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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO
MESTRADO EM EDUCAÇÃO
GABRIELA PEREIRA DA CUNHA LIMA
A EDUCAÇÃO EM MINAS É UMA GRANDE EMPRESA
Reforma curricular, avaliação e subjetividade docente
MARIANA
2015
GABRIELA PEREIRA DA CUNHA LIMA
A EDUCAÇÃO EM MINAS É UMA GRANDE EMPRESA: Reforma curricular, avaliação e
subjetividade docente
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação – Mestrado da Universidade Federal de
Ouro Preto como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Educação.
Área de concentração: Instituição escolar, Formação e Profissão
Docente
Orientador: Prof. Dr. Cláudio Lúcio Mendes
Instituição financiadora: CAPES/ CNPq.
Gabriela Pereira da Cunha Lima
A EDUCAÇÃO EM MINAS É UMA GRANDE EMPRESA: Reforma curricular, avaliação e
subjetividade docente
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado da
Universidade Federal de Ouro Preto como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em
Educação.
Aprovada pela banca examinadora constituída pelos professores:
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Prof. Dr. Cláudio Lucio Mendes (orientador)
Universidade Federal de Ouro Preto
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Prof. Dr. Marcelo Santos de Abreu
Universidade Federal de Ouro Preto
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Prof. Dr. Álvaro Luiz Moreira Hypólito
Universidade Federal de Pelotas
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Profa. Dra. Rosana Areal de Carvalho (suplente)
Universidade Federal de Ouro Preto
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Profa. Dra. Marina Alves Amorim (suplente)
Fundação João Pinheiro
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RESUMO
Neste trabalho, problematizamos os efeitos das políticas educacionais neoliberais sobre a
subjetividade docente, especialmente por meio dos dispositivos curriculares e de avaliação.
De modo mais específico, analisamos a reforma educacional promovida no estado de Minas
Gerais (2003 – 2014), nos atentando aos discursos e práticas curriculares e avaliativas que se
dirigem aos professores e intentam controlar suas condutas. No primeiro capítulo justificamos
o emprego da noção foucaultiana de governamentalidade como ferramenta teórico-
metodológica, o que nos possibilitou compreender os mecanismos e as estratégias postos em
ação pela reforma mineira como exercícios de poder ao mesmo tempo disciplinadores e
performativos. No segundo apresentamos o programa de reforma do Estado instituído pelo
governo de Minas Gerais a partir do ano de 2003, intitulado Choque de Gestão, apontando os
aspectos da governamentalidade neoliberal que lhe serviram de base, bem como seus
desdobramentos para a educação. O terceiro capítulo trata dos impactos da reforma curricular
empreendida no contexto do Choque sobre a subjetividade docente, que instituiu os
Conteúdos Básicos Comuns para toda a rede estadual. O quarto e último capítulo analisa o
dispositivo avaliativo articulado em torno do Sistema Mineiro de Avaliação da Educação
Pública, com foco nas estratégias e tecnologias de controle e conduta do trabalho docente.
Concluímos reforçando a importância de uma crítica atenta e permanente às reformas
educacionais neoliberais, que agem no sentido de transformar a docência em um fazer
pautado pelos preceitos da utilidade, da eficiência e da competitividade.
Palavras-chave: Governamentalidade. Currículo. Avaliação. Neoliberalismo. Subjetividade
docente.
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ABSTRACT
In this work, we inquiry the effects of neoliberal educational policies on teacher's subjectivity,
especially through the curriculum and assessment devices. More specifically, we analyze the
educational reform promoted in the State of Minas Gerais (2003 - 2014), considering the
speeches, curriculum and assessment practices that address the teachers that intend to control
their conduct. In the first chapter we justify the use of Foucault's notion of governmentality as
a theoretical and methodological tool, which enabled us to understand the mechanisms and
strategies put into action by the “mineira” reform as an exercise of power and at the same time
disciplinary and performative. The second shows the State reform program instituted by the
government of Minas Gerais since 2003, entitled `Management of Shock`, pointing aspects of
neoliberal governmentality that served as its basis, as well as its consequences for education.
The third chapter deals with the impact of curriculum reform undertaken in the context of
Shock on the subjectivity, through which were instituted Common Basic Contents for the
entire State system. The fourth and final chapter analyzes the evaluation device articulated
around the “Mineiro Assessment System of Public Education”, focusing on strategies of
control and conduct of teaching. We conclude reinforcing the importance of a close and
permanent critique of neoliberal educational reforms, which act to transform teaching guided
by the principles of utility, efficiency and competitiveness.
Keywords: Governmentality . Curriculum . Assessment . Neoliberalism. Teacher's
subjectivity .
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ADI - Avaliação de Desempenho Individual
BDMG - Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais
BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento
BIRD - Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento
BM – Banco Mundial
CAED - Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação
CBC – Conteúdo Básico Comum
CEALE - Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita
CRV - Centro de Referência Virtual do Professor
CEPAL - Comissão Econômica para América Latina e Caribe
CNE - Conselho Nacional de Educação
E.F. – Ensino Fundamental
E.M. – Ensino Médio
ENADE - Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes
ENCCEJA - Exame Nacional para a Certificação de Competências de Jovens e Adultos
ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio
FAPEMIG – Fundação de Apoio à Pesquisa de Minas Gerais
FAPESP – Fundação de Apoio à Pesquisa de Minas Gerais
FMI – Fundo Monetário Internacional
GDP – Grupo de Desenvolvimento Profissional
INEP – Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos
LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
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MARE - Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado
MEC – Ministério da Educação e Cultura
MBC - Movimento Brasil Competitivo
OSCIP - Organização da Sociedade Civil de Interesse Público
OCDE - Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico
PAAE - Programa de Avaliação da Aprendizagem Escolar
PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais
PEP - O Projeto de Educação Profissional
PIP - Programa de Intervenção Pedagógica
PMDI - Plano Mineiro de Desenvolvimento Integrado
PPAG - Plano Plurianual de Ação Governamental
PPP - Parceria público-privada
PROALFA - Programa de Avaliação da Alfabetização
PROEB - Programa de Avaliação da Educação Básica
PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira
PUC – Pontifícia Universidade Católica
SAEB - Sistema de Avaliação da Educação Básica
SAEP - Sistema Nacional de Avaliação do Sistema Público
SEE – Secretaria de Estado de Educação
SEPLAG - Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão
SIAPE - Sistema de Ação Pedagógica
SIMAVE - Sistema Mineiro de Avaliação da Educação Pública
SINAES - Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior
STR - Sistema de Troca de Recursos Educacionais
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UEMG – Universidade do Estado de Min as Gerais
UFJF – Universidade Federal de Juiz de Fora
UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais
UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas
UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto
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AGRADECIMENTOS
Ao meu pai, Tuica, parceiro de sonho e de luta, pela aposta permanente em meus
projetos. À minha mãe, Neisa, por me ensinar a força do trabalho honesto, vigoroso e
contínuo. Às minhas filhas, Manuela, Teresa e Amália, que à medida em que foram chegando,
descortinaram para mim um novo mundo, muito mais belo, potente e humano. Obrigada
meninas, por me convocarem com tanta força e doçura para a batalha da vida.
Ao Rafael, companheiro de todas as horas, agradeço a companhia nas madrugadas de
estudo, a compreensão de minhas tantas ausências e as palavras de apoio e incentivo ao longo
do caminho.
À família Ouro Preto, amigas-irmãs com as quais tenho o privilégio de experienciar
uma amizade: Marlene, Tays, Deia e Gislaine. Nossas prosas e cafezinhos foram verdadeiros
oásis de alegria nos momentos de tensão e medo. À Paulete, prima querida, pelos papos no
quintal de casa, sentadas no chão com os pés na terra e a cabeça na lua, bem ao nosso estilo.
Aos companheiros do Núcleo de Estudos Potentia, Educatio e Libertas (NEPEL) pelas
discussões e trocas que tanto contribuíram para a construção desse trabalho. Agradecimento
especial aos queridos Mariana, Rondon e Luana, irmãos mais velhos da “família Mendes”:
levarei vocês pra sempre no coração!
A turma 2103 do Programa de Pós-graduação da UFOP: tenham certeza de que nossas
aulas, papos no redondo, aventuras em congressos (e foram muitas!) estão arquivadas com
muito esmero no cantinho mais precioso da memória. Abraço especial à Elô pelo olhar atento
e exigente na etapa final de revisão do trabalho.
Ao professor Cláudio Lúcio Mendes, por fazer do mestrado uma experiência profunda
e transformadora. Obrigada por ser, além de um orientador generoso, um grande amigo para
todas as horas. A todos os professores e professoras da rede estadual de Minas Gerais, aos
quais esse trabalho se dedica como ferramenta luta.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 14
1. GOVERNAMENTALIDADE NEOLIBERAL E EDUCAÇÃO NO
BRASIL
21
1.1. A governamentalidade como ferramenta analítica 21
1.2. Uma breve história do neoliberalismo 24
1.3. Políticas educacionais neoliberais no Brasil 33
1.4. A reforma educacional e suas tecnologias: impactos sobre a
subjetividade docente
37
2. “MINAS É UMA GRANDE EMPRESA”:
GOVERNAMENTALIDADE NEOLIBERAL E EDUCAÇÃO EM
MINAS GERAIS
42
2.1. Estado Gerencial, mercado e sociedade: um novo equilíbrio de
forças
2.2. Choque de gestão: ações e objetivos
2.3. A Educação por resultados
2.4. Eixos da Reforma Educacional: gestão, avaliação e autonomia
3. A REFORMA CURRICULAR MINEIRA
3.1. A centralidade do currículo nas reformas educacionais neoliberais
3.2. O processo de elaboração e implementação dos Conteúdos
Básicos Comuns em Minas Gerais
3.3. A Reforma curricular mineira e os processos de subjetivação
docente
4. “AVALIAR PARA AVANÇAR”: O DISPOSITIVO
42
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AVALIATIVO EM MINAS GERAIS
4.1. A centralidade da avaliação nas políticas educacionais neoliberais
4.2. Sistema Mineiro de Avaliação (SIMAVE): estrutura e
funcionamento
4.3. O Dispositivo avaliativo mineiro e os processos de subjetivação
docente
CONCLUSÃO: NOTAS SOBRE A RESISTÊNCIA
REFERÊNCIAS
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88
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14
INTRODUÇÃO
A resposta certa, não importa nada: o essencial é
que as perguntas estejam certas.
Mário Quintana
Este texto se configura como uma Dissertação de Mestrado desenvolvida no Programa
de Pós-graduação em Educação, do Departamento de Educação, da Universidade Federal de
Ouro Preto. Inscrito na linha de pesquisa Instituição Escolar, Formação e Profissão Docente,
este trabalho tem a reforma educacional promovida em Minas Gerais entre os anos de 2003 e
2014 como objeto de investigação, que, problematizado, pode contribuir com as discussões do
campo das políticas públicas, do currículo, da avaliação e do trabalho docente.
O conjunto de questões que analisamos emergiu como um problema quando, ainda no
ano de 2007, ingressei como professora na rede estadual de Minas Gerais. Naquele momento,
recém licenciada em História pela Universidade Federal de Ouro Preto, pouco sabia sobre as
condições, os entraves e o quadro histórico mais amplo que configuram a docência brasileira
na contemporaneidade, mais especificamente no contexto mineiro. Além dos saberes e
(poucos) fazeres que havia experimentado nas chamadas “disciplinas de Educação” cursadas
durante a licenciatura, trazia, na bagagem, a memória dos professores com os quais havia
convivido nos ensinos Básico e Superior.
Assim, munida de pouquíssima experiência e de alguns fragmentos de teoria, foi com
grande espanto e medo que recebi as primeiras “instruções” necessárias a um ingressante na
rede estadual mineira: havia um currículo mínimo obrigatório a ser seguido e também um
conjunto de avaliações que a ele se atrelava. Com o passar do tempo, fui percebendo que
esses dispositivos (currículo e avaliação externa) tornavam-se cada vez mais importantes no
nosso dia a dia. Tornava-se evidente, para mim, que estávamos vivendo a tentativa de
instauração de uma nova cultura e ética docentes, na qual os Conteúdos Básicos Comuns e o
Sistema Mineiro de Avaliação exerciam papel preponderante.
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Não demorei também a perceber que a angústia e a sensação de incerteza por mim
experienciadas eram também compartilhadas por meus colegas de trabalho. Em nossas
conversas durante as reuniões, nos intervalos e cafés, não apenas o posicionamento da escola
no ranking estadual (cada vez mais visibilizado e anunciado à sociedade como um medidor da
qualidade da escola e, consequentemente, do nosso trabalho), como também as implicações
econômicas que a engenharia da reforma impunha às nossas vidas (em forma de bonificações
por produtividade) eram pautas constantes. Notava que o sentido de ensinar e da própria
Educação estava se deslocando: não havia espaço para discutirmos as especificidades de
nosso contexto de atuação, bem como os temas e conteúdos relevantes a ele. Tudo parecia
deslizar, silenciosamente, em direção às metas e resultados estabelecidos pelo governo
estadual.
Vale dizer que não só coisas externas a nós estavam se modificando (como a estruturas
dos currículos, métodos avaliativos e planos de carreira e remuneração), mas também a
relação que se estabelecia entre os sujeitos escolares e no interior de cada um deles. Os
elementos trazidos pela reforma educacional promoviam não apenas mudanças na estrutura
organizacional das escolas e do trabalho docente, mas também poderosos processos de
subjetivação dos professores, que intentam transformá-lo no docente competitivo, pragmático
e autogerido que a governamentalidade neoliberal potencializa. Assim, o desejo de
compreender melhor a ação dos dispositivos curriculares e de avaliação sobre subjetividade
docente me trouxe a essa pesquisa.
À medida que fomos nos aproximando dos autores com os quais dialogamos durante o
percurso investigativo, especialmente Michel Foucault e Stephen Ball, compreendemos que as
mudanças e demandas que nos atravessavam no contexto de Minas Gerais deviam ser
interpretadas como parte de um fenômeno histórico mais amplo ao qual, no âmbito deste
trabalho, damos o nome de governamentalidade neoliberal. A emergência dessa forma
específica de governar produz efeitos no campo da Educação, de sua razão política e
tecnologias de governo. Não por acaso, as reformas educacionais promovidas em países como
Brasil, Espanha, Inglaterra, Estados Unidos e Argentina apresentam tantas similitudes
(MOREIRA, 1996), e os mesmos especialistas dali estão a ditar caminhos acolá.
Muitos autores têm trabalhado a importância dos fenômenos de recontextualização dos
discursos e das políticas hegemônicas em contextos específicos, nos atentando para o fato de
que
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a criação das políticas nacionais é, inevitavelmente, um processo de “bricolagem”;
um constante processo de empréstimo e cópia de fragmentos e partes de ideias de
outros contextos, de uso e melhoria das abordagens locais já tentadas e testadas, de
teorias canibalizadoras, de investigação, de adoção de tendências e modas e, por
vezes, de investimento em tudo aquilo que possa vir a funcionar (BALL, 2001, p.
102).
Reconhecemos a pertinência de trabalhos dessa natureza, que reforçam a importância
das tradições históricas, locais e regionais, nos processos de elaboração e adaptação de
políticas públicas para a Educação. Entretanto, o que buscamos identificar neste trabalho são
os “aspectos comuns na diferença” (BALL, 2001, p. 103), as formas de unidade articulada
que constituem as políticas educacionais, inseridas em estratégias de reformas genéricas que
articulam um conjunto de tecnologias de políticas que produzem novos valores, novas
relações e novas subjetividades nas arenas da prática.
Nesse sentido, propomos uma reflexão acerca de algumas características marcantes
das políticas públicas para a Educação promovidas pelos estados neoliberais, especialmente
em torno de seus efeitos sobre os processos de subjetivação docente. Partimos da ideia de que
as práticas governamentais neoliberais tendem a enquadrar todos os objetos sob a ótica da
economia, dilatando o campo da análise econômica para campos tradicionalmente
considerados como não-econômicos. Mais do que simplesmente analisar em termos
econômicos diferentes fenômenos sociais, os governos neoliberais agem no sentido de
interferir na conduta dos indivíduos, para que também eles passem a orientar suas vidas
pautados pelos preceitos da utilidade, da eficiência e da performatividade. Argumentamos
que, cada vez mais, somos levados a pensar sobre nós mesmos como ‘sujeitos-empresa’,
empreendedores de nossa própria vida, discurso que vem atravessando a Educação e
conformando suas práticas.
Interessa-nos saber: que tipo de professor a governamentalidade neoliberal pretende
construir, e quais são os conhecimentos e práticas docentes que valoriza e estimula? Para
responder a essa questão, buscamos compreender os discursos legitimadores e modos de
funcionamento de dois dispositivos centrais às reformas neoliberais: o currículo e a avaliação.
De modo especial, nos atentamos aos efeitos produzidos por esses dispositivos sobre a
subjetividade docente, partindo do pressuposto de que o sujeito é um efeito da linguagem, dos
textos, do discurso, da história, dos processos de subjetivação (SILVA, 1999).
Na perspectiva teórica pós-crítica na qual nos inserimos, nos propomos a indagar e
desnaturalizar determinados regimes de verdade que instituem maneiras de ver, de agir e de
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ser no campo educacional (ANADON, 2012), conformando subjetividades docentes
específicas. Nesse sentido, não nos comprometemos a prescrever as melhores e mais
verdadeiras formas de organizar currículos, de organizar e de proceder em relação às práticas
avaliativas de nosso tempo (PARAÍSO, 2004). Ao contrário, empreendemos uma crítica às
metanarrativas, às explicações universais que se pretendem completas e plenas. Duvidamos
do instituído, das saídas e respostas que desejam dar a todos e a tudo um sentido fixo e
homogêneo.
É justamente contra o movimento de padronização, estandardização e
performatividade operado pela governamentalidade neoliberal que nos insurgimos nessa
pesquisa. Queremos, com esse exercício, escapar das lógicas identitárias vigentes, abrindo
caminhos para outras formas de fazer e pensar a Educação. O pensamento que desenvolvemos
deseja estar a serviço da potência criadora da vida; desejamos, por meio dele, desestabilizar as
formas de razão que se pretendem absolutas e terminais.
O percurso da nossa pesquisa está relatado em cinco capítulos. No primeiro, intitulado
Governamentalidade neoliberal, Educação e currículo no Brasil, buscamos interlocutores e
ferramentas analíticas que possam nos auxiliar a construir o nosso objeto, conformando, ao
mesmo tempo, uma forma de olhar para o neoliberalismo e de fazê-lo perguntas. Seguindo a
trilha teórico-metodológica aberta por Michel Foucault, consideramos que o melhor a fazer é
investigar empiricamente as mudanças em curso, afim de compreender a constituição do
sujeito a partir de práticas concretas. Nesse sentido, a noção foucaultiana de
governamentalidade nos foi de grande valia. Ao empregá-la, examinamos as formas pelas
quais a verdade é produzida na esfera educacional, analisando a razão política e as tecnologias
de governo mobilizadas para essa produção.
Para melhor situarmos a emergência da governamentalidade neoliberal, retornamos ao
contexto histórico que lhe deu possibilidade de existência. Damos especial atenção à vertente
norte-americana, concebida em linhas gerais pelos representantes da Escola de Chicago.
Problematizamos o neoliberalismo como uma maneira de ser e pensar, considerando-o como
“um método de pensamento, uma grade de análise econômica e sociológica” (FOUCAULT,
2008, p. 301). A grade de análise neoliberal generaliza a forma do mercado às esferas sociais,
políticas e culturais, instaurando um tribunal econômico permanente, ao qual todas as
dimensões coletivas e individuais da existência devem se submeter.
Desse modo, argumentamos que o sentido da Educação vem se deslocando do campo
dos direitos sociais para o campo da economia, atrelando as políticas educacionais à lógica e
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às demandas do mercado capitalista. Nesse contexto, a natureza do trabalho docente se altera
substancialmente: os professores não apenas devem produzir em seus alunos as aptidões que
podem se transformar em fluxos de renda, mas devem repensar o próprio fazer como um
processo contínuo e interminável de investimento, inovação e competitividade. Tais processos
de subjetivação de cada um como empreendedor de si mesmo são mecanismos importantes da
governamentalidade neoliberal, que intenta produzir sobre todos a habilidade de se
autogerenciar e promover o sucesso/qualidade de sua própria vida.
O segundo capítulo, “Minas é uma grande empresa”: governamentalidade neoliberal
e Educação em Minas Gerais, apresenta o projeto de reforma do Estado de Minas Gerais
intitulado “Choque de Gestão”, com base no qual o governo mineiro se alinha à
governamentalidade neoliberal no que se refere à política de regulação de serviços públicos.
Iniciado em 2003 e em pleno desenvolvimento ainda hoje, o programa tem como foco central
uma mudança no conceito de gestão, que passa a ser pensado em função dos resultados, das
metas e dos números estabelecidos como indicadores de qualidade para cada setor dos
serviços públicos. As políticas públicas para a Educação promovidas pelo governo mineiro no
período do Choque de Gestão (2003-2014) podem ser entendidas como estratégias que têm
como objetivo final a melhora do desempenho das escolas nas avaliações externas, tanto as de
caráter nacional, mas também e especialmente aquelas produzidas especificamente para a rede
estadual mineira, cujos resultados estão diretamente associados aos recursos financeiros dos
sistemas escolares.
O dispositivo que integra avaliação e remuneração dos servidores públicos é
legitimado pela ideia amplamente difundida pelos neoliberais de que tais sistemas avaliativos
garantem a transparência da gestão pública, por meio de prestações de contas e demonstração
de resultados por parte das instituições e sujeitos atuantes no serviço público. Diante da
performatividade instaurada nesse contexto, nos perguntamos: na cultura do desempenho, há
também a obrigação dos meios? Ou ainda: a obrigação dos resultados é acompanhada pela
obrigação dos meios para a execução das ações? Afirmamos que a questão da obrigação de
resultados, imperativa que tem como eixo de análise as avaliações externas, representa uma
lógica pragmática e de produtividade, que aumenta a carga de responsabilização e
culpabilização docentes.
No terceiro capítulo, A Reforma curricular mineira, reforçamos a centralidade
assumida pelos currículos nas reformas educacionais neoliberais. É especialmente por meio
do currículo que a governamentalidade neoliberal deseja conduzir a conduta dos sujeitos da
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Educação. Por meio dos dispositivos curriculares professores, alunos, gestores e instituição
escolar têm seus tempos, objetivos e resultados controlados. A estreita vinculação dos
componentes curriculares aos resultados obtidos nas avaliações externas e, mais
recentemente, ao pagamento de bônus salariais aos professores, reforça e agudiza os
mecanismos de controle postos em ação por intermédio do currículo.
Descrevemos a estrutura e lógica de funcionamento dos Conteúdos Básicos Comuns
(CBC), compreendendo a reforma curricular que os institui como parte do projeto maior de
reestruturação do Estado mineiro. A implementação de um currículo obrigatório mínimo é
essencial ao governo mineiro na medida em que este pretende construir uma “Educação por
Resultados”. Tais resultados, aferidos por um complexo dispositivo de avaliações externas,
estão relacionados à “capacidade” de professores e alunos de se apropriarem dos conteúdos
dos CBC. A estreita vinculação entre currículo e avaliação externa é uma característica
marcante das reformas educacionais neoliberais.
Ao analisarmos o processo de elaboração e implementação do CBC, o que salta aos
olhos é a centralização das decisões no âmbito do governo e a inexpressiva participação dos
professores da rede estadual. Desse modo, reforçamos o emprego do currículo como um
instrumento de controle da conduta docente, limitador do potencial reflexivo do ato educativo.
Ao mesmo tempo em que reforça o poder de especialistas, a padronização do trabalho docente
por meio dos currículos oficiais conduz a conduta dos professores no sentido das metas
traçadas pelos governos, transmutando o controle externo em autocontrole.
No quarto capítulo, “Avaliar para avançar”: o dispositivo avaliativo em Minas
Gerais, analisamos a arquitetura das avaliações que compõem o Sistema Mineiro de
Avaliação da Educação Pública, do qual fazem parte o PROEB (Programa de Avaliação da
Rede Pública da Educação Básica), o PROALFA (Programa de Avaliação da Alfabetização) e
o PAAE (Programa de Avaliação da Aprendizagem Escolar). Os resultados trazidos pelos
programas que compõem o SIMAVE servem para a elaboração dos Programas de Intervenção
Pedagógica (PIP), que objetivam “sanar” os problemas identificados pelas avaliações. Aqui,
encontramos, mais uma vez, a desqualificação do trabalho e do saber docente operada pela
governamentalidade neoliberal: os planos do PIP são aplicados e monitorados por técnicos e
analistas externos à escola, especialistas chamados a resolver aquilo que os professores
supostamente não sabem (ou não querem) fazer.
Argumentamos que, embora o trabalho docente seja direta e indiretamente avaliado
nas avaliações de larga escala, as políticas educacionais neoliberais atuam de modo
20
centralizado, desconhecendo os anseios, os desejos e as especificidades dos professores as
quais se dirigem. Na disputa por sentidos e verdades sobre a Educação, a governamentalidade
neoliberal atua no sentido de suprimir e desqualificar a atuação dos professores. Nessa
direção, legitima a atuação de agentes e instituições externas, não raras vezes ligados a
grandes grupos empresariais e agências internacionais de financiamento.
Também problematizamos o dispositivo avaliativo articulado pela reforma
educacional mineira como um incentivador, um potencializador da cultura do desempenho
que o governo pretende difundir entre seus servidores. A performatividade que se instaura
intenta conformar um tipo específico de sujeito docente, orientado pelos preceitos da
utilidade, da eficiência e da competitividade. Nesse sentido, afirmamos que as avaliações
externas afetam profundamente a autopercepção do sujeito docente, bem como de seu valor e
do sentido do trabalho que produz, colocando “em pauta uma dimensão emocional, apesar da
aparência de racionalidade e objetividade” (BALL, 2005, p. 550).
