universidade federal de mato grosso instituto de ... · título de mestre, ... (em memória)...

181
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM NEILA BARBOSA DE OLIVEIRA BORNEMANN O PORTUGUÊS BRASILEIRO EM MÁRIO DE ANDRADE PELO VIÉS DA ANÁLISE DE DISCURSO CUIABÁ-MT 2013

Upload: trandat

Post on 15-Nov-2018

221 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

NEILA BARBOSA DE OLIVEIRA BORNEMANN

O PORTUGUÊS BRASILEIRO EM MÁRIO DE ANDRADE PELO VIÉS DA ANÁLISE DE DISCURSO

CUIABÁ-MT 2013

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

NEILA BARBOSA DE OLIVEIRA BORNEMANN

O PORTUGUÊS BRASILEIRO EM MÁRIO DE ANDRADE

PELO VIÉS DA ANÁLISE DE DISCURSO

Dissertação apresentada ao Programa de

Mestrado em Estudos de Linguagem da

Universidade Federal de Mato Grosso,

como requisito parcial para obtenção do

título de Mestre, sob a orientação da Prof.ª

Dr.ª Maria Inês Pagliarini Cox.

CUIABÁ-MT

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

iii

FICHA CATALOGRÁFICA

B736p Bornemann, Neila Barbosa de Oliveira.

O português brasileiro em Mário de Andrade pelo viés da análise de discurso / Neila Barbosa de Oliveira Bornemann. – 2013.

x, 180 f.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria Inês Pagliarini Cox.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, 2013.

Bibliografia: f. 172-180.

1. Análise de discurso. 2. Andrade, Mário de, 1893-1945 – Crítica e interpretação. 3. Português brasileiro. I. Título.

CDU – 81’42

Ficha elaborada por: Rosângela Aparecida Vicente Söhn – CRB-1/931

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

iv

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

v

Dedico este trabalho a todos que, de inúmeras formas, contribuíram com

meu crescimento, me incentivaram a continuar buscando meus objetivos,

torceram e se alegraram junto comigo ao longo de cada conquista. Dedico

especialmente essa conquista à minha família: meus pais José Barbosa da

Silva e Almezina de Oliveira Silva, meus irmãos (em memória) Nerivaldo

Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

amigo de todas as horas, Carlos Roberto Bornemann.

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

vi

AGRADECIMENTOS

A Deus, luz que me guia e me encoraja a enfrentar os momentos de

crise.

À Universidade Federal de Mato Grosso, mais precisamente à Pró-

Reitoria Administrativa/Secretaria de Gestão de Pessoas, por me conceder

afastamento integral para a realização do curso de mestrado.

À professora Maria Inês Pagliarini Cox, pela orientação cheia de

paciência e sabedoria, pela dedicação a esta pesquisa, por me incentivar a

crescer e, especialmente, por acreditar no meu potencial, desde 2005, meu

primeiro ano de graduação em Letras, nesta Universidade.

A todos os professores do programa de Pós-graduação em Estudos de

Linguagem e de graduação que contribuíram com meu amadurecimento

intelectual.

Aos professores Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento e

Roberto Leiser Baronas, pela leitura cuidadosa e criteriosa da primeira versão

deste trabalho e pelas muitas sugestões que me ajudaram a aperfeiçoá-lo.

À professora Rosemary Affi Santos Costa que, desde o curso de

graduação, também acompanha minha jornada no universo das Letras e que,

durante a pesquisa do mestrado, abriu as portas de sua biblioteca particular

para me disponibilizar as obras de que necessitava, inclusive obras raras de

Mário de Andrade.

Ao meu esposo Carlos Roberto Bornemann, pelo apoio incondicional,

pelo amor, pela torcida, pela paciência em me ouvir e pelo compartilhamento

dos meus sonhos.

Aos meus pais José Barbosa da Silva e Almezina de Oliveira Silva, pelo

amor, incentivo ao estudo desde criança e pela torcida em todos os momentos.

Aos meus parentes, tanto os de perto quanto os de longe: avós, tios e

primos, com quem pude falar sobre esta pesquisa e que me enviaram boas

energias.

Aos amigos da época da graduação e da pós-graduação, pela

companhia e trocas riquíssimas ao longo do curso de mestrado.

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

vii

Aos amigos de trabalho da Secretaria de Gestão de Pessoas/UFMT,

especialmente aos da Seção de Cadastro de Pessoal e ao meu chefe, Rodolfo

Nery Guarim Strobel, pela amizade sincera e torcida em todos os sentidos.

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

viii

Que importa que uns falem mole descansado

Que os cariocas arranhem os erres na garganta

Que os capixabas e paroaras escancarem as vogais?

Que tem si o quinhentos-réis meridional

Vira cinco tostões do Rio pro Norte?

Juntos formamos este assombro de misérias e grandezas,

Brasil, nome de vegetal!...

(ANDRADE, Noturno de Belo Horizonte)

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

ix

O PORTUGUÊS BRASILEIRO EM MÁRIO DE ANDRADE PELO VIÉS DA ANÁLISE DE DISCURSO

O estudo investigou o(s) discurso(s) de Mário de Andrade acerca da constituição de uma identidade linguística brasileira, focalizando a posição do escritor na chamada polêmica entre modernistas e conservadores, entre as décadas de 1920 e 1940, balizando-se pelo referencial teórico-metodológico da análise de discurso francesa, especialmente pelos conceitos de interdiscurso (e seus correlatos) e ethos discursivo, tal como operacionalizados por Dominique Maingueneau (1989, 1997, 2005a, 2005b, 2008a, 2008b, 2010, 2011). Os enunciados do corpus discursivo foram recortados do arquivo de textos que compõem a obra do autor, distribuídos entre gêneros vários, como: poesia, ensaios, crítica, romances, contos, crônicas, matérias jornalísticas, estudos folclóricos, incluindo cartas enviadas a amigos com quem dialogava a propósito dos brasileirismos aos quais queria dar estatuto de fala erudita, culta, civilizada. O estudo teve por objetivo captar alguns dos sentidos atribuídos por Mário de Andrade ao acontecimento linguístico que, desde o princípio da colonização, vinha engendrando uma língua ou uma norma outra que rachava o reino indiviso da lusofonia. Além disso, buscou compreender o funcionamento do ethos discursivo na enunciação marioandradina como participante de uma polêmica histórica no campo das Letras, no universo discursivo brasileiro. No horizonte vislumbrado por Mário, o nacionalismo emergia como significativo, se, e apenas se, desvencilhado do regionalismo e integrado ao internacionalismo que regia seu desejo de projetar o Brasil no concerto da cultura civilizada universal. A leitura do corpus discursivo revela a convergência do ethos pré-discursivo e discursivo de Mário com o ethos da comunidade ética modernista no tocante à militância, à revolta, ao combate da estética acadêmica, ao passadismo, à imposição do padrão linguístico lusitano etc. Contudo, ela também traz à tona a divergência do ethos de Mário em relação ao ethos modernista quanto a se portar como um mero ideólogo do movimento ou a se portar como um experimentador, um artífice, um autêntico obreiro da missão modernista, na São Paulo e no Brasil das primeiras décadas do século XX, em meio a parnasianos, simbolistas, regionalistas e a outros movimentos. Nesse sentido, a obra literária de Mário é uma demonstração, ou melhor, uma mostração do ethos da coragem.

PALAVRAS-CHAVE: análise de discurso; polêmica; português brasileiro; Mário de Andrade.

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

x

THE BRAZILIAN PORTUGUESE IN MÁRIO DE ANDRADE

THROUGH THE BIAS OF DISCOURSE ANALYSIS

This study investigated Mario de Andrade’s discourse in relation to the creation of a Brazilian linguistic identity, focusing on the writer’s position in the so called polemic between modernists and conservatives, between the 1920s and 1940s, supported by the theoretical and methodological referential of the French discourse analysis, mainly by the concepts of interdiscourse (and its correlates) and discursive ethos, as operationalized by Dominique Maingueneau (1989, 1997, 2005a, 2005b, 2008a, 2008b, 2010, 2011). The discursive corpus was extracted from the archive of texts that comprise the author’s work, distributed among several genres, such as: poetry, essays, criticism, romances, short-stories, chronicles, journalistic articles, folklore studies, including letters sent to friends with whom he discussed about the Brazilianisms to which he wanted to give status of erudite, cultured, civilized speech. The study aimed to capture the meanings assigned by Mario de Andrade to the linguistic event that, from the beginning of colonization, was engendering a language or a norm that was breaking the Lusophony kingdom. Besides, it sought to understand the operation of the discursive ethos in the marioandradina enunciation as a participant of a historical controversy in the field of Letters in the Brazilian discursive universe. On the horizon envisioned by Mario, nationalism emerged as significant, if, and only if, set apart from the regionalism and integrated to the internationalism that governed his desire to project Brazil in the concert of the universal civilized culture. The reading of the discursive corpus reveals the convergence of Mario’s pre-discursive and discursive ethos with the ethos of the modernist ethnic community with regard to militancy, revolt, fight against academic aesthetics, traditionalism, imposition of the Lusitanian linguistic pattern etc. However, it also brings to light Mario’s divergence of ethos in relation to the modernist ethos whether to behave as a mere ideologist of the movement or to behave as an experimenter, a craftsman, a real worker of the modernist mission, in São Paulo and in Brazil of the first decades of the XX century, amid the Parnassian, Symbolist and Regionalist movements to name a few. In this sense, Mario’s literary work is a demonstration, or better, a display of the ethos of courage.

KEYWORDS: discourse analysis; polemic; Brazilian Portuguese; Mário de Andrade.

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

xi

Sumário INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 12

Capítulo 1 ................................................................................................................................... 29

NOTAS SOBRE O MODERNISMO BRASILEIRO E A PERFORMANCE DO PROTAGONISTA MÁRIO DE ANDRADE .... 29

1. 1 O Movimento Modernista no Brasil ................................................................................. 30

1.2 A trajetória artística e intelectual trilhada por Mário de Andrade ................................... 40

1. 3 Mario de Andrade: um missivista compulsivo ................................................................. 50

Capítulo 2 .................................................................................................................................... 56

PERCURSO METODOLÓGICO ............................................................................................................. 56

Capítulo 3 .................................................................................................................................... 73

A POLÊMICA ACERCA DA CONSTITUIÇÃO DE UMA IDENTIDADE LINGUÍSTICA BRASILEIRA EM MÁRIO DE

ANDRADE ....................................................................................................................................... 73

3.1 Da formação discursiva ao interdiscurso .......................................................................... 73

3.2 Do primado do interdiscurso ............................................................................................ 76

3.3 Da polêmica como interincompreensão .......................................................................... 81

3.4 Da polêmica sobre identidade linguística brasileira no arquivo de Mário de Andrade .... 83

3.5 Da transposição erudita dos barbarismos ....................................................................... 102

3.5.1 Da categorização e nomeação da variedade linguística falada no Brasil ................. 102

3.5.2 De Mário de Andrade como um (socio)linguista temporão .................................... 112

Capítulo 4 .................................................................................................................................. 130

O ETHOS DE MÁRIO DE ANDRADE NA ENUNCIAÇÃO ACERCA DA IDENTIDADE LINGUÍSTICA BRASILEIRA ....... 130

4.1 Da noção de ethos ........................................................................................................... 130

4.2 Do ethos pré-discursivo ao discursivo em Mário de Andrade ........................................ 141

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................................. 162

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................................ 173

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

12

Introdução

Desde que o Brasil se emancipara politicamente de Portugal, no século

XIX, a construção da identidade nacional se fez tema de um prolífero debate

que se prolongou até o século XX, envolvendo escritores, artistas, políticos,

gramáticos e a intelligentsia brasileira de um modo geral. Os escritores

românticos brasileiros foram os primeiros a entrar na briga pela emancipação

estética em relação aos modelos portugueses e europeus e essa bandeira

incluía a independência linguística. Nossa autonomia política não estaria

completa se a nação recém-criada continuasse a se comportar como colônia

cultural e linguística da metrópole portuguesa. Afinal, ter uma língua própria

parece ser um imperativo a quem se declara uma nação independente.

Macedo Soares exprime precisamente a divisão linguística reinante no Brasil

na segunda metade do século XIX, vinculando-a a um processo de

emancipação ainda inacabado:

Nossos jornalistas escrevem de modo muito diverso do que falam. Falando dizem que moram na rua do Ouvidor, no largo da Lapa, no campo de Santa Ana, nas Laranjeiras: escrevendo dizem, que moram às Laranjeiras, ao campo de Santa Ana, à rua do Ouvidor, ao largo da Lapa. Falando são brasileiros [...] Escrevendo [...] tratam de acompanhar os jornalistas de Lisboa [...].

Eis porque bem dizia Batista Caetano, o chorado americanólogo brasileiro: - “Independência Nacional? Pode ser, mas só política: em tudo mais continuamos a ser colônia Portuguesa”. E é assim mesmo. (SOARES, 1981, p. 52-53)

Contudo, o discurso que defendia a construção de uma identidade

cultural, artística, literária e linguística não se fazia sem uma forte oposição dos

conservadores. Alfredo Bosi sintetiza muito apropriadamente a tensão “entre a

Colônia que se emancipava e a Metrópole que se enrijecia na defesa de seu

caducante Império [...]”. Se, por um lado, “o pólo brasileiro [...], enfim, levantava

a cabeça e dizia seu nome”, por outro, “o pólo português, [...] resistia à perda

de seu melhor quinhão” (BOSI, 1992, 177).

No que tange à língua especificamente, Pinto (1981) refere-se a duas

posições discursivas em conflito, a posição dos separatistas e a posição dos

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

13

legitimistas. De um lado, os separatistas, “homens embriagados pelo ideário de

liberdade, viam como positiva a diferenciação linguística entre Brasil e Portugal

e reivindicavam apaixonadamente a emancipação e a maioridade cultural do

Brasil” (ALBUQUERQUE e COX, 1997, p. 31). Animados pela independência

política e pelo nacionalismo, os separatistas imbuíam-se do dever de dar à

nação brasileira uma língua própria. De outro lado, estavam os legitimistas que

defendiam a conservação do português, tal como prescrito pelos gramáticos

d’além mar, procurando impedir toda sorte de mudanças que a língua viesse a

sofrer em solo brasileiro por meio de acréscimos, neologismos,

estrangeirismos, barbarismos ou quaisquer outras afetações originárias da fala

cotidiana. Enquanto os separatistas viam o processo de diferenciação que

afetava o português falado/escrito no Brasil como algo positivo, como os

primeiros passos de uma língua outra em formação, os legitimistas a viam

como negativa, como a contaminação e destruição da pureza do idioma

lusitano.

Ascendente entre os românticos, a posição separatista recuava para os

bastidores entre os parnasianos, cujos princípios estéticos incluíam a

sacralidade da forma, o respeito às regras de versificação, o preciosismo

rítmico e vocabular, as rimas raras, a preferência por estruturas fixas, a

exemplo do soneto, a retomada de temas clássicos. Essa preocupação

exacerbada com a perfeição formal favorecia a posição legitimista, levando

muitos parnasianos a entenderem “perfeição formal” como sinônimo de

“correção gramatical”. Contudo, os parnasianos não demoraram a enfrentar a

reação modernista que retomava, sob outras perspectivas, postulados do

romantismo, dentre eles o de abrasileiramento da língua e da literatura.

O movimento modernista propunha uma ruptura com as normas

estéticas do passado, com as belas-letras e as belas-artes, com o

academicismo. Entre as bandeiras reivindicadas pela sua vanguarda, estavam:

o direito à pesquisa e experimentação estética, a liberdade de expressão e

criação artística, a incorporação da vida cotidiana às temáticas literárias, com

destaque ao folclórico e ao popular, a incorporação da pluralidade cultural e

linguística brasileira, o nacionalismo crítico, as inovações técnicas por meio da

adoção do verso livre, a linguagem coloquial e a eliminação de sinais de

pontuação, bem como experimentos ousados no léxico, na sintaxe e na

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

14

semântica. Muitos modernistas discutiram a questão da língua nacional, mas,

certamente, o mais apaixonado, o mais contundente, o mais envolvido e

comprometido com a tarefa de encontrar uma norma brasileira que pudesse

balizar a escrita literária foi Mário de Andrade.

Estrela de primeira grandeza no movimento modernista, Mário Raul de

Morais Andrade (1893-1945) se dedicou ao estudo da cultura, do folclore, da

música, da literatura e da língua do Brasil, sempre tendo como alvo a formação

da identidade nacional, ainda embaçada pelos valores, modelos e normas

lusitanos e europeus. Mário assumiu um caráter revolucionário na literatura

brasileira, estreando com Pauliceia Desvairada (1922), obra que deu início ao

movimento modernista no Brasil, deflagrado pela Semana de Arte Moderna.

Mário não perdia de vista “a produção de uma explicação do Brasil,

voltada à efetivação da sociedade nacional” (SILVEIRA, 2010, p.55). Contrário

às estruturas sociais vigentes representantes de um espírito conservador e

conformista, ele enfatizava a necessidade de renovar os campos da arte, da

literatura e da cultura, buscando romper os laços com a Europa, “para superar

o estado de reverência absoluta a essa cultura, mantida até então pelos

acadêmicos” (MUSSALIM, 2006, p.273).

Imbuído do ideário modernista, o escritor fez das coisas e gentes do

Brasil o tema central de sua obra. Essa preocupação em fazer aflorar os traços

de brasilidade encravados nos quatro cantos do país levou-o a realizar diversas

expedições etnológicas pelo interior do Brasil. Sua empreitada como etnólogo

resultou na obra Macunaíma – o herói sem nenhum caráter, publicada em

1928, um romance cuja personagem central amalgama as qualidades e

defeitos de um brasileiro comum, originado da mistura de índio, negro e

branco, de modo a patentear a ideia de que o que principalmente caracteriza a

identidade cultural brasileira é a mestiçagem.

Suas obras constituem verdadeiros manifestos em favor de uma língua e

de uma literatura brasileiras, independentes daquelas de Portugal. Assim, na

polêmica entre modernistas e conservadores, ele reconhecia a contribuição do

português europeu, mas defendia a independência de um idioma nacional, se

não da língua ao menos da fala. Muitas de suas pesquisas sobre a fala

brasileira encontram-se registradas em esboços que possivelmente seriam

direcionados para a obra A gramatiquinha da fala brasileira, que nunca chegou

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

15

a ser escrita e publicada. Nessa obra, Mário de Andrade se apresentava como

alguém que sabia escrever bem o português de Portugal, mas que se propunha

a contribuir para a construção de uma “gramatiquinha” da fala brasileira. Não

se tratava de uma gramática como as demais, mas de uma sistematização das

constâncias observadas na fala dos brasileiros das diversas regiões, do campo

e da cidade, da elite e de povo. Seu desejo era chegar ao elemento culto

brasileiro, superando o individualismo e o regionalismo.

Entre os esboços destinados à Gramatiquinha, encontramos notas de

Mário sobre as fases linguísticas experimentadas pelos escritores na sociedade

brasileira ao longo de sua história. É, pois, a partir do lugar da literatura que o

autor se envolve com a questão da identidade linguística brasileira. Se

visualizava para o Estado-Nação Brasil uma literatura própria não poderia

deixar de pensar numa língua própria para esse fazer literário. O trinômio

nação/língua/literatura própria que pauta o imaginário da formação dos estados

nacionais europeus durante o século XIX também se faz sentir entre nós,

quando nos tornamos politicamente independentes de Portugal. Nesse sentido,

Mário aponta quatro fases: Brasil colônia, Brasil romântico, Brasil civilizado e

Brasil Cultural.

Na fase colonial, “nós falávamos o português de Portugal” (ANDRADE,

[1928] 1990, p. 412), a exemplo de Santa Rita Durão, Claúdio Manoel da Costa

e Tomás Antônio Gonzaga, cuja forma de expressão mimetizava a língua da

literatura portuguesa. Nesse período, o poder português sobre a colônia

brasileira imperava fortemente não apenas no domínio da política, mas também

da cultura, das artes, da literatura, da língua, o que não significava que não

houvesse resistência.

Na fase romântica, embriagados pelo ideal de liberdade que culminou

com a emancipação política do território brasileiro do Reino Unido de Portugal,

os escritores buscavam ampliar o gesto de ruptura com a ex-metrópole,

recorrendo à língua falada pelo povo e às temáticas nacionais, com destaque

para indianismo. De acordo com Mário, apesar de ser uma fase primitiva e

caótica, é nela que se esboçam “as tendências essenciais da futura fala

brasileira” (ANDRADE, [1928] 1990, p. 412).

Na fase civilizada, que se inicia na segunda metade do século XIX e vai

até o início do século XX, voltamos a imitar a civilização alheia em todos os

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

16

domínios. Nas palavras de Mário, “republicamo-nos por adaptação com a

civilização americana que era republicana”. Com relação à língua, o que

predominava não era mais falar o português que o povo de Portugal usava,

como fazíamos na fase colonial, mas o português gramatical. Isso levava a

saber muito das regras de gramática, mas escrever “mal”. O desejo que movia

os escritores era o de escrever “certo” e não escrever “bem”. Nessa fase,

“falávamos conscientemente a mais desumana língua que é possível se

imaginar [...] língua de criação consciente, de expressão falsa, inteiramente

divorciada das nossas condições naturais quer fonéticas quer semasiológicas”

(ANDRADE [1928] 1990, p. 412-413).

Na fase cultural, iniciada com o modernismo, Mário vislumbrava uma

substituição da civilização pela cultura brasileira, nos mais variados domínios,

incluindo o linguístico. Vencidos os arroubos das primeiras tentativas e “os

exageros a que a gente é levado naturalmente pelo entusiasmo da descoberta,

a gente voltará a escrever a língua que fala”. O escritor prognosticava um

tempo em que a língua literária iria conjugar “o povo e a elite escrevedora”

(ANDRADE [1928] 1990, p. 413).

Inscrevendo-se na fase cultural, Mário de Andrade faz parte da safra de

escritores brasileiros que, desde o romantismo, se incomodavam com a

transformação da literatura brasileira em decalque da portuguesa. Esse mal-

estar incluía tanto as referências estéticas quanto temáticas e linguísticas. A

julgar pela abundância de textos acerca da língua/fala brasileira no arquivo

marioandradino, essa era uma questão que o inquietava, que não dava tréguas

a seu desassossegado pensamento. Não apenas pelo volume de textos, mas

principalmente pela fecundidade de suas reflexões sobre a língua que, pode-se

dizer, anteciparam, em quase meio século, o que (socio)linguistas viriam a

enunciar sobre a realidade linguística brasileira. É esse arquivo que

escolhemos para coletar um corpus significativo de enunciados a serem lidos

nesta dissertação.

Assim, temos por objetivo geral perscrutar o posicionamento e o ethos

discursivo de Mário de Andrade, um escritor modernista, nos debates acerca

da constituição de uma identidade linguística brasileira. Nossa hipótese de

partida é que os enunciados marioandradinos acerca da língua falada no Brasil

estão impregnados das contradições entre o discurso modernista e o discurso

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

17

conservador que permeiam o campo discursivo das Letras no Brasil das

primeiras décadas do século XX. Definido o objetivo geral e a hipótese,

buscamos responder às seguintes perguntas: Como Mário de Andrade se

posiciona, no papel de enunciador modernista, na peleja pela construção de

uma identidade linguística nacional? Como ele significa o acontecimento

linguístico1 brasileiro em relação à lusofonia: uma língua outra ou uma norma

outra? De que modo o combate travado por ele com os defensores de uma

lusofonia indivisa se inscrevem na materialidade dos enunciados?

Tendo em vista que a presente investigação2 busca depreender dos

enunciados de Mário de Andrade suas interpretações acerca da alteridade

linguística latente no português brasileiro, balizaremos nosso estudo pela

análise de discurso da vertente francesa, uma vez que sua especialidade é “o

campo do sentido” (POSSENTI, 2004, p. 361). A AD visa compreender como

objetos simbólicos fazem sentidos. Conforme Orlandi (2007, p. 26), a análise

de discurso não busca revelar o sentido verdadeiro, pois, para ela, “Não há

uma verdade oculta atrás do texto. Há gestos de interpretação que o

constituem e que o analista, com seu dispositivo, deve ser capaz de

compreender”.

Para compor nosso dispositivo de leitura dos enunciados, recorremos às

noções de formação discursiva e interdiscurso, privilegiando duas das

hipóteses propostas por Maingueneau em Gênese dos discursos (2005a) o

primado do interdiscurso sobre o discurso e a polêmica como

interincompreensão. Consideramos as noções de interdiscurso e polêmica

adequadas à análise do corpus pelo fato de a língua/fala do Brasil sempre

suscitar controvérsias e verdadeiras batalhas verbais no campo discursivo das

1 Entendemos acontecimento discursivo conforme Guilhaumou & Maldidier (1994, p. 166): “o

acontecimento discursivo não se confunde nem com a notícia, nem com o fato designado pelo poder, nem mesmo com o acontecimento construído pelo historiador. Ele é apreendido na consistência de enunciados que se entrecruzam em um momento dado”. 2 A pesquisa aqui apresentada integra o projeto “Discursos sobre o português brasileiro – do

século XIX ao século XXI, coordenado pela Profa. Dra. Maria Inês Pagliarini Cox, que faz parte do corpo docente do MeEL/UFMT. Trata-se de uma pesquisa sobre os sentidos atribuídos à(s) variedade(s) brasileira(s) do português, baseada em corpus de textos escritos por escritores, jornalistas, gramáticos, linguistas, homens de Letras em geral, desde o século XIX, momento em que o nacionalismo romântico começa a instigar as discussões acerca de uma possível língua nacional, logicamente, não sem a reação da ortodoxia a defender a língua tal como herdada do passado lusitano quinhentista.

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

18

Letras. De Maingueneau (1989, 1997 2005a, 2005b, 2008a, 2008b, 2010,

2011) também tomamos a noção de ethos que nos ajudará na construção do

quarto capítulo desta dissertação. Nosso estudo tem por referência o campo

discursivo das Letras, do qual recortamos o espaço constituído pelas

formações discursivas modernista e conservadora, que não cessam de se

enredar no processo de interpretação do acontecimento linguístico que afeta a

língua portuguesa no seu deslocamento de Portugal para o Brasil,

engendrando uma nova língua ou novas normas.

Realizada essa delimitação, percorremos o arquivo de textos de Mário

de Andrade em busca de sequências discursivas (doravante SDs) cuja

temática fosse a língua/fala brasileira. Tratando-se, pois, de uma pesquisa de

arquivo, nossa leitura das obras do modernista não foi direcionada por gêneros

discursivos, mas pelo tema eleito – o português brasileiro – recorrente na obra

de Mário de Andrade como um todo. Por isso, a montagem do corpus consistiu

em ler, localizar e extrair SDs dos textos, independentemente dos gêneros

discursivos a que pertencessem (artigos para jornal, ensaios literários, crítica,

poemas, romances, contos, crônicas, esboços destinados à Gramatiquinha da

fala brasileira e cartas a muitos amigos), com o foco apenas no tema. Além

disso, recorremos aos textos publicados na coletânea Português do Brasil

(V.II), organizada por Edith Pimentel Pinto (1981). Em análise de discurso, o

corpus não é dado a priori, mas constituído a partir das perguntas e objetivos

da pesquisa. Embora no capítulo 2, tenhamos organizado as obras que nos

serviram de fonte para a constituição do corpus por gênero, isso não significa

que ele foi uma variável considerada em nosso estudo.

Esse estudo não está inaugurando um novo filão de pesquisa no campo

da análise de discurso praticada no Brasil. Nesse campo, há uma farta safra de

trabalhos realizados e publicados sobre a questão nevrálgica da identidade

linguística brasileira, a partir de diferentes corpora. Sem a preocupação de

sermos exaustivos, revisitamos alguns desses trabalhos com os quais a nossa

pesquisa se afina temática, teórica ou metodologicamente.

Comecemos pelo estudo de Buscácio (2010) que, como nós, também se

debruça sobre o arquivo Mario de Andrade, buscando apreender os efeitos de

sentido que acompanham o gesto de nomear a língua do Brasil nos esboços

destinados à obra Gramatiquinha da fala brasileira, organizada e publicada por

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

19

Edith Pimentel Pinto sob o nome de A gramatiquinha de Mário de Andrade.

Balizada pelo conceito foucaultiano de autor, Buscácio realçou o lugar de autor

de literatura, ocupado por Mário de Andrade, em contraste com o lugar de

gramático que ele se recusava a ocupar, a julgar pela denominação

“gramatiquinha da fala brasileira”, e não “gramaticazinha” como prescrevem as

normas e muito menos “gramática”. Se, por um lado, Mário se propõe a

produzir um instrumento linguístico (uma gramatiquinha), por outro, trata-se de

um instrumento linguístico diferente, não disciplinador como as gramáticas

escolares. Assim, para Buscácio (2010, p. 13), “Andrade joga com os lugares

discursivos do gramático e do literato para ressignificá-los, ao se propor a

desengessar a língua da gramática na Gramatiquinha”. Nomear a língua como

“o brasileiro”, “a fala brasileira”, “a língua brasileira”, “a língua nacional” não é

um gesto puramente estético, é também um gesto político. Essas nomeações

implicam deslizamentos de sentidos que se aliam, confrontam e significam

diferentemente no imaginário de formação do Estado brasileiro linguística e

literariamente emancipado de Portugal. Dessa forma, no autor Mário de

Andrade, a edificação da nação brasileira implica uma edificação linguística

iniciada pela “estilização da língua falada no país pela literatura, a ser

registrada pelas gramáticas, de modo a constituir uma língua nacional

brasileira” (p. 18).

Silva Sobrinho (2009) também reflete sobre o gesto de nomear a língua

do Brasil, buscando compreender os efeitos de sentido do enunciado Museu da

Língua Portuguesa, a partir do silêncio e do “jogo entre o dito e o não-dito

constitutivo de seu processo de enunciação” (p. 388). A designação da língua

nacional do Brasil no Museu como “Língua Portuguesa”, “Língua Portuguesa do

Brasil”, “Português do Brasil” e “Português Brasileiro” silencia a existência de

uma Língua Brasileira. Na companhia de Sériot (1996, p. 297), o autor afirma

que silenciar o nome da língua significa negar-lhe a existência bem como a de

seus falantes. Por outro lado, os determinantes “do Brasil” e “Brasileiro” nos

enunciados “Português do Brasil” e “Português Brasileiro” já não significam

mais o que significavam para os gramáticos do final do século XIX que

buscavam dar “visibilidade à língua do Brasil, afirmando as diferenças

produzidas no longo processo de descolonização linguística iniciado ainda no

‘descobrimento’” (p. 400). Entre os gramáticos do final do século XIX, tais

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

20

determinantes ressoavam em convergência com o processo de descolonização

e mudança linguística; hoje ressoam os sentidos de “localização de uma

história particular”, do mesmo modo que o determinante “no Brasil” (ORLANDI,

1997, p. 4). Segundo Silva Sobrinho (2009, p. 400), na história contada pelo

Museu, o Português do Brasil ou Português Brasileiro é uma mera variação da

“Língua Portuguesa” e não uma outra língua, posição que subestima a

disjunção linguística entre Brasil e Portugal e introduz “uma continuidade numa

descontinuidade, uma homogeneidade numa realidade fundamentalmente

heterogênea” (p. 402), produzindo “a unidade imaginária da língua e do Estado

brasileiro e, ao mesmo tempo, a unidade imaginária da lusofonia” (p. 386).

Nomear a língua falada no país como Português do Brasil ou Português

Brasileiro significa dizer que falamos um dialeto do português e não que

falamos uma outra língua – o brasileiro.

Orlandi (2005), enfatizando que “a língua que se fala toca os sujeitos em

sua autonomia, em sua identidade, em sua autodeterminação” (p. 1), indaga-se

sobre a língua que nós, brasileiros, falamos: “falamos a língua portuguesa ou

brasileira?”. Revisita a história das ideias linguísticas brasileira para mostrar

que essa pergunta, apesar da descontinuidade introduzida no português pelos

falantes do lado de cá do Atlântico e apesar do acalentado debate entre

aqueles que propugnavam por uma língua nossa, brasileira, e aqueles que

defendiam a manutenção da língua outorgada por Portugal, comumente teve

como resposta: “falamos a língua portuguesa”. No auge dos debates, pós-

independência, a Constituição outorgada por D. Pedro, em 1823, decidiu que “a

língua que falamos é a língua portuguesa” (p. 1). Na década de 1930, a

Câmara do Distrito Federal optou por nomeá-la, de modo indefinido, como

“língua nacional”, designação que foi alterada pela Constituição de 1946 que

retomou a decisão anterior de que “o nome da língua falada no Brasil é língua

portuguesa” (p. 2). Enfim, a polêmica em torno da língua que falamos ainda

não se encerrou. As repostas institucionais não apagam o fato de que falamos

em nosso dia uma língua outra – o brasileiro – que entretém uma relação tensa

como o português, sobremaneira na cultura escolar que “acaba sempre se

curvando à legitimidade da língua portuguesa que herdamos” e considera que

“quem não a fala, ainda que esteja no Brasil, que seja brasileiro, erra, é um mal

falante, um marginal da língua” (p. 2). Segundo a autora, é a ideologia purista

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

21

que dá suporte ao imaginário da língua portuguesa. Contudo, apesar das

políticas linguísticas favorecerem o imaginário da unidade e da homogeneidade

da língua portuguesa, não podemos ignorar que “falamos decididamente a

língua brasileira”, uma vez que “falamos a ‘mesma’ língua, mas falamos

diferente”. O português brasileiro e o português português se recobrem como

se fossem a mesma língua, mas não são, “por se historicizarem de maneiras

totalmente distintas em suas relações com a história de formação dos países”

(p. 3). Em vista dessa disjunção, o português e o brasileiro diferenciam-se não

apenas no sotaque, na sintaxe e no léxico, mas também nas discursividades

que produzem. “O efeito de homogeneidade é produzido pela história da

colonização” (p. 3).

Mussalim (2003) investiga o modo como se deu a constituição do

discurso modernista no Brasil, balizada pelo conceito de semântica global

proposto por Maingueneau (2005a). Trata-se de uma tese de doutorado, cujo

capítulo 6, apresentado na forma de apêndice ao corpo do trabalho, interessa-

nos, sobremaneira, por revisitar a polêmica sobre “a existência ou não de uma

variedade linguística brasileira, separada da variedade de Portugal” (p. XIV). O

eixo do confronto de ideias recai sobre “a dialética nacional/estrangeiro” (p.

174). Embora a autora retroceda até a década de 1820, momento em que

acontecem as primeiras discussões acerca da língua do Brasil, seu foco neste

capítulo é “o modo de inserção do discurso modernista no debate em torno da

questão linguística nacional” (p. 175). As primeiras manifestações sobre essa

questão ocorreram entre 1820 e 1836, esboçando gestos interpretativos

favoráveis ou desfavoráveis às transformações linguísticas do português do

Brasil e sinalizando a direção do longo debate que experimentou, nos

movimentos romântico e modernista, sua maior florescência. A autora

esclarece que foram Gonçalves Dias e José de Alencar os primeiros escritores

a tentar “a fixação dos padrões literários brasileiros em termos de língua” (p.

181). O mais contundente defensor do cisma literário e, consequentemente,

linguístico entre Brasil e Portugal foi José de Alencar que imputava às palavras

valor estético – a expressão literária do nacional haveria de ser feita com

palavras nacionais. As diferentes designações atribuídas à língua do Brasil por

José de Alencar como “nosso dialeto” (ou dialeto brasileiro), “novo idioma” e

“português americano” não significavam incoerência ou contradição, mas sim a

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

22

dificuldade para lidar com a identidade linguística nacional sem poder ignorar o

elemento estrangeiro ainda muito presente no cenário brasileiro. Foram, pois,

os românticos que, primeiro, formularam “a defesa da cisão entre a literatura

portuguesa e a nossa literatura nacional, cisão que passa, evidentemente, pela

constituição de uma identidade linguística diferente da de Portugal” (p. 195).

Entre os modernistas, a reflexão sobre a identidade linguística brasileira,

aninhava-se, segundo Mussalim, num “projeto maior dessa vanguarda que

buscava realizar [...] a “transposição erudita da bárbarie” (p. 197). De acordo

com esse projeto, cabia aos escritores realizar a estilização culta da linguagem

popular, empreitada que Mario de Andrade defendeu aguerridamente em sua

produção crítica divulgada pela imprensa e pôs em prática em Macunaíma: o

herói sem nenhum caráter e outras obras literárias. A estilização culta da fala

empreendida pelos escritores individualmente prepararia a gramática da

linguagem brasileira. Contudo, o projeto de fornecer aos escritores “uma

codificação das tendências e constâncias da expressão linguística nacional” (p.

198) não deslanchou, principalmente pela falta de “órgãos científicos

adequados para realizar a reverificação da língua nacional”. Tudo se perdeu no

nível dos esforços individuais.

Mussalim (2006) explora a constituição de uma identidade nacional pelo

grupo dos primeiros modernistas brasileiros como um efeito do discurso. A

pesquisadora parte do projeto estético de Mário de Andrade sobre a música

nacional, estabelecendo um contraponto com suas reflexões acerca da

identidade linguística nacional. Um dos fundamentos do projeto estético

modernista “era o resgate da cultura popular, tomada como raiz de uma

tradição eminentemente brasileira” (p. 272). Contudo, o projeto não parava aí,

pois isso teria feito dos modernistas apenas um grupo de neo-românticos ou de

tradicionalistas rebeldes, postura que eles rechaçavam incisivamente, uma vez

que faziam parte de uma elite cultural que prezava a civilização, o progresso, a

modernização e que tinha a Europa Ocidental como referência. Era preciso

juntar a música popular com “a técnica e a tradição européia aprendida nas

escolas, a fim de precaver-se da selvageria e inserir-se na República Universal”

(p. 273). Contudo, a técnica seria decisiva na formação da música nacional

apenas se passasse pelo filtro da subjetividade do artista, assumindo uma

postura contra-aculturativa que superaria o mero academicismo. Assim, caberia

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

23

à arte/música nacional realizar “a transposição erudita da barbárie”, nos termos

de Mário de Andrade. A questão da identidade linguística nacional recebia uma

interpretação homóloga à perfilada para o projeto estético. Se, em relação às

artes, em geral, e à música, Mário defendia a “a transposição erudita da

barbárie” por meio da subjetividade do artista, em relação à língua ele defendia

a “estilização da fala popular, realizada pelo escritor conhecedor do português

de Portugal” (p. 276). A estilização representaria a contribuição individual de

cada escritor para o estabelecimento futuro de uma gramática da fala brasileira

que se colocaria num plano coletivo, nacional. Em relação ao projeto estético, a

subjetividade do artista, como ser histórico e social, trazia inscrita em si a

nação. Contudo, em relação ao projeto linguístico, a identidade nacional era

vista como a soma das contribuições individuais. Seguindo os passos

vislumbrados por Mário em seu projeto linguístico, a “universalidade brasileira”

(SD56) avultaria com a superação das soluções regionais que lhe soavam

como equivocadas.

Mussalim (2011), ainda debruçada sobre as práticas discursivas dos

modernistas no Brasil, propõe-se a analisar a constituição da posição

enunciativa desse grupo em suas manifestações verbais, bem como seu modo

de organização e movimentação no espaço social paulista, buscando salientar

como tais aspectos definem um estilo que, por sua vez, é constitutivo de um

ethos discursivo. Para isso, a autora mobilizou o conceito de prática discursiva

na proposição de Maingueneau (2005a), o qual afirma que esta prática deve

ser considerada como uma “prática intersemiótica” e o conceito de ethos

discursivo (MAINGUENEAU, 2008a), que consiste no tom que o enunciador

constitui ao enunciar. Conforme Mussalim, as práticas sociais do novo grupo

modernista não se restringiam à divulgação de suas ideias revolucionárias pela

imprensa; eles agitavam a cidade de São Paulo com “o movimento dos salões”:

reuniam-se ordinariamente nos salões da rua Lopes Chaves, da Avenida

Higienópolis, da rua Duque de Caxias e da alameda Barão de Piracicaba. Pela

crítica corrosiva contra a estética acadêmica veiculada pelos jornais que era

uma espécie de atentado contra o que era tido como bom gosto na época, bem

como pelos boatos que corriam na boca da sociedade paulistana em torno dos

encontros/festas/orgias nos salões, “criou-se em torno dos modernistas toda

uma semântica do maldizer” (p. 76). Por essa razão, se atribuía “ao discurso

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

24

modernista o caráter revolucionário e ao enunciador desse discurso certa

compleição psicológica que lhe conferia um ethos de revoltado” (p. 76).

Segundo a autora, a constituição do ethos de revoltado se deve, em grande

parte, ao uso do operador negativo “não” em conjunção com outros itens

negativos como: “nada”, “nenhum” e “nem”, característicos do estilo do discurso

crítico dos primeiros modernistas, cuja tônica era o combate ao passadismo, à

subserviência aos padrões estéticos europeus, às regras, aos velhos valores,

aos modelos literários portugueses e às normas linguísticas lusitanas,

demarcando, assim, as fronteiras do discurso modernista. O ethos de

revoltado, constituído pelo enunciador principalmente pelo recurso do operador

negativo, soa como uma estratégia de “alarde”, refletindo o estilo e a

movimentação social do grupo paulista.

Nunes (2003) estuda a configuração de identidades nacionais nos

discursos do Manifesto de Gilberto Freyre, lido em 1926, por ocasião do

Primeiro Congresso Brasileiro de Regionalismo em Recife, e do Manifesto

antropófago de Oswald de Andrade, publicado em 1928, no primeiro número da

Revista de Antropofagia. Tendo em vista o procedimento metodológico da

comparação, recomendado pela análise de discurso, o autor estabeleceu um

confronto entre os dois manifestos, acreditando que, ao relacioná-los, poderia

chegar às diferenças que lhe permitiriam “observar a fundação de identidades

brasileiras a partir de caminhos discursivos divergentes” (p. 43). A partir desse

confronto, Nunes constata que, enquanto a identidade nacional é pensada em

Freyre com base na tradição e nos valores regionais, em Oswald é pensada

com base na modernidade e nos valores cosmopolitas. Assim, quanto à

linguagem, Freyre evita as expressões linguísticas não nacionais, as

“estrangeirices”; para ele, “a fala do povo caracteriza o que há de original e

tradicional na língua” (p. 53). A língua nacional seria o resultado, numa espécie

de confraternização linguística e cultural, das variações regionais e sociais. Os

antagonismos entre casa-grande e senzala, sobrado e mocambo, erudito e

popular refletem-se na língua: “’Faça-me’ é o senhor falando; o pai; o patriarca;

‘me dê’, é o escravo, a mulher, o filho, a mucama”, afirma Freyre (1987, p.

335). Contudo, tais antagonismos convivem em equilíbrio, quer dizer, “sob a

união nacional, se aloja a divisão da língua” (p. 53). Oswald rejeita os

regionalismos, apegando-se mais aos valores progressistas e universalizados

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

25

que se afinam com o mundo urbano. Ao invés da paisagem natural e

tradicional, seus olhos enxergam a paisagem urbana modificada pela

tecnologia industrial. Das condições de produção da colonização, Oswald

acentua a identificação do brasileiro com o índio, cuja alteridade produziria uma

zona de sentido impermeável aos europeus. Nessa direção, “a língua do

brasileiro se constrói a partir da evocação de uma filiação histórica com o tupi e

a negação da univocidade linguística e da tradição gramatical” (p. 57).

Albuquerque e Cox (1997) buscam se aproximar da polêmica acerca da

língua brasileira iniciada no século XIX, sob a inspiração do significativo

acontecimento da Independência política, com base num arquivo de textos

produzidos, entre os anos de 1860 a 1891, por José de Alencar, Macedo

Soares e Salomé Queiroga, considerados separatistas. Nesta polêmica, os

separatistas viam como positiva a diferenciação patente entre o português

brasileiro e português lusitano, viam-na como parte de um processo de

mudança que culminaria como a autonomia da língua brasileira. Reagindo à

visão separatista, os legitimistas propunham-se a estancar a marcha dessa

mudança, uma vez que estavam comprometidos, puristas que eram, com

manutenção do legado português de forma intocada. Assim, nessa trama

interdiscursiva, a mudança linguística poderia significar progresso ou

retrocesso, florescência ou decadência, enriquecimento ou empobrecimento,

melhoramento ou destruição, formação ou deformação, se interpretada por um

enunciador separatista ou por um legitimista. A análise realizada pelas autoras

traz à tona “uma contínua tensão entre os separatistas (libertários radicais) e os

legitimistas (conservadores)” (p. 55), que se materializa nos enunciados na

forma de uma batalha com/por palavras e também no ethos do enunciador. O

caráter libertário dos enunciadores engendra um tom de exaltada rebeldia

frente a qualquer tipo de imposição e de entusiasmo e heroicidade ao participar

da luta pela emancipação da tutela portuguesa.

Nesta dissertação, os resultados de nossa pesquisa estão organizados

em quatro capítulos. Optamos por não apresentar um capítulo específico para

a discussão do referencial teórico. Apresentamos dois capítulos de análise, um

explorando a natureza polêmica dos enunciados de Mário de Andrade e outro o

ethos do enunciador, ambos estruturados pelo binômio teoria/prática. Os dois

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

26

capítulos principiam por uma discussão dos conceitos que são aplicados na

análise do corpus de enunciados.

No primeiro capítulo, realizamos uma contextualização do movimento

modernista no Brasil, desde seu surgimento na década de 1920. Em seguida,

relembramos as principais atuações do modernista Mário de Andrade, que

sempre se manteve fiel ao compromisso de ajudar a construir a identidade

cultural brasileira, nunca tirando a questão linguística do centro do debate.

Essa retomada da conjuntura em que viveu e circulou Mário de Andrade foi

fundamental para a evocação da ideologia do movimento e para a

compreensão de como o escritor se portava em relação a ela, ora se

aproximando dela sem restrições, ora se distanciando.

No segundo capítulo, explicitamos nossa opção pela pesquisa de

arquivo, especificamos os objetivos, a delimitação do campo e do espaço

discursivo em que se situam os discursos estudados e a maneira como

procedemos para constituir e organizar o corpus. Descrevemos o caminho

trilhado para a constituição do corpus, apresentando os critérios para a seleção

e para a triagem definitiva das SDs que integrariam os capítulos de análise.

Lembramos, pois, que esse processo de organização do corpus está

intimamente ligado com o processo de interpretação. Até o fim da análise, SDs

foram excluídas e incluídas no corpus.

No terceiro capítulo, revisitamos, primeiramente, os conceitos de

discurso, formação discursiva, interdiscurso e seus correspondentes –

interincompreensão, tradução e simulacro. Em seguida, analisamos um

conjunto de SDs atravessadas pela polêmica entre modernistas e

conservadores, bem como por uma polêmica interna ao próprio grupo

modernista. Depois, focalizamos as diferentes nomeações atribuídas à língua

pelo modernista ao longo de sua trajetória intelectual. Finalmente, exploramos

as semelhanças existentes entre a postura do escritor em relação à língua e o

posicionamento da sociolinguística que, na época do modernismo, sequer era

imaginada.

