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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
NEILA BARBOSA DE OLIVEIRA BORNEMANN
O PORTUGUÊS BRASILEIRO EM MÁRIO DE ANDRADE PELO VIÉS DA ANÁLISE DE DISCURSO
CUIABÁ-MT 2013
NEILA BARBOSA DE OLIVEIRA BORNEMANN
O PORTUGUÊS BRASILEIRO EM MÁRIO DE ANDRADE
PELO VIÉS DA ANÁLISE DE DISCURSO
Dissertação apresentada ao Programa de
Mestrado em Estudos de Linguagem da
Universidade Federal de Mato Grosso,
como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre, sob a orientação da Prof.ª
Dr.ª Maria Inês Pagliarini Cox.
CUIABÁ-MT
iii
FICHA CATALOGRÁFICA
B736p Bornemann, Neila Barbosa de Oliveira.
O português brasileiro em Mário de Andrade pelo viés da análise de discurso / Neila Barbosa de Oliveira Bornemann. – 2013.
x, 180 f.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Inês Pagliarini Cox.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, 2013.
Bibliografia: f. 172-180.
1. Análise de discurso. 2. Andrade, Mário de, 1893-1945 – Crítica e interpretação. 3. Português brasileiro. I. Título.
CDU – 81’42
Ficha elaborada por: Rosângela Aparecida Vicente Söhn – CRB-1/931
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v
Dedico este trabalho a todos que, de inúmeras formas, contribuíram com
meu crescimento, me incentivaram a continuar buscando meus objetivos,
torceram e se alegraram junto comigo ao longo de cada conquista. Dedico
especialmente essa conquista à minha família: meus pais José Barbosa da
Silva e Almezina de Oliveira Silva, meus irmãos (em memória) Nerivaldo
Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e
amigo de todas as horas, Carlos Roberto Bornemann.
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AGRADECIMENTOS
A Deus, luz que me guia e me encoraja a enfrentar os momentos de
crise.
À Universidade Federal de Mato Grosso, mais precisamente à Pró-
Reitoria Administrativa/Secretaria de Gestão de Pessoas, por me conceder
afastamento integral para a realização do curso de mestrado.
À professora Maria Inês Pagliarini Cox, pela orientação cheia de
paciência e sabedoria, pela dedicação a esta pesquisa, por me incentivar a
crescer e, especialmente, por acreditar no meu potencial, desde 2005, meu
primeiro ano de graduação em Letras, nesta Universidade.
A todos os professores do programa de Pós-graduação em Estudos de
Linguagem e de graduação que contribuíram com meu amadurecimento
intelectual.
Aos professores Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento e
Roberto Leiser Baronas, pela leitura cuidadosa e criteriosa da primeira versão
deste trabalho e pelas muitas sugestões que me ajudaram a aperfeiçoá-lo.
À professora Rosemary Affi Santos Costa que, desde o curso de
graduação, também acompanha minha jornada no universo das Letras e que,
durante a pesquisa do mestrado, abriu as portas de sua biblioteca particular
para me disponibilizar as obras de que necessitava, inclusive obras raras de
Mário de Andrade.
Ao meu esposo Carlos Roberto Bornemann, pelo apoio incondicional,
pelo amor, pela torcida, pela paciência em me ouvir e pelo compartilhamento
dos meus sonhos.
Aos meus pais José Barbosa da Silva e Almezina de Oliveira Silva, pelo
amor, incentivo ao estudo desde criança e pela torcida em todos os momentos.
Aos meus parentes, tanto os de perto quanto os de longe: avós, tios e
primos, com quem pude falar sobre esta pesquisa e que me enviaram boas
energias.
Aos amigos da época da graduação e da pós-graduação, pela
companhia e trocas riquíssimas ao longo do curso de mestrado.
vii
Aos amigos de trabalho da Secretaria de Gestão de Pessoas/UFMT,
especialmente aos da Seção de Cadastro de Pessoal e ao meu chefe, Rodolfo
Nery Guarim Strobel, pela amizade sincera e torcida em todos os sentidos.
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Que importa que uns falem mole descansado
Que os cariocas arranhem os erres na garganta
Que os capixabas e paroaras escancarem as vogais?
Que tem si o quinhentos-réis meridional
Vira cinco tostões do Rio pro Norte?
Juntos formamos este assombro de misérias e grandezas,
Brasil, nome de vegetal!...
(ANDRADE, Noturno de Belo Horizonte)
ix
O PORTUGUÊS BRASILEIRO EM MÁRIO DE ANDRADE PELO VIÉS DA ANÁLISE DE DISCURSO
O estudo investigou o(s) discurso(s) de Mário de Andrade acerca da constituição de uma identidade linguística brasileira, focalizando a posição do escritor na chamada polêmica entre modernistas e conservadores, entre as décadas de 1920 e 1940, balizando-se pelo referencial teórico-metodológico da análise de discurso francesa, especialmente pelos conceitos de interdiscurso (e seus correlatos) e ethos discursivo, tal como operacionalizados por Dominique Maingueneau (1989, 1997, 2005a, 2005b, 2008a, 2008b, 2010, 2011). Os enunciados do corpus discursivo foram recortados do arquivo de textos que compõem a obra do autor, distribuídos entre gêneros vários, como: poesia, ensaios, crítica, romances, contos, crônicas, matérias jornalísticas, estudos folclóricos, incluindo cartas enviadas a amigos com quem dialogava a propósito dos brasileirismos aos quais queria dar estatuto de fala erudita, culta, civilizada. O estudo teve por objetivo captar alguns dos sentidos atribuídos por Mário de Andrade ao acontecimento linguístico que, desde o princípio da colonização, vinha engendrando uma língua ou uma norma outra que rachava o reino indiviso da lusofonia. Além disso, buscou compreender o funcionamento do ethos discursivo na enunciação marioandradina como participante de uma polêmica histórica no campo das Letras, no universo discursivo brasileiro. No horizonte vislumbrado por Mário, o nacionalismo emergia como significativo, se, e apenas se, desvencilhado do regionalismo e integrado ao internacionalismo que regia seu desejo de projetar o Brasil no concerto da cultura civilizada universal. A leitura do corpus discursivo revela a convergência do ethos pré-discursivo e discursivo de Mário com o ethos da comunidade ética modernista no tocante à militância, à revolta, ao combate da estética acadêmica, ao passadismo, à imposição do padrão linguístico lusitano etc. Contudo, ela também traz à tona a divergência do ethos de Mário em relação ao ethos modernista quanto a se portar como um mero ideólogo do movimento ou a se portar como um experimentador, um artífice, um autêntico obreiro da missão modernista, na São Paulo e no Brasil das primeiras décadas do século XX, em meio a parnasianos, simbolistas, regionalistas e a outros movimentos. Nesse sentido, a obra literária de Mário é uma demonstração, ou melhor, uma mostração do ethos da coragem.
PALAVRAS-CHAVE: análise de discurso; polêmica; português brasileiro; Mário de Andrade.
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THE BRAZILIAN PORTUGUESE IN MÁRIO DE ANDRADE
THROUGH THE BIAS OF DISCOURSE ANALYSIS
This study investigated Mario de Andrade’s discourse in relation to the creation of a Brazilian linguistic identity, focusing on the writer’s position in the so called polemic between modernists and conservatives, between the 1920s and 1940s, supported by the theoretical and methodological referential of the French discourse analysis, mainly by the concepts of interdiscourse (and its correlates) and discursive ethos, as operationalized by Dominique Maingueneau (1989, 1997, 2005a, 2005b, 2008a, 2008b, 2010, 2011). The discursive corpus was extracted from the archive of texts that comprise the author’s work, distributed among several genres, such as: poetry, essays, criticism, romances, short-stories, chronicles, journalistic articles, folklore studies, including letters sent to friends with whom he discussed about the Brazilianisms to which he wanted to give status of erudite, cultured, civilized speech. The study aimed to capture the meanings assigned by Mario de Andrade to the linguistic event that, from the beginning of colonization, was engendering a language or a norm that was breaking the Lusophony kingdom. Besides, it sought to understand the operation of the discursive ethos in the marioandradina enunciation as a participant of a historical controversy in the field of Letters in the Brazilian discursive universe. On the horizon envisioned by Mario, nationalism emerged as significant, if, and only if, set apart from the regionalism and integrated to the internationalism that governed his desire to project Brazil in the concert of the universal civilized culture. The reading of the discursive corpus reveals the convergence of Mario’s pre-discursive and discursive ethos with the ethos of the modernist ethnic community with regard to militancy, revolt, fight against academic aesthetics, traditionalism, imposition of the Lusitanian linguistic pattern etc. However, it also brings to light Mario’s divergence of ethos in relation to the modernist ethos whether to behave as a mere ideologist of the movement or to behave as an experimenter, a craftsman, a real worker of the modernist mission, in São Paulo and in Brazil of the first decades of the XX century, amid the Parnassian, Symbolist and Regionalist movements to name a few. In this sense, Mario’s literary work is a demonstration, or better, a display of the ethos of courage.
KEYWORDS: discourse analysis; polemic; Brazilian Portuguese; Mário de Andrade.
xi
Sumário INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 12
Capítulo 1 ................................................................................................................................... 29
NOTAS SOBRE O MODERNISMO BRASILEIRO E A PERFORMANCE DO PROTAGONISTA MÁRIO DE ANDRADE .... 29
1. 1 O Movimento Modernista no Brasil ................................................................................. 30
1.2 A trajetória artística e intelectual trilhada por Mário de Andrade ................................... 40
1. 3 Mario de Andrade: um missivista compulsivo ................................................................. 50
Capítulo 2 .................................................................................................................................... 56
PERCURSO METODOLÓGICO ............................................................................................................. 56
Capítulo 3 .................................................................................................................................... 73
A POLÊMICA ACERCA DA CONSTITUIÇÃO DE UMA IDENTIDADE LINGUÍSTICA BRASILEIRA EM MÁRIO DE
ANDRADE ....................................................................................................................................... 73
3.1 Da formação discursiva ao interdiscurso .......................................................................... 73
3.2 Do primado do interdiscurso ............................................................................................ 76
3.3 Da polêmica como interincompreensão .......................................................................... 81
3.4 Da polêmica sobre identidade linguística brasileira no arquivo de Mário de Andrade .... 83
3.5 Da transposição erudita dos barbarismos ....................................................................... 102
3.5.1 Da categorização e nomeação da variedade linguística falada no Brasil ................. 102
3.5.2 De Mário de Andrade como um (socio)linguista temporão .................................... 112
Capítulo 4 .................................................................................................................................. 130
O ETHOS DE MÁRIO DE ANDRADE NA ENUNCIAÇÃO ACERCA DA IDENTIDADE LINGUÍSTICA BRASILEIRA ....... 130
4.1 Da noção de ethos ........................................................................................................... 130
4.2 Do ethos pré-discursivo ao discursivo em Mário de Andrade ........................................ 141
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................................. 162
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................................ 173
12
Introdução
Desde que o Brasil se emancipara politicamente de Portugal, no século
XIX, a construção da identidade nacional se fez tema de um prolífero debate
que se prolongou até o século XX, envolvendo escritores, artistas, políticos,
gramáticos e a intelligentsia brasileira de um modo geral. Os escritores
românticos brasileiros foram os primeiros a entrar na briga pela emancipação
estética em relação aos modelos portugueses e europeus e essa bandeira
incluía a independência linguística. Nossa autonomia política não estaria
completa se a nação recém-criada continuasse a se comportar como colônia
cultural e linguística da metrópole portuguesa. Afinal, ter uma língua própria
parece ser um imperativo a quem se declara uma nação independente.
Macedo Soares exprime precisamente a divisão linguística reinante no Brasil
na segunda metade do século XIX, vinculando-a a um processo de
emancipação ainda inacabado:
Nossos jornalistas escrevem de modo muito diverso do que falam. Falando dizem que moram na rua do Ouvidor, no largo da Lapa, no campo de Santa Ana, nas Laranjeiras: escrevendo dizem, que moram às Laranjeiras, ao campo de Santa Ana, à rua do Ouvidor, ao largo da Lapa. Falando são brasileiros [...] Escrevendo [...] tratam de acompanhar os jornalistas de Lisboa [...].
Eis porque bem dizia Batista Caetano, o chorado americanólogo brasileiro: - “Independência Nacional? Pode ser, mas só política: em tudo mais continuamos a ser colônia Portuguesa”. E é assim mesmo. (SOARES, 1981, p. 52-53)
Contudo, o discurso que defendia a construção de uma identidade
cultural, artística, literária e linguística não se fazia sem uma forte oposição dos
conservadores. Alfredo Bosi sintetiza muito apropriadamente a tensão “entre a
Colônia que se emancipava e a Metrópole que se enrijecia na defesa de seu
caducante Império [...]”. Se, por um lado, “o pólo brasileiro [...], enfim, levantava
a cabeça e dizia seu nome”, por outro, “o pólo português, [...] resistia à perda
de seu melhor quinhão” (BOSI, 1992, 177).
No que tange à língua especificamente, Pinto (1981) refere-se a duas
posições discursivas em conflito, a posição dos separatistas e a posição dos
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legitimistas. De um lado, os separatistas, “homens embriagados pelo ideário de
liberdade, viam como positiva a diferenciação linguística entre Brasil e Portugal
e reivindicavam apaixonadamente a emancipação e a maioridade cultural do
Brasil” (ALBUQUERQUE e COX, 1997, p. 31). Animados pela independência
política e pelo nacionalismo, os separatistas imbuíam-se do dever de dar à
nação brasileira uma língua própria. De outro lado, estavam os legitimistas que
defendiam a conservação do português, tal como prescrito pelos gramáticos
d’além mar, procurando impedir toda sorte de mudanças que a língua viesse a
sofrer em solo brasileiro por meio de acréscimos, neologismos,
estrangeirismos, barbarismos ou quaisquer outras afetações originárias da fala
cotidiana. Enquanto os separatistas viam o processo de diferenciação que
afetava o português falado/escrito no Brasil como algo positivo, como os
primeiros passos de uma língua outra em formação, os legitimistas a viam
como negativa, como a contaminação e destruição da pureza do idioma
lusitano.
Ascendente entre os românticos, a posição separatista recuava para os
bastidores entre os parnasianos, cujos princípios estéticos incluíam a
sacralidade da forma, o respeito às regras de versificação, o preciosismo
rítmico e vocabular, as rimas raras, a preferência por estruturas fixas, a
exemplo do soneto, a retomada de temas clássicos. Essa preocupação
exacerbada com a perfeição formal favorecia a posição legitimista, levando
muitos parnasianos a entenderem “perfeição formal” como sinônimo de
“correção gramatical”. Contudo, os parnasianos não demoraram a enfrentar a
reação modernista que retomava, sob outras perspectivas, postulados do
romantismo, dentre eles o de abrasileiramento da língua e da literatura.
O movimento modernista propunha uma ruptura com as normas
estéticas do passado, com as belas-letras e as belas-artes, com o
academicismo. Entre as bandeiras reivindicadas pela sua vanguarda, estavam:
o direito à pesquisa e experimentação estética, a liberdade de expressão e
criação artística, a incorporação da vida cotidiana às temáticas literárias, com
destaque ao folclórico e ao popular, a incorporação da pluralidade cultural e
linguística brasileira, o nacionalismo crítico, as inovações técnicas por meio da
adoção do verso livre, a linguagem coloquial e a eliminação de sinais de
pontuação, bem como experimentos ousados no léxico, na sintaxe e na
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semântica. Muitos modernistas discutiram a questão da língua nacional, mas,
certamente, o mais apaixonado, o mais contundente, o mais envolvido e
comprometido com a tarefa de encontrar uma norma brasileira que pudesse
balizar a escrita literária foi Mário de Andrade.
Estrela de primeira grandeza no movimento modernista, Mário Raul de
Morais Andrade (1893-1945) se dedicou ao estudo da cultura, do folclore, da
música, da literatura e da língua do Brasil, sempre tendo como alvo a formação
da identidade nacional, ainda embaçada pelos valores, modelos e normas
lusitanos e europeus. Mário assumiu um caráter revolucionário na literatura
brasileira, estreando com Pauliceia Desvairada (1922), obra que deu início ao
movimento modernista no Brasil, deflagrado pela Semana de Arte Moderna.
Mário não perdia de vista “a produção de uma explicação do Brasil,
voltada à efetivação da sociedade nacional” (SILVEIRA, 2010, p.55). Contrário
às estruturas sociais vigentes representantes de um espírito conservador e
conformista, ele enfatizava a necessidade de renovar os campos da arte, da
literatura e da cultura, buscando romper os laços com a Europa, “para superar
o estado de reverência absoluta a essa cultura, mantida até então pelos
acadêmicos” (MUSSALIM, 2006, p.273).
Imbuído do ideário modernista, o escritor fez das coisas e gentes do
Brasil o tema central de sua obra. Essa preocupação em fazer aflorar os traços
de brasilidade encravados nos quatro cantos do país levou-o a realizar diversas
expedições etnológicas pelo interior do Brasil. Sua empreitada como etnólogo
resultou na obra Macunaíma – o herói sem nenhum caráter, publicada em
1928, um romance cuja personagem central amalgama as qualidades e
defeitos de um brasileiro comum, originado da mistura de índio, negro e
branco, de modo a patentear a ideia de que o que principalmente caracteriza a
identidade cultural brasileira é a mestiçagem.
Suas obras constituem verdadeiros manifestos em favor de uma língua e
de uma literatura brasileiras, independentes daquelas de Portugal. Assim, na
polêmica entre modernistas e conservadores, ele reconhecia a contribuição do
português europeu, mas defendia a independência de um idioma nacional, se
não da língua ao menos da fala. Muitas de suas pesquisas sobre a fala
brasileira encontram-se registradas em esboços que possivelmente seriam
direcionados para a obra A gramatiquinha da fala brasileira, que nunca chegou
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a ser escrita e publicada. Nessa obra, Mário de Andrade se apresentava como
alguém que sabia escrever bem o português de Portugal, mas que se propunha
a contribuir para a construção de uma “gramatiquinha” da fala brasileira. Não
se tratava de uma gramática como as demais, mas de uma sistematização das
constâncias observadas na fala dos brasileiros das diversas regiões, do campo
e da cidade, da elite e de povo. Seu desejo era chegar ao elemento culto
brasileiro, superando o individualismo e o regionalismo.
Entre os esboços destinados à Gramatiquinha, encontramos notas de
Mário sobre as fases linguísticas experimentadas pelos escritores na sociedade
brasileira ao longo de sua história. É, pois, a partir do lugar da literatura que o
autor se envolve com a questão da identidade linguística brasileira. Se
visualizava para o Estado-Nação Brasil uma literatura própria não poderia
deixar de pensar numa língua própria para esse fazer literário. O trinômio
nação/língua/literatura própria que pauta o imaginário da formação dos estados
nacionais europeus durante o século XIX também se faz sentir entre nós,
quando nos tornamos politicamente independentes de Portugal. Nesse sentido,
Mário aponta quatro fases: Brasil colônia, Brasil romântico, Brasil civilizado e
Brasil Cultural.
Na fase colonial, “nós falávamos o português de Portugal” (ANDRADE,
[1928] 1990, p. 412), a exemplo de Santa Rita Durão, Claúdio Manoel da Costa
e Tomás Antônio Gonzaga, cuja forma de expressão mimetizava a língua da
literatura portuguesa. Nesse período, o poder português sobre a colônia
brasileira imperava fortemente não apenas no domínio da política, mas também
da cultura, das artes, da literatura, da língua, o que não significava que não
houvesse resistência.
Na fase romântica, embriagados pelo ideal de liberdade que culminou
com a emancipação política do território brasileiro do Reino Unido de Portugal,
os escritores buscavam ampliar o gesto de ruptura com a ex-metrópole,
recorrendo à língua falada pelo povo e às temáticas nacionais, com destaque
para indianismo. De acordo com Mário, apesar de ser uma fase primitiva e
caótica, é nela que se esboçam “as tendências essenciais da futura fala
brasileira” (ANDRADE, [1928] 1990, p. 412).
Na fase civilizada, que se inicia na segunda metade do século XIX e vai
até o início do século XX, voltamos a imitar a civilização alheia em todos os
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domínios. Nas palavras de Mário, “republicamo-nos por adaptação com a
civilização americana que era republicana”. Com relação à língua, o que
predominava não era mais falar o português que o povo de Portugal usava,
como fazíamos na fase colonial, mas o português gramatical. Isso levava a
saber muito das regras de gramática, mas escrever “mal”. O desejo que movia
os escritores era o de escrever “certo” e não escrever “bem”. Nessa fase,
“falávamos conscientemente a mais desumana língua que é possível se
imaginar [...] língua de criação consciente, de expressão falsa, inteiramente
divorciada das nossas condições naturais quer fonéticas quer semasiológicas”
(ANDRADE [1928] 1990, p. 412-413).
Na fase cultural, iniciada com o modernismo, Mário vislumbrava uma
substituição da civilização pela cultura brasileira, nos mais variados domínios,
incluindo o linguístico. Vencidos os arroubos das primeiras tentativas e “os
exageros a que a gente é levado naturalmente pelo entusiasmo da descoberta,
a gente voltará a escrever a língua que fala”. O escritor prognosticava um
tempo em que a língua literária iria conjugar “o povo e a elite escrevedora”
(ANDRADE [1928] 1990, p. 413).
Inscrevendo-se na fase cultural, Mário de Andrade faz parte da safra de
escritores brasileiros que, desde o romantismo, se incomodavam com a
transformação da literatura brasileira em decalque da portuguesa. Esse mal-
estar incluía tanto as referências estéticas quanto temáticas e linguísticas. A
julgar pela abundância de textos acerca da língua/fala brasileira no arquivo
marioandradino, essa era uma questão que o inquietava, que não dava tréguas
a seu desassossegado pensamento. Não apenas pelo volume de textos, mas
principalmente pela fecundidade de suas reflexões sobre a língua que, pode-se
dizer, anteciparam, em quase meio século, o que (socio)linguistas viriam a
enunciar sobre a realidade linguística brasileira. É esse arquivo que
escolhemos para coletar um corpus significativo de enunciados a serem lidos
nesta dissertação.
Assim, temos por objetivo geral perscrutar o posicionamento e o ethos
discursivo de Mário de Andrade, um escritor modernista, nos debates acerca
da constituição de uma identidade linguística brasileira. Nossa hipótese de
partida é que os enunciados marioandradinos acerca da língua falada no Brasil
estão impregnados das contradições entre o discurso modernista e o discurso
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conservador que permeiam o campo discursivo das Letras no Brasil das
primeiras décadas do século XX. Definido o objetivo geral e a hipótese,
buscamos responder às seguintes perguntas: Como Mário de Andrade se
posiciona, no papel de enunciador modernista, na peleja pela construção de
uma identidade linguística nacional? Como ele significa o acontecimento
linguístico1 brasileiro em relação à lusofonia: uma língua outra ou uma norma
outra? De que modo o combate travado por ele com os defensores de uma
lusofonia indivisa se inscrevem na materialidade dos enunciados?
Tendo em vista que a presente investigação2 busca depreender dos
enunciados de Mário de Andrade suas interpretações acerca da alteridade
linguística latente no português brasileiro, balizaremos nosso estudo pela
análise de discurso da vertente francesa, uma vez que sua especialidade é “o
campo do sentido” (POSSENTI, 2004, p. 361). A AD visa compreender como
objetos simbólicos fazem sentidos. Conforme Orlandi (2007, p. 26), a análise
de discurso não busca revelar o sentido verdadeiro, pois, para ela, “Não há
uma verdade oculta atrás do texto. Há gestos de interpretação que o
constituem e que o analista, com seu dispositivo, deve ser capaz de
compreender”.
Para compor nosso dispositivo de leitura dos enunciados, recorremos às
noções de formação discursiva e interdiscurso, privilegiando duas das
hipóteses propostas por Maingueneau em Gênese dos discursos (2005a) o
primado do interdiscurso sobre o discurso e a polêmica como
interincompreensão. Consideramos as noções de interdiscurso e polêmica
adequadas à análise do corpus pelo fato de a língua/fala do Brasil sempre
suscitar controvérsias e verdadeiras batalhas verbais no campo discursivo das
1 Entendemos acontecimento discursivo conforme Guilhaumou & Maldidier (1994, p. 166): “o
acontecimento discursivo não se confunde nem com a notícia, nem com o fato designado pelo poder, nem mesmo com o acontecimento construído pelo historiador. Ele é apreendido na consistência de enunciados que se entrecruzam em um momento dado”. 2 A pesquisa aqui apresentada integra o projeto “Discursos sobre o português brasileiro – do
século XIX ao século XXI, coordenado pela Profa. Dra. Maria Inês Pagliarini Cox, que faz parte do corpo docente do MeEL/UFMT. Trata-se de uma pesquisa sobre os sentidos atribuídos à(s) variedade(s) brasileira(s) do português, baseada em corpus de textos escritos por escritores, jornalistas, gramáticos, linguistas, homens de Letras em geral, desde o século XIX, momento em que o nacionalismo romântico começa a instigar as discussões acerca de uma possível língua nacional, logicamente, não sem a reação da ortodoxia a defender a língua tal como herdada do passado lusitano quinhentista.
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Letras. De Maingueneau (1989, 1997 2005a, 2005b, 2008a, 2008b, 2010,
2011) também tomamos a noção de ethos que nos ajudará na construção do
quarto capítulo desta dissertação. Nosso estudo tem por referência o campo
discursivo das Letras, do qual recortamos o espaço constituído pelas
formações discursivas modernista e conservadora, que não cessam de se
enredar no processo de interpretação do acontecimento linguístico que afeta a
língua portuguesa no seu deslocamento de Portugal para o Brasil,
engendrando uma nova língua ou novas normas.
Realizada essa delimitação, percorremos o arquivo de textos de Mário
de Andrade em busca de sequências discursivas (doravante SDs) cuja
temática fosse a língua/fala brasileira. Tratando-se, pois, de uma pesquisa de
arquivo, nossa leitura das obras do modernista não foi direcionada por gêneros
discursivos, mas pelo tema eleito – o português brasileiro – recorrente na obra
de Mário de Andrade como um todo. Por isso, a montagem do corpus consistiu
em ler, localizar e extrair SDs dos textos, independentemente dos gêneros
discursivos a que pertencessem (artigos para jornal, ensaios literários, crítica,
poemas, romances, contos, crônicas, esboços destinados à Gramatiquinha da
fala brasileira e cartas a muitos amigos), com o foco apenas no tema. Além
disso, recorremos aos textos publicados na coletânea Português do Brasil
(V.II), organizada por Edith Pimentel Pinto (1981). Em análise de discurso, o
corpus não é dado a priori, mas constituído a partir das perguntas e objetivos
da pesquisa. Embora no capítulo 2, tenhamos organizado as obras que nos
serviram de fonte para a constituição do corpus por gênero, isso não significa
que ele foi uma variável considerada em nosso estudo.
Esse estudo não está inaugurando um novo filão de pesquisa no campo
da análise de discurso praticada no Brasil. Nesse campo, há uma farta safra de
trabalhos realizados e publicados sobre a questão nevrálgica da identidade
linguística brasileira, a partir de diferentes corpora. Sem a preocupação de
sermos exaustivos, revisitamos alguns desses trabalhos com os quais a nossa
pesquisa se afina temática, teórica ou metodologicamente.
Comecemos pelo estudo de Buscácio (2010) que, como nós, também se
debruça sobre o arquivo Mario de Andrade, buscando apreender os efeitos de
sentido que acompanham o gesto de nomear a língua do Brasil nos esboços
destinados à obra Gramatiquinha da fala brasileira, organizada e publicada por
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Edith Pimentel Pinto sob o nome de A gramatiquinha de Mário de Andrade.
Balizada pelo conceito foucaultiano de autor, Buscácio realçou o lugar de autor
de literatura, ocupado por Mário de Andrade, em contraste com o lugar de
gramático que ele se recusava a ocupar, a julgar pela denominação
“gramatiquinha da fala brasileira”, e não “gramaticazinha” como prescrevem as
normas e muito menos “gramática”. Se, por um lado, Mário se propõe a
produzir um instrumento linguístico (uma gramatiquinha), por outro, trata-se de
um instrumento linguístico diferente, não disciplinador como as gramáticas
escolares. Assim, para Buscácio (2010, p. 13), “Andrade joga com os lugares
discursivos do gramático e do literato para ressignificá-los, ao se propor a
desengessar a língua da gramática na Gramatiquinha”. Nomear a língua como
“o brasileiro”, “a fala brasileira”, “a língua brasileira”, “a língua nacional” não é
um gesto puramente estético, é também um gesto político. Essas nomeações
implicam deslizamentos de sentidos que se aliam, confrontam e significam
diferentemente no imaginário de formação do Estado brasileiro linguística e
literariamente emancipado de Portugal. Dessa forma, no autor Mário de
Andrade, a edificação da nação brasileira implica uma edificação linguística
iniciada pela “estilização da língua falada no país pela literatura, a ser
registrada pelas gramáticas, de modo a constituir uma língua nacional
brasileira” (p. 18).
Silva Sobrinho (2009) também reflete sobre o gesto de nomear a língua
do Brasil, buscando compreender os efeitos de sentido do enunciado Museu da
Língua Portuguesa, a partir do silêncio e do “jogo entre o dito e o não-dito
constitutivo de seu processo de enunciação” (p. 388). A designação da língua
nacional do Brasil no Museu como “Língua Portuguesa”, “Língua Portuguesa do
Brasil”, “Português do Brasil” e “Português Brasileiro” silencia a existência de
uma Língua Brasileira. Na companhia de Sériot (1996, p. 297), o autor afirma
que silenciar o nome da língua significa negar-lhe a existência bem como a de
seus falantes. Por outro lado, os determinantes “do Brasil” e “Brasileiro” nos
enunciados “Português do Brasil” e “Português Brasileiro” já não significam
mais o que significavam para os gramáticos do final do século XIX que
buscavam dar “visibilidade à língua do Brasil, afirmando as diferenças
produzidas no longo processo de descolonização linguística iniciado ainda no
‘descobrimento’” (p. 400). Entre os gramáticos do final do século XIX, tais
20
determinantes ressoavam em convergência com o processo de descolonização
e mudança linguística; hoje ressoam os sentidos de “localização de uma
história particular”, do mesmo modo que o determinante “no Brasil” (ORLANDI,
1997, p. 4). Segundo Silva Sobrinho (2009, p. 400), na história contada pelo
Museu, o Português do Brasil ou Português Brasileiro é uma mera variação da
“Língua Portuguesa” e não uma outra língua, posição que subestima a
disjunção linguística entre Brasil e Portugal e introduz “uma continuidade numa
descontinuidade, uma homogeneidade numa realidade fundamentalmente
heterogênea” (p. 402), produzindo “a unidade imaginária da língua e do Estado
brasileiro e, ao mesmo tempo, a unidade imaginária da lusofonia” (p. 386).
Nomear a língua falada no país como Português do Brasil ou Português
Brasileiro significa dizer que falamos um dialeto do português e não que
falamos uma outra língua – o brasileiro.
Orlandi (2005), enfatizando que “a língua que se fala toca os sujeitos em
sua autonomia, em sua identidade, em sua autodeterminação” (p. 1), indaga-se
sobre a língua que nós, brasileiros, falamos: “falamos a língua portuguesa ou
brasileira?”. Revisita a história das ideias linguísticas brasileira para mostrar
que essa pergunta, apesar da descontinuidade introduzida no português pelos
falantes do lado de cá do Atlântico e apesar do acalentado debate entre
aqueles que propugnavam por uma língua nossa, brasileira, e aqueles que
defendiam a manutenção da língua outorgada por Portugal, comumente teve
como resposta: “falamos a língua portuguesa”. No auge dos debates, pós-
independência, a Constituição outorgada por D. Pedro, em 1823, decidiu que “a
língua que falamos é a língua portuguesa” (p. 1). Na década de 1930, a
Câmara do Distrito Federal optou por nomeá-la, de modo indefinido, como
“língua nacional”, designação que foi alterada pela Constituição de 1946 que
retomou a decisão anterior de que “o nome da língua falada no Brasil é língua
portuguesa” (p. 2). Enfim, a polêmica em torno da língua que falamos ainda
não se encerrou. As repostas institucionais não apagam o fato de que falamos
em nosso dia uma língua outra – o brasileiro – que entretém uma relação tensa
como o português, sobremaneira na cultura escolar que “acaba sempre se
curvando à legitimidade da língua portuguesa que herdamos” e considera que
“quem não a fala, ainda que esteja no Brasil, que seja brasileiro, erra, é um mal
falante, um marginal da língua” (p. 2). Segundo a autora, é a ideologia purista
21
que dá suporte ao imaginário da língua portuguesa. Contudo, apesar das
políticas linguísticas favorecerem o imaginário da unidade e da homogeneidade
da língua portuguesa, não podemos ignorar que “falamos decididamente a
língua brasileira”, uma vez que “falamos a ‘mesma’ língua, mas falamos
diferente”. O português brasileiro e o português português se recobrem como
se fossem a mesma língua, mas não são, “por se historicizarem de maneiras
totalmente distintas em suas relações com a história de formação dos países”
(p. 3). Em vista dessa disjunção, o português e o brasileiro diferenciam-se não
apenas no sotaque, na sintaxe e no léxico, mas também nas discursividades
que produzem. “O efeito de homogeneidade é produzido pela história da
colonização” (p. 3).
Mussalim (2003) investiga o modo como se deu a constituição do
discurso modernista no Brasil, balizada pelo conceito de semântica global
proposto por Maingueneau (2005a). Trata-se de uma tese de doutorado, cujo
capítulo 6, apresentado na forma de apêndice ao corpo do trabalho, interessa-
nos, sobremaneira, por revisitar a polêmica sobre “a existência ou não de uma
variedade linguística brasileira, separada da variedade de Portugal” (p. XIV). O
eixo do confronto de ideias recai sobre “a dialética nacional/estrangeiro” (p.
174). Embora a autora retroceda até a década de 1820, momento em que
acontecem as primeiras discussões acerca da língua do Brasil, seu foco neste
capítulo é “o modo de inserção do discurso modernista no debate em torno da
questão linguística nacional” (p. 175). As primeiras manifestações sobre essa
questão ocorreram entre 1820 e 1836, esboçando gestos interpretativos
favoráveis ou desfavoráveis às transformações linguísticas do português do
Brasil e sinalizando a direção do longo debate que experimentou, nos
movimentos romântico e modernista, sua maior florescência. A autora
esclarece que foram Gonçalves Dias e José de Alencar os primeiros escritores
a tentar “a fixação dos padrões literários brasileiros em termos de língua” (p.
181). O mais contundente defensor do cisma literário e, consequentemente,
linguístico entre Brasil e Portugal foi José de Alencar que imputava às palavras
valor estético – a expressão literária do nacional haveria de ser feita com
palavras nacionais. As diferentes designações atribuídas à língua do Brasil por
José de Alencar como “nosso dialeto” (ou dialeto brasileiro), “novo idioma” e
“português americano” não significavam incoerência ou contradição, mas sim a
22
dificuldade para lidar com a identidade linguística nacional sem poder ignorar o
elemento estrangeiro ainda muito presente no cenário brasileiro. Foram, pois,
os românticos que, primeiro, formularam “a defesa da cisão entre a literatura
portuguesa e a nossa literatura nacional, cisão que passa, evidentemente, pela
constituição de uma identidade linguística diferente da de Portugal” (p. 195).
Entre os modernistas, a reflexão sobre a identidade linguística brasileira,
aninhava-se, segundo Mussalim, num “projeto maior dessa vanguarda que
buscava realizar [...] a “transposição erudita da bárbarie” (p. 197). De acordo
com esse projeto, cabia aos escritores realizar a estilização culta da linguagem
popular, empreitada que Mario de Andrade defendeu aguerridamente em sua
produção crítica divulgada pela imprensa e pôs em prática em Macunaíma: o
herói sem nenhum caráter e outras obras literárias. A estilização culta da fala
empreendida pelos escritores individualmente prepararia a gramática da
linguagem brasileira. Contudo, o projeto de fornecer aos escritores “uma
codificação das tendências e constâncias da expressão linguística nacional” (p.
198) não deslanchou, principalmente pela falta de “órgãos científicos
adequados para realizar a reverificação da língua nacional”. Tudo se perdeu no
nível dos esforços individuais.
Mussalim (2006) explora a constituição de uma identidade nacional pelo
grupo dos primeiros modernistas brasileiros como um efeito do discurso. A
pesquisadora parte do projeto estético de Mário de Andrade sobre a música
nacional, estabelecendo um contraponto com suas reflexões acerca da
identidade linguística nacional. Um dos fundamentos do projeto estético
modernista “era o resgate da cultura popular, tomada como raiz de uma
tradição eminentemente brasileira” (p. 272). Contudo, o projeto não parava aí,
pois isso teria feito dos modernistas apenas um grupo de neo-românticos ou de
tradicionalistas rebeldes, postura que eles rechaçavam incisivamente, uma vez
que faziam parte de uma elite cultural que prezava a civilização, o progresso, a
modernização e que tinha a Europa Ocidental como referência. Era preciso
juntar a música popular com “a técnica e a tradição européia aprendida nas
escolas, a fim de precaver-se da selvageria e inserir-se na República Universal”
(p. 273). Contudo, a técnica seria decisiva na formação da música nacional
apenas se passasse pelo filtro da subjetividade do artista, assumindo uma
postura contra-aculturativa que superaria o mero academicismo. Assim, caberia
23
à arte/música nacional realizar “a transposição erudita da barbárie”, nos termos
de Mário de Andrade. A questão da identidade linguística nacional recebia uma
interpretação homóloga à perfilada para o projeto estético. Se, em relação às
artes, em geral, e à música, Mário defendia a “a transposição erudita da
barbárie” por meio da subjetividade do artista, em relação à língua ele defendia
a “estilização da fala popular, realizada pelo escritor conhecedor do português
de Portugal” (p. 276). A estilização representaria a contribuição individual de
cada escritor para o estabelecimento futuro de uma gramática da fala brasileira
que se colocaria num plano coletivo, nacional. Em relação ao projeto estético, a
subjetividade do artista, como ser histórico e social, trazia inscrita em si a
nação. Contudo, em relação ao projeto linguístico, a identidade nacional era
vista como a soma das contribuições individuais. Seguindo os passos
vislumbrados por Mário em seu projeto linguístico, a “universalidade brasileira”
(SD56) avultaria com a superação das soluções regionais que lhe soavam
como equivocadas.
Mussalim (2011), ainda debruçada sobre as práticas discursivas dos
modernistas no Brasil, propõe-se a analisar a constituição da posição
enunciativa desse grupo em suas manifestações verbais, bem como seu modo
de organização e movimentação no espaço social paulista, buscando salientar
como tais aspectos definem um estilo que, por sua vez, é constitutivo de um
ethos discursivo. Para isso, a autora mobilizou o conceito de prática discursiva
na proposição de Maingueneau (2005a), o qual afirma que esta prática deve
ser considerada como uma “prática intersemiótica” e o conceito de ethos
discursivo (MAINGUENEAU, 2008a), que consiste no tom que o enunciador
constitui ao enunciar. Conforme Mussalim, as práticas sociais do novo grupo
modernista não se restringiam à divulgação de suas ideias revolucionárias pela
imprensa; eles agitavam a cidade de São Paulo com “o movimento dos salões”:
reuniam-se ordinariamente nos salões da rua Lopes Chaves, da Avenida
Higienópolis, da rua Duque de Caxias e da alameda Barão de Piracicaba. Pela
crítica corrosiva contra a estética acadêmica veiculada pelos jornais que era
uma espécie de atentado contra o que era tido como bom gosto na época, bem
como pelos boatos que corriam na boca da sociedade paulistana em torno dos
encontros/festas/orgias nos salões, “criou-se em torno dos modernistas toda
uma semântica do maldizer” (p. 76). Por essa razão, se atribuía “ao discurso
24
modernista o caráter revolucionário e ao enunciador desse discurso certa
compleição psicológica que lhe conferia um ethos de revoltado” (p. 76).
Segundo a autora, a constituição do ethos de revoltado se deve, em grande
parte, ao uso do operador negativo “não” em conjunção com outros itens
negativos como: “nada”, “nenhum” e “nem”, característicos do estilo do discurso
crítico dos primeiros modernistas, cuja tônica era o combate ao passadismo, à
subserviência aos padrões estéticos europeus, às regras, aos velhos valores,
aos modelos literários portugueses e às normas linguísticas lusitanas,
demarcando, assim, as fronteiras do discurso modernista. O ethos de
revoltado, constituído pelo enunciador principalmente pelo recurso do operador
negativo, soa como uma estratégia de “alarde”, refletindo o estilo e a
movimentação social do grupo paulista.
Nunes (2003) estuda a configuração de identidades nacionais nos
discursos do Manifesto de Gilberto Freyre, lido em 1926, por ocasião do
Primeiro Congresso Brasileiro de Regionalismo em Recife, e do Manifesto
antropófago de Oswald de Andrade, publicado em 1928, no primeiro número da
Revista de Antropofagia. Tendo em vista o procedimento metodológico da
comparação, recomendado pela análise de discurso, o autor estabeleceu um
confronto entre os dois manifestos, acreditando que, ao relacioná-los, poderia
chegar às diferenças que lhe permitiriam “observar a fundação de identidades
brasileiras a partir de caminhos discursivos divergentes” (p. 43). A partir desse
confronto, Nunes constata que, enquanto a identidade nacional é pensada em
Freyre com base na tradição e nos valores regionais, em Oswald é pensada
com base na modernidade e nos valores cosmopolitas. Assim, quanto à
linguagem, Freyre evita as expressões linguísticas não nacionais, as
“estrangeirices”; para ele, “a fala do povo caracteriza o que há de original e
tradicional na língua” (p. 53). A língua nacional seria o resultado, numa espécie
de confraternização linguística e cultural, das variações regionais e sociais. Os
antagonismos entre casa-grande e senzala, sobrado e mocambo, erudito e
popular refletem-se na língua: “’Faça-me’ é o senhor falando; o pai; o patriarca;
‘me dê’, é o escravo, a mulher, o filho, a mucama”, afirma Freyre (1987, p.
335). Contudo, tais antagonismos convivem em equilíbrio, quer dizer, “sob a
união nacional, se aloja a divisão da língua” (p. 53). Oswald rejeita os
regionalismos, apegando-se mais aos valores progressistas e universalizados
25
que se afinam com o mundo urbano. Ao invés da paisagem natural e
tradicional, seus olhos enxergam a paisagem urbana modificada pela
tecnologia industrial. Das condições de produção da colonização, Oswald
acentua a identificação do brasileiro com o índio, cuja alteridade produziria uma
zona de sentido impermeável aos europeus. Nessa direção, “a língua do
brasileiro se constrói a partir da evocação de uma filiação histórica com o tupi e
a negação da univocidade linguística e da tradição gramatical” (p. 57).
Albuquerque e Cox (1997) buscam se aproximar da polêmica acerca da
língua brasileira iniciada no século XIX, sob a inspiração do significativo
acontecimento da Independência política, com base num arquivo de textos
produzidos, entre os anos de 1860 a 1891, por José de Alencar, Macedo
Soares e Salomé Queiroga, considerados separatistas. Nesta polêmica, os
separatistas viam como positiva a diferenciação patente entre o português
brasileiro e português lusitano, viam-na como parte de um processo de
mudança que culminaria como a autonomia da língua brasileira. Reagindo à
visão separatista, os legitimistas propunham-se a estancar a marcha dessa
mudança, uma vez que estavam comprometidos, puristas que eram, com
manutenção do legado português de forma intocada. Assim, nessa trama
interdiscursiva, a mudança linguística poderia significar progresso ou
retrocesso, florescência ou decadência, enriquecimento ou empobrecimento,
melhoramento ou destruição, formação ou deformação, se interpretada por um
enunciador separatista ou por um legitimista. A análise realizada pelas autoras
traz à tona “uma contínua tensão entre os separatistas (libertários radicais) e os
legitimistas (conservadores)” (p. 55), que se materializa nos enunciados na
forma de uma batalha com/por palavras e também no ethos do enunciador. O
caráter libertário dos enunciadores engendra um tom de exaltada rebeldia
frente a qualquer tipo de imposição e de entusiasmo e heroicidade ao participar
da luta pela emancipação da tutela portuguesa.
Nesta dissertação, os resultados de nossa pesquisa estão organizados
em quatro capítulos. Optamos por não apresentar um capítulo específico para
a discussão do referencial teórico. Apresentamos dois capítulos de análise, um
explorando a natureza polêmica dos enunciados de Mário de Andrade e outro o
ethos do enunciador, ambos estruturados pelo binômio teoria/prática. Os dois
26
capítulos principiam por uma discussão dos conceitos que são aplicados na
análise do corpus de enunciados.
No primeiro capítulo, realizamos uma contextualização do movimento
modernista no Brasil, desde seu surgimento na década de 1920. Em seguida,
relembramos as principais atuações do modernista Mário de Andrade, que
sempre se manteve fiel ao compromisso de ajudar a construir a identidade
cultural brasileira, nunca tirando a questão linguística do centro do debate.
Essa retomada da conjuntura em que viveu e circulou Mário de Andrade foi
fundamental para a evocação da ideologia do movimento e para a
compreensão de como o escritor se portava em relação a ela, ora se
aproximando dela sem restrições, ora se distanciando.