O último capítulo, ao qual demos o nome de Conclusão: notas sobre a resistência,
reforça a importância de uma crítica atenta e permanente aos processos de subjetivação
articulados pelas reformas educacionais neoliberais. Embora o discurso normalizador de
origem estatal se pretenda hegemônico, as políticas curriculares e avaliativas são reorientadas
por estratégias locais, nas várias instâncias subsequentes à sua produção. Isso significa
considerar que as relações que se constituem em âmbito escolar também podem caminhar em
busca de aberturas e possibilidades de escape ao prescrito, de mais prazer e solidariedade
(MANCEBO, 2010).
Também queremos adentrar a arena de disputa pela atribuição de sentidos e verdades
sobre a Educação. Ao desafiarmos as práticas e os discursos neoliberais que pretendem nos
transformar em professores performáticos, competitivos e pragmáticos, desejamos abrir
caminho para outros pensamentos e experiências em torno da Educação, que potencializem a
liberdade e a diferença. Que as reflexões que faremos sirvam como ferramentas para as
múltiplas lutas que travamos diariamente nas escolas estaduais de Minas Gerais.
21
1. GOVERNAMENTALIDADE NEOLIBERAL E EDUCAÇÃO NO BRASIL
1.1. A governamentalidade como ferramenta analítica
Como podemos pensar os efeitos do neoliberalismo sobre a Educação? De que modo a
profissão e a subjetividade docentes vêm sendo afetadas pelas políticas neoliberais? Como
podemos nos aproximar dessas questões evitando os riscos dos discursos de celebração e
denúncia? Seguindo a trilha teórico-metodológica aberta por Michel Foucault, pensamos que
o melhor a fazer é investigar empiricamente as mudanças em curso (RABINOW; ROSE,
2006). Isso implica em “tomar as práticas concretas como domínio privilegiado de análise”
(LARROSA, 1994, p. 9), já que as práticas sociais engendram novos domínios de saber,
novos objetos, conceitos, técnicas e mesmo formas totalmente novas de sujeitos e de objetos
do conhecimento (FOUCAULT, 2009). Essa descida às práticas pode nos ajudar a
compreender quais processos de subjetivação e objetivação permitiram a transformação do
indivíduo em sujeito e objeto do conhecimento. A partir dessa perspectiva histórica, que busca
entender a constituição do sujeito a partir de práticas concretas, somos levados a pensar o
neoliberalismo “não como uma teoria nem como uma ideologia, menos ainda, claro, como
uma maneira de a sociedade se representar; mas como uma prática, isto é, como uma ‘maneira
de fazer’ orientada para objetivos e regulando-se por uma reflexão contínua” (FOUCAULT,
2008, p. 432). O entendemos como uma forma de governo (especialmente de Estado, mas
igualmente dos outros e de si) que, por variadas e complexas maquinarias de saber-poder1,
certas metas, determinados objetivos e fins específicos são potencialmente alcançados
(FOUCAULT, 1992). E pensá-lo desta maneira implica abandonar determinadas ideias que,
no quadro analítico foucaultiano no qual nos inscrevemos, deixam de fazer sentido.
Ao pensarmos o neoliberalismo como uma razão de governo expressa por meio das
mais diversas práticas, razão que é ela mesma múltipla e móvel, e que se exerce de diferentes
1 Pensar as complexas maquinarias de saber-poder é partir do princípio que “o poder não é da ordem do
consentimento; ele não é, em si mesmo, renúncia a uma liberdade, transferência de direito, poder de todos e de
cada um delegado a alguns” (FOUCAULT, 1995b, p. 243). Somado a isso, “ele não pesa só como uma força que
diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber” (op. cit., p. 8) e também se
apoia em saberes (da economia, da medicina, do campo jurídico, da psicanálise). O poder “é um conjunto de
ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos
sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos
provável; no limite, ele coage ou impede absolutamente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários
sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir”. Em síntese, “uma ação sobre ações” (op. cit., p.
243) que assume formas práticas e praticáveis de saber-poder.
22
modos nos Estados contemporâneos, provocamos o primeiro deslocamento analítico
importante em relação ao pensamento político tradicional: não tomaremos o Estado neoliberal
como um universal, algo que possua uma essência que deva ser buscada em todas as suas
corporificações.
Em vez de partir dos universais para deles deduzir fenômenos concretos, ou antes,
em vez de partir dos universais como grade de inteligibilidade obrigatória para um
certo número de práticas concretas, gostaria de partir dessas práticas concretas e, de
certo modo, passar os universais pela grade dessas práticas (FOUCAULT, 2008, p.
5).
Esse modo específico de pensar a história – que Foucault, inspirado pelas reflexões de
Paul Veyne, chama de história nominalista – pode ser tomado como uma “resposta histórica à
questão filosófica sobre o modo como as coisas são constituídas” (RAJCHMAN, 1987, p. 47).
Não existem condições transcendentais que presidem nossa experiência, mas emergências,
“em momentos específicos, de pressupostos comuns a um corpo disseminado de pensamento
e política” (RAJCHMAN, 1987, p. 47). Ideias, práticas, instituições, sistemas de governo:
nada disso surge graças a uma ordem cósmica, atemporal ou por obra da ação personalista de
alguns sujeitos. A compreensão da emergência dos fenômenos deve ser buscada nas
complexas condições históricas que as tornaram possíveis. Com Foucault, a “história se torna
pedestre, busca atingir conhecimentos bem mais modestos, já que não quer desvendar a
essência do processo histórico, já não quer dizer para onde a história caminha” (JÚNIOR,
2008, p. 101).
Nessa perspectiva, devemos pensar o Estado neoliberal não como portador de uma
natureza ou de uma essência, mas como
o efeito, o perfil, o recorte móvel de uma perpétua estatização, ou de perpétuas
estatizações, de transações incessantes que modificam, que deslocam, que
subvertem, que fazem deslizar insidiosamente, pouco importa, as fontes de
financiamento, as modalidades de investimento, os centros de decisão, as formas e
os tipos de controle, as relações entre as autoridades locais, a autoridade central etc.
(FOUCAULT, 2008, p. 106).
Se o Estado neoliberal é esse “efeito móvel de um regime de governamentalidades
múltiplas” (FOUCAULT, 2008, p. 106), então a melhor pergunta que devemos elaborar em
torno dele é: como funcionam tais mentalidades de governo? Ou ainda: como tais
23
governamentalidades se manifestam praticamente? No nosso caso, perguntamos: de que
forma a governamentalidade neoliberal vêm produzindo novas subjetividades e experiências
docentes? A resposta a essa pergunta será sempre limitada pelo quadro histórico que a torna
possível, e deve se atentar às políticas do governo de Estado e aos regimes de verdade que ele
mobiliza e legitima: movimentos próprios à governamentalidade.
Esse neologismo expressa os dois eixos centrais a partir dos quais o Estado pode ser
analisado, em uma perspectiva foucaultiana: a razão política e as tecnologias de governo
(FIMYAR, 2009). O neoliberalismo pode, a partir desses conceitos, ser definido como a razão
política que orienta o governo da maioria dos Estados contemporâneos, cujas tecnologias e
técnicas de governamento são variáveis e possuem nuances específicas. Mais adiante,
trataremos das peculiaridades da governamentalidade neoliberal no Brasil e, mais
especificamente, no contexto mineiro da última década. Para Foucault, a governamentalidade
pode servir como ferramenta para que possamos “apreender a instância da reflexão na prática
de governo e sobre a prática de governo” (FOUCAULT, 2008a, p. 4), e seu uso possibilita
“problematizar os relatos aceitos normativamente do Estado e desconstruir suas várias
práticas e elementos que o constituem e são inconsistentes” (FIMYAR, 2009, p. 37). A
analítica da governamentalidade “examina as práticas de governamento em suas complexas
relações com as várias formas pelas quais a verdade é produzida nas esferas social, cultural e
política. Portanto, o papel da analítica de governamento é o de diagnóstico” (FIMYAR, 2009,
p. 37).
O segundo deslocamento analítico importante consiste na recusa às perspectivas
teóricas que têm como finalidade a denúncia de um quadro maquiavélico das forças de poder,
às perspectivas que, de modo simplista e pouco crítico, dividem o mundo social em “vilões” e
“mocinhos”. Consiste também na recusa às celebrações de qualquer gênero. Aqui, não
faremos nenhuma espécie de elogio ou “caça às bruxas”. Por meio dessa dupla recusa nos
mantemos fiéis à nossa concepção de método como “uma certa forma de interrogação e um
conjunto de estratégias analíticas de descrição” (LARROSA, 1994, p. 37), uma maneira de
“pensar de outro modo”, de desnaturalizar, de familiarizar nossas ideias. Isso implica em
duvidar permanentemente do instituído, das relações de causa e efeito, da busca pela origem.
Queremos exercitar um tipo de análise que tem “a função de evitar a produção de uma
memória voltada para a homenagem e para a idolatria, para a bajulação e para a mitificação”
(JÚNIOR, 2008, p. 106).
24
Para que possamos compreender os efeitos do neoliberalismo sobre as práticas e
subjetividades docentes por meio da ferramenta analítica da governamentalidade, como razão
política e tecnologia de governo, traçaremos agora uma breve história do pensamento
neoliberal, dando especial atenção à vertente norte-americana, concebida em suas linhas
gerais pelos representantes da Escola de Chicago.
1.2. Uma breve história do neoliberalismo
Formulado em um contexto específico, no caso norte-americano, os anos 1930, o
neoliberalismo se constrói em oposição a três fenômenos de seu tempo: a política keynesiana,
aos programas de intervencionismo social e econômico postos em ação durante a Segunda
Guerra, e ao crescimento da administração federal. Em seu livro Teoria geral do emprego, do
juro e da moeda, o economista inglês John Maynard Keynes (cujas ideias foram essenciais
para a estruturação do intervencionismo estatal norte-americano a partir da década de 1930)
parte do princípio de que o ciclo econômico não se autorregula, pois os empresários estão
possuídos pelo “espírito animal” do capitalismo (que os impele inexoravelmente a acumular,
acumular, acumular...). Por isso, a teoria keynesiana afirma que o mercado precisa ser
controlado pelo Estado, pois o sistema capitalista que o regularia, por natureza, é instável. A
intervenção do Estado na economia é apresentada como um mecanismo imprescindível de
manutenção dos empregos e de certas condições necessárias para o funcionamento da
sociedade. Deve balizar também os processos de controle da moeda (especialmente a maior
ou menor liquidez de sua circulação), o controle fiscal, da produção de postos de trabalho e a
busca por condições sociais mínimas para o equilíbrio social.
Ao propor uma maior intervenção e participação do Estado na economia, Keynes,
primeiramente, questiona e problematiza a máxima de Adam Smith, no livro A riqueza das
nações, que postula a autorregulação do mercado, decorrendo daí uma natural não-
interferência do Estado sobre seus mecanismos. Em segundo lugar, igualmente, questiona e
problematiza os Estados modernos que não enxergaram, ou não conseguiram entender, a
quebra da bolsa de valores de Nova York como um problema das velhas e arraigadas ideias
do liberalismo que, de certa maneira, desembocou em uma quebra mundial da maioria dos
mercados. Para Keynes, o ideal liberal do laissez-faire, com sua crença em mecanismos
automáticos e forças naturais de reequilíbrio do sistema econômico, não passa de um grande
25
engodo. A crise que assolou a economia norte-americana no final dos anos 1920 seria uma
prova desse engano.
Não por acaso, a política keynesiana começou a ser empregada nos EUA no governo
de Franklin Roosevelt, com o New Deal2 desenvolvido a partir de 1933, em resposta à quebra
da bolsa de Nova York em 1929. A competição econômica desenfreada e “animal” vivenciada
no país durante as décadas precedentes, que celebravam o american way of life, acabou por
produzir a Grande Depressão. Nesse contexto de crise e urgência, o governo lançou mão de
uma série de programas de intervencionismo social (previdência social, educação pública,
segurança pública) e investiu em grandes obras públicas para geração imediata de postos de
trabalho. Para tornar possíveis essas medidas de controle, acabou por ser necessário (e
aconselhável como estratégia econômica e política) o crescimento da administração federal.
As ideias de Keynes se inscrevem no campo das práticas de Estado que ficaram
conhecidas como Estado de Bem-Estar Social, que pode ser pensado como “uma
transformação do próprio Estado a partir de suas funções, estrutura e legitimidade”
(BENEVIDES, 2011, p. 11). Ainda que o grau de participação estatal possa variar em cada
contexto, alguns elementos centrais são comuns aos também chamados Welfare States: a ação
estatal na organização e implantação das políticas de provisão de bem-estar, reduzindo os
riscos sociais aos quais os indivíduos estão expostos; a modificação dos movimentos do
mercado pelo Estado de modo a reduzir os resultados socialmente adversos do mercado; e,
finalmente, as práticas de substituição (quando esta é temporariamente perdida) e de
manutenção da renda, de modo que as necessidades mínimas dos indivíduos sejam atendidas,
incluindo aqueles que estão fora do mercado (BENEVIDES, 2011).
Tais aspectos, que caracterizam o Estado de Bem-Estar Social, acabariam tornando-se
os inimigos centrais do neoliberalismo:
Creio que esses três elementos – a política keynesiana, os pactos sociais de guerra e
o crescimento da administração federal através dos programas econômicos e sociais
–, foi tudo isso que constituiu o adversário, o a1vo do pensamento neoliberal, que
foi aquilo em que ele se apoiou ou a que ele se opôs, para se formar e para se
desenvolver (FOUCAULT, 2008, p. 299).
2 Nome dado à série de programas implementados nos Estados Unidos entre 1933 e 1937, sob o governo do
Presidente Franklin Delano Roosevelt, com o objetivo de recuperar e reformar a economia norte-americana, e
assistir aos prejudicados pela Grande Depressão. Entre outras ações, o New Deal estabelecia o controle na
emissão de valores monetários, o investimento em setores básicos da indústria e a criação de políticas de
emprego.
26
Concomitantemente à implementação do New Deal, fortalecia-se, na Escola de
Chicago (a escola de pensamento econômico que congrega professores do Departamento de
Economia da Escola Superior de Administração e da Faculdade de Direito da Universidade de
Chicago), uma corrente teórica que vai se colocar, com uma força cada vez maior, em
oposição às polítcas keynesianas. Ocupando lugar central no pensamento dos Chicago boys
estão as relações entre mercado e Estado. Há, entre eles, um consenso acerca das
consequências nefastas da interferência do Estado sobre as práticas econômicas, e a
consequente e unânime defesa da desregulamentação da economia, da privatização de bens e
serviços públicos e da redução, ao nível mínimo, dos gastos do governo, visando ao
fortalecimento da iniciativa privada. A responsabilidade pelo provimento de serviços
públicos, na lógica neoliberal, deve ser atribuída aos próprios sujeitos sociais. Cada qual,
promovendo seu bem-estar individual, estaria contribuindo para a elevação do bem-estar
coletivo. Há uma clara associação entre a liberdade de mercado e a liberdade individual, como
se a existência desta dependesse necessariamente da existência plena daquela. Vale dizer que
os neoliberais não se opõem à existência dos aparelhos estatais; o que fazem é redimensionar
sua importância e seu raio de ação, para garantir os direitos à propriedade privada, ao livre
mercado e ao livre comércio. Toda e qualquer ação que se faça em oposição a essas práticas
deve ser banida.
Um dos mais importantes teóricos da Escola de Chicago foi Milton Friedman, cujas
obras, Capitalismo e liberdade (1962) e Livre para escolher (1980), são consideradas cânones
da teoria neoliberal. Friedman atuou ativamente ocupando diferentes funções nos governos do
ditador Augusto Pinochet, no Chile, da primeira-ministra britânica Margareth Thatcher e dos
presidentes norte-americanos Ronald Reagan e George W. Bush. Em suas obras, defende a
existência de uma taxa salutar de desemprego (necessária ao desenvolvimento do capitalismo
por criar uma reserva de mão de obra), o fim ou enxugamento ao nível mínimo dos serviços
públicos gratuitos para a população, a existência de um nível de inflação mínimo (que
dinamizaria a economia) e o corte de impostos para os mais abastados (o que os estimularia a
circular e produzir mais riqueza). São ideias que defendem, como função primordial do
Estado, a regulação monetária e do mercado; qualquer ação fora desse escopo estaria
caminhando para o totalitarismo e a opressão.
Trata-se, pois, para os neoliberais, de enformar o Estado e a sociedade a partir de uma
economia de mercado, dilatando o campo da análise econômica sobre espaços considerados
“não-econômicos”. Trata-se, portanto, de “generalizar a forma política do mercado para todo
27
o corpo social, de modo que esta – a economia de mercado – funcionará como um princípio
de inteligibilidade das relações sociais e dos comportamentos individuais” (FONSECA, 2008,
p. 160). O pensamento neoliberal toma o mercado como a “substância ontológica do ser
social, a forma (e a lógica) mesma desde a qual, com a qual e na qual deveriam funcionar,
desenvolver-se e transformar-se as relações e os fenômenos sociais, assim como os
comportamentos de cada grupo e cada indivíduo” (COSTA, 2009, p. 174).
Se o neoliberalismo, em sua matriz norte-americana, para além de uma teoria política,
“é toda uma maneira de ser e pensar” (FOUCAULT, 2008, p. 301), e se as análises da
economia de mercado são utilizadas para decifrar fenômenos não-econômicos, podemos
considerá-lo também como “um método de pensamento, uma grade de análise econômica e
sociológica” (FOUCAULT, 2008, p. 301). E o que orienta, em linhas gerais, esse método de
pensamento? A generalização absoluta da forma do mercado. A educação, a saúde, a
segurança, a natalidade, a mortalidade, o casamento: o pensamento neoliberal toma para si
objetos antes pertencentes à Demografia, à Sociologia, à Psicologia. Também ao Estado se
dirige essa crítica econômica, que se preocupa com os “tipos de racionalidade que são postos
em ação nos procedimentos pelos quais a conduta dos homens é conduzida por meio de uma
administração estatal” (FOUCAULT, 2008, p. 437). “O mercado torna-se um tribunal
econômico permanente perante as políticas governamentais” (FONSECA, 2008, p. 160). A
grade econômica de análise deve servir como instrumento para aferir a validade da ação
governamental, para
filtrar toda a ação do poder público em termos de jogo de oferta e procura, em
termos de eficácia quanto aos dados desse jogo, em termos de custo implicado por
essa intervenção do poder público no campo do mercado. Trata-se, em suma, de
constituir, em relação à governamental idade efetivamente exercida, uma crítica que
não seja uma crítica simplesmente política; que não seja uma crítica simplesmente
jurídica. É uma crítica mercantil, o cinismo de uma crítica mercantil oposta à ação
do poder público (FOUCAULT, 2008, p. 338).
O neoliberalismo norte-americano exerce, então, uma crítica econômica permanente à
política governamental e ao comportamento humano. Desse modo, elege como sujeito
privilegiado de suas análises e ações o Homo economicus (homem econômico), identificando
como objeto de análise econômica “toda a conduta que responda de forma sistemática a
modificações nas variáveis do meio” (FOUCAULT, 2008, p. 368). O homem econômico é
aquele que reage racionalmente às modificações nas variáveis do meio em que vive, “e que
28
responde a elas de forma não aleatória, de forma portanto sistemática, e a economia poderá
portanto se definir como a ciência da sistematicidade das respostas às variáveis do ambiente”
(FOUCAULT, 2008, p. 368). Ora, ao definir assim seu escopo de análise e ação, o
pensamento neoliberal busca integrar à economia uma série de técnicas comportamentais, que
tem por finalidade programar os indivíduos, tornar o Homo economicus manejável,
eminentemente governável. “O Homo economicus aparece agora como o correlativo de uma
governamentalidade que vai agir sobre o meio e modificar sistematicamente as variáveis do
meio” (FOUCAULT, 2008, p. 369).
Sobre esse sujeito, cujos interesses a economia tenta decifrar, incidem as práticas
neoliberais. Interessada pela vida das pessoas e da população, a governamentalidade
neoliberal se exerce principalmente apoiada em uma biopolítica, entendida como “a maneira
como se procurou, desde o século XVIII, racionalizar os problemas postos a prática
governamental pelos fenômenos próprios de um conjunto de viventes constituídos em
população: saúde, higiene, natalidade, longevidade, raças” (FOUCAULT, 2008, p. 431).
Entendemos que a governamentalidade neoliberal exerce uma forma específica de política
sobre a vida – biopolítica – que toma, como já dissemos, a economia como grade de análise, e
procura promover sobre os sujeitos uma espécie de otimização de suas vidas, orientada pelos
valores da utilidade e da eficiência.
No primeiro volume de sua História da sexualidade, Foucault remonta a história dessa
espécie de poder sobre a vida, o biopoder, ao século XVI. Nesse momento, no Ocidente,
houve uma mudança profunda nos mecanismos de poder: o “confisco” (seja dos bens ou da
própria vida) deixa de ser a principal estratégia de governo do soberano em relação aos seus
súditos. Ele passa a se preocupar também com o reforço, a vigilância, o controle e a
organização das forças que a ele estão submetidas. Surge, para o governo, o problema da
população,
mais como fim e instrumento do governo que como força do soberano; a população
aparece como sujeito de necessidades, de aspirações, mas também como objeto nas
mãos do governo; como consciente, frente ao governo, daquilo que ela quer e
inconsciente em relação àquilo que se quer que ela faça. O interesse individual −
como consciência de cada indivíduo constituinte da população − e o interesse geral
− como interesse da população, quaisquer que sejam os interesses e as aspirações
individuais daqueles que a compõem − constituem o alvo e o instrumento
fundamental do governo da população (FOUCAULT, 1992, p. 289).
29
Não mais o direito de morte, mas o poder sobre a vida. Nesse deslocamento das
funções e objetivos do governo, assistimos à instalação gradativa de uma “grande tecnologia
de duas faces – anatômica e biológica, individualizante e especificante, voltada para os
desempenhos do corpo e encarando os processos da vida [...], cuja função mais elevada já não
é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima a baixo” (FOUCAULT, 1988, p. 131).
Enquanto “a disciplina se dá como a anátomo-política dos corpos e se aplica essencialmente
aos indivíduos, através de uma complexa ortopedia social, a biopolítica representa uma
‘grande medicina social’ que se aplica à população a fim de governar a vida: a vida faz,
portanto, parte do campo do poder” (REVEL, 2005, p. 27) que investe sobre ela por meio de
variados programas de administração.
A biopolítica designa, pois, o conjunto composto pelos procedimentos disciplinares de
governo dos indivíduos e os procedimentos de controle da população que tem, no Estado, seu
foco de gestão. O controle exercido sobre a população pelo biopoder é essencialmente
preventivo; não atua preferencialmente por meio de proibições ou sanções, mas sim por
mecanismos que procuram conduzir a conduta dos indivíduos, por meio do esquadrinhamento
de seus corpos e comportamentos. O biopoder não age apenas sobre aquilo que os sujeitos
fazem, mas principalmente “sobre aquilo que eles podem fazer, que eles são capazes de fazer,
daquilo que eles estão sujeitos a fazer, daquilo que eles estão na iminência de fazer” (REVEL,
2005, p. 29). E para exercer essa espécie de controle preventivo, o Estado se integra a uma
série de poderes laterais, tais como as instituições psicológicas, psiquiátricas, criminológicas,
médicas, pedagógicas, que atuam em dois sentidos. Por um lado, tais poderes laterais
constituem populações nas quais os indivíduos serão inseridos, tornando-os mais facilmente
governáveis; por outro lado, instalam sistemas de individualização, destinados a gerir a
existência e modular as condutas dos sujeitos. Assim, podemos dizer que “o controle é
essencialmente uma economia do poder que gerencia a sociedade em função de modelos
normativos globais integrados num aparelho de Estado centralizado” (REVEL, 2005, p. 30).
Para compreendermos melhor os conceitos de biopoder e biopolítica, é interessante
retomar os sentidos que Foucault atribui ao poder ao longo de sua obra. Esse recuo é
importante, pois acreditamos que “não há contradição entre as análises do poder disciplinar e
aquelas relativas ao conceito de biopoder, na medida em que ambas tomam o processo de
normalização como sua base comum” (DUARTE, 2008, p. 48). Em uma perspectiva
foucaultiana, “o poder não é algo que possa se deter e cuja essência seja universal; o poder é
exercício, historicamente localizado e limitado. Ninguém pode fugir a ele” (DUARTE, 2008,
30
p. 48), mesmo resistindo, pois a resistência só é possível no âmbito das relações de poder.
Especialmente a partir do primeiro volume de sua História da sexualidade, o autor desloca
seu olhar das relações que produzem o sujeito assujeitado (os micropoderes disciplinares)
para as relações constituídas entre Estado e população, que pretendem normalizar e manipular
a conduta da espécie. Ao tomar a vida como alvo privilegiado de investimento, o poder
soberano se transforma; especialmente a partir do século XIX, “já não importava mais apenas
disciplinar as condutas, mas também implantar um gerenciamento planificado da vida das
populações. Assim, o que se produz por meio da atuação específica do biopoder não é apenas
o indivíduo dócil e útil, mas é a própria gestão da vida e do corpo social” (DUARTE, 2008, p.
49).
A partir de então, “interessa ao poder estatal estabelecer políticas higienistas e
eugênicas por meio das quais se poderá sanear o corpo da população, depurando-o de suas
infecções internas” (DUARTE, 2008, p. 50). Entendemos que tais políticas de depuração
social, nos contextos de atuação neoliberal, se orientam por meio de um ajustamento dos
fenômenos de população aos processos econômicos. Argumentamos que a
governamentalidade neoliberal, tanto no que tange à gestão das populações quanto aos
mecanismos de interiorização da norma e do governo dos sujeitos para consigo mesmos, se
orienta para a produção de sujeitos-empresa. “Assim como a unidade de base da economia é a
empresa, também a unidade de base da sociedade não é mais o indivíduo, mas o trabalhador-
empresa” (COSTA, 2009, p. 177). Isso equivale a dizer que a arte de governar neoliberal
propõe um tipo de sociedade na qual
o que deve constituir o princípio regulador não é tanto a troca de mercadorias quanto
os mecanismos de concorrência. Vale dizer que o que se procura obter não é uma
sociedade submetida ao efeito-mercadoria, é uma sociedade submetida à dinâmica
concorrencial. Não uma sociedade supermercado – uma sociedade empresarial. O
Homo economicus que se quer constituir não é o homem da troca, não é o homem do
consumo, é o homem da empresa e da produção (FOUCAULT, 2008, p. 201).
