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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EDSON GOMES EVANGELISTA NARRATIVAS DE PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA E LÍNGUA ESPANHOLA EM PROCESSO INICIAL DO TORNAR-SE DOCENTE EM CONTEXTOS INSTITUCIONAIS CUIABÁ MT 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

EDSON GOMES EVANGELISTA

NARRATIVAS DE PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA E LÍNGUA

ESPANHOLA EM PROCESSO INICIAL DO TORNAR-SE DOCENTE EM

CONTEXTOS INSTITUCIONAIS

CUIABÁ – MT

2017

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EDSON GOMES EVANGELISTA

NARRATIVAS DE PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA E LÍNGUA

ESPANHOLA EM PROCESSO INICIAL DO TORNAR-SE DOCENTE EM

CONTEXTOS INSTITUCIONAIS

Tese apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Educação da Universidade

Federal de Mato Grosso, como parte dos

requisitos para obtenção do título de Doutor

em Educação, área de concentração: Formação

de Professores.

Orientadora: Dra. Filomena Maria de Arruda

Monteiro

Coorientador: Dr. Andrés Klaus Runge Peña

CUIABÁ – MT

2017

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AGRADECIMENTOS

Ao Transcendente, por possibilitar encontros, nos quais os sentidos das experiências se

transformam continuamente.

Aos participantes desta pesquisa, os quais partilharam comigo o passo, e, às vezes, o pão nesta

rede de histórias contadas, recontadas, vividas.

À Professora Doutora Filomena Maria de Arruda Monteiro por compartilhar comigo, ao

longo de tantos anos, sempre dialogicamente, a beleza do aprender a ser pessoa, profissional,

docente.

A todos os integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas e Formação Docente,

em especial: Fábio, Deusodete, Carlos, Liliam, Sônia e Sandra.

Ao Professor Doutor Andrés Klaus Runge Peña e demais membros do Grupo FORMAPH

pela contribuição destacada nesta jornada rumo ao outro.

Ao professor Doutor, amigo Ricardo Castaño, por me levar a empreender viagens que

redimensionaram minha trajetória.

À Professora Doutora Tânia Lima por acreditar e me fazer acreditar que eu poderia alcançar

aquilo que quiçá nem estivesse lá.

À Professora Doutora Kátia Alonso pela grandeza das contribuições durante o percurso.

À Professora Doutora Maria Mercedes e a todas “las Chicas” do Grupo PiEncias pela

generosidade com que me acolheram no Grupo.

A Edgar Ocampo Ruiz, por me ensinar que a hospitalidade é sempre o melhor lugar para se

estar.

À Maria Duffay e Catalina, por me recordarem a grandeza dos pequenos gestos.

À Leidy, pela Colômbia mágica que me levou a viver.

Aos amigos de uma vida inteira: Gilmar, Newton, Edmar, Maria Helena e Ita.

A José e Darcilia, pela coragem que me ensinaram.

Ao irmão-amigo Wanderley, por nunca me deixar esquecer a parte permanente de mim.

Aos irmãos José e Edmar.

À Tácita e Tâmara, luzes nos ocasos mais sombrios.

A todos e são muitos que, durante o trajeto, acompanharam-me, ainda que por alguns passos,

nesta travessia.

A quem quer se disponha a ler esta tese e dotá-la de novos sentidos.

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Traduzir-se

Uma parte de mim

é todo mundo:

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.

Uma parte de mim

é multidão:

outra parte estranheza

e solidão.

Uma parte de mim

pesa, pondera:

outra parte

delira.

Uma parte de mim

almoça e janta:

outra parte

se espanta.

Uma parte de mim

é permanente:

outra parte

se sabe de repente.

Uma parte de mim

é só vertigem:

outra parte,

linguagem.

Traduzir uma parte

na outra parte

— que é uma questão

de vida ou morte —

será arte?

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À memória de Serafim Gomes Evangelista

Nilton Gomes Evangelista

José Ferraz de Araújo

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RESUMO

Este texto resultou de uma pesquisa de doutorado desenvolvida no âmbito do Programa de

Pós-graduação da UFMT. A investigação foi delineada a partir da pergunta: como professores

principiantes de Língua Portuguesa e Língua Espanhola dos anos finais da Educação Básica

experienciam e constroem sentidos que sustentam o processo inicial de tornar-se professor no

desenvolvimento profissional docente? Buscou compreender os sentidos construídos nos

processos de desenvolvimento profissional de professores de Língua Portuguesa e de Língua

Espanhola na etapa inicial do tornar-se professor; bem como, identificar percursos e

trajetórias de professores em início de desenvolvimento profissional; entender modos de ser e

de fazer de professores principiantes que atuam na área de linguagem na Rede Estadual de

Ensino de MT. Ancorou-se na Pesquisa Narrativa em perspectivas que se aproximam do

modo como a concebem Clandinin e Connelly. Os sentidos e significados foram compostos a

partir de um conjunto de narrativas, produzidas pelos participantes da pesquisa e narrativas

produzidas pelo pesquisador (diário do pesquisador). Composição que procurou entrecruzar

narrativas e contextos; lugares e tempos com percursos, trajetórias, experiências e

significados. Para tanto, foram acompanhados no decorrer de dois anos cinco participantes:

três professores e duas professoras. Quatro de Língua Portuguesa e um de Língua Espanhola

que atuavam em diferentes contextos escolares, todos localizados em Várzea Grande - MT.

Os contextos de atuação interferem fortemente nos processos de desenvolvimento profissional

docente, com um impacto preponderante nas trajetórias de professores/professoras

principiantes; impactam de modo distinto aos docentes principiantes, aquilo que para uns é

desalento, para outros, são possibilidades, desafios e um convite a reinvenção de si; as

políticas públicas, ao menos no que tange, à formação docente em serviço e processos iniciais

de desenvolvimento profissional, não podem ser concebidas desde uma perspectiva

homogenizadora. Os participantes atribuem sentidos bastante idiossincráticos ao modo como

vêm se tornando professores. Para uma das participantes, o fato mais marcante é possibilidade

de transformar vidas, redimensionar as existências de jovens, adultos e idosos que frequentam

as aulas dela. Outra destaca a possibilidade de reinventar-se sempre, a fim de se aproximar

dos estudantes e compreender as razões que os levam a fazer o que fazem, desafiada por

grupos de adolescentes, busca tanto quanto possível se constituir como professora ali onde os

conteúdos que leciona confluem para as vidas vividas por seres neste intenso metamorforsear,

não o faz de modo quixotesco e solitário, buscava sempre o apoio fundamental dos pares. Para

outro a profissão docente carece de sentido, embora, siga atuando, não encontra mais motivos

para continuar como professor. Um dos participantes ressalta que o sentido do tornar-se

professor está em alcançar o reconhecimento máximo pelos alunos “ser o cara para eles”.

Outro encontra sentido em ser docente pautado em uma deontologia, na qual o professor não

pode se deixar enveredar por caminhos costumeiros e fáceis, deve estar comprometido com a

evolução pessoal de cada estudante. No processo inicial de tornaram-se docentes, professores

principiantes perfazem trajetórias complexas, nas quais conhecimentos técnicos e saberes

experienciais se entrelaçam em diferentes dimensões, as quais cobram sentido somente no

encontro da pessoalidade com a profissionalidade.

Palavras-chave: Professores principiantes de Língua Portuguesa e Língua Espanhola.

Processo inicial de tornar-se professor no desenvolvimento profissional docente. Pesquisa

Narrativa.

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RESUMÉN

Este texto resultó de una investigación de doctorado desarrollada en el Programa de Posgrado

de la UFMT. Dicha investigación estuvo sostenida por la pregunta: ¿cómo profesores

principiantes de Lengua Portuguesa y Lengua Española de los años finales de la Educación

Básica experiencian y construyen sentidos que sostienen el proceso inicial del convertirse en

profesor en el desarrollo profesional docente? Buscó comprender los sentidos construidos en

los procesos de desarrollo profesional de profesores de Lengua Portuguesa y de Lengua

Española en la etapa inicial del convertirse en profesor; así como, identificar trayectorias de

profesores en el inicio de su desarrollo profesional; entender modos de ser y de hacer de los

profesores principiantes que actúan en el área de lenguaje en la Rede Estadual de Enseñanza

de MT. Está basada en la investigación Narrativa en perspectivas que se acercan del modo

como la conciben Clandinin y Connelly. Los sentidos y significados fueron elaborados a

partir de un conjunto de narrativas, producidas por los participantes de la investigación y

narrativas producidas por el investigador (diario del investigador). Composición que buscó

entrecruzar narrativas y contextos; lugares y tiempos con rutas, trayectorias, experiencias y

significados. Para ello, fueron acompañados a lo largo de dos años cinco participantes: tres

profesores y dos profesoras. Cuatro de Lengua Portuguesa y uno de Lengua Española que

actuaban en diferentes contextos escolares, todos ubicados en Várzea Grande - MT. Los

contextos de actuación interfieren fuertemente en los procesos de desarrollo profesional

docente, con impacto preponderante en las trayectorias de profesores/profesoras principiantes;

impactan de modo distinto a los docentes principiantes, aquello que para unos es frustración,

para otros, son posibilidades, desafíos y una invitación a la reinvención de sí; las políticas

públicas, por lo menos en lo que concierne, a la formación docente en servicio y procesos

iniciales de desarrollo profesional, no pueden ser concebidas desde una perspectiva

homogeneizadora. Los participantes atribuyen sentidos bastante idiosincráticos al modo como

vienen convirtiéndose en profesores. Para una de las participantes, el hecho más importante es

la posibilidad de transformar vidas, redimensionar las existencias de jóvenes, adultos y

mayores que frecuentan las aulas de clase de ella. Otra enfatiza la posibilidad de reinventarse

siempre, con el reto de acercarse a los estudiantes y comprender las razones del por qué ellos

hacen lo que hacen, retada por grupos de adolescentes, intenta tanto cuanto sea posible

constituirse como profesora allí donde los contenidos que enseña confluyen para las vidas

vividas por otros seres en este intenso cambiarse, no lo hace de modo quijotesco y sola, busca

siempre el apoyo fundamental de colegas de trabajo. Para otro, la profesión ya no tiene

sentido, no encuentra más motivaciones para ser profesor, sin embargo, sigue actuando. Uno

de los participantes resalta que el sentido del convertirse en profesor está en alcanzar el

reconocimiento máximo de los estudiantes “ser el maestro para ellos”. Otro encuentra sentido

en ser docente basado en una deontología, en la cual, el profesor no se puede ilusionar con la

trampa de los caminos fáciles, debe estar comprometido con la evolución personal de cada

estudiante. En el proceso inicial de convertirse en docentes, profesores principiantes recorren

trayectorias complejas, en las cuales conocimientos técnicos y saberes hechos de experiencias

se entrelazan en diferentes dimensiones, las cuales adquieren sentido solamente en el

encuentro de la personalidad con la profesionalidad.

Palabra clave: Profesores principiantes de Lengua Portuguesa y Lengua Española. Proceso

inicial de convertirse en profesor en el desarrollo profesional docente. Investigación

Narrativa.

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ABSTRACT

This text is the result of a Doctorate research developed in the scope of the UFMT

Postgraduate Program. The research was delineated from the question: how do Portuguese

and Spanish language beginner teachers of the final years of Basic Education experience and

construct meanings that support the initial process of becoming a teacher in professional

teacher development? The research sought to understand the senses built up in the

professional development processes of teachers of Portuguese and Spanish Language in the

initial stage of becoming a teacher; as well as to identify the routes and trajectories of teachers

at the beginning of professional development; to understand ways of being and doing of

beginner teachers who work in the area of language in the State Network of Teaching of MT.

It has been anchored in Narrative Research in perspectives that approximate the way in which

Clandinin and Connelly conceive it. The senses and meanings were composed of a set of

narratives, produced by the participants of the research and narratives produced by the

researcher (journal of the researcher). Composition that sought to cross-relate narratives and

contexts; places and times with paths, trajectories, experiences and meanings. For that, five

participants were followed during the course of two years: three male teachers and two female

teachers. Four of Portuguese Language and one of Spanish Language that acted in different

school contexts, all located in Várzea Grande - MT. The contexts of action interfere strongly

in the processes of professional teacher development, with a preponderant impact on the

trajectories of beginners teachers; they impact on novice teachers differently, what is

discouraging for others, are possibilities, challenges and an invitation to reinvent themselves;

public policies, at least with regard to in-service teacher training and early professional

development processes, can not be conceived from a homogenizing perspective. The

participants attribute rather idiosyncratic senses to the way they have become teachers. For

one of the participants, the most striking fact is the possibility of transforming lives, reshaping

the existences of young people, adults and the elderly who attend her classes. Another

highlights the possibility of constantly reinventing themselves in order to get closer to the

students and to understand the reasons that lead them to do what they are doing, challenged by

groups of adolescents, as much as possible to become a teacher there where the contents that

she teaches converge to the lives lived by beings in this intense metamorphose, does not do it

in a quixotic and solitary way, always looked for the fundamental support of the pairs. For

another, the teaching profession is meaningless, although, it continues acting, it has no reason

to continue as a teacher. One of the participants points out that the meaning of becoming a

teacher lies in achieving maximum recognition by the students "being the guy to them".

Another finds sense in being a teacher based on a deontology, in which the teacher can not

allow himself to be taken by customary and easy ways, must be committed to the personal

evolution of each student. In the initial process of becoming teachers, beginner teachers

complete complex trajectories, in which technical knowledge and experiential knowledge are

intertwined in different dimensions, which only make sense in the encounter of personality

with professionalism.

Keywords: Beginners teachers of Portuguese Language and Spanish Language. Initial

process of becoming a teacher in professional teacher development. Narrative Research.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................................................. 12

CAPÍTULO I: VIVER HISTÓRIAS, COMPOR SENTIDOS ........................................... 15

1.1 Caminhando se faz o caminho: narrativas de um professor pesquisador .................. 15

1.2 Caracterização da pesquisa: perspectivas teórico-metodológicas................................ 29

1.3 Os participantes da Pesquisa ........................................................................................... 32

1.4 A composição das narrativas ........................................................................................... 34

1.5 Paisagens onde se localizam as escolas ........................................................................... 35

1.6 Contexto Institucional que atravessa a constituição profissional de Odisseu ............. 37

1.7 Contexto Institucional que marca o modo como Félix vem se tornando Professor ... 45

1.8 Contexto Institucional que integra as perspectivas de desenvolvimento de Safo ....... 53

1.9 Contexto Institucional onde Helena experiencia a profissão docente .......................... 60

1.9.1 Interações e negociações entre o pesquisador e os participantes .............................. 67

1.9.2 O processo inicial de tornar-se professor: o batismo de fogo do pesquisador ......... 74

CAPÍTULO II: PERCURSOS DE PROFESSORES DE LÍNGUAS

PORTUGUESA E ESPANHOLA: INSERÇÃO EM CONTEXTO .................................. 79

2.1 A docência como reinvenção pessoal e profissional: trajetórias de Helena e Safo ..... 80

2.2 A docência como comprometimento pessoal e opção profissional: trajetória de

Heitor ....................................................................................................................................... 84

2.3 A docência no entrelugar: trajetória de Félix ................................................................ 95

2.4 A docência como contradição: trajetória de Odisseu .................................................. 100

2.5 A docência: reescrevendo sentidos sobre o processo inicial de tornar-se

professor ................................................................................................................................ 106

CAPÍTULO III: CONFLITOS NARRADOS POR PRINCIPIANTES EM ESCOLAS

PÚBLICAS DE MATO GROSSO ...................................................................................... 117

CAPÍTULO IV: DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL DOCENTE:

APROXIMAÇÕES CONCEITUAIS AO CAMPO DE INVESTIGAÇÃO .................... 154

CONSIDERAÇÕES: SENTIDOS APREENDIDOS COM AS NARRATIVAS DE

PROFESSORES/ PROFESSORAS EM PROCESSO INICIAL DE

DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL .................................................................... 165

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 175

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APRESENTAÇÃO

Quero palavra que sirva na boca dos passarinhos.

Manoel de Barros (2004, p. 70)

Nos últimos anos venho tentando reinventar meu modo de escrever a fim de encontrar

uma forma mais condizente com a escrita requerida pela Pesquisa Narrativa (CLANDININ;

CONNELLY, 2011; CONNELLY; CLANDININ, 1995), metodologia de investigação que

parte do princípio de que todos os humanos somos contadores de histórias, por meio das quais

narramos nossas próprias experiências, as quais ganham novos sentidos cada vez que são

recontadas. Espero que o leitor se sinta tocado (LARROSA, 1995, 2014) por esse contar de

histórias, que as possa reviver e recontar e, tanto quanto possível, experienciar também as

experiências narradas. Não obstante, inventar uma nova maneira de enunciar por meio da

escrita, não constitui tarefa fácil a um pesquisador acostumado a escrever nos moldes da

pesquisa acadêmico-formal. Confesso que vivi neste período, muitas tensões até compreender

que como pesquisador, principiante na Pesquisa Narrativa, aprendo a pesquisar no decorrer da

investigação, imerso no viver, contar e recontar de histórias (CLANDINNIN; CONNELLY,

2011). Então, não se trata apenas de encontrar uma maneira de escrever, para, além disso, é

preciso adentrar um novo referencial e mover-se com ele ao tempo em que se vive nos

contextos de investigação as histórias a que se almeja a investigar, para tanto necessitei

desenvolver paulatinamente o pensamento narrativo, sem o qual não se pode levar a cabo uma

Pesquisa Narrativa, tampouco escrever narrativamente.