No segundo capítulo, explicitamos nossa opção pela pesquisa de
arquivo, especificamos os objetivos, a delimitação do campo e do espaço
discursivo em que se situam os discursos estudados e a maneira como
procedemos para constituir e organizar o corpus. Descrevemos o caminho
trilhado para a constituição do corpus, apresentando os critérios para a seleção
e para a triagem definitiva das SDs que integrariam os capítulos de análise.
Lembramos, pois, que esse processo de organização do corpus está
intimamente ligado com o processo de interpretação. Até o fim da análise, SDs
foram excluídas e incluídas no corpus.
No terceiro capítulo, revisitamos, primeiramente, os conceitos de
discurso, formação discursiva, interdiscurso e seus correspondentes –
interincompreensão, tradução e simulacro. Em seguida, analisamos um
conjunto de SDs atravessadas pela polêmica entre modernistas e
conservadores, bem como por uma polêmica interna ao próprio grupo
modernista. Depois, focalizamos as diferentes nomeações atribuídas à língua
pelo modernista ao longo de sua trajetória intelectual. Finalmente, exploramos
as semelhanças existentes entre a postura do escritor em relação à língua e o
posicionamento da sociolinguística que, na época do modernismo, sequer era
imaginada.
No quarto capítulo, revisitamos o conceito do ethos discursivo,
refazendo, com Maingueneau, o percurso trilhado pelo conceito desde que
pensado por Aristóteles no quadro da retórica clássica. Destacamos as
mudanças promovidas pelo linguista ao deslocar a noção da retórica para a
27
análise de discurso. Em seguida, analisamos um conjunto de SDs recortadas
de textos de Mário de Andrade, focalizando o ethos do enunciador, ao defender
a sistematização e o reconhecimento de uma fala brasileira culta que pudesse
ser assumida pela voz mesma dos escritores e não apenas pela voz das
personagens representantes do povo, como vinha acontecendo com os
regionalistas.
As páginas seguintes deste trabalho representam também uma tentativa
de pôr à prova a fecundidade de alguns conceitos da análise de discurso
francesa, tal como lidos por Dominique Maingueneau. Além disso,
preocupamo-nos em engrossar o movimento daqueles que, atualmente,
reconhecem a diversidade e a heterogeneidade como algo inerente à língua
portuguesa ou a qualquer outra língua viva, combatendo o preconceito
linguístico ainda reinante no século XXI, apesar dos já quase duzentos anos de
luta para afirmarmos a nossa identidade linguística plural e mestiça.
28
O Modernismo foi um toque de alarme. Todos acordaram e viram
perfeitamente a aurora no ar. A aurora continha em si todas as
promessas do dia, só que ainda não era o dia. Mas é uma
satisfação ver que o dia está cumprindo com grandeza e maior
fecundidade as promessas da aurora. Ficar nas eternas aurorices
da infância, não é saúde, é doença. E a literatura brasileira aí
está, bastante sã. Adulta já? Quase adulta... (ANDRADE,
[1944] 1972, p. 1989).
29
Capítulo 1
NOTAS SOBRE O MODERNISMO BRASILEIRO E A PERFORMANCE DO
PROTAGONISTA MÁRIO DE ANDRADE
Neste capítulo, revisitamos a conjuntura de irrupção do movimento
modernista no Brasil nas primeiras décadas do século XX. Na seção 1,
revisitamos o contexto de surgimento do movimento de renovação cultural que
culminou na formação do chamado grupo paulista, cuja atuação foi decisiva
para o advento do modernismo no país. Abordamos, igualmente, as influências
determinantes para a formação dessa ideologia estética no Brasil e sua
proposta de renovação das artes brasileiras. Nossa leitura realça o tema
“nacionalismo”, nuclear à produção de uma literatura que se desejava
emancipada dos modelos europeus e que abrigou, em seu âmago, um ruidoso
debate acerca do português falado no Brasil.
Na seção 2, relembramos alguns acontecimentos envolvendo Mário de
Andrade (1893-1945), um dos principais responsáveis pela instauração dos
ideais modernistas no Brasil. Interessa-nos abeirar sua atuação no campo das
artes (sobremaneira na literatura), na etnografia, nos estudos sobre o folclore,
no jornalismo, na crítica literária, no serviço público etc. Mário de Andrade, pela
sua fecunda produção no momento de efervescência do modernismo, pela sua
preocupação em perfilar a identidade brasileira na cultura universal e pela sua
coerência entre o que pregava e o que fazia, pode ser considerado, juntamente
com Oswald de Andrade, o protagonista do movimento.
Ressaltamos que essa dobra sobre o modernismo e sobre seu principal
ideólogo, Mário de Andrade, é uma etapa fundamental para a consecução do
objetivo de compreender a ideologia do movimento em relação ao projeto de
valorização da cultura nacional, especialmente no que se refere à constituição
de uma identidade linguística brasileira.
30
1. 1 O Movimento Modernista no Brasil
O movimento modernista floresceu em solo brasileiro na primeira
metade do século XX. Suas propostas de renovação estética, tendo por
bandeira a valorização da realidade e cultura nacional, recriadas, no entanto,
pela subjetividade do artista, marcaram a pintura, a escultura e as artes
plásticas em geral, a música, a arquitetura e a literatura.
Descontentes com as manifestações artísticas da época, consideradas
ultrapassadas e alienadas da cultura brasileira, um grupo de intelectuais via
como necessário instaurar um gesto de rompimento em relação ao
passadismo, para dar lugar à criação de uma arte que pusesse em destaque a
“alma nacional”, sem, contudo, perder de vista sua participação singular no
cenário internacional. Posta desde as primeiras manifestações do movimento,
essa exigência de não sucumbir à representação mimética das cores, sons,
formas, ideias e coisas do Brasil resulta num discurso cujo “filtro semântico [...]
organiza-se em torno dos semas nacionalismo e subjetividade” (MUSSALIM,
2003, p. 89). Ressaltamos que o ponto central da proposta modernista no
campo das Letras baseava-se na ruptura com os padrões (parnasianos e
simbolistas) que engessavam a criação literária.
Podemos dizer que o modernismo no Brasil se iniciou em 1912, quando
Oswald de Andrade retornou da Europa embriagado com as ideias dadas a
circular por meio do Manifesto Futurista de Filippo Tommaso Marinetti,
publicado em 20 de fevereiro de 1909, no jornal Le Fígaro, em Paris. O
Manifesto, em seus onze itens, declarava guerra ao academicismo literário,
exaltando a liberdade de expressão. Proclamava a ruptura com o passado e
defendia a identificação do homem com a máquina e a velocidade que
principiavam a timbrar o século XX. O item três, por exemplo, anunciava: “A
literatura exaltou até hoje a imobilidade pensativa, o êxtase, o sono. Nós
queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo de corrida, o
salto mortal, o bofetão e o soco”. Sob a influência do futurismo, Oswald de
Andrade, recém-chegado ao Brasil, escreveu o Último poema de um
tuberculoso pela cidade, de bonde, que se tornou alvo de chacotas pelas
inovações na composição dos versos sem métrica e sem rima.
31
Na conjuntura histórica em que o modernismo avultou como um
movimento de renovação estética, o Brasil se desenvolvia e progredia no plano
tecnológico, industrial e material, mas não no plano cultural, que permanecia
atado aos padrões formais do passado e herdados do longo período colonial.
Pela experiência vivenciada na Europa, Oswald vislumbrava no futurismo uma
via para renovar a arte nacional, ainda que a intelectualidade brasileira se
chocasse com o ideário defendido pelo movimento. Mesmo entre aqueles que
simpatizavam com a ideia de uma renovação estética, aguçaram-se as
contradições entre a tendência nacionalista, cara aos intelectuais brasileiros da
época, e a tendência internacionalista que novamente nos assediava e
confrontava com o que vinha da velha Europa. Mário de Andrade, por exemplo,
reagiu incisivamente à interpelação como Meu poeta futurista feita por Oswald
de Andrade por ocasião da leitura dos esboços de Pauliceia Desvairada, que
se tornou uma das obras fundadoras do modernismo no âmbito da literatura.
Apenas em 1917, o Brasil começaria a ver concretamente os efeitos da
propalada renovação estética por meio da exposição das obras da pintora Anita
Malfatti, que havia passado algum tempo na Europa e trazido para o Brasil o
que lá aprendera e aplicara em sua arte. Essa exposição causou espanto não
só entre os espectadores leigos, mas também entre muitos artistas e críticos de
artes, tornando-se o argumento principal de uma ruidosa polêmica deflagrada
por um artigo, assinado por Monteiro Lobato e publicado no jornal O Estado de
S. Paulo, contendo uma crítica ácida à obra de Anita Malfatti.
Nessa matéria, entre outras coisas, Lobato defende a tese de que
apenas a pintura acadêmica, originária de uma percepção sensorial normal,
que não permite ao artista transformar “um gato” em “um amontoado de cubos
transparentes”, resistirá ao tempo. Quem assim procede (quem transforma
gatos em cubos), vê “anormalmente a natureza” segundo “a sugestão estrábica
de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva”,
produz “frutos de fim de estação, bichados ao nascedouro” que, passado o
momento efêmero do escândalo, desaparecem “nas trevas do esquecimento”.
Lobato ainda compara a pintura da Anita Malfatti à arte anormal ou
teratológica nascida da paranóia e da mistificação, análoga aos “desenhos que
ornam as paredes internas dos manicômios”, sendo que “nos manicômios essa
arte é sincera, produto lógico dos cérebros transtornados pelas mais estranhas
32
psicoses; e fora deles, [...] mistificação pura”. No fim dessa contundente
matéria, Lobato explica sua boa intenção ao tecer crítica tão duras à pintura de
Anita Malfatti que, segundo ele, ainda “não é futurista”, mas já evidencia “uma
cubice” e “acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no
sentido das extravagâncias de Picasso & Cia”.
Enaltecendo o talento da pintora, Lobato justifica que amigo verdadeiro
não é aquele que elogia, bajula, lisonjeia, mas aquele que “traduz chãmente,
sem reservas, o que todos pensam dele por detrás’. É por se recusar a ver em
Anita só a «moça prendada que pinta», que não se compraz em dizer “meia-
dúzia desses adjetivos bombons que a crítica açucarada tem sempre à mão em
se tratando de moças”. Tendo por parâmetro o naturalismo, Lobato assim se
pronuncia sobre o futurismo, o cubismo, o impressionismo e a arte moderna:
Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma – mas caricatura que não visa, como a verdadeira, ressaltar uma ideia, mas sim desnortear, aparvalhar, atordoar a ingenuidade do espectador. [...] «Arte moderna»: eis o escudo, a suprema justificação de qualquer borracheira (LOBATO, 1917).
A crítica corrosiva de Lobato soou como uma provocação, e vários
escritores, músicos, pintores e intelectuais da época, simpatizantes do
movimento modernista, saíram em defesa de Anita Malfatti, dentre eles Oswald
de Andrade, Mário de Andrade, Menotti del Pichia, Di Cavalcanti, Guilherme de
Almeida, produzindo, às avessas, um vigoroso debate que muito colaborou
para desestabilizar a arte acadêmica. Além do episódio Malfatti-Lobato, o ano
de 1917 é lembrado por várias manifestações artísticas relacionadas ao
movimento modernista. Foram publicadas obras como: Há uma gota de sangue
em cada poema, de Mário de Andrade, Moisés, de Menotti del Pichia, A cinza
das horas, de Manuel Bandeira e outras que já prenunciavam a estética
antiacadêmica. Nesse contexto histórico, os jornais, noticiando tanto as
novidades apresentadas por aqueles que se diziam modernistas quanto as
críticas que lhes eram desferidas por aqueles que se alinhavam com a estética
acadêmica, transformaram-se em veículo de uma ruidosa polêmica na cidade
de São Paulo.
33
Desde esse momento, o grupo foi se organizando para tornar mais
sólida sua postura de oponente da estética acadêmica ainda em voga.
Imbuídos desse propósito, no ano de 1920, intelectuais que participavam do
grupo, movidos pela aproximação do centenário da independência em relação
a Portugal, com o sentimento de nacionalismo fortalecido, avançaram no
projeto de ruptura com os modelos literários herdados de Portugal, buscando
uma diferenciação não apenas de fundo, mas também de forma, o que
implicava na constituição de uma identidade linguística brasileira. Para esse
grupo, a autonomia brasileira só se tornaria efetiva quando a independência
política se refletisse em independência mental, cultural, artística e linguística.
Paralelamente às manifestações individuais, os modernistas ou
futuristas, como também eram chamados, foram ganhando visibilidade como
grupo. O ato inaugural do grupo como voz coletiva consciente foi o Manifesto
Trianon de Oswald de Andrade, que publicizava a visão artística da nova
corrente estética que estava se formando no país. A leitura desse manifesto
aconteceu durante um jantar promovido pelo grupo conservador em
homenagem a Menotti del Picchia que já era um simpatizante da nova
ideologia estética. O grupo modernista compareceu ao jantar e surpreendeu a
todos com a apresentação de Oswald de Andrade, manifestando-se contra
todos que se opunham à renovação literária e estética, ou seja, contra a velha
guarda que homenageava Menotti naquela ocasião. Conforme Mussalim (2003,
p. 94), “a participação dos Modernistas neste jantar assume um caráter de luta,
de chamamento, um toque de reunir, uma palavra de ordem”. Num dos trechos
do Manifesto, Oswald assim se refere ao grupo modernista ou dos “artistas
moços de São Paulo”:
Venha talvez chocar, senhores, esse tinir de armas heroicamente arengadas em pacífica consagração literária, mas nós, que arrogantemente subimos os espantosos caminhos da arte atual, por força havemos de trazer, como soldados em campanha, um pouco do nosso farnel de assaltos. Somos um perdido tropel na urbe acampada em território irregular e hostil, e, como ela, temos a surpresa dos acessos e a abismada contorção das alturas. Falo em nome de meia dúzia de artistas moços de S. Paulo e daí o meu cálido orgulho incontido (Manifesto Trianon, pronunciado por Oswald de Andrade em 09 de janeiro de 1921).
34
O ponto culminante da atuação do grupo dos “artistas moços de São
Paulo” foi a realização da Semana de Arte Moderna, promovida nos dias 13, 15
e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal da capital paulista. Para a
realização da Semana, o grupo contou com o apoio financeiro de Paulo Prado
(latifundiário e comerciante de café), José Freitas Valle (deputado e rico
empresário) e Washington Luís (então presidente do Estado de São Paulo).
Durante a programação da semana, o público e a imprensa respondiam às
manifestações artísticas com vaias e até atitudes violentas, necessitando,
muitas vezes, de intervenção da polícia. Contudo, essa reação era esperada e
desejada pelo grupo que queria escandalizar a elite conservadora paulistana e
marcar sua posição revolucionária. Como postula Mussalim (2003), os
componentes do grupo
Queriam escandalizar, tirar São Paulo da monotonia, do marasmo cultural em que se encontrava, como eles mesmos descreviam a capital. Não tinham um corpo coerente e bem estruturado para apresentar ao público, mas realizaram aquilo a que se propunham e que, na verdade, vinham realizando desde 1917: a ruptura (MUSSALIM, 2003, p. 97).
Com relação a essa revolução artística e cultural, Mário de Andrade, em
seu ensaio O Movimento Modernista [(1942) 2002, p. 252], explicita que “O
movimento Modernista foi o prenunciador, o preparador e, por muitas partes, o
criador de um estado de espírito nacional”. Para ele, A Semana de Arte
Moderna representou o brado coletivo principal, cujas ações atingiram também,
de forma violenta, os costumes sociais e políticos do Brasil. O modernista
afirma, ainda, que:
Foi no meio da mais tremenda assuada, dos maiores insultos, que a Semana de Arte Moderna abriu a segunda fase do movimento Modernista, o período realmente destruidor. Porque, na verdade, o período heroico fora esse anterior, iniciado com a exposição de pintura de Anita Malfatti e terminado na “festa” da Semana de Arte Moderna (ANDRADE, 2002, p. 260).
35
Passados vinte anos e arrefecido o ímpeto juvenil que levara o grupo a
realizar a Semana de Arte Moderna, Mário se espantava com a coragem:
“Como tive coragem de participar daquela batalha!”; “Como tive coragem de
dizer aqueles versos diante duma vaia tão barulhenta que eu não escutava no
palco o que Paulo Prado me gritava na primeira fila das poltronas?”
(ANDRADE, 2002, p.253-254). Mesmo admitindo ter confiança na estética
renovadora, considerava que “não teria forças nem físicas nem morais para
arrastar aquela tempestade de achincalhes” (ANDRADE, 2002, p. 254) em sã
consciência. Se aguentou o tranco, foi porque “estava delirando” (2002, p.254)
A ideia da Semana de Arte Moderna, salientava Mário, não partiu dele,
mas ele foi envolvido pelo entusiasmo do movimento que se alastrava e era
visto como responsável por uma espécie de escândalo público permanente.
Depois de realizarem leitura de versos no Rio de Janeiro, apareceu Graça
Aranha trazendo da Europa a sua Estética da vida. Graça foi a São Paulo para
conhecer e se aproximar do grupo renovador, aderindo a seu ideário. Nessa
ocasião, “Alguém lançou a ideia de se fazer uma Semana de Arte Moderna,
com exposição de artes plásticas, concertos, leituras de livros e conferências
explicativas. Foi o próprio Graça Aranha? Foi Di Cavalcanti?... (ANDRADE,
2002, p.257).
A partir desse evento revolucionário, os modernistas reiteradamente se
encontravam para discutir e consolidar as ideias inovadoras. Segundo o próprio
Mário de Andrade, principiou-se “o movimento dos salões” e, durante um
período aproximado de uns oito anos, o grupo viveu “na maior orgia intelectual
que a história artística do país registra” (2002, p.261). Havia a reunião das
terças, à noite, na Rua Lopes Chaves. Havia o salão da Avenida Higienópolis
com o almoço dominical em que, ao sabor da comida luso-brasileira, o grupo
mantinha conversa estritamente intelectual. Havia o salão da Rua Duque de
Caxias, que, na avaliação de Mário, era o maior e mais verdadeiro salão.
Havia, ainda, o salão da Alameda Barão de Piracicaba, congregado em torno
da pintora Tarsila do Amaral, onde os encontros – as festas – não aconteciam
em dias fixos, mas eram muito frequentes.
Após o estardalhaço da Semana de Arte Moderna, a burguesia
paulistana tomou consciência da força da onda revolucionária que se
propagava pela cidade e resolveu reagir e castigar os intelectuais envolvidos
36
no movimento, tirando-lhes os empregos. Desempregados, muitos deles iam
para o Ateliê da pintora Tarsila do Amaral “brincar de arte”. Mário reconhecia
que foi a partir da proteção dos salões paulistanos que “se alastrou pelo Brasil
o espírito destruidor do movimento modernista” (ANDRADE, 2002, p. 263).
A história do modernismo foi construída em várias fases. A primeira fase
foi marcada pela forte oposição ao academicismo vigente. Nessa fase,
chamada de imediatista ou heroica, compreendida entre os anos entre 1922 a
1930, o grupo concentrou-se na atualização estética, no experimentalismo
artístico e na crítica ao passadismo. O espírito modernista foi influenciado pelas
vanguardas europeias, principalmente pelos movimentos futurista, cubista,
expressionista, dadaísta e surrealista. Esse impulso externo instigou,
inicialmente, o grupo a questionar e revoltar-se contra as bases artísticas
hegemônicas no país.
A segunda fase ocorreu entre os anos de 1930 e 1945. Essa fase foi
marcada por uma revisão das concepções norteadoras do movimento,
sobretudo, aquelas relacionadas à modernização cultural do Brasil. Os líderes
intelectuais do movimento perceberam a dificuldade que o país teria para
acompanhar as vanguardas européias e, por isso, optaram por realizar um
recuo do experimentalismo estético em favor de um projeto ideológico de
cunho nacionalista, porém sem perder de vista o universalismo inalienável do
modernismo. Redefinido, o movimento passou a priorizar a identificação dos
elementos que fundariam a identidade nacional, culminado com o Manifesto da
Poesia Pau-Brasil (1924), redigido por Oswald de Andrade, que defendia
autenticidade da cultura brasileira frente à cultura estrangeira importada.
O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica. A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna. Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia. Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil (ANDRADE, [1924] 1976).
37
Como postula Lafetá (1974, p. 11), uma nova proposição estética
envolve sempre duas faces: a de “projeto estético, diretamente ligado às
modificações operadas na linguagem” e a de “projeto ideológico, diretamente
atado ao pensamento (visão-de-mundo) de sua época”. Essas duas faces, às
vezes, se apresentam harmonizadas, mas, às vezes, entram em conflito. Um
novo projeto estético invariavelmente envolve a crítica da velha linguagem, e
essa postura, por si só, já implica um novo projeto ideológico, pois, “o ataque
às maneiras de dizer se identifica ao ataque às maneiras de ver (ser, conhecer)
de uma época” (LAFETÁ, 1974, p. 11). Se é por meio da linguagem que os
homens expressam sua visão de mundo, há que se compreender que é por
meio dela que a ideologia se materializa. Assim, na visão do autor, tomar os
projetos estético e ideológico como independentes soa artificial, pois eles agem
conjuntamente, embora possa haver pontos de atrito e de tensão entre eles.
Com base nessas duas faces, Lafetá (1974) postula que o modernismo
brasileiro, como projeto estético, buscou a renovação dos meios de expressão,
a ruptura com a linguagem tradicional e, como projeto ideológico, enfatizou a
formação de uma identidade nacional. A experimentação estética com sua
marca revolucionária esteve mais evidente no início do movimento. Já, num
período posterior, os modernistas buscaram ampliar e fincar suas raízes em
propostas de valorização da realidade nacional. Por isso, para Lafetá (1974),
esse movimento mantém convergência estética e ideológica em sua atuação,
pois ao mesmo tempo em que rompia com a linguagem bacharelesca, artificial
e ideal da literatura passadista, alicerçava sua visão de arte na cultura popular
brasileira. Afirma o autor que
O modernismo destruiu as barreiras dessa linguagem “oficializada”, acrescentando-lhe a força ampliadora e libertadora do folclore e da literatura popular. Assim, as ‘componentes recalcadas’ de nossa personalidade popular vêm à tona, rompendo o bloqueio imposto pela ideologia oficial; curiosamente, é a experimentação de linguagem, com suas exigências de novo léxico, novos torneios sintáticos, imagens surpreendentes, temas diferentes, que permite - e obriga – essa ruptura (LAFETÁ, 1974, p. 13).
38
Ao mesmo tempo em que o modernismo se estabelecia como um novo
modo de fazer arte, ele consolidava uma nova estética cultural e rompia com a
ideologia que segregava o popular e distorcia a nossa realidade. Inicialmente,
inspirou-se nas vanguardas europeias, mas depois priorizou as particularidades
culturais brasileiras.
Portanto, ao propor essa ruptura com as normas estéticas do passado
em várias esferas artísticas, o modernismo postulava: a liberdade de expressão
e criação artística; incorporação da vida cotidiana nas temáticas literárias, com
destaque ao folclórico e ao popular; incorporação da pluralidade cultural e
linguística brasileira; nacionalismo crítico; inovações técnicas por meio da
adoção do verso livre, linguagem coloquial e eliminação de sinais de
pontuação, bem como experimentos ousados no léxico, na sintaxe e na
semântica.
Segundo Mário de Andrade (1942), três postulados caracterizavam o
movimento: “o direito permanente à pesquisa estética, a atualização da
inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora
nacional” (ANDRADE, [1942] 2002, p. 266). Porém, salienta o autor que “o
estandarte mais colorido dessa radicação à pátria foi a pesquisa da ‘língua
brasileira’” (p. 267).
Nessa época, a linguística moderna ainda não havia se estabelecido no
Brasil. A obra inaugural da linguística brasileira Princípios de linguística geral,
de Matoso Câmara é de 1941, mas a linguística como disciplina acadêmica só
passa a integrar os currículos dos curso de Letras na década de 1960. Por
essa razão, as discussões acerca da língua nacional eram empreendidas por
escritores, críticos, ensaístas e jornalistas que contavam principalmente com a
imprensa para veicular as posições defendidas por uns e outros. Conforme
Mário de Andrade, a situação linguística reinante na literatura brasileira, na sua
época, era a seguinte: havia aqueles que, segundo sua visão, eram cômicos,
pois misturavam “uma expressão já intensamente brasileira” com “lusitanismos
sintáticos ridículos” (1942, p. 268); havia outros que, desejando ser aceitos e
lidos em Portugal, mantinham-se fieis ao léxico e às normas lusitanas; havia,
ainda, os que movidos pela preguiça, resolviam se despreocupar do problema,
utilizando abusivamente anglicismos galicismos, mas repudiavam qualquer ‘me
parece’; havia os que, como narradores, utilizavam expressões fielmente
39
gramaticais, mas se permitiam pôr na boca de suas personagens as
variedades da língua falada no Brasil (o “erro” gramatical visivelmente não
pertencia ao escritor, mas ao personagem de sua obra); havia os que não
aderiam à legitimidade da língua brasileira para não se parecerem com ‘fulano’,
esquecendo-se de que o problema era coletivo e que os brasileirismos “si
adotados por muitos, muitos ficavam parecidos com o Brasil!” (1942, p. 269).
Além do individualismo que timbrava a produção literária, o interesse
econômico guiava a posição das revistas da época que, intimidadas por cartas
de “leitor gramatiquento” que ameaçavam não comprar a revista, opunham-se
à maneira de escrever dos modernistas e atreviam-se, inclusive, a corrigir os
artigos assinados por eles, quando aderiam, em seus textos, a brasileirismos.
No balanço que faz do modernismo, 20 anos depois de sua explosão, Mário
concluía que o país encontrava-se tão escravo da gramática lusa como
qualquer português. Na sua recusa de seguir repetindo o que seus
antecessores fizeram, Mário compara a fazer artístico, com relação à
necessidade de renovação constante, a outras práticas cotidianas:
O operário não compra a foice apenas, tem de afiá-la dia por dia. O médico não fica no diploma, o renova dia por dia no estudo. Será que a arte nos exime deste diarismo profissional? Saber escrever está muito bem; não é mérito, é dever primário. Mas o dever do artista não é esse: é escrever melhor. Toda a história do profissionalismo humano o prova. Ficar no apreendido não é ser natural: é ser acadêmico; não é despreocupação: é passadismo (ANDRADE, [1942], 2002, p. 270).
Como sugerem tais palavras, o artista era um trabalhador como outros
que, por dever do ofício, tinha de se desenvolver diariamente, superando o
academicismo e o passadismo. No caso do escritor brasileiro do início do
século XX, a renovação e o aprimoramento estético incluíam a estilização da
fala brasileira, tarefa dada, à época, como indispensável à urdidura de uma
identidade linguística nacional.
Na segunda fase do modernismo, a construção da brasilidade e a crítica
severa à imitação estrangeira foram temas incansavelmente discutidos pelos
escritores, incluindo Mário de Andrade, como poderemos observar na próxima
seção.
40
1.2 A trajetória artística e intelectual trilhada por Mário de Andrade
Mário Raul de Moraes Andrade, vulgo Mário de Andrade, foi uma estrela
de primeira grandeza na constelação modernista. Preocupado com a definição
de uma identidade cultural nacional, atuou em várias frentes. Estudou folclore,
música e literatura, destacando-se entre os intelectuais que formavam a
inteligência brasileira entre as décadas de 1920 e 1940. Foi escritor, crítico
literário, musicólogo, folclorista, ensaísta, etnólogo, professor de música, chefe
do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, professor de Filosofia e
História da Arte na Universidade do Distrito Federal (Rio de Janeiro). Construiu
uma carreira rica e mutifacetada, graças a seu interesse pelos vários campos
da cultura brasileira.
Nasceu em São Paulo, no dia 09 de outubro de 1893, filho de Maria
Luisa de Moraes Andrade e Carlos Augusto de Andrade. Teve dois irmãos:
Carlos, mais velho, e Renato, mais novo, que também foi pianista como Mário,
e morreu ainda jovem, aos 14 anos, em 1913, por causa de um golpe recebido
durante um jogo de futebol. Esse acontecimento abalou muito o desempenho
artístico do escritor, causando-lhe tremor nas mãos, o que o levou a abandonar
as apresentações de piano que fazia no Conservatório Dramático e Musical de
São Paulo, onde havia se formado. Acometido de ataque cardíaco, morreu no
dia 25 de fevereiro de 1945, aos 52 anos, na casa da Rua Lopes Chaves, onde
morava com sua mãe e com a tia e madrinha de batismo, Ana Francisca.
Durante seus primeiros anos estudantis, Mário não se destacou muito,
mas, por volta de 1911, ele começou a estudar música e piano no
Conservatório, momento em que a sua primeira tendência artística vem à tona.
O ano de 1917 foi bastante significativo para o escritor, com muitos
acontecimentos marcantes em sua vida, entre eles: a perda do pai, a conclusão
do curso de piano pelo Conservatório, (antes mesmo da formatura havia se
tornado professor de piano no Conservatório), início das atividades como crítico
de artes em alguns jornais e revistas e publicação de seu primeiro livro
intitulado Há uma gota de sangue em cada poema sob o pseudônimo de Mário
Sobral. A partir então, tornou-se um dedicado estudioso da história da música,
41
dava aulas particulares de piano e continuou escrevendo artigos de críticas de
arte e produzindo literatura.
O despertar de Mário de Andrade para a adesão à bandeira das
transformações estéticas ocorreu na exposição, realizada em São Paulo, pela
pintora Anita Malfatti, em 1917. Essa exposição seria reconhecida como o
marco inicial do movimento modernista no Brasil. Depois de estudar na
Alemanha e nos Estados Unidos, Anita, aos 28 anos, regressou de Nova York
e resolveu expor suas obras expressionistas. Selecionou cinquenta e três
obras, parte realizada nos Estados Unidos, em 1915/16 e, parte em São Paulo,
em 1916/17, para mostrar ao público paulistano o que havia aprendido de arte
moderna com os norte-americanos.
Denominada como “Exposição de pintura moderna Anita Malfatti”, o
evento despertou muita curiosidade no público, principalmente na
intelectualidade paulistana, ávida para apreciar a novidade artística trazida pela
pintora. As obras apresentadas se diferenciavam muito do que o público estava
acostumado a ver: as pinturas acadêmicas que buscavam mimetizar o real.
Como aquilo poderia não escandalizar o gosto acadêmico da elite
frequentadora e consumidora das “belas-artes”?
Com apenas 24 anos de idade, Mário de Andrade visitou a exposição
três vezes, assinando o livro de visitas como Mário Sobral, pseudônimo usado
em sua primeira obra de poemas. Ele teria ficado em estado de choque diante
das obras da pintora, as quais ressaltavam “planos sucessivos, retratos e
figuras deformadas, sucintas, cor interpretativa” (ANDRADE, 1989, p.15). A
estupefação de Mário diante da pintura antiacadêmica de Malfatti foi assim
relembrada pela própria artista num depoimento posteriormente incluído no
livro Cartas a Anita Malfatti, compilado por Marta Rossetti Batista:
Um sábado apareceu na exposição um rapaz macilento de luto fechado. Vinha com um companheiro, era Mário de Andrade; começou a rir e não podia parar. Ria alto, descontroladamente. Eu, que já andava com raiva fui tomar satisfações. Perguntei: ‘O que está engraçado aqui?’ e quanto mais eu me enfurecia, mais ele ria (Depoimento de Anita Malfatti, constante da obra Cartas a Anita Malfatti, ANDRADE, 1989, p. 16).
42
Depois do ocorrido, Mário, em depoimentos reconhecia a importância
que tivera aquela exposição, mas nunca fazia referência a seu riso
descontrolado diante das pinturas. Passados alguns dias, Mário voltou, mas “o
ataque de riso havia acabado. Deu-me um cartãozinho – “Sou o poeta Mário
Sobral, vim despedir-me” (1989, p.17). Elogiou seu quadro O homem amarelo
acrescentando estar impressionado com a obra, afirmando que aquele já lhe
pertencia e que um dia voltaria para buscá-lo.
Embriagado pela estética modernista, Mário de Andrade, contrário às
estruturas sociais vigentes, representantes de um espírito conservador e
conformista, enfatizava a necessidade de renovar os campos da arte e da
literatura, tornando-se, por isso, um ativo participante do grupo dos cinco,
composto por Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Menotti Del Picchia, Mário de
Oswald de Andrade e ele, que foi responsável pela bombástica Semana de
Arte Moderna, realizada no Teatro municipal de São Paulo em 1922. Além de
cenário para exposição de pinturas de artistas associados ao modernismo, a
Semana foi palco de leituras literárias, palestra sobre arte, música e literatura.
Foi nesse evento que Mário publicou sua obra revolucionária de poesia,
intitulada Pauliceia Desvairada.
Essa obra, tida como a obra inaugural da poesia modernista, lança, em
seu Prefácio Interessantíssimo, uma espécie de manifesto poético, expondo,
de forma provocativa, os postulados do modernismo literário. Usando versos
livres e, sem falar sobre a obra, o autor defende a ideia de que a literatura
brasileira precisa se emancipar dos modelos e do padrão gramatical
português, que constrangem a livre expressão poética do escritor no Brasil.
Para patentear essa ideia, grafou, propositalmente, algumas palavras e formas
gramaticais, de modo a registrar sotaques e falas brasileiras.
Essa obra foi inspirada na percepção da cidade de São Paulo e seu
provincianismo. O escritor rompia definitivamente com todas as estruturas do
passado por meio de interpretação aguçada de vários elementos, como:
provincianismo, aristocracia, burguesia, rio Tietê, Avenida Paulista. Pela forma
e pelo fundo da obra, Mário foi vaiado durante sua apresentação na Semana
de Arte Moderna. A vaia se repetiu, quando Mário, em pé nas escadarias do
Teatro Municipal, leu um pequeno esboço da obra A escrava que não é Isaura,
43
que viria a ser publicada em 1925, texto que também enfatizava a postura
crítica do poeta frente ao academicismo que presidia o fazer literário.
A ânsia desse grupo de intelectuais consistia na busca de uma
independência cultural. Com ele, instaurava-se, no Brasil dos anos 20, não
apenas uma rica reflexão sobre as manifestações artísticas da modernidade,
mas também uma prática revolucionária. Mário nunca deixou de exigir
coerência entre a teoria e a prática. A partir da revolução deflagrada pela
Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade continuou publicando suas ideias
em vários gêneros. Entre suas principais obras, além das já citadas, destacam-
se: Poemas - Losango Cáqui (1926), Primeiro Andar (1926), Clã de Jabuti
(1927), Remate dos males (1930), Poesias (1941), Lira Paulistana (1946), O
carro da miséria (1946), Poesias completas (1955); Contos – Primeiro andar
(1926), Belazarte (1934), Contos novos (1947); Crônicas – Os filhos da
Candinha (1943); Romance - Amar, verbo intransitivo (1927), Macunaíma – O
herói sem nenhum caráter (1928); Ensaios – A escrava que não é Isaura
(1925), O aleijadinho de Álvares de Azevedo (1935), O Movimento Modernista
(1942), O baile das quatro artes (1943), O empalhador de passarinhos (1944),
O banquete (1978), entre muitos outros títulos envolvendo assuntos
relacionados à literatura, à música popular brasileira e aos estudos folclóricos
realizados nas viagens que fazia pelo país.
A obra Macunaíma – O herói sem nenhum caráter (1928) representa
uma síntese dos estudos folclóricos realizados por Mário de Andrade, além ter
sido inspirada nos estudos etnográficos do alemão Koch Grunberg, que
recolheu lendas indígenas da Venezuela e do Amazonas. Essa obra é um
misto de rapsódia e romance, cuja personagem central – Macunaíma –
congrega qualidades e defeitos de um brasileiro comum, originado da
miscigenação entre índio, negro e branco.
Nela, o escritor retrata a multiplicidade de lendas e tradições do folclore
brasileiro, fundindo a cultura do país de Norte a Sul, registrada em suas
expedições etnológicas. A questão da brasilidade se transformou no tema
central das obras do escritor. Contudo, renegando o nacionalismo que se
confundia com o regionalismo, Mário sempre teve em mente a constituição de
uma brasilidade que amalgamasse toda a diversidade existente no país. Esse
amálgama de brasilidade é Macunaíma.
44
Alguns anos após a morte do escritor, foi publicada a coletânea de
crônicas intitulada Táxi e crônicas no Diário Nacional (1976). Essa obra foi
organizada por Telê Porto Ancona Lopez e reúne crônicas sobre temas
diversos que o poeta escreveu quando pertencia ao grupo de cronistas do
Diário Nacional. Tais textos revelam sua atuação como crítico de arte,
literatura, cultura, política etc. Com a característica de uma escrita rápida e
objetiva, as crônicas eram o espaço para Mário opinar sobre o aprimoramento
do leitor frente à diversidade dos problemas sociais, política, linguagem,
ortografia, folclore, escritores e obras e diversos temas relacionados ao
cotidiano paulista.
Seu ingresso no Diário Nacional aconteceu no ano de 1927. Nessa
época, comparecia à redação, diariamente, produzindo críticas sobre artes
plásticas, música e literatura. Em 1928, tornou-se cronista, deixando uma
vastíssima produção no Diário Nacional. Em 1932, por ocasião do fechamento
do jornal, Mário havia publicado 771 matérias entre crônicas, artigos, ensaios,
poemas e ficção. Entre essas matérias, muitas discutiam a questão da língua
falada no Brasil.
A constituição de uma identidade linguística brasileira fazia parte dos
postulados modernistas. E Mário de Andrade provavelmente foi o escritor que
mais insistiu na necessidade de cortar as amarras linguísticas que prendiam a
literatura brasileira à portuguesa. Para chegar a uma estilização culta do
brasileiro vulgar que pudesse ser usada na escrita literária, Mário empreendeu
muitas pesquisas sobre os falares de todas as regiões brasileiras e chegou a
anunciar e esboçar a obra Gramatiquinha da fala brasileira, mas nunca a
publicou efetivamente.
A partir de notas destinadas a essa obra, Edith Pimentel Pinto organizou
a obra A Gramatiquinha de Mário de Andrade (1990). Segundo a autora, o
projeto da Gramatiquinha foi trabalhado com mais intensidade entre os anos de
1927 e 1929, período que coincide com a elaboração da obra Macunaíma
(1928) e com a viagem à Amazônia (1927), ocasião em que se dedicou à
coleta de expressões regionais e populares. O projeto da elaboração da
Gramatiquinha da fala brasileira fora tanto anunciado como negado pelo
próprio Mário de Andrade, conforme podemos verificar no excerto a seguir:
45
Eu anunciara um livro futuro, a Gramatiquinha da Fala Brasileira. Este livro, do qual nunca escrevi nenhuma página, eu nunca jamais tive intenção de escrever. É certo que tomei muita nota, fiz muita ficha, a respeito da língua, e de processos que me pareciam mais nacionais de traduzir o pensamento em linguagem, mas é só. Eu anunciava o livro, apenas pra indicar a todos que o que eu estava tentando não era assim tentando assim ao atá das recordações, mas uma coisa séria, sistemática, e bem pensada (ANDRADE In: PINTO, 1990, p. 163).
Nos manuscritos destinados à pretensa obra, Mário de Andrade propõe-
se a contribuir para a sistematização da fala brasileira. A Gramatiquinha, como
o próprio nome sugere, não teria a pretensão de impor normas como as
gramáticas normativas faziam, mas sim reunir as constâncias observadas na
fala brasileira, trazendo à tona o elemento culto que pudesse ser empregado
na expressão literária. Ele conclamava outros artistas da época a também
mergulhar nesse ideal: “Careço que os outros me ajudem pra que eu realize a
minha intenção: ajudar a formação literária, isto é, culta da língua brasileira
(ANDRADE, 1925 apud PINTO, 1990, p. 137). A finalidade de seus estudos
sobre a fala brasileira, como bem aponta PINTO (1990, p. 53), não era
“catalogar particularidades, mas configurar o universal, para que fosse possível
‘escrever brasileiro’. E isto, em termos de léxico, sintaxe e ritmo”. Porém, todos
os esforços relativos a esse projeto ficaram nos rascunhos com os esboços de
suas ideias.
Em 1935, Mário ingressou no serviço público, assumindo o cargo de
Diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, que acabava
de ser criado pelo prefeito Fábio Prado. Buscou dar forma e destino ao novo
Departamento, que possuía como objetivo declarado, em sua ata de fundação,
“conquistar e divulgar para todo país a cultura brasileira”. Segundo Oneyda
Alvarenga, ao assumir essa função, Mário abandonou muitas de suas
atividades:
Durante três anos aniquilou sua vida e passou a viver a vida do Departamento de Cultura. Largou estudos pessoais, romances, poesia, crítica, alunos, no desejo de fazer quanto pudesse para dar ao seu povo o direito de uma existência elevada e dignificada pela atividade intelectual e o contato com as artes (ALVARENGA, 1974, p.44).
46
Apesar de desapontado com a interrupção de sua vida como escritor,
Mário se sentia útil e empolgado com a incumbência que lhe fora confiada
como diretor do recém criado Departamento de Cultura e Recreação de São
Paulo (instituído em 30 de maio de 1935, pelo decreto 861), tendo a finalidade
de: estimular e desenvolver todas as iniciativas destinadas a favorecer o
movimento educacional, artístico e intelectual; promover e organizar
espetáculos de arte e desenvolver a arte dramática, da música, do canto, do
teatro e do cinema; disponibilizar uma rádio-difusora, palestras e cursos
populares de organização literária e científica, conferências universitárias e
sessões literárias e artísticas; criar e organizar bibliotecas públicas para fins de
difusão da cultura em todas as camadas da população; organizar, instalar e
dirigir parques infantis, campos de atletismo, piscinas e o estádio da cidade de
São Paulo; fiscalizar todas as instituições recreativas e os divertimentos
públicos estabelecidos pelo município; recolher, colecionar, restaurar e publicar
documentos antigos, materiais e dados históricos e sociais, que facilitassem as
pesquisas e estudos sobre a história da cidade de São Paulo.
Entre as competências desse Departamento estava, ainda, a
responsabilidade de levar às grandes cidades: concertos, conferências, teatros,
cursos e diversas outras modalidades de extensão artística e educacional,
ações representativas de um trabalho de elevação cultural da sociedade. Entre
suas atividades básicas, destaca-se o desenvolvimento de sistemas
pedagógicos e culturais, direcionados, principalmente, ao atendimento de
jovens e crianças.
Cinco divisões e suas respectivas seções compunham a estrutura
organizacional do Departamento: 1) Divisão de Expansão Cultural – Seção de
Teatro, cinema e salas de Concerto, Seção Rádio-Escola/Sub-Seção Discoteca
Pública; 2) Divisão de bibliotecas – Seção biblioteca pública municipal, Seção
biblioteca infantil, Seção bibliotecas circulantes e bibliotecas populares; 3)
Divisão de educação e recreio – Seção de parques infantis, Seção de campos
de atletismo, estádio e piscinas, Seção de divertimentos públicos; 4) Divisão de
documentação histórica e social – Seção de documentação histórica e social,
Seção de documentação histórica, Seção de documentação social e 5) Divisão
de turismo.
47
À frente desse extenso Departamento, Mário de Andrade aceitou o
desafio com o objetivo de instituí-lo na vida da sociedade paulistana. Além da
direção geral do Departamento, ele ocupava a chefia da Divisão de Expansão
Cultural. Durante a atuação nesse cargo, Mário teve a oportunidade de ampliar
ambiciosamente seu trabalho sobre música e folclore, organizando diversos
encontros culturais, conferências e exposições, realizações que resultaram em
um vasto acervo de material sobre tais temáticas originário das mais diversas
partes do país, estimulando-o a fundar a Sociedade de Etnografia e Folclore
(1938). Por meio de estudos etnográficos, o escritor procurou “os elementos
que expressariam a cultura brasileira como conteúdo da unidade nacional”
(SILVEIRA, 1999, p. 47). Silveira aponta que o questionamento do autor se deu
a partir de duas formulações: 1) a relação entre a parte Brasil com o exterior,
principalmente com a Europa e 2) a relação entre as partes internas do país ,
ou seja, a vinculação entre o regional e o nacional, pois, para o autor, só seria
assegurada a inserção do Brasil na Modernidade se houvesse uma produção
cultural que levasse em consideração “os valores da terra” como um todo e não
fragmentados por região.
Foi com base nessa empreitada que ele passou a se interessar pelas
pesquisas etnográficas como o caminho para perfilar a identidade do Brasil.
Nessa época abdicou de sua condição de poeta modernista em prol das
viagens de estudo. Seu entusiasmo pela etnografia pode ser observado no
excerto seguinte:
A Etnografia brasileira vai mal. Faz-se necessário que ela tome imediatamente uma orientação prática baseada em normas severamente científicas. Nós não precisamos de teóricos, os teóricos virão a seu tempo. Nós precisamos de moços pesquisadores que vão à casa recolher com seriedade e de maneira completa o que esse povo guarda e rapidamente esquece, desnorteado pelo progresso invasor (ANDRADE, 1936, p. 5).