Podemos dizer então que,
no limite, o que está em jogo nessa forma de governamentalidade neoliberal norte-
americana é a pretensão de transmutar os indivíduos em sujeitos-microempresas e de
comercializar todas as relações humanas, a qualquer hora e em qualquer lugar,
mediante sua inscrição em relações do tipo concorrencial (COSTA, 2009, p. 179).
31
O neoliberalismo exige a potência da individuação de cada um, produzindo
indivíduos-microempresa orientados por uma normatividade que tem como base valores
econômico-empresariais. Se governamos a nós mesmos e aos outros de acordo com aquilo
que julgamos ser verdadeiro, “as formas como governamos dão origem à produção de verdade
sobre a sociedade, a educação, o emprego, a inflação, os impostos, os negócios etc.
(FIMYAR, 2009, p. 41). Sugerimos que a governamentalidade neoliberal produz um
repertório de explicação da realidade que toma a empresa como modelo a ser disseminado
pela sociedade inteira, enformando a tudo e a todos.
Um exemplo importante desse avanço do olhar econômico-empresarial sobre o mundo
social pode ser encontrado na Teoria do Capital Humano, desenvolvida a partir dos anos 1950
por membros da Escola de Chicago. Essa teoria tem sido amplamente instrumentalizada na
elaboração de políticas educacionais na contemporaneidade. Theodore Schultz, um de seus
principais expoentes, partindo de um estudo acerca das relações, em diversos países, entre
produtividade e Educação, constatou que quanto maior a riqueza de um país, maior o nível de
instrução de sua população. Deduziu, então, que a qualificação do trabalho, adquirida por
meio da Educação, seria um dos fatores mais importantes para a ampliação da produtividade
econômica.
A Educação, na lógica da Escola de Chicago, deve servir ao desenvolvimento
econômico, capacitando indivíduos para o mercado de trabalho, indivíduos estes que, como as
mercadorias, “valorizam-se” na medida em que se educam. Assim como o capital econômico,
essa teoria postula a existência de um capital humano, que se refere a um conjunto de
habilidades, capacidades e destrezas que servem de moeda de troca para o indivíduo no
mundo do trabalho. Educar-se é investir em si mesmo, uma vez que
as competências, habilidades e as aptidões de um indivíduo qualquer constituem,
elas mesmas, pelo menos virtualmente e relativamente independente da classe social
a que ele pertence, seu capital: mais do que isso, é esse mesmo indivíduo que se vê
induzido, sob essa lógica, a tomar a si mesmo como um capital, a entreter consigo (e
com os outros) uma relação na qual ele se reconhece (e aos outros) como uma
microempresa (COSTA, 2009, p. 177).
Investindo em si mesmo por meio da Educação, o indivíduo se tornaria não apenas
mais produtivo, como também promoveria a “maximização crescente de seus rendimentos ao
longo da vida” (COSTA, 2009, p. 177). Assim, os indivíduos são “avaliados de acordo com
os investimentos que são permanentemente induzidos a fazer para valorizarem-se como
32
microempresas num mercado cada vez mais competitivo” (COSTA, 2009, p. 181). E nesse
contexto de competitividade extrema, na qual a concorrência é instigada e valorizada, são
desejáveis indivíduos “pró-ativos, inovadores, inventivos, flexíveis, com senso de
oportunidade, com notável capacidade de provocar mudanças etc.” (COSTA, 2009, p. 181).
Esses novos valores que permeiam a racionalidade neoliberal têm produzido uma nova
discursividade nas searas educativas (COSTA, 2009), e promovem visões de mundo que leem
o social a partir de conceitos econômicos, reduzindo tudo a unidades de medida comuns às
outras formas do capital.
Os teóricos da Escola de Chicago tomam o próprio trabalho como um tipo de capital,
como
o conjunto de todos os fatores físicos e psicológicos que tornam uma pessoa capaz
de ganhar este ou aquele salário, de sorte que, visto do lado do trabalhador, o
trabalho não é uma mercadoria reduzida por abstração à força de trabalho e ao
tempo durante o qual ela é utilizada. Decomposto do ponto de vista do trabalhador,
em termos econômicos, o trabalho comporta um capital, isto é uma aptidão ou uma
competência (FOUCAULT, 2008, p. 308).
Sabemos que a Educação tem sido cada vez mais convocada a produzir tais
habilidades e competências, “na formação do professor, nos processos de aprendizagem dos
alunos (aprender a aprender), na montagem dos programas curriculares, nas formas de
avaliação” (COSTA, 2009, p. 182). O sentido da Educação vem se deslocando do campo dos
direitos sociais para o campo da economia, e as políticas educacionais neoliberais têm se
atrelado de modo estreito às demandas do mercado capitalista. Nesse contexto, a natureza do
trabalho docente se altera substancialmente: os professores não apenas devem produzir em
seus alunos as aptidões que podem se transformar em fluxos de renda, mas devem repensar o
próprio fazer como um processo contínuo e interminável de investimento, inovação e
competitividade. Tais processos de subjetivação de cada um como empreendedor de si mesmo
são mecanismos importantes da governamentalidade neoliberal, que intenta produzir sobre
todos a habilidade de se auto-gerenciar e promover o sucesso/qualidade de sua própria vida.
Esse conjunto de discursos e práticas que incidem sobre a Educação tem uma função
produtiva e formam sistematicamente os objetos de que falam. Produzem seus sujeitos, efeitos
“das linguagens, dos discursos, dos textos, das representações, das enunciações” (MEYER;
PARAÍSO, 2012, p. 29), que a eles se dirigem e os atravessam, conduzindo suas condutas e
conformando um determinado campo de possibilidades para suas experiências. Novos
33
professores, novos alunos, novos gestores, uma nova forma de pensar e organizar o trabalho
educativo sob a égide da competitividade e do eficientismo: esse é o quadro que as políticas
educacionais empreendidas pelos estados neoliberais pretendem configurar. Vejamos, na
seção seguinte, os caminhos tomados pela governamentalidade neoliberal no que se refere à
Educação no Brasil, especialmente a partir da década de 1990.
1.3. Políticas educacionais neoliberais no Brasil
A “neoliberalização” do pensamento e das práticas políticas ganhou força e amplitude
em vários países da América Latina a partir dos anos 1990, sob forte influência de organismos
internacionais, tais como Banco Mundial (GBM) e a OCDE (Organização para a Cooperação
e o Desenvolvimento Econômico). O papel de destaque do GBM
na produção de ideias e na formação de agentes centrais da implementação de
políticas públicas para o desenvolvimento é reconhecido por diversos autores que
enfatizam não somente a influência do Grupo, mas também o papel exercido na
intermediação de condicionalidades para a captação de recursos a partir da adoção
de medidas e condutas exigidas pelos credores aos países mais vulneráveis e
sensíveis às oscilações econômicas internacionais (LIMA, 2014, p. 4).
Nesse contexto, alguns países latino-americanos financiados e orientados pelo Banco
Mundial, tais como o México (com a eleição de Salinas em 1988), a Argentina (com a
chegada ao poder de Menem em 1989), a Venezuela (no segundo mandato de Andrés Perez
também em 1989) e o Peru (com a ascensão de Fujimori em 1990), deram início a projetos de
redefinição do papel do Estado. Vale dizer que não somente em contextos conservadores e
ditatoriais as ideias neoliberais ganharam espaço, mas também em contextos de governos
ditos progressistas e social-democratas (ANDERSON, 1995). O caso do Chile merece ser
relatado pelo pioneirismo e profundidade encerrados em sua experiência de orientação
neoliberal do Estado. É importante lembrar, aqui, que o pensamento neoliberal, ainda que
produzido em paralelo à teoria do Bem-Estar Social, ainda nos anos 1940, só alcançou
projeção a partir da década de 1970, no contexto de crise e recessão que assolou a Europa e os
EUA. No momento em que alguns países do capitalismo avançado experimentavam altas
taxas de inflação e baixos índices de crescimento, as ideias neoliberais ganharam terreno
(ANDERSON, 1995). Os governos de Margareth Tatcher, eleito na Inglaterra em 1979, e de
34
Ronald Reagan, que chegou ao poder nos EUA em 1980, são marcos simbólicos nesse
processo, já que, pela primeira vez, potências econômicas desta magnitude assumiam
publicamente uma agenda de governo neoliberal. Entretanto, o primeiro laboratório das
políticas neoliberais foi, de fato, o Chile, sob o governo do general Pinochet, ainda em 1973.
“O Chile de Pinochet começou seus programas de maneira dura: desregulação,
desemprego massivo, repressão sindical, redistribuição de renda em favor dos ricos,
privatização de bens públicos” (ANDERSON, 1995, p. 19). Essas ações faziam parte de um
pacote de medidas chamado O ladrilho, que apresentava a intenção de promover o “milagre
chileno”, embora os resultados reais tenham conduzido o país a uma grande depressão
econômica em 1982, com elevadas taxas de desemprego e uma balança comercial deficitária.
Sob a ditadura de Pinochet, o receituário neoliberal foi mesclado à cartilha ditatorial:
perseguição aos movimentos sindicais, neutralização dos organismos sociais, proibição dos
partidos políticos e fechamento do parlamento coexistiram e conformaram a política orientada
por Milton Friedman e seus Chicago boys para o Chile.
No Brasil, um marco nesse processo foi a criação do Ministério da Administração
Federal e Reforma do Estado (MARE), em 1995, sob o mandato do presidente Fernando
Henrique Cardoso, eleito em 1994 pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Nas
palavras de Bresser-Pereira, um dos principais articuladores dessa reorientação das funções do
Estado: “Constitui-se, então, todo um quadro teórico e uma prática administrativa que visam
modernizar o Estado e tornar sua administração pública mais eficiente e voltada para o
cidadão-cliente” (BRESSER-PEREIRA, 2000, p. 64).
O então denominado “Estado gerencial”3 passou a orientar suas ações a partir de
alguns pressupostos: a) delimitação das funções do Estado, reduzindo seu tamanho em
termos, principalmente, de pessoal, por meio de programas de privatização, terceirização e
publicização4; b) redução do grau de interferência do Estado ao efetivamente necessário por
intermédio de programas de desregulação que aumentem o recurso aos mecanismos de
controle via mercado; c) aumento da governança do Estado, ou seja, da sua capacidade de
tornar efetivas as decisões do governo, por intermédio de ajustes fiscais “e da reforma
3A administração pública gerencial trata-se da aplicação dos postulados do “New Public Management” ou “nova
administração pública”, cuja ideia básica é que a eficiência do setor público pode ser melhorada transferindo
setores e técnicas do setor produtivo, tais como reduzir o peso de normas e procedimentos para permitir
iniciativas, aumentando a responsabilidade de níveis subordinados e apurando a opinião dos clientes
(TENÓRIO; SARAIVA, 2006, p. 5). 4 Denomina-se publicização o processo de transferência para o setor público não estatal dos serviços sociais e
científicos que hoje o Estado presta (BRESSER-PEREIRA, 1997).
35
administrativa rumo a uma administração pública gerencial; e, finalmente, d) a separação,
dentro do Estado, ao nível das atividades exclusivas do Estado, entre a formulação de
políticas públicas e sua execução” (BRESSER-PEREIRA, 1997, p. 18).
Essa mudança de ênfase nas feições e atribuições do Estado afetaram profundamente a
arquitetura das políticas públicas. O Estado abandonou seu lugar de provedor e passou a se
colocar, cada vez mais, como regulador e auditor de resultados:
Estamos a assistir ao desaparecimento gradual da concepção de políticas específicas
do Estado-Nação nos campos econômico, social e educativo e, concomitantemente,
o abarcamento de todos estes campos numa concepção única de políticas para a
competitividade econômica (BALL, 2001, p. 100).
Dito de outra forma, as políticas públicas e, de modo especial as que se dirigem à
Educação, estão cada vez mais sujeitas às prescrições do economiscismo (BALL, 2001), e
ideias como a de que “vivemos em uma sociedade de aprendizagem” ou de que “a economia
se baseia no conhecimento”, “servem e simbolizam o aumento da colonização das políticas
educativas pelos imperativos das políticas econômicas” (BALL, 2001, p. 100). Esse novo
paradigma economicista de gestão pública redefine os papéis do Estado e cria uma nova
linguagem na qual as políticas públicas passam a fazer sentido. “As novas organizações de
gestão pública passam a ser ‘populadas’ de recursos humanos que necessitam ser geridos;
aprendizagem é rebatizada ‘produto-final de políticas custo-eficazes’; realizações passam a
ser um conjunto de ‘objetivos de produtividade’ etc.” (BALL, 2001, p. 104).
Todas essas mudanças ocorridas no pós-Estado de Bem-Estar, no âmbito da Educação,
impactam radicalmente sobre nossas experiências profissionais, a ponto de vermos emergir
uma nova prática ético-cultural do profissionalismo cuja moral utilitária celebra o espírito
empresarial, a competição e a excelência. Nesse sentido, pensar a Educação no “pós-Estado
da Providência” requer analisar as tecnologias de políticas que os Estados põem em ação, que
“envolvem a implementação calculada de técnicas e artefatos para organizar as forças e
capacidades humanas em redes funcionais de poder” (BALL, 2001, p. 105), e procuram
transformar e disciplinar as organizações do setor público de modo a ajustá-los à economia
política de competição global. Tais tecnologias promovem “novos valores, novas relações e
novas subjetividades nas arenas da prática” (BALL, 2001, p. 103), configurando um novo
ambiente moral dentro do qual as políticas públicas são arquitetadas e experienciadas pelos
diferentes sujeitos que dela participam. Um novo currículo ético é “criado na e para as
36
escolas”, ao mesmo tempo em que se estabelece “uma correspondência moral entre o
provimento público e empresarial” (BALL, 2001, p. 107).
Embora o ideário neoliberal apresente como características desejáveis o Estado
Mínimo e a descentralização, temos assistido, no campo da Educação, a uma atuação estatal
enfática e centralizada. Uma nova forma de controle se produz, menos visível, mais liberal e
auto-regulada (BALL, 2002). Alguns elementos importantes desse modo de governar
neoliberal estão presentes na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei no. 9.394/96),
promulgada em dezembro de 1996. Um exemplo é o conceito de descentralização proposto
pela LDB, que conduz à separação entre as esferas de elaboração e execução das propostas
educacionais: estados, municípios e unidades escolares passam a ter maior autonomia
administrativa, executiva e financeira, entretanto, o estabelecimento das competências e
diretrizes para todos os níveis do ensino fica a cargo da União.
Como resposta a essa exigência colocada pela LDB, o Ministério da Educação
divulgou, a partir de 1996, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), seguidos da
divulgação, pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), das Diretrizes Curriculares
Nacionais (1998). Esse conjunto de documentos passou a servir de base à elaboração de todas
as matrizes de referência, para as escolas privadas e públicas. O mesmo movimento também
aconteceu no âmbito de alguns Estados da federação, que passaram, a partir da LDB, a
formular currículos específicos para suas redes de ensino. Simultaneamente ao
estabelecimento dos currículos nacionais, foram criados diferentes sistemas de avaliação, dos
quais o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), a Prova Brasil, o Exame Nacional
do Ensino Médio (Enem), o Exame Nacional para a Certificação de Competências de Jovens e
Adultos (Encceja), o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) e o
Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) são exemplos.
Percebemos que os modelos de regulação do currículo, do trabalho docente e da gestão
escolar adotados pela governamentalidade neoliberal se articulam a partir dos pressupostos da
eficiência, dos resultados, da avaliação e da competência (HYPÓLITO, 2010), valores
trazidos do mundo empresarial e de algumas teorias econômicas, sobre as quais falaremos
adiante. A governamentalidade neoliberal apresenta sua proposta de reestruturação das
políticas educacionais como algo inevitável e urgente, por meio de uma série de
discursos que desempenham uma variedade de políticas em diferentes lugares, com
o objetivo de criar uma noção de que as reformas são uma necessidade natural,
37
constituem-se em parte inevitável da globalização e do mercado internacional e de
uma economia cada vez mais baseada no conhecimento e que, portanto, exige
mudanças radicais na forma de organizar, conceber e desenvolver a educação. Isso
conduz a um deslocamento da esfera do político para a esfera do econômico, que
passa a ser determinante para as definições educativas (HYPÓLITO, 2010, p. 1340).
Assim, os regimes de verdade construídos pela governamentalidade neoliberal
desejam produzir sobre a sociedade um sentimento de inexorabilidade em relação aos
caminhos que os Estados e indivíduos devem percorrer para garantir o desenvolvimento
econômico, social e também educacional. De acordo com os teóricos neoliberais, a crise das
instituições educacionais é, fundamentalmente, “uma crise de qualidade decorrente da
improdutividade que caracteriza as práticas pedagógicas e a gestão administrativa da grande
maioria dos estabelecimentos escolares” (GENTILLI, 1994, p. 4). Não se trata, portanto, de
uma crise de democratização, mas de uma crise gerencial que só pode ser adequadamente
resolvida com uma “profunda reforma administrativa do sistema escolar orientada pela
necessidade de introduzir mecanismos que regulem a eficiência, a produtividade, a eficácia”
(GENTILLI, 1994, p. 5) dos sistemas escolares. Estaríamos diante de um enorme desafio
gerencial, que tem sido respondido pelos Estados neoliberais com sucessivas reformas. Na
próxima seção, nos deteremos sobre algumas categorias de análise que podem ser bastante
úteis na análise dessas reformas e seus impactos sobre a subjetividade docente.
1.4. A reforma educacional e suas tecnologias: impactos sobre a subjetividade docente
Stephen Ball analisa as reformas educacionais promovidas pelos estados neoliberais
fazendo uso de três categorias interdependentes: o mercado, a performatividade e o
gerencialismo, as quais ele denomina como tecnologias da reforma. O mercado, como
argumentamos ao longo da seção anterior, é o elemento central da governamentalidade
neoliberal, que generaliza os princípios mercadológicos a todos os campos da vida social.
Nesse sentido, podemos pensar as relações entre mercado e Educação a partir de, pelo menos,
dois aspectos. Por um lado, a governamentalidade neoliberal transforma a própria Educação
em mercadoria, um produto altamente lucrativo, que movimenta o mercado de livros
didáticos, materiais pedagógicos, cursos de especialização. Por outro lado, o processo
educativo, suas finalidades e justificativas vêm sendo povoados pela lógica mercadológica, e
38
é cada vez mais usual a contratação de instituições privadas para trabalhos de intervenção
pedagógica nas redes públicas, especialmente municipais (HYPÓLITO, 2010).
Devemos entender a segunda categoria de análise proposta por Ball, a
performatividade, como uma “tecnologia, uma cultura e um método de regulamentação que
emprega julgamentos, comparações e demonstrações como meios de controle, atrito e
mudança” (BALL, 2005, p. 543). A partir do desempenho alcançado em relação às metas
estabelecidas pelos governos gerencialistas (federais, estaduais ou municipais), sujeitos e
instituições demonstram o nível de “qualidade” dos serviços oferecidos, configurando o
trabalho como uma mercadoria a ser mensurada, comparada e, eventualmente, descartada.
Essa possibilidade do desaparecimento (um exemplo na Educação é o fechamento das escolas
“improdutivas”) é um dos aspectos que conformam o que Lyotard (2004) chama de “os
terrores da performatividade”.
Uma das tecnologias centrais da performatividade são os sistemas de avaliação e
classificação das escolas, dos professores e dos alunos produzidos nos âmbitos municipal,
estadual e federal. O acesso às estatísticas produzidas por esses dispositivos avaliativos
supostamente possibilita ao “cidadão-cliente” a melhor escolha acerca do “produto educação”.
Esse mecanismo “objetiva conduzir as condutas individuais e coletivas, administrando-as de
modo a responsabilizar cada um pelo seu destino” (TRAVERSINI; BELLO, 2009, p. 143).
Cada vez mais,
conduzir, regular e normalizar uma população não requer unicamente a extração de
saberes sobre ela – como o vem fazendo a Antropologia, a Psicologia Social, a
Demografia, entre outros. Além disso, há a necessidade de se produzirem registros
sobre essa população, para propor, para acompanhar e para avaliar intervenções,
quantificando os seus aspectos mais característicos e de interesse, formulando
saberes para depois disponibilizá-los aos governos e à sociedade (TRAVERSINI;
BELLO, 2009, p. 137).
Desse modo, os resultados que tais avaliações apresentam acabam por legitimá-las, na
medida em que oferecem aos cidadãos a possibilidade de, por meio do conhecimento de
índices e rankings, “escolher” a melhor instituição escolar. Tal liberdade de escolha é um dos
alicerces do discurso neoliberal. De acordo com Foucault (2008), a liberdade é mais que isso,
é a própria condição de existência do neoliberalismo. Por isso, o governo neoliberal produz
liberdades, e deve produzi-las incessantemente, pois essa razão de governo
39
é consumidora de liberdades, na medida em que só pode funcionar se existe
efetivamente certo números de liberdades: liberdade de mercado, liberdade do
vendedor e do comprador, livre exercício do direito de propriedade, liberdade de
discussão, eventualmente liberdade de expressão etc. A nova razão governamental
necessita portanto de liberdade, a nova razão consome liberdade. Consome
liberdade, ou seja, é obrigada a produzi-la. É obrigada a produzi-la, é obrigada a
organizá-la (FOUCAULT, 2008, p. 86).
O funcionamento das políticas curriculares neoliberais, que aqui nos interessa de modo
especial, obedece a essa lógica de produção e regulação da liberdade: há uma margem de ação
para os sujeitos, mas esse espaço de liberdade não poderá interferir nos resultados almejados
pelo governo. O professor é convocado a agir, pensar, reformular as prescrições, mas sua ação
estará submetida a mecanismos permanentes de controle e avaliação, cujos resultados podem
se traduzir no constrangimento do campo de liberdade desses sujeitos. O Estado neoliberal
age no sentido de dispor sobre todas as coisas, de conduzi-las, reorganizá-las, minimizar e
potencializar riscos e virtualidades. Para uma racionalidade de governo que procura “governar
o menos possível” (FOUCAULT, 2008, p. 41) é preciso produzir sujeitos que, dentro de
certos limites, governem a si mesmos, diminuindo a burocracia estatal e a necessidade de
intervenção do Estado. Se o horizonte da liberdade deve ser mantido, ele se faz acompanhar
por uma alta dosagem daquilo que costuma se denominar accountability, que pode ser
traduzido como responsabilização ou prestação de contas. Os professores devem governar a si
mesmos e a seus alunos, com certa margem de autonomia, entretanto, serão permanentemente
chamados a prestar contas ao Estado e à sociedade sobre os resultados de seu trabalho, quase
sempre sem levar em conta a complexidade dos contextos institucionais e sociais em que
foram produzidos.
A terceira categoria de análise proposta por Ball, o gerencialismo, pode ser entendida
como “uma tecnologia para a organização institucional, não apenas no setor privado mas
também, cada vez mais, no setor público” (PETERS; MARSHALL; FITZSIMONS, 2004, p.
77). Todos são atravessados pelo discurso gerencialista, que atua em vários níveis: o
individual (que interpela estudantes e professores o sentido da “autogestão” de suas trajetórias
escolares); o nível da sala de aula (com base no conjunto de práticas e discursos que entendem
a questão do ensino como essencialmente um problema de gestão, portanto da adequada
seleção de métodos, técnicas e alocação de recursos adequados) e, finalmente, o nível da
própria escola, que deve se autogerenciar e se responsabilizar pela produção de seus
resultados.
40
Para que a reestruturação das políticas educacionais promovida por tais tecnologias
que acabamos de descrever possa funcionar novas identidades docentes devem ser fabricadas.
Definir que identidade profissional é necessária para o magistério, como os
professores e as professoras devem se comportar e desempenhar suas atividades,
quais são seus problemas práticos e como devem ser solucionados, é uma forma de
garantir as condições necessárias para a normatização do que vem a ser a docência
para esse modelo gerencial. É um processo mesmo de fabricação de identidade
(HYPÓLITO, 2010, p. 1344).
Submetidos a essas tecnologias de governo, o professores tendem a se sentir como
executores de projetos educacionais concebidos por outros sujeitos e instâncias, pressionados
pela necessidade de produzir resultados e atuar com eficiência. Associado a essa separação
entre as instâncias de elaboração e execução dos projetos e políticas educacionais,
desenvolve-se o processo que Michael Apple (1995) chama de intensificação, marcado pela
crescente escassez de tempo do trabalho pedagógico, que dificulta momentos de
aperfeiçoamento e reflexão em torno da prática. Em ambos os casos, a consequência é que “os
professores vêm a depender mais dos especialistas, que lhes dizem o que fazer, e acabam
desvalorizando o conhecimento que adquiriram ao longo dos tempos” (MOREIRA, 1996, p.
14). A própria sociabilidade docente modifica-se nesse contexto: em uma cultura que valoriza
o desempenho e a performance, o individualismo, a competitividade e a individualização do
trabalho tornam-se crescentes. Entendemos que “as tecnologias políticas da reforma da
Educação não são simplesmente veículos para a mudança técnica e estrutural das
organizações, mas também mecanismos para reformar professores e para mudar o que
significa ser professor” (BALL, 2002, p. 5).
Nesse processo de fabricação de subjetividades docentes postos em ação pelas
políticas gerencialistas, há uma clara valorização do individualismo em detrimento das formas
colaborativas, e atividades profissionais não pragmáticas, que se voltam para questões gerais
acerca da prática e das finalidades da Educação, são desestimuladas (HYPÓLITO, 2010).