Busquei elaborar um texto de tese que não se constituísse um relatório de pesquisa

apenas para um grupo de iniciados na Academia; quero que este texto seja compreensível para

todos que se predispunham a ler o mesmo, inclusive aqueles de baixa escolaridade como

minha mãe e meu pai, pois ao largo de milênios para isto se prestaram as narrativas, para

contar histórias, cujos sentidos estivessem a alcance de todos.

Quanto suor, lágrima, alegria, desalento, recomeços, encantamentos, até descobrir que

este tipo de Pesquisa se faz sempre no movimento entre o viver e o pensar, o experienciar e o

escrever, o escutar e o contar, para de novo e outra vez pensar sobre o vivido (CONTRERAS,

2016), porquanto não oferece ao pesquisador nenhuma garantia a priori, nenhuma categoria

de análise com a qual possa ingressar altaneiro no campo de pesquisa.

Durante todo este tempo, escutei as mais diversas opiniões sobre a Pesquisa Narrativa,

a cada disciplina, evento, em cada lugar em que me enunciava alguém sempre deliberava a

respeito: “Você faz Pesquisa Narrativa, que corajoso!”; “Legal, a forma como você fala das

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narrativas, mas a minha perspectiva é outra”; “Você acabou de fazer uma apresentação em

forma de narrativa”. Tangido por considerações tão díspares, eu imergia cada vez mais no

Referencial da Pesquisa Narrativa adotado pelo Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas e

Formação Docente - GEPForDoc, as conversas com alguns membros deste Grupo me

animavam a prosseguir. Não obstante, somente quando iniciei a pesquisa de campo e passei a

me mover entre as histórias vividas pelos professores principiantes que participaram da

pesquisa e o arcabouço teórico da Pesquisa Narrativa (CLANDININ; CONNELLY, 2011),

alcancei esboçar os primeiros escritos que continham o germe da narrativização. Destes

escritos reelaborados sucessivas vezes – e ainda em elaboração-, resulta o texto de tese que

ora vos apresento. Nos meandros desta investigação constituída com fulcro na narratividade, o

tornar-se professor, compreende-se no âmbito de um continuum desenvolvimento profissional

(DAY, 2005; MARCELO, 2007, 2008, 2010; MARCELO; VAILLANT, 2012), desde este

prisma são narrativizadas as histórias vividas e narradas por cinco professores principiantes de

Língua Portuguesa e Língua Espanhola que atuam na rede estadual de educação de Mato

Grosso.

Anuncio que principio a tese com a narrativa de meu próprio percurso de formação

que consta já no primeiro capítulo, no qual apresento também o problema da pesquisa

formulado em torno da pergunta “como professores principiantes de Língua Portuguesa e

Língua Espanhola dos anos finais da Educação Básica experienciam e constroem sentidos que

sustentam o processo inicial de tornar-se professor no desenvolvimento profissional

docente?”; esclareço também as motivações que me moveram a perscrutá-lo no horizonte de

perspectivas que se me apresentavam. Este capítulo intitulado: Viver Histórias, Compor

Sentidos, está organizados em nove tópicos. No primeiro tópico denominado “Caminhando se

faz o caminho: narrativas de um professor pesquisador”, consta a narrativa da trajetória do

pesquisador; no tópico a seguir é feita a caracterização da pesquisa, no que concerne a

perspectivas teóricas, à pergunta da investigação, aos objetivos; nos tópicos 1.3 e 1.4, são

apresentados os sujeitos da pesquisa e o contexto onde a investigação foi realizada,

respectivamente; nos tópicos de 1.5 a 1.9 são apresentados os contextos institucionais, nos

quais atuam os participantes da pesquisa. No penúltimo tópico do capítulo I estão narrativas

referentes aos primeiros encontros entre o pesquisador e os participantes, a entrada e

respectivas negociações no campo de investigação; no último, a narrativa do ingresso do

pesquisador no contexto escolar, a narrativa da primeira aula ministrada como professor. A

despeito do arcabouço teórico, cumpre esclarecer que não constitui um tópico à parte, está

integrado ao modo como o pesquisador adentrou e narrou histórias (CLANDININ;

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CONNELLY, 2011) ouvidas e vividas junto aos participantes nos respectivos contextos de

atuação.

No capítulo II são apresentadas as trajetórias dos cinco professores principiantes que

participam da pesquisa, junto aos quais busquei compreender processos de constituição

docente no processo inicial de desenvolvimento profissional. Este Capítulo é composto por

cinco tópicos. No primeiro: A docência como reinvenção pessoal e profissional: trajetórias de

Helena e Safo, são apresentadas as trajetórias destas duas participantes. A opção por

apresentá-las em um mesmo tópico se deu em virtude do modo como ambas lidam com os

conflitos que se lhes apresentam contextualmente. Nos tópicos 2.2, 2.3 e 2.4, são apresentadas

respectivamente, as trajetórias de Heitor, Félix e Odisseu. Padecem cada um a seu modo, as

dores, alegrias e descobertas do processo inicial de se tornar docentes, por essa razão, têm as

trajetórias apresentadas em tópicos que se interligam, mas são independentes. O

entendimento de que fazer pesquisa narrativa é tentar experienciar uma experiência

(CLANDININ; CONNELLY, 2011) me levou a perscrutar e a compor um texto erigido sobre

os sentidos advindos dos percursos pessoais e profissionais (NÓVOA, 1995; 2016), disto se

trata o último tópico do capítulo II, intitulado: A docência como o entrelaçamento de sentidos

que sustentam o processo inicial de tornar-se professor. Neste, incursiono brevemente pelos

estudos concernentes à docência como profissão assentada no ato de ensinar algo a alguém

(FLORES, 2010; ROLDÃO, 2004; 2007) perspectiva que assumo ao longo da investigação e

que associo tanto ao continuum de desenvolvimento profissional (MARCELO, 1999, 2007,

2008) quanto ao processo inicial de desenvolvimento profissional docente como etapa

fundamental do tornar-se professor.

A compreensão de que tornar-se professor é um processo complexo (FLORES, 2010)

é eixo que atravessa o capítulo III, neste são apresentadas narrativas que evidenciam os

conflitos enfrentados por professores principiantes desde os respectivos contextos de atuação

em escolas públicas de Mato Grosso.

No Capítulo quarto, situo a temática em relação ao campo teórico em que se inscreve.

Na última parte deste texto de tese constam as “Considerações”, ali além de apresentar

perspectivas apontadas pela investigação, elaborei breves narrativas, nas quais caracterizo os

participantes a partir do entrelaçamento entre os sentidos que marcam o modo como vêm se

tornando professores e as interações e negociações presentes neste processo inicial de

desenvolvimento, consideradas as dimensões pessoais, profissionais e os contextos. Sinta-te

conclamado a adentrar este texto e o ler, habitá-lo (FERRAROTTI, 2011) se possível,

aportando novos sentidos ao narrado.

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CAPÍTULO I

VIVER HISTÓRIAS, COMPOR SENTIDOS

1.1 Caminhando se faz o caminho: narrativas de um professor pesquisador

Há histórias tão verdadeiras que às vezes

parece que são inventadas.

Manoel de Barros (2004, p. 69).

Assim principio a narrativa de minha própria história:

De tanto me evocarem por este nome,

Invocado estou quedando,

Edson, tornando-me, substantivada corporificação

Que igualmente nomeia muitos outros sujeitos

Muito mais invocados nos epicentros das sesmarias que compõem esta nação

Fica combinado então,

Que esse que vos fala é o Edson,

Neto de Serafim Esperidião,

Concebido por Darcilia e Zezão;

Primogênito, dentre quatro irmãos

Professor de profissão.

Não obstante, até os sete,

Lera somente a Gramática do chão.

A narrativa da história, aqui entrelaçada a uma trajetória de formação, é motivada nos

meandros deste narrar pelo questionamento apresentado por Nóvoa (1995, p.16): “Como é

que cada um se tornou no professor que é hoje? De que forma a ação pedagógica é

influenciada pelas características pessoais e pelo percurso de vida profissional de cada

professor?” Por outro lado esta narrativa é dimensionada sobremaneira, pela trajetória que

venho perfazendo seja como professor de linguagens no Instituto Federal de Educação,

Ciência e Tecnologia de Mato Grosso- IFMT seja como formador de professor no Centro de

formação e atualização de profissionais da educação básica- CEFAPRO de Cuiabá – (metier

que exerci por alguns anos, até meados de 2012), seja ainda pelas experiências constituídas ao

longo de catorze anos em que atuei em escolas públicas localizadas em diferentes contextos

na vastidão deste Estado. De fato, a escolha e delimitação do puzzle, enigma e/ou problema

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da pesquisa está muito contingenciada pelo experienciar da ação docente como formador de

professores e professor da rede pública estadual de Mato Grosso.

Assim, nas páginas seguintes apresentarei experiências, constituídas no encontro com

muitos outros e em diversos contextos. Experiências que ao serem relatadas buscam

incorporar os sentidos narrados à experiência dos leitores- ouvintes- inclusos aqueles que

participam diretamente da pesquisa, precipuamente o pesquisador, narrador-ouvinte de si e

dos outros. Experiências que ao serem reconstituídas remetem ao conceito de rememoração

tal como compreendido por Walter Benjamin (2013). Conceito que, entretanto, reapropriado

e, que nos limites deste texto adquire sentidos, à medida que possibilita ao pesquisador burilar

na memória tanto os fatos vividos quanto as sensações e sentimentos que os marcaram. Assim

ao rememorar as experiências pregressas, ao pesquisador se abrem novas possibilidades de se

situar diante delas no tempo presente e conceber por meio das narrativas que elas suscitam,

novas experiências ou ao menos novos sentidos às antigas. Do mesmo modo, é preciso

considerar que a rememoração representa no espaço que a narrativa do pesquisador é

construída uma maneira própria de compreender e compor este narrar tal como apresentado a

seguir.

Primogênito entre quatro irmãos, filho de agricultores de pouco poder aquisitivo, vivi

toda infância e os primeiros anos da adolescência em um pequeno sítio. Casa de adobe,

erigida sob um morro e circundada por um pequeno riacho. Desde tenra idade fui iniciado na

crença de que a Escola representava um lugar de ascensão social e prestígio pessoal. Meu pai

anunciava a quem quer que se dispusesse a ouvi-lo que o filho iria estudar para não puxar

cobra aos pés. Assim, em uma metáfora, expressava o desejo de que o rebento não se tornasse

também ele, um trabalhador rural. Hoje, quando rememoro a ênfase com que proferia estas

palavras, a segurança sustentada pela fé inamovível que o brilho intenso no olhar deixava

transparecer, compreendo que o valor que sempre atribui aos estudos, vem sendo forjado em

mim desde aquele tempo. Um sujeito que mal pode ler e, isto quando considerados apenas

textos informativos e curtos, foi capaz de me levar a assimilar tão fortemente a importância

dos estudos tanto como fonte de conhecimento como possibilidade de superação das

condições de acentuada pobreza em que vivíamos que, acabou por plasmar dentro de um

leque de possibilidades, minha opção por continuar estudando. Desde os primeiros anos de

minha infância, malgrado, as dificuldades que enfrentava para manter a família, meu pai veio

me preparando para me tornar doutor, mesmo que, não tivesse clareza do quão longe, pudesse

alcançar aquele sonho sonhando com os olhos abertos e, vaticinado frequentemente para o

filho. Meu pai, profeta da boa aventurança, jamais titubeou, tampouco me permitia

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desacreditar de que meu futuro passava necessariamente pela dedicação à educação

escolarizada.

Entretanto, até os sete anos não tive nenhuma experiência escolarizada. Cavalguei

potros, travei batalhas fantásticas insuflado por estórias tão bem narradas por meu avô e viajei

longa e magicamente nas águas do pequeno riacho. Então, a Escola há muito anunciada

chegou. Veio em um final de tarde, trazida por meu pai sob a forma de um caderno pequeno,

uma borracha –azul e vermelha- e um lápis. Chamou-me ao quarto pequeno de terra batida,

único cômodo privativo que havia na casa, sentou-se sobre a cama de casal, com acolchoado

revestido por alvos lençóis; tendo vindo do folguedo no terreiro, onde momentos antes,

brincava com meus irmãos e ciente de que se maculasse o forro seria admoestado por minha

mãe, elegi escutar em pé aos questionamentos de meu pai: “Sabe pra quê serve isso?”

apontando o caderno. Tendo ouvido de mim a resposta de que servia para escrever letras,

continuou indagando acerca da utilidade do lápis e da borracha, respectivamente. Por fim,

entregou-me todo o material e anunciou solene: “Amanhã cê vai pra escola!”. Estávamos em

meados da década de oitenta do século XX, o Brasil, vibrava com o movimento de

redemocratização do País, após vinte anos de uma brutal ditadura militar, cujas marcas se

fazem presentes na memória e nos corpos de muitos brasileiros, ainda nos dias atuais. Meu

pequeno mundo rural, todavia, parecia brindado de um lado pelos cuidados que recebíamos

dos adultos e pela falta de informação e participação em movimentos sociais para além

daqueles estabelecidos em âmbito parental. Por outro, pela premência em continuar vivos,

teimosamente resistindo às investidas daquele que queria nos enxotar de nossos lares. É

incrível, como á época, a percepção dos fatos se nos apresentava de forma tão isolada, sem

que em momento algum, ao menos que eu me recorde, aquilo que ocorria em nossas vidas,

fora associado à política mais ampla, negadora de direitos que assolava o Brasil. De modo que

de todo o Movimento das “Diretas Já!” que à época, ganhará contornos revolucionários no

País, trago comigo apenas, o pesar de minha mãe que ficara consternada com a morte de

Tancredo Neves, primeiro presidente, eleito indiretamente, pelo Colégio Eleitoral, depois de

duas décadas de um regime ditatorial. Minha mãe que, a despeito de toda a faina que

suportava com os cuidados requeridos pelos filhos pequenos, trato com os animais domésticos

e preparo da alimentação para dez, às vezes, vinte camaradas que auxiliavam meu pai na lida

com a lavoura; ainda encontrava tempo para apanhar café à meia, no sítio de um vizinho que

permitia tal transação desde que fossem pegos os grãos, caídos ao chão, após a colheita; estes,

é que em companhia de minha avó, minha mãe apanhava em troca da metade. Certa tarde, um

pouco antes do escurecer, ao retornar à casa do vizinho, onde brincávamos meus irmãos e eu,

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sob o olhar de uma das filhas do dono do cafezal, moça toda feita de olhos que me

encabulavam - do alto de meus cinco anos, ela me parecia irresistível -, minha mãe comentara

aflita a morte do Presidente: “foram eles que mataram e agora falam que foi doença!” A voz

de minha mãe, tão firme no usual, tremeu; quando a olhei corria todo um rio daquele olhar,

um rio-mar que também inundou meus olhos, durante todo o trajeto desde o sítio vizinho até

nossa casa, que minha mãe percorreu vertendo copiosas lágrimas pela morte do Presidente. Eu

chorei porque ela chorava e vê-la chorando era insuportável para mim.

Entrementes, diante do insólito enunciado de meu pai de que eu iria à escola na manhã

seguinte, tive uma noite intensa, diante de tão alvissareira notícia não pude conciliar com o

sono. Pela manhã lá estava eu, diante da maior casa vista por mim até aquele momento.

Paredes verdes e azuis, imensas. Meu pai me entregou ao Senhor Antônio e este me conduziu

à sala da primeira série, matutino, Escola Nossa Senhora Aparecida, Planalto da Serra. Na

sala, entre tímido e temeroso, vislumbrei de relance a professora e os alunos. Sentei-me na

segunda cadeira da segunda fila. Tremia.

Naqueles primeiros dias de Escola dois fatos me marcaram indelevelmente. O

primeiro foi a minha dificuldade em copiar da lousa, mesmo tendo sido conduzido pela

professora nos primeiros movimentos, não conseguia domar o lápis e, isto me causava grande

pesar. O segundo me envolveu indiretamente, aconteceu com uma menina que à época me

fascinava. Morena, pequena, com traços graciosos, era vizinha de sítio. Na sala de aula se

sentava à minha frente. Um dia, tendo olhado para um lado, depois para o outro, moveu-se e

cuspiu no chão, bem junto à cadeira em que se sentava. Acompanhei todo o movimento,

pareceu-me delicado até. Todavia, em um átimo compreendi que aquele gesto mesmo

parecendo delicado, era inapropriado para aquele ambiente, pois a professora imediatamente

vociferou e ordenou vigorosa que a garotinha fosse até a “zeladeira”, trouxesse um pano de

chão, depois a fez limpar metodicamente o cuspe, diante de toda a turma. Concernente às

dificuldades que eu encontrara para copiar da lousa, esta me levou a vivenciar um fato que se

inscreveu em minha experiência de modo muito marcante. Logo nos primeiros dias a

professora percebeu que eu não conseguia acompanhar os demais estudantes ao cumprir as

atividades requeridas. Certa manhã moveu-se até minha cadeira, tomou-me pela mão – a esta

altura rígida como a mão de um morto, dada o terror que a presença dela tão perto, despertara

em mim – e com certa dificuldade devido à inflexibilidade de meus movimentos, levou-me a

escrever as vogais que passara na lousa. “Assim que você deve fazer” asseverou com uma voz

que, à época, pareceu-me desprovida de qualquer afeição. Depois, para meu alívio

momentâneo, esqueceu-me em meu canto. Confesso que não foi por falta de vontade que nas

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semanas seguintes, após ser nocauteado pelas vogais que por mais que insistisse, eu não

conseguia grafar no caderno, passei todo o tempo em sala debruçado sobre o braço da cadeira,

aflito, envergonhado, apavorado diante de meu não saber. Contudo, cumpria o que era de

esperado de mim, pois tão quieto, não atrapalhava àqueles que tinham vocação para aprender,

a professora parecia não me perceber e meu sofrer era suportável e não provocava

estardalhaço.