A fundação da Sociedade de Etnografia e Folclore foi precedida por um
curso de etnografia, promovido pelo Departamento de Cultura e ministrado, ao
longo do ano de 1936, pela professora Dina Lévi-Strauss. Foi curso baseado
em atividades práticas, com o objetivo imediato de formar folcloristas para
48
trabalhos de campo. Resultaram do curso diversos trabalhos de alunos, que
foram veiculados pela Revista do Arquivo Municipal, elemento também
articulado por Mário com a finalidade de divulgar e obter maior entrosamento
das atividades promovidas. Desse curso de Extensão, resultou, ainda, a
edição, pelo Departamento de Cultura, do volume I do Manual de Instruções
práticas para pesquisas de Antropologia Física e Cultural.
Concomitante à realização do curso, foi aberta na Revista do Arquivo
Municipal a rubrica Arquivo Etnográfico, seção destinada ao maior
conhecimento do povo brasileiro. Foram anunciadas ainda a elaboração e a
distribuição de um questionário geral de pesquisas etnográficas a serem
realizadas no Brasil. Como consequência desse questionário, foram produzidos
diversos números do Boletim da Sociedade de Etnografia e Folclore.
Dentre os trabalhos realizados pela Sociedade de Etnografia e Folclore,
destacam-se as cartas folclóricas resultantes de pesquisa, em todo o Estado de
São Paulo, sobre tabus alimentares, danças populares e medicina popular. Por
meio de carta aberta, datada de 05 de abril de 1937 e publicada no jornal O
Estado de S. Paulo, Mário de Andrade convocou a população paulista a
colaborar como informante, respondendo ao questionário para levantamento
dos dados necessários à construção dos mapas folclóricos que representariam
o Brasil no Congresso Internacional de Folclore, realizado em Paris em 1937.
Esse evento revestiu-se de um significado ímpar, uma vez que permitiu ao
Brasil mostrar que ele existia e tinha uma cara própria perante a comunidade
Internacional.
Na contramão de seus planos e projetos, em 1938, Mário de Andrade foi
obrigado a interromper sua atuação como diretor do Departamento de Cultura
em virtude das mudanças ocorridas no governo de São Paulo, após o golpe de
1937 e a instauração do Estado Novo, por Getúlio Vargas, cuja posição política
não convergia com as ideias do escritor. As novas forças políticas promoveram
acusações contra Mário de Andrade, levando-o a transferir-se,
temporariamente, para o Rio de Janeiro. Com a saída de Mário do
Departamento de Cultura, apesar dos esforços de seus sócios, a Sociedade de
Etnografia e Folclore acabou por extinguir-se em 1939.
No Rio de Janeiro, Mário dirigiu o Congresso da Língua Nacional
Cantada, foi diretor do Instituto de Arte na antiga Universidade do Distrito
49
Federal e, também, atuou junto ao serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional e ao Instituto Nacional do Livro. Foi também convidado pelo Ministro
da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, a coordenar dois grandes projetos
bibliográficos: a elaboração de uma Enciclopédia Brasileira e de um Dicionário
da Língua Nacional. Mário chegou a apresentar um anteprojeto da Enciclopédia
ao Instituto Nacional do Livro, que era dirigido por Augusto Meyer. Para a
elaboração desse projeto, Mário tomou como parâmetro várias obras
estrangeiras. Meyer acreditava que Mário era a pessoa indicada para essa
tarefa, pelos seus conhecimentos de lexicografia, por estar trabalhando num
Dicionário Musical Brasileiro e pelo projeto da Gramatiquinha da fala brasileira.
Além disso, todos seus amigos propagavam a existência de uma vasta
biblioteca colecionada e indexada por ele, que recolhia assuntos para fazer um
fichário analítico. Este se constituía na
Reunião de milhares de fichas ordenadas alfabeticamente, divididas por assuntos em dez grandes temas, acolhendo livros, revistas, artigos de jornais, manuscritos e documentação vária, papéis recortados e dobrados dentro de envelopes, bem como verbetes redigidos pelo compilador (TONI, 1993, p. XIX).
A ideia de publicar uma Enciclopédia brasileira era acalentada pelo
Ministério há algum tempo e Mário parecia a pessoa certa para executá-la.
Considerando a realidade da época, de país com uma pequena elite e uma
extensa massa camponesa analfabeta e uma população urbana culturalmente
diversificada, a Enciclopédia Brasileira teria de ser polivalente, para abranger
todas as camadas de leitores possíveis.
Considerada a real escassez de material de leitura disponível à
população do país, a Enciclopédia apresentava-se como um material fecundo,
pois seria uma espécie de biblioteca, concentrando em seu interior informações
sobre os mais variados assuntos. Com o propósito de atender a todas as
classes sociais, demonstrações inacessíveis ao leitor de cultura mediana
deveriam ser evitadas. As definições dos verbetes deveriam ser feitas por
pessoas ou comissões esclarecidas no assunto, mas sempre de modo
inteligível. Além dessas preocupações, o projeto tinha em mente que a
50
Enciclopédia Brasileira deveria chegar ao leitor por um preço bastante
acessível para que ela pudesse estar nos lares de todos os operários do país.
Conforme as ideias de Mário, expostas no anteprojeto, não seria
possível fazer uma Enciclopédia Brasileira se a obra completa não somasse de
10 a 12 volumes, contendo de 1000 a 1200 páginas cada um. Em relação ao
tamanho descomunal da tarefa a ser empreendida na execução dos projetos
da Enciclopédia Brasileira e do Dicionário da Língua Nacional, Mário afirmava
que seria um “um comedimento de enorme utilidade e patriotismo verdadeiro”,
mas “também uma corajosa audácia” (ANDRADE, 1993, p. 63).
Reconhecendo a enormidade do que estava por vir, o escritor assim imaginava
a equipe de trabalhadores que poria a mão na massa: “Há que nos cercarmos
de funcionários e colaboradores muito escolhidos – gente enérgica, fiel aos
seus compromissos e capaz de dedicação apaixonada. Não será possível pedir
a colaboração gratuita de ninguém, pelo que isto acarreta de delicadeza e
irresponsabilidades” (ANDRADE, 1993, p. 63). Apesar de todo o entusiasmo
em torno de tais projetos, eles nunca saíram das gavetas do Ministério da
Educação e Saúde.
1. 3 Mario de Andrade: um missivista compulsivo
Além das muitas atividades que exercia e da extensa bibliografia que
nos legou, Mário de Andrade era um compulsivo escrevinhador de cartas. Ele
se correspondia ativamente com amigos e intelectuais de sua época. Nas
cartas, era muito afetuoso, demonstrando carinho e amizade pelos seus
destinatários e assumindo, muito frequentemente, o papel de conselheiro sobre
os mais diversos assuntos, inclusive os de cunho pessoal e familiar. Nelas,
costumava contar sobre as obras que estava desenvolvendo e gostava de
expor longamente suas ideias sobre linguagem, literatura, cultura e arte
brasileira. Cultivava tanto a prática de escrever cartas que Carlos Drummond
chegou a afirmar que: “jamais convivi com Mário de Andrade a não ser por
meio das cartas que nos escrevíamos” (ANDRADE, 1982, p. viii).
Mário dizia sentir as pessoas mais perto quando lhes escrevia do que
quando estava na presença delas. Afirmava que quando estava escrevendo a
51
um amigo era como se ele estivesse em seu quarto lendo seu texto por cima
de seus ombros, aconselhando-o, contradizendo ou confirmando, por amizade
ou por dedicação, suas argumentações. Dizia, ainda, que solidão ele sentia
mesmo quando estava rodeado de pessoas:
Na verdade eu nunca me sinto deserto e provando o gosto sáfaro da solidão que quando estou numa sala cheia de pessoas, mesmo sendo todas pessoas amigas. É indiscutível: eu gosto muito mais dos meus amigos quando eles estão longe de mim (ANDRADE, 1983a, p. 77).
Conforme Oneyda Alvarenga (1974), Mário tinha o hábito de escrever
cartas até mesmo para expor suas últimas vontades. Isso ocorria toda vez que
se encontrava próximo de realizar alguma viagem ou passava por alguma
doença preocupante. Em Mário de Andrade: Um pouco, ela publicou uma cópia
completa da carta-testamento deixada pelo escritor, datada de 22 de fevereiro
de 1944, escrita antes de uma operação de amígdalas para seu irmão Carlos.
Nessa carta, ele demonstrava preocupação com a publicação de suas obras,
inclusive as que não estavam acabadas. Até mesmo sobre o destino de suas
cartas, ele deixou instruções explícitas:
Resta falar do que ajuntei e ganhei por mim. Minhas cartas. Toda minha correspondência, sem exceção, eu deixo para a Academia Paulista de Letras. Deve ser fechada e lacrada pela família e entregue para só poder ser aberta e examinada 50 (cinquenta) anos depois da minha morte (ANDRADE apud ALVARENGA, 1974, p. 32).
Até para os amigos com quem se correspondia, Mário expressava seu
desejo em relação às cartas que lhes enviava. A Manuel Bandeira pedia que
ele não publicasse as cartas nem depois de sua morte, pois não queria ser
imortalizado por um epistolário como o de Wagner-Liszt. Agradava-lhe a ideia
de pensar na morte como algo que “acaba tudo”:
As cartas que mando pra você são suas. Se eu morrer amanhã não quero que você as publique. Nem depois da morte de nós dois, quero um volume como o epistolário de Wagner-Liszt. Essas coisas podem ser importantes, não duvido, quando se trata dum Wagner ou dum Liszt que fizeram arte também pra se eternizarem. Eu amo a morte que acaba tudo. O que não acaba é a alma e essa que vá viver contemplando Deus. (ANDRADE, 1958, p. 68).
52
Em carta enviada a Carlos Drummond de Andrade, também falou de seu
desejo de não ver suas cartas publicadas, confessando, inclusive, a estratégia
que estava empregando (“encher as cartas de palavrões”) para impedir que
elas fossem publicadas:
Estou me lembrando que um tempo, até tomei ingenuamente o partido de encher minhas cartas de palavrões porque principiaram me falando na importância das minhas cartas e estupidamente me enlambuzei de "filhos-da-puta" e de "merdas" pra que minhas cartas não pudessem nunca ser publicadas! Como se isso bastasse. (ANDRADE, 1982, p. 215).
O desejo de Mário em relação às suas cartas não foi de todo atendido.
Manuel Bandeira, por exemplo, em 1958, publicou as cartas recebidas do
escritor, justificando não cumprir a vontade do amigo pelo “valor intrínseco” e
pelo “interesse social” dessa correspondência: “Mário foi o brasileiro que mais
se esforçou na tarefa de ‘patrializar’ a nossa terra. Tal esforço está sempre
presente nas cartas que dele recebi” (BANDEIRA apud SANTOS, 1994, p. 90).
Carlos Drummond de Andrade, no prefácio à obra A lição do amigo,
Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade (1982), também
esclarece que a publicação dessas cartas envolve dois problemas, um de
“natureza ética e outro meramente técnico” (ANDRADE, 1982, p. ix). O
principal deles diz respeito ao descumprimento da vontade do escritor, que
repugnava a ideia de divulgação de que suas cartas, pelas confidências nelas
contidas ou pelas banalidades tratadas. Porém, Carlos Drummond, como
Manuel Bandeira, afirmava que, se publicava as cartas que Mário lhe
endereçara, ele o fazia movido pela consciência da importância que essas
cartas tinham para aqueles estudavam não só a obra de Mário de Andrade,
mas também a história literária do Brasil. Pela importância das cartas como
fonte de pesquisa, ele ousava desobedecer a proibição de publicá-las:
É hoje ponto tranquilo que o pai de Macunaíma não deveria mesmo ser obedecido nessa proibição rigorosa. A obediência implicaria sonegação de documentos de inegável significação para a história literária do Brasil. Não só os praticantes da literatura perderiam com
53
a falta da divulgação das cartas que esclarecem ou suscitam questões relevantes de crítica, estética literária e psicologia de composição. Os interessados em assuntos relativos à concretização da fisionomia social do Brasil também se veriam lesados pela ignorância de valiosas reflexões abrangentes de diversos aspectos da antropologia cultura (ANDRADE, 1982, p. ix).
Desde a atitude corajosa de Manuel Bandeira, em 1958, vários outros
amigos de Mário, também, resolveram publicar as cartas recebidas do escritor.
Dentre eles estão: Alceu, Meyer e outros (1968), Paulo Duarte (1971),
Alphonsus de Guimarães Filho (1974), Rubens Borba de Moraes (1979), Murilo
Miranda (1981), Fernando Sabino (1981), Carlos Drummond de Andrade
(1982), Oneyda Alvarenga (1983), Álvaro Lins (1983), Anita Malfatti (1989),
Guilherme Figueiredo (1989), Henriqueta Lisboa (1990), Câmara Cascudo
(1991) etc.
Conforme Santos (1994), a correspondência passiva de Mário encontra-
se hoje zelosamente guardada pelo arquivo Mário de Andrade, existente no
Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo. O autor
nos esclarece que “Mário de Andrade (1893-1945) foi o nosso maior missivista”
(1994, p. 81). Com as cartas deixadas por ele, ficou retratada toda a história da
primeira metade do século, período marcado por muitas transformações
estéticas. Além disso, as cartas pessoais, pela informalidade do gênero,
encorajavam as transgressões das normas pelos intelectuais do modernismo
brasileiro, sedentos de rupturas paradigmáticas de toda ordem. Para Santos
(1994, p. 18), a carta convida à transgressão e essa tese não poderia ser
melhor representada do que pela correspondência de Mário de Andrade, “o
prolífico missivista que dialogava permanentemente por carta com os nossos
mais eminentes intelectuais, seus amigos”.
Indiscutivelmente Mário de Andrade é a própria transgressão.
Inconformista, liderou com coragem e dignidade a renovação estética nas
artes, na literatura, na cultura, expressando e divulgando suas ideias até a
exaustão e principalmente colocando em prática, nas suas obras literárias e
nas cartas aos amigos escritores, tudo o que defendia nos seus textos
ensaísticos.
Muitos dos recortes sobre a fisionomia linguística brasileira que serão
analisados nos capítulos 3 e 4 foram extraídos de cartas endereçadas a
54
Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Augusto
Meyer, Souza da Silveira e Alceu de Amoroso Lima. A problemática da
língua/fala brasileira era uma tópica frequente em toda sua obra, inclusive nas
cartas que trocava com as pessoas identificadas com o campo das Letras –
escritores, filólogos, gramáticos, folcloristas etc.
55
A análise de discurso não procura um sentido verdadeiro através de
uma “chave” de interpretação. Não há esta chave, há método, há
construção de um dispositivo teórico. Não há uma verdade oculta
atrás do texto. Há gestos de interpretação que o constituem e que o
analista, com seu dispositivo, deve ser capaz de compreender
(ORLANDI, 2007, P.26).
56
Capítulo 2
PERCURSO METODOLÓGICO
Deflagrada pelos românticos, a polêmica acerca da identidade linguística
brasileira nunca mais desapareceu do campo discursivo das Letras.
Enfraquecida entre os parnasianos, a polêmica ressurgiu com toda força entre
os modernistas. Contemporaneamente, assistimos a seu retorno por ocasião
da apresentação, pelo deputado Aldo Rebelo, do projeto de lei 1676/1999 que
pretendia coibir o uso desenfreado de estrangeirismos como medida de
“promoção, proteção e defesa da língua portuguesa” e também por ocasião da
publicação do livro didático para a EJA Por uma vida melhor, no primeiro
semestre de 2011, acusado de propagar que o errado está certo.
Focalizando os sentidos que envolvem o chamado português brasileiro,
a presente pesquisa busca subsídios teórico-metodológicos na análise de
discurso francesa, tendo em vista ser ela uma teoria semântica atenta ao
dinamismo da significância que domina todos os elementos da discursividade.
Conforme Orlandi (2007, p. 39), “todo discurso é visto como um estado de um
processo discursivo mais amplo, contínuo.” Por isso não há “começo absoluto
nem ponto final para o discurso”, pois este sempre se relaciona com outros
discursos. Assim, os textos nada mais são do que exemplares de um processo
discursivo que, ocasionalmente, funcionam como fonte de onde extrairemos os
enunciados que formarão as famílias parafrásticas a serem remetidas aos
discursos, às formações discursivas e, por último, às formações ideológicas.
Em análise de discurso, há duas vias para a constituição do corpus: a
experimental e a arquivista. Pela via experimental, os enunciados são
produzidos por meio de entrevistas ou questionários dirigidos a um interlocutor
em uma dada situação. Já pela via arquivista, parte-se de um conjunto de
textos que se consubstanciam em um “campo de documentos pertinentes e
disponíveis sobre uma questão” (PECHEUX, 2005, p. 251). Na formulação de
Foucault (2005, p. 18), a noção de arquivo é definida como “o conjunto de
discursos efetivamente pronunciados numa época dada e que continuam a
57
existir através da história”. Foucault afirma ainda que “o arquivo é, de início, a
lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados
como acontecimentos singulares” (1986, p.149). Conforme Courtine (2009, p.
77), enquanto o trabalho com corpus de arquivo é uma prática comum entre
historiadores, o trabalho com corpus experimental é praticada principalmente
por psicólogos ou psicossociólogos que coletam seus dados a partir de
pesquisa de campo.
De acordo com Sargentini (2006, p. 35) “operar com a noção de arquivo
é, portanto, salientar que a análise desenvolve-se pautada em um conjunto de
enunciados efetivamente produzidos, respondendo a um sistema de
enunciabilidade”. Além disso, a autora assevera que
[...] o conceito de arquivo comporta também uma outra face, uma vez que, diferentemente de uma concepção genérica, que se refere à conservação e à manutenção de documentos, a concepção de arquivo refere-se também a um nível particular que faz, entre a tradição e o esquecimento (SARGENTINI, 2006, p. 35).
Diante de enunciados que estão inseridos na história, ou seja,
enunciados específicos que circularam num dado momento, a análise de
discurso tem a função de realizar a descrição dos jogos de relações
estabelecidas no interior de um arquivo. O analista deverá observar as
condições de aparecimento de determinado enunciado, suas condições de
existência e sua correlação com outros enunciados, partindo do pressuposto de
que todo discurso é heterogêneo e se relaciona sempre com um discurso outro,
o interdiscurso. Dessa forma, o arquivo não deve ser entendido como um
simples documento no qual se encontram referências, mas que “permite uma
leitura que traz à tona dispositivos e configurações significantes”
(SARGENTINI, 2006, p. 41).
Nosso estudo define-se, pois, como uma pesquisa de arquivo, uma vez
que, para a constituição do corpus, recorremos a textos já produzidos. Como
se constitui um corpus e como se procede em uma pesquisa como a aqui
desenhada? Em primeiro lugar, precisamos considerar o campo discursivo,
neste caso, o campo das Letras. Como lembra Maingueneau (1997),
dificilmente um analista estuda a totalidade de um campo discursivo, tendo em
58
vista a complexidade das relações entre os discursos que o constituem.
Geralmente, o analista recorta do campo um espaço discursivo “constituído, no
mínimo, por dois posicionamentos discursivos que mantenham relações
particularmente fortes” (p.16). É preciso lembrar que um campo nunca é
estático, mas dinâmico, uma arena onde se travam lutas em que as posições
discursivas em relação participam de um equilíbrio instável, definindo diferentes
configurações.
O campo das Letras é um dos mais prolíferos quanto à produção de
discursos. Talvez só perca em fecundidade para aqueles da religião e da
filosofia. Dada a abundância e a complexidade das trocas discursivas que nele
têm lugar, o analista é levado a recortar espaços constituídos por subconjuntos
de discursos mediante conjeturas historicamente motivadas acerca das
relações que travam não apenas no seu próprio interior, mas também com
discursos de outros campos. À guisa de delimitação, recortamos do campo das
Letras o “espaço discursivo” formado pela relação entre as formações
discursivas modernista e conservadora, no que diz respeito aos embates de
sentidos na interpretação da língua falada/escrita no Brasil.
Lembramos que nossa entrada para investigação será sempre pelo
discurso modernista tal como ele se efetiva na obra de Mário de Andrade.
Porém, partindo do princípio de que todo discurso se constitui por rupturas e
relações com outros discursos, vamos observar de que modo o modernismo
dialoga com o conservadorismo que o antecedeu e/ou com que tem de partilhar
o espaço. Afinal, o discurso modernista, como todo discurso, é
constitutivamente heterogêneo, ou seja, ele circunscreve uma identidade
semântica na medida em que rejeita os sentidos que o Outro assume como
verdadeiros.
Antes de descrevermos o percurso trilhado para a constituição do corpus
desta pesquisa, consideramos relevante esclarecer que a seleção das
sequências discursivas (SD) foi orientada pelo seguinte objetivo geral:
perscrutar o posicionamento e o ethos discursivo de Mário de Andrade, um
escritor modernista, nos debates acerca da constituição de uma identidade
linguística brasileira. Como objetivos específicos, propusemo-nos a
esquadrinhar o posicionamento discursivo de Mário de Andrade no debate
travado por modernistas e conservadores, nas primeiras décadas do século
59
XX, acerca da constituição de uma identidade brasileira, focalizando,
especialmente, os sentidos por ele atribuídos ao acontecimento linguístico que,
desde o princípio da colonização, vinha engendrando uma língua ou uma
norma outra que procurava rachar o reino indiviso da lusofonia; investigar o
ethos do enunciador ao defender a tese da nacionalização da língua ou da fala
brasileira; apreender, no nível da superfície linguística, as marcas materiais da
polêmica entre o discurso modernista e conservador referente à língua
nacional; apreender, no nível da superfície linguística, as marcas materiais da
polêmica aberta por Mário de Andrade no interior do próprio modernismo;
verticalizar a reflexão acerca do português como uma língua heterogênea, no
sentido de desnaturalizar e combater o preconceito linguístico.
Delimitado o espaço discursivo e definidos os objetivos, realizamos uma
meticulosa inspeção da obra de Mário de Andrade, buscando recortar as
sequências discursivas (SD) com que formaríamos o corpus a ser analisado
nos próximos capítulos. Em nosso estudo, concebemos a sequência discursiva
como recortes de dimensão superior ou inferior à frase que se apresentam
como formas privilegiadas de materialização de um discurso ou de relações
interdiscursivas. Nós nos aventuramos pelo arquivo de textos literários e não-
literários de autoria de Mário de Andrade, perseguindo enunciados que
significassem a diferenciação do português em curso no Brasil com vistas a
adotar as Letras do país de uma identidade linguística brasileira, emancipada
dos padrões lusitanos.
A constituição do corpus é uma operação, em grande parte, teórica,
pois, entre a construção e a análise, entre a descrição e a interpretação dos
enunciados, há um ir e vir constante, já que a análise de discurso “é uma
disciplina de interpretação, mas que exige a descrição dos dados”
(GREGOLIN, 2006, p. 24). Por isso, fazer análise de discursos envolve
descrever e interpretar materialidades discursivas, não como procedimentos
sequenciais, mas, sim, simultâneos, conforme nos esclarece Gregolin (2006),
citando Pêcheux:
[...] o problema principal, nas práticas de análise de discurso, é determinar o lugar e o momento da interpretação, em relação ao da descrição. Não se trata de duas fases sucessivas, mas de uma alternância ou de um batimento (GREGOLIN, 2006, p. 32).
60
Esses procedimentos são complementares. Segundo Sargentini (2006,
p. 40), “embora seja importante atingir uma ‘forma de corpus’, é questão ainda
mais importante para o analista de discurso ‘a maneira de ver o corpus’. Essa,
por sua vez, já é uma categoria interpretativa”. Além de a constituição do
corpus ser uma operação teórica, lembramos que os dados nunca se
encontram, imediatamente, disponíveis para o analista de discurso; eles
existem, potencialmente, em estado de arquivo, mas precisam ser divisados
como significativos, selecionados e organizados de acordo com os objetivos do
estudo e com o ponto de vista assumido pelo pesquisador. A linguística
moderna, desde o gesto fundador de Ferdinand Saussure na década de 1900,
já se espraiou em várias direções, mas ainda permanece fiel a um dos
princípios postos pelo mestre genebrino: “longe de dizer que o objeto precede o
ponto de vista, diríamos que é o ponto de vista que cria o objeto” (SAUSSURE,
1975, p 15).
Como já dissemos, nossa leitura das obras de Mário de Andrade foi
guiada não pelos gêneros discursivos, mas sim pelas menções diretas ou
indiretas ao tema, focalizando os sentidos com que esse modernista singular
envolvia o português outro falado no Brasil. Por isso, o corpus foi montado com
sequências discursivas extraídas de textos pertencentes a variados gêneros:
ensaios literários, crítica literária, poemas, romances, contos, crônicas, esboços
destinados à Gramatiquinha da fala brasileira e cartas a muitos amigos. Além
de obras de Mário, também recorremos a textos publicados na coletânea
Português do Brasil (volume II), organizada por Edith Pimentel Pinto (1981).
Lemos 21 (vinte e uma) obras, porém 7 (sete) foram excluídas ou porque não
se mostraram relevantes, considerado nosso tema, ou porque repetiam
sequências já observadas e recortadas de outras obras. Assim, 14 (quatorze)
obras foram efetivamente consideradas na constituição do corpus,
compreendendo, parcialmente, a produção de Mário no período de 1922 a
1942.
Uma cartografia dessa etapa de leitura que culminou com a constituição
do corpus da pesquisa pode ser observada nas tabelas e gráficos, a seguir.
Explicitamos na Tabela 1: o título das obras que contém os textos utilizados na
61
constituição do corpus e uma coluna com um código correspondente a cada
texto/obra (tais códigos serão utilizados na identificação das sequências
discursivas nos capítulos de análise). As demais tabelas contêm: os títulos dos
textos de onde recortamos as sequências discursivas, o ano de sua 1ª
publicação, o ano da edição utilizada/citada nesta dissertação e o número de
recortes selecionados de cada texto. Nas tabelas, a seguir, relacionamos os
textos dos quais extraímos as SDs.
Na Tabela 1, conforme explicitamos acima, elencamos as obras usadas
e seus respectivos códigos:
TABELA 1: OBRAS E CÓDIGOS CORRESPONDENTES
OBRAS CÓDIGOS
Cartas a Manuel Bandeira CMB
A lição do amigo: Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de
Andrade
CCDA
Cartas a um jovem escritor/ de Mário de Andrade a Fernando Sabino CFS
O empalhador de passarinho EP
Paulicéia Desvairada /Poesias completas PD-PC
A costela do grão cão/Poesias completas CGC-PC
Táxi e crônicas no Diário Nacional TCDN
A Gramatiquinha de Mário de Andrade GMA
O português do Brasil: textos críticos e teóricos PB
Amar, verbo intransitivo (romance) AVI
Macunaíma o herói sem nenhum caráter MHSNC
Os contos de belazarte (Contos) CB
Losango Cáqui/ Poesias completas LC-PC
Clã de jabuti/Poesias completas CJ-PC
Na Tabela 2, listamos as cartas endereçadas a Manuel Bandeira (CMB),
a Carlos Drumonnd de Andrade (CCDA) e a Fernando Sabino (CFS), das quais
recortamos enunciados constantes do corpus:
62
TABELA 2: CARTAS
TEXTOS USADOS NO CORPUS CÓDIGO 1ª
PUBLICAÇÃO
EDIÇÃO
UTILIZADA
Nº DE
RECORTES
31-X-924 CMB 1924 1958 1
S. Paulo, 5, 1924 CMB 1924 1958 1
29 de dezembro de 1924 CMB 1924 1958 1
1925 CMB 1925 1958 25
S. Paulo, 1-VI-29 CMB 1929 1958 8
S. Paulo, 16-VIII-31 CMB 1931 1958 1
S. Paulo, 6-VIII-33 CMB 1933 1958 5
[Sem data] CCDA ... 1982 2
S. Paulo – 16-X-925 CCDA 1925 1982 2
18 de fevereiro 1925 CCDA 1925 1982 6
S. Paulo. 23-VIII-925 CCDA 1925 1982 2
S. Paulo – 1-XI- 1927 CCDA 1927 1982 1
S. Paulo, 21-III-42 CFS 1942 1993 2
Na Tabela 3, listamos textos críticos, extraídos da obra O empalhador de
passarinhos (EP), ensaios literários da obra Aspectos da literatura brasileira
(ALB) e da obra Pauliceia Desvairada (PD) de que também recortamos
enunciados para o corpus de nosso estudo:
TABELA 3: CRÍTICA E ENSAIOS LITERÁRIOS
TEXTOS USADOS NO CORPUS CÓDIGO 1ª PUBLICAÇÃO EDIÇÃO
UTILIZADA
Nº DE
RECORTES
O baile dos pronomes BP-EP 1944 1972 5
A língua radiofônica LR-EP 1944 1972 1
A língua viva LV-EP 1944 1972 9
Parnasianismo P-EP 1944 1972 2
O movimento modernista MM-ALB 1942 2002 2
Prefácio Interessantíssimo PI-PD-
PC
1922/1955 1993 9
63
Na Tabela 4, listamos o poema da obra A costela de grão cão (CGC),
que tematiza a questão da fala brasileira e que, por isso, foi incluído entre o
conjunto de enunciados a ser analisado:
TABELA 4: POEMAS
TEXTOS USADOS NO CORPUS CÓDIGO 1ª PUBLICAÇÃO EDIÇÃO
UTILIZADA
Nº DE
RECORTES
Lundu do escritor difícil LED-CGC-
PC
1941/1955 1993 1
Na Tabela 5, listamos as crônicas da coletânea Táxi e crônicas do Diário
nacional (TCDN), nas quais Mário de Andrade enuncia acerca da língua/fala
brasileira, avultando, portanto, como relevantes para a presente investigação:
TABELA 5: CRÔNICAS ORGANIZADAS POR TELÊ ANCONA PORTO
TEXTOS USADOS NO CORPUS CÓDIGO 1ª PUBLICAÇÃO EDIÇÃO
UTILIZADA
Nº DE
RECORTES
Táxi: Fala brasileira I TFB-TCDN 1929 1976 5
Táxi: brasileiro e português TBP-TCDN 1930 1976 2
Táxi: Ortografia I TOI-TCDN 1930 1976 1
Táxi: Ortografia II TOII-TCDN 1930 1976 2
Finalmente, na Tabela 6, listamos os textos selecionados por Edith
Pimentel Pinto para as obras: A gramatiquinha de Mário de Andrade (GMA) e O
Português do Brasil: textos críticos e teóricos, Vol.II (PB) das quais foram
recortadas sequências discursivas que constam do corpus desta pesquisa:
TABELA 6: TEXTOS ORGANIZADOS POR EDITH PIMENTEL PINTO
TEXTOS USADOS NO
CORPUS
CÓDIGO GÊNERO 1ª PUB. EDIÇÃO
UTILIZADA
Nº DE
RECORTES
Esboços para a
Gramatiquinha da fala
brasileira
EGFB-GMA Esboços 1928 1990 87
Assim falou o papa do
futurismo
PF-PB Entrevista 1925 1981 2
Carta a Alceu Amoroso CAAL-PB Carta 1927 1981 1
64
Lima
Carta a Augusto Meyer CAM-PB Carta 1931 1981 2
Carta a Souza da Silveira CSS-PB Carta 1935 1981 12
No gráfico, a seguir, podemos visualizar, em seu conjunto, as obras que
nos serviram de fonte para o recorte dos enunciados que compõem o corpus a
ser analisado nos capítulos 3 e 4 seguintes:
65
Como mostramos nas tabelas anteriores bem como no gráfico
representativo dos percentuais de recortes, totalizamos 200 sequências
discursivas, assim distribuídas: 72 foram retiradas de cartas; 17, de críticas
literárias; 2, de ensaio literário; 10, de poemas; 10, de crônicas; 87, dos
esboços da obra A gramatiquinha da fala brasileira e 2, de entrevista.
Além desses 200 recortes que tematizam e debatem sobre a língua
falada/escrita no Brasil, observamos que, em muitos deles, Mário de Andrade
se mostrava revoltado com aqueles que militavam pela formação de uma
identidade linguística brasileira, mas continuavam escrevendo à maneira lusa.
Ele fazia questão de afirmar que colocava em prática suas propostas:
[...] temos livros valiosos como a Língua Nacional de J. Ribeiro, O Dialeto Caipira de Amadeu Amaral, que são verdadeiros convites pra falar brasileiramente. Porém, os autores como idealistas que são e não práticos, convidam, convidam porém principiam não fazendo o que convidam. Não tiveram coragem. Eu tive a coragem e é o que explica o meu valor funcional na literatura brasileira moderna (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 313).
66
Por essa razão, entre as quatorze obras que foram fontes dos enunciados
que integram o corpus, seis são literárias, fornecendo exemplos que
comprovam sua determinação de fazer concretamente o que recomenda, não
só por meio de suas personagens, mas ele mesmo como enunciador. Mário era
um crítico contumaz do regionalismo que punha a fala brasileira apenas na
boca das personagens. A seguir, apresentamos duas tabelas e dois gráficos,
contendo a relação dos fenômenos característicos da fala, encontrados em
dois romances, uma obra de contos e três obras de poemas, bem como a
quantidade de recortes retirados de cada uma delas: 104 SDs de Amar, verbo
intransitivo (1927), 109 SDs de Macunaíma-o heroi sem nenhum caráter
(1928), 162 SDs de Os contos de belazarte (1934), 6 poemas de Paulicéia
desvairada (1922), 16 poemas de Losango Cáqui (1926), 11 poemas de Clã
de jabuti (1927).
Na Tabela 8, listamos os poemas selecionados, por conterem
brasileirismos, das obras Paulicéia desvairada (PD), Losango Cáqui (LC) e Clã
de jabuti (CJ). Em seguida, mostramos através de um gráfico, o percentual de
enunciados extraído de cada uma dessas obras:
TABELA 8: POEMAS DE MÁRIO DE ANDRADE COM BRASILEIRISMOS
TEXTOS USADOS NO CORPUS CÓDIGOS 1ª
PUBLICAÇÃO
EDIÇÃO
UTILIZADA
Nº DE
RECORTES
Prefácio interessantíssimo PI-PD-PC 1922/1955 1993 1
O rebanho R-PD-PC 1922/1955 1993 1
Paisagem nº 2 P-PD-PC 1922/1955 1993 1
As Juvenilidades Auriverdes JÁ-PD-PC 1922/1955 1993 1
Os orientalismos
convencionais
OC-PD-PC 1922/1955 1993 1
Minha loucura ML-PD-PC 1922/1955 1993 1
I-Meu coração estrala MCE-LC-PC 1926/1955 1993 2
II- Máquina-de-escrever ME-LC-PC 1926/1955 1993 2
VI-Queda pedrunta de
madeira
QPM-LC-PC 1926/1955 1993 2
67
VIII-Escola! Alto! EA-LC-PC 1926/1955 1993 1
XVI-Conversavam C-LC-PC 1926/1955 1993 2
XVIII-Cabo Alceu é um
manguari guaçu
CAMG-LC-
PC
1926/1955 1993 1
XX-Cadência ondulada
suave regular
COSR-LC-
PC
1926/1955 1993 1
XXI-A menina e a Cantiga MC-LC-PC 1926/1955 1993 2
XXIII-De nada vale
inteligência
NVI-LC-PC 1926/1955 1993 1
XXIV – A escrivaninha E-LC-PC 1926/1955 1993 1
XXVII – A menina e a cabra MC-LC-PC 1926/1955 1993 1
XXIX-Enfim no bonde pra
casa
EBC-LC-PC 1926/1955 1993 1
XXXI – Cabo Machado CM-LC-PC 1926/1955 1993 3
XXXIII-Meu gozo profundo
ante a manhã sol
MGPAMS-
LC-PC
1926/1955 1993 1
XXXIV – Louvação da
emboaba Tordilha
LET-LC-PC 1926/1955 1993 1
XLIII-Desincorporados D-LC-PC 1926/1955 1993 1
O poeta come amendoim PCA-CJ-PC 1927/1955 1993 1
Carnaval carioca CC-CJ-PC 1927/1955 1993 3
Yayá, fruta-do-conde,
castanha-do-Pará!
YFCCP- CJ-
PC
1927/1955 1993 2
Viuvita V- CJ-PC 1927/1955 1993 1
Sambinha S- CJ-PC 1927/1955 1993 1
Moda dos Quatro rapazes MQR- CJ-
PC
1927/1955 1993 1
Toada do pai-do-mato TPM- CJ-PC 1927/1955 1993 1
Poema P- CJ-PC 1927/1955 1993 1
Tostão de chuva TC- CJ-PC 1927/1955 1993 1
Moda da cadeia de Porto
Alegre
MCPA- CJ-
PC
1927/1955 1993 2
Paisagem nº 5 P- CJ-PC 1927/1955 1993 1
68
Na Tabela 9, diferentemente das demais, apresentamos fenômenos
característicos da língua/fala brasileira presentes na prosa de Mário de
Andrade, representada pelas obras: Amar, verbo intransitivo (AVI), Macunaíma
– o herói sem nenhum caráter (MHSNC) e Os contos de belazarte (CB). Em
seguida, mostramos através de um gráfico, o percentual de casos
brasileirismos extraídos de cada uma dessas obras:
TABELA 9: BRASILEIRISMOS NA PROSA DE MÁRIO DE ANDRADE
FENÔMENOS CARACTERÍSTICOS DA FALA
AVI
[1927]
1995
MHSNC
[1928]
1981
CB
[1934]
1980
Contração de preposições Ex.: Era esperada. Já carregava as malas pra dentro. (AVI, 1981, p. 49)
6 - -
Substituição do pronome oblíquo por pronome do caso reto Ex.: Fräulein viu ele chegar como sem ver. (AVI, 1981, p. 68)
9 - 8
Pronome oblíquo no início de período Ex.: _ Me diga uma coisa, filho de gambá é raposa, como que chama este lugar? (MHSNC, 1981, p. 85)
9 6 5
Palavras proparoxítonas reduzidas Ex.: A chacra não dera nenhum resultado. (AVI, 1981, p.142)
3 - 4
69
Expressões coloquiais em geral Ex.: Está aí mesmo, seu dotoire! (CB, 1992, p. 27)
58 34 93
Uso redundante de sufixos diminutivos Ex.: Carmela, pequetitinha, agarrada no João. (CB, 1992, p. 33)
11 - 10
Regência do verbo ir com em+o Ex.: Quando um ia no cinema o outro ia também. (CB, 1992, p.55)
2 5 8
Expressões populares com valor comparativo Ex.: Parou pra ficar chorando que nem bezerro. (CB, 1992, p. 47)
6 - 9
Uso do verbo fazer no final de enunciados Ex.: _ Fecha os olhos um bocadinho, velha, e pergunta assim. A velha fez. (MHSNC, 1981, p. 14)
- 5 -
Sujeito mim regido de para antes de verbo no infinitivo Ex.: _ Minha avó, dá aipim pra mim comer? (MHSNC, 1981, p. 16)
- 4 -
Uso de negativa dupla Ex.: _ Moço, não pode dormir nesse lugar não! (CB, 1992, p. 22)
- 10 5
Provérbios, crenças populares e frases rimadas Ex.: Quem conta história de dia cria rabo de cotia. (MHSNC, 1981, p. 75)
- 20 -
Uso do verbo brincar como sinônimo de ato sexual Ex.: Macunaíma piscou pra ela e os dois vieram na jangada brincar. Fizeram. Bastante eles brincaram. Agora estão se rindo um pro outro. (MHSNC, 1981, p. 56)
- 6 -
Uso de Mas com sentido de sim Ex: O gigante estava mas era querendo brincar com a francesa. (MHSNC, 1981, p. 40)
- 3 -
Uso do verbo ter no lugar de existir e haver Ex.: Quando a velha abriu os olhos estava lá e tinha caça, peixes, bananeiras dando, tinha comida por demais. (MHSNC, 1981, p. 14)
- 5 -
Silepse de número Ex.: Então se pôs falando pra toda a gente si queriam que ele botasse uma rosa no puíto deles. (MHSNC, 1981, p. 70)
- 2 -
Uso da expressão oral diz-que Ex.: Água fria diz que é bom pra espantar as vontades. (MHSNC, 1981, p. 129)
- 4 -
Uso do verbo reparar com sentido de observar/dar atenção Ex.: Como é que podia reparar na própria mocidade! Não podia. Só quem pôs reparo nisso
- - 5
70
foi o João. (CB, 1992, p. 14)
Uso do verbo botar no lugar de colocar/pôr Ex.: Às vezes se esquecia do paliteiro no botar a mesa pro almôço. (CB, 1992, p. 11)
- - 1
Expressões com valor temporal Ex.: De primeiro êle enrolava dois pães no papel acinzentado. (CB, 1992, p. 14)
- - 13
Uso de dois conectivos adversativos juntos Ex.: Não sabia o que tinha acontecido lá dentro mas porém adivinhando que lhe parecia que a rosa não gostava dele. (CB,1992, p. 17)
- - 1
Simultaneamente à leitura das obras, procedemos à digitação de todos
os recortes que julgávamos em sintonia com nosso objeto de estudo. O número
total de recortes foi de 608 (seiscentos e oito), 200 (duzentos) recortes de
textos não-literários e 408 (quatrocentos e oito) exemplos de obras literárias de
Mário de Andrade, que serviram para corroborar sua proposta de fazer da
literatura uma instância de formação da identidade linguística brasileira.
Concluída a leitura e a digitação dos recortes, realizamos a organização deles
por ordem cronológica, procedimento que se mostrou necessário, uma vez que
observamos que Mário mudou de posição em relação ao estatuto da variedade
de português falado no Brasil, indo de uma categorização radical (“língua
brasileira”) para outra menos radical (“fala brasileira”). Vale destacar que a
percepção dessa mudança de sentido legitima o postulado da análise de
71
discurso de que, nela, não há separação entre o trabalho de descrição e
interpretação do corpus.
Concluída a seleção, recorte e organização das sequências, realizamos
uma releitura de todo o material, a fim de escolhermos aquelas que seriam, de
fato, incorporadas à nossa análise pelo seu caráter exemplar em relação ao
espaço discursivo perfilado e por se apresentarem como representativas de
famílias parafrásticas (enunciados formalmente diferentes, mas portadores de
sentidos semelhantes) que nos pareciam apropriadas aos objetivos da
pesquisa. Essa seleção final, afunilada pelos objetivos, resultou na
composição de dois capítulos de análise: um sobre a polêmica (Capítulo 3) e
outro sobre o ethos discursivo (Capítulo 4). Para a elaboração de tais
capítulos, recorremos às noções de interdiscurso, polêmica,
interincompreensão, tradução, simulacro e ethos, tal como trabalhadas por
Dominique Maingueneau (2011, 2010, 2008a, 2008b, 2005a, 2005b, 1997 e
1989).
72
O discurso não escapa à polêmica tanto quanto não escapa à
interdiscursividade para constituir-se. Por toda sua existência, ele
se obriga a esquecer que não nasce de um retorno às coisas, mas da
transformação de outros discursos ou que a polêmica é tão estéril
quanto inevitável, que a interincompreensão é insular, na medida da
incompreensão que supõe (MAINGUENEAU, 2005a, p. 122).
73
Capítulo 3
A POLÊMICA ACERCA DA CONSTITUIÇÃO DE UMA IDENTIDADE LINGUÍSTICA
BRASILEIRA EM MÁRIO DE ANDRADE
Na perspectiva da análise de discurso de linha francesa,
empreenderemos, neste capítulo, a análise de um corpus constituído por
enunciados extraídos da obra de Mário de Andrade. O critério que orientou o
recorte dos enunciados foi a tematização da problemática da construção de
uma identidade linguística brasileira, na conjuntura em que viveu o escritor
modernista.
Nas seções 1, 2 e 3, revisitaremos os conceitos de formação discursiva
e interdiscurso, com destaque para duas das hipóteses propostas em
Maingueneau (2005a): o primado do interdiscurso sobre o discurso e a
polêmica como interincompreensão. Tais conceitos balizarão a análise dos
enunciados que compõem o corpus.
Na seção 4, analisamos um conjunto de enunciados recortados de
textos que compõem a obra de Mário de Andrade, focalizando a polêmica entre
modernistas e conservadores acerca da língua falada e/ou escrita no Brasil,
reeditando o debate desencadeado pelos românticos, depois um período de
retrocesso, decorrente do cultismo parnasianismo. E, na seção 5, procuramos
dar relevo ao pensamento linguístico de Mário de Andrade que nos permite vê-
lo como um sociolinguista antes de seu tempo.
3.1 Da formação discursiva ao interdiscurso
Num estudo balizado pela análise de discurso francesa, mobilizar o
conceito de interdiscurso é um imperativo, na medida em que ele é nuclear aos
procedimentos teórico-metodológicos. Se, nos primeiros tempos da AD, os
discursos eram pensados como autônomos uns em relação aos outros, hoje, a
tendência predominante é a de concebê-los como constitutivamente
heterogêneos, ou seja, é a de concebê-los como imbricados, inextricavelmente
ligados e constituídos por múltiplos atravessamentos.
74
Essa mudança teórica envolve o abandono da noção de discurso como
uma máquina estrutural fechada (PÊCHEUX, [1969] 1993) em favor do
conceito de formação discursiva postulado por Foucault ([1969] 1986). Já em
1971, Haroche, Pêcheux e Henry lançam mão do conceito de formação
discursiva, definindo-a, contudo, de forma articulada à formação ideológica.
