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6.3 Estudante M.

O mitema da estudante M.

Fig. 6 – Figura elucidativa do mitema da estudante M.

A convergência das imagens em M. resultou no mitema UM SER DE CARNE

QUE PENSA, OUTRO QUE AGE NO CORPO FRACIONADO. Este mitema

congrega a ideia de separação, de divisão, evidenciada nos gestos de M. como a

desconexão entre a ação e o pensamento. Desconexão que aparece vinculada à

aparição do tempo como um inimigo presente, que provoca uma aceleração interna

e privilegia a atividade mental como soberana sobre o corpo.

A dicotomia entre o pensar e o agir, alicerçado em um racionalismo operante,

insere-se no Regime Diurno das imagens ligado à estrutura esquizomorfa – por se

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tratar de um processo – e gravita em torno dos verbos de separação e segregação79.

O Regime Diurno da imagem corresponde, conforme ressalta Durand (2002, p. 180),

a um “racionalismo espiritualista”, ancorando-se no dinamismo da antítese. O autor a

partir da leitura de Minskowski (2002, p. 185), ao reconhecer os traços estruturais

típicos do Regime Diurno, ressalta que o racional

compraz-se no abstrato, no imóvel, no sólido e rígido; o movente e o intuitivo escapam-lhe; pensa mais do que sente e apreende de maneira imediata; é frio, tal com os seus contornos nítidos, ocupam na sua visão de mundo um lugar privilegiado.

Nesse sentido, UM SER DE CARNE QUE PENSA, OUTRO QUE AGE NO

CORPO FRACIONADO, o mitema de M. refere-se à dinâmica identificada em seu

corpo no exercício de biografização corporal, em que a razão, que é o ato de pensar

– com a “cabeça” e não abrangendo um todo – caracteriza-se como o comando que

determina e antecipa a ação, que por estar numa posição inferior não consegue

corresponder integralmente. Esta separação é um indício forte de como as

experiências vividas no decorrer do seu trajeto formativo foram sendo assimiladas a

partir da antítese pensamento e ação. Assim, os gestos de M. caracterizaram-se

pela ilustração de um vivido, não havendo a correspondência do corpo à intenção

pretendida. Diante disso, é possível perceber uma automatização do corpo que

passou a estar vinculado a uma ordem descolada do sentir, ditando uma

determinada maneira de interagir cotidianamente, evidenciando uma rigidez nos

gestos.

É necessário ressaltar, também, que este mitema é perpassado pelo

elemento tempo80 que aparece visivelmente nos gestos da estudante, a partir da

ideia de formigamento que se constitui pelo esquema da agitação, do fervilhar

(DURAND, 2002). Ou seja, um ritmo operante de aceleramento que perpassou os

gestos de M., representando certa angústia relacionada a uma corrida contra o

tempo – associado por ela à imagem “mundo do relógio”.

79

Como reflexos dominantes a perpassar este regime, a dominante postural, com os seus derivados manuais e adjuvante das sensações à distância (vista, audiofonação) (DURAND, 2002). 80

Segundo o dicionário de símbolos de Chevalier & Gheerbrant (2009, p. 876), “simboliza um limite na duração e a distinção mais sentida com o mundo do Além, que é o da eternidade. Por definição, o tempo humano é finito e o tempo divino infinito ou, melhor ainda, é a negação do tempo, o ilimitado”.

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Dessa maneira, a análise aqui realizada levou-me ao reconhecimento do

esquema da separação nos gestos de M., a partir da oposição pensamento (razão) e

ação (corpo), associada à imagem simbólica do gládio, como uma verdade operante,

que corta e decepa, mas também promove a conjunção.

O gládio, inserido na perspectiva desta análise, representa o movimento de

M. no decorrer do exercício de biografização corporal.

1) Como arma de decisão, instrumento de uma verdade operante - associada

nos gestos de M. pela antecipação da ação em favor de um pensamento

predominante.

2) Único meio de solucionar o problema e atingir o alvo – em M. significa

colocar-se sob um tempo, buscando, numa batalha cotidiana, ultrapassá-lo.

3) Símbolo de conjunção, representado pela percepção que M., no decorrer

dos encontros, teve sobre o seu corpo, resultando em um primeiro movimento de

aproximação entre pensamento e ação, representado por um corpo mais solto e

integrado à situação proposta.

A partir deste movimento vivido por M. no decorrer da pesquisa, é que abordo

UM SER DE CARNE QUE PENSA, OUTRO QUE AGE NO CORPO FRACIONADO

como o mitema que congrega o sentido latente de suas inscrições corporais. Uma

mulher que se constituiu a partir de uma ideia predominante, que enfatiza o pensar

dissociado do agir, repercutindo em um corpo a serviço desse pensamento. Em

função disso, o corpo foi deixado de lado, como um coadjuvante no trajeto de vida.

Diante disso, penso que a memória inscrita no corpo de M. evidencia-se num

racionalismo que veio sendo responsável por um modo operante de agir e que

resultou em uma rigidez corporal, vista durante o exercício de biografização corporal.

Exercício que, ao mesmo tempo em que visibilizou este corpo, trouxe à tona outra

possibilidade, que o colocou como centro e protagonista da ação.

UM SER DE CARNE QUE PENSA, OUTRO QUE AGE NO CORPO-FRACIONADO

(Narrativa Ficcional)

De segundo em segundo, tudo transcorreu assim...

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Numa tarde de outono, ela foi ao encontro do grupo. Seus passinhos

apressados invadiram o espaço, chamando a atenção para sua chegada. Sempre

muito expressiva e determinada, logo já estava de conversa com todas ali presentes.

Em seus gestos era possível ver sua expectativa por aquele momento. Fazia tanto

tempo que esperava por isto.

Num piscar de olhos, ela estava pronta para começar. Tudo com ela era

assim, rápido e prático. Não havia muito tempo... era necessário pensar para agir.

E quando chegou sua vez, ela pulou para o meio da roda e se apresentou ao

grupo. Com seu jeito serelepe de ser, movimentou-se para o lado e com as mãos

próximas ao rosto fez HAHAHA... A brincadeira de sua apresentação revelava o seu

lado lúdico, na mesma medida que um corpo disciplinado e enrijecido com o tempo.

Um corpo pensante, diferente de um corpo atuante. Mas com passos fortes e gestos

decididos, sua postura mudou de figura. Suas atitudes mobilizaram seu corpo,

dando vida a uma expressividade até então descompassada.

E no meio daquelas pessoas ela se viu “cutucada”. Um cutucar que

reverberou memórias. Memórias do que um dia foi. E da adulta de hoje à criança de

ontem. Seu jeito faceiro e agitado de ser ganhou a cena. Agora quem estava ali não

era mais uma pessoa adulta correndo contra o tempo, mas uma menina muito

esperta que brincava com o tempo.

E tantas foram as brincadeiras: de rolar no chão, de boneca, de roda, com

seus amigos.

E para a escola ela foi... Não gostava muito que lhe penteassem, ela já era

grande e podia se arrumar sozinha. Em sala de aula ela era levada, olhava para um

lado, olhava para o outro, chamava a colega. Mesmo tão inquieta, fazia sua lição. E

o sinal tocou... e lá foi ela aproveitar cada brinquedo que a escola tinha para

oferecer. E quando o sinal tocou novamente, quem retornou não foi mais a menina e

sim o corpo de uma mulher adulta que, numa luta contínua contra o tempo, fazia

muitas coisas ao mesmo tempo.

E seu gestual mudou... Tornou-se automático. Seus pensamentos

metamorfosearam-se em planejamento. Ela já não era mais a mesma. Seu corpo

agia, sua mente pensava, de forma descompassada. Definitivamente, a menina

havia ido embora.

E a badalada das 19h tocou... ela escutou... e imediatamente partiu... pois o

tempo é curto... o tempo é corrido... o tempo a persegue.

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A interpretação dos gestos de M.

O tempo foi o elemento que chamou a atenção nas cenas de M.. Isto porque,

no decorrer do processo de biografização corporal pela improvisação teatral, é

possível ver em seus gestos um ritmo interno sempre acelerado. Seu corpo, por sua

vez, acaba sendo um reflexo desta aceleração, ou seja, vejo um corpo ativo e muito

prático, mas também enrijecido, como se houvesse uma fragmentação entre o agir e

o pensar no decorrer de seu trajeto de vida.

A partir do momento em que aceita participar da pesquisa, observo uma

predisposição para se experimentar de outras maneiras, ou seja, vivenciar outra

relação com o seu corpo. Nas atividades em que foi solicitada a memória, vejo o

corpo da adulta em cena representando a criança que um dia foi. É possível

perceber que ela foi cutucada e o fato de re-(a)presentar a cena, mesmo de uma

forma um tanto “artificial” e ilustrativa, proporciona-lhe experimentar outro contato

com o seu corpo que quebra com os gestos cotidianos/automáticos que está

acostumada a fazer. Ao re-(a)presentar acontecimentos de sua vida, visibilizo um

aspecto muito importante de seu imaginário, a questão do tempo novamente. Um

tempo que constantemente a persegue e que vem definindo, muito provavelmente,

inconscientemente, uma determinada maneira de agir.

Seus gestos são fortes, um corpo que “age com força e em bloco”. Sua

postura, durante a pesquisa, mesmo com certas limitações corporais, esteve aberta

para as experimentações, expondo, da sua maneira, vontades e desejos. Quando

re-(a)presentou a escola, ao final do processo de trabalho, foi possível perceber que

seu corpo já estava mais solto e a dicotomia entre corpo e mente estava menos

acentuada. Ouso dizer que um corpo mais próximo da criança que ela pensa ter

sido. Penso que esta entrega já foi resultado de uma visibilização do seu conteúdo

imaginário, que ao ser intimado pela memória, atualizou a vivência a partir de outro

ângulo, um corpo mais presente no aqui-agora, havendo uma aproximação do

pensar e do agir.

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Na cena sobre “O que faço hoje com o meu corpo?”, é nítido ver, mais uma

vez, sua preocupação com o tempo, ocasionando um aceleramento que a faz agir

de maneira automática.

6.4. Estudante C.

O mitema da estudante C.

Fig. 7 – Figura elucidativa do mitema da estudante C.

Pela proposta de biografização corporal via linguagem teatral, cheguei ao

mitema de C. como A BUSCA PELA LIBERDADE DESEJADA NO CORPO-

COMEDIDO. O sentido deste mitema relaciona-se a um corpo moderado, sóbrio,

regulado, prudente, que sabe comedir-se81. Características que ressaltam um freio

interno em seu corpo, que bloqueia uma manifestação corporizada de seus desejos.

81

Fonte: Dicionários on line - Michaelis e Dicionário do Aurélio

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Associo esta ideia a diferentes formas de repressão que C. vivenciou no decorrer do

seu trajeto formativo, que a levaram a assimilar uma determinada forma de agir,

calcada na moderação e na regulação. Dessa maneira, há uma vontade latente em

seu corpo, mas sempre comedida.

No entanto, percebi que, pelo exercício de biografização via linguagem teatral,

ela extrapola este condicionamento, revelando outra atitude corporal no exercício

ficcional, o que contribuiu para visibilizar esta dicotomia entre o corpo comedido do

cotidiano e o corpo expressivo da ficção. Associo esta dinâmica por ela empreendida

como um processo eufemizador, conjugando, na mística do Regime Noturno – que

contempla a dominante digestiva e agrega os sentidos, caracterizando-se pelos

verbos de descer, possuir, penetrar –, a possibilidade de extrapolar, através da arte

dramática, o que veio sendo imposto ao seu corpo, com vistas ao acesso de uma

intimidade secreta. Intimidade que representa um movimento de equilibração

psicossocial que proporciona a penetração em suas camadas mais profundas, pela

autoexaminação e pela reelaboração de sua existência (BARROS, 2009). Nesse

sentido, o exercício ficcional, via imaginação simbólica, assume um papel

amortecedor entre o impulso que parte do mais íntimo do ser e a repressão por ela

vivida no decorrer de sua vida.

A linguagem indireta, neste sentido, insere-se como a possibilidade de

extrapolar o elemento condicionante assimilado em seu corpo como uma atitude

ponderada de agir, para, na penetração de sua intimidade mais profunda, voltar para

trás. Movimento que, ao incidir na imaginação de fabular uma narrativa, promove a

integração em direção às diversas fases do retorno. No exercício de biografização

corporal, este voltar para trás presentificou-se, principalmente, na imagem da criança

que um dia C. foi e que representa a liberdade de ontem projetada no desejo de

hoje.

Esse movimento empreendido por C. mostra um aspecto de vivacidade

concreta, tanto sensorial como imaginária, típica de uma fantasia mística (DURAND,

2002), que a induz durante o exercício de biografização a muito mais sentir do que

pensar, deixando-se guiar por essa faculdade. Essa intuição, segundo Durand

(2002, p. 274), “não acaricia as coisas do exterior, não as descreve, mas,

reabilitando a animação, penetra nas coisas, anima-as”; é muito mais uma produção

do que uma reprodução, sendo a representação do esquema dinâmico do gesto.

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Dessa maneira, ao identificar uma fantasia mística que percorre os gestos de

C., estou enfatizando o caráter criador e expressivo que a anima, mas que somente

acontece pelo exercício ficcional como o caminho para extrapolar a limitação do seu

corpo, a favor de uma vontade latente e desejada.

A máscara, nesse viés, pode ser considerada o elemento simbólico que

representa este mitema em dois aspectos: 1) como resultado de uma ação

repressora do corpo que resultou em um mascaramento – “preenchendo a função de

agente regulador da circulação (sendo mais perigosa na medida em que é invisível)

das energias espirituais espalhadas pelo mundo” (CHEVALIER & GHEERBRANT,

2009, p. 597); 2) como elemento catártico que emana do mais íntimo de si – “onde o

homem toma consciência de seu lugar dentro do universo” (idem).

O primeiro aspecto é resultado de uma ação repressora e reguladora que a

fez assimilar uma determinada maneira de agir, em que nem tudo era permitido. Tais

proibições condicionaram-na a uma determinada forma de agir que se contrapôs a

uma expressão mais espontânea de si. Em função disso, houve um mascaramento

dos sentimentos, vontades e desejos. Isso se inscreve no seu corpo a partir da

imagem de um freio, ou trava interna que, na fase adulta, se manifesta como uma

intenção que fica sempre oculta em suas ações. Já o segundo aspecto, associa-se à

libertação que vivencia quando participa do exercício ficcional. Libertação que

proporciona a C. experimentar desejos recalcados, que são exacerbados em seus

gestos, suas emoções, suas ações de forma espontânea e sem limites.

Nesse sentido, o mitema de A BUSCA PELA LIBERDADE DESEJADA NO

CORPO-COMEDIDO congrega os diversos “Nãos” (repressão) que C. foi vivendo no

decorrer de sua vida, o que ocasionou um polimento e uma trava interna que a

fazem não se expressar completamente na fase adulta. Em função disso, há uma

projeção em direção ao universo ficcional como uma dimensão importante por

eufemizar o que é proibido e abarcar a possibilidade de libertação, representada em

cena a partir de um corpo solto e expressivo.

A BUSCA PELA LIBERDADE DESEJADA NO CORPO-COMEDIDO

(Narrativa Ficcional)

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Naquela sala escura, de repente ela chega. É uma das primeiras! Sem muitas

palavras, senta e começa a observar. Seu corpo está quieto, mas seus olhos

agitados, talvez um tanto aflitos ou então desconfiados? Quem sabe curiosos para

saber o que logo irá acontecer?

Pouco a pouco, outras pessoas vão chegando e o grupo completa-se. Ela

levanta e rapidinho vai para o tablado. Está ansiosa! Não sabe muito bem o que virá

pela frente e isto a deixa agitada. Um agito quase imperceptível, que fica camuflado

no contorno do seu corpo, mas explícito em seu olhar. E então é feito o anúncio: é

hora do corpo falar!

Parece que foram ditas palavras mágicas, pois instantaneamente o seu corpo

reagiu através de um pulo acompanhado de um grito. O que isto quis dizer? Ela

estava praticamente imóvel e seu corpo silenciava-se em expressões um tanto

misteriosas. O que a mobilizou? Será que naquele momento se sentiu livre? Ou foi o

que precisava para se libertar?

E no espaço escuro e introspectivo da sala, ela encontra uma caixa. Entre um

objeto e outro, eis um nariz vermelho. Ao colocá-lo, ela se transformou, seus gestos

abriram-se, seu corpo se expandiu e a imaginação ganhou forma. É como se ela

tivesse encontrado a chave que dá acesso à porta de um lugar secreto e um tanto

fantástico. E neste lugar ela encontrou com a criança que um dia foi. Os limites e as

regras desapareceram. E um corpo leve e repleto de movimentos ganhou a cena.

Ela brincou com suas bonecas, andou de bicicleta, curtiu as festas de aniversário, foi

para a escola novamente. Pulou, correu, brincou, gritou. Tudo tinha vida!!! Também

fez manha quando foi contrariada. Mas isto não foi problema, pois tudo era

permitido.

Mas o encantamento não durou muito, e logo ela se lembrou de que aquilo

era proibido. E as diferentes formas de NÃO começaram a imobilizá-la. A cada

passo que tentava dar, um obstáculo diferente. Foi para um lado, foi para outro,

tentou correr e também se esconder, mas tudo em vão, cada vez mais ela era

sufocada. E para se defender ela atira o nariz vermelho longe e com ele o

encantamento e também a liberdade de seu corpo. A dor lhe invadiu, fazendo-a

desistir. Seu corpo novamente estava contido e sua voz silenciada. O nariz vermelho

passou a ser apenas um objeto de desejo, uma esperança de viver o diferente. E

assim ela partiu... seu corpo poderia ser o mesmo de antes, porém agora estava

mergulhada em diversas sensações que de algum modo parecem tê-la imobilizado.

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A interpretação dos gestos de C.

O exercício de biografização corporal pela improvisação teatral proporcionou

para C. experienciar-se corporalmente, expressando-se em sua totalidade. Atribuo

isto ao elemento ficcional, que a fez se entregar a uma situação imaginária. Ao

colocar-se como personagem de sua história e re-(a)presentar acontecimentos que

foram marcantes em seu trajeto de vida, rompeu uma barreira que havia sido

imposta ao seu corpo.

O nariz de palhaço reforça a ideia do ficcional como um elemento a que ela

atribui importância e que causa uma verdadeira mobilização de si e da sua

espontaneidade. Quando a memória foi acionada e presentificada na re-

(a)presentação em cena da criança que um dia foi, houve uma verdadeira

transformação corporal. O corpo soltou-se e se entregou completamente. Não havia

mais barreiras, mas sim um corpo que falava e se expressava inteiramente.

A ideia que passa é a de que somente quando está inserida numa situação

imaginária é que consegue fazer este movimento. Em cena, ela consegue dizer

corporalmente muito mais coisas do que na vida cotidiana. É como se o seu corpo

precisasse do elemento cênico para se expressar.

A memória visibilizou uma imagem do seu reservatório que trouxe pistas que

me levam a pensar por que o seu corpo no dia a dia fica somente na intenção, como

se tivesse um freio, ou então, uma amarra que não lhe permite agir naturalmente. Ao

representar o que estava registrado em seu corpo, os diversos “nãos” da cena

evidenciaram uma possível repressão no decorrer de sua vida. Repressão que faz a

vontade ficar somente numa intenção contida do corpo. Muitas foram as vezes que

seu corpo tinha algo a dizer, mas se calou. Isto é, toda a vez que ela queria

manifestar algo, antes de iniciar o encontro, era como se um “não” se materializasse

na sua frente, fazendo-a reprimir e conter a sua ação.

Então, me pergunto: Por que no exercício de biografização corporal pela

improvisação teatral o corpo de C. é diferente do corpo cotidiano? Será que somente

em cena ela consegue exercitar sua espontaneidade? Por que ela não consegue

transpor esta naturalidade para a vida cotidiana? O que a impede de realmente se

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mostrar ao mundo? Quem sabe os “nãos” recebidos no decorrer da sua vida sejam a

resposta para essas questões.

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7 O PROCESSO DE ANÁLISE PASSO A PASSO

Neste capítulo, mostro como aconteceu a análise, a partir dos dados empíricos. Com o intuito de deixar clara minha trajetória investigativa,

retomo passo a passo o diagrama do processo de análise apresentado no subcapítulo 5.3, demonstrando o enunciado proposto e a maneira como

trabalhei com a empiria. Assim, apresentarei cada passo da análise trazendo sempre as quatro protagonistas da pesquisa. Inicialmente, abordo como

se deu a análise do vídeo, após a análise do Diário da Experiência em três etapas: classificatória, fenomenológica e hermenêutica. Por fim, mostro as

pregnâncias que me levaram aos núcleos simbólicos e, consequentemente, aos mitemas, apresentados nas figuras 4, 5, 6, e 7 do capítulo 6.

7.1 Análise dos registros de vídeo

Assistir os vídeos e a partir de uma

tabela apresentar a proposta desenvolvida, a descrição da cena e os gestos como escrituras do corpo

biográfico.

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A análise dos registros de vídeo constituiu-se primordial nesta pesquisa, à medida que me proporcionou visibilizar, analisar e interpretar os

gestos, colocando-me em contato com os conteúdos que compõem o reservatório imaginário das estudantes. O gesto representa a expressão da

biografia do corpo, apresentando-se como o grande expoente do imaginário humano (DURAND, 2002), pois constitui a base das grandes imagens

simbólicas produzidas pelo pensamento figurativo do ser humano.

Ao propor a descrição de cada atividade realizada, meu foco direcionou-se à captura dos gestos pregnantes, com o intuito de apreender o sentido

subsumido em cada ação, como o primeiro contato com os repertórios e as representações das protagonistas da pesquisa. Este procedimento foi o

primeiro passo dado por mim rumo à interpretação do gesto.

Estudante L.

Proposta Descrição da Cena Gestos pregnantes

Quem sou eu?

L. foi a segunda. Também disposta, foi e fez sua

apresentação, como se não tivesse pensado

muito. Seu gesto demonstra atitude, porém

insegurança por não conseguir deixar o corpo

parado.

Mostrar-se sorrindo revelou algo de menina, de

ingenuidade, de pureza.

Olhar e sorrir – estar inteira e aberta diante das

colegas

- Corpo Ereto, coloca-se de frente para as

colegas, olha e sorri, levemente balançando o

corpo de um lado ao outro -> gesto =

afetividade, proximidade e insegurança.

Mostrar-se ao outro, evidenciando a afetividade

que foi expressa pelo sorriso, um sorriso que ao

ser dado buscou a proximidade do outro e a sua

aceitação, revelando aspectos de insegurança

também.