Como afirmamos anteriormente, embora o discurso neoliberal interpele constantemente os
docentes para uma associação colaborativa com os programas oficiais nas escolas, assistimos,
na prática, a um controle cada vez mais rígido do trabalho docente (por intermédio dos
programas curriculares, sistemas de avaliação e pagamento de bonificações). A colaboração
desejada pelas políticas neoliberais é aquela que contribui para o alcance dos resultados,
índices e metas estabelecidos pelos governos.
41
O movimento de reestruturação educacional que estamos discutindo neste trabalho não
possui um centro único, de modo que a prática reguladora neoliberal da Educação está
presente nos programas e projetos do governo federal, mas também nas políticas estaduais,
em Estados que exercem forte influência no cenário nacional, tais como São Paulo e Rio
Grande do Sul. No próximo capítulo, descreveremos o modelo de Estado Gerencialista
construído no Estado de Minas Gerais a partir de 2003, cujo projeto foi batizado como
“Choque de Gestão” por seus idealizadores, nos atentando, de modo especial, aos discursos e
às práticas que se dirigem à Educação e aos professores.
42
2. “MINAS É UMA GRANDE EMPRESA”: GOVERNAMENTALIDADE
NEOLIBERAL E EDUCAÇÃO EM MINAS GERAIS
2.1. Estado gerencial, mercado e sociedade: um novo equilíbrio de forças
A reforma do Estado brasileiro, iniciada na década de 1990 em âmbito federal, que
apresentamos no capítulo anterior também ocorreu em diversos Estados da federação, tais
como São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, caso que nos interessa de modo mais
específico neste trabalho. Os discursos neoliberais adotados pelos governos estaduais, aos
moldes do discurso que justificou a adoção do Estado Gerencial no âmbito federal, apontam
para as políticas fiscais, a ociosidade e ineficiência dos serviços públicos e a excessiva
burocratização dos serviços administrativos (GANDINI; RISCAL, 2002) como os maiores
males do Estado-Providência, que precisam, nessa perspectiva, ser enfrentados com a
reestruturação dos serviços governamentais e a modernização do aparelho estatal. Um novo
modelo de cidadão, o cidadão-cliente, deve ter seus interesses atendidos, o que significa a
oferta de serviços públicos de “qualidade”.
A oferta desses “serviços de qualidade” transforma-se no foco da gestão, que passa a
ser pensada em função dos resultados, das metas e números estabelecidos como indicadores
de qualidade para cada setor dos serviços públicos. Para promover a modernização e a
eficiência prometidas, as governamentalidades neoliberais se aliam a poderosos agentes
veiculados ao mercado e ao Terceiro Setor5 para a estruturação de políticas públicas, alçando
empresas, organizações não-governamentais e fundações ao status de interlocutores e
parceiros privilegiados para o planejamento e execução das ações do governo.
O exemplo do governo da prefeitura de São Paulo, assumido pelo candidato do Partido
dos Trabalhadores, Fernando Haddad, a partir de 2013, é bastante ilustrativo da estreita
relação entre setor público e entidades e movimentos empresariais a qual nos referimos.
Haddad designou Marcos Cruz para a Secretaria de Finanças, nome indicado ao prefeito pelo
Movimento Brasil Competitivo (MBC), iniciativa criada pelo empresário Jorge Gerdau
5 O Terceiro Setor constitui-se na esfera de atuação pública não-estatal, formado a partir de iniciativas privadas,
voluntárias, sem fins lucrativos, no sentido do bem comum. Nesta definição, agregam-se, estatística e
conceitualmente, um conjunto altamente diversificado de instituições, no qual se incluem organizações não
governamentais, fundações e institutos empresariais, associações comunitárias, entidades assistenciais e
filantrópicas, assim como várias outras instituições sem fins lucrativos. Disponível em: www.bndes.gov.br.
Acesso em: 22 mar. 2015.
43
Johannpeter (atual presidente do Conselho de Administração da Gerdau) para “contribuir
expressivamente para a melhoria da competitividade das organizações privadas e da qualidade
e produtividade das organizações públicas”.6 O MBC foi criado em 2001, reconhecido como
uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), e vem atuando como
parceiro de instituições públicas, privadas e do Terceiro Setor em diversos programas e
projetos.
Marcos Cruz é consultor e sócio da McKinsey & Company, empresa internacional de
consultoria em alta gestão e parceira do Movimento Brasil Competitivo para a elaboração de
programas de melhoria de gestão para governos em todas as esferas. Os projetos de governo
criados na parceria entre empresas privadas e uma associação civil sem fins lucrativos foram
implementados pelos poderes executivos de treze Estados, onze municípios, cinco
ministérios, duas secretarias da Presidência da República e dois órgãos do poder judiciário,
sob a gestão de diversos partidos políticos. Isso demonstra que não há associação única entre
a mentalidade neoliberal e alguma legenda partidária específica. Não apenas diferentes
governos (municipais, estaduais e federais) têm legitimado o regime de verdade neoliberal e
adotado suas práticas, mas também outras entidades e forças capilarizadas pelo corpo social
contribuem para o fortalecimento dessa forma específica de governamentalidade.
No Rio Grande do Sul, um exemplo importante da aproximação entre Estado e
movimentos empresariais pode ser encontrado na atuação do Agenda 2020, criado em 2006.
O movimento articula a iniciativa privada, o Terceiro Setor e o poder público em torno de
eixos temáticos (tais como Agronegócio, Meio Ambiente, Saúde, dentre outros), e é claro que
a Educação é um de seus alvos, sendo a implementação de “um modelo de gestão básica com
foco na qualidade”7 o objetivo da Agenda para a área. Para alcançar esse objetivo, propõe a
ampliação da rede escolar em tempo integral e a valorização e qualificação de professores,
que devem ter a progressão de suas carreiras articuladas “à melhoria das taxas de aprovação e
níveis de aprendizagem dos alunos”8.
O movimento vem elaborando uma série de diagnósticos e propostas para os governos
gaúchos, contemplando projetos ligados à Reforma da Previdência, Publicização de Serviços
Não Exclusivos do Estado, Teto Salarial e Lei de Responsabilidade Fiscal, Transparência na
Gestão Pública e nos Serviços Delegados, Implementação das PPPs (parcerias público-
privadas), Reforma Administrativa e Modernização da Administração Pública Estadual 6 Disponível em: www.mdc.org.br. Acesso em: 21 mar. 2015.
7 Disponível em: agenda2020.com.br. Acesso em: 19 mar. 2015.
8 Disponível em: agenda2020.com.br. Acesso em: 19 Mar. 2015.
44
(PERONI, 2011). Muitas mudanças sugeridas pelo Agenda 2020 foram implementadas pelo
governo do Rio Grande do Sul, como as propostas de mudança na legislação relativa à
Publicização de Serviços Não Exclusivos do Estado sugeridas pelo grupo, em 2009 (PERONI,
2011).
Há, nas propostas do Estado Gerencial, uma clara mudança nas relações entre os
setores público e privado. Uma crescente privatização do âmbito de definição das políticas
públicas está em processo, e não são poucos os nomes expressivos que poderíamos citar em
atuação no cenário brasileiro no campo específico das políticas para a Educação, como o
Movimento Todos Pela Educação, a Fundação Pitágoras, o Instituto Unibanco, o Instituto
Ayrton Senna, Lide, dentre tantos outros, cujos projetos e programas se desenvolvem em
diversos Estados brasileiros. Não podemos deixar de destacar aqui o papel dos organismos
financeiros internacionais na definição de políticas públicas para a Educação de cunho
neoliberal. Logo mais discutiremos a importância do Banco Mundial para a configuração das
políticas públicas no Brasil e, mais precisamente, para a reforma de Estado promovida em
Minas Gerais a partir do programa Choque de Gestão.
A ideia de que estamos vivendo uma crise do Estado, central ao pensamento
neoliberal, justifica as estratégias de redução do aparato estatal (rumo ao “mínimo”) e, para
isso, produz a desqualificação dos serviços, servidores e instituições públicas. Para solucionar
o problema da “incompetência” e da “ineficiência” do setor público, técnicos e especialistas
que supostamente dispõem do saber instrumental necessário para efetivar as reformas são
alçados à posição de interlocutores privilegiados. No âmbito da Educação, isso se concretiza
com a importação de tecnologias educacionais exógenas ao contexto escolar, destinadas a
organizar e tornar mais eficiente o trabalho ali desenvolvido, que deve se orientar pelo alcance
de metas e resultados produzidos também externamente. O professor, sujeito que nos interessa
mais especificamente no escopo deste trabalho, deve responsabilizar-se pela produção dos
resultados estabelecidos, deve ser pró-ativo, inventivo, flexível.
Para produzir o sujeito-empresa professor, a governamentalidade neoliberal precisa
criar, entre os docentes, uma cultura de competitividade e de ação orientada pelos resultados;
os fins, nessa perspectiva, são sempre mais importantes que os meios. O enfoque gerencial
entende que a discussão sobre os meios não deve suplantar o alcance dos fins e, desta forma,
as estratégias para a obtenção de resultados tornam-se o foco das atenções. Como
argumentamos no capítulo anterior, o modelo da empresa avança pelo mundo social,
produzindo um repertório de comportamentos e orientação das condutas dos sujeitos pautado
45
pelos princípios da eficiência e da concorrência. Nesse sentido, os diferentes projetos de
inovação do setor público empreendidos a partir dos anos 1990 podem ser pensados como
uma mudança de cunho radical que se justifica por fins estratégicos, estruturais, humanos,
tecnológicos, culturais, políticos e de controle (foco em transparência e accountability)
(MOTTA, 2001).
Vejamos agora como se estruturaram as práticas neoliberais de governo no Estado de
Minas Gerais, a partir da reforma conhecida como Choque de Gestão, enfatizando a
importância de grupos ligados ao mercado para a idealização e implementação desse
programa de alinhamento do governo mineiro ao modelo gerencial. Daremos especial atenção
aos impactos do Choque sobre a Educação, por meio da análise da organização e das
diretrizes para a área propostas pelo programa.
2.2. Choque de Gestão: ações e objetivos
Baseado no argumento da urgência de enfrentar uma grave crise fiscal e administrativa
amplamente mobilizado para a implantação de modelos gerencias de Estado, o governo de
Minas Gerais, sob a gestão de Aécio Neves (2003-2006), lançou o programa intitulado
“Choque de Gestão”. Em linhas gerais, o programa se comprometia a promover a
modernização da administração, a racionalização de gastos, o monitoramento e avaliação das
ações e dos resultados das intervenções governamentais. Vale dizer que a promessa de “dar ao
Estado modernidade, agilidade e eficiência, adequando-o aos novos tempos e, ao mesmo
tempo, garantir transparência aos atos e ações do governo” (Mensagem do Governador à
Assembleia, 2003, p. 6) foi a principal plataforma do candidato Aécio Neves durante a
campanha eleitoral de 2002.
Dentre as metas do Choque de Gestão estavam a obtenção do saldo positivo entre
arrecadação e despesas – denominado “Déficit Zero” –, o monitoramento das ações dos
servidores e instituições públicas para que se obtenha o máximo de eficiência nas
intervenções do governo e o alcance das metas “acordadas”. Nesse contexto, a avaliação de
desempenho institucional e individual tornou-se elemento central, para aferir o alinhamento
dos sujeitos e instituições aos resultados estabelecidos pelo governo. É importante destacar
que todo o arcabouço legal do projeto estruturador “Choque de Gestão” foi constituído a
partir de um novo paradigma que previa o alinhamento entre o desenvolvimento de pessoas,
46
objetivos organizacionais e avaliação dos resultados das políticas públicas” (Mensagem do
Governador à Assembleia, 2004, p. 14). Tornaremos a discutir a centralidade da avaliação nas
reformas educacionais neoliberais, e de modo mais detido sobre o complexo e extenso
dispositivo avaliativo posto em ação pelo governo mineiro, conformando o que alguns autores
denominam “cultura do desempenho”.
As primeiras medidas tomadas pelo governo para o enxugamento da máquina pública
foram a redução do número de secretarias de vinte e uma para quinze; a redução e o
estabelecimento de um teto salarial para os servidores; a redução na remuneração do
governador e secretários; a suspensão nos gastos da administração nos primeiros cem dias do
governo; a centralização da folha de pagamento; a extinção de benefícios e a melhoria da
administração tributária.
O programa, iniciado na primeira gestão de Aécio Neves (2003-2007), prosseguiu ao
longo de seu segundo mandato (2007-2010) e do governo subsequente de Antônio Anastasia
(2010-2014). Estiveram à frente da Secretaria de Educação, neste período, Vanessa
Guimarães Pinto (2003-2010) e Ana Lúcia Gazzola (2010-2014). A Secretaria de
Planejamento e Gestão, articuladora do Choque, foi comandada por Antônio Anastasia (2003-
2006) e Renata Vilhena (2006-2014).
Por meio dessa reforma do Estado, o governo de Minas Gerais alinhou-se à
governamentalidade neoliberal no que se refere à política de regulação de serviços públicos.
A interlocução com agências internacionais de financiamento, característica das práticas
neoliberais, marcou todo o processo de elaboração e execução do Choque de Gestão. O Grupo
Banco Mundial (BM) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) foram os grandes
parceiros do governo mineiro no financiamento do programa, que contraiu junto a eles US$
1,21 bilhões em empréstimos.
A partir da década de 1990, o BM elevou o valor dos empréstimos concedidos à
Educação, especialmente aos países interessados em promover reformas curriculares e da
administração educacional. O Brasil é um dos maiores clientes do Banco Mundial, tendo
contraído, desde 1949, empréstimos que chegam a 30 milhões de dólares. Desde a reforma do
Estado, promovida em meados dos anos 1990, o Brasil vem alinhando suas políticas para a
Educação às diretrizes estabelecidas pelo banco, tais como
47
a redução das taxas de responsabilidade do Ministério da Educação como instância
executora; o estabelecimento de conteúdos curriculares básicos e padrões de
aprendizagem; a implementação de um sistema nacional de avaliação do
desempenho das escolas e dos sistemas educacionais para acompanhar a consecução
das metas de melhoria da qualidade do ensino (ALTMANN, 2002, p. 82).
O diretor do Banco Mundial quando do início do programa Choque de Gestão, John
Briscoe, consultor do governo mineiro para a elaboração da reforma afirmou que:
Iniciava-se aí uma parceira resoluta entre Minas Gerais e o Banco Mundial. O
governador apresentou ao Banco Mundial seu plano para o segundo mandato, cujo
núcleo duro consistia em aprofundar o choque de gestão nos setores de transporte,
saúde e educação e nos programas de redução de pobreza. Para levar adiante o
programa, ele nos propunha uma nova e desafiadora parceria. Os melhores
especialistas em gestão pública do Banco Mundial foram reunidos para trabalhar em
conjunto com a equipe do governo de Minas em um projeto que terá profundo
impacto positivo nas futuras gerações de mineiros. Após nove meses, o resultado
dessa parceria do Banco Mundial e Minas Gerais consolida-se agora nesse novo
empréstimo de US$ 976 milhões, um aporte com enfoque multi-setorial que
combina apoio financeiro e assistência técnica (Jornal Gazeta Mercantil, publicado
em 26/08/2008).
A importância do Banco Mundial na atualidade “deve-se não apenas ao volume de
seus empréstimos e à abrangência de suas áreas de atuação, mas também ao caráter
estratégico que vem desempenhando no processo de reestruturação neoliberal junto dos países
em desenvolvimento, por meio de políticas de ajuste estrutural” (SOARES, 1998, p. 15). O
Choque de Gestão do governo mineiro é um exemplo claro de concessão de empréstimos
mediante a garantia do controle da gestão e alocação de recursos da política financiada pelo
Banco.
O programa, conduzido pela Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão
(SEPLAG), já passou por três etapas: na primeira, intitulada “Choque de Gestão” (2003-
2006), o programa enfatizou o enfrentamento do déficit fiscal e a execução do portfólio dos
Programas Estruturadores, bem como estabeleceu os primeiros Acordos de Resultados. O
alinhamento das prioridades de curto, médio e longo prazo efetivou-se em um duplo
planejamento, por meio Plano Mineiro de Desenvolvimento Integrado, de longo prazo, e o
Plano Plurianual de Ação Governamental (PPAG), com foco no médio e curto prazo.
No segundo momento (2007-2010), intitulado “Estado para Resultados”, consolidou-
se o sistema de metas, com acompanhamento de projetos nas secretarias e órgãos do governo
e a firmação dos acordos de resultados e da premiação por desempenho. Essa etapa foi
48
marcada, principalmente, pela consolidação de ferramentas de gestão de programas e projetos
estratégicos para ampliar o foco em resultados, e pelo aperfeiçoamento do modelo de
contratualização e seu desdobramento para os acordos com as equipes de trabalho.
No terceiro e último momento, que se iniciou em 2011 e terminou em 2014, o foco do
programa foi na “Gestão para a Cidadania”, enfatizando a participação da sociedade civil na
elaboração e monitoramento das ações governamentais. Com a criação de comitês regionais,
aos quais os integrantes da sociedade civil organizada podem levar suas prioridades, o
governo indicava o início de uma fase do Choque na qual canais de comunicação entre a
população e os gestores pudessem se consolidar. Entretanto, a suposta participação
democrática da sociedade no planejamento das políticas públicas mineiras ficou
comprometida pela lógica hierárquica que orientou a ação governamental, especialmente no
que dizia respeito às metas estabelecidas pelo Acordo de Resultados. Este se baseou
no pressuposto de que o contratante tem clareza dos resultados que pretende, e que o
incentivo a ser pago ao contratado é determinante para motivá-lo nesta direção para
evitar comportamentos destoantes – assegurados os meios e controles necessários9
(MINAS GERAIS, 2013, p. 67).
O controle da conduta dos sujeitos envolvidos pelo contrato do Acordo mostra-se
claramente nesse discurso do governo. Como argumentamos neste trabalho, a
governamentalidade neoliberal intenta produzir uma coincidência entre o governo de Estado,
o governo dos outros e o governo de si. Trata-se de uma forma sutil de governo que pretende
gerir o nosso querer, conduzir nossas condutas, criar em todos e em cada um determinados
tipos de subjetividade, alinhadas aos preceitos mercadológicos da eficiência e da utilidade. Do
servidor público, e de modo mais específico, dos professores da rede pública, tais discursos e
práticas demandam uma obediência total. A cultura do desempenho alimenta-se de momentos
nos quais a performance dessas subjetividades controladas e forjadas pelo neoliberalismo
podem se exibir em todo o seu esplendor.
No livro intitulado Do Choque de Gestão à gestão para a cidadania: 10 anos de
desenvolvimento em Minas Gerais10
, lançado em 2013, no contexto da parceria entre o
governo de Minas Gerais, o Instituto Publix e o Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais
9 Disponível em: http://planejamento.mg.gov.br/images/documentos/Livro_de_Minas_VF.pdf. Acesso em: 12
abr. 2015. 10
Disponível em: http://planejamento.mg.gov.br/images/documentos/Livro_de_Minas_VF.pdf. Acesso em: 12
abr. 2015.
49
(BDMG), o programa é apresentado como “um paradigma mundial em desenvolvimento e
melhoria da gestão pública” (p. 13).
Aécio Neves assim se referiu a ele em entrevista concedida em 2010:
Nós estabelecemos metas para todos os servidores, dos professores aos policiais. E
100% deles passaram a receber uma remuneração extra que atingisse as metas
acordadas. O governo começou a funcionar como se fosse uma empresa. Os
resultados apareceram com uma rapidez impressionante. A mortalidade infantil em
Minas caiu mais do que em qualquer outro estado, a desnutrição infantil das regiões
mais pobres chegou perto do patamar das regiões mais ricas, todas as cidades do
Estado agora são ligadas por asfalto, a energia elétrica foi levada a todas as
comunidades rurais e mesmo as mais pobres passaram a ter saneamento. Na
segurança pública conseguimos avanços notáveis com efetiva diminuição de todos
os tipos de crimes (NEVES, 2010, p. 20).
A relação estabelecida entre os supostos efeitos da reforma do Estado mineiro e a
lógica empresarial empregada em sua concepção e execução mostra-se bastante clara na fala
do ex-governador. Essa associação é central no quadro do novo gerencialismo que orienta a
reforma executada pelo Choque de Gestão. No contexto de ascensão do neoliberalismo como
mentalidade dominante, a organização institucional do setor público passa a ser cada vez mais
baseada em estilos de gestão do setor privado.
A chamada Nova Gestão Pública, muito influente na condução das políticas públicas
promovidas nas últimas décadas no Canadá, na Nova Zelândia, no Reino Unido e na
Austrália, intenta promover a descentralização do controle “da gestão do centro para a
instituição individual, permitida por um novo contratualismo – frequentemente chamado de
doutrina da autogestão – juntamente com novas estruturas de responsabilização e
financiamento” (PETERS; MARSHALL; FITZSIMONS, 2007, p. 77).
2.3. A Educação por resultados
As políticas públicas para a Educação promovidas pelo governo mineiro no período do
Choque de Gestão (2003-2014) podem ser entendidas como estratégias que têm como
objetivo final a melhora do desempenho das escolas nas avaliações externas, tanto as de
caráter nacional, mas também e especialmente aquelas produzidas especificamente para a rede
estadual mineira cujos resultados estão diretamente associados aos recursos financeiros dos
50
sistemas escolares. Esse dispositivo que integra avaliação e remuneração dos servidores
públicos é legitimado pela ideia amplamente difundida pelos neoliberais de que tais sistemas
avaliativos garantem a transparência da gestão pública, por meio de prestações de contas e
demonstração de resultados por parte das instituições e sujeitos atuantes no serviço público.
Para efetivar a responsabilização das instituições e servidores públicos pelo
desempenho obtido diante das metas estabelecidas, a Secretaria de Educação do Estado e os
demais órgãos públicos da Educação devem assinar com o próprio governador um Acordo de
Resultados11
, cujos intervenientes são a Secretaria de Planejamento e Gestão e a Secretaria da
Fazenda. O principal objetivo desse instrumento gerencial é “a definição de prioridades
representadas por indicadores e metas garantindo que os resultados esperados sejam o foco de
atuação das instituições e dos servidores públicos mineiros” (SEPLAG/MG).12
O Acordo de
Resultados da Educação em Minas Gerais está em “conformidade com o objetivo prioritário
expresso no Plano Mineiro de Desenvolvimento Integrado – PMDI de melhorar e ampliar o
atendimento ao cidadão, por meio da oferta de serviços públicos de qualidade, especialmente
na Educação” (AUGUSTO, 2010, p. 41). Os resultados aferidos pelas avaliações servem para
garantir a “qualidade” dos produtos educacionais oferecidos à população.
O Acordo apresenta dois projetos estruturadores: “Melhoria e Ampliação do Ensino
Fundamental” e “Universalização e Melhoria do Ensino Médio”.13
Na próxima seção nos
deteremos de modo mais prolongado sobre as estratégias de reconfiguração da Educação
pública postas em ação pelo Choque de Gestão para a efetivação das metas estabelecidas nos
projetos estruturadores. Para tornar possível o incremento do Ensino Fundamental, a
Secretaria de Educação apresentou algumas ações específicas a serem realizadas:
a) ampliação da duração da escolarização dessa etapa da Educação Básica, passando
de oito para nove anos, com matrícula inicial dos alunos aos seis anos de idade;
b) Toda criança lendo e escrevendo aos oito anos de idade.
Para a “Universalização e Melhoria do Ensino Médio”, a SEE/MG apresentou as
seguintes estratégias:
a) criação de novas vagas para atender à demanda por mais matrícula nesse nível de
11
A lei que disciplina o Acordo de Resultados é a de no.17.600, de 1
o de julho de 2008, sendo regulamentada
pelo Decreto no. 44.873, de 14 de agosto de 2008.
12 Disponível em: http://www.planejamento.mg.gov.br/estrategia-de-governo/acordo-de-resultados. Acesso em:
14 mai. 2014. 13
Disponível em: www.educacao.mg.gov.br. Acesso em: 23 mar. 2015.
51
ensino, com melhor distribuição dessas vagas na rede de ensino;
b) implantação de um novo plano curricular para o Ensino Médio, mais flexível e
adequado ao perfil diverso de seus frequentadores;
c) maior oferta de formação inicial para o trabalho nas escolas estaduais. O Projeto de
Educação Profissional – PEP e o Projeto Reinventando o Ensino Médio são ações
emblemáticas do governo nessa direção, de alinhamento do Ensino Médio à chamada
empregabilidade.14
Tais projetos estruturadores apresentam como objetivos a melhoria da qualidade do
ensino, compreendida como a ampliação das taxas de proficiência em Português e Matemática
nos exames do Sistema Mineiro de Avaliação da Educação Pública – SIMAVE, considerados
como índices de qualidade da Educação Básica no Estado, segundo o documento do Acordo.
Outras metas e indicadores trazidos por esses projetos referem-se à equidade da Educação,
contemplando a ampliação do atendimento aos alunos nos projetos em desenvolvimento, e a
qualificação docente, abrangendo ampliação do número de professores habilitados e efetivos
(AUGUSTO, 2010).
De acordo com a Secretaria de Planejamento e Gestão de Minas Gerais,
secretarias, autarquias, fundações e empresas estaduais passaram a pactuar
formalmente, com a administração central, compromissos com o alcance de
resultados em suas áreas, focalizando, assim, objetivos e prioridades. Isso permitiu
um rigoroso acompanhamento dos programas e mais eficiência a cada órgão
público.15
O Acordo de Resultados é um contrato de gestão, que “busca o alinhamento das
instituições, a partir da pactuação de metas para o alcance de objetivos organizacionais, em
sintonia com os objetivos expressos no governo” (AUGUSTO; OLIVEIRA, 2011, p. 311). Os
sujeitos e instituições que alcançam os resultados estabelecidos no acordo são premiados por
seu mérito; os que fracassam são sancionados por seu insucesso.
14
O conceito de “empregabilidade” surgiu como instrumento de relativização da crise do emprego, face à
incapacidade do setor produtivo de incorporar ou manter, no seu interior, o mesmo número de trabalhadores.