Conforme Foucault (1986, p. 135), o discurso é entendido como um
“conjunto de enunciados, na medida em que se apoia em um mesmo sistema
de formação discursiva”. Já o enunciado, segundo o autor, não é uma frase
(definida pela gramática), não é uma proposição (definida pela lógica), não é
uma formulação (definida pela teoria dos atos de fala). O que define o
enunciado é a função de existência: “O limiar do enunciado seria o limiar da
existência dos signos” (FOUCAULT, 1986, p. 96). São os enunciados que
autorizam perguntas como: os signos “fazem sentido”, a que se referem, como
se organizam e que atos realizam pela sua formulação?
Constatamos que o autor não entende o enunciado como uma estrutura
sintática, pois existem arranjos de palavras com valor de enunciado que não se
estruturam como frases, como, por exemplo, um paradigma de conjugação
verbal. Além disso, também há enunciados que se materializam por meio de
linguagens não verbais, como uma árvore genealógica ou um gráfico sobre
uma curva de crescimento populacional.
Na perspectiva de Foucault (1986), analisar formações discursivas
significa descrever as especificidades do enunciado. A ação de descrever, por
conseguinte, leva em consideração se o enunciado se apoia em um “conjunto
de signos” que para se realizar requer “um referencial”, “um sujeito”, “um
campo associado” e “uma materialidade”, sem a preocupação de identificar se
este cumpre com os requisitos de ser aceitável gramaticalmente ou não. Assim,
para Foucault, a análise do enunciado e a da formação discursiva são
operações correlativas, interdependentes, uma vez que “a regularidade dos
enunciados é definida pela própria formação discursiva” (p. 135). Assim, a
formação discursiva não deve ser tomada como um conjunto de princípios de
construção, mas como uma lei de coexistência.
Via de regra, a noção de formação discursiva em Pêcheux é articulada à
de Foucault. Contudo, atribui-se a Pêcheux a reelaboração dessa noção, com
base no materialismo histórico e na teoria althusseriana da ideologia. Em
75
Pêcheux, a formação discursiva é uma das pernas do tripé formação-
discursiva/formação-ideológica/formação-social. Ao tratar da articulação dessas
três pernas, Haroche, Henry e Pêcheux ([1971] 2011) afirmam:
Falaremos da formação ideológica para caracterizar um elemento suscetível de intervir – como uma força confrontada a outras forças – na conjuntura ideológica característica de uma formação social em um dado momento. Cada formação ideológica constitui desse modo um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem ‘individuais’ e nem ‘universais’, mas que se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas em relação às outras. [...] as formações ideológicas assim definidas comportam necessariamente, como um de seus componentes, uma ou várias formações discursivas interligadas, que determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma harenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc) a partir de uma posição dada numa conjuntura dada (HAROCHE, HENRY, PÊCHEUX, [1971], 2011, p. 27).
Pêcheux retoma a teoria da ideologia de Althusser que não silencia as
contradições entre a ideologia dominante e a dominada. Ao propor os
aparelhos ideológicos, não os concebe como mera instância de reprodução da
ideologia dominante, pois, uma vez atravessados pelas contradições de classe,
constituem, paradoxalmente, força de reprodução e transformação das
formações sociais. Essa postulação althusseriana se reflete na noção de
formação discursiva, que passa a ser vista como um espaço heterogêneo,
atravessado por formações discursivas outras. Assim como Althusser postula
que todo indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia, Pêcheux postula que
o indivíduo é interpelado em sujeito de seus enunciados pelas formações
discursivas. Portanto, as palavras significam não por si mesmas, mas segundo
o processo de interpelação, segundo “as posições ocupadas por aqueles que
as empregam”. Assim, podemos afirmar que “as palavras ‘mudam de sentido’
ao passar de uma formação discursiva a outra” (HAROCHE, HENRY,
PÊCHEUX, [1971], 2011, p. 27-28).
Essa concepção de que uma formação discursiva é sempre atravessada
por outras, com as quais mantém uma relação de aliança, de subordinação, de
antagonismo, prenuncia a noção de interdiscurso, cujo embrião, segundo
Maldidier, já estava presente na “Análise Automática do Discurso” (1969), sob a
76
designação do ‘já dito’, ‘já ouvido’. Contudo, é em Pêcheux ([1975] 1988) que a
noção de interdiscurso é efetivamente explicitada e passa a ocupar um lugar
proeminente no arcabouço teórico da análise de discurso. Primeiro, o autor se
refere ao “todo complexo com dominante das formações discursivas intrincado
no complexo de formações ideológicas”. Em seguida, nomeia “esse todo
complexo com dominante” como “interdiscurso” (PÊCHEUX, 1988, p. 162).
Atualmente, a análise de discurso francesa toma o interdiscurso como
um axioma da teoria. Considera que os variados discursos que irrigam as
formações discursivas mantêm uma relação de interdependência constitutiva
uns em relação aos outros. Tendo como pano de fundo a noção de
interdiscurso, os sentidos possíveis de um discurso correspondem aos sentidos
demarcados pela identidade ideológica de cada uma das formações
discursivas que se relacionam no interior de um mesmo espaço discursivo.
Maingueneau, em Gênese dos discursos (2005a, p. 21-24), apresenta
uma formulação da teoria do discurso mediante sete hipóteses. A primeira
afirma que “o interdiscurso tem precedência sobre o discurso”; a segunda, que
“o caráter constitutivo da relação interdiscursiva faz aparecer a interação
semântica entre os discursos como um processo de tradução, de
interincompreensão regrada”; a terceira, que “existe um sistema de restrições
semânticas globais”; a quarta, que “o sistema de restrições deve ser concebido
como um modelo de competência interdiscursiva”; a quinta, que “o discurso
não deve ser pensado somente como um conjunto de textos, mas como uma
prática discursiva”; a sexta, que “a prática discursiva pode ser considerada
como uma prática intersemiótica”; a sétima, que não existe uma dissociação
entre a prática discursiva e outras séries de seu ambiente sócio-histórico,
existindo entre eles um esquema de correspondência”.
Neste capítulo, vamos nos concentrar em duas hipóteses: a primeira
acerca do primado do interdiscurso e a segunda relacionada à polêmica como
interincompreensão.
3.2 Do primado do interdiscurso
Esmiuçando a primeira hipótese, o autor afirma que “a unidade de
análise pertinente não é o discurso, mas um espaço de troca entre vários
77
discursos convenientemente escolhidos” (MAINGUENEAU, 2005a, p. 21).
Assim, para a apreensão da identidade de um discurso é indispensável
considerar a relação que um discurso mantém com o Outro, ou seja, considerar
suas relações interdiscursivas. Acompanhando as postulações teóricas de
Maingueneau (2005a), grafamos “Outro” com “O” maiúsculo e o entendemos
como a figura que representa a heterogeneidade constitutiva “que amarra, em
uma relação inextricável, o Mesmo do discurso e seu Outro” (p. 33) ou “a
intervenção de um conjunto textual historicamente definível que se encontra no
mesmo palco que o discurso” (p. 41).
Segundo o autor, considerada essa proposição, a interação entre
discursos pode receber duas interpretações: uma fraca e outra forte. A fraca
envolve o consenso de que estudar a especificidade de um discurso supõe que
este seja “posto em relação com outros”, uma vez que a análise de discurso
supõe “a colocação conjunta de vários textos” (2005a, p. 21), ao passo que a
forte
[...] exige mais do analista, já que coloca o interdiscurso como o espaço
de regularidade pertinente, do qual diversos discursos são apenas componentes. Em termos de gênese, isso significa que esses últimos não se constituem independentemente uns dos outros, para serem, em seguida, postos em relação, mas que eles se formam de maneira regulada no interior de um interdiscurso. Seria a relação interdiscursiva, pois que estruturaria a identidade (MAINGUENEAU, 2005a, p. 21).
Ponderando que o conceito de interdiscurso seria muito “vago”,
Mainguenau (2005a) buscou torná-lo metodologicamente mais
operacionalizável, por meio do trio conceitual: universo discursivo, campo
discursivo e espaço discursivo.
A noção de universo discursivo corresponde ao “conjunto de formações
discursivas de todos os tipos que interagem em uma conjuntura dada” (2005a,
p. 35). Apesar de se tratar de um conjunto finito, não é passível de apreensão
em sua globalidade. Assim, é de pouca utilidade para o analista,
representando, axiomaticamente, o horizonte a partir do qual são constituídos
domínios suscetíveis de serem estudados, que são os campos discursivos.
O campo discursivo deve ser compreendido como “um conjunto de
formações discursivas que se encontram em concorrência, delimitando-se
78
reciprocamente em uma região determinada do Universo discursivo” (2005a, p.
35). A relação de concorrência deve ser entendida de maneira mais ampla,
pois inclui “tanto o confronto aberto quanto a aliança, a neutralidade aparente
etc...entre discursos que possuem a mesma função social e divergem sobre o
modo pelo qual ela deve ser preenchida” (2005a, p. 36). À guisa de
exemplificação, o autor menciona “o campo político, filosófico, dramatúrgico,
gramatical etc...” (2005a, p. 36). É bastante enfático ao afirmar que esse
recorte em “campos” não define zonas insulares; é apenas uma abstração
necessária que deve permitir abrir múltiplas redes de troca.
A constituição de um discurso é realizada no interior do campo
discursivo e deixa-se descrever em termos de operações regulares sobre
formações discursivas existentes e concorrentes. Contudo, não é possível
prever “as modalidades de relações entre as diversas formações discursivas de
um campo” (2005a, p. 37). Dessa forma, para visualizar mais nitidamente as
relações entre as formações discursivas, recorta-se um espaço discursivo.
Os espaços discursivos constituem “subconjuntos de formações
discursivas que o analista julga relevante para seu propósito colocar em
relação” (2005a, p. 37). O recorte é direcionado por hipóteses formuladas pelo
analista, de acordo com um conhecimento prévio dos textos e um saber
histórico, os quais serão confirmados ou negados durante o desenvolvimento
da pesquisa.
Um espaço discursivo não é dado de antemão, mas sim construído por
determinações e escolhas do analista, em função de seu objeto de
investigação. Especificamente, no caso desta pesquisa, o espaço recortado
tem por referência o campo discursivo das Letras, envolvendo formações
discursivas responsáveis por diferentes interpretações do português outro em
formação no Brasil. Nosso corpus é formado por enunciados extraídos da obra
de Mário de Andrade, um enunciador interpelado pelo discurso da
emancipação linguística e cultural do Brasil em relação a Portugal. Contudo, é
impossível analisar esse corpus sem considerar o(s) discurso(s) do Outro, uma
vez que ele(s) é/são constitutivo(s) dos enunciados marioandradinos. No nível
do espaço discursivo, a análise mostra “o caráter essencialmente dialógico de
todo enunciado” e “a impossibilidade de dissociar a interação dos discursos do
funcionamento intradiscursivo” (2005a, p. 39).
79
Referindo-se à presença do Outro no discurso, Maingueneau afirma que
essa relação pode revelar-se independentemente de qualquer forma de
alteridade marcada explicitamente, pois a relação dialógica patenteia-se não
apenas sob a forma de citações, alusões, modalizações autonímicas, mas
também sob a forma do não-dito que age no avesso dos enunciados:
Todo enunciado do discurso rejeita um enunciado, atestado ou virtual, de seu Outro do espaço discursivo. Quer dizer que esses enunciados têm um “direito” e um “avesso” indissociáveis: deve-se decifrá-los sobre seu ‘direito’ (relacionando-os a sua própria formação discursiva), mas também sobre seu “avesso”, na medida em que estão voltados para a rejeição do discurso de seu Outro (MAINGUENEAU, 2005a, p. 40).
Com relação à possibilidade de localização do Outro no discurso,
Maingueneau dialoga polemicamente com a concepção de Authier-Revuz
(1990, 2004) sobre a heterogeneidade constitutiva e mostrada. Segundo a
autora, que assume uma postura psicanalítica, todo discurso é
constitutivamente atravessado pelo discurso do Outro: “O outro não é um
objeto (exterior, do qual se fala), mas uma condição (constitutiva, para que se
fale) do discurso de um sujeito falante que não é fonte-primeira desse discurso”
(2004, p. 69). A heterogeneidade mostrada não seria o reflexo, na superfície do
enunciado, da heterogeneidade constitutiva, mas sim “uma forma de
negociação – necessária – do sujeito falante com essa heterogeneidade
constitutiva – inelutável, mas que lhe é necessário desconhecer” (2004, p. 72).
Nos termos de Authier-Revuz, essa negociação é uma espécie de denegação
da heterogeneidade constitutiva do discurso, é uma forma de circunscrever o
outro para afirmar o um:
[...] as marcas explícitas de heterogeneidade respondem à ameaça que representa, para o desejo de domínio do sujeito falante o fato de que ele não pode escapar ao domínio de uma fala que, fundamentalmente, é heterogênea. Através dessas marcas, designando o outro localizadamente, o sujeito empenha-se em fortalecer o estatuto do um. É nesse sentido que a heterogeneidade mostrada pode ser considerada como um modo de denegação no discurso da heterogeneidade constitutiva que depende do outro no um”. (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 73 e 74).
80
Segundo Maingueneau, todo discurso ao ser analisado deve ser
observado em relação à heterogeneidade constitutiva e sua eventual
manifestação como heterogeneidade mostrada. A heterogeneidade mostrada é
apreensível, uma vez que revela explicitamente a alteridade, por meio do
discurso citado, das auto-correções, das palavras entre aspas etc. (2005a, p.
33). Já a heterogeneidade constitutiva funciona de outra maneira, pois
Não deixa marcas visíveis: as palavras, os enunciados de outrem estão intimamente ligados ao texto que não podem ser apreendidos por uma abordagem linguística stricto sensu. Nossa própria hipótese do primado do interdiscurso inscreve-se nessa perspectiva de uma heterogeneidade constitutiva, que amarra, em uma relação inextrincável, o Mesmo do discurso e seu Outro (MAINGUENEAU, 2005a, p. 33).
Retomando as considerações de Maingueneau acerca da dupla
heterogeneidade na exploração da hipótese do primado do interdiscurso, Cox
(2008, p. 171) ressalta as dificuldades encontradas pelo analista, que nem
sempre pode contar com pistas explícitas sob a forma da heterogeneidade
mostrada, precisando “tatear o Outro no escuro, já que ele parece se dissolver
no Mesmo sem deixar rastros”. A autora observa, ainda, que se o analista
estiver atento encontrará as fissuras, as inconsistências, “já que nenhum
discurso é uma entidade monolítica” (COX, 2008, p.171) e nenhum sujeito é
“uma entidade homogênea, exterior à linguagem, que lhe serviria para ‘traduzir’
em palavras um sentido do qual seria a fonte consciente” (Authier-Revuz, 2004,
p. 63). O sujeito, desde a origem, divide-se entre o consciente e o inconsciente.
E o inconsciente estrutura-se, segundo Lacan, como linguagem. Destarte, o
sujeito suposto dizer é um efeito da linguagem, de tal maneira que não se pode
falar em ‘sujeito de’ fora da ilusão que a linguagem torna possível. É o ‘isso’ do
inconsciente e, portanto, da linguagem que produz o ‘eu”, mas a causalidade
da linguagem permanece desconhecida/ignorada pelo sujeito, porque se
realiza sob a forma da evidência, como se fosse a realidade mesma, o que não
passa de um efeito elementar da ideologia jurídica.
81
3.3 Da polêmica como interincompreensão
Desdobrando a hipótese do primado do interdiscurso, Maingueneau
(2005a) propõe a hipótese da polêmica como interincompreensão. Segundo o
autor, a polêmica ocorre em razão da inevitável relação entre discursos
oponentes, no interior de um mesmo espaço discursivo. Opondo-se e
rejeitando um ao outro, os discursos instauram uma polêmica que se constitui
tanto por meio da heterogeneidade mostrada quanto por meio da constitutiva.
No fio discursivo, a polêmica se manifesta mediante simulacros,
traduções/interpretações negativas do discurso opositor. Diante da
impossibilidade de pôr fim à existência de um discurso oponente, os simulacros
são o resultado do esforço constante de que um discurso lança mão para se
conservar intacto diante da figura ameaçadora do seu Outro.
A noção de polêmica é esmiuçada por meio da noção de
interincompreensão entre discursos ocupantes de um mesmo espaço
discursivo, porém com posicionamentos ideológicos diferentes. O termo
interincompreensão designa a incompreensão recíproca entre os enunciadores
de um discurso e de outro. No processo de interpelação por uma dada
formação discursiva, o enunciador não compreende, não reconhece seu outro,
a não ser pela sua própria formação discursiva. Na tentativa de manter-se forte
para garantir seu espaço, um discurso só interage com outro por meio de
simulacros, a fim de rebaixá-lo, desautorizá-lo, desacreditá-lo. Trata-se, pois,
de “desqualificar o adversário mostrando que ele viola as regras do jogo
(mentindo, produzindo citações inexatas, informações errôneas, sendo
incompetente, pouco inteligente, etc...)” (MAINGUENEAU, 2005a, p. 114). Nas
palavras do autor, “polemizar é, sobretudo, apanhar publicamente em erro,
colocar o adversário em situação de infração em relação a uma Lei que se
impõe como incontestável” (2005a, p. 114).
Destrinçando a noção de interincompreensão, Maingueneau apresenta a
noção de discurso-agente e discurso-paciente para explicitar sua abordagem
do processo de tradução e construção de simulacro entre discursos: aquele
que ocupa a “posição de tradutor” é o discurso agente e aquele que “é
traduzido”, o discurso-paciente (2005a, p.103). Quem assume a posição de
discurso agente, para legitimar sua identidade constitutiva, realizará a tradução
82
de um discurso paciente, incompreendendo-o, ou seja, projetando sobre ele as
categorias negativas (semas negativos) de seu próprio discurso.
Cada discurso repousa, de fato, sobre um conjunto de semas repartidos em dois registros: de um lado, os semas “positivos” reivindicados; de outro, os semas “negativos”, rejeitados. A cada posição discursiva se associa um dispositivo que a faz interpretar os enunciados de seu Outro, traduzindo-os nas categorias do registro negativo de seu próprio sistema. Em outras palavras, esses enunciados do Outro só são “compreendidos” no interior do fechamento semântico do intérprete; para constituir e preservar sua identidade no espaço discursivo, o discurso não pode haver-se com o Outro como tal, mas somente como simulacro que constrói dele
(MAINGUENEAU, 2005a, p.103).
Com relação ao termo “tradução”, o autor esclarece que não se pode
confundi-lo com “tradução interlinguística”, de um idioma a outro, mas que se
deve compreendê-lo como tradução de um discurso por outro no interior de
uma mesma língua:
Esses dois processos, o linguístico e o discursivo, são incomensuráveis: a “tradução” que nos interessa aqui é um mecanismo necessário e regular, ligado à constituição de formações discursivas que remetem, para além delas mesmas, a descontinuidade sócio-históricas irredutíveis (MAINGUENEAU, 2005a, P. 105).
Para o autor, “a incompreensão no interior do espaço discursivo não
decorre dos mal-entendidos linguageiros usuais” (MAINGUENEAU, 2005a, p.
105), mas de aspectos discursivos. Dessa forma, “não se dirá que um
enunciador de um discurso ‘interpreta’ seus próprios enunciados; esse é um
privilégio reservado a uma estância exterior. O discurso não pode interpretar-se
a si mesmo” (MAINGUENEAU, 2005a, p. 104).
Ainda com relação à polêmica como processo de interincompreensão,
Maingueneau distingue dois níveis: o nível dialógico que é o da interação
constitutiva entre duas formações discursivas e o nível propriamente polêmico
que é o da heterogeneidade mostrada. Assim, a noção de polêmica reveste-se
de um outro sentido no arcabouço teórico da análise de discurso, não
coincidindo “com o que se entende habitualmente por isso (uma controvérsia
violenta) (MAINGUENEAU, 2005a, p. 111). “A tradução do Outro, a construção
83
de um simulacro podem, pois, abranger todos os planos da discursividade”
(MAINGUENEAU, 2005a, p. 112), seja de forma visível no enunciado, seja
soterrada pelas camadas arqueológicas sob a superfície linguística.
O autor explica ainda que
A polêmica aparece exatamente como uma espécie de homeopatia pervertida: ela introduz o Outro em seu recinto para melhor conjurar sua ameaça, mas esse Outro só entra anulado enquanto tal, simulacro (MAINGUENEAU, 2005a, P. 113).
O universo semântico formado pelas noções interligadas de
interdiscurso, polêmica, interincompreensão, tradução e simulacro constitui
uma referência e um instrumental fecundo para pesquisas em análise de
discurso. É, pois, com essas noções que perscrutaremos o espaço discursivo
em que modernistas, aqui representados por Mário da Andrade, se batem com
aqueles que insistem em manter-se fieis aos mandamentos gramaticais de
Portugal.
3.4 Da polêmica sobre identidade linguística brasileira no arquivo de
Mário de Andrade
Os enunciados a serem analisados nesta seção referem-se à polêmica
entre modernistas e conservadores acerca da língua falada e/ou escrita no
Brasil, reeditando, no século XX, o debate desencadeado pelos românticos. O
parnasianismo, movimento estético que sucedeu o romantismo e antecedeu o
modernismo, havia re-orientado os ideais da expressão literária para o
conservadorismo purista, contestando a bandeira de abrasileiramento da língua
empunhada pelos separatistas e dialetistas. É, pois, com a posição
conservadora que os modernistas têm de se haver para concluir o projeto de
nacionalização literária, artística e linguística do país. Nesse estudo, o discurso
modernista se faz ouvir pela voz de Mário Andrade, certamente, o seu maior
representante no Brasil. Os enunciados recortados de textos que compõem a
obra do autor farão aflorar a polêmica com a posição conservadora em relação
à língua e também com alguns postulados do próprio modernismo.
84
Se retomarmos o tripé proposto por Maingueneau (2005a) à guisa de
operacionalização do conceito de interdiscurso, vislumbramos como “campo
discursivo” o campo da Letras que inclui os discurso gramatical, linguístico,
literário dentre muitos outros que se encontram em concorrência numa
determinada região do “universo discursivo” numa dada formação social. E,
como “espaço discursivo” a ser investigado, recortamos a relação entre as
formações discursivas modernista e conservadora, no que diz respeito aos
embates de sentidos na interpretação da linguagem falada-escrita no Brasil.
Consideradas as condições sócio-histórico-ideológicas em que vivia Mário de
Andrade, a formação discursiva conservadora era representada pelos
parnasianos, muitas vezes referidos nos enunciados aqui estudados.
Na SD1, a seguir, o enunciador nomeia a disputa entre a ex-colônia e a
metrópole:
SD1: Mal é não termos uma consciência nacional verdadeira, isso acho indiscutível. Quanto as nossas relações com os portugas, que continuem como estão, é gostoso. Queixas, briguinhas... Portugal grita de lá: Eu sou maior! O Brasil grita de cá: Eu sou mais grande! E os dois ficam feridíssimos (BP-TCDN, [1930] 1976, p. 189).
Observamos, na SD1, uma retomada da tópica do nacionalismo, cuja
memória discursiva, como vimos na introdução desta dissertação, remonta ao
romantismo, movimento que se atribuiu a prerrogativa de completar a
emancipação do Brasil em relação a Portugal. Não bastava romper com a
dominação política, era necessária autonomia cultural, artística, literária e,
sobremaneira, linguística. Preterido durante o parnasianismo que voltava a ter
como baliza os ideais universais clássicos, o nacionalismo é retomado com
todo vigor pelo modernismo. Dessa forma, o pré-construído que afirma a
identidade entre ter uma língua própria e ser uma nação permeia a SD1.
Assim, “ter uma consciência nacional verdadeira” é um enunciado prototípico
da formação discursiva modernista. É, pois, como enunciador modernista que
Mário de Andrade enuncia “Mal é não termos uma consciência nacional
verdadeira”, em que a negação “não” é uma denegação. Conforme Indursky
(1990, p. 120), entendemos a denegação discursiva como “[...] aquela que
incide sobre um elemento do saber próprio à FD que afeta o sujeito do
85
discurso”. Por razões conjunturais, o enunciador, que é um modernista falando
em nome de todos os modernistas (por isso, o “nós” inclusivo), não pode dizer
ainda “temos uma consciência nacional verdadeira”. Daí decorre o tom de
lamento expresso por meio do termo “Mal”.
Para ele, ter essa consciência pressupõe agir como brasileiro em todos
os sentidos, sem a necessidade de se importar com Portugal. Havia, sim,
controvérsias históricas entre Portugal e Brasil, como deixa entrever o verbo
“continuar”, referindo-se a “queixas” e “briguinhas” que vêm do passado e
apontam para o futuro, a julgar pelo uso do presente do subjuntivo “continuem”.
O enunciador refere-se amorosamente a essas rusgas, empregando o
diminutivo “briguinhas” e o predicativo “é gostoso”, para qualificar a relação de
amor e ódio com “os portugas”, lembrando, em certa medida, o que se passa
entre casais de namorados.
As “briguinhas” motivadas pelas diferenças linguísticas entre Brasil e
Portugal encontram-se exemplarmente materializados na SD1, por meio
dessas duas frases – “Portugal grita de lá: Eu sou maior! O Brasil grita de cá:
Eu sou mais grande!” – produzidas na forma de eco, porém com a diferença de
que o grito luso se faz em português castiço (Eu sou maior!) e o grito brasileiro
que responde de volta se faz em português mestiço (Eu sou mais grande!). O
uso do comparativo de superioridade na forma analítica (mais grande), em
lugar da forma sintética (maior), como prescreve a gramática normativa,
constitui um brasileirismo, ou seja, um vício de linguagem, a que Mário
concede status de cidadania. Em consonância com seu projeto de construção
de uma identidade linguística brasileira, Mário leva para a cena pública do
jornal ou do livro muitos fenômenos linguísticos que eram silenciados sob a
pecha de erros, vulgarismos, solecismos etc. Na SD2, a seguir, excerto de um
suposto diálogo com jornalistas, é possível constatar o empenho deliberado de
Mário em conferir cidadania àquilo que os passadistas taxavam de solecismos
e ele via como traços da fala brasileira:
SD2 - _ Não dou entrevistas a vocês jornalistas. _ Por quê? _Porque A noite, certamente, há de querer modificar o meu português. _ Mas A Noite publicará as suas palavras tim-tim por tim-tim.
86
_ Com todos os meus solecismos, ou melhor, com aquilo que vocês passadistas chamam solecismo? _ Perfeitamente. _ Pois, então, vamos lá. Mas, para que saia tudo exatamente como eu disser, você faz as perguntas e eu as responderei escrevendo na máquina. (PF-PB, [1925]1981, p. 134).
Nessa SD, o enunciador, primeiro, assume a posição do Outro, dizendo
“os meus solecismos” (como o Outro diria de/traduziria seus brasileirismos),
porém, ao se dar conta do ato falho em que incorrera, introduz uma correção
por meio de modalizador autonímico “ou melhor”, remetendo o termo
“solecismo” ao Outro, ou seja, à formação discursiva conservadora (“vocês
passadistas”). Um enunciador modernista não traduziria os brasileirismos como
“solecismos”, ou seja, como “vícios de linguagem”. Para ele, isso seria um
traço normal, regular, da fala/língua brasileira.
Nas SD3 e SD4, a seguir, Mário de Andrade tematiza o retrocesso que o
projeto de construção de uma identidade linguística brasileira experimenta na
pena dos parnasianos.
SD3 - Chegamos ao nosso assunto. Estávamos desvirtuados pela
gramatiquice em que caiu a nossa literatura com a geração de Machado de Assis e o Parnasianismo. Veja bem que não culpo Machado de Assis, um gênio no meu entender, da existência dum Laudelino Freire. Os gênios se justificam, meu Deus! Porque a genialidade os eleva acima das contingências. Mas aquela linguagem mais da terra, que vinha se formando com os Românticos, virara com Bilaques e outros muito piores, Coelho Neto e a genialidade dos bons colocadores de pronomes à portuguesa, uma coisa oficial, gélida ver um Ministério das Relações Exteriores. E abrasileirei a minha língua (CSS-PB, [1935]1981, p. 157). SD4 - A necessidade nova de cultura, se em grande parte produziu apenas, em nossos parnasianos maior leitura e consequente enriquecimento de temática em sua poesia, teve uma consequência que me parece fundamental. Levou poetas e prosadores em geral a um...culteranismo novo, o bem falar conforme as gramáticas lusas. Com isso foi abandonando aquela franca tendência pra escrever apenas pondo em estilo gráfico a linguagem falada, com que os românticos estavam caminhando vertiginosamente para a fixação estilística de uma língua nacional. Os parnasianos, e talvez seu maior crime, deformaram a língua nascente, “em prol do estilo” (...) Essa foi a grande transformação. Uma necessidade de maior extensão de cultivo intelectual para o poeta atingiu também a poesia. Da língua boa passou-se para a língua certa (PNM-EP, [1944]1972, p. 11-12).
87
Esses enunciados mostram o embate entabulado no espaço discursivo
constituído pelas formações discursiva modernista e conservadora em torno da
identidade linguística brasileira, a primeira na condição de agente e a segunda
na condição de paciente, o que determina a direção dos simulacros. Como
modernista, Mário teve de se haver diretamente com os parnasianos, que
representam uma reação contra o projeto de abrasileiramento da língua
nacional iniciado com vigor pelos românticos.
Observamos que Mário de Andrade introduz o Outro em seu discurso na
forma do simulacro que dele constrói. Na SD3, refere-se ao purismo linguístico,
abonado e praticado pelos parnasianos, como “gramatiquice” e na SD4 como
“culteranismo”. Ambas as designações revestem-se de um caráter pejorativo,
na medida em que nomeiam práticas linguísticas na contramão do movimento
de constituição de uma identidade linguística brasileira. Assumindo, pois, a
posição de discurso agente, o discurso de Mário se ocupa em interpretar e
traduzir o discurso paciente, segundo os semas negativos de sua própria
formação discursiva, realizando do Outro o que Maingueneau chama de
interincompreensão (2005a, p. 114). Os semas positivos da formação
discursiva parnasiana tornam-se negativos quando lidos por um sujeito
interpelado pela formação discursiva modernista.
Livrando a cara de Machado de Assis, Mário, na SD3, achincalha os
escritores parnasianos que, como os “Bilaques e outros muito piores, Coelho
Neto e a genialidade dos bons colocadores de pronomes à portuguesa”,
transformaram a linguagem brasileira que vinha se formando com os
românticos, numa língua sem vida (“oficial”, “gélida”), importada, estrangeira
(“ver um Ministério das Relações Exteriores”).
Na SD4, novamente nos deparamos com a interincompreensão do
discurso agente em relação à posição parnasiana de seguir “as gramáticas
lusas”, interrompendo “aquela franca tendência pra escrever apenas pondo em
estilo gráfico a linguagem falada, com que os românticos estavam caminhando
vertiginosamente para a fixação estilística de uma língua nacional”. Pelo seu
posicionamento discursivo a favor do purismo, os parnasianos são significados
como aqueles que “deformaram a língua nascente, em prol do estilo”, como
88
aqueles que estancaram o processo de constituição de uma identidade
linguística brasileira, como aqueles que passaram da “língua boa” à “língua
certa”. “Língua boa” é aquela adequada para exprimir a alma brasileira,
coerente com o projeto político-estético modernista de emancipação cultural e
linguística em relação aos modelos portugueses; já “língua certa” é aquela que
obedece fielmente às normas gramaticais lusas, mas se mostra inadequada
como instrumento de expressão de uma literatura brasileira.
Assim, a SD3 e a SD4 ilustram o processo de interincompreensão entre
a formação discursiva modernista e a formação discursiva conservadora e a
produção de simulacros da segunda pela primeira que ocupa a posição de
agente e tradutora. Para garantir seu espaço, o discurso modernista procura
rebaixar, desautorizar, desacreditar o discurso conservador, criticando a sua
dependência com relação aos padrões linguísticos e estéticos europeus,
alinhamento ideológico-discursivo que contraria o postulado central da
formação discursiva modernista que tem, entre seus enunciados-chave, aquele
de abrasileiramento da língua, em consonância com o que já vinham fazendo
os escritores românticos. Disso, decorre a relação de aliança que a formação
discursiva modernista demonstra entreter com a formação discursiva
romântica. Para mostrar que se coloca no lado oposto dos “Bilaques” &
companhia, dos “colocadores de pronome à portuguesa”, dos que seguem uma
língua morta, uma língua estrangeira, Mário afirma, em contraponto, na SD3: “E
abrasileirei a minha língua”, legitimando uma prática linguística que considera
mais coerente com o seu país.
Mário sempre buscou coerência entre o que pregava e o que fazia. Se
se colocava a favor do abrasileiramento da língua, então ele mesmo deveria
escrever usando brasileirismos, apesar de a crítica conservadora taxá-los de
vícios de linguagem a serem evitados. Essa coerência entre o discurso e a
prática era veemente cobrada por ele de si e de seus colegas modernistas.
Certamente, quando, por algum lapso, recaía no padrão gramatical luso, não
faltava quem lhe apontasse as contradições. A SD5, a seguir, é um bom
exemplo disso:
89
SD5 - Não tem dúvida que me contradisse empregando mais pra
diante o ‘chamar-lhe-iam’. Foi um lusitanismo que me escapou (CMB, [1925]1958, p. 91).
A colocação pronominal sempre esteve no centro das polêmicas em
torno das diferenças entre o português europeu e o português do Brasil. “É raro
o dia em que (as prédicas públicas a serviço do fetiche gramatical) não
apregoam a receita dos pronomes”, diz Mário Alencar no texto que denominou
de Período Pronominal ([1919] 1981, p. 458). Enquanto os falantes
portugueses tendiam para a ênclise, os brasileiros preferiam a próclise. A
tendência para a próclise era tão forte no Brasil que Alencar chegou a escrever
ter calado as razões e entregue “a cerviz à canga da proclítica” (ALENCAR,
[1919] 1981, p. 458). Todavia, nada soa tão estranho a um brasileiro quanto a
mesóclise. A mesóclise é a inserção do pronome oblíquo no meio do verbo e,
segundo prescreve a norma padrão, deve ser usada com as formas do futuro
do presente e do pretérito que não admitem ênclise. Com verbos nesses
tempos, quando não houver restrição para a próclise, ela pode ser usada,
porém, quando houver, deve-se usar a mesóclise. Por exemplo, se um verbo
do futuro do presente ou do pretérito começa o período, não pode ser usada a
próclise, porque a legislação gramatical lusa determina que “não se deve iniciar
período com pronome átono”.
Para fugir de uma mesóclise, os brasileiros chegam a mudar a estrutura
sintática da oração. Contudo, os muitos anos de contato com a gramática
prescritiva e a norma padrão acabam infundindo hábitos linguísticos que se
tornam automáticos, principalmente entre aqueles que frequentam
assiduamente a cultura letrada. Mário de Andrade se dizia conhecedor das
normas gramaticais e até ter escrito um de seus textos ensaísticos de acordo
com elas: “Eu tenho certeza de conhecer suficientemente a língua portuguesa
pra escrever nela sem batatas e em suficiente estilo” (EGFB-GMA, [1928]
1990, p. 45). Se desobedecia a legislação gramatical portuguesa não era
porque não dominava suas leis, mas sim porque via a literatura como um
espaço de luta, propício à constituição de uma identidade linguística brasileira.
Assim, na SD5 fala um sujeito dividido entre as constâncias do
português brasileiro e as normas da gramática lusa. Mário parece responder a
uma cobrança de coerência feita por alguém que flagrara o “retorno do
90
recalcado” – a mesóclise – num de seus textos. Ele, um defensor do
abrasileiramento da língua, é surpreendido colocando o pronome de um modo
genuinamente luso. Admite ter se contradito, ao dizer “foi um lusitanismo que
me escapou”. O verbo “escapar” sugere que o “lusitanismo”, ou seja, a
mesóclise foi um ato falho e não algo intencional. Ele não pretendeu usá-la,
mas, como ensina a teoria freudiana, os elementos recalcados não só não são
aniquilados, como tendem a reaparecer inoportunamente por caminhos mais
ou menos desviados, como os derivados do inconsciente, tais os atos falhos.
De acordo com Mussalim (2005, p. 134), “o sujeito da AD se movimenta entre
dois pólos sem poder definir-se em momento algum como um sujeito
inteiramente consciente do que diz”. Como o discurso, “o sujeito é
constitutivamente heterogêneo” e essa heterogeneidade frequentes vezes foge
ao controle do imperativo da coerência que busca manter a posição outra bem
escondida no avesso do enunciado.
A recaída na mesóclise nos sugere que o enunciador Mário de Andrade
habita um “entre-lugar” (BHABHA, 2005) que explode a polarização entre
passado e presente, tradição e modernidade, identidade e diferença, civilização
e cultura, interior e exterior, inclusão e exclusão, língua portuguesa e língua
brasileira. Ao invés da “negação” do passado, da tradição, da civilização, da
identidade alienada, da língua portuguesa, podemos, com Bhabha (2005, p.
51), falar em “negociação de instâncias contraditórias e antagônicas, que
abrem lugares e objetivos híbridos de luta e destroem as polaridades negativas
entre o saber e seus objetos e entre a teoria e a razão prático-política”.
Contudo, Bhabha nos adverte para o risco de o termo “negociação” ser
entendido pelo viés do discurso sindicalista como pacificação de conflitos e
como acordo entre as partes. Tal como ele a entende, a “negociação” junta “os
elementos antagônicos e oposicionais sem a racionalidade redentora da
superação dialética ou da transcendência” (BHABHA, 2005, p. 52); ela nem
dissolve e nem resolve os confrontos, apenas os traduz. A mesóclise é, assim,
o elemento colonial rasurado que a luta pela descolonização linguística quer
silenciar por um processo de amnésia, mas que está pronto para ressurgir,
uma vez que a “tradução é a abertura de um outro lugar cultural e político de
enfrentamento no cerne da representação colonial” (Idem, p. 62). Trata-se,
pois, de uma visão da cultura não como uma unidade fechada e estável, mas
91
como “zona de instabilidade oculta onde o povo reside” (Idem, p. 65) e que faz
com que cada um de nós aja como um sujeito cindido, contraditório,
fragmentado, movente, não raro inconsciente do que pensa e diz, muito
diferente daquela imagem do sujeito cartesiano, uno, coerente, inteiro, imóvel,
consciente do que pensa e diz.
Na SD6, a seguir, o enredamento interdiscursivo entre a formação
discursiva modernista e a conservadora pode ser novamente observado na
explicação que o enunciador fornece para o fato de ainda não termos uma fala
propriamente brasileira.
SD6 – (A fala brasileira) Inda não existe. No entanto na pronúncia temos já uma língua inteiramente apartada da fala portuga. Essa pronúncia e todos os fenomenologia [sic] fonética já nos teriam levado pra outra fala si não fosse a reação erudita (EGFB-GMA, [1928]1990, p. 51).
Na SD6, a existência da “fala brasileira” emerge como um alvo do
projeto modernista, uma vez que o enunciado “Inda não existe” faz supor que
ela era visada. É o advérbio ‘Inda’ (ainda) que traz à tona o sentido de que a
constituição da fala brasileira estava inclusa no projeto de nacionalização do
Brasil, uma vez que ele ficara a meio termo com a independência política de
Portugal. Contudo, apesar de não existir uma fala integralmente brasileira, em
termos da “pronúncia” e dos “fenômenos fonéticos”, ela já se apresenta
“apartada da fala portuga”. Tais características já teriam levado “pra outra fala”,
ou seja, para “a fala brasileira”, “não fosse a reação erudita”. O sintagma “a
reação erudita” evoca as fricções entre o discurso modernista e o discurso
conservador no espaço discursivo aqui focalizado. À ação modernista em prol
da constituição de uma identidade linguística brasileira, inalienável da
emancipação literária em relação aos modelos clássicos portugueses,
correspondia a re-ação dos conservadores, que insistia em manter a sujeição
ao padrão gramatical impingido pela metrópole lusitana. Destarte, o termo
“reação” torna presente, nessa sequência, o processo de interincompreensão
que fomenta a polêmica entre modernos e conservadores no que tange à
constituição de uma identidade linguística nacional. A SD6 é também um bom
exemplo do que significa enunciar sobre a língua brasileira no entre-lugar, no
92
espaço das contradições e da ambivalência entre os discursos modernista e
conservador, no lugar da indecidibilidade e da hesitação. Nesse lugar, não
podemos estranhar que um enunciador diga que “a fala brasileira inda não
existe”, para, logo em seguida, afirmar que ela, na pronúncia, é “já uma língua
inteiramente apartada da fala portuga”. Ele afirma o contraditório: ela não
existe, mas existe. E assim enuncia não porque esteja privado de sua razão,
mas porque se encontra num entre-lugar, como alguém que viveu/vive “longas
e tirânicas histórias de dominação e reconhecimento” (BHABHA, 2005, p. 65) e
a experiência agônica de não conseguir se desvencilhar do fantasma do Outro.
Na SD7, Mário refere-se à “mocidade geral do Brasil”, como aliada na
luta pela constituição de uma identidade linguística brasileira:
SD 7 - Por outro lado nós vemos a mocidade geral do Brasil, bem ou mal fazendo, exagerando ou não, combatendo ou não: o certo é que despercebida de Portugal e das regras, normas e exemplos da tradição linguística de lá. E goste ou desgoste quem quer que seja, essa mocidade predomina e está fazendo o Brasil (TFB-TCDN, [1929]1976, p. 112).
No início do enunciado, o conector “por outro lado” faz supor que, se
“por um lado” havia a reação erudita dos conservadores, “por outro lado” havia
o apoio da mocidade que, “despercebida de Portugal e das regras, normas e
exemplos da tradição linguística de lá”, estava “fazendo o Brasil”, ou melhor,
estava ajudando a completar o processo de nacionalização do país. O termo
“despercebida” introduz um posicionamento de Mário que se tornaria uma
constante nos seu textos – o de não mais opor Brasil a Portugal, o de não mais
reagir contra o colonizador, como mostrarão as SD8, 9, 10 e 11, a seguir. Não
seria pela pena daqueles que brigam com Portugal, que a fala brasileira
avultaria como a fala geral da nação, mas sim pela “mocidade” que, sem se
importar com Portugal, sem medo de errar e exagerar e sem se importar com
as críticas, vai fixando os padrões linguísticos e literários brasileiros. Mário
demonstra indiferença em relação àqueles que desgostam do que a
“mocidade” vem fazendo, já que ela “predomina e está fazendo o Brasil”. Na
SD7, Mário de Andrade reconhece a força da escrita da juventude como prática
política que está produzindo a autonomia linguística do Brasil, que está fazendo
93
um Brasil independente. Trata-se, pois, de sublinhar o valor de uma política
exercida pela escrita literária, para além da mera militância nacionalista.
Nos enunciados anteriores observamos a polêmica entre o discurso
conservador e o discurso modernista, pelo viés de um enunciador interpelado
pelo modernismo. Então, vamos observar a polêmica no escopo mesmo do
discurso modernista, uma vez que Mário desafina em relação a algumas
posturas abonadas por ele, como a de insurreição contra Portugal, tão visível
nas SD8 a SD11:
SD8 - Os escritores nacionais célebres têm às vezes incitado,
aconselhado a libertação nossa de Portugal – João Ribeiro, Graça Aranha. Principiam por um erro: opor Brasil e Portugal. Não se trata disso. Se trata de ser brasileiro e não nacionalista. Escrever naturalmente brasileiro sem nenhuma reivindicação nem queixa (EGFB-GMA, [1928]1990, p. 48).
SD9 - Acho engraçado essa mania de certa gente que pra ser duma nação carece do dinamismo de qualquer ideia antagônica pra ser nacional. Bobagem. Não se trata de nacionalismo reivindicador, minha gente. Isso é ridículo. Se trata de ser brasileiro e nada mais. E prá gente ser brasileiro não carece agora de estar se revoltando contra Portugal e se afastando dele. A gente deve ser brasileiro não pra se diferençar de Portugal porém porque somos brasileiros. Brasileiros sem mais nada. Brasileiros. Sentir, falar, pensar, agir, se exprimir naturalmente. Como brasileiro. Criar esses antagonismos e lá se vai a integração no Cosmos por água abaixo. Inda mais: não-somos-a-câmara-mortuária-de-Portugal cria logo a ideia de se diferençar forçadamente de Portugal o que é um erro. Nós descendemos em muito de nós de Portugal. Temos é natural por hereditariedade muitos costumes, expressões, jeitos, ações evolucionadas do portuga. Até intactos quase, alguns... E vai a gente os afasta da expressão portuguesa. Porque? Por causa do não-somos-a-câmara-mortuária-de-Portugal. É um erro porque esses sentimentos, costumes, expressões e ações são agora tão nossos quanto dos portugas. [...] Está certo. Ora aplicando o caso à língua o que a gente tem de fazer é isso: ter a coragem de falar brasileiro sem si amolar com a gramática de Lisboa. Dar cada um a sua solução pessoal de falar brasileiro pra que depois um dia os gramáticos venham a estabelecer a gramática do Rio de Janeiro. Está certo. Vejam bem: falei “sem se amolar com a gramática de Lisboa” e não “se opondo à gramática de Lisboa”. Não se trata de reação contra Portugal. Trata-se duma independência natural, sem reivindicações, sem nacionalismos, sem antagonismos, simplesmente, inconscientemente. Se trata de “ser”. O brasileiro tem direito de ser (EGFB-GMA, [1928]1990, p. 332-333).