Entretanto, um dia, ao principiar da tarde, meu pai sentou-se à mesa e solenemente

anunciou que queria ver meu caderno. Meu mundo caiu, tomado por um pavor inenarrável me

aproximei vagaroso e trêmulo. “O nega, mas, não tem nada escrito no caderno desse menino!

O que cê ta fazeno na escola?” A pergunta me atingiu como um bólido, as pernas fraquejaram

e me deixei sentar no chão de terra batida, junto aos pés de meu pai que, depois de constatar

que eu não escrevera nada mais que grotescas garatujas, requereu que minha mãe escrevesse

as vogais no caderno e ordenou que as lesse. Meus olhos embotados verteram veludosas

lágrimas. Meu pai mandou que minha mãe trouxesse o corrião, cinto de couro quase cru.

Exasperado pressenti o látego sobre minhas costas desnudas. Quanto mais ele insistia para

que eu lesse, mais eu chorava e ele se exasperava e ameaçava com o relho em riste. Por fim,

entregou-me o caderno e eu envergonhado, mas aliviado por não ter sido alvejado pelo cinto,

afastei-me dali tão rápido quanto meus passos trôpegos e meu olhar turvo me permitiram. No

outro dia, logo cedo, meu pai me conduziu à escola; à porta da sala perquiriu à professora,

esposa do diretor, por que o filho não estava aprendendo. Vivíamos os idos de 1984, a

professora acorde aos princípios do inatismo1, respondeu cordial que sabia que o filho dele

tinha desenvoltura na lide campestre e, portanto, talvez fosse melhor que ficasse para ajudá-lo

na roça, já nem todo mundo nasce para os estudos. “Professora, meu filho não é doido, se a

senhora não pode ensinar ele, quero outra professora!” Ato contínuo foi ao diretor, marido da

mencionada docente e requereu que o filho estudasse com outra professora. Naquele dia, meu

pai ainda não sabia, mas moveu novas perspectivas em minha trajetória existencial.

Quiçá, advenha dos fatos narrados as maiores aprendizagens que obtive em meus

primeiros anos de escola: era preciso saber mais que nadar rios, encantar-se ao ouvir belas

histórias ou cavalgar potros para ser bem sucedido naquele contexto. No sentido de marcar a

relevância das vivências advindas ainda do tempo em que o docente era aluno, Belmira Bueno

1 À época mencionada, em diversos contextos educacionais brasileiros, aquilo que se convencionou denominar

"Ensino Tradicional" subsidiava práticas pedagógicas sustentadas por distintas abordagens. Dentre as teorias em

que se embasavam estas abordagens, o apriorismo ou inatismo, legado teórico que remete aos trabalhos de Jean

Jacques Rousseau, fez-se notar com diferentes matizes. No caso da professora à qual se faz menção, é possível

notar esta influência pelo modo como ela tenta justificar a não aprendizagem da criança como se o estudante não

tivesse aptidão para os estudos, que seria um dom que nem todos possuíam.

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(2002) afirma que é preciso conceber a formação do professor como processo iniciado nos

primórdios da escolarização, antes até. Nesta perspectiva, compreendo que meu percurso

formativo começou a ser delineado já nas experiências narradas por meu avô, e, no que

concerne à escola, este percurso adquire novos contornos quando meu pai me apresenta os

materiais didáticos, assim como quando presencio o evento em que minha colega de sala sofre

sanção por adotar um comportamento comum entre os membros do grupo em que eu me

inseria. De fato, com o tempo e as vivências no ambiente escolar, aprendi a não cuspir no

chão e conclui o primeiro grau reconhecido como um dos melhores dentre os alunos daquele

colégio e isto, comprazia muito meus pais, me deixava lisonjeado e confiante no porvir.

Hoje, quando retomo esta narrativa e adentro no universo a que ela remete amparado,

por meio de sucessivas rememorações reconstituo muitas dimensões do vivido naquele tempo,

mas as compreendo de outro modo. Compreensão que se me afigura como um acontecer,

sustentado por um novo experienciar forjado no reavivamento de experiências inscritas no

partilhar de sentidos que dotam de significado minha vida e me levam além, pois me

permitem entender que muito do que foi narrado está recoberto pelo silêncio do que não foi

dito.

Assim, movendo na tridimensionalidade: temporalidade, lugar e pessoas em interação,

burilei na memória e encontrei no passado além dos causos que tão encantadoramente me

eram narrados por meu avô, outras narrativas que estavam como que, ocultadas. E, estas não

eram tão encantadoras porque de algum modo interditadas, trazem à tona um histórico de

resistência, luta e conflitos tão característicos do Estado de Direito vigente no Capitalismo tal

como denunciado por Benjamin (2013), transformaram, ao menos à época, a mim e a todos os

parentes que viviam em um sítio, cujos contornos eram definidos por um córrego para além

do qual pairava um gigantesco latifúndio, em párias. Vidas-nuas2, colocadas em estado de

exceção que, porquanto poderiam ser mortos. Tanto é assim que não restando alternativa, meu

pai e tios, acossados pela mão armada do Estado acorde com os interesses do capital agrário,

defenderam de armas em punho, o direito sagrado à vida e à terra. Desta última, provinha o

sustento daquela, àquele tempo, corporificada em pequenos seres que se moviam entre as

casas e os bosques conforme a coragem e o desespero dos homens e mulheres que os

protegiam e o escudo de uma fé inabalável do ancião, avô que, ao Transcendente, rogava

benções e proteção a todos os descentes que lutavam pelo direito de plantar e colher e sonhar

e viver e continuar existindo condignamente.

2 Pessoa a que se pode matar sem maiores consequências.

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Findo o ensino fundamental, à época, denominado primeiro grau, migrei para Cuiabá.

Novas relações, novos conflitos, outras aprendizagens. Durante os três anos que vivi na

capital fui balconista, auxiliar contábil, servente de pedreiro. Simultâneas às mudanças que

tinham passo nas dimensões mais pessoais de meu existir, outras aconteciam, estas de caráter

mais abrangente, afetavam a vida de muita gente. Naquele mesmo ano de 1994, quando me

afastei pela primeira vez de meu pequeno vasto mundo, ascendera ao poder, Fernando

Henrique Cardoso, segundo presidente eleito pelo voto direto pós ditadura militar, o primeiro,

Fernando Collor de Mello, fora impedido de continuar governando o País, após uma

malfadada política econômica e denúncias de envolvimento com corrupção, fora cassado pelo

Congresso Nacional. Itamar Franco, vice-presidente o substituíra e teve de lidar com uma

inflação galopante, legado do Governo Sarney que assumira em lugar de Tancredo. Dinheiro

pouco valorizado, custo de vida muito alto. Lembro-me de que naquela época, a principal

preocupação de meu pai era adquirir a despesa, o sustento da família para todo o ano. Aquilo

que não lográvamos produzir no sítio ou que não produzíamos em quantidade suficiente

tornava-se o centro da preocupação dele, até comprá-las o bastante para alcançar as colheitas

vindouras. Ensinou-me muito mais que qualquer economista. “Dinheiro não se guarda, nem

se gasta à toa, compra-se logo o que precisa se não desvaloriza” dizia e, a seu modo quase

espartano me levava a temer sempre um pouco mais a famigerada inflação. Todavia, em

1994, vivíamos tempos alvissareiros, dentre os diversos Planos Econômicos, levados a cabo

desde a reabertura democrática, a URV – Unidade Real de Valor – se mostrara promissora e a

esperança das gentes pobres, como eu, ecoava fortemente.

Das relações encetadas com as pessoas da capital, marcaram-me particularmente as

que estabeleci com um tio, uma tia, posteriormente uma prima, filha do casal que acompanhei

desde a concepção até por volta dos dois anos de idade, período durante o qual vivemos na

mesma casa. Tão afetuosas e profícuas foram as vivências em companhia destas pessoas que

até os dias presentes as tenho no círculo íntimo de amigos. Concluído o segundo grau, Ensino

Médio, fiquei indeciso quanto ao futuro e, após uma tentativa pouco exitosa de ingressar no

Curso de História na UFMT, recebi uma carta de meu pai na qual me conclamava a prestar o

concurso vestibular para o Curso de Pedagogia em um Campus da UFMT, recém instalado

em Primavera do Leste. Enviou-me ainda vinte reais, valor equivalente a duas passagens de

ônibus no trajeto entre Cuiabá e aquela cidade.

Em janeiro de 1997 iniciei o Curso de Pedagogia na modalidade parcelada pela

UFMT, Campus de Primavera do Leste. Naquele mesmo ano fui iniciado na docência;

professor contratado para lecionar as disciplinas de Língua Portuguesa, Geografia e Filosofia

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nos ensinos Fundamental e Médio da Escola Estadual Alvarina Alves de Freitas, em Planalto

da Serra. O retorno àquela localidade, à casa de adobe, ao riacho, ao sítio, possibilitou-me

perceber que embora eu tivesse saído daquele lugar, a roça nunca saíra de mim. Em uma

paráfrase do “Filho Pródigo”, o menino que se afastara do lar para estudar, retornara como um

jovem marcado por experiências que mesclavam a alegria por descobrir outras maneiras de se

estar no mundo e a tristeza que somente pode ser compreendida por aqueles que tendo se

afastado da proteção do lar muito jovens, padecem de uma dor, uma ausência por haverem se

distanciado precocemente de tudo quanto representa a casa paterna, a família. Por outro lado,

tendo vicejado outras possibilidades existenciais, ainda que contrafeito, via-me muitas vezes,

questionando muito da ortodoxia que regia o grupo de onde provinha. De modo que ao

retornar aquele sítio, muitos sentimentos contraditórios residiam em mim. Mas, sobre todos

eles pairava o contentamento em poder rememorar muito do que eu havia vivido naquele

lugar e conviver com meus irmãos, agora crescidos e, sob muitos aspectos mais capazes de

que eu jamais fora ao lidarem com os desafios que se apresentavam a pequenos produtores

rurais mato-grossenses na segunda metade da década de noventa.

Porquanto, compreendi com Riobaldo Tatarana que “sertão: é dentro da gente”

(GUIMARÃES ROSA, 1994, p. 435), de modo que os contextos de vivência acabam por

constituírem dimensões significativas da identidade daquele que se forma e, assim sendo a

formação pressupõe o engendramento das dimensões subjetivas e pessoais, com o entorno

político, histórico e social. Além disso, por suscitar muitos sentidos e concepções várias, a

formação de professores como uma das etapas do desenvolvimento profissional docente

configura-se concomitantemente como um problema político e filosófico e, se insere em um

processo histórico. De modo que está inscrita em uma problemática mais ampla na qual estão

envoltas dimensões científicas e epistêmicas acerca dos saberes da profissão e sobre a

profissão docente (SOUZA, 2010).

De maneira que quando entreteço os fios que conformam minha trajetória de

formação, sou remetido por vezes, àquele tempo em que meus dias se passavam entre a faina

campestre e o trabalho docente. Tendo voltado a viver na casa de meus pais, logrei um

contrato de professor interino na escola estadual Alvarina A. de Freitas, no período matutino

me dedicava aos trabalhos requeridos no sítio, laborávamos meus irmãos e eu lado a lado,

braço a braço. Pela tarde e à noite, eu era o professor, eles os alunos. Ao pensar nisto, no

momento presente, sou levado a refletir sobre a autoridade com que os professores estavam

revestidos naquele contexto, pois em momento algum, Wanderley, meu irmão apenas dois

anos mais novo que eu, José Gomes e Edmar questionaram o fato de que eu em uma parte do

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dia dividisse os trabalhos e folguedos com eles, não obstante em outro momento assumisse

junto a eles o lugar de professor.

Estávamos nos aproximando do ano dois mil, marca temporal revestida de sentido

místico para muita gente e, sob os auspícios da Constituição de 1988, começaram a serem

desenhados novos marcos da profissionalização docente no Brasil. Neste diapasão foi que se

aprovou a Lei 9394/96, Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Básica, que estabelece

dentre outras coisas, a obrigatoriedade de que os Estados elaborassem Leis próprias para a

Carreira Docente, além de possibilitar a instituição do FUNDEF (Fundo de Manutenção e

Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério), aprovado em

1996 e implementado em 1998. Enquanto isso, em Mato Grosso, mesmo sob a égide da Lei

complementar 50/98, que dispunha sobre planos de carreiras e salários, eu continuava

trabalhando como professor contratado, e recebia ao último salário de dezembro, preocupado

se conseguiria novo contrato como professor, pois ainda cursava a faculdade. E, isso não é

tudo, uma vez contratado, afligia-me o fato de que possivelmente trabalharia todo o primeiro

semestre, sem perceber a remuneração, paga em junho, geralmente. Tempos difíceis em que a

paixão e o comprometimento sobrepujavam as condições de semiprofissionalização. Fato que

atesta a importância em se situar a formação docente em um continuum de desenvolvimento

como insiste Marcelo (1999, 2010, 2012).

Neste sentido, situo o processo de desenvolvimento profissional e pessoal em que me

encontro numa perspectiva ampla o suficiente para envolver fatos que, remetem a ações

iniciais ocorridas ainda na infância e adolescência, mas que corroboraram decisivamente para

que eu fosse me construindo processualmente, sempre pautado no perscrutar de um novo

porvir. Ao tempo em que revelo a importância do curso de Pedagogia, do ingresso no

Magistério, da ulterior atuação como professor-formador no Centro de Formação e

Atualização dos Profissionais da Educação de Cuiabá, em diversos campi do Instituto Federal

de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso, bem como do ingresso no Mestrado e no

Doutorado em Educação, para o redimensionamento de minha trajetória histórica, por

conseguinte de meu desenvolvimento profissional docente.

Pautado no exposto nos parágrafos precedentes, enuncio que o Curso de Pedagogia no

qual ingressei em 1997 resultou do compromisso político da Universidade Federal de Mato

Grosso com a formação de docentes. Este curso integrou o Programa de Formação do

Educador das séries iniciais do Ensino Fundamental, o qual foi desenvolvido pelo Instituto de

Educação em parceria com a Secretaria de Estado de Educação e Secretarias Municipais de

Educação e representa uma das ações de interiorização da UFMT (BERALDO, 2007). Neste

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caso, esta interiorização se deu pela via do Curso de Pedagogia na modalidade parcelada e foi

realizado nos meses de janeiro, fevereiro e julho entre os anos de 1997 e 2000, no município

de Primavera do Leste; destinava-se à formação de professores em efetivo exercício na rede

pública de ensino nos municípios de Planalto da Serra, Poxoréo, Nova Brasilândia,

Paranatinga e Campo Verde, além do município sede.

O fato de o Curso de Pedagogia mencionado destinar-se a professores em efetivo

exercício na rede pública me levou a ingressar na rede pública estadual de Ensino em Planalto

da Serra, no mesmo ano em que iniciei este Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia:

Magistério das Séries Iniciais do Ensino Fundamental, cujos objetivos fundamentais se

voltavam

à criação de condições teóricas reflexivas favoráveis à melhor compreensão,

explicação e explicitação da lógica da prática educativa e à atuação crítica e

ativa no Projeto Político Pedagógico da escola. Nessa perspectiva, as

atividades curriculares deveriam criar espaços de encontro de consciências

intersubjetivas e interessadas na problematização e análise da prática

educativa. (BERALDO, 2007, p. 74).

Em consonância com que objetivava e/ou era praticizado no Curso a que me venho

referindo, eu ia burilando minha prática, elaborando e atribuindo novos sentidos a meu ser

pessoa e ao ser professor. É certo que, também os encontros e confrontos intersubjetivos

encetados tanto no âmbito da Escola Estadual Alvarina Alves de Freitas em Planalto da Serra

quanto, nos meandros das Escolas Paraíso e Waldemon Morais Coelho nas quais atuei no ano

de 1998, quando migrei para Campo Verde ou da Escola João Ribeiro Vilela em Primavera do

Leste, na qual assumi uma condição melhor de profissionalização ao ser lotado como

professor concursado no ano de 2000 ou, ainda, no retorno a Planalto para atuar como

Assessor de Formação Continuada dos professores da Rede Municipal durante quatro anos;

assim como posteriormente, Coordenador da mesma escola em que iniciei os trabalhos na

docência, vêm me constituindo quer seja na dimensão profissional, quer seja nos aspectos

pessoais e identitários. Vivências, experiencias e saberes advindos de todos estes lugares me

fazem ser o que no momento estou sendo. E, este momento é uma extensão histórica de todos

aqueles instantes até aqui relatados, acrescidos de saberes experienciais que me têm sido

facultados elaborar mais intensamente desde que ingressei no CEFAPRO – Centro de

Formação e Atualização dos Profissionais da Educação Básica de Cuiabá, onde atuei de 2009

a 2012.

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O ingresso no mencionado Centro de Formação representa em meu percurso a

assunção de uma nova etapa no âmbito da profissionalidade, fato que certamente marca muito

significativamente minha identidade, pois a atuação na formação de outros docentes requer do

formador de professores a compreensão dentre outros aspectos da noção de mediação e

acompanhamento na contemporaneidade (SOUZA, 2010). E, esta compreensão não se dá

tacitamente, tampouco desvinculada das políticas de formação instauradas no macro contexto

e vigentes no micro contexto, logo, a assunção do metier de formador de professores envolve

necessariamente conflitos de ordem contextual, histórica e identitária. Então, formação e

identidade estão entrelaçadas ao longo de meu percurso de formação, sendo infactível

desvincular uma da outra e se definem mescladas dinamicamente, de modo a caracterizar o

jeito como na condição de professor me sinto e me faço anunciar. Subjetividade e enunciação

discursiva se tornam proeminentes, posto que integram minha identidade docente, esse

espaço marcado pelo conflito e pela construção que se dá nos meandros de minha trajetória

formação (NÓVOA, 1995).