Surgiu como justificativa para o desemprego em massa, atribuindo à má qualificação dos trabalhadores a culpa
por estes não atenderem às novas exigências do mercado de trabalho. Nesse cenário, torna-se importante
entender como o conceito de “empregabilidade” passou a se relacionar diretamente com as atividades de
qualificação profissional e de valorização da educação básica (BRASIL, Sefor, 1995). 15
Disponível em: aecio-neves-2003-2010.com.br. Acesso em: 23 jun. 2014.
52
Para que os profissionais envolvidos produzam os resultados estabelecidos, o governo
deve buscar estratégias para “auxiliar na implementação de uma cultura voltada para
resultados, estimulando, valorizando e destacando servidores, dirigentes e órgãos ou entidades
que cumpram suas metas e atinjam os resultados previstos” (SEPLAG/MG). Aqui, vale a
pergunta: na cultura do desempenho, há também a obrigação dos meios? Ou ainda: a
obrigação dos resultados é acompanhada pela obrigação dos meios para execução das ações?
Entendemos que “a questão da obrigação de resultados imperativa, que tem como eixo de
análise as avaliações externas (testes padronizados), representa uma lógica pragmática, uma
cultura de performatividade, de produtividade” (AUGUSTO; OLIVEIRA, 2011, p. 311).
A cultura da performatividade implementada pelo governo mineiro amplia a
responsabilização de professores e instituições escolares pelo desempenho apresentado pelos
alunos nas avaliações que compõem o Sistema Mineiro da Avaliação Básica (SIMAVE),
cujos resultados estão vinculados “ao repasse de recursos às escolas, aos reajustes salariais
dos professores e ao bônus salarial, criado pelo governo do estado” (AUGUSTO; OLIVEIRA,
2011, p. 312). Se os resultados produzidos pelos alunos passam a ser sistematicamente
monitorados, também o trabalho do professor passa a ser submetido a mecanismos de controle
mais sofisticados. Os Sistemas de Avaliação Institucional e Desempenho Individual (ADI)16
têm a finalidade de avaliar de forma contínua o desempenho das unidades e servidores em
relação às metas estabelecidas pelo governo, adequando a política de remuneração dos
servidores a uma das máximas do governo: recebe mais quem produz “mais e melhor”.
O “Prêmio por Produtividade” destina-se somente aos servidores que obtiverem nível
de desempenho maior ou igual a 70% da pontuação máxima na Avaliação de Desempenho. O
resultado da ADI pode implicar também na estabilidade dos servidores efetivos do Estado. A
pena de demissão pode ser aplicada ao servidor que receber, nas ADI’s, dois conceitos
sucessivos de desempenho insatisfatório, três conceitos insatisfatórios em cinco ADI’s ou
quatro conceitos insatisfatórios em dez ADI’s. O terror do desligamento impacta diretamente
sobre a subjetividade dos docentes avaliados.
Nesse sentido, argumentamos que estamos a assistir ao processo de produção de uma
nova governamentalidade para os serviços públicos, que vem ganhando força e contornos
cada vez mais nítidos, em um movimento que atinge as esferas federal, estadual e municipal.
Todas as áreas da administração pública têm sido afetadas por essa nova mentalidade de
16
As Avaliações de Desempenho foram instituídas por meio da Emenda Constitucional no. 57, de 15 de julho de
2003, e regulamentada pelo Decreto no. 43.672/03.
53
governo que chamamos de neoliberal, e, de modo muito específico, a Educação. Considerada
peça-chave para a formação do cidadão-cliente, do sujeito-empresa, do Homo economicus
desejado pelo neoliberalismo, a ela se dirigem boa parte das ações da reforma do Estado. O
trabalho docente vê-se profundamente alterado nesse contexto, reorientado em função de
critérios de eficiência e eficácia, em consonância com a lógica produtivista e a racionalidade
gerencial. Novas subjetividades são forjadas nesse cenário, tendente ao individualismo e à
concorrência entre os pares.
2.4. Eixos da Reforma Educacional: gestão, avaliação e autonomia
A partir da leitura dos documentos disponíveis nos portais da Secretaria Estadual de
Educação de Minas Gerais (SEE/MG) e da Secretaria de Planejamento e Gestão
(SEPLAG/MG), pudemos constatar que o Choque de Gestão propõe a regulação da Educação
mineira a partir de três eixos, sobre os quais nos deteremos:
1) Gestão escolar baseada em resultados, compreendendo pactuação de compromissos
e resultados voltados para melhoria dos serviços educacionais prestados pelas escolas;
2) Avaliação de resultados dos exames externos à escola, como instrumentos
utilizados para realizar a avaliação institucional das escolas;
3) Ampliação da autonomia gerencial, orçamentária e financeira, pagamento de
prêmios de produtividade e concessão de adicionais salariais (AUGUSTO, 2010).
A gestão escolar baseada em resultados tem o Acordo de Resultados como elemento
central. A partir desse contrato assinado entre as escolas e a Secretaria Estadual de Educação,
são estabelecidas metas a serem alcançadas por todos os sujeitos escolares, em especial os
professores. São objetivos ligados à ampliação dos resultados de proficiência dos alunos em
Matemática e Língua Portuguesa, nas avaliações do SIMAVE, bem como indicadores
numéricos de redução das taxas de evasão e repetência, por série e etapa da Educação Básica,
a serem alcançados em um período de tempo estipulado pela Secretaria Estadual de Educação.
É o governo central quem define os níveis de proficiência desejáveis aos alunos e às
instituições; os professores não participam desse processo decisório sobre sua conduta e
práticas docentes. Submetidos a essas tecnologias de governo, os professores tendem a se
sentir como executores de projetos educacionais concebidos por outros sujeitos e instâncias,
54
pressionados pela necessidade de produzir resultados e atuar com eficiência, entendida, nesse
contexto, como produtividade em relação a metas exógenas.
O segundo eixo que identificamos a partir da leitura dos documentos aponta para a
conexão estabelecida pela reforma entre os resultados obtidos pelos alunos aos resultados de
professores17
e escolas. Aqui, o processo de responsabilização docente se mostra em todo o
seu esplendor: seu valor como profissional é proporcional à contribuição que ele dá à
performatividade de sua unidade. As notas de alunos, professores e da instituição se implicam
mutuamente, promovendo uma cultura de vigilância, competitividade e individualização,
entremeada pelos grandes “espetáculos” da performatividade (BALL, 2001).
Tal associação entre os resultados de professores e alunos está prevista na Resolução
SEEMG nº. 666 de 7 de abril de 2005, que estabelece os Conteúdos Básicos Comuns – CBC.
Entre os objetivos do CBC destaca-se, em sua ementa: “O CBC vai se constituir em matriz de
referência para o PROEB e para o Programa de Avaliação de Aprendizagem, associado ao
processo de Avaliação de Desempenho Individual – ADI – dos docentes da rede estadual,
instituído pela Lei Complementar nº. 71, de 30 de julho de 2003” (RESOLUÇÃO nº.
666/2005). No capítulo dedicado à avaliação, analisaremos de modo mais detido a vinculação
entre a Avaliação de Desempenho Individual (ADI) e a “capacidade” dos professores de
aprovar seus alunos nos exames e atingir as metas estabelecidas pelo governo. Argumentamos
aqui que a avaliação tem se tornado o grande fio condutor das políticas educacionais: por
meio dela se estabelece o controle sobre o trabalho de professores, alunos, gestores e
instituições.
Entretanto, a meritocracia instaurada pela cultura da performatividade desconhece as
condições de produção dos resultados. Pesa sobre os ombros dos professores toda a
responsabilidade pelo (in)sucesso de seus alunos, como se, de fato, o desempenho apresentado
por estes dependesse exclusivamente da ação pedagógica daqueles. Trata-se da tentativa de
construção de subjetividades docentes que se auto-responsabilizam pelo êxito do processo
educativo, e, por isso mesmo, são convocadas a monitorar o trabalho dos pares, contribuir
com a economia de recursos, sintonizar-se e adequar-se aos objetivos mais amplos do
governo. Lawn (2001) argumenta que os Estados têm se preocupado, historicamente, com a
produção de formas específicas de identidade docente, mobilizadas em momentos críticos de
reformulação das políticas educacionais. Nesse sentido,
17
Os Manuais de Avaliação de Desempenho Individual – ADI da SEEMG são regulamentados pela Resolução
nº. 7.110, de julho de 2009.
55
a identidade dos professores é flexível, no interior de sistemas assentes em exames e
conhecimento universitário, podendo ser sutilmente manejada para enfatizar um
aspecto, em vez de outro, dependendo das circunstâncias. A identidade do professor
tem o potencial para não só refletir ou simbolizar o sistema, como também para ser
manipulada, no sentido de melhor arquitetar a mudança. A tentativa de alterar a
identidade do professor é um sinal de pânico no controle da educação, ou um sinal
da sua reestruturação (LAWN, 2001, p. 119).
No caso mineiro, estamos a assistir o processo de construção de subjetividades das
quais se espera “autonomia”, “autocontrole”, ou seja, a internalização e incorporação das
regras de conduta. Novamente voltamos ao jogo paradoxal que a governamentalidade
estabelece entre liberdade e autonomia, ao qual nos referimos no capítulo anterior: podemos,
como professores, escolher métodos, formas de reorganização do conteúdo, abordagens
distintas do processo ensino e aprendizagem, desde que se chegue ao ponto que foi
determinado. A autonomia e a liberdade representam, nesse contexto, ser aquilo que foi pré-
determinado.
Já o terceiro eixo regulador das políticas públicas para a Educação em Minas está
relacionado ao desempenho como critério de bônus, reajustes salariais e premiações. Como
havemos dito, o governo vincula o resultado nas avaliações externas aos reajustes salariais
dos docentes, pagamentos de bônus e prêmios por produtividade. O repasse de alguns
recursos financeiros às escolas, provenientes dos recursos do tesouro estadual, está
condicionado ao alcance das metas estabelecidas para esses exames. A cultura meritocrática e
de prestação de contas que legitima e reforça tais políticas está sintonizada às demandas de
organismos financeiros internacionais importantes, como é possível perceber no documento
nº. 43 da série “Seminários e Conferências”, intitulado Investir melhor para investir más.
Financiamento y gestión de la educación en América Latina y Caribe, da Comissión
Econômica para América Latina y el Caribe (CEPAL) e da Organización de las Naciones
Unidas para la Educación, la Ciência y la Cultura (UNESCO):
É importante ligar as prestações de contas aos sistemas meritocráticos de prêmios e
sanções ao pessoal docente e aos diretores das escolas. Incentivos e prestação de
contas são as duas caras da mesma moeda. Desta forma, os professores não têm
como resistir às medidas de prestação de contas (CEPAL/UNESCO, 2005, p. 82).
56
Nessa lógica, os professores não apenas não poderão resistir como também não
desejarão fazê-lo, pois uma série de contrapartidas são oferecidas àqueles que se adequam e
alcançam as metas estabelecidas. O bom desempenho garante certas autonomias às unidades
escolares e aos docentes em relação aos recursos disponíveis, dentre elas: a possibilidade de
admissão de estagiários; a contratação de serviços de transporte, sem a manifestação prévia da
SEPLAG; a concessão de adiantamentos, até determinados valores, em reais; a concessão de
ajuda de custo para despesa de alimentação, vale-refeição de servidores em efetivo exercício;
a autorização para pagamento de horas extras e dispensa de autorização da SEPLAG para
afastamento de servidores, motivada por participação em cursos de pós-graduação e
especialização com duração de até três meses. Argumentamos aqui que essa pequena margem
de autonomia é mobilizada pelo governo para prevenir possíveis formas de resistência às
mudanças em curso. São estratégias de conduta da conduta que visam apresentar a reforma
aos professores como algo desejável.
Passaremos, no próximo capítulo, à análise da reforma curricular empreendida no
contexto do Choque de Gestão, analisando de forma mais detida o tipo de professor produzido
pela proposta, e quais são os conhecimentos e práticas docentes que valoriza e estimula.
57
3. A REFORMA CURRICULAR MINEIRA
3.1. A centralidade do currículo nas reformas educacionais neoliberais
Os currículos não são artefatos neutros, meramente científicos ou produzidos fora das
relações de poder. Ao contrário, os currículos são construídos em um campo contestado
(PARAÍSO; SANTOS, 1996), no qual diferentes visões sobre a Educação estão em disputa
pela produção de sentidos, de verdades construtoras da realidade e que nos governam, nos
constrangem; currículos são, desta forma, embebidos de “atos de poder, o poder de significar,
de criar sentidos e de hegemonizá-los” (LOPES; MACEDO, 2011, p. 40). Se os currículos são
atos de poder, instrumentos e produtos da disputa pela instauração de regimes de verdade e
conduta, no tempo presente eles têm sido fortemente marcados pelo pensamento neoliberal
hegemônico, contribuindo, por meio de seus discursos e suas práticas, para o fortalecimento
dessa racionalidade.
As reformas educacionais movidas pelos governos neoliberais são constituídas por
diferentes elementos, tais como mudanças no âmbito da legislação, dos dispositivos de
financiamento, das políticas de formação de professores e de avaliação, da gestão escolar,
dentre outras. Entretanto, as políticas curriculares parecem assumir uma centralidade cada vez
maior a partir da década de 1990, a ponto de serem analisadas como se fossem, em si, a
reforma educacional (LOPES, 2004). Com a implantação de novos dispositivos curriculares,
os governos promovem mudanças amplas e profundas, que visam à instituição de distintas
subjetividades de professores, gestores e alunos.
É especialmente por meio do currículo que a governamentalidade neoliberal deseja
conduzir a conduta dos sujeitos da Educação. Em diferentes dispositivos curriculares,
professores, alunos, gestores e instituição escolar têm seus tempos, objetivos e resultados
controlados. A estreita vinculação dos componentes curriculares aos resultados obtidos nas
avaliações externas, e, mais recentemente, ao pagamento de bônus salariais aos professores,
reforça e agudiza os mecanismos de controle postos em ação por intermédio do currículo.
Vale dizer que o atrelamento dos currículos às avaliações externas também resolve um
problema central ao pensamento neoliberal: como distribuir recursos raros entre escolas que
concorrem entre si por esses recursos? As avaliações indicariam o caminho, definindo as
“boas” escolas merecedoras do financiamento.
58
Em consonância com o pensamento de Stephen Ball (1992) sobre as reformas
educacionais ocorridas a partir dos anos 1980 sob a égide do neoliberalismo, entendemos as
políticas curriculares como complexos processos de negociação, ocorridos em diversos
momentos e dimensões que se inter-relacionam. Nesse sentido, podemos pensar a existência
de três contextos políticos primários que se capilarizam em espaços públicos e privados do
mundo social:
a) contexto de influência, onde normalmente as definições políticas são iniciadas e
os discursos políticos são construídos; onde acontecem as disputas entre quem
influencia a definição das finalidades sociais da educação e do que significa ser
educado. Atuam nesse contexto as redes sociais dentro e em torno dos partidos
políticos, do governo, do processo legislativo, das agências multilaterais, dos
governos de outros países cujas políticas são referência para o país em questão; b)
contexto de produção dos textos das definições políticas, o poder central
propriamente dito, que mantém uma associação estreita com o primeiro contexto; e
c) contexto da prática, onde as definições curriculares são recriadas e reinterpretadas
(LOPES, 2004, p. 112).
No contexto de influência, podemos observar a força da globalização e da
internacionalização dos discursos curriculares, articulada, principalmente, pelas agências de
fomento (tais como o Banco Mundial, o FMI, a OCDE e a UNESCO) e expressa na
convergência de ações impostas aos chamados países periféricos. Textos e práticas de reforma
experimentados em outros países são “tomados de empréstimo” pelos países periféricos, que
também contratam consultorias internacionais e creditam a “gurus” (especialmente da
Economia) a capacidade de criar soluções para as políticas educacionais empreendidas por
seus governos.
A equação que legitima as políticas curriculares neoliberais globalizadas parece, à
primeira vista, bastante óbvia e simples: é preciso pensar a escola como parte de um mercado
educacional (ainda que público) regido pelas mesmas regras que estruturam o mundo
empresarial; estimuladas pelo jogo mercadológico, as escolas aumentariam seu desempenho e
a “qualidade” dos serviços oferecidos; finalmente, os sujeitos formados em tais escolas mais
eficazes contribuirão para o aumento da competitividade econômica internacional. Os
currículos devem potencializar esse processo, à medida que se alinharem cada vez mais às
demandas do mercado e da economia. Ao mesmo tempo, os currículos criam um conjunto de
conteúdos supostamente comum a todos, que deve ser instrumentalizado pelas escolas para
alcançar um bom desempenho no ranking produzido a partir das avaliações externas. O
trabalho docente passa a ser pensado em função do posicionamento da escola na arena
59
“mercadológica”, uma vez que, por meio dos resultados obtidos nas avaliações, as escolas
desvalorizam-se ou valorizam-se, atraindo ou repelindo o “cidadão-cliente”.
Os contextos locais de produção dos currículos – as instâncias de governo
propriamente ditas – recebem, por meio de bricolagens e hibridismos, o fluxo de discursos
produzidos no contexto de influência, que se concretizam por meio de políticas educacionais
semelhantes levadas a cabo por partidos políticos que professam orientações bastante
distintas. A estreita relação entre os elementos em ação no contexto de influência e os
elementos e as práticas resultantes do contexto de produção (tais como os documentos oficiais
que normatizam o currículo) produzem comunidades epistêmicas (BALL, 1998), nas quais
discursos que valorizam a avaliação como garantia de qualidade e a padronização de
currículos circulam e são legitimados por intelectuais e técnicos (nem sempre educadores).
Na próxima seção, analisamos o processo de produção e implementação dos
Conteúdos Básicos Comuns (CBC) em Minas Gerais, atentos aos contextos de influência e
produção, identificando de modo específico os discursos que se dirigem diretamente aos
professores e que intentam controlar e modificar sua conduta docente.
3.2. O processo de elaboração e implementação dos Conteúdos Básicos Comuns em
Minas Gerais
Em Minas Gerais, o processo de implantação do CBC fez parte de um projeto maior
de reestruturação do Estado mineiro e, por isso, é possível notar uma sintonia fina entre as
agendas do Choque de Gestão e da reforma curricular. O mesmo discurso desqualificador das
gestões anteriores, mobilizado para a criação do Choque, também aparece nos documentos
que justificam e legitimam a criação dos Conteúdos Básicos Comuns, como é possível
observar na apresentação do currículo para o Ensino Médio:
Esses números são suficientes para colocar em evidência um dos principais
problemas do nosso sistema educacional: o seu baixo nível de eficiência, com as
indesejáveis consequências sobre os alunos e a pressão que exerce sobre as finanças
públicas. Não é difícil compreender esse quadro. Ele resulta, em primeiro lugar, da
ineficiência elevada ainda existente no Ensino Fundamental (MINAS GERAIS,
2007, p. 12).
60
A ideia de que o Choque de Gestão inaugurou um novo modelo de eficiência na
Educação é enfaticamente apresentada em vários documentos que compõem a reforma,
descrita por seus idealizadores e executores como um ato de
coragem coletiva, altamente mobilizadora de talentos, esforços e recursos, capaz de
romper a premissa vigente, comum até os dias de hoje, de que onde está o poder
público também estão ancoradas a ineficiência, a leniência, o aparelhamento, o
compadrio e a corrupção (MINAS GERAIS, 2013, p. 5).
O projeto teve início em 2003 (mesmo ano em que se iniciou o Choque de Gestão),
quando uma equipe de consultores escalada pela Secretaria de Estado de Educação de Minas
Gerais escreveu as versões preliminares do CBC para todas as disciplinas do currículo dos
Ensinos Fundamental e Médio. Essa primeira versão, elaborada por especialistas, foi discutida
e testada nas escolas integrantes do projeto Escolas-Referência, criado pelo governo mineiro
também em 2003. O projeto, ainda em andamento, contemplava, em sua fase inicial, duzentas
escolas distribuídas por todo o Estado, escolhidas por sua tradição, por possuírem um grande
número de alunos ou pelo reconhecimento positivo da comunidade em que estão inseridas.
Em 2004, o governo iniciou a implantação do CBC nessas escolas, criando os Grupos
de Desenvolvimento Profissional (GDP), estruturados por áreas de conhecimento. Foram
enviados para as escolas os cadernos de trabalho com uma proposta de currículo para cada
disciplina, elaborada por consultorias contratadas. Esperava-se que, com as atividades do
GDP, os professores pudessem analisar as propostas preliminares do CBC elaboradas pelos
consultores do governo e, a partir daí, construíssem propostas de expansão, modificação ou
contextualização do documento. Vale dizer que “o comando central do governo estruturou a
sistemática do debate, o ritmo e o calendário de desenvolvimento, situação que ocupou cinco
horas semanais além da jornada de trabalho sem remuneração sistemática” (MARQUES;
JÚNIOR, 2012, p. 113).
Ouvindo coordenadores de GDP de três escolas de Uberaba, em 2005, Bragança
Júnior (2005) detectou problemas comuns vividos naquela cidade durante o processo de
discussão da reforma curricular. De acordo com os professores entrevistados pelo autor, a
proposta não foi bem recebida pelos professores, pois “havia um discurso de melhoria na
qualidade do ensino, mas não se veiculava nada sobre a valorização profissional enquanto se
efetivava mais horas de trabalho no desenvolvimento dos projetos” (BRAGANÇA JÚNIOR,
2005, p. 113). Aumento na carga horária sem remuneração; inúmeras dificuldades no uso da
61
plataforma virtual disponibilizada pelo governo para o arquivamento das sugestões docentes;
separação dos professores dos Ensinos Fundamental e Médio, comprometendo a organicidade
da proposta e a interlocução entre os pares: esses são alguns problemas apontados por
Bragança Júnior no processo de discussão do CBC no contexto dos Grupos de
Desenvolvimento Profissional.
As reflexões e sugestões surgidas no contexto do GDP, de acordo com o governo
mineiro18
, foram levadas em consideração para a escrita da versão final do CBC para todos os
conteúdos divulgados pela Secretaria de Estado da Educação a partir de 2007. Entretanto,
ainda é preciso que sejam feitas pesquisas acerca do processo de implementação e discussão
da proposta dos Conteúdos Básicos Comuns nas escolas-referência. Desconhecemos
efetivamente o grau de participação dos docentes na construção da proposta definitiva, o que
compromete o caráter democrático que o processo de teste e discussão do projeto-piloto
supostamente confere à concepção do CBC. A questão do grau e do tipo de participação dos
professores na elaboração da proposta mostra-se central, já que, no contexto atual, definido
como “pós-profissional”, somos levados a obedecer regras geradas de forma exógena, com
base nas quais “o que conta como prática profissional resume-se a satisfazer julgamentos
fixos e impostos a partir de fora” (BALL, 2005, p. 542).
Ao fim desse processo de experimentação e construção da proposta curricular, as
versões finais do CBC passam a ser divulgadas e implementadas. O quadro abaixo informa a
autoria de cada um dos cadernos da proposta:
QUADRO 1 – Quadro de autores dos Cadernos dos Conteúdos Básicos Comuns
Caderno Quem produziu
Arte (Ensinos Fundamental e Médio) Lucia Gouvêa Pimentel (UFMG)
Evandro José Lemos da Cunha (UFMG)
José Adolfo Moura
Ciências (Ensino Fundamental) Carmen Maria De Caro Martins (UFMG)
Helder de Figueiredo e Paula (UFMG)
18
Disponível em: crv.educacao.mg.gov.br. Acesso em: 23 jul. 2014.
62
Mairy Barbosa Loureiro dos Santos
Maria Emília Caixeta de Castro Lima (UFMG)
Nilma Soares da Silva (UFMG)
Orlando Aguiar Júnior (UFMG)
Ruth Schmitz de Castro
Selma Ambrosina de Moura Braga (UFMG)
Biologia Carmen Maria De Caro Martins (UFMG)
Maria Inez Melo de Toledo
Mairy Barbosa Loureiro dos Santos
Selma Ambrosina de M. Braga(UFMG)
Educação Física Eustáquia Salvadora de Sousa (UFMG)
Maria Gláucia Costa Brandão
Aleluia Heringer Lisboa Teixeira (UFMG)
Vânia de Fátima Noronha Alves (PUC/MG)
Filosofia Marcelo Marques (UFMG)
Patrícia Kauark (UFMG)
Telma Birchal (UFMG)
Física
Arjuna Casteli Panzera
Arthur Eugênio Quintão Gomes
Dácio Guimarães de Moura (UFMG)
Paulo César Santos Ventura
Geografia Míriam Rezende Bueno
Nair Apparecida Ribeiro de Castro
Rita Elizabeth Durso Pereira da Silva
História Lana Mara de Castro Siman (UEMG)
Luiz Carlos Villalta (UFMG)
Maria Therezinha Nunes
63
Maria Eliza Linhares Borges (UFMG)
Miriam Hermeto de Sá Motta (UFMG)
Alexandre José Gonçalves Costa (UNICAMP)
Ciro Flávio Bandeira de Mello
Evilásio Francisco Ferreira da Silva
Thaís Nívea de Lima e Fonseca (UFMG)
Química
Lilavate Izapovitz Romanelli (UFMG)
Marciana Almendro David (UFMG)
Maria Emília Caixeta de Castro Lima (UFMG)
Penha Souza Silva (UFMG)
Andréa Horta Machado (FAPESP/SP)
Língua Portuguesa Ângela Maria da Silva Souto
Vilma de Sousa
Leiva de Figueiredo Viana Leal (UFOP/UFMG)
Língua Estrangeira Reinildes Dias (UFMG)
Matemática Mário Jorge Dias Carneiro (UFMG)
Michel Spira (UFMG)
Jorge Sabatucci
Sociologia Antônio Augusto Pereira Prates (UFMG)
Geraldo Élvio Magalhães
Regina Maria Dias Carneiro
Renan Springer de Freitas (FAPEMIG/MG)
Fonte: Adaptado do Centro de Referência Virtual do Professor.
Disponível em: crv.educacao.mg.gov.br. Acesso em: 23. jun. 2014).