SD10 - Assim não é contra a língua portuguesa que eu reajo. Eu só raciocino isto: A gente é um povo livre, um povo com entidade social, falando a sua fala. Ora que que tem que ver essa fala com o
94
português! É nossa fala, pouco me importa agora que venha dum pai portuga com tangente pelas fêmeas negras e tapuis. É minha fala. É minha? É. Então falo o brasileiro, observando o brasileiro que se fala no Brasil e introduzindo nele minha individualidade (EGFB-GMA, [1928]1990, p. 377).
SD11 - Não reaja não. Reagir enfraquece. Quando me senti escrevendo brasileiro primeiro que tudo pensei e estabeleci: Não reagir contra Portugal. Esquecer Portugal, isso sim. É o que fiz (CMB, [1929]1958, p. 222).
Podemos dizer que as sequências discursivas de 8 a 11 entretêm uma
relação parafrástica. Isso significa que elas divergem quanto à forma, mas
convergem quanto ao sentido, ou seja, quanto ao modo de o enunciador
interpretar a relação entre Brasil e Portugal no tocante à questão linguística.
Mário desaprova o nacionalismo reivindicador do modernismo que tinha por
princípio a ruptura com a língua, a literatura e a gramática d’além mar como
caminho para a constituição de uma identidade linguística brasileira, bem como
de uma literatura emancipada da portuguesa. No quadro a seguir, observamos
os enunciados que poderiam ser ditos por um modernista qualquer, a exemplo
de João Ribeiro e Graça Aranha, mencionados na SD8, em comparação com
aqueles ditos por Mário de Andrade:
Posição modernista geral Posição modernista de Mário
- opor Brasil e Portugal Não se trata disso (opor Brasil a Portugal).
- carecer de ideia antagônica pra ser nacional
Não se trata de nacionalismo reivindicador, minha gente. Isso é ridículo. Se trata de ser brasileiro e nada mais
- revoltar-se contra e afastar-se de Portugal
E prá gente ser brasileiro não carece agora de estar se revoltando contra Portugal e se afastando dele.
- diferençar-se forçadamente de Portugal A gente deve ser brasileiro não pra se diferençar de Portugal porém porque somos brasileiros. Brasileiros sem mais nada. Brasileiros. Sentir, falar, pensar, agir, se exprimir naturalmente. Como brasileiro.
- amolar-se com a gramática de Lisboa [...] o que a gente tem de fazer é isso: ter a coragem de falar brasileiro sem si
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amolar com a gramática de Lisboa.
- opor-se à gramática de Lisboa
Vejam bem: falei “sem se amolar com a gramática de Lisboa” e não “se opondo à gramática de Lisboa”.
- reagir contra Portugal Não reagir contra Portugal. Esquecer Portugal, isso sim.
- ser nacionalista
- ser reivindicador
- ser antagonista
Se trata de ser brasileiro e não nacionalista. Escrever naturalmente brasileiro sem nenhuma reivindicação nem queixa.
Brasileiros sem mais nada. Brasileiros. Sentir, falar, pensar, agir, se exprimir naturalmente. Como brasileiro.
Trata-se duma independência natural, sem reivindicações, sem nacionalismos, sem antagonismos, simplesmente, inconscientemente. Se trata de “ser”’. O brasileiro tem direito de ser.
Como todos aqueles que falam interpelados pelo discurso modernista,
Mário de Andrade também cultivava o projeto de abrasileirar a língua nacional.
Porém, enquanto a maioria dos modernistas entendia o processo de
abrasileiramento da língua nacional como antagonismo, oposição, reação,
reivindicação de independência, a julgar pelos predicados listados na primeira
coluna do quadro anterior, Mário o entendia como um dar de ombros a
Portugal, como ter o direito de falar brasileiro sem se preocupar com o modo de
falar de Lisboa ou Coimbra. Estamos diante de um caso de polêmica interna a
um mesmo discurso, o discurso modernista. O enunciador comunga com seus
companheiros de modernismo várias teses, mas diverge deles em relação à
postura belicosa assumida contra aquilo que vem de Portugal.
Por essa razão, é abundante o uso da negação polêmica, materializando
o confronto de pontos de vista. Via de regra, a negação polêmica expressa o
confronto de posições originárias de formações discursivas antagônicas,
contudo, aqui, o confronto se dá em torno de uma questão localizada no
escopo do próprio modernismo. A cada enunciado modernista clássico, urdido
com base no antagonismo Brasil/Portugal, Mário replica com uma negação,
recorrendo a termos como “não”, “sem”, “nenhuma”. Se o enunciado é “Reagir
contra Portugal”, Mário devolve “Não reagir contra Portugal. Esquecer Portugal,
96
isso sim”. Se o enunciado prega: “Amolar-se com e opor-se à gramática de
Lisboa”, Mário replica: “[...] o que a gente tem de fazer é isso: ter a coragem de
falar brasileiro sem si amolar com a gramática de Lisboa”, valendo-se,
inclusive, de uma sobreasseveração (MAINGUENEAU, 2008b), para enfatizar
seu posicionamento discordante em relação aos demais modernistas: “Vejam
bem: falei ‘sem se amolar com a gramática de Lisboa’ e não ‘se opondo à
gramática de Lisboa’”.
Na SD9, na qual Mário é mais contundente na defesa de sua posição
contrária ao anti-lusitanismo hegemônico à época, há uma retomada de um
texto de Graça Aranha, denominado O Espírito Modernista, apresentado, como
conferência, na Academia Brasileira de Letras, em 1924. Nesse texto, Graça
Aranha critica o espírito servil dos brasileiros que sempre renunciam a energia
de criar em favor da cópia e da imitação. A Academia, segundo ele, traz a “face
da morte”, em contraste com a vida que pulsa por toda a terra brasileira. Essa
conferência é, na verdade, uma convocação dirigida aos acadêmicos para
rever seu posicionamento de vassalagem aos escritores portugueses e
europeus, a fim de ampliar a separação de Portugal, completando a obra de
nacionalização do Brasil. No trecho de Graça Aranha, a seguir, podemos
observar a posição antagônica a Portugal que Mário tanto critica nos seus
pares:
Em vez de tendermos para a unidade literária com Portugal, alarguemos a separação. Não é para perpetuar a vassalagem a Herculano, a Garret e a Camilo, como foi proclamado no nascer a Academia, que nos reunimos. Não somos a câmara mortuária de Portugal.
Já é demais este peso da tradição portuguesa, com que se procura atrofiar, esmagar a nossa literatura. É tempo de sacudirmos todos os jugos e firmarmos definitivamente a nossa emancipação espiritual. A cópia servil dos motivos artísticos ou literários europeus, exóticos, nos desnacionaliza. (ARANHA, [1924] 1981, p. 48). (destaque nosso)
É desse trecho de Graça Aranha que Mário extrai a frase “não somos a
câmara mortuária de Portugal” e a transforma num nome composto “não-
somos-a-câmara-mortuária-de-Portugal”, citado na SD9. Metaforicamente, a
frase dita por Aranha condensa a insurreição dos modernistas em relação aos
97
modelos portugueses a que até mesmo os membros da Academia
equivocadamente se curvavam. É uma espécie de “puxão de orelha” nos
colegas de fardão.
Ao dizer que o Brasil não era a “câmara mortuária de Portugal”, quer
dizer, que o Brasil não era um caixão onde os portugueses poderiam enterrar
seus mortos, ou ainda, que o Brasil não era um continente a ser preenchido
com a literatura alheia, Aranha, interincompreendendo o discurso conservador,
traduz a prática de importar e copiar a tradição portuguesa por meio de uma
metáfora-simulacro. Se, no discurso conservador, a cópia era bem vista, no
modernista, ela passava a ser mal vista. A tradição portuguesa era lida como
“tradição morta”, “tradição defunta”, para a qual o Brasil seria o caixão, a urna
funerária.
O autor era tão incisivo quando defendia a ruptura com Portugal que, no
texto O espírito acadêmico (ARANHA, 1981, p. 49), um parecer sobre o projeto
de reforma das funções da Academia, explicita claramente, no item 2, que a
instituição não aceitará para seus concursos “poesias parnasianas, árcades e
clássicas” e “obras de histórias estrangeiras, antiga ou moderna”. Em relação
às obras históricas brasileiras, dispõe que elas sejam “tratadas com espírito
crítico moderno, que sabe situar o passado e libertar-se do passadismo”. Além
disso, no item 4, determina que os trabalhos premiados e publicados pela
Academia usem “[...] a linguagem corrente, usual, expurgada de todo o
arcaísmo ou de expressão do denominado classicismo verbal português”.
É, pois, do anti-lusitanismo exacerbado dos modernistas, sintetizado
pelo enunciado “não somos a câmara mortuária de Portugal”, destacado e
citado a partir do texto de Aranha, que Mário se afasta na SD9, ao dizer que o
“[...] não-somos-a-câmara-mortuária-de-Portugal cria logo a ideia de se
diferençar forçadamente de Portugal o que é um erro”. No lugar do enunciado-
nome “não-somos-a-câmara-mortuária-de-Portugal”, poderiam figurar, como
sinônimos, termos como “antagonismo”, “oposição” etc., assim: “o antagonismo
cria logo a ideia de se diferençar forçadamente de Portugal o que é um erro”.
Se o poder português não se fazia mais sentir no campo da política e da
economia, ele era ainda muito ostensivo no campo da cultura e da língua. E,
segundo Foucault, onde há poder, há resistência. Aliás, a resistência não é
“anterior ao poder que ela enfrenta. Ela é coextensiva a ele e absolutamente
98
contemporânea” (FOUCAULT, 1982, p. 241). Na medida em que o poder
português ainda se fazia sentir no campo das Letras e da cultura brasileira, o
movimento modernista representava uma forma de resistência que abria, a
ferro e fogo, espaços de luta contra a hegemonia das normas linguísticas e dos
cânones literários portugueses. Menos visíveis do que a colonização e o poder
exercidos sobre o território e os corpos dos brasileiros, a colonização e o poder
exercidos sobre a cultura, a língua e a alma não haviam cessado um século
depois do acontecimento da Independência, daí a resistência e a transgressão
dos modernistas.
Assim, quando Mário criticava a oposição que os seus companheiros de
modernismo faziam a Portugal, muito provavelmente não era contra a
resistência em si que se opunha, mas contra a estratégia de antagonismo
declarado usada por eles. Ele via como necessária a mudança dessa
estratégia de guerra para outra aparentemente não beligerante, que seria a de
ignorar, ou melhor, a de deixar de se importar com o inimigo – afirmar-se como
brasileiro sendo brasileiro, escrevendo brasileiro, produzindo literatura e cultura
brasileira e não brigando com Portugal. Tanto mais literatura e saber brasileiros
produzíssemos, mais aptos para nos afirmarmos com “ser brasileiro” diante das
outras nações estaríamos. Vemos, pois, um deslizamento do termo “brasileiro”
da condição de adjetivo que qualifica uma língua, uma fala ou um povo para a
condição de um substantivo que designa o homem de origem brasileira. Há
uma espécie de “entização” do brasileiro (“Se trata de “ser”’. O brasileiro tem
direito de ser”). Imaginado como um “ente”, como um ser que já existe, como
um ser que já é, o brasileiro pode ser/falar naturalmente brasileiro sem ter de
se apartar da língua do Outro, a ponto de poder declarar algo que soa como
um nonsense: “Todas as palavras de todas as línguas do mundo pertencem à
fala brasileira” (EGFB-GM, 1990, p.375). Na sua condição de “ente”, o
brasileiro deveria participar da construção de uma nação distinta e emancipada
de Portugal sem que isso tivesse de ser expresso em uma “língua diferente” da
portuguesa, enfim ele poderia participar do “movimento de construção do
nacional sem ‘nacionalismos’” (BUSCÁCIO, 2010, p. 16).
Também não podemos deixar de considerar que Mário era um
internacionalista convicto. A rivalidade e a guerra linguística e literária contra
Portugal lhe soavam equivocadas, já que pensava “o ser brasileiro” não
99
enclausurado pelas fronteiras nacionais. Ele defendia o ponto de vista de que
podíamos ser brasileiros sem sermos estreitamente nacionalistas, de que
poderíamos ter uma voz própria, reconhecida mundialmente, sem necessidade
de nos apartarmos por completo de Portugal, pois o antagonismo atrapalharia a
ligação com o Cosmos. Diz Mário: “Criar esses antagonismos e lá se vai a
integração no Cosmos por água abaixo”. Era como uma expressão nova que a
fala brasileira deveria fazer parte do concerto internacional e não como uma
fala em guerra contra Portugal. “Reagir enfraquece”, pois quebra o vínculo com
o Cosmos. Não foi apenas por essa posição que Mário se apartou dos
modernistas no que toca ao anti-lusitanismo, mas também por reconhecer que
estávamos inextricavelmente ligados a Portugal: “Temos é natural por
hereditariedade muitos costumes, expressões, jeitos, ações evolucionadas do
portuga. Até intactos quase, alguns... E vai a gente os afasta da expressão
portuguesa. Porque? Por causa do não-somos-a-câmara-mortuária-de-
Portugal. É um erro porque esses sentimentos, costumes, expressões e ações
são agora tão nossos quanto dos portugas” (SD9). Finalmente precisamos
lembrar que, para Mário, não ser anti-lusitanista não significava ser lusitanista,
significava apenas “não se importar com Portugal”, “esquecer Portugal”,
significava ser brasileiro “naturalmente”, “simplesmente”, “inconscientemente”,
“sem mais nada”, “sentir, falar, pensar, agir... Como brasileiro”.
Nas SDs 8 e 9, há uma insistência no uso do predicado “ser brasileiro”
em contraposição a “ser nacionalista”. Tais predicados nominais, que, à
primeira vista, poderiam ser percebidos como sinônimos, quando remetidos às
condições sócio-histórico-ideológicas em que Mário enunciou sobre a
língua/fala brasileira, assumem sentidos distintos. Nesse espaço-tempo, havia,
em meio à intelligentsia, uma vontade coletiva de constituição da
nacionalidade, mas essa vontade significava coisa muito diferente se ela fosse
a vontade do legitimista ou a do modernista. A nação significava coisa muito
diferente para um e para outro. A reivindicação de “ser nacionalista” não
necessariamente incluía o imperativo de falar brasileiro. Por exemplo, entre os
legitimistas que conviveram com Mário, a vontade coletiva de nação poderia
significar a defesa, como língua nacional, de um português puro, o mais fiel
possível àquele de Portugal. Afinal, a unidade imaginária da nação vinculava-
se simplesmente a uma suposta unidade linguística, garantida pelo
100
reconhecimento de uma língua nacional, independentemente de essa língua ter
sido legada pelos nossos colonizadores, como podemos inferir dos enunciados
seguintes:
A degeneração de um povo, de uma nação ou raça, começa pelo desvirtuamento da própria língua. (Rui Barbosa)3.
[...] porque só a instrução primária pode conservar e expandir no país o uso da língua que nossos avós nos legaram – e o que constitui a nacionalidade é propriamente a língua nacional. A pátria não é a raça, não é o meio, não é o conjunto dos aparelhos econômicos e políticos: é o idioma criado ou herdado pelo povo. [...] A morte de uma nação começa pelo apodrecimento de sua língua (BILAC, apud Pinto, 1978, Vol. I, p. 365).
Isso significava expiar a língua portuguesa dos feios aleijões
introduzidos pelo povo, dos solecismos e, principalmente, dos estrangeirismos
que ameaçavam a soberania nacional. Para os legitimistas, o idioma pátrio era
a língua portuguesa, cabendo-lhe o papel de guardiões da sua pureza, da sua
correção. Destruir sua integridade significava destruir a integridade nacional.
Entre eles, o binômio uma nação/uma língua atualizava-se como Brasil/Língua
Portuguesa. Porém, se a vontade coletiva de nação fosse a dos modernistas, o
desejo de “ser brasileiro” incluía o imperativo de falar brasileiro. Entre eles, o
binômio nação/língua atualizava-se como Brasil/falar brasileiro. A forma “ser” é
a cópula que liga um sujeito a um predicado que lhe é essencial – ser brasileiro
é falar brasileiro. Mas se falar brasileiro não significa falar português, também
não significa não falar português, uma vez que o português (“formas evoluídas
ou até intactas de português”) encontra-se inextricavelmente enredado na fala
brasileira.
Dessa forma, nas SDs 8, 9, 10 e 11, Mário de Andrade apresenta-se,
pois, como enunciador que fala do entre-lugar, onde o hibridismo, a
mestiçagem, desfaz a polarização entre português e brasileiro: “É nossa fala,
pouco me importa agora que venha dum pai portuga com tangente pelas
fêmeas negras e tapuis” (SD10), que seja fruto de interações mamelucas,
3 http://www.frasescurtas.com.br/2011/07/frases-de-impacto-textos-polemicos.html
101
mulatas ou cafusas. O (inter)nacionalismo marioandradino não se equacionava,
pois, nem à cultura civilizada nem à cultura em sentido telúrico, mas
vislumbrava uma negociação entre elas. Como afirma Bhabha (2005, p. 51), a
negociação em lugar da negação refere-se a “uma temporalidade que torna
possível conceber a articulação de elementos antagônicos ou contraditórios”. A
expressão mais contundente da clivagem do sujeito na negociação de posições
antagônicas encontra-se materializada no fio do enunciado por meio da
denegação presente em: “Não reaja não. Reagir enfraquece”, uma forma de
negação que recai sobre enunciados do próprio discurso modernista, na
medida em que o desejo incontido de reagir contra Portugal se apresenta por
meio da negação. Deparamo-nos aqui com o sujeito consciente debatendo-se
com o sujeito do inconsciente para trazer à tona aquilo que funciona na forma
do esquecimento.
As análises realizadas nesta seção abonam a tese de que um discurso é
sempre heterogêneo, sempre permeado por outros discursos com os quais
estabelece relações de aliança, de confronto, de concorrência, de dissensão ou
de neutralidade. Essa tese pode ser associada ao conceito de esquecimento
número um proposto por Pêcheux (1988), segundo o qual “temos a ilusão de
ser a origem do que dizemos quando, na realidade, retomamos sentidos pré-
existentes” (ORLANDI, 2007, p. 35). Os sentidos estão inscritos “na língua e na
história e é por isto que significam e não pela nossa vontade” (ORLANDI, 2007,
p. 35).
De igual modo, abonam a tese da polêmica como interincompreensão
entre universos semânticos relativos a discursos que partilham algum fundo
comum, mas divergem quanto ao modo de interpretá-lo. Sem que o fundo
comum seja reconhecido pelos enunciadores que falam interpelados por
diferentes discursos que integram um campo, não há polêmica, pois, para que
ela exista, é preciso subsumir que se fala sobre uma mesma coisa, ainda que
por diferentes vieses interpretativos. No caso aqui estudado, modernistas e
conservadores compartilham a percepção de que o português falado-escrito no
Brasil não é o mesmo de Portugal, contudo, divergem quanto à forma de
interpretar essa alteridade. Conservadores tendem a interpretar a mudança
como nociva ao português lusitano, como destruição de sua pureza;
modernistas interpretam-na como benéfica, como transformação natural do
102
português que, em outra formação social, entrou em contato com outras
línguas. Como cada um desses discursos interpreta a alteridade linguística
segundo um ponto de vista próprio, quando se depara com o ponto de vista
outro, não o compreende senão como aquilo que rejeita, traduzindo-o por meio
de simulacros. Por exemplo, os modernistas interpretam o culto e a idolatria do
passado literário e linguístico português, praticado pelos parnasianos, como
fazer do Brasil “a-câmara-mortuária-de-Portugal”. A essa língua morta, vinda da
velha Europa, opunham a língua viva – brasileira – que estava se constituindo
no novo mundo.
3.5 Da transposição erudita dos barbarismos
O título desta seção constitui um decalque da expressão “a transposição
erudita da barbárie”, cunhada por Mário de Andrade no artigo “Villa-Lobos”,
publicado em primeira mão no Diário Nacional no dia 12/09/1929, para
expressar a ideia nuclear à arte modernista, que consistia em costurar temas e
elementos populares por meio de técnicas artísticas eruditas, segundo a
subjetividade do artista. Nesta seção, vamos, primeiro, focalizar os nomes
pelos quais Mário de Andrade se refere ao português brasileiro, observando
sua variação ao longo do período coberto por este estudo (1922 a 1942). Em
seguida, vamos refletir sobre as ideias linguísticas de Mário de Andrade que
fazem dele um sociolinguista antes mesmo de a (socio)linguística existir como
ciência. Finalmente, exploramos a relação entre os projetos linguístico,
artístico, político e ético de Mário de Andrade, dando relevo à empreitada de
“estilizar o brasileiro vulgar” como condição para alçá-lo à condição de uma
cultura civilizada universal.
3.5.1 Da categorização e nomeação da variedade linguística falada no
Brasil
Como o modernista Mário de Andrade categoriza a entidade linguística
brasileira que, cada vez mais, se faz outra em relação à lusitana? Albuquerque
e Cox (1997) observaram que, entre os românticos, não havia unanimidade
103
quanto à categorização dessa diferença, para uns se tratava de uma variação
dialetal e, para outros, de uma variação mais profunda, considerada como uma
nova língua nascente. Essa oscilação observada entre os românticos parece se
repetir entre os escritores modernistas, a julgar pelo que se atesta no conjunto
de SDs recortadas da obra de Mário de Andrade.
No período coberto por esta pesquisa, Mário de Andrade reformulou seu
ponto de vista inúmeras vezes. Conforme Pinto (1981, p. XII), Mário de
Andrade “não só retocou e reformulou constantemente seu pensamento sobre
a língua do Brasil, mas também o divulgou concomitantemente em livros,
cartas pessoais, conferências e artigos para periódicos”, gerando um arquivo
farto e variado de textos acerca das questões linguísticas que o tocaram de
perto.
Entre os anos de 1922 e 1925, considerada a primeira fase do autor, sua
fase mais revolucionária, Mário assume uma posição separatista forte,
referindo-se à língua brasileira como se ela já existisse, conforme podemos
observar nas SD12, 13, 14 e 15 seguintes:
SD12 - A língua brasileira é das mais ricas e sonoras. E possui o admirabilíssimo “ão” (PI-PD-PC, [1922] 1993, p. 67). SD13 - Pronomes? Escrevo brasileiro (PI-PD-PC, [1922] 1993, p. 74). SD14 - No losango caqui que traduzi inteirinho pro brasileiro (CMB, [1925] 1958, p. 87). SD15 - No brasileiro a preposição “a” quase não existe, estará destinada a desaparecer? Não sei. Em todo caso ficará limitada a muito poucas regências (CMB, [1925] 1958, p. 89-90).
Nesse conjunto de SDs, a língua é referida pelo autor como “língua
brasileira” ou simplesmente como “brasileiro”, reiterando o procedimento
lexicológico habitualmente utilizado na nomeação de outras línguas, como:
“língua portuguesa” (combinação do substantivo língua + adjetivo pátrio) ou
apenas “português” (adjetivo pátrio substantivado que se refere tanto ao idioma
quanto ao homem/povo de uma nação). Seguindo esse mesmo procedimento,
referimo-nos a língua inglesa/inglês, a língua francesa/francês etc.
104
O enunciador fala da “língua brasileira” como se ela fosse uma entidade
real, como se ela existisse concretamente e como se sua existência fosse
reconhecida pelo co-enunciador. E o que principalmente produz o sentido de
um referente consabido pela comunidade de leitores a que o enunciador se
dirige é o uso do artigo definido antecedendo os termos “a língua brasileira” e
“o “brasileiro”. Com relação ao artigo definido, os gramáticos Cunha e Cintra
(2007, p. 211) afirmam que ele “é, essencialmente, um sinal de notoriedade, de
conhecimento prévio, por parte dos interlocutores, do ser ou do objeto
mencionado”. Empregado, pois, como uma ferramenta semântico-discursiva, o
artigo definido encarrega-se de ratificar a existência de uma língua já
estabilizada no Brasil.
Ao afirmar, na SD14, que traduziu a obra Losango Cáqui “inteirinho pro
brasileiro”, leva-nos a presumir que, de fato, “o brasileiro” existia como outra
língua, apartada do português, a ponto de justificar a tradução interlinguística
do “português” para o “brasileiro”. Afinal, toda tradução implica a existência de,
ao menos, duas línguas diferentes. Também a SD13 é assertiva quanto à
existência da língua brasileira. A alguém que poderia ter evocado o famigerado
tema da colocação pronominal – “Pronomes?” – onipresente na polêmica entre
conservadores e modernistas, o enunciador encerra a questão de modo
peremptório afirmando: “Escrevo brasileiro”, o que o indispunha a participar das
intermináveis discussões envolvendo a predileção brasileira pela próclise
contra o gosto lusitano pela ênclise. Ora, se o brasileiro era uma língua
independente do português, não lhe parecia fazer sentido discutir sua
inclinação à colocação proclítica do pronome átono.
Conforme Pinto (1981, p. XIII), o período de 1920 a 1945 foi o mais
“denso e tenso de toda a história da língua portuguesa do Brasil”, com
indefinições e imprecisões de toda ordem, sobremaneira, no tocante ao
estatuto e à nomenclatura usada para designar a realidade linguística
brasileira. De um lado, estavam aqueles que não abriam mão de designá-la
como “língua portuguesa” e, de outro, aqueles que defendiam a tese da “língua
brasileira”. E entre eles estavam aqueles que optavam pelas meias-tintas,
recorrendo a termos como “língua nacional”, “linguajar nacional”, “nosso
linguajar”, que mantinham a ambiguidade em torno do estatuto dialetal ou
sistêmico da língua usada no Brasil. De acordo com Pinto (1981), essa
105
indefinição permeou o primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada,
reunido em São Paulo em 1937.
Aqueles que assumiam a tese independentista chegaram a fazer
campanhas para que o termo “língua brasileira” fosse oficializado. É o caso da
campanha, iniciada por volta de 1935, que culminou com a apresentação, à
câmara dos deputados, do Projeto nº 136, que “determinava que a língua
falada no Brasil fosse denominada ‘língua brasileira’, denominação que deveria
constar em todo livro didático, como condição essencial para sua adoção”
(PINTO, 1981, p. XV). O projeto teve vários opositores e com a dissolução do
Congresso, em 1937, a solução do caso ficou adiada temporariamente.
Contudo, em 1946, na abertura dos trabalhos legislativos, a emenda no. 1378
estabelecia que a Nação deveria incentivar “por todos os meios, a
universalização da língua portuguesa, com o objetivo de assegurar a unidade
linguística, sintática e ortográfica” com Portugal, derrotando aqueles que se
investiam na defesa da tese da “língua brasileira” (PINTO, 1981, p. XV).
As quatro SDs anteriores são exemplares da fase mais radical de Mário
de Andrade, vivida nos primeiros anos do movimento modernista. Nessa fase,
ele se apartava daqueles que assumiam a posição legitimista de mantenedores
da língua portuguesa tal como herdada de nossos colonizadores. Passado o
arroubo da juventude, o enunciador vai atenuando seu radicalismo e
deslizando para uma posição conciliatória entre as duas línguas. No grupo de
SDs a seguir, podemos observar a substituição do termo língua pelo termo fala,
que implica uma revisão de sua posição separatista em relação ao português:
SD16 - O articulista é muito sensato porém aqueles, que nem eu, que estão dando a contribuiçãozinha deles pra que um dia a gente possua uma fala brasileira literária, colocam o problema noutras bases. Nenhum de nós tem a pretensão de criar uma língua que um português não possa entender. Não se trata de inventar uma fala de origem brasileira e inconfundivelmente original, não. Se trata apenas duma libertação das leis portuguesas as quais sendo leis legítimas em Portugal, se tornaram preconceitos eruditos no Brasil por não corresponderem a nenhuma realidade e a nenhuma constância da entidade brasileira. Agora como que a gente vai chamar isso? Chama de “língua brasileira” porque é fácil de compreender, porque é simples e obedece a essa tradição traiçoeira e eterna com que os filhos, vinte-e-um anos chegando, se libertam legislativamente dos pais. Também a gente chama de café brasileiro uma frutinha bem aventurada que de longe veio, é talqual à que ficou longe, mas que
106
dá-se bem no Brasil. Não a chamam de café-árabe brasileiro ou coisa assim (CCDA, [1927] 1982, p. 121-122).
SD17 - [...] entre dialeto, línguas e sublínguas tem uma confusão e entrelaçamento de conceitos. Também a fala brasileira não é diferente da fala portuga, é apenas distinta desta (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 337). SD18 - _ Você anunciou, uma vez, a Gramatiquinha da língua brasileira. Por que não publicou nunca esse livro? _ Da língua, não. Da fala. Não tinha pretensão de criar língua nenhuma. Anunciava o livro por me parecer necessário ao movimento moderno. Para dar mais importância às coisas que queríamos defender. É ainda muito cedo para escrever uma gramática da língua brasileira. Eu queria prevenir contra os abusos de escrever errado. Estávamos caindo no excesso contrário... (Cadernos de Cultura, 1954, p. 15, apud EGFB-GMA [1928] 1990, p.86).
SD19 - _Existe uma língua brasileira? Secundo sem turtuvear: MA: _ Existe. _ Por que existe? MA: Porque o Brasil é uma nação possuidora duma língua só. Essa língua não lhe é imposta. É uma língua firmada gradativa e inconscientemente no homem nacional. É a língua de que todos os socialmente brasileiros têm de se servir, se quiserem ser compreendidos pela nação inteira. É a língua que representa intelectualmente o Brasil na comunhão universal. _ Mas essa língua é o português. MA:_ É também o português. Nas suas linhas gerais mais eficientes não tem dúvida que a fala brasileira coincide com a língua portuguesa (TFB-TCDN, [1929] 1976, p. 111). SD20 - Inda faz pouco, João Ribeiro me chamou à fala num artiguete sobre si escrevo brasileiro ou português (Diário Nacional). E concluía que escrevemos por mais nota forçada, português. Respondi que isso não tinha a mínima importância, discutir critérios de língua e dialetos pra saber se falamos português ou brasileiro. E que ele e Roquete Pinto estavam como quase todos colocando o problema errado. Se tratava simplesmente duma questão pragmática. Pouco me incomoda agora que eu esteja escrevendo igualzinho ou não com Portugal: o que eu escrevo é língua brasileira pelo simples fato de ser a língua minha, a língua do meu país, a língua que hoje representa no mundo muito mais o Brasil que Portugal: enfim: a língua do Brasil (CMB, [1929] 1958, p. 222). SD21 - E o Macunaíma que tem um dilúvio de brasileirismos de toda casta, escrevi livro. Aquilo em estilo é poema, e até os que não concordam com meus brasileirismos reconhecem que pra aquilo o estilo tinha de ser aquele mesmo (CMB, [1929] 1958, p. 221).
107
Nas SDs de 16 a 21, o enunciador reconhece a impropriedade do termo
“língua” para designar a entidade linguística brasileira, a despeito de sua
evidente diferenciação em relação ao português europeu. Se o termo “língua
brasileira” leva a pensar em um sistema linguístico independente, o termo “fala
brasileira” sugere dependência em relação ao sistema português. O enunciador
preocupa-se em deixar claro que mesmo que fale em “língua brasileira”, é na
“fala brasileira” que ele está pensando. É, pois, o estatuto de uma norma ou de
um dialeto que ele pretende agregar à entidade linguística que, por força do
hábito, ele nomeia como “língua brasileira”.
Na SD16, Mário de Andrade, forçado a refletir sobre a posição radical
dos modernistas quanto à criação de uma “língua brasileira”, atenua seu ponto
de vista, ao afirmar que sua contribuição consiste em chegar a uma “fala
brasileira literária” e não propriamente em “inventar uma fala de origem
brasileira”. Se nas SDs de 12 a 15, havia uma ambiguidade quanto ao status
da variedade linguística falada no Brasil, na SD16, parece haver uma certa
definição – seria algo da ordem da “norma” ou do “dialeto” e não do “sistema”.
Negando polifonicamente a voz do outro que o fustiga – “Não se trata de
inventar uma fala de origem brasileira e inconfundivelmente original, não.” –, o
enunciador tem a possibilidade de ressignificar sua posição no sentido de
enfatizar a libertação das leis portuguesas, ou seja, das normas portuguesas,
que soam entre nós como preconceitos eruditos, uma vez que não
correspondem “a nenhuma realidade e a nenhuma constância da entidade
brasileira”.
Perfilado o estatuto de lei/norma da entidade linguística brasileira, pode-
se até designá-la, para facilitar a compreensão, como “‘língua brasileira”.
Entretanto, o enunciador lança mão das aspas, um típico modalizador
autonímico (AUTHIER-REVUZ, 2004), para mostrar que usa o termo “língua
brasileira” não no sentido habitual, tal como nas SDs de 12 a 15. As aspas,
nesse caso, funcionam como um atenuador para a classificação categórica
“língua”.
Para justificar o uso do termo “língua brasileira”, o enunciador recorre a
uma analogia com o processo de emancipação dos filhos: “os filhos, vinte-e-um
anos chegando, se libertam legislativamente dos pais”. Quer dizer, embora os
pais tenham dado origem e nome aos filhos, eles se libertam dos pais. Algo
108
semelhante ocorre com a língua brasileira, gerada pelo português, mas em
processo de emancipação das leis/normas gramaticais estrangeiras, tornadas
preconceitos no Brasil por carecerem de evidência empírica da “constância da
entidade brasileira”. Nessa afirmação, vemos a perspectiva do etnógrafo
orientar a visão do enunciador quanto à necessidade de as leis/normas de uma
língua serem lastreadas pela observação do uso e não pela tradição herdada
do passado. As leis linguísticas devem ser entendidas como usos normais,
regulares, constantes, e não como princípios normativos remotos. Isso
demonstra seu compromisso de pesquisador empírico, que considera
seriamente a tarefa de levantar as normas da “fala brasileira literária”,
correspondentes àquilo que é efetivamente observado na realidade linguística
do país.
Outra justificativa para o uso do termo “língua brasileira”, o enunciador
busca no hábito que temos de designar como “brasileiros” produtos vindos do
estrangeiro, mas muito bem adaptados ao país. Por exemplo, chamamos de
“café brasileiro” uma fruta que, apesar de sua origem arábica “dá-se bem no
Brasil”. Não a designamos como “café árabe-brasileiro ou coisa assim”, mas
simplesmente como “café brasileiro”. Da mesma forma, podemos chamar de
“língua brasileira” a língua aqui falada, independente de seu lugar de origem,
uma vez adotada e adaptada pela nação.
Na SD17, uma vez mais o enunciador se vê às voltas com a dificuldade
de operar com os conceitos de “dialeto, línguas e sublínguas”, uma vez que as
fronteiras entre eles se confundem e entrelaçam. Tendo por base tais
conceitos, apesar de sua imprecisão, faz a seguinte afirmação: “a fala brasileira
não é diferente da fala portuga, é apenas distinta desta”, estabelecendo uma
gradação de sentido entre os adjetivos “diferente” e “distinta”, que, em sua
forma dicionarizada, são dados como sinônimos: “diferente” (que não é igual ou
idêntico; distinto) do latim differentis e “distinto” (que não é igual; diferente) do
latim distinctus (HOUAISS e VILAR, 2009, p. 683 e 699), mas não no universo
semântico da formação discursiva modernista. Nessa formação discursiva, os
adjetivos “diferente” e “distinto” correspondem a mudanças maiores ou
menores em relação ao português original, delimitando fronteiras entre línguas
ou entre dialetos: ser diferente implicaria a existência de duas línguas
autônomas, dois sistemas (um português e outro brasileiro); ser “apenas
109
distinta” implicaria a existência de um sistema e duas normas tomadas
descritivamente (a língua portuguesa e as normas lusitana e brasileira). A
entidade linguística brasileira não é mais igual à portuguesa, mas não a ponto
de constituir uma outra língua. O uso do modalizador “apenas” cumpre a
função de atenuar o grau de diferenciação entre as duas entidades linguísticas
e justifica a classificação como “fala brasileira” e não mais como “língua
brasileira”. Quer dizer, o enunciador revisita sua posição radical de juventude
que o levava a afirmar intempestivamente a existência de uma língua brasileira
apartada da portuguesa.
A mudança na ação de nomear a língua do Brasil é expressamente
mostrada na SD18. Nessa SD, uma suposta entrevista, quando o entrevistador
questiona Mário sobre a não publicação do livro A Gramatiquinha da língua
brasileira, o modernista, imediata e enfaticamente, lhe corrige “Da língua não.
Da fala. Não tinha a pretensão de criar língua nenhuma”. Nesse excerto,
emerge sua preocupação em desfazer um mal entendido que a denominação
“língua brasileira” possa ter causado à opinião pública, esclarecendo que,
quando falava em “língua”, estava, na verdade, pensando em “fala”. Seu
projeto consistia em levantar as regularidades (“constâncias’) da fala brasileira
para dotar o movimento modernista de alguma orientação sobre a escrita
literária, evitando soluções idiossincráticas (“Eu queria prevenir os abusos do
escrever errado. Estávamos caindo no excesso contrario”). Contudo, apesar de
patentear que o termo “língua” deveria ser entendido como “fala”, não silencia a
possibilidade de a língua brasileira estar a caminho, ao dizer que “É ainda
muito cedo para escrever uma gramática da língua brasileira”. Provavelmente,
mais tarde, seja possível escrever uma gramática da língua brasileira.
Na SD19, as fronteiras entre “língua” e “fala brasileira” parecem, à
primeira vista, se embaralhar, pois, quando perguntado pelo suposto
entrevistador, se a língua brasileira existe, o enunciador responde, sem
pestanejar, que ela existe. E mais, instigado a falar sobre as razões de ela
existir, ele evoca a ideologia do monolinguismo brasileiro: somos uma nação
“duma língua só”; é a língua de que todos os brasileiros se servem “se
quiserem ser compreendidos pela nação inteira”; “É a língua que representa
intelectualmente o Brasil na comunhão universal”. A asserção do enunciador-
escritor é contraditada pelo entrevistador que traz a voz do Outro: “Mas essa
110
língua é o português”, ao que Mário responde: “É também o português. Nas
suas linhas gerais mais eficientes não tem dúvida que a fala brasileira coincide
com a língua portuguesa”. Confrontado com a conclusão paradoxal do
entrevistador de que “a língua brasileira é a língua portuguesa”, Mário rebate
afirmando que a língua brasileira “é também o português”, ou seja, ela é outra
coisa que o português, é uma fala brasileira, mas é “também o português”. Há,
pois, uma fluidificação das fronteiras que separam língua e fala. E, além disso,
cada vez mais vai se firmando a ideia de que a língua de um povo não
necessariamente tem de ser criada por ele, ela pode ser adotada, adaptada,
aclimatada, originando um fala “distinta”, mas não completamente “diferente”
daquela herdada do outro colonizador.
Na SD20, o enunciador evoca a polêmica linguística reinante na época,
referindo-se explicitamente a um artigo de João Ribeiro que o cutucava a
propósito da língua por ele usada (“brasileiro ou português”), concluindo que
“por mais nota forçada” que tentasse era em português que ele se expressava.
Entendendo que as críticas tinham por fundamento a oposição língua/dialeto,
Mário responde que não lhe importava “discutir critérios de língua e dialeto pra
saber se falamos português ou brasileiro”. Independentemente do fato de sua
escrita ressoar o português, ele se via escrevendo brasileiro, uma vez que o
português, adotado pelo Brasil, passava a ser a sua língua também.
Acrescenta, ainda, que o português, naquele momento, já se apresentava ao
mundo mais como língua do Brasil do que propriamente como língua de
Portugal.
Destaquemos que é a SD21 que inspira o título desta seção. Nesse
enunciado, o modernista parece empregar o termo “brasileirismo” como uma
provocação àqueles que o interpretam como vício de linguagem, mais
exatamente como “solecismo” e “barbarismo”. Fazia parte do projeto de Mário
de Andrade tirar os “brasileirismos” da marginalidade, conferindo-lhes status de
linguagem culta, digna do fazer literário, como recurso de estilo. Daí o jogo
entre a expressão “transposição erudita da barbárie”, aplicada à música, e a
expressão “transposição erudita dos barbarismos”, aqui deslocada por nós para
o campo das Letras. O modernista desejava fazer do que os conservadores
chamavam de vulgarismos/barbarismos/brasileirismos uma estilização erudita,
com a finalidade de constituir uma norma culta brasileira. Conforme Pinto
111
(1981, XLIX), Mário, inúmeras vezes, “declarou que se metera na aventura de
estilizar o ‘brasileiro vulgar’, frisando, porém, que se tratava de estilização
‘culta’ da ‘linguagem popular’”.
Nas SD22 a SD24, observamos uma terceira maneira de Mário fazer
referência à língua do Brasil. Dessa vez ele substituiu a designação língua
brasileira por língua nacional, termo que, por não determinar o adjetivo pátrio,
permite jogar com a ambiguidade entre língua brasileira e língua portuguesa,
como já apontara Pinto (1981). A língua nacional é o português, mas um
português outro, fruto da mestiçagem com línguas africanas e indígenas:
SD22 - Não vou discutir o problema da língua “brasileira”, que, ao meu ver, não existe, embora seja da maior verdade falarmos, de preferência, em “língua nacional” (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 88). SD23 - Desde que um fulano fala uma palavra ou esse modismo se generalize, ele faz parte da língua. Assim os chamados brasileirismos por simples bobagem de comodismo gramatical não são brasileirismos nem nada, são palavras, sintaxes novas incorporadas à fala portuga e, portanto, fazendo parte dela legitimamente. Pertencem à língua portuguesa (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 377). SD24 - Há pouco menos de vinte anos atrás, quando também as minhas impaciências de moço me levaram a falar em ‘língua brasileira’ , e não, mais comodamente para minha consciência, em ‘língua nacional’ como falo hoje, foi esse um dos problemas que mais me preocuparam (BP-EP, [1941] 1972, p. 263).
Na SD22, enunciado que compõe os esboços para A gramatiquinha, o
enunciador recusa-se a “discutir o problema da língua “brasileira”, que, a seu
ver, “não existe” e agora dito peremptoriamente, sem o recurso do modalizador
“ainda”, usado na SD18. Em vista da dificuldade para designar a entidade
linguística brasileira, Mário sucumbe à conveniência do termo “língua nacional”,
como muitos de seus contemporâneos. Essa perspectiva é retomada na SD24,
na qual o enunciador reflete sobre as atitudes impulsionadas pelas
“impaciências de moço” que o levaram a falar em “‘língua brasileira’ e não,
mais comodamente para sua consciência, em ‘língua nacional’ como fala hoje”.
Quer dizer, o emprego do termo “língua nacional” é menos suscetível a
controvérsias devido à sua indefinição e ambiguidade.
112
Os brasileirismos, presentes na SD21, reaparecem como tema na SD23.
Se na SD21, Mário de Andrade desejava resgatá-los do rol dos vícios de
linguagem, dando-lhe cidadania literária, na SD23 defende que, à medida que
eles se tornem modismo ou se generalizem, eles passam a pertencer à língua
portuguesa: “são palavras, sintaxes novas incorporadas à fala portuga e,
portanto, fazendo parte dela legitimamente”. Essa língua portuguesa que
incorpora os brasileirismos é a língua que falamos, é a “nossa fala”. Pouco
importa que seja uma fala mestiça, “que venha de um pai portuga com
tangente pelas negras e tapuias”. Se um povo usa uma língua, ela se torna sua
também, independentemente de sua origem.
Em resumo, no conjunto de SDs de 12 a 24, vemos o enunciador diante
da empreitada de categorizar e nomear a entidade linguística brasileira que não
se deixa captar facilmente por um conceito. Num primeiro momento opta por
uma categorização/nomeação forte como “língua brasileira”, termo que lhe
rende muitas críticas da parte dos conservadores que não admitem a
autonomia da língua brasileira em relação à portuguesa. Então, passa a
categorizá-la como “fala brasileira”, atenuando o grau de afastamento da língua
portuguesa. A fala brasileira apresenta-se como uma norma daquela e não
como um sistema totalmente independente. E, finalmente, opta pelo termo
“língua nacional”, cuja indefinição lhe permite jogar com a origem portuguesa
ou brasileira e, assim, sair do foco das controvérsias. Praticamente em todas
essas SDs, podemos observar o enunciador respondendo às vozes
conservadoras que lhe opõem resistência, ora sob a forma da heterogeneidade
constitutiva ora sob a forma da heterogeneidade mostrada.
3.5.2 De Mário de Andrade como um (socio)linguista temporão
A linguística, como ciência, surge no início do século XX, historicamente
vinculada à publicação do Curso de Linguística Geral, em 1916, obra cuja
autoria é atribuída ao suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913). O livro foi
publicado três anos após sua morte, por iniciativa de dois de seus alunos:
Charles Bally e Albert Sèchehaye, com base em anotações feitas durante as
aulas ministradas por Saussure. Contudo, é só a partir de 1960 que a
113
linguística é introduzida como disciplina nos currículos dos cursos de Letras
brasileiros. Esse momento representa a institucionalização da Linguística no
Brasil, pois até então era ensinada nas cadeiras de Filologia Românica e
Língua Portuguesa.