À minha atuação como professor-formador de Língua Portuguesa no CEFAPRO de

Cuiabá precederam, em termos mais específicos, uma pós-graduação na Área de Linguagem e

uma segunda licenciatura: Língua Portuguesa, Língua Espanhola e respectivas Literaturas.

Deliberei por cursar Letras tão logo conclui o Curso de Pedagogia e o fiz pelo envolvimento

que tive com a disciplina que comecei lecionar ainda como professor leigo nos idos de 1997 e,

pela salutar descoberta e o súbito encantamento com a Literatura Contemporânea Brasileira e

Latina, mormente as obras de João Guimarães Rosa, José Luis Borges e Garcia Marquez,

somados ao deleite advindo dos estudos concernentes à Análise do Discurso.

Ingressei no Centro de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação Básica

de Cuiabá por meio de um Concurso Seletivo realizado no ano de 2008 com incidência

exclusiva sobre professores concursados na rede pública estadual de ensino. Aprovado, atuei

na instituição de janeiro de 2009 a junho de 2012. Na condição de formador de professores da

Área de Linguagens, compartilhei com outros formadores da Área encontros formativos

muito significativos, participei de conferências valorosas ministradas, dentre outros por

Antônio Nóvoa e assumi demandas formativas junto a cinco escolas públicas de Cuiabá, além

de ter atuado como professor-formador no Programa Gestar e no Pro - infantil. Amparado na

dinamicidade proveniente destes labores, bem como na reflexão deles advinda, participei da

Seleção para o Mestrado em Educação no PPGE/UFMT, na Linha: Organização Escolar,

Formação e Práticas Pedagógicas, em fins de 2009. Tendo sido aprovado passei a integrar o

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Grupo: Estudos e Pesquisas em Política e Formação Docente: Educação Infantil e Ensino

Fundamental, em fevereiro de 2010.

No Grupo de pesquisa em política e formação docente, eu à época, já fascinado pelas

narrativas como possibilidades de organização de experiências humanas a partir de diversos

gêneros discursivos e textuais, aprendi uma nova maneira de recorrer a elas com o intuito de

potencializar as experiências humanizantes, agora como método de pesquisa voltado à

compreensão dos percursos formativos de diversos profissionais, inclusos os professores. De

modo que, em parceria com minha orientadora Drª. Filomena Maria de Arruda Monteiro,

propus-me a incumbência de pesquisar os percursos formativos de formadores de professores

de Língua Portuguesa que atuam no CEFAPRO de Cuiabá. Desde então, tenho buscado

compreender no âmbito de minha trajetória de formação que a formação congrega diferentes

dimensões, conforme assentido por Souza (2010). Neste sentido, por meio da aproximação

dos estudos deste autor com os trabalhos de Nóvoa (1995, 2009) e Marcelo Garcia (1999),

venho fomentando o entendimento de que embora seja o professor, o adulto que se forma ao

assumir um projeto histórico existencial do qual é ator e autor, não o faz num universo

lacunar, antes concebe e concretiza tal projeto amparado pelo contexto no qual atua, portanto,

Um dos elementos positivos que encontramos na utilização do conceito de

desenvolvimento profissional reside no facto de pretender superar a

concepção individualista e celular das práticas habituais de formação

permanente. Quer isso dizer que o desenvolvimento do professor não ocorre

no vazio, mas inserido num contexto mais vasto de desenvolvimento

organizacional e curricular. (MARCELO, 1999, p. 139).

De fato, contexto, pessoalidade e profissionalidade estão imbricadas no âmbito

desta trajetória e, foi assim que potencializado pelos debates no grupo de pesquisas e

insuflado pela Professora Doutora Filomena Maria de Arruda Monteiro, inscrevi-me para

participar de um Congresso Internacional voltado a debater e publicizar políticas de inserção à

docência de professores principiantes no contexto europeu e da América Latina. Em Santiago,

nos meandros do mencionado Congresso foi que me ocorreu pela primeira vez investigar a

inserção à docência em MT. Tendo retornado a Mato Grosso, ao tempo que ia matizando a

ideia concernente à pesquisa desta temática, continuava minha atuação como professor

formador, partícipe do grupo de pesquisas, até que vicejei outros espaços por onde trilhar e,

em 20 de julho de 2012 assumi o cargo de professor no IFMT, Campus Fronteira Oeste. Dois

anos depois, ingresso no doutorado, após, uma tentativa pouco exitosa, naquele mesmo ano,

logro ser removido, passando a atuar no Campus São Vicente.

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O ingresso no doutorado, no ano de 2014 inaugura uma nova espiral no âmbito da

trajetória que venho perfazendo, a pesquisa e as experiências dela decorrentes me levaram a

pensar sobre o modo como venho me constituindo. Uma identidade plural marcada pelo

diálogo vivo tal como concebido por Gadamer (1997; 2002). Um diálogo do qual não é

possível sair sendo o mesmo que nele se envolveu, pois coloca em causa a identidade daquele

que se propõe a pesquisar narrativamente. Diálogo, experiência social que na

intersubjetivação traz à baila múltiplos eus que coexistem e não se esfacelam completamente,

sou um e múltipos sou, conforme sintetizei nos escritos a seguir:

Criança assustada na feroz ebulição,

Protegida por pais que resistem à aniquilação,

No historiar do avô, acalento.

Adolescente em migração, idéia feita obstinação:

Estudar, possibilidade de ascensão.

Não voltarei a ser pária!

Adulto, professor em constante movimento,

Busca? A leveza de um pássaro que não se move ao sabor do vento.

Na narração, encantamento

Encontro de múltipos eus elaborados discursivamente

Ontologia transitória, plural, sempreternamente.

Ao principiar este texto de tese com a narrativa de meu percurso de formação,

antecipo de certa forma, a perspectiva teórico-epistemológica que sustentou a pesquisa da

qual o texto provém. De modo que enuncio desde aqui que o desenvolvimento da pesquisa se

deu narrativamente, em outros termos, a composição de sentidos ora apresentada neste texto

originou de uma Pesquisa Narrativa tal como a compreendem e conceituam Clandinin e

Connelly (1995, 2011). Fato que marcou desde o instante em que adentrei os contextos em

que os participantes da pesquisa a maneira como observei, produzi e organizei os textos de

campo, dos quais resultou este relato de tese.

Ressalto, neste sentido, que almejando à legitimidade requerida pela Pesquisa

Narrativa tal como compreendida pelos autores mencionados, bem como por mim, optei por

apresentar o referencial teórico no âmbito das análises, aqui conceituadas como composição

de sentidos. Foi determinante para esta escolha o entendimento de que para fazer Pesquisa

Narrativa, é preciso ultrapassar os limites das pesquisas formalistas em educação, ou seja, este

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tipo de pesquisa requer uma guinada na epistemologia sobre a qual a pesquisa científica veio

se constituindo nos últimos séculos. Trata-se, portanto, de assumir a Pesquisa Narrativa como

uma perspectiva que desafia os paradigmas de representação e suposições já aceitas nos

meandros das investigações científicas em educação, assim, pois, “o aprendizado de pensar

narrativamente nas fronteiras entre a narrativa e outras formas de pesquisa, é talvez, a única e

mais importante característica do pensamento narrativo bem sucedido” (CLANDININ;

CONNELLY, 2011, p. 57).

Entretanto, viver e contar experiências historiadas gera muitas tensões, pois quem faz

pesquisa narrativa busca compreender os sentidos em movimento no seio de corporificações

de histórias vividas. Dentre as tensões que se apresentam aos que fazem Pesquisa Narrativa,

menciono já no intróito deste texto aquela que demandou de minha parte na condição de

pesquisador iniciante nas narrativas, muito esforço, qual seja, como situar o lugar da Teoria na

escrita do relato de tese. A princípio, não consegui iniciar a escrita sem buscar guarida em

teorias sobre as quais pudesse me mover. Neste sentido, em Gadamer (1997, 2002), encontrei

na hermenêutica filosófica, possibilidades de potencializar minha própria escuta ancorando-a

no conceito de diálogo como possibilidade infinita de encontros e compreensão recíproca,

encontros que, caso sejam marcados pela autenticidade transformam a todos os envolvidos.

Maturana (1997), despertou-me para uma nova percepção da Linguagem, como caminho

fundamental para a humanização, transcende o conceito de linguagem como instrumento de

comunicação; por seu turno, Clandinin e Connelly (1995, 2011) com o conceito de Pesquisa

Narrativa me ensinam novos modos de investigar. Nóvoa (1995, 2009), Marcelo (1999, 2007,

2008, 2010, 2012), convidam-me insistentemente a pensar em um continuum de

desenvolvimento profissional, no qual pessoalidade, profissionalidade e contextos se

entrecruzam indissoluvelmente.

Contudo, ao iniciar a escrita do relato de tese, encontrei-me ante a tensão concernente

ao lugar da Teoria na Pesquisa Narrativa, tensão que a propósito, emergiu ainda no início da

pesquisa e perdurou no decorrer dela; houve momentos em que a incapacidade momentânea

diante de uma nova forma de escrever que fosse mais coerente com a perspectiva teórica

adotada, exasperou-me e me fez duvidar se acertara na opção metodológica. De modo que nas

primeiras escritas, apresentei o referencial teórico em um capítulo separado, preocupado que

estava com legitimação da pesquisa. Com a retomada do referencial da Pesquisa Narrativa, na

qual, os pesquisadores “frequentemente escrevem dissertações sem um capítulo específico de

fundamentação teórica (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 75), a qual é apresentada ao

longo do texto, do início ao fim, com vistas a alcançar um elo contínuo entre a teoria e a

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vivência, incorporadas ao longo da pesquisa, elaborando uma metodologia entrelaçada, que

assumo, no âmbito deste texto, como uma maneira de situar coerentemente a teoria na

Pesquisa Narrativa.

Cumpre esclarecer também que a narrativa vem se constituindo durante este percurso

como uma trilha que potencia o entendimento das experiências, as quais em Dewey (2010)

levam-me a situá-las como continuidade e interação, para além da ideia de simples e puro

acúmulo. Por sua vez Larrosa (995, 2014) me convoca a pensar demoradamente sobre o

sentido das experiências constituídas no seio das histórias que as pessoas vivem e que ao

contá-las reafirmam a si mesmas como pessoas, revisitam os acontecimentos e deles extraem

novos caminhos (LARROSA, 1995; 2014), outras formas de pensá-los. Ao potenciar o

entendimento de experiências elaboradas no âmbito de percursos de formação, a narrativa

aponta para temporalidades, lugares e pessoas em interação, precisamente destes temas trata o

tópico seguinte, além de apresentar no entrelaçamento destas três dimensões, o método.

1.2 Caracterização da pesquisa: perspectivas teórico-metodológicas

“A pessoa em contexto é o que interessa”.

Clandinin; Connelly (2011, p. 66).

A epígrafe remete a um dos pilares da Pesquisa Narrativa ou Investigação Narrativa.

Metodologia elaborada durante décadas de investigações levadas ao cabo em contextos

canadenses pelo casal de investigadores Jean Clandinin e Michael Connelly. Defendem a

perspectiva de que as narrativas configuram, ao mesmo tempo, um fenômeno vivencial e um

método de investigação (CONNELLY; CLADINNIN, 1995). Desde esta ótica, os autores

compreendem os humanos como contadores de histórias por excelência, narradores que ao

contarem as histórias que vivem reconfiguram as experiências relatadas e potencializam os

sentidos que atribuem a essas mesmas experiências. Assim sendo, o que se busca nas

narrativas são as experiências vividas e contadas em um contexto específico.

Experiências que narradas e compreendidas em perspectiva tridimensional, qual seja:

tempo, lugar e situacionalidade, podem se configurar como um ciclo, no qual as narrativas

vividas e contadas podem ser recontadas, revividas e dotadas de novos sentidos. Estes

últimos, no entanto, podem ser compreendidos sempre quando, interpretados

tridimensionalmente, logo o tempo, o lugar e as interações estabelecidas precisam ser

percebidos concomitantemente. Daí que, na dimensão temporal é necessário pensar o tempo

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vivido tanto em relação ao passado, quanto ao presente e ao futuro, pois as pessoas estão

continuamente a viverem as respectivas histórias, como insistem os investigadores aqui

referenciados, não há uma interrupção neste viver e contar de histórias, o pesquisador

encontra às pessoas vivendo estas histórias, as quais partilha com elas por um tempo e, depois

as deixa, em meio a esse contínuo e incessante fluxo (CLANDINNIN; CONNELLY, 2011).

Porquanto na dimensão temporal há que se busca compreender, restrospectiva e

prospectivamente as experiências vividas e contadas. Aliada à dimensão temporal há que se

pensar no segundo elemento da tridimensionalidade em que se dão as narrativas, qual o seja, o

lugar ou série de lugares, onde estas histórias acontecem. Neste texto, à série de lugares onde

se passam as histórias narradas, denominei sustentado pelas pesquisas de Mizukami (2002) e

Monteiro (2003), contextos. Contextos se referem então, aos diferentes lugares em que os

participantes da pesquisa vão experienciando e significando, interagindo e vivendo seu

desenvolvimento.

Quanto à terceira dimensão, a situacionalidade, remete às interações que a pessoa

estabelece no lugar e/ou lugares nos quais atua, interage, vive, conta, revive e reconta as

respectivas histórias. Na composição deste texto de tese, é nesta dimensão que as outras duas

se encontram, replicam-se. Nas situações que se apresentam nos contextos de atuação surgem

os conflitos, encontros e desencontros que acabam por se constituírem em sentidos, cuja

elaboração depende da qualidade destas interações encetadas contextualmente. Sentidos que

emergem das experiências e, por seu turno, constituem-se introspectiva e extrospectivamente,

na intrapessoalidade, subjetivadora e na interpessoalidade, marcada por referências mais

objetivas, pelos limites e possibilidades que os lugares apresentam às pessoas que neles

atuam. Foi na situacionalidade definida tanto pelos contextos das escolas, quanto pela própria

trajetória de formação - revisitada, narrada, revivida, prospectiva e retrospectivamente;

introspectiva e extrospectivamente- que concorreu para que os participantes ali estivessem,

que me ancorei tanto para produzir as narrativas quanto para compor muitos dos sentidos que

sustentam este texto. Assim, muitas vezes, ao contarem as próprias histórias às pessoas que

participaram da pesquisa, assinalaram simultaneamente, o lugar, o tempo e as interações -

situação vivenciada, conforme destacarei ao longo da tese.

Por ora, enuncio que a pesquisa da qual resulta este texto de tese foi delineada

conforme perspectiva metodológica da Pesquisa Narrativa tal como a compreendem

Clandinin e Connely (2011), assim, a pergunta (enigma) que se apresenta ao pesquisador,

desde o início veio sendo elaborada a partir das leituras das histórias que compunham as

paisagens - este termo refere-se aqui tanto aos contextos de pesquisa quanto ao modo como o

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pesquisador percebe os lugares investigados - pelas quais se movia, por conseguinte, a

questão da pesquisa foi formulada e reformulada à medida que a compreensão do pesquisador

imerso nas mencionadas paisagens ia se aprofundando, por fim, está formulada nos seguintes

termos: como professores principiantes de Língua Portuguesa e Língua Espanhola dos anos

finais da Educação Básica experienciam e constroem sentidos que sustentam o processo

inicial de tornar-se professor no desenvolvimento profissional docente?

A pergunta, a partir da perspectiva teórico-epistemológica – perspectiva sustentada

pela Pesquisa Narrativa (CONNELLY; CLANDININ, 1995; CLANDININ; CONNELLY,

2011)- e vivencial – percurso do pesquisador e imersão nos contextos de investigação-, em

que foi delineada se volta primeiramente ao entendimento de processos de constituição

docente de professores principiantes em diferentes contextos, em virtude disso, tem como

objetivo geral: compreender os sentidos construídos nos processos de desenvolvimento

profissional de professores de Língua Portuguesa e de Língua Espanhola na etapa inicial do

tornar-se professor; os objetivos específicos constam nos seguintes termos: identificar

percursos e trajetórias de professores principiantes a fim de compreender sentidos elaborados

contextualmente no processo de inserção profissional docente nos anos finais da Educação

Básica; entender modos de ser e de fazer de professores principiantes que atuam na área de

linguagem na Rede Estadual de Ensino de MT que sustentam o processo inicial de tornar-se

professor

Desde a perspectiva em que esta pesquisa veio sendo realizada, admite-se que ao olhar

e ser olhado, o pesquisador é capaz de compreender dimensões significativas dos contextos

presentes em cada uma destas unidades. Olhar que, nos interstícios desta, está marcado por

perspectivas que cotejam proximamente com a concepção de Antropologia Pedagógica tal

como desenvolvida por Joan-Carles Mélich (1997, 2000, 2014). Para o autor a relação

pedagógica, a despeito de ser fundamental para a construção de uma ética que possibilite ás

pessoas humanizarem-se mutuamente, não tem recebido da Filosofia Contemporânea, a

atenção devida. Porquanto, toma-a como tarefa básica da Antropologia da Educação ou da

Antropologia Pedagógica. Nas palavras do Filósofo catalão: “3Educar es, en su esencia

lanzarse hacia el otro” (MÉLICH, 1997, p. 18). Precisamente neste ponto, a Antropologia

Pedagógica aproxima-se dos princípios que sustentam esta tese, pois toda ela encontra-se

constituída por encontros e tramas relacionais. Tramas que se entrecruzam nas idas e vindas

contadas, historiadas e narradas. Tramas sustentadas pela alteridade, requerida desde a entrada

3 Educar é, em essência lançar-se ao outro. (Tradução nossa).

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na Pesquisa Narrativa. Alteridade que reclama uma ética e uma moral centradas na epifania

do rosto

4De ahí que la epifanía del rostro sea el umbral del infinito, de la

transcendencia. La acción educativa sólo podrá ejercer genuinamente su

poder si somos capaces de admitir la realidad de lo otro, y del otro. La

corporeidad puede convertirse en rostro en la relación dual, en el cara a

cara. Pero la relación dual no es condición suficiente para que el rostro

estalle, aunque sí es condición necesaria. Queremos decir: la mirada, en su

origen puede destruir, y de hecho destruye, la desnudez del rostro. Si el

rostro estalla es debido al deseo y esté es desde ahora una prescripción

moral (MÉLICH, 1997, p. 135).