64
Identificamos19
as instituições nas quais os redatores da proposta se inseriam no
momento em que os cadernos foram escritos para aferir a representatividade das diferentes
universidades, das associações de pesquisa e de professores na constituição da proposta final.
Pela proporção esmagadora de sujeitos vinculados à Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) constatamos que a escrita final do CBC foi produzida de modo extremamente
centralizado. A partir dessa constatação, nos perguntamos: por que outras instituições e
sujeitos não foram convidados a participar desse processo? Em um universo de 21 instituições
públicas de Ensino Superior20
existentes no Estado de Minas Gerais, qual a justificativa para
esta quase exclusividade concedida à mesma universidade? Do nosso ponto de vista, a
centralização da escrita final do programa curricular é mais uma face do caráter pouco
democrático e participativo que marca todo o processo de elaboração e implementação do
CBC. Assim como a etapa de discussão das versões preliminares dos CBC nos Grupos de
Desenvolvimento Profissional foi marcada pela centralização (ocupando o governo o lugar de
protagonista na estruturação das pautas e na dinâmica do debate), a elaboração da versão final
dos CBC também carregam essa marca, já que seus redatores, na grande maioria, vinculam-se
a uma mesma instituição.
Os documentos do CBC para as diferentes disciplinas estruturam-se da seguinte
maneira: um texto introdutório; razões para o ensino da disciplina; diretrizes para o ensino;
critérios que nortearam a seleção dos conteúdos; critérios para a avaliação e apresentação dos
eixos temáticos. Cada um dos eixos é composto por subtemas que, por sua vez, se estruturam
em tópicos (conteúdos) e habilidades que o alunado deve construir a cada unidade. Para o
Ensino Fundamental, o trabalho com os tópicos obrigatórios do CBC deve ocupar 50% da
carga horária total prevista para as disciplinas. Para o Ensino Médio, o estimado é que este
trabalho ocupe um terço da carga horária total.
A manutenção da estrutura disciplinar tradicional nos Conteúdos Básicos Comuns não
produz apenas uma divisão de saberes, mas também relações de poder específicas. “Ao
mesmo tempo em que denota uma área específica de saber, disciplina também denota a
rigidez da resposta ao exercício de um poder, seja de um outro sobre mim, seja de mim sobre
mim mesmo” (GALLO, 2001, p. 17). A divisão disciplinar rígida dos currículos escolares
diminui a possibilidade de experimentar práticas pedagógicas mais colaborativas e integradas
19
Para a composição desse quadro nos valemos das informações fornecidas pelos próprios sujeitos através da
Plataforma Lattes. Disponível em: lattes.cnpq.br. Acesso em: 23 mai. 2015. Não citamos as instituições aos quais
alguns autores se vinculavam no momento da elaboração do CBC, pois não os encontramos na Plataforma
Lattes. 20
Disponível em: portal.mec.gov.br. Acesso em: 11 jun. 2015.
65
(e, possivelmente, mais críticas e problematizadoras), impedindo um maior trânsito entre os
saberes e o trabalho com os conteúdos de modo menos estanque e compartimentalizado. O
estabelecimento de habilidades que o alunado deve adquirir, relacionadas ao conteúdo de cada
uma das disciplinas, reforça a compartimentalização do saber produzido na escola e o caráter
instrumental atribuído ao mesmo. Vale dizer que não postulamos, aqui, um tipo de currículo
transdisciplinar ou uma fusão messiânica de disciplinas capaz de “restaurar” a plenitude do
conhecimento humano “deturpada” pela disciplinarização do pensamento promovida desde a
Modernidade (JAPIASSU, 1976). Entretanto, gostaríamos de assinalar a diminuição da
possibilidade de diálogos interdisciplinares, do pluralismo de ideias e projetos comuns
encetadas pela organização do CBC.
O principal meio de acesso dos professores à proposta curricular e seus princípios
norteadores é o Centro de Referência Virtual do Professor (CRV), portal criado em 2006 pela
Secretaria de Estado da Educação, onde se encontram os currículos propostos para cada
conteúdo, orientações pedagógicas, roteiros de atividades, vídeos e textos de apoio. A
afirmação da centralidade do CRV como plataforma de apoio e estímulo aos docentes pode
ser encontrada, por exemplo, na introdução ao CBC do Ensino Fundamental:
Para assegurar a implantação bem-sucedida do CBC nas escolas, foi desenvolvido
um sistema de apoio ao professor que inclui: cursos de capacitação, que deverão ser
intensificados a partir de 2008, e o Centro de Referência Virtual do Professor
(CRV), o qual pode ser acessado a partir do sítio da Secretaria de Educação
(http://www.educacao.mg.gov.br). No CRV se encontra sempre a versão mais
atualizada dos CBCs, orientações didáticas, sugestões de planejamento de aulas,
roteiros de atividades e fórum de discussões, textos didáticos, experiências
simuladas, vídeos educacionais, etc.; além de um Banco de Itens. Por meio do CRV,
os professores de todas as escolas mineiras têm a possibilidade de ter acesso a
recursos didáticos de qualidade para a organização do seu trabalho docente, o que
possibilitará reduzir as grandes diferenças que existem entre as várias regiões do
Estado (MINAS GERAIS, 2006a, p. 9).
Entretanto, é curioso notar que o espaço criado para abrigar fóruns de discussão
docente acerca da proposta está indisponível, o que reforça a ideia de que as políticas
educacionais neoliberais suprimem os espaços democráticos de diálogo, substituindo-os pelos
imperativos do desempenho. Já não é mais importante pensar nas especificidades do processo,
o que importa é produzir os desejados resultados. Dada a suposta centralidade do Centro de
Referência Virtual do Professor para a implementação da reforma, nos deteremos brevemente
na análise de sua estrutura, dos espaços que abriga e serviços que oferece. No CRV
66
encontramos, além das propostas curriculares para os Ensinos Fundamental, Médio e Normal,
os seguintes conteúdos e espaços de interação:
- Relacionados diretamente aos Conteúdos Básicos Comuns, temos as orientações
pedagógicas, roteiros de atividades, módulos didáticos, um fórum e um sistema de trocas de
recursos educacionais;
- Estão também disponíveis algumas publicações Magistra21
, vídeos didáticos e institucionais,
o Dicionário da Educação produzido pelo SIAPE22
, Parâmetros Curriculares Nacionais,
documentos legais estaduais e federais, relatos de experiência de professores da rede estadual
e links para alguns portais educacionais, como a TV Escola.
Se compararmos o número de professores pertencentes à rede estadual de Educação ao
número de sujeitos que frequentam tais espaços virtuais (em Minas Gerais, temos,
aproximadamente, 185.140 professores em exercício)23
, fica clara a participação
insignificante dos docentes nos ciberespaços do CRV. Exemplificamos essa ausência por
meio dos números levantados acerca da participação docente no Sistema de Troca de
Recursos Educacionais (STR) criado para o compartilhamento de materiais didáticos entre os
professores. O Centro de Referência apresenta o STR como
uma ferramenta destinada a ajudar aos professores no desenvolvimento e
compartilhamento de ideias, projetos, pesquisas, textos e outros recursos didáticos. É
um espaço para criação de textos didáticos, propostas de novos projetos, planos de
aulas, esquemas de trabalho etc., que podem ser compartilhados com outros colegas,
constituindo-se em espaço para o desenvolvimento de trabalho colaborativo.24
Vejamos, então, o quão colaborativa tem sido, de fato, a troca de conteúdos no STR.25
21
MAGISTRA é a Escola de Formação e Desenvolvimento Profissional de Educadores de Minas Gerais, criada
pela Lei delegada nº. 180, de 20 de janeiro de 2011. Tem como objetivo promover a formação e a capacitação de
educadores, de gestores e demais profissionais da Secretaria de Estado da Educação (SEE), nas diversas áreas do
conhecimento e em gestão pública e pedagógica. Disponível em:
http://magistra.educacao.mg.gov.br/index.php/institucional/o-que-e-a-magistra. Acesso em: 24 mai. 2015. 22
O Sistema de Ação Pedagógica (SIAPE) tem como objetivo dar atendimento pedagógico às escolas estaduais,
a partir das demandas por elas apresentadas. A necessidade do SIAPE surgiu a partir dos resultados do Programa
de Avaliação da Rede Pública da Educação Básica (PROEB), que integra o Sistema Mineiro de Avaliação da
Escola Pública (SIMAVE). Disponível em: http://crv.educacao.mg.gov.br. Acesso em: 24 mai. 2015. 23
O número considera não só os professores dos Ensinos Fundamental e Médio, mas também diretores, vice-
diretores e especialistas em Educação Básica atuantes na rede estadual de Minas Gerais. Disponível em:
www.trabalhodocente.net.br. Acesso em: 24 mai. 2015. 24
Disponível em: http://crv.educacao.mg.gov.br. Acesso em: 24 mai. 2015. 25
Dados levantados no dia 24 de maio de 2015.
67
QUADRO 2 – Número de Postagens feitas pelos professores no
Sistema de Troca de Recursos Educacionais
Tipo de
recurso
Pla
nej
amen
to
de
ativ
idad
es
did
átic
as
Ro
teir
os
de
aula
Ro
teir
os
de
ativ
idad
es
Pro
jeto
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e
ensi
no
Ref
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cias
de
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Co
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ibli
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rafi
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da
Tex
tos
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a
alu
no
s
Tex
tos
par
a
pro
fess
ore
s
Rec
urs
os
mu
ltim
ídia
Av
alia
ção
da
apre
nd
izag
em
E.F.26
Arte 0 1 0 2 4 5 3 8 4 1
E.F.
Ciência
1 8 7 7 4 0 4 4 3 2
E.F.
Educação
Física
1 4 7 10 16 9 18 6 28 15
E.F.
Geografia
9 2 9 3 7 2 3 1 1 2
E.F.
História
0 10 13 3 19 4 15 8 10 7
E.F.
Língua
Estrangeir
a
10 21 16 1 38 18 9 30 12 10
E.F.
Língua
Portuguesa
2 5 10 1 4 2 4 8 0 3
E.F.
Matemátic
a
0 0 4 0 4 0 10 4 6 0
E.M.27
Arte
1 0 2 4 3 6 6 8 4 0
E.M. 3 0 5 1 23 23 7 6 17 7
26
Ensino Fundamental II. 27
Ensino Médio.
68
Biologia
E.M.
Educação
Física
1 5 12 5 20 5 17 8 8 10
E.M.
Geografia
2 5 7 3 6 0 6 7 1 3
E.M.
História
0 1 6 0 4 7 12 17 1 3
E.M.
Língua
Estrangeir
a
5 14 24 4 39 21 13 29 25 15
E.M.
Língua
Portuguesa
6 14 22 5 10 10 6 13 8 17
E.M.
Matemátic
a
0 0 8 1 16 3 2 10 15 1
E.M.
Química
3 12 25 5 7 10 2 7 4 1
E.M.
Sociologia
0 6 0 0 1 0 2 0 0 0
Fonte: Adaptado do Centro de Referência Virtual do Professor
Disponível em: crv.educacao.mg.gov.br. Acesso em: 23 jun. 2014.
Vale dizer também que, com base nas datas de postagem dos poucos conteúdos
encontrados, podemos perceber que houve um momento no qual as trocas foram mais intensas
(entre os anos de 2008 a 2010), tendo se tornado cada vez mais rarefeitas nos últimos anos. Os
dados do CRV indicam que uma parcela insignificante dos professores da rede frequenta os
espaços do Centro produzindo conteúdo. Essa ausência pode ser interpretada como
69
desinteresse e desconhecimento dos professores em relação ao espaço, mas também como
uma forma de resistência, uma resposta não legitimadora ao modelo proposto.
3.3. A Reforma curricular mineira e os processos de subjetivação docente
Como argumentamos ao longo deste trabalho, as reformas educativas e curriculares,
orientadas pelo mercado, impactam de modo direto o trabalho docente. Uma nova forma de
controle sobre os professores é instaurada pelas políticas neoliberais, que, ao mesmo tempo
em que constrangem a autonomia dos professores sobre seu fazer (especialmente pautada nas
avaliações atreladas aos currículos), também responsabilizam os docentes pelos resultados
produzidos e intensificam a carga de trabalho a que estão submetidos (HYPÓLITO; VIEIRA;
PIZZI, 2009). A intenção de conduzir e normalizar o trabalho dos professores é explícita na
política dos CBC:
A Proposta Curricular é compatível com os Parâmetros Curriculares Nacionais e se
inspira em várias de suas proposições. Sua primeira contribuição é a de destacar, de
modo mais claro, as ideias básicas do currículo, ou seja, aquilo que não pode deixar
de ser ensinado. Além disso, esta proposta avança na descrição mais detalhada dos
tópicos do Conteúdo Básico Comum, com a intenção de orientar seu ensino
(MINAS GERAIS, 2006b, p. 11).
Não só prescrever conteúdos, mas orientar também o ensino. O trecho acima ilustra o
paradoxo que atravessa as políticas curriculares neoliberais. Há, por um lado, um discurso da
autonomia, que convida os professores à invenção e flexibilização; por outro, os docentes
convivem cotidianamente com uma série de práticas que são a própria negação da autonomia
docente, como o crescente empoderamento das avaliações externas face aos modelos de
avaliação interna e das propostas de currículo padronizadas. Essa tensão está expressa nos
cadernos do CBC:
A Proposta Curricular se assenta nas bases de um currículo flexível, capaz de se
ajustar à realidade de cada escola, de cada região do Estado e às preferências e
estilos de ensino dos professores. Entretanto, ela aponta para alguns conteúdos que,
por sua relevância, são considerados essenciais. Esses conteúdos essenciais são
denominados Conteúdos Básicos Comuns (CBC), sendo seu ensino obrigatório nas
Escolas da Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais. O CBC irá compor a matriz
de competências básicas para a avaliação do sistema público de ensino em Minas
Gerais. Além dos Conteúdos Básicos Comuns, esta Proposta Curricular sugere
70
Conteúdos Complementares, que devem ser examinados pela equipe de profissionais
de cada escola para compor seu projeto de ensino para a disciplina. Os Conteúdos
Básicos Comuns, portanto, não são a totalidade da Proposta Curricular, mas
estabelecem aqueles conteúdos e competências que devem ser desenvolvidos
prioritariamente (MINAS GERAIS, 2006b, p. 11).
A proposta afirma se assentar nas bases de um currículo flexível, mas apresenta os
conteúdos e as competências a serem desenvolvidos prioritariamente. Acreditamos que tais
prioridades devem estar intimamente relacionadas ao Projeto Político Pedagógico de cada
escola, fruto da construção coletiva de alunos, professores, coordenadores, gestores e
comunidade escolar. A autonomia docente deve, pela definição sobre o que e como ensinar,
permitir aos professores incrementar seu poder discricionário e exercer parte do controle
sobre os fins sociais e políticos da Educação. A produção de currículos ocorrida em ambientes
externos à escola configura-se, nesse sentido, um instrumento de controle disciplinar do
trabalho educativo e da identidade docente (VIEIRA, 2002).
Nesta operação, o controle docente sobre o processo de trabalho fica seriamente
afetado, restando uma dimensão pouco reflexiva do ato educativo. Limita-se o
trabalho docente à aprendizagem da disciplina e da autodisciplina exigidas pelas
reformas. O professor e a professora tornam-se, assim, trabalhadores disciplinados
(controlados) segundo as demandas do capitalismo neoliberal, haja vista que, ao
restringir o trabalho docente a uma dimensão prática, “quase-manual”, o ensino
torna-se dependente daquilo que é definido do lado de fora da escola (VIEIRA,
2002, p. 126).
O perigo da imposição exógena dos objetivos escolares é a proletarização do ofício;
um novo modo de exercício da docência, mais afeito à execução que à elaboração, mais afeito
à ação que à reflexão. Ao mesmo tempo em que reforça o poder de especialistas, a
padronização do trabalho docente por meio dos currículos oficiais conduz a conduta dos
professores no sentido das metas traçadas pelos governos, transmutando o controle externo
em autocontrole. O atrelamento do CBC aos resultados obtidos nas avaliações do Sistema
Mineiro de Avaliação (SIMAVE) – e destes ao pagamento de bonificações aos professores e
também ao posicionamento das escolas no ranking educacional do Estado – reforça e refina os
mecanismos de controle do trabalho docente por meio dos currículos. Ensinar o que está
prescrito torna-se importante por um conjunto de razões e motivos, que extrapola os limites
colocados pelos objetivos do processo de aprendizagem. A importância dos CBC se coloca
aos alunos (que são vistos como tão bons quanto sua capacidade de apropriação dos
conteúdos); aos professores (que são tão bons quanto sua capacidade de ensinar tais
71
conteúdos, e devem ser premiados ou punidos pelo desempenho que os alunos apresentam);
aos pais (que podem monitorar o trabalho das escolas), e, finalmente, às próprias instituições
escolares, cujos destinos e reconhecimento social dependem cada vez mais dos resultados
obtidos nas avaliações externas (às quais o CBC serve como matriz de referência). “Trata-se,
sem dúvida, de um controle panóptico28
que se instala como uma torre de observação dentro
do próprio sujeito, dentro de sua ‘consciência’ profissional” (VIEIRA, 2002, p. 130).
Argumentamos que o trabalho não é apenas o ato de transformar um objeto ou
situação externos ao sujeito, mas fazer alguma coisa de si mesmo, consigo mesmo. Nesse
caso, estamos assistindo à produção de subjetividades docentes atreladas aos ditames de
especialistas, com forte base pragmática e utilitarista. É permitida ao professor uma micro-
flexibilidade, ligada a procedimentos didáticos e metodológicos, mas conectada aos limites e
metas impostos pelo governo; é uma miragem de autonomia.
Nesse profissionalismo não há muito espaço para um aumento de autonomia. O que
tem ocorrido é que o controle sobre os fins sociais e políticos da Educação – as
definições sobre currículo e programas, sobre o que e como ensinar – tem sido, cada
vez mais, transferido das professoras para o controle dos gestores, dos políticos e
dos interesses econômicos mais amplos. Muito embora os docentes sejam
constantemente interpelados para uma associação colaborativa com os programas
educativos oficiais nas escolas, para uma prática colaborativa e para uma
autoadministração, os benefícios para a docência são muito ilusórios (HYPÓLITO,
2010, p. 1346).
Nessa perspectiva, podemos afirmar que o currículo funciona como um mecanismo de
controle dos governos neoliberais sobre o trabalho docente, que intentam produzir professores
auto-governados, capazes de incorporar o conteúdo curricular obrigatório e torná-lo possível
em seus múltiplos espaços de atuação. O controle se dá por meio da responsabilização dos
professores em relação à apropriação, efetivação e produção de resultados demandados pelo
currículo. Uma nova forma de gestão e governo dos processos subjetivos é colocada em ação
pela reforma curricular, que diminui a autonomia e intensifica o trabalho docente. Estamos
diante de uma forma de “autonomia imaginada, despersonalizada, uma docência de resultados
28
Sobre o princípio da vigilância panóptica, afirma Bentham (2000, p. 17): “É óbvio que, em todos esses casos,
quanto mais constantemente as pessoas a serem inspecionadas estiverem sob a vista das pessoas que devem
inspecioná-las, mais perfeitamente o propósito do estabelecimento terá sido alcançado. A perfeição ideal, se esse
fosse o objetivo, exigiria que cada pessoa estivesse realmente nessa condição, durante cada momento do tempo.
Sendo isso impossível, a próxima coisa a ser desejada é que, em todo momento, ao ver razão para acreditar nisso
e ao não ver a possibilidade contrária, ele deveria pensar que está nessa condição”.
72
confundida com profissionalismo, sobre o qual há poucas chances para o magistério negociar
em meio a esses novos contratos do seu trabalho” (HYPÓLITO, 2010, p. 1346).
Os novos contratos de trabalho aos quais Hypólito se refere, em Minas Gerais, se
concretizam sob o nome de Acordo de Resultados. O Acordo efetiva a responsabilização das
instituições escolares e dos professores pelo desempenho obtido diante das metas
estabelecidas pelo governo, reforçando a cultura do desempenho na qual o currículo exerce
um papel central:
Estabelecer os conhecimentos, as habilidades e competências a serem adquiridos
pelos alunos na Educação Básica, bem como as metas a serem alcançadas pelo
professor a cada ano, é uma condição indispensável para o sucesso de todo sistema
escolar que pretenda oferecer serviços educacionais de qualidade à população. A
definição dos Conteúdos Básicos Comuns (CBC) para os anos finais do Ensino
Fundamental e para o Ensino Médio constitui um passo importante no sentido de
tornar a rede estadual de ensino de Minas num sistema de alto desempenho (MINAS
GERAIS, 2006a, p. 9).
Podemos pensar que a política curricular do CBC e a estrutura avaliativa a ele
associada atuam sobre os professores, exercendo sobre eles um poder disciplinar e um
biopoder (FOUCAULT, 2000). O exercício do poder disciplinar se faz por meio de técnicas e
discursos que se dirigem aos docentes para torná-los sujeitos dóceis e manipuláveis, e, no
caso da reforma educacional analisada neste trabalho, o dispositivo do exame atua de modo
intenso e performático. A obediência a regras e normas externas produz maneiras
disciplinares,
uma forma de organização do espaço e de disposição dos homens no espaço que visa
otimizar seu desempenho, bem como é uma forma de organização, divisão e
controle e do tempo em que as atividades humanas são desenvolvidas, com o
objetivo de produzir rapidez e precisão de movimentos. A estes elementos se
acrescentam a vigilância e o exame, considerados como elementos essenciais do
poder disciplinar (DUARTE, 2008, p. 48).
Por sua vez, o biopoder, forma característica do poder estatal, não se dirige aos corpos
individuais dos professores, mas ao corpo social e coletivo, ao corpo das populações docentes,
cujas condutas pretende controlar e administrar. Vale lembrar que o poder, na perspectiva
adotada neste trabalho, não apenas reprime, mas, sobretudo, produz realidades. O professor
produzido pela biopolítica neoliberal deve ser maleável, pró-ativo, inventivo. Aí reside uma
73
espécie de paradoxo que encerra o trabalho docente sob os governos neoliberais: querem-no
enformado, obediente, fiel aos programas curriculares e perseguidor dos resultados e metas
estabelecidos; ao mesmo tempo, querem-no dinâmico, flexível, adaptável, criativo. É o jogo
da liberdade da governamentalidade neoliberal posto em ação: devemos ser autônomos, desde
que essa autonomia se inscreva em campos de escolha pré-determinados.
Argumentamos, no capítulo anterior, que os sistemas de avaliação externa produzidos
sobre a escola são tecnologias centrais à performatividade, e, no caso de Minas Gerais, os
Conteúdos Básicos Comuns estão intimamente integrados ao dispositivo avaliativo articulado
pelo Estado mineiro. Um novo sentido para o currículo emerge das políticas neoliberais: “A
reconversão do currículo de um sistema centrado no ensino para um sistema centralizado na
avaliação” (TERIGI, 1996, p. 177). Cada vez mais, aquilo que deve ser ensinado é definido
em função do que será avaliado. “A avaliação estabelecida de forma homogênea pelo poder
central para todos os sujeitos em idade escolar converte-se no verdadeiro curriculum”
(TERIGI, 1996, p. 178, grifo na obra). Esse deslocamento do currículo em direção às
avaliações externas está relacionado à redefinição do papel do Estado na prestação do serviço
educativo, como analisamos nos capítulos anteriores. O Estado se exterioriza no que se refere
à prestação de serviços; cada vez mais, torna-se um controlador dos efeitos dessa prestação,
um regulador do mercado educativo, e a avaliação tem papel central nessa nova regulação.
Vejamos, no próximo capítulo, como o dispositivo avaliativo mineiro constitui-se e
quais são suas implicações sobre o trabalho e a subjetividade docentes.
74
4. “AVALIAR PARA AVANÇAR”: O DISPOSITIVO AVALIATIVO EM MINAS
GERAIS
4.1. A centralidade da avaliação nas políticas educacionais neoliberais
A governamentalidade neoliberal, que orientou a reforma do Estado brasileiro na
década de 1990, também dá forma à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB/1996). A Lei atribui à União a responsabilidade pela criação de dispositivos avaliativos
do desempenho das escolas, fortemente recomendados por organismos internacionais como o
Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Comissão para a América
Latina e Caribe (CEPAL) como instrumentos de medida do desenvolvimento e da qualidade
das escolas. Nesse contexto, estrutura-se um controle da educação por meio do
estabelecimento de metas e padrões de rendimento, centralizado pela União, cuja primeira
experiência em nível nacional ocorrerá com a criação do Sistema Nacional de Avaliação da
Educação Básica (SAEB), sobre o qual falaremos mais detalhadamente adiante. Não por
acaso, o ministro da educação à época, Paulo Renato de Souza (que trabalhou durante um
período de sua vida como consultor do Banco Mundial) foi elogiado pelo presidente da
instituição por sua atuação e alinhamento às demandas dessa agência (ALTMANN, 2002, p.
80). De acordo com Torres (1998), o pacote de reformas educacionais proposto pelo Banco
Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (braço financeiro do BM) aos países da
África e da América Latina contém uma série de elementos comuns, articulados em torno de
objetivos mensuráveis, incremento das privatizações e financiamento pautado nos resultados
alcançados pelos sistemas nas avaliação em larga escala.
A internacionalização dos processos decisórios, bem como a influência de
determinados organismos internacionais sobre a conduta dos Estados, são fenômenos que
emergem na segunda metade do século XX e adquirem contornos específicos no que se refere
à Educação a partir dos anos 1990. Nos documentos produzidos por tais organismos nesse
período, a importância da criação de dispositivos avaliativos nacionais em larga escala é
enfaticamente apresentada. A título de ilustração, podemos citar a Conferência Mundial de
Educação para Todos, ocorrida em Jomtien, na Tailândia, patrocinada, dentre outros, pelo
Banco Mundial. Na declaração resultante dessa conferência, foi estabelecido o compromisso
dos países participantes em definir “[...] níveis desejáveis de aquisição de conhecimentos e
75
implantar sistemas de avaliação de desempenho” (DECLARAÇÃO, 1991, p. 5). Tais sistemas
de avaliação são considerados “vitais” para a construção de uma base de conhecimentos e
informações acerca dos sistemas educacionais nacionais, e tomados, a partir de então, como
condição necessária para o planejamento e a gestão da Educação Básica.