O que está registrado no meu corpo? Cena com D. que desistiu da pesquisa - Saltitar ao caminhar -> gesto = Negação do

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Começa a cena com a L. acordando e se

arrumando. Coloca uma bolsa, despede-se de

alguém e sai saltitante. Encontra a D. no meio do

caminho. Para de saltitar e continua, mas agora

caminhando. D. já está mais cabisbaixa. Elas

continuam caminhando. L. chega num lugar,

coloca as mãos sobre um módulo, respira fundo,

enche as bochechas de ar, apóia-se neste

módulo cruzando um dos braços sobre o módulo

e colocando a outra mão junto à boca, desiste do

módulo, sua respiração ainda é profunda. Está a

esperar alguma coisa. Levanta e sai

caminhando. Encontra D., dá um oi com as

mãos e sai um tanto cabisbaixa agora. Escora-

se na parede, com os braços para trás. Senta no

chão e coloca as mãos na cabeça como se

estivesse preocupada, talvez chorando. Levanta

já sorrindo, arruma a sua roupa e caminhando

vai ao encontro de D. que está desanimada. Elas

conversam com gestos se referindo ao corpo. L.

mostra seu corpo comparando com o de D.;

seu corpo adulto x aceitação do corpo de

criança (age como se o corpo fosse outro)

- Respiração profunda; mãos próximas à boca

com o corpo inclinado sobre o módulo; balanço

das pernas e pés -> gesto = aflição,

preocupação e insegurança.

- Recolhimento do corpo -> gesto = medo e

tristeza.

- Arrumar a roupa ao caminhar-> gesto =

negação do corpo, incômodo, vergonha.

- Diálogo e comparação entre corpos -> gesto =

a imagem que tem sobre o seu corpo.

- Levanta os ombros e solta-os, sorrindo ->

gesto = satisfação, atitude sonhadora e

otimista diante da vida.

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olham-se em um espelho e D. se anima um

pouco. Elas se despedem e vão embora. L.

suspira como se estivesse feliz. Elas se

encontram, dão as mãos e vão embora.

Sua cena demonstra a diversidade de

emoções que estão registradas em seu

corpo.

Corpo perpassado pela afetividade. Não

aceitação do corpo, vergonha. Vejo o seu

corpo como um fator que a limita a fazer tudo

que deseja. Ela age como se o seu corpo

fosse outro – talvez da L. ainda criança?

Autorretrato da criança que um dia eu fui

Percebi a L. muito à vontade para fazer esta

cena. Seus gestos eram naturais, leves,

fluidos, como que vivendo no aqui-agora da

cena a nostagia de ser criança por alguns

momentos novamente. O presente e o

passado encontravam-se – “Eu sou uma

criança”. Revendo a cena vejo a L. num

corpo adulto, mas ainda menina. A

COMER –> gesto = satisfação

DANÇAR –> gesto = satisfação, afetividade,

liberdade e aceitação de si mesma e do outro.

(Aparece duas vezes na cena)

Deitada de barriga para baixo, pernas

levantadas num leve movimento de cruzar e

descruzar, uma mão sobre o queixo e a outra

próxima ao cotovelo –> gesto = sonhadora

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improvisação teatral possibilitou a L. dar

espaço para o lado criança, que parece que

nunca a abandonou.

Ações predominantes: COMER (sentada e de

pernas abertas, comendo e bebendo)

DANÇAR (levanta-se rápido para a dança, como

se a música a tirasse do estado anterior, comer)

(Pela dança é possível identificar do que se trata

–AS CHIQUITITAS, uma novela musical,

composta por crianças e adolescentes nos anos

90)

ASSISTIR TELEVISÃO – ENCANTADA.

Impressão é que sonha com a cena, como se

quisesse vivê-la ou mesmo ser um dos

personagens (sentada, pernas cruzadas como

borboleta, assistindo com muita empolgação)

(deitada de barriga para baixo, pernas

levantadas num leve movimento de cruzar e

descruzar, uma mão sobre o queixo e a outra

próxima ao cotovelo)

BRINCADEIRA DE BONECAS – Penteia, veste,

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cria um diálogo entre os bonecos

movimentando-os.

ORGANIZAR OS BRINQUEDOS – aqui aparece

algo muito notável na L. de hoje, ser uma boa

menina, organizar as coisas, ser responsável

pelo que faz. Ela brinca, mas depois organiza

tudo, guarda seus brinquedos para fazer outra

coisa. OBEDIÊNCIA ÀS REGRAS. BEM

COMPORTADA.

PENSAR – para e pensa em algo para fazer –

decide brincar de esconde-esconde. É a que

conta e procura seus amigos

BRINCAR DE BONECA – coloca sua boneca

para dormir.

DANÇAR – volta a dançar a coreografia contente

e sai.

Penso que a L., ao assistir e representar uma

atitude de encantada e mesmo sonhadora

diante do que vê na televisão, queria ser

como os personagens, viver as histórias.

Se eu voltasse a ser criança que cena eu A L. desde o autorretrato de criança entrou Balanço da perna -> gesto = espera.

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viveria novamente?

no jogo de voltar a ser criança. Sua proposta

é um complemento da cena que ela já havia

representado anteriormente. É interessante

observar que a L. cria uma série de ações

para se representar. É como se uma ação não

pudesse existir sem a outra. É uma mulher

em cena que tem a oportunidade de dar

vazão para o seu lado menina que sempre

está com ela, mas pelas obrigações diárias

da vida adulta é deixada de lado, ou quem

sabe ela tenta “disfarçar?”. Sua cena inicia

com a entrada em cena puxando um objeto que

mais parece uma mochila de rodinhas. Ela larga

este objeto, senta e puxa alguma coisa para

perto de si (uma mesa de escola). Logo começa

a copiar algo em seu caderno. Olha para o lado,

depois ainda copiando olha para o outro lado e

diz “ELA VAI”. Apoia a cabeça na mão, olha

para cima. Seu gesto é como se ela estivesse

pensando. Ela sorri, a perna balança

ansiosamente, mas discretamente, como se

Mexer-se rapidamente, guardar suas coisas e

sair -> gesto = pressa.

Pentear e arrumar-se -> gesto = preparação.

Dança -> gesto = satisfação, liberdade,

aceitação, afetividade, atenção.

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esperasse algo. De repente ela se mexe

rapidamente, guarda suas coisas na mochila e

sai puxando. Seu próximo gesto é de pentear o

cabelo e se arrumar. Passa a mão próxima ao

corpo como se estivesse colocando alguma

roupa, talvez uma saia ou vestido. Sai

caminhando com os braços levemente abertos,

vai para frente, volta para onde estava e começa

a dançar (pela coreografia é uma dança ainda

das Chiquititas). Após a dança, coloca as mãos

no peito, balança a cabeça de forma alegre e diz

alguma coisa (pela expressão e lábio é

OBRIGADA). Enxuga lágrimas do rosto. Pega

alguma coisa e cumprimenta as pessoas com

três beijos. Suspira (alegre, satisfeita), solta os

braços ao longo do corpo e sai.

Mais uma vez a dança é um elemento forte na

L.

Autorretrato do que sou hoje

A L. tem como símbolo principal o

CORAÇÃO, associado ao afeto e carinho. É

interessante ver que o autorretrato de si e de

L. chega e senta com as pernas cruzadas.

Passa as mãos nas pernas duas vezes -> gesto

= insegurança

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criança não apresenta uma grande diferença.

Como se a L. criança estivesse na mesma

temporalidade da L. de hoje. Seus gestos e

expressões revelam a ingenuidade e a pureza

típica de uma criança. Há uma transparência

no que pensa e no que faz. Há uma inocência

no olhar e na forma de se colocar em cena.

L. chega e senta com as pernas cruzadas.

Passa as mãos nas pernas duas vezes como se

estivesse a pensar. Até que olha para frente,

sorri e faz o gesto de legal. Leva os dedos

próximos da boca para enfatizar o sorriso.

Balança-se e lança o olhar para cima. Parece

uma menina e não uma pessoa adulta. Faz com

as mãos um coração e depois faz um coração

imaginário no ar com as mãos. Faz movimentos

nos dedos que trouxeram a impressão de ser

casais que se encontram, laços de afeto. Em

seguida, faz outro coração. Dá um grande

abraço em si própria e curte esse abraço como

uma expressão máxima de carinho. Com muito

Olha para frente, sorri e faz o gesto de legal ->

gesto = aceitação e legitimidade.

Leva os dedos próximos da boca para enfatizar

o sorriso -> gesto = contentamento

Faz com as mãos um coração e depois faz um

coração imaginário no ar com as mãos. Faz

movimentos nos dedos que trouxeram a

impressão de ser casais que se encontram,

laços de afeto. Em seguida faz outro coração.

Dá um grande abraço em si própria e curte esse

abraço como uma expressão máxima de

carinho. Com muito afeto abraça algo imaginário

que está em seu lado e dá um beijo. Faz isto no

outro lado também. Faz um grande coração e

termina com um abraço afetuoso em si -> gesto

= afetividade. Valorização que ela atribui à

presença das pessoas em sua vida – gestos

que remetem à infância ao movimentar os

dedos (impressão de brincar de bonecas)

OBS.: L. faz muitas cenas sentada no chão.

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afeto, abraça algo imaginário que está em seu

lado e dá um beijo. Faz isto no outro lado

também. Faz um grande coração e termina com

um abraço afetuoso em si.

Ponto forte: O coração ligado ao afeto e à

amorosidade.

Se eu voltasse a ser criança o que faria com

o meu corpo?

Pular corda. Ludicidade de infância Pular corda -> gesto = expressividade,

elasticidade e fluidez do corpo.

Sou criança e estou me preparando para ir à

escola; Sou criança e estou a caminho da

escola; Sou criança e estou na escola.

L. inicia penteando a M.. M. não gosta muito e

se mexe fugindo deste pentear – movimenta-se

para o lado. L. com um gesto próximo à cabeça

lhe impõe o pentear e faz ela sossegar. Depois

M. arruma L.. Faz chiquinhas no cabelo de L.

que aceita toda feliz. L. segura em sua mão os

amarradores do cabelo. Seu gesto é claro.

Entrega sempre que M. solicita. As duas dão as

mãos e caminham até a parede. Neste

momento, é nítido o gesto da L. tirando algo do

bolso de trás da sua calça e entrega para

alguém. Novamente se dão as mãos e

caminham até despedirem-se com três beijinhos.

Pentear e ser penteada, sair de mãos dadas ->

gestos = cuidar e ser cuidada.

Brincar na pracinha da escola, copiar as coisas

do quadro com postura séria e compenetrada ->

gestos = escola como lugar de aprender e

brincar.

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122

L. caminha de um lado para o outro até

encontrar a M.. Dão as mãos e caminham um

tanto abaixadas – joelhos flexionados. L. faz

gestos como que interagindo com alguma coisa

– talvez brinquedos na pracinha da escola – em

seguida ela pula e volta a dar a mão para a M..

Sentam – cena: sala de aula. Agora as duas em

sala de aula, M. incomoda L. que quer ficar

concentrada e comportada. Levantam-se e vão

brincar - brincadeira de balanço e outros

brinquedos. Hora de ir embora. L. coloca sua

mochila nas costas e sai de mãos dadas com a

M.. Despedem-se e L. chega em outro lugar –

Talvez sua casa. Lá encontra a M. – fazem

tarefas e depois brincam.

É possível perceber que elas entram no clima

da escola. Fazem várias cenas e vejo um

corpo diferente da M. Um corpo mais solto e

entregue à cena. É interessante ver como

elas corporificam o seu imaginário em

relação ao período escolar.

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O que eu faço hoje com o meu corpo?

Caminha de um lado para o outro rapidamente/

Senta e come – o comer é rápido/Sai correndo –

Dá tchau rápido/Senta e lê.

Caminhar, comer, ler e sair apressadamente ->

gestos = tempo => aparenta descuido e

desatenção pela correria.

Estudante Cm.

Proposta Descrição da Cena Gestos pregnantes

Quem sou eu?

A Cm. faz um gesto de reverência com os

braços, como que se colocando à disposição.

Leva as mãos no coração, manda um beijo e

sorri. Leva os braços para trás abertos, faz um

leve movimento com a cabeça endereçado para

as colegas e sai.

Os gestos da Cm. revelam uma entrega para

o outro. Um corpo disponível e afetivo que se

doa ao outro.

Inclina-se em direção ao chão e estende o braço

num movimento que parte das proximidades do

coração. Ergue-se e manda um beijo para as

colegas, coloca as mãos no coração e estende

os braços para trás sorrindo para elas – gesto =

reverenciar e servir o outro

O que está registrado no meu corpo?

Cena com C.

Cm. chega livre, corpo solto, girando no espaço

e gargalhando alto, até que C. com a mão faz o

gesto de parar e Cm. vai parando, até que do

Rodopia de braços abertos e dá gargalhadas

pelo espaço, interrompe seu movimento, pois é

repreendida. O papel se inverte e ela passa a

repreender, utilizando seu corpo todo e

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gesto de parar a mão se transforma em um soco

e em um grito de desespero C. se joga no chão

e chora. Cm. chega, aproxima-se com sua voz e

seu corpo mandando ela parar (fala – PARA

COM ISSO), como se ela não pudesse

expressar seu sentimentos. C. levanta e Cm.

observa com um braço estendido e depois os

dois. Afastam-se como se começasse outro

momento. Cm. Aproxima-se acariciando e

beijando seu corpo. C. observa, aproxima-se e

com certa indignação faz Cm. parar com um

gesto com o dedo e logo após toda a mão. Cm.

se afasta e seu corpo se amontoa no chão. C. se

aproxima e começa a fazer um gesto como se

estivesse acontecido alguma coisa. Começam a

conversar como que querendo saber o porquê e

olham para o público como se quisessem uma

resposta também.

A cena chama a atenção pela pelos diversos

NÃOs que elas foram representando no

principalmente o braço. Acaricia e beija seu

corpo, novamente é repreendida e reage

amontoando-se no chão, finaliza com gestos que

remetem à indagação – gesto = prazer,

liberdade de um corpo livre x corpo que é

repreendido e que repreende.

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decorrer da cena. Penso que estes NÃOs

podem ter sido definidores para o que elas

são hoje.

Liberdade (VONTADE) x Dor e Repressão –

POR QUE ISTO? (Busca por respostas)

Autorretrato da criança que um dia eu fui Não participou, pois estava com o pé

machucado.

Se eu voltasse a ser criança que cena eu

viveria novamente?

Não participou, pois estava com o pé

machucado.

Autorretrato do que sou hoje Não participou, pois estava com o pé

machucado.

Se eu voltasse a ser criança o que faria com

o meu corpo?

Fechou-se. Encolheu o corpo e colocou as mãos

no rosto como que transformar-se em criança

fosse algo doloroso. Cm. – sentada, com

pernas cruzadas, corpo encolhido, mãos

cobrindo o rosto, postura curva. Passa as mãos

no rosto como um lamento, uma tristeza, um

choro. Corpo em consonância com o

comentário: NÃO VOLTARIA A SER CRIANÇA

– comentário dela após o jogo.

Encolher o corpo ao chão – gesto =

recolhimento

Sou criança e estou me preparando para ir à Cm. penteia C. que faz gestos como se Pentear o outro, apontar ordenando algo – gesto

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escola; Sou criança e estou a caminho da

escola; Sou criança e estou na escola.

estivesse brava, não gostando do ato de pentear

o seu cabelo. Ela mexe várias vezes o braço e

faz caretas. Cm. aponta algo como que

mandando ela pegar algo e colocar (se vestir).

Saem as duas de mãos dadas, caminham até

sentar. Pegam objetos imaginários e começam a

copiar do quadro. C. força os olhos e em seguida

espia as coisas que a Cm. escreve. Elas

guardam o seu material e de mãos dadas voltam

a caminhar. (Enquanto colegas são cúmplices)

1) MOMENTO AUTORITÁRIO – mãe/filha 2)

MOMENTO DE SATISFAÇÃO EM IR E ESTAR

NA ESCOLA.

Na cena delas é possível perceber um

encantamento pela escola e um

comprometimento das duas em estudar.

Ambas voltam a ser crianças realmente. Há

algo no corpo delas que demonstra uma

empolgação, uma vontade em estar na

= cuidado com o outro

Copiar com atenção os deveres da lousa –

gesto = comprometimento e seriedade em

estar na escola – representação escolar

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127

escola, bem como uma cumplicidade.

Corpo fechou-se. Tensão nos gestos,

sofrimento explícito.

O que eu faço hoje com o meu corpo?

Entra rápido/Olha o relógio no pulso e no ritmo

acelerado leva a mão na cabeça e bate na perna

(como se estivesse atrasada ou correndo contra

o tempo)/Pega um objeto imaginário – folhas ou

livros – e folheia rápido/Sai caminhando

rapidamente, olha o relógio, leva o dedo à

cabeça/ Senta – pega algo para escrever e

ler/Caminha apressada e larga alguma

coisa/Olha o relógio e faz um gesto com as

mãos/Começa a mexer em algo e pede para

alguém esperar – como se estivessem

chamando ela/repete várias vezes até que vai

falar com esta pessoa – movimenta o braço –

como se estivesse conversando e mostrando

algum coisa/vai para perto da parede e volta

como se ainda estivesse falando com uma

pessoa/ caminha ainda falando com alguém,

mexe os braços e aponta para o pulso – relógio.

Gestos em ritmo acelerado = muitas coisas ao

mesmo tempo

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Corpo adulto sinônimo de muitas atividades

e compromissos. Ritmo acelerado.

Estudante M. Proposta Descrição da Cena Gestos pregnantes

Quem sou eu?

De mãos abertas próximas ao rosto M. faz um

movimento para o lado e o som hahaha.

Seu corpo me chama a atenção. É um tanto

rígido, como que endurecido pelo tempo, mas

seu gesto traz um aspecto lúdico que quebra

com aquela imagem enrijecida. A impressão

que tenho é de que seu corpo foi sendo

deixado de lado com o passar do tempo.

- Mãos próximas ao rosto; faz um movimento

para o lado e o som hahaha, olhando para a

câmera -> gesto = execução de uma tarefa,

dicotomia entre corpo e pensamento. Ela

quis enfatizar a ludicidade, mas seu corpo

não respondeu da mesma maneira.

O que está registrado no meu corpo? Não participou.

Autorretrato da criança que um dia eu fui

Os gestos de M. são enrijecidos, dá

claramente para ver que ela estava lá

representando apenas o que lhe foi proposto.

Não havia uma naturalidade. Porém, a

memória foi cutucada e ela recria em cena

dois momentos pontuais de sua infância: O

embalar a boneca nos braços, o brincar de roda

e voltar a embalar a boneca nos braços. Mesmo

representando a cena, a partir da

improvisação teatral, num movimento um

- Embalar a boneca nos braços e brincar de roda

-> gestos = ilustração do vivido, corpo

desconectado com a memória lembrada.

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129

tanto “anti-natural” o corpo trazia algumas

características que me levam a questionar as

vivências corporais de M. Será que ela não

teve tantas vivências corporais ao longo de

sua vida, ou ela foi formatando-se com o

tempo?

Se eu voltasse a ser criança que cena eu

viveria novamente?

M. entra com passos fortes, como se estivesse

brava e senta no chão. Seus movimentos e

gestos são agressivos. Aponta o dedo para

alguém e levanta os braços fazendo uma careta,

soando um deboche ao mesmo tempo em que

uma manifestação de indignação. Após estas

expressões, sua postura cai como se houvesse

uma desistência e congela. O gesto de apontar

e os braços levantados fazendo careta é uma

forma de expressar-se diante do que lhe

acontece. Talvez uma grande indignação de

algo que lhe aconteceu durante o período em

que foram realizadas as cenas.

Ponto forte: gesto de apontar, o levantar dos

braços e a careta. Corpo representa

insatisfação, indignação com alguma

situação vivida.

- Entra com passos pesados e senta no chão,

aponta o dedo para alguém, faz uma careta e a

postura cai -> gestos = agressividade e

indignação. Atribuem outra tonalidade ao

corpo.

Autorretrato do que sou hoje

A M. faz uma brincadeira em que ela está de

costas, pula apontando e faz gesto para a

pessoa sair (Lembra a brincadeira de meia-lua

1,2,3). Repete duas vezes. Lança as mãos para

cima como se tivesse cansada ou mesmo

- Brincadeira de infância -> gestos = ilustração

do vivido, corpo mais conectado com as

memórias da infância.

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desistido da brincadeira e sai. Gestos dela são

fortes, um corpo que “age com força e em

bloco”. Mais uma vez vejo M. adulta

representando uma cena da sua infância. Há

uma entrega, mas seu corpo não responde na

mesma proporção. Ou será que ela sempre

foi assim?

Se eu voltasse a ser criança o que faria com

o meu corpo?

Rolaria no chão. Ludicidade de infância – um

corpo livre, aberto às experimentações,

vontades e desejos.

- Rolar no chão -> gesto = mobilidade do

corpo.

Sou criança e estou me preparando para ir à

escola; Sou criança e estou a caminho da

escola; Sou criança e estou na escola.

L. inicia penteando a M.. M. não gosta muito e

se mexe fugindo deste pentear – movimenta-se

para o lado. L. com um gesto próximo à cabeça

lhe impõe o pentear e faz ela sossegar. Depois

M. arruma L. Faz chiquinhas no cabelo de L. que

aceita toda feliz. L. segura em sua mão os

amarradores do cabelo. Seu gesto é claro.

Entrega sempre que M. os solicita. As duas dão

as mãos e caminham até a parede. Neste

momento é nítido o gesto da L. tirando algo do

bolso de trás da sua calça e entrega para

alguém. Novamente se dão as mãos e

caminham até despedirem-se com três beijinhos.

L. caminha de um lado para o outro até

encontrar a M. Dão as mãos e caminham um

tanto abaixadas – joelhos flexionados. L. faz

gestos como que interagindo com alguma coisa

– talvez brinquedos na pracinha da escola – em

Mexer-se ao pentear (fugir do pentear) -> gesto

= insatisfação ao toque do outro

Pentear o outro -> gesto = cuidado.

Perturbar a colega em de aula -> gesto =

necessidade por movimento e expressividade

em sala de aula

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seguida ela pula e volta dar a mão para a M.

Sentam – cena: sala de aula. Agora as duas em

sala de aula, M. incomoda a L. que quer ficar

concentrada e comportada. Levantam-se e vão

brincar - brincadeira de balanço e outros

brinquedos. Hora de ir embora. L. coloca sua

mochila nas costas e sai de mãos dadas com a

M. Despedem-se e L. chega em outro lugar –

Talvez sua casa. Lá encontra a M. – fazem

tarefas e depois brincam.

É possível perceber que elas entram no clima

da escola. Fazem várias cenas e vejo um

corpo diferente da M. Um corpo mais solto e

entregue à cena. É interessante ver como

elas corporificam o seu imaginário em

relação ao período escolar.

O que eu faço hoje com o meu corpo?

Sai aceleradamente apontando para o pulso

(gesto típico quando queremos enfatizar o

horário)/Lava roupa/Varre/Bate algo próximo ao

corpo e a região do tronco como um bolo/Anda

rapidamente e se arruma.

Apontar para o pulso -> gesto = atenção ao

tempo

Ações aceleradas (lavar, varrer, bater bolo,

andar) -> gestos = Tempo => mecanização do

corpo e pressa.