Na metáfora da epifania do rosto, Joan-Carles (1997, 2000), parte do conceito de

alteridade de Lévinas (1991) e reitera a importância de olhar o outro como infinitamente

outro, deixando-nos afetar por este olhar de modo que o rosto do estranho resplandeça diante

de nós, não porque sejamos obrigados a isso, mas porque configura parte de nosso desejo de

transcender a nossos próprios preconceitos e saberes, indo ao encontro do outro, do infinito.

Metáfora que se converteu em valioso saber, sobre o qual, de certo modo, está erigida esta

pesquisa, cujos sentidos foram compostos a partir do olhar compreensivo que reconhece no

rosto a palavra do outro, que reconhece no lembrado e narrado, a possibilidade de se edificar

novas experiências e seguir vivendo. Assim pois, coincido que

5“El rostro es la palabra del otro, esté vivo o muerto. Por eso hay que

recordar, para que el rostro del otro hombre siga vivo, porque como dice

Saramago, “Así como la muerte definitiva es el fruto último de la voluntad

de olvido, así la voluntad de recuerdo podrá perpetuarnos la vida”

(MÉLICH, 2000, p. 94).

1.3 Os participantes da Pesquisa

No que tange aos participantes da pesquisa são cinco, todos no processo inicial de

tornarem-se professores, na época em que iniciei a pesquisa, três professores: Heitor, Odisseu,

4 Daí que a epifania do rosto seja o umbral do infinito, da transcendência. A ação educativa somente poderá

exercer genuinamente seu poder se somos capazes de admitir a realidade de outrem, e do outro. A corporeidade

pode converter-se em rosto na relação dual, no cara a cara. Porém a relação dual não é condição suficiente para

que o rosto resplandeça, ainda que seja condição necessária. Queremos dizer: o olhar, em sua origem pode

destruir, e de fato destrói, a nudez do rosto. Se o rosto resplandece é em virtude do desejo e este é desde agora

um princípio moral (Tradução nossa). 5 O rosto é a palavra do outro, esteja vivo ou morto. Por isso, é preciso recordar, para que o rosto do outro

homem siga vivo, porque como disse Saramago “Assim como a morte definitiva é o fruto último da vontade do

esquecimento, assim a vontade da recordação poderá perpetuar a vida” (Tradução nossa).

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Félix e duas professoras: Helena e Safo. Ingressaram, via concurso, em escolas públicas

estaduais localizadas na cidade de Várzea Grande, no ano de 2014 e consideradas as atuações

em outros contextos, haviam atuado em média, um ano na docência, todos principiantes,

portanto, tendo atuado à época menos de cinco anos na docência (MARCELO, 2007, 2008).

Ademais deste requisito, outro fator que influenciou fortemente nos critérios de escolha dos

participantes da pesquisa foi o fato de o pesquisador também atuar como professor de Línguas

Portuguesa e Espanhola na Rede Federal e Tecnológica de Ensino.

Aqui, esclareço que compreendo que se tornar professor configura-se de múltiplos

processos complexos. Complexidade apontada por Flores (2010) como sendo característica

da profissão e critério de profissionalização. Também Nóvoa (1992); Marcelo (1999, 2007,

2008) e Monteiro (2003, 2006, 2016) se referem à complexidade que marca a

profissionalidade docente e a concebem como um continuum de desenvolvimento, todavia,

nos meandros deste texto de tese, os processos evocados são todos referidos apenas à etapa de

desenvolvimento profissional docente concernente ao processo inicial de tornarem-se

professores (as) de cinco professores principiantes nos respectivos contextos escolares, todos

localizados, em Várzea Grande – MT, docentes cuja nomeação por pseudônimos, veio sendo

negociada ao longo da pesquisa. Após os ter acompanhado por mais de um ano, propus que

pensassem em algum codinome pelo que gostariam de ser nomeados no texto da tese,

afirmaram que não se importavam de serem apresentados (as) pelo próprio nome, entretanto,

ciente das muitas implicações que a publicação de narrativas pessoais pode ter na vida

daqueles que estão principiando na carreira docente, não me senti inteiramente à vontade para

fazê-lo. Entendo que a identidade destes profissionais está evoluindo permanentemente e

publicizar aquilo que pensam, vivenciam e dizem em dado momento, pode contribuir para o

entendimento destas mesmas identidades como atributos fixos. Assim, depois de observar

características pessoais que de certo modo, faziam-se presentes na maneira como vinham se

constituindo profissionalmente e bastante tangenciado por releituras cinematográficas da

Odisseia de Homero, bem como por outras narrativas da Grécia Clássica, sugeri os

pseudônimos de Heitor, Odisseu, Safo e Helena, ao fazê-lo explicitava os motivos porque

pensava ser oportuno nomeá-los (as) por estes epítetos, nesta conversação retomava a

narrativa que precedera a escolha e a cotejava com características que marcavam o processo

de inicial de constituição docente deles (as). Concordaram, exceto Félix que razoou

peremptoriamente em favor de ser apresentado com o próprio nome.

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1.4 A composição das narrativas

Para compor os sentidos que sustentam este texto de tese, perfiz um longo

percurso, no qual ingressei em meio a um contar de histórias, nas trajetórias de cinco

professores em início de desenvolvimento profissional. A aproximação dos contextos, nos

quais estas histórias eram vividas, deu-se de modo gradativo e desde a primeira conversa

passei a registrar em meu caderno de campo, narrativas que tratavam do ocorrido e das

impressões que eu tinha sobre o que se passava; as reflexões ou recordações que despertavam,

sentimentos que suscitavam, daí, resultou o diário do pesquisador. Esta produção de

narrativas em que constava a percepção do pesquisador foi uma constante, concomitante a

qualquer outra narrativa elaborada, sempre procedi à produção do diário do pesquisador. Este

teve um papel de grande relevo nas interpretações dos sentidos presentes nas narrativas dos

participantes, posto que me facultava retomar e, muitas vezes, rever o que havia pensado,

sentido, refletido semanas, meses ou anos antes do instante em que procedia tais

interpretações. Ao mesmo tempo, estas narrativas sob a forma de diário me permitiam situar

retrospectiva e prospectivamente em relação à maneira como eu vinha entendo o modo em

que os participantes estavam se tornando professores, bem como me possibilitava repensar

e/ou ratificar a leitura que vinha fazendo da situacionalidade que marcava os lugares nos quais

se dava a pesquisa. Simultaneamente a esta, foram produzidas diversas outras narrativas:

entrevistas, narrativas escritas pelos participantes e narrativas imagéticas. A seguir explicitarei

o que constitui cada uma destas narrativas, assim como de que forma contribuíram à

consecução deste texto.

Entrevistas, aqui são referenciadas em Clandinin e Connelly (1995) como

entrevistas narrativas, resultaram das conversações - gravadas em áudio - estabelecidas entre

pesquisador e participantes e configura-se como uma entrevista em profundidade, ocorreram

no início e no fim da pesquisa. Inicialmente, tornaram possível a produção de narrativas sobre

as trajetórias profissionais e os percursos pessoais dos/as participantes. Ao fim, corroboraram,

por meio de entrecruzamentos com as narrativas constantes do diário do pesquisador,

narrativas escritas pelos participantes e narrativas imagéticas, com o entendimento dos

sentidos que sustentam o modo de ser e maneiras de fazer de professores principiantes.

Sentidos e significados que não podem ser compreendidos dissociados dos estudos das

mencionadas trajetórias em contextos.

Narrativas escritas constituíram de produções elaboradas pelos participantes, na

etapa intermediária da pesquisa, foram motivadas pela devolutiva das narrativas resultantes

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das entrevistas e tornaram possível acessar as experiências de professores principiantes em

contextos de atuação e aproximar dos sentidos e significados atribuídos a estas mesmas

experiências.

Narrativas imagéticas concernem nos limites deste texto, às narrativas construídas

pelo pesquisador a partir das filmagens em vídeo e áudio de encontros de formação ocorridos

nas escolas, onde os participantes atuavam. Confrontadas ao disposto nas narrativas escritas e

ao diário do pesquisador, ensejaram a elaboração do entendimento de que as relações que se

estabelecem em contextos de atuação impactam fortemente os docentes em inicio de

desenvolvimento profissional.

Durante dois anos aproximadamente, acompanhei aos participantes nos

respectivos contextos de atuação. Desde as primeiras apresentações até as últimas entrevistas,

tornamo-nos mais próximos, de modo que, em muitos instantes, aquelas mais se

assemelharam a uma conversa entre pares. No processo de produzir as narrativas das quais

resultou a composição deste texto, foram elaborados diferentes registros: entrevistas, textos

escritos pelos participantes, textos resultantes de filmagens de encontros de formação,

ademais daqueles constantes do diário de campo do pesquisador. Das muitas leituras

procedidas a estas narrativas, primeiro, uma após a outra e por participante, depois o conjunto

das narrativas produzidas pelos participantes individualmente, por fim, a leitura entrecruzada

de narrativas de diferentes participantes, bem como dos textos de campo produzidos pelo

pesquisador emergiram as primeiras interpretações. Então configura-se um ciclo de leituras

das narrativas e dos referenciais da Pesquisa Narrativa, bem como de outros referenciais,

sempre no ímpeto de compreender paulatinamente os sentidos que sustentam o tornar-se

professor no processo inicial de desenvolvimento profissional. O ir e vir das narrativas

produzidas aos referenciais, destes de volta aos contextos de atuação dos participantes ia

dando forma ao texto de tese; porquanto agora, apresento, tais contextos.

1.5 Paisagens onde se localizam as escolas

Sumariamente, é possível caracterizar a cidade onde se localizam as cinco escolas, nas

quais os participantes atuam e/ou atuaram no decorrer dos dois anos em que foram

acompanhados pelo pesquisador como sendo uma cidade de porte médio, localizada próxima

à capital de Mato Grosso, Várzea Grande, limita-se com Cuiabá, pelo Rio do qual decorre o

nome desta última. Mencionado muitas vezes nos textos de campo, pois o trajeto percorrido

pelo pesquisador que vive na capital levava-o invariavelmente, a transpor o Rio Cuiabá, todas

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as vezes que se dirigia aos contextos da pesquisa. De acordo com o censo do IBGE de 2010,

Várzea Grande era habitada por 252.596 pessoas. Esta mesma instituição divulgou, isso já no

ano de 2015, a existência de 40 escolas de ensino fundamental da rede pública estadual e 29

escolas de ensino médio. Apesar de constar como um pólo industrial, a cidade apresenta

grandes limitações na área de saneamento básico e pavimentação asfáltica, dentre outros.

Segundo dados do Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento Humano, o IDHM de

Várzea Grande em 2010 era de 0,734; sendo que do total de habitantes apenas 213.999 eram

alfabetizados, à época.

Acorde com princípios da Pesquisa Narrativa na qual “(...) a pessoa em contexto é o

que interessa” (CLANDININ; CONNELY, p. 66, 2011), buscarei apresentar a seguir os

contextos onde atuam os participantes da pesquisa, mas tentarei fazê-lo a partir dos sentidos

que construí ao vivenciar as paisagens destes contextos. Sentidos ao longo da pesquisa e nos

limites deste texto é um termo chave para a compreensão das narrativas como experiências

narradas. Termo que deriva da visão de Larrosa (1995; 2002; 2014) e que remete ao modo

como cada pessoa valora desde uma perspectiva própria e segundo uma ética específica os

fatos que ocorrem nas diversas dimensões que comportam o próprio viver laborado em

diferentes contextos, marcados por uma infinidade de paisagens sempre em construção.

O intento de entender as paisagens mencionadas, cujo relevo vai definindo histórica,

social, linguística, cultural e relacionalmente o contexto de cada escola, ao tempo em que

incide muito fortemente na constituição profissional docente, levou o pesquisador a produzir

os documentos narrativos todos no espaço destas unidades em que atuam os participantes da

pesquisa, bem como a registrar em vídeos encontros voltados à formação contínua de

professores que integram a rede estadual de ensino, “Sala de Educador6”. A opção por não

identificar as instituições, onde se delineou esta investigação sustenta-se no entendimento de

que também estas instituições evoluem e se transformam ao longo do tempo, de modo que o

que fora observado e narrado em dado momento pode não corresponder a outros momentos na

história destas instituições, este foi também o entendimento que moveu o pesquisador a

negociar com os participantes os pseudônimos pelos quais são apresentados neste texto, à

exceção de um docente que optou por ser apresentado pelo primeiro nome.

Isto posto, antecipo que as narrativas vindouras são representativas do modo como o

pesquisador veio lendo diferentes lugares, contextos institucionais. Antes, contudo, faz-se

6 Por meio da PORTARIA Nº 161/2016/GS/SEDUC/MT, que instituiu novas diretrizes organizacionais à

formação contínua de professores e demais servidores na rede, o projeto de formação contínua em serviço “Sala

de Educador” foi reconfigurado.

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necessário esclarecer que, por ocasião das filmagens sobre as quais se assentam as narrativas

que caracterizam as paisagens pelas quais a pesquisa passeia, Heitor estava afastado do

trabalho educacional, acometido por problemas de saúde. De maneira que, são apresentadas

neste tópico narrativas concernentes a quatro contextos de institucionais concernentes às

escolas, onde à época, atuavam Odisseu, Safo, Felix e Helena, respectivamente. Entretanto, ao

retornar à profissão docente, Heitor evidencia o desejo de continuar participando da pesquisa

que, a partir de meados de 2015, é reconfigurada pela composição de sentidos advindos de

cinco trajetórias e das narrativas do pesquisador.

1.6 Contexto Institucional que atravessa a constituição profissional de Odisseu

Antes de adentrar o contexto de atuação de Odisseu tal como narrativizado, neste

texto, cumpre esclarecer que o termo contextos – e respectivos cognatos - configuram nesta

tese, lugares e concomitantemente, o movimento e as ações das pessoas que se movem em

meio às paisagens que constituem estes lugares (SCHOENFELD, 1997; MIZUKAMI, 2002).

Com fulcro em investigações sobre as práticas desenvolvidas por professores em sala de aula

em contextos de influência anglo-saxônica,Schoenfeld (1997) elabora os estudos

denominados “Teoria em Contexto”, nos quais busca interpretar e elucidar o modo como os

professores elaboram os conhecimentos necessários a interação com os alunos em sala de

aula. A partir da Teoria em Contexto, Mizukami (2002) desenvolve uma pesquisa densa em

contextos de escolas públicas paulistas e avança na perspectiva de compreender os sentidos

que sustentam a construção dos conhecimentos que os professores elaboram na interação com

os estudantes em sala de aula. De maneira que aqui, assumo que o termo contexto remete

tanto às escolas onde atuam ou atuavam os participantes da pesquisa que, denomino contexto

institucional, quanto ao que nos interstícios deste texto, a partir dos estudos de Mizukami

(2002) e das investigações de Schoenfeld (1997) conceituei de contexto imediato, quando

referidas experiências e narrativas delineadas dentro da sala de aula. Compreendo que estes

contextos em ambos os casos, de certo modo, definem as relações que ali se estabelecem, em

constante negociação, por outro lado, também são constituídos por elas, de forma que se

configuram sempre provisoriamente hibridizados (HALL, 2005)7 pela gama de histórias

7 Ao discutir o conceito de identidade na Pós-modernidade, Stuart Hall, com fulcro, inclusive, na própria

trajetória pessoal (jamacaino que viveu a maior parte da vida em Londres), afirma que a constituição identitária

na contemporaneidade caracteriza-se pela mescla de experiências vivenciadas em lugares distintos, fato que a

hibridiza e faz com que as pessoas não pertençam única e exclusivamente a um lugar, mas se constituam no

entrelugar.

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pessoais, experiências e sentidos trazidos pelas pessoas que a eles acorrem (LARROSA,

2014). Cumpre aclarar ainda que a apresentação dos contextos de trabalho anteposta ás

narrativas dos participantes da pesquisa decorre da postura assumida nesta pesquisa, na qual é

defendida a ideia de que para compreender os processos que marcam as experiências

narrativizadas, é imprescindível situar a pessoa em contexto, pois estes contextos, conformam

parte fundamental nas trajetórias de formação.

Presumivelmente, esta concepção de contextos, a qual veio sendo elaborada desde a

definição da questão desta pesquisa que requer a compreensão das experiências construídas e

sentidos compostos por professores no processo inicial de se tornarem docentes desde dentro

das escolas, dimensionou o meu olhar ao longo desta investigação, aspecto marcante na

narrativa concernente ao contexto de atuação de Odisseu.