A centralidade assumida pela avaliação no contexto das políticas educacionais
neoliberais é tamanha que alguns autores chegam a falar em “pedagogia do exame”
(LUCKESI, 2002) para caracterizar as práticas pedagógicas engendradas nesses contextos.
Desse modo,
busca-se reduzir e subordinar a prática do ensino-aprendizagem à exterioridade, a
partir da adoção de regras e da utilização de um suporte material (livros, mídia
institucional, parâmetros) que se quer prescritivo, estandardizado e, por isso mesmo,
passível de ser classificado, mensurado e comparado, sempre com a finalidade de se
atingir metas (LOPES; LÓPEZ, 2010, p. 97).
A obsessão pelo atingimento de metas faz parte da chamada cultura do desempenho,
produtora de discursos que colocam em funcionamento regimes de verdade que “procuram
fixar o que é um ensino de qualidade, como se deve desenvolver o ensinar, instituindo a cada
qual dos sujeitos sociais e pedagógicos novos papéis frente às demandas educacionais de
nosso tempo” (ANADON, 2012, p. 7). O significado de ensinar se desloca para a produção de
resultados quantificáveis, e o aprender é concebido como algo passível de mensuração em
testes estandardizados. “Tais avaliações têm proposto uma aprendizagem, que deve ser
mensurada por meio das avaliações, mas que desconsidera o contexto escolar, as
peculiaridades dos alunos e sua evolução no processo de ensino-aprendizagem” (HYPOLITO;
IVO, 2013, p. 390).
É importante ressaltar que alguns autores (PERONI, 2003; BONAMINO, 2002)
identificam também um conjunto de forças internas (muitas vezes divergentes e dissonantes)
pressionando ao longo dos anos 1980 por uma gestão da Educação mais transparente e
democrática, o que pressupunha a criação de mecanismos de prestação de contas à sociedade
dos serviços prestados pelo governo. Entretanto, nas políticas educacionais neoliberais opera-
se uma subversão do princípio da transparência, desejável nas democracias, “restando dele um
espetaculoso efeito de visibilidade, que contempla um resultado final determinado pela
análise arbitrária de alguns poucos indicadores, e não o processo educacional como um todo”
(DAMETTO, 2012, p. 61).
76
Esse deslocamento de sentidos e a atribuição de novos significados a termos correntes
no discurso educacional promovidos pela governamentalidade neoliberal vêm sendo
analisados e criticados por diversos autores (GENTILLI, 1994; GENTILLI; SILVA, 1995). A
heterogeneidade de discursos a demandar novos processos de gestão na educação nos permite
compreender o contexto histórico que possibilita a emergência dos sistemas avaliativos em
larga escala, bem como sua legitimação por boa parte dos sujeitos escolares e da sociedade de
um modo mais amplo. Nesse sentido, devemos entender a conformação do dispositivo
avaliativo brasileiro como o resultado de um complexo jogo de forças, de uma disputa pela
hegemonização de sentidos e verdades acerca Educação e da avaliação, que tensiona e
confronta diferentes perspectivas e interesses.
O conceito de qualidade é bastante ilustrativo dos deslocamentos e ressignificações
conceituais operados pela governamentalidade neoliberal. No contexto da cultura do
desempenho e da performatividade que instaura, especialmente por meio das avaliações em
larga escala, formas de operacionalização e racionalidade numéricas e economicistas passam
a dar conta de fenômenos como a repetência, a evasão e o desempenho de sujeitos e
instituições escolares. Nesse sentido, pretende-se interpretar e visibilizar a qualidade do
trabalho pedagógico com base nos resultados que produz, no qual “as circunstâncias
econômicas, políticas, sociais e culturais que permeiam o exercício da profissão docente, o
ensino e as escolas são ignoradas ou então subsumidas a problemas de desempenho e esforço
pessoal e profissional” (VOSS; GARCIA, 2014, p. 393). Cada vez mais, os resultados das
avaliações vêm legitimando um tipo específico de verdade sobre a qualidade da Educação,
esvaziada de seu caráter social e atrelada a estatísticas e números.
A ação do Banco Mundial, como afirmamos anteriormente, foi preponderante para a
conformação do sistema avaliativo brasileiro. O Banco demandou, ao longo dos anos 1990,
um monitoramento dos impactos do Projeto Nordeste, projeto este realizado por intermédio
do acordo entre o MEC e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento
(BIRD). O Projeto contemplou os nove Estados nordestinos (Alagoas, Bahia, Ceará,
Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe), sendo constituído
por ações que se destinavam à melhoria da qualidade do ensino nas primeiras séries do Ensino
Fundamental das redes estadual e municipais de Educação, propondo a integração entre
Estado e municípios e a mudança no padrão de gestão da educação pública. É considerado um
77
dos mais importantes projetos financiados pelo Banco Mundial no Brasil, tendo
movimentado, ao longo de sua execução, mais de 400 milhões de dólares.29
As primeiras experiências de avaliação em larga escala no Brasil ocorreram em 1988,
com a criação do Sistema Nacional de Avaliação do Sistema Público (SAEP), cujas primeiras
provas foram aplicadas em caráter de teste nos Estados do Rio Grande do Norte e Paraná. Em
1990, o SAEP inicia seu primeiro ciclo em todo o território nacional, desenvolvido de forma
descentralizada pelos Estados e municípios. De acordo com Werle (2011, p. 774), os ciclos do
SAEP que aconteceram entre 1990 e 1995 foram marcados pela “participação ativa de
professores e técnicos das Secretarias de Educação, [...] tanto no tratamento como na análise
dos dados, conforme princípio de descentralização operacional e organizativa”.
Entretanto, a partir de 1995, o SAEP, agora nomeado Sistema de Avaliação da
Educação Básica (SAEB), assumiu um novo perfil, marcado pela terceirização de operações
técnicas e pela restrição do papel do MEC à definição dos objetivos gerais norteadores do
Sistema. Os professores das universidades, chamados pelo Instituto Nacional de Estudos
Pedagógicos (INEP) a participar dos primeiros ciclos do SAEP, foram excluídos do processo
de discussão e elaboração das avaliações. Podemos dizer, dessa forma, que, em meados dos
anos 1990, “ocorre uma reordenação na avaliação em larga escala da Educação Básica na
direção de uma centralização de decisões na União” (WERLE, 2011, p. 775).
O distanciamento entre as esferas de monitoramento, gestão e execução das políticas
educacionais, que caracteriza o funcionamento do SAEB, vai se repetir nos modelos de
avaliação adotados por alguns Estados, que, a partir dos anos 1990, “deflagraram a
constituição de sistemas próprios de avaliação, com o objetivo de produzir um número ainda
maior de informações e subsidiar a formulação de políticas públicas destinadas à melhoria do
ensino” (MINAS GERAIS, 2009, p. 44). Nesse sentido,
a introdução de sistemas de avaliação da educação e do desempenho docente é
crucial para essa regulação por parte do Estado, que passa a controlar e a avaliar
desde longe, por meio da contratação de terceiros para realizar a avaliação externa –
considerada como prestação de contas à sociedade civil (accountability). Tais
modelos gerenciais são baseados na qualidade e no mérito e os problemas da
educação ficam reduzidos a problemas técnico-gerenciais (HYPÓLITO, 2010, p.
1339).
29
Disponível em: http://web.worldbank.org. Acesso em: 07 jun. 2015.
78
É importante observar que, nesse mesmo contexto de emergência das avaliações
externas em larga escala, surgem também currículos obrigatórios que devem servir como
referência aos testes aplicados. Desse modo, podemos afirmar que a avaliação, sob o governo
dos Estados gerenciais, vem funcionando como um elemento definidor de sentido,
endereçando-se ao currículo e suas diretrizes. Em Minas Gerais, a instituição dos Conteúdos
Básicos Comuns se fez acompanhar pela criação de um sistema integrado de avaliação que,
supostamente, pela sua ação, identificará as escolas “boas” e as escolas “ruins”, possibilitando
aos pais (aqui encarados como “consumidores” do produto Educação) fazer a melhor escolha
para seus filhos. Nessa lógica, aparece a ideia que as escolas de baixo desempenho tenderão
“naturalmente” a desaparecer, enquanto as escolas bem sucedidas serão gratificadas e
fortalecidas pelo governo (PARAÍSO; SANTOS, 1996). De acordo com a Secretaria de
Estado da Educação (SEE/MG),
a importância dos CBCs justifica tomá-los como base para a elaboração da avaliação
anual do Programa de Avaliação da Educação Básica (PROEB), para o Programa de
Avaliação da Aprendizagem Escolar (PAAE) e para o estabelecimento de um plano
de metas para cada escola. O progresso dos alunos, reconhecido por meio dessas
avaliações, constitui a referência básica para o estabelecimento de sistema de
responsabilização e premiação da escola e de seus servidores (MINAS GERAIS,
2007, p. 9).
Mas os dados produzidos por meio de tais avaliações também servem como referência
para as ações do governo acerca da população escolar, de modo que “os saberes construídos
por diferentes instituições e experts, com base em dados coletados, em registros, em
comparações, subsidiam decisões administrativas para manter e otimizar as características
desejáveis da população” (TRAVERSINI; BELLO, 2009, p. 137).
O dispositivo avaliativo de Minas Gerais está articulado em torno do SIMAVE
(Sistema Mineiro de Avaliação da Educação Pública), do qual fazem parte o PROEB
(Programa de Avaliação da Rede Pública da Educação Básica), o PROALFA (Programa de
Avaliação da Alfabetização) e o PAAE (Programa de Avaliação da Aprendizagem Escolar).
Sob o lema “avaliar para avançar”, o SIMAVE foi instituído pela Resolução nº. 14, de 3 de
fevereiro de 2000, durante o governo de Itamar Franco. No documento produzido pela
Secretaria de Educação naquele contexto, intitulado “Escola Sagarana: Educação para a vida
com dignidade e esperança”, fica estabelecido o objetivo de “avaliar a qualidade do ensino em
79
todos os níveis e modalidades, mediante exames do rendimento dos alunos, metodologias de
controle e acompanhamento, estudos e pesquisas”30
.
Segundo a SEE/MG,
as avaliações realizadas pelo SIMAVE buscam aferir todas as dimensões do sistema
educacional da rede pública estadual. Elas analisam os resultados alcançados em
sala de aula, na escola e no sistema; na ação docente, na gestão escolar e nas
políticas públicas para a Educação; no nível de aprendizagem, na alfabetização e nos
conteúdos básicos do ensino fundamental e médio (SEE/MG).31
Os resultados trazidos pelos programas que compõem o SIMAVE servem para a
elaboração dos Programas de Intervenção Pedagógica (PIP)32
, que objetivam “sanar” os
problemas identificados pela avaliação do SIMAVE. Vale dizer que os planos do PIP são
aplicados e monitorados por técnicos e analistas externos à escola, especialistas chamados a
resolver aquilo que os professores supostamente não sabem (ou não querem) fazer. Mais uma
vez, estamos diante de uma forma de governo que desqualifica os saberes dos professores
construídos na prática e legitima os saberes instrumentais de especialistas, alçados à posição
de interlocutores privilegiados para a elaboração de políticas educacionais. De acordo com a
SEE/MG.
o trabalho do SIMAVE é realizado por meio de parcerias estratégicas, que
asseguram metodologias adequadas para verificar o desempenho do sistema, e, ao
mesmo tempo, incorporam um “olhar externo” sobre a realidade da rede pública
estadual de ensino. Esse olhar é fundamental para uma avaliação imparcial,
buscando sempre identificar problemas a serem resolvidos e demandas a serem
supridas, contribuindo para desenvolver ações de melhoria na qualidade da educação
[...] (SEE/MG).33
O discurso do governo parece não considerar relevante a perspectiva dos professores
para a identificação de demandas significativas à rede estadual de ensino. Embora o trabalho
docente seja direta e indiretamente avaliado nas avaliações de larga escala, as políticas
educacionais neoliberais atuam de modo centralizado, desconhecendo os anseios, os desejos e
as especificidades dos professores aos quais se dirigem.
30
Disponível em: www.educacao.mg.gov.br. Acesso em: 05 jun. 2015. 31
Disponível em: www.educacao.mg.gov.br. Acesso em: 05 jun. 2015. 32
O Programa de Intervenção Pedagógica foi criado pela SEE/MG em 2008, como o objetivo de “atingir o nível
recomendável de alfabetização e melhorar o desempenho dos alunos, por meio de intervenções pedagógicas,
capacitação e acompanhamento dos profissionais da educação”. Disponível em: www.educacao.mg.gov.br.
Acesso em: 30 jun. 2015.
33 Disponível em: www.educacao.mg.gov.br. Acesso em: 05 mai. 2015.
80
Nas avaliações da Educação Básica, o professor é posto como alvo da análise, muito
mais que qualquer outro ponto, já que, para o senso comum, e logo, para a “opinião
pública”, é ele o grande responsável pelos resultados de seus alunos e sua
instituição, sendo menos consideradas dimensões como modalidades de gestão,
infra-estrutura, disponibilidade de material, aspectos políticos, dentre outros
(DAMETTO, 2012, p. 60).
Na disputa por sentidos e verdades sobre a Educação, a governamentalidade neoliberal
atua no sentido de suprimir e desqualificar a atuação dos professores. Nessa direção, legitima
a atuação de agentes e instituições externas, não raras vezes ligados a grandes grupos
empresariais e agências internacionais de financiamento.
Vejamos agora como funciona cada um dos programas que compõem o SIMAVE e os
pressupostos que lhes dão base.
4.2. Sistema Mineiro de Avaliação (SIMAVE): estrutura e funcionamento
Argumentamos, na seção anterior, que a avaliação tem se tornado um elemento central
nas políticas educacionais contemporâneas, funcionando como um importante dispositivo de
controle da conduta dos sujeitos escolares. Mas o que queremos dizer quando nos referimos
ao sistema de avaliação construído em Minas Gerais como um dispositivo? Dispositivo é uma
ferramenta conceitual e metodológica foucaultiana que nos ajuda a analisar o poder a partir
dos mecanismos de dominação, para além do edifício jurídico dos aparelhos de Estado. É,
“por definição, de natureza heterogênea: trata-se tanto de discursos quanto de práticas, de
instituições quanto de táticas moventes” (REVEL, 2005, p. 39). Podemos concebê-lo como
formas de se exercer o poder, apoiadas em instrumentos de saber, produzindo efeitos de
subjetivação e sujeição.
O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre,
no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem, mas que
igualmente o condicionam. É isto, o dispositivo: estratégias de relações de força
sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles (FOUCAULT, 1992, p. 139).
81
Com base nessa noção, descrevemos, nessa seção, os três programas que compõem o
SIMAVE, compreendendo-os assim como operadores materiais do poder, “isto é, as técnicas,
as estratégias e as formas de assujeitamento utilizadas pelo poder” (REVEL, 2005, p. 39).
O Programa de Avaliação da Rede Pública de Educação Básica (PROEB), primeiro a
ser criado no âmbito do SIMAVE, no ano de 2000, foi articulado por meio de uma parceria
entre a Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais e o Centro de Políticas Públicas e
Avaliação da Educação (CAED), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Ele tem
como propósito “verificar a eficiência e a qualidade do ensino no Estado de Minas Gerais a
partir dos resultados sobre o desempenho das escolas nas séries finais dos blocos de ensino”34
.
As avaliações do PROEB são compostas por testes de múltipla escolha que aferem
habilidades e competências dos alunos que se encontram no 5º ano e 9º ano do Ensino
Fundamental e no 3º ano do Ensino Médio, ou seja, abrange os anos de escolaridade que
finalizam cada etapa da Educação Básica. Escolas da rede estadual (em caráter obrigatório) e
escolas municipais (em caráter facultativo) participam da avaliação. A partir de um conjunto
de descritores elencados em Matrizes de Referência35
constituídas para as áreas de Língua
Portuguesa e Matemática, são elaboradas questões/itens para os testes.
Já o Programa de Avaliação da Alfabetização (PROALFA) é realizado conjuntamente
pelo Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), e pelo Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAED), da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Criado em 2005, esse programa surgiu para
acompanhar o processo de aprendizagem dos alunos recém ingressados na rede pública de
Minas Gerais, aos seis anos. O Estado, se antecipando ao governo federal na extensão da
escolaridade obrigatória, instituiu o Ensino Fundamental de nove anos a partir de 2004, em
cumprimento ao Decreto no. 43.506, de 6 de outubro 2003. O PROALFA teve como alvo
inicial os alunos da rede estadual que haviam iniciado o Ensino Fundamental em 2004, mas,
em 2006, passou a integrar o SIMAVE e avaliar também alunos da rede estadual e municipal
dos 2º, 3º e 4º anos de escolaridade.
Por sua vez, o Programa de Avaliação da Aprendizagem Escolar (PAAE) se difere dos
demais por ser uma avaliação interna, dirigida exclusivamente às escolas estaduais. O PAAE
foi criado em 2006 pelo Instituto Avaliar, organização da sociedade civil sem fins lucrativos,
34
Disponível em: www.simave.caedufjf.net. Acesso em: 28 jul. 2015. 35
A elaboração das Matrizes baseia-se nos Conteúdos Básicos Comuns, nos Parâmetros Curriculares Nacionais e
nas Diretrizes Nacionais de Educação. Disponível em: www.portalavaliacao.caedufjf.net. Acesso em: 06 jun.
2015.
82
da qual fazem parte instituições do setor público e privado, dentre elas, o Banco Mundial.36
De acordo com Lúcia Mattos, uma das idealizadoras do Programa,
com o Programa de Avaliação da Aprendizagem Escolar – PAAE, a Secretaria de
Educação de Minas Gerais – SEEMG cria uma política de avaliação da
aprendizagem que confere à escola a responsabilidade pela sua coordenação e pela
gestão de seus resultados, mas atribui ao sistema estadual a responsabilidade de
fornecer suporte didático para a sua operacionalização e para a definição dos
referenciais de aprendizagem definidos como indicadores do que é básico para todos
os alunos em Minas Gerais.37
De fato, cabe às escolas a tarefa de imprimir as provas, e a cada professor o
lançamento dos resultados dos alunos na plataforma do Instituto Avaliar. Além disso, os
próprios professores devem realizar a prova e lançar também suas respostas, promovendo uma
espécie de “auto-avaliação”. As avaliações do Programa podem ser aplicadas até três vezes ao
ano, de acordo com a demanda dos professores, por meio da chamada Avaliação Contínua.
Entretanto, a Avaliação Diagnóstica (realizada no começo do ano letivo) e a Avaliação da
Aprendizagem (realizada ao final do ano) são de caráter obrigatório. As questões que
compõem o banco de dados do programa estão diretamente vinculadas aos tópicos do CBC,
sendo o objetivo central do programa realizar diagnósticos progressivos da aprendizagem
escolar em relação aos conteúdos do CBC. As avaliações do PAAE destinam-se aos
estudantes do 1º ano do Ensino Médio.
Esse dispositivo avaliativo que acabamos de delinear produz efeitos sobre as formas
de organização da escola, seus currículos e práticas docentes, mas também sobre a
subjetividade dos professores. Por meio desse dispositivo, o governo realiza
uma certa manipulação das relações de força, de uma intervenção racional e
organizada nestas relações de força, seja para desenvolvê-las em determinada
direção, seja para bloqueá-las, para estabilizá-las, utilizá-las etc... O dispositivo,
portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto,
ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem mas que igualmente o
condicionam (FOUCAULT, 1992, p. 139).
Os dados, os gráficos, as tabelas, os números e os rankings articulados por esse
dispositivo avaliativo produzem um conjunto de saberes que legitimam práticas e discursos
36
Disponível em: www.institutoavaliar.org.br. Acesso em: 30 jun. 2015. 37
Disponível em: http://www.anpae.org.br. Acesso em: 30 jun. 2015.
83
sobre a Educação e o fazer docente. Podemos dizer, então, que a governamentalidade
neoliberal mobiliza os saberes produzidos pelas avaliações para melhor controlar as condutas
docentes. A próxima seção dedica-se à análise dos efeitos produzidos pela cultura do
desempenho sobre a subjetividade docente.
4.3. O dispositivo avaliativo mineiro e os processos de subjetivação docente
O dispositivo avaliativo mineiro põe em ação não apenas mecanismos de controle do
currículo e das práticas curriculares, como apontamos no capítulo anterior, mas também
aciona uma série de estratégias de governamento das subjetividades docentes. Tais estratégias
intentam conformar um tipo específico de conduta docente; é uma ação sobre a ação dos
professores, que age no sentido de alinhar suas práticas às metas estabelecidas pelo governo.
O bom desempenho é aquele que se aproxima com a maior eficácia e eficiência dos
indicadores estabelecidos pelo governo estadual, sendo por isto reconhecido e premiado.
É importante dizer que a governamentalidade neoliberal não inventa o procedimento
avaliativo como forma de controle da conduta. Ao contrário, podemos afirmar que a avaliação
é característica de uma série de instituições disciplinares surgidas na Modernidade, tais como
o exército, a prisão, a fábrica, o hospital, a escola. Cada uma dessas instituições, ao logo de
seu percurso histórico, produziu verdades sobre os sujeitos que a habitam, pautadas em
números, conceitos e atributos supostamente aferidos por meio de avaliações. O poder
disciplinar em exercício nesses espaços “insere práticas na vida dos sujeitos: rotinas,
exercícios, controle do tempo, hierarquias de saberes e habilidades” (DAMETTO, 2012, p.
58); simultaneamente, avalia o efeito desse conjunto de ações sobre o sujeito e cria
prognósticos futuros a serem alcançados.
O que a governamentalidade neoliberal traz de novo em relação aos procedimentos
avaliativos em educação é a tentativa de atrelá-los ao governo de grandes populações,
incorporando as práticas educacionais ao conjunto mais amplo da biopolítica. Partindo da
avaliação de indivíduos (alunos, professores, escolas), a governamentalidade neoliberal traça
metas e intervenções amplas que se dirigem a toda a população escolar. As intervenções feitas
com base nas avaliações têm a economia como grade de análise, e são orientadas no sentido
de promover a eficácia dos investimentos públicos. Os índices obtidos acabam por se
transformar em medidores do “sucesso” das práticas pedagógicas, geralmente sem levar em
84
conta o contexto de produção dos dados. De acordo com essa mentalidade, professores,
alunos e escolas de “sucesso” são aqueles que conseguem alcançar as metas estabelecidas
pelo governo, a despeito das condições objetivas nas quais as diferentes experiências
educacionais ocorrem.
Os resultados trazidos por essas avaliações permitem ou desabilitam professores e
instituições a receberem um “prêmio por produtividade”, que “é um mecanismo de
bonificação para os servidores que integram as equipes dos órgãos/entidades que assinaram o
Acordo. O prêmio não é uma complementação salarial, mas sim, uma maneira de incentivar,
por mérito, os servidores que conseguiram alcançar resultados satisfatórios nas metas
pactuadas” (SEPLAG/MG, 2013). Baseia-se no pressuposto de que “o contratante tem clareza
dos resultados que pretende, e que o incentivo a ser pago ao contratado é determinante para
motivá-lo nesta direção para evitar comportamentos destoantes – assegurados os meios e
controles necessários” (MINAS GERAIS, 2013, p. 67). “Parece que a figura do professor,
nesse contexto, fica esmaecida, enquanto os índices adquirem centralidade” (TRAVERSINI;
BELLO, 2009, p. 147).
Desde 2007, o governo vem pactuando acordos com diversas unidades
administrativas, por intermédio das Secretarias de Planejamento e de Gestão e da Fazenda,
estando em jogo, além da bonificação por produtividade, a própria autonomia das instituições,
e, no limite, a sobrevivência das mesmas. De acordo com a SEPLAG, “o Acordo de
Resultados é um instrumento de pactuação de resultados que estabelece, por meio de
indicadores e metas, quais os compromissos devem ser entregues pelos órgãos e entidades do
Poder Executivo Estadual, em linha com os objetivos expressos na agenda de governo”
(SEPLAG/MG, 2013).
Embora apresentem o Acordo de Resultados como um instrumento de alinhamento das
ações dos servidores públicos à agenda governamental, os ideólogos do projeto reconhecem
que
experiências contratuais são imperfeitas porque existe assimetria de informações: o
contratado conhece melhor do objeto pactuado e pode sujeitar o contratante a
gaming (situações muito variadas de manipulação de informações e indução a
pactuações mais convenientes ao contratado) (MINAS GERAIS, 2013, p. 67).
85
Esse dispositivo avaliativo também pode ser pensado como um incentivador, um
potencializador da cultura do desempenho que o governo mineiro pretende difundir entre seus
servidores. De acordo com a Secretaria de Planejamento e Gestão de Minas Gerais, no cerne
da reforma da gestão do Estado está o desejo de “auxiliar na implementação de uma cultura
voltada para resultados, estimulando, valorizando e destacando servidores, dirigentes e órgãos
ou entidades que cumpram suas metas e atinjam os resultados previstos” (SEPLAG/MG,
2003). Pensamos que a performatividade incitada pelas políticas empreendidas pelo governo
mineiro produz novos papéis e subjetividades docentes, à medida que “os professores são
transformados em produtores/fornecedores, empresários da Educação e administradores, e
ficam sujeitos à avaliação e análise periódicas e a comparações de desempenho” (BALL,
2005, p. 547). Em contextos marcados pelo imperativo da competição, da eficiência e da
produtividade, emergem novos sistemas éticos, pautados pelo pragmatismo e interesses
individuais de cada instituição. As relações travadas pelos diferentes sujeitos escolares são
desafiadas e deslocadas pelas práticas de performatividade: no bojo da cultura do
desempenho, são todos vistos como produtores das metas traçadas pelas diferentes instâncias
governamentais.