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Estudante C.

Proposta Descrição da Cena Gestos pregnantes

Quem sou eu?

C. foi a primeira, entrou rapidamente como se

não tivesse pensado muito. Ela se apresenta

com um pulo alto, envolvendo os braços e as

pernas. Este movimento é acompanhado de um

grito alto. A impressão que tive do corpo da C. é

a questão da LIBERDADE. Sentia-se livre ou

queria se libertar?

Ponto forte: o Grito

Caminha para o meio do espaço, olha para as

colegas, pula e ao mesmo tempo grita

estendendo o corpo–> gesto = liberdade.

Queria se libertar ou sentia-se livre?

O que está registrado no meu corpo?

Cm. chega livre, corpo solto, girando no espaço

e gargalhando alto, até que C. com a mão faz o

gesto de parar e Cm. vai parando. Do gesto de

C. – o parar – transforma-se em uma punhalada

no peito e em um grito de desespero. C. se joga

no chão e chora. Cm. chega, aproxima-se com

sua voz e seu corpo mandando ela parar (fala –

PARA COM ISSO), como se ela não pudesse

expressar seu sentimentos. C. levanta e Cm.

observa-a com um braço estendido e depois os

Não com a mão -> gesto = repressão (aparece

duas vezes na cena)

A punhalada no peito, seguida de um grito e do

jogar-se ao chão e chorar -> gesto = ser

reprimida

Movimento dos braços -> gesto = indagar,

buscar respostas.

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dois. Afastam-se como se começasse outro

momento. Cm. Aproxima-se acariciando e

beijando seu corpo. C. observa, aproxima-se e

com certa indignação faz Cm. parar com um

gesto com o dedo e logo após toda a mão. Cm.

Afasta-se e seu corpo se amontoa no chão. C.

aproxima-se e começa a fazer um gesto como

se tivesse acontecido alguma coisa. Começam a

conversar como que querendo saber por que e

olham para o público como se quisessem uma

resposta também.

A cena chama a atenção pelos diversos

NÃOs que elas foram representando no

decorrer da cena. Penso que estes NÃOs

podem ter sido definidores para o que elas

são hoje.

Liberdade (VONTADE) x Dor e Repressão –

POR QUE ISTO? (Busca por respostas)

Autorretrato da criança que um dia eu fui

Apresenta um lado maroto, que vai da

criança que brinca sozinha com seus

Brincar de bonecas e o andar de bicicleta ->

gestos = voltar a ser criança => liberdade.

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134

bonecos para a criança que sai para andar de

bicicleta. Na C. também percebo o quanto a

proposta de improvisação teatral a motiva.

Nas improvisações sua imaginação ganha

asas, sua memória se presentifica e seu

corpo expressa-se. Ela consegue manifestar-

se e dizer muito mais coisas em cena do que

na vida cotidiana. É como se o seu corpo

precisasse do elemento cênico para se

expressar. Na cena representada fica claro

ver como a situação imaginária sempre a

estimulou. Os seus gestos no brincar de

bonecas revelam, no balançar da cabeça

juntamente com as mãos que seguram seus

bonecos, uma entrega para a criação de uma

história entre os personagens. E a bicicleta...

Seus gestos apresentam um aspecto lúdico que

envolve o movimento de pedalar.

Gestos fluidos, corpo leve e em consonância

com a memória corporizada, dando vazão

para a situação imaginária

Se eu voltasse a ser criança que cena eu

viveria novamente?

A C., por exemplo, tem como símbolo o nariz

de palhaço que é a menor máscara do

mundo. Penso que a maneira que ela

Explorar e experimentar objetos em uma caixa ->

gesto = procura

Encontra o nariz de palhaço, expansão do corpo

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representou a reação do seu corpo, ao

colocar o nariz, representa o encantamento, a

leveza, a possibilidade, o prazer que à

medida que ela „racionaliza”, ou melhor, que

pensa, que cai em si, priva-se e não se deixa

mais levar pelas sensações. Como se a

máscara abrisse a possibilidade de viver um

outro contexto, contexto este um tanto

proibido. Ao pegar este nariz novamente,

olhá-lo e trazer ao coração, vejo o

encantamento e a valorização daquela

máscara como sendo algo importante para si.

Talvez um pouco mais, a possibilidade de

expressar-se verdadeiramente, como se no

dia a dia isto não fosse possível.

C. começa fazendo uma caixa imaginária com as

mãos. Repete os gestos duas vezes como se

querendo deixar claro que aquilo que faz é uma

caixa. Essa caixa tem duas portas que ela abre.

Inicialmente está sentada, mas logo muda a

posição para começar a explorar o que tem na

-> gesto = prazer, encantamento e satisfação

- a partir da corporização de sensações que

alteram a tonalidade do seu corpo ao que o

nariz de palhaço lhe provoca.

Retira o nariz de palhaço do nariz -> gesto =

negação/proibição

Observa o nariz de palhaço, pega-o e leva ao

coração -> gesto = contemplação.

Encantamento por aquela máscara, bem

como sua valorização como algo importante

em sua vida ao levá-lo ao coração.

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caixa. Seu corpo acompanha esta investigação.

Ela começa a encontrar objetos. O primeiro ela

olha e descarta. Encontra uns óculos,

experimenta e descarta. Em seguida, um nariz

de palhaço. Coloca-o em seu nariz e seu corpo

reage como que sentindo um grande prazer em

experimentar aquilo. Após entregar-se a uma

rápida sensação de conforto, prazer, leveza...,

retira-o como que não se contentando, ou

melhor, não se permitindo sentir aquelas

sensações. Continua sua busca na caixa, mas

nada a faz satisfeita. Então ela empurra a caixa

para longe e passa a observar e a contemplar o

nariz de palhaço, deitando-se. Toca nele e este

tocar a faz sentar. Ela leva o nariz ao coração.

Ponto forte: NARIZ DE PALHAÇO. Corpo

reage ao colocar o nariz de palhaço. Como se

a máscara lhe permitisse viver.

Autorretrato do que sou hoje

C. entrou completamente no jogo de voltar a

ser criança. Seu corpo era o de uma criança

levada que adorava festas de aniversário.

Criança em um aniversário -> gesto = voltar a

ser criança => liberdade. Gestos fluidos,

livres, expressivos, leves, flexíveis, que

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Chamou-me a atenção a leveza de seus

gestos e o jeito de criança sapeca

representado pela C. A cena começa com sua

entrada. Ela arruma o cabelo e a roupa

rapidamente. Sai saltitando até parar, olhar,

sorrir, abanar (dando oi). Em seguida, começa a

pular e a bater palmas – normal e rápido (alusão

ao „Parabéns a você‟). Pega um chapéu de

aniversário imaginário coloca em sua cabeça.

Sai pulando e brinca com um balão imaginário.

Para, olha, coloca a mão na boca, em seguida

pega algo (docinho?) e come. Vai embora

correndo, mas antes de sair definitivamente de

cena, volta para pegar mais e finaliza a cena

saltitando.

A leveza do seu corpo chama a atenção. Seus

movimentos estão em consonância com a

proposta. Definitivamente ela voltou a ser

criança.

expressam liberdade, alegria, segurança,

satisfação.

Se eu voltasse a ser criança o que faria com

o meu corpo?

Sairia pulando e gritando. Seus movimentos e

gestos são leves e fluidos. Seu corpo

Correr pulando e gritando -> gestos =

liberdade. Corpo livre, expressivo, fluido e

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138

expressivo. A liberdade de se expressar e

movimentar aparece novamente como um

símbolo forte que foi privado no decorrer do

tempo. Em cena, C. sairia pulando pelo

espaço enquanto gira os braços e grita.

Continua pulando e girando os braços até

parar.

orgânico.

Sou criança e estou me preparando para ir à

escola; Sou criança e estou a caminho da

escola; Sou criança e estou na escola.

Cm. penteia C. que faz gestos como se

estivesse brava, não gostando do ato de pentear

o seu cabelo. Ela mexe várias vezes o braço e

faz caretas. Cm. aponta algo como que

mandando ela pegar algo e colocar (se vestir).

Saem as duas de mãos dadas, caminham até

sentar. Pegam objetos imaginários e começam a

copiar do quadro. C. força os olhos e em seguida

espia as coisas que a Cm. escreve. Elas

guardam o seu material e de mãos dadas voltam

a caminhar. (Enquanto colegas são cúmplices)

1) MOMENTO AUTORITÁRIO – mãe/filha 2)

MOMENTO DE SATISFAÇÃO EM IR E ESTAR

Movimentos com a cabeça e braços

principalmente para livrar-se de ser penteada ->

gesto = negação ao cuidado e toque do outro.

Caminhar de mãos dadas -> gesto =

afetividade e cumplicidade.

Copiar em sala de aula -> gesto =

representação escolar.

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NA ESCOLA.

Na cena delas é possível perceber um

encantamento pela escola e um

comprometimento das duas em estudar.

Ambas voltam a ser crianças realmente. Há

algo no corpo delas que demonstra uma

empolgação, uma vontade em estar na

escola, bem como uma cumplicidade.

O que eu faço hoje com o meu corpo?

Entra apressada, pega algo (uma mochila ou

bolsa) e coloca nas costas e sai acelerada. Faz

um gesto com a mão na cabeça e uma careta

como se tivesse esquecido algo e senta.

Ações cotidianas em ritmo acelerado -> gestos

= tempo como fator determinante da maneira

de ser e agir.

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140

7.2 Intepretação do gestos

O momento seguinte foi caracterizado pela interpretação dos gestos que elenquei como pregnantes à pesquisa. Conforme mencionei no capítulo

6, desloquei da ordem aqui apresentada para dar visibilidade ao que venho buscando, que são as escrituras do Corpo Biográfico. Nesse sentido, o

gesto apresenta-se como fundador para uma abordagem efetiva da dimensão biográfica do corpo, sendo imprescindível o deslocamento realizado, a fim

de enfatizar sua devida importância nesta Tese.

7.3 Diário da Experiência: análise classificatória

Interpretação dos gestos

A partir da leitura dos Diários da

Experiência das estudantes, realização

da análise classificatória – as

dimensões que constituem o Corpo

Biográfico

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141

Após a análise dos registros de vídeo, passei para a análise do Diário da Experiência, objetivando classificar a escrita em três núcleos

pregnantes, de acordo com as dimensões que constituem o conceito de Corpo Biográfico. São elas: a vivência (o trabalho corporal propriamente dito,

em que o sujeito assume a postura de ator-espectador no momento de experienciação), a memória (é o registro dos acontecimentos significativos da

vida de cada pessoa no decorrer do seu trajeto formativo) e o imaginário (é o reservatório de imagens passadas presentificadas por determinados

motores que o acionam – neste caso, o exercício via improvisação teatral).

Esta etapa da análise requisitou uma leitura atenta com o intuito de penetrar no texto escrito, classificando-o de acordo com os três núcleos

acima mencionados. A classificação englobou desde fragmentos de uma frase, frases inteiras, como também um conjunto de frases. Para ajudar o leitor

a identificar o conteúdo selecionado, indico a referência (numeração da linha) para a localização no Diário da Experiência de cada estudante, conforme

já explicitado no subcapítulo 5.3.

Pela análise classificatória foi possível identificar como cada uma das dimensões que constituem o conceito de Corpo Biográfico aparece na

escrita do Diário da Experiência. A classificação contribuiu para o estudo e o reconhecimento de cada dimensão como fundante à dinâmica que envolve

a constituição do conceito em questão, bem como à teorização da relação entre Imaginário e Corpo Biográfico.

Estudante L.

CORPO BIOGRÁFICO

VIVÊNCIA MEMÓRIA IMAGINÁRIO

- Vergonha (l.5)

- Vergonha (l. 66)

- Desconfiança (l.6)

- Estranhamento (l.7)

- Foi emocionante eu representar um dia em

especial da minha infância (l. 22)

- Comecei a lembrar de muitas coisas sobre o

dia representado que até então estavam

esquecidos (L 23-24)

- Simplicidade e alegria (l.36)

- Medo do Desequilíbrio (l.37)

- Alegria e Esperança (l. 44)

- Carinhosa e carente (l. 48)

- Afetiva (l. 49)

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- Desatenção (l.8)

- Agressividade (l. 56)

- Descuido (l. 65)

- Dificuldade em abaixar (l.33)

- Leveza (l.9, l. 53)

- Alegria (l. 10)

- Libertação (l. 11)

- Paz (l. 13)

- Oportunidade de liberdade (l. 38)

- Flexibilidade (l. 55)

- Despreocupação (l . 54)

- Calmaria (l 59)

- Felicidade (l. 57)

- Muita alegria (l. 51, l. 60)

- Equilíbrio (l. 67)

- Cuidado (l. 68)

- Integração (l. 69)

- Foi muito bom brincar com o balão (l. 16)

- Quando fui me representar dançando

“Chiquititas”, não consegui dançar mais que um

pedacinho da música. Na época eu dançava

todas. E hoje só consigo uma pequena parte

(mistura de uma música com outra) (l. 25-28)

- Saudade (l. 61)

- Acolhedora (l. 50)

- Sonhadora (l. 52)

- Ludicidade (l. 58)

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- Com o passar do tempo esgotei as

possibilidades de utilização dele (l .16-17)

- Explorei o balão com o corpo por um tempo

razoável (l.18)

- Com o passar do tempo parecia que só estava

ali eu e o balão (l. 18-19)

- Preocupação (l.4)

- Angústia (l. 35)

- Tédio (l.41)

- Ansiedade (l .42)

- Tristeza (l. 43)

- Pressa (l.12)

- Pressa (l. 64)

- Pressa (l.70)

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144

Estudante Cm.

CORPO BIOGRÁFICO

VIVÊNCIA MEMÓRIA IMAGINÁRIO

- Senti meu corpo leve (l.4)

- Você está viva! (l.5)

- Me senti eu mesma (l.6)

- As vivências, as expressões durante as cenas,

falam coisas pra gente, sem que as pessoas

precisem falar (l.14-15)

- Olhando o outro é que vejo que sou capaz de ir

além (l.41-42)

- Não sou capaz de viver sem a troca de

experiências (l.45)

- Movem as emoções (l.16)

- Sentir a sensação de liberdade (l. 11)

- Não gostaria de voltar a ser criança, por uns

instantes eu me vi criança (l.21-22)

- Muitas vezes desejei ter sido como criança

(l.27);

- Trabalhar as memórias é uma ferramenta

poderosa e indispensável à formação do ser (l.

58-59).

Mas a vida me fez sentir como pássaro em

cativeiro (l.26 – L28)

- Lugares onde não haviam grades, me senti

como que ainda estivesse presa, embora toda

liberdade estivesse ao meu alcance (l. 29-30)

- Descobri que é possível sim desejar o grande

voo, superar os limites (l. 33-34)

- Não fomos feitos para solidão das cadeias

invisíveis, somos destinados a ser livres (l.45-46)

- Ainda existem cadeias a serem abertas (l.52).

- Descobri que posso sim, alcançar o grande

voo em busca da liberdade do meu ser (l.38-

39)

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Estudante M.

CORPO BIOGRÁFICO

VIVÊNCIA MEMÓRIA IMAGINÁRIO

- Receio (l.3)

- Preguiça (l.4)

- Vergonha (l.5)

- Reflexão (l.6)

- Tensão (l.7)

- Relaxamento (l.8)

- Leveza (l.9)

- Escutei o barulho e já fiquei tensa (l.19-20)

- No momento em que tive que tocar no balão

não me senti nem um pouco a vontade (l. 21-22)

- Tenho pânico de balão (l.22)

- Apenas consegui soprá-lo (l23)

-Parecia que ele iria estourar a qualquer

momento (l. 23-24)

- Tinha medo que eles estourassem (l.28)

- Não consegui nem olhar (l.28-29)

- Como brincava quando criança, o virei e o

coloquei para dormir na mesa, o que eu fazia

quando era pequena, só que o colocava em

cima do guarda-roupa (l.25-27)

- Tive a oportunidade de fugir do mundo do

“relógio” (l.38)

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- Eram de descontração, fuga da realidade e do

tempo corrido que vivo (l.37)

- Cada encontro tínhamos um mundo novo a

percorrer (l. 40-41)

Estudante C.

CORPO BIOGRÁFICO

VIVÊNCIA MEMÓRIA IMAGINÁRIO

- “O corpo fala”

Sente

Vibra

Emociona (l. 7-10)

-Minhas pernas ainda tem dificuldade em

soltarem. Mas meu rosto, meus braços, meu

quadril... meus olhos vibram (l. 13-14)

- Queria ter rolado pelo chão (l. 25)

- Meu pulo, meu grito. Fiz o que sentia. Me

sentia livre, de corpo aberto, não só “de peito

- O que eu faria se fosse criança?

Sair pulando (l. 117-119)

- Mas ainda acho que eu iria nos aniversário.

Meus pais não me levavam. Lembro que uma

vez tinha um aniversário na segunda casa

depois da minha. Fui sozinha. A comida

passava e eu não pegava. Chamaram a mãe,

ela sentou do meu lado e começou a me dar

salgadinhos. As pessoas perguntavam o que eu

tinha, e ela respondia que era vergonha. Será

- “Placa de pare” como se o meu corpo

quisesse parar (l.78)

- NÃO! (l. 87)

- Me sinto uma bola bem cheia louca para

esvaziar (l. 182-183)

- Talvez naquela caixa estivessem as minhas

coisas guardadas que, por alguma razão, foram

mobilizadas (l. 260-261)

- Tirei da caixa um óculos e parece que ele não

serve mais. Fui tirando coisas que nem sei o

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aberto” (l. 26-27)

- Em alguns momentos meu coração batia mais

forte (l. 28) (...)Foi uma batida legal de sentir,

mas não quis ficar presa a ela, senão o

nervosismo que ficaria em mim (l. 29-30)

- Me tranqüilizei durante esses momentos (l. 31)

Talvez seja o único momento que esteja

pensando sobre o meu corpo, que o esteja

sentindo (l. 58-59)

- Minha barriga começa a se manifestar, foi

engraçado (l.61)

- Como estava estufada de coisas, de

sentimentos, senti dificuldade em me soltar (l.

62-63)

- Dessa vez soltei mais as pernas e bem menos

os braços (l. 64-65)

- Queria ficar no chão, não conseguia explorar a

parede com as mãos e os braços, somente com

os olhos (l.66-67)

- Meu pulo! (l.68) (...) Queria saber como tinha

feito. Sempre tive vontade de pular dobrando as

que era só vergonha? Será?Era esquisito as

pessoas me olhavam como se eu não fizesse

parte do mesmo mundo que elas. ( l .120-126)

- Lembro que gostava de jogar o balão para o

alto, de enchê-lo, de fazer como se fosse uma

bola de futebol, de estourá-lo. (l. 165-167)

- Desejo!

Ser criança!

Fui entrando na história que falavas. Fui

sentindo uma força. Fechei os olhos, segurei as

minhas mãos. Sentia o desejo se realizando.

Chorei!

Que nó!

Eu tinha 4-5 anos. Era um sábado que eu

estava com a minha mãe. Ela disse que eu iria

no aniversário dos meus vizinhos. Fui no

aniversário. Tinha chapeuzinho, balão, bolo, um

monte de criança. Na volta da mesa do bolo,

todas as crianças reunidas cantando parabéns.

Tinha salgadinho, e eu comi. Estava gostoso,

depois fui brincar com os outros (l. 188-198)

que eram. O nariz de palhaço. Achá-lo no

fundo de uma caixa, colocá-lo e sorrir. Senti um

alívio. Mas, por mais que quisesse ficar com ele,

é como se não poderia naquele momento. Ainda

me pergunto por que entre tantas coisas que

poderiam sair da caixa, saiu o nariz de palhaço?

Por que jogo a caixa com o que ainda tinha

dentro e fico só com o nariz? (l. 267-272)

- Na 1º foto me vejo tirando algo de mim. Na

segunda, a liberdade, estava ali livre (l. 309-

310).

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pernas e dessa vez eu fiz (l. 69-70)

- Gostei de rolar no chão. Parecia que eu estava

naquele espaço e ele estava em mim (l. 71-72)

- Meu corpo dizia “pare” (l. 143)

- Recebi o balão com entusiasmo. O grande

ponto pra mim, foi quando disseste para brincar

com o balão que nem quando eu era criança (l.

162-163)

Por que me travei?

Adoro balão!

Sinto que na hora eu tinha a resposta e, agora,

parece que não mais. Estou confusa.

Por fim, já estava cansada. (l. 168 – 172)

- (Porque estou com algumas coisas trancadas,

travadas) (l. 207-208)

- Juntar a minha história com a da Cm. foi

interessante. (l.228)

- Ando mais perto dos cantos (l. 238)

- Tive um afastamento, encolhi os meus braços,

olhar parece longe, mas está perto (l. 240 –

241)

- Quando era criança não fazia grandes

movimentos com balões, por isso, fiz o que fiz (l.

212-213)

Por um instante eu vi a C. criança (l. 219)

- Se eu voltasse a ser criança... pulos e braços

aberto (l. 246)

Brincando de boneca e bicicleta. (l. 274)

- Até a adolescência sonhava dormindo e

acordada com um irmão. Quando criança as

pessoas me perguntavam se eu queira ter

irmãozinhos, às vezes respondia que sim, às

vezes que não.

Foi estranho entrar na escola e os colegas

perguntavam quanto irmãos eu tinha. Fui

respondendo que nenhum. Era um espanto para

eles. Como nenhum? Sempre quis ter um irmão.

Mas não dependia de meu querer. Como não

tive irmãos de sangue, acho que acabei fazendo

dos meus amigos meus irmãos. Para mim,

irmão cuida, protege, briga, mas acima de tudo

ama. (l. 277-284)

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- Nas cenas perco a noção do tempo (L. 245)

- Faríamos o autorretrato. Esperava ansiosa.

Quando chegou o dia, queria sumir (l. 253 –

254)

Gostei do desafio! (l. 257)

a única coisa que queria fazer era sentar no

chão... (l. 258)

Sentei... e, agora? Tudo o que fiz, não pensei,

simplesmente fui fazendo. (l. 259)

Sai muito incomodada, inquieta. (l. 261-262)

- O que faço com meu corpo PRESSA. (l. 290)

- Lembrança da infância – rua andar de bicicleta

(l.293)

- Se eu me tornasse criança meu corpo ->

pularia, correria, gritaria... (l. 298)

- Minha mãe não puxava meu cabelo. Fui pela

história da Cm. (l. 299)

7.4 Diário da Experiência: análise a partir da perspectiva fenomenológica

Análise, através de uma perspectiva

fenomenológica. Contextualização

da classificação realizada e criação

de um enunciado a partir dos

fragmentos da escrita.

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Nesta etapa, direciono o meu foco para cada um dos núcleos pregnantes, com a finalidade de criar um enunciado para os fragmentos apresentados.

Caracteriza-se pela interpretação ancorada exclusivamente nos dados empíricos, constituindo a base para o que vem a seguir, que é a interpretação do

Corpo Biográfico.