No quarto capítulo, revisitamos o conceito do ethos discursivo,

refazendo, com Maingueneau, o percurso trilhado pelo conceito desde que

pensado por Aristóteles no quadro da retórica clássica. Destacamos as

mudanças promovidas pelo linguista ao deslocar a noção da retórica para a

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

27

análise de discurso. Em seguida, analisamos um conjunto de SDs recortadas

de textos de Mário de Andrade, focalizando o ethos do enunciador, ao defender

a sistematização e o reconhecimento de uma fala brasileira culta que pudesse

ser assumida pela voz mesma dos escritores e não apenas pela voz das

personagens representantes do povo, como vinha acontecendo com os

regionalistas.

As páginas seguintes deste trabalho representam também uma tentativa

de pôr à prova a fecundidade de alguns conceitos da análise de discurso

francesa, tal como lidos por Dominique Maingueneau. Além disso,

preocupamo-nos em engrossar o movimento daqueles que, atualmente,

reconhecem a diversidade e a heterogeneidade como algo inerente à língua

portuguesa ou a qualquer outra língua viva, combatendo o preconceito

linguístico ainda reinante no século XXI, apesar dos já quase duzentos anos de

luta para afirmarmos a nossa identidade linguística plural e mestiça.

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

28

O Modernismo foi um toque de alarme. Todos acordaram e viram

perfeitamente a aurora no ar. A aurora continha em si todas as

promessas do dia, só que ainda não era o dia. Mas é uma

satisfação ver que o dia está cumprindo com grandeza e maior

fecundidade as promessas da aurora. Ficar nas eternas aurorices

da infância, não é saúde, é doença. E a literatura brasileira aí

está, bastante sã. Adulta já? Quase adulta... (ANDRADE,

[1944] 1972, p. 1989).

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

29

Capítulo 1

NOTAS SOBRE O MODERNISMO BRASILEIRO E A PERFORMANCE DO

PROTAGONISTA MÁRIO DE ANDRADE

Neste capítulo, revisitamos a conjuntura de irrupção do movimento

modernista no Brasil nas primeiras décadas do século XX. Na seção 1,

revisitamos o contexto de surgimento do movimento de renovação cultural que

culminou na formação do chamado grupo paulista, cuja atuação foi decisiva

para o advento do modernismo no país. Abordamos, igualmente, as influências

determinantes para a formação dessa ideologia estética no Brasil e sua

proposta de renovação das artes brasileiras. Nossa leitura realça o tema

“nacionalismo”, nuclear à produção de uma literatura que se desejava

emancipada dos modelos europeus e que abrigou, em seu âmago, um ruidoso

debate acerca do português falado no Brasil.

Na seção 2, relembramos alguns acontecimentos envolvendo Mário de

Andrade (1893-1945), um dos principais responsáveis pela instauração dos

ideais modernistas no Brasil. Interessa-nos abeirar sua atuação no campo das

artes (sobremaneira na literatura), na etnografia, nos estudos sobre o folclore,

no jornalismo, na crítica literária, no serviço público etc. Mário de Andrade, pela

sua fecunda produção no momento de efervescência do modernismo, pela sua

preocupação em perfilar a identidade brasileira na cultura universal e pela sua

coerência entre o que pregava e o que fazia, pode ser considerado, juntamente

com Oswald de Andrade, o protagonista do movimento.

Ressaltamos que essa dobra sobre o modernismo e sobre seu principal

ideólogo, Mário de Andrade, é uma etapa fundamental para a consecução do

objetivo de compreender a ideologia do movimento em relação ao projeto de

valorização da cultura nacional, especialmente no que se refere à constituição

de uma identidade linguística brasileira.

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

30

1. 1 O Movimento Modernista no Brasil

O movimento modernista floresceu em solo brasileiro na primeira

metade do século XX. Suas propostas de renovação estética, tendo por

bandeira a valorização da realidade e cultura nacional, recriadas, no entanto,

pela subjetividade do artista, marcaram a pintura, a escultura e as artes

plásticas em geral, a música, a arquitetura e a literatura.

Descontentes com as manifestações artísticas da época, consideradas

ultrapassadas e alienadas da cultura brasileira, um grupo de intelectuais via

como necessário instaurar um gesto de rompimento em relação ao

passadismo, para dar lugar à criação de uma arte que pusesse em destaque a

“alma nacional”, sem, contudo, perder de vista sua participação singular no

cenário internacional. Posta desde as primeiras manifestações do movimento,

essa exigência de não sucumbir à representação mimética das cores, sons,

formas, ideias e coisas do Brasil resulta num discurso cujo “filtro semântico [...]

organiza-se em torno dos semas nacionalismo e subjetividade” (MUSSALIM,

2003, p. 89). Ressaltamos que o ponto central da proposta modernista no

campo das Letras baseava-se na ruptura com os padrões (parnasianos e

simbolistas) que engessavam a criação literária.

Podemos dizer que o modernismo no Brasil se iniciou em 1912, quando

Oswald de Andrade retornou da Europa embriagado com as ideias dadas a

circular por meio do Manifesto Futurista de Filippo Tommaso Marinetti,

publicado em 20 de fevereiro de 1909, no jornal Le Fígaro, em Paris. O

Manifesto, em seus onze itens, declarava guerra ao academicismo literário,

exaltando a liberdade de expressão. Proclamava a ruptura com o passado e

defendia a identificação do homem com a máquina e a velocidade que

principiavam a timbrar o século XX. O item três, por exemplo, anunciava: “A

literatura exaltou até hoje a imobilidade pensativa, o êxtase, o sono. Nós

queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo de corrida, o

salto mortal, o bofetão e o soco”. Sob a influência do futurismo, Oswald de

Andrade, recém-chegado ao Brasil, escreveu o Último poema de um

tuberculoso pela cidade, de bonde, que se tornou alvo de chacotas pelas

inovações na composição dos versos sem métrica e sem rima.

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

31

Na conjuntura histórica em que o modernismo avultou como um

movimento de renovação estética, o Brasil se desenvolvia e progredia no plano

tecnológico, industrial e material, mas não no plano cultural, que permanecia

atado aos padrões formais do passado e herdados do longo período colonial.

Pela experiência vivenciada na Europa, Oswald vislumbrava no futurismo uma

via para renovar a arte nacional, ainda que a intelectualidade brasileira se

chocasse com o ideário defendido pelo movimento. Mesmo entre aqueles que

simpatizavam com a ideia de uma renovação estética, aguçaram-se as

contradições entre a tendência nacionalista, cara aos intelectuais brasileiros da

época, e a tendência internacionalista que novamente nos assediava e

confrontava com o que vinha da velha Europa. Mário de Andrade, por exemplo,

reagiu incisivamente à interpelação como Meu poeta futurista feita por Oswald

de Andrade por ocasião da leitura dos esboços de Pauliceia Desvairada, que

se tornou uma das obras fundadoras do modernismo no âmbito da literatura.

Apenas em 1917, o Brasil começaria a ver concretamente os efeitos da

propalada renovação estética por meio da exposição das obras da pintora Anita

Malfatti, que havia passado algum tempo na Europa e trazido para o Brasil o

que lá aprendera e aplicara em sua arte. Essa exposição causou espanto não

só entre os espectadores leigos, mas também entre muitos artistas e críticos de

artes, tornando-se o argumento principal de uma ruidosa polêmica deflagrada

por um artigo, assinado por Monteiro Lobato e publicado no jornal O Estado de

S. Paulo, contendo uma crítica ácida à obra de Anita Malfatti.

Nessa matéria, entre outras coisas, Lobato defende a tese de que

apenas a pintura acadêmica, originária de uma percepção sensorial normal,

que não permite ao artista transformar “um gato” em “um amontoado de cubos

transparentes”, resistirá ao tempo. Quem assim procede (quem transforma

gatos em cubos), vê “anormalmente a natureza” segundo “a sugestão estrábica

de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva”,

produz “frutos de fim de estação, bichados ao nascedouro” que, passado o

momento efêmero do escândalo, desaparecem “nas trevas do esquecimento”.

Lobato ainda compara a pintura da Anita Malfatti à arte anormal ou

teratológica nascida da paranóia e da mistificação, análoga aos “desenhos que

ornam as paredes internas dos manicômios”, sendo que “nos manicômios essa

arte é sincera, produto lógico dos cérebros transtornados pelas mais estranhas

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

32

psicoses; e fora deles, [...] mistificação pura”. No fim dessa contundente

matéria, Lobato explica sua boa intenção ao tecer crítica tão duras à pintura de

Anita Malfatti que, segundo ele, ainda “não é futurista”, mas já evidencia “uma

cubice” e “acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no

sentido das extravagâncias de Picasso & Cia”.

Enaltecendo o talento da pintora, Lobato justifica que amigo verdadeiro

não é aquele que elogia, bajula, lisonjeia, mas aquele que “traduz chãmente,

sem reservas, o que todos pensam dele por detrás’. É por se recusar a ver em

Anita só a «moça prendada que pinta», que não se compraz em dizer “meia-

dúzia desses adjetivos bombons que a crítica açucarada tem sempre à mão em

se tratando de moças”. Tendo por parâmetro o naturalismo, Lobato assim se

pronuncia sobre o futurismo, o cubismo, o impressionismo e a arte moderna:

Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma – mas caricatura que não visa, como a verdadeira, ressaltar uma ideia, mas sim desnortear, aparvalhar, atordoar a ingenuidade do espectador. [...] «Arte moderna»: eis o escudo, a suprema justificação de qualquer borracheira (LOBATO, 1917).

A crítica corrosiva de Lobato soou como uma provocação, e vários

escritores, músicos, pintores e intelectuais da época, simpatizantes do

movimento modernista, saíram em defesa de Anita Malfatti, dentre eles Oswald

de Andrade, Mário de Andrade, Menotti del Pichia, Di Cavalcanti, Guilherme de

Almeida, produzindo, às avessas, um vigoroso debate que muito colaborou

para desestabilizar a arte acadêmica. Além do episódio Malfatti-Lobato, o ano

de 1917 é lembrado por várias manifestações artísticas relacionadas ao

movimento modernista. Foram publicadas obras como: Há uma gota de sangue

em cada poema, de Mário de Andrade, Moisés, de Menotti del Pichia, A cinza

das horas, de Manuel Bandeira e outras que já prenunciavam a estética

antiacadêmica. Nesse contexto histórico, os jornais, noticiando tanto as

novidades apresentadas por aqueles que se diziam modernistas quanto as

críticas que lhes eram desferidas por aqueles que se alinhavam com a estética

acadêmica, transformaram-se em veículo de uma ruidosa polêmica na cidade

de São Paulo.

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

33

Desde esse momento, o grupo foi se organizando para tornar mais

sólida sua postura de oponente da estética acadêmica ainda em voga.

Imbuídos desse propósito, no ano de 1920, intelectuais que participavam do

grupo, movidos pela aproximação do centenário da independência em relação

a Portugal, com o sentimento de nacionalismo fortalecido, avançaram no

projeto de ruptura com os modelos literários herdados de Portugal, buscando

uma diferenciação não apenas de fundo, mas também de forma, o que

implicava na constituição de uma identidade linguística brasileira. Para esse

grupo, a autonomia brasileira só se tornaria efetiva quando a independência

política se refletisse em independência mental, cultural, artística e linguística.

Paralelamente às manifestações individuais, os modernistas ou

futuristas, como também eram chamados, foram ganhando visibilidade como

grupo. O ato inaugural do grupo como voz coletiva consciente foi o Manifesto

Trianon de Oswald de Andrade, que publicizava a visão artística da nova

corrente estética que estava se formando no país. A leitura desse manifesto

aconteceu durante um jantar promovido pelo grupo conservador em

homenagem a Menotti del Picchia que já era um simpatizante da nova

ideologia estética. O grupo modernista compareceu ao jantar e surpreendeu a

todos com a apresentação de Oswald de Andrade, manifestando-se contra

todos que se opunham à renovação literária e estética, ou seja, contra a velha

guarda que homenageava Menotti naquela ocasião. Conforme Mussalim (2003,

p. 94), “a participação dos Modernistas neste jantar assume um caráter de luta,

de chamamento, um toque de reunir, uma palavra de ordem”. Num dos trechos

do Manifesto, Oswald assim se refere ao grupo modernista ou dos “artistas

moços de São Paulo”:

Venha talvez chocar, senhores, esse tinir de armas heroicamente arengadas em pacífica consagração literária, mas nós, que arrogantemente subimos os espantosos caminhos da arte atual, por força havemos de trazer, como soldados em campanha, um pouco do nosso farnel de assaltos. Somos um perdido tropel na urbe acampada em território irregular e hostil, e, como ela, temos a surpresa dos acessos e a abismada contorção das alturas. Falo em nome de meia dúzia de artistas moços de S. Paulo e daí o meu cálido orgulho incontido (Manifesto Trianon, pronunciado por Oswald de Andrade em 09 de janeiro de 1921).

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

34

O ponto culminante da atuação do grupo dos “artistas moços de São

Paulo” foi a realização da Semana de Arte Moderna, promovida nos dias 13, 15

e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal da capital paulista. Para a

realização da Semana, o grupo contou com o apoio financeiro de Paulo Prado

(latifundiário e comerciante de café), José Freitas Valle (deputado e rico

empresário) e Washington Luís (então presidente do Estado de São Paulo).

Durante a programação da semana, o público e a imprensa respondiam às

manifestações artísticas com vaias e até atitudes violentas, necessitando,

muitas vezes, de intervenção da polícia. Contudo, essa reação era esperada e

desejada pelo grupo que queria escandalizar a elite conservadora paulistana e

marcar sua posição revolucionária. Como postula Mussalim (2003), os

componentes do grupo

Queriam escandalizar, tirar São Paulo da monotonia, do marasmo cultural em que se encontrava, como eles mesmos descreviam a capital. Não tinham um corpo coerente e bem estruturado para apresentar ao público, mas realizaram aquilo a que se propunham e que, na verdade, vinham realizando desde 1917: a ruptura (MUSSALIM, 2003, p. 97).

Com relação a essa revolução artística e cultural, Mário de Andrade, em

seu ensaio O Movimento Modernista [(1942) 2002, p. 252], explicita que “O

movimento Modernista foi o prenunciador, o preparador e, por muitas partes, o

criador de um estado de espírito nacional”. Para ele, A Semana de Arte

Moderna representou o brado coletivo principal, cujas ações atingiram também,

de forma violenta, os costumes sociais e políticos do Brasil. O modernista

afirma, ainda, que:

Foi no meio da mais tremenda assuada, dos maiores insultos, que a Semana de Arte Moderna abriu a segunda fase do movimento Modernista, o período realmente destruidor. Porque, na verdade, o período heroico fora esse anterior, iniciado com a exposição de pintura de Anita Malfatti e terminado na “festa” da Semana de Arte Moderna (ANDRADE, 2002, p. 260).

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

35

Passados vinte anos e arrefecido o ímpeto juvenil que levara o grupo a

realizar a Semana de Arte Moderna, Mário se espantava com a coragem:

“Como tive coragem de participar daquela batalha!”; “Como tive coragem de

dizer aqueles versos diante duma vaia tão barulhenta que eu não escutava no

palco o que Paulo Prado me gritava na primeira fila das poltronas?”

(ANDRADE, 2002, p.253-254). Mesmo admitindo ter confiança na estética

renovadora, considerava que “não teria forças nem físicas nem morais para

arrastar aquela tempestade de achincalhes” (ANDRADE, 2002, p. 254) em sã

consciência. Se aguentou o tranco, foi porque “estava delirando” (2002, p.254)

A ideia da Semana de Arte Moderna, salientava Mário, não partiu dele,

mas ele foi envolvido pelo entusiasmo do movimento que se alastrava e era

visto como responsável por uma espécie de escândalo público permanente.

Depois de realizarem leitura de versos no Rio de Janeiro, apareceu Graça

Aranha trazendo da Europa a sua Estética da vida. Graça foi a São Paulo para

conhecer e se aproximar do grupo renovador, aderindo a seu ideário. Nessa

ocasião, “Alguém lançou a ideia de se fazer uma Semana de Arte Moderna,

com exposição de artes plásticas, concertos, leituras de livros e conferências

explicativas. Foi o próprio Graça Aranha? Foi Di Cavalcanti?... (ANDRADE,

2002, p.257).

A partir desse evento revolucionário, os modernistas reiteradamente se

encontravam para discutir e consolidar as ideias inovadoras. Segundo o próprio

Mário de Andrade, principiou-se “o movimento dos salões” e, durante um

período aproximado de uns oito anos, o grupo viveu “na maior orgia intelectual

que a história artística do país registra” (2002, p.261). Havia a reunião das

terças, à noite, na Rua Lopes Chaves. Havia o salão da Avenida Higienópolis

com o almoço dominical em que, ao sabor da comida luso-brasileira, o grupo

mantinha conversa estritamente intelectual. Havia o salão da Rua Duque de

Caxias, que, na avaliação de Mário, era o maior e mais verdadeiro salão.

Havia, ainda, o salão da Alameda Barão de Piracicaba, congregado em torno

da pintora Tarsila do Amaral, onde os encontros – as festas – não aconteciam

em dias fixos, mas eram muito frequentes.

Após o estardalhaço da Semana de Arte Moderna, a burguesia

paulistana tomou consciência da força da onda revolucionária que se

propagava pela cidade e resolveu reagir e castigar os intelectuais envolvidos

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

36

no movimento, tirando-lhes os empregos. Desempregados, muitos deles iam

para o Ateliê da pintora Tarsila do Amaral “brincar de arte”. Mário reconhecia

que foi a partir da proteção dos salões paulistanos que “se alastrou pelo Brasil

o espírito destruidor do movimento modernista” (ANDRADE, 2002, p. 263).

A história do modernismo foi construída em várias fases. A primeira fase

foi marcada pela forte oposição ao academicismo vigente. Nessa fase,

chamada de imediatista ou heroica, compreendida entre os anos entre 1922 a

1930, o grupo concentrou-se na atualização estética, no experimentalismo

artístico e na crítica ao passadismo. O espírito modernista foi influenciado pelas

vanguardas europeias, principalmente pelos movimentos futurista, cubista,

expressionista, dadaísta e surrealista. Esse impulso externo instigou,

inicialmente, o grupo a questionar e revoltar-se contra as bases artísticas

hegemônicas no país.

A segunda fase ocorreu entre os anos de 1930 e 1945. Essa fase foi

marcada por uma revisão das concepções norteadoras do movimento,

sobretudo, aquelas relacionadas à modernização cultural do Brasil. Os líderes

intelectuais do movimento perceberam a dificuldade que o país teria para

acompanhar as vanguardas européias e, por isso, optaram por realizar um

recuo do experimentalismo estético em favor de um projeto ideológico de

cunho nacionalista, porém sem perder de vista o universalismo inalienável do

modernismo. Redefinido, o movimento passou a priorizar a identificação dos

elementos que fundariam a identidade nacional, culminado com o Manifesto da

Poesia Pau-Brasil (1924), redigido por Oswald de Andrade, que defendia

autenticidade da cultura brasileira frente à cultura estrangeira importada.

O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica. A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de nossa demonstração moderna. Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia. Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil (ANDRADE, [1924] 1976).

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

37

Como postula Lafetá (1974, p. 11), uma nova proposição estética

envolve sempre duas faces: a de “projeto estético, diretamente ligado às

modificações operadas na linguagem” e a de “projeto ideológico, diretamente

atado ao pensamento (visão-de-mundo) de sua época”. Essas duas faces, às

vezes, se apresentam harmonizadas, mas, às vezes, entram em conflito. Um

novo projeto estético invariavelmente envolve a crítica da velha linguagem, e

essa postura, por si só, já implica um novo projeto ideológico, pois, “o ataque

às maneiras de dizer se identifica ao ataque às maneiras de ver (ser, conhecer)

de uma época” (LAFETÁ, 1974, p. 11). Se é por meio da linguagem que os

homens expressam sua visão de mundo, há que se compreender que é por

meio dela que a ideologia se materializa. Assim, na visão do autor, tomar os

projetos estético e ideológico como independentes soa artificial, pois eles agem

conjuntamente, embora possa haver pontos de atrito e de tensão entre eles.

Com base nessas duas faces, Lafetá (1974) postula que o modernismo

brasileiro, como projeto estético, buscou a renovação dos meios de expressão,

a ruptura com a linguagem tradicional e, como projeto ideológico, enfatizou a

formação de uma identidade nacional. A experimentação estética com sua

marca revolucionária esteve mais evidente no início do movimento. Já, num

período posterior, os modernistas buscaram ampliar e fincar suas raízes em

propostas de valorização da realidade nacional. Por isso, para Lafetá (1974),

esse movimento mantém convergência estética e ideológica em sua atuação,

pois ao mesmo tempo em que rompia com a linguagem bacharelesca, artificial

e ideal da literatura passadista, alicerçava sua visão de arte na cultura popular

brasileira. Afirma o autor que

O modernismo destruiu as barreiras dessa linguagem “oficializada”, acrescentando-lhe a força ampliadora e libertadora do folclore e da literatura popular. Assim, as ‘componentes recalcadas’ de nossa personalidade popular vêm à tona, rompendo o bloqueio imposto pela ideologia oficial; curiosamente, é a experimentação de linguagem, com suas exigências de novo léxico, novos torneios sintáticos, imagens surpreendentes, temas diferentes, que permite - e obriga – essa ruptura (LAFETÁ, 1974, p. 13).

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

38

Ao mesmo tempo em que o modernismo se estabelecia como um novo

modo de fazer arte, ele consolidava uma nova estética cultural e rompia com a

ideologia que segregava o popular e distorcia a nossa realidade. Inicialmente,

inspirou-se nas vanguardas europeias, mas depois priorizou as particularidades

culturais brasileiras.

Portanto, ao propor essa ruptura com as normas estéticas do passado

em várias esferas artísticas, o modernismo postulava: a liberdade de expressão

e criação artística; incorporação da vida cotidiana nas temáticas literárias, com

destaque ao folclórico e ao popular; incorporação da pluralidade cultural e

linguística brasileira; nacionalismo crítico; inovações técnicas por meio da

adoção do verso livre, linguagem coloquial e eliminação de sinais de

pontuação, bem como experimentos ousados no léxico, na sintaxe e na

semântica.

Segundo Mário de Andrade (1942), três postulados caracterizavam o

movimento: “o direito permanente à pesquisa estética, a atualização da

inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora

nacional” (ANDRADE, [1942] 2002, p. 266). Porém, salienta o autor que “o

estandarte mais colorido dessa radicação à pátria foi a pesquisa da ‘língua

brasileira’” (p. 267).

Nessa época, a linguística moderna ainda não havia se estabelecido no

Brasil. A obra inaugural da linguística brasileira Princípios de linguística geral,

de Matoso Câmara é de 1941, mas a linguística como disciplina acadêmica só

passa a integrar os currículos dos curso de Letras na década de 1960. Por

essa razão, as discussões acerca da língua nacional eram empreendidas por

escritores, críticos, ensaístas e jornalistas que contavam principalmente com a

imprensa para veicular as posições defendidas por uns e outros. Conforme

Mário de Andrade, a situação linguística reinante na literatura brasileira, na sua

época, era a seguinte: havia aqueles que, segundo sua visão, eram cômicos,

pois misturavam “uma expressão já intensamente brasileira” com “lusitanismos

sintáticos ridículos” (1942, p. 268); havia outros que, desejando ser aceitos e

lidos em Portugal, mantinham-se fieis ao léxico e às normas lusitanas; havia,

ainda, os que movidos pela preguiça, resolviam se despreocupar do problema,

utilizando abusivamente anglicismos galicismos, mas repudiavam qualquer ‘me

parece’; havia os que, como narradores, utilizavam expressões fielmente

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

39

gramaticais, mas se permitiam pôr na boca de suas personagens as

variedades da língua falada no Brasil (o “erro” gramatical visivelmente não

pertencia ao escritor, mas ao personagem de sua obra); havia os que não

aderiam à legitimidade da língua brasileira para não se parecerem com ‘fulano’,

esquecendo-se de que o problema era coletivo e que os brasileirismos “si

adotados por muitos, muitos ficavam parecidos com o Brasil!” (1942, p. 269).

Além do individualismo que timbrava a produção literária, o interesse

econômico guiava a posição das revistas da época que, intimidadas por cartas

de “leitor gramatiquento” que ameaçavam não comprar a revista, opunham-se

à maneira de escrever dos modernistas e atreviam-se, inclusive, a corrigir os

artigos assinados por eles, quando aderiam, em seus textos, a brasileirismos.

No balanço que faz do modernismo, 20 anos depois de sua explosão, Mário

concluía que o país encontrava-se tão escravo da gramática lusa como

qualquer português. Na sua recusa de seguir repetindo o que seus

antecessores fizeram, Mário compara a fazer artístico, com relação à

necessidade de renovação constante, a outras práticas cotidianas:

O operário não compra a foice apenas, tem de afiá-la dia por dia. O médico não fica no diploma, o renova dia por dia no estudo. Será que a arte nos exime deste diarismo profissional? Saber escrever está muito bem; não é mérito, é dever primário. Mas o dever do artista não é esse: é escrever melhor. Toda a história do profissionalismo humano o prova. Ficar no apreendido não é ser natural: é ser acadêmico; não é despreocupação: é passadismo (ANDRADE, [1942], 2002, p. 270).

Como sugerem tais palavras, o artista era um trabalhador como outros

que, por dever do ofício, tinha de se desenvolver diariamente, superando o

academicismo e o passadismo. No caso do escritor brasileiro do início do

século XX, a renovação e o aprimoramento estético incluíam a estilização da

fala brasileira, tarefa dada, à época, como indispensável à urdidura de uma

identidade linguística nacional.

Na segunda fase do modernismo, a construção da brasilidade e a crítica

severa à imitação estrangeira foram temas incansavelmente discutidos pelos

escritores, incluindo Mário de Andrade, como poderemos observar na próxima

seção.

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

40

1.2 A trajetória artística e intelectual trilhada por Mário de Andrade

Mário Raul de Moraes Andrade, vulgo Mário de Andrade, foi uma estrela

de primeira grandeza na constelação modernista. Preocupado com a definição

de uma identidade cultural nacional, atuou em várias frentes. Estudou folclore,

música e literatura, destacando-se entre os intelectuais que formavam a

inteligência brasileira entre as décadas de 1920 e 1940. Foi escritor, crítico

literário, musicólogo, folclorista, ensaísta, etnólogo, professor de música, chefe

do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, professor de Filosofia e

História da Arte na Universidade do Distrito Federal (Rio de Janeiro). Construiu

uma carreira rica e mutifacetada, graças a seu interesse pelos vários campos

da cultura brasileira.

Nasceu em São Paulo, no dia 09 de outubro de 1893, filho de Maria

Luisa de Moraes Andrade e Carlos Augusto de Andrade. Teve dois irmãos:

Carlos, mais velho, e Renato, mais novo, que também foi pianista como Mário,

e morreu ainda jovem, aos 14 anos, em 1913, por causa de um golpe recebido

durante um jogo de futebol. Esse acontecimento abalou muito o desempenho

artístico do escritor, causando-lhe tremor nas mãos, o que o levou a abandonar

as apresentações de piano que fazia no Conservatório Dramático e Musical de

São Paulo, onde havia se formado. Acometido de ataque cardíaco, morreu no

dia 25 de fevereiro de 1945, aos 52 anos, na casa da Rua Lopes Chaves, onde

morava com sua mãe e com a tia e madrinha de batismo, Ana Francisca.

Durante seus primeiros anos estudantis, Mário não se destacou muito,

mas, por volta de 1911, ele começou a estudar música e piano no

Conservatório, momento em que a sua primeira tendência artística vem à tona.

O ano de 1917 foi bastante significativo para o escritor, com muitos

acontecimentos marcantes em sua vida, entre eles: a perda do pai, a conclusão

do curso de piano pelo Conservatório, (antes mesmo da formatura havia se

tornado professor de piano no Conservatório), início das atividades como crítico

de artes em alguns jornais e revistas e publicação de seu primeiro livro

intitulado Há uma gota de sangue em cada poema sob o pseudônimo de Mário

Sobral. A partir então, tornou-se um dedicado estudioso da história da música,

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

41

dava aulas particulares de piano e continuou escrevendo artigos de críticas de

arte e produzindo literatura.

O despertar de Mário de Andrade para a adesão à bandeira das

transformações estéticas ocorreu na exposição, realizada em São Paulo, pela

pintora Anita Malfatti, em 1917. Essa exposição seria reconhecida como o

marco inicial do movimento modernista no Brasil. Depois de estudar na

Alemanha e nos Estados Unidos, Anita, aos 28 anos, regressou de Nova York

e resolveu expor suas obras expressionistas. Selecionou cinquenta e três

obras, parte realizada nos Estados Unidos, em 1915/16 e, parte em São Paulo,

em 1916/17, para mostrar ao público paulistano o que havia aprendido de arte

moderna com os norte-americanos.

Denominada como “Exposição de pintura moderna Anita Malfatti”, o

evento despertou muita curiosidade no público, principalmente na

intelectualidade paulistana, ávida para apreciar a novidade artística trazida pela

pintora. As obras apresentadas se diferenciavam muito do que o público estava

acostumado a ver: as pinturas acadêmicas que buscavam mimetizar o real.

Como aquilo poderia não escandalizar o gosto acadêmico da elite

frequentadora e consumidora das “belas-artes”?

Com apenas 24 anos de idade, Mário de Andrade visitou a exposição

três vezes, assinando o livro de visitas como Mário Sobral, pseudônimo usado

em sua primeira obra de poemas. Ele teria ficado em estado de choque diante

das obras da pintora, as quais ressaltavam “planos sucessivos, retratos e

figuras deformadas, sucintas, cor interpretativa” (ANDRADE, 1989, p.15). A

estupefação de Mário diante da pintura antiacadêmica de Malfatti foi assim

relembrada pela própria artista num depoimento posteriormente incluído no

livro Cartas a Anita Malfatti, compilado por Marta Rossetti Batista:

Um sábado apareceu na exposição um rapaz macilento de luto fechado. Vinha com um companheiro, era Mário de Andrade; começou a rir e não podia parar. Ria alto, descontroladamente. Eu, que já andava com raiva fui tomar satisfações. Perguntei: ‘O que está engraçado aqui?’ e quanto mais eu me enfurecia, mais ele ria (Depoimento de Anita Malfatti, constante da obra Cartas a Anita Malfatti, ANDRADE, 1989, p. 16).

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

42

Depois do ocorrido, Mário, em depoimentos reconhecia a importância

que tivera aquela exposição, mas nunca fazia referência a seu riso

descontrolado diante das pinturas. Passados alguns dias, Mário voltou, mas “o

ataque de riso havia acabado. Deu-me um cartãozinho – “Sou o poeta Mário

Sobral, vim despedir-me” (1989, p.17). Elogiou seu quadro O homem amarelo

acrescentando estar impressionado com a obra, afirmando que aquele já lhe

pertencia e que um dia voltaria para buscá-lo.

Embriagado pela estética modernista, Mário de Andrade, contrário às

estruturas sociais vigentes, representantes de um espírito conservador e

conformista, enfatizava a necessidade de renovar os campos da arte e da

literatura, tornando-se, por isso, um ativo participante do grupo dos cinco,

composto por Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Menotti Del Picchia, Mário de

Oswald de Andrade e ele, que foi responsável pela bombástica Semana de

Arte Moderna, realizada no Teatro municipal de São Paulo em 1922. Além de

cenário para exposição de pinturas de artistas associados ao modernismo, a

Semana foi palco de leituras literárias, palestra sobre arte, música e literatura.

Foi nesse evento que Mário publicou sua obra revolucionária de poesia,

intitulada Pauliceia Desvairada.

Essa obra, tida como a obra inaugural da poesia modernista, lança, em

seu Prefácio Interessantíssimo, uma espécie de manifesto poético, expondo,

de forma provocativa, os postulados do modernismo literário. Usando versos

livres e, sem falar sobre a obra, o autor defende a ideia de que a literatura

brasileira precisa se emancipar dos modelos e do padrão gramatical

português, que constrangem a livre expressão poética do escritor no Brasil.

Para patentear essa ideia, grafou, propositalmente, algumas palavras e formas

gramaticais, de modo a registrar sotaques e falas brasileiras.

Essa obra foi inspirada na percepção da cidade de São Paulo e seu

provincianismo. O escritor rompia definitivamente com todas as estruturas do

passado por meio de interpretação aguçada de vários elementos, como:

provincianismo, aristocracia, burguesia, rio Tietê, Avenida Paulista. Pela forma

e pelo fundo da obra, Mário foi vaiado durante sua apresentação na Semana

de Arte Moderna. A vaia se repetiu, quando Mário, em pé nas escadarias do

Teatro Municipal, leu um pequeno esboço da obra A escrava que não é Isaura,

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

43

que viria a ser publicada em 1925, texto que também enfatizava a postura

crítica do poeta frente ao academicismo que presidia o fazer literário.

A ânsia desse grupo de intelectuais consistia na busca de uma

independência cultural. Com ele, instaurava-se, no Brasil dos anos 20, não

apenas uma rica reflexão sobre as manifestações artísticas da modernidade,

mas também uma prática revolucionária. Mário nunca deixou de exigir

coerência entre a teoria e a prática. A partir da revolução deflagrada pela

Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade continuou publicando suas ideias

em vários gêneros. Entre suas principais obras, além das já citadas, destacam-

se: Poemas - Losango Cáqui (1926), Primeiro Andar (1926), Clã de Jabuti

(1927), Remate dos males (1930), Poesias (1941), Lira Paulistana (1946), O

carro da miséria (1946), Poesias completas (1955); Contos – Primeiro andar

(1926), Belazarte (1934), Contos novos (1947); Crônicas – Os filhos da

Candinha (1943); Romance - Amar, verbo intransitivo (1927), Macunaíma – O

herói sem nenhum caráter (1928); Ensaios – A escrava que não é Isaura

(1925), O aleijadinho de Álvares de Azevedo (1935), O Movimento Modernista

(1942), O baile das quatro artes (1943), O empalhador de passarinhos (1944),

O banquete (1978), entre muitos outros títulos envolvendo assuntos

relacionados à literatura, à música popular brasileira e aos estudos folclóricos

realizados nas viagens que fazia pelo país.

A obra Macunaíma – O herói sem nenhum caráter (1928) representa

uma síntese dos estudos folclóricos realizados por Mário de Andrade, além ter

sido inspirada nos estudos etnográficos do alemão Koch Grunberg, que

recolheu lendas indígenas da Venezuela e do Amazonas. Essa obra é um

misto de rapsódia e romance, cuja personagem central – Macunaíma –

congrega qualidades e defeitos de um brasileiro comum, originado da

miscigenação entre índio, negro e branco.

Nela, o escritor retrata a multiplicidade de lendas e tradições do folclore

brasileiro, fundindo a cultura do país de Norte a Sul, registrada em suas

expedições etnológicas. A questão da brasilidade se transformou no tema

central das obras do escritor. Contudo, renegando o nacionalismo que se

confundia com o regionalismo, Mário sempre teve em mente a constituição de

uma brasilidade que amalgamasse toda a diversidade existente no país. Esse

amálgama de brasilidade é Macunaíma.

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

44

Alguns anos após a morte do escritor, foi publicada a coletânea de

crônicas intitulada Táxi e crônicas no Diário Nacional (1976). Essa obra foi

organizada por Telê Porto Ancona Lopez e reúne crônicas sobre temas

diversos que o poeta escreveu quando pertencia ao grupo de cronistas do

Diário Nacional. Tais textos revelam sua atuação como crítico de arte,

literatura, cultura, política etc. Com a característica de uma escrita rápida e

objetiva, as crônicas eram o espaço para Mário opinar sobre o aprimoramento

do leitor frente à diversidade dos problemas sociais, política, linguagem,

ortografia, folclore, escritores e obras e diversos temas relacionados ao

cotidiano paulista.

Seu ingresso no Diário Nacional aconteceu no ano de 1927. Nessa

época, comparecia à redação, diariamente, produzindo críticas sobre artes

plásticas, música e literatura. Em 1928, tornou-se cronista, deixando uma

vastíssima produção no Diário Nacional. Em 1932, por ocasião do fechamento

do jornal, Mário havia publicado 771 matérias entre crônicas, artigos, ensaios,

poemas e ficção. Entre essas matérias, muitas discutiam a questão da língua

falada no Brasil.

A constituição de uma identidade linguística brasileira fazia parte dos

postulados modernistas. E Mário de Andrade provavelmente foi o escritor que

mais insistiu na necessidade de cortar as amarras linguísticas que prendiam a

literatura brasileira à portuguesa. Para chegar a uma estilização culta do

brasileiro vulgar que pudesse ser usada na escrita literária, Mário empreendeu

muitas pesquisas sobre os falares de todas as regiões brasileiras e chegou a

anunciar e esboçar a obra Gramatiquinha da fala brasileira, mas nunca a

publicou efetivamente.

A partir de notas destinadas a essa obra, Edith Pimentel Pinto organizou

a obra A Gramatiquinha de Mário de Andrade (1990). Segundo a autora, o

projeto da Gramatiquinha foi trabalhado com mais intensidade entre os anos de

1927 e 1929, período que coincide com a elaboração da obra Macunaíma

(1928) e com a viagem à Amazônia (1927), ocasião em que se dedicou à

coleta de expressões regionais e populares. O projeto da elaboração da

Gramatiquinha da fala brasileira fora tanto anunciado como negado pelo

próprio Mário de Andrade, conforme podemos verificar no excerto a seguir:

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

45

Eu anunciara um livro futuro, a Gramatiquinha da Fala Brasileira. Este livro, do qual nunca escrevi nenhuma página, eu nunca jamais tive intenção de escrever. É certo que tomei muita nota, fiz muita ficha, a respeito da língua, e de processos que me pareciam mais nacionais de traduzir o pensamento em linguagem, mas é só. Eu anunciava o livro, apenas pra indicar a todos que o que eu estava tentando não era assim tentando assim ao atá das recordações, mas uma coisa séria, sistemática, e bem pensada (ANDRADE In: PINTO, 1990, p. 163).

Nos manuscritos destinados à pretensa obra, Mário de Andrade propõe-

se a contribuir para a sistematização da fala brasileira. A Gramatiquinha, como

o próprio nome sugere, não teria a pretensão de impor normas como as

gramáticas normativas faziam, mas sim reunir as constâncias observadas na

fala brasileira, trazendo à tona o elemento culto que pudesse ser empregado

na expressão literária. Ele conclamava outros artistas da época a também

mergulhar nesse ideal: “Careço que os outros me ajudem pra que eu realize a

minha intenção: ajudar a formação literária, isto é, culta da língua brasileira

(ANDRADE, 1925 apud PINTO, 1990, p. 137). A finalidade de seus estudos

sobre a fala brasileira, como bem aponta PINTO (1990, p. 53), não era

“catalogar particularidades, mas configurar o universal, para que fosse possível

‘escrever brasileiro’. E isto, em termos de léxico, sintaxe e ritmo”. Porém, todos

os esforços relativos a esse projeto ficaram nos rascunhos com os esboços de

suas ideias.

Em 1935, Mário ingressou no serviço público, assumindo o cargo de

Diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, que acabava

de ser criado pelo prefeito Fábio Prado. Buscou dar forma e destino ao novo

Departamento, que possuía como objetivo declarado, em sua ata de fundação,

“conquistar e divulgar para todo país a cultura brasileira”. Segundo Oneyda

Alvarenga, ao assumir essa função, Mário abandonou muitas de suas

atividades:

Durante três anos aniquilou sua vida e passou a viver a vida do Departamento de Cultura. Largou estudos pessoais, romances, poesia, crítica, alunos, no desejo de fazer quanto pudesse para dar ao seu povo o direito de uma existência elevada e dignificada pela atividade intelectual e o contato com as artes (ALVARENGA, 1974, p.44).

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

46

Apesar de desapontado com a interrupção de sua vida como escritor,

Mário se sentia útil e empolgado com a incumbência que lhe fora confiada

como diretor do recém criado Departamento de Cultura e Recreação de São

Paulo (instituído em 30 de maio de 1935, pelo decreto 861), tendo a finalidade

de: estimular e desenvolver todas as iniciativas destinadas a favorecer o

movimento educacional, artístico e intelectual; promover e organizar

espetáculos de arte e desenvolver a arte dramática, da música, do canto, do

teatro e do cinema; disponibilizar uma rádio-difusora, palestras e cursos

populares de organização literária e científica, conferências universitárias e

sessões literárias e artísticas; criar e organizar bibliotecas públicas para fins de

difusão da cultura em todas as camadas da população; organizar, instalar e

dirigir parques infantis, campos de atletismo, piscinas e o estádio da cidade de

São Paulo; fiscalizar todas as instituições recreativas e os divertimentos

públicos estabelecidos pelo município; recolher, colecionar, restaurar e publicar

documentos antigos, materiais e dados históricos e sociais, que facilitassem as

pesquisas e estudos sobre a história da cidade de São Paulo.

Entre as competências desse Departamento estava, ainda, a

responsabilidade de levar às grandes cidades: concertos, conferências, teatros,

cursos e diversas outras modalidades de extensão artística e educacional,

ações representativas de um trabalho de elevação cultural da sociedade. Entre

suas atividades básicas, destaca-se o desenvolvimento de sistemas

pedagógicos e culturais, direcionados, principalmente, ao atendimento de

jovens e crianças.

Cinco divisões e suas respectivas seções compunham a estrutura

organizacional do Departamento: 1) Divisão de Expansão Cultural – Seção de

Teatro, cinema e salas de Concerto, Seção Rádio-Escola/Sub-Seção Discoteca

Pública; 2) Divisão de bibliotecas – Seção biblioteca pública municipal, Seção

biblioteca infantil, Seção bibliotecas circulantes e bibliotecas populares; 3)

Divisão de educação e recreio – Seção de parques infantis, Seção de campos

de atletismo, estádio e piscinas, Seção de divertimentos públicos; 4) Divisão de

documentação histórica e social – Seção de documentação histórica e social,

Seção de documentação histórica, Seção de documentação social e 5) Divisão

de turismo.

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

47

À frente desse extenso Departamento, Mário de Andrade aceitou o

desafio com o objetivo de instituí-lo na vida da sociedade paulistana. Além da

direção geral do Departamento, ele ocupava a chefia da Divisão de Expansão

Cultural. Durante a atuação nesse cargo, Mário teve a oportunidade de ampliar

ambiciosamente seu trabalho sobre música e folclore, organizando diversos

encontros culturais, conferências e exposições, realizações que resultaram em

um vasto acervo de material sobre tais temáticas originário das mais diversas

partes do país, estimulando-o a fundar a Sociedade de Etnografia e Folclore

(1938). Por meio de estudos etnográficos, o escritor procurou “os elementos

que expressariam a cultura brasileira como conteúdo da unidade nacional”

(SILVEIRA, 1999, p. 47). Silveira aponta que o questionamento do autor se deu

a partir de duas formulações: 1) a relação entre a parte Brasil com o exterior,

principalmente com a Europa e 2) a relação entre as partes internas do país ,

ou seja, a vinculação entre o regional e o nacional, pois, para o autor, só seria

assegurada a inserção do Brasil na Modernidade se houvesse uma produção

cultural que levasse em consideração “os valores da terra” como um todo e não

fragmentados por região.

Foi com base nessa empreitada que ele passou a se interessar pelas

pesquisas etnográficas como o caminho para perfilar a identidade do Brasil.

Nessa época abdicou de sua condição de poeta modernista em prol das

viagens de estudo. Seu entusiasmo pela etnografia pode ser observado no

excerto seguinte:

A Etnografia brasileira vai mal. Faz-se necessário que ela tome imediatamente uma orientação prática baseada em normas severamente científicas. Nós não precisamos de teóricos, os teóricos virão a seu tempo. Nós precisamos de moços pesquisadores que vão à casa recolher com seriedade e de maneira completa o que esse povo guarda e rapidamente esquece, desnorteado pelo progresso invasor (ANDRADE, 1936, p. 5).

A fundação da Sociedade de Etnografia e Folclore foi precedida por um

curso de etnografia, promovido pelo Departamento de Cultura e ministrado, ao

longo do ano de 1936, pela professora Dina Lévi-Strauss. Foi curso baseado

em atividades práticas, com o objetivo imediato de formar folcloristas para

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

48

trabalhos de campo. Resultaram do curso diversos trabalhos de alunos, que

foram veiculados pela Revista do Arquivo Municipal, elemento também

articulado por Mário com a finalidade de divulgar e obter maior entrosamento

das atividades promovidas. Desse curso de Extensão, resultou, ainda, a

edição, pelo Departamento de Cultura, do volume I do Manual de Instruções

práticas para pesquisas de Antropologia Física e Cultural.

Concomitante à realização do curso, foi aberta na Revista do Arquivo

Municipal a rubrica Arquivo Etnográfico, seção destinada ao maior

conhecimento do povo brasileiro. Foram anunciadas ainda a elaboração e a

distribuição de um questionário geral de pesquisas etnográficas a serem

realizadas no Brasil. Como consequência desse questionário, foram produzidos

diversos números do Boletim da Sociedade de Etnografia e Folclore.

Dentre os trabalhos realizados pela Sociedade de Etnografia e Folclore,

destacam-se as cartas folclóricas resultantes de pesquisa, em todo o Estado de

São Paulo, sobre tabus alimentares, danças populares e medicina popular. Por

meio de carta aberta, datada de 05 de abril de 1937 e publicada no jornal O

Estado de S. Paulo, Mário de Andrade convocou a população paulista a

colaborar como informante, respondendo ao questionário para levantamento

dos dados necessários à construção dos mapas folclóricos que representariam

o Brasil no Congresso Internacional de Folclore, realizado em Paris em 1937.

Esse evento revestiu-se de um significado ímpar, uma vez que permitiu ao

Brasil mostrar que ele existia e tinha uma cara própria perante a comunidade

Internacional.

Na contramão de seus planos e projetos, em 1938, Mário de Andrade foi

obrigado a interromper sua atuação como diretor do Departamento de Cultura

em virtude das mudanças ocorridas no governo de São Paulo, após o golpe de

1937 e a instauração do Estado Novo, por Getúlio Vargas, cuja posição política

não convergia com as ideias do escritor. As novas forças políticas promoveram

acusações contra Mário de Andrade, levando-o a transferir-se,

temporariamente, para o Rio de Janeiro. Com a saída de Mário do

Departamento de Cultura, apesar dos esforços de seus sócios, a Sociedade de

Etnografia e Folclore acabou por extinguir-se em 1939.

No Rio de Janeiro, Mário dirigiu o Congresso da Língua Nacional

Cantada, foi diretor do Instituto de Arte na antiga Universidade do Distrito

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

49

Federal e, também, atuou junto ao serviço do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional e ao Instituto Nacional do Livro. Foi também convidado pelo Ministro

da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, a coordenar dois grandes projetos

bibliográficos: a elaboração de uma Enciclopédia Brasileira e de um Dicionário

da Língua Nacional. Mário chegou a apresentar um anteprojeto da Enciclopédia

ao Instituto Nacional do Livro, que era dirigido por Augusto Meyer. Para a

elaboração desse projeto, Mário tomou como parâmetro várias obras

estrangeiras. Meyer acreditava que Mário era a pessoa indicada para essa

tarefa, pelos seus conhecimentos de lexicografia, por estar trabalhando num

Dicionário Musical Brasileiro e pelo projeto da Gramatiquinha da fala brasileira.