Afiguram-me ao reler as narrativas da paisagem que caracteriza o mencionado

contexto que os últimos deslocamentos até aquele lugar representaram para mim, viagens,

travessias marcadas pela rememoração8, não somente as lembranças são reconstituídas

momentaneamente, digo não somente as lembranças dos fatos tal como ocorreram, mas,

também e, marcadamente o que pensei, senti, em suma o modo como estes me tocaram e as

reflexões decorrentes. Este contexto se configura, pelos sentidos que, agora atribuo a ele em

lugar, cuja paisagem também me atravessa, por vezes de um jeito pungente. Dentre estas

viagens, destaquei com fortes matizes aquela em que tinha o propósito de registrar por meio

de filmagem, o espaço de formação continuada, instituído politicamente em âmbito estadual

sob a denominação “Sala de Educador”. Optamos, a orientadora da pesquisa e eu, por tentar

entender os contextos de cada uma das escolas em que atuam os professores que participam

da pesquisa por meio de observações e registros das interações que se dão também no âmbito

do projeto “Sala de Educador”. Na paisagem historiada, foi marcante o encontro com uma

professora também da área de linguagem, que contribuiu enormemente para mitigar a tensão

gerada pela expectativa de documentar filmicamente o encontro de formação. À época, eu

ingressava uma vez mais na escola, um bloco contínuo e estreito que se elevava por sobre as

casas homogêneas e de pequeno porte, quando reconheci um sorriso e a epifania do rosto tal

como a descreve Mélich (1997) se revelou na atitude da professora que me toma pela mão e

me conduz até o mural posicionado em uma das paredes do corredor. Efusiva, apontava as

figuras, palavras, recortes... que remetiam a países hispano-americanos, projeto que

desenvolvera com os estudantes nas aulas de Língua Espanhola. Depois, quando a solicitei

8 Neste texto, o termo se refere à recriação de memórias ativadas por sentidos vivenciados no momento em que

emergem.

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que me levasse até a sala onde se daria o encontro de formação; o fez tão solidária e

afavelmente que me surpreendeu.

Ressalto no narrado, a forma como o espaço onde Odisseu atua é caracterizado, à

arquitetura não se descreve sem associar ao movimento que as pessoas realizam por entre ela.

As sequências descritivas estão conformadas pela narrativa que as vai integrando ao todo da

história. A ênfase recai nas rememorações, reconhecimentos, afeto, preocupações, relações

enfim, o foco está nas pessoas, muito além da apresentação objetiva das paisagens

(CONNELLY; CLANDININ, 1995). Este é um aspecto que marca o narrar que produzi com

vistas a apresentar os contextos da pesquisa, pois para Pesquisa Narrativa importa

compreender as pessoas nos respectivos contextos.

Assim sigo enredando os fios desta narrativa anunciando que naquele final de tarde e

início de noite, antes de sair a professora que me acompanhara até a sala, nela ingressou a

professora articuladora que também me saudou receptiva. Aos poucos, os que participariam

do encontro daquele dia ingressam na sala, dentre eles o coordenador que, tendo percebido a

minha presença, dirigiu-se até mim e deu as boas vindas. Depois se pôs a organizar o projetor

de multimídias, o computador, enfim passou a ultimar os preparativos para o encontro de

formação. A maioria dos que ingressaram na sala ao perceberem a câmera que instalei à

esquerda e ao fundo se atentaram para ela, e logo surgiram burburinhos sobre o propósito de

se estar a filmar aquele encontro, mas não me interpelaram diretamente e, eu, quando me

olhavam ou apontavam em direção a mim e à filmadora, ria, buscando aparentar uma calma

que não era representativa da tensão em que me encontrava. De modo que, quando o professor

que participa da pesquisa adentrou e sorrindo me estendeu a mão, senti-me amparado. “Você

emagreceu, tá quase sumindo dentro das roupas!” Comentou enquanto me olhava

atentamente. Em seguida o Coordenador me convidou a dizer aos que ali estão quais os

motivos que me levaram até lá. Divertido, fez alusão a uma série de reportagens exibidas por

uma das emissoras de TV aberta do Brasil, que foram ao ar com o simbólico título, ao menos

para os que vivemos nestas terras Tupiniquins: “Cadê o dinheiro que estava aqui?”

Interessante estratégia, a menção destas reportagens provocou riso e contribuiu para mitigar a

tensão de se estar sendo filmado, ao menos momentaneamente. Diante do grupo, sentados em

cadeiras escolares organizadas em semicírculo, explicitei brevemente que se tratava de uma

Pesquisa e que ali estava para compreender um pouco mais o contexto onde o professor que

aceitara o convite vinha se fazendo docente; agradeci ao participante e à equipe gestora,

depois retornei à cadeira ao lado daquela em que se sentara o professor participante da

pesquisa. Desde ali, pus-me a observar que o coordenador ocupa o lugar central diante da

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turma, move-se à frente de todos e em direção aos participantes quando solicitado. Estes

últimos interagem espontaneamente, inclusive para solicitar ajuda, como no caso, em que o

professor participante da pesquisa, recorreu à professora ao lado para compreender um teste

de personalidade a que todos foram submetidos, ainda no início do encontro. Teste este que

tratava de uma série de questões sobre as preferências ou modos de aprender dos envolvidos

e, depois, os categorizava como sendo predominantemente aprendentes visuais, auditivos ou

sinestésicos. A partir dos “perfis” apresentados pelos integrantes do grupo o coordenador deu

início ao debate sobre como vinham se dando as abordagens concernentes ao modo de ensinar

naquela instituição, parecia tentar evidenciar contradições vigentes entre o modo como

aprendem os professores e as maneiras a que recorrem ao ensinar. Neste enunciar evocava os

participantes a falarem, inclusive o participante da pesquisa que também fora interpelado, ao

tempo em que ia marcando uma certa concepção de ensino e de aprendizagem que me

pareceu, apesar da tentativa teórica de se colocar em um lugar marcado por teorias

sociointeracionistas, bastante marcada pela racionalidade técnica tal como conceituada por

Shon (1983), embora salpicada por ações que já não cabem inteiramente neste paradigma. A

propósito, o professor participante da pesquisa enunciara-se somente quando perquirido pelo

coordenador e, ao fazê-lo, denotou como já o fizera nas entrevistas, preocupação concernente

a aspectos disciplinares dos estudantes. E, a mim me pareceu que este não dizer-se em outros

momentos, não está relacionado ao fato de que não lhe seja concedida audiência, mas me

parece estar contingenciado muito mais por questões como, por exemplo, o cansaço, visível

em vários momentos durante o encontro, quiçá não tenha havido naquele encontro, um vívido

engajamento de parte significativa dos participantes.

Neste narrar, atento-me a unidade de sentidos (CLANDININ; CONNELLY, 1995,

2011) que ancora o narrado e noto que o fio condutor desta história alinhava o modo como as

pessoas se movem, mas este mover comporta para além das ações aquilo que as motiva, por

isso, percebo que busquei compreender por que as pessoas observadas fizeram o que fizeram,

em virtude disso, um narrar rico em detalhes calcados nas interações entre as pessoas que ali

se encontravam. Noto que visei a compreender as negociações que sustentavam estas

relações, inclusive quando concernentes a mim mesmo, na condição de pesquisador envolto

naquele contexto, neste sentido quiçá, pudesse parafrasear Nóvoa (1995) e dizer que a pessoa

é o pesquisador, entretanto, o pesquisador é uma dimensão importante da pessoa e

pessoalmente se relaciona com Odisseu. Por outro lado, é como pesquisador que constatei o

pouco envolvimento do participante da pesquisa na ação com intenções formativas, o vivido

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circunstancialmente naquele momento, parecia carecer de sentidos que evocassem Odisseu a

integrá-los vividamente às próprias experiências (CONTRERAS, 2016).

Postura bastante destoante daquela apresentada pelo gestor, engajado, curioso,

questionador, partícipe do princípio ao fim, apresentou a exemplo do coordenador, narrativas

de aprendizagem advindas tanto de ambiente escolar quanto familiar. Os dois debateram

vivamente aspectos concernentes ao vídeo que fora apresentado sobre o conceito das

múltiplas inteligências de Gardner (2008), contextualizando-o a todo tempo, nesse ínterim,

algumas participantes, enunciaram-se, porém muito brevemente, não chegaram a estabelecer

um diálogo, não no sentido gadameriano do termo, em que os envolvidos se transformam

mutuamente. Algumas cochilavam, outras pareciam estar mais atentas aos aparelhos celulares,

outras folheavam catálogos de cosméticos, outra ainda, batia palmas de tempo em tempo,

sempre ao final de uma fala do coordenador e, o gesto que, a princípio poderia levar ao

entendimento de que se tratava de um reconhecimento no falar do outro, era no fundo, um

gracejo que remetia ao aplauso final e ao término do encontro, que se iniciara as 17h30, logo

após a jornada de trabalho e se estendera até por volta das 19h30. Há ainda aquelas, que se

ausentavam e, decorrido um tempo considerável, retornavam geralmente munidas com

canecas contendo água, por vezes, havia no trajeto tempo para um gracejo, como aquele que

uma das participantes que minutos antes cochilara, aproveita o cochilo do professor

participante da pesquisa, para depor sobre o meio calvo da cabeça daquele a caneca vazia.

Mas, a o coordenador, o diretor e algumas outras participantes estavam vivamente engajados.

Ante isto, fui movido a perguntar: até que ponto as condições contextuais contingenciam os

sentidos que poderiam ser construídos a partir deste encontro? Poderia este mesmo conteúdo,

ao ser abordado desde outra perspectiva teórico-metodológica mitigar os efeitos do cansaço e

o envolver mais efetivamente os participantes? Que espaços e temporalidades poderiam ser

erigidos visando a dotar de maior sentido a aprendizagem decorrente da formação continuada,

principalmente quando considerado o desenvolvimento profissional dos principiantes na

carreira docente?

Enredo-me nesta narrativização e logro entender o comprometimento da equipe

gestora que, desempenhava o relevante papel de lideranças (DAY, 2001, 2005) no processo

de formação, por conseguinte, impactavam positivamente o sentido de desenvolvimento

profissional erigido no âmbito do contexto onde Odisseu atuava. Não obstante compreendo

que no âmbito das relações estabelecidas naquele contexto, o tempo, conceito que para Pineau

(2003) interfere fortemente nas dimensões existenciais do tornar-se pessoa, incluída a esfera

formativa e identitária; o autor insiste na tese de que o tempo mecânico tem afastado cada vez

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mais os humanos da vivência temporalidades mais salutares, ainda segundo o pesquisador

francês, vive-se na contemporaneidade uma esquizocrônia, ocupava o epicentro das

negociações. Representativa deste fato é sequencia narrada que se refere ao movimento em

que o coordenador da escola e do encontro de formação vinha realizando no sentido de

provocar o debate e possíveis reflexões sobre os diversos modos que as pessoas aprendem.

Inicialmente convidara os professores a fazerem um teste – questões referidas a hábitos e

preferências dos discentes relativos à leitura, escrita, fala, escuta e outros. Depois, expusera

uma teoria que versava sobre alunos primordialmente visuais, auditivos ou sinestésicos e uma

vez, apresentados os resultados dos testes respondidos pelos participantes – segundo o qual, a

maioria era predominantemente sinestésica- ultimava detalhes para a projeção de um vídeo. O

verbo no pretérito imperfeito do indicativo conclama aqui, a que nos atentemos ao que se

passa e possamos marcar em meio aos acontecimentos narrados sentidos subjacentes à

aparente ausência de sentido do gesto da professora, participante do encontro, que bate palmas

enquanto ri, bem como da atitude do coordenador que a observa e declara: “Não, ainda não”.

Em que se sustenta a atitude do coordenador que rechaça um elogio, a manifestação de

reconhecimento naquilo que proferira? Inquietação que moveu o pesquisador a elaborar o

entendimento de que não se tratava de reconhecer-se na fala de outrem ou de considerar

plausível o que enunciara. Subjazia aquele questionamento sobre bater palmas um convite

revestido de ironia. A indagação daquela professora comportava um excesso de significados:

o bater palmas como uma maneira de evocar o término do encontro de formação por isso,

sorria.

Ao considerar a situação, o lugar e o tempo, pude entender que este último, concebido

desde uma perspectiva mecânica e hegemônica (VIEIRA, 2015) sobrepujava no contexto de

atuação de Odisseu as temporalidades mais pessoais e singulares, além de apontarem para as

condições em que vem se dando a profissionalização docente, conceito que para Flores

(2010), caracteriza-se pela complexidade do tornar-se professor. Para Roldão (2007) além de

ser complexa a profissionalização docente, define-se sobremaneira pela capacidade requerida

dos docentes em ajudar alguém a aprender algo valorado social e contextualmente. De sua

parte Imbernón (2009), advoga que mencionada profissionalização tem como fulcro a

necessidade perene de formação para a transformação, considerados os mais distintos

contextos, inclusive, acrescentaria eu, aqueles nos quais atuam os participantes desta pesquisa.

Após terem estado na regência de salas de aulas marcadas pela diversidade e complexidade,

ao longo de dois turnos, Odisseu e os demais professores que frequentavam o encontro de

formação naquele dia, iam direto à sala onde a equipe gestora os aguardava para mais uma

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hora e meia de trabalho. Alguns premidos pela urgência ingressariam em mais uma sala de

aula em outra escola, para prosseguirem a jornada tripla, quádrupla, quando considerado o

tempo dedicado ao encontro de formação. Elaborado este entendimento, posso dimensionar a

relevância da Pesquisa Narrativa ao voltar-se para as pessoas nos respectivos contextos e

almejar compreendê-las em meio ao viver e contar histórias, de modo que para além dos

eventos, visa a compreender os processos (CLANDININ; CONNELLY, 2011; CONNELLY;

CLANDININ, 1995) assim, pois, aporta possibilidades de se construir entendimentos acerca

das experiências e dos sentidos delas advindos para além de um olhar maniqueísta e dual que

aponta inquisitoriamente, ante as políticas instituídas, via, de regra, aos professores,

considerados quase sempre culpados. Com fulcro neste referencial venho elaborando a

compreensão de que pesquisar processos de desenvolvimento profissional docente, ainda que

situada, no âmbito destes, apenas a etapa concernente à inserção profissional (MARCELO,

1999, 2002, 2007, 2008) requer do pesquisador disposição para lidar com contextos marcados

pela complexidade.

De fato, assumir que as narrativas podem ser concebidas tanto como fenômeno que

marca a cotidianidade do viver humano, como também podem se constituir em método de

investigação com vistas a situar e compreender as experiências e os sentidos que elas evocam

(CONNELLY; CLANDININ, 1995; DEWEY, 2010) e tentar desenvolver uma investigação

em perspectivas próximas a esse referencial, tive de lidar, desde o início com a complexidade

em situar os participantes da pesquisa nos respectivos contextos de atuação, aspecto

fundamental a quem se propõe a investigar narrativamente.

Senti instado a elaborar novas maneiras de situar os contextos em que vêm se tornando

professores os participantes da pesquisa. Desde o início estava muito clara a percepção de que

não bastava descrever ou caracterizar estes locais, como convencionalmente tem sido feito no

âmbito das pesquisas acadêmicas formalistas como insistem Clandinin e Connelly (2011). Era

preciso compreender as pessoas nestes contextos, porquanto avançar no sentido de superar as

caracterizações costumeiras, pois assumo que estes contextos influenciam sobremaneira os

processos de constituição dos docentes principiantes, porquanto marcam e por vezes, definem

o desenvolvimento pessoal e profissional dos professores (MARCELO, 1999, 2007, 2008;

NÓVOA, 1995, 2009, 2016; DAY, 2001, 2005). Entretanto, adentrar, vivenciar e

compreender as histórias entretecidas contextualmente nos meandros de uma unidade escolar

configura por si só, um trabalho de grande monta, que dizer então do intento de fazê-lo nos

contextos concernentes a cinco escolas? Confesso que este talvez tenha sido o maior

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obstáculo que, na condição de pesquisador iniciante na Pesquisa Narrativa, enfrentei ao longo

de toda a investigação.

Não obstante, toda a construção que eu vinha elaborando apontava dentre outros, a

importância em se compreender a influência dos contextos escolares na constituição do

tornar-se professor após muito conjecturar, deliberei – juntamente com a orientadora desta

pesquisa - por aprofundar na compreensão destes contextos via observação e registro (textos

de campo e fílmico) do espaço destinado à formação contínua instituído pela política de

Estado, à época. Daí emergiu o modo como venho compondo os sentidos referentes aos

contextos de atuação dos participantes, tal como apresentado neste texto de tese. Entendo que

a solução encontrada ante a complexidade instaurada, quiçá, não seja a ideal, mas também

entendo e assumo como sendo a que se me apresentou como sendo a possível dada a

circunstância mencionada.

Destarte, perspectivas que se aproximam da Pesquisa narrativa como fenômeno

vivencial e método de investigação exigem um grande esforço do pesquisador

(CLANDINNIN; CONNELLY, 2011). No meu caso, particularmente, o próprio delinear da

pesquisa, os cenários me levaram a por em causa metodologias que, -advindas de um

paradigma moderno, o qual certamente foi e continua sendo importante para desenvolvimento

de determinadas Ciências, não suporta, contudo, toda a complexidade das Ciências que se

voltam à compreensão da ontologia do humano - sustentadas em certa cissiparidade entre o

pesquisador e o participante, não potencializam pesquisa entendida em perspectiva relacional.