Estudante L.

Vivência

Sobre a vivência corporal foi possível identificar uma diversidade de sentimentos que lhe tocaram de alguma maneira. Tais percepções foram

agrupadas em palavras com sentido próximo, buscando mostrar a “tonalidade” do sentimento bem como a repetição no decorrer da escrita. O trabalho

com o corpo causou certo embaraço para L.: “Vergonha” (l. 5, l. 66), como também estados corporais mais rudes como: “Desconfiança (l. 6);

Estranhamento (l. 7); Desatenção (l. 8); Agressividade (l. 56); Descuido (l. 65)”. No entanto, ela também experimentou sensações associadas ao

prazer, à liberdade, ao conforto e à globalidade de seu corpo: “Leveza (l. 9); Alegria (l. 10); Libertação (l. 11); Paz (l. 13); Oportunidade de liberdade

(l. 38); Flexibilidade (l. 55); Despreocupação (l. 54), Calmaria (l. 59); Felicidade (l. 57); Muita alegria (l. 60); Equilíbrio (l. 67); Cuidado (l. 68);

Integração (l. 69)” e ao desconforto: “Preocupação (l. 4); Angústia (l. 35); Tédio (l. 41); Ansiedade (l. 42); Tristeza (l. 43)”. Ela constata um

aceleramento regendo seu corpo e, consequentemente, suas ações: “Pressa” (l. 12, 64, 70). Por meio dos encontros, L. percebe sua limitação:

“Dificuldade em abaixar (l. 33)”. Expressa também como foi agradável interagir com um determinado objeto (balão): “Foi muito bom brincar com o

balão (l. 16)”, descrevendo a maneira que aconteceu a interação: “Com o passar do tempo, esgotei as possibilidades de utilização dele (l .16-17)”,

o jogo com o corpo e o objeto: “Explorei o balão com o corpo por um tempo razoável (l.18)” e sua entrega ao exercício: “Com o passar do tempo

parecia que só estava ali eu e o balão (l. 18-19)”.

Memória

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L. em relação à memória é direta. Em seu diário da experiência é possível verificar claramente que o trabalho com a improvisação teatral a

envolveu emocionalmente: “Foi emocionante eu representar um dia em especial da minha infância (l. 22)”, acionando memórias até então

esquecidas: “Comecei a lembrar de muitas coisas sobre o dia representado que até então estavam esquecidas (l. 23-24)”. Ela faz menção a uma

cena representada e à repercussão disso na L. adulta: “Quando fui me representar dançando „Chiquititas‟, não consegui dançar mais que um

pedacinho da música. Na época, eu dançava todas. E hoje só consigo uma pequena parte (mistura de uma música com outra) (l. 25-28)”.

Finaliza descrevendo o sentimento que a envolveu: “Saudade (l. 61)”

Imaginário

Em relação ao imaginário, as palavras por ela descritas, levam-me a identificar imagens que L. tem em relação a si. Uma mulher que tem como

motor de suas ações a afetividade: “Afetiva” (l. 49); “Carinhosa e carente” (l. 48); “Acolhedora” (l. 50); nutrindo sentimentos que a movem e lhe dão

esperança diante da vida: “Simplicidade e alegria” (l. 36); “Alegria e Esperança” (l. 44); “Muita Alegria” (l. 51). Que traz consigo aspectos

significativos de sua infância, que a fazem viver a vida de forma leve e sonhadora: “Ludicidade” (l. 58); “Leveza” (l. 53); “Sonhadora” (l. 52). Mas que

também tem medos, principalmente do que lhe causa instabilidade. “Medo do Desequilíbrio” (l. 37).

Estudante Cm. Vivência

No que concerne à vivência corporal, Cm. descreve três naturezas de sensações diferentes relativas à vivência do corpo: “Senti meu corpo

leve” (l. 4), que lhe proporciona o sentimento de estar viva: “ Você está viva!” (l. 5) e o sentimento de ser ela mesma: “Me senti eu mesma” (l. 6).

Aliás, a acadêmica especifica que estas diferentes naturezas de vivência pertencem ao diálogo do corpo sem a necessidade da palavra: “as vivências,

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as expressões durante as cenas, falam coisas pra gente, sem que as pessoas precisem falar” (l.14-15). A experiência com o seu corpo possibilita

a ela perceber que uma parte de si transcende os seus próprios limites, à medida que coloca em movimento suas emoções: “movem as emoções” (l.

16). Fica claro que através da experiência do seu corpo Cm. tem acesso a uma sensação de liberdade “sentir a sensação de liberdade” (l. 11),

proporcionada por um compartilhar de experiências vivido no processo de biografização corporal pela improvisação teatral: “não sou capaz de viver

sem a troca de experiências” (l. 45).

Memória

Cm. aborda a memória de maneira não-direta. Em sua escrita no diário da experiência encontram-se passagens contraditórias que fazem uma

alusão à memória focada na sua infância. Contraditória porque em uma passagem ela não deseja voltar a sua infância: “não gostaria de voltar a ser

criança, por uns instantes eu me vi criança” (l. 21-22) e mais adiante ela manifesta um desejo de ter sido criança: “muitas vezes desejei ter sido

como criança”. Para ela, há também um reconhecimento do quanto um trabalho corporal que solicita a memória é indispensável na formação humana:

“trabalhar as memórias é uma ferramenta poderosa e indispensável à formação do ser” (l. 58-59).

Imaginário

Constata-se que Cm., a partir da biografização corporal pela improvisação teatral, em seu diário da experiência, dá visibilidade ao modo como se

sentia em sua vida a partir de uma imagem fundante – um pássaro em cativeiro: “Mas a vida me fez sentir como pássaro em cativeiro”(l. 26 – l. 28).

Por meio da experiência vivida na pesquisa ela descobre a possibilidade de alçar voo: “descobri que é possível sim desejar o grande voo, superar

os limites” (l. 33-34), reverberando outro olhar para a sua vida, à medida que percebe sua capacidade de ultrapassar seus próprios limites, limites

estes que até então impediam seu ser de se manifestar: “descobri que posso sim, alcançar o grande voo em busca da liberdade do meu ser” (l.

38-39). Apesar do sentimento de liberdade reconhecido por Cm., a maneira que ela se relacionava com o mundo era envolvida por um cárcere invisível

que conduzia sua forma de estar e agir no mundo: “lugares onde não havia grades, me senti como que ainda estivesse presa, embora toda

liberdade estivesse ao meu alcance” (l. 29-30). A partir desta experiência em que ela dá visibilidade para o seu imaginário através da vivência, há

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uma tomada de consciência que a leva perceber que o ser humano não é feito para viver em prisão, mas em liberdade: “não fomos feitos para

solidão das cadeias invisíveis, somos destinados a ser livres” (l. 45-46). Em sua escrita ela dá a entender a necessidade de abrir as cadeias

invisíveis que ainda a impedem de alcançar a liberdade: “ainda existem cadeias a serem abertas” (l. 52).

Estudante M.

Vivência

Em relação à vivência corporal, M. descreve as diferentes sensações que sentiu ao realizar a experiência com o seu corpo: “Receio (l. 3);

Preguiça (l. 4); Vergonha (l. 5); Reflexão (l. 6); Tensão (l. 7); Relaxamento (l. 8), Leveza (l. 9)”. Ela faz uma relação entre o que foi proposto e a

reação do seu corpo: “Escutei o barulho e já fiquei tensa” (l. 19-20). Expressa também seu desconforto “No momento em que tive que tocar no

balão, não me senti nem um pouco à vontade” (l. 21-22); seu temor “Parecia que ele iria estourar a qualquer momento” (l. 23-24), sua angústia

“Tinha medo que eles estourassem “(l. 28), bem como sua ação “Apenas consegui soprá-lo” (l. 23), “Não consegui nem olhar”. Para M., a

vivência corporal permitiu vivenciar possibilidades com o corpo que no seu dia-a-dia não é possível: os encontros “eram de descontração, fuga da

realidade e do tempo corrido que vivo” (l. 37). Ela caracterizou aqueles momentos como um caminho a ser desvendado, abrindo espaço para a

experimentação de outras possibilidades: “cada encontro tínhamos um mundo novo a percorrer” (l. 41).

Memória

M., na escrita do seu diário de experiência, refere-se à memória somente em um momento, revelando o quanto a atividade com o balão a

mobilizou corporalmente, incitando-a à recriação do passado na improvisação: “como brincava quando criança, o virei e o coloquei para dormir na

mesa, o que eu fazia quando era pequena, só que o colocava em cima do guarda-roupa” (l. 25-27).

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Imaginário

M. utiliza uma imagem para expressar o que a proposta de biografização corporal pela improvisação teatral proporcionou-lhe. “tive a

oportunidade de fugir do mundo do “relógio”” (l. 38).

Estudante C. Vivência

Em relação à vivência, percebe-se no diário da experiência de C. que ela constata que seu corpo tem uma linguagem particular: “‟O corpo fala‟,

sente, vibra, emociona” (l. 7-10). Identifica por meio da vivência suas dificuldades, mas também sua vibração com o trabalho: “Minhas pernas ainda

têm dificuldade em soltarem. Mas meu rosto, meus braços, meu quadril... meus olhos vibram” (l. 13-14). Manifesta uma vontade não realizada

nos encontros: “Queria ter rolado pelo chão” (l. 25). C. descreve uma de suas ações, revelando o estado que a levou a agir daquela maneira: “Meu

pulo, meu grito. Fiz o que sentia. Me sentia livre, de corpo aberto, não só „de peito aberto‟” (l. 26-27), bem como o sentimento que lhe invadia em

alguns momentos: “Em alguns momentos meu coração batia mais forte (l. 28) (...)Foi uma batida legal de sentir, mas não quis ficar presa a ela,

senão o nervosismo que ficaria em mim (l. 29-30) e a sensação que isto lhe causava: “Me tranquilizei durante esses momentos” (l. 31). Para ela, a

vivência proporcionou uma percepção e atenção em relação ao seu corpo, não vivida em outros momentos: “Talvez seja o único momento que esteja

pensando sobre o meu corpo, que o esteja sentindo (l. 58-59). Ao estar mais atenta, a acadêmica passa a escutar-se corporalmente e relata o

quanto foi engraçado ouvir a manifestação de uma parte do seu corpo: “minha barriga começa a se manifestar, foi engraçado” (l. 61). O fato de se

sentir presa a impede de se soltar plenamente: “Como estava estufada de coisas, de sentimentos, senti dificuldade em me soltar (l. 62-63). C., em

outra passagem, dá a entender que faz um movimento de soltar seu corpo, mas ainda de forma fragmentada: “Dessa vez soltei mais as pernas e bem

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155

menos os braços” (l. 64-65). Relata sua necessidade de ficar no chão, sem contato físico com o espaço, somente através de seus olhos: “Queria ficar

no chão, não conseguia explorar a parede com as mãos e os braços, somente com os olhos” (l. 66-67); “a única coisa que queria fazer era

sentar no chão... “(l. 258). Escreve uma ação que a mobilizou, descrevendo sua surpresa em ter conseguido fazer o que sempre teve vontade: “Meu

pulo! (l. 68) (...) Queria saber como tinha feito. Sempre tive vontade de pular dobrando as pernas e dessa vez eu fiz” (l. 69-70); e a sensação de

relação com o espaço ao rolar pelo chão: “Gostei de rolar no chão. Parecia que eu estava naquele espaço e ele estava em mim” (l. 71-72). A

acadêmica identifica uma limitação em seu corpo: “meu corpo dizia „pare‟” (l. 143). Tal limitação a leva a refletir sobre uma atividade proposta que ela

recebeu com entusiasmo: “Recebi o balão com entusiasmo. O grande ponto pra mim foi quando disseste para brincar com o balão que nem

quando eu era criança” (l. 162-163), porém ela sentiu-se travada: “Por que me travei? Adoro balão! Sinto que na hora eu tinha a resposta e,

agora, parece que não mais. Estou confusa. Por fim, já estava cansada” (l. 168 – 172), levando-a a indagar-se sobre este travamento corporal:

“(porque estou com algumas coisas trancadas, travadas)” (l. 207-208). C. descreve a experiência de juntar sua história de vida com a da colega:

“Juntar a minha história com a da Cm. foi interessante”. (l. 228), como também suas expectativas em relação a uma atividade específica: “faríamos

o autorretrato. Esperava ansiosa. Quando chegou o dia, queria sumir “(l. 253 – 254). Por fim, a vivência de biografização corporal pela

improvisação teatral proporcionou a ela diversas percepções: ruptura da noção de tempo “Nas cenas perco a noção do tempo (l. 245);

desacomodação “Sai muito incomodada, inquieta” (l. 261-262), constatação “O que faço com meu corpo PRESSA” (l. 290).

Memória

C. traz muitas passagens relativas à memória em seu diário da experiência. Inicialmente, é possível encontrar o que faria se enquanto adulta

voltasse a ser criança: “O que eu faria se fosse criança? Sair pulando” (l. 117-119); “Se eu voltasse a ser criança... pulos e braços abertos” (l.

246); “Se eu me tornasse criança meu corpo -> pularia, correria, gritaria... “(l. 298). Mas se ela tivesse que voltar em um momento específico já

vivido, ela voltaria para as festas de aniversário: “Mas ainda acho que eu iria nos aniversários. Meus pais não me levavam. Lembro que uma vez

tinha um aniversário na segunda casa depois da minha. Fui sozinha. A comida passava e eu não pegava. Chamaram a mãe, ela sentou do

meu lado e começou a me dar salgadinhos. As pessoas perguntavam o que eu tinha, e ela respondia que era vergonha. Será que era só

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vergonha? Será? Era esquisito as pessoas me olhavam como se eu não fizesse parte do mesmo mundo que elas” ( l .120-126). Em outro

momento, a acadêmica demonstra seu gosto por balão e as brincadeiras que gostava de fazer: “Lembro que gostava de jogar o balão para o alto, de

enchê-lo, de fazer como se fosse uma bola de futebol, de estourá-lo” (l. 165-167). Em uma atividade proposta ela relata como aconteceu o seu

envolvimento “Desejo! Ser criança! Fui entrando na história que falavas. Fui sentindo uma força. Fechei os olhos, segurei as minhas mãos.

Sentia o desejo se realizando. Chorei! Que nó!” e as memórias que daí emergiram, novamente aniversário: “Eu tinha 4-5 anos. Era um sábado que

eu estava com a minha mãe. Ela disse que eu iria no aniversário dos meus vizinhos. Fui no aniversário. Tinha chapeuzinho, balão, bolo, um

monte de criança. Na volta da mesa do bolo, todas as crianças reunidas cantando parabéns. Tinha salgadinho, e eu comi. Estava gostoso,

depois fui brincar com os outros” (l. 188-198). Ela também descreve outras lembranças de infância que vieram à tona com a vivência: “Lembrança

da infância – rua andar de bicicleta” (l.293); “Brincando de boneca e bicicleta”. (l. 274); e a vontade de ter um irmão: “- Até a adolescência

sonhava dormindo e acordada com um irmão. Quando criança as pessoas me perguntavam se eu queira ter irmãozinhos, às vezes respondia

que sim, às vezes que não. Foi estranho entrar na escola e os colegas perguntavam quantos irmãos eu tinha. Fui respondendo que nenhum.

Era um espanto para eles. Como nenhum? Sempre quis ter um irmão. Mas não dependia de meu querer. Como não tive irmãos de sangue,

acho que acabei fazendo dos meus amigos meus irmãos. Para mim, irmão cuida, protege, briga, mas acima de tudo ama.” (l. 277-284). Neste

movimento de emersão de memórias, percebe-se o encontro do presente com o passado: “Por um instante eu vi a C. criança” (l. 219). Por fim, tem a

necessidade de esclarecer uma de suas manifestações em cena: “Minha mãe não puxava meu cabelo. Fui pela história da Cm.”. (l. 299)

Imaginário

O que parece emergir do seu imaginário é uma espécie de trava interna que a faz parar e não agir como gostaria, expressada a partir de uma

imagem – Placa de Pare: “‟Placa de pare” como se o meu corpo quisesse parar” (l. 78). Em suas ações percebe-se uma contradição entre o querer

e o fazer, ou seja, o freio prevalece “NÃO!” (l. 87). C. traz outra imagem relativa a seu corpo: uma bola que precisa ser esvaziada “Me sinto uma bola

bem cheia louca para esvaziar” (l. 182-183), bem como a imagem de uma caixa onde ficam seus guardados que até então não haviam sido

mobilizados: “ talvez naquela caixa estivessem as minhas coisas guardadas que, por alguma razão, foram mobilizadas” (l. 260-261). O nariz de

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palhaço é aqui identificado como uma imagem fundante a caracterizar a maneira de C. interagir com o mundo: “Tirei da caixa um óculos e parece que

ele não serve mais. Fui tirando coisas que nem sei o que eram. O nariz de palhaço. Achá-lo no fundo de uma caixa, colocá-lo e sorrir. Senti

um alívio. Mas, por mais que quisesse ficar com ele, é como se não poderia naquele momento. Ainda me pergunto por que entre tantas coisas

que poderiam sair da caixa, saiu o nariz de palhaço? Por que jogo a caixa com o que ainda tinha dentro e fico só com o nariz? (l. 267-272). Ela

identifica em seu corpo duas imagens que caracterizam como a vivência a mobilizou e suas repercussões: “Na 1º foto me vejo tirando algo de mim.

Na segunda, a liberdade, estava ali livre (l. 309-310)”.

7.5 Diário da Experiência: interpretação do Corpo Biográfico a partir de uma perspectiva hermenêutica

As etapas anteriores relacionadas ao Diário da Experiência: análise classificatória e análise a partir de uma perspectiva fenomenológica

constituem-se fundamentais para este momento. O que quero dizer com isto é que a classificação e a interpretação dos dados empíricos em três

núcleos pregnantes são fundamentais para a compreensão da dinâmica que constitui o conceito de Corpo Biográfico, resultando em um movimento

interpretativo hermenêutico. Busquei, nas análises que antecedem esta etapa, elementos para fazer a interpretação do Corpo Biográfico, evidenciando

a dinâmica que contempla o conceito evidenciado na Figura 2 desta Tese.

Leitura hermenêutica do Corpo

Biográfico, evidenciando as imagens

simbólicas.

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Estudante L.

A escrita de L., fruto de um pensamento gerado pela experiência corporal, revelou imagens fundantes sobre si, construídas no decorrer de seu

trajeto formativo. Imagens associadas a um corpo de uma menina que se transformou em mulher, mas que busca nas memórias de sua infância o

elemento motor que lhe proporciona forças para agir no presente, direcionando suas ações e sua maneira de encarar e enfrentar o mundo.

A partir da escrita de L. é possível perceber como a vivência encaminhou-a a um processo de evocação de memórias lembradas e também de

memórias que haviam sido esquecidas. O fato de re-(a)presentar momentos vividos no decorrer de seu trajeto formativo revela um aspecto ligado à

escritura do seu corpo: a afetividade. A maneira como ela se relaciona com e no mundo, e a forma como foi se constituindo estão intimamente ligados

a um corpo que é sensível, emotivo e afetivo, proporcionando o contato com diferentes sentimentos durante a vivência, que atribuíram tonalidades às

memórias evocadas, visibilizando assim, o seu reservatório interior, ou seja, o imaginário.

Em sua escrita, constato que tudo que L. vivencia corporalmente perpassa a sua afetividade. Ela traz consigo uma esperança e um otimismo que

a animam, bem como uma ingenuidade típica da infância. É possível constatar também uma luta diária contra um ritmo e um tempo que a fazem

desacomodar-se, desafiando-a a encarar os diferentes desafios e preocupações de sua vida, sem perder a esperança e o otimismo – aspectos que me

remetem diretamente à valorização da infância

Da vivência à emersão de memórias, encontro indícios de como a L. foi assimilando e acomodando em seu corpo as experiências vividas. As

imagens em relação a si são fundantes na leitura do seu Corpo Biográfico. Vejo um corpo de menina-mulher que traz uma atitude otimista em relação à

vida, impulsionando-a a agir cotidianamente e a prosseguir diante das dificuldades, embora o medo e a insegurança diante do desconhecido. Um corpo

que é afetivo, mas que também carece de afetividade e cuidado. Que se esforça à construção de uma realidade próxima da idealizada por ela – que me

remete a uma realidade típica de “contos de fadas”, envolvido em amor, felicidade e tranquilidade.

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Estudante Cm. Na análise da escrita do diário da estudante Cm. é perceptível ver como o processo de biografização corporal pela improvisação teatral mobilizou

o seu Corpo Biográfico. A vivência do exercício empírico a intimou a remexer em seus guardados e a revelar imagens fundadoras associadas ao seu

corpo. Por exemplo, a própria estudante associou ao seu corpo a imagem de um pássaro preso em cativeiro. Li esta imagem como um elemento

fundante na maneira como ela se constituiu e assimilou um determinado modo de ser, estar e agir no mundo. A imagem é símbolo de um corpo que, ao

longo de seu trajeto de vida, foi sendo aprisionado, gerando um estado interno de se colocar no mundo que a fez constituir-se de uma maneira e não de

outra.

Foi possível perceber que a partir da vivência corporal que Cm. passou a desejar o voo, ou seja, a liberdade de poder ser aquilo que realmente

gostaria, dando vazão para sua vontades, desejos, seus sonhos, coisa que até então ela não imaginava ser possível, muito menos pensou na

possibilidade. O voo dos pássaros, segundo o dicionário de símbolos de Chevalier & Gheerbrant (2009), traz consigo uma conotação de libertação dos

pesos humanos, revelando uma relação entre o céu e a terra. Ao sentir-se um pássaro em cativeiro, Cm. dá o indício da sua privação ao voo, ou seja,

ela está ligada a um peso e sacrifício humano que é visivelmente experienciado durante o trabalho de biografização corporal e posteriormente escrito no

Diário da Experiência. Um aprisionamento que a acompanha desde a infância, quando ela menciona que gostaria de ter tido a oportunidade de se

sentir uma criança.

Na mesma proporção que o Corpo Biográfico de Cm. é visto na relação vivência, memória e imaginário, revelando a imagem acima

problematizada, um movimento inverso também aconteceu, havendo uma mobilização e atualização do Corpo Biográfico pelo imaginário, por meio da

improvisação teatral, pois a partir do momento que a acadêmica depara-se com a imagem simbólica de pássaro em cativeiro, uma intimação a faz

cutucar suas memórias e vivenciar o seu corpo de outra maneira, uma maneira que a leva a experimentar uma liberdade corporal que lhe dá a

sensação de alçar voo e de estar viva.

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Estudante M.

Observei na escrita de M., que o “mundo do relógio” revelou uma imagem importante na relação Imaginário e Corpo Biográfico. Isto porque a

acadêmica expressa uma “batalha” corporal e psíquica contra um tempo que determina um ritmo, um corpo, uma forma de (re)agir no contexto em que

está inserida.