Além disso, todos seus amigos propagavam a existência de uma vasta

biblioteca colecionada e indexada por ele, que recolhia assuntos para fazer um

fichário analítico. Este se constituía na

Reunião de milhares de fichas ordenadas alfabeticamente, divididas por assuntos em dez grandes temas, acolhendo livros, revistas, artigos de jornais, manuscritos e documentação vária, papéis recortados e dobrados dentro de envelopes, bem como verbetes redigidos pelo compilador (TONI, 1993, p. XIX).

A ideia de publicar uma Enciclopédia brasileira era acalentada pelo

Ministério há algum tempo e Mário parecia a pessoa certa para executá-la.

Considerando a realidade da época, de país com uma pequena elite e uma

extensa massa camponesa analfabeta e uma população urbana culturalmente

diversificada, a Enciclopédia Brasileira teria de ser polivalente, para abranger

todas as camadas de leitores possíveis.

Considerada a real escassez de material de leitura disponível à

população do país, a Enciclopédia apresentava-se como um material fecundo,

pois seria uma espécie de biblioteca, concentrando em seu interior informações

sobre os mais variados assuntos. Com o propósito de atender a todas as

classes sociais, demonstrações inacessíveis ao leitor de cultura mediana

deveriam ser evitadas. As definições dos verbetes deveriam ser feitas por

pessoas ou comissões esclarecidas no assunto, mas sempre de modo

inteligível. Além dessas preocupações, o projeto tinha em mente que a

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

50

Enciclopédia Brasileira deveria chegar ao leitor por um preço bastante

acessível para que ela pudesse estar nos lares de todos os operários do país.

Conforme as ideias de Mário, expostas no anteprojeto, não seria

possível fazer uma Enciclopédia Brasileira se a obra completa não somasse de

10 a 12 volumes, contendo de 1000 a 1200 páginas cada um. Em relação ao

tamanho descomunal da tarefa a ser empreendida na execução dos projetos

da Enciclopédia Brasileira e do Dicionário da Língua Nacional, Mário afirmava

que seria um “um comedimento de enorme utilidade e patriotismo verdadeiro”,

mas “também uma corajosa audácia” (ANDRADE, 1993, p. 63).

Reconhecendo a enormidade do que estava por vir, o escritor assim imaginava

a equipe de trabalhadores que poria a mão na massa: “Há que nos cercarmos

de funcionários e colaboradores muito escolhidos – gente enérgica, fiel aos

seus compromissos e capaz de dedicação apaixonada. Não será possível pedir

a colaboração gratuita de ninguém, pelo que isto acarreta de delicadeza e

irresponsabilidades” (ANDRADE, 1993, p. 63). Apesar de todo o entusiasmo

em torno de tais projetos, eles nunca saíram das gavetas do Ministério da

Educação e Saúde.

1. 3 Mario de Andrade: um missivista compulsivo

Além das muitas atividades que exercia e da extensa bibliografia que

nos legou, Mário de Andrade era um compulsivo escrevinhador de cartas. Ele

se correspondia ativamente com amigos e intelectuais de sua época. Nas

cartas, era muito afetuoso, demonstrando carinho e amizade pelos seus

destinatários e assumindo, muito frequentemente, o papel de conselheiro sobre

os mais diversos assuntos, inclusive os de cunho pessoal e familiar. Nelas,

costumava contar sobre as obras que estava desenvolvendo e gostava de

expor longamente suas ideias sobre linguagem, literatura, cultura e arte

brasileira. Cultivava tanto a prática de escrever cartas que Carlos Drummond

chegou a afirmar que: “jamais convivi com Mário de Andrade a não ser por

meio das cartas que nos escrevíamos” (ANDRADE, 1982, p. viii).

Mário dizia sentir as pessoas mais perto quando lhes escrevia do que

quando estava na presença delas. Afirmava que quando estava escrevendo a

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

51

um amigo era como se ele estivesse em seu quarto lendo seu texto por cima

de seus ombros, aconselhando-o, contradizendo ou confirmando, por amizade

ou por dedicação, suas argumentações. Dizia, ainda, que solidão ele sentia

mesmo quando estava rodeado de pessoas:

Na verdade eu nunca me sinto deserto e provando o gosto sáfaro da solidão que quando estou numa sala cheia de pessoas, mesmo sendo todas pessoas amigas. É indiscutível: eu gosto muito mais dos meus amigos quando eles estão longe de mim (ANDRADE, 1983a, p. 77).

Conforme Oneyda Alvarenga (1974), Mário tinha o hábito de escrever

cartas até mesmo para expor suas últimas vontades. Isso ocorria toda vez que

se encontrava próximo de realizar alguma viagem ou passava por alguma

doença preocupante. Em Mário de Andrade: Um pouco, ela publicou uma cópia

completa da carta-testamento deixada pelo escritor, datada de 22 de fevereiro

de 1944, escrita antes de uma operação de amígdalas para seu irmão Carlos.

Nessa carta, ele demonstrava preocupação com a publicação de suas obras,

inclusive as que não estavam acabadas. Até mesmo sobre o destino de suas

cartas, ele deixou instruções explícitas:

Resta falar do que ajuntei e ganhei por mim. Minhas cartas. Toda minha correspondência, sem exceção, eu deixo para a Academia Paulista de Letras. Deve ser fechada e lacrada pela família e entregue para só poder ser aberta e examinada 50 (cinquenta) anos depois da minha morte (ANDRADE apud ALVARENGA, 1974, p. 32).

Até para os amigos com quem se correspondia, Mário expressava seu

desejo em relação às cartas que lhes enviava. A Manuel Bandeira pedia que

ele não publicasse as cartas nem depois de sua morte, pois não queria ser

imortalizado por um epistolário como o de Wagner-Liszt. Agradava-lhe a ideia

de pensar na morte como algo que “acaba tudo”:

As cartas que mando pra você são suas. Se eu morrer amanhã não quero que você as publique. Nem depois da morte de nós dois, quero um volume como o epistolário de Wagner-Liszt. Essas coisas podem ser importantes, não duvido, quando se trata dum Wagner ou dum Liszt que fizeram arte também pra se eternizarem. Eu amo a morte que acaba tudo. O que não acaba é a alma e essa que vá viver contemplando Deus. (ANDRADE, 1958, p. 68).

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

52

Em carta enviada a Carlos Drummond de Andrade, também falou de seu

desejo de não ver suas cartas publicadas, confessando, inclusive, a estratégia

que estava empregando (“encher as cartas de palavrões”) para impedir que

elas fossem publicadas:

Estou me lembrando que um tempo, até tomei ingenuamente o partido de encher minhas cartas de palavrões porque principiaram me falando na importância das minhas cartas e estupidamente me enlambuzei de "filhos-da-puta" e de "merdas" pra que minhas cartas não pudessem nunca ser publicadas! Como se isso bastasse. (ANDRADE, 1982, p. 215).

O desejo de Mário em relação às suas cartas não foi de todo atendido.

Manuel Bandeira, por exemplo, em 1958, publicou as cartas recebidas do

escritor, justificando não cumprir a vontade do amigo pelo “valor intrínseco” e

pelo “interesse social” dessa correspondência: “Mário foi o brasileiro que mais

se esforçou na tarefa de ‘patrializar’ a nossa terra. Tal esforço está sempre

presente nas cartas que dele recebi” (BANDEIRA apud SANTOS, 1994, p. 90).

Carlos Drummond de Andrade, no prefácio à obra A lição do amigo,

Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade (1982), também

esclarece que a publicação dessas cartas envolve dois problemas, um de

“natureza ética e outro meramente técnico” (ANDRADE, 1982, p. ix). O

principal deles diz respeito ao descumprimento da vontade do escritor, que

repugnava a ideia de divulgação de que suas cartas, pelas confidências nelas

contidas ou pelas banalidades tratadas. Porém, Carlos Drummond, como

Manuel Bandeira, afirmava que, se publicava as cartas que Mário lhe

endereçara, ele o fazia movido pela consciência da importância que essas

cartas tinham para aqueles estudavam não só a obra de Mário de Andrade,

mas também a história literária do Brasil. Pela importância das cartas como

fonte de pesquisa, ele ousava desobedecer a proibição de publicá-las:

É hoje ponto tranquilo que o pai de Macunaíma não deveria mesmo ser obedecido nessa proibição rigorosa. A obediência implicaria sonegação de documentos de inegável significação para a história literária do Brasil. Não só os praticantes da literatura perderiam com

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

53

a falta da divulgação das cartas que esclarecem ou suscitam questões relevantes de crítica, estética literária e psicologia de composição. Os interessados em assuntos relativos à concretização da fisionomia social do Brasil também se veriam lesados pela ignorância de valiosas reflexões abrangentes de diversos aspectos da antropologia cultura (ANDRADE, 1982, p. ix).

Desde a atitude corajosa de Manuel Bandeira, em 1958, vários outros

amigos de Mário, também, resolveram publicar as cartas recebidas do escritor.

Dentre eles estão: Alceu, Meyer e outros (1968), Paulo Duarte (1971),

Alphonsus de Guimarães Filho (1974), Rubens Borba de Moraes (1979), Murilo

Miranda (1981), Fernando Sabino (1981), Carlos Drummond de Andrade

(1982), Oneyda Alvarenga (1983), Álvaro Lins (1983), Anita Malfatti (1989),

Guilherme Figueiredo (1989), Henriqueta Lisboa (1990), Câmara Cascudo

(1991) etc.

Conforme Santos (1994), a correspondência passiva de Mário encontra-

se hoje zelosamente guardada pelo arquivo Mário de Andrade, existente no

Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo. O autor

nos esclarece que “Mário de Andrade (1893-1945) foi o nosso maior missivista”

(1994, p. 81). Com as cartas deixadas por ele, ficou retratada toda a história da

primeira metade do século, período marcado por muitas transformações

estéticas. Além disso, as cartas pessoais, pela informalidade do gênero,

encorajavam as transgressões das normas pelos intelectuais do modernismo

brasileiro, sedentos de rupturas paradigmáticas de toda ordem. Para Santos

(1994, p. 18), a carta convida à transgressão e essa tese não poderia ser

melhor representada do que pela correspondência de Mário de Andrade, “o

prolífico missivista que dialogava permanentemente por carta com os nossos

mais eminentes intelectuais, seus amigos”.

Indiscutivelmente Mário de Andrade é a própria transgressão.

Inconformista, liderou com coragem e dignidade a renovação estética nas

artes, na literatura, na cultura, expressando e divulgando suas ideias até a

exaustão e principalmente colocando em prática, nas suas obras literárias e

nas cartas aos amigos escritores, tudo o que defendia nos seus textos

ensaísticos.

Muitos dos recortes sobre a fisionomia linguística brasileira que serão

analisados nos capítulos 3 e 4 foram extraídos de cartas endereçadas a

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

54

Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Augusto

Meyer, Souza da Silveira e Alceu de Amoroso Lima. A problemática da

língua/fala brasileira era uma tópica frequente em toda sua obra, inclusive nas

cartas que trocava com as pessoas identificadas com o campo das Letras –

escritores, filólogos, gramáticos, folcloristas etc.

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

55

A análise de discurso não procura um sentido verdadeiro através de

uma “chave” de interpretação. Não há esta chave, há método, há

construção de um dispositivo teórico. Não há uma verdade oculta

atrás do texto. Há gestos de interpretação que o constituem e que o

analista, com seu dispositivo, deve ser capaz de compreender

(ORLANDI, 2007, P.26).

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

56

Capítulo 2

PERCURSO METODOLÓGICO

Deflagrada pelos românticos, a polêmica acerca da identidade linguística

brasileira nunca mais desapareceu do campo discursivo das Letras.

Enfraquecida entre os parnasianos, a polêmica ressurgiu com toda força entre

os modernistas. Contemporaneamente, assistimos a seu retorno por ocasião

da apresentação, pelo deputado Aldo Rebelo, do projeto de lei 1676/1999 que

pretendia coibir o uso desenfreado de estrangeirismos como medida de

“promoção, proteção e defesa da língua portuguesa” e também por ocasião da

publicação do livro didático para a EJA Por uma vida melhor, no primeiro

semestre de 2011, acusado de propagar que o errado está certo.

Focalizando os sentidos que envolvem o chamado português brasileiro,

a presente pesquisa busca subsídios teórico-metodológicos na análise de

discurso francesa, tendo em vista ser ela uma teoria semântica atenta ao

dinamismo da significância que domina todos os elementos da discursividade.

Conforme Orlandi (2007, p. 39), “todo discurso é visto como um estado de um

processo discursivo mais amplo, contínuo.” Por isso não há “começo absoluto

nem ponto final para o discurso”, pois este sempre se relaciona com outros

discursos. Assim, os textos nada mais são do que exemplares de um processo

discursivo que, ocasionalmente, funcionam como fonte de onde extrairemos os

enunciados que formarão as famílias parafrásticas a serem remetidas aos

discursos, às formações discursivas e, por último, às formações ideológicas.

Em análise de discurso, há duas vias para a constituição do corpus: a

experimental e a arquivista. Pela via experimental, os enunciados são

produzidos por meio de entrevistas ou questionários dirigidos a um interlocutor

em uma dada situação. Já pela via arquivista, parte-se de um conjunto de

textos que se consubstanciam em um “campo de documentos pertinentes e

disponíveis sobre uma questão” (PECHEUX, 2005, p. 251). Na formulação de

Foucault (2005, p. 18), a noção de arquivo é definida como “o conjunto de

discursos efetivamente pronunciados numa época dada e que continuam a

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

57

existir através da história”. Foucault afirma ainda que “o arquivo é, de início, a

lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados

como acontecimentos singulares” (1986, p.149). Conforme Courtine (2009, p.

77), enquanto o trabalho com corpus de arquivo é uma prática comum entre

historiadores, o trabalho com corpus experimental é praticada principalmente

por psicólogos ou psicossociólogos que coletam seus dados a partir de

pesquisa de campo.

De acordo com Sargentini (2006, p. 35) “operar com a noção de arquivo

é, portanto, salientar que a análise desenvolve-se pautada em um conjunto de

enunciados efetivamente produzidos, respondendo a um sistema de

enunciabilidade”. Além disso, a autora assevera que

[...] o conceito de arquivo comporta também uma outra face, uma vez que, diferentemente de uma concepção genérica, que se refere à conservação e à manutenção de documentos, a concepção de arquivo refere-se também a um nível particular que faz, entre a tradição e o esquecimento (SARGENTINI, 2006, p. 35).

Diante de enunciados que estão inseridos na história, ou seja,

enunciados específicos que circularam num dado momento, a análise de

discurso tem a função de realizar a descrição dos jogos de relações

estabelecidas no interior de um arquivo. O analista deverá observar as

condições de aparecimento de determinado enunciado, suas condições de

existência e sua correlação com outros enunciados, partindo do pressuposto de

que todo discurso é heterogêneo e se relaciona sempre com um discurso outro,

o interdiscurso. Dessa forma, o arquivo não deve ser entendido como um

simples documento no qual se encontram referências, mas que “permite uma

leitura que traz à tona dispositivos e configurações significantes”

(SARGENTINI, 2006, p. 41).

Nosso estudo define-se, pois, como uma pesquisa de arquivo, uma vez

que, para a constituição do corpus, recorremos a textos já produzidos. Como

se constitui um corpus e como se procede em uma pesquisa como a aqui

desenhada? Em primeiro lugar, precisamos considerar o campo discursivo,

neste caso, o campo das Letras. Como lembra Maingueneau (1997),

dificilmente um analista estuda a totalidade de um campo discursivo, tendo em

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

58

vista a complexidade das relações entre os discursos que o constituem.

Geralmente, o analista recorta do campo um espaço discursivo “constituído, no

mínimo, por dois posicionamentos discursivos que mantenham relações

particularmente fortes” (p.16). É preciso lembrar que um campo nunca é

estático, mas dinâmico, uma arena onde se travam lutas em que as posições

discursivas em relação participam de um equilíbrio instável, definindo diferentes

configurações.

O campo das Letras é um dos mais prolíferos quanto à produção de

discursos. Talvez só perca em fecundidade para aqueles da religião e da

filosofia. Dada a abundância e a complexidade das trocas discursivas que nele

têm lugar, o analista é levado a recortar espaços constituídos por subconjuntos

de discursos mediante conjeturas historicamente motivadas acerca das

relações que travam não apenas no seu próprio interior, mas também com

discursos de outros campos. À guisa de delimitação, recortamos do campo das

Letras o “espaço discursivo” formado pela relação entre as formações

discursivas modernista e conservadora, no que diz respeito aos embates de

sentidos na interpretação da língua falada/escrita no Brasil.

Lembramos que nossa entrada para investigação será sempre pelo

discurso modernista tal como ele se efetiva na obra de Mário de Andrade.

Porém, partindo do princípio de que todo discurso se constitui por rupturas e

relações com outros discursos, vamos observar de que modo o modernismo

dialoga com o conservadorismo que o antecedeu e/ou com que tem de partilhar

o espaço. Afinal, o discurso modernista, como todo discurso, é

constitutivamente heterogêneo, ou seja, ele circunscreve uma identidade

semântica na medida em que rejeita os sentidos que o Outro assume como

verdadeiros.

Antes de descrevermos o percurso trilhado para a constituição do corpus

desta pesquisa, consideramos relevante esclarecer que a seleção das

sequências discursivas (SD) foi orientada pelo seguinte objetivo geral:

perscrutar o posicionamento e o ethos discursivo de Mário de Andrade, um

escritor modernista, nos debates acerca da constituição de uma identidade

linguística brasileira. Como objetivos específicos, propusemo-nos a

esquadrinhar o posicionamento discursivo de Mário de Andrade no debate

travado por modernistas e conservadores, nas primeiras décadas do século

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

59

XX, acerca da constituição de uma identidade brasileira, focalizando,

especialmente, os sentidos por ele atribuídos ao acontecimento linguístico que,

desde o princípio da colonização, vinha engendrando uma língua ou uma

norma outra que procurava rachar o reino indiviso da lusofonia; investigar o

ethos do enunciador ao defender a tese da nacionalização da língua ou da fala

brasileira; apreender, no nível da superfície linguística, as marcas materiais da

polêmica entre o discurso modernista e conservador referente à língua

nacional; apreender, no nível da superfície linguística, as marcas materiais da

polêmica aberta por Mário de Andrade no interior do próprio modernismo;

verticalizar a reflexão acerca do português como uma língua heterogênea, no

sentido de desnaturalizar e combater o preconceito linguístico.

Delimitado o espaço discursivo e definidos os objetivos, realizamos uma

meticulosa inspeção da obra de Mário de Andrade, buscando recortar as

sequências discursivas (SD) com que formaríamos o corpus a ser analisado

nos próximos capítulos. Em nosso estudo, concebemos a sequência discursiva

como recortes de dimensão superior ou inferior à frase que se apresentam

como formas privilegiadas de materialização de um discurso ou de relações

interdiscursivas. Nós nos aventuramos pelo arquivo de textos literários e não-

literários de autoria de Mário de Andrade, perseguindo enunciados que

significassem a diferenciação do português em curso no Brasil com vistas a

adotar as Letras do país de uma identidade linguística brasileira, emancipada

dos padrões lusitanos.

A constituição do corpus é uma operação, em grande parte, teórica,

pois, entre a construção e a análise, entre a descrição e a interpretação dos

enunciados, há um ir e vir constante, já que a análise de discurso “é uma

disciplina de interpretação, mas que exige a descrição dos dados”

(GREGOLIN, 2006, p. 24). Por isso, fazer análise de discursos envolve

descrever e interpretar materialidades discursivas, não como procedimentos

sequenciais, mas, sim, simultâneos, conforme nos esclarece Gregolin (2006),

citando Pêcheux:

[...] o problema principal, nas práticas de análise de discurso, é determinar o lugar e o momento da interpretação, em relação ao da descrição. Não se trata de duas fases sucessivas, mas de uma alternância ou de um batimento (GREGOLIN, 2006, p. 32).

Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

60

Esses procedimentos são complementares. Segundo Sargentini (2006,

p. 40), “embora seja importante atingir uma ‘forma de corpus’, é questão ainda

mais importante para o analista de discurso ‘a maneira de ver o corpus’. Essa,

por sua vez, já é uma categoria interpretativa”. Além de a constituição do

corpus ser uma operação teórica, lembramos que os dados nunca se

encontram, imediatamente, disponíveis para o analista de discurso; eles

existem, potencialmente, em estado de arquivo, mas precisam ser divisados

como significativos, selecionados e organizados de acordo com os objetivos do

estudo e com o ponto de vista assumido pelo pesquisador. A linguística

moderna, desde o gesto fundador de Ferdinand Saussure na década de 1900,

já se espraiou em várias direções, mas ainda permanece fiel a um dos

princípios postos pelo mestre genebrino: “longe de dizer que o objeto precede o

ponto de vista, diríamos que é o ponto de vista que cria o objeto” (SAUSSURE,

1975, p 15).

Como já dissemos, nossa leitura das obras de Mário de Andrade foi

guiada não pelos gêneros discursivos, mas sim pelas menções diretas ou

indiretas ao tema, focalizando os sentidos com que esse modernista singular

envolvia o português outro falado no Brasil. Por isso, o corpus foi montado com

sequências discursivas extraídas de textos pertencentes a variados gêneros:

ensaios literários, crítica literária, poemas, romances, contos, crônicas, esboços

destinados à Gramatiquinha da fala brasileira e cartas a muitos amigos. Além

de obras de Mário, também recorremos a textos publicados na coletânea

Português do Brasil (volume II), organizada por Edith Pimentel Pinto (1981).

Lemos 21 (vinte e uma) obras, porém 7 (sete) foram excluídas ou porque não

se mostraram relevantes, considerado nosso tema, ou porque repetiam

sequências já observadas e recortadas de outras obras. Assim, 14 (quatorze)

obras foram efetivamente consideradas na constituição do corpus,

compreendendo, parcialmente, a produção de Mário no período de 1922 a

1942.

Uma cartografia dessa etapa de leitura que culminou com a constituição

do corpus da pesquisa pode ser observada nas tabelas e gráficos, a seguir.

Explicitamos na Tabela 1: o título das obras que contém os textos utilizados na

Page 61: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

61

constituição do corpus e uma coluna com um código correspondente a cada

texto/obra (tais códigos serão utilizados na identificação das sequências

discursivas nos capítulos de análise). As demais tabelas contêm: os títulos dos

textos de onde recortamos as sequências discursivas, o ano de sua 1ª

publicação, o ano da edição utilizada/citada nesta dissertação e o número de

recortes selecionados de cada texto. Nas tabelas, a seguir, relacionamos os

textos dos quais extraímos as SDs.

Na Tabela 1, conforme explicitamos acima, elencamos as obras usadas

e seus respectivos códigos:

TABELA 1: OBRAS E CÓDIGOS CORRESPONDENTES

OBRAS CÓDIGOS

Cartas a Manuel Bandeira CMB

A lição do amigo: Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de

Andrade

CCDA

Cartas a um jovem escritor/ de Mário de Andrade a Fernando Sabino CFS

O empalhador de passarinho EP

Paulicéia Desvairada /Poesias completas PD-PC

A costela do grão cão/Poesias completas CGC-PC

Táxi e crônicas no Diário Nacional TCDN

A Gramatiquinha de Mário de Andrade GMA

O português do Brasil: textos críticos e teóricos PB

Amar, verbo intransitivo (romance) AVI

Macunaíma o herói sem nenhum caráter MHSNC

Os contos de belazarte (Contos) CB

Losango Cáqui/ Poesias completas LC-PC

Clã de jabuti/Poesias completas CJ-PC

Na Tabela 2, listamos as cartas endereçadas a Manuel Bandeira (CMB),

a Carlos Drumonnd de Andrade (CCDA) e a Fernando Sabino (CFS), das quais

recortamos enunciados constantes do corpus:

Page 62: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

62

TABELA 2: CARTAS

TEXTOS USADOS NO CORPUS CÓDIGO 1ª

PUBLICAÇÃO

EDIÇÃO

UTILIZADA

Nº DE

RECORTES

31-X-924 CMB 1924 1958 1

S. Paulo, 5, 1924 CMB 1924 1958 1

29 de dezembro de 1924 CMB 1924 1958 1

1925 CMB 1925 1958 25

S. Paulo, 1-VI-29 CMB 1929 1958 8

S. Paulo, 16-VIII-31 CMB 1931 1958 1

S. Paulo, 6-VIII-33 CMB 1933 1958 5

[Sem data] CCDA ... 1982 2

S. Paulo – 16-X-925 CCDA 1925 1982 2

18 de fevereiro 1925 CCDA 1925 1982 6

S. Paulo. 23-VIII-925 CCDA 1925 1982 2

S. Paulo – 1-XI- 1927 CCDA 1927 1982 1

S. Paulo, 21-III-42 CFS 1942 1993 2

Na Tabela 3, listamos textos críticos, extraídos da obra O empalhador de

passarinhos (EP), ensaios literários da obra Aspectos da literatura brasileira

(ALB) e da obra Pauliceia Desvairada (PD) de que também recortamos

enunciados para o corpus de nosso estudo:

TABELA 3: CRÍTICA E ENSAIOS LITERÁRIOS

TEXTOS USADOS NO CORPUS CÓDIGO 1ª PUBLICAÇÃO EDIÇÃO

UTILIZADA

Nº DE

RECORTES

O baile dos pronomes BP-EP 1944 1972 5

A língua radiofônica LR-EP 1944 1972 1

A língua viva LV-EP 1944 1972 9

Parnasianismo P-EP 1944 1972 2

O movimento modernista MM-ALB 1942 2002 2

Prefácio Interessantíssimo PI-PD-

PC

1922/1955 1993 9

Page 63: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

63

Na Tabela 4, listamos o poema da obra A costela de grão cão (CGC),

que tematiza a questão da fala brasileira e que, por isso, foi incluído entre o

conjunto de enunciados a ser analisado:

TABELA 4: POEMAS

TEXTOS USADOS NO CORPUS CÓDIGO 1ª PUBLICAÇÃO EDIÇÃO

UTILIZADA

Nº DE

RECORTES

Lundu do escritor difícil LED-CGC-

PC

1941/1955 1993 1

Na Tabela 5, listamos as crônicas da coletânea Táxi e crônicas do Diário

nacional (TCDN), nas quais Mário de Andrade enuncia acerca da língua/fala

brasileira, avultando, portanto, como relevantes para a presente investigação:

TABELA 5: CRÔNICAS ORGANIZADAS POR TELÊ ANCONA PORTO

TEXTOS USADOS NO CORPUS CÓDIGO 1ª PUBLICAÇÃO EDIÇÃO

UTILIZADA

Nº DE

RECORTES

Táxi: Fala brasileira I TFB-TCDN 1929 1976 5

Táxi: brasileiro e português TBP-TCDN 1930 1976 2

Táxi: Ortografia I TOI-TCDN 1930 1976 1

Táxi: Ortografia II TOII-TCDN 1930 1976 2

Finalmente, na Tabela 6, listamos os textos selecionados por Edith

Pimentel Pinto para as obras: A gramatiquinha de Mário de Andrade (GMA) e O

Português do Brasil: textos críticos e teóricos, Vol.II (PB) das quais foram

recortadas sequências discursivas que constam do corpus desta pesquisa:

TABELA 6: TEXTOS ORGANIZADOS POR EDITH PIMENTEL PINTO

TEXTOS USADOS NO

CORPUS

CÓDIGO GÊNERO 1ª PUB. EDIÇÃO

UTILIZADA

Nº DE

RECORTES

Esboços para a

Gramatiquinha da fala

brasileira

EGFB-GMA Esboços 1928 1990 87

Assim falou o papa do

futurismo

PF-PB Entrevista 1925 1981 2

Carta a Alceu Amoroso CAAL-PB Carta 1927 1981 1

Page 64: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

64

Lima

Carta a Augusto Meyer CAM-PB Carta 1931 1981 2

Carta a Souza da Silveira CSS-PB Carta 1935 1981 12

No gráfico, a seguir, podemos visualizar, em seu conjunto, as obras que

nos serviram de fonte para o recorte dos enunciados que compõem o corpus a

ser analisado nos capítulos 3 e 4 seguintes:

Page 65: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

65

Como mostramos nas tabelas anteriores bem como no gráfico

representativo dos percentuais de recortes, totalizamos 200 sequências

discursivas, assim distribuídas: 72 foram retiradas de cartas; 17, de críticas

literárias; 2, de ensaio literário; 10, de poemas; 10, de crônicas; 87, dos

esboços da obra A gramatiquinha da fala brasileira e 2, de entrevista.

Além desses 200 recortes que tematizam e debatem sobre a língua

falada/escrita no Brasil, observamos que, em muitos deles, Mário de Andrade

se mostrava revoltado com aqueles que militavam pela formação de uma

identidade linguística brasileira, mas continuavam escrevendo à maneira lusa.

Ele fazia questão de afirmar que colocava em prática suas propostas:

[...] temos livros valiosos como a Língua Nacional de J. Ribeiro, O Dialeto Caipira de Amadeu Amaral, que são verdadeiros convites pra falar brasileiramente. Porém, os autores como idealistas que são e não práticos, convidam, convidam porém principiam não fazendo o que convidam. Não tiveram coragem. Eu tive a coragem e é o que explica o meu valor funcional na literatura brasileira moderna (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 313).

Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

66

Por essa razão, entre as quatorze obras que foram fontes dos enunciados

que integram o corpus, seis são literárias, fornecendo exemplos que

comprovam sua determinação de fazer concretamente o que recomenda, não

só por meio de suas personagens, mas ele mesmo como enunciador. Mário era

um crítico contumaz do regionalismo que punha a fala brasileira apenas na

boca das personagens. A seguir, apresentamos duas tabelas e dois gráficos,

contendo a relação dos fenômenos característicos da fala, encontrados em

dois romances, uma obra de contos e três obras de poemas, bem como a

quantidade de recortes retirados de cada uma delas: 104 SDs de Amar, verbo

intransitivo (1927), 109 SDs de Macunaíma-o heroi sem nenhum caráter

(1928), 162 SDs de Os contos de belazarte (1934), 6 poemas de Paulicéia

desvairada (1922), 16 poemas de Losango Cáqui (1926), 11 poemas de Clã

de jabuti (1927).

Na Tabela 8, listamos os poemas selecionados, por conterem

brasileirismos, das obras Paulicéia desvairada (PD), Losango Cáqui (LC) e Clã

de jabuti (CJ). Em seguida, mostramos através de um gráfico, o percentual de

enunciados extraído de cada uma dessas obras:

TABELA 8: POEMAS DE MÁRIO DE ANDRADE COM BRASILEIRISMOS

TEXTOS USADOS NO CORPUS CÓDIGOS 1ª

PUBLICAÇÃO

EDIÇÃO

UTILIZADA

Nº DE

RECORTES

Prefácio interessantíssimo PI-PD-PC 1922/1955 1993 1

O rebanho R-PD-PC 1922/1955 1993 1

Paisagem nº 2 P-PD-PC 1922/1955 1993 1

As Juvenilidades Auriverdes JÁ-PD-PC 1922/1955 1993 1

Os orientalismos

convencionais

OC-PD-PC 1922/1955 1993 1

Minha loucura ML-PD-PC 1922/1955 1993 1

I-Meu coração estrala MCE-LC-PC 1926/1955 1993 2

II- Máquina-de-escrever ME-LC-PC 1926/1955 1993 2

VI-Queda pedrunta de

madeira

QPM-LC-PC 1926/1955 1993 2

Page 67: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

67

VIII-Escola! Alto! EA-LC-PC 1926/1955 1993 1

XVI-Conversavam C-LC-PC 1926/1955 1993 2

XVIII-Cabo Alceu é um

manguari guaçu

CAMG-LC-

PC

1926/1955 1993 1

XX-Cadência ondulada

suave regular

COSR-LC-

PC

1926/1955 1993 1

XXI-A menina e a Cantiga MC-LC-PC 1926/1955 1993 2

XXIII-De nada vale

inteligência

NVI-LC-PC 1926/1955 1993 1

XXIV – A escrivaninha E-LC-PC 1926/1955 1993 1

XXVII – A menina e a cabra MC-LC-PC 1926/1955 1993 1

XXIX-Enfim no bonde pra

casa

EBC-LC-PC 1926/1955 1993 1

XXXI – Cabo Machado CM-LC-PC 1926/1955 1993 3

XXXIII-Meu gozo profundo

ante a manhã sol

MGPAMS-

LC-PC

1926/1955 1993 1

XXXIV – Louvação da

emboaba Tordilha

LET-LC-PC 1926/1955 1993 1

XLIII-Desincorporados D-LC-PC 1926/1955 1993 1

O poeta come amendoim PCA-CJ-PC 1927/1955 1993 1

Carnaval carioca CC-CJ-PC 1927/1955 1993 3

Yayá, fruta-do-conde,

castanha-do-Pará!

YFCCP- CJ-

PC

1927/1955 1993 2

Viuvita V- CJ-PC 1927/1955 1993 1

Sambinha S- CJ-PC 1927/1955 1993 1

Moda dos Quatro rapazes MQR- CJ-

PC

1927/1955 1993 1

Toada do pai-do-mato TPM- CJ-PC 1927/1955 1993 1

Poema P- CJ-PC 1927/1955 1993 1

Tostão de chuva TC- CJ-PC 1927/1955 1993 1

Moda da cadeia de Porto

Alegre

MCPA- CJ-

PC

1927/1955 1993 2

Paisagem nº 5 P- CJ-PC 1927/1955 1993 1

Page 68: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

68

Na Tabela 9, diferentemente das demais, apresentamos fenômenos

característicos da língua/fala brasileira presentes na prosa de Mário de

Andrade, representada pelas obras: Amar, verbo intransitivo (AVI), Macunaíma

– o herói sem nenhum caráter (MHSNC) e Os contos de belazarte (CB). Em

seguida, mostramos através de um gráfico, o percentual de casos

brasileirismos extraídos de cada uma dessas obras:

TABELA 9: BRASILEIRISMOS NA PROSA DE MÁRIO DE ANDRADE

FENÔMENOS CARACTERÍSTICOS DA FALA

AVI

[1927]

1995

MHSNC

[1928]

1981

CB

[1934]

1980

Contração de preposições Ex.: Era esperada. Já carregava as malas pra dentro. (AVI, 1981, p. 49)

6 - -

Substituição do pronome oblíquo por pronome do caso reto Ex.: Fräulein viu ele chegar como sem ver. (AVI, 1981, p. 68)

9 - 8

Pronome oblíquo no início de período Ex.: _ Me diga uma coisa, filho de gambá é raposa, como que chama este lugar? (MHSNC, 1981, p. 85)

9 6 5

Palavras proparoxítonas reduzidas Ex.: A chacra não dera nenhum resultado. (AVI, 1981, p.142)

3 - 4

Page 69: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

69

Expressões coloquiais em geral Ex.: Está aí mesmo, seu dotoire! (CB, 1992, p. 27)

58 34 93

Uso redundante de sufixos diminutivos Ex.: Carmela, pequetitinha, agarrada no João. (CB, 1992, p. 33)

11 - 10

Regência do verbo ir com em+o Ex.: Quando um ia no cinema o outro ia também. (CB, 1992, p.55)

2 5 8

Expressões populares com valor comparativo Ex.: Parou pra ficar chorando que nem bezerro. (CB, 1992, p. 47)

6 - 9

Uso do verbo fazer no final de enunciados Ex.: _ Fecha os olhos um bocadinho, velha, e pergunta assim. A velha fez. (MHSNC, 1981, p. 14)

- 5 -

Sujeito mim regido de para antes de verbo no infinitivo Ex.: _ Minha avó, dá aipim pra mim comer? (MHSNC, 1981, p. 16)

- 4 -

Uso de negativa dupla Ex.: _ Moço, não pode dormir nesse lugar não! (CB, 1992, p. 22)

- 10 5

Provérbios, crenças populares e frases rimadas Ex.: Quem conta história de dia cria rabo de cotia. (MHSNC, 1981, p. 75)

- 20 -

Uso do verbo brincar como sinônimo de ato sexual Ex.: Macunaíma piscou pra ela e os dois vieram na jangada brincar. Fizeram. Bastante eles brincaram. Agora estão se rindo um pro outro. (MHSNC, 1981, p. 56)

- 6 -

Uso de Mas com sentido de sim Ex: O gigante estava mas era querendo brincar com a francesa. (MHSNC, 1981, p. 40)

- 3 -

Uso do verbo ter no lugar de existir e haver Ex.: Quando a velha abriu os olhos estava lá e tinha caça, peixes, bananeiras dando, tinha comida por demais. (MHSNC, 1981, p. 14)

- 5 -

Silepse de número Ex.: Então se pôs falando pra toda a gente si queriam que ele botasse uma rosa no puíto deles. (MHSNC, 1981, p. 70)

- 2 -

Uso da expressão oral diz-que Ex.: Água fria diz que é bom pra espantar as vontades. (MHSNC, 1981, p. 129)

- 4 -

Uso do verbo reparar com sentido de observar/dar atenção Ex.: Como é que podia reparar na própria mocidade! Não podia. Só quem pôs reparo nisso

- - 5

Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

70

foi o João. (CB, 1992, p. 14)

Uso do verbo botar no lugar de colocar/pôr Ex.: Às vezes se esquecia do paliteiro no botar a mesa pro almôço. (CB, 1992, p. 11)

- - 1

Expressões com valor temporal Ex.: De primeiro êle enrolava dois pães no papel acinzentado. (CB, 1992, p. 14)

- - 13

Uso de dois conectivos adversativos juntos Ex.: Não sabia o que tinha acontecido lá dentro mas porém adivinhando que lhe parecia que a rosa não gostava dele. (CB,1992, p. 17)

- - 1

Simultaneamente à leitura das obras, procedemos à digitação de todos

os recortes que julgávamos em sintonia com nosso objeto de estudo. O número

total de recortes foi de 608 (seiscentos e oito), 200 (duzentos) recortes de

textos não-literários e 408 (quatrocentos e oito) exemplos de obras literárias de

Mário de Andrade, que serviram para corroborar sua proposta de fazer da

literatura uma instância de formação da identidade linguística brasileira.

Concluída a leitura e a digitação dos recortes, realizamos a organização deles

por ordem cronológica, procedimento que se mostrou necessário, uma vez que

observamos que Mário mudou de posição em relação ao estatuto da variedade

de português falado no Brasil, indo de uma categorização radical (“língua

brasileira”) para outra menos radical (“fala brasileira”). Vale destacar que a

percepção dessa mudança de sentido legitima o postulado da análise de

Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

71

discurso de que, nela, não há separação entre o trabalho de descrição e

interpretação do corpus.

Concluída a seleção, recorte e organização das sequências, realizamos

uma releitura de todo o material, a fim de escolhermos aquelas que seriam, de

fato, incorporadas à nossa análise pelo seu caráter exemplar em relação ao

espaço discursivo perfilado e por se apresentarem como representativas de

famílias parafrásticas (enunciados formalmente diferentes, mas portadores de

sentidos semelhantes) que nos pareciam apropriadas aos objetivos da

pesquisa. Essa seleção final, afunilada pelos objetivos, resultou na

composição de dois capítulos de análise: um sobre a polêmica (Capítulo 3) e

outro sobre o ethos discursivo (Capítulo 4). Para a elaboração de tais

capítulos, recorremos às noções de interdiscurso, polêmica,

interincompreensão, tradução, simulacro e ethos, tal como trabalhadas por

Dominique Maingueneau (2011, 2010, 2008a, 2008b, 2005a, 2005b, 1997 e

1989).

Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

72

O discurso não escapa à polêmica tanto quanto não escapa à

interdiscursividade para constituir-se. Por toda sua existência, ele

se obriga a esquecer que não nasce de um retorno às coisas, mas da

transformação de outros discursos ou que a polêmica é tão estéril

quanto inevitável, que a interincompreensão é insular, na medida da

incompreensão que supõe (MAINGUENEAU, 2005a, p. 122).

Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

73

Capítulo 3

A POLÊMICA ACERCA DA CONSTITUIÇÃO DE UMA IDENTIDADE LINGUÍSTICA

BRASILEIRA EM MÁRIO DE ANDRADE

Na perspectiva da análise de discurso de linha francesa,

empreenderemos, neste capítulo, a análise de um corpus constituído por

enunciados extraídos da obra de Mário de Andrade. O critério que orientou o

recorte dos enunciados foi a tematização da problemática da construção de

uma identidade linguística brasileira, na conjuntura em que viveu o escritor

modernista.

Nas seções 1, 2 e 3, revisitaremos os conceitos de formação discursiva

e interdiscurso, com destaque para duas das hipóteses propostas em

Maingueneau (2005a): o primado do interdiscurso sobre o discurso e a

polêmica como interincompreensão. Tais conceitos balizarão a análise dos

enunciados que compõem o corpus.

Na seção 4, analisamos um conjunto de enunciados recortados de

textos que compõem a obra de Mário de Andrade, focalizando a polêmica entre

modernistas e conservadores acerca da língua falada e/ou escrita no Brasil,

reeditando o debate desencadeado pelos românticos, depois um período de

retrocesso, decorrente do cultismo parnasianismo. E, na seção 5, procuramos

dar relevo ao pensamento linguístico de Mário de Andrade que nos permite vê-

lo como um sociolinguista antes de seu tempo.

3.1 Da formação discursiva ao interdiscurso

Num estudo balizado pela análise de discurso francesa, mobilizar o

conceito de interdiscurso é um imperativo, na medida em que ele é nuclear aos

procedimentos teórico-metodológicos. Se, nos primeiros tempos da AD, os

discursos eram pensados como autônomos uns em relação aos outros, hoje, a

tendência predominante é a de concebê-los como constitutivamente

heterogêneos, ou seja, é a de concebê-los como imbricados, inextricavelmente

ligados e constituídos por múltiplos atravessamentos.

Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

74

Essa mudança teórica envolve o abandono da noção de discurso como

uma máquina estrutural fechada (PÊCHEUX, [1969] 1993) em favor do

conceito de formação discursiva postulado por Foucault ([1969] 1986). Já em

1971, Haroche, Pêcheux e Henry lançam mão do conceito de formação

discursiva, definindo-a, contudo, de forma articulada à formação ideológica.

Conforme Foucault (1986, p. 135), o discurso é entendido como um

“conjunto de enunciados, na medida em que se apoia em um mesmo sistema

de formação discursiva”. Já o enunciado, segundo o autor, não é uma frase

(definida pela gramática), não é uma proposição (definida pela lógica), não é

uma formulação (definida pela teoria dos atos de fala). O que define o

enunciado é a função de existência: “O limiar do enunciado seria o limiar da

existência dos signos” (FOUCAULT, 1986, p. 96). São os enunciados que

autorizam perguntas como: os signos “fazem sentido”, a que se referem, como

se organizam e que atos realizam pela sua formulação?

Constatamos que o autor não entende o enunciado como uma estrutura

sintática, pois existem arranjos de palavras com valor de enunciado que não se

estruturam como frases, como, por exemplo, um paradigma de conjugação

verbal. Além disso, também há enunciados que se materializam por meio de

linguagens não verbais, como uma árvore genealógica ou um gráfico sobre

uma curva de crescimento populacional.

Na perspectiva de Foucault (1986), analisar formações discursivas

significa descrever as especificidades do enunciado. A ação de descrever, por

conseguinte, leva em consideração se o enunciado se apoia em um “conjunto

de signos” que para se realizar requer “um referencial”, “um sujeito”, “um

campo associado” e “uma materialidade”, sem a preocupação de identificar se

este cumpre com os requisitos de ser aceitável gramaticalmente ou não. Assim,

para Foucault, a análise do enunciado e a da formação discursiva são

operações correlativas, interdependentes, uma vez que “a regularidade dos

enunciados é definida pela própria formação discursiva” (p. 135). Assim, a

formação discursiva não deve ser tomada como um conjunto de princípios de

construção, mas como uma lei de coexistência.

Via de regra, a noção de formação discursiva em Pêcheux é articulada à

de Foucault. Contudo, atribui-se a Pêcheux a reelaboração dessa noção, com

base no materialismo histórico e na teoria althusseriana da ideologia. Em

Page 75: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

75

Pêcheux, a formação discursiva é uma das pernas do tripé formação-

discursiva/formação-ideológica/formação-social. Ao tratar da articulação dessas

três pernas, Haroche, Henry e Pêcheux ([1971] 2011) afirmam:

Falaremos da formação ideológica para caracterizar um elemento suscetível de intervir – como uma força confrontada a outras forças – na conjuntura ideológica característica de uma formação social em um dado momento. Cada formação ideológica constitui desse modo um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem ‘individuais’ e nem ‘universais’, mas que se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas em relação às outras. [...] as formações ideológicas assim definidas comportam necessariamente, como um de seus componentes, uma ou várias formações discursivas interligadas, que determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma harenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc) a partir de uma posição dada numa conjuntura dada (HAROCHE, HENRY, PÊCHEUX, [1971], 2011, p. 27).

Pêcheux retoma a teoria da ideologia de Althusser que não silencia as

contradições entre a ideologia dominante e a dominada. Ao propor os

aparelhos ideológicos, não os concebe como mera instância de reprodução da

ideologia dominante, pois, uma vez atravessados pelas contradições de classe,

constituem, paradoxalmente, força de reprodução e transformação das

formações sociais. Essa postulação althusseriana se reflete na noção de

formação discursiva, que passa a ser vista como um espaço heterogêneo,

atravessado por formações discursivas outras. Assim como Althusser postula

que todo indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia, Pêcheux postula que

o indivíduo é interpelado em sujeito de seus enunciados pelas formações

discursivas. Portanto, as palavras significam não por si mesmas, mas segundo

o processo de interpelação, segundo “as posições ocupadas por aqueles que

as empregam”. Assim, podemos afirmar que “as palavras ‘mudam de sentido’

ao passar de uma formação discursiva a outra” (HAROCHE, HENRY,

PÊCHEUX, [1971], 2011, p. 27-28).

Essa concepção de que uma formação discursiva é sempre atravessada

por outras, com as quais mantém uma relação de aliança, de subordinação, de

antagonismo, prenuncia a noção de interdiscurso, cujo embrião, segundo

Maldidier, já estava presente na “Análise Automática do Discurso” (1969), sob a

Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

76

designação do ‘já dito’, ‘já ouvido’. Contudo, é em Pêcheux ([1975] 1988) que a

noção de interdiscurso é efetivamente explicitada e passa a ocupar um lugar

proeminente no arcabouço teórico da análise de discurso. Primeiro, o autor se

refere ao “todo complexo com dominante das formações discursivas intrincado

no complexo de formações ideológicas”. Em seguida, nomeia “esse todo

complexo com dominante” como “interdiscurso” (PÊCHEUX, 1988, p. 162).

Atualmente, a análise de discurso francesa toma o interdiscurso como

um axioma da teoria. Considera que os variados discursos que irrigam as

formações discursivas mantêm uma relação de interdependência constitutiva

uns em relação aos outros. Tendo como pano de fundo a noção de

interdiscurso, os sentidos possíveis de um discurso correspondem aos sentidos

demarcados pela identidade ideológica de cada uma das formações

discursivas que se relacionam no interior de um mesmo espaço discursivo.

Maingueneau, em Gênese dos discursos (2005a, p. 21-24), apresenta

uma formulação da teoria do discurso mediante sete hipóteses. A primeira

afirma que “o interdiscurso tem precedência sobre o discurso”; a segunda, que

“o caráter constitutivo da relação interdiscursiva faz aparecer a interação

semântica entre os discursos como um processo de tradução, de

interincompreensão regrada”; a terceira, que “existe um sistema de restrições

semânticas globais”; a quarta, que “o sistema de restrições deve ser concebido

como um modelo de competência interdiscursiva”; a quinta, que “o discurso

não deve ser pensado somente como um conjunto de textos, mas como uma

prática discursiva”; a sexta, que “a prática discursiva pode ser considerada

como uma prática intersemiótica”; a sétima, que não existe uma dissociação

entre a prática discursiva e outras séries de seu ambiente sócio-histórico,

existindo entre eles um esquema de correspondência”.