Ao por em causa os mencionados pressupostos, fui levado a desenvolver a pesquisa

ora apresentada no entremeio, marcado pelos conhecimentos elaborados como pesquisador

qualitativo, mas ainda pautado em perspectivas mais formalistas, nas quais a teoria sempre

precede a experiência, e a Pesquisa Narrativa, na qual as teorias emergem das experiências

vivenciadas. Perspectiva que requer aprofundar na compreensão de que viver é um constante

narrar, pois a vida quer seja a nossa quer seja a de outros, quer seja o entrelaçar de

experiências advindas de ambas, é composta por fragmentos narrativos, delineados em

momentos históricos marcados pelo tempo e o espaço que podem ser refletidos e significados

como sendo unidades narrativas erigidas nestas descontinuidades (CLANDINNIN;

CONNELY, 2011). Assim, desde o início desta pesquisa vim construindo percepções que me

possibilitassem adentrar o emaranhado de relações vigentes nos contextos nos quais se

encontravam os participantes.

No tópico seguinte, adentraremos um dos contextos que marcam a inserção à docência

de Félix que na condição de professor de Língua Espanhola se vê compelido a atuar em mais

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de uma escola, devido à organização curricular vigente, à época, a mencionada disciplina

dispunha de baixa carga horária, com o complicador de ser obrigatória apenas aos anos finais

da educação básica, este é um dos aspectos que impactaram o processo de inserção

profissional deste participante.

1.7 Contexto Institucional que marca o modo como Félix vem se tornando Professor

Desde o primeiro momento em que ingressa no contexto escolar, o pesquisador

narrativo procura negociar não somente com o participante da pesquisa, mas também com as

pessoas que influenciam o processo de desenvolvimento em que aquele vem se tornando

professor. Releio a narrativa que na busca de compreender as influências do contexto na

constituição docente de Félix e encontro nela termos essenciais da Pesquisa Narrativa

(CLANDININ; CONNELLY, 2011), uma vez mais, se me apresentam situação, lugar,

negociação, pessoas em interação. Este último termo essencial da Pesquisa Narrativa releva-

se no decorrer da narrativa, note, por exemplo, já no primeiro parágrafo a tensa negociação

que estabeleço com vistas a registrar filmicamente o encontro no âmbito do projeto Sala de

Educador. Interações, diálogos, acordos, encontros, reencontros, desencontros, retornos e

ausências, marcam o enredo narrado.

Naquele meio de tarde regressei à escola, na qual eu estivera horas antes, na ocasião

fui recepcionado por uma das coordenadoras e pelo diretor da unidade. Explicitei os motivos

pelos quais ali estava, apresentei a autorização da Seduc e pedi permissão ao diretor para

filmar um dos encontros do projeto “Sala de Educador”. Ele autorizou prontamente,

agendamos, inclusive, quando seriam realizadas as filmagens. Fiquei contente e aliviado com

a autorização, pois não vinha acompanhando o participante no contexto desta escola, muito

embora ele atue nela também. O fato é que quando o entrevistei, o professor que leciona

Língua Espanhola, atuava nesta e em mais duas outras unidades e, segundo ele, havia optado

por participar da formação continuada nesta escola. De modo que o entrevistei em uma escola

e filmei o encontro formativo em outra unidade. Enquanto estacionava o carro sob uma

mangueira na remota periferia de Várzea Grande, rememorei o olhar esverdeado da

coordenadora, no qual me reconheci, reconhecemo-nos, dos tempos em que eu ainda era

formador de professores de Língua Portuguesa na Rede Estadual de Ensino. Por instantes, me

alentou a esperança que fosse ela a formadora do encontro daquela tarde. Desço celeremente

os degraus, o horário em que começaria o encontro se abreviava; ante o portão me anuncio e

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me recepciona uma senhora de meia idade, ela coordenaria a formação... bem, reencontros

não se repetem continuamente.

Afável, a que coordenaria a formação me encaminhou até a sala de vídeo, ali estava

uma professora ao que parece preparando para também utilizar aquele espaço. Diante da sala

foi indagado pela coordenadora se eu faria uma palestra e, se utilizaria para este fim o projetor

de multimídias, porque caso fosse utilizar a sala seria aquela, então o encontro de formação se

daria ali. Contestei negativamente a todas as indagações, afirmei que tampouco gostaria

interferir na escolha do lugar onde se daria o encontro e, ela deliberou por realizá-lo na

biblioteca da escola. Na biblioteca além das prateleiras contendo uma quantidade considerável

de livros didáticos e paradidáticos havia vários jogos de mesas e cadeiras; mesas arredondadas

dispostas circularmente davam um aspecto agradável ao lugar, que pese a simplicidade com

que tudo estava organizado. Adentramos a coordenadora e eu, e uma senhora que ali estava

recortando papeis, começou a juntá-los, dando a entender que sairia brevemente. Saudamo-la.

A coordenadora me disse para ficar à vontade e saiu, pedi consentimento e instalei a câmera

ao fundo, junto ao último jogo de mesa e desde ali me predispus a acompanhar o encontro. O

condicionador de ar deixava a temperatura bastante convidativa.

Narrativizando, caracterizei o lugar onde se daria o encontro de formação, não

obstante novamente emergem as pessoas e o que elas fazem enquanto vivenciam aquela

paisagem, compreendo que os termos essenciais da narrativa estão integrados e emergem

concomitantemente: situação, lugar e interação se replicam mutuamente no seio do que fora

narrado, nesta perspectiva, o pesquisador se apresenta inteiramente ao contexto a que visa

investigar, mais que estar presente se deixa tocar pelo que passa (LARROSA, 1995; 2014) e

reflete sobre as sensações que passam a constituir fator importante quando almeja a

experienciar o vivido, incorporando ao pensar (CONTRERAS, 2016). Do entrelaçamento

entre sensações e pensamentos, a experiência narrada emerge e aponta para outros modos de

pensar, logo, quando me deparo com entrecho narrado e continuo perguntando sobre os

motivos que me levaram àquela época a ressaltar a climatização do espaço onde o encontro

aconteceria, percebo que me movia a preocupação com as condições sócio- estruturais dos

lugares nos quais eram desenvolvidos os encontros formativos.

Ao prosseguir perquirindo, adentro um pouco mais nas motivações que sustentam esta

narrativa, encontro como pano de fundo a conceituação de Pineau (2006) concernente à auto,

hetero e ecoformação. Então logro entender que ao caracterizar aquele lugar com fulcro tanto

nas interações que ali se estabeleciam quanto nas condições estruturais, bem como nas

sensações que provocavam o que eu almejava era situar no entrecruzamento simultâneo das

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três dimensões da formação permanente (PINEAU, 2006) se as condições apresentadas

favoreciam ou dificultariam à elaboração de novos sentidos, passíveis de se converterem em

experiências - o termo é aqui utilizado tanto na acepção de Dewey (2010); quanto na

concepção de Larrosa (1995, 2014) - construídas pelo participante da pesquisa, quando

imerso naquele contexto institucional.

À propósito da relevância do termo "experiência" para a compreensão dos sentidos

que os participantes constroem no processo inicial de desenvolvimento profissional nos

respectivos contextos institucionais, esclareço que no âmbito deste texto de tese é

compreendido como um acontecer que toca e possibilita à pessoa que a vivencia elaborar por

meio da interação, continuidades e rupturas, novas maneiras de pensar e equalizar o próprio

viver. Este conceito resultou após longo processo, no qual o pesquisador confrontou os

estudos de Jhon Dewey aos de Jorge Larrosa. O estudioso americano se ampara no conceito

de continuidade e o alça a condição de princípio que torna possível a diferenciação entre

experiências educativas e experiências deseducativas. Nas palavras de Dewey:

“(...) em cada caso há algum tipo de continuidade já que cada experiência

afeta para melhor ou para pior as atitudes que contribuem para a qualidade

das experiências subseqüentes, estabelecendo certas preferências e aversões,

tornando mais fácil ou mais difícil agir nessa ou naquela direção. Além

disso, toda experiência exerce, em algum grau, influência sobre as condições

objetivas sob as quais novas experiências ocorrem. (DEWEY, 2010, p. 37).

Enunciado assim corre-se o risco de que se compreenda que para Dewey, as

experiências se processam apenas internamente e adquirem conotação exclusiva de

intrapessoalidade. Até o são, sob certa medida, pois o experienciar-se não se dá despojado de

desejos pessoais e/ou firmeza de propósitos; todavia, isto não é tudo. Toda experiência além

de se inscrever em um continuum existencial, ocorre em um espaço relacional. De

conformidade com Dewey (2010) nenhuma experiência acontece no vazio, elementos

presentes na exterioridade circundante dão origem e alimentam constantemente as

experiências por mais subjetivas que sejam. As condições ambientais modelam, segundo o

autor, a experiência presente, em virtude disso: “Toda experiência genuína tem um lado ativo

que, de algum modo, muda as condições objetivas em que se passam as experiências”

(DEWEY, 2010, p. 40).

Larrosa (2014), por sua vez, destaca no âmbito da experiência, o sentido elaborado por

aquele que experiencia algo, nas palavras deste espanhol, experiência é o que nos toca. A

ênfase aqui recai primeiramente no modo como se vivencia determinado fato. Longe, da

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conotação costumeira em que a experiência é definida, no mais das vezes, como algo

rotineiro; o experienciar em Larrosa (2014) configura-se como uma quase epifania, em dado

momento, emerge das interações constantes, novos modos de perceber e de ser no mundo.

Não obstante, tal redimensionamento, não se dá necessariamente devido à relevância histórica

do fato, antes se vincula à importância que tal evento adquire no âmbito pessoal. Se por um

lado Dewey (2010) dá ênfase à qualidade das experiências elaboradas continuamente por

meio das interações entre o pessoal e o social, acentuando o continuum experiencial como

possibilidade para se evoluir, por outro, Larrosa (2014) destaca a profundidade daquilo que

toca e atravessa a perspectiva pessoal daquele que se deixa envolver pelo que passa, pois

somente assim algo lhe acontece. Da aproximação entre os dois estudiosos emerge a

conceituação do termo tal como utilizamos: experiência é aquilo que emerge do cotidiano e

atravessa as perspectivas existenciais das pessoas, tendo as alcançado inaugura novas

percepções, que revestem o acontecido de sentidos que inscrevem no horizonte experiencial

destas pessoas, possibilidades até aquele momento opacizadas. Assim sucessivamente novas

perspectivas experienciais se lhes apresentam, desde que o vivido seja pensado, sentido e

convertido em acontecimento. Aqui, portanto, o conceito de experiência adquire contornos de

um perene acontecer, marcado pela continuidade e interação que facultam laborar a partir

daquilo que se tem sido o que se pode tornar.

De modo que o fato de Félix haver faltado àquele encontro de formação, sem

justificativas prévias, é revelador, denota dentre outros aspectos que circunstancialmente, os

encontros anteriores, aos quais segundo a coordenara, ele assistira, não o tenham tocado a

ponto de se converterem em experiências, como insiste Larrosa (1995, 2014) ou dito em

outros termos que se aproximam a conceito tal como definido por Dewey (2010), não tenham

alcançado tanto por questões institucionais quanto por disposições pessoais a se inscreverem

no continuum experiencial do participante, a ponto de equalizarem, por meio da interações ali

encetadas, as experiências vividas por ele anteriormente. Isto repercutiu na composição de

sentidos que vinha elaborando junto a ele, pois a ausência do participante ao lugar

institucionalizado pela política em âmbito estadual, reduzia as possibilidades de que aquela

formação contribuísse efetivamente para o desenvolvimento profissional daquele professor

em processo inicial de desenvolvimento profissional. Narrativa inquietante para mim por

evocar a complexidade do processo inicial de tornar-se professor, Félix a posteriori

confirmaria: não se sentia tocado pelos estudos que aconteciam naquele lugar, porquanto, a

primeira dimensão que compõe a aprendizagem docente não acontecia, sem autoformação, a

heteroformação e a ecoformação (PINEAU, 2006) ficavam comprometidas. Talvez, esta

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percepção tenha me levado a atentar ao modo como as pessoas que interagiam com Félix

naquele contexto, lidavam com as limitações que se lhes apresentavam, pois isto exerceria

forte influência no processo inicial de tornar-se professor do participante.

Assim, atentei-me ao fato de que a coordenadora retornara um pouco constrangida e

esclareceu que havia se preparado para que eu proferisse uma palestra naquela tarde. Depois

explicitou que os papeis que estavam sendo recortados eram cartazes para a festa julina da

escola que ocorreria no dia seguinte e, cuja renda seria revertida para o projeto de formação

continuada “Sala de Educador”, haveria lugar também para uma barraca voltada à aquisição

de fundos para a formatura dos terceiros anos. Para que a festa fosse possível, professores e

alunos haviam feito a limpeza e a jardinagem do espaço onde ela aconteceria em forma de

mutirão. Informou que poucos participariam do encontro, nove ou oito professores. Indagou

se eu tinha o número do telefone do professor participante da pesquisa; respondi que o tinha,

no entanto caso o professor não viesse eu acompanharia o encontro, sem nenhum problema.

“Ele só vai levar falta, né?” afirmou, parecia contrafeita ou nervosa. Por volta das quinze

horas e dezenove minutos, recolheu um álbum composto de fotos e textos e principiou uma

conversa com a única professora que chegara até aquele instante. Falou sobre construção de

maquete, não enuncia o início do encontro. Logo depois três professores se somaram à dupla:

“Ele tá filmando?!”. A coordenadora retomou a fala e mencionou um projeto no qual

visitariam parque, construiriam maquetes, fariam exposição de fotos e participariam de uma

feira gastronômica; depois, percebi que se tratava de projeto de ensino voltado

prioritariamente a cultivar a memória institucional da escola. A culminância se daria em

Novembro daquele ano e fora denominada “Feira Cultural”. A conversação avançava em

redemoinhos. O projeto seria levado a cabo por professores que coordenariam os trabalhos

nas respectivas turmas, entretanto, alguns como o professor de Física que ficaria responsável

por uma parte importante do projeto, não participava mais do encontro de formação,

justificara incompatibilidade de horários.

Àquela altura, me perseguia a sensação de que não houvera um planejamento para

aquele encontro. Parecia haver uma improvisação reiterada a cada momento pela disparidade

de temas evocados e pela superficialidade com que eram abordados. Teria este fato relações

com a compreensão equívoca de que eu proferia uma palestra neste encontro de formação?

Decorridos aproximadamente meia hora desde que iniciara o encontro a coordenadora voltou-

se para mim e me convidou a falar sobre a pesquisa. Ao fazê-lo fui perquirido por duas

professores pareciam testar a têmpora do pesquisador no que concerne à vivência na

Educação Básica. Narrei brevemente minha trajetória relacionando-a à opção pela pergunta da

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pesquisa e, ao perceber que a conversação poderia passar a girar em torno de minha pesquisa

e da temática da indisciplina que não havia sido enunciada como pauta daquela formação,

procurei encerrar cuidadosamente minha fala.

Havia acorrido àquele contexto cheio de expectativas referentes ao acolhimento e

envolvimento do professor principiante, ainda que não houvesse no âmbito da política

estadual textos que legislassem sobre o processo inicial de tornar-se professor como etapa

fundamental do desenvolvimento profissional docente, eu nutria esperanças de que no caso

específico de Félix, um professor estrangeiro e em início de carreira, a equipe gestora se

sensibilizasse e promovesse à margem do instituído o acolhimento do principiante na

docência. Frustradas minhas expectativas, assumo o lugar do observador crítico, sagaz,

entretanto, enquanto eu persignava as limitações didáticas do encontro formativo; fui

surpreendido, ao ser convidado para falar de minha própria investigação. Tendo deixado o

lugar do observador passo a ser escrutinado pelas professoras inicialmente, depois sou instado

a me enunciar sobre o dilema comum a todas elas, qual seja: a indisciplina discente em sala de

aula. Por um momento, entrincheirado no auto de minhas próprias convicções, quase esqueci

que para fazer Pesquisa não podemos nos dar ao luxo de nos mantermos assepticamente

afastados das pessoas, de seus respectivos problemas, bem como dos sonhos ou desesperanças

que as tocam. Em meu afã de pesquisador narrativo principiante, por um instante descuidei de

lembrar que “quase todos nós – é quase inimaginável que não fizéssemos isso- vamos para a

pesquisa narrativa com diversas versões de histórias de pesquisas formalistas e reducionistas”

(CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 80). Entretanto, afortunadamente, na experiência

narrada, as professoras, como pessoas, como uma corporificação de histórias vividas,

substituíram às docentes como categoria formal que equivocada e imperceptivelmente eu

almejava a encontrar. Emergem então muitas histórias que me tocam e me fazem pensar e

tentar compreender aquele contexto para além de qualquer estereótipo, embora eu continuasse

atento aos problemas, relações e negociações que pudessem interferir no processo de inserção

à docência de Félix, nenhuma categoria abstrata lograria jamais subsumir o lugar das pessoas

concretas que partilharam comigo naquela tarde, narrativas prenhes de acontecimentos que se

converteram em experiências (LARROSA, 2014).