O tempo, segundo o dicionário de símbolos de Chevalier & Gheerbrant (2009), “simboliza um limite na duração e a distinção mais sentida com o

mundo do Além, que é o da eternidade. Por definição, o tempo humano é finito e o tempo divino infinito ou, melhor ainda, é a negação do tempo, o

ilimitado” (p. 876).

Percebo nas ações de M. uma luta constante contra um tempo. Como se a batalha que trava com o “mundo do relógio” tivesse como objetivo a

mutação para outro tempo, outra lógica, outro lugar. Tal constatação apóia-se nas palavras dos autores acima citados de que “é somente na intensidade

de uma vida interior e não em um prolongamento indefinido da duração que essa escapada pode realizar-se: sair do tempo é sair completamente da

ordem cósmica, para entrar em outra ordem, outro universo. O tempo é ligado ao espaço, indissoluvelmente” (2009, p. 877).

A corrida do tempo automatizou o corpo de M., levando-a a um abandono de si em detrimento da razão. Em função disto, o seu Corpo Biográfico

“não existia”, resumindo-se somente à racionalidade que resultava em gestos automáticos e uma não percepção de si e do cotidiano a sua volta.

Por meio da proposta de biografização corporal pela improvisação teatral, vislumbrei uma quebra “forçada”, mas necessária em relação a este

tempo que a perseguia. Diante disso, percebi que o Corpo Biográfico ganhou visibilidade à medida que a vivência intimou-a a ingressar em outro

universo temporal que a permitiu colocar-se presente no aqui-agora e dar vazão para memórias (da criança e da aluna que um dia foi, como também do

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que gostava de fazer e de brincar) que foram fundantes no decorrer de seu trajeto formativo, revelando o imaginário que motivava sua forma de ser,

estar e agir no mundo.

Estudante C.

Na escrita de C., em seu Diário da Experiência, as imagens trazidas por ela parecem dizer muito de seu Corpo Biográfico. A imagem relativa à

“Placa de pare”, “Bola cheia querendo esvaziar”, “Caixa” e “Nariz de palhaço” revelam como ela assimilou as experiências ao longo de sua vida e como

isto vem repercutindo em seu corpo.

Percebi nas imagens descritas que no decorrer da vida de C. as “placas de pare” de diferentes ordens foram formatando sua forma de

(inter)agir no contexto em que vive. A “Placa de Pare” na sociedade em que vivemos marca a necessidade de realizar uma parada obrigatória em

determinado local. Segundo o artigo 208 do Código de Trânsito Brasileiro de Trânsito82 avançar o sinal de parada obrigatória é uma infração gravíssima.

A “Placa de Pare” na vida de C. pode estar associada às diversas vezes que a sua vontade esteve presente, mas que a imposição de uma determinada

“normativa” e o receio de cometer uma infração a fizeram conter-se, ocasionando pouco a pouco uma trava interna em seu corpo. Parece que o tempo

todo ela tem algo para nos dizer, mas não consegue expressar corporalmente e também verbalmente. A “placa de pare” condicionou e ainda condiciona

suas ações e a maneira de se colocar diante do que vive.

“A bola cheia querendo esvaziar” é um indício de que ela parece acalentar o desejo de extrapolar o que lhe foi imposto e que aceitou. Para

Chevalier & Gheerbrant (2009), a bolha de ar ou de sabão simboliza a “criação leve, efêmera e gratuita que estoura subitamente sem deixar vestígios;

nada além da delimitação arbitrária e transitória de um pouco de ar”. A partir dos autores, penso também que a imagem simbólica de uma bolha de ar

relaciona-se com a necessidade ou mesmo o desejo de entregar-se corporalmente a uma atitude leve e efêmera, descolada de regras e imposições que

82

Disponível em: << http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/anotada/2325706/art-208-do-codigo-de-transito-brasileiro-lei-9503-97>>. Acesso em: 06 de novembro de 2012.

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162

está acostumada a viver e fazer diferente, seguindo outra forma de agir a partir do que lhe toca no momento e segundo suas próprias decisões, sem

preocupar-se com as regras ditadas.

A imagem da Caixa é mais um elemento que se soma à leitura do Corpo Biográfico de C.. A caixa, segundo o “Dicionário de Símbolos” (2009, p.

164) dos autores acima citados, é um símbolo feminino que pode ser interpretado como uma representação do inconsciente e do corpo materno. Ela

associa-se também à ideia de segredo, que esconde do mundo o que é precioso, frágil ou então temível. Esta proteção pode também sufocar. Para

Paul Diel (apud Chevalier & Gheerbrant, 2009, p. 164) o símbolo da caixa relaciona-se também a uma “exaltação imaginativa que empresta ao

desconhecido da caixa todas as riquezas de nossos desejos e que nele vê o ilusório poder de realizar esses desejos”. A caixa de C. pode guardar tudo

aquilo que ela gostaria de ser e não é, bem como todas as amarras que a vida foi lhe impondo. Ao deparar-se com ela tive a impressão de que C. teve a

possibilidade de remexer naquilo que tanto tempo guardou em segredo, que protegeu e mesmo sufocou. A caixa pode estar associada ao seu

reservatório interior, aquilo que é motor de suas ações, mas que também esconde uma intenção que fica sempre oculta e é barrada no seu corpo, mas

que a move de alguma maneira a um dia quem sabe realizá-la.

Já no “nariz de palhaço”, observei de maneira explícita o desejo de desarmar-se de qualquer defesa e agir com espontaneidade, porém ela

coloca como algo ainda inacessível a ela. Segundo Lecoq (1987), o nariz vermelho é considerado a menor máscara do mundo. Para utilizá-lo, o ator

que se predispõe a fazer um trabalho clownesco necessita despir-se de todas as suas máscaras e preconceitos, numa busca constante pela sua

liberdade, isto é, poder ser o que é e fazer com que os outros aceitem a sua verdade, em outras palavras: buscar a sua autenticidade e expressar-se

inteiramente, seguindo suas próprias convicções e regras. Penso que C., ao trazer esta imagem simbólica para cena, evidencia o seu desejo de um

corpo livre, sem amarras, que busca ser espontâneo, mas que na vida ainda não consegue colocar em prática.

Pelo trabalho de biografização corporal pela improvisação teatral refletido na escrita do Diário da Experiência de C. notei que a vivência a

mobilizou corporalmente e que em uma situação ficcional há uma maior percepção em relação ao corpo. O corpo, ao estar em evidência, proporcionou

à estudante a emersão de memórias que ficaram grafadas corporalmente e que ao re-(a)presentar a colocaram em contato com um período da sua vida

em que os acontecimentos eram vividos de uma forma mais despreocupada e de acordo com a época da infância. Tais memórias evocadas

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visibilizaram que imaginário é este que envolve atualmente a estudante, levando-me a perceber o quanto o seu corpo se “moderou” no decorrer de sua

vida.

7.6 As pregnâncias

Realizada a análise dos registros de vídeo e do Diário da Experiência, retomei a tabela apresentada no subcapítulo 7.1 e a interpretação do

Corpo Biográfico do subcapítulo 7.5, destacando em outra tabela os gestos e as pregnância decorrentes dos vídeos e as imagens encontradas no Diário

da Experiência. Posteriormente, agrupei (utilizando letras diferentes – tamanho 14) as repetições significativas decorrentes das pregnâncias e as

imagens do Diário em núcleos simbólicos. Da convergência dos núcleos cheguei aos mitemas de cada estudante, já apresentados no capítulo 6.

Estudante L.

Destacar as pregnâncias visibilizadas

no exercício de biografização corporal e

as imagens presentes no Diário da

Experiência rumo aos núcleos

simbólicos

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Análise dos registros de vídeo

Gesto Pregnâncias

Corpo Ereto coloca-se de frente para

as colegas, olha e sorri, levemente

balançando o corpo de um lado ao

outro

Afetividade, proximidade e insegurança

Saltitar ao caminhar Negação do seu corpo adulto x aceitação do corpo de criança (age como se

o corpo fosse outro)

Respiração profunda; mãos próximas

a boca com o corpo inclinado sobre o

módulo; balanço das pernas e pés

Aflição, preocupação e insegurança

Recolhimento do corpo Medo e tristeza

Arrumar a roupa ao caminhar Negação do corpo, incômodo, vergonha

Diálogo e comparação entre corpos A imagem que tem sobre o seu corpo

Levanta os ombros e solta-os sorrindo Satisfação, atitude sonhadora e otimista diante da vida

Comer Satisfação

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Dançar Satisfação, afetividade, liberdade e a aceitação de si mesmo e do outro (Aparece duas vezes

na cena)

Deitada de barriga para baixo, pernas

levantadas num leve movimento de

cruzar e descruzar, uma mão sobre o

queixo e a outra próxima ao cotovelo

Sonhadora

L. chega e senta com as pernas

cruzadas. Passa as mãos nas pernas

duas vezes

Insegurança

Olha para frente, sorri e faz o gesto

de legal

Aceitação e legitimidade

Leva os dedos próximos da boca para

enfatizar o sorriso

Contentamento

Faz com as mãos um coração e

depois faz um coração imaginário no

ar com as mãos. Faz movimentos nos

dedos que trouxeram a impressão de

ser casais que se encontram, laços de

afeto. Em seguida faz outro coração.

Dá um grande abraço em si própria e

curte esse abraço como uma

Afetividade = símbolo coração

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expressão máxima de carinho. Com

muito afeto abraça algo imaginário

que está em seu lado e dá um beijo.

Faz isto no outro lado também. Faz

um grande coração e termina com um

abraço afetuoso em si

Balanço da perna Espera

Mexer-se rapidamente, guardar suas

coisas e sair

Pressa.

Pentear e arrumar-se Preparação

Dança Satisfação, liberdade, aceitação, afetividade, atenção

Pular corda Expressividade - elasticidade e fluidez do corpo

Pentear e ser penteada, sair de mãos

dadas

Cuidar e ser cuidada

Brincar na pracinha da escola, copiar

as coisas do quadro com postura

séria e compenetrada

Escola como lugar de aprender e brincar

Caminhar, comer, ler e sair

apressadamente

Tempo => aparenta descuido e desatenção pela correria.

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Análise Diário da Experiência

Infância como elemento motor das ações no presente

Afetividade

Das repetições significativas cheguei a três núcleos simbólicos relativos aos registros de vídeos: Afetividade, Infância, CORPO

ADULTO.

Das imagens do Diário da Experiência: Infância, Afetividade.

Estudante Cm.

Análise dos registros de vídeo

Gestos Pregnâncias

Inclina-se em direção ao chão e

estende o braço num movimento que

Reverenciar e servir ao outro

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parte das proximidades do coração.

Ergue-se e manda um beijo para as

colegas, coloca as mãos no coração e

estende os braços para trás sorrindo

para elas

Rodopia de braços abertos e dá

gargalhadas pelo espaço, interrompe

seu movimento, pois é repreendida. O

papel se inverte e ela passa a

repreender, utilizando seu corpo todo

e principalmente o braço. Acaricia e

beija seu corpo, novamente é

repreendida e reage amontoando-se

no chão, finaliza com gestos que

remetem a indagação

Prazer e liberdade de um corpo livre X Corpo que é repreendido e que

repreende (Corpo que vai sendo aprisionado)

Encolher o corpo ao chão Recolhimento

Pentear o outro, apontar ordenando

algo

Cuidado com o outro

Copiar com atenção os deveres da

lousa

Comprometimento e seriedade em estar na escola – representação escolar

Gestos em ritmo acelerado Tempo - muitas coisas ao mesmo tempo

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Análise Diário da Experiência

Pássaro preso em cativeiro

Aprisionamento

Das repetições significativas cheguei a três núcleos simbólicos relativos aos registros de vídeos: CORPO LIVRE X CORPO

APRISIONADO, Repressão, Reverenciar, Servir, Cuidar o Outro.

Das imagens do Diário da Experiência: Pássaro preso em cativeiro, Aprisionamento.

Estudante M.

Análise dos registros de vídeo

Gestos Pregnâncias

Mão próximas ao rosto faz um Execução de uma tarefa, dicotomia entre corpo e pensamento

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movimento para o lado e o som hahaha, olhando para a câmera

Embalar a boneca nos braços e brincar de roda

Ilustração do vivido, corpo desconectado com a memória lembrada.

Entra com passos pesados e senta no chão, aponta o dedo para alguém, faz uma careta e a postura cai

Agressividade e indignação

Brincadeira de infância Ilustração do vivido, corpo mais conectado com as memórias da infância.

Rolar no chão Mobilidade do corpo

Mexer-se ao pentear (fugir do pentear)

Insatisfação ao toque do outro

Pentear o outro Cuidado

Perturbar a colega em de aula Necessidade por movimento e expressividade em sala de aula

Apontar para o pulso Atenção ao tempo

Ações aceleradas (lavar, varrer, bater bolo, andar)

Tempo – mecanização do corpo e pressa.

Análise Diário da Experiência

Mundo do relógio

Das repetições significativas cheguei a três núcleos simbólicos relativos aos registros de vídeos: Execução De Uma

Tarefa/Ilustração Do Vivido, TEMPO, Dicotomia entre corpo que age e corpo que pensa.

Das imagens do Diário da Experiência: Mundo do relógio.

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Estudante C.

Análise dos registros de vídeo

Gesto Pregnâncias

Caminha para o meio do espaço, olha

para as colegas, pula e ao mesmo

tempo grita estendendo o corpo

Liberdade. Queria se libertar ou sentia-se livre?

Não com a mão Repressão - reprimir (aparece duas vezes na cena)

A apunhalada no peito, seguida de

um grito e do jogar-se ao chão e

chorar

Repressão - ser reprimida

Movimento dos braços Indagar, buscar resposta

Brincar de bonecas e o andar de

bicicleta

Voltar a ser criança = liberdade.

Explorar e experimentar objetos em Procura

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uma caixa

Encontra o nariz de palhaço,

expansão do corpo

Prazer, encantamento e satisfação

Retira o nariz de palhaço do nariz Negação/Proibição

Observa o nariz de palhaço, pega-o e

leva ao coração

Contemplação

Criança em um aniversário Voltar a ser criança => liberdade

Correr pulando e gritando Liberdade

Movimentos com a cabeça e braços

principalmente para livrar-se de ser

penteada

Negação ao cuidado e toque do outro

Caminhar de mãos dadas Afetividade e cumplicidade

Copiar em sala de aula A escola – representação escolar

Ações cotidianas em ritmo acelerado Tempo – determinante na ação

Análise Diário da Experiência

Placa de pare

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Bola Cheia querendo esvaziar

Caixa

Nariz de Palhaço

Das repetições significativas cheguei a três núcleos simbólicos relativos aos registros de vídeos: liberdade, Repressão,

Máscara.

Das imagens do Diário da Experiência: Placa de pare, Bola cheia querendo esvaziar, Caixa, Nariz de palhaço.

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PRIMEIRAS CONCLUSÕES SOBRE AS ESCRITURAS DO CORPO

BIOGRÁFICO E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A EDUCAÇÃO...

Ao longo desta pesquisa, busquei fortalecer um pressuposto, inicialmente

frágil, da Tese que se anunciava a partir da ideia de que no ser de carne (corpo)

habita uma memória que está nos reservatórios do trajeto formativo de cada pessoa.

Obviamente, este pressuposto inicial de Tese não foi construído sem antes um

embasamento teórico sobre o tema que começara a estudar desde minha formação

inicial. No entanto, neste momento em que finalizo um trajeto de estudo e pesquisa,

posso tecer minhas primeiras conclusões. Agora, com menos fragilidade, pois que

elas estão embasadas na minha interlocução com os dados empíricos. Nesse

sentido, fortalecem a Tese que antes intuía e que agora defendo: A memória do

corpo faz parte do trajeto formativo de cada pessoa, cujas experiências ficam

registradas como uma escritura. Nesta pesquisa, a somatória destas escrituras

compõe o reservatório imaginário do ser humano, a qual foi visibilizada pelo gesto.

Então, pode-se dizer que o Corpo Biográfico é um grande reservatório das

intimações que nós vivemos ao longo do nosso trajeto de formação.

Intervalo... Peço licença, em primeiro lugar a mim mesma (pelo medo em fugir

das regras), para num rápido intervalo falar sobre movimentos por mim vividos ao

longo do processo de estudo e escritura nesta cidade chamada Pelotas, abrigada

numa Universidade, mais conhecida como UFPEL, no Programa de Pós-Graduação

em Educação e renascida e cuidada num grupo chamado de GEPIEM... Por quê?

Porque muitas pessoas apostaram em outra possibilidade de me constituir, sem

mesmo o saberem... Quer dizer, minha orientadora lentamente foi mostrando o

quanto aquela criança que trazia no corpo a marca (ou escritura?) da dificuldade de

expressão, poderia soltar a outra criança em quem eu pouco apostara: a mais livre e

menos temerosa. Assim, intimada pelas demandas deste meio chamado GEPIEM,

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fui me exercitando nos caminhos entre a planície e os abismos da incerteza

(inspirada em Rubem Alves).

E na dualidade entre eles – o abismo e a planície – deparei-me com um conto

infanto-juvenil do autor citado que aqui trago para colorir este meu intervalo. O conto

é mais ou menos assim: Certo dia, um homem que sempre andava em planícies caiu

repentinamente em um abismo. Abismo que lhe causava medo, pois representava o

desconhecido. E o desconhecido testa a dureza do ser humano, dilata sua

percepção, coloca-lhe em prontidão. Com muito medo de perder-se naquela

imensidão, e deixar-se levar por sensações não familiares, agarra-se com todas as

suas forças a um galho que se projetava sobre o precipício. Lá encontra um anjo

que lhe salva, mas também o faz perceber o quão importante é aprender as lições

do abismo, desafiando-o, assim, a enfrentar essa jornada.

Esta metáfora apresentada no Conto de Rubem Alves é um evocador dos

sentimentos frente ao processo da pessoa na pesquisadora e seu resultado na

pesquisa. E por mais que este objeto de estudo estivesse ancorado num universo de

desejo e também sedução, fez-me penetrar no terreno das incertezas e da

subjetividade. É aí que reside a contribuição do GEPIEM na minha trajetória como

pesquisadora. As teorias estudadas e as orientações neste Grupo colocaram-me

diante de um abismo... Na embriaguez de um olhar que me paralisava diante do

incerto, eu fui caindo, caindo... Fui me dando conta do medo que eu tinha das

incertezas, do desconhecido, da ousadia. E, então, percebi que trabalhar o Corpo

Biográfico não seria um caminho de planícies planas e tranquilas, mas sim de lições

que o abismo tinha a me ensinar, inclusive porque ao trabalhar com as estudantes,

deparei-me com as minhas próprias escrituras...

Encontrei-me com a imensidão do abismo, representada pelos estudos do

Imaginário, assim como o homem do conto, agarrei-me a um galho, ou seja, à

necessidade de uma certeza e precisão para olhar os dados empíricos desta

pesquisa. Encontrei tudo isto ao realizar o estágio doutoral, realizado parte em

Portugal, parte em França, que me levou a enquadrar determinadas análises como o

leitor poderá ter percebido: momentos que transitaram entre estas duas topologias.

No enquadramento proposto pela metodologia de análise de Danis Bois, encontrei a

segurança que eu precisava naquele momento pós-qualificação e longe das

certezas da geografia conhecida da casa. No entanto, na medida em que ia

adentrando na análise dos dados para conversar com os dois campos de estudos –

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Imaginário e Corpo Biográfico – fui percebendo que em vez de amplificar, eu, a cada

dia, engessava o meu olhar diante deles. Lá estava eu voltando às planícies da

minha existência, aliás, bem confortáveis.

Mas o anjo do conto veio soprar coisas em meus ouvidos; me provocou a

perceber que o galho também era seguro, em especial se eu confiasse que daquele

lugar eu, também, conseguiria perceber outros pontos de vista... Me provocou,

mostrando a necessidade de se lançar neste momento presente para aprender suas

lições e, do meu jeito, encontrar uma possibilidade de compor com a certeza da

planície e o medo do abismo, produzindo o meu próprio fio. Foi então que apostei

nas suas palavras, arriscando no terreno do medo e da ousadia (o que também nos

ensinou Paulo Freire).

E assim, entre a planície e o abismo, chego a este capítulo, não sem muito

exercício para afastar o medo que o resultado deste processo me traria. Como

ressalta Dominicé (2008), nossas escolhas estão sempre inscritas em forte processo

de implicação pessoal. Comigo não foi diferente. Ao propor este estudo, eu me

enrolei e desenrolei em mim mesma. E a menina que na sua infância reportava-se

ao corpo como o porta-voz de suas vontades e esconderijo de seus segredos, anos

mais tarde vai investigar a memória do corpo.

Depois do intervalo... Agradeço.

Os mitemas, ou seja, os pequenos temas simbólicos que emergiram do

empírico foram – A infância presente no Corpo-terno; O desejo do voo no

Corpo-cativo; Um ser de carne que pensa, outro que age no Corpo-fracionado;

A busca pela liberdade desejada no Corpo-comedido – evidenciaram,

simbolicamente, que o corpo é uma escritura viva das experiências que foram

significativas na vida do ser humano. Tais experiências vão sendo registradas em

sua anatomia, repercutindo na dimensão física, cognitiva, afetiva e psíquica, que o

faz semelhante, mas nunca igual à outra pessoa.

Neste estudo, o corpo é tematizado como o “habitáculo” jossoniano que

abriga a história do ser humano, ao mesmo tempo em que se constitui numa “caixa

de ressonâncias” quereniano, em cujos gestos repercute a história singular e plural.

Ao mesmo tempo em que revela o trajeto de formação das estudadas, também pode

reverberar em outras pessoas com histórias e trajetos similares.

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O que quero dizer com isto é que a memória corporizada, visibilizada ou não

através dos gestos, pode ser resultado do modo como assimilamos os

acontecimentos vividos em consonância à herança biológica e ancestral. Esta

assimilação, invariavelmente, pode não estar associada a um processo consciente,

mas direta ou indiretamente o que é significativo fica em nós, nas suas diferentes

formas. Por exemplo: alegria, tristeza, medo, segurança, saúde, doença, dentre

outras possíveis manifestações.

Tudo isto constitui as escrituras do Corpo Biográfico, que nesta Tese foi

problematizado através dos mitemas como representantes do reservatório do

imaginário de cada pesquisada. Tais mitemas apresentam de algum modo as

imagens fundadoras emergentes da sua narrativa e a possível relação com a

maneira como elas interagem no meio onde estão inseridas.

Assim, o corpo pode ser comparado a uma "escritura de argila" (CREMA,

1998) que revela o nosso texto mais concreto que está sempre sendo reescrito. À

medida que as intimações vão se apresentando a cada pessoa, novas escrituras são

somadas ao Corpo Biográfico, atribuindo outras tonalidades ao repertório gestual.

O gesto, por sua vez, é a expressão do imaginário nas escrituras do Corpo

Biográfico, pois ele já é o resultado de como as memórias inscritas no corpo

reverberaram no modo como cada acadêmica vem sendo e se tornando ao longo de

seu trajeto formativo. E também na forma como cada uma interagiu no exercício de

biografização corporal.