Neste capítulo, vamos nos concentrar em duas hipóteses: a primeira

acerca do primado do interdiscurso e a segunda relacionada à polêmica como

interincompreensão.

3.2 Do primado do interdiscurso

Esmiuçando a primeira hipótese, o autor afirma que “a unidade de

análise pertinente não é o discurso, mas um espaço de troca entre vários

Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

77

discursos convenientemente escolhidos” (MAINGUENEAU, 2005a, p. 21).

Assim, para a apreensão da identidade de um discurso é indispensável

considerar a relação que um discurso mantém com o Outro, ou seja, considerar

suas relações interdiscursivas. Acompanhando as postulações teóricas de

Maingueneau (2005a), grafamos “Outro” com “O” maiúsculo e o entendemos

como a figura que representa a heterogeneidade constitutiva “que amarra, em

uma relação inextricável, o Mesmo do discurso e seu Outro” (p. 33) ou “a

intervenção de um conjunto textual historicamente definível que se encontra no

mesmo palco que o discurso” (p. 41).

Segundo o autor, considerada essa proposição, a interação entre

discursos pode receber duas interpretações: uma fraca e outra forte. A fraca

envolve o consenso de que estudar a especificidade de um discurso supõe que

este seja “posto em relação com outros”, uma vez que a análise de discurso

supõe “a colocação conjunta de vários textos” (2005a, p. 21), ao passo que a

forte

[...] exige mais do analista, já que coloca o interdiscurso como o espaço

de regularidade pertinente, do qual diversos discursos são apenas componentes. Em termos de gênese, isso significa que esses últimos não se constituem independentemente uns dos outros, para serem, em seguida, postos em relação, mas que eles se formam de maneira regulada no interior de um interdiscurso. Seria a relação interdiscursiva, pois que estruturaria a identidade (MAINGUENEAU, 2005a, p. 21).

Ponderando que o conceito de interdiscurso seria muito “vago”,

Mainguenau (2005a) buscou torná-lo metodologicamente mais

operacionalizável, por meio do trio conceitual: universo discursivo, campo

discursivo e espaço discursivo.

A noção de universo discursivo corresponde ao “conjunto de formações

discursivas de todos os tipos que interagem em uma conjuntura dada” (2005a,

p. 35). Apesar de se tratar de um conjunto finito, não é passível de apreensão

em sua globalidade. Assim, é de pouca utilidade para o analista,

representando, axiomaticamente, o horizonte a partir do qual são constituídos

domínios suscetíveis de serem estudados, que são os campos discursivos.

O campo discursivo deve ser compreendido como “um conjunto de

formações discursivas que se encontram em concorrência, delimitando-se

Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

78

reciprocamente em uma região determinada do Universo discursivo” (2005a, p.

35). A relação de concorrência deve ser entendida de maneira mais ampla,

pois inclui “tanto o confronto aberto quanto a aliança, a neutralidade aparente

etc...entre discursos que possuem a mesma função social e divergem sobre o

modo pelo qual ela deve ser preenchida” (2005a, p. 36). À guisa de

exemplificação, o autor menciona “o campo político, filosófico, dramatúrgico,

gramatical etc...” (2005a, p. 36). É bastante enfático ao afirmar que esse

recorte em “campos” não define zonas insulares; é apenas uma abstração

necessária que deve permitir abrir múltiplas redes de troca.

A constituição de um discurso é realizada no interior do campo

discursivo e deixa-se descrever em termos de operações regulares sobre

formações discursivas existentes e concorrentes. Contudo, não é possível

prever “as modalidades de relações entre as diversas formações discursivas de

um campo” (2005a, p. 37). Dessa forma, para visualizar mais nitidamente as

relações entre as formações discursivas, recorta-se um espaço discursivo.

Os espaços discursivos constituem “subconjuntos de formações

discursivas que o analista julga relevante para seu propósito colocar em

relação” (2005a, p. 37). O recorte é direcionado por hipóteses formuladas pelo

analista, de acordo com um conhecimento prévio dos textos e um saber

histórico, os quais serão confirmados ou negados durante o desenvolvimento

da pesquisa.

Um espaço discursivo não é dado de antemão, mas sim construído por

determinações e escolhas do analista, em função de seu objeto de

investigação. Especificamente, no caso desta pesquisa, o espaço recortado

tem por referência o campo discursivo das Letras, envolvendo formações

discursivas responsáveis por diferentes interpretações do português outro em

formação no Brasil. Nosso corpus é formado por enunciados extraídos da obra

de Mário de Andrade, um enunciador interpelado pelo discurso da

emancipação linguística e cultural do Brasil em relação a Portugal. Contudo, é

impossível analisar esse corpus sem considerar o(s) discurso(s) do Outro, uma

vez que ele(s) é/são constitutivo(s) dos enunciados marioandradinos. No nível

do espaço discursivo, a análise mostra “o caráter essencialmente dialógico de

todo enunciado” e “a impossibilidade de dissociar a interação dos discursos do

funcionamento intradiscursivo” (2005a, p. 39).

Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

79

Referindo-se à presença do Outro no discurso, Maingueneau afirma que

essa relação pode revelar-se independentemente de qualquer forma de

alteridade marcada explicitamente, pois a relação dialógica patenteia-se não

apenas sob a forma de citações, alusões, modalizações autonímicas, mas

também sob a forma do não-dito que age no avesso dos enunciados:

Todo enunciado do discurso rejeita um enunciado, atestado ou virtual, de seu Outro do espaço discursivo. Quer dizer que esses enunciados têm um “direito” e um “avesso” indissociáveis: deve-se decifrá-los sobre seu ‘direito’ (relacionando-os a sua própria formação discursiva), mas também sobre seu “avesso”, na medida em que estão voltados para a rejeição do discurso de seu Outro (MAINGUENEAU, 2005a, p. 40).

Com relação à possibilidade de localização do Outro no discurso,

Maingueneau dialoga polemicamente com a concepção de Authier-Revuz

(1990, 2004) sobre a heterogeneidade constitutiva e mostrada. Segundo a

autora, que assume uma postura psicanalítica, todo discurso é

constitutivamente atravessado pelo discurso do Outro: “O outro não é um

objeto (exterior, do qual se fala), mas uma condição (constitutiva, para que se

fale) do discurso de um sujeito falante que não é fonte-primeira desse discurso”

(2004, p. 69). A heterogeneidade mostrada não seria o reflexo, na superfície do

enunciado, da heterogeneidade constitutiva, mas sim “uma forma de

negociação – necessária – do sujeito falante com essa heterogeneidade

constitutiva – inelutável, mas que lhe é necessário desconhecer” (2004, p. 72).

Nos termos de Authier-Revuz, essa negociação é uma espécie de denegação

da heterogeneidade constitutiva do discurso, é uma forma de circunscrever o

outro para afirmar o um:

[...] as marcas explícitas de heterogeneidade respondem à ameaça que representa, para o desejo de domínio do sujeito falante o fato de que ele não pode escapar ao domínio de uma fala que, fundamentalmente, é heterogênea. Através dessas marcas, designando o outro localizadamente, o sujeito empenha-se em fortalecer o estatuto do um. É nesse sentido que a heterogeneidade mostrada pode ser considerada como um modo de denegação no discurso da heterogeneidade constitutiva que depende do outro no um”. (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 73 e 74).

Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

80

Segundo Maingueneau, todo discurso ao ser analisado deve ser

observado em relação à heterogeneidade constitutiva e sua eventual

manifestação como heterogeneidade mostrada. A heterogeneidade mostrada é

apreensível, uma vez que revela explicitamente a alteridade, por meio do

discurso citado, das auto-correções, das palavras entre aspas etc. (2005a, p.

33). Já a heterogeneidade constitutiva funciona de outra maneira, pois

Não deixa marcas visíveis: as palavras, os enunciados de outrem estão intimamente ligados ao texto que não podem ser apreendidos por uma abordagem linguística stricto sensu. Nossa própria hipótese do primado do interdiscurso inscreve-se nessa perspectiva de uma heterogeneidade constitutiva, que amarra, em uma relação inextrincável, o Mesmo do discurso e seu Outro (MAINGUENEAU, 2005a, p. 33).

Retomando as considerações de Maingueneau acerca da dupla

heterogeneidade na exploração da hipótese do primado do interdiscurso, Cox

(2008, p. 171) ressalta as dificuldades encontradas pelo analista, que nem

sempre pode contar com pistas explícitas sob a forma da heterogeneidade

mostrada, precisando “tatear o Outro no escuro, já que ele parece se dissolver

no Mesmo sem deixar rastros”. A autora observa, ainda, que se o analista

estiver atento encontrará as fissuras, as inconsistências, “já que nenhum

discurso é uma entidade monolítica” (COX, 2008, p.171) e nenhum sujeito é

“uma entidade homogênea, exterior à linguagem, que lhe serviria para ‘traduzir’

em palavras um sentido do qual seria a fonte consciente” (Authier-Revuz, 2004,

p. 63). O sujeito, desde a origem, divide-se entre o consciente e o inconsciente.

E o inconsciente estrutura-se, segundo Lacan, como linguagem. Destarte, o

sujeito suposto dizer é um efeito da linguagem, de tal maneira que não se pode

falar em ‘sujeito de’ fora da ilusão que a linguagem torna possível. É o ‘isso’ do

inconsciente e, portanto, da linguagem que produz o ‘eu”, mas a causalidade

da linguagem permanece desconhecida/ignorada pelo sujeito, porque se

realiza sob a forma da evidência, como se fosse a realidade mesma, o que não

passa de um efeito elementar da ideologia jurídica.

Page 81: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

81

3.3 Da polêmica como interincompreensão

Desdobrando a hipótese do primado do interdiscurso, Maingueneau

(2005a) propõe a hipótese da polêmica como interincompreensão. Segundo o

autor, a polêmica ocorre em razão da inevitável relação entre discursos

oponentes, no interior de um mesmo espaço discursivo. Opondo-se e

rejeitando um ao outro, os discursos instauram uma polêmica que se constitui

tanto por meio da heterogeneidade mostrada quanto por meio da constitutiva.

No fio discursivo, a polêmica se manifesta mediante simulacros,

traduções/interpretações negativas do discurso opositor. Diante da

impossibilidade de pôr fim à existência de um discurso oponente, os simulacros

são o resultado do esforço constante de que um discurso lança mão para se

conservar intacto diante da figura ameaçadora do seu Outro.

A noção de polêmica é esmiuçada por meio da noção de

interincompreensão entre discursos ocupantes de um mesmo espaço

discursivo, porém com posicionamentos ideológicos diferentes. O termo

interincompreensão designa a incompreensão recíproca entre os enunciadores

de um discurso e de outro. No processo de interpelação por uma dada

formação discursiva, o enunciador não compreende, não reconhece seu outro,

a não ser pela sua própria formação discursiva. Na tentativa de manter-se forte

para garantir seu espaço, um discurso só interage com outro por meio de

simulacros, a fim de rebaixá-lo, desautorizá-lo, desacreditá-lo. Trata-se, pois,

de “desqualificar o adversário mostrando que ele viola as regras do jogo

(mentindo, produzindo citações inexatas, informações errôneas, sendo

incompetente, pouco inteligente, etc...)” (MAINGUENEAU, 2005a, p. 114). Nas

palavras do autor, “polemizar é, sobretudo, apanhar publicamente em erro,

colocar o adversário em situação de infração em relação a uma Lei que se

impõe como incontestável” (2005a, p. 114).

Destrinçando a noção de interincompreensão, Maingueneau apresenta a

noção de discurso-agente e discurso-paciente para explicitar sua abordagem

do processo de tradução e construção de simulacro entre discursos: aquele

que ocupa a “posição de tradutor” é o discurso agente e aquele que “é

traduzido”, o discurso-paciente (2005a, p.103). Quem assume a posição de

discurso agente, para legitimar sua identidade constitutiva, realizará a tradução

Page 82: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

82

de um discurso paciente, incompreendendo-o, ou seja, projetando sobre ele as

categorias negativas (semas negativos) de seu próprio discurso.

Cada discurso repousa, de fato, sobre um conjunto de semas repartidos em dois registros: de um lado, os semas “positivos” reivindicados; de outro, os semas “negativos”, rejeitados. A cada posição discursiva se associa um dispositivo que a faz interpretar os enunciados de seu Outro, traduzindo-os nas categorias do registro negativo de seu próprio sistema. Em outras palavras, esses enunciados do Outro só são “compreendidos” no interior do fechamento semântico do intérprete; para constituir e preservar sua identidade no espaço discursivo, o discurso não pode haver-se com o Outro como tal, mas somente como simulacro que constrói dele

(MAINGUENEAU, 2005a, p.103).

Com relação ao termo “tradução”, o autor esclarece que não se pode

confundi-lo com “tradução interlinguística”, de um idioma a outro, mas que se

deve compreendê-lo como tradução de um discurso por outro no interior de

uma mesma língua:

Esses dois processos, o linguístico e o discursivo, são incomensuráveis: a “tradução” que nos interessa aqui é um mecanismo necessário e regular, ligado à constituição de formações discursivas que remetem, para além delas mesmas, a descontinuidade sócio-históricas irredutíveis (MAINGUENEAU, 2005a, P. 105).

Para o autor, “a incompreensão no interior do espaço discursivo não

decorre dos mal-entendidos linguageiros usuais” (MAINGUENEAU, 2005a, p.

105), mas de aspectos discursivos. Dessa forma, “não se dirá que um

enunciador de um discurso ‘interpreta’ seus próprios enunciados; esse é um

privilégio reservado a uma estância exterior. O discurso não pode interpretar-se

a si mesmo” (MAINGUENEAU, 2005a, p. 104).

Ainda com relação à polêmica como processo de interincompreensão,

Maingueneau distingue dois níveis: o nível dialógico que é o da interação

constitutiva entre duas formações discursivas e o nível propriamente polêmico

que é o da heterogeneidade mostrada. Assim, a noção de polêmica reveste-se

de um outro sentido no arcabouço teórico da análise de discurso, não

coincidindo “com o que se entende habitualmente por isso (uma controvérsia

violenta) (MAINGUENEAU, 2005a, p. 111). “A tradução do Outro, a construção

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

83

de um simulacro podem, pois, abranger todos os planos da discursividade”

(MAINGUENEAU, 2005a, p. 112), seja de forma visível no enunciado, seja

soterrada pelas camadas arqueológicas sob a superfície linguística.

O autor explica ainda que

A polêmica aparece exatamente como uma espécie de homeopatia pervertida: ela introduz o Outro em seu recinto para melhor conjurar sua ameaça, mas esse Outro só entra anulado enquanto tal, simulacro (MAINGUENEAU, 2005a, P. 113).

O universo semântico formado pelas noções interligadas de

interdiscurso, polêmica, interincompreensão, tradução e simulacro constitui

uma referência e um instrumental fecundo para pesquisas em análise de

discurso. É, pois, com essas noções que perscrutaremos o espaço discursivo

em que modernistas, aqui representados por Mário da Andrade, se batem com

aqueles que insistem em manter-se fieis aos mandamentos gramaticais de

Portugal.

3.4 Da polêmica sobre identidade linguística brasileira no arquivo de

Mário de Andrade

Os enunciados a serem analisados nesta seção referem-se à polêmica

entre modernistas e conservadores acerca da língua falada e/ou escrita no

Brasil, reeditando, no século XX, o debate desencadeado pelos românticos. O

parnasianismo, movimento estético que sucedeu o romantismo e antecedeu o

modernismo, havia re-orientado os ideais da expressão literária para o

conservadorismo purista, contestando a bandeira de abrasileiramento da língua

empunhada pelos separatistas e dialetistas. É, pois, com a posição

conservadora que os modernistas têm de se haver para concluir o projeto de

nacionalização literária, artística e linguística do país. Nesse estudo, o discurso

modernista se faz ouvir pela voz de Mário Andrade, certamente, o seu maior

representante no Brasil. Os enunciados recortados de textos que compõem a

obra do autor farão aflorar a polêmica com a posição conservadora em relação

à língua e também com alguns postulados do próprio modernismo.

Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

84

Se retomarmos o tripé proposto por Maingueneau (2005a) à guisa de

operacionalização do conceito de interdiscurso, vislumbramos como “campo

discursivo” o campo da Letras que inclui os discurso gramatical, linguístico,

literário dentre muitos outros que se encontram em concorrência numa

determinada região do “universo discursivo” numa dada formação social. E,

como “espaço discursivo” a ser investigado, recortamos a relação entre as

formações discursivas modernista e conservadora, no que diz respeito aos

embates de sentidos na interpretação da linguagem falada-escrita no Brasil.

Consideradas as condições sócio-histórico-ideológicas em que vivia Mário de

Andrade, a formação discursiva conservadora era representada pelos

parnasianos, muitas vezes referidos nos enunciados aqui estudados.

Na SD1, a seguir, o enunciador nomeia a disputa entre a ex-colônia e a

metrópole:

SD1: Mal é não termos uma consciência nacional verdadeira, isso acho indiscutível. Quanto as nossas relações com os portugas, que continuem como estão, é gostoso. Queixas, briguinhas... Portugal grita de lá: Eu sou maior! O Brasil grita de cá: Eu sou mais grande! E os dois ficam feridíssimos (BP-TCDN, [1930] 1976, p. 189).

Observamos, na SD1, uma retomada da tópica do nacionalismo, cuja

memória discursiva, como vimos na introdução desta dissertação, remonta ao

romantismo, movimento que se atribuiu a prerrogativa de completar a

emancipação do Brasil em relação a Portugal. Não bastava romper com a

dominação política, era necessária autonomia cultural, artística, literária e,

sobremaneira, linguística. Preterido durante o parnasianismo que voltava a ter

como baliza os ideais universais clássicos, o nacionalismo é retomado com

todo vigor pelo modernismo. Dessa forma, o pré-construído que afirma a

identidade entre ter uma língua própria e ser uma nação permeia a SD1.

Assim, “ter uma consciência nacional verdadeira” é um enunciado prototípico

da formação discursiva modernista. É, pois, como enunciador modernista que

Mário de Andrade enuncia “Mal é não termos uma consciência nacional

verdadeira”, em que a negação “não” é uma denegação. Conforme Indursky

(1990, p. 120), entendemos a denegação discursiva como “[...] aquela que

incide sobre um elemento do saber próprio à FD que afeta o sujeito do

Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

85

discurso”. Por razões conjunturais, o enunciador, que é um modernista falando

em nome de todos os modernistas (por isso, o “nós” inclusivo), não pode dizer

ainda “temos uma consciência nacional verdadeira”. Daí decorre o tom de

lamento expresso por meio do termo “Mal”.

Para ele, ter essa consciência pressupõe agir como brasileiro em todos

os sentidos, sem a necessidade de se importar com Portugal. Havia, sim,

controvérsias históricas entre Portugal e Brasil, como deixa entrever o verbo

“continuar”, referindo-se a “queixas” e “briguinhas” que vêm do passado e

apontam para o futuro, a julgar pelo uso do presente do subjuntivo “continuem”.

O enunciador refere-se amorosamente a essas rusgas, empregando o

diminutivo “briguinhas” e o predicativo “é gostoso”, para qualificar a relação de

amor e ódio com “os portugas”, lembrando, em certa medida, o que se passa

entre casais de namorados.

As “briguinhas” motivadas pelas diferenças linguísticas entre Brasil e

Portugal encontram-se exemplarmente materializados na SD1, por meio

dessas duas frases – “Portugal grita de lá: Eu sou maior! O Brasil grita de cá:

Eu sou mais grande!” – produzidas na forma de eco, porém com a diferença de

que o grito luso se faz em português castiço (Eu sou maior!) e o grito brasileiro

que responde de volta se faz em português mestiço (Eu sou mais grande!). O

uso do comparativo de superioridade na forma analítica (mais grande), em

lugar da forma sintética (maior), como prescreve a gramática normativa,

constitui um brasileirismo, ou seja, um vício de linguagem, a que Mário

concede status de cidadania. Em consonância com seu projeto de construção

de uma identidade linguística brasileira, Mário leva para a cena pública do

jornal ou do livro muitos fenômenos linguísticos que eram silenciados sob a

pecha de erros, vulgarismos, solecismos etc. Na SD2, a seguir, excerto de um

suposto diálogo com jornalistas, é possível constatar o empenho deliberado de

Mário em conferir cidadania àquilo que os passadistas taxavam de solecismos

e ele via como traços da fala brasileira:

SD2 - _ Não dou entrevistas a vocês jornalistas. _ Por quê? _Porque A noite, certamente, há de querer modificar o meu português. _ Mas A Noite publicará as suas palavras tim-tim por tim-tim.

Page 86: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

86

_ Com todos os meus solecismos, ou melhor, com aquilo que vocês passadistas chamam solecismo? _ Perfeitamente. _ Pois, então, vamos lá. Mas, para que saia tudo exatamente como eu disser, você faz as perguntas e eu as responderei escrevendo na máquina. (PF-PB, [1925]1981, p. 134).

Nessa SD, o enunciador, primeiro, assume a posição do Outro, dizendo

“os meus solecismos” (como o Outro diria de/traduziria seus brasileirismos),

porém, ao se dar conta do ato falho em que incorrera, introduz uma correção

por meio de modalizador autonímico “ou melhor”, remetendo o termo

“solecismo” ao Outro, ou seja, à formação discursiva conservadora (“vocês

passadistas”). Um enunciador modernista não traduziria os brasileirismos como

“solecismos”, ou seja, como “vícios de linguagem”. Para ele, isso seria um

traço normal, regular, da fala/língua brasileira.

Nas SD3 e SD4, a seguir, Mário de Andrade tematiza o retrocesso que o

projeto de construção de uma identidade linguística brasileira experimenta na

pena dos parnasianos.

SD3 - Chegamos ao nosso assunto. Estávamos desvirtuados pela

gramatiquice em que caiu a nossa literatura com a geração de Machado de Assis e o Parnasianismo. Veja bem que não culpo Machado de Assis, um gênio no meu entender, da existência dum Laudelino Freire. Os gênios se justificam, meu Deus! Porque a genialidade os eleva acima das contingências. Mas aquela linguagem mais da terra, que vinha se formando com os Românticos, virara com Bilaques e outros muito piores, Coelho Neto e a genialidade dos bons colocadores de pronomes à portuguesa, uma coisa oficial, gélida ver um Ministério das Relações Exteriores. E abrasileirei a minha língua (CSS-PB, [1935]1981, p. 157). SD4 - A necessidade nova de cultura, se em grande parte produziu apenas, em nossos parnasianos maior leitura e consequente enriquecimento de temática em sua poesia, teve uma consequência que me parece fundamental. Levou poetas e prosadores em geral a um...culteranismo novo, o bem falar conforme as gramáticas lusas. Com isso foi abandonando aquela franca tendência pra escrever apenas pondo em estilo gráfico a linguagem falada, com que os românticos estavam caminhando vertiginosamente para a fixação estilística de uma língua nacional. Os parnasianos, e talvez seu maior crime, deformaram a língua nascente, “em prol do estilo” (...) Essa foi a grande transformação. Uma necessidade de maior extensão de cultivo intelectual para o poeta atingiu também a poesia. Da língua boa passou-se para a língua certa (PNM-EP, [1944]1972, p. 11-12).

Page 87: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

87

Esses enunciados mostram o embate entabulado no espaço discursivo

constituído pelas formações discursiva modernista e conservadora em torno da

identidade linguística brasileira, a primeira na condição de agente e a segunda

na condição de paciente, o que determina a direção dos simulacros. Como

modernista, Mário teve de se haver diretamente com os parnasianos, que

representam uma reação contra o projeto de abrasileiramento da língua

nacional iniciado com vigor pelos românticos.

Observamos que Mário de Andrade introduz o Outro em seu discurso na

forma do simulacro que dele constrói. Na SD3, refere-se ao purismo linguístico,

abonado e praticado pelos parnasianos, como “gramatiquice” e na SD4 como

“culteranismo”. Ambas as designações revestem-se de um caráter pejorativo,

na medida em que nomeiam práticas linguísticas na contramão do movimento

de constituição de uma identidade linguística brasileira. Assumindo, pois, a

posição de discurso agente, o discurso de Mário se ocupa em interpretar e

traduzir o discurso paciente, segundo os semas negativos de sua própria

formação discursiva, realizando do Outro o que Maingueneau chama de

interincompreensão (2005a, p. 114). Os semas positivos da formação

discursiva parnasiana tornam-se negativos quando lidos por um sujeito

interpelado pela formação discursiva modernista.

Livrando a cara de Machado de Assis, Mário, na SD3, achincalha os

escritores parnasianos que, como os “Bilaques e outros muito piores, Coelho

Neto e a genialidade dos bons colocadores de pronomes à portuguesa”,

transformaram a linguagem brasileira que vinha se formando com os

românticos, numa língua sem vida (“oficial”, “gélida”), importada, estrangeira

(“ver um Ministério das Relações Exteriores”).

Na SD4, novamente nos deparamos com a interincompreensão do

discurso agente em relação à posição parnasiana de seguir “as gramáticas

lusas”, interrompendo “aquela franca tendência pra escrever apenas pondo em

estilo gráfico a linguagem falada, com que os românticos estavam caminhando

vertiginosamente para a fixação estilística de uma língua nacional”. Pelo seu

posicionamento discursivo a favor do purismo, os parnasianos são significados

como aqueles que “deformaram a língua nascente, em prol do estilo”, como

Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

88

aqueles que estancaram o processo de constituição de uma identidade

linguística brasileira, como aqueles que passaram da “língua boa” à “língua

certa”. “Língua boa” é aquela adequada para exprimir a alma brasileira,

coerente com o projeto político-estético modernista de emancipação cultural e

linguística em relação aos modelos portugueses; já “língua certa” é aquela que

obedece fielmente às normas gramaticais lusas, mas se mostra inadequada

como instrumento de expressão de uma literatura brasileira.

Assim, a SD3 e a SD4 ilustram o processo de interincompreensão entre

a formação discursiva modernista e a formação discursiva conservadora e a

produção de simulacros da segunda pela primeira que ocupa a posição de

agente e tradutora. Para garantir seu espaço, o discurso modernista procura

rebaixar, desautorizar, desacreditar o discurso conservador, criticando a sua

dependência com relação aos padrões linguísticos e estéticos europeus,

alinhamento ideológico-discursivo que contraria o postulado central da

formação discursiva modernista que tem, entre seus enunciados-chave, aquele

de abrasileiramento da língua, em consonância com o que já vinham fazendo

os escritores românticos. Disso, decorre a relação de aliança que a formação

discursiva modernista demonstra entreter com a formação discursiva

romântica. Para mostrar que se coloca no lado oposto dos “Bilaques” &

companhia, dos “colocadores de pronome à portuguesa”, dos que seguem uma

língua morta, uma língua estrangeira, Mário afirma, em contraponto, na SD3: “E

abrasileirei a minha língua”, legitimando uma prática linguística que considera

mais coerente com o seu país.

Mário sempre buscou coerência entre o que pregava e o que fazia. Se

se colocava a favor do abrasileiramento da língua, então ele mesmo deveria

escrever usando brasileirismos, apesar de a crítica conservadora taxá-los de

vícios de linguagem a serem evitados. Essa coerência entre o discurso e a

prática era veemente cobrada por ele de si e de seus colegas modernistas.

Certamente, quando, por algum lapso, recaía no padrão gramatical luso, não

faltava quem lhe apontasse as contradições. A SD5, a seguir, é um bom

exemplo disso:

Page 89: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

89

SD5 - Não tem dúvida que me contradisse empregando mais pra

diante o ‘chamar-lhe-iam’. Foi um lusitanismo que me escapou (CMB, [1925]1958, p. 91).

A colocação pronominal sempre esteve no centro das polêmicas em

torno das diferenças entre o português europeu e o português do Brasil. “É raro

o dia em que (as prédicas públicas a serviço do fetiche gramatical) não

apregoam a receita dos pronomes”, diz Mário Alencar no texto que denominou

de Período Pronominal ([1919] 1981, p. 458). Enquanto os falantes

portugueses tendiam para a ênclise, os brasileiros preferiam a próclise. A

tendência para a próclise era tão forte no Brasil que Alencar chegou a escrever

ter calado as razões e entregue “a cerviz à canga da proclítica” (ALENCAR,

[1919] 1981, p. 458). Todavia, nada soa tão estranho a um brasileiro quanto a

mesóclise. A mesóclise é a inserção do pronome oblíquo no meio do verbo e,

segundo prescreve a norma padrão, deve ser usada com as formas do futuro

do presente e do pretérito que não admitem ênclise. Com verbos nesses

tempos, quando não houver restrição para a próclise, ela pode ser usada,

porém, quando houver, deve-se usar a mesóclise. Por exemplo, se um verbo

do futuro do presente ou do pretérito começa o período, não pode ser usada a

próclise, porque a legislação gramatical lusa determina que “não se deve iniciar

período com pronome átono”.

Para fugir de uma mesóclise, os brasileiros chegam a mudar a estrutura

sintática da oração. Contudo, os muitos anos de contato com a gramática

prescritiva e a norma padrão acabam infundindo hábitos linguísticos que se

tornam automáticos, principalmente entre aqueles que frequentam

assiduamente a cultura letrada. Mário de Andrade se dizia conhecedor das

normas gramaticais e até ter escrito um de seus textos ensaísticos de acordo

com elas: “Eu tenho certeza de conhecer suficientemente a língua portuguesa

pra escrever nela sem batatas e em suficiente estilo” (EGFB-GMA, [1928]

1990, p. 45). Se desobedecia a legislação gramatical portuguesa não era

porque não dominava suas leis, mas sim porque via a literatura como um

espaço de luta, propício à constituição de uma identidade linguística brasileira.

Assim, na SD5 fala um sujeito dividido entre as constâncias do

português brasileiro e as normas da gramática lusa. Mário parece responder a

uma cobrança de coerência feita por alguém que flagrara o “retorno do

Page 90: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

90

recalcado” – a mesóclise – num de seus textos. Ele, um defensor do

abrasileiramento da língua, é surpreendido colocando o pronome de um modo

genuinamente luso. Admite ter se contradito, ao dizer “foi um lusitanismo que

me escapou”. O verbo “escapar” sugere que o “lusitanismo”, ou seja, a

mesóclise foi um ato falho e não algo intencional. Ele não pretendeu usá-la,

mas, como ensina a teoria freudiana, os elementos recalcados não só não são

aniquilados, como tendem a reaparecer inoportunamente por caminhos mais

ou menos desviados, como os derivados do inconsciente, tais os atos falhos.

De acordo com Mussalim (2005, p. 134), “o sujeito da AD se movimenta entre

dois pólos sem poder definir-se em momento algum como um sujeito

inteiramente consciente do que diz”. Como o discurso, “o sujeito é

constitutivamente heterogêneo” e essa heterogeneidade frequentes vezes foge

ao controle do imperativo da coerência que busca manter a posição outra bem

escondida no avesso do enunciado.

A recaída na mesóclise nos sugere que o enunciador Mário de Andrade

habita um “entre-lugar” (BHABHA, 2005) que explode a polarização entre

passado e presente, tradição e modernidade, identidade e diferença, civilização

e cultura, interior e exterior, inclusão e exclusão, língua portuguesa e língua

brasileira. Ao invés da “negação” do passado, da tradição, da civilização, da

identidade alienada, da língua portuguesa, podemos, com Bhabha (2005, p.

51), falar em “negociação de instâncias contraditórias e antagônicas, que

abrem lugares e objetivos híbridos de luta e destroem as polaridades negativas

entre o saber e seus objetos e entre a teoria e a razão prático-política”.

Contudo, Bhabha nos adverte para o risco de o termo “negociação” ser

entendido pelo viés do discurso sindicalista como pacificação de conflitos e

como acordo entre as partes. Tal como ele a entende, a “negociação” junta “os

elementos antagônicos e oposicionais sem a racionalidade redentora da

superação dialética ou da transcendência” (BHABHA, 2005, p. 52); ela nem

dissolve e nem resolve os confrontos, apenas os traduz. A mesóclise é, assim,

o elemento colonial rasurado que a luta pela descolonização linguística quer

silenciar por um processo de amnésia, mas que está pronto para ressurgir,

uma vez que a “tradução é a abertura de um outro lugar cultural e político de

enfrentamento no cerne da representação colonial” (Idem, p. 62). Trata-se,

pois, de uma visão da cultura não como uma unidade fechada e estável, mas

Page 91: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

91

como “zona de instabilidade oculta onde o povo reside” (Idem, p. 65) e que faz

com que cada um de nós aja como um sujeito cindido, contraditório,

fragmentado, movente, não raro inconsciente do que pensa e diz, muito

diferente daquela imagem do sujeito cartesiano, uno, coerente, inteiro, imóvel,

consciente do que pensa e diz.

Na SD6, a seguir, o enredamento interdiscursivo entre a formação

discursiva modernista e a conservadora pode ser novamente observado na

explicação que o enunciador fornece para o fato de ainda não termos uma fala

propriamente brasileira.

SD6 – (A fala brasileira) Inda não existe. No entanto na pronúncia temos já uma língua inteiramente apartada da fala portuga. Essa pronúncia e todos os fenomenologia [sic] fonética já nos teriam levado pra outra fala si não fosse a reação erudita (EGFB-GMA, [1928]1990, p. 51).

Na SD6, a existência da “fala brasileira” emerge como um alvo do

projeto modernista, uma vez que o enunciado “Inda não existe” faz supor que

ela era visada. É o advérbio ‘Inda’ (ainda) que traz à tona o sentido de que a

constituição da fala brasileira estava inclusa no projeto de nacionalização do

Brasil, uma vez que ele ficara a meio termo com a independência política de

Portugal. Contudo, apesar de não existir uma fala integralmente brasileira, em

termos da “pronúncia” e dos “fenômenos fonéticos”, ela já se apresenta

“apartada da fala portuga”. Tais características já teriam levado “pra outra fala”,

ou seja, para “a fala brasileira”, “não fosse a reação erudita”. O sintagma “a

reação erudita” evoca as fricções entre o discurso modernista e o discurso

conservador no espaço discursivo aqui focalizado. À ação modernista em prol

da constituição de uma identidade linguística brasileira, inalienável da

emancipação literária em relação aos modelos clássicos portugueses,

correspondia a re-ação dos conservadores, que insistia em manter a sujeição

ao padrão gramatical impingido pela metrópole lusitana. Destarte, o termo

“reação” torna presente, nessa sequência, o processo de interincompreensão

que fomenta a polêmica entre modernos e conservadores no que tange à

constituição de uma identidade linguística nacional. A SD6 é também um bom

exemplo do que significa enunciar sobre a língua brasileira no entre-lugar, no

Page 92: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

92

espaço das contradições e da ambivalência entre os discursos modernista e

conservador, no lugar da indecidibilidade e da hesitação. Nesse lugar, não

podemos estranhar que um enunciador diga que “a fala brasileira inda não

existe”, para, logo em seguida, afirmar que ela, na pronúncia, é “já uma língua

inteiramente apartada da fala portuga”. Ele afirma o contraditório: ela não

existe, mas existe. E assim enuncia não porque esteja privado de sua razão,

mas porque se encontra num entre-lugar, como alguém que viveu/vive “longas

e tirânicas histórias de dominação e reconhecimento” (BHABHA, 2005, p. 65) e

a experiência agônica de não conseguir se desvencilhar do fantasma do Outro.

Na SD7, Mário refere-se à “mocidade geral do Brasil”, como aliada na

luta pela constituição de uma identidade linguística brasileira:

SD 7 - Por outro lado nós vemos a mocidade geral do Brasil, bem ou mal fazendo, exagerando ou não, combatendo ou não: o certo é que despercebida de Portugal e das regras, normas e exemplos da tradição linguística de lá. E goste ou desgoste quem quer que seja, essa mocidade predomina e está fazendo o Brasil (TFB-TCDN, [1929]1976, p. 112).

No início do enunciado, o conector “por outro lado” faz supor que, se

“por um lado” havia a reação erudita dos conservadores, “por outro lado” havia

o apoio da mocidade que, “despercebida de Portugal e das regras, normas e

exemplos da tradição linguística de lá”, estava “fazendo o Brasil”, ou melhor,

estava ajudando a completar o processo de nacionalização do país. O termo

“despercebida” introduz um posicionamento de Mário que se tornaria uma

constante nos seu textos – o de não mais opor Brasil a Portugal, o de não mais

reagir contra o colonizador, como mostrarão as SD8, 9, 10 e 11, a seguir. Não

seria pela pena daqueles que brigam com Portugal, que a fala brasileira

avultaria como a fala geral da nação, mas sim pela “mocidade” que, sem se

importar com Portugal, sem medo de errar e exagerar e sem se importar com

as críticas, vai fixando os padrões linguísticos e literários brasileiros. Mário

demonstra indiferença em relação àqueles que desgostam do que a

“mocidade” vem fazendo, já que ela “predomina e está fazendo o Brasil”. Na

SD7, Mário de Andrade reconhece a força da escrita da juventude como prática

política que está produzindo a autonomia linguística do Brasil, que está fazendo

Page 93: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

93

um Brasil independente. Trata-se, pois, de sublinhar o valor de uma política

exercida pela escrita literária, para além da mera militância nacionalista.

Nos enunciados anteriores observamos a polêmica entre o discurso

conservador e o discurso modernista, pelo viés de um enunciador interpelado

pelo modernismo. Então, vamos observar a polêmica no escopo mesmo do

discurso modernista, uma vez que Mário desafina em relação a algumas

posturas abonadas por ele, como a de insurreição contra Portugal, tão visível

nas SD8 a SD11:

SD8 - Os escritores nacionais célebres têm às vezes incitado,

aconselhado a libertação nossa de Portugal – João Ribeiro, Graça Aranha. Principiam por um erro: opor Brasil e Portugal. Não se trata disso. Se trata de ser brasileiro e não nacionalista. Escrever naturalmente brasileiro sem nenhuma reivindicação nem queixa (EGFB-GMA, [1928]1990, p. 48).

SD9 - Acho engraçado essa mania de certa gente que pra ser duma nação carece do dinamismo de qualquer ideia antagônica pra ser nacional. Bobagem. Não se trata de nacionalismo reivindicador, minha gente. Isso é ridículo. Se trata de ser brasileiro e nada mais. E prá gente ser brasileiro não carece agora de estar se revoltando contra Portugal e se afastando dele. A gente deve ser brasileiro não pra se diferençar de Portugal porém porque somos brasileiros. Brasileiros sem mais nada. Brasileiros. Sentir, falar, pensar, agir, se exprimir naturalmente. Como brasileiro. Criar esses antagonismos e lá se vai a integração no Cosmos por água abaixo. Inda mais: não-somos-a-câmara-mortuária-de-Portugal cria logo a ideia de se diferençar forçadamente de Portugal o que é um erro. Nós descendemos em muito de nós de Portugal. Temos é natural por hereditariedade muitos costumes, expressões, jeitos, ações evolucionadas do portuga. Até intactos quase, alguns... E vai a gente os afasta da expressão portuguesa. Porque? Por causa do não-somos-a-câmara-mortuária-de-Portugal. É um erro porque esses sentimentos, costumes, expressões e ações são agora tão nossos quanto dos portugas. [...] Está certo. Ora aplicando o caso à língua o que a gente tem de fazer é isso: ter a coragem de falar brasileiro sem si amolar com a gramática de Lisboa. Dar cada um a sua solução pessoal de falar brasileiro pra que depois um dia os gramáticos venham a estabelecer a gramática do Rio de Janeiro. Está certo. Vejam bem: falei “sem se amolar com a gramática de Lisboa” e não “se opondo à gramática de Lisboa”. Não se trata de reação contra Portugal. Trata-se duma independência natural, sem reivindicações, sem nacionalismos, sem antagonismos, simplesmente, inconscientemente. Se trata de “ser”. O brasileiro tem direito de ser (EGFB-GMA, [1928]1990, p. 332-333).

SD10 - Assim não é contra a língua portuguesa que eu reajo. Eu só raciocino isto: A gente é um povo livre, um povo com entidade social, falando a sua fala. Ora que que tem que ver essa fala com o

Page 94: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

94

português! É nossa fala, pouco me importa agora que venha dum pai portuga com tangente pelas fêmeas negras e tapuis. É minha fala. É minha? É. Então falo o brasileiro, observando o brasileiro que se fala no Brasil e introduzindo nele minha individualidade (EGFB-GMA, [1928]1990, p. 377).

SD11 - Não reaja não. Reagir enfraquece. Quando me senti escrevendo brasileiro primeiro que tudo pensei e estabeleci: Não reagir contra Portugal. Esquecer Portugal, isso sim. É o que fiz (CMB, [1929]1958, p. 222).

Podemos dizer que as sequências discursivas de 8 a 11 entretêm uma

relação parafrástica. Isso significa que elas divergem quanto à forma, mas

convergem quanto ao sentido, ou seja, quanto ao modo de o enunciador

interpretar a relação entre Brasil e Portugal no tocante à questão linguística.

Mário desaprova o nacionalismo reivindicador do modernismo que tinha por

princípio a ruptura com a língua, a literatura e a gramática d’além mar como

caminho para a constituição de uma identidade linguística brasileira, bem como

de uma literatura emancipada da portuguesa. No quadro a seguir, observamos

os enunciados que poderiam ser ditos por um modernista qualquer, a exemplo

de João Ribeiro e Graça Aranha, mencionados na SD8, em comparação com

aqueles ditos por Mário de Andrade:

Posição modernista geral Posição modernista de Mário

- opor Brasil e Portugal Não se trata disso (opor Brasil a Portugal).

- carecer de ideia antagônica pra ser nacional

Não se trata de nacionalismo reivindicador, minha gente. Isso é ridículo. Se trata de ser brasileiro e nada mais

- revoltar-se contra e afastar-se de Portugal

E prá gente ser brasileiro não carece agora de estar se revoltando contra Portugal e se afastando dele.

- diferençar-se forçadamente de Portugal A gente deve ser brasileiro não pra se diferençar de Portugal porém porque somos brasileiros. Brasileiros sem mais nada. Brasileiros. Sentir, falar, pensar, agir, se exprimir naturalmente. Como brasileiro.

- amolar-se com a gramática de Lisboa [...] o que a gente tem de fazer é isso: ter a coragem de falar brasileiro sem si

Page 95: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

95

amolar com a gramática de Lisboa.

- opor-se à gramática de Lisboa

Vejam bem: falei “sem se amolar com a gramática de Lisboa” e não “se opondo à gramática de Lisboa”.

- reagir contra Portugal Não reagir contra Portugal. Esquecer Portugal, isso sim.

- ser nacionalista

- ser reivindicador

- ser antagonista

Se trata de ser brasileiro e não nacionalista. Escrever naturalmente brasileiro sem nenhuma reivindicação nem queixa.

Brasileiros sem mais nada. Brasileiros. Sentir, falar, pensar, agir, se exprimir naturalmente. Como brasileiro.

Trata-se duma independência natural, sem reivindicações, sem nacionalismos, sem antagonismos, simplesmente, inconscientemente. Se trata de “ser”’. O brasileiro tem direito de ser.

Como todos aqueles que falam interpelados pelo discurso modernista,

Mário de Andrade também cultivava o projeto de abrasileirar a língua nacional.

Porém, enquanto a maioria dos modernistas entendia o processo de

abrasileiramento da língua nacional como antagonismo, oposição, reação,

reivindicação de independência, a julgar pelos predicados listados na primeira

coluna do quadro anterior, Mário o entendia como um dar de ombros a

Portugal, como ter o direito de falar brasileiro sem se preocupar com o modo de

falar de Lisboa ou Coimbra. Estamos diante de um caso de polêmica interna a

um mesmo discurso, o discurso modernista. O enunciador comunga com seus

companheiros de modernismo várias teses, mas diverge deles em relação à

postura belicosa assumida contra aquilo que vem de Portugal.

Por essa razão, é abundante o uso da negação polêmica, materializando

o confronto de pontos de vista. Via de regra, a negação polêmica expressa o

confronto de posições originárias de formações discursivas antagônicas,

contudo, aqui, o confronto se dá em torno de uma questão localizada no

escopo do próprio modernismo. A cada enunciado modernista clássico, urdido

com base no antagonismo Brasil/Portugal, Mário replica com uma negação,

recorrendo a termos como “não”, “sem”, “nenhuma”. Se o enunciado é “Reagir

contra Portugal”, Mário devolve “Não reagir contra Portugal. Esquecer Portugal,

Page 96: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

96

isso sim”. Se o enunciado prega: “Amolar-se com e opor-se à gramática de

Lisboa”, Mário replica: “[...] o que a gente tem de fazer é isso: ter a coragem de

falar brasileiro sem si amolar com a gramática de Lisboa”, valendo-se,

inclusive, de uma sobreasseveração (MAINGUENEAU, 2008b), para enfatizar

seu posicionamento discordante em relação aos demais modernistas: “Vejam

bem: falei ‘sem se amolar com a gramática de Lisboa’ e não ‘se opondo à

gramática de Lisboa’”.

Na SD9, na qual Mário é mais contundente na defesa de sua posição

contrária ao anti-lusitanismo hegemônico à época, há uma retomada de um

texto de Graça Aranha, denominado O Espírito Modernista, apresentado, como

conferência, na Academia Brasileira de Letras, em 1924. Nesse texto, Graça

Aranha critica o espírito servil dos brasileiros que sempre renunciam a energia

de criar em favor da cópia e da imitação. A Academia, segundo ele, traz a “face

da morte”, em contraste com a vida que pulsa por toda a terra brasileira. Essa

conferência é, na verdade, uma convocação dirigida aos acadêmicos para

rever seu posicionamento de vassalagem aos escritores portugueses e

europeus, a fim de ampliar a separação de Portugal, completando a obra de

nacionalização do Brasil. No trecho de Graça Aranha, a seguir, podemos

observar a posição antagônica a Portugal que Mário tanto critica nos seus

pares:

Em vez de tendermos para a unidade literária com Portugal, alarguemos a separação. Não é para perpetuar a vassalagem a Herculano, a Garret e a Camilo, como foi proclamado no nascer a Academia, que nos reunimos. Não somos a câmara mortuária de Portugal.

Já é demais este peso da tradição portuguesa, com que se procura atrofiar, esmagar a nossa literatura. É tempo de sacudirmos todos os jugos e firmarmos definitivamente a nossa emancipação espiritual. A cópia servil dos motivos artísticos ou literários europeus, exóticos, nos desnacionaliza. (ARANHA, [1924] 1981, p. 48). (destaque nosso)

É desse trecho de Graça Aranha que Mário extrai a frase “não somos a

câmara mortuária de Portugal” e a transforma num nome composto “não-

somos-a-câmara-mortuária-de-Portugal”, citado na SD9. Metaforicamente, a

frase dita por Aranha condensa a insurreição dos modernistas em relação aos

Page 97: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

97

modelos portugueses a que até mesmo os membros da Academia

equivocadamente se curvavam. É uma espécie de “puxão de orelha” nos

colegas de fardão.