Como afirmamos nos capítulos anteriores, também a gestão tem sido um mecanismo-
chave nas reformas políticas educacionais contemporâneas. A gestão “desempenha um papel
crucial no desgaste dos regimes ético-profissionais nas escolas e sua substituição por regimes
empresariais e competitivos. Enquanto os mercados trabalham de fora para dentro, a gestão
funciona de dentro pra fora” (BALL, 2001, p. 108). Temos um novo herói no paradigma
neoliberal: ele é o gestor. A ele cabe difundir e incutir nos trabalhadores o sentimento de
responsabilidade e comprometimento, controlando e conformando a subjetividade dos
professores. Deles é exigida a qualidade e a excelência, aferidas constantemente por meio de
técnicas de vigilância e auto-monitoramento. De acordo com a Revista do Gestor38
(2011, p.
6), publicada pela SEE/MG,
o gestor, como agente impulsionador de mudanças e figura chave para estruturação
de uma escola verdadeiramente democrática, ganha importante destaque na busca
por uma educação de qualidade, capaz de promover equidade educacional e diminuir
as desigualdades sociais.
38
Disponível em: http://www.simave.caedufjf.net. Acesso em: 01 jul. 2015.
86
“Assim, o trabalho do gestor envolve o instilar da atitude e da cultura segundo a qual o
trabalhador se sente, ele próprio, responsável e ao mesmo tempo comprometido ou
pessoalmente empenhado na organização” (BALL, 2002, p. 8). A supervalorização da
gerência promovida pelo neoliberalismo pode ser compreendida como uma tecnologia de
política, que tem como objetivo vincular a atuação dos gestores aos mecanismos reguladores e
avaliadores do Estado, afim de potencializar os processos de inculcação e adesão exigidos
pela reforma.
Tais tecnologias de política neoliberais contribuem para a conformação da cultura da
performatividade, na qual “o desempenho (de sujeitos individuais ou organizações) funciona
como medida de produtividade ou resultado, ou exposição de ‘qualidade’, ou ‘momentos’ de
produção ou inspeção” (BALL, 2001, p. 109). No ponto alto dessa cultura estão os momentos
de balanço anual, a produção de relatórios escritos e solicitações de promoção, as avaliações
por colegas. “Mais do que somente uma estrutura de vigilância, há, na verdade, um fluxo
contínuo de performatividades contínuas e importantes, isto é, um espetáculo” (BALL, 2001,
p. 110).
O conjunto de elementos forjados pela governamentalidade neoliberal têm resultados
diversos na subjetividade e na prática docentes. A crescente individualização das relações
profissionais se faz acompanhar pelo aumento do trabalho burocrático e da vigilância sobre o
trabalho docente e os produtos finais da Educação. Ao mesmo tempo, se distanciam as
expectativas do pessoal técnico e da equipe docente, confrontados por objetivos e valores
muitas vezes antagônicos. Essas novas tecnologias de políticas são “uma mescla de elementos
físicos, textuais e morais” (BALL, 2001, p. 112). Como novas formas de regulação, baseadas
no desempenho, elas afetam diferentes dimensões das relações institucionais, estimulando
novas relações entre os professores, onde seu valor como profissional é proporcional à
contribuição que ele dá à performatividade de sua unidade. Conforme Ball (2002, p. 11), “as
classificações e graduações, introduzidas nas competições entre os grupos, podem criar
sentimentos individuais de orgulho, culpa, vergonha e inveja”. Nesse sentido, “a
performatividade atinge profundamente a percepção do eu e de nosso próprio valor. Coloca
em pauta uma dimensão emocional, apesar da aparência de racionalidade e objetividade”
(BALL, 2005, p. 550).
Também as relações professor-aluno são modificadas nesse contexto, já que os
professores passam a olhar para os próprios alunos como produtores (ou não) do desempenho
“excelente” que a escola deve buscar. É importante perceber que não se trata simplesmente de
87
coisas que nos fazem, como nos regimes anteriores de poder. Trata-se também e
principalmente de coisas que fazemos a nós mesmos e aos outros (BALL, 2005). Trata-se da
nossa constituição em tipos específicos de seres e, nesse caso, formas específicas de ser
professor. Estamos diante de uma nova forma de governamentalidade que busca “utilizar mais
táticas do que leis, ou utilizar ao máximo as leis como táticas. Fazer, por vários meios, que
determinados fins sejam atingidos” (FOUCAULT, 1992, p. 284). Não mais a norma como
interdição, como proibição que se coloca de modo externo e violento ao sujeito: o
neoliberalismo nos coloca em um jogo de governamento que intenta fazer com que os sujeitos
desejem a regra, internalizem determinadas condutas e sejam capazes de se auto-governar.
Devemos pensar os modelos de avaliação externas e estandardizadas como exercícios de
poder:
poder produtivo, multifacetado e relacional. Avaliações colocam em funcionamento
um poder que induz, incita e fabrica os sujeitos que avalia de modo muito particular.
As práticas avaliativas modificam comportamentos dos indivíduos tornando-os
sujeitos autoconfiantes e auto-responsáveis pela melhoria da qualidade da educação
(ANADON, 2012, p. 13).
Se entendermos os processos de subjetivação como um conjunto de práticas e
discursos que transformam os seres humanos em sujeitos – assujeitados, objetivados –
podemos afirmar que a governamentalidade neoliberal aciona um jogo de poder que intenta
conformar um tipo específico de sujeito docente, orientado pelos preceitos da utilidade, da
eficiência e da competitividade. Se, “no curso de sua história, os homens jamais cessaram de
se construir, isto é, de deslocar continuamente sua subjetividade, de se constituir numa série
infinita e múltipla de subjetividades diferentes” (FOUCAULT apud REVEL, 2005, p. 85),
como resistir aos mecanismos de poder que não cessam de tentar capturar e conduzir essa
constituição? No escopo dessa pesquisa, perguntamos de modo mais específico: como pensar
a resistência aos processos de subjetivação docente empreendidos pela governamentalidade
neoliberal, especialmente no que se refere aos currículos e avaliações que vem
implementando? O próximo e último capítulo problematiza alguns pontos importantes em
torno desta questão.
88
CONCLUSÃO: NOTAS SOBRE A RESISTÊNCIA
Ao longo desta dissertação, problematizamos os efeitos das mudanças no sistema
educacional estadual operadas pelo programa Choque de Gestão, em Minas Gerais (2003-
2014) sobre a subjetividade docente. Partimos do pressuposto que a governamentalidade
neoliberal põe em ação uma série de mecanismos de governamento das condutas docentes,
dentre os quais os currículos e dispositivos de avaliação ocupam lugar privilegiado. No Brasil,
especialmente a partir dos anos 1990, um novo jogo de verdades sobre a Educação emerge,
atribuindo aos artefatos e aos sujeitos educacionais novas funções e novos significados. Desse
modo, analisamos os modos pelos quais a governamentalidade neoliberal atua no sentido de
fabricar um novo tipo de professor, entendendo a produção de subjetividades como parte de
um complexo jogo regido por práticas e discursos que transformam os seres humanos em
certos tipos de sujeitos.
Nesse complexo jogo de conduta das condutas, atuam a mídia, o marketing, a indústria
cultural e também, em grande medida, o próprio Estado, por meio de uma série de poderes e
saberes que a ele estão associados. Cada vez mais, a Educação, pelas vias do Estado, vem
sendo instrumento para produção do Homo economicus, de suas necessidades e competências.
Tal sujeito, “supostamente livre e autônomo, plenamente responsável por navegar pelo campo
social utilizando cálculos de escolha racional e custo-benefício”, deve excluir explicitamente
todos os demais valores e interesses. “Aqueles que fracassarem em prosperar sob tais
condições sociais não podem culpar ninguém nem coisa alguma além de si mesmos”
(HAMMAN, 2012, p. 101).
A mentalidade de Estado neoliberal, que ganha expressiva projeção no Brasil a partir
da década de 1990, constrói sentidos e finalidades últimas à Educação que a tornam objeto de
uma política econômica, orientada pelas demandas do mercado. Nesse contexto, o Estado
abandona seu lugar de provedor e passa a se colocar como regulador e auditor de resultados.
As políticas que se dirigem à Educação tornam-se cada vez mais sujeitas às prescrições do
economicismo, configurando um novo ambiente moral dentro do qual as políticas públicas
são arquitetadas e experienciadas pelos diferentes sujeitos que dela participam. Mas que tipo
de professor está se tentando produzir nesse contexto? Quais são os discursos e as práticas
dirigidos aos docentes, que intentam produzir sobre e neles próprios efeitos de poder?
89
Para responder a essas perguntas, a pesquisa se construiu a partir de quatro
movimentos de investigação. No primeiro, buscamos uma noção teórico-metodológica que
nos permitisse pensar o neoliberalismo a partir de suas práticas, como uma forma de governo
que articula uma série de dispositivos e artefatos para potencializar a produção do Homo
economicus. Nesse sentido, a ferramenta analítica da governamentalidade, forjada por Michel
Foucault, nos foi de grande valia. A partir dessa noção, foi possível apreender a razão política
e as tecnologias de governo que dão legitimidade e estrutura aos governos neoliberais não
como portadores de uma essência a ser desvelada, mas como o “efeito móvel de um regime de
governamentalidades múltiplas” (FOUCAULT, 2008, p. 106).
Nessa perspectiva, compreendemos que as diferentes governamentalidades neoliberais
existentes promovem hibridizações e ressignificações de discursos e práticas produzidos em
outros contextos, em um constante processo de bricolagem e invenção. Entretanto, também
não deixamos de reconhecer os “aspectos comuns na diferença”, ou seja, de reconhecer o fato
de que estamos diante do surgimento de um novo paradigma de governo educacional, que se
pretende hegemônico, embora encontre resistências. E o elemento comum às diferentes
governamentalidades neoliberais em ação no mundo contemporâneo é a tentativa de abarcar
todos os campos sociais, inclusive o educacional, “numa concepção única de políticas para a
competitividade econômica, ou seja, o crescente abandono ou marginalização (não no que se
refere à retórica) dos propósitos sociais da Educação” (BALL, 2001, p. 100).
Para operar esse deslocamento discursivo, a governamentalidade neoliberal substitui
oficialmente o discurso da democratização da Educação pelo discurso da qualidade, reduzindo
e enfraquecendo as demandas e reivindicações de diversos segmentos educacionais
envolvidos na luta histórica por melhores condições de acesso e permanência nas escolas. A
responsabilidade pelo provimento de serviços públicos, na lógica neoliberal, deve ser
atribuída aos próprios sujeitos sociais. Para o campo da Educação, isso significa uma
progressiva diminuição das funções atribuídas ao Estado no que se refere à garantia da
equidade dos serviços prestados, ao mesmo tempo em que se fortalecem mecanismos de
responsabilização e autogestão dos sujeitos escolares. “Em outras palavras, o que era
considerado como direito do cidadão e dever do Estado passa a ser considerado como
possibilidade de escolha, a partir do que é mensurado como eficiente ou ineficiente”
(HYPOLITO, 2010, p. 1344).
É importante frisar que o conceito de qualidade que é mobilizado pelas políticas
neoliberais vincula-se às ideias de eficácia, eficiência e racionalidade, que devem ser
90
introjetadas pelo sujeito-empresa e tomadas como norte para as suas ações. Essa é a lógica
que preside o mercado e que, na perspectiva da governamentalidade neoliberal, deve ser
espraiada sobre todo o corpo social, como uma espécie de princípio de inteligibilidade a
orientar as relações sociais e condutas individuais. Conduzir, controlar, incitar e produzir
ajustamentos dos fenômenos de população aos processos econômicos: é esse o objetivo das
ações empreendidas pela governamentalidade neoliberal. Essa forma de regulação social e
individual característica ao neoliberalismo não está presente apenas no âmbito do governo
federal, mas também nas esferas estadual e municipal.
A tentativa de apreender a materialidade das ações neoliberais no Estado de Minas
Gerais nos levou a um segundo movimento investigativo, no qual nos debruçamos de modo
mais detido sobre o programa Choque de Gestão. Lançado em 2003, na primeira gestão do
governador Aécio Neves (2003-2007), prosseguiu ao longo de seu segundo mandato (2007-
2010) e do governo subsequente, de Antônio Anastasia (2010-2014). Com a promessa de dar
mais agilidade, eficiência e transparência ao Estado, o programa se estruturou a partir de uma
série de “acordos” pactuados entre o governo, as instituições e os servidores públicos, cujo
intuito é o alinhamento das ações individuais e institucionais às metas estabelecidas pela
governança. O chamado Acordo de Resultados é um instrumento gerencial que prevê a
premiação, por mérito, àqueles que alcançam as metas estabelecidas no acordo; os que
fracassam são sancionados por seu insucesso.
Nessa lógica, os professores não apenas não poderão resistir como também não
desejarão fazê-lo, pois uma série de contrapartidas são oferecidas àqueles que se adequam e
alcançam as metas estabelecidas. Entendemos que uma pequena margem de autonomia é
mobilizada pelo governo para prevenir possíveis formas de resistência às mudanças em curso.
São estratégias de conduta da conduta que visam apresentar a reforma aos professores como
algo desejável, para que as transformações que propõem sejam aceitas como a única saída
possível, criando um marco geral de respostas e estratégias que devem ser levadas em conta
por qualquer sujeito “sensato e responsável” (GENTILLI, 1994).
Entretanto, a meritocracia instaurada pela cultura da performatividade desconhece as
condições de produção dos resultados. Podemos dizer que, em termos de posicionamento, o
professor retorna ao lugar onde as chamadas pedagogias tradicionais e tecnicistas o
colocavam; há um reforço da centralidade e da responsabilização docente no processo
educacional, fortemente atreladas à produção de resultados. O professor passa a ser, antes de
mais nada, aquele que deve atuar para alcançar as metas estabelecidas pelos governos. O
91
enfoque gerencial entende que a discussão sobre os meios não deve suplantar o alcance dos
fins e, desta forma, as estratégias para a obtenção de resultados tornam-se o foco das atenções.
Essa ênfase torna compreensível o título atribuído ao projeto educacional do governo,
“Educação para Resultados”, e indica claramente a orientação finalística e tecnicista que
preside a reforma mineira. Nesse contexto, a concorrência, a competitividade e os terrores da
performatividade impactam diretamente sobre a subjetividade docente.
É importante ressaltar que a interlocução com agências internacionais de
financiamento, característica das práticas neoliberais, marcou todo o processo de elaboração e
execução do Choque de Gestão. Merece destaque a presença do Banco Mundial, que
concedeu, aproximadamente, US$ 1,21 bilhões em empréstimos ao governo mineiro para a
estruturação do Choque, mediante o estabelecimento de alguns condicionantes. Dentre eles,
estão o estabelecimento de conteúdos curriculares básicos e padrões de aprendizagem, bem
como a implementação de um sistema de avaliação do desempenho das escolas e dos sistemas
educacionais para acompanhar a consecução das metas projetadas.
A importância atribuída pela governamentalidade neoliberal ao estabelecimento de
currículos obrigatórios mínimos nos levou ao terceiro movimento investigativo, quando
fomos ao encontro do processo de criação e implementação dos Conteúdos Básicos Comuns,
bem como dos efeitos produzidos por essa reforma curricular sobre a subjetividade docente.
Compreendemos que a implantação de novos dispositivos curriculares promove mudanças
amplas e profundas, que visam à instituição de distintas subjetividades de professores,
gestores e alunos. Os sujeitos escolares são governados pelo currículo, que determina tempos,
conteúdos, objetivos e resultados ao processo educacional. Sob a égide do neoliberalismo, o
mecanismo curricular de controle reforça-se a partir da estreita vinculação dos componentes
curriculares aos resultados obtidos nas avaliações externas, e, mais recentemente, ao
pagamento de bônus salariais aos professores.
Detectamos, no processo de elaboração e implementação do CBC, a marca da
centralização. Tanto a etapa de discussão das versões preliminares dos Conteúdos nos Grupos
de Desenvolvimento Profissional (na qual a versão piloto foi supostamente discutida e
testada), quanto a elaboração de suas versões finais, confirmam o caráter pouco democrático e
participativo que caracteriza a reforma curricular empreendida pelo governo mineiro.
Argumentamos que o empoderamento dos especialistas, em detrimento dos professores da
rede estadual, conduz à proletarização do ofício; um novo modo de exercício da docência
emerge, mais afeito à ação que à reflexão, pragmático e utilitário.
92
Entretanto, estamos aqui diante de um paradoxo alimentado pela governamentalidade
neoliberal: o professor deve ser maleável, pró-ativo, inventivo; ao mesmo tempo, querem-no
enformado, obediente, fiel aos programas curriculares e perseguidor dos resultados e das
metas estabelecidos de maneira exógena. Devemos ser autônomos, desde que essa autonomia
se inscreva em campos de escolha pré-determinados. Nessa trama, as avaliações externas
ocupam lugar privilegiado e, no caso de Minas Gerais, a vinculação entre os Conteúdos
Básicos Comuns e o Sistema Mineiro de Avaliação é amplamente anunciada e festejada como
uma estratégia garantidora da qualidade dos serviços educacionais prestados. Com base nos
resultados produzidos pelas avaliações, pretende-se visibilizar, ao “cidadão-cliente”, o
panorama geral das escolas, classificando-as entre boas e ruins. Pretende-se, ainda,
incrementar a “salutar” competitividade entre instituições e professores, implicados na disputa
por melhores posições nos rankings educacionais que, cada vez mais, são creditados pela
sociedade em geral como indicadores do sucesso ou do fracasso das escolas.
Esse atrelamento entre currículos e avaliações externas promovido pela
governamentalidade neoliberal nos conduziu ao nosso quarto e último percurso investigativo.
Nele, problematizamos a influência de alguns organismos internacionais sobre a definição da
estrutura educacional brasileira a partir dos anos 1990, tais como o Banco Mundial, o Fundo
Monetário Internacional e a Comissão para a América Latina e Caribe. A internacionalização
dos processos decisórios impacta diretamente sobre os rumos adotados pelos governos no
contexto do neoliberalismo, articulando novos regimes de verdade que deslocam o significado
de ensinar para o campo da produção de resultados quantificáveis, enquanto o aprender é
concebido como algo passível de mensuração em testes estandardizados. Nessa perspectiva, o
caráter social da Educação e as especificidades dos diferentes contextos em que o fazer
educacional ocorre ficam esmaecidos.
Em Minas Gerais, o dispositivo avaliativo está articulado em torno do SIMAVE
(Sistema Mineiro de Avaliação da Educação Pública), do qual fazem parte o PROEB
(Programa de Avaliação da Rede Pública da Educação Básica), o PROALFA (Programa de
Avaliação da Alfabetização) e o PAAE (Programa de Avaliação da Aprendizagem Escolar).
Os resultados trazidos pelos programas que compõem o SIMAVE servem para a elaboração
dos Programas de Intervenção Pedagógica (PIP), que objetivam “sanar” os problemas
identificados pela avaliação do SIMAVE. É importante frisar que, tanto na etapa de
construção das metas a serem alcançadas pelas escolas, pelos professores e alunos, quanto no
momento de intervenção nas escolas a partir dos resultados obtidos, a governamentalidade
93
neoliberal atua de modo centralizado, desconhecendo os anseios, os desejos e as
peculiaridades dos sujeitos aos quais se dirigem.
A cultura que se instala em contextos performativos, como o analisado neste trabalho,
afeta dimensões éticas e profissionais dentro das instituições, estimulando novas relações
entre os sujeitos escolares, onde seu valor é proporcional à contribuição que dá ao
desempenho de sua unidade. Nesse sentido, argumentamos que, apesar da aparência de
racionalidade e objetividade, a performatividade coloca em pauta uma dimensão emocional,
que afeta a auto-percepção dos sujeitos e a visão daquilo que lhes parece relevante fazer em
seu trabalho. Assim, é importante perceber que não se trata simplesmente de coisas que nos
fazem, mas também e principalmente de coisas que fazemos a nós mesmos e aos outros
(BALL, 2005). Trata-se da tentativa de nos constituir em tipos específicos de professores e
professoras, orientados pelos preceitos da utilidade, da eficiência e da competitividade.
Ao afirmarmos que as práticas vividas constituem e medeiam certas relações da pessoa
consigo mesma, queremos dizer que os dispositivos curriculares e avaliativos articulados pela
governamentalidade neoliberal produzem subjetividades docentes que vivem uma existência
baseada em cálculos (BALL, 2002). Cada vez mais, sob os governos neoliberais, os
professores têm sido interpelados por novos valores e novas formas de interação, que
conformam subjetividades individualistas, competitivas e pragmáticas. A cultura
meritocrática e performativa que emerge nesses contextos cria, nos docentes, um sentimento
de medo e angústia, gerado pelas constantes avaliações, produções de índices e dados
comparativos.
Entretanto, reconhecemos que, no interior das escolas, se instalam novas disputas
pelos significados e sentidos do que é ensinar e de quais são os conteúdos, os métodos, os
objetivos e as formas de avaliação pertinentes ao fazer educacional. Embora o discurso
normalizador de origem estatal se pretenda hegemônico, as políticas curriculares e avaliativas
são reorientadas por estratégias locais, nas várias instâncias subsequentes à sua produção.
Ainda que a implementação de currículos obrigatórios e de instrumentos sistemáticos de
avaliação externa se traduza na sobrecarga de tarefas e no acúmulo de responsabilidades para
os sujeitos docentes, devemos considerar que as relações que se constituem em âmbito escolar
também podem caminhar em busca de aberturas e possibilidades de escape ao prescrito, de
mais prazer e solidariedade (MANCEBO, 2010).
Especialmente no que se refere às artes neoliberais de governar a Educação, isso
envolveria “resistir, evitar, contrariar ou se opor não apenas às formas pelas quais nós temos
94
sido encorajados a ser pouco mais do que sujeitos auto-interessados da escolha racional”
(HAMMAN, 2012, p. 131), mas também às formas pelas quais nossas escolas, comunidades e
formas de participação política têm sido reformadas no intuito de estimular a produção do
Homo economicus. Querem-nos professores pragmáticos, individualistas e empresários de
nossas trajetórias profissionais; a resistência aos mecanismos de poder, que agem para nos
conformar nesse tipo de sujeito, deve fortalecer dos espaços democráticos de diálogo, bem
como promover a capilarização das tomadas de decisão no que se refere ao estabelecimento
de prioridades e objetivos para o sistema educacional público.
Os Conteúdos Básicos Comuns, bem como o conjunto de avaliações que compõem o
SIMAVE, agem no sentido de conduzir a conduta docente, de governá-la, determinando e
constrangendo seu campo de ação. Há uma constante tentativa de ajuste e cooptação dos
professores por parte do governo, mas os efeitos de poder que produzem são múltiplos e
incontroláveis. À tentativa de padronização e controle das nossas práticas docentes, desejamos
responder com um elogio à diferença, e trabalhar pela “variação de sentidos, pela
multiplicação das forças, pela disseminação daquilo que aumenta a potência de existir, pela
proliferação dos afetos felizes” (MEYER; PARAÍSO, 2012, p. 32). Queremos, por intermédio
das reflexões promovidas nesse trabalho, minar os limites e estereótipos que nos são
impostos, embora saibamos que novos limites serão criados e que a luta agonística pela
expansão do campo de liberdade se dará ad infinitum.
Concluímos reforçando o argumento que a governamentalidade neoliberal atua sobre
os sujeitos de modo a conduzi-los a se comportar de determinadas maneiras no mundo.
Focamos os processos de subjetivação docente postos em ação nesse processo. Essa foi a
nossa escolha, nosso recorte, nosso alvo. Muitos outros sujeitos da Educação (alunos,
gestores, inspetores, pais) têm sido “enformados” economicamente pelas técnicas e estratégias
neoliberais, e compreender os processos de constituição desses sujeitos é também de extrema
importância. Foucault (1984, p. 44) nos alerta que “a escolha ético-política que nós temos de
fazer diariamente é determinar qual é o principal perigo. [...]. Não que tudo seja ruim, mas
que tudo é perigoso. [...]. Se tudo é perigoso, então sempre temos algo a fazer”. Como
professores que somos, cotidianamente atravessados pelos imperativos da performatividade,
do gerencialismo e do mercado que orientam as políticas educacionais no Brasil nas últimas
décadas, reforçamos aqui a importância de analisarmos os discursos, os procedimentos e as
tecnologias que intentam nos transformar em determinados tipos de docentes.
95
Por isso, pela urgência das questões que o presente nos coloca, pensamos que é preciso
construir respostas novas aos desafios educacionais do nosso tempo. “Um tempo que
demanda de nós não apenas a compreensão do mundo em que vivemos, mas, sobretudo, a
criação de instantes de suspensão dos sentidos já criados e a abertura de possibilidades de sua
ressignificação” (MEYER; PARAÍSO, 2012, p. 21). Se estamos nos transformando em tipos
específicos de professores nos contextos neoliberais (BALL, 2005), argumentamos que é cada
vez mais importante “estranhar” essa nova governamentalidade hegemônica, inquiri-la,
questioná-la, desafiá-la. Ao aceitarmos como pressuposto que a verdade é uma invenção, uma
construção, sabemos que, ao construir nossos objetos, estamos adentrando o território em
disputa dos “regimes de verdade” (FOUCAULT, 2008). Porém não pretendemos dar uma
resposta cabal e definitiva às questões que apresentamos. Acreditamos que as formas de
resistência possíveis se conformarão no âmbito de cada município, de cada escola, em cada
sala de aula, nas práticas de cada professor. Ainda que os mecanismos de poder se pretendam
absolutos e totalitários, o campo de ação do sujeito sempre permite rotas de fuga, alternativas,
escapes, específicos ao contexto.
Queremos potencializar e instrumentalizar tais lutas docentes com nossas palavras.
Desejamos fazeres educacionais mais humanos, que possibilitem aos professores a reinvenção
do mundo fora dos domínios do utilitarismo e da competitividade, alargando as fronteiras do
pensamento e da experiência. Que as ideias que desenvolvemos ajudem a minar os discursos
hegemônicos que pretendem nos constranger, submetendo-os a uma crítica atenta e
permanente.
96
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