Momentaneamente despido da roupagem asséptica do investigador, logro escutar a

conversa desde outra perspectiva e notei que ocorreu uma guinada surpreendente e reveladora,

pois professoras que até o momento haviam se enunciado em um tom tão baixo que, por

vezes, ao áudio não fora possível captar, passam a narrar episódios ocorridos em sala de aula

e o fazem aberta e visivelmente emocionadas. Estes episódios se configuravam como

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enunciados de uma diversidade de violências a que estavam submetidas estas profissionais ao

lidarem com o público que acorria àquela escola, violência física, inclusive. Narrativas

exasperadas enredadas na agressão, na desesperança, um rosário de dores. Setas

incandescentes a me atingirem, soerguidas, muitas vezes pelos olhares da coordenadora e/ou

de algumas professoras enquanto se enunciavam. Pareceriam me convidar a ingressar naquela

conversação e, eu me recordava de Primo Levi: “É preciso ter coragem para diante de

narrativas de dor e sofrimentos, não se levantar e sair”. Mas, esta conversação estava

provocando um sofrer que beirava as raias do insuportável. Meu Deus! “Ter coragem pra

sofrer moço, isto é que ter coragem”, palavras tiradas do Romance a “Bagaceira”, o qual eu

lera há mais de uma década, mas que naquele instante se afiguravam como verdade

corporificada.

Recatada, a professora que fora a penúltima a chegar e que se sentara ante à

coordenadora, parecia pedir licença para falar: “ Eu... estou trabalhando seminários com eles”.

Enunciações simples que para mim naquele momento soaram como uma epifania. Ufa!

Finalmente uma proposição neste muro de lamentações, por algum tempo a conversação foi

redimensionada e a exasperação causada pelo ouvir contínuo de experiências erigidas na dor,

começaram a arrefecer em mim. Por volta das dezessete horas, diante da retomada/repetição

dos temas todos referentes ao “Projeto da Escola”, comecei a recolher o equipamento de

filmagem, fazia-o na maior discrição possível. Enquanto o fazia, uma paragem no pensar:

“Precisei ter muita coragem para não ter me levantado antes e ter saído daqui, foi preciso

compreensão para ouvir narrativas atravessadas por um sofrer que também me atravessou.”

No entanto, a coordenadora que muito antes enunciara que o encontro fora registrado como

reunião pedagógica como “Sala de Educador”, percebeu minha movimentação e insistiu para

que aguardasse o lanche. Depois aclarou que o projeto “Sala de Educador”, para este grupo,

vem funcionando como um espaço para dialogarem sobre os problemas enfrentados pelos

professores. Um apoio mútuo diante da indisciplina exacerbada, do desinteresse e da agressão

aos docentes.

Enquanto aguardávamos que trouxessem o lanche- pães de queijo, deliciosos, uma

torta preparada por uma das professoras e refrigerante - a coordenadora perguntou de novo se

eu não tinha alguma dica para dar ante o desafio enfrentado pelos professores... o professor

JG que fora o último a acorrer ao encontro passa então, a caracterizar o público que

frequentava a escola, alunos advindos de bairros carentes de estruturas econômicas, familiares

e culturais, segundo ele. Após ouvi-lo em resposta à coordenadora sugiro que, talvez,

devessem documentar os fatos narrados e situar os dilemas presentes contextualmente, com o

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fito de elaborarem documentos solicitando à SEDUC, uma psicóloga e uma assistente social,

a fim de compor com os professores uma equipe multidisciplinar.

Surpreendeu-me naquele contexto institucional, a constatação de que a escola dispõe

de boa infraestrutura, bem como o fato de que mesmo diante do desespero que marcou as

narrativas, os professores e a coordenadora terem sido tão receptivos e acolhedores. Do

mesmo modo, alguns demonstram uma propensão surpreendente para o diálogo, como é o

caso do Professor JG, o qual com um sotaque marcadamente cuiabano enunciou, em meio a

um gole e outro de refrigerante: “Os alunos aqui, ao mesmo tempo que repulsam ao professor,

tem uma carência afetiva”. Durante a refeição emergiu ainda uma narrativa concernente a dois

professores, mestre e doutorando, respectivamente que assumiram o cargo via concurso

público e, dois meses depois, pediram exoneração. “Esse pessoal estudado, não aguenta isso

aqui não!”.

Presumivelmente, o pesquisador narrativo se constitui paulatinamente, enredado ele

próprio, nos liames da constante narratividade edificada transitoriamente em torno da

experiência pensada sobre a continuidade e o todo nas vidas individuais, de maneira que o que

investigo e apresento aqui são formas de experiências. E, ao perquirir acerca destes sentidos

advindos do acontecer e compostos no entrelaçar destas vidas, parece-me que estudar

narrativamente estas experiências enseja possibilidades de elaborar novos modos de pensar,

algo que se poderia denominar pensamento narrativo.

Sendo o pensamento narrativo, ele mesmo, um experienciar narrativamente

engendrado, decorrente, por sua vez, das experiências sociais co-elaborados no decorrer da

pesquisa, corrobora com o entendimento de que “experiência acontece narrativamente.

Pesquisa narrativa é uma forma de experiência narrativa” (CLANDININ; CONNELY, 2011,

p. 49), constatação que acalenta e exaspera, pois a possibilidade de construir o pensamento

narrativo durante a pesquisa emerge em meio a um sem-fim de construções possíveis.

Composições elaboradas a partir de uma infinidade de sentidos suscitados pelos encontros

com os participantes nos respectivos contextos. Por vezes, a inversão que o leva a viver para

somente depois, contar, teorizar, lança-o em um vazio epistêmico desolador. Há muito se tem

aprendido a fazer Ciência, nas quais a teoria sempre precede o viver, as perspectivas que se

aproximam da Pesquisa Narrativa subvertem esta lógica, do pensar sobre as experiências

vividas advém o ato de teorizar sobre o acontecido, sem pretensões universalistas. Neste

sentido, convido-te a continuar pensando a partir das experiências vividas por pessoas

concretas nos respectivos contextos de atuação, adentres comigo o tópico vindouro,

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mergulhes nas histórias que compõem o contexto institucional onde Safo vem se tornando

professora.

1.8 Contexto Institucional que integra as perspectivas de desenvolvimento de Safo

Um aspecto surpreendente no contexto em que Safo atua foi a hospitalidade com que

aquele grupo de professoras me recebeu, pese o fato de que, provavelmente já tivessem

notado a minha presença na escola, pois muitas vezes acorri àquele lugar para conversar com

Safo, mas, pela primeira vez dialogava com o grupo no espaço de formação contínua. Quanta

atenção e acolhimento contrastavam com a tensão que eu sentia naquele momento. Cada vez

que incursiono na narrativização que produzi nos meandros do contexto que perpassa a

constituição docente de Safo, mais avanço na compreensão de que o modo generoso e

autêntico que pautou sempre as disposições desta professora principiante ao dialogar

(GADAMER, 1997, 2002) não resultava somente de uma característica pessoal dela, era

fomentado na relação constante com o grupo de professores com os quais Safo convivia mais

proximamente, ela vinha se tornando professora nos meandros de um contexto, no qual os

relacionamentos se assentam, no mais das vezes em atitudes solidárias, e, isto atravessa a

identidade (NÓVOA, 1995, 2009; MARCELO, 1999, 2010) de Safo.

Corrobora com entendimento posposto, o modo como desde a vigilante, apresentada

pelo pseudônimo Varínea, que se preocupa em cuidar para que o carro do pesquisador esteja

em local seguro, passando pela recepção acolhedora da gestora da escola, pela iniciativa do

grupo em se mover para outro espaço que assegurasse maior qualidade à filmagem, até o

desprendimento da professora que me auxilia com grande desenvoltura na montagem do

equipamento, bem como na escolha de melhor ângulo para registro. O sentido que movia e

sustentava as interações pessoais, à época, naquele lugar, atravessa a perspectivas

experienciadas por Safo e interferem decisivamente no complexo processo em que ela vem se

tornando professora. Conforme pesquisas realizadas por Marcelo (2007; 2008; 2012) tanto em

países europeus quanto latino-americanos, a etapa vivenciada pelos professores no processo

inicial de se tornarem professores é crucial para o desenvolvimento profissional docente;

segundo o pesquisador nesta etapa estes profissionais a despeito de serem principiantes

apenas, têm de lidar com demandas múltiplas e complexas, inclusive para serem aceitos como

membros nos contextos em que iniciam as respectivas atuações. Também Flores (2010), após

diversas pesquisas levadas a cabo em escolas portuguesas, afirma que o processo de tornar-se

professor é complexo e marcado por indisiocracias relacionadas tanto às características

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pessoais de cada professor quanto aos contextos, nos quais atuam. As narrativas concernentes

ao contexto institucional onde Safo atua, são importantes no sentido de lançarem um pouco

mais de luz nesta etapa, bem como por revelarem a importância do contexto para o

desenvolvimento profissional docente.

À época das filmagens do encontro de formação no âmbito do projeto “Sala do

Educador” a paisagem daquela escola não mais se me apresenta como sendo inteiramente

desconhecida, no último ano, eu havia estado ali algumas vezes. Naquela tarde Estacionei o

carro onde sempre o fizera, no portão interpelei pela vigilante (apoio educacional) Varínea e

ela me acolheu educadamente e me encaminhou até a diretora da unidade, reconhecemo-nos

mutuamente. Aguardei no refeitório, enquanto ela atendia a pais de alunos, depois veio e me

conduziu à sala dos professores, uma vez mais me apresenta ao grupo e pergunta pela

professora que participa da pesquisa. Ao sairmos da sala notamos que um pequeno grupo de

professoras se aglomera sob um toldo no átrio da escola, aquele grupo tomará parte dos

estudos concernentes ao encontro de formação desta tarde. Junto-me a elas e, após breve

conversação e cientes de que eu pretendia registrar por meio de filmagem o encontro,

decidem, em virtude de maximizar a qualidade do áudio reunirem-se em uma das salas de

aula. Na sala, parte das cadeiras fora organizada ao modo de uma ferradura, o condicionador

de ar já estava ligado, uma das professoras participantes me auxiliou na escolha de um melhor

ângulo para a filmagem, o fez tão naturalmente que foi como se convivêssemos há muito

tempo.

Nesse interim, Varínea (a vigilante) veio a nosso encontro e me orientou a estacionar o

carro dentro dos muros da escola. A noite se aproximava, não seria seguro deixá-lo

estacionado na rua. Ao retornar à sala, o grupo liderado por uma das professoras questionou-

me sobre os propósitos da pesquisa, por conseguinte da filmagem. Explicitei e, uma vez mais,

busquei evidenciar que caso, se sentissem molestadas, eu suspenderia a filmagem.

Redarguiram que não, estavam tentando entender. A par do que se tratava a pesquisa algumas

professoras teceram comentários sobre a relevância do tema, inclusive contextualizaram com

exemplos advindos tanto da trajetória delas como professoras quanto de trajetórias de outras

professoras próximas a elas. Na sequencia, uma das professoras me explicou espontaneamente

o formato da formação continuada no âmbito desta instituição: diagnóstico das necessidades

formativas (que no caso, me parecem mais dos discentes que dos docentes); levantamento de

temas; definição de metas e estudos em grupos; transposição em sala de aula e na

culminância, apresentação aos demais grupos. A composição dos grupos, segundo informou a

professora, neste ano mescla disciplinas de diferentes áreas do conhecimento. Neste

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interlúdio, Safo a professora que participa da pesquisa e, parece ser uma das coordenadoras de

formação deste grupo, ingressa na sala, cumprimenta-me cordata e dá início ao debate voltado

ao planejamento e preparação de atividades para a culminância sob a responsabilidade do

grupo. Em meio, ao debate uma das professoras avisa que estão sendo chamadas a se juntarem

com demais membros da comunidade escolar a fim de dirimirem sobre a decisão de

ingressarem ou não no movimento paredista que vinha ocorrendo no Estado. Peço permissão

para continuar na sala. E, poucos minutos depois elas retornam. Algumas comentavam não

puderem as razões pelas quais justamente os professores com contratos, os não efetivos,

votaram contra o movimento, se uma das pautas se referia diretamente a eles (tratava da

concessão de hora-atividades também aos professores contratados). Safo redirecionou mais

uma vez para o tema daquele encontro e, uma das primeiras constatações foi a de que estava

muito próximo o dia em que deveriam realizar a culminância, isto gerou um breve dissenso no

grupo, mas, devidamente amparada pelas anotações que realizara no encontro anterior, Safo e

algumas outras levam o grupo a perceber de que haviam acordado desenvolver os trabalhos e

apresentá-los na data mencionada. Deu-se início a um longo processo de negociação, onde os

diferentes posicionamentos foram sendo matizados e, as posições eram mantidas, reafirmadas

ou alteradas dialogicamente, por vezes, marcadas pela tensão, outras vezes, por brincadeiras,

risos, imitações. Pareceu-me que Safo buscava apoio em duas outras professoras que também

procuravam o assentimento dela ao marcarem posição ante o grupo.

Neste processo de negociação foram contadas histórias do público a que atendem e, as

narrativas dos professores se enredavam nos processos de interação e negociação com os

alunos. Histórias que evocavam a questão da indisciplina ou a ameaça velada: “Professora, eu

sou da Mapim”! “Ah, você é de lá, eu também sou e, é pra lá que eu vou!” O Mapim é um dos

bairros onde existem gangues que promovem a violência na cidade. Entretanto, o narrar das

professoras não convidava para um experienciar marcado pela dor, há esperança e, narrativas

belíssimas como aquela em que um aluno autista após ter dançado com a professora na festa

de quadrilha, vinha apresentando progressos notáveis na interação com essa professora. Ela

narrou a história com gestos e trejeitos e risos e alegria e beleza necessários ao ato de educar.

Agora, começo a compreender porque Safo me avisara de que o encontro fora antecipado, o

fizera pelo WHATZAPP, no instante em que eu preparava para participar da reunião do grupo

de pesquisas na UFMT, ela se orgulha de integrar este grupo. Por meio do convite me levara a

redimensionar tudo o que eu havia perspectivado para aquele fim de tarde e valeu a pena.

Valeu muito a pena perceber que naquele contexto que, pesem uma série de dilemas

enfrentados neste cotidiano imponderável, o diálogo, a alegria, o compromisso e o zelo com a

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profissão ainda tem lugar, tanto que quando me despedia, Safo me perquiriu ante todas: “Foi o

que você esperava?” “Eu não esperava nada! Mas, percebo que você está muito bem integrada

a este grupo, mesmo estando em início de desenvolvimento profissional”.

O contexto de atuação interfere marcadamente no modo como cada pessoa se constitui

docente e, esta interferência se dá em muitas dimensões. Algumas destas dimensões englobam

todas as relações que o professor em início de desenvolvimento profissional estabelece em

diferentes espaços da escola: sala de professores, sala da coordenação, da direção, secretaria,

pátio e demais lugares, pelos quais circunda no âmbito escolar. Outras dimensões estão

relacionadas diretamente ao estar em sala de aula como professor. Ali no contexto imediato da

sala de aula o professor, por principiante que seja é instado a agir e, por mais que tenha se

preparado antecipadamente para o encontro com os estudantes, sempre haverá uma margem

enorme de ações inesperadas com as quais terá de lidar. O inesperado das interações entre

professor e estudante constitui um dos maiores desafios no processo inicial de tornar-se

professor em contextos escolares. Este fato veio sendo reiterado ao longo desta pesquisa,

quando ingressei na sala de aula de Safo e procedi às filmagens do que ali se passava, ele foi

confirmado fortemente. O que me levou a plantear outros questionamentos, no andar mesmo

da investigação.

Assim, fui levado a perquirir sobre as disposições (NÓVOA, 2016) que os docentes,

mais especificamente docentes principiantes, necessitam elaborar para viver o que passa em

sala de aula como experiências que se lhes acontecem? Este questionamento toma proporções

de grande complexidade, primeiro por remeter aos processos em que contextualmente os

docentes principiantes se tornam professores, gradativamente. Em segundo lugar por

referenciar a construção da profissionalidade docente que define sob grande medida a

profissão professor contemporaneamente (NÓVOA, 1995, 2009; FLORES, 2010; ROLDÃO,

2007; MARCELO, 1999, 2010; DAY, 2001), a qual não pode ser compreendida desconectada

destes espaços onde docentes principiantes atuam; espaços nos quais interferem e dos quais

sofrem influências relevantes à construção de sentidos que marcam as experiências (DEWEY,

2010; LARROSA, 1995; 2014) laboradas no âmbito da docência. Neste sentido, assumo que

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9ainda que possamos afirmar que a razão de ser de uma investigação é

sempre dar lugar a um saber, não obstante, desde a perspectiva da

experiência, a pergunta pelo saber tem origem no modo em si de viver a

educação enquanto educadores: o que faz com que a experiência seja tal e

não simplesmente ‘coisas que sucedem’ é que dá lugar ao pensar educativo.

E o que se propõe a investigação por meio dos relatos de experiência é

continuar o que já nos pede a experiência: seguir pensando. Indagar no que

vivemos e que nos passa para obter uma maior consciência, percepção,

compreensão dos acontecimentos que vivemos (CONTRERAS, 2016, p. 16;

tradução nossa).

Destarte, ao buscar registrar filmicamente aulas - no âmbito deste texto, denominadas

Narrativas Imagéticas - nas quais Safo assumira a regência movia-me o desejo de aprofundar

nesta investigação de modo a não desconectar pesquisa em educação e experiência.

Vislumbrava algo de especial neste entrelaçamento, algo como saberes capazes de iluminarem

o fazer e o fazer-se de professores em início de desenvolvimento profissional. Nesta

perspectiva, o que eu construira já naquele momento era a tênue percepção de que

investigação em educação e experiência quando associadas, podem dar relevo ao vivido, bem

como iluminar o caminho que se faz ao viver, aportando-lhe novas possibilidades e sentidos

outros. Aclarado o propósito neste parágrafo esboçado, ou