Ao dizer que o Brasil não era a “câmara mortuária de Portugal”, quer

dizer, que o Brasil não era um caixão onde os portugueses poderiam enterrar

seus mortos, ou ainda, que o Brasil não era um continente a ser preenchido

com a literatura alheia, Aranha, interincompreendendo o discurso conservador,

traduz a prática de importar e copiar a tradição portuguesa por meio de uma

metáfora-simulacro. Se, no discurso conservador, a cópia era bem vista, no

modernista, ela passava a ser mal vista. A tradição portuguesa era lida como

“tradição morta”, “tradição defunta”, para a qual o Brasil seria o caixão, a urna

funerária.

O autor era tão incisivo quando defendia a ruptura com Portugal que, no

texto O espírito acadêmico (ARANHA, 1981, p. 49), um parecer sobre o projeto

de reforma das funções da Academia, explicita claramente, no item 2, que a

instituição não aceitará para seus concursos “poesias parnasianas, árcades e

clássicas” e “obras de histórias estrangeiras, antiga ou moderna”. Em relação

às obras históricas brasileiras, dispõe que elas sejam “tratadas com espírito

crítico moderno, que sabe situar o passado e libertar-se do passadismo”. Além

disso, no item 4, determina que os trabalhos premiados e publicados pela

Academia usem “[...] a linguagem corrente, usual, expurgada de todo o

arcaísmo ou de expressão do denominado classicismo verbal português”.

É, pois, do anti-lusitanismo exacerbado dos modernistas, sintetizado

pelo enunciado “não somos a câmara mortuária de Portugal”, destacado e

citado a partir do texto de Aranha, que Mário se afasta na SD9, ao dizer que o

“[...] não-somos-a-câmara-mortuária-de-Portugal cria logo a ideia de se

diferençar forçadamente de Portugal o que é um erro”. No lugar do enunciado-

nome “não-somos-a-câmara-mortuária-de-Portugal”, poderiam figurar, como

sinônimos, termos como “antagonismo”, “oposição” etc., assim: “o antagonismo

cria logo a ideia de se diferençar forçadamente de Portugal o que é um erro”.

Se o poder português não se fazia mais sentir no campo da política e da

economia, ele era ainda muito ostensivo no campo da cultura e da língua. E,

segundo Foucault, onde há poder, há resistência. Aliás, a resistência não é

“anterior ao poder que ela enfrenta. Ela é coextensiva a ele e absolutamente

Page 98: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

98

contemporânea” (FOUCAULT, 1982, p. 241). Na medida em que o poder

português ainda se fazia sentir no campo das Letras e da cultura brasileira, o

movimento modernista representava uma forma de resistência que abria, a

ferro e fogo, espaços de luta contra a hegemonia das normas linguísticas e dos

cânones literários portugueses. Menos visíveis do que a colonização e o poder

exercidos sobre o território e os corpos dos brasileiros, a colonização e o poder

exercidos sobre a cultura, a língua e a alma não haviam cessado um século

depois do acontecimento da Independência, daí a resistência e a transgressão

dos modernistas.

Assim, quando Mário criticava a oposição que os seus companheiros de

modernismo faziam a Portugal, muito provavelmente não era contra a

resistência em si que se opunha, mas contra a estratégia de antagonismo

declarado usada por eles. Ele via como necessária a mudança dessa

estratégia de guerra para outra aparentemente não beligerante, que seria a de

ignorar, ou melhor, a de deixar de se importar com o inimigo – afirmar-se como

brasileiro sendo brasileiro, escrevendo brasileiro, produzindo literatura e cultura

brasileira e não brigando com Portugal. Tanto mais literatura e saber brasileiros

produzíssemos, mais aptos para nos afirmarmos com “ser brasileiro” diante das

outras nações estaríamos. Vemos, pois, um deslizamento do termo “brasileiro”

da condição de adjetivo que qualifica uma língua, uma fala ou um povo para a

condição de um substantivo que designa o homem de origem brasileira. Há

uma espécie de “entização” do brasileiro (“Se trata de “ser”’. O brasileiro tem

direito de ser”). Imaginado como um “ente”, como um ser que já existe, como

um ser que já é, o brasileiro pode ser/falar naturalmente brasileiro sem ter de

se apartar da língua do Outro, a ponto de poder declarar algo que soa como

um nonsense: “Todas as palavras de todas as línguas do mundo pertencem à

fala brasileira” (EGFB-GM, 1990, p.375). Na sua condição de “ente”, o

brasileiro deveria participar da construção de uma nação distinta e emancipada

de Portugal sem que isso tivesse de ser expresso em uma “língua diferente” da

portuguesa, enfim ele poderia participar do “movimento de construção do

nacional sem ‘nacionalismos’” (BUSCÁCIO, 2010, p. 16).

Também não podemos deixar de considerar que Mário era um

internacionalista convicto. A rivalidade e a guerra linguística e literária contra

Portugal lhe soavam equivocadas, já que pensava “o ser brasileiro” não

Page 99: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

99

enclausurado pelas fronteiras nacionais. Ele defendia o ponto de vista de que

podíamos ser brasileiros sem sermos estreitamente nacionalistas, de que

poderíamos ter uma voz própria, reconhecida mundialmente, sem necessidade

de nos apartarmos por completo de Portugal, pois o antagonismo atrapalharia a

ligação com o Cosmos. Diz Mário: “Criar esses antagonismos e lá se vai a

integração no Cosmos por água abaixo”. Era como uma expressão nova que a

fala brasileira deveria fazer parte do concerto internacional e não como uma

fala em guerra contra Portugal. “Reagir enfraquece”, pois quebra o vínculo com

o Cosmos. Não foi apenas por essa posição que Mário se apartou dos

modernistas no que toca ao anti-lusitanismo, mas também por reconhecer que

estávamos inextricavelmente ligados a Portugal: “Temos é natural por

hereditariedade muitos costumes, expressões, jeitos, ações evolucionadas do

portuga. Até intactos quase, alguns... E vai a gente os afasta da expressão

portuguesa. Porque? Por causa do não-somos-a-câmara-mortuária-de-

Portugal. É um erro porque esses sentimentos, costumes, expressões e ações

são agora tão nossos quanto dos portugas” (SD9). Finalmente precisamos

lembrar que, para Mário, não ser anti-lusitanista não significava ser lusitanista,

significava apenas “não se importar com Portugal”, “esquecer Portugal”,

significava ser brasileiro “naturalmente”, “simplesmente”, “inconscientemente”,

“sem mais nada”, “sentir, falar, pensar, agir... Como brasileiro”.

Nas SDs 8 e 9, há uma insistência no uso do predicado “ser brasileiro”

em contraposição a “ser nacionalista”. Tais predicados nominais, que, à

primeira vista, poderiam ser percebidos como sinônimos, quando remetidos às

condições sócio-histórico-ideológicas em que Mário enunciou sobre a

língua/fala brasileira, assumem sentidos distintos. Nesse espaço-tempo, havia,

em meio à intelligentsia, uma vontade coletiva de constituição da

nacionalidade, mas essa vontade significava coisa muito diferente se ela fosse

a vontade do legitimista ou a do modernista. A nação significava coisa muito

diferente para um e para outro. A reivindicação de “ser nacionalista” não

necessariamente incluía o imperativo de falar brasileiro. Por exemplo, entre os

legitimistas que conviveram com Mário, a vontade coletiva de nação poderia

significar a defesa, como língua nacional, de um português puro, o mais fiel

possível àquele de Portugal. Afinal, a unidade imaginária da nação vinculava-

se simplesmente a uma suposta unidade linguística, garantida pelo

Page 100: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

100

reconhecimento de uma língua nacional, independentemente de essa língua ter

sido legada pelos nossos colonizadores, como podemos inferir dos enunciados

seguintes:

A degeneração de um povo, de uma nação ou raça, começa pelo desvirtuamento da própria língua. (Rui Barbosa)3.

[...] porque só a instrução primária pode conservar e expandir no país o uso da língua que nossos avós nos legaram – e o que constitui a nacionalidade é propriamente a língua nacional. A pátria não é a raça, não é o meio, não é o conjunto dos aparelhos econômicos e políticos: é o idioma criado ou herdado pelo povo. [...] A morte de uma nação começa pelo apodrecimento de sua língua (BILAC, apud Pinto, 1978, Vol. I, p. 365).

Isso significava expiar a língua portuguesa dos feios aleijões

introduzidos pelo povo, dos solecismos e, principalmente, dos estrangeirismos

que ameaçavam a soberania nacional. Para os legitimistas, o idioma pátrio era

a língua portuguesa, cabendo-lhe o papel de guardiões da sua pureza, da sua

correção. Destruir sua integridade significava destruir a integridade nacional.

Entre eles, o binômio uma nação/uma língua atualizava-se como Brasil/Língua

Portuguesa. Porém, se a vontade coletiva de nação fosse a dos modernistas, o

desejo de “ser brasileiro” incluía o imperativo de falar brasileiro. Entre eles, o

binômio nação/língua atualizava-se como Brasil/falar brasileiro. A forma “ser” é

a cópula que liga um sujeito a um predicado que lhe é essencial – ser brasileiro

é falar brasileiro. Mas se falar brasileiro não significa falar português, também

não significa não falar português, uma vez que o português (“formas evoluídas

ou até intactas de português”) encontra-se inextricavelmente enredado na fala

brasileira.

Dessa forma, nas SDs 8, 9, 10 e 11, Mário de Andrade apresenta-se,

pois, como enunciador que fala do entre-lugar, onde o hibridismo, a

mestiçagem, desfaz a polarização entre português e brasileiro: “É nossa fala,

pouco me importa agora que venha dum pai portuga com tangente pelas

fêmeas negras e tapuis” (SD10), que seja fruto de interações mamelucas,

3 http://www.frasescurtas.com.br/2011/07/frases-de-impacto-textos-polemicos.html

Page 101: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

101

mulatas ou cafusas. O (inter)nacionalismo marioandradino não se equacionava,

pois, nem à cultura civilizada nem à cultura em sentido telúrico, mas

vislumbrava uma negociação entre elas. Como afirma Bhabha (2005, p. 51), a

negociação em lugar da negação refere-se a “uma temporalidade que torna

possível conceber a articulação de elementos antagônicos ou contraditórios”. A

expressão mais contundente da clivagem do sujeito na negociação de posições

antagônicas encontra-se materializada no fio do enunciado por meio da

denegação presente em: “Não reaja não. Reagir enfraquece”, uma forma de

negação que recai sobre enunciados do próprio discurso modernista, na

medida em que o desejo incontido de reagir contra Portugal se apresenta por

meio da negação. Deparamo-nos aqui com o sujeito consciente debatendo-se

com o sujeito do inconsciente para trazer à tona aquilo que funciona na forma

do esquecimento.

As análises realizadas nesta seção abonam a tese de que um discurso é

sempre heterogêneo, sempre permeado por outros discursos com os quais

estabelece relações de aliança, de confronto, de concorrência, de dissensão ou

de neutralidade. Essa tese pode ser associada ao conceito de esquecimento

número um proposto por Pêcheux (1988), segundo o qual “temos a ilusão de

ser a origem do que dizemos quando, na realidade, retomamos sentidos pré-

existentes” (ORLANDI, 2007, p. 35). Os sentidos estão inscritos “na língua e na

história e é por isto que significam e não pela nossa vontade” (ORLANDI, 2007,

p. 35).

De igual modo, abonam a tese da polêmica como interincompreensão

entre universos semânticos relativos a discursos que partilham algum fundo

comum, mas divergem quanto ao modo de interpretá-lo. Sem que o fundo

comum seja reconhecido pelos enunciadores que falam interpelados por

diferentes discursos que integram um campo, não há polêmica, pois, para que

ela exista, é preciso subsumir que se fala sobre uma mesma coisa, ainda que

por diferentes vieses interpretativos. No caso aqui estudado, modernistas e

conservadores compartilham a percepção de que o português falado-escrito no

Brasil não é o mesmo de Portugal, contudo, divergem quanto à forma de

interpretar essa alteridade. Conservadores tendem a interpretar a mudança

como nociva ao português lusitano, como destruição de sua pureza;

modernistas interpretam-na como benéfica, como transformação natural do

Page 102: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

102

português que, em outra formação social, entrou em contato com outras

línguas. Como cada um desses discursos interpreta a alteridade linguística

segundo um ponto de vista próprio, quando se depara com o ponto de vista

outro, não o compreende senão como aquilo que rejeita, traduzindo-o por meio

de simulacros. Por exemplo, os modernistas interpretam o culto e a idolatria do

passado literário e linguístico português, praticado pelos parnasianos, como

fazer do Brasil “a-câmara-mortuária-de-Portugal”. A essa língua morta, vinda da

velha Europa, opunham a língua viva – brasileira – que estava se constituindo

no novo mundo.

3.5 Da transposição erudita dos barbarismos

O título desta seção constitui um decalque da expressão “a transposição

erudita da barbárie”, cunhada por Mário de Andrade no artigo “Villa-Lobos”,

publicado em primeira mão no Diário Nacional no dia 12/09/1929, para

expressar a ideia nuclear à arte modernista, que consistia em costurar temas e

elementos populares por meio de técnicas artísticas eruditas, segundo a

subjetividade do artista. Nesta seção, vamos, primeiro, focalizar os nomes

pelos quais Mário de Andrade se refere ao português brasileiro, observando

sua variação ao longo do período coberto por este estudo (1922 a 1942). Em

seguida, vamos refletir sobre as ideias linguísticas de Mário de Andrade que

fazem dele um sociolinguista antes mesmo de a (socio)linguística existir como

ciência. Finalmente, exploramos a relação entre os projetos linguístico,

artístico, político e ético de Mário de Andrade, dando relevo à empreitada de

“estilizar o brasileiro vulgar” como condição para alçá-lo à condição de uma

cultura civilizada universal.

3.5.1 Da categorização e nomeação da variedade linguística falada no

Brasil

Como o modernista Mário de Andrade categoriza a entidade linguística

brasileira que, cada vez mais, se faz outra em relação à lusitana? Albuquerque

e Cox (1997) observaram que, entre os românticos, não havia unanimidade

Page 103: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

103

quanto à categorização dessa diferença, para uns se tratava de uma variação

dialetal e, para outros, de uma variação mais profunda, considerada como uma

nova língua nascente. Essa oscilação observada entre os românticos parece se

repetir entre os escritores modernistas, a julgar pelo que se atesta no conjunto

de SDs recortadas da obra de Mário de Andrade.

No período coberto por esta pesquisa, Mário de Andrade reformulou seu

ponto de vista inúmeras vezes. Conforme Pinto (1981, p. XII), Mário de

Andrade “não só retocou e reformulou constantemente seu pensamento sobre

a língua do Brasil, mas também o divulgou concomitantemente em livros,

cartas pessoais, conferências e artigos para periódicos”, gerando um arquivo

farto e variado de textos acerca das questões linguísticas que o tocaram de

perto.

Entre os anos de 1922 e 1925, considerada a primeira fase do autor, sua

fase mais revolucionária, Mário assume uma posição separatista forte,

referindo-se à língua brasileira como se ela já existisse, conforme podemos

observar nas SD12, 13, 14 e 15 seguintes:

SD12 - A língua brasileira é das mais ricas e sonoras. E possui o admirabilíssimo “ão” (PI-PD-PC, [1922] 1993, p. 67). SD13 - Pronomes? Escrevo brasileiro (PI-PD-PC, [1922] 1993, p. 74). SD14 - No losango caqui que traduzi inteirinho pro brasileiro (CMB, [1925] 1958, p. 87). SD15 - No brasileiro a preposição “a” quase não existe, estará destinada a desaparecer? Não sei. Em todo caso ficará limitada a muito poucas regências (CMB, [1925] 1958, p. 89-90).

Nesse conjunto de SDs, a língua é referida pelo autor como “língua

brasileira” ou simplesmente como “brasileiro”, reiterando o procedimento

lexicológico habitualmente utilizado na nomeação de outras línguas, como:

“língua portuguesa” (combinação do substantivo língua + adjetivo pátrio) ou

apenas “português” (adjetivo pátrio substantivado que se refere tanto ao idioma

quanto ao homem/povo de uma nação). Seguindo esse mesmo procedimento,

referimo-nos a língua inglesa/inglês, a língua francesa/francês etc.

Page 104: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

104

O enunciador fala da “língua brasileira” como se ela fosse uma entidade

real, como se ela existisse concretamente e como se sua existência fosse

reconhecida pelo co-enunciador. E o que principalmente produz o sentido de

um referente consabido pela comunidade de leitores a que o enunciador se

dirige é o uso do artigo definido antecedendo os termos “a língua brasileira” e

“o “brasileiro”. Com relação ao artigo definido, os gramáticos Cunha e Cintra

(2007, p. 211) afirmam que ele “é, essencialmente, um sinal de notoriedade, de

conhecimento prévio, por parte dos interlocutores, do ser ou do objeto

mencionado”. Empregado, pois, como uma ferramenta semântico-discursiva, o

artigo definido encarrega-se de ratificar a existência de uma língua já

estabilizada no Brasil.

Ao afirmar, na SD14, que traduziu a obra Losango Cáqui “inteirinho pro

brasileiro”, leva-nos a presumir que, de fato, “o brasileiro” existia como outra

língua, apartada do português, a ponto de justificar a tradução interlinguística

do “português” para o “brasileiro”. Afinal, toda tradução implica a existência de,

ao menos, duas línguas diferentes. Também a SD13 é assertiva quanto à

existência da língua brasileira. A alguém que poderia ter evocado o famigerado

tema da colocação pronominal – “Pronomes?” – onipresente na polêmica entre

conservadores e modernistas, o enunciador encerra a questão de modo

peremptório afirmando: “Escrevo brasileiro”, o que o indispunha a participar das

intermináveis discussões envolvendo a predileção brasileira pela próclise

contra o gosto lusitano pela ênclise. Ora, se o brasileiro era uma língua

independente do português, não lhe parecia fazer sentido discutir sua

inclinação à colocação proclítica do pronome átono.

Conforme Pinto (1981, p. XIII), o período de 1920 a 1945 foi o mais

“denso e tenso de toda a história da língua portuguesa do Brasil”, com

indefinições e imprecisões de toda ordem, sobremaneira, no tocante ao

estatuto e à nomenclatura usada para designar a realidade linguística

brasileira. De um lado, estavam aqueles que não abriam mão de designá-la

como “língua portuguesa” e, de outro, aqueles que defendiam a tese da “língua

brasileira”. E entre eles estavam aqueles que optavam pelas meias-tintas,

recorrendo a termos como “língua nacional”, “linguajar nacional”, “nosso

linguajar”, que mantinham a ambiguidade em torno do estatuto dialetal ou

sistêmico da língua usada no Brasil. De acordo com Pinto (1981), essa

Page 105: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

105

indefinição permeou o primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada,

reunido em São Paulo em 1937.

Aqueles que assumiam a tese independentista chegaram a fazer

campanhas para que o termo “língua brasileira” fosse oficializado. É o caso da

campanha, iniciada por volta de 1935, que culminou com a apresentação, à

câmara dos deputados, do Projeto nº 136, que “determinava que a língua

falada no Brasil fosse denominada ‘língua brasileira’, denominação que deveria

constar em todo livro didático, como condição essencial para sua adoção”

(PINTO, 1981, p. XV). O projeto teve vários opositores e com a dissolução do

Congresso, em 1937, a solução do caso ficou adiada temporariamente.

Contudo, em 1946, na abertura dos trabalhos legislativos, a emenda no. 1378

estabelecia que a Nação deveria incentivar “por todos os meios, a

universalização da língua portuguesa, com o objetivo de assegurar a unidade

linguística, sintática e ortográfica” com Portugal, derrotando aqueles que se

investiam na defesa da tese da “língua brasileira” (PINTO, 1981, p. XV).

As quatro SDs anteriores são exemplares da fase mais radical de Mário

de Andrade, vivida nos primeiros anos do movimento modernista. Nessa fase,

ele se apartava daqueles que assumiam a posição legitimista de mantenedores

da língua portuguesa tal como herdada de nossos colonizadores. Passado o

arroubo da juventude, o enunciador vai atenuando seu radicalismo e

deslizando para uma posição conciliatória entre as duas línguas. No grupo de

SDs a seguir, podemos observar a substituição do termo língua pelo termo fala,

que implica uma revisão de sua posição separatista em relação ao português:

SD16 - O articulista é muito sensato porém aqueles, que nem eu, que estão dando a contribuiçãozinha deles pra que um dia a gente possua uma fala brasileira literária, colocam o problema noutras bases. Nenhum de nós tem a pretensão de criar uma língua que um português não possa entender. Não se trata de inventar uma fala de origem brasileira e inconfundivelmente original, não. Se trata apenas duma libertação das leis portuguesas as quais sendo leis legítimas em Portugal, se tornaram preconceitos eruditos no Brasil por não corresponderem a nenhuma realidade e a nenhuma constância da entidade brasileira. Agora como que a gente vai chamar isso? Chama de “língua brasileira” porque é fácil de compreender, porque é simples e obedece a essa tradição traiçoeira e eterna com que os filhos, vinte-e-um anos chegando, se libertam legislativamente dos pais. Também a gente chama de café brasileiro uma frutinha bem aventurada que de longe veio, é talqual à que ficou longe, mas que

Page 106: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

106

dá-se bem no Brasil. Não a chamam de café-árabe brasileiro ou coisa assim (CCDA, [1927] 1982, p. 121-122).

SD17 - [...] entre dialeto, línguas e sublínguas tem uma confusão e entrelaçamento de conceitos. Também a fala brasileira não é diferente da fala portuga, é apenas distinta desta (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 337). SD18 - _ Você anunciou, uma vez, a Gramatiquinha da língua brasileira. Por que não publicou nunca esse livro? _ Da língua, não. Da fala. Não tinha pretensão de criar língua nenhuma. Anunciava o livro por me parecer necessário ao movimento moderno. Para dar mais importância às coisas que queríamos defender. É ainda muito cedo para escrever uma gramática da língua brasileira. Eu queria prevenir contra os abusos de escrever errado. Estávamos caindo no excesso contrário... (Cadernos de Cultura, 1954, p. 15, apud EGFB-GMA [1928] 1990, p.86).

SD19 - _Existe uma língua brasileira? Secundo sem turtuvear: MA: _ Existe. _ Por que existe? MA: Porque o Brasil é uma nação possuidora duma língua só. Essa língua não lhe é imposta. É uma língua firmada gradativa e inconscientemente no homem nacional. É a língua de que todos os socialmente brasileiros têm de se servir, se quiserem ser compreendidos pela nação inteira. É a língua que representa intelectualmente o Brasil na comunhão universal. _ Mas essa língua é o português. MA:_ É também o português. Nas suas linhas gerais mais eficientes não tem dúvida que a fala brasileira coincide com a língua portuguesa (TFB-TCDN, [1929] 1976, p. 111). SD20 - Inda faz pouco, João Ribeiro me chamou à fala num artiguete sobre si escrevo brasileiro ou português (Diário Nacional). E concluía que escrevemos por mais nota forçada, português. Respondi que isso não tinha a mínima importância, discutir critérios de língua e dialetos pra saber se falamos português ou brasileiro. E que ele e Roquete Pinto estavam como quase todos colocando o problema errado. Se tratava simplesmente duma questão pragmática. Pouco me incomoda agora que eu esteja escrevendo igualzinho ou não com Portugal: o que eu escrevo é língua brasileira pelo simples fato de ser a língua minha, a língua do meu país, a língua que hoje representa no mundo muito mais o Brasil que Portugal: enfim: a língua do Brasil (CMB, [1929] 1958, p. 222). SD21 - E o Macunaíma que tem um dilúvio de brasileirismos de toda casta, escrevi livro. Aquilo em estilo é poema, e até os que não concordam com meus brasileirismos reconhecem que pra aquilo o estilo tinha de ser aquele mesmo (CMB, [1929] 1958, p. 221).

Page 107: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

107

Nas SDs de 16 a 21, o enunciador reconhece a impropriedade do termo

“língua” para designar a entidade linguística brasileira, a despeito de sua

evidente diferenciação em relação ao português europeu. Se o termo “língua

brasileira” leva a pensar em um sistema linguístico independente, o termo “fala

brasileira” sugere dependência em relação ao sistema português. O enunciador

preocupa-se em deixar claro que mesmo que fale em “língua brasileira”, é na

“fala brasileira” que ele está pensando. É, pois, o estatuto de uma norma ou de

um dialeto que ele pretende agregar à entidade linguística que, por força do

hábito, ele nomeia como “língua brasileira”.

Na SD16, Mário de Andrade, forçado a refletir sobre a posição radical

dos modernistas quanto à criação de uma “língua brasileira”, atenua seu ponto

de vista, ao afirmar que sua contribuição consiste em chegar a uma “fala

brasileira literária” e não propriamente em “inventar uma fala de origem

brasileira”. Se nas SDs de 12 a 15, havia uma ambiguidade quanto ao status

da variedade linguística falada no Brasil, na SD16, parece haver uma certa

definição – seria algo da ordem da “norma” ou do “dialeto” e não do “sistema”.

Negando polifonicamente a voz do outro que o fustiga – “Não se trata de

inventar uma fala de origem brasileira e inconfundivelmente original, não.” –, o

enunciador tem a possibilidade de ressignificar sua posição no sentido de

enfatizar a libertação das leis portuguesas, ou seja, das normas portuguesas,

que soam entre nós como preconceitos eruditos, uma vez que não

correspondem “a nenhuma realidade e a nenhuma constância da entidade

brasileira”.

Perfilado o estatuto de lei/norma da entidade linguística brasileira, pode-

se até designá-la, para facilitar a compreensão, como “‘língua brasileira”.

Entretanto, o enunciador lança mão das aspas, um típico modalizador

autonímico (AUTHIER-REVUZ, 2004), para mostrar que usa o termo “língua

brasileira” não no sentido habitual, tal como nas SDs de 12 a 15. As aspas,

nesse caso, funcionam como um atenuador para a classificação categórica

“língua”.

Para justificar o uso do termo “língua brasileira”, o enunciador recorre a

uma analogia com o processo de emancipação dos filhos: “os filhos, vinte-e-um

anos chegando, se libertam legislativamente dos pais”. Quer dizer, embora os

pais tenham dado origem e nome aos filhos, eles se libertam dos pais. Algo

Page 108: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

108

semelhante ocorre com a língua brasileira, gerada pelo português, mas em

processo de emancipação das leis/normas gramaticais estrangeiras, tornadas

preconceitos no Brasil por carecerem de evidência empírica da “constância da

entidade brasileira”. Nessa afirmação, vemos a perspectiva do etnógrafo

orientar a visão do enunciador quanto à necessidade de as leis/normas de uma

língua serem lastreadas pela observação do uso e não pela tradição herdada

do passado. As leis linguísticas devem ser entendidas como usos normais,

regulares, constantes, e não como princípios normativos remotos. Isso

demonstra seu compromisso de pesquisador empírico, que considera

seriamente a tarefa de levantar as normas da “fala brasileira literária”,

correspondentes àquilo que é efetivamente observado na realidade linguística

do país.

Outra justificativa para o uso do termo “língua brasileira”, o enunciador

busca no hábito que temos de designar como “brasileiros” produtos vindos do

estrangeiro, mas muito bem adaptados ao país. Por exemplo, chamamos de

“café brasileiro” uma fruta que, apesar de sua origem arábica “dá-se bem no

Brasil”. Não a designamos como “café árabe-brasileiro ou coisa assim”, mas

simplesmente como “café brasileiro”. Da mesma forma, podemos chamar de

“língua brasileira” a língua aqui falada, independente de seu lugar de origem,

uma vez adotada e adaptada pela nação.

Na SD17, uma vez mais o enunciador se vê às voltas com a dificuldade

de operar com os conceitos de “dialeto, línguas e sublínguas”, uma vez que as

fronteiras entre eles se confundem e entrelaçam. Tendo por base tais

conceitos, apesar de sua imprecisão, faz a seguinte afirmação: “a fala brasileira

não é diferente da fala portuga, é apenas distinta desta”, estabelecendo uma

gradação de sentido entre os adjetivos “diferente” e “distinta”, que, em sua

forma dicionarizada, são dados como sinônimos: “diferente” (que não é igual ou

idêntico; distinto) do latim differentis e “distinto” (que não é igual; diferente) do

latim distinctus (HOUAISS e VILAR, 2009, p. 683 e 699), mas não no universo

semântico da formação discursiva modernista. Nessa formação discursiva, os

adjetivos “diferente” e “distinto” correspondem a mudanças maiores ou

menores em relação ao português original, delimitando fronteiras entre línguas

ou entre dialetos: ser diferente implicaria a existência de duas línguas

autônomas, dois sistemas (um português e outro brasileiro); ser “apenas

Page 109: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

109

distinta” implicaria a existência de um sistema e duas normas tomadas

descritivamente (a língua portuguesa e as normas lusitana e brasileira). A

entidade linguística brasileira não é mais igual à portuguesa, mas não a ponto

de constituir uma outra língua. O uso do modalizador “apenas” cumpre a

função de atenuar o grau de diferenciação entre as duas entidades linguísticas

e justifica a classificação como “fala brasileira” e não mais como “língua

brasileira”. Quer dizer, o enunciador revisita sua posição radical de juventude

que o levava a afirmar intempestivamente a existência de uma língua brasileira

apartada da portuguesa.

A mudança na ação de nomear a língua do Brasil é expressamente

mostrada na SD18. Nessa SD, uma suposta entrevista, quando o entrevistador

questiona Mário sobre a não publicação do livro A Gramatiquinha da língua

brasileira, o modernista, imediata e enfaticamente, lhe corrige “Da língua não.

Da fala. Não tinha a pretensão de criar língua nenhuma”. Nesse excerto,

emerge sua preocupação em desfazer um mal entendido que a denominação

“língua brasileira” possa ter causado à opinião pública, esclarecendo que,

quando falava em “língua”, estava, na verdade, pensando em “fala”. Seu

projeto consistia em levantar as regularidades (“constâncias’) da fala brasileira

para dotar o movimento modernista de alguma orientação sobre a escrita

literária, evitando soluções idiossincráticas (“Eu queria prevenir os abusos do

escrever errado. Estávamos caindo no excesso contrario”). Contudo, apesar de

patentear que o termo “língua” deveria ser entendido como “fala”, não silencia a

possibilidade de a língua brasileira estar a caminho, ao dizer que “É ainda

muito cedo para escrever uma gramática da língua brasileira”. Provavelmente,

mais tarde, seja possível escrever uma gramática da língua brasileira.

Na SD19, as fronteiras entre “língua” e “fala brasileira” parecem, à

primeira vista, se embaralhar, pois, quando perguntado pelo suposto

entrevistador, se a língua brasileira existe, o enunciador responde, sem

pestanejar, que ela existe. E mais, instigado a falar sobre as razões de ela

existir, ele evoca a ideologia do monolinguismo brasileiro: somos uma nação

“duma língua só”; é a língua de que todos os brasileiros se servem “se

quiserem ser compreendidos pela nação inteira”; “É a língua que representa

intelectualmente o Brasil na comunhão universal”. A asserção do enunciador-

escritor é contraditada pelo entrevistador que traz a voz do Outro: “Mas essa

Page 110: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

110

língua é o português”, ao que Mário responde: “É também o português. Nas

suas linhas gerais mais eficientes não tem dúvida que a fala brasileira coincide

com a língua portuguesa”. Confrontado com a conclusão paradoxal do

entrevistador de que “a língua brasileira é a língua portuguesa”, Mário rebate

afirmando que a língua brasileira “é também o português”, ou seja, ela é outra

coisa que o português, é uma fala brasileira, mas é “também o português”. Há,

pois, uma fluidificação das fronteiras que separam língua e fala. E, além disso,

cada vez mais vai se firmando a ideia de que a língua de um povo não

necessariamente tem de ser criada por ele, ela pode ser adotada, adaptada,

aclimatada, originando um fala “distinta”, mas não completamente “diferente”

daquela herdada do outro colonizador.

Na SD20, o enunciador evoca a polêmica linguística reinante na época,

referindo-se explicitamente a um artigo de João Ribeiro que o cutucava a

propósito da língua por ele usada (“brasileiro ou português”), concluindo que

“por mais nota forçada” que tentasse era em português que ele se expressava.

Entendendo que as críticas tinham por fundamento a oposição língua/dialeto,

Mário responde que não lhe importava “discutir critérios de língua e dialeto pra

saber se falamos português ou brasileiro”. Independentemente do fato de sua

escrita ressoar o português, ele se via escrevendo brasileiro, uma vez que o

português, adotado pelo Brasil, passava a ser a sua língua também.

Acrescenta, ainda, que o português, naquele momento, já se apresentava ao

mundo mais como língua do Brasil do que propriamente como língua de

Portugal.

Destaquemos que é a SD21 que inspira o título desta seção. Nesse

enunciado, o modernista parece empregar o termo “brasileirismo” como uma

provocação àqueles que o interpretam como vício de linguagem, mais

exatamente como “solecismo” e “barbarismo”. Fazia parte do projeto de Mário

de Andrade tirar os “brasileirismos” da marginalidade, conferindo-lhes status de

linguagem culta, digna do fazer literário, como recurso de estilo. Daí o jogo

entre a expressão “transposição erudita da barbárie”, aplicada à música, e a

expressão “transposição erudita dos barbarismos”, aqui deslocada por nós para

o campo das Letras. O modernista desejava fazer do que os conservadores

chamavam de vulgarismos/barbarismos/brasileirismos uma estilização erudita,

com a finalidade de constituir uma norma culta brasileira. Conforme Pinto

Page 111: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

111

(1981, XLIX), Mário, inúmeras vezes, “declarou que se metera na aventura de

estilizar o ‘brasileiro vulgar’, frisando, porém, que se tratava de estilização

‘culta’ da ‘linguagem popular’”.

Nas SD22 a SD24, observamos uma terceira maneira de Mário fazer

referência à língua do Brasil. Dessa vez ele substituiu a designação língua

brasileira por língua nacional, termo que, por não determinar o adjetivo pátrio,

permite jogar com a ambiguidade entre língua brasileira e língua portuguesa,

como já apontara Pinto (1981). A língua nacional é o português, mas um

português outro, fruto da mestiçagem com línguas africanas e indígenas:

SD22 - Não vou discutir o problema da língua “brasileira”, que, ao meu ver, não existe, embora seja da maior verdade falarmos, de preferência, em “língua nacional” (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 88). SD23 - Desde que um fulano fala uma palavra ou esse modismo se generalize, ele faz parte da língua. Assim os chamados brasileirismos por simples bobagem de comodismo gramatical não são brasileirismos nem nada, são palavras, sintaxes novas incorporadas à fala portuga e, portanto, fazendo parte dela legitimamente. Pertencem à língua portuguesa (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 377). SD24 - Há pouco menos de vinte anos atrás, quando também as minhas impaciências de moço me levaram a falar em ‘língua brasileira’ , e não, mais comodamente para minha consciência, em ‘língua nacional’ como falo hoje, foi esse um dos problemas que mais me preocuparam (BP-EP, [1941] 1972, p. 263).

Na SD22, enunciado que compõe os esboços para A gramatiquinha, o

enunciador recusa-se a “discutir o problema da língua “brasileira”, que, a seu

ver, “não existe” e agora dito peremptoriamente, sem o recurso do modalizador

“ainda”, usado na SD18. Em vista da dificuldade para designar a entidade

linguística brasileira, Mário sucumbe à conveniência do termo “língua nacional”,

como muitos de seus contemporâneos. Essa perspectiva é retomada na SD24,

na qual o enunciador reflete sobre as atitudes impulsionadas pelas

“impaciências de moço” que o levaram a falar em “‘língua brasileira’ e não,

mais comodamente para sua consciência, em ‘língua nacional’ como fala hoje”.

Quer dizer, o emprego do termo “língua nacional” é menos suscetível a

controvérsias devido à sua indefinição e ambiguidade.

Page 112: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

112

Os brasileirismos, presentes na SD21, reaparecem como tema na SD23.

Se na SD21, Mário de Andrade desejava resgatá-los do rol dos vícios de

linguagem, dando-lhe cidadania literária, na SD23 defende que, à medida que

eles se tornem modismo ou se generalizem, eles passam a pertencer à língua

portuguesa: “são palavras, sintaxes novas incorporadas à fala portuga e,

portanto, fazendo parte dela legitimamente”. Essa língua portuguesa que

incorpora os brasileirismos é a língua que falamos, é a “nossa fala”. Pouco

importa que seja uma fala mestiça, “que venha de um pai portuga com

tangente pelas negras e tapuias”. Se um povo usa uma língua, ela se torna sua

também, independentemente de sua origem.

Em resumo, no conjunto de SDs de 12 a 24, vemos o enunciador diante

da empreitada de categorizar e nomear a entidade linguística brasileira que não

se deixa captar facilmente por um conceito. Num primeiro momento opta por

uma categorização/nomeação forte como “língua brasileira”, termo que lhe

rende muitas críticas da parte dos conservadores que não admitem a

autonomia da língua brasileira em relação à portuguesa. Então, passa a

categorizá-la como “fala brasileira”, atenuando o grau de afastamento da língua

portuguesa. A fala brasileira apresenta-se como uma norma daquela e não

como um sistema totalmente independente. E, finalmente, opta pelo termo

“língua nacional”, cuja indefinição lhe permite jogar com a origem portuguesa

ou brasileira e, assim, sair do foco das controvérsias. Praticamente em todas

essas SDs, podemos observar o enunciador respondendo às vozes

conservadoras que lhe opõem resistência, ora sob a forma da heterogeneidade

constitutiva ora sob a forma da heterogeneidade mostrada.

3.5.2 De Mário de Andrade como um (socio)linguista temporão

A linguística, como ciência, surge no início do século XX, historicamente

vinculada à publicação do Curso de Linguística Geral, em 1916, obra cuja

autoria é atribuída ao suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913). O livro foi

publicado três anos após sua morte, por iniciativa de dois de seus alunos:

Charles Bally e Albert Sèchehaye, com base em anotações feitas durante as

aulas ministradas por Saussure. Contudo, é só a partir de 1960 que a

Page 113: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

113

linguística é introduzida como disciplina nos currículos dos cursos de Letras

brasileiros. Esse momento representa a institucionalização da Linguística no

Brasil, pois até então era ensinada nas cadeiras de Filologia Românica e

Língua Portuguesa.

O cerne da teoria linguística proposta por Saussure é a dicotomia

língua/fala, sendo a língua (langue) a eleita como objeto da ciência e a fala

(parole) considerada o elemento residual, por não se apresentar como

metodologicamente apreensível pela sua fungibilidade. Assim, a língua era

vista como social (fato social compartilhada por todos os falantes), homogênea,

sistemática, invariável, estática e abstrata e a fala como heterogênea,

individual, caótica, dinâmica, variável e concreta. Essa dicotomia vigorou até a

década de 1960, quando a sociolinguística assomou no horizonte da linguística

como uma nova ciência, impulsionada pelos estudos variacionistas de

Weinreich, Labov e Herzog ([1968] 2006) que, investigando o processo de

mudança linguística, descobriram que, diacronicamente, uma língua muda

porque, sincronicamente, ela varia. Essa descoberta os levou a postular a tese

de que a variação é inerente ao sistema linguístico e não apenas o seu

resíduo. Assim, a língua passa a ser vista como inerentemente heterogênea.

Porém, trata-se de uma heterogeneidade ordenada, passível de ser descrita

por uma abordagem estruturalista e científica.

Reposto o axioma da homogeneidade linguística pelo axioma da

heterogeneidade ordenada, a variação passa a ser visualizada como regular e

integrada ao sistema ou à competência linguística. Como afirma Bagno (2001,

p. 41), “toda língua, qualquer língua, em qualquer momento histórico, em

qualquer lugar do mundo, nunca é uma coisa compacta, monolítica, uniforme”.

A sociolinguística veio, pois, “mostrar que toda língua muda e varia, isto é,

muda com o tempo e varia no espaço, além de variar também de acordo com a

situação social do falante” (BAGNO, 2001, p. 43). Varia, por exemplo, segundo

o grau de escolaridade, a situação socioeconômica, a faixa etária, a origem

geográfica, a etnia, o sexo, as situações de fala etc.

Mário de Andrade morreu em 1945, sem presenciar a entrada das ideias

linguísticas e sociolinguísticas no universo das Letras brasileiras. Dessa forma,

embora Mário oponha língua brasileira à fala brasileira, certamente não o faz

no sentido linguístico stricto sensu, e sim pelo viés dos estudos dialetológicos,

Page 114: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

114

herdados do século XIX, ou até mesmo pelo viés do senso comum. Todavia,

ele demonstra uma intuição extremamente aguçada para a pesquisa

sociolinguística, como podemos ver pela SD25 e outras a serem analisadas

nesta subseção.

SD25 - As observações e pesquisas sobre a língua nacional não devem ser feitas exclusivamente entre pessoas das classes proletárias, entre analfabetos e pessoas rurais. Deve estender-se a todas as classes, até mesmo aos cultos, mas sempre na sua linguagem desleixada espontânea e natural. As observações só não devem se estender aos indivíduos que timbram em falar certo. Ou milhor: tem muita importância em verificar e apontar as regras e casos em que mesmo estas pessoas “culteranistas”, por desatenção momentânea pecam contra o português de Portugal ou das gramáticas (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 109).

A SD25 evoca os estudos dialetológicos realizados à época,

polemizando-os, como sugere o uso da negação polifônica no primeiro período:

“As observações e pesquisas sobre a língua nacional não devem ser feitas

exclusivamente entre pessoas das classes proletárias, entre analfabetos e

pessoas rurais”, índice material da discordância em relação àqueles que, a

exemplo de Amadeu Amaral, se restringiam à pesquisa dos falares rurais de

grupos afastados do mundo urbana e letrado. O que Mário diz nessa SD

demonstra que ele possuía um feeling de sociolinguista, meio século antes de

a ciência existir. Sua concepção de como deveria ser a pesquisa a embasar a

“fala brasileira” ou a “língua nacional” coincide em muitos aspectos com o que a

sociolinguística denomina de “vernáculo” (uso não monitorado da língua pelos

falantes de uma comunidade social). Em vista disso, a pesquisa sobre a língua

nacional deveria “estender-se a todas as classes, até mesmo aos cultos, mas

sempre na sua linguagem desleixada espontânea e natural”, requisitos

fortemente recomendados para o inquérito sociolinguístico.

Lendo essa SD, tem-se a impressão de ver nela o embrião do Projeto de

Estudo da Norma Linguística Urbana Culta (Projeto NURC), iniciado em 1969,

com o objetivo de documentar e descrever a norma objetiva do português culto

falado em cinco capitais brasileiras: Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro,

Salvador e Recife. No universo desse projeto, os informantes devem ter curso

superior completo, residir numa dessas metrópoles e ter origem urbana. São

Page 115: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

115

vetados informantes formados em Letras em razão do monitoramento

consciente da língua que podem fazer durante a entrevista de coleta de dados.

Em certa medida, essa recomendação lembra a que Mário faz acerca das

“pessoas culteranistas”, dos “indivíduos que timbram em falar certo”, a não ser

que sejam observados em momentos que “por desatenção momentânea

pecam contra o português de Portugal ou das gramáticas”.

Nas SDs seguintes, outros postulados centrais da sociolinguística

podem ser divisados no discurso do escritor modernista sobre a língua:

SD26 - Toda língua inclui dentro do seu conceito uma infinidades de línguas particulares, está claro. Tem a língua que a gente fala, a mais legítima, terrestremente falando. Mesmo esta se subdivide na língua do ferreiro, na do marujo, na do professor, na do aluno, na do amante, etc., etc. E tem a língua literária, mesmo esta divisível em muitas, a dos poetas, a dos pedagogos, a do naturalista, a das cartas, etc., etc. Mas incontestavelmente todas se incluem dentro do conceito geral de Língua, que implica por sua vez, acomodações de toda linguagem falada, [...]. Desculpe esta descrição, mas apenas quero lhe provar que não me organizei à tonta. A Língua ainda tem a circunstância de ser mudável, permanentemente mudável (CSS-PB, [1935] 1981, p.157-158). SD27 - A língua no seu sentido, digamos, abstrato, é uma propriedade de todo o grupo social que a emprega. Mas isto é uma mera abstração, essa língua não existe. O tempo, os acidentes regionais, as profissões se encarregam de transformar essa língua abstrata numa quantidade de linguagens concretas diversas. Cada grupinho, regional e profissional se utiliza de uma delas. Deus me livre de negar a existência de uma língua “culta”. Mas esta é exclusiva apenas de um dos grupinhos do grande grupo social. Essa é a língua escrita, por excelência, tradicionalista por vício, conservadora por cacoete específico de cultismo. Ou de classe. Mas já está mais que observado que os mesmos indivíduos que escrevem nessa língua culta, muitas vezes se esquecem dela quando falam. Essa língua escrita não é a mesma que a linguagem da classe burguesa, que é falada e não tem pretensões aristocráticas de bem falar. E existem as linguagens dos sentimentos, que fazem um burguesinho ter com a mulher uma linguagem amorosa muito especial, ou ter tal linguagem nos momentos de cólera que jamais, como vocabulário e sintaxe, êle empregaria na festa de aniversário da filhinha (LR-EP, [1940] 1972, p. 207-208). SD28 - Não houve uma clara e realista consciência de que a linguagem usada por milhares de pessoas, já por si diferentes uma das outras e ainda por cima diferenciadas por profissões, situação social, etc,. é necessariamente um instrumento vivo, em eterno fazer-se, a que qualquer coisa modifica, transforma ou acrescenta. Ainda mais: não se levou exatamente em conta que, dentro dessa língua

Page 116: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

116

total, a linguagem culta funciona mais ou menos como uma língua morta, de tendências necessariamente conservadoras que a fixam pelo estudo e a estratificam pelo cultivo da tradição (LV-EP, [1940] 1972, p. 211). SD29 - As expressões duma língua mudam rapidamente, mudam constantemente e em pouco tempo já são outras. Carece aproveitar o seu momento de vida oral e se expressar sem acreditar que sejam vulgarismos (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 408).

Nas SDs de 26 a 29, o enunciador enfatiza a ideia de que a

heterogeneidade é inerente a toda e qualquer língua, ideia que, no final da

década de 1960, passa a figurar como o axioma fundador da sociolinguística,

contrariando o postulado do discurso gramatical de que as línguas são

homogêneas e de que se não o são, é porque foram corrompidas e precisam

ser restituídas à forma correta.

Na SD26, Mário de Andrade afirma, textualmente, que “toda língua inclui

dentro do seu conceito uma infinidade de línguas particulares”, desdobrando-a

em língua falada (“a mais legítima”) e língua literária. A língua falada, por sua

vez, comporta as línguas profissionais (“a língua do ferreiro, do marujo, do

professor, do aluno, do amante, etc., etc.”), assim como a língua literária

apresenta-se dividida na “língua dos poetas, dos pedagogos, do naturalista,

das cartas etc., etc.”. Além de variar segundo as modalidades oral e escrita,

segundo as profissões e segundo os gêneros, a língua também é mutável

(“mudável, permanentemente mudável”). Como vimos no princípio desta seção,

variar e mudar são as principais propriedades das línguas segundo o viés

interpretativo da sociolinguística, mas foram prenunciadas por Mário quase

meio século antes dessa ciência se constituir.