O cerne da teoria linguística proposta por Saussure é a dicotomia
língua/fala, sendo a língua (langue) a eleita como objeto da ciência e a fala
(parole) considerada o elemento residual, por não se apresentar como
metodologicamente apreensível pela sua fungibilidade. Assim, a língua era
vista como social (fato social compartilhada por todos os falantes), homogênea,
sistemática, invariável, estática e abstrata e a fala como heterogênea,
individual, caótica, dinâmica, variável e concreta. Essa dicotomia vigorou até a
década de 1960, quando a sociolinguística assomou no horizonte da linguística
como uma nova ciência, impulsionada pelos estudos variacionistas de
Weinreich, Labov e Herzog ([1968] 2006) que, investigando o processo de
mudança linguística, descobriram que, diacronicamente, uma língua muda
porque, sincronicamente, ela varia. Essa descoberta os levou a postular a tese
de que a variação é inerente ao sistema linguístico e não apenas o seu
resíduo. Assim, a língua passa a ser vista como inerentemente heterogênea.
Porém, trata-se de uma heterogeneidade ordenada, passível de ser descrita
por uma abordagem estruturalista e científica.
Reposto o axioma da homogeneidade linguística pelo axioma da
heterogeneidade ordenada, a variação passa a ser visualizada como regular e
integrada ao sistema ou à competência linguística. Como afirma Bagno (2001,
p. 41), “toda língua, qualquer língua, em qualquer momento histórico, em
qualquer lugar do mundo, nunca é uma coisa compacta, monolítica, uniforme”.
A sociolinguística veio, pois, “mostrar que toda língua muda e varia, isto é,
muda com o tempo e varia no espaço, além de variar também de acordo com a
situação social do falante” (BAGNO, 2001, p. 43). Varia, por exemplo, segundo
o grau de escolaridade, a situação socioeconômica, a faixa etária, a origem
geográfica, a etnia, o sexo, as situações de fala etc.
Mário de Andrade morreu em 1945, sem presenciar a entrada das ideias
linguísticas e sociolinguísticas no universo das Letras brasileiras. Dessa forma,
embora Mário oponha língua brasileira à fala brasileira, certamente não o faz
no sentido linguístico stricto sensu, e sim pelo viés dos estudos dialetológicos,
114
herdados do século XIX, ou até mesmo pelo viés do senso comum. Todavia,
ele demonstra uma intuição extremamente aguçada para a pesquisa
sociolinguística, como podemos ver pela SD25 e outras a serem analisadas
nesta subseção.
SD25 - As observações e pesquisas sobre a língua nacional não devem ser feitas exclusivamente entre pessoas das classes proletárias, entre analfabetos e pessoas rurais. Deve estender-se a todas as classes, até mesmo aos cultos, mas sempre na sua linguagem desleixada espontânea e natural. As observações só não devem se estender aos indivíduos que timbram em falar certo. Ou milhor: tem muita importância em verificar e apontar as regras e casos em que mesmo estas pessoas “culteranistas”, por desatenção momentânea pecam contra o português de Portugal ou das gramáticas (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 109).
A SD25 evoca os estudos dialetológicos realizados à época,
polemizando-os, como sugere o uso da negação polifônica no primeiro período:
“As observações e pesquisas sobre a língua nacional não devem ser feitas
exclusivamente entre pessoas das classes proletárias, entre analfabetos e
pessoas rurais”, índice material da discordância em relação àqueles que, a
exemplo de Amadeu Amaral, se restringiam à pesquisa dos falares rurais de
grupos afastados do mundo urbana e letrado. O que Mário diz nessa SD
demonstra que ele possuía um feeling de sociolinguista, meio século antes de
a ciência existir. Sua concepção de como deveria ser a pesquisa a embasar a
“fala brasileira” ou a “língua nacional” coincide em muitos aspectos com o que a
sociolinguística denomina de “vernáculo” (uso não monitorado da língua pelos
falantes de uma comunidade social). Em vista disso, a pesquisa sobre a língua
nacional deveria “estender-se a todas as classes, até mesmo aos cultos, mas
sempre na sua linguagem desleixada espontânea e natural”, requisitos
fortemente recomendados para o inquérito sociolinguístico.
Lendo essa SD, tem-se a impressão de ver nela o embrião do Projeto de
Estudo da Norma Linguística Urbana Culta (Projeto NURC), iniciado em 1969,
com o objetivo de documentar e descrever a norma objetiva do português culto
falado em cinco capitais brasileiras: Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro,
Salvador e Recife. No universo desse projeto, os informantes devem ter curso
superior completo, residir numa dessas metrópoles e ter origem urbana. São
115
vetados informantes formados em Letras em razão do monitoramento
consciente da língua que podem fazer durante a entrevista de coleta de dados.
Em certa medida, essa recomendação lembra a que Mário faz acerca das
“pessoas culteranistas”, dos “indivíduos que timbram em falar certo”, a não ser
que sejam observados em momentos que “por desatenção momentânea
pecam contra o português de Portugal ou das gramáticas”.
Nas SDs seguintes, outros postulados centrais da sociolinguística
podem ser divisados no discurso do escritor modernista sobre a língua:
SD26 - Toda língua inclui dentro do seu conceito uma infinidades de línguas particulares, está claro. Tem a língua que a gente fala, a mais legítima, terrestremente falando. Mesmo esta se subdivide na língua do ferreiro, na do marujo, na do professor, na do aluno, na do amante, etc., etc. E tem a língua literária, mesmo esta divisível em muitas, a dos poetas, a dos pedagogos, a do naturalista, a das cartas, etc., etc. Mas incontestavelmente todas se incluem dentro do conceito geral de Língua, que implica por sua vez, acomodações de toda linguagem falada, [...]. Desculpe esta descrição, mas apenas quero lhe provar que não me organizei à tonta. A Língua ainda tem a circunstância de ser mudável, permanentemente mudável (CSS-PB, [1935] 1981, p.157-158). SD27 - A língua no seu sentido, digamos, abstrato, é uma propriedade de todo o grupo social que a emprega. Mas isto é uma mera abstração, essa língua não existe. O tempo, os acidentes regionais, as profissões se encarregam de transformar essa língua abstrata numa quantidade de linguagens concretas diversas. Cada grupinho, regional e profissional se utiliza de uma delas. Deus me livre de negar a existência de uma língua “culta”. Mas esta é exclusiva apenas de um dos grupinhos do grande grupo social. Essa é a língua escrita, por excelência, tradicionalista por vício, conservadora por cacoete específico de cultismo. Ou de classe. Mas já está mais que observado que os mesmos indivíduos que escrevem nessa língua culta, muitas vezes se esquecem dela quando falam. Essa língua escrita não é a mesma que a linguagem da classe burguesa, que é falada e não tem pretensões aristocráticas de bem falar. E existem as linguagens dos sentimentos, que fazem um burguesinho ter com a mulher uma linguagem amorosa muito especial, ou ter tal linguagem nos momentos de cólera que jamais, como vocabulário e sintaxe, êle empregaria na festa de aniversário da filhinha (LR-EP, [1940] 1972, p. 207-208). SD28 - Não houve uma clara e realista consciência de que a linguagem usada por milhares de pessoas, já por si diferentes uma das outras e ainda por cima diferenciadas por profissões, situação social, etc,. é necessariamente um instrumento vivo, em eterno fazer-se, a que qualquer coisa modifica, transforma ou acrescenta. Ainda mais: não se levou exatamente em conta que, dentro dessa língua
116
total, a linguagem culta funciona mais ou menos como uma língua morta, de tendências necessariamente conservadoras que a fixam pelo estudo e a estratificam pelo cultivo da tradição (LV-EP, [1940] 1972, p. 211). SD29 - As expressões duma língua mudam rapidamente, mudam constantemente e em pouco tempo já são outras. Carece aproveitar o seu momento de vida oral e se expressar sem acreditar que sejam vulgarismos (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 408).
Nas SDs de 26 a 29, o enunciador enfatiza a ideia de que a
heterogeneidade é inerente a toda e qualquer língua, ideia que, no final da
década de 1960, passa a figurar como o axioma fundador da sociolinguística,
contrariando o postulado do discurso gramatical de que as línguas são
homogêneas e de que se não o são, é porque foram corrompidas e precisam
ser restituídas à forma correta.
Na SD26, Mário de Andrade afirma, textualmente, que “toda língua inclui
dentro do seu conceito uma infinidade de línguas particulares”, desdobrando-a
em língua falada (“a mais legítima”) e língua literária. A língua falada, por sua
vez, comporta as línguas profissionais (“a língua do ferreiro, do marujo, do
professor, do aluno, do amante, etc., etc.”), assim como a língua literária
apresenta-se dividida na “língua dos poetas, dos pedagogos, do naturalista,
das cartas etc., etc.”. Além de variar segundo as modalidades oral e escrita,
segundo as profissões e segundo os gêneros, a língua também é mutável
(“mudável, permanentemente mudável”). Como vimos no princípio desta seção,
variar e mudar são as principais propriedades das línguas segundo o viés
interpretativo da sociolinguística, mas foram prenunciadas por Mário quase
meio século antes dessa ciência se constituir.
Na SD27, o leitor, se linguista, pressente uma certa ressonância do
conceito saussuriano de língua, embora, provavelmente, Mário não tenha lido
Saussure. Ao dizer que “a língua [...] é uma propriedade de todo o grupo social
que a emprega” e que, enquanto tal, “é uma mera abstração” que “não existe”,
ele enumera várias características da língua que encontramos em Saussure.
Afirmar que a língua é uma abstração implica observar que ela, como sistema,
não está inteiramente presente em nenhum falante, pois é a totalidade dos
falantes que a constitui. Essa língua abstrata só existe sob a forma de
117
linguagens concretas. Tais linguagens concretas lembram o que os linguistas e
sociolinguistas chamam de “normas”.
Em lugar da dicotomia saussuriana língua/fala, o linguista romeno
Eugenio Coseriu propõe uma tricotomia, introduzindo o conceito de “norma”,
recusado, num primeiro momento, pela linguística nascente como gesto de
ruptura com gramática tradicional. Coseriu ([1952] 1980) sugere que o sistema
parte do mais concreto (falar concreto) para o mais abstrato (sistema),
passando por um nível intermediário (norma). O falar concreto, portanto, pode
ser definido como o real individual; a norma, como o real coletivo e o sistema,
como o ideal coletivo. O conceito de “falar concreto” equivale ao de fala
(parole). Pelo termo “norma”, Coseriu designa aqueles aspectos do “falar
concreto” que são traços comuns, constantes, tradicionais, coletivos, mas não
necessariamente funcionais no interior de todo o sistema. O termo “sistema”
designa o conjunto das oposições linguísticas funcionais e equivale a “língua”
(langue). Coseriu (1980) assim distingue “norma” de “sistema”:
(...) o termo norma abrange fatos linguísticos efetivamente realizados e existentes na tradição, ao passo que o sistema é uma técnica aberta que abrange virtualmente também os fatos ainda não realizados, mas possíveis de acordo com as mesmas oposições distintivas e as regras de combinação que governam o seu uso. (COSERIU, 1980, p. 123)
Portanto, de acordo com Coseriu, o falar concreto individualiza os
falantes de uma dada língua, o sistema os reúne numa só coletividade e a
norma os dispõe em subgrupos. Contudo, para ele, a norma não é “o como se
deve dizer”, mas “o como se diz”. Assim, a língua só é concreta quando
observada como norma, em sentido descritivo e não prescritivo. Conforme
Lucchesi (2004),
Não se pode mais pensar o sistema de funcionamento da língua dissociado dos padrões coletivos de comportamento linguístico, nos quais o sistema linguístico se atualiza em cada momento do seu devir histórico [...] (LUCCHESI, 2004, p. 85).
118
Apesar da distância temporal e paradigmática que separa o escritor
modernista e os (socio)linguistas, salta aos olhos a ressonância entre eles,
como se pode ver quando se compara a citação anterior com este excerto: “O
tempo, os acidentes regionais, as profissões se encarregam de transformar
essa língua abstrata numa quantidade de linguagens concretas diversas. Cada
grupinho, regional e profissional se utiliza de uma delas” (SD27).
Outra discussão que também poderia ser tributada a um sociolinguista é
a que Mário faz a respeito da norma culta. Assim, ele se refere ao dogma da
norma culta: “Deus me livre de negar a existência de uma língua ‘culta’”. Esse
trecho mostra a relação interdiscursiva que Mário entretém com os defensores
da língua culta, ou seja, seria “crucificado” por eles, se entre o reconhecimento
das múltiplas linguagens, negasse a existência da língua culta. Porém, ao
contrário dos conservadores, ele não considerava essa variante superior e
única, apenas a reconhecia como mais uma dentre as outras, posição que
seria sustentada pelos estudos (socio)linguísticos décadas depois. Além disso,
ele dirá, com todas as letras, que essa língua é o capital linguístico apenas de
um grupinho: “Mas esta (a língua culta) é exclusiva apenas de um dos
grupinhos do grande grupo social” (SD27). Seu feeling sociolinguístico o faz ir
além, distinguindo a língua culta real (norma objetiva) e a língua culta ideal
(norma subjetiva). A língua culta ideal “é a língua escrita, por excelência,
tradicionalista por vício, conservadora por cacoete específico de cultismo. Ou
de classe.” (SD27). Naquela época, Mário já observava que a língua falada
pela elite não era a mesma que ela usava para escrever: “já está mais que
observado que os mesmos indivíduos que escrevem nessa língua culta, muitas
vezes se esquecem dela quando falam” (SD27). A língua com que o
burguesinho namora, encoleriza-se e vai ao aniversário da filhinha não é a
mesma que usa para escrever quando se curva ao que prescreve a tradição
gramatical. Em resumo, se a situação de fala varia, a língua também varia.
Aliás, esse princípio da adequação se tornaria o fundamento da noção de
“competência comunicativa”, desenvolvida por Dell Hymes na década de 1970,
postulando a articulação entre normas linguísticas e normas socioculturais.
A SD28 nomeia a falta de clareza e de consciência, certamente
referindo-se à posição conservadora, quanto à percepção da língua usada
como um “instrumento vivo, em eterno fazer-se, a que qualquer coisa modifica,
119
transforma ou acrescenta”. Se as pessoas por si são diferentes, se diferentes
são as profissões e as situações, a língua que falam não pode ser a mesma.
Em oposição ao qualificativo “viva”, observamos o uso da palavra “morta” para
se referir à norma culta no enunciado: “não se levou exatamente em conta que,
dentro dessa língua total, a linguagem culta funciona mais ou menos como uma
língua morta” (SD28). Visualizamos nesse excerto, a formulação de um
simulacro do culto à tradição gramatical. O processo de interincompreensão
leva o enunciador a traduzir como “língua morta”, o que seus opositores
consideravam a língua culta, herança intocável de Portugal e que, portanto,
deveria ser preservada das corrupções causadas pelos falantes brasileiros.
Na SD29, considerando que a mudança é inerente às línguas e que as
expressões passam rapidamente, Mário de Andrade enfatiza que é preciso
“aproveitar o seu momento de vida oral e se expressar sem acreditar que
sejam vulgarismos” (SD29). Chama-nos a atenção o termo “sem”, pois este
remete ao discurso outro – discurso conservador - que traduzia/categorizava as
expressões em uso na linguagem vernacular, por meio do simulacro
“vulgarismos”, que categorizava um determinado tipo de vício de linguagem. O
termo “sem” materializa, pois, a polifonia entre o discurso moderno que não
teme os “brasileirismos” e vê neles inestimáveis recursos de estilo, e o discurso
conservador que evita os “brasileirismos” sob a pecha de vulgarismos.
Nas SDs de 26 a 29, vemos, portanto, o enunciador defendendo a ideia
de que a variação e a mudança são inerentes às línguas, bem como a ideia de
que a língua culta, tal como defendida pelos conservadores, é uma língua
morta, que não cessa de não se realizar nas situações efetivas de uso da
linguagem, ideias basilares à fundação da sociolinguística como ciência.
Como afirma Yaguelo (2001, p. 279), “Na língua se inscreve a passagem
do tempo”. Por isso, uma língua, enquanto falada, nunca cessa de se fazer
outra. Diante da mudança ininterrupta levada a efeito pelo povo que a utiliza, a
língua culta padronizada e codificada pela elite e ensinada na escola soa como
uma língua morta, embalsamada, que a nostalgia purista sacraliza e resiste a
enterrar. Afinal, reconhecer que uma língua muda seria reconhecer que se
envelheceu, constatação que se reveste de saudosismo. E, mais, reconhecer
que a língua muda pela boca/mão do povo seria reconhecer que o poder da
elite pode pouco diante do poder da massa. Assim, se os puristas desejam
120
conservar a língua, é porque leem na sua mudança a própria
decadência/degenerescência. Perceber que a língua se fez outra significa
perder o domínio sobre/por ela, o que pode se manifestar por meio de
julgamentos éticos e estéticos, como: outrora, tão bela, tão pura, tão correta,
tão perfeita, tão lógica, tão gramatical; agora, tão feia, tão errada, tão
misturada, tão imperfeita, tão ilógica, tão caótica. Mário de Andrade, como
ninguém, entendia a inexorabilidade do tempo sobre a língua e, por essa razão,
defendia a ideia de que a vida, a exuberância da língua, deveria ser
aproveitada, transformada em literatura, sem preconceito, sem o temor da
pecha de “vulgarismos”, antes que eles (os vulgarismos) morressem.
Podemos constatar, lendo as SDs de 30 a 39, a seguir, que o projeto de
Mário de Andrade de abrasileirar a expressão literária não se reduzia ao
regionalismo e nem mesmo a um nacionalismo estreito que virasse as costas
para o internacionalismo. Ele imaginava uma fala brasileira culta projetando-se
na cultura civilizada universal.
SD30 - Você diz por exemplo que em vez de escrever brasileiro estou escrevendo paulista. Injustiça grave. Me tenho preocupado muito com não escrever paulista e é por isso que certos italianismos pitorescos que eu empregava dantes por pândega, eu comecei por retirar eles todos da minha escrita de agora. Mais tarde vamos ver o que a gente pode aproveitar deles. Por enquanto o problema é brasileiro e nacional. Agora você deve ver que pequenas diferenças entre falar duma pra outra região brasileira são fatais não só de pronúncia como também de sintaxe. Em todos os países grandes se dá e até nos pequenos. Diferenças lexicais e sintáticas. Não estou escrevendo paulista, não. Tanto que fundo na minha linguagem brasileira de agora termos do norte e do sul (CMB, [1925] 1958, p. 86).
SD31 - E o que é pior sei que uma palavra brasileira empregada na escrita soa pra todos como exotismo, regionalismo porque só como regionalismo exótico foi empregada até agora (CCDA, [1925] 1982, p. 24). SD32 – Não estou fazendo regionalismo. Trata-se duma estilização culta da linguagem popular da roça, como da cidade, do passado e do presente (C- 71, p.72, apud GMA, p. 87). SD33 – Porque se trata de estilização culta e não fotografia do popular, meu caro. Agora, essa sistematização tem de ser fatalmente pessoal. Não pode ser de outra forma, pois estou começando uma coisa e não tirando uma gramática inteirinha de fatos documentados pela escrita culta e literária (CMB, [1925] 1958, p. 87).
121
SD34 – Não são os regionalistas grifando os erros ditos pelos seus personagens que prepararão Dante, mas os que escrevem por si mesmos na língua vulgar, lembrando erros passíveis de serem legitimados (CMB, [1924] 1958, p. 33). SD35 – Se conseguir que se escreva brasileiro sem ser por isso caipira, mas sistematizando erros diários de conversação, idiotismos brasileiros e sobretudo psicologia brasileira, já cumpri o meu destino (C-MB, [1924] 1958, p. 54). SD36 – Bem que matutei e trabalhei para dar pro meu estilo novo normas que organizassem-o. Si cada um fizer também das observações pessoais e estudos pessoais a sua gramatiquinha muito que isso facilitará pra daqui a uns cincoenta anos se salientar normas gerais, não só da fala oral transitória e vaga porém da expressão literária impressa, isto é, da estilização erudita da linguagem oral. Essa estilização é que determina a cultura civilizada duma raça sob o ponto-de-vista expressivo. Linguístico (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 334) SD37 – Então repare que você está estadualizando, coisa que no meu modo de entender é simplesmente odioso. Odioso não porque ache odioso o bairrismo, acho pueril, odioso porque socialmente falando ele é perigoso e humanamente falando é inaceitável tanto prá época como pros ideais humanos mais legítimos (CAL, p. 56, apud GMA, 1990, p. 87). SD38 – Tenho horror das fronteiras de qualquer espécie, e não encontro em mim nenhum pudor patriótico que me faça amar mais, ou preferir um Brasileiro a um Hotentote ou Francês (CMB, p. 164, apud GMA, 1990, p. 87). SD39 – Nós temos o problema atual, nacional, moralizante, humano de abrasileirar o Brasil. (...) Nós só seremos universais o dia em que o coeficiente brasileiro nosso concorrer prá riqueza universal. Isso preguei senvergonhamente no meu Noturno de Belo Horizonte e vivo a dizer em quanta carta escrevo e conversa que converso (CSM, p. 301, apud GMA, 1990, p. 87).
Todas essas SDs evocam o embate entre os movimentos literários que
compartilhavam o campo das Letras na época em que o modernismo floresceu,
início do século XX. Para muitos escritores, abrasileirar a língua literária
significava ser regionalista, solução de que Mário de Andrade procurava se
afastar. Modernismo e regionalismo não eram vistos por ele como sinônimos,
principalmente porque o regionalismo, não raro, se aliava às culturas
tradicionais, conservadoras, ao mundo rural e à herança política colonial e o
modernismo tinha como referência o mundo urbano, cosmopolita, com suas
inovações culturais e tecnológicas e o regime republicano. A insistência com
122
que negava o regionalismo pode ser entendida como uma forma de o
enunciador manter-se, ele mesmo, acautelado do perigo de cair na solução
fácil de interpretar ‘escrever brasileiro’ como ‘escrever nordestino’, ‘escrever
gaúcho’, “escrever paulista’, ‘escrever caipira’, como era comum na prática
literária que lhe era contemporânea. Mário não se desejava um escritor
regionalista, por isso negava essa tendência ético-estética veementemente.
O escritor se enfurecia quando lhe diziam que ele escrevia paulista,
como podemos observar neste trecho da SD30: “Você diz por exemplo que em
vez de escrever brasileiro estou escrevendo paulista. Injustiça grave. Me tenho
preocupado muito com não escrever paulista e é por isso que certos
italianismos pitorescos que eu empregava dantes por pândega, eu comecei
por retirar eles todos da minha escrita de agora”. Regionalismo, caipirismo,
estadualismo, paulistanismo, bairrismo, exotismo, fronteiras culturais e
linguísticas de qualquer espécie eram repelidas pela sua concepção do que
seria “abrasileirar a língua literária”. Aliás, até mesmo o nacionalismo patrioteiro
deixou de lhe ser caro. À medida que amadurecia, nacionalismo e
internacionalismo se tornavam inseparáveis, como bem ilustra a SD38: “Tenho
horror das fronteiras de qualquer espécie, e não encontro em mim nenhum
pudor patriótico que me faça amar mais, ou preferir um Brasileiro a um
Hotentote ou Francês”. Seu projeto de “abrasileirar o Brasil” era um projeto
artístico, linguístico, político e ético, que nos habilitaria, por chegarmos a
perfilar uma cara própria, a participar da cultura civilizada universal: “Nós só
seremos universais o dia em que o coeficiente brasileiro nosso concorrer prá
riqueza universal. Isso preguei senvergonhamente no meu Noturno de Belo
Horizonte e vivo a dizer em quanta carta escrevo e conversa que converso”
(SD39); “É a língua (referia-se a fala brasileira) que representa intelectualmente
o Brasil na comunhão universal” (SD19). Fronteiras regionais ou mesmo
nacionais lhe pareciam perigosas e inaceitáveis “tanto pra época como pros
ideais humanos mais legítimos” (SD37).
A redução do brasileirismo ao regionalismo era tão forte na conjuntura
em que Mário viveu e produziu que ele assim se queixava dos simulacros que
eram feitos da palavra brasileira quando empregada na escrita: “uma palavra
brasileira empregada na escrita soa pra todos como exotismo, regionalismo
porque só como regionalismo exótico foi empregada até agora” (SD31). Em
123
vista desse viés interpretativo que resultava em traduções redutoras do projeto
linguístico modernista, Mário afirmava que se daria por satisfeito e consideraria
ter cumprido sua missão se conseguisse que se escrevesse brasileiro “sem ser
por isso caipira, mas sistematizando erros diários de conversação, idiotismos
brasileiros e sobretudo a psicologia brasileira”(SD35).
Enfaticamente o escritor afirmava que seu propósito era realizar uma
estilização culta da linguagem popular que ultrapassasse as fronteiras espaço-
temporais (regionalismo, caipirismo e tempo): “Não estou fazendo
regionalismo. Trata-se duma estilização culta da linguagem popular da roça,
como da cidade, do passado e do presente” (SD32); “se trata de estilização
culta e não fotografia do popular” (SD33). E uma vez mais o enunciador lança
mão de uma negação polifônica para se desidentificar daqueles que entendem
escrever brasileiro como escrever regional ou escrever caipira, ou melhor, para
se desidentificar daqueles que confundem escrever brasileiro com colocar
regionalismos na boca das personagens, enquanto, no papel de narradores,
continuam a escrever seguindo as normas portuguesas. O enunciador
desacredita dos que assim se portam, evocando o exemplo de Dante na
constituição da língua italiana, a partir do latim vulgar: “não são os regionalistas
grifando os erros ditos pelos seus personagens que prepararão Dante, mas os
que escrevem por si mesmos na língua vulgar, lembrando erros passíveis de
serem legitimados” (SD34). O uso do adversativo “mas” separa aqueles que
fazem o que propõe Mário de Andrade e os que só usam os regionalismos na
caracterização de seus personagens, sem efetivamente assumi-las na voz de
narradores.
Mário reconhecia que a tarefa de organizar e sistematizar a fala
brasileira culta, por um lado, não poderia ser feita por uma única pessoa, mas,
por outro, ele também reconhecia que ela tinha de começar de esforços
individuais, como o empreendido por ele: “essa sistematização tem de ser
fatalmente pessoal. Não pode ser de outra forma, pois estou começando uma
coisa e não tirando uma gramática inteirinha de fatos documentados pela
escrita culta e literária” (SD33), considerando o experimentalismo que timbrava
seu fazer literário. Nessa empreitada hercúlea de estilização culta da fala
brasileira, a partir de observações empíricas realizadas pelos escritores
individualmente, Mário convocava todos a esboçar a sua própria
124
gramatiquinha, como ele mesmo fazia, para conjurar os perigos da desordem
que ameaçava aqueles que decidiam escrever brasileiro, emancipando-se das
normas portuguesas. Da soma desses esforços individuais, poderiam resultar,
em meio século, “normas gerais, não só da fala oral transitória e vaga porém
da expressão literária impressa, isto é, da estilização erudita da linguagem oral.
Essa estilização é que determina a cultura civilizada duma raça sob o ponto-de-
vista expressivo. Linguístico”(SD36). A relação entre os projetos individuais e o
projeto coletivo de dotar a língua literária de normas linguísticas mais
adequadas à expressão da alma brasileira é assim explicitada por Mário numa
carta endereçada a Carlos Drummond: “os escrevedores estilizam esse novo
vulgar, descobrem-lhe as leis embrionárias e a língua literária, única que tem
reconhecimento universal (aqui sinônimo de culto) aparece” (trecho citado por
MUSSALIM, 2003, p. 197).
Conforme Mussalim (2006, p. 275), tal como na proposta estético-
musical, “o elemento popular e o elemento culto [...] são matéria-prima para a
constituição de uma fala genuinamente brasileira, produto de um trabalho de
estilização do artista-escritor”. Se, por um lado, o projeto estético nacionalista
dos primeiros modernistas encorajava “o resgate da cultura popular, tomada
como raiz de uma tradição eminentemente brasileira” (MUSSALIM, 2006, p.
272), por outro, ele almejava a “transposição erudita da barbárie”. Na leitura de
Mussalim (2006), a fórmula para transformar a barbárie em erudição passava
pelo filtro da subjetividade do artista:
Inicialmente o artista deixa-se amalgamar pelos temas e ambientes populares de seu país; num segundo momento, tendo passado por escolas, coloca a técnica que domina (oriunda da tradição europeia) a serviço de seu sentimento pessoal, do que decorreria uma arte nacional. Em outras palavras, é por meio do filtro da subjetividade do artista que uma certa tradição europeia é incorporada como recurso técnico para a produção de uma arte nacional. Busca-se, assim, romper com o sentimento de subserviência à cultura europeia; a técnica oriunda da tradição europeia passa a ser um instrumento em prol da construção de uma arte nacional e não um fim em si. (MUSSALIM, 2006, p. 273).
A autora explica, ainda, que o modernismo brasileiro focalizou o trabalho
entre a “produção de arte no Brasil e a ligação (via tradição universal e
vanguardas modernas) com a produção europeia, lutando para superar o
125
estado de reverência absoluta a essa cultura, mantido até então pelos
acadêmicos” (MUSSALIM, 2006, p. 273). Portanto, nessa época, o Brasil
manteve com a Europa uma relação dinâmica e contra-aculturativa e não de
subserviência. A tradição europeia era apropriada como meio para a produção
da arte nacional, fornecia-lhe a técnica; mas não mais lhe roubava a cena.
Em relação ao processo de construção de uma identidade linguística
brasileira, o princípio de “transposição erudita da barbárie” significava superar a
desordem que havia tomado conta da escrita literária, uma vez que, na
ausência de normas gerais, cada escritor apresentava a sua própria solução.
Sobre essa desordem, Mário chegou a afirmar que, efetivamente, o que os
escritores faziam era “ignorar” e não “superar” as normas portuguesas. Dizia
ele que, em relação às normas da língua culta e escrita, os escritores se
encontravam em “situação inferior à de cem anos atrás” (ANDRADE, 1942, p.
235).
Nas SDs de 40 a 44, a seguir, mais alguns postulados que viriam a se
revelar centrais no universo da sociolinguística são antevistos por Mário: a
postura descritiva diante das normas, a precedência do uso da língua sobre a
formalização gramatical e a substituição do princípio de correção pelo de
adequação.
SD40 – O governo podia determinar um grupo de batutas que elaborasse uma gramática mais larga, pra uso das escolas. Está claro que não uma gramática de tentativas que nem as da língua minha, porém tomando em conta fenômenos já universalizados, os pronomes por exemplo (C-71, p. 27, apud GMA, 1990, p. 86). SD41 – Não falar nem uma vez em regras. Nem tão pouco em normas si possível. Falar só em “Constâncias” (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 336). SD42 – Jamais me preocuparam erros de gramática, mas me preocupam “erros” de linguagem que fragilizam a expressão (EGFB-GMA , [1928] 1990, p. 91). SD43 - A linguagem está muito gostosa. Você já refletiu sobre a sintaxe: “as fisionomias se lhe embaralharam na memória”? Repare como está ficando desagradável, pernóstica, lusitana e só encontrável em linguagem pretensiosa. Tem muito jeito de dizer isso evitando o “se lhe” que não é da índole brasileira normal. Até você pode cortar, se livrando da gramática, o “lhe” sem que o sentido e o ritmo expressivo se prejudiquem. Fica prejudicada apenas a gramática, mas não esqueça nunca que a língua é que faz a
126
gramática e não a gramática que faz a língua (CFS, [1942] 1993, p.41). SD44 – A gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que meu inconsciente não sabe de gramáticas, nem de línguas organizadas (PI-PD-PC, [1922] 1993, p. 73).
Nesse grupo de enunciados, buscamos observar como Mário de
Andrade concebe o processo de gramatização da fala brasileira. Na SD40,
avalia que esse processo não pode se reduzir às tentativas isoladas de
escritores que, como ele, buscam, às cegas, uma certa sistematização da fala
popular, mas deve ser atribuído a “um grupo de batutas”, quer dizer, a um
grupo de experts, de pessoas entendidas no assunto. Para ultrapassar o
estágio das gramatiquinhas individuais, era preciso o concurso de estudiosos
de língua, como os filólogos, por exemplo. Tanto na SD40 quanto na SD41,
vemos Mário se pronunciando sobre esse processo de gramatização da fala
brasileira por um viés essencialmente descritivo e não prescritivo, o que
envolveria um extenso trabalho de pesquisa etnográfica. Na elaboração dessa
gramática mais ampla, que poderia até ser usada na escola, era preciso levar
“em conta fenômenos já universalizados, os pronomes por exemplo” (SD40),
era precisar levantar as regularidades da fala brasileira.
Fiel à sua intuição de pesquisador empírico, o enunciador recomendava
a si próprio nas notas destinadas à sua Gramatiquinha: “Não falar nem uma
vez em regras. Nem tão pouco em normas si possível. Falar só em
‘constâncias’” (SD41). O termo “constâncias” refere-se à regularidade de
determinado fenômeno linguístico na fala dos brasileiros, denotando seu
afastamento em relação ao princípio normativo e reforçando sua postura de
pesquisador empírico. O uso de marcas como não/nem uma vez e de nem tão
pouco, negando os princípios que regem a gramática no escopo do discurso
conservador, patenteia a relação interdiscursiva enredada nessa SD e o faz
sob a forma da heterogeneidade mostrada.
No idioma da sociolinguística, o termo “norma” passa a empregado em
duas acepções. Na primeira acepção, a “norma” designa a modalidade
linguística "habitual", "comum" a uma dada comunidade social. Sob esse viés
interpretativo, a norma se estabelece pela frequência de uso, sem implicar
qualquer valoração, definindo-se como regularidades linguísticas correlativas a
127
estratos sociais, a momentos históricos, a diversidades regionais e a graus de
formalidade. Nesse sentido, a norma seria a língua usual, da "média dos
falares", da situação objetiva atestada estatisticamente. Nessa perspectiva, não
se pode falar em “norma”, no singular, mas em “normas”, no plural. É inegável
que o termo “constâncias” que Mário se propõe nos esboços da Gramatiquinha
guarda muita semelhança com o termo “norma”, nessa acepção. Contudo, se
ele o evita é porque, na sua época o termo “norma” era empregado apenas na
segunda acepção, como uso regrado, como modalidade supostamente
"sabida" por alguns poucos falantes, como padrão linguístico a ser seguido,
enfim, como prescrição.
Na SD42, Mário de Andrade continua, por meio da negação polifônica,
corporificada no advérbio de negação jamais, a se afastar dos princípios
gramaticais, desta feita enunciando que “erros de gramática” absolutamente
não o preocupam, mas “erros de linguagem”, sim, pois eles “fragilizam a
expressão”. O que a gramática taxa como erro não necessariamente consiste
em erro de linguagem, e o que é avaliado como certo (aceitável) na linguagem
usada naturalmente pode ser considerado errado sob o ponto de vista
gramatical. Como já consideramos na análise da SD27, realizada
anteriormente, essa distinção entre “erro de gramática” e “erro de linguagem”
prenuncia a distinção entre “correção” e “adequação”, que seria, incontáveis
vezes, discutida pela sociolinguística a partir da década de 1960.
Essa distinção encontra-se ilustrada na observação feita na SD43, em
carta endereçada a Fernando Sabino, a propósito da frase “as fisionomias se
lhe embaralharam na memória”: “Repare como está ficando desagradável,
pernóstica, lusitana e só encontrável em linguagem pretensiosa. Tem muito
jeito de dizer isso evitando o “se lhe” que não é da índole brasileira normal. Até
você pode cortar, se livrando da gramática, o “lhe” sem que o sentido e o ritmo
expressivo se prejudiquem”. Usar o “se lhe”, apesar de acerto gramatical, seria
erro de linguagem, uma vez que estaria em desacordo com “a índole
brasileira”. O “se lhe” soaria inadequado, afetado, pernóstico, pretensioso, na
pena de um escrevinhador brasileiro. Segundo Mário, o corte do “se lhe”
poderia ser considerado um erro de gramática, mas em benefício da
expressão. Então, o missivista arremata seu pensamento, recomendando
enfaticamente a seu destinatário que “não esqueça nunca que a língua é que
128
faz a gramática e não a gramática que faz a língua” (SD43). A dupla negação
não/nunca cumpre a função de lembrar algo praticamente esquecido pelo
pensamento toldado pelo discurso gramatical que nos fazia crer que era a
gramática que nos ensinava a falar e não o inverso. Nesse sentido, a SD44 –
“A gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que meu
inconsciente não sabe de gramáticas, nem de línguas organizadas” (SD44) –
soa profundamente afinada com o pensamento linguístico, ao distinguir
“competência linguística” de “gramática” como conjunto de regras prescritivas.
A competência linguística seria uma espécie de gramática internalizada de que
o falante se serve automática e inconscientemente ao usar uma língua. Por
tudo que foi dito na seção 3.5, somos levados a pensar em Mário de Andrade
como um (socio)linguista temporão. Certamente, ele teria ido muito mais longe
se tivesse encontrado mais parceiros para suas expedições etnográficas.
Neste capítulo, nos embrenhamos no enredo discursivo em que Mário
de Andrade se envolveu no afã de perfilar uma identidade linguística brasileira,
emancipada do modelo lusitano, mas não refém do regionalismo que lhe era
contemporâneo. No horizonte vislumbrado por Mário, o nacionalismo emergia
como significativo, se, e apenas se, integrado ao humanismo que regia seu
desejo de projetar o Brasil no concerto da cultura civilizada universal. No
próximo capítulo, vamos nos dedicar ao estudo do ethos do enunciador, ao
entrar na polêmica linguística que, desde o século XIX, não sai da cena das
Letras brasileiras.
129
Na elaboração do ethos interagem fenômenos de ordens muito
diversas: os índices sobre os quais se apoia o intérprete vão desde a
escolha do registro da língua e das palavras até o planejamento
textual, passando pelo ritmo e modulação... O ethos se elabora,
assim, por meio de uma percepção complexa, mobilizadora da
afetividade do intérprete, que tira suas informações do material
linguístico e do ambiente. (MAINGUENEAU, 2011, p. 16)
130
Capítulo 4
O ETHOS DE MÁRIO DE ANDRADE NA ENUNCIAÇÃO ACERCA DA
IDENTIDADE LINGUÍSTICA BRASILEIRA
Neste capítulo, realizamos uma retomada da noção de ethos, tal como
concebida por Maingueneau (1989, 1997, 2005a, 2005b, 2008a, 2008b, 2010,
2011) e Amossy (2008). Revisitamos o diálogo de Maingueneau com
Aristóteles, Barthes, Ducrot e outros autores acerca do tema. Além disso,
sublinhamos as mudanças promovidas pelo estudioso francês ao deslocar a
noção da retórica para a análise de discurso. Em seguida, analisamos um
conjunto de sequências discursivas recortadas de textos de Mário de Andrade,
focalizando o ethos do enunciador, ao defender o abrasileiramento da língua e
da literatura no alvorecer do século XX.
4.1 Da noção de ethos
Os atuais estudos desenvolvidos por Maingueneau acerca da noção de
ethos retomam a retórica aristotélica. Segundo Aristóteles, o discurso comporta
três elementos: o orador, o assunto de que se fala e o ouvinte, ao qual é
direcionado o discurso. A esses elementos correspondem três tipos de provas
argumentativas – o logos, o pathos e o ethos – usadas pelo enunciador para
persuadir-convencer seu auditório: o logos refere-se à mobilização do auditório
por argumentos racionais; o pathos diz respeito à prática de comover o
auditório pelas paixões nele suscitadas pelo discurso e o ethos mobiliza o
auditório pelo caráter/conduta do orador.
Embora essas três partes sejam complementares, Aristóteles afirma que “o
ethos constitui praticamente a mais importante” (ARISTÓTELES, apud EGGS,
2008, p. 29), posição que o distancia de seus contemporâneos, que
subestimam a força do ethos na persuasão. Ademais, o ethos é visto como um
131
efeito construído na própria enunciação e não como um traço de caráter prévio
a ela. Segundo Aristóteles:
Persuade-se pelo caráter quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de fé. Pois acreditamos mais e bem mais depressa em pessoas honestas, em todas as coisas em geral, mas sobretudo nas de que não há conhecimento exato e que deixam margem para dúvida. É, porém, necessário que esta confiança seja resultado do discurso e não uma opinião prévia sobre o caráter do orador; pois não se deve considerar sem importância para a persuasão a probidade do que fala, como aliás alguns autores desta arte propõe, mas quase se poderia dizer que o caráter é o principal meio de persuasão (ARISTÓTELES I, 2005, p. 96).
Desse modo, para Aristóteles a persuasão ocorre quando o orador
mostra a verdade ou o que parece ser a verdade “a partir do que é
persuasivo em cada caso particular” (LIVRO I, 2005, p.97). O filósofo
enumera três qualidades fundamentais para que o orador construa uma
imagem positiva de si mesmo e obtenha a credibilidade do seu auditório por
meio do ethos produzido no discurso. São elas: a prudência, a virtude e a
benevolência, assim consideradas pelo autor:
Quando os oradores recorrem à mentira nas coisas que dizem ou sobre aquelas que dão conselhos, fazem-no por todas essas causas ou por algumas delas. Ou é por falta de prudência que emitem opiniões erradas ou então, embora dando uma opinião correta, não dizem o que pensam por malícia; ou sendo prudentes e honestos não são benevolentes; por isso, é admissível que, embora sabendo eles o que é melhor, não o aconselham. Para além destas, não há nenhuma outra causa. (ARISTÓTELES, 2005, II, p. 160).
Tais qualidades capacitam o orador a persuadir sem a necessidade de
fazer demonstrações, o que mostra a importância do ethos sobre o logos.
Maingueneau (2011) é incisivo na ideia de que o ethos é constituído durante a
enunciação. Além de recorrer a Aristóteles, recorre também a Barthes para
corroborar esse seu posicionamento. De acordo com Barthes (1970, p. 212), o
ethos envolve “traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco
importa sua sinceridade) para dar uma boa impressão. [...] O orador enuncia
uma informação e, ao mesmo tempo, diz: eu sou isto aqui, não aquilo lá”.
132
Além de Aristóteles e Barthes, Maingueneau (2011, p. 13) dialoga
também com Ducrot, cuja conceituação de ethos parte da distinção entre
“locutor-L” [=o locutor apreendido como enunciador] e “locutor-lambda” [=o
locutor apreendido como ser do mundo], que, por sua vez, corresponde à
distinção entre mostrar e dizer. No quadro da teoria polifônica proposta por
Ducrot, o ethos associa-se ao locutor-L, uma vez que não é dito,
necessariamente, no enunciado, mas é mostrado durante o ato de enunciação.
Nessa perspectiva, o ethos não se confunde com os atributos reais do locutor.
Nas palavras do autor,
Não se trata de afirmações que o autor pode fazer a respeito de sua pessoa no conteúdo do seu discurso – afirmações que, ao contrário, correm o risco de chocar o auditório –, mas da aparência que lhe conferem a cadência, a entonação, calorosa ou severa, a escolha de palavras, dos argumentos... (DUCROT, 1984, p. 201).
Essa visão de ethos é também abonada por Amossy (2008), que afirma
ser o ethos inalienável da enunciação, já que a tomada da palavra,
independentemente de intencionalidade, sempre forja uma imagem do
enunciador:
Todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si. Para tanto, não é necessário que o locutor faça seu autorretrato, detalhe suas qualidades nem mesmo fale explicitamente de si. Seu estilo, suas competências linguísticas e enciclopédicas, suas crenças implícitas são suficientes para construir uma representação de sua pessoa (AMOSSY, 2008, p.9).
Segundo a autora, ninguém pode ignorar a força da imagem do locutor
na consecução do projeto enunciativo, sob pena de ele fracassar. Como
exemplo, ela cita: as entrevistas para selecionar um candidato a um cargo,
os comícios eleitorais, as relações de sedução e “todas as declarações em
que a imagem do locutor implica riscos concretos” (AMOSSY, 2008, p.9).
Buscando destrinçar a noção de ethos, de modo a torná-la
metodologicamente operacional no quadro da análise de discurso,
Maingueneau (2011) observa que ela pode envolver, além de traços
linguísticos, elementos como: tom da voz, ritmo da fala, mímicas, trajes,
133
postura, gestualidade, enfim, “todos os signos, de elocução e de oratória,
indumentários ou simbólicos, pelos quais o orador dá de si mesmo uma
imagem psicológica e sociológica” (DECLERCQ, 1992, p. 48, apud
MAINGUENEAU, 2011, p.14).
Maingueneau (2008a) encontra-se às voltas com a ressignificação do
termo ethos no escopo da análise de discurso, desde o início da década de
1980. Nesse novo quadro disciplinar, o ethos é concebido como a maneira de
dizer vinculada à figura do enunciador, que é o “fiador” de seu discurso, e que
deverá, por meio de sua fala, construir uma imagem de si compatível com os
mundos criados pelos enunciados. O autor insiste, pois, que “as ‘ideias’
apresentam-se por uma maneira de dizer que remete a uma maneira de ser”
(MAINGUENEAU, 2008a, p. 73).
Se, na retórica aristotélica, em sintonia com o contexto discursivo da
Grécia antiga, o ethos vinculava-se “à eloquência, à oralidade em situação de
fala pública (assembléia, tribunal...)”, no universo da análise de discurso, foi
preciso ampliar seu alcance, para abarcar todos os tipos de texto, sejam eles
orais, escritos ou mesmo multimodais, a exemplo dos textos da publicidade.