Devo revelar que, ao interpretar os gestos das protagonistas desta pesquisa,

houve um custo simbólico importante, pois significou tecer os meus próprios fios e

saltar sobre o abismo. Ou seja, foi uma invenção a partir do repertório que construí

na planície.

E foi assim que encontrei na mulher que L. se tornou, a afetividade como um

núcleo simbólico que conjuga nos seus gestos as experiências vividas na infância,

sendo este aspecto pregnante do seu reservatório imaginário. Reservatório

nitidamente visibilizado em seus gestos, que trazem os vestígios de um corpo

infantil, amoroso e expressivo, cujo mitema expressa a infância presente no

Corpo-terno. Suas ações estão sempre atreladas a um sentimento que imprime

tonalidades ao seu corpo. Tonalidades preponderantemente vinculadas ao afetivo,

como uma escritura fundadora do seu Corpo Biográfico.

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Também encontrei um corpo livre em oposição a um corpo aprisionado em

Cm., como núcleo simbólico de um ser que traz no mais íntimo de si uma vontade de

se libertar. Os gestos de Cm. são a tradução transmutada de como as inúmeras

limitações que foram sendo impostas na sua vida, repercutem na sua maneira de

ser, representada pelo mitema que expressa o desejo do voo no Corpo-cativo. Um

corpo sempre em prontidão para atender ao outro. Neste ponto, encontrei um

aspecto pregnante de seu reservatório imaginário relacionado ao peso que as

experiências vividas em um passado longínquo representam em sua vida, fazendo-a

projetar seu olhar sempre para frente, como uma defesa dos sofrimentos por que

passou. Esta postura também revelou uma vontade de se libertar, que me parece

que vem sendo desejada desde seu ingresso no Curso de Pedagogia. Escolha que

pode ser o resquício de um fio frágil de esperança, acalentado no seu encantamento

pela escola durante uma infância que ela não deseja lembrar.

E na sensação de saltar na imensidão do abismo, eis mais um encontro. Um

encontro com um Ser que se constitui na dicotomia entre corpo que age e corpo que

pensa, núcleo simbólico de um Corpo-fracionado. E, assim, vi uma racionalidade

subsumida nos gestos da estudante M., expressa no mitema que reflete um ser de

carne que pensa, outro que age no Corpo-fracionado, ocasionando um pensar

dissociado do agir. A partir do elemento Tempo que a intima a essa antecipação do

pensar sem conseguir expressar o desejo na tonalidade do gesto. Penso que este

condicionamento em seu agir está associado a uma fragmentação corporal –

elemento revelador do imaginário expresso na escritura do Corpo Biográfico de M. –

vivida muito provavelmente ao longo de sua vida escolar, que a levou a assimilar um

movimento de racionalização desprendido da ação.

E, por fim, encontro a repressão como núcleo simbólico de um Corpo-

Comedido. Repressão associada aos diversos nãos, que C. foi recebendo no

decorrer de sua vida e que resultaram em uma trava interna em seu corpo. Estes

nãos se constituem como elemento pregnante de seu reservatório imaginário,

reverberando no seu repertório gestual e expresso pelo mitema da busca pela

liberdade desejada no Corpo-comedido. Seus gestos geralmente ficam na

intenção, como se fosse proibido se expressar espontaneamente ou mesmo numa

expressão velada. Revela, mas parece não revelar o que sente. Daí emerge a

máscara como outro núcleo simbólico relacionado à estratégia que C. encontrou

para se manifestar via linguagem indireta. E o corpo antes sóbrio e contido

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demonstra sua expressividade. Será mesmo? O nariz de palhaço ao mesmo tempo

em que mostra, também esconde! Não seria esta mais uma manifestação do um

corpo-comedido que procura por sua liberdade? Ou seria esta a sua liberdade?

É necessário dizer que nesses quatro Corpos Biográficos há um fator que as

une na temporalidade do presente, que é a pressa. Pressa que repercute no Corpo-

Terno como um descuido de si, trazendo sentimentos de angústia e preocupação.

No Corpo-Cativo, potencializa a fazer muito mais coisas. No Corpo-fracionado,

resulta na automatização de um corpo que age no presente, mas está

constantemente pensando na próxima ação. E no Corpo-comedido, como elemento

determinante para retrair-se ainda mais, potencializando sua trava interna.

E ainda vivendo as lições do abismo, compreendi que nos gestos

encontramos os indícios que fazem o sujeito (re)agir no contexto em que está

inserido como porta de acesso às escrituras que compõem o reservatório imaginário

de cada ser humano. Além disso, o gesto é, genuinamente, o Imaginário para Gilbert

Durand (2002), por ser ele universal e atemporal.

Outra consideração a ser pontuada é que, sem perceber, talvez também

tenha eu colocado as acadêmicas diante de um abismo, pois ao propor o exercício

de biografização corporal sem palavras, ocasionei um choque perceptivo, como diria

Machado da Silva (2006), que de certa maneira foi afrouxado pela utilização da

linguagem teatral, que transitou entre a linguagem direta e ficcional como motivador

das ações em cena. As estudantes, ao colocarem-se como personagens de sua

vida, re-(a)presentaram acontecimentos que considerei fundantes de seu trajeto

formativo. Digo isto, pois se tais acontecimentos não fossem, não teriam vindo à

tona.

Em função da obra de Korczak, “Quando eu voltar a ser criança”, o período da

infância foi priorizado. A linguagem imediata do gesto, a partir de um

comprometimento e prontidão ao aqui-agora, foi detonadora à narrativa de si. Isto

gerou a mobilidade corporal no espaço acadêmico, propiciando visibilizar um

conjunto de elementos como imagens, símbolos, crenças, valores, sentimentos,

afetos, que integram a biografia do corpo de cada uma delas.

Percebo com isso que o investimento no que antes era desconhecido e um

tanto inusitado, hoje se revela como mais um instrumento a contribuir nas pesquisas

(auto)biográficas no que concerne à discussão da dimensão biográfica do corpo.

Além disso, o que foi desenvolvido apresenta-se como uma possibilidade

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metodológica de inserção do corpo como um saber necessário à promoção de uma

abordagem mais humana no contexto formativo.

Ao colocar o corpo em foco, outras percepções emergiram e, então, o

elemento biográfico e formador cedeu lugar à possibilidade de entrar em contato

com um tipo de conhecimento que emanou de si e conjugou uma história vivida e

também uma história herdada. Este movimento pode ter feito disparar valorizações,

desejos e também projetos, proporcionando um sentir/viver o corpo. Não seriam

estes conteúdos também relevantes a serem abordados na formação inicial de

professores? Penso e defendo que sim, pois, ao ser conferida tamanha importância,

proporcionou, por alguns momentos, uma desvinculação dos paradigmas que

atribuem status à supremacia da razão para abarcar a subjetividade que perpassa a

conduta humana. Dando vazão, desse modo, para o universo simbólico das ações

de cada indivíduo que vai do individual ao coletivo e repercute desde as escolhas de

cada um até sua postura no contexto que está inserido.

Nesse sentido e retomando a questão de pesquisa, a visibilização da

memória inscrita no corpo legitimou o corpo como um saber relevante, o qual se

constitui num saber ser-fazer. Apresentando-se, assim, como uma possibilidade para

contemplar outra abordagem na formação inicial de professores. Abordagem

centrada no corpo como uma matéria sutil e sensível, tão importante quanto às

matérias pragmáticas e utilitárias e que precisa ser “acordada” e valorizada, para

então, repercutir nos projetos curriculares dos Cursos de Pedagogia.

Por mais que não houvesse a intenção de promover a conscientização e

mesmo a transformação das estudantes, no decorrer do estudo, foi possível

observar que esse movimento aconteceu. L., por exemplo, através do trabalho deu-

se conta da sua preocupação em relação à imagem do seu corpo que resultava

numa determinada maneira de reagir diante das situações que lhe aconteciam. Já

em Cm. ocorreu uma tomada de consciência sobre a importância de se trabalhar o

corpo, promovendo uma reflexão sobre sua forma de agir, que deve ser

sinônimo de reação em prol do que realmente deseja e acredita, do que uma

aceitação somente. Em M. também houve uma tomada de consciência que a fez

perceber a necessidade de construir um equilíbrio entre corpo e mente,

rompendo a supremacia do pensar sobre o agir. E por fim C. que, no decorrer

dos encontros, deparou-se com a necessidade de buscar outra forma de agir,

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mais espontânea, autêntica e ousada, tendo como objetivo romper com a trava

interna em seu corpo.

Diante disso, somado ao processo de análise, compreendo que o exercício de

biografização corporal pela improvisação teatral resultou em uma percepção mais

apurada sobre o corpo, proporcionando às acadêmicas uma maior apropriação de si.

Apropriação gerada pela dinâmica que integra o conceito de Corpo Biográfico. Em

que a vivência específica (biografização) levou à evocação das memórias dos

acontecimentos vividos, representando a porta de acesso ao imaginário. Imaginário

que agiu na re-(a)presentação do vivido, atualizando no tempo presente a percepção

atual sobre o corpo.

Sendo assim, a contribuição do Imaginário, como campo teórico ao conceito

de Corpo Biográfico, proporciona uma abordagem que extrapola somente uma

história individual, para congregar um coletivo vinculado à história do anthropos e

que aqui apreendi como os valores que foram sendo incutidos ao longo da vida das

estudantes.

Finalizo, dizendo que mesmo sabendo que andar pela planície sempre foi

mais fácil para mim, as experiências por mim vividas, proporcionadas por esta

pesquisa, deixam-me a certeza de que planícies e abismos fazem parte das

estruturas do pesquisador e da pesquisa. Eles são sempre um amálgama

indissociável, embora nem todas as pesquisas revelem isto. Nós gostamos de

mostrar isto. Nós, quem? Não poderia deixar de dizer que no fim deste trabalho não

sou uma autora solitária, mas sou a soma de tudo que vivi, em especial nestes

quatros anos... Experimentando ao fim de novos começos a sensação de aprender

com as lições do abismo, enxergando as planícies como aqueles confortos

necessários de que todos precisamos para ter força de transitar e aprender com os

abismos em todas as suas tonalidades. Não há oposição entre um e outro, apenas

lições diferentes, mas igualmente formadoras, pois como sempre me lembrou minha

orientadora, a vida precisa ser vivida na academia e têm eles de andar e caminhar

de mãos dadas, mesmo que se apartem temporariamente.

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APÊNDICES

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APÊNDICE A – QUADROS ELUCIDATIVOS

Na versão impressa, os textos dos quadros constam na mesma página do

texto principal. Em função da formatação, na versão digital, optei por colocá-los

como apêndice, apenas indicando sua numeração ao lado do texto.

Quadro 1:

O investimento nesta proposta de “refletir sobre o que me leva a pesquisar o que eu pesquiso?” vem ao encontro das ideias de minha orientadora que, juntamente

com o GEPIEM, tematiza sobre os processos pelos quais cada pessoa vai se tornando e sendo no decorrer do seu percurso formativo. Esta tematização é alicerçada nos estudos (auto)biográficos pela perspectiva das histórias de vida em formação, em conjuntura com o campo teórico do imaginário. Brandão (2008) também faz alusão ao processo de reflexão sobre si como um caminho para a pessoa pensar como se tornou o que é, quais seus projetos existenciais, bem como vislumbrar caminhos para projetos futuros.

Quadro 2:

Para Josso (2010, 2012), o corpo desempenha um papel importante nas histórias de formação, constituindo um importante locus de estudos nos últimos anos. A problematização do corpo e sua dimensão biográfica na formação humana são colocadas em foco no trabalho de autores como Danis Bois (2008a, 2008b, 2007, 2006), Marie-Christine Josso (2010, 2009, 2008a, 2008b), Christine Delory-Momberger (2008, 2005), Jeanne-Marie Rugira (2006, 2012) dentre outros autores.

Quadro 3:

Ao dar ênfase para a abordagem de meu corpo durante a Educação Infantil como uma experiência importante à pesquisa que hoje realizo, encontro-me com os estudos de Josso (2010) e sua discussão sobre o corpo e a relação corpo e infância. A autora dá destaque para a presença do corpo no cotidiano da criança em seus primeiros anos de vida de forma mais ou menos implícita, mas sempre presente. Penso que o adulto, ao desenvolver uma metodologia de trabalho na Educação Infantil, valoriza a presença do corpo no cotidiano da criança, considerando a abordagem corporal como elemento importante em sua prática pedagógica. Credito ao reconhecimento da necessidade de abordar a corporeidade nos primeiros anos escolares, como um fator relevante que me levou a vivenciar de forma tão intensa o corpo na escola durante a Educação Infantil e hoje atribuir àquelas experiências um grande valor no estudo que realizo.

Quadro 4:

Ao longo dos últimos anos no Brasil, o corpo tem sido objeto de estudo de muitas pesquisas no campo da Educação. Entre os meses de setembro e novembro de

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2010, realizei o levantamento de dados em três bases para pesquisa: Scientific Eletronic Library Online (SCIELO); artigos publicados nas Reuniões Anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED – 2005/2010); artigos publicados no II, III e IV Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)biográfica (CIPA – 2006, 2008, 2010). Após realizar o rastreamento de artigos e trabalhos publicados nas três bases de dados selecionadas, percebi que a temática dessa pesquisa de doutorado ainda está pouco explorada, sobretudo à luz das teorias que balizam este trabalho, visto que em um primeiro momento não encontrei estudos que enfocassem a memória do corpo e o Imaginário. Embora haja muitos estudos sobre o corpo, eles contemplam em parte a discussão aqui apresentada, pois problematizam e ressaltam apenas a importância de ter o corpo implicado no processo de aprendizagem e no decorrer do trajeto formativo. Isso me leva a concluir, previamente, que as produções com esse enfoque ainda são escassas e pouco divulgadas. Para minha surpresa, encontro uma situação semelhante na Europa. Durante meu estágio doutoral na Universidade Fernando Pessoa – Porto/Portugal, tive acesso ao trabalho de Eve Berger. A autora no “Memoire de D.E.A. – Approches plurielles em Sciences de L´Éducation, publicado em 2004, na Université Paris VIII, sob direção de Jean-Louis Le Grand, faz um levantamento das pesquisas realizadas no âmbito do campo das Ciências da Educação, na França, sobre o lugar do corpo em geral. Seu levantamento de dados é direcionado a trabalhos de pesquisas, às revistas e aos artigos, bem como as obras escritas sobre a temática. Berger, mesmo feito um levantamento minucioso, mostra-nos que o número de pesquisas não chega a 0,5%, comprovando o quanto ainda o corpo é deixado de lado na Educação, inclusive no âmbito da formação do adulto. Inclusive tomei conhecimento de que o corpo continua sendo um tabu nas Ciências da Educação daquele país, não sendo considerado um tema relevante de pesquisa, revelando que ainda há um desinteresse pela comunicação corporal e não-verbal na prática pedagógica.

Quadro 5:

O conceito de Corpo Biográfico é trabalhado por Danis Bois a partir de quatro dimensões: vivência, memória, imaginário e simbólico. Diferentemente da nossa abordagem, o imaginário neste contexto está relacionado à função imaginária, ou seja, ao ato de imaginar, de tradução enigmática, construída no intelecto e muitas vezes independentemente da experiência. Tendo em vista o campo teórico dos estudos do Imaginário, onde imaginário e simbólico são a mesma coisa, optei, juntamente com o professor, por trazer outra concepção de imaginário para o conceito de Corpo Biográfico. Com isso, meu objetivo voltou-se a legitimar o imaginário como uma dimensão que atribui um sentido antropológico ao Corpo Biográfico.

Quadro 6:

No Brasil, a cada ano, o método (auto)biográfico vem ganhando espaço no contexto educacional. Isto pode ser constatado nos Congressos Internacionais de Pesquisas (Auto)Biográficas que há dez anos são realizados no país, reunindo cada vez mais pesquisadores que têm a oportunidade de apresentar suas pesquisas nesta área. O advento do método (auto)biográfico começou a partir dos anos 80 e contribuiu para

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outro pensar sobre a formação do adulto. Um pensar focado no ser e no tornar-se, a partir da valorização da experiência de vida do sujeito, através de uma abordagem direcionada ao desenvolvimento reflexivo da pessoa. É neste período que se inicia uma conscientização em relação aos saberes docentes, havendo a valorização dos saberes da experiência. Os estudos de António Nóvoa (2010), Pierre Dominicé (2008, 2010), Franco Ferraroti (2010), Mathias Finger (2010), Marie-Christine Josso (2008a, 2008b, 2004) Christine Delory- Momberger (2011, 2008), dentre tantos outros, vão contribuir para o reconhecimento do professor como sujeito, portador de um saber plural alicerçado em sua prática. Neste cenário, a construção da biografia educativa insere-se como instrumento a incitar um processo reflexivo orientado para o interesse de cada indivíduo. A biografia é fruto da narrativa escrita, em que cada interrogação sobre o vivido é ponto de partida para outras reflexões. Ao biografar-se, o ser humano insere suas experiências numa temporalidade que organiza mentalmente seus gestos, atitudes e ações segundo uma lógica de configuração narrativa. O que é possível constatar é que habitualmente há uma grande literatura sobre a biografização a partir da narrativa de vida e que trouxe grandes contribuições para um novo pensar à formação do professor, porém não há nenhum registro sobre a biografização numa perspectiva corporal. Em vista disso, comecei a me perguntar se seria possível efetivar um trabalho focado na narrativa corporal de si via linguagem teatral. Minhas experiências apontaram indícios positivos para esta questão, levando-me a investir nesta proposta como via de acesso à história de vida. É nesse sentido que reside a particularidade deste trabalho, pois habitualmente o trabalho biográfico privilegia a narrativa escrita ou oral, atribuindo status ao processo mental/reflexivo. Nesta pesquisa, a abordagem corporal foi colocada em primeiro plano no processo de biografização, com o intuito de instaurar outra forma de narrar-se, a partir do imediatismo da linguagem gestual, buscando as conexões entre o Imaginário e o Corpo Biográfico. O investimento nesta temática teve em vista a inserção do Corpo Biográfico no campo das pesquisas biográficas na Educação, como também a consolidação de um trabalho corporal na formação inicial de professores, a fim de proporcionar uma formação humana voltada para o desenvolvimento pessoal do sujeito, almejando um trabalho global entre estudante e professor.

Quadro 7:

Faz-se necessário ressaltar que o encontro com o prof.º Danis Bois foi uma experiência muito rica para mim como pessoa e profissional. No entanto, nossa aproximação causou certa confusão em dois aspectos: 1) Por ele ter desenvolvido uma dinâmica de pesquisa estruturada, que engloba a análise textual, e esta ser sua forma de trabalho, acabei priorizando a análise dos Diários da Experiência durante o estágio doutoral, deixando a interpretação do gesto em segundo plano. Dessa maneira, a palavra ganhava novamente uma grande dimensão na minha pesquisa. 2) E querer abordar novamente (mesmo com a banca ter falado o contrário) a

conscientização e a transformação na minha pesquisa. Isto porque a abordagem do professor está ancorada numa perspectiva terapêutica voltada para pessoas que desejam evoluir e aprofundar o sentido da sua vida, a partir de um processo de conscientização e transformação pela vivência corporal. O que quero dizer com isto é que durante o período fora do Brasil, não abandonei os estudos do Imaginário, porém ao estar focada nos estudos do corpo, achei que conseguiria dar conta destes dois aspectos igualmente. Ao retornar, percebi que isto não seria possível, e

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desta maneira optei por realizar a análise dos Diários da Experiência, priorizando a análise dos registros de vídeo, bem como trabalhar o conceito de Corpo Biográfico e abandonar a proposta de conscientização e transformação, pois meu objetivo estava voltado somente à visibilização.

Quadro 8:

Segundo Durand (2001, p. 68), desde que o Ocidente considerou a “ciência como a única dona de uma verdade iconoclasta e o fundamento supremo dos valores”, o imaginário constituído por um pluralismo de imagens, que se organiza de forma complexa e sistemática, foi sendo deixado de lado, como algo irreal, fantasmagórico, subjetivo, impossível de ser aceitável no universo monoteísta científico. Essa visão monoteísta é excludente, uma vez que se apóia na busca por certezas, aceitando apenas uma possibilidade como verdade. Alicerçada numa lógica binária, que compreende apenas dois valores, um verdadeiro e um falso, exclui a possibilidade de um terceiro elemento. A exclusão de um terceiro, juntamente com a negação de todas as formas de conhecimento que não estiverem pautadas em princípios epistemológicos e regras metodológicas são elementos que podemos elencar como fundantes para considerar a racionalidade científica da ciência moderna como um modelo totalitário. A ciência alicerçada em algo concreto não aceitava a invasão de um campo tão movediço e ambíguo quanto o imaginário. Tal embate pode ser percebido nos inúmeros esforços realizados ao longo do tempo em comprovar, negar e separar a ciência do imaginário. À medida que ela se esforçava para repudiar as imagens* e deixá-las à margem, elas reapareciam para colocar à prova os conceitos científicos instituídos como verdades, como “as ondas, os corpúsculos, as catástrofes, o bootstrap, a teoria dos superstings...” (DURAND, 2001, p. 68). Assim, a separação entre ciência e imaginário foi perdendo o sentido, havendo a valorização do universo de significação que permeia a vida do homem, em um movimento abrangente e instaurador que passou a incluir uma terceira possibilidade. * A imagem abrange uma infinidade de interpretações, sendo impossível reduzi-la a um único enunciado, a uma asserção, ou seja, enquadrá-la num argumento verdadeiro ou falso e extrair dela uma única percepção.

Quadro 9:

A evolução da consciência representa o progresso da pregnância simbólica. Cabe ressaltar que no mundo animal o símbolo surge como um complexo de sinais. O famoso tique estudado por Von Uexküll não <<simboliza>>, o seu universo significativo é constituído por três dimensões unívocas: enquanto, no cão, e, segundo parece, em qualquer animal dotado de um cérebro, pelo menos nos pássaros, uma mímica postural, uma atitude <<reflexiva>> revelam que o reflexo, ou mesmo o instinto pode ser – se bem que raramente é certo – desviado do seu funcionamento direto de origem (DURAND, 1988, p. 80). Os animais, como o cão de Pavlov apresentam postura de introspecção ao passar do sinal para o signo. Essa passagem leva Adolf Portmann a acreditar na ideia de que os animais atingem representações fixas para a espécie, chamada de Urbilder – “grandes conjuntos espaciais, sensoriais e simbólicos que definem o mundo e o ecossistema animal” (TEIXEIRA; ARAÚJO, 2011, p. 47). Os Urbilder podem ser encontrados, segundo Durand (1988), na espécie humana cuja imagem primordial

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teria em sua base a estrutura dos reflexos dominantes partilhada pelo Homem com a maioria dos seres vivos como a deglutição, a nutrição e a copulação, e os reflexos das dominantes posturais que são características singulares do Homo erectus. Assim, é ao homem que pertence a característica específica de simbolização, a partir do pensamento mediato, delimitado por um signo proveniente dos diversos campos de significação, em um processo gradual.