Na SD27, o leitor, se linguista, pressente uma certa ressonância do

conceito saussuriano de língua, embora, provavelmente, Mário não tenha lido

Saussure. Ao dizer que “a língua [...] é uma propriedade de todo o grupo social

que a emprega” e que, enquanto tal, “é uma mera abstração” que “não existe”,

ele enumera várias características da língua que encontramos em Saussure.

Afirmar que a língua é uma abstração implica observar que ela, como sistema,

não está inteiramente presente em nenhum falante, pois é a totalidade dos

falantes que a constitui. Essa língua abstrata só existe sob a forma de

Page 117: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

117

linguagens concretas. Tais linguagens concretas lembram o que os linguistas e

sociolinguistas chamam de “normas”.

Em lugar da dicotomia saussuriana língua/fala, o linguista romeno

Eugenio Coseriu propõe uma tricotomia, introduzindo o conceito de “norma”,

recusado, num primeiro momento, pela linguística nascente como gesto de

ruptura com gramática tradicional. Coseriu ([1952] 1980) sugere que o sistema

parte do mais concreto (falar concreto) para o mais abstrato (sistema),

passando por um nível intermediário (norma). O falar concreto, portanto, pode

ser definido como o real individual; a norma, como o real coletivo e o sistema,

como o ideal coletivo. O conceito de “falar concreto” equivale ao de fala

(parole). Pelo termo “norma”, Coseriu designa aqueles aspectos do “falar

concreto” que são traços comuns, constantes, tradicionais, coletivos, mas não

necessariamente funcionais no interior de todo o sistema. O termo “sistema”

designa o conjunto das oposições linguísticas funcionais e equivale a “língua”

(langue). Coseriu (1980) assim distingue “norma” de “sistema”:

(...) o termo norma abrange fatos linguísticos efetivamente realizados e existentes na tradição, ao passo que o sistema é uma técnica aberta que abrange virtualmente também os fatos ainda não realizados, mas possíveis de acordo com as mesmas oposições distintivas e as regras de combinação que governam o seu uso. (COSERIU, 1980, p. 123)

Portanto, de acordo com Coseriu, o falar concreto individualiza os

falantes de uma dada língua, o sistema os reúne numa só coletividade e a

norma os dispõe em subgrupos. Contudo, para ele, a norma não é “o como se

deve dizer”, mas “o como se diz”. Assim, a língua só é concreta quando

observada como norma, em sentido descritivo e não prescritivo. Conforme

Lucchesi (2004),

Não se pode mais pensar o sistema de funcionamento da língua dissociado dos padrões coletivos de comportamento linguístico, nos quais o sistema linguístico se atualiza em cada momento do seu devir histórico [...] (LUCCHESI, 2004, p. 85).

Page 118: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

118

Apesar da distância temporal e paradigmática que separa o escritor

modernista e os (socio)linguistas, salta aos olhos a ressonância entre eles,

como se pode ver quando se compara a citação anterior com este excerto: “O

tempo, os acidentes regionais, as profissões se encarregam de transformar

essa língua abstrata numa quantidade de linguagens concretas diversas. Cada

grupinho, regional e profissional se utiliza de uma delas” (SD27).

Outra discussão que também poderia ser tributada a um sociolinguista é

a que Mário faz a respeito da norma culta. Assim, ele se refere ao dogma da

norma culta: “Deus me livre de negar a existência de uma língua ‘culta’”. Esse

trecho mostra a relação interdiscursiva que Mário entretém com os defensores

da língua culta, ou seja, seria “crucificado” por eles, se entre o reconhecimento

das múltiplas linguagens, negasse a existência da língua culta. Porém, ao

contrário dos conservadores, ele não considerava essa variante superior e

única, apenas a reconhecia como mais uma dentre as outras, posição que

seria sustentada pelos estudos (socio)linguísticos décadas depois. Além disso,

ele dirá, com todas as letras, que essa língua é o capital linguístico apenas de

um grupinho: “Mas esta (a língua culta) é exclusiva apenas de um dos

grupinhos do grande grupo social” (SD27). Seu feeling sociolinguístico o faz ir

além, distinguindo a língua culta real (norma objetiva) e a língua culta ideal

(norma subjetiva). A língua culta ideal “é a língua escrita, por excelência,

tradicionalista por vício, conservadora por cacoete específico de cultismo. Ou

de classe.” (SD27). Naquela época, Mário já observava que a língua falada

pela elite não era a mesma que ela usava para escrever: “já está mais que

observado que os mesmos indivíduos que escrevem nessa língua culta, muitas

vezes se esquecem dela quando falam” (SD27). A língua com que o

burguesinho namora, encoleriza-se e vai ao aniversário da filhinha não é a

mesma que usa para escrever quando se curva ao que prescreve a tradição

gramatical. Em resumo, se a situação de fala varia, a língua também varia.

Aliás, esse princípio da adequação se tornaria o fundamento da noção de

“competência comunicativa”, desenvolvida por Dell Hymes na década de 1970,

postulando a articulação entre normas linguísticas e normas socioculturais.

A SD28 nomeia a falta de clareza e de consciência, certamente

referindo-se à posição conservadora, quanto à percepção da língua usada

como um “instrumento vivo, em eterno fazer-se, a que qualquer coisa modifica,

Page 119: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

119

transforma ou acrescenta”. Se as pessoas por si são diferentes, se diferentes

são as profissões e as situações, a língua que falam não pode ser a mesma.

Em oposição ao qualificativo “viva”, observamos o uso da palavra “morta” para

se referir à norma culta no enunciado: “não se levou exatamente em conta que,

dentro dessa língua total, a linguagem culta funciona mais ou menos como uma

língua morta” (SD28). Visualizamos nesse excerto, a formulação de um

simulacro do culto à tradição gramatical. O processo de interincompreensão

leva o enunciador a traduzir como “língua morta”, o que seus opositores

consideravam a língua culta, herança intocável de Portugal e que, portanto,

deveria ser preservada das corrupções causadas pelos falantes brasileiros.

Na SD29, considerando que a mudança é inerente às línguas e que as

expressões passam rapidamente, Mário de Andrade enfatiza que é preciso

“aproveitar o seu momento de vida oral e se expressar sem acreditar que

sejam vulgarismos” (SD29). Chama-nos a atenção o termo “sem”, pois este

remete ao discurso outro – discurso conservador - que traduzia/categorizava as

expressões em uso na linguagem vernacular, por meio do simulacro

“vulgarismos”, que categorizava um determinado tipo de vício de linguagem. O

termo “sem” materializa, pois, a polifonia entre o discurso moderno que não

teme os “brasileirismos” e vê neles inestimáveis recursos de estilo, e o discurso

conservador que evita os “brasileirismos” sob a pecha de vulgarismos.

Nas SDs de 26 a 29, vemos, portanto, o enunciador defendendo a ideia

de que a variação e a mudança são inerentes às línguas, bem como a ideia de

que a língua culta, tal como defendida pelos conservadores, é uma língua

morta, que não cessa de não se realizar nas situações efetivas de uso da

linguagem, ideias basilares à fundação da sociolinguística como ciência.

Como afirma Yaguelo (2001, p. 279), “Na língua se inscreve a passagem

do tempo”. Por isso, uma língua, enquanto falada, nunca cessa de se fazer

outra. Diante da mudança ininterrupta levada a efeito pelo povo que a utiliza, a

língua culta padronizada e codificada pela elite e ensinada na escola soa como

uma língua morta, embalsamada, que a nostalgia purista sacraliza e resiste a

enterrar. Afinal, reconhecer que uma língua muda seria reconhecer que se

envelheceu, constatação que se reveste de saudosismo. E, mais, reconhecer

que a língua muda pela boca/mão do povo seria reconhecer que o poder da

elite pode pouco diante do poder da massa. Assim, se os puristas desejam

Page 120: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

120

conservar a língua, é porque leem na sua mudança a própria

decadência/degenerescência. Perceber que a língua se fez outra significa

perder o domínio sobre/por ela, o que pode se manifestar por meio de

julgamentos éticos e estéticos, como: outrora, tão bela, tão pura, tão correta,

tão perfeita, tão lógica, tão gramatical; agora, tão feia, tão errada, tão

misturada, tão imperfeita, tão ilógica, tão caótica. Mário de Andrade, como

ninguém, entendia a inexorabilidade do tempo sobre a língua e, por essa razão,

defendia a ideia de que a vida, a exuberância da língua, deveria ser

aproveitada, transformada em literatura, sem preconceito, sem o temor da

pecha de “vulgarismos”, antes que eles (os vulgarismos) morressem.

Podemos constatar, lendo as SDs de 30 a 39, a seguir, que o projeto de

Mário de Andrade de abrasileirar a expressão literária não se reduzia ao

regionalismo e nem mesmo a um nacionalismo estreito que virasse as costas

para o internacionalismo. Ele imaginava uma fala brasileira culta projetando-se

na cultura civilizada universal.

SD30 - Você diz por exemplo que em vez de escrever brasileiro estou escrevendo paulista. Injustiça grave. Me tenho preocupado muito com não escrever paulista e é por isso que certos italianismos pitorescos que eu empregava dantes por pândega, eu comecei por retirar eles todos da minha escrita de agora. Mais tarde vamos ver o que a gente pode aproveitar deles. Por enquanto o problema é brasileiro e nacional. Agora você deve ver que pequenas diferenças entre falar duma pra outra região brasileira são fatais não só de pronúncia como também de sintaxe. Em todos os países grandes se dá e até nos pequenos. Diferenças lexicais e sintáticas. Não estou escrevendo paulista, não. Tanto que fundo na minha linguagem brasileira de agora termos do norte e do sul (CMB, [1925] 1958, p. 86).

SD31 - E o que é pior sei que uma palavra brasileira empregada na escrita soa pra todos como exotismo, regionalismo porque só como regionalismo exótico foi empregada até agora (CCDA, [1925] 1982, p. 24). SD32 – Não estou fazendo regionalismo. Trata-se duma estilização culta da linguagem popular da roça, como da cidade, do passado e do presente (C- 71, p.72, apud GMA, p. 87). SD33 – Porque se trata de estilização culta e não fotografia do popular, meu caro. Agora, essa sistematização tem de ser fatalmente pessoal. Não pode ser de outra forma, pois estou começando uma coisa e não tirando uma gramática inteirinha de fatos documentados pela escrita culta e literária (CMB, [1925] 1958, p. 87).

Page 121: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

121

SD34 – Não são os regionalistas grifando os erros ditos pelos seus personagens que prepararão Dante, mas os que escrevem por si mesmos na língua vulgar, lembrando erros passíveis de serem legitimados (CMB, [1924] 1958, p. 33). SD35 – Se conseguir que se escreva brasileiro sem ser por isso caipira, mas sistematizando erros diários de conversação, idiotismos brasileiros e sobretudo psicologia brasileira, já cumpri o meu destino (C-MB, [1924] 1958, p. 54). SD36 – Bem que matutei e trabalhei para dar pro meu estilo novo normas que organizassem-o. Si cada um fizer também das observações pessoais e estudos pessoais a sua gramatiquinha muito que isso facilitará pra daqui a uns cincoenta anos se salientar normas gerais, não só da fala oral transitória e vaga porém da expressão literária impressa, isto é, da estilização erudita da linguagem oral. Essa estilização é que determina a cultura civilizada duma raça sob o ponto-de-vista expressivo. Linguístico (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 334) SD37 – Então repare que você está estadualizando, coisa que no meu modo de entender é simplesmente odioso. Odioso não porque ache odioso o bairrismo, acho pueril, odioso porque socialmente falando ele é perigoso e humanamente falando é inaceitável tanto prá época como pros ideais humanos mais legítimos (CAL, p. 56, apud GMA, 1990, p. 87). SD38 – Tenho horror das fronteiras de qualquer espécie, e não encontro em mim nenhum pudor patriótico que me faça amar mais, ou preferir um Brasileiro a um Hotentote ou Francês (CMB, p. 164, apud GMA, 1990, p. 87). SD39 – Nós temos o problema atual, nacional, moralizante, humano de abrasileirar o Brasil. (...) Nós só seremos universais o dia em que o coeficiente brasileiro nosso concorrer prá riqueza universal. Isso preguei senvergonhamente no meu Noturno de Belo Horizonte e vivo a dizer em quanta carta escrevo e conversa que converso (CSM, p. 301, apud GMA, 1990, p. 87).

Todas essas SDs evocam o embate entre os movimentos literários que

compartilhavam o campo das Letras na época em que o modernismo floresceu,

início do século XX. Para muitos escritores, abrasileirar a língua literária

significava ser regionalista, solução de que Mário de Andrade procurava se

afastar. Modernismo e regionalismo não eram vistos por ele como sinônimos,

principalmente porque o regionalismo, não raro, se aliava às culturas

tradicionais, conservadoras, ao mundo rural e à herança política colonial e o

modernismo tinha como referência o mundo urbano, cosmopolita, com suas

inovações culturais e tecnológicas e o regime republicano. A insistência com

Page 122: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

122

que negava o regionalismo pode ser entendida como uma forma de o

enunciador manter-se, ele mesmo, acautelado do perigo de cair na solução

fácil de interpretar ‘escrever brasileiro’ como ‘escrever nordestino’, ‘escrever

gaúcho’, “escrever paulista’, ‘escrever caipira’, como era comum na prática

literária que lhe era contemporânea. Mário não se desejava um escritor

regionalista, por isso negava essa tendência ético-estética veementemente.

O escritor se enfurecia quando lhe diziam que ele escrevia paulista,

como podemos observar neste trecho da SD30: “Você diz por exemplo que em

vez de escrever brasileiro estou escrevendo paulista. Injustiça grave. Me tenho

preocupado muito com não escrever paulista e é por isso que certos

italianismos pitorescos que eu empregava dantes por pândega, eu comecei

por retirar eles todos da minha escrita de agora”. Regionalismo, caipirismo,

estadualismo, paulistanismo, bairrismo, exotismo, fronteiras culturais e

linguísticas de qualquer espécie eram repelidas pela sua concepção do que

seria “abrasileirar a língua literária”. Aliás, até mesmo o nacionalismo patrioteiro

deixou de lhe ser caro. À medida que amadurecia, nacionalismo e

internacionalismo se tornavam inseparáveis, como bem ilustra a SD38: “Tenho

horror das fronteiras de qualquer espécie, e não encontro em mim nenhum

pudor patriótico que me faça amar mais, ou preferir um Brasileiro a um

Hotentote ou Francês”. Seu projeto de “abrasileirar o Brasil” era um projeto

artístico, linguístico, político e ético, que nos habilitaria, por chegarmos a

perfilar uma cara própria, a participar da cultura civilizada universal: “Nós só

seremos universais o dia em que o coeficiente brasileiro nosso concorrer prá

riqueza universal. Isso preguei senvergonhamente no meu Noturno de Belo

Horizonte e vivo a dizer em quanta carta escrevo e conversa que converso”

(SD39); “É a língua (referia-se a fala brasileira) que representa intelectualmente

o Brasil na comunhão universal” (SD19). Fronteiras regionais ou mesmo

nacionais lhe pareciam perigosas e inaceitáveis “tanto pra época como pros

ideais humanos mais legítimos” (SD37).

A redução do brasileirismo ao regionalismo era tão forte na conjuntura

em que Mário viveu e produziu que ele assim se queixava dos simulacros que

eram feitos da palavra brasileira quando empregada na escrita: “uma palavra

brasileira empregada na escrita soa pra todos como exotismo, regionalismo

porque só como regionalismo exótico foi empregada até agora” (SD31). Em

Page 123: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

123

vista desse viés interpretativo que resultava em traduções redutoras do projeto

linguístico modernista, Mário afirmava que se daria por satisfeito e consideraria

ter cumprido sua missão se conseguisse que se escrevesse brasileiro “sem ser

por isso caipira, mas sistematizando erros diários de conversação, idiotismos

brasileiros e sobretudo a psicologia brasileira”(SD35).

Enfaticamente o escritor afirmava que seu propósito era realizar uma

estilização culta da linguagem popular que ultrapassasse as fronteiras espaço-

temporais (regionalismo, caipirismo e tempo): “Não estou fazendo

regionalismo. Trata-se duma estilização culta da linguagem popular da roça,

como da cidade, do passado e do presente” (SD32); “se trata de estilização

culta e não fotografia do popular” (SD33). E uma vez mais o enunciador lança

mão de uma negação polifônica para se desidentificar daqueles que entendem

escrever brasileiro como escrever regional ou escrever caipira, ou melhor, para

se desidentificar daqueles que confundem escrever brasileiro com colocar

regionalismos na boca das personagens, enquanto, no papel de narradores,

continuam a escrever seguindo as normas portuguesas. O enunciador

desacredita dos que assim se portam, evocando o exemplo de Dante na

constituição da língua italiana, a partir do latim vulgar: “não são os regionalistas

grifando os erros ditos pelos seus personagens que prepararão Dante, mas os

que escrevem por si mesmos na língua vulgar, lembrando erros passíveis de

serem legitimados” (SD34). O uso do adversativo “mas” separa aqueles que

fazem o que propõe Mário de Andrade e os que só usam os regionalismos na

caracterização de seus personagens, sem efetivamente assumi-las na voz de

narradores.

Mário reconhecia que a tarefa de organizar e sistematizar a fala

brasileira culta, por um lado, não poderia ser feita por uma única pessoa, mas,

por outro, ele também reconhecia que ela tinha de começar de esforços

individuais, como o empreendido por ele: “essa sistematização tem de ser

fatalmente pessoal. Não pode ser de outra forma, pois estou começando uma

coisa e não tirando uma gramática inteirinha de fatos documentados pela

escrita culta e literária” (SD33), considerando o experimentalismo que timbrava

seu fazer literário. Nessa empreitada hercúlea de estilização culta da fala

brasileira, a partir de observações empíricas realizadas pelos escritores

individualmente, Mário convocava todos a esboçar a sua própria

Page 124: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

124

gramatiquinha, como ele mesmo fazia, para conjurar os perigos da desordem

que ameaçava aqueles que decidiam escrever brasileiro, emancipando-se das

normas portuguesas. Da soma desses esforços individuais, poderiam resultar,

em meio século, “normas gerais, não só da fala oral transitória e vaga porém

da expressão literária impressa, isto é, da estilização erudita da linguagem oral.

Essa estilização é que determina a cultura civilizada duma raça sob o ponto-de-

vista expressivo. Linguístico”(SD36). A relação entre os projetos individuais e o

projeto coletivo de dotar a língua literária de normas linguísticas mais

adequadas à expressão da alma brasileira é assim explicitada por Mário numa

carta endereçada a Carlos Drummond: “os escrevedores estilizam esse novo

vulgar, descobrem-lhe as leis embrionárias e a língua literária, única que tem

reconhecimento universal (aqui sinônimo de culto) aparece” (trecho citado por

MUSSALIM, 2003, p. 197).

Conforme Mussalim (2006, p. 275), tal como na proposta estético-

musical, “o elemento popular e o elemento culto [...] são matéria-prima para a

constituição de uma fala genuinamente brasileira, produto de um trabalho de

estilização do artista-escritor”. Se, por um lado, o projeto estético nacionalista

dos primeiros modernistas encorajava “o resgate da cultura popular, tomada

como raiz de uma tradição eminentemente brasileira” (MUSSALIM, 2006, p.

272), por outro, ele almejava a “transposição erudita da barbárie”. Na leitura de

Mussalim (2006), a fórmula para transformar a barbárie em erudição passava

pelo filtro da subjetividade do artista:

Inicialmente o artista deixa-se amalgamar pelos temas e ambientes populares de seu país; num segundo momento, tendo passado por escolas, coloca a técnica que domina (oriunda da tradição europeia) a serviço de seu sentimento pessoal, do que decorreria uma arte nacional. Em outras palavras, é por meio do filtro da subjetividade do artista que uma certa tradição europeia é incorporada como recurso técnico para a produção de uma arte nacional. Busca-se, assim, romper com o sentimento de subserviência à cultura europeia; a técnica oriunda da tradição europeia passa a ser um instrumento em prol da construção de uma arte nacional e não um fim em si. (MUSSALIM, 2006, p. 273).

A autora explica, ainda, que o modernismo brasileiro focalizou o trabalho

entre a “produção de arte no Brasil e a ligação (via tradição universal e

vanguardas modernas) com a produção europeia, lutando para superar o

Page 125: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

125

estado de reverência absoluta a essa cultura, mantido até então pelos

acadêmicos” (MUSSALIM, 2006, p. 273). Portanto, nessa época, o Brasil

manteve com a Europa uma relação dinâmica e contra-aculturativa e não de

subserviência. A tradição europeia era apropriada como meio para a produção

da arte nacional, fornecia-lhe a técnica; mas não mais lhe roubava a cena.

Em relação ao processo de construção de uma identidade linguística

brasileira, o princípio de “transposição erudita da barbárie” significava superar a

desordem que havia tomado conta da escrita literária, uma vez que, na

ausência de normas gerais, cada escritor apresentava a sua própria solução.

Sobre essa desordem, Mário chegou a afirmar que, efetivamente, o que os

escritores faziam era “ignorar” e não “superar” as normas portuguesas. Dizia

ele que, em relação às normas da língua culta e escrita, os escritores se

encontravam em “situação inferior à de cem anos atrás” (ANDRADE, 1942, p.

235).

Nas SDs de 40 a 44, a seguir, mais alguns postulados que viriam a se

revelar centrais no universo da sociolinguística são antevistos por Mário: a

postura descritiva diante das normas, a precedência do uso da língua sobre a

formalização gramatical e a substituição do princípio de correção pelo de

adequação.

SD40 – O governo podia determinar um grupo de batutas que elaborasse uma gramática mais larga, pra uso das escolas. Está claro que não uma gramática de tentativas que nem as da língua minha, porém tomando em conta fenômenos já universalizados, os pronomes por exemplo (C-71, p. 27, apud GMA, 1990, p. 86). SD41 – Não falar nem uma vez em regras. Nem tão pouco em normas si possível. Falar só em “Constâncias” (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 336). SD42 – Jamais me preocuparam erros de gramática, mas me preocupam “erros” de linguagem que fragilizam a expressão (EGFB-GMA , [1928] 1990, p. 91). SD43 - A linguagem está muito gostosa. Você já refletiu sobre a sintaxe: “as fisionomias se lhe embaralharam na memória”? Repare como está ficando desagradável, pernóstica, lusitana e só encontrável em linguagem pretensiosa. Tem muito jeito de dizer isso evitando o “se lhe” que não é da índole brasileira normal. Até você pode cortar, se livrando da gramática, o “lhe” sem que o sentido e o ritmo expressivo se prejudiquem. Fica prejudicada apenas a gramática, mas não esqueça nunca que a língua é que faz a

Page 126: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

126

gramática e não a gramática que faz a língua (CFS, [1942] 1993, p.41). SD44 – A gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que meu inconsciente não sabe de gramáticas, nem de línguas organizadas (PI-PD-PC, [1922] 1993, p. 73).

Nesse grupo de enunciados, buscamos observar como Mário de

Andrade concebe o processo de gramatização da fala brasileira. Na SD40,

avalia que esse processo não pode se reduzir às tentativas isoladas de

escritores que, como ele, buscam, às cegas, uma certa sistematização da fala

popular, mas deve ser atribuído a “um grupo de batutas”, quer dizer, a um

grupo de experts, de pessoas entendidas no assunto. Para ultrapassar o

estágio das gramatiquinhas individuais, era preciso o concurso de estudiosos

de língua, como os filólogos, por exemplo. Tanto na SD40 quanto na SD41,

vemos Mário se pronunciando sobre esse processo de gramatização da fala

brasileira por um viés essencialmente descritivo e não prescritivo, o que

envolveria um extenso trabalho de pesquisa etnográfica. Na elaboração dessa

gramática mais ampla, que poderia até ser usada na escola, era preciso levar

“em conta fenômenos já universalizados, os pronomes por exemplo” (SD40),

era precisar levantar as regularidades da fala brasileira.

Fiel à sua intuição de pesquisador empírico, o enunciador recomendava

a si próprio nas notas destinadas à sua Gramatiquinha: “Não falar nem uma

vez em regras. Nem tão pouco em normas si possível. Falar só em

‘constâncias’” (SD41). O termo “constâncias” refere-se à regularidade de

determinado fenômeno linguístico na fala dos brasileiros, denotando seu

afastamento em relação ao princípio normativo e reforçando sua postura de

pesquisador empírico. O uso de marcas como não/nem uma vez e de nem tão

pouco, negando os princípios que regem a gramática no escopo do discurso

conservador, patenteia a relação interdiscursiva enredada nessa SD e o faz

sob a forma da heterogeneidade mostrada.

No idioma da sociolinguística, o termo “norma” passa a empregado em

duas acepções. Na primeira acepção, a “norma” designa a modalidade

linguística "habitual", "comum" a uma dada comunidade social. Sob esse viés

interpretativo, a norma se estabelece pela frequência de uso, sem implicar

qualquer valoração, definindo-se como regularidades linguísticas correlativas a

Page 127: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

127

estratos sociais, a momentos históricos, a diversidades regionais e a graus de

formalidade. Nesse sentido, a norma seria a língua usual, da "média dos

falares", da situação objetiva atestada estatisticamente. Nessa perspectiva, não

se pode falar em “norma”, no singular, mas em “normas”, no plural. É inegável

que o termo “constâncias” que Mário se propõe nos esboços da Gramatiquinha

guarda muita semelhança com o termo “norma”, nessa acepção. Contudo, se

ele o evita é porque, na sua época o termo “norma” era empregado apenas na

segunda acepção, como uso regrado, como modalidade supostamente

"sabida" por alguns poucos falantes, como padrão linguístico a ser seguido,

enfim, como prescrição.

Na SD42, Mário de Andrade continua, por meio da negação polifônica,

corporificada no advérbio de negação jamais, a se afastar dos princípios

gramaticais, desta feita enunciando que “erros de gramática” absolutamente

não o preocupam, mas “erros de linguagem”, sim, pois eles “fragilizam a

expressão”. O que a gramática taxa como erro não necessariamente consiste

em erro de linguagem, e o que é avaliado como certo (aceitável) na linguagem

usada naturalmente pode ser considerado errado sob o ponto de vista

gramatical. Como já consideramos na análise da SD27, realizada

anteriormente, essa distinção entre “erro de gramática” e “erro de linguagem”

prenuncia a distinção entre “correção” e “adequação”, que seria, incontáveis

vezes, discutida pela sociolinguística a partir da década de 1960.

Essa distinção encontra-se ilustrada na observação feita na SD43, em

carta endereçada a Fernando Sabino, a propósito da frase “as fisionomias se

lhe embaralharam na memória”: “Repare como está ficando desagradável,

pernóstica, lusitana e só encontrável em linguagem pretensiosa. Tem muito

jeito de dizer isso evitando o “se lhe” que não é da índole brasileira normal. Até

você pode cortar, se livrando da gramática, o “lhe” sem que o sentido e o ritmo

expressivo se prejudiquem”. Usar o “se lhe”, apesar de acerto gramatical, seria

erro de linguagem, uma vez que estaria em desacordo com “a índole

brasileira”. O “se lhe” soaria inadequado, afetado, pernóstico, pretensioso, na

pena de um escrevinhador brasileiro. Segundo Mário, o corte do “se lhe”

poderia ser considerado um erro de gramática, mas em benefício da

expressão. Então, o missivista arremata seu pensamento, recomendando

enfaticamente a seu destinatário que “não esqueça nunca que a língua é que

Page 128: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

128

faz a gramática e não a gramática que faz a língua” (SD43). A dupla negação

não/nunca cumpre a função de lembrar algo praticamente esquecido pelo

pensamento toldado pelo discurso gramatical que nos fazia crer que era a

gramática que nos ensinava a falar e não o inverso. Nesse sentido, a SD44 –

“A gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que meu

inconsciente não sabe de gramáticas, nem de línguas organizadas” (SD44) –

soa profundamente afinada com o pensamento linguístico, ao distinguir

“competência linguística” de “gramática” como conjunto de regras prescritivas.

A competência linguística seria uma espécie de gramática internalizada de que

o falante se serve automática e inconscientemente ao usar uma língua. Por

tudo que foi dito na seção 3.5, somos levados a pensar em Mário de Andrade

como um (socio)linguista temporão. Certamente, ele teria ido muito mais longe

se tivesse encontrado mais parceiros para suas expedições etnográficas.

Neste capítulo, nos embrenhamos no enredo discursivo em que Mário

de Andrade se envolveu no afã de perfilar uma identidade linguística brasileira,

emancipada do modelo lusitano, mas não refém do regionalismo que lhe era

contemporâneo. No horizonte vislumbrado por Mário, o nacionalismo emergia

como significativo, se, e apenas se, integrado ao humanismo que regia seu

desejo de projetar o Brasil no concerto da cultura civilizada universal. No

próximo capítulo, vamos nos dedicar ao estudo do ethos do enunciador, ao

entrar na polêmica linguística que, desde o século XIX, não sai da cena das

Letras brasileiras.

Page 129: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

129

Na elaboração do ethos interagem fenômenos de ordens muito

diversas: os índices sobre os quais se apoia o intérprete vão desde a

escolha do registro da língua e das palavras até o planejamento

textual, passando pelo ritmo e modulação... O ethos se elabora,

assim, por meio de uma percepção complexa, mobilizadora da

afetividade do intérprete, que tira suas informações do material

linguístico e do ambiente. (MAINGUENEAU, 2011, p. 16)

Page 130: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

130

Capítulo 4

O ETHOS DE MÁRIO DE ANDRADE NA ENUNCIAÇÃO ACERCA DA

IDENTIDADE LINGUÍSTICA BRASILEIRA

Neste capítulo, realizamos uma retomada da noção de ethos, tal como

concebida por Maingueneau (1989, 1997, 2005a, 2005b, 2008a, 2008b, 2010,

2011) e Amossy (2008). Revisitamos o diálogo de Maingueneau com

Aristóteles, Barthes, Ducrot e outros autores acerca do tema. Além disso,

sublinhamos as mudanças promovidas pelo estudioso francês ao deslocar a

noção da retórica para a análise de discurso. Em seguida, analisamos um

conjunto de sequências discursivas recortadas de textos de Mário de Andrade,

focalizando o ethos do enunciador, ao defender o abrasileiramento da língua e

da literatura no alvorecer do século XX.

4.1 Da noção de ethos

Os atuais estudos desenvolvidos por Maingueneau acerca da noção de

ethos retomam a retórica aristotélica. Segundo Aristóteles, o discurso comporta

três elementos: o orador, o assunto de que se fala e o ouvinte, ao qual é

direcionado o discurso. A esses elementos correspondem três tipos de provas

argumentativas – o logos, o pathos e o ethos – usadas pelo enunciador para

persuadir-convencer seu auditório: o logos refere-se à mobilização do auditório

por argumentos racionais; o pathos diz respeito à prática de comover o

auditório pelas paixões nele suscitadas pelo discurso e o ethos mobiliza o

auditório pelo caráter/conduta do orador.

Embora essas três partes sejam complementares, Aristóteles afirma que “o

ethos constitui praticamente a mais importante” (ARISTÓTELES, apud EGGS,

2008, p. 29), posição que o distancia de seus contemporâneos, que

subestimam a força do ethos na persuasão. Ademais, o ethos é visto como um

Page 131: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

131

efeito construído na própria enunciação e não como um traço de caráter prévio

a ela. Segundo Aristóteles:

Persuade-se pelo caráter quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de fé. Pois acreditamos mais e bem mais depressa em pessoas honestas, em todas as coisas em geral, mas sobretudo nas de que não há conhecimento exato e que deixam margem para dúvida. É, porém, necessário que esta confiança seja resultado do discurso e não uma opinião prévia sobre o caráter do orador; pois não se deve considerar sem importância para a persuasão a probidade do que fala, como aliás alguns autores desta arte propõe, mas quase se poderia dizer que o caráter é o principal meio de persuasão (ARISTÓTELES I, 2005, p. 96).

Desse modo, para Aristóteles a persuasão ocorre quando o orador

mostra a verdade ou o que parece ser a verdade “a partir do que é

persuasivo em cada caso particular” (LIVRO I, 2005, p.97). O filósofo

enumera três qualidades fundamentais para que o orador construa uma

imagem positiva de si mesmo e obtenha a credibilidade do seu auditório por

meio do ethos produzido no discurso. São elas: a prudência, a virtude e a

benevolência, assim consideradas pelo autor:

Quando os oradores recorrem à mentira nas coisas que dizem ou sobre aquelas que dão conselhos, fazem-no por todas essas causas ou por algumas delas. Ou é por falta de prudência que emitem opiniões erradas ou então, embora dando uma opinião correta, não dizem o que pensam por malícia; ou sendo prudentes e honestos não são benevolentes; por isso, é admissível que, embora sabendo eles o que é melhor, não o aconselham. Para além destas, não há nenhuma outra causa. (ARISTÓTELES, 2005, II, p. 160).

Tais qualidades capacitam o orador a persuadir sem a necessidade de

fazer demonstrações, o que mostra a importância do ethos sobre o logos.

Maingueneau (2011) é incisivo na ideia de que o ethos é constituído durante a

enunciação. Além de recorrer a Aristóteles, recorre também a Barthes para

corroborar esse seu posicionamento. De acordo com Barthes (1970, p. 212), o

ethos envolve “traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco

importa sua sinceridade) para dar uma boa impressão. [...] O orador enuncia

uma informação e, ao mesmo tempo, diz: eu sou isto aqui, não aquilo lá”.

Page 132: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

132

Além de Aristóteles e Barthes, Maingueneau (2011, p. 13) dialoga

também com Ducrot, cuja conceituação de ethos parte da distinção entre

“locutor-L” [=o locutor apreendido como enunciador] e “locutor-lambda” [=o

locutor apreendido como ser do mundo], que, por sua vez, corresponde à

distinção entre mostrar e dizer. No quadro da teoria polifônica proposta por

Ducrot, o ethos associa-se ao locutor-L, uma vez que não é dito,

necessariamente, no enunciado, mas é mostrado durante o ato de enunciação.

Nessa perspectiva, o ethos não se confunde com os atributos reais do locutor.

Nas palavras do autor,

Não se trata de afirmações que o autor pode fazer a respeito de sua pessoa no conteúdo do seu discurso – afirmações que, ao contrário, correm o risco de chocar o auditório –, mas da aparência que lhe conferem a cadência, a entonação, calorosa ou severa, a escolha de palavras, dos argumentos... (DUCROT, 1984, p. 201).

Essa visão de ethos é também abonada por Amossy (2008), que afirma

ser o ethos inalienável da enunciação, já que a tomada da palavra,

independentemente de intencionalidade, sempre forja uma imagem do

enunciador:

Todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si. Para tanto, não é necessário que o locutor faça seu autorretrato, detalhe suas qualidades nem mesmo fale explicitamente de si. Seu estilo, suas competências linguísticas e enciclopédicas, suas crenças implícitas são suficientes para construir uma representação de sua pessoa (AMOSSY, 2008, p.9).

Segundo a autora, ninguém pode ignorar a força da imagem do locutor

na consecução do projeto enunciativo, sob pena de ele fracassar. Como

exemplo, ela cita: as entrevistas para selecionar um candidato a um cargo,

os comícios eleitorais, as relações de sedução e “todas as declarações em

que a imagem do locutor implica riscos concretos” (AMOSSY, 2008, p.9).

Buscando destrinçar a noção de ethos, de modo a torná-la

metodologicamente operacional no quadro da análise de discurso,

Maingueneau (2011) observa que ela pode envolver, além de traços

linguísticos, elementos como: tom da voz, ritmo da fala, mímicas, trajes,

Page 133: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

133

postura, gestualidade, enfim, “todos os signos, de elocução e de oratória,

indumentários ou simbólicos, pelos quais o orador dá de si mesmo uma

imagem psicológica e sociológica” (DECLERCQ, 1992, p. 48, apud

MAINGUENEAU, 2011, p.14).

Maingueneau (2008a) encontra-se às voltas com a ressignificação do

termo ethos no escopo da análise de discurso, desde o início da década de

1980. Nesse novo quadro disciplinar, o ethos é concebido como a maneira de

dizer vinculada à figura do enunciador, que é o “fiador” de seu discurso, e que

deverá, por meio de sua fala, construir uma imagem de si compatível com os

mundos criados pelos enunciados. O autor insiste, pois, que “as ‘ideias’

apresentam-se por uma maneira de dizer que remete a uma maneira de ser”

(MAINGUENEAU, 2008a, p. 73).

Se, na retórica aristotélica, em sintonia com o contexto discursivo da

Grécia antiga, o ethos vinculava-se “à eloquência, à oralidade em situação de

fala pública (assembléia, tribunal...)”, no universo da análise de discurso, foi

preciso ampliar seu alcance, para abarcar todos os tipos de texto, sejam eles

orais, escritos ou mesmo multimodais, a exemplo dos textos da publicidade.

Afinal qualquer texto, independentemente de sua materialidade linguageira,

apresenta “uma ‘vocalidade’ que pode se manifestar numa multiplicidade de

‘tons’”, que se associam ao “corpo do enunciador (e, bem entendido, não do

corpo do locutor extradiscursivo), a um ‘fiador’, construído pelo destinatário a

partir de índices liberados na enunciação” (MAINGUENEAU, 2011, p. 17-18).

O autor afirma preferir o termo “tom” ao termo “voz”, já que “tom” lhe

parece mais adequado para designar tanto o escrito quanto o oral

(MAINGUENEAU, 2011, p.18). Argumenta, ainda, que sua concepção de ethos

é mais “encarnada”, tendo em vista que “recobre não somente a dimensão

verbal, mas também o conjunto de determinações físicas e psíquicas

associadas ao ‘fiador’ pelas representações coletivas”. Dessa forma, é

atribuída ao fiador um “caráter” e uma “corporalidade”. Ele explica que “o

‘caráter’ corresponde a um feixe de traços psicológicos”. E a “corporalidade”

está associada a uma compleição física e a uma maneira de vestir-se”

(MAINGUENEAU, 2011, p.18). Assim, o ethos pode ser visto como uma

espécie de comportamento que, articulando traços verbais e não verbais,

produz no destinatário efeitos que não decorrem apenas de palavras, que não

Page 134: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

134

são ditos explicitamente. Ele alude a uma forma de mover-se no espaço social,

identificada a certos comportamentos estereotípicos compartilhados pelo

enunciador e seus coenunciadores. A enunciação, por sua vez, contribui para

reforçar ou transformar tais estereótipos.

Com relação à incorporação do leitor ao ethos produzido pelo

enunciador, o autor argumenta que “ela implica um ‘mundo ético’ do qual ele é

parte pregnante e ao qual ele dá acesso” (2011, p.18). Esse “mundo ético” é

ativado pela leitura e retoma um certo número de “situações estereotípicas

associadas a comportamentos” (MAINGUENEAU, 2011, p. 18).

Assim, ao observar o comportamento do enunciador, o destinatário

avalia e apoia-se em um conjunto de traços sociais presentes no discurso do

enunciador, ao se colocar a respeito de alguma questão. Isso contribui para a

avaliação do leitor/ouvinte de forma positiva ou negativa, o que depende de

seus costumes e da sociedade da qual fazem parte o fiador e o interlocutor.

Desse modo, ao identificar traços de um determinado “mundo ético”

incorporado no orador, o interlocutor pode aderir à postura pertencente àquela

comunidade imaginária ou não. Nessa perspectiva, entende-se que mundo

ético implica o compartilhamento de algumas posturas sócio-ideológicas por

determinado grupo estável e reconhecido por uma sociedade. Assim, um grupo

pertencente a um determinado mundo ético objetiva conquistar a adesão de

uma comunidade imaginária. Esta é representada por outros indivíduos, que

possivelmente compartilharão das mesmas ideias defendidas por esse grupo já

existente.

Entre os exemplos de mundos éticos, são citados em Maingueneau

(2011, p. 18): o mundo ético dos executivos dinâmicos, o dos ricos emergentes,

o das celebridades, etc., os quais constituem referências fartamente exploradas

pela publicidade contemporânea. Com base nisso, ressaltamos que o mundo

ético contemplado por nosso estudo refere-se ao dos intelectuais/escritores

modernistas, do qual Mário de Andrade foi um representante notável. Entre os

traços marcantes do comportamento associado aos integrantes desse grupo

estão o de buscar as propostas para a revolução artística, por meio da

emancipação brasileira não só no aspecto político, mas abrangendo,

principalmente, os campos linguístico, literário, artístico e cultural.

Page 135: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

135

Maingueneau (2011, p. 18) disseca o processo de ‘incorporação’,

entendido como a forma pela qual o intérprete (ouvinte, leitor, telespectador) se

apropria do ethos, por meio de três registros: a) “a enunciação da obra confere

uma ‘corporalidade’ ao fiador, ela lhe dá corpo”; b). “o destinatário incorpora,

assimila um conjunto de esquemas que correspondem a uma maneira

específica de se remeter ao mundo habitando seu próprio corpo”; c) as duas

primeiras incorporações levam “a constituição de um corpo, da comunidade

imaginária dos que aderem ao mesmo discurso”.

Ademais, o autor esclarece que, na perspectiva da análise de discurso,

na qual se inscreve, o ethos não pode ser visto apenas como “um meio de

persuasão: ele é parte pregnante da cena da enunciação” (MAINGUENEAU,

2008b, p. 69). Para ele,

Não de trata de uma representação estática e bem delimitada, mas, antes, de uma forma dinâmica, construída pelo destinatário através do movimento da própria fala do locutor. O ethos não age no primeiro plano do discurso, mas de maneira lateral; ele implica uma experiência sensível do discurso, mobiliza a afetividade do destinatário” (MAINGUENEAU, 2011, p.14).

Maingueneau afirma que a noção de ethos não é tão simples como pode

parecer à primeira vista, pois ela envolve múltiplas dimensões. Em primeiro

lugar, ele propõe uma distinção entre dois tipos de ethos: ethos pré-discursivo

e ethos discursivo. Com relação ao ethos pré-discursivo, o autor esclarece sua

importância, ao justificar que “o ethos está crucialmente ligado ao ato de

enunciação, não se pode ignorar que o público constrói também

representações do ethos do enunciador antes mesmo que ele fale”

(MAINGUENEAU, 2011, p.15). Quanto ao ethos discursivo, este é construído

durante todo ato de enunciação do fiador do discurso. Dessa forma, o ethos se

patenteia como

[...] uma noção discursiva, ele se constitui por meio do discurso, não é uma ‘imagem’ do locutor exterior à fala; o ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro; o ethos é uma noção fundamentalmente híbrida (sociodiscursiva), um comportamento socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação (MAINGUENEAU, 2008b, p.63).

Page 136: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

136

De um lado, há situações em que o destinatário se vê impossibilitado de

ativar representações prévias do ethos do enunciador, a exemplo do que

ocorre quando lemos um texto cujo autor desconhecemos por completo. De

outro lado, há situações em que representações prévias são fortemente

acionadas, como é o caso da imprensa “de celebridades”, onde a maior parte

dos personagens é exposta constantemente pela mídia, contribuindo para que

o destinatário de seu discurso possa mobilizar informações anteriores e

exteriores à enunciação e comparar o ethos pré-discursivo e o ethos

discursivo. Outro aspecto que não pode ser deixado de lado nessa oposição é

o gênero de discurso em que se encaixa a enunciação, pois mesmo que o

destinatário não tenha nenhuma informação antecipada do locutor, “o simples

fato de um texto pertencer a um gênero de discurso ou a certo posicionamento

ideológico induz expectativas em matéria de ethos” (MAINGUENEAU, 2008b,

p. 60). Em razão disso, o autor sugere que a distinção entre ethos pré-

discursivo e ethos discursivo leve em conta a diversidade dos gêneros de

discurso.

Explorando a noção de ethos, Maingueneau levanta outra série de

questões relativas à suposição de que ele é um efeito do discurso (verbal),

suposição a seu ver insustentável quando se consideram textos

multissemióticos e também a interação face a face, pois torna-se difícil decidir

se o ethos construído pelo destinatário se deve somente às palavras do

enunciador ou se é complexamente motivado. Na sua opinião, constitui uma

questão delicada

Saber se se deve relacionar o ethos ao material propriamente verbal, atribuir poder às palavras, ou se se devem integrar a ele – e em quais proporções – elementos como as roupas do locutor, seus gestos, ou seja, o conjunto do quadro de comunicação (MAINGUENEAU, 2011, p. 16).

Segundo o autor, não é possível considerar o ethos de maneira igual em

qualquer texto, pois a “incorporação” não funciona de maneira uniforme; ela é

modulada em função dos gêneros e dos tipos de discurso. Assim, “o ethos em

um texto escrito não implica necessariamente uma relação direta com um

Page 137: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

137

fiador encarnado, socialmente determinável” (MAINGUENEAU, 2008b, p.66),

diferentemente do que ocorre, por exemplo, quando se trata de um texto

publicitário multissemiótico em circulação na TV aberta.

Nesse mesmo grupo de dificuldades em torno da noção de ethos,

Maingueneau esclarece que pode haver desencontro entre o ethos visado e o

ethos produzido. Uma imagem pretendida pode ser relacionada “a coisas

muito diferentes, conforme seja considerada do ponto de vista do locutor ou do

destinatário” (2011, p. 16), como ilustram os exemplos a seguir:

Um professor que queira passar uma imagem de sério pode ser percebido como monótono; um político que queira suscitar a imagem de um indivíduo aberto e simpático pode ser percebido como um demagogo. Os fracassos em matéria de ethos são moeda corrente (MAINGUENEAU, 2011, p.16).

Dessa forma, um locutor aciona no intérprete a construção de uma

representação, incorrendo, inevitavelmente, no risco de não dominar sua

própria fala a ponto de perfilar a imagem de si, que deseja que o outro faça

dele. Marqueteiros que trabalham com campanhas publicitárias de candidatos

a cargos políticos (presidente, governador e prefeito) conhecem, como

ninguém, os desencontros entre o ethos visado e ethos efetivamente

produzido.

Outra distinção proposta pelo pesquisador francês diz respeito à

oposição entre ethos dito e ethos mostrado. Conforme definição do autor, o

ethos dito

[...] vai além da referência direta do enunciador a sua própria pessoa ou a sua própria maneira de enunciar (‘eu sou um homem simples’, ‘eu lhes falo como amigo’ etc); existe de fato grande diversidade de meios para evocar indiretamente, para sugerir o ethos do enunciador” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 80).

No ethos mostrado, “o enunciador é percebido através de um ‘tom’ que

implica certa determinação de seu próprio corpo, à medida do mundo que ele

instaura em seu discurso” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 53). Porém, essa

distinção, segundo o pesquisador, “se inscreve nos extremos de uma linha

contínua, uma vez que é impossível definir uma fronteira nítida entre o ‘dito’

Page 138: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

138

sugerido e o puramente mostrado pela enunciação” (MAINGUENEAU, 2011, p.

18).

Assim, o ethos efetivo do discurso resulta de uma interação entre

diversos fatores: ethos pré-discursivo, ethos discursivo, que pode ser mostrado

ou dito (este pode ser de forma direta ou indireta por meio de metáforas ou

alusões). Essa interação é explicitada no esquema vetorial a seguir:

(MAINGUENEAU, 2011, p.19)

Além dos traços constitutivos do ethos comentados até aqui,

Maingueneau também explora sua articulação com as cenas da enunciação:

“Por meio do ethos, o destinatário está, de fato, convocado a um lugar, inscrito

na cena de enunciação que o texto implica” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 70).