Afinal qualquer texto, independentemente de sua materialidade linguageira,
apresenta “uma ‘vocalidade’ que pode se manifestar numa multiplicidade de
‘tons’”, que se associam ao “corpo do enunciador (e, bem entendido, não do
corpo do locutor extradiscursivo), a um ‘fiador’, construído pelo destinatário a
partir de índices liberados na enunciação” (MAINGUENEAU, 2011, p. 17-18).
O autor afirma preferir o termo “tom” ao termo “voz”, já que “tom” lhe
parece mais adequado para designar tanto o escrito quanto o oral
(MAINGUENEAU, 2011, p.18). Argumenta, ainda, que sua concepção de ethos
é mais “encarnada”, tendo em vista que “recobre não somente a dimensão
verbal, mas também o conjunto de determinações físicas e psíquicas
associadas ao ‘fiador’ pelas representações coletivas”. Dessa forma, é
atribuída ao fiador um “caráter” e uma “corporalidade”. Ele explica que “o
‘caráter’ corresponde a um feixe de traços psicológicos”. E a “corporalidade”
está associada a uma compleição física e a uma maneira de vestir-se”
(MAINGUENEAU, 2011, p.18). Assim, o ethos pode ser visto como uma
espécie de comportamento que, articulando traços verbais e não verbais,
produz no destinatário efeitos que não decorrem apenas de palavras, que não
134
são ditos explicitamente. Ele alude a uma forma de mover-se no espaço social,
identificada a certos comportamentos estereotípicos compartilhados pelo
enunciador e seus coenunciadores. A enunciação, por sua vez, contribui para
reforçar ou transformar tais estereótipos.
Com relação à incorporação do leitor ao ethos produzido pelo
enunciador, o autor argumenta que “ela implica um ‘mundo ético’ do qual ele é
parte pregnante e ao qual ele dá acesso” (2011, p.18). Esse “mundo ético” é
ativado pela leitura e retoma um certo número de “situações estereotípicas
associadas a comportamentos” (MAINGUENEAU, 2011, p. 18).
Assim, ao observar o comportamento do enunciador, o destinatário
avalia e apoia-se em um conjunto de traços sociais presentes no discurso do
enunciador, ao se colocar a respeito de alguma questão. Isso contribui para a
avaliação do leitor/ouvinte de forma positiva ou negativa, o que depende de
seus costumes e da sociedade da qual fazem parte o fiador e o interlocutor.
Desse modo, ao identificar traços de um determinado “mundo ético”
incorporado no orador, o interlocutor pode aderir à postura pertencente àquela
comunidade imaginária ou não. Nessa perspectiva, entende-se que mundo
ético implica o compartilhamento de algumas posturas sócio-ideológicas por
determinado grupo estável e reconhecido por uma sociedade. Assim, um grupo
pertencente a um determinado mundo ético objetiva conquistar a adesão de
uma comunidade imaginária. Esta é representada por outros indivíduos, que
possivelmente compartilharão das mesmas ideias defendidas por esse grupo já
existente.
Entre os exemplos de mundos éticos, são citados em Maingueneau
(2011, p. 18): o mundo ético dos executivos dinâmicos, o dos ricos emergentes,
o das celebridades, etc., os quais constituem referências fartamente exploradas
pela publicidade contemporânea. Com base nisso, ressaltamos que o mundo
ético contemplado por nosso estudo refere-se ao dos intelectuais/escritores
modernistas, do qual Mário de Andrade foi um representante notável. Entre os
traços marcantes do comportamento associado aos integrantes desse grupo
estão o de buscar as propostas para a revolução artística, por meio da
emancipação brasileira não só no aspecto político, mas abrangendo,
principalmente, os campos linguístico, literário, artístico e cultural.
135
Maingueneau (2011, p. 18) disseca o processo de ‘incorporação’,
entendido como a forma pela qual o intérprete (ouvinte, leitor, telespectador) se
apropria do ethos, por meio de três registros: a) “a enunciação da obra confere
uma ‘corporalidade’ ao fiador, ela lhe dá corpo”; b). “o destinatário incorpora,
assimila um conjunto de esquemas que correspondem a uma maneira
específica de se remeter ao mundo habitando seu próprio corpo”; c) as duas
primeiras incorporações levam “a constituição de um corpo, da comunidade
imaginária dos que aderem ao mesmo discurso”.
Ademais, o autor esclarece que, na perspectiva da análise de discurso,
na qual se inscreve, o ethos não pode ser visto apenas como “um meio de
persuasão: ele é parte pregnante da cena da enunciação” (MAINGUENEAU,
2008b, p. 69). Para ele,
Não de trata de uma representação estática e bem delimitada, mas, antes, de uma forma dinâmica, construída pelo destinatário através do movimento da própria fala do locutor. O ethos não age no primeiro plano do discurso, mas de maneira lateral; ele implica uma experiência sensível do discurso, mobiliza a afetividade do destinatário” (MAINGUENEAU, 2011, p.14).
Maingueneau afirma que a noção de ethos não é tão simples como pode
parecer à primeira vista, pois ela envolve múltiplas dimensões. Em primeiro
lugar, ele propõe uma distinção entre dois tipos de ethos: ethos pré-discursivo
e ethos discursivo. Com relação ao ethos pré-discursivo, o autor esclarece sua
importância, ao justificar que “o ethos está crucialmente ligado ao ato de
enunciação, não se pode ignorar que o público constrói também
representações do ethos do enunciador antes mesmo que ele fale”
(MAINGUENEAU, 2011, p.15). Quanto ao ethos discursivo, este é construído
durante todo ato de enunciação do fiador do discurso. Dessa forma, o ethos se
patenteia como
[...] uma noção discursiva, ele se constitui por meio do discurso, não é uma ‘imagem’ do locutor exterior à fala; o ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro; o ethos é uma noção fundamentalmente híbrida (sociodiscursiva), um comportamento socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação (MAINGUENEAU, 2008b, p.63).
136
De um lado, há situações em que o destinatário se vê impossibilitado de
ativar representações prévias do ethos do enunciador, a exemplo do que
ocorre quando lemos um texto cujo autor desconhecemos por completo. De
outro lado, há situações em que representações prévias são fortemente
acionadas, como é o caso da imprensa “de celebridades”, onde a maior parte
dos personagens é exposta constantemente pela mídia, contribuindo para que
o destinatário de seu discurso possa mobilizar informações anteriores e
exteriores à enunciação e comparar o ethos pré-discursivo e o ethos
discursivo. Outro aspecto que não pode ser deixado de lado nessa oposição é
o gênero de discurso em que se encaixa a enunciação, pois mesmo que o
destinatário não tenha nenhuma informação antecipada do locutor, “o simples
fato de um texto pertencer a um gênero de discurso ou a certo posicionamento
ideológico induz expectativas em matéria de ethos” (MAINGUENEAU, 2008b,
p. 60). Em razão disso, o autor sugere que a distinção entre ethos pré-
discursivo e ethos discursivo leve em conta a diversidade dos gêneros de
discurso.
Explorando a noção de ethos, Maingueneau levanta outra série de
questões relativas à suposição de que ele é um efeito do discurso (verbal),
suposição a seu ver insustentável quando se consideram textos
multissemióticos e também a interação face a face, pois torna-se difícil decidir
se o ethos construído pelo destinatário se deve somente às palavras do
enunciador ou se é complexamente motivado. Na sua opinião, constitui uma
questão delicada
Saber se se deve relacionar o ethos ao material propriamente verbal, atribuir poder às palavras, ou se se devem integrar a ele – e em quais proporções – elementos como as roupas do locutor, seus gestos, ou seja, o conjunto do quadro de comunicação (MAINGUENEAU, 2011, p. 16).
Segundo o autor, não é possível considerar o ethos de maneira igual em
qualquer texto, pois a “incorporação” não funciona de maneira uniforme; ela é
modulada em função dos gêneros e dos tipos de discurso. Assim, “o ethos em
um texto escrito não implica necessariamente uma relação direta com um
137
fiador encarnado, socialmente determinável” (MAINGUENEAU, 2008b, p.66),
diferentemente do que ocorre, por exemplo, quando se trata de um texto
publicitário multissemiótico em circulação na TV aberta.
Nesse mesmo grupo de dificuldades em torno da noção de ethos,
Maingueneau esclarece que pode haver desencontro entre o ethos visado e o
ethos produzido. Uma imagem pretendida pode ser relacionada “a coisas
muito diferentes, conforme seja considerada do ponto de vista do locutor ou do
destinatário” (2011, p. 16), como ilustram os exemplos a seguir:
Um professor que queira passar uma imagem de sério pode ser percebido como monótono; um político que queira suscitar a imagem de um indivíduo aberto e simpático pode ser percebido como um demagogo. Os fracassos em matéria de ethos são moeda corrente (MAINGUENEAU, 2011, p.16).
Dessa forma, um locutor aciona no intérprete a construção de uma
representação, incorrendo, inevitavelmente, no risco de não dominar sua
própria fala a ponto de perfilar a imagem de si, que deseja que o outro faça
dele. Marqueteiros que trabalham com campanhas publicitárias de candidatos
a cargos políticos (presidente, governador e prefeito) conhecem, como
ninguém, os desencontros entre o ethos visado e ethos efetivamente
produzido.
Outra distinção proposta pelo pesquisador francês diz respeito à
oposição entre ethos dito e ethos mostrado. Conforme definição do autor, o
ethos dito
[...] vai além da referência direta do enunciador a sua própria pessoa ou a sua própria maneira de enunciar (‘eu sou um homem simples’, ‘eu lhes falo como amigo’ etc); existe de fato grande diversidade de meios para evocar indiretamente, para sugerir o ethos do enunciador” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 80).
No ethos mostrado, “o enunciador é percebido através de um ‘tom’ que
implica certa determinação de seu próprio corpo, à medida do mundo que ele
instaura em seu discurso” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 53). Porém, essa
distinção, segundo o pesquisador, “se inscreve nos extremos de uma linha
contínua, uma vez que é impossível definir uma fronteira nítida entre o ‘dito’
138
sugerido e o puramente mostrado pela enunciação” (MAINGUENEAU, 2011, p.
18).
Assim, o ethos efetivo do discurso resulta de uma interação entre
diversos fatores: ethos pré-discursivo, ethos discursivo, que pode ser mostrado
ou dito (este pode ser de forma direta ou indireta por meio de metáforas ou
alusões). Essa interação é explicitada no esquema vetorial a seguir:
(MAINGUENEAU, 2011, p.19)
Além dos traços constitutivos do ethos comentados até aqui,
Maingueneau também explora sua articulação com as cenas da enunciação:
“Por meio do ethos, o destinatário está, de fato, convocado a um lugar, inscrito
na cena de enunciação que o texto implica” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 70).
Dá-se, portanto, uma necessária inscrição do corpo enunciante numa situação
que a cena de enunciação pressupõe e legitima.
A cena da enunciação constitui-se de uma tríade que compreende: a
“cena englobante”, a “cena genérica” e a “cenografia” (MAINGUENEAU, 2008b,
p. 70). Dentre as três, apenas as duas primeiras estão necessariamente
presentes em uma situação discursiva, sendo a última dependente da
finalidade de cada gênero discursivo.
A “cena englobante” “corresponde ao tipo de discurso, ao seu estatuto
pragmático” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 115), definindo, sobremaneira, o
modo de o texto interpelar o leitor. Quem vive numa formação sócio-histórica
como a nossa, se receber um folheto na rua, é capaz de remetê-lo ao discurso
religioso, político, publicitário, jornalístico, literário ou qualquer outro tipo. Por
139
exemplo, como leitores de um folheto de teor publicitário, somos interpelados
como consumidores possíveis.
A cena englobante é demasiadamente geral para dar conta de
especificar as atividades discursivas em que enunciador e co-enunciador
encontram-se engajados. “Vemo-nos confrontados com gêneros de discurso
particulares, com rituais sociolinguageiros que definem várias cenas genéricas”
(MAINGUENEAU, 2008b, p. 116). A cena genérica implica um contexto
específico que estabelece os papéis dos participantes, o modo de inscrição no
espaço e no tempo, o suporte material, a finalidade etc. No caso de um folheto
publicitário, um gênero textual específico, concretizado por meio de um suporte
textual (impresso) também específico, temos o produtor (o enunciador) de
determinadas mercadorias ou serviços tentando persuadir uma classe
determinada de consumidores (o co-enunciador) a adquirir tais produtos.
Os espaços da cena englobante e da cena genérica são relativamente
estáveis e, na maioria das vezes, apenas eles definem a cena da enunciação.
Contudo, pode intervir uma cena bastante específica e imprevisível – a
cenografia – “que não é imposta pelo tipo ou pelo gênero do discurso, mas é
instituída pelo próprio discurso” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 116). Ainda
segundo o autor, “a escolha da cenografia não é indiferente: o discurso,
desenvolvendo-se a partir de sua cenografia, pretende convencer instituindo a
cena de enunciação que o legitima” (2008b, p. 117). A isso Maingueneau
(2001, p. 87) chama de “enlaçamento paradoxal”, ou seja, a enunciação supõe
uma certa cena que, efetivamente, só se constitui e legitima à medida que ela
própria vai se desenrolando.
Além disso, uma cenografia pode incluir uma cena validada, que se
caracteriza por apresentar aspectos que foram fixados na memória coletiva,
que evocam determinados modos de ser e estar ligados às atividades sociais.
Uma cena validada funciona “como um estereótipo autonomizado,
descontextualizado, disponível para reinvestimento em outros textos”
(MAINGUENEAU, 2005b, p. 92).
Segundo Maingueneau (2008b, p.117), numa cenografia se associam
“uma figura de enunciador e uma figura correlata de coenunciadores” que, por
sua vez, “supõem igualmente uma cronografia (um momento) e uma topografia
(um lugar), das quais pretende originar-se o discurso”. Segundo Possenti
140
(2008, p. 205) “a cronografia e a topografia não são tempos cronológicos nem
espaços geográficos, mas ‘tempos’ e ‘espaços’ ideológicos, históricos: a favela,
a cidade, a civilização, a globalização”.
Dessa forma, “o discurso impõe sua cenografia de algum modo desde o
início; mas, de outro lado, é por intermédio de sua própria enunciação que ele
poderá legitimar a cenografia que ele impõe”. Porém, para isso, é necessário
que o discurso faça seus intérpretes “aceitarem o lugar que ele pretende lhes
designar nessa cenografia e, de modo mais amplo, no universo de sentido do
qual ela participa” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 117). Em vista disso, o autor
postula que o ethos é inalienável da cenografia, uma vez que ele constitui o
enunciador para que ele possa “legitimamente” interpelar o co-enunciador de
seu discurso.
Para que a cenografia desempenhe plenamente seu papel, não deve ser
considerada como uma simples moldura, ou como um palco definido antes e
fora da enunciação, mas, a um só tempo, como origem e produto do discurso.
À medida que o co-enunciador (leitor, ouvinte, expectador) avança no texto, ele
precisa se convencer de que aquela cenografia, e não outra, é a ideal para
aquele discurso.
Com relação à relevância da cenografia de acordo com cada gênero
discursivo, o autor visualiza duas situações polarizadas: de um lado, estão os
gêneros que se limitam ao cumprimento de sua cena genérica, como, por
exemplo, a correspondência administrativa que se desenvolve em cenas
bastante fixas, dificilmente se afastando do modelo pré-estabelecido; de outro
lado, estão os gêneros que sempre exigem a escolha de uma cenografia, como
é o caso da publicidade, da poesia, do romance, da piada etc. Conforme
Maingueneau, essa variação liga-se à finalidade dos gêneros de discurso. A
lista telefônica, por exemplo, é um gênero que prescinde de uma cenografia,
tendo em vista sua função puramente utilitária. Já um panfleto publicitário ou
político mobiliza cenografias variadas com o objetivo de persuadir seu co-
enunciador, captando seu imaginário e lhe atribuindo uma identidade por meio
de uma cena de fala validada que seja reconhecida e com a qual se identifique.
Por fim, retomamos a síntese que elegemos como caracterizadora da
base conceitual do autor, a de que o ethos é construído por uma relação entre
uma “maneira de dizer, que se remete a uma maneira de ser” e isso leva o co-
141
enunciador a criar uma imagem do enunciador durante sua enunciação. Essa
imagem é constituída pelo “tom” do discurso, articulado a um caráter e a uma
corporalidade, e, tudo isso, associado à cena de enunciação. Sem
necessariamente ter de ser dito explicitamente, o ethos é percebido pelo
destinatário por um conjunto complexo de elementos que vão desde “a escolha
do registro da língua e das palavras até o planejamento textual, passando pelo
ritmo e a modulação” (MAINGUENEAU, 2011, p. 16).
4.2 Do ethos pré-discursivo ao discursivo em Mário de Andrade
No primeiro capítulo, revisitando a trajetória intelectual de Mário de
Andrade, vimos que ele participou da vanguarda do movimento modernista no
Brasil, entre as décadas de 1920 e 1940. Por estar no front do movimento,
deflagrado oficialmente pela Semana de Arte Moderna, tornou-se uma figura
pública associada à imagem de destruidor, revoltado, insurreto, de alguém que
fazia parte da “turma do barulho” (os moços paulistas) que, na fase de irrupção
do modernismo, se comprazia em causar impacto vociferando suas ideias
diante de plateias desavisadas que reagiam por meio de vaias e caçoadas.
Diante da visibilidade do grupo modernista na vida intelectual paulistana, era
quase impossível descolar a imagem de Mário da imagem do grupo dos
revolucionários, o que nos permite pensar numa espécie de ethé pré-
discursivos que eram mobilizados pelos co-enunciadores (ouvintes/leitores)
antes mesmo que ele enunciasse publicamente. Na SD45, a seguir, podemos
notar que Mário tinha a consciência de que ele escandalizava a opinião pública
pelo seu inconformismo diante do passado e do academicismo.
SD45 - A pedra de escândalo que fui, era apenas e todos perceberam isso um instinto alegre de vitalidade, uma confissão de coragem, uma demonstração de verdade sem acomodações com nenhum passado que não fosse o presente. E porque si não fui exemplar fui uma lição, coisa muito mais vital, mais ardida e mais humana que o exemplo (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 328-329).
Na SD45, o enunciador reconhecia ser “uma pedra de escândalo” aos
olhos dos outros, conduta que ele justificava pelo “instinto alegre de vitalidade”,
pela “confissão de coragem”, pela “demonstração de verdade” e pela não
142
acomodação ao passado. Ele concordava em ser uma figura publicamente
impactante, mas reagia à ideia de ter sua imagem gratuitamente associada a
escândalo – revolucionário, sim, rebelde sem causa, não. Causar escândalo,
não era privilégio de Mário, mas uma postura compartilhada por toda a
vanguarda modernista, que formava uma comunidade ética em evidência na
conjuntura vivida pela intelligentsia brasileira naquele momento histórico, não
como grupo oficial, mas como grupo insurgente que tinha convicção nas ideias
revolucionárias que defendia.
O Brasil, especialmente São Paulo, vivia um célere processo de
modernização, industrialização e urbanização que contrastava com os padrões
culturais tradicionais ainda imperantes nas demais regiões brasileiras. A
bandeira do progresso passava a balizar todas as esferas de atividades
humanas, embora não sem a oposição dos conservadores que a
responsabilizavam por todos os males que atormentavam o tempo presente.
Segundo Silveira (1999, p. 32), havia naquele momento uma “urgência de
acertar o relógio-brasil com o relógio das nações civilizadas”. Contudo,
sintonizar o Brasil, com suas estruturas econômicas e sociais arcaicas, com as
nações desenvolvidas não era uma tarefa simples, pois o processo de
emancipação do país, iniciado com a independência de Portugal ainda não
havia se consolidado. Se o país tinha independência política, era ainda cultural
e linguisticamente dependente dos modelos lusitanos e essa dívida consigo
mesmo, de certa forma, representava um óbice à sua participação no concerto
internacional das nações civilizadas.
Enquanto a Europa respirava os ares novos do futurismo, cubismo,
expressionismo, dadaísmo, surrealismo, movimentos identificados com a
experimentação estética sacudindo a poeira do academicismo, o Brasil ainda
fazia poesia parnasiana e pintura realista, seguindo uma estética bem
comportada que se comprazia em cultuar o passado e em retratar fielmente os
motivos pintados, como prova a reação indignada de Monteiro Lobato diante da
exposição de Anita Malfatti em dezembro de 1917. Derrisoriamente Lobato
afirmava que a pintura de Anita ainda “não era futurista”, mas já evidenciava
“uma cubice” e “acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada
no sentido das extravagâncias de Picasso & Cia”, manifestações artísticas que
ele assim avaliava: “‘Arte moderna’: eis o escudo, a suprema justificação de
143
qualquer borracheira” (LOBATO, 1917). Metonimicamente, o episódio Malfatti-
Lobato revela o clima polêmico desencadeado pelo modernismo em meio à
intelligentsia brasileira da época, em muitos aspectos, ainda conservadora.
Se, por um lado, a vanguarda modernista brasileira era instigada a
acompanhar as revoluções econômicas, políticas e estéticas internacionais, por
outro, tinha de completar sua própria revolução nacional, cortando os liames
que ainda nos prendiam a Portugal. Afinal, para participar do mundo civilizado,
o Brasil precisava perfilar sua identidade, sem, contudo, deixar de se colocar
no compasso do progresso internacional. No campo das Letras, isso significava
ter uma literatura e, principalmente, uma identidade linguística brasileira. Essa
divisão entre ser nacional e ser internacional causava angústia a alguns dos
modernistas que, como Mario de Andrade, se recusavam a pensar a nação
endogenamente e defendiam a convergência entre ser brasileiro e ser
universal. Outros resolviam o dilema esquecendo-se da projeção internacional
e realizando um abrasileiramento confinado às fronteiras nacionais e não raro
regionais. Dos modernistas que assim se posicionavam e agiam, Mário
discordava incisivamente.
Dessa forma, o mundo ético dos artistas, dos escritores, dos intelectuais,
na São Paulo das décadas de 1920 a 1940, que viu o modernismo nascer e
florescer, constitui a topografia, a cronografia e a cenografia da enunciação de
Mário de Andrade. Participando ativamente desse mundo ético, ele combatia
não apenas aqueles que cultuavam o passado, os “bilaques” e outros
escritores desvirtuados pela gramatiquice parnasiana que havia transformado a
linguagem numa “coisa oficial, gélida ver um Ministério das Relações
Exteriores” (SD3), mas também aqueles que reduziam a literatura brasileira ao
regionalismo, pois, na sua concepção, era preciso superar o regionalismo,
fundir a linguagem de norte a sul e fazer uma “estilização culta da linguagem
popular da roça, como da cidade, do passado e do presente” (SD32). E até
mesmo com os modernistas que se opunham a Portugal, Mário polemizava:
“Não se trata de reação contra Portugal. Trata-se duma independência natural,
sem reivindicações, sem nacionalismos, sem antagonismos, simplesmente,
inconscientemente. Se trata de “ser”. O brasileiro tem direito de ser (SD11).
Pelos debates travados com parnasianos e conservadores em geral,
com regionalistas e com modernistas anti-lusitanistas, Mário era visto como
144
uma voz rebelada, insurgente, polêmica, imagem que, sem dúvida, funcionava
como uma espécie de ethos pré-discursivo, uma vez que o espaço, por
excelência, para as controvérsias levadas a cabo por ele e os demais
modernistas era a imprensa diária. Como intelectual multifacetado, participava
de discussões sobre temas relacionados aos mais diversos campos de
conhecimento, como: pintura, música, literatura, cultura, artes, língua,
antropologia, etnologia, religião etc., de modo que estava sempre metido em
alguma controvérsia em torno de alguma questão relativa à vida cultural
paulistana ou brasileira.
O principal campo de batalha dos modernistas era, como já apontamos,
a imprensa. Apesar de conservadora, ela abria espaço para os modernistas
publicarem suas ideias e travarem suas guerras por meio das palavras. Na
imprensa, eles publicavam manifestos, artigos, conferências, críticas de arte,
crítica literária, crônicas, poesias, contos e tudo que pudesse chocar e
transformar o arcaico pensamento brasileiro. Como a imprensa era o espaço
preferido para o duelo verbal entre modernos e conservadores, os atores das
controvérsias estavam sempre expostos à opinião pública. Todavia, a imprensa
não foi o único espaço de circulação e divulgação do movimento; ele também
viçou nos salões paulistanos (os salões da Rua Lopes Chaves, da Avenida
Higienópolis, da Rua Duque de Caxias e da Alameda Barão de Piracicaba).
Segundo Mussalim (2011),
Essas festas fortaleciam a repulsa da sociedade paulistana em torno do novo grupo. Criou-se em torno dos modernistas toda uma semântica do maldizer, pautada em boatos a respeito do que ocorria nessas festas: “champanha com éter, vícios inventadíssimos, as almofadas viraram ‘coxins’” (MUSSALIM, 2011, p. 76).
Além de associados à devassidão das ideias e do caráter, a boataria em
torna do “movimento dos salões” associava aos modernistas também a
devassidão do corpo, o que aumentava a reação da elite paulistana
conservadora contra eles. Quanto mais oposição o grupo enfrentava, mais
afirmava seu propósito de “agredir o gosto oficial”, ligado ao academicismo; de
combater “o marasmo intelectual do país”, “o passadismo”, “a subserviência
aos padrões estéticos europeus” e as regras e valores tradicionais. As ações e
145
posturas públicas do grupo “conferiram ao movimento um caráter
revolucionário” (MUSSALIM, 2011, p. 76). Assim é que nos parece plausível
pensar, a propósito do enunciador modernista, num ethos prévio, pré-discursivo
– o ethos do revoltado, do destruidor, do revolucionário – que seria acionado
pelos co-enunciadores simplesmente por se tratar de um modernista, cuja fama
era pública e notória. O enunciador associado ao mundo ético dos modernistas
se colocava, pois, como “aquele que se posiciona na brecha como revisionista,
que gera polêmicas e desestabiliza a ordem social” (MUSSALIM, 2011, p. 77).
No texto O movimento modernista, escrito por Mário de Andrade 20 anos
após o surgimento do modernismo, o escritor reflete sobre o significado do
movimento para a inteligência nacional no momento em que ele ganhou a cena
pública, como podemos observar pelas SDs 46 a 50:
SD46 – O movimento, se alastrando ao poucos, já se tornara uma espécie de escândalo público permanente (ALB-MM, [1942] 2002, p. 257). SD47 – E foi no meio da mais tremenda assuada, dos maiores insultos, que a Semana de Arte Moderna abriu a segunda fase do movimento modernista, o período realmente destruidor (ALB-MM, [1942] 2002, p. 260).
SD48 – O movimento modernista, no Brasil, foi uma ruptura, foi um abandono de princípios e de técnicas consequentes, foi uma revolta contra o que era a inteligência nacional. É muito mais exato imaginar que o estado de guerra da Europa tivesse preparado em nós um espírito de guerra, eminentemente destruidor (ALB-MM, [1942] 2002, p. 258). SD49 – Não cabe nesse discurso de caráter polêmico, o processo analítico do movimento modernista. Embora se integrasse nele figuras e grupos preocupados de construir, o espírito modernista que avassalou o Brasil, que deu o sentido histórico da Inteligência Nacional desse período, foi destruidor (ALB-MM, [1942] 2002, p. 265). SD50 – Pois essa é a melhor razão-de-ser do Modernismo! Ele não era uma estética, nem na Europa nem aqui. Era um estado de espírito revoltado e revolucionário que, si a nós nos atualizou, sistematizando como constância da Inteligência nacional o direito antiacadêmico da pesquisa estética e preparou o estado revolucionário das outras manifestações sociais do país, também fez isto mesmo no resto do mundo, profetizando estas guerras de que uma civilização nova nascerá (ALB-MM, [1942] 2002, p. 275).
146
Nesse conjunto de SDs, o movimento modernista é dito por Mário:
SD46 -uma espécie de escândalo público permanente.
SD47 -o período realmente destruidor
SD48 -uma ruptura
-um abandono de princípios e técnicas consequentes
-uma revolta contra [...] a inteligência nacional
-um espírito de guerra, eminentemente destruidor
SD49 -o espírito modernista [...] destruidor
SD50 -um estado de espírito revoltado e revolucionário
-o direito antiacadêmico da pesquisa estética
-o estado revolucionário
-estas guerras
Todas essas designações, numa relação de sinonímia, trazem à tona a
consciência que o escritor tinha da imagem de revoltado, de destruidor, de
revolucionário, associada a ele e à comunidade ética dos modernistas. Além
disso, verbos como “alastrar” (SD46) e “avassalar” (SD49) intensificam essa
imagem, à medida que, tal como enuncia Mário, o movimento era visto como
uma espécie de mal incontrolável que se disseminava e devastava a
inteligência nacional estabilizada e oficial. Nesse mesmo texto de 1942, Mário
faz uma dobra reflexiva sobre suas ações por ocasião da Semana de Arte
Moderna, indagando-se perplexo: “como tive coragem para participar daquela
batalha!” e “como tive coragem pra dizer versos diante duma vaia tão
barulhenta” (ANDRADE, [1942] 2002, p. 253-254).
Além do espaço da imprensa e dos salões paulistanos, a comunidade
ética dos modernistas punha suas ideias em circulação por meio de cartas.
Mário de Andrade, como vimos no capítulo 1, era um escrivinhador de cartas
compulsivo, correspondia-se assiduamente com Anita Malfatti, Alphonsus de
Guimarães Filho, Álvaro Lins, Carlos Drummond de Andrade, Fernando
Sabino, Manuel Bandeira, entre muitos outros pertencentes ao grupo, conforme
podemos observar na SD51, excerto de carta a Carlos Drumonnd de Andrade,
e, na SD52, excerto de carta a Manuel Bandeira:
147
SD51 - Veja bem, Drummond, que eu não digo pra você que se meta na aventura que me meti de estilizar o brasileiro vulgar. Mas refugir de certas modalidades nossas e perfeitamente humanas como o chegar na estação (aller, arrivare in casa mia, andare in città) é preconceito muito pouco viril. Quem como você mostrou coragem de reconhecer a evolução das artes até a atualização delas põe-se com isso em manifesta contradição consigo mesmo (CCDA, 1925, p. 23).
SD52 - Em vez de “Embala-lhe o dormir” pus “lhe embala o sono”, com o pronome errado. Sobre isso, Manuel, estou disposto a me sacrificar. É preciso dar coragem a essa gentinha que ainda não tem coragem de escrever brasileiro (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 233)
Na SD51, vemos Mário “puxando as orelhas” de Drummond por ele não
ter coragem de empregar o brasileirismo “chegar na estação”. Não se
constrange em chamar a atenção de Drummond por ele não ter sido corajoso o
suficiente (“muito pouco viril”) para empregar a regência brasileira “chegar em”,
ao invés da lusitana “chegar a”. Já na SD52, confessa a Manuel Bandeira sua
coragem de usar a ênclise no início de frase, como uma forma de encorajar
“essa gentinha que ainda não tem coragem de escrever brasileiro”. A coragem
para viver conforme o verbo era uma reivindicação constante de Mário para ele
e os demais modernistas. Como cara e coroa, o ethos do destruidor, do
revolucionário, aciona o ethos da coragem. Os modernistas eram vistos como
moços destemidos, que ousavam enfrentar a opinião pública adversa mesmo
sob vaias ou quaisquer outras formas de desaprovação.
Apesar de, no momento de efervescência do movimento, Mário se
identificar com as posturas dos demais integrantes do grupo, como as que
constituem o ethos revolucionário, destruidor e revoltado, com o passar dos
anos ele foi se tornando menos destrutivo e mais construtivo. Afastava-se de
seus companheiros em muitos aspectos, a exemplo da atitude assumida por
eles em relação a tudo que vinha de Portugal. Enquanto seus companheiros
queriam romper com os colonizadores, Mário reconhecia-lhes a participação na
formação da língua, da cultura, da literatura e da alma brasileira. Poderíamos
dizer que o internacionalismo de Mário passava a se sobrepor a seu
nacionalismo, levando-o a construir um ethos humanista, pacificador e
conciliador em relação ao quinhão lusitano herdado pelos brasileiros, conforme
a análise das SDs de 8 a 11 (exploradas na seção 3.4). Retomamos aqui as
148
SDs 8 e 11, para mostrar como Mário constrói um ethos de militante humanista
para discordar de seus próprios companheiros com relação à tese do
nacionalismo:
SD8 - Os escritores nacionais célebres têm às vezes incitado, aconselhado a libertação nossa de Portugal – João Ribeiro, Graça Aranha. Principiam por um erro: opor Brasil e Portugal. Não se trata disso. Se trata de ser brasileiro e não nacionalista. Escrever naturalmente brasileiro sem nenhuma reivindicação nem queixa (EGFB-GM, [1928]1990, p. 48). SD11 - Não reaja não. Reagir enfraquece. Quando me senti escrevendo brasileiro primeiro que tudo pensei e estabeleci: Não reagir contra Portugal. Esquecer Portugal, isso sim. É o que fiz (CMB, [1929]1958, p. 222).
Se, na aurora do movimento, Mário assumia uma posição fortemente
nacionalista quanto à formação da identidade linguística brasileira, em sintonia
com seus colegas de modernismo, passado o ímpeto inicial, ele conseguia
separar o “ser brasileiro” do “ser nacionalista”. Esses dois predicados não mais
se confundiam na interpretação que Mário dava à identidade cultural, literária,
linguística e artística brasileira. Ser brasileiro significava ter uma fisionomia
própria, mas profundamente heterogênea, um amálgama de traços indígenas,
africanos, e, principalmente, lusitanos, sem falar naqueles das muitas etnias
aqui desembarcadas com os imigrantes que vieram substituir os braços
escravos. A identidade brasileira seria o resultado de um processo de
mestiçagem que inclui os traços portugueses. E o nacionalismo, além de
pregar a ruptura com o passado português, algo inviável aos olhos de Mário,
também se fechava para a participação do Brasil no concerto das nações
civilizadas.
Essa dissensão em relação à postura antilusitanista de muitos de seus
companheiros de movimento encontra-se materializada linguisticamente pelo
emprego de termos negativos como “não”, “sem”, “nenhuma”, “nem” que
funcionam polifonicamente, patenteando a heterogeneidade constitutiva e
mostrada dos enunciados, ou seja, sua natureza polêmica. Na SD8, “Não se
trata disso (disso = opor Brasil a Portugal). Se trata de ser brasileiro e não
nacionalista”, a primeira ocorrência de “não” faz fluir junto a posição do
149
modernismo nacionalista, que é negada, e a posição de um modernista
internacionalista, ao passo que a segunda ocorrência de “não” faz o foco recair
sobre o predicado que o enunciador exclui peremptoriamente para não
contradizer sua posição em defesa de um modernismo humanista e, portanto,
universalista..
Na SD11, “Não reaja não. [...] Quando me senti escrevendo brasileiro
primeiro que tudo pensei e estabeleci: Não reagir contra Portugal. Esquecer
Portugal, isso sim”, o “não” igualmente incorpora ao enunciado a dissensão em
relação à pletora nacionalista que levava seus companheiros a “reagir contra
Portugal”. A dupla negação (“Não reaja não”) confere um tom de manifesto ao
enunciado. Se o Manifesto da Poesia Pau Brasil recomendava a “originalidade
nativa”, “Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem
pesquisa etimológica. Sem ontologia” bem como “a reação contra todas as
indigestões de sabedoria”, contra “a adesão acadêmica”, o manifesto de Mário
de Andrade, vamos dizer assim, militava em favor de um modernismo
humanista que deveria abandonar a beligerância contra Portugal. Segundo
Mussalim (2011, p. 78), na fase inicial do modernismo, o movimento assumia o
caráter revolucionário e militante, e o tom de “manifesto” estava presente nos
mais diversos gêneros discursivos e não apenas no que era identificado como
Manifesto (Manifesto Trianon, Manifesto da Poesia Pau Brasil, Manifesto
antropofágico etc.).
A análise da SD8 e SD11 nos sugere que se, em muitos pontos, Mário
se integrava ao corpo coletivo da comunidade ética modernista, no que toca a
seu nacionalismo exacerbado, dele se apartava. Assumia um ethos de
conciliador e pacificador, desejoso de pôr um fim no antagonismo entre
brasileiros e portugueses, pois, para ele, humanista que era, a criação de
qualquer antagonismo levaria “a integração no Cosmos por água abaixo”
(SD9). Seu projeto político e ético não perdia de vista a humanidade, o
sentimento de pertencer a uma comunidade universal, para além dos
nacionalismos e regionalismos. Não economizava ênfase ao afirmar que tinha
“horror das fronteiras de qualquer espécie” (SD38).
Portanto, ao ethos do militante, Mário e os outros modernistas
agregavam o da coragem, afinal para revoltar-se e lutar contra o passado,
contra a tradição, contra os padrões estéticos herdados do colonizador, contra
150
a norma linguística lusitana e contra os velhos valores, a fim de entronizar uma
nova ideologia/discurso, era preciso ser corajoso, viril. Nas SDs de 53 a 58,
podemos observar o ethos da coragem, manifestando-se no discurso, mas
indiretamente:
SD53 - É certo que muito errarei. Só o que quero é que não me julguem mal, vocês que quero bem. As aventuras podem falhar porém se o aventureiro teve um fim justo e trabalhou sem leviandade pra atingi-lo, a nobreza continua com o aventureiro, não acha (CCDA, 1925, p. 24). SD54 - Cada um que dê a sua estilização, a sua solução e se chegará num dia a essa normalização geral tirada do pouco que acertaram e do muito que erraram. Vale mais errar porém fazer do
que não errar e não fazer (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 47).
SD55 - O diminutivo, o aumentativo, o superlativo substituído por “muito”, por “por demais”, conforme o caso. Você compreende, Manuel, eu empobreci os meus meios de expressão. Não faço dúvida nisso. Empobreci-os conscientemente. Tem uma frase do Machado que me bate sempre na memória. “Alguma coisa é preciso sacrificar”. Eu me sacrifico mas é possível que se ganhe alguma coisa com isso. Agora fazer como você quer, tudo com restrições, tudo apalpando, usar pra mas também para, usar uma coisa mas tem casos que não usar, não sou desse gênio. Vou até o fim. Sou homem num Deus só. Não compreendo revoluções com luvas de pelica. O próprio procurador da República falou que foi por causa disso que o Isidoro levou na cabeça. É o caso dos que quiseram ser modernistas e passadistas ao mesmo tempo. Não sei ser assim. A culpa pode ser minha. Paciência” (CMB, 1925, p. 90). SD56 – Minha fala é dificílima até. Requereu? E requer estudo constante, prática mensal de centenas de vocabulários apensos a quanto livro regionalista surge por aí tudo e muita observação pessoal. E muita paciência de observação psicológica. E uma universalidade brasileira que jamais ninguém nunca não poderá chamar de regional. Si muitos que tentaram o que eu tento despencam prá facilidade e pro regionalismo, eu não (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 319) SD57 – Já não disse sejamos brasileiros. Eu fui. Eu não falei: Escrevamos brasileiro. Eu escrevi. Si alguma coisa me orgulha é o poder intelectual maravilhosamente feliz com que eu cumpro os mandamentos da minha fé. [...] Porém no regime feioso e panema do sejamos, não fiquei não (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 325-326). SD58 – Corrigir um pronome colocado errado por inconsciência, pra um pronome colocado certo por consciência só pra ficar mais de estilo português isso não faço não, nem que caia a casa (CMB, 1929, p. 220).
151
Nas SDs 53 a 58, embora a coragem não seja explicitamente nomeada,
podemos percebê-la por certas pistas deixadas pelo enunciador ao se
manifestar. Na SD53, a coragem é evocada por meio da metáfora proverbial do
aventureiro que trabalha comprometidamente para atingir um fim justo: “As
aventuras podem falhar porém se o aventureiro teve um fim justo e trabalhou
sem leviandade pra atingi-lo, a nobreza continua com o aventureiro, não acha”.
Na SD54, mais uma vez o enunciador recorre a um provérbio para expressar
sua postura destemida ao fazer concretamente o que pregava: “Vale mais errar
porém fazer do que não errar e não fazer”. A questão fundamental para Mário
de Andrade era praticar seu ideário ético-estético no seu fazer literário e não
apenas como crítico.
Na SD55, é censurando as fraquezas do amigo Manuel Bandeira que
oscila entre o uso do “pra” brasileiro e do “para” lusitano, que Mário deixa
entrever sua coragem. Ele diz não “apalpar”, não condescender (“usar pra mas
também para, usar uma coisa mas tem casos que não usar”), não fazer
“revoluções com luvas de pelica”, mas ir até as últimas consequências (“Vou
até o fim). E mais, ao dizer “Sou homem num Deus só”, Mário reafirmava seu
propósito de ser um modernista em todas as circunstâncias. Se seu Deus, seu
credo, era o modernismo, ele não poderia ser modernista no discurso e, por
covardia, por medo da opinião publica, ser passadista na prática (“É o caso
dos que quiseram ser modernistas e passadistas ao mesmo tempo. Não sei ser
assim”). Ele sempre foi um defensor intrépido da coerência entre as ideias e a
prática da escrita (literária ou não). Escrever brasileiro não era fácil, mas ele
não sucumbia à tentação de facilitar a tarefa, despencando para o
regionalismo: “Si muitos que tentaram o que eu tento despencam prá facilidade
e pro regionalismo, eu não”(SD56). Mário perseguia valentemente seu
propósito de superar o regionalismo por meio de uma “universalidade
brasileira” (SD56).
Na SD57, é por meio do contraste entre “sejamos brasileiros”/“fui
brasileiro” e “escrevamos brasileiros”/“escrevi brasileiro” que o ethos da
coragem se constitui. Sejamos e escrevamos, formas subjuntivas na primeira
pessoa do plural, se remetem a uma voz coletiva que convoca para uma ação
possível, desejada, mas não realizada, ao passo que fui e escrevi, formas do
pretérito perfeito do indicativo na primeira pessoa do singular, se remetem a
152
uma voz individual que afirma a ação como realizada. Em Mario de Andrade, a
reivindicação de abrasileiramento da expressão literária nunca foi apenas uma
ideologia, ele sempre procurou cumprir os mandamentos de sua fé
praticamente. Ele julgava uma atitude feia e infeliz a de ficar no “sejamos” (“no
regime feioso e panema do sejamos, não fiquei não”). Também se recusava a
corrigir “um pronome colocado errado por inconsciência, pra um pronome
colocado certo por consciência só pra ficar mais de estilo português” (SD58).
Dizia não se sujeitar a isso “nem que caia a casa” (SD58).
Se, nas SDs de 53 a 58, o traço da coragem, indissociável do ethos do
militante, do revolucionário e do experimentador de vanguarda, aflora
indiretamente dos enunciados, nas SDs de 59 a 62, a seguir, os termos
“coragem” e “corajoso” são ditos sem reserva:
SD59 – Minha vida tem sido sempre essa belíssima coisa que se chama agir com vivacidade e coragem (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 315). SD60 – Abandonei tudo e parti iguinorante porém com coragem, tropeçando, me atrapalhando, tentando e tentarei sempre até o fim (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 421). SD61 – Não me iludo absolutamente a respeito do valor das minhas obras. Sei que, como arte, elas valem quase nada, porém são todos exemplos corajosos e imediatamente práticos do que os outros devem fazer ou... não devem fazer. Erros e verdades (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 314). SD62 – Muita gente, até meus amigos, andaram falando que eu queria bancar o Dante e criar a língua brasileira. Graças a Deus não sou tão iguinorante nem tão vaidoso. A minha intenção única foi dar a minha colaboração a um movimento prático de libertação importante necessária. [...] Ora diante de todos aqueles que aconselhavam a intromissão de certos modismos e certas fórmulas gramaticais dos brasileiros na Tábua de leis linguísticas da língua lusitana, eu tive a coragem consciente, seguindo a tradição e o exemplo bonito de José de Alencar, tive a franqueza de agir em vez de ficar no discurso “Irmãos fazei!” Sempre tive horror ao “Sejamos!”. Eu sou (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 315-316).
Nas SDs de 59 a 62, todas recortadas dos esboços para a construção
da Gramatiquinha da fala brasileira, o ethos da coragem é dito e/ou mostrado,
quando Mário fala de sua decisão de fazer o que prega. Na SD60, o
enunciador fala de sua “coragem” de abandonar tudo que sabia e partir
153
“iguinorante” para “tentar sempre até o fim” agir conforme pregava. Na SD60 e
62, a grafia “iguinorante” é uma demonstração da coragem do enunciador de
pôr em prática as soluções gráficas que lhe pareciam mais lógicas, embora
contrariassem o estabelecido. Na SD 61, ele fala de suas obras como
“exemplos corajosos e imediatamente práticos do que os outros devem fazer
ou... não devem fazer”.
Na SD62, novamente as oposições nós/eu e sejamos/sou
(subjuntivo/indicativo) são mobilizadas para patentear sua atitude não apenas
de ideólogo do modernismo, mas também de um homem que tem a coragem
de experimentar, ele mesmo, concretamente as ideias que propaga.