Quadro 10:

É na reflexologia detchereviana que Durand busca o princípio de classificação e noção de “gestos dominantes”. As “dominantes reflexas” estudadas por Vendeski e depois por Betcherev na Escola de Leningrado constituem os mais primitivos conjunto sensório-motores “que constituem o sistema de „acomodações‟ mais originários na ontogênese e aos quais, segundo a teoria de Piaget, se deveria referir toda a representação em baixa tensão nos processos de assimilação constituídos do simbolismo” (DURAND, 2002, p. 47-48). Para Durand, a reflexologia apresentava a possibilidade de estudar o aparelho nervoso do recém nascido – o seu sistema funcional e em particular o cérebro. A reflexologia do recém nascido evidenciava uma rede metodológica que permitia compreender os motivos e explicitar o “polimorfismo” a nível social e pulsional da infância, proporcionando uma compreensão mais focada sobre as experiências da vida, a fisiologia e os seus traumatismos, as adaptações positivas ou não ao meio. Dessa maneira, Betcherev, ao estudar os reflexos primordiais, descobre duas dominantes no recém-nascido. 1º) Dominante de posição – ligada à topologia da verticalidade; 2º) Dominante de nutrição. Estas nada mais são do que reações inatas de caráter dominante, que por apresentar um princípio de organização, são consideradas estruturas sensório motoras. Soma-se às duas, uma terceira dominante que Durand busca nos estudos de Oufland com animais adultos e machos: a dominante sexual ou copulativa (rítmica) que apresenta caráter cíclico, sendo motivada por secreções hormonais. As três dominantes reflexas – que constituem uma malha intermediária entre os reflexos simples e os associados – são consideradas matrizes sensório-motoras em que as representações naturalmente integram-se nos três grandes esquemas dominantes que englobam a natureza comportamental e morfológica do homem. A partir desses esquemas, os grandes símbolos vão se formar, correspondendo a uma estrutura do imaginário. Por exemplo: o primeiro gesto -> dominante postural -> exige matérias luminosas, visuais e as técnicas de separação, purificação, de que as armas, as flechas, os gládios são símbolos frequentes. O segundo gesto -> descida digestiva -> implica matérias de profundidade; tendo como símbolos a água ou a terra cavernosa; suscita continentes, taças, cofres, fazendo tender para os devaneios da bebida ou do alimento. E o terceiro gesto -> dominante rítmica -> relaciona-se à sexualidade, projetando-se nos ritmos sazonais e no seu cortejo astral; como símbolos a roda e a roda de fiar, a vasilha onde se bate a manteiga e o isqueiro, sobredeterminando a fricção tecnológica pela rítmica sexual. Assim, o gesto, a partir da teorização de Leroi-Gourhan, pressupõe uma matéria e uma técnica, isto é, um material imaginário, que resulta em um instrumento ou utensílio.

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Quadro 11: Há duas dimensões que, segundo Josso, são condição sine qua non para a relação do homem com o mundo: “o ser de carne” e o “ser de atenção consciente”. O “ser de carne” é o nosso corpo físico, o habitáculo de todas as representações (JOSSO, 2009), a concretude de nossa existência e presença no universo, matéria onde ficam impressas as memórias do ser humano, decorrentes das suas experiências vividas. O “ser de atenção consciente” é a outra dimensão indispensável ao ser humano

no mundo como “ser em devir” (ibidem, p. 125). É por meio dela que se desenvolve a percepção e a construção de um conhecimento de si. Essa dimensão do ser está no centro da relação do sujeito consigo e com o ambiente humano e natural a sua volta, como presença para si mesmo no aqui e agora. Além das referidas como fundamentais na relação do ser no mundo, a autora aponta para outras dimensões importantes e complementares nesse processo relacional. São elas: “ser de sensibilidade”, “ser de emoções e de afetividade”, “ser de ação”, “ser de cognição” e “ser da imaginação” (2009, p. 123). O “ser de sensibilidade” é uma dimensão muito próxima ao “ser de carne”, visto que é por essa dimensão que se demonstram as impressões cotidianas, sejam elas agradáveis ou não, e que Josso (2008b, p. 34) destaca como diretamente conectadas com as sensações corporais que se exprimem em todas as nossas atividades. Nessa dimensão, os cinco sentidos e mais um sexto, ligado ao movimento e nomeado como sentido quinestésico, estão no centro das relações apreendidas pelo ser humano consigo mesmo, com os outros e com o mundo em seu entorno. O “ser de emoções” vai ser mobilizado por outras dimensões: o ser de afetividade, o ser cognitivo, o ser da imaginação. As emoções inscrevem-se em nosso corpo físico, estando diretamente relacionadas ao nosso modo de ser, estar e agir com o ambiente a nossa volta. O “ser de afetividade” nos leva a adentrar no campo das valorizações interiorizadas inconscientemente. O “ser de afetividade” também produz efeitos sobre o “ser de carne”, deixando marcas profundas que já vêm sendo estudadas pela Somato-psicopedagogia, por exemplo. O “ser de ação” é a dimensão do movimento, que

acontece na interação social. Essa dimensão mobiliza as demais dimensões, a fim de alcançar a partir do seu movimento e do seu deslocamento a transformação almejada, o melhor “acabamento” (ibidem, p. 39) possível. O “ser de cognição” manifesta-se na construção de uma representação ou de um sentido. É solicitado à análise, compreensão e interpretação dos processos de formação e conhecimentos operantes na vida narrada (JOSSO, 2008b, 2009). O “ser de imaginação”

potencializa outras possibilidades e novos olhares sobre si, sendo o combustível à vida interior. É por meio dessa dimensão que o ser humano dá vazão à simbolização de situações e acontecimentos não ditos, descobrindo outros horizontes que permitem, em consonância com Josso (2009, p. 133), “liberar-se de quotidianos constrangedores, para ajudar a construir um sentido”. Estar atento às dimensões do “ser no mundo” talvez seja a grande questão do corpo que estou tematizando. Um corpo que é de carne, mas que também é sensível, pelo fato de emergir de um contato íntimo e direto da pessoa consigo mesma, com os outros e com o mundo a sua volta (BOIS, AUSTRY, 2008), um corpo que se constrói nas interações do sujeito ao longo de seu trajeto formativo. São essas interações que ficam na memória do corpo e que busco visibilizar neste trabalho.

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Quadro 12:

O cérebro emocional ou sistema límbico é composto pelo tálamo, pelo hipocampo e pelas amígdalas. O tálamo desempenha um papel de extrema importância à sensibilidade, na excitação cortical e na integração entre a afetividade e o humor. É a parte intermediária das informações sensoriais rumo às diferentes áreas corticais. Conecta-se com as amígdalas – que exercem a função avaliativa do modo agradável ou não de uma experiência e está relacionada às reações de medo, dirigindo a memória implícita, o condicionamento e a memória emocional – e com o hipocampo que se vincula diretamente a tudo que está relacionado ao registro das memórias ligadas a uma experiência. O cérebro emocional dirige a tranquilidade psicológica e grande parte da fisiologia do corpo, trabalhando muitas vezes independente do neocórtex. Por mais que a linguagem e a cognição tenham uma influência restrita neste cérebro, pois é impossível ordenar a intensidade de uma emoção; é necessário ressataltar que o estímulo externo acelera o sistema de percepção sensorial que se traduz por estados somáticos. Os estados somáticos são os que ocasionam as emoções sentidas pelo sujeito, segundo William James, psicólogo americano (QUERÉ, 2008, p. 209).

Quadro 13:

Em 1980, Bois fez a primeira ligação da dimensão biográfica do corpo com a Fasciaterapia. Através dela descobre um corpo impregnado de tonalidades adormecidas prontas a serem reativadas por meio de ajuda manual adequada (BOIS, 2008a). A experiência com o Sensível possibilitava ao sujeito descobrir uma presença a si mesmo, uma vez que passa a experimentar emoções até então não conhecidas. Essas constatações levaram Bois a perceber que a relação estabelecida com o corpo tinha ação direta sobre a identidade pessoal. No momento que era redescoberta a sensibilidade, um período de instabilidade atravessava a pessoa que se descobria distante de si, “percebendo a separação entre o que descobria no presente e as estratégias que isso revelava nela” (ibidem, p. 55). Este processo, segundo o autor, referia-se ao “corpo-biográfico”. Sentindo a necessidade de dar conta do processo vivido por seus pacientes e tendo ciência de que a sua formação havia lhe preparado apenas para lidar com um corpo mecânico, Bois criou uma disciplina chamada Somato-psicopedagogia. Segundo ele, através da Somato-psicopedagogia formulou “uma (psico) educação que se arraigava na carne, na escuta, no tocar e na sutil colocação do corpo em movimento” (BOIS, 2008a, p. 56) integrando três dimensões nessa proposta: a corporal, a psíquica e a pedagógica. “A Somato-psicopedagogia não é uma terapia manual, não é uma psicoterapia, nem uma pedagogia; ela é tudo isso simultaneamente” (BOIS, 2008b, p. 23). No contexto dessa disciplina, o cuidado abordado na Fasciaterapia passa a ser o motivo para o sujeito viver a experiência do sensível, questionando, assim, sua vivência corporal, num processo de penetração na interioridade viva do corpo. Neste sentido, o sujeito direciona seu olhar para si mesmo, apreendendo um tipo de conhecimento que surge da relação com o seu corpo. Ou seja, um trabalho direcionado para a captação da subjetividade corporal, influenciando posteriormente a configuração cognitiva da pessoa, suas representações conceituais.

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Quadro 14: Segundo Izquierdo (2004), há diferentes tipos de memória que variam de acordo com sua duração - memória imediata, de curta duração e de longa duração - e sua função - memória de trabalho, memória declarativa e memória de procedimento ou procedural. A memória imediata é aquela que dura alguns segundos. Também conhecida como memória de trabalho, ela é evocada para lembrar algo momentâneo, sendo esquecida em seguida. “É evanescente por definição e natureza” (IZQUIERDO, 2004, p. 20). É uma memória extremamente fiel, no entanto dura pouco tempo. As memórias de curta e longa duração têm seu início logo depois de adquirida cada experiência ou também, como expõe o autor, “de acontecido um insight” (ibidem, p. 21). A memória de curta duração tem como função principal sustentar aquilo que a pessoa acabou de aprender, enquanto a memória de longa duração ainda não está constituída. A memória de longa duração é conhecida também por memória remota, que dura anos e pode ser

esquecida com a passagem do tempo. Tal memória pode ser melhorada ou falsificada com a inclusão de novas informações. Muitas vezes, lembranças muito antigas carregam uma forte carga de emoção, sendo por isso importantes para quem lembra. “As memórias emocionais são gravadas juntamente com a emoção que as acompanha e da qual em boa parte consistem (...) num momento de hiperatividade dos sistemas hormonais e neuro-humorais” (IZQUIERDO, 2004, p.36). Quanto às memórias relacionadas às funções temos a memória de trabalho, que não deixa arquivos armazenados, e a memória declarativa, que se relaciona ao

que se pode declarar que existe, como a lembrança de uma pessoa ou de um poema, entre outras coisas. Essa memória pode se dividir em semântica – adquirida por meio de episódios (aula de francês, aula de ciências, por exemplo) – e episódicas ou autobiográficas – que estão diretamente ligadas a incidentes quaisquer da vida. As memórias de procedimento ou procedurais são formadas na aquisição de habilidades sensoriais e/ou motoras como andar de patins ou utilizar uma calculadora, não sendo de fácil explicação.

Quadro 15:

No domínio do comportamento operatório do homem, o autor distingue três planos:

1) ligado aos comportamentos automáticos e à natureza biológica. Neste plano, a educação imprime os dados da tradição, as atitudes corporais, alimentares ou sexuais são marcadas por uma forte variante étnica;

2) relativo às cadeias operatórias que são adquiridas pela experiência e pela educação, inscrevendo-se no comportamento gestual e na linguagem;

3) prevalece um comportamento lúcido em que a linguagem será preponderante, reparando alguma ruptura acidental que possa ter ocorrido ao longo da operação como também conduzindo à criação de novas cadeias operatórias.

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Quadro 16:

Janusz Korczak, de pseudônimo Henryk Goldszmit (adotado para participar de um concurso literário), nasceu em Varsóvia, aproximadamente no ano de 1878. Foi pedagogo, médico pediatra, autor infanto-juvenil e também ativista social. Escreveu muitos artigos científicos, ensaios psicológicos, panfletos, contos, peças de teatro e também livros para e sobre as crianças, segundo Belinky (1987). Em todas as atividades que exerceu, seu foco sempre esteve voltado para a criança. Em função de sua dedicação com este público, pode ser considerado precursor dos direitos e da autonomia das crianças. Durante toda a sua vida, lutou em prol dos direitos humanos da criança em todos os espaços em que elas se faziam presentes. Em 1910, fundou em Varsóvia um orfanato que durante a Segunda Guerra Mundial foi invadido pelo exército alemão. Na ocasião, ele teve a oportunidade de fugir, mas optou por não abandonar as crianças. Dessa maneira, no ano de 1942, ele, juntamente com os funcionários e as crianças do orfanato (em torno de 200), foram levados para o campo de concentração em Treblinka, local em que foram mortos.

Quadro 17:

A análise do Diário da Experiência é inspirada na dinâmica da pesquisa prospectiva (BOIS; BOURHIS; BOTHUYNE, 2011)*. Esta abordagem é um método que visa acompanhar o jovem pesquisador em todas as etapas da pesquisa, desde a formulação do título até a fase final de interpretação dos dados. Caracteriza-se por ser processual, em que cada etapa está relacionada com a anterior e com a posterior, a partir de um movimento amplificador. Ancora-se numa perspectiva antecipadora, voltada a revelar as potencialidades e os elementos constitutivos do objeto estudado antes mesmo de um contato com os dados, implicando na capacidade do pesquisador em antecipar as diferentes categorias associadas às questões de pesquisa. Esta dinâmica inicia-se com a construção do título, que engloba o campo teórico da Tese, chamada de massa crítica da Tese e o subtítulo, que informa: o contexto em que a pesquisa será aplicada, a população, o método de análise e, ainda, o objeto de estudo. Em seguida, passa-se à questão em que é definido o problema de pesquisa. Após, são apresentados os objetivos gerais que representam o resultado esperado para a questão de pesquisa, e os objetivos operacionais que orientarão as etapas seguintes, principalmente o guia de entrevista, o questionário, as instruções para redigir o Diário da Experiência (chamado de Jornal da Pesquisa) e a tabela classificatória. Depois do recolhimento dos dados, o pesquisador dedica-se à classificação a partir de categorias já definidas anteriormente e categorias emergentes – quando os dados revelam novos elementos que escapam da construção prospectiva (antecipadora). A etapa seguinte constitui-se pela análise fenomenológica, com a construção de enunciados que atribuem um sentido aos fragmentos selecionados, organizando-se da seguinte maneira: ficha de identificação do participante, organização geral de análise estruturada sobre as categorias prospectivas e emergentes. Tal organização segue a seguinte sequência: começa por uma curta introdução, segue o enunciado fenomenológico prospectivo, a transcrição dos dados puros (entre aspas e itálico) e sua referência (entre parênteses indicando a numeração da linha onde o dado encontra-se no Diário). Por fim, tem-se o agrupamento do conjunto de enunciados que vai permitir um movimento interpretativo, que integra a última etapa da abordagem prospectiva que é a análise a partir da perspectiva hermenêutica. Ao ser

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co-orientada pelo professor Danis Bois, tomei conhecimento da abordagem acima referida. Como eu já vinha de uma caminhada de pesquisa, havendo a necessidade de apenas fazer a análise dos dados empíricos, não foi possível seguir a estrutura proposta pela dinâmica prospectiva, nem eu tinha essa pretensão. Dessa maneira, busquei, juntamente com o professor, adaptá-la à minha pesquisa para fazer a análise do Diário da Experiência. Assim, realizei a análise classificatória a partir de três núcleos pregnantes definidos a priori. Em seguida, a análise sob a perspectiva fenomenológica. Finalizei, fazendo a interpretação dos dados empíricos, a partir da perspectiva hermenêutica, tendo como base a etapa anterior. * Referência: BOIS, D. BOURHIS, H. BOTHUYNE, G. La dynamique de recherche prospective: une approche catégorielle innovante et son application au récit de vie d‟une patiente ayant traversé l‟épreuve du cancer, 2011 (à Paraître en ligne). Texto a ser publicado.

Quadro 18: O uso da narrativa ficcional como um recurso de interpretação dos dados empíricos é inspirado no texto “Apontamentos sobre Polarizações Míticos-Simbólicas: matriciando a escrita (auto) biográfica de estudantes de pós-gradução” (2012), escrito por minha orientadora Lúcia Peres. Ela descreve uma espécie de conto para evidenciar a sua interpretação em torno dos fragmentos que compõem a escrita da história de vida de dois estudantes que são sujeitos de sua pesquisa de pós-doutorado e a relação que faz com seu objeto de estudo. Busco a linguagem ficcional como um recurso para mostrar a maneira que apreendi e as relações que faço entre os dados empíricos e o objeto de estudo.

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APÊNDICE B – CARTA-CONVITE PARA PARTICIPAR DA PESQUISA

Pelotas, 14 de abril de 2011

CONVITE

Vimos através deste, convidar as acadêmcias que fizeram a disciplina de

TEATRO E IMAGINÁRIO para participar, a partir do dia 25 de abril, do projeto de

doutorado provisoriamente intitulado “O Corpo Biográfico de acadêmicas do curso de

pedagogia: História de vida focada no trajeto escolar”, desenvolvido pela doutoranda

Andrisa Kemel Zanella. O projeto tem como objetivo realizar um estudo sobre as

memórias do trajeto formativo inscritas no corpo das acadêmicas do Curso de

Pedagogia da UFPel. Os encontros serão realizados semanalmente durante o ano

de 2011, às segundas-feiras das 17h às 19h (lugar ainda a ser definido), com rodas

de atividades variadas. Nestas rodas serão propostos atividades como: vivências

corporais e jogos teatrais a partir da criação de cenas verbais e não verbais da

escola. Também, serão utilizados fotografias e vídeos como outras possibilidades de

estar investigando as “marcas” que foram sendo impressas no corpo.

A participação de vocês é muito importante para o desenvolvimento do

projeto!

Gostaríamos que as que estiverem interessadas em participar, manifestem-se

o mais rápido possível, enviando um e-mail para [email protected],

sinalizando a aceitação do convite.

Atenciosamente,

Andrisa Kemel Zanella – Doutoranda em Educação

Profª. Drª. Lúcia Maria Vaz Peres – Orientadora da Pesquisa

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APÊNDICE C – CARTA DE CESSÃO

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ANEXOS

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204

ANEXO A – DIÁRIO DE EXPERIÊNCIA

ANEXO A1 - Diário da Experiência de L.

ANEXO A2- Diário da Experiência de Cm.

ANEXO A3 - Diário da Experiência de M.

ANEXO A4 - Diário da Experiência de C.

Figura 8 – Imagens dos Diários da Experiência das estudantes

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ANEXO A1 - Diário da Experiência de L. 1

2

25/04/2011 3

- Preocupação 4

- Vergonha 5

- Desconfiança 6

- Estranhamento 7

- Desatenção 8

- Leveza 9

- Alegria 10

- Libertação 11

- Pressa 12

- Paz 13

14

06/06/2011 15

- Foi muito bom brincar com o balão. Porém com o passar do tempo esgotei as 16

possibilidades de utilização dele. 17

Explorei o balão com o corpo por um tempo razoável, e com o passar do tempo 18

parecia que só estava ali eu e o balão. 19

20

“Atividade” última – voltando a ser criança 21

Foi emocionante eu representar um dia em especial da minha infância. Quando 22

estava pensando em como representar, comecei a lembrar de muitas coisas 23

sobre o dia representado que até então estavam esquecidos. 24

Uma coisa curiosa é que quando fui me representar dançando “Chiquititas”, 25

não consegui dançar mais que um pedacinho da música. Na época eu dançava 26

todas. E hoje só consigo uma pequena parte (mistura de uma música com 27

outra). 28

29

Escrita após assistir o DVD dos encontros 30

Primeiro encontro 25 de abril 31

Preocupação com a imagem do corpo; 32

Dificuldade em abaixar; 33

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34

Angústia; 35

Simplicidade e alegria; 36

Medo do Desequilíbrio; 37

Oportunidade de liberdade; 38

39

Segundo encontro 02 de maio 40

Tédio; 41

Ansiedade; 42

Tristeza; 43

Alegria e Esperança; 44

Satisfação; 45

46

Quarto encontro 06 de junho 47

Carinhosa e carente; 48

Afetiva; 49

Acolhedora; 50

Muita Alegria; 51

Sonhadora; 52

Leveza; 53

Despreocupação; 54

Flexibilidade; 55

Agressividade; 56

Felicidade; 57

Ludicidade; 58

Calmaria; 59

Muita alegria; 60

Saudade; 61

62

Quarto encontro 13 de junho 63

Pressa; 64

Descuido; 65

Vergonha; 66

Equilíbrio; 67

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Cuidado; 68

Integração; 69

Pressa. 70

71

Querida Andri, escrevi sobre como eu via meu corpo em cada cena. O que meu 72

corpo mostrava. Em geral, meu corpo foi se desinibindo aos poucos, mas 73

mesmo assim a preocupação com a imagem que ele passava foi constante. 74

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ANEXO A2 - Diário da Experiência de Cm. 1