Dá-se, portanto, uma necessária inscrição do corpo enunciante numa situação

que a cena de enunciação pressupõe e legitima.

A cena da enunciação constitui-se de uma tríade que compreende: a

“cena englobante”, a “cena genérica” e a “cenografia” (MAINGUENEAU, 2008b,

p. 70). Dentre as três, apenas as duas primeiras estão necessariamente

presentes em uma situação discursiva, sendo a última dependente da

finalidade de cada gênero discursivo.

A “cena englobante” “corresponde ao tipo de discurso, ao seu estatuto

pragmático” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 115), definindo, sobremaneira, o

modo de o texto interpelar o leitor. Quem vive numa formação sócio-histórica

como a nossa, se receber um folheto na rua, é capaz de remetê-lo ao discurso

religioso, político, publicitário, jornalístico, literário ou qualquer outro tipo. Por

Page 139: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

139

exemplo, como leitores de um folheto de teor publicitário, somos interpelados

como consumidores possíveis.

A cena englobante é demasiadamente geral para dar conta de

especificar as atividades discursivas em que enunciador e co-enunciador

encontram-se engajados. “Vemo-nos confrontados com gêneros de discurso

particulares, com rituais sociolinguageiros que definem várias cenas genéricas”

(MAINGUENEAU, 2008b, p. 116). A cena genérica implica um contexto

específico que estabelece os papéis dos participantes, o modo de inscrição no

espaço e no tempo, o suporte material, a finalidade etc. No caso de um folheto

publicitário, um gênero textual específico, concretizado por meio de um suporte

textual (impresso) também específico, temos o produtor (o enunciador) de

determinadas mercadorias ou serviços tentando persuadir uma classe

determinada de consumidores (o co-enunciador) a adquirir tais produtos.

Os espaços da cena englobante e da cena genérica são relativamente

estáveis e, na maioria das vezes, apenas eles definem a cena da enunciação.

Contudo, pode intervir uma cena bastante específica e imprevisível – a

cenografia – “que não é imposta pelo tipo ou pelo gênero do discurso, mas é

instituída pelo próprio discurso” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 116). Ainda

segundo o autor, “a escolha da cenografia não é indiferente: o discurso,

desenvolvendo-se a partir de sua cenografia, pretende convencer instituindo a

cena de enunciação que o legitima” (2008b, p. 117). A isso Maingueneau

(2001, p. 87) chama de “enlaçamento paradoxal”, ou seja, a enunciação supõe

uma certa cena que, efetivamente, só se constitui e legitima à medida que ela

própria vai se desenrolando.

Além disso, uma cenografia pode incluir uma cena validada, que se

caracteriza por apresentar aspectos que foram fixados na memória coletiva,

que evocam determinados modos de ser e estar ligados às atividades sociais.

Uma cena validada funciona “como um estereótipo autonomizado,

descontextualizado, disponível para reinvestimento em outros textos”

(MAINGUENEAU, 2005b, p. 92).

Segundo Maingueneau (2008b, p.117), numa cenografia se associam

“uma figura de enunciador e uma figura correlata de coenunciadores” que, por

sua vez, “supõem igualmente uma cronografia (um momento) e uma topografia

(um lugar), das quais pretende originar-se o discurso”. Segundo Possenti

Page 140: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

140

(2008, p. 205) “a cronografia e a topografia não são tempos cronológicos nem

espaços geográficos, mas ‘tempos’ e ‘espaços’ ideológicos, históricos: a favela,

a cidade, a civilização, a globalização”.

Dessa forma, “o discurso impõe sua cenografia de algum modo desde o

início; mas, de outro lado, é por intermédio de sua própria enunciação que ele

poderá legitimar a cenografia que ele impõe”. Porém, para isso, é necessário

que o discurso faça seus intérpretes “aceitarem o lugar que ele pretende lhes

designar nessa cenografia e, de modo mais amplo, no universo de sentido do

qual ela participa” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 117). Em vista disso, o autor

postula que o ethos é inalienável da cenografia, uma vez que ele constitui o

enunciador para que ele possa “legitimamente” interpelar o co-enunciador de

seu discurso.

Para que a cenografia desempenhe plenamente seu papel, não deve ser

considerada como uma simples moldura, ou como um palco definido antes e

fora da enunciação, mas, a um só tempo, como origem e produto do discurso.

À medida que o co-enunciador (leitor, ouvinte, expectador) avança no texto, ele

precisa se convencer de que aquela cenografia, e não outra, é a ideal para

aquele discurso.

Com relação à relevância da cenografia de acordo com cada gênero

discursivo, o autor visualiza duas situações polarizadas: de um lado, estão os

gêneros que se limitam ao cumprimento de sua cena genérica, como, por

exemplo, a correspondência administrativa que se desenvolve em cenas

bastante fixas, dificilmente se afastando do modelo pré-estabelecido; de outro

lado, estão os gêneros que sempre exigem a escolha de uma cenografia, como

é o caso da publicidade, da poesia, do romance, da piada etc. Conforme

Maingueneau, essa variação liga-se à finalidade dos gêneros de discurso. A

lista telefônica, por exemplo, é um gênero que prescinde de uma cenografia,

tendo em vista sua função puramente utilitária. Já um panfleto publicitário ou

político mobiliza cenografias variadas com o objetivo de persuadir seu co-

enunciador, captando seu imaginário e lhe atribuindo uma identidade por meio

de uma cena de fala validada que seja reconhecida e com a qual se identifique.

Por fim, retomamos a síntese que elegemos como caracterizadora da

base conceitual do autor, a de que o ethos é construído por uma relação entre

uma “maneira de dizer, que se remete a uma maneira de ser” e isso leva o co-

Page 141: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

141

enunciador a criar uma imagem do enunciador durante sua enunciação. Essa

imagem é constituída pelo “tom” do discurso, articulado a um caráter e a uma

corporalidade, e, tudo isso, associado à cena de enunciação. Sem

necessariamente ter de ser dito explicitamente, o ethos é percebido pelo

destinatário por um conjunto complexo de elementos que vão desde “a escolha

do registro da língua e das palavras até o planejamento textual, passando pelo

ritmo e a modulação” (MAINGUENEAU, 2011, p. 16).

4.2 Do ethos pré-discursivo ao discursivo em Mário de Andrade

No primeiro capítulo, revisitando a trajetória intelectual de Mário de

Andrade, vimos que ele participou da vanguarda do movimento modernista no

Brasil, entre as décadas de 1920 e 1940. Por estar no front do movimento,

deflagrado oficialmente pela Semana de Arte Moderna, tornou-se uma figura

pública associada à imagem de destruidor, revoltado, insurreto, de alguém que

fazia parte da “turma do barulho” (os moços paulistas) que, na fase de irrupção

do modernismo, se comprazia em causar impacto vociferando suas ideias

diante de plateias desavisadas que reagiam por meio de vaias e caçoadas.

Diante da visibilidade do grupo modernista na vida intelectual paulistana, era

quase impossível descolar a imagem de Mário da imagem do grupo dos

revolucionários, o que nos permite pensar numa espécie de ethé pré-

discursivos que eram mobilizados pelos co-enunciadores (ouvintes/leitores)

antes mesmo que ele enunciasse publicamente. Na SD45, a seguir, podemos

notar que Mário tinha a consciência de que ele escandalizava a opinião pública

pelo seu inconformismo diante do passado e do academicismo.

SD45 - A pedra de escândalo que fui, era apenas e todos perceberam isso um instinto alegre de vitalidade, uma confissão de coragem, uma demonstração de verdade sem acomodações com nenhum passado que não fosse o presente. E porque si não fui exemplar fui uma lição, coisa muito mais vital, mais ardida e mais humana que o exemplo (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 328-329).

Na SD45, o enunciador reconhecia ser “uma pedra de escândalo” aos

olhos dos outros, conduta que ele justificava pelo “instinto alegre de vitalidade”,

pela “confissão de coragem”, pela “demonstração de verdade” e pela não

Page 142: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

142

acomodação ao passado. Ele concordava em ser uma figura publicamente

impactante, mas reagia à ideia de ter sua imagem gratuitamente associada a

escândalo – revolucionário, sim, rebelde sem causa, não. Causar escândalo,

não era privilégio de Mário, mas uma postura compartilhada por toda a

vanguarda modernista, que formava uma comunidade ética em evidência na

conjuntura vivida pela intelligentsia brasileira naquele momento histórico, não

como grupo oficial, mas como grupo insurgente que tinha convicção nas ideias

revolucionárias que defendia.

O Brasil, especialmente São Paulo, vivia um célere processo de

modernização, industrialização e urbanização que contrastava com os padrões

culturais tradicionais ainda imperantes nas demais regiões brasileiras. A

bandeira do progresso passava a balizar todas as esferas de atividades

humanas, embora não sem a oposição dos conservadores que a

responsabilizavam por todos os males que atormentavam o tempo presente.

Segundo Silveira (1999, p. 32), havia naquele momento uma “urgência de

acertar o relógio-brasil com o relógio das nações civilizadas”. Contudo,

sintonizar o Brasil, com suas estruturas econômicas e sociais arcaicas, com as

nações desenvolvidas não era uma tarefa simples, pois o processo de

emancipação do país, iniciado com a independência de Portugal ainda não

havia se consolidado. Se o país tinha independência política, era ainda cultural

e linguisticamente dependente dos modelos lusitanos e essa dívida consigo

mesmo, de certa forma, representava um óbice à sua participação no concerto

internacional das nações civilizadas.

Enquanto a Europa respirava os ares novos do futurismo, cubismo,

expressionismo, dadaísmo, surrealismo, movimentos identificados com a

experimentação estética sacudindo a poeira do academicismo, o Brasil ainda

fazia poesia parnasiana e pintura realista, seguindo uma estética bem

comportada que se comprazia em cultuar o passado e em retratar fielmente os

motivos pintados, como prova a reação indignada de Monteiro Lobato diante da

exposição de Anita Malfatti em dezembro de 1917. Derrisoriamente Lobato

afirmava que a pintura de Anita ainda “não era futurista”, mas já evidenciava

“uma cubice” e “acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada

no sentido das extravagâncias de Picasso & Cia”, manifestações artísticas que

ele assim avaliava: “‘Arte moderna’: eis o escudo, a suprema justificação de

Page 143: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

143

qualquer borracheira” (LOBATO, 1917). Metonimicamente, o episódio Malfatti-

Lobato revela o clima polêmico desencadeado pelo modernismo em meio à

intelligentsia brasileira da época, em muitos aspectos, ainda conservadora.

Se, por um lado, a vanguarda modernista brasileira era instigada a

acompanhar as revoluções econômicas, políticas e estéticas internacionais, por

outro, tinha de completar sua própria revolução nacional, cortando os liames

que ainda nos prendiam a Portugal. Afinal, para participar do mundo civilizado,

o Brasil precisava perfilar sua identidade, sem, contudo, deixar de se colocar

no compasso do progresso internacional. No campo das Letras, isso significava

ter uma literatura e, principalmente, uma identidade linguística brasileira. Essa

divisão entre ser nacional e ser internacional causava angústia a alguns dos

modernistas que, como Mario de Andrade, se recusavam a pensar a nação

endogenamente e defendiam a convergência entre ser brasileiro e ser

universal. Outros resolviam o dilema esquecendo-se da projeção internacional

e realizando um abrasileiramento confinado às fronteiras nacionais e não raro

regionais. Dos modernistas que assim se posicionavam e agiam, Mário

discordava incisivamente.

Dessa forma, o mundo ético dos artistas, dos escritores, dos intelectuais,

na São Paulo das décadas de 1920 a 1940, que viu o modernismo nascer e

florescer, constitui a topografia, a cronografia e a cenografia da enunciação de

Mário de Andrade. Participando ativamente desse mundo ético, ele combatia

não apenas aqueles que cultuavam o passado, os “bilaques” e outros

escritores desvirtuados pela gramatiquice parnasiana que havia transformado a

linguagem numa “coisa oficial, gélida ver um Ministério das Relações

Exteriores” (SD3), mas também aqueles que reduziam a literatura brasileira ao

regionalismo, pois, na sua concepção, era preciso superar o regionalismo,

fundir a linguagem de norte a sul e fazer uma “estilização culta da linguagem

popular da roça, como da cidade, do passado e do presente” (SD32). E até

mesmo com os modernistas que se opunham a Portugal, Mário polemizava:

“Não se trata de reação contra Portugal. Trata-se duma independência natural,

sem reivindicações, sem nacionalismos, sem antagonismos, simplesmente,

inconscientemente. Se trata de “ser”. O brasileiro tem direito de ser (SD11).

Pelos debates travados com parnasianos e conservadores em geral,

com regionalistas e com modernistas anti-lusitanistas, Mário era visto como

Page 144: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

144

uma voz rebelada, insurgente, polêmica, imagem que, sem dúvida, funcionava

como uma espécie de ethos pré-discursivo, uma vez que o espaço, por

excelência, para as controvérsias levadas a cabo por ele e os demais

modernistas era a imprensa diária. Como intelectual multifacetado, participava

de discussões sobre temas relacionados aos mais diversos campos de

conhecimento, como: pintura, música, literatura, cultura, artes, língua,

antropologia, etnologia, religião etc., de modo que estava sempre metido em

alguma controvérsia em torno de alguma questão relativa à vida cultural

paulistana ou brasileira.

O principal campo de batalha dos modernistas era, como já apontamos,

a imprensa. Apesar de conservadora, ela abria espaço para os modernistas

publicarem suas ideias e travarem suas guerras por meio das palavras. Na

imprensa, eles publicavam manifestos, artigos, conferências, críticas de arte,

crítica literária, crônicas, poesias, contos e tudo que pudesse chocar e

transformar o arcaico pensamento brasileiro. Como a imprensa era o espaço

preferido para o duelo verbal entre modernos e conservadores, os atores das

controvérsias estavam sempre expostos à opinião pública. Todavia, a imprensa

não foi o único espaço de circulação e divulgação do movimento; ele também

viçou nos salões paulistanos (os salões da Rua Lopes Chaves, da Avenida

Higienópolis, da Rua Duque de Caxias e da Alameda Barão de Piracicaba).

Segundo Mussalim (2011),

Essas festas fortaleciam a repulsa da sociedade paulistana em torno do novo grupo. Criou-se em torno dos modernistas toda uma semântica do maldizer, pautada em boatos a respeito do que ocorria nessas festas: “champanha com éter, vícios inventadíssimos, as almofadas viraram ‘coxins’” (MUSSALIM, 2011, p. 76).

Além de associados à devassidão das ideias e do caráter, a boataria em

torna do “movimento dos salões” associava aos modernistas também a

devassidão do corpo, o que aumentava a reação da elite paulistana

conservadora contra eles. Quanto mais oposição o grupo enfrentava, mais

afirmava seu propósito de “agredir o gosto oficial”, ligado ao academicismo; de

combater “o marasmo intelectual do país”, “o passadismo”, “a subserviência

aos padrões estéticos europeus” e as regras e valores tradicionais. As ações e

Page 145: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

145

posturas públicas do grupo “conferiram ao movimento um caráter

revolucionário” (MUSSALIM, 2011, p. 76). Assim é que nos parece plausível

pensar, a propósito do enunciador modernista, num ethos prévio, pré-discursivo

– o ethos do revoltado, do destruidor, do revolucionário – que seria acionado

pelos co-enunciadores simplesmente por se tratar de um modernista, cuja fama

era pública e notória. O enunciador associado ao mundo ético dos modernistas

se colocava, pois, como “aquele que se posiciona na brecha como revisionista,

que gera polêmicas e desestabiliza a ordem social” (MUSSALIM, 2011, p. 77).

No texto O movimento modernista, escrito por Mário de Andrade 20 anos

após o surgimento do modernismo, o escritor reflete sobre o significado do

movimento para a inteligência nacional no momento em que ele ganhou a cena

pública, como podemos observar pelas SDs 46 a 50:

SD46 – O movimento, se alastrando ao poucos, já se tornara uma espécie de escândalo público permanente (ALB-MM, [1942] 2002, p. 257). SD47 – E foi no meio da mais tremenda assuada, dos maiores insultos, que a Semana de Arte Moderna abriu a segunda fase do movimento modernista, o período realmente destruidor (ALB-MM, [1942] 2002, p. 260).

SD48 – O movimento modernista, no Brasil, foi uma ruptura, foi um abandono de princípios e de técnicas consequentes, foi uma revolta contra o que era a inteligência nacional. É muito mais exato imaginar que o estado de guerra da Europa tivesse preparado em nós um espírito de guerra, eminentemente destruidor (ALB-MM, [1942] 2002, p. 258). SD49 – Não cabe nesse discurso de caráter polêmico, o processo analítico do movimento modernista. Embora se integrasse nele figuras e grupos preocupados de construir, o espírito modernista que avassalou o Brasil, que deu o sentido histórico da Inteligência Nacional desse período, foi destruidor (ALB-MM, [1942] 2002, p. 265). SD50 – Pois essa é a melhor razão-de-ser do Modernismo! Ele não era uma estética, nem na Europa nem aqui. Era um estado de espírito revoltado e revolucionário que, si a nós nos atualizou, sistematizando como constância da Inteligência nacional o direito antiacadêmico da pesquisa estética e preparou o estado revolucionário das outras manifestações sociais do país, também fez isto mesmo no resto do mundo, profetizando estas guerras de que uma civilização nova nascerá (ALB-MM, [1942] 2002, p. 275).

Page 146: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

146

Nesse conjunto de SDs, o movimento modernista é dito por Mário:

SD46 -uma espécie de escândalo público permanente.

SD47 -o período realmente destruidor

SD48 -uma ruptura

-um abandono de princípios e técnicas consequentes

-uma revolta contra [...] a inteligência nacional

-um espírito de guerra, eminentemente destruidor

SD49 -o espírito modernista [...] destruidor

SD50 -um estado de espírito revoltado e revolucionário

-o direito antiacadêmico da pesquisa estética

-o estado revolucionário

-estas guerras

Todas essas designações, numa relação de sinonímia, trazem à tona a

consciência que o escritor tinha da imagem de revoltado, de destruidor, de

revolucionário, associada a ele e à comunidade ética dos modernistas. Além

disso, verbos como “alastrar” (SD46) e “avassalar” (SD49) intensificam essa

imagem, à medida que, tal como enuncia Mário, o movimento era visto como

uma espécie de mal incontrolável que se disseminava e devastava a

inteligência nacional estabilizada e oficial. Nesse mesmo texto de 1942, Mário

faz uma dobra reflexiva sobre suas ações por ocasião da Semana de Arte

Moderna, indagando-se perplexo: “como tive coragem para participar daquela

batalha!” e “como tive coragem pra dizer versos diante duma vaia tão

barulhenta” (ANDRADE, [1942] 2002, p. 253-254).

Além do espaço da imprensa e dos salões paulistanos, a comunidade

ética dos modernistas punha suas ideias em circulação por meio de cartas.

Mário de Andrade, como vimos no capítulo 1, era um escrivinhador de cartas

compulsivo, correspondia-se assiduamente com Anita Malfatti, Alphonsus de

Guimarães Filho, Álvaro Lins, Carlos Drummond de Andrade, Fernando

Sabino, Manuel Bandeira, entre muitos outros pertencentes ao grupo, conforme

podemos observar na SD51, excerto de carta a Carlos Drumonnd de Andrade,

e, na SD52, excerto de carta a Manuel Bandeira:

Page 147: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

147

SD51 - Veja bem, Drummond, que eu não digo pra você que se meta na aventura que me meti de estilizar o brasileiro vulgar. Mas refugir de certas modalidades nossas e perfeitamente humanas como o chegar na estação (aller, arrivare in casa mia, andare in città) é preconceito muito pouco viril. Quem como você mostrou coragem de reconhecer a evolução das artes até a atualização delas põe-se com isso em manifesta contradição consigo mesmo (CCDA, 1925, p. 23).

SD52 - Em vez de “Embala-lhe o dormir” pus “lhe embala o sono”, com o pronome errado. Sobre isso, Manuel, estou disposto a me sacrificar. É preciso dar coragem a essa gentinha que ainda não tem coragem de escrever brasileiro (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 233)

Na SD51, vemos Mário “puxando as orelhas” de Drummond por ele não

ter coragem de empregar o brasileirismo “chegar na estação”. Não se

constrange em chamar a atenção de Drummond por ele não ter sido corajoso o

suficiente (“muito pouco viril”) para empregar a regência brasileira “chegar em”,

ao invés da lusitana “chegar a”. Já na SD52, confessa a Manuel Bandeira sua

coragem de usar a ênclise no início de frase, como uma forma de encorajar

“essa gentinha que ainda não tem coragem de escrever brasileiro”. A coragem

para viver conforme o verbo era uma reivindicação constante de Mário para ele

e os demais modernistas. Como cara e coroa, o ethos do destruidor, do

revolucionário, aciona o ethos da coragem. Os modernistas eram vistos como

moços destemidos, que ousavam enfrentar a opinião pública adversa mesmo

sob vaias ou quaisquer outras formas de desaprovação.

Apesar de, no momento de efervescência do movimento, Mário se

identificar com as posturas dos demais integrantes do grupo, como as que

constituem o ethos revolucionário, destruidor e revoltado, com o passar dos

anos ele foi se tornando menos destrutivo e mais construtivo. Afastava-se de

seus companheiros em muitos aspectos, a exemplo da atitude assumida por

eles em relação a tudo que vinha de Portugal. Enquanto seus companheiros

queriam romper com os colonizadores, Mário reconhecia-lhes a participação na

formação da língua, da cultura, da literatura e da alma brasileira. Poderíamos

dizer que o internacionalismo de Mário passava a se sobrepor a seu

nacionalismo, levando-o a construir um ethos humanista, pacificador e

conciliador em relação ao quinhão lusitano herdado pelos brasileiros, conforme

a análise das SDs de 8 a 11 (exploradas na seção 3.4). Retomamos aqui as

Page 148: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

148

SDs 8 e 11, para mostrar como Mário constrói um ethos de militante humanista

para discordar de seus próprios companheiros com relação à tese do

nacionalismo:

SD8 - Os escritores nacionais célebres têm às vezes incitado, aconselhado a libertação nossa de Portugal – João Ribeiro, Graça Aranha. Principiam por um erro: opor Brasil e Portugal. Não se trata disso. Se trata de ser brasileiro e não nacionalista. Escrever naturalmente brasileiro sem nenhuma reivindicação nem queixa (EGFB-GM, [1928]1990, p. 48). SD11 - Não reaja não. Reagir enfraquece. Quando me senti escrevendo brasileiro primeiro que tudo pensei e estabeleci: Não reagir contra Portugal. Esquecer Portugal, isso sim. É o que fiz (CMB, [1929]1958, p. 222).

Se, na aurora do movimento, Mário assumia uma posição fortemente

nacionalista quanto à formação da identidade linguística brasileira, em sintonia

com seus colegas de modernismo, passado o ímpeto inicial, ele conseguia

separar o “ser brasileiro” do “ser nacionalista”. Esses dois predicados não mais

se confundiam na interpretação que Mário dava à identidade cultural, literária,

linguística e artística brasileira. Ser brasileiro significava ter uma fisionomia

própria, mas profundamente heterogênea, um amálgama de traços indígenas,

africanos, e, principalmente, lusitanos, sem falar naqueles das muitas etnias

aqui desembarcadas com os imigrantes que vieram substituir os braços

escravos. A identidade brasileira seria o resultado de um processo de

mestiçagem que inclui os traços portugueses. E o nacionalismo, além de

pregar a ruptura com o passado português, algo inviável aos olhos de Mário,

também se fechava para a participação do Brasil no concerto das nações

civilizadas.

Essa dissensão em relação à postura antilusitanista de muitos de seus

companheiros de movimento encontra-se materializada linguisticamente pelo

emprego de termos negativos como “não”, “sem”, “nenhuma”, “nem” que

funcionam polifonicamente, patenteando a heterogeneidade constitutiva e

mostrada dos enunciados, ou seja, sua natureza polêmica. Na SD8, “Não se

trata disso (disso = opor Brasil a Portugal). Se trata de ser brasileiro e não

nacionalista”, a primeira ocorrência de “não” faz fluir junto a posição do

Page 149: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

149

modernismo nacionalista, que é negada, e a posição de um modernista

internacionalista, ao passo que a segunda ocorrência de “não” faz o foco recair

sobre o predicado que o enunciador exclui peremptoriamente para não

contradizer sua posição em defesa de um modernismo humanista e, portanto,

universalista..

Na SD11, “Não reaja não. [...] Quando me senti escrevendo brasileiro

primeiro que tudo pensei e estabeleci: Não reagir contra Portugal. Esquecer

Portugal, isso sim”, o “não” igualmente incorpora ao enunciado a dissensão em

relação à pletora nacionalista que levava seus companheiros a “reagir contra

Portugal”. A dupla negação (“Não reaja não”) confere um tom de manifesto ao

enunciado. Se o Manifesto da Poesia Pau Brasil recomendava a “originalidade

nativa”, “Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem

pesquisa etimológica. Sem ontologia” bem como “a reação contra todas as

indigestões de sabedoria”, contra “a adesão acadêmica”, o manifesto de Mário

de Andrade, vamos dizer assim, militava em favor de um modernismo

humanista que deveria abandonar a beligerância contra Portugal. Segundo

Mussalim (2011, p. 78), na fase inicial do modernismo, o movimento assumia o

caráter revolucionário e militante, e o tom de “manifesto” estava presente nos

mais diversos gêneros discursivos e não apenas no que era identificado como

Manifesto (Manifesto Trianon, Manifesto da Poesia Pau Brasil, Manifesto

antropofágico etc.).

A análise da SD8 e SD11 nos sugere que se, em muitos pontos, Mário

se integrava ao corpo coletivo da comunidade ética modernista, no que toca a

seu nacionalismo exacerbado, dele se apartava. Assumia um ethos de

conciliador e pacificador, desejoso de pôr um fim no antagonismo entre

brasileiros e portugueses, pois, para ele, humanista que era, a criação de

qualquer antagonismo levaria “a integração no Cosmos por água abaixo”

(SD9). Seu projeto político e ético não perdia de vista a humanidade, o

sentimento de pertencer a uma comunidade universal, para além dos

nacionalismos e regionalismos. Não economizava ênfase ao afirmar que tinha

“horror das fronteiras de qualquer espécie” (SD38).

Portanto, ao ethos do militante, Mário e os outros modernistas

agregavam o da coragem, afinal para revoltar-se e lutar contra o passado,

contra a tradição, contra os padrões estéticos herdados do colonizador, contra

Page 150: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

150

a norma linguística lusitana e contra os velhos valores, a fim de entronizar uma

nova ideologia/discurso, era preciso ser corajoso, viril. Nas SDs de 53 a 58,

podemos observar o ethos da coragem, manifestando-se no discurso, mas

indiretamente:

SD53 - É certo que muito errarei. Só o que quero é que não me julguem mal, vocês que quero bem. As aventuras podem falhar porém se o aventureiro teve um fim justo e trabalhou sem leviandade pra atingi-lo, a nobreza continua com o aventureiro, não acha (CCDA, 1925, p. 24). SD54 - Cada um que dê a sua estilização, a sua solução e se chegará num dia a essa normalização geral tirada do pouco que acertaram e do muito que erraram. Vale mais errar porém fazer do

que não errar e não fazer (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 47).

SD55 - O diminutivo, o aumentativo, o superlativo substituído por “muito”, por “por demais”, conforme o caso. Você compreende, Manuel, eu empobreci os meus meios de expressão. Não faço dúvida nisso. Empobreci-os conscientemente. Tem uma frase do Machado que me bate sempre na memória. “Alguma coisa é preciso sacrificar”. Eu me sacrifico mas é possível que se ganhe alguma coisa com isso. Agora fazer como você quer, tudo com restrições, tudo apalpando, usar pra mas também para, usar uma coisa mas tem casos que não usar, não sou desse gênio. Vou até o fim. Sou homem num Deus só. Não compreendo revoluções com luvas de pelica. O próprio procurador da República falou que foi por causa disso que o Isidoro levou na cabeça. É o caso dos que quiseram ser modernistas e passadistas ao mesmo tempo. Não sei ser assim. A culpa pode ser minha. Paciência” (CMB, 1925, p. 90). SD56 – Minha fala é dificílima até. Requereu? E requer estudo constante, prática mensal de centenas de vocabulários apensos a quanto livro regionalista surge por aí tudo e muita observação pessoal. E muita paciência de observação psicológica. E uma universalidade brasileira que jamais ninguém nunca não poderá chamar de regional. Si muitos que tentaram o que eu tento despencam prá facilidade e pro regionalismo, eu não (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 319) SD57 – Já não disse sejamos brasileiros. Eu fui. Eu não falei: Escrevamos brasileiro. Eu escrevi. Si alguma coisa me orgulha é o poder intelectual maravilhosamente feliz com que eu cumpro os mandamentos da minha fé. [...] Porém no regime feioso e panema do sejamos, não fiquei não (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 325-326). SD58 – Corrigir um pronome colocado errado por inconsciência, pra um pronome colocado certo por consciência só pra ficar mais de estilo português isso não faço não, nem que caia a casa (CMB, 1929, p. 220).

Page 151: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

151

Nas SDs 53 a 58, embora a coragem não seja explicitamente nomeada,

podemos percebê-la por certas pistas deixadas pelo enunciador ao se

manifestar. Na SD53, a coragem é evocada por meio da metáfora proverbial do

aventureiro que trabalha comprometidamente para atingir um fim justo: “As

aventuras podem falhar porém se o aventureiro teve um fim justo e trabalhou

sem leviandade pra atingi-lo, a nobreza continua com o aventureiro, não acha”.

Na SD54, mais uma vez o enunciador recorre a um provérbio para expressar

sua postura destemida ao fazer concretamente o que pregava: “Vale mais errar

porém fazer do que não errar e não fazer”. A questão fundamental para Mário

de Andrade era praticar seu ideário ético-estético no seu fazer literário e não

apenas como crítico.

Na SD55, é censurando as fraquezas do amigo Manuel Bandeira que

oscila entre o uso do “pra” brasileiro e do “para” lusitano, que Mário deixa

entrever sua coragem. Ele diz não “apalpar”, não condescender (“usar pra mas

também para, usar uma coisa mas tem casos que não usar”), não fazer

“revoluções com luvas de pelica”, mas ir até as últimas consequências (“Vou

até o fim). E mais, ao dizer “Sou homem num Deus só”, Mário reafirmava seu

propósito de ser um modernista em todas as circunstâncias. Se seu Deus, seu

credo, era o modernismo, ele não poderia ser modernista no discurso e, por

covardia, por medo da opinião publica, ser passadista na prática (“É o caso

dos que quiseram ser modernistas e passadistas ao mesmo tempo. Não sei ser

assim”). Ele sempre foi um defensor intrépido da coerência entre as ideias e a

prática da escrita (literária ou não). Escrever brasileiro não era fácil, mas ele

não sucumbia à tentação de facilitar a tarefa, despencando para o

regionalismo: “Si muitos que tentaram o que eu tento despencam prá facilidade

e pro regionalismo, eu não”(SD56). Mário perseguia valentemente seu

propósito de superar o regionalismo por meio de uma “universalidade

brasileira” (SD56).

Na SD57, é por meio do contraste entre “sejamos brasileiros”/“fui

brasileiro” e “escrevamos brasileiros”/“escrevi brasileiro” que o ethos da

coragem se constitui. Sejamos e escrevamos, formas subjuntivas na primeira

pessoa do plural, se remetem a uma voz coletiva que convoca para uma ação

possível, desejada, mas não realizada, ao passo que fui e escrevi, formas do

pretérito perfeito do indicativo na primeira pessoa do singular, se remetem a

Page 152: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

152

uma voz individual que afirma a ação como realizada. Em Mario de Andrade, a

reivindicação de abrasileiramento da expressão literária nunca foi apenas uma

ideologia, ele sempre procurou cumprir os mandamentos de sua fé

praticamente. Ele julgava uma atitude feia e infeliz a de ficar no “sejamos” (“no

regime feioso e panema do sejamos, não fiquei não”). Também se recusava a

corrigir “um pronome colocado errado por inconsciência, pra um pronome

colocado certo por consciência só pra ficar mais de estilo português” (SD58).

Dizia não se sujeitar a isso “nem que caia a casa” (SD58).

Se, nas SDs de 53 a 58, o traço da coragem, indissociável do ethos do

militante, do revolucionário e do experimentador de vanguarda, aflora

indiretamente dos enunciados, nas SDs de 59 a 62, a seguir, os termos

“coragem” e “corajoso” são ditos sem reserva:

SD59 – Minha vida tem sido sempre essa belíssima coisa que se chama agir com vivacidade e coragem (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 315). SD60 – Abandonei tudo e parti iguinorante porém com coragem, tropeçando, me atrapalhando, tentando e tentarei sempre até o fim (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 421). SD61 – Não me iludo absolutamente a respeito do valor das minhas obras. Sei que, como arte, elas valem quase nada, porém são todos exemplos corajosos e imediatamente práticos do que os outros devem fazer ou... não devem fazer. Erros e verdades (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 314). SD62 – Muita gente, até meus amigos, andaram falando que eu queria bancar o Dante e criar a língua brasileira. Graças a Deus não sou tão iguinorante nem tão vaidoso. A minha intenção única foi dar a minha colaboração a um movimento prático de libertação importante necessária. [...] Ora diante de todos aqueles que aconselhavam a intromissão de certos modismos e certas fórmulas gramaticais dos brasileiros na Tábua de leis linguísticas da língua lusitana, eu tive a coragem consciente, seguindo a tradição e o exemplo bonito de José de Alencar, tive a franqueza de agir em vez de ficar no discurso “Irmãos fazei!” Sempre tive horror ao “Sejamos!”. Eu sou (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 315-316).

Nas SDs de 59 a 62, todas recortadas dos esboços para a construção

da Gramatiquinha da fala brasileira, o ethos da coragem é dito e/ou mostrado,

quando Mário fala de sua decisão de fazer o que prega. Na SD60, o

enunciador fala de sua “coragem” de abandonar tudo que sabia e partir

Page 153: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

153

“iguinorante” para “tentar sempre até o fim” agir conforme pregava. Na SD60 e

62, a grafia “iguinorante” é uma demonstração da coragem do enunciador de

pôr em prática as soluções gráficas que lhe pareciam mais lógicas, embora

contrariassem o estabelecido. Na SD 61, ele fala de suas obras como

“exemplos corajosos e imediatamente práticos do que os outros devem fazer

ou... não devem fazer”.

Na SD62, novamente as oposições nós/eu e sejamos/sou

(subjuntivo/indicativo) são mobilizadas para patentear sua atitude não apenas

de ideólogo do modernismo, mas também de um homem que tem a coragem

de experimentar, ele mesmo, concretamente as ideias que propaga.

Diferentemente daqueles que convocavam os outros a fazer – “irmãos fazei!” –

mas recuavam na prática, Mário afirmava “a coragem consciente, seguindo a

tradição e o exemplo bonito de José de Alencar, [...] de agir em vez de ficar no

discurso”. Por não se intimidar diante do projeto modernista de abrasileirar a

língua, por tirar esse projeto do plano do discurso, era considerado por alguns

de seus contemporâneos o Dante da língua brasileira, comparação que ele

contestava, argumentando que sua intenção era apenas a de colaborar com

um “movimento prático de libertação” do passado. Enquanto alguns

aconselhavam timidamente a introdução de brasileirismos na “Tábua de leis

linguísticas da língua lusitana”, ele escrevia brasileiro sem se acautelar das

inevitáveis críticas.

Evidentemente, esse embate em torno do descompasso entre a teoria e

a prática tem por referência o mundo ético dos escritores modernistas ou não,

que pensavam o Brasil em termos cultural, literário, musical, artístico,

linguístico, vislumbrando a formação de uma identidade brasileira ou nacional.

Se dessa comunidade ética, por um lado, emerge o ethos do fiador do discurso

marioandradino, por outro, emerge o ethos de um antifiador, cuja postura o

enunciador desabona e não toma como exemplo para si, como podemos

observar nas SDs de 63 a 65, a seguir:

SD63 - Quanto a você começar a se interessar por coisas brasileiras, se lembre que eu não fui nem sou o primeiro nacionalista da nossa literatura. Eu se tenho algum mérito é que em vez de pregar só, fazer idealismo, fazer teoria, tal qual Gonçalves Dias, tal qual Graça Aranha, fazer regionalismo, tal qual Veríssimo ou Lobato, agi prático,

Page 154: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

154

não prego faço, pelo muito de brasil que eu tenho desta merda de Brasil (CCDA, 1925, p. 32).

SD64 - (...) temos livros valiosos como a Língua Nacional de J.

Ribeiro, O Dialeto Caipira de Amadeu Amaral, que são verdadeiros convites pra falar brasileiramente. Porém, os autores como idealistas que são e não práticos, convidam, convidam porém principiam não fazendo o que convidam. Não tiveram coragem. Eu tive a coragem e é o que explica o meu valor funcional na literatura brasileira moderna

(EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 313).

SD65 – Quanto aos grandes, os que sabem, [...], vivem a falar, dizendo pros outros abrasileirarem a língua porém eles mesmo vivem na cola de quando Figueiredino Chupamel nos vem de Lisboa

gramatical (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 44).

Nesse conjunto de SDs, o enunciador assume, como fiadora de seu

discurso, a posição de coragem que ele mesmo, como escritor, demonstra ao

experimentar efetivamente o abrasileiramento da linguagem e da literatura

nas suas obras e, como antifiadora, a posição dos escritores tomados

genericamente ou identificados com nome e sobrenome, que convidam a

escrever brasileiro, mas fraquejam na prática, curvando-se às normas

lusitanas.

Fiador (Mário de Andrade) Antifiador (outros escritores/autores)

agi prático, não prego faço Aqueles que só pregam, fazem idealismo, fazem teoria, tal qual Gonçalves Dias, tal qual Graça Aranha, fazem regionalismo, tal qual Veríssimo ou Lobato (SD63)

Eu tive a coragem e é o que explica o meu valor funcional na literatura brasileira moderna

os autores como idealistas que são e não práticos, convidam (para falar brasileiramente) porém principiam não fazendo o que convidam. Não tiveram coragem.(SD64)

Eu faço o que prego, eu abrasileiro a língua com que escrevo.

(aqueles que) vivem a falar, dizendo pros outros abrasileirarem a língua porém eles mesmo vivem na cola de quando Figueiredino Chupamel nos vem de Lisboa gramatical. (SD65)

Page 155: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

155

Nas SDs 63 a 65, percebemos o fiador polemizando com o antifiador.

Nessas sequências, Mário se duplica em enunciador e escritor, sendo o Mário

escritor, participante da comunidade ético-estética dos modernistas, seu

exemplo de fiador. O Mário enunciador exalta a coragem do Mário escritor,

por ele não se restringir apenas à pregação, por fazer o que prega, e avalia

negativamente seu antifiador (Graça Aranha, Veríssimo, Lobato e todos

aqueles que apenas convidam a falar brasileiramente), por eles se

contentarem em apenas fazer idealismos e teorias. Na SD64, o enunciador se

refere a duas obras sobre a fala brasileira: A língua Nacional de J. Ribeiro e O

Dialeto Caipira Amadeu Amaral, que são “verdadeiros convites para falar

brasileiramente”, porém, cujos autores se reduzem ao convite, não

principiando, eles mesmos, a fazer o que convidam. Assim, tem como

fiadores aqueles que como ele mesmo incorporam à escrita a fala brasileira e

como anitifiadores aqueles cuja escrita desmente o blábláblá em favor do

abrasileiramento da língua/linguagem literária.

Diante da ênfase que Mário de Andrade dá ao ethos do militante

corajoso capaz de praticar o que propõe, julgamos relevante observar como o

escritor se porta no seu fazer literário. Ele sempre criticou os regionalistas que

punham os brasileirismos na boca das personagens, enquanto eles mesmos

continuavam a seguir o padrão linguístico lusitano. Por exemplo, nos esboços

da Gramatiquinha, ele afirmava sua decisão de usar os brasileirismos, como a

ênclise em início de frase (Lhe embala o sono), o pronome do caso reto em

posição de objeto (mandei ela), “não na boca de personagens”, mas de sua

“direta pena” (EGFB-GMA, [1928] 1990, p. 233). Entendemos que a escrita de

Mário, a literária e também a não-literária, constitui uma instância privilegiada

de observação do ethos mostrado na sua relação com o ethos dito (explícito e

implícito). A seguir, apresentamos algumas sequências discursivas, fazendo

um contraponto entre o que Mário defende quando discute fenômenos

linguísticos próprios da fala brasileira e quando produz poesia ou prosa

literária. Na SD66, Mário confessa, em carta a Fernando Sabino, o quanto a

forma contraída “pra”, havia se tornado natural para ele, a ponto de o uso de

“para” lhe soar desagradável e mesmo um “erro de linguagem”, quer dizer, uma

inadequação ao registro linguístico. Na SD 67, trecho de Macunaíma, e na

Page 156: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

156

SD68, um poema, observamos o escritor empregando tal forma na escrita

literária não apenas na voz das personagens, mas também na dos narradores:

SD66 – Engraçado: estou me lembrando que depois de bem sistematizado o “pra” em mim, tornado espontâneo e subconsciente, quando me sucedia ter que ler algum escrito antigo, você não imagina cada sobressalto que eu tinha! Topara um “para” e a sensação imediata e muito desagradável que eu tinha era de me pegar num erro de linguagem! (CFS, [1942] 1993, p.43).

SD67 – Então Macunaíma pediu fibra de curauá. Jiguê olhou pra ele com ódio e mandou a companheira arranjar fio pro menino, a moça fez. Macunaíma agradeceu e foi pedir pro pai-de-terreiro que trançasse uma corda pra ele e assoprasse bem nela fumaça de petum (MHSNC, [1928] 1981, p. 10).

SD68 – TOSTÃO DE CHUVA Quem é Antônio Jerônimo? É o sitiante Que mora no Fundão Numa biboca pobre. É pobre. Dantes Ia a coisa ia indo e ele possuía Um cavalo cardão. Mas a seca batera no roçado... Vai, Antônio Jerônimo um belo dia Só por debique de desabusado Falou assim: “Pois que nosso padim Pade Ciço que é milagreiro, contam, Me mande um tostão de chuva pra mim!” Pois então nosso “padim” pade Cicero Coçou a barba, matutando, e disse: “Pros outros mando muita chuva não, Só dois vinténs. Mas pra Antônio Jerônimo Vou mandar um tostão”. No outro dia veio uma chuva boa Que foi uma festa pros nossos homens E o milho agradeceu bem. Porém No fundão veio uma trovoada enorme Quem num átimo virou tudo em lagoa E matou o cavalo de Antônio Jerônimo. Matou o cavalo. (TC- CJ-PC , [1927] 1993, p. 193).

Na SD69, trecho de uma carta a Carlos Drummond de Andrade, Mário

discute a regência dos verbos “ir” e “chegar” que, no Brasil, se faz

preferencialmente com a preposição “em” e, em Portugal, com a preposição

“a”. Ele censura o amigo, por meio de ironias e tom escarnecedor, por trocar a

forma “chega na estação” por “chega à estação”. Mário considera uma

“ignomínia”, quer dizer, uma vergonha, uma humilhação, Drummond fraquejar

Page 157: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

157

na hora de escrever e se submeter ao padrão português, vestindo “um fraque

debruado de galego”, telefonando “pra Lisboa” e perguntando “pro ilustre

Figueiredo: Como é que se está dizendo agora no chiado: é ‘chega na

estação’ ou ‘chega à estação’?”. Nas SDs 69 e 71, diferentemente de

Drummond, Mário mostra sua coragem ao optar pela regência brasileira “ir

em” e empregá-la abundantemente na prosa literária e na poesia:

SD69 – Foi uma ignomínia a substituição do na estação por à estação só porque em Portugal paisinho desinteressante pra nós diz assim. Repare que eu digo que Portugal diz assim e não escreve assim. Em Portugal tem uma gente corajosa que em vez de ir assuntar como é que dizia na Roma latina e materna, fez uma gramática pelo que se falava em Portugal mesmo. Mas no Brasil o Sr. Carlos Drummond diz “cheguei em casa”, “fui na farmácia”, “vou no cinema” e quando escreve veste um fraque debruado de galego, telefona pra Lisboa e pergunta pro ilustre Figueiredo: _ Como é que se está dizendo agora no chiado: é “chega na estação” ou “chega à estação”? E escreve o que o Sr. Figueiredo manda (CCDA, [1925] 1982, p. 22-23).

SD70 – No outro dia Dona Ana pensa que carece passear a moça. Vão na missa. Rosa segue na frente e vai namorar todos os homens que encontra. Tem de prender um. Qualquer. Tem de prender um pra não ficar solteira (CB, [1934] 1980, p. 21). SD71 – LOUVAÇÃO DA EMBOABA TORDILHA Eu irei na Inglaterra E direi pra todas as moças da Inglaterra Que não careço delas Porque te possuo. Irei na Itália E direi pra todas as moças da Itália Que não careço delas Porque te possuo. Depois Irei nos Estados Unidos E direi pra todas as moças dos Estados Unidos Que não tenho nada com elas Porque te possuo. Depois irei na Espanha E direi pra todas as niñas da Espanha Que não tenho nada com elas Porque te possuo. Quando voltar pro Brasil Te mostrarei a irmã dos teus cabelos, Minha consciência triunfante Será bonito enxergar as irmãs abraçadas na rua!

Page 158: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

158

E ainda terei de ir numa terra que eu sei... Mas não será pra lhe gritar minha felicidade fafarrã... Será numa comovida silenciosa romaria De amor, de reconhecimento. (LET-LC-PC [1926] 1993, p. 147)

Outros tantos recortes poderiam ser mostrados aqui como exemplos de

que a escrita literária de Mário é a encarnação de seu próprio verbo, no que diz

respeito ao postulado da construção de uma identidade linguística brasileira.

São muitos os brasileirismos que foram objeto de reflexão de Mário e

consequente incorporação à sua linguagem literária. Aqui ilustramos com os

casos da contração da preposição “para” e da regência do verbo “ir”, mas

poderíamos ter mostrado a colocação pronominal enclítica em início de frase,

como aparece no verso 18 da SD71 (“Te mostrarei a irmã dos teus cabelos”); o

uso de pronome de caso reto em função de objeto (“Elza viu ele descer,

equilibrado, brincando com os degraus” (AVI, [1927]1995, p. 53)); o uso de

“mim” como sujeito (“Abra a porta pra mim entrar!”(MHSNC [1928] 1981, p.

26), além de inúmeros outros traços linguísticos que singularizam a fala

brasileira e mereceram a atenção de Mário tanto como um (socio)linguista

temporão, quanto como escritor que emprega a sua autoridade para fazer

sobressair da linguagem popular a fala culta, erudita, digna de representar a

“universalidade brasileira” (SD56), como povo civilizado, no concerto da

humanidade.

A leitura do corpus empreendida neste capítulo nos revela a

convergência do ethos pré-discursivo e discursivo de Mário com o ethos da

comunidade ética modernista no tocante à militância, à revolta, ao combate da

estética acadêmica, ao passadismo, à imposição do padrão linguístico lusitano

etc. Contudo, ela também nos revela a divergência do ethos de Mário em

relação ao ethos modernista quanto a se portar como um mero ideólogo do

movimento ou a se portar como um experimentador, um artífice, um autêntico

obreiro da missão modernista, na São Paulo e no Brasil das primeiras décadas

do século XX, em meio a parnasianos, simbolistas, regionalistas e a outros

movimentos. Por isso, ousamos dizer que a obra literária de Mário é uma

demonstração, ou melhor, uma mostração do ethos da coragem.