Diferentemente daqueles que convocavam os outros a fazer – “irmãos fazei!” –
mas recuavam na prática, Mário afirmava “a coragem consciente, seguindo a
tradição e o exemplo bonito de José de Alencar, [...] de agir em vez de ficar no
discurso”. Por não se intimidar diante do projeto modernista de abrasileirar a
língua, por tirar esse projeto do plano do discurso, era considerado por alguns
de seus contemporâneos o Dante da língua brasileira, comparação que ele
contestava, argumentando que sua intenção era apenas a de colaborar com
um “movimento prático de libertação” do passado. Enquanto alguns
aconselhavam timidamente a introdução de brasileirismos na “Tábua de leis
linguísticas da língua lusitana”, ele escrevia brasileiro sem se acautelar das
inevitáveis críticas.
Evidentemente, esse embate em torno do descompasso entre a teoria e
a prática tem por referência o mundo ético dos escritores modernistas ou não,
que pensavam o Brasil em termos cultural, literário, musical, artístico,
linguístico, vislumbrando a formação de uma identidade brasileira ou nacional.
Se dessa comunidade ética, por um lado, emerge o ethos do fiador do discurso
marioandradino, por outro, emerge o ethos de um antifiador, cuja postura o
enunciador desabona e não toma como exemplo para si, como podemos
observar nas SDs de 63 a 65, a seguir:
SD63 - Quanto a você começar a se interessar por coisas brasileiras, se lembre que eu não fui nem sou o primeiro nacionalista da nossa literatura. Eu se tenho algum mérito é que em vez de pregar só, fazer idealismo, fazer teoria, tal qual Gonçalves Dias, tal qual Graça Aranha, fazer regionalismo, tal qual Veríssimo ou Lobato, agi prático,
154
não prego faço, pelo muito de brasil que eu tenho desta merda de Brasil (CCDA, 1925, p. 32).
SD64 - (...) temos livros valiosos como a Língua Nacional de J.
Ribeiro, O Dialeto Caipira de Amadeu Amaral, que são verdadeiros convites pra falar brasileiramente. Porém, os autores como idealistas que são e não práticos, convidam, convidam porém principiam não fazendo o que convidam. Não tiveram coragem. Eu tive a coragem e é o que explica o meu valor funcional na literatura brasileira moderna
(EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 313).
SD65 – Quanto aos grandes, os que sabem, [...], vivem a falar, dizendo pros outros abrasileirarem a língua porém eles mesmo vivem na cola de quando Figueiredino Chupamel nos vem de Lisboa
gramatical (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 44).
Nesse conjunto de SDs, o enunciador assume, como fiadora de seu
discurso, a posição de coragem que ele mesmo, como escritor, demonstra ao
experimentar efetivamente o abrasileiramento da linguagem e da literatura
nas suas obras e, como antifiadora, a posição dos escritores tomados
genericamente ou identificados com nome e sobrenome, que convidam a
escrever brasileiro, mas fraquejam na prática, curvando-se às normas
lusitanas.
Fiador (Mário de Andrade) Antifiador (outros escritores/autores)
agi prático, não prego faço Aqueles que só pregam, fazem idealismo, fazem teoria, tal qual Gonçalves Dias, tal qual Graça Aranha, fazem regionalismo, tal qual Veríssimo ou Lobato (SD63)
Eu tive a coragem e é o que explica o meu valor funcional na literatura brasileira moderna
os autores como idealistas que são e não práticos, convidam (para falar brasileiramente) porém principiam não fazendo o que convidam. Não tiveram coragem.(SD64)
Eu faço o que prego, eu abrasileiro a língua com que escrevo.
(aqueles que) vivem a falar, dizendo pros outros abrasileirarem a língua porém eles mesmo vivem na cola de quando Figueiredino Chupamel nos vem de Lisboa gramatical. (SD65)
155
Nas SDs 63 a 65, percebemos o fiador polemizando com o antifiador.
Nessas sequências, Mário se duplica em enunciador e escritor, sendo o Mário
escritor, participante da comunidade ético-estética dos modernistas, seu
exemplo de fiador. O Mário enunciador exalta a coragem do Mário escritor,
por ele não se restringir apenas à pregação, por fazer o que prega, e avalia
negativamente seu antifiador (Graça Aranha, Veríssimo, Lobato e todos
aqueles que apenas convidam a falar brasileiramente), por eles se
contentarem em apenas fazer idealismos e teorias. Na SD64, o enunciador se
refere a duas obras sobre a fala brasileira: A língua Nacional de J. Ribeiro e O
Dialeto Caipira Amadeu Amaral, que são “verdadeiros convites para falar
brasileiramente”, porém, cujos autores se reduzem ao convite, não
principiando, eles mesmos, a fazer o que convidam. Assim, tem como
fiadores aqueles que como ele mesmo incorporam à escrita a fala brasileira e
como anitifiadores aqueles cuja escrita desmente o blábláblá em favor do
abrasileiramento da língua/linguagem literária.
Diante da ênfase que Mário de Andrade dá ao ethos do militante
corajoso capaz de praticar o que propõe, julgamos relevante observar como o
escritor se porta no seu fazer literário. Ele sempre criticou os regionalistas que
punham os brasileirismos na boca das personagens, enquanto eles mesmos
continuavam a seguir o padrão linguístico lusitano. Por exemplo, nos esboços
da Gramatiquinha, ele afirmava sua decisão de usar os brasileirismos, como a
ênclise em início de frase (Lhe embala o sono), o pronome do caso reto em
posição de objeto (mandei ela), “não na boca de personagens”, mas de sua
“direta pena” (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 233). Entendemos que a escrita de
Mário, a literária e também a não-literária, constitui uma instância privilegiada
de observação do ethos mostrado na sua relação com o ethos dito (explícito e
implícito). A seguir, apresentamos algumas sequências discursivas, fazendo
um contraponto entre o que Mário defende quando discute fenômenos
linguísticos próprios da fala brasileira e quando produz poesia ou prosa
literária. Na SD66, Mário confessa, em carta a Fernando Sabino, o quanto a
forma contraída “pra”, havia se tornado natural para ele, a ponto de o uso de
“para” lhe soar desagradável e mesmo um “erro de linguagem”, quer dizer, uma
inadequação ao registro linguístico. Na SD 67, trecho de Macunaíma, e na
156
SD68, um poema, observamos o escritor empregando tal forma na escrita
literária não apenas na voz das personagens, mas também na dos narradores:
SD66 – Engraçado: estou me lembrando que depois de bem sistematizado o “pra” em mim, tornado espontâneo e subconsciente, quando me sucedia ter que ler algum escrito antigo, você não imagina cada sobressalto que eu tinha! Topara um “para” e a sensação imediata e muito desagradável que eu tinha era de me pegar num erro de linguagem! (CFS, [1942] 1993, p.43).
SD67 – Então Macunaíma pediu fibra de curauá. Jiguê olhou pra ele com ódio e mandou a companheira arranjar fio pro menino, a moça fez. Macunaíma agradeceu e foi pedir pro pai-de-terreiro que trançasse uma corda pra ele e assoprasse bem nela fumaça de petum (MHSNC, [1928] 1981, p. 10).
SD68 – TOSTÃO DE CHUVA Quem é Antônio Jerônimo? É o sitiante Que mora no Fundão Numa biboca pobre. É pobre. Dantes Ia a coisa ia indo e ele possuía Um cavalo cardão. Mas a seca batera no roçado... Vai, Antônio Jerônimo um belo dia Só por debique de desabusado Falou assim: “Pois que nosso padim Pade Ciço que é milagreiro, contam, Me mande um tostão de chuva pra mim!” Pois então nosso “padim” pade Cicero Coçou a barba, matutando, e disse: “Pros outros mando muita chuva não, Só dois vinténs. Mas pra Antônio Jerônimo Vou mandar um tostão”. No outro dia veio uma chuva boa Que foi uma festa pros nossos homens E o milho agradeceu bem. Porém No fundão veio uma trovoada enorme Quem num átimo virou tudo em lagoa E matou o cavalo de Antônio Jerônimo. Matou o cavalo. (TC- CJ-PC , [1927] 1993, p. 193).
Na SD69, trecho de uma carta a Carlos Drummond de Andrade, Mário
discute a regência dos verbos “ir” e “chegar” que, no Brasil, se faz
preferencialmente com a preposição “em” e, em Portugal, com a preposição
“a”. Ele censura o amigo, por meio de ironias e tom escarnecedor, por trocar a
forma “chega na estação” por “chega à estação”. Mário considera uma
“ignomínia”, quer dizer, uma vergonha, uma humilhação, Drummond fraquejar
157
na hora de escrever e se submeter ao padrão português, vestindo “um fraque
debruado de galego”, telefonando “pra Lisboa” e perguntando “pro ilustre
Figueiredo: Como é que se está dizendo agora no chiado: é ‘chega na
estação’ ou ‘chega à estação’?”. Nas SDs 69 e 71, diferentemente de
Drummond, Mário mostra sua coragem ao optar pela regência brasileira “ir
em” e empregá-la abundantemente na prosa literária e na poesia:
SD69 – Foi uma ignomínia a substituição do na estação por à estação só porque em Portugal paisinho desinteressante pra nós diz assim. Repare que eu digo que Portugal diz assim e não escreve assim. Em Portugal tem uma gente corajosa que em vez de ir assuntar como é que dizia na Roma latina e materna, fez uma gramática pelo que se falava em Portugal mesmo. Mas no Brasil o Sr. Carlos Drummond diz “cheguei em casa”, “fui na farmácia”, “vou no cinema” e quando escreve veste um fraque debruado de galego, telefona pra Lisboa e pergunta pro ilustre Figueiredo: _ Como é que se está dizendo agora no chiado: é “chega na estação” ou “chega à estação”? E escreve o que o Sr. Figueiredo manda (CCDA, [1925] 1982, p. 22-23).
SD70 – No outro dia Dona Ana pensa que carece passear a moça. Vão na missa. Rosa segue na frente e vai namorar todos os homens que encontra. Tem de prender um. Qualquer. Tem de prender um pra não ficar solteira (CB, [1934] 1980, p. 21). SD71 – LOUVAÇÃO DA EMBOABA TORDILHA Eu irei na Inglaterra E direi pra todas as moças da Inglaterra Que não careço delas Porque te possuo. Irei na Itália E direi pra todas as moças da Itália Que não careço delas Porque te possuo. Depois Irei nos Estados Unidos E direi pra todas as moças dos Estados Unidos Que não tenho nada com elas Porque te possuo. Depois irei na Espanha E direi pra todas as niñas da Espanha Que não tenho nada com elas Porque te possuo. Quando voltar pro Brasil Te mostrarei a irmã dos teus cabelos, Minha consciência triunfante Será bonito enxergar as irmãs abraçadas na rua!
158
E ainda terei de ir numa terra que eu sei... Mas não será pra lhe gritar minha felicidade fafarrã... Será numa comovida silenciosa romaria De amor, de reconhecimento. (LET-LC-PC [1926] 1993, p. 147)
Outros tantos recortes poderiam ser mostrados aqui como exemplos de
que a escrita literária de Mário é a encarnação de seu próprio verbo, no que diz
respeito ao postulado da construção de uma identidade linguística brasileira.
São muitos os brasileirismos que foram objeto de reflexão de Mário e
consequente incorporação à sua linguagem literária. Aqui ilustramos com os
casos da contração da preposição “para” e da regência do verbo “ir”, mas
poderíamos ter mostrado a colocação pronominal enclítica em início de frase,
como aparece no verso 18 da SD71 (“Te mostrarei a irmã dos teus cabelos”); o
uso de pronome de caso reto em função de objeto (“Elza viu ele descer,
equilibrado, brincando com os degraus” (AVI, [1927]1995, p. 53)); o uso de
“mim” como sujeito (“Abra a porta pra mim entrar!”(MHSNC [1928] 1981, p.
26), além de inúmeros outros traços linguísticos que singularizam a fala
brasileira e mereceram a atenção de Mário tanto como um (socio)linguista
temporão, quanto como escritor que emprega a sua autoridade para fazer
sobressair da linguagem popular a fala culta, erudita, digna de representar a
“universalidade brasileira” (SD56), como povo civilizado, no concerto da
humanidade.
A leitura do corpus empreendida neste capítulo nos revela a
convergência do ethos pré-discursivo e discursivo de Mário com o ethos da
comunidade ética modernista no tocante à militância, à revolta, ao combate da
estética acadêmica, ao passadismo, à imposição do padrão linguístico lusitano
etc. Contudo, ela também nos revela a divergência do ethos de Mário em
relação ao ethos modernista quanto a se portar como um mero ideólogo do
movimento ou a se portar como um experimentador, um artífice, um autêntico
obreiro da missão modernista, na São Paulo e no Brasil das primeiras décadas
do século XX, em meio a parnasianos, simbolistas, regionalistas e a outros
movimentos. Por isso, ousamos dizer que a obra literária de Mário é uma
demonstração, ou melhor, uma mostração do ethos da coragem.
159
Pela coragem de fazer o que pregava, pelo espírito e pela prática
libertária, Mário assumia a posição de modernista exemplar, com moral para
chamar a atenção, criticar e aconselhar colegas de movimento, às vezes
também amigos pessoais do escritor, que fraquejavam na prática literária,
sucumbindo à canga portuguesa. Em resumo, o enunciador que fala na obra de
Mário de Andrade incorpora um ethos de militante, combativo, corajoso,
vigoroso, libertário, irreverente que não recua nunca da luta pela emancipação
da cultura brasileira, fazendo dela seu projeto de vida e não uma mera
preocupação acadêmica e/ou profissional. Como os demais modernistas da
primeira geração, que exerceram o papel de vanguarda de um movimento de
ruptura com o passado, Mário aderiu integralmente à causa pela qual lutava.
Como já explicitamos anteriormente, nosso corpus foi constituído por
SDs, que explicita ou implicitamente tematizassem o português brasileiro. Isso
significa que não levamos em conta, em nossa análise, os gêneros dos textos
(crítica, cartas pessoais, ensaios, crônicas, poemas, romance etc.) dos quais
recortamos as sequências discursivas lidas nos capítulos 3 e 4. Assim, em
termos de cena da enunciação, visualizamos uma cena englobante, cujo
estatuto pragmático seria o acadêmico – a intelligentsia brasileira pensando o
Brasil. As cenas genéricas, várias, não importaram para nossa análise,
contudo, a cenografia da qual o ethos participa foi fundamental. Segundo
Baronas (2012, p. 395), os ethe constituem regimes históricos: “Cada época e
lugar estabelecem zonas semióticas, que propõem modelos para as maneiras
de falar e de ser, isto é, são essas zonas que dão o tom dos discursos”. Tal
afirmação ajusta-se perfeitamente ao que fora observado em relação à maneira
de Mário de Andrade falar, ressoando, em grande parte, o modo de a
comunidade ética modernista se portar e enunciar no Brasil das décadas de
1920 a 1940. Mário encarna, em muitos aspectos, o estereótipo do intelectual
modernista, aquele que diz “não” a todo saber instituído, estabelecido,
normatizado, regulado, oficializado, burocratizado, talhado pela régua de
alguma escola ou pela estética consagrada pelo intelectual mediano.
Paradoxalmente, o estereótipo do modernista reflete o desejo de fugir ao
estereótipo: o modernista se recusa a ser um funcionário do pensamento. O
modernista “é aquele que se posiciona na brecha como revisionista, que gera
polêmica e desestabiliza a ordem social” (MUSSALIM, 2008, p. 77).
160
Nessa fase de sua história, o Brasil passava por profundas
transformações econômicas, políticas, sociais e culturais, vivenciando o ápice
da crise entre o rural e o urbano, entre a produção artesanal e a
industrialização, entre o imobilismo e o progresso, entre o passado e o
presente, entre o novo e o velho, entre o ranço do império e as promessas
irrealizadas da república, entre o acadêmico e o moderno, entre o legado
cultural português e europeu e a cultura brasileira, entre o nacional e o
estrangeiro, entre a tradição e a mudança. Esse cenário tenso propiciava a
formação de um espírito revolucionário, a tomada de consciência da nova
realidade nacional e o inconformismo político que, por sua vez, gerava a
reação dos conservadores e conformistas. No quadro dessas condições de
produção, a primeira geração de modernistas formava uma comunidade ética
forte e emocionalmente envolvida no debate em torno da brasilidade,
relativamente à cultura, às artes, à literatura e à língua. Tinha por topografia e
cronografia a cidade de São Paulo das primeiras décadas do século XX, por
ser um espaço-tempo que, como nenhum outro, reunia os muitos brasis que
havia no Brasil. Como ícone do Brasil, São Paulo não representava o puro, o
genuíno, o autêntico, mas o misturado, o mestiço, o complexo, era o entre-
lugar entre o Brasil velho, arcaico e o Brasil novo, moderno. Podemos mesmo
dizer que entre São Paulo e o modernismo havia uma sinergia.
Se, por um lado, os primeiros modernistas defendiam a apropriação da
cultura popular e da fala brasileira como base de seu projeto estético
nacionalista, eles iam muito além disso na sua concepção de arte. Para eles,
não eram os sertões, as grotas, o nordeste ou o sul, a roça ou a cidade, a
floresta, o índio ou negro, o Brasil tradicional, que as artes, a literatura e a
língua brasileira deviam refletir, mas era tudo isso junto ressignificado pelo
banho da civilização. Eles não se viam mais praticando um nacionalismo
ingênuo, telúrico, ufanista, à maneira dos românticos. Profundamente críticos
desse nacionalismo, os modernistas vislumbravam o casamento da cultura
popular com os conhecimentos e a técnica praticada pelas escolas européias,
enfim, o casamento da barbárie com a civilização, mas com a preocupação de
não instituir uma “escola”. Mário de Andrade exprime perfeitamente o núcleo da
estética modernista por meio da expressão “transposição erudita da barbárie”.
A técnica sem o caldo da cultura popular resultava em academicismo, prática
161
que eles abominavam, e a cultura popular sem a técnica apropriada e
ressignificada pela subjetividade do artista/escritor equivalia a folclore, uma
manifestação cultural indigna de figurar em meio à cultura civilizada universal,
posição almejada por eles. Os modernistas não se queriam fazendo cultura
popular; eles se queriam fazendo da cultura popular uma cultura erudita. O
projeto modernista era, pois, ambicioso, ele trabalhava o conflito entre a
produção de arte no Brasil em relação à Europa. Ele buscava “superar o estado
de reverência absoluta a essa cultura, mantido até então pelos acadêmicos”, e
compreendia “a relação com a Europa de uma maneira dinâmica e, sobretudo,
contra-aculturativa” (MUSSALIM, 2006, p. 21). Os modernistas queriam ver a
sua arte e a sua literatura sendo reconhecida pela Europa como criação de
uma estética revolucionária.
Assim, na vanguarda de um projeto estético contra-aculturativo, Mário de
Andrade e outros escritores modernistas da primeira fase, incluindo-se em
meio a intelligentsia brasileira (a pauliceia desvairada), se enredaram numa
acalorada querela com os representantes do pensamento bem comportado, da
arte e literatura acadêmica, da cultura oficial, das normas gramaticais lusitanas,
do nacionalismo ufanista, para introduzir descontinuidades e rupturas e
circunscrever um nicho de pensamento e sentidos singulares a que chamavam
de “modernismo”. Pela sua natureza, a prática discursiva dos modernistas
resulta num discurso em que a heterogeneidade constitutiva aflora na
superfície do enunciado na forma de heterogeneidade mostrada, a qual, pelo
processo inalienável de interincompreensão do discurso do Outro, se apresenta
invariavelmente sob a forma do simulacro. Por trazer inscritas, na
materialidade linguística, as marcas da heterogeneidade constitutiva, conforme
análise realizada no capítulo 3, o discurso modernista se caracteriza como um
discurso polêmico, cujo enunciador incorpora o ethos do militante, revoltado,
insurreto, contestador, rebelde, libertário, que faz “oscilar as certezas
estabelecidas e o conformismo intelectual” e estilhaça ou pelo menos ri das
“baronias do saber” (MAFFESOLI, 1987, p. 27 e 31).
162
Considerações finais
Chegamos ao momento de fazer uma reflexão sobre os achados da
pesquisa. Em se tratando de um estudo filiado à análise de discurso,
consideramos inapropriado falar em conclusão, uma vez que partilhamos o
pensamento nietzscheano de que “não existem fatos, apenas interpretações” e
as interpretações sempre podem ser outras. Constrangidas a cumprir as
formalidades do gênero dissertação, encaramos, pois, essa tarefa não como
um fechamento de portas e janelas, mas sim como uma abertura de vias para o
fecundo e inesgotável continente de insights que é o arquivo Mário de Andrade.
O que nos moveu, desde o momento de elaboração do projeto que
culminou com esta dissertação, foi o desejo de compreender o posicionamento
discursivo de Mário de Andrade, no longevo debate acerca do acontecimento
linguístico que alterou substancialmente o português lusitano, instaurando uma
outra língua – a brasileira, apesar de a história oficial da colonização tentar
calá-la de muitos modos. Durante o processo de leitura das obras do escritor
para a seleção e recorte das sequências discursivas (SDs) que comporiam o
corpus, percebemos a necessidade de levar em conta a primeira e a segunda
fase do movimento modernista, fases vividas por Mário, uma vez que ele reviu
seu posicionamento acerca da língua brasileira ao longo de sua trajetória
intelectual. Isso nos fez prestar atenção nas datas de publicação dos textos
que nos serviram de fonte para a coleta de dados.
Na primeira fase (1922-1930), o grupo, influenciado pelas vanguardas
europeias, fazia forte oposição ao academicismo, dando vazão ao impulso de
destruir todos os princípios sobre os quais a estética clássica se fundava. O
objetivo era desestabilizar e derrubar os tentáculos dos artistas e escritores
bem comportados, passadistas, submissos ao classicismo então ressuscitado
pelos parnasianos, expiar, de uma vez por todas, nosso complexo de
colonizados, repudiando a xenofilia e o padrão cultural vigente. Animados com
a aproximação do centenário da independência política do país, os modernistas
buscavam consolidar o processo de emancipação em esferas de atividades em
que o Brasil ainda se mostrava dependente de Portugal e da Europa, de um
modo geral. Para eles, não bastava romper com a dominação política, era
necessária autonomia cultural, artística, literária e, sobremaneira, linguística.
163
Só assim, o país atingiria sua plena autonomia e maioridade. Por essa razão, o
grupo assumia uma perspectiva acentuadamente nacionalista da realidade
brasileira. O binômio nação-língua tornara-se ponto obrigatório na pauta dos
debates. Foi uma fase bastante radical, destrutiva, anárquica, dionisíaca, com
divergência de pontos de vista dentro do próprio grupo. Perfilaram-se quatro
movimentos: Pau-Brasil, Antropofagia, Verde-Amarelismo e Anta, divididos
entre duas maneiras de ver e expressar a ideologia nacionalista: os dois
primeiros defendiam um nacionalismo crítico, com a revisão de nosso passado
histórico e cultural, a valorização da diversidade e dos contrastes da realidade
brasileira, a devoração simbólica da cultura do colonizador europeu, sem com
isso perder a nossa identidade cultural; os dois últimos defendiam um
nacionalismo radicado à terra e à pátria, primitivista que idolatrava o tupi e
renegava o nacionalismo vanguardista de Oswald de Andrade. Mário de
Andrade se identificava com a primeira tendência ideológica e se queria
distante do ufanismo patrioteiro da segunda tendência. Nessa fase, a vibrante
comunidade modernista se engalfinhava em querelas intestinas motivada pela
diversidade de pontos de vista.
A segunda fase (1930-1945) foi marcada pela revisão das concepções
norteadoras do movimento. A geração de 30 não precisou brigar tanto quanto a
de 22 para pôr seu projeto ético e estético na academia e na rua. As
manifestações artísticas e literárias individuais foram avultando como práticas
relacionadas a um grupo com afinidade de propostas. O idioma modernista já
se apresentava estruturado e assimilado pelo grupo e era reconhecido em meio
a intelligentsia brasileira. Além de pôr em destaque o projeto ideológico de
identificação e valorização dos elementos caracterizadores de uma identidade
nacional, a segunda geração pôde se dedicar aos dramas do mundo e da vida
cotidiana e às mazelas do capitalismo. Nessa fase, Mário de Andrade se
apartou de alguns companheiros de modernismo por não compactuar com a
ideia de fazer das artes e da literatura brasileira uma ilha incomunicável com as
tendências européias. Sem perder de vista a constituição da identidade
cultural, artística, literária e linguística brasileira, ele insistia na necessidade de
projetá-la no concerto das culturas civilizadas da república universal.
Essa retomada da conjuntura vivida intensamente por Mário de Andrade
na São Paulo das décadas de 1920 a 1940 foi fundamental para a evocação da
164
ideologia do movimento e para a compreensão de como o escritor se portava
em relação a ela. Assim, consideramos ter preparado o terreno para
compreender seu posicionamento ideológico-discursivo convergente ou
divergente no tocante à maneira de o modernismo significar a identidade
linguística brasileira.
Propusemo-nos, como um dos objetivos específicos, esquadrinhar o
posicionamento discursivo de Mário de Andrade no debate travado por
modernistas e conservadores, nas primeiras décadas do século XX, acerca da
constituição de uma identidade brasileira, focalizando, especialmente, os
sentidos por ele atribuídos ao acontecimento linguístico que, desde o princípio
da colonização, vinha engendrando uma língua ou uma norma outra que
rachava o suposto reino indiviso da lusofonia. Desde a entrada no arquivo de
Mário de Andrade, começou a se delinear sua interpretação sobre a alteridade
linguística do português brasileiro, em oposição à interpretação institucional,
conservadora que a significava negativamente, como corrupção da língua
autêntica, original, pura. A posição modernista quanto à língua a ser usada na
prática literária, condensada, de modo chocante, no enunciado de Oswald de
Andrade no Manifesto Pau-Brasil (1924-1925) – “A língua sem arcaísmos, sem
erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros.
Como falamos. Como somos” – era, grosso modo, compartilhada por Mário de
Andrade. Ele dizia sim à reivindicação de uma identidade linguística brasileira,
mas lhe desagrava a ideia de que isso tivesse se tornado um escudo para cada
um escrever como bem entendesse, que isso descambasse para o casuísmo
ou, na melhor das hipóteses, para o regionalismo. Ele vislumbrava uma
brasilidade linguística universal que refletisse a pluralidade de normas dialetais
e sociais em uso nas mais diversas regiões e estratos sociais do país. Era
igualmente preciso ultrapassar a solução regionalista de fazer as personagens
falar o dialeto nordestino, gaúcho, paulistano, caipira etc, enquanto os
narradores, eles mesmos, continuavam a se servir da língua “certa”, conforme
os ditames dos gramáticos portugueses. Era preciso dar à prática literária uma
norma brasileira. Movido por esse desejo, Mário se envolveu por algum tempo
no projeto de elaboração de A gramatiquinha da fala brasileira com o propósito
de estilizar a fala vulgar, para chegar a uma solução menos transitória, menos
efêmera, menos individualista e mais unânime da norma brasileira, que ele
165
chamava de “fala brasileira”. O mesmo princípio que movia o projeto estético
modernista – “a transposição erudita da barbárie” – movia também o projeto
linguístico marioandradino de estilização da fala vulgar. Era preciso superar o
caos reinante na escrita literária desde que os escritores modernistas se
colocaram no fronte da guerra para abrasileirá-la.
A defesa desse ponto de vista em meio a um pensamento linguístico
hegemonicamente gramatiqueiro e purista era o pivô de muitos embates e de
uma prática interdiscursiva atravessada pela polêmica, já que a relação entre
os discursos concorrentes no espaço discursivo focalizado neste estudo não
era de aliança, mas sim de confronto aberto, oposição e dissensão. Em vista
dessa constatação, propusemo-nos também a apreender, no nível da
superfície linguística, as marcas materiais da polêmica entre o discurso
modernista e conservador referente à língua nacional. Na prática discursiva de
Mário, a polêmica se manifesta na pele dos enunciados, principalmente por
meio de simulacros e da negação polifônica. Tudo o que os conservadores
descartavam para fora do continente da boa língua – “vícios de linguagem”,
“erros”, “vulgarismos”, “solecismos”, “brasileirismos” – Mário defendia como
traços dignos de cidadania, como variação natural das línguas. A língua, para
ele, era “um instrumento vivo, em eterno fazer-se, a que qualquer coisa
modifica, transforma ou acrescenta” (SD28). Ao buscar afirmar seu
posicionamento linguístico, Mário sempre se referia ao Outro por meio de
simulacros. O Outro é nomeado/avaliado negativamente como “passadista”,
“culteranista”, praticante de “gramatiquice”, “colocadores de pronomes à
portuguesa” e a língua que ele defende é dita “coisa oficial gélida”, “morta”, “um
Ministério das Relações Exteriores”. Os parnasianos, pelo seu purismo
exacerbado, são significados como aqueles que “deformaram a língua
nascente, em prol do estilo”, como aqueles que abriram mão da “língua boa”
pela “língua certa”. Assim, os semas positivos da formação discursiva
parnasiana tornam-se negativos quando lidos por um sujeito interpelado pela
formação discursiva modernista. Além da abundância de simulacros, a
polêmica também se superficializa nos enunciados por meio da negação
polifônica, mediante uso de termos negativos, que exprimem o confronto de
pontos de vista, a exemplo do que ocorre na SD23: “os chamados
brasileirismos por simples bobagem de comodismo gramatical não são
166
brasileirismos nem nada, são palavras, sintaxes novas incorporadas à fala
portuga e, portanto, fazendo parte dela legitimamente. Pertencem à língua
portuguesa.” Nesse caso, Mário lança mão da negação polifônica para
contradizer a posição defendida pelos conservadores para quem os
brasileirismos eram considerados vícios de linguagem. Enfim, para constituir-
se, o discurso modernista procurava rebaixar, desautorizar, desacreditar o
discurso conservador, criticando sua dependência com relação aos padrões
linguísticos e estéticos portugueses e europeus.
Contudo, os embates travados por Mário de Andrade não se restringem
aos conservadores; ele polemizou até mesmo com seus próprios companheiros
de movimento. Daí termos nos proposto também a apreender, no nível da
superfície linguística, as marcas materiais da polêmica aberta por Mário de
Andrade no interior do nicho modernista. O enunciador compartilha com os
modernistas várias teses, mas diverge deles em relação à animosidade contra
tudo aquilo que vinha de Portugal, principalmente o padrão gramatical lusitano.
Essa dissensão em relação ao grupo aflora em muitos enunciados, sob a forma
da negação polêmica, expressa por meio de termos como “não”, “sem”, “nem”,
“nenhum”. Ao enunciado prototípico e programático do modernismo: “Reagir
contra Portugal”, Mário replicava “Não reagir contra Portugal. Esquecer
Portugal, isso sim” (SD11). Isso não significava, entretanto, que ele estava
sucumbindo à canga lusitana, apenas que vislumbrava uma mudança de
estratégia. Ao invés de uma guerra declarada, Mário nos convidava a desistir
do confronto aberto com Portugal, a ignorá-lo, a esquecê-lo, a dar de ombros
àqueles que haviam nos dominado por séculos: “Escrever naturalmente
brasileiro sem nenhuma reivindicação nem queixa” (SD8), sem se importar em
“coincidir” ou não com os modelos literários e o padrão linguístico português.
Enfim, a energia despendida na briga deveria ser canalizada para a expressão
brasileira. Quanto mais nos concentrássemos na pesquisa e na produção de
uma literatura de expressão brasileira, mais nos fortaleceríamos no cenário
literário universal. Isso valia também para as demais artes. Ademais, Mário
também reconhecia que havia muito de Portugal em nós e se renegássemos
essa herança poderíamos quebrar a ligação com o cosmos, enfim, sua postura
ética humanista acaba determinando o rumo de seu projeto estético.
167
A organização cronológica do corpus nos permitiu perceber as
mudanças na nomeação da entidade linguística brasileira, ao longo da
trajetória intelectual de Mário de Andrade. Na sua fase mais radical e
revolucionária, ele chegou a assumir uma posição separatista forte, referindo-
se à língua brasileira (SD12) ou ao brasileiro (SD13), como se ela fosse uma
língua já estabilizada e independente do português. Após essa fase heroica,
vamos dizer assim, Mário amenizou sua postura separatista e deslizou para
uma posição conciliatória entre as duas línguas. Nessa fase, ele ainda usava o
termo “brasileira”, mas depois de fala (“fala brasileira”) e não mais depois de
língua (SD18). O modernista desejava fazer do que os conservadores
chamavam de “vulgarismos”, “barbarismos” ou “brasileirismos” uma estilização
erudita, com a finalidade de dotar a escrita literária de uma norma culta
brasileira e não de uma outra língua. Observamos, ainda, uma terceira maneira
de Mário se referir à língua do Brasil. Por vezes, ele a nomeava como língua
nacional (SD22), termo que, por não determinar o adjetivo pátrio, permitia jogar
com a ambiguidade, ou melhor, com o entre-lugar entre a língua brasileira e a
língua portuguesa.
Outra descoberta que nos chamou a atenção foi o feeling
sociolinguístico de Mário de Andrade, mesmo antes de a linguística ter
chegado ao Brasil. Mário morreu em 1945 e a introdução dessa ciência nos
cursos de Letras brasileiros só ocorreu no final da década de 1960. Mário
defendia que uma pesquisa sobre a língua de um povo devia se basear na fala
das pessoas de todas as classes sociais e de todas as regiões e não apenas
na fala de caipiras, nordestinos ou analfabetos. Esse princípio é nuclear ao que
a sociolinguística concebe como “vernáculo”, a língua efetivamente usada pelo
povo e não a empacotada e prescrita nas gramáticas normativas. Outro
postulado sociolinguístico presente nos enunciados de Mário é o de que a
heterogeneidade é inerente a toda e qualquer língua, contrariando, assim, o
pressuposto purista, balizador do discurso da tradição gramatical, de que as
línguas são homogêneas. A variação e a mudança são princípios basilares da
sociolinguística, e Mário, antes mesmo de essa ciência existir, já visualizava
essas propriedades das línguas. Outras premissas sociolinguísticas antevistas
por Mário são: a postura descritiva diante dos fatos linguísticos e não
168
prescritiva, a precedência do uso da língua sobre a formalização gramatical e a
substituição do princípio de correção pelo de adequação.
Consideramos analiticamente produtivo explorar nosso corpus também à
luz do conceito de ethos discursivo, uma vez que a leitura dos enunciados nos
colocava diante de um enunciador que assumia uma voz ruidosa, passional, no
tom das práticas discursivas de militância revolucionária. Assim, investigar o
ethos do enunciador modernista ao defender a tese da nacionalização da
língua ou da fala brasileira foi mais um dos nossos objetivos. As análises
realizadas no capítulo 4 nos mostraram a convergência do ethos pré-
discursivo, que ligava Mário de Andrade aos demais integrantes da
comunidade ética modernista, e o ethos discursivo (dito e mostrado), no que se
refere ao caráter de destruição, negação, revolta e combate contra o
academicismo e o passadismo. Contudo, observamos que Mário vai se
afastando do grupo, assumindo uma postura mais construtiva, no que tange à
oposição a Portugal e à necessidade de superar o estágio da pregação
ideológica em favor da pesquisa estética e linguística (as duas atreladas) e da
efetiva produção de uma literatura moderna brasileira.
O estereótipo do modernista que vigorava no campo intelectual e
também na doxa paulistana era o do sujeito insurreto, revolucionário e
demolidor da ordem hegemônica nas artes e nas Letras brasileiras, nas
primeiras décadas do século XX. Como o campo das batalhas intelectuais
contra a estética consagrada era público – os embates se davam,
principalmente, na imprensa e nas festas dos salões da cidade de São Paulo –
o grupo acabou gerando em torno de si “uma semântica do maldizer, pautada
nos boatos a respeito do que ocorria nessas festas” (MUSSALIM, 2008, p. 76).
Mário de Andrade referia-se a esses encontros como “a maior orgia intelectual”
registrada pela história artística do país. Era, pois, quase impossível separar o
enunciador Mário de Andrade do ethos pré-discursivo do sujeito modernista.
Ele mesmo reconhecia ter sido uma “pedra de escândalo” (SD45), e não saber
como tinha tido “coragem pra dizer aqueles versos diante duma vaia tão
bulhenta que eu não escutava no palco o que Paulo Prado me gritava na
primeira fila das poltronas?... Como pude fazer uma conferência sobre artes
plásticas, na escadaria do teatro, cercado de anônimos que me caçoavam e
ofendiam a valer” (ALB-MM, [1942] 2002, p 254). O ethos modernista pré-
169
discursivo é também nomeado e encarnado pelo enunciador Mário de Andrade
por uma copiosa coleção de designações que significam, todas elas, o caráter
e o tom destruidor que se apoderam de quem enuncia em nome do movimento;
ele fala do “espírito de guerra eminentemente destruidor”, “estado de espírito
revolucionário”, “sentimento de arrebentação”, “período destruidor”, “revolta
contra o que era inteligência nacional”, “abandono de princípios e de técnicas”,
“direito antiacadêmico de pesquisa estética” etc. No texto O movimento
modernista, Mário afirma que um discurso de caráter polêmico não poderia
mesmo ter sido “analítico” e “construtivo”: “o espírito modernista que avassalou
o Brasil, que deu o sentido histórico da Inteligência Nacional desse período, foi
destruidor.” (ALB-MM, [1942] 2002, p.265).
No caso específico da literatura, o pomo da discórdia entre Mário e
muitos de seus companheiros de movimento era pregar a destruição na teoria,
nos discursos programáticos, e não praticá-la na escrita literária. Nesse mesmo
texto, ele criticava aqueles escritores que solucionavam o problema do
abrasileiramento da linguagem literária, comicamente, dividindo-o em registro
escrito e falado: “escrevem gramaticalmente, mas permitem que seus
personagens, falando, “errem” o português. Assim, a ... culpa não é do escritor,
é dos personagens!” (ALB-MM, [1942] 2002, p. 269). Diante dessa prática,
habitual entre os escritores que lhe eram contemporâneos, Mário exaltava a
sua coragem de praticar o que pregava, de não ficar só no convite, no
“sejamos” e no “escrevamos” brasileiro. A análise de suas obras literárias
atesta a liberdade de ousar o experimentalismo estético que incluía a liberdade
de inundar os textos de brasileirismos, sem distinção entre as vozes do
narrador e das personagens e dos registros oral e escrito, o que mostra a
coerência entre o ethos dito e o mostrado da coragem. Assim, se, por um lado,
um primeiro Mário aderia ao ethos militante, libertário, revolucionário,
irreverente, passional, inconformista, anti-acadêmico, destruidor, corajoso,
coincidindo com o estereótipo do agente provocador da comunidade ética
modernista, por outro, um segundo Mário se apresentava como mais
construtivo, pacificador, defendendo um projeto político, ético, estético e
linguístico que visava a uma brasilidade nacional, para além dos regionalismos,
e que não perdia de vista o desejo de ver a cultura brasileira entre as demais
que faziam parte da república universal da cultura civilizada.
170
Diante do exposto, consideramos que nossa hipótese de estudo – Os
enunciados marioandradinos acerca da língua falada no Brasil estão
impregnados das contradições entre o discurso modernista e o discurso
conservador que permeiam o campo discursivo das Letras no Brasil das
primeiras décadas do século XX – foi confirmada, tendo em vista o inextricável
enredamento interdiscursivo entre enunciados modernistas e conservadores
acerca da identidade nacional, linguística, literária, artística e cultural. Havia
uma vontade coletiva de nação brasileira/língua nacional, mas não havia
consenso sobre ela, daí o campo discursivo das Letras experimentar um
momento histórico de profícua polêmica em que as diversas posições
avultavam e se batiam nas cenas de enunciação, cada uma renegando a outra
e gritando mais alto o suposto sentido “verdadeiro”. O binômio nação
brasileira/língua nacional podia ser interpretado como nação brasileira/língua
portuguesa, nação brasileira/língua brasileira, nação brasileira/língua tupi,
nação brasileira/falas brasileiras regionais ou nação brasileira/fala brasileira
universal. Quem, como Mário, assumia a última posição lia as demais posições
por meio de simulacros que as desqualificavam, a exemplo do enunciado
seguinte em que comenta a contundente afirmação de Graça Aranha – “Não
somos a câmara mortuária de Portugal” – identificada com o nacionalismo
genuíno, autêntico, radicado à terra, separatista: “A radicação à terra, gritada
em doutrinas e manifestos não passava de um conformismo acomodatício.
Menos que radicação, uma cantoria ensurdecedora, [...] que não raro tornou-se
um porque-me-ufanismo larvar” (ALB-MM, [1942] 2002, p. 267). Quem divergia
de Mário também interpretava a sua posição por meio de simulacros. Como se
tratava de acompanhar o discurso modernista no momento de seu nascimento,
no momento em que ele buscava rachar o discurso instituído, conjeturar a
natureza contraditorial dos enunciados de Mário de Andrade era inevitável,
embora ele tivesse pressa em esquecer o renitente fantasma do Outro: “Não
reagir contra Portugal. Esquecer Portugal, isso sim. É o que fiz” (SD11). Na
prática, esquecer Portugal, naquele momento, era impossível, por isso o
discurso modernista é um discurso polêmico e o ethos predominante do
enunciador modernista é o do destruidor, do revoltado, do insurreto etc.
Consideramos, assim, que a escolha da análise de discurso de linha
francesa e dos conceitos de ‘formação discursiva’, ‘formação ideológica’ e
171
‘interdiscurso’, esse último desdobrado em “heterogeneidade constitutiva e
mostrada”, ‘interincompreensão’, ‘tradução’ e ‘simulacro’, foi fundamental na
leitura do corpus que recortamos do monumental arquivo marioandradino.
Também o conceito de ‘ethos discursivo’ se mostrou necessário, uma vez que
lidávamos com um discurso transgressor no que e no como de sua enunciação,
com um discurso pronunciado por “espíritos livres que curto-circuitam as
escolas, o dogmático e as modas, que misturam estreitamente pensamento e
paixão, e que não hesitam em fazer dessa conjugação uma verdadeira
aventura” (MAFFESOLI, 1987, p30). Com relação às leituras que fizemos do
corpus com base em tais conceitos, avaliamos que elas poderiam ter sido mais
detalhadas, poderiam ter esmiuçado em filigranas a inscrição da polêmica e do
ethos na materialidade linguística, mas a descomunal extensão da nossa
coletânea de enunciados acabou tornando essa tarefa invencível, ao menos no
tempo instituído para o mestrado. Reconhecemos que as leituras abreviadas,
não tão densas das sequências discursivas, foram o preço que pagamos pela
nossa desmedida na constituição do corpus, mas tínhamos nos proposto o
desafio de enfrentar uma massa volumosa de enunciados, uma vez que o
habitual, em análise de discurso, tem sido o contrário, tem sido fazer um
corpus mínimo render o máximo. Assim, não pudemos evitar de fazer o
máximo render o mínimo.
Como último objetivo deste estudo, nos propusemos a verticalizar a
reflexão acerca do português como uma língua heterogênea, no sentido de
desnaturalizar e combater o preconceito linguístico. No momento em que
estávamos às voltas com a elaboração do projeto de pesquisa que culminou
com esta dissertação, acompanhamos uma barulhenta polêmica na mídia
nacional em torno do livro didático de língua portuguesa Por uma vida melhor,
distribuído pelo MEC. A polêmica foi deflagrada por uma notícia bombástica,
divulgada pelo jornalista Alexandre Garcia, no programa matinal Bom Dia Brasil
da Rede Globo, reprovando o MEC e os autores do famigerado livro, por
fomentar o uso do português errado. A notícia rendeu pauta para os meses de
maio e junho de 2011, com profissionais das mais diversas áreas de
conhecimento e mídia se pronunciando a favor ou contra a interpretação
sociolinguística assumida pelos autores do livro em consonância com os
Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa. Olhando
172
atentamente para essa polêmica em torno da língua a ser ensinada na escola
no século XXI, é inevitável não pensarmos na atualidade da polêmica
vivenciada pelos modernistas no início do século XX. Na época de Mário, ele
cobrava o empenho dos filólogos que, ao invés de se aplicarem em reformas
ortográficas patrioteiras, deveriam “fornecer aos artistas uma codificação das
tendências e constâncias da expressão linguística nacional” (ALB-MM, [1942]
2002, p. 270). Hoje contamos com linguistas, sociolinguistas e dialetólogos que
já avançaram muito na descrição e codificação do português brasileiro, mas,
fora da comunidade ética dos linguistas, continuamos tão indigentes quanto
Mário de Andrade. Apenas nós, linguistas, acreditamos e defendemos o
princípio de que “uma língua é sempre várias línguas”, contra o princípio de
que “uma língua é sempre a mesma língua”, independentemente do espaço e
do tempo e de por quem seja usada. Desalentado com os resultados das
pesquisas sobre a língua nacional em sua época, Mário invocou José de
Alencar para prognosticar que seria preciso esperar outro movimento
modernista para que as constâncias sintáticas que de fato caracterizavam a
fala brasileira fossem codificadas: “isso decerto ficará para o futuro movimento
modernista, amigo José de Alencar, meu irmão” (ALB-MM, [1942] 2002, p.
271). Por nossa vez, nós linguistas que, um século depois, estamos ajudando a
codificar a pluralidade de normas que compõem o português brasileiro,
prognosticamos, amigo Mário de Andrade, que será preciso mais um século
para mudar o pensamento linguístico monoteísta da praça pública.
173
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