25/04/2011 2

Gostei muito da experiência, embora esteja muito cansada, os momentos de 3

descontração foram ótimos senti meu corpo leve, consegui dar uma espécie de 4

“stop”, ei, descanse um pouquinho, relaxe, viva. Você está viva! 5

Gostei mesmo, bem legal e interessante, estimulador. Me senti eu mesma, 6

graças ao ambiente de respeito e consideração, parece que já conhecia as 7

pessoas do grupo a muito tempo. 8

Trabalhar com o hoje, com o que se tem, e não com o que poderia ser. 9

02/05/2011 10

É muito bom, sentir a sensação de liberdade. É mais difícil para as pessoas 11

expressarem-se com o corpo do que com as palavras, claro que não são todas. 12

Achei super legal a experiência. Pude observar a forma como cada colega 13

representou as suas vivências, as expressões durante as cenas, falam coisas 14

pra gente, sem que as pessoas precisem falar. Estou gostando muito, pra mim 15

é mais um grande aprendizado, gosto de coisas que movem as emoções. 16

06/06/2011 17

Cheguei atrasada na reunião pois estava em prova. Fiquei somente 18

observando a proposta da professora para as colegas. 19

Se eu voltasse a ser criança ao observar e refletir “sobre”, lembrei de algumas 20

coisas, e sinceramente não gostaria de voltar a ser criança, por uns instantes 21

eu me vi criança. 22

23

Impressões ao assistir o vídeo. 24

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209

25

Muitas vezes desejei ter sido como criança; 26

27

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210

Mas a vida me fez sentir como pássaro em cativeiro. 28

E mesmo nos lugares onde não haviam grades, me senti como que ainda 29

estivesse presa, embora toda liberdade estivesse ao meu alcance. 30

31

Dentro de mim sempre existiu a vontade imensa de seguir em frente, superar a 32

dura caminhada, e no percurso desta caminhada, descobri que é possível sim 33

desejar o grande voo, superar os limites. 34

O mundo não pára esperando que você resolva seus problemas e angústias, 35

seus medos, suas dores é preciso enfrentar a solidão das minhas próprias 36

dores e olhar ao redor, enxergar que não estou sozinha que há muitos iguais a 37

mim e ao vê-los descobri que posso sim, alcançar o grande voo em busca da 38

liberdade do meu ser. 39

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40

Aprendi durante a caminhada que; olhando o outro é que vejo que sou capaz 41

de ir além, e, é aí que, compreendo que o amor faz com que eu possa dar as 42

pessoas, aquilo que eles precisam e não aquilo que elas merecem (Thomas 43

Trasch). 44

Não sou capaz de viver sem a troca de experiências, não fomos feitos para 45

solidão das cadeias invisíveis, somos destinados a ser livres. 46

47

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212

48

Quanto ao trabalho 49

Gosto demais. Espero poder participar sempre, mesmo sabendo que em certos 50

momentos, não consigo expressar meus sentimentos de forma mais clara. 51

Ainda existem cadeias a serem abertas. 52

53

A importância do estudo 54

A importância do estudo e pesquisa na vida de todos nós, crescimento, 55

maturidade para enxergar a vida e os problemas de uma outra forma, até 56

mesmo, aqueles que parecem impossíveis de serem superados. 57

Trabalhar as memórias é uma ferramenta poderosa e indispensável à formação 58

do ser. 59

Espero alcançar resultados satisfatórios, não só para minha vida, mas para 60

enriquecimento profissional, e de alguma forma proporcionar a outros a riqueza 61

dessas experiências, colaborar para que este trabalho seja valorizado e 62

apreciado; o quanto é importante a singularidade de cada pessoa no processo 63

de crescimento e aprendizagem para vida. 64

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É como aquele comercial da televisão: “o que move o mundo não são as 65

respostas e sim as perguntas”. 66

Concordo plenamente, não é o agir que nos faz crescer, é o reagir que nos leva 67

a seguir em frente ou não. 68

Me sinto agradecida, por estar participando deste trabalho. 69

Obrigada! 70

71

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ANEXO A3 - Diário da Experiência de M. 1

25/04/2011 2

- Receio 3

- Preguiça 4

- Vergonha 5

- Reflexão 6

- Tensão 7

- Relaxamento 8

- Leveza 9

10

02/05/2011 11

Não fui no encontro 12

13

07/05/2011 14

Fui mas não sabia que o encontro seria às 17h30min. Fui embora. 15

16

06/06/2011 17

Atividade dos balões 18

Antes mesmo de ver que iríamos brincar com eles, escutei o barulho e já fiquei 19

tensa. 20

No momento em que tive que tocar no balão não me senti nem um pouco a 21

vontade, tenho pânico de balão. 22

Apenas consegui soprá-lo. Mesmo assim parecia que ele iria estourar a 23

qualquer momento. 24

Quando o peguei para brincar, como brincava quando criança, o virei e o 25

coloquei para dormir na mesa, o que eu fazia quando era pequena, só que o 26

colocava em cima do guarda-roupa. Mesmo vendo as colegas interagirem de 27

forma prazerosa com ele, tinha medo que eles estourassem. Não consegui 28

nem olhar. 29

30

Escrita após assistir o DVD dos encontros 31

Senti muita dificuldade para assistir o DVD, peguei várias vezes mas não me 32

animei nem a abrir se quer o envelope, pensando apenas na atividade do 33

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balão. 34

Quando consegui assistir, primeiro vi as fotos que estávamos fazendo 35

anotações nos cadernos. Senti saudades dos momentos que vivemos que 36

eram de descontração, fuga da realidade e do tempo corrido que vivo, tive a 37

oportunidade de fugir do mundo do “relógio”. 38

Lembrei de quanto esperava ansiosa para chegar o nosso próximo encontro, 39

louca para saber o que iríamos fazer, pois a cada encontro tínhamos um 40

mundo novo a percorrer. 41

Ter participado destes encontros me fizeram repensar e reviver momentos 42

importantes da minha vida, podendo até mesmo mudar muitas coisas na 43

mesma. Estava “trabalhando” apenas no automático sem perceber os 44

pequenos detalhes do dia-a-dia que poderiam ter sido melhor se tivesse olhado 45

mais para o meu eu, sem me importar com o que os outros iriam pensar. 46

Muito obrigada por ter me dado novamente esses momentos de me perceber 47

por completo e não como “mente”, ainda tenho que tentar achar o equilíbrio 48

entre corpo e mente, mas com certeza estou tentando. 49

Boa viagem, que consigas alcançar todos os teus objetivos, mas se não 50

conseguir alcançar 100% não esqueças, que nada é por acaso. 51

52

Ao assistir o DVD me tocou novamente no coração. 53

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54

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217

ANEXO A4 - Diário da Experiência de C. 1

25/04/2011 2

Eu escolhi estar aqui! 3

Eu estive aqui antes do meu corpo físico estar. 4

Uhuuu... 5

6

“O corpo fala” 7

- sente 8

- vibra 9

- emociona 10

11

- Conheci a Andrisa atriz! 12

Minhas pernas ainda tem dificuldade em soltarem. Mas meu rosto, meus 13

braços, meu quadril... meus olhos vibram. 14

Estou com fome. 15

Quero voltar!!! 16

Me sinto em casa. Parece que já conheço este lugar. Mas não da mesma 17

forma que na qualificação do Adriano. 18

Uhuuuu... 19

Não prestei atenção no que falavas no teu monólogo. Com todo o respeito, finei 20

meus olhos no teu corpo, no teu movimento. Ocupaste cada parte do palco. 21

Teus gritos! 22

Gostei, senti. 23

Era algo que vinha de dentro e se espalhava. 24

Queria ter rolado pelo chão. 25

Meu pulo, meu grito. Fiz o que sentia. Me sentia livre, de corpo aberto, não só 26

“de peito aberto”. 27

Em alguns momentos meu coração batia mais forte. Na hora da folha em 28

branco, na apresentação e no final quando fui falar. Foi uma batida legal de 29

sentir, mas não quis ficar presa a ela, senão o nervosismo que ficaria em mim. 30

Me tranqüilizei durante esses momentos. 31

Não gosto de receber uma folha em branco, nunca se sabe o que será 32

proposto. Não gosto desenhar. 33

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218

Por que me desenhei assim? 34

Por que não fiz só o nariz de palhaço? 35

Talvez alguém diga que me desenhei torta. 36

Eu afirmo que não! 37

O que parece ser torto, na verdade, é um corpo que busca novos movimentos, 38

outros rumos, outras atitudes, outra, outros... 39

Não significa que esqueci da “velha” C., significa que uma nova está 40

surgindo, pode ser também que essa nova já existisse, só tinha medo de 41

aparecer. Por que? Por que é mais fácil criar monstros do que nos assumirmos. 42

Como fui eu que criei esses monstros, também serei eu que os mandarei 43

embora, pois já não me pertencem mais. 44

Uma das coisas que mais ouço, mais ou menos assim: não importa o que 45

fizeram de mim, importa é o que eu vou fazer com o que fizeram de mim. 46

Ia falar sobre o que significava o meu movimento a respeito do teu monólogo, 47

mas desisti. Olhe a gravação e pense. Apesar de achar que já sabes o que 48

significa. 49

Engraçado é que vou escrevendo como se estivesse na minha frente. 50

Não estou relendo tudo. Na verdade, estou lendo o último parágrafo escrito e 51

depois sigo a minha escrita. 52

Não sigo uma ordem de assuntos, escrevo conforme as coisas vão me 53

ocorrendo. 54

02/05/2011 55

Não estava bem! 56

Queria que chegasse logo às 17h15min. 57

Talvez seja o único momento que esteja pensando sobre o meu corpo, que o 58

esteja sentindo. 59

Foi estranho o início, só eu e a Daiane, foi diferente. Depois chega a Dalva e a 60

minha barriga começa a se manifestar, foi engraçado. Até tu riu. 61

Como estava estufada de coisas, de sentimentos, senti dificuldade em me 62

soltar. 63

Ao contrário do 1º dia, dessa vez soltei mais as pernas e bem menos os 64

braços. 65

Queria ficar no chão, não conseguia explorar a parede com as mãos e os 66

braços, somente com os olhos. 67

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219

Meu pulo! Amei! 68

Queria saber como tinha feito. Sempre tive vontade de pular dobrando as 69

pernas e dessa vez eu fiz. 70

Gostei de rolar no chão. Parecia que eu estava naquele espaço e ele estava 71

em mim. 72

Me sinto a vontade em falar no grupo. Não tenho medo, nem vergonha. 73

Gosto das tuas provocações. Sabes provocar. Tocas no ponto que deve ser 74

tocado e de forma tranqüila, fazendo que eu tenha vontade de falar, sendo 75

mais natural. A forma que falas e o tom da tua voz ajudam. 76

Fazes uma fala tranqüila, não menos intensa, significativa e profunda. 77

Fiz no desenho uma “placa de pare” como se o meu corpo quisesse parar. No 78

entanto, não é verdade. Meu corpo pede por movimentos. O que às vezes 79

acontece, é quando ele vai se movimentar, as marcas do passado, as placas 80

de pare” paralisam o meu corpo 81

... 82

Te senti com pressa semana passada. 83

A semana passada que me refiro é este encontro. 02/05/2011 84

85

09/05/2011 86

1ª cena: NÃO! 87

2ª cena: LIBERDADE 88

3ª cena: CAMINHADA 89

90

Enxergo um corpo que ouvi não. No entanto, ele faz movimentos. Meu corpo 91

me diz: VAI! 92

Começo dizendo que entenderia e não reclamaria, se não pudesse estar neste 93

encontro. Mas confesso, não seria uma segunda-feira “completa”. 94

Fiquei feliz que não trabalhamos diretamente com o desenho. 95

96

Hoje foi um encontro importante. 97

Sabes quando se chega em casa, tira o sapato, não se preocupa mais com a 98

roupa, com o cabelo? Pois é... foi assim que me senti. Me sinto em casa. 99

Ao ver a Gisele, minha grande dupla. Se movimentando, foi muito importante. 100

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Ela diz ter um corpo rígido, tenso e estressado, mas esse corpo vêm fazendo 101

movimentos. 102

A cena que criamos, foi ela que fez. Eu só dei algumas sugestões. Foi ela 103

quem começou a falar, dando início. Meio e fim para cena. Achei importante 104

valorizar a ideia de quem diz não ter criatividade para o teatro. Não acho que 105

me omiti, mas foi uma forma que encontrei para ela perceber de que também é 106

capaz . até porque, quanto criamos projetos com Teatro, sempre “sobra” pra 107

mim. Pois sabe que gosto, que faço com prazer. Por vezes penso que estou no 108

Curso errado, ou no menos adequado. 109

Gostei dos movimentos. Por vezes sabia para onde o dedo da Gisele iria, mas 110

gostava quando fazia movimentos inesperados. 111

Não pode enxergar a ponta do nariz? O meu nariz é grande. 112

Não conseguia andar devagar. Não foi à toa que fiz levemente um corte 113

embaixo do pé e rasguei minha meia. 114

A Andrisa entrou no jogo. Fiquei surpresa. Não só por entrares no jogo... fiquei 115

surpresa. Não só por entrares no jogo, mas porque eu iria jogar contigo. 116

Não lembro da pergunta, acho que é mais ou menos, o que eu faria se fosse 117

criança? 118

Sair pulando. 119

Mas ainda acho que eu iria nos aniversário. Meus pais não me levavam. 120

Lembro que uma vez tinha um aniversário na segunda casa depois da minha. 121

Fui sozinha. A comida passava e eu não pegava. Chamaram a mãe, ela sentou 122

do meu lado e começou a me dar salgadinhos. As pessoas perguntavam o que 123

eu tinha, e ela respondia que era vergonha. Será que era só vergonha? 124

Será?Era esquisito as pessoas me olhavam como se eu não fizesse parte do 125

mesmo mundo que elas. 126

Também não lembro da outra pergunta, era em relação ao corpo. 127

Me sinto livre naquele lugar, por isso, braços abertos, pernas abertas e um 128

sorriso. 129

Não gostei de ver os vídeos, e quando repetiste... ai! Por quê? Ainda não tenho 130

minha resposta bem formada? 131

Quando vais ler o diário? 132

Realmente, essa pergunta me acompanha desde o 1º encontro. Que agonia! 133

Escrevo pra quem? Me senti aliviada quando pegaste o caderno. Eu tinha 134

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certeza de que não viria nada nela, mas mesmo assim esperava. 135

Entramos e saímos da escola sabendo que a cada trabalho, prova, desenho o 136

professor vai deixar a sua marca, pode ser de caneta vermellha ou azul. E não 137

é diferente na faculdade. Mas contigo é. 138

Foi assim na tua disciplina e está sendo assim agora. É estranho! 139

Tu só nos ouve. 140

Não foi por menos que quando falaste no 2º encontro, no final, sobre o que o 141

meu corpo estava dizendo (e estava me olhando muito compenetrada) que 142

percebi , que o meu corpo dizia “pare”. 143

Queria que viste meu corpo enquanto escrevo esta parte... dou cada pulo na 144

frente do computador, e sentada na cadeira. 145

Bom... 146

Acho que sei teu objetivo da pesquisa. Mas qual será o meu objetivo? 147

Estou participando porque gosto de Teatro? Porque gostei da tua disciplina? 148

Por que gosto de ti? Por ser tudo isso. 149

Qual o teu retorno pra nós? 150

Também trabalhas o teu corpo? 151

152

06/06/2011 153

-Balão 154

- Vela 155

156

Começo dizendo que gostei do aquecimento. Além de aquecer é uma forma de 157

sentir o corpo, tocá-lo. 158

Andar pelo espaço – foco. Gosto dessa atividade. 159

160

Balão: 161

Recebi o balão com entusiasmo. O grande ponto pra mim, foi quando disseste 162

para brincar com o balão que nem quando eu era criança – acho que foi mais 163

ou menos isso, não lembro. 164

Neste ponto começou o meu problema. Lembro que gostava de jogar o balão 165

para o alto, de enchê-lo, de fazer como se fosse uma bola de futebol, de 166

estourá-lo. 167

Por que me travei? 168

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Adoro balão! 169

Sinto que na hora eu tinha a resposta e, agora, parece que não mais. Estou 170

confusa. 171

Por fim, já estava cansada. 172

Sabe o que me lembrei? 173

174

Lembras daquela aula da casa? A minha reação. 175

Um dia depois de veres a minha foto no Projeto de Extensão, disseste que tive 176

a mesma atitude da foto, da outra vez na tua aula. E agora, foi isso de novo? 177

Criança mimada e filha única? (Por favor! Não me entenda mal, não fique 178

braba. Mas do início até agora é só o que tenho ouvido. Estou cansada, eu não 179

sou só isso. Também tenho coisas boas). 180

Não quero mais escrever sobre isso, qualquer coisa depois eu escrevo. 181

Na verdade, quero falar do autorretrato. Me sinto uma bola bem cheia louca 182

para esvaziar. 183

Vela 184

Eu gostei desse momento. Por um instante acompanhei a vela. Mas o teu olhar 185

falava mais do que a chama. Então quando estavas na minha frente era pra os 186

teus olhos que eu olhava. Depois, fui seguindo a sombra que a vela fazia. 187

Desejo! 188

Ser criança! 189

Fui entrando na história que falavas. Fui sentindo uma força. Fechei os olhos, 190

segurei as minhas mãos. Sentia o desejo se realizando. 191

Chorei! 192

Que nó! 193

Eu tinha 4-5 anos. Era um sábado que eu estava com a minha mãe. Ela disse 194

que eu iria no aniversário dos meus vizinhos. Fui no aniversário. Tinha 195

chapeuzinho, balão, bolo, um monte de criança. Na volta da mesa do bolo, 196

todas as crianças reunidas cantando parabéns. Tinha salgadinho, e eu comi. 197

Estava gostoso, depois fui brincar com os outros. 198

Gosto de velas! 199

200

Sobre o balão e as outras coisas escrevi na segunda mesmo, talvez por isso 201

esteja tão carregada minha escrita. 202

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Hoje (13/06) iria reescrever sobre o balão, ia arrancar a folha e reiniciar. Fico 203

com certo receio do que vais pensar. Mas mesmo assim, resolvi não arrancar a 204

folha. 205

Escrevi em um momento de incomodação, e até, como um desabafo. Agora, 206

um pouquinho mais tranqüila (porque estou com algumas coisas trancadas, 207

travadas) resolvi escrever outra coisa, a partir também de uma reflexão. 208

Por vezes é mais difícil lidar com pessoas, objetos que gostamos do que as 209

coisas que não são tão importantes nas nossas vidas. Será que não foi isso 210

que aconteceu? Talvez isso a psicanálise responda. 211

Quando era criança não fazia grandes movimentos com balões, por isso, fiz o 212

que fiz. 213

A tua participação nos jogos. 214

De uma forma ou de outra, penso que sempre te falei da importância de 215

participares dos jogos, desde as tuas aulas. 216

Não lembro que proposta era, mas fizeste uma Andrisa criança que se mexia, 217

se movimentava, mas me parece que, quando ouvia algum barulho, te encolhia 218

e ficava quieta. Lembrei de mim. Por um instante eu vi a C. criança. Os 219

teus movimentos, os teus olhos parece que eu já conhecia. 220

Gosto quando participas, mas confesso que estranho um pouco. 221

222

Me senti tranqüila no final por não estares guardando algum equipamento e 223

nem com pressa nos teus movimentos. 224

13/06/2011 225

Queria falar do autorretrato. 226

Gostei da conversa! Foi muito boa. 227

Juntar a minha história com a da Cm. foi interessante. 228

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233

1º encontro 234

Como já relatei, em outro momento, este encontro foi fantástico. 235

236

2º encontro 237

- Ando mais perto dos cantos 238

1º desenho 239

Olhando as imagens parece que tive um afastamento, encolhi os meus braços, 240

olhar parece longe, mas está perto(no desenho virado) 241

242

3º encontro 243

O melhor até agora! 244

Nas cenas perco a noção do tempo 245

Se eu voltasse a ser criança... pulos e braços aberto. 246

Tens alguma gravação ou foto quando a Gisele e eu estávamos no jogo do 247

foco? 248

249

4º encontro 250

Autorretrato 251

Foi logo após o balão 252

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Desde que começamos os encontros, sabia que em algum momento, faríamos 253

o autorretrato. Esperava ansiosa. Quando chegou o dia, queria sumir. O que, 254

como fazer? Tive muitas idéias, mas nenhuma me agradava. Na hora da 255

apresentação todas estavam prontas, menos eu. Disseste então, que eu seria 256

a primeira, não esperava por isso, mas fui. Gostei do desafio! 257

Chegando no palco, a única coisa que queria fazer era sentar no chão... 258

Sentei... e, agora? Tudo o que fiz, não pensei, simplesmente fui fazendo. 259

Depois pensando, talvez naquela caixa estivessem as minhas coisas 260

guardadas que, por alguma razão, foram mobilizadas. Não foi fácil. Sai muito 261

incomodada, inquieta. Terminando este encontro, disseste que não 262

precisávamos escrever sobre o autorretrato porque conversaríamos no próximo 263

encontro. Me sentia cheia, queria e precisava falar, mas pra quem? Esperei 264

ansiosamente a próxima semana. Finalmente chegou, mas a conversa foi 265

outra. Então, agora vou escrever aqui (já estou). 266

Tirei da caixa um óculos e parece que ele não serve mais. Fui tirando coisas 267

que nem sei o que eram. O nariz de palhaço. Achá-lo no fundo de uma caixa, 268

colocá-lo e sorrir. Senti um alívio. Mas, por mais que quisesse ficar com ele, é 269

como se não poderia naquele momento. Ainda me pergunto por que entre 270

tantas coisas que poderiam sair da caixa, saiu o nariz de palhaço? Por que 271

jogo a caixa com o que ainda tinha dentro e fico só com o nariz? 272

273

- Brincando de boneca e bicicleta. 274

275

Irmãos 276

Até a adolescência sonhava dormindo e acordada com um irmão. Quando 277

criança as pessoas me perguntavam se eu queira ter irmãozinhos, às vezes 278

respondia que sim, às vezes que não. 279

Foi estranho entrar na escola e os colegas perguntavam quanto irmãos eu 280

tinha. Fui respondendo que nenhum. Era um espanto para eles. Como 281

nenhum? Sempre quis ter um irmão. Mas não dependia de meu querer. Como 282

não tive irmãos de sangue, acho que acabei fazendo dos meus amigos meus 283

irmãos. Para mim, irmão cuida, protege, briga, mas acima de tudo ama. 284

... 285

Uma vez falei que não me imaginava mãe, mas me vejo sim. Mas quero pelo 286

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menos dois filhos. Talvez por saber que é ser filha única. É bom, mas também 287

ruim. 288

289

- O que faço com meu corpo PRESSA. 290

291

5º encontro 292

- Lembrança da infância – rua andar de bicicleta 293

- Tenho alergia a formiga 294

- Adoro inverno! 295

Um dos meus sonhos é conhecer a neve. 296

O calor me inquieta, me sinto mal. 297

- Se eu me tornasse criança meu corpo -> pularia, correria, gritaria... 298

- Minha mãe não puxava meu cabelo. Fui pela história da Cm. 299

300

6º encontro 301

O meu jeito de sentar. 302

Neste dia gostei de desenhar. 303

Quando tudo começou não imaginava minha reação com o término dos 304

encontros. Mas neste dia, sem saber eu sabia que para aquele momento, 305

nossos encontros terminaram. Estava tranqüila. Eu te senti séria, um pouco 306

fechada e calada. 307

308

Na 1º foto me vejo tirando algo de mim. Na segunda, a liberdade, estava ali 309

livre. 310

Observa o meu desenho, olhando meus braços e minhas pernas. Adorei o 311

cabelo. 312

Desde a primeira vez que falaste da tua pesquisa, eu sabia sobre o que se 313

tratava. Mas acho que o que eu queria eram aquelas aulas. 314

Não sou a mesma desde o 4º encontro. Tive vontade de desistir. A segunda- 315

feira ficou ainda mais pesada pra mim. Mas não sou de desistir e pretendo ir 316

até o final. 317

Não sei como serão os próximos encontros, principalmente minha reação, 318

mas... 319

VAMOS LÁ! 320

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321

Parece que não trago muitas coisas sobre minha infância escolar, mas talvez 322

esteja aí. 323

Tenho dúvidas. 324

325