Page 159: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

159

Pela coragem de fazer o que pregava, pelo espírito e pela prática

libertária, Mário assumia a posição de modernista exemplar, com moral para

chamar a atenção, criticar e aconselhar colegas de movimento, às vezes

também amigos pessoais do escritor, que fraquejavam na prática literária,

sucumbindo à canga portuguesa. Em resumo, o enunciador que fala na obra de

Mário de Andrade incorpora um ethos de militante, combativo, corajoso,

vigoroso, libertário, irreverente que não recua nunca da luta pela emancipação

da cultura brasileira, fazendo dela seu projeto de vida e não uma mera

preocupação acadêmica e/ou profissional. Como os demais modernistas da

primeira geração, que exerceram o papel de vanguarda de um movimento de

ruptura com o passado, Mário aderiu integralmente à causa pela qual lutava.

Como já explicitamos anteriormente, nosso corpus foi constituído por

SDs, que explicita ou implicitamente tematizassem o português brasileiro. Isso

significa que não levamos em conta, em nossa análise, os gêneros dos textos

(crítica, cartas pessoais, ensaios, crônicas, poemas, romance etc.) dos quais

recortamos as sequências discursivas lidas nos capítulos 3 e 4. Assim, em

termos de cena da enunciação, visualizamos uma cena englobante, cujo

estatuto pragmático seria o acadêmico – a intelligentsia brasileira pensando o

Brasil. As cenas genéricas, várias, não importaram para nossa análise,

contudo, a cenografia da qual o ethos participa foi fundamental. Segundo

Baronas (2012, p. 395), os ethe constituem regimes históricos: “Cada época e

lugar estabelecem zonas semióticas, que propõem modelos para as maneiras

de falar e de ser, isto é, são essas zonas que dão o tom dos discursos”. Tal

afirmação ajusta-se perfeitamente ao que fora observado em relação à maneira

de Mário de Andrade falar, ressoando, em grande parte, o modo de a

comunidade ética modernista se portar e enunciar no Brasil das décadas de

1920 a 1940. Mário encarna, em muitos aspectos, o estereótipo do intelectual

modernista, aquele que diz “não” a todo saber instituído, estabelecido,

normatizado, regulado, oficializado, burocratizado, talhado pela régua de

alguma escola ou pela estética consagrada pelo intelectual mediano.

Paradoxalmente, o estereótipo do modernista reflete o desejo de fugir ao

estereótipo: o modernista se recusa a ser um funcionário do pensamento. O

modernista “é aquele que se posiciona na brecha como revisionista, que gera

polêmica e desestabiliza a ordem social” (MUSSALIM, 2008, p. 77).

Page 160: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

160

Nessa fase de sua história, o Brasil passava por profundas

transformações econômicas, políticas, sociais e culturais, vivenciando o ápice

da crise entre o rural e o urbano, entre a produção artesanal e a

industrialização, entre o imobilismo e o progresso, entre o passado e o

presente, entre o novo e o velho, entre o ranço do império e as promessas

irrealizadas da república, entre o acadêmico e o moderno, entre o legado

cultural português e europeu e a cultura brasileira, entre o nacional e o

estrangeiro, entre a tradição e a mudança. Esse cenário tenso propiciava a

formação de um espírito revolucionário, a tomada de consciência da nova

realidade nacional e o inconformismo político que, por sua vez, gerava a

reação dos conservadores e conformistas. No quadro dessas condições de

produção, a primeira geração de modernistas formava uma comunidade ética

forte e emocionalmente envolvida no debate em torno da brasilidade,

relativamente à cultura, às artes, à literatura e à língua. Tinha por topografia e

cronografia a cidade de São Paulo das primeiras décadas do século XX, por

ser um espaço-tempo que, como nenhum outro, reunia os muitos brasis que

havia no Brasil. Como ícone do Brasil, São Paulo não representava o puro, o

genuíno, o autêntico, mas o misturado, o mestiço, o complexo, era o entre-

lugar entre o Brasil velho, arcaico e o Brasil novo, moderno. Podemos mesmo

dizer que entre São Paulo e o modernismo havia uma sinergia.

Se, por um lado, os primeiros modernistas defendiam a apropriação da

cultura popular e da fala brasileira como base de seu projeto estético

nacionalista, eles iam muito além disso na sua concepção de arte. Para eles,

não eram os sertões, as grotas, o nordeste ou o sul, a roça ou a cidade, a

floresta, o índio ou negro, o Brasil tradicional, que as artes, a literatura e a

língua brasileira deviam refletir, mas era tudo isso junto ressignificado pelo

banho da civilização. Eles não se viam mais praticando um nacionalismo

ingênuo, telúrico, ufanista, à maneira dos românticos. Profundamente críticos

desse nacionalismo, os modernistas vislumbravam o casamento da cultura

popular com os conhecimentos e a técnica praticada pelas escolas européias,

enfim, o casamento da barbárie com a civilização, mas com a preocupação de

não instituir uma “escola”. Mário de Andrade exprime perfeitamente o núcleo da

estética modernista por meio da expressão “transposição erudita da barbárie”.

A técnica sem o caldo da cultura popular resultava em academicismo, prática

Page 161: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

161

que eles abominavam, e a cultura popular sem a técnica apropriada e

ressignificada pela subjetividade do artista/escritor equivalia a folclore, uma

manifestação cultural indigna de figurar em meio à cultura civilizada universal,

posição almejada por eles. Os modernistas não se queriam fazendo cultura

popular; eles se queriam fazendo da cultura popular uma cultura erudita. O

projeto modernista era, pois, ambicioso, ele trabalhava o conflito entre a

produção de arte no Brasil em relação à Europa. Ele buscava “superar o estado

de reverência absoluta a essa cultura, mantido até então pelos acadêmicos”, e

compreendia “a relação com a Europa de uma maneira dinâmica e, sobretudo,

contra-aculturativa” (MUSSALIM, 2006, p. 21). Os modernistas queriam ver a

sua arte e a sua literatura sendo reconhecida pela Europa como criação de

uma estética revolucionária.

Assim, na vanguarda de um projeto estético contra-aculturativo, Mário de

Andrade e outros escritores modernistas da primeira fase, incluindo-se em

meio a intelligentsia brasileira (a pauliceia desvairada), se enredaram numa

acalorada querela com os representantes do pensamento bem comportado, da

arte e literatura acadêmica, da cultura oficial, das normas gramaticais lusitanas,

do nacionalismo ufanista, para introduzir descontinuidades e rupturas e

circunscrever um nicho de pensamento e sentidos singulares a que chamavam

de “modernismo”. Pela sua natureza, a prática discursiva dos modernistas

resulta num discurso em que a heterogeneidade constitutiva aflora na

superfície do enunciado na forma de heterogeneidade mostrada, a qual, pelo

processo inalienável de interincompreensão do discurso do Outro, se apresenta

invariavelmente sob a forma do simulacro. Por trazer inscritas, na

materialidade linguística, as marcas da heterogeneidade constitutiva, conforme

análise realizada no capítulo 3, o discurso modernista se caracteriza como um

discurso polêmico, cujo enunciador incorpora o ethos do militante, revoltado,

insurreto, contestador, rebelde, libertário, que faz “oscilar as certezas

estabelecidas e o conformismo intelectual” e estilhaça ou pelo menos ri das

“baronias do saber” (MAFFESOLI, 1987, p. 27 e 31).

Page 162: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

162

Considerações finais

Chegamos ao momento de fazer uma reflexão sobre os achados da

pesquisa. Em se tratando de um estudo filiado à análise de discurso,

consideramos inapropriado falar em conclusão, uma vez que partilhamos o

pensamento nietzscheano de que “não existem fatos, apenas interpretações” e

as interpretações sempre podem ser outras. Constrangidas a cumprir as

formalidades do gênero dissertação, encaramos, pois, essa tarefa não como

um fechamento de portas e janelas, mas sim como uma abertura de vias para o

fecundo e inesgotável continente de insights que é o arquivo Mário de Andrade.

O que nos moveu, desde o momento de elaboração do projeto que

culminou com esta dissertação, foi o desejo de compreender o posicionamento

discursivo de Mário de Andrade, no longevo debate acerca do acontecimento

linguístico que alterou substancialmente o português lusitano, instaurando uma

outra língua – a brasileira, apesar de a história oficial da colonização tentar

calá-la de muitos modos. Durante o processo de leitura das obras do escritor

para a seleção e recorte das sequências discursivas (SDs) que comporiam o

corpus, percebemos a necessidade de levar em conta a primeira e a segunda

fase do movimento modernista, fases vividas por Mário, uma vez que ele reviu

seu posicionamento acerca da língua brasileira ao longo de sua trajetória

intelectual. Isso nos fez prestar atenção nas datas de publicação dos textos

que nos serviram de fonte para a coleta de dados.

Na primeira fase (1922-1930), o grupo, influenciado pelas vanguardas

europeias, fazia forte oposição ao academicismo, dando vazão ao impulso de

destruir todos os princípios sobre os quais a estética clássica se fundava. O

objetivo era desestabilizar e derrubar os tentáculos dos artistas e escritores

bem comportados, passadistas, submissos ao classicismo então ressuscitado

pelos parnasianos, expiar, de uma vez por todas, nosso complexo de

colonizados, repudiando a xenofilia e o padrão cultural vigente. Animados com

a aproximação do centenário da independência política do país, os modernistas

buscavam consolidar o processo de emancipação em esferas de atividades em

que o Brasil ainda se mostrava dependente de Portugal e da Europa, de um

modo geral. Para eles, não bastava romper com a dominação política, era

necessária autonomia cultural, artística, literária e, sobremaneira, linguística.

Page 163: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

163

Só assim, o país atingiria sua plena autonomia e maioridade. Por essa razão, o

grupo assumia uma perspectiva acentuadamente nacionalista da realidade

brasileira. O binômio nação-língua tornara-se ponto obrigatório na pauta dos

debates. Foi uma fase bastante radical, destrutiva, anárquica, dionisíaca, com

divergência de pontos de vista dentro do próprio grupo. Perfilaram-se quatro

movimentos: Pau-Brasil, Antropofagia, Verde-Amarelismo e Anta, divididos

entre duas maneiras de ver e expressar a ideologia nacionalista: os dois

primeiros defendiam um nacionalismo crítico, com a revisão de nosso passado

histórico e cultural, a valorização da diversidade e dos contrastes da realidade

brasileira, a devoração simbólica da cultura do colonizador europeu, sem com

isso perder a nossa identidade cultural; os dois últimos defendiam um

nacionalismo radicado à terra e à pátria, primitivista que idolatrava o tupi e

renegava o nacionalismo vanguardista de Oswald de Andrade. Mário de

Andrade se identificava com a primeira tendência ideológica e se queria

distante do ufanismo patrioteiro da segunda tendência. Nessa fase, a vibrante

comunidade modernista se engalfinhava em querelas intestinas motivada pela

diversidade de pontos de vista.

A segunda fase (1930-1945) foi marcada pela revisão das concepções

norteadoras do movimento. A geração de 30 não precisou brigar tanto quanto a

de 22 para pôr seu projeto ético e estético na academia e na rua. As

manifestações artísticas e literárias individuais foram avultando como práticas

relacionadas a um grupo com afinidade de propostas. O idioma modernista já

se apresentava estruturado e assimilado pelo grupo e era reconhecido em meio

a intelligentsia brasileira. Além de pôr em destaque o projeto ideológico de

identificação e valorização dos elementos caracterizadores de uma identidade

nacional, a segunda geração pôde se dedicar aos dramas do mundo e da vida

cotidiana e às mazelas do capitalismo. Nessa fase, Mário de Andrade se

apartou de alguns companheiros de modernismo por não compactuar com a

ideia de fazer das artes e da literatura brasileira uma ilha incomunicável com as

tendências européias. Sem perder de vista a constituição da identidade

cultural, artística, literária e linguística brasileira, ele insistia na necessidade de

projetá-la no concerto das culturas civilizadas da república universal.

Essa retomada da conjuntura vivida intensamente por Mário de Andrade

na São Paulo das décadas de 1920 a 1940 foi fundamental para a evocação da

Page 164: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

164

ideologia do movimento e para a compreensão de como o escritor se portava

em relação a ela. Assim, consideramos ter preparado o terreno para

compreender seu posicionamento ideológico-discursivo convergente ou

divergente no tocante à maneira de o modernismo significar a identidade

linguística brasileira.

Propusemo-nos, como um dos objetivos específicos, esquadrinhar o

posicionamento discursivo de Mário de Andrade no debate travado por

modernistas e conservadores, nas primeiras décadas do século XX, acerca da

constituição de uma identidade brasileira, focalizando, especialmente, os

sentidos por ele atribuídos ao acontecimento linguístico que, desde o princípio

da colonização, vinha engendrando uma língua ou uma norma outra que

rachava o suposto reino indiviso da lusofonia. Desde a entrada no arquivo de

Mário de Andrade, começou a se delinear sua interpretação sobre a alteridade

linguística do português brasileiro, em oposição à interpretação institucional,

conservadora que a significava negativamente, como corrupção da língua

autêntica, original, pura. A posição modernista quanto à língua a ser usada na

prática literária, condensada, de modo chocante, no enunciado de Oswald de

Andrade no Manifesto Pau-Brasil (1924-1925) – “A língua sem arcaísmos, sem

erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros.

Como falamos. Como somos” – era, grosso modo, compartilhada por Mário de

Andrade. Ele dizia sim à reivindicação de uma identidade linguística brasileira,

mas lhe desagrava a ideia de que isso tivesse se tornado um escudo para cada

um escrever como bem entendesse, que isso descambasse para o casuísmo

ou, na melhor das hipóteses, para o regionalismo. Ele vislumbrava uma

brasilidade linguística universal que refletisse a pluralidade de normas dialetais

e sociais em uso nas mais diversas regiões e estratos sociais do país. Era

igualmente preciso ultrapassar a solução regionalista de fazer as personagens

falar o dialeto nordestino, gaúcho, paulistano, caipira etc, enquanto os

narradores, eles mesmos, continuavam a se servir da língua “certa”, conforme

os ditames dos gramáticos portugueses. Era preciso dar à prática literária uma

norma brasileira. Movido por esse desejo, Mário se envolveu por algum tempo

no projeto de elaboração de A gramatiquinha da fala brasileira com o propósito

de estilizar a fala vulgar, para chegar a uma solução menos transitória, menos

efêmera, menos individualista e mais unânime da norma brasileira, que ele

Page 165: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

165

chamava de “fala brasileira”. O mesmo princípio que movia o projeto estético

modernista – “a transposição erudita da barbárie” – movia também o projeto

linguístico marioandradino de estilização da fala vulgar. Era preciso superar o

caos reinante na escrita literária desde que os escritores modernistas se

colocaram no fronte da guerra para abrasileirá-la.

A defesa desse ponto de vista em meio a um pensamento linguístico

hegemonicamente gramatiqueiro e purista era o pivô de muitos embates e de

uma prática interdiscursiva atravessada pela polêmica, já que a relação entre

os discursos concorrentes no espaço discursivo focalizado neste estudo não

era de aliança, mas sim de confronto aberto, oposição e dissensão. Em vista

dessa constatação, propusemo-nos também a apreender, no nível da

superfície linguística, as marcas materiais da polêmica entre o discurso

modernista e conservador referente à língua nacional. Na prática discursiva de

Mário, a polêmica se manifesta na pele dos enunciados, principalmente por

meio de simulacros e da negação polifônica. Tudo o que os conservadores

descartavam para fora do continente da boa língua – “vícios de linguagem”,

“erros”, “vulgarismos”, “solecismos”, “brasileirismos” – Mário defendia como

traços dignos de cidadania, como variação natural das línguas. A língua, para

ele, era “um instrumento vivo, em eterno fazer-se, a que qualquer coisa

modifica, transforma ou acrescenta” (SD28). Ao buscar afirmar seu

posicionamento linguístico, Mário sempre se referia ao Outro por meio de

simulacros. O Outro é nomeado/avaliado negativamente como “passadista”,

“culteranista”, praticante de “gramatiquice”, “colocadores de pronomes à

portuguesa” e a língua que ele defende é dita “coisa oficial gélida”, “morta”, “um

Ministério das Relações Exteriores”. Os parnasianos, pelo seu purismo

exacerbado, são significados como aqueles que “deformaram a língua

nascente, em prol do estilo”, como aqueles que abriram mão da “língua boa”

pela “língua certa”. Assim, os semas positivos da formação discursiva

parnasiana tornam-se negativos quando lidos por um sujeito interpelado pela

formação discursiva modernista. Além da abundância de simulacros, a

polêmica também se superficializa nos enunciados por meio da negação

polifônica, mediante uso de termos negativos, que exprimem o confronto de

pontos de vista, a exemplo do que ocorre na SD23: “os chamados

brasileirismos por simples bobagem de comodismo gramatical não são

Page 166: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

166

brasileirismos nem nada, são palavras, sintaxes novas incorporadas à fala

portuga e, portanto, fazendo parte dela legitimamente. Pertencem à língua

portuguesa.” Nesse caso, Mário lança mão da negação polifônica para

contradizer a posição defendida pelos conservadores para quem os

brasileirismos eram considerados vícios de linguagem. Enfim, para constituir-

se, o discurso modernista procurava rebaixar, desautorizar, desacreditar o

discurso conservador, criticando sua dependência com relação aos padrões

linguísticos e estéticos portugueses e europeus.

Contudo, os embates travados por Mário de Andrade não se restringem

aos conservadores; ele polemizou até mesmo com seus próprios companheiros

de movimento. Daí termos nos proposto também a apreender, no nível da

superfície linguística, as marcas materiais da polêmica aberta por Mário de

Andrade no interior do nicho modernista. O enunciador compartilha com os

modernistas várias teses, mas diverge deles em relação à animosidade contra

tudo aquilo que vinha de Portugal, principalmente o padrão gramatical lusitano.

Essa dissensão em relação ao grupo aflora em muitos enunciados, sob a forma

da negação polêmica, expressa por meio de termos como “não”, “sem”, “nem”,

“nenhum”. Ao enunciado prototípico e programático do modernismo: “Reagir

contra Portugal”, Mário replicava “Não reagir contra Portugal. Esquecer

Portugal, isso sim” (SD11). Isso não significava, entretanto, que ele estava

sucumbindo à canga lusitana, apenas que vislumbrava uma mudança de

estratégia. Ao invés de uma guerra declarada, Mário nos convidava a desistir

do confronto aberto com Portugal, a ignorá-lo, a esquecê-lo, a dar de ombros

àqueles que haviam nos dominado por séculos: “Escrever naturalmente

brasileiro sem nenhuma reivindicação nem queixa” (SD8), sem se importar em

“coincidir” ou não com os modelos literários e o padrão linguístico português.

Enfim, a energia despendida na briga deveria ser canalizada para a expressão

brasileira. Quanto mais nos concentrássemos na pesquisa e na produção de

uma literatura de expressão brasileira, mais nos fortaleceríamos no cenário

literário universal. Isso valia também para as demais artes. Ademais, Mário

também reconhecia que havia muito de Portugal em nós e se renegássemos

essa herança poderíamos quebrar a ligação com o cosmos, enfim, sua postura

ética humanista acaba determinando o rumo de seu projeto estético.

Page 167: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

167

A organização cronológica do corpus nos permitiu perceber as

mudanças na nomeação da entidade linguística brasileira, ao longo da

trajetória intelectual de Mário de Andrade. Na sua fase mais radical e

revolucionária, ele chegou a assumir uma posição separatista forte, referindo-

se à língua brasileira (SD12) ou ao brasileiro (SD13), como se ela fosse uma

língua já estabilizada e independente do português. Após essa fase heroica,

vamos dizer assim, Mário amenizou sua postura separatista e deslizou para

uma posição conciliatória entre as duas línguas. Nessa fase, ele ainda usava o

termo “brasileira”, mas depois de fala (“fala brasileira”) e não mais depois de

língua (SD18). O modernista desejava fazer do que os conservadores

chamavam de “vulgarismos”, “barbarismos” ou “brasileirismos” uma estilização

erudita, com a finalidade de dotar a escrita literária de uma norma culta

brasileira e não de uma outra língua. Observamos, ainda, uma terceira maneira

de Mário se referir à língua do Brasil. Por vezes, ele a nomeava como língua

nacional (SD22), termo que, por não determinar o adjetivo pátrio, permitia jogar

com a ambiguidade, ou melhor, com o entre-lugar entre a língua brasileira e a

língua portuguesa.

Outra descoberta que nos chamou a atenção foi o feeling

sociolinguístico de Mário de Andrade, mesmo antes de a linguística ter

chegado ao Brasil. Mário morreu em 1945 e a introdução dessa ciência nos

cursos de Letras brasileiros só ocorreu no final da década de 1960. Mário

defendia que uma pesquisa sobre a língua de um povo devia se basear na fala

das pessoas de todas as classes sociais e de todas as regiões e não apenas

na fala de caipiras, nordestinos ou analfabetos. Esse princípio é nuclear ao que

a sociolinguística concebe como “vernáculo”, a língua efetivamente usada pelo

povo e não a empacotada e prescrita nas gramáticas normativas. Outro

postulado sociolinguístico presente nos enunciados de Mário é o de que a

heterogeneidade é inerente a toda e qualquer língua, contrariando, assim, o

pressuposto purista, balizador do discurso da tradição gramatical, de que as

línguas são homogêneas. A variação e a mudança são princípios basilares da

sociolinguística, e Mário, antes mesmo de essa ciência existir, já visualizava

essas propriedades das línguas. Outras premissas sociolinguísticas antevistas

por Mário são: a postura descritiva diante dos fatos linguísticos e não

Page 168: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

168

prescritiva, a precedência do uso da língua sobre a formalização gramatical e a

substituição do princípio de correção pelo de adequação.

Consideramos analiticamente produtivo explorar nosso corpus também à

luz do conceito de ethos discursivo, uma vez que a leitura dos enunciados nos

colocava diante de um enunciador que assumia uma voz ruidosa, passional, no

tom das práticas discursivas de militância revolucionária. Assim, investigar o

ethos do enunciador modernista ao defender a tese da nacionalização da

língua ou da fala brasileira foi mais um dos nossos objetivos. As análises

realizadas no capítulo 4 nos mostraram a convergência do ethos pré-

discursivo, que ligava Mário de Andrade aos demais integrantes da

comunidade ética modernista, e o ethos discursivo (dito e mostrado), no que se

refere ao caráter de destruição, negação, revolta e combate contra o

academicismo e o passadismo. Contudo, observamos que Mário vai se

afastando do grupo, assumindo uma postura mais construtiva, no que tange à

oposição a Portugal e à necessidade de superar o estágio da pregação

ideológica em favor da pesquisa estética e linguística (as duas atreladas) e da

efetiva produção de uma literatura moderna brasileira.

O estereótipo do modernista que vigorava no campo intelectual e

também na doxa paulistana era o do sujeito insurreto, revolucionário e

demolidor da ordem hegemônica nas artes e nas Letras brasileiras, nas

primeiras décadas do século XX. Como o campo das batalhas intelectuais

contra a estética consagrada era público – os embates se davam,

principalmente, na imprensa e nas festas dos salões da cidade de São Paulo –

o grupo acabou gerando em torno de si “uma semântica do maldizer, pautada

nos boatos a respeito do que ocorria nessas festas” (MUSSALIM, 2008, p. 76).

Mário de Andrade referia-se a esses encontros como “a maior orgia intelectual”

registrada pela história artística do país. Era, pois, quase impossível separar o

enunciador Mário de Andrade do ethos pré-discursivo do sujeito modernista.

Ele mesmo reconhecia ter sido uma “pedra de escândalo” (SD45), e não saber

como tinha tido “coragem pra dizer aqueles versos diante duma vaia tão

bulhenta que eu não escutava no palco o que Paulo Prado me gritava na

primeira fila das poltronas?... Como pude fazer uma conferência sobre artes

plásticas, na escadaria do teatro, cercado de anônimos que me caçoavam e

ofendiam a valer” (ALB-MM, [1942] 2002, p 254). O ethos modernista pré-

Page 169: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

169

discursivo é também nomeado e encarnado pelo enunciador Mário de Andrade

por uma copiosa coleção de designações que significam, todas elas, o caráter

e o tom destruidor que se apoderam de quem enuncia em nome do movimento;

ele fala do “espírito de guerra eminentemente destruidor”, “estado de espírito

revolucionário”, “sentimento de arrebentação”, “período destruidor”, “revolta

contra o que era inteligência nacional”, “abandono de princípios e de técnicas”,

“direito antiacadêmico de pesquisa estética” etc. No texto O movimento

modernista, Mário afirma que um discurso de caráter polêmico não poderia

mesmo ter sido “analítico” e “construtivo”: “o espírito modernista que avassalou

o Brasil, que deu o sentido histórico da Inteligência Nacional desse período, foi

destruidor.” (ALB-MM, [1942] 2002, p.265).

No caso específico da literatura, o pomo da discórdia entre Mário e

muitos de seus companheiros de movimento era pregar a destruição na teoria,

nos discursos programáticos, e não praticá-la na escrita literária. Nesse mesmo

texto, ele criticava aqueles escritores que solucionavam o problema do

abrasileiramento da linguagem literária, comicamente, dividindo-o em registro

escrito e falado: “escrevem gramaticalmente, mas permitem que seus

personagens, falando, “errem” o português. Assim, a ... culpa não é do escritor,

é dos personagens!” (ALB-MM, [1942] 2002, p. 269). Diante dessa prática,

habitual entre os escritores que lhe eram contemporâneos, Mário exaltava a

sua coragem de praticar o que pregava, de não ficar só no convite, no

“sejamos” e no “escrevamos” brasileiro. A análise de suas obras literárias

atesta a liberdade de ousar o experimentalismo estético que incluía a liberdade

de inundar os textos de brasileirismos, sem distinção entre as vozes do

narrador e das personagens e dos registros oral e escrito, o que mostra a

coerência entre o ethos dito e o mostrado da coragem. Assim, se, por um lado,

um primeiro Mário aderia ao ethos militante, libertário, revolucionário,

irreverente, passional, inconformista, anti-acadêmico, destruidor, corajoso,

coincidindo com o estereótipo do agente provocador da comunidade ética

modernista, por outro, um segundo Mário se apresentava como mais

construtivo, pacificador, defendendo um projeto político, ético, estético e

linguístico que visava a uma brasilidade nacional, para além dos regionalismos,

e que não perdia de vista o desejo de ver a cultura brasileira entre as demais

que faziam parte da república universal da cultura civilizada.

Page 170: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

170

Diante do exposto, consideramos que nossa hipótese de estudo – Os

enunciados marioandradinos acerca da língua falada no Brasil estão

impregnados das contradições entre o discurso modernista e o discurso

conservador que permeiam o campo discursivo das Letras no Brasil das

primeiras décadas do século XX – foi confirmada, tendo em vista o inextricável

enredamento interdiscursivo entre enunciados modernistas e conservadores

acerca da identidade nacional, linguística, literária, artística e cultural. Havia

uma vontade coletiva de nação brasileira/língua nacional, mas não havia

consenso sobre ela, daí o campo discursivo das Letras experimentar um

momento histórico de profícua polêmica em que as diversas posições

avultavam e se batiam nas cenas de enunciação, cada uma renegando a outra

e gritando mais alto o suposto sentido “verdadeiro”. O binômio nação

brasileira/língua nacional podia ser interpretado como nação brasileira/língua

portuguesa, nação brasileira/língua brasileira, nação brasileira/língua tupi,

nação brasileira/falas brasileiras regionais ou nação brasileira/fala brasileira

universal. Quem, como Mário, assumia a última posição lia as demais posições

por meio de simulacros que as desqualificavam, a exemplo do enunciado

seguinte em que comenta a contundente afirmação de Graça Aranha – “Não

somos a câmara mortuária de Portugal” – identificada com o nacionalismo

genuíno, autêntico, radicado à terra, separatista: “A radicação à terra, gritada

em doutrinas e manifestos não passava de um conformismo acomodatício.

Menos que radicação, uma cantoria ensurdecedora, [...] que não raro tornou-se

um porque-me-ufanismo larvar” (ALB-MM, [1942] 2002, p. 267). Quem divergia

de Mário também interpretava a sua posição por meio de simulacros. Como se

tratava de acompanhar o discurso modernista no momento de seu nascimento,

no momento em que ele buscava rachar o discurso instituído, conjeturar a

natureza contraditorial dos enunciados de Mário de Andrade era inevitável,

embora ele tivesse pressa em esquecer o renitente fantasma do Outro: “Não

reagir contra Portugal. Esquecer Portugal, isso sim. É o que fiz” (SD11). Na

prática, esquecer Portugal, naquele momento, era impossível, por isso o

discurso modernista é um discurso polêmico e o ethos predominante do

enunciador modernista é o do destruidor, do revoltado, do insurreto etc.

Consideramos, assim, que a escolha da análise de discurso de linha

francesa e dos conceitos de ‘formação discursiva’, ‘formação ideológica’ e

Page 171: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

171

‘interdiscurso’, esse último desdobrado em “heterogeneidade constitutiva e

mostrada”, ‘interincompreensão’, ‘tradução’ e ‘simulacro’, foi fundamental na

leitura do corpus que recortamos do monumental arquivo marioandradino.

Também o conceito de ‘ethos discursivo’ se mostrou necessário, uma vez que

lidávamos com um discurso transgressor no que e no como de sua enunciação,

com um discurso pronunciado por “espíritos livres que curto-circuitam as

escolas, o dogmático e as modas, que misturam estreitamente pensamento e

paixão, e que não hesitam em fazer dessa conjugação uma verdadeira

aventura” (MAFFESOLI, 1987, p30). Com relação às leituras que fizemos do

corpus com base em tais conceitos, avaliamos que elas poderiam ter sido mais

detalhadas, poderiam ter esmiuçado em filigranas a inscrição da polêmica e do

ethos na materialidade linguística, mas a descomunal extensão da nossa

coletânea de enunciados acabou tornando essa tarefa invencível, ao menos no

tempo instituído para o mestrado. Reconhecemos que as leituras abreviadas,

não tão densas das sequências discursivas, foram o preço que pagamos pela

nossa desmedida na constituição do corpus, mas tínhamos nos proposto o

desafio de enfrentar uma massa volumosa de enunciados, uma vez que o

habitual, em análise de discurso, tem sido o contrário, tem sido fazer um

corpus mínimo render o máximo. Assim, não pudemos evitar de fazer o

máximo render o mínimo.

Como último objetivo deste estudo, nos propusemos a verticalizar a

reflexão acerca do português como uma língua heterogênea, no sentido de

desnaturalizar e combater o preconceito linguístico. No momento em que

estávamos às voltas com a elaboração do projeto de pesquisa que culminou

com esta dissertação, acompanhamos uma barulhenta polêmica na mídia

nacional em torno do livro didático de língua portuguesa Por uma vida melhor,

distribuído pelo MEC. A polêmica foi deflagrada por uma notícia bombástica,

divulgada pelo jornalista Alexandre Garcia, no programa matinal Bom Dia Brasil

da Rede Globo, reprovando o MEC e os autores do famigerado livro, por

fomentar o uso do português errado. A notícia rendeu pauta para os meses de

maio e junho de 2011, com profissionais das mais diversas áreas de

conhecimento e mídia se pronunciando a favor ou contra a interpretação

sociolinguística assumida pelos autores do livro em consonância com os

Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa. Olhando

Page 172: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

172

atentamente para essa polêmica em torno da língua a ser ensinada na escola

no século XXI, é inevitável não pensarmos na atualidade da polêmica

vivenciada pelos modernistas no início do século XX. Na época de Mário, ele

cobrava o empenho dos filólogos que, ao invés de se aplicarem em reformas

ortográficas patrioteiras, deveriam “fornecer aos artistas uma codificação das

tendências e constâncias da expressão linguística nacional” (ALB-MM, [1942]

2002, p. 270). Hoje contamos com linguistas, sociolinguistas e dialetólogos que

já avançaram muito na descrição e codificação do português brasileiro, mas,

fora da comunidade ética dos linguistas, continuamos tão indigentes quanto

Mário de Andrade. Apenas nós, linguistas, acreditamos e defendemos o

princípio de que “uma língua é sempre várias línguas”, contra o princípio de

que “uma língua é sempre a mesma língua”, independentemente do espaço e

do tempo e de por quem seja usada. Desalentado com os resultados das

pesquisas sobre a língua nacional em sua época, Mário invocou José de

Alencar para prognosticar que seria preciso esperar outro movimento

modernista para que as constâncias sintáticas que de fato caracterizavam a

fala brasileira fossem codificadas: “isso decerto ficará para o futuro movimento

modernista, amigo José de Alencar, meu irmão” (ALB-MM, [1942] 2002, p.

271). Por nossa vez, nós linguistas que, um século depois, estamos ajudando a

codificar a pluralidade de normas que compõem o português brasileiro,

prognosticamos, amigo Mário de Andrade, que será preciso mais um século

para mudar o pensamento linguístico monoteísta da praça pública.

Page 173: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

173

Referências Bibliográficas

OBRAS DE MÁRIO DE ANDRADE

ANDRADE, Mário de. O movimento Modernista IN: Aspectos da literatura brasileira. 6. ed. Editora Itatiaia: [1942] 2002, p. 252-280.

______. Amar, verbo intransitivo. São Paulo: Círculo do livro, [1927] 1995.

______. A Enciclopédia Brasileira. Edição crítica e estudo de Flávia Camargo Toni. São Paulo: Giordano/EDUSP, 1993.

______. Pauliceia Desvairada, In: Poesias completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte: Villa Ricca, [1922] 1993.

______. A Costela do Grã Cão, In: Poesias completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte: Villa Ricca, [1941] 1993.

______. Losango Cáqui, In: Poesias completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte: Villa Ricca, [1926] 1993.

______. Clã de Jabuti, In: Poesias completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte: Villa Ricca, [1927] 1993.

______. Os Contos de Belazarte. 8. ed. Belo Horizonte, Rio de Janeiro: Villa Rica, [1934] 1992.

______. Esboços para a Gramatiquinha da fala brasileira. In: PINTO, Edith Pimentel (Org.). A Gramatiquinha de Mário de Andrade - Texto e Contexto. São Paulo: Duas Cidades, [1928] 1990.

______. Cartas a Anita Malfatti. Org. Marta Rossetti Batista. Rio de janeiro: Forense Universitária, 1989.

______. O turista aprendiz. (Org.) Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo: Livraria Duas cidades, 1983a.

______. Mário de Andrade e a Sociedade de Etnografia e Folclore: 1936-1939. Departamento de Cultura da Prefeitura do Município de São Paulo. Rio de

Page 174: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

174

Janeiro: FUNARTE/Instituto Nacional do Folclore. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1983b.

______. A Lição do amigo. Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, anotadas pelo destinatário. Rio de janeiro: J. Olympio, 1982.

______. cartas a um jovem escritor. cartas de Mário de Andrade a Fernando Sabino. RJ: Record, 1981.

______. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. 8. ed. São Paulo, Martins, Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; [1928] 1981.

______. Taxi e crônicas no Diário Nacional. Estabelecimento de texto, introdução e notas de Telê Ancora Lopez. São paulo: Duas cidades, 1976.

______. O empalhador de passarinho. 3 ed. São Paulo: Martins; Brasília, INL, [1944] 1972.

______. Cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1958.

______. A situação etnográfica no Brasil. Jornal Síntese, Belo Horizonte, vol.1, nº 1, outubro de 1936, apud Catálogo da Sociedade de etnografia e folclore, disponível em: www.centrocultural.sp.gov.br/livros/pdfs/sef.pdf, acessado em 05/11/2012.

BIBLIOGRAFIA:

ALBUQUERQUE, J. G. e COX, M. I. P.A polêmica entre separatistas e

legitimistas em torno da língua do Brasil na segunda metade do século XIX.

Revista Polifonia, Cuiabá, EdUFMT, N. 3, 1997, p. 31-51.

ALENCAR, Mário (1919). Período Pronominal. In: Pinto, E. P. O Português do Brasil 1 (1820-1920). São Paulo: EDUSP, 1981, p. 457-468.

ALVARENGA, Oneyda. Mário de Andrade: Um pouco. Rio de janeiro, J. Olympio; São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1974.

Page 175: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

175

AMOSSY, Ruth. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In: AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso, a construção do ethos, São Paulo, Contexto, 2008, p.9-28.

ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófago e Manifesto da poesia pau-brasil In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976.

ARANHA, Graça (1924). O espírito modernista. In: Pinto, E. P. O Português do Brasil 2 (1920-1945). São Paulo: EDUSP, 1981, p. 47 e 48.

ARANHA, Graça (1924). O espírito acadêmico. In: Pinto, E. P. O Português do Brasil 2 (1920-1945). São Paulo: EDUSP, 1981, p. 49.

ARISTÓTELES. Retórica – Obras completas. Biblioteca de autores clássicos, Imprensa nacional-Casa da Moeda, ISBN 972-27-1377-9, Cord. De Antônio Pedro Mesquita – Centro de estudos clássicos da Universidade de Lisboa, 2005.

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

______. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, no. 19, jul/dez. 1990, p. 25-42.

BHABHA, H. K. O local da Cultura. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2005.

BAGNO, Marcos. Português ou brasileiro? Um convite à pesquisa. São Paulo: Parábola Editorial, 2001.

BARONAS, Roberto Leiser. Capítulo 4. In: Andrade, E. A. et alii. Plano de Guerra da Capitania de Matto Grosso: janeiro de 1800. Cuiabá, EdUFMT, 2012, p. 395-419.

BARTHES, Roland L’ancienne rhétorique. Aide-mémoire. Communications, n. 16, 1970, p.172-223.

BILAC, O. Instrução e Patriotismo. In: Pinto, E. P. O Português do Brasil 1 (1820-1920). São Paulo: EDUSP, 1978, p. 365.

Page 176: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

176

BOSI, Alfredo. Um mito sacrificial: o indianismo de Alencar. In: Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

BUSCÁCIO, Lívia Letícia Belmiro. Do gesto de nomear a língua do Brasil: Mário de Andrade e a Gramatiquinha da fala brasileira. Revista Icarahy, Niteroi Edição n. 4, outubro de 2010, p. 01-21.

COSERIU, Eugênio. Lições de linguística geral. Rio de janeiro: Ed. Ao Livro Técnico S/A, [1952]1980.

COX, M. I. P. O falar cuiabano entre aspas: uma concessão à voz ‘outra’, In: POSSENTI, Sírio; BARONAS, Roberto Leiser. Contribuições de Dominque Maingueneau para a Análise do Discurso no Brasil. São Carlos: Pedro e João Editores, 2008.

COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São carlos: EdUFSCar, 2009.

CUNHA, Celso; CINTRA, Luís F. Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. Rio de janeiro: Lexikon Informática, 2007.

DECLERCQ, Gilles. L’art d’argumenter – Structures rhétoriques et littéraires. Paris : Editions Universitaires, 1992.

DUCROT, Oswald. Le dire et le dit. Paris : Minuit, 1984.

EGGS, Ekkehard. Ethos aristotélico, convicção e pragmática moderna. In: AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso, a construção do ethos, São Paulo, Contexto, 2008, p.29-56.

FOUCAULT, Michel. Foucault: Conceitos Essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005.

______. Não ao sexo rei. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1982, p. 229-242.

______. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. Rio de janeiro: José Olympio Editora, 1987.

Page 177: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

177

GREGOLIN, Maria do Rosário. AD: descrever – interpretar acontecimentos cuja materialidade funde linguagem e história. In: NAVARRO, Pedro (Org.). Estudo do texto e do discurso: mapeando conceitos e métodos. São Carlos: Claraluz, 2006.

GUILHAUMOU, Jacques & MALDIDIER, Denise. Efeitos do arquivo. Análise do discurso no lado da história. In: ORLANDI, Eni (Org.). Gestos de leitura: da história no discurso. Campinas, Editora da UNICAMP, 1994, p.163-183.

HAROCHE, Claudine; HENRY, Paul; PECHEUX, Michel. A semântica e o corte saussuriano: língua, linguagem, discurso, In: Análise de discurso: apontamentos para uma história da noção-conceito de formação discursiva. 2. ed. Revisada e ampliada. São carlos: Pedro 7 João Editores, [1971] 2011, p.13-32.

HYMES, D. On communicative competence. In: J.B. Pride and J. Holmes (eds). Sociolingistics. Harmondsworth: Penguin, 1972, p 269-285.

HOUAIS, Antônio e VILAR, Mauro de Sales. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1ª ed. Rio de janeiro: Objetiva, 2009.

INDURSKY, Freda. Polêmica e denegação: dois funcionamentos discursivos da negação. Caderno de Estudos Linguísticos, n. 19. Campinas, 1990, p. 117-122.

LAFETÁ, João Luiz Machado. 1930: A crítica e o Modernismo. São Paulo, Livraria Duas cidades, 1974.

LUCCHESI, Dante. Norma linguística e realidade social. In: BAGNO, Marcus. Linguística da norma. São Paulo, edições Loyola, 2004.

MAFFESOLI, M. O conhecimento quotidiano. Lisboa: Veja/Universidade,1987.

MAINGUENEAU, Dominique. A propósito do Ethos. In: SALGADO, Luciana; MOTTA, Ana Raquel (orgs). Ethos Discursivo. São Paulo: Contexto, 2011, p.11 a 29.

______. Doze conceitos em análise do discurso. São Paulo: Parábola, 2010.

Page 178: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

178

______. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso, a construção do ethos, São Paulo: Contexto, 2008a, p.69-92.

______. Citação e destacabilidade. Trad. Roberto Leiser Baronas & Fábio César Montanheiro. IN: MAINGUENEAU, D. Cenas da enunciação. Org. Sírio Possenti e Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva. São Paulo, SP: Parábola Editorial, 2008b.

______. Cenas da Enunciação. São Paulo: Parábola Editorial, 2008b.

______. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar, [1984] 2005a.

______. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2005b.

______. Os termos-chave da análise de discurso. Lisboa: Gradiva, 1997.

______. Novas tendências em análise de discurso. Campinas: Pontes/EdUNICAMP, 1989.

MUSSALIM, Fernanda. Uma abordagem discursiva sobre as relações entre ethos e estilo. In: SALGADO, Luciana; MOTTA, Ana Raquel (orgs). Ethos Discursivo. São Paulo: Contexto, 2011, p.70 a 81.

______. A constituição de identidades como efeito discursivo: em pauta as reflexões dos primeiros modernistas sobre a constituição de uma identidade nacional. In: NAVARRO, Pedro (Org.). Estudo do texto e do discurso: mapeando conceitos e métodos. São Carlos: Claraluz, 2006.

______. & BENTES, A. C. (orgs.). Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos. Vol. 2. São Paulo: Editora Cortez, 2005, p.100-141.

______. A transposição erudita da barbárie: aspectos da semântica discursiva do modernismo brasileiro. Tese (doutorado). Campinas, SP, 2003.

NUNES, José Horta. Manifestos modernistas: a identidade nacional no discurso e na língua. In: ORLANDI, E. O discurso fundador. Campinas: Pontes, 2003, p. 43-57

ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios & procedimentos. Campinas: Pontes, 2007.

Page 179: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

179

______. A língua brasileira. Revista Ciência e Cultura, São Paulo, vol. 57, no. 2, Abril/junho, 2005.

______. O Estado, a gramática, a autoria. Relatos, Campinas, n. 4, p. 2-5, 1997.

PÊCHEUX, Michel. Ler o arquivo hoje. In: PECHEUX, Michel. Michel Pêcheux e a análise de discurso: uma relação de nunca acabar. São Carlos, 2005.

______. Análise automática do discurso (AAD-69). In: GADET, Françoise; HAK, Tony. Por uma análise automática do discurso: Uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993.

______. [1975]. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Pulcinelli Orlandi. Campinas: Editora da UNICAMP, 1988.

PINTO, Edith Pimentel (Org.). A Gramatiquinha de Mário de Andrade - Texto e Contexto. São Paulo: Duas Cidades, 1990.

______. O Português do Brasil: textos críticos e teóricos 2. 1920-1945 - Fontes para a teoria e a história. São Paulo: Edusp, 1981.

______. Pinto, E. P. O Português do Brasil: textos críticos e teóricos 1 (1820-1920). São Paulo: EDUSP, 1978.

POSSENTI, Sírio. Um dispositivo teórico e metodológico. In: BARONAS, R.L. & POSSENTI, S (Org.). Contribuições de Dominique Maingueneau para a Análise de discurso do Brasil. São Carlos: Pedro e João Editores, 2008.

______. Teoria do discurso: um caso de múltiplas rupturas. In: MUSSALIN, F. & BENTES, A. C. (orgs.). Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos. Vol. 3. São Paulo: Editora Cortez, 2004, p.353-392.

SANTOS, Newton Paulo Teixeira dos. A carta e as cartas de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Diadorim, 1994.

SARGENTINI, Vanice Maria Oliveira. Arquivo e acontecimento: a construção do corpus discursivo em análise de discurso. In: NAVARRO, Pedro (Org.). Estudo

Page 180: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

180

do texto e do discurso: mapeando conceitos e métodos. São Carlos: Claraluz, 2006.

SAUSSURE, F. de. Curso de Linguística Geral. 2º. ed. São Paulo: Cultrix, 1975/2006.

SÉRIOT, P. La linguistique spontanée des traceurs de frontières. Cahiers de l’ILSL, Lausanne, n. 8, p. 277-304, 1996. SILVA SOBRINHO, José Simão. Os nomes da língua do Brasil no museu da língua portuguesa: uma questão política. Revista Sínteses, 2009. Acesso em 15/01/13. www.iel.unicamp.br/ojs-234/index.php/sinteses/article/.../1235

SILVEIRA, Sirlei. A Brasilidade marioandradina. In: Polifonia nº 22. Periódico de Programa de Pós-Graduação em estudos de linguagem-Mestrado. 2010, p. 53-63.

______. O Brasil de Mário de Andrade. Campo Grande-MS: EdUFMS, 1999.

SOARES, Macedo. Estadual, Estadual, ou Estatual. In: Pinto, E. P. O Português do Brasil 1 (1820-1920). São Paulo: EDUSP, 1981, p. 52 e 53.

TONI, Flávia Camargo. Introdução In: ANDRADE, Mário de. A Enciclopédia Brasileira. São Paulo: Giordano/EDUSP, 1993.

WEINREICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Marvin. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística. São Paulo: Parábola, [1968] 2006.

YAGUELLO, M. Não mexe com a minha língua! In: BAGNO, M. Norma linguística. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 279-284.

Webgrafia:

ANDRADE, Mário de. Noturno de Belo Horizonte,

http://www.academia.org.br/abl/media/poesia11.pdf acessado em 02/11/2012.

MARINETTI, Filippo Tommaso. Manifesto Futurista acessado em 31/10/2012. http://pt.wikipedia.org/wiki/Manifesto_Futurista

Page 181: UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE ... · título de Mestre, ... (em memória) Nerivaldo Barbosa de Oliveira Silva e Elivana de Oliveira Silva e ao meu esposo e

181

LOBATO, Monteiro (1917). A propósito da Exposição Malfatti

http://www.pitoresco.com/brasil/anita/lobato.htm Acessado em 05/11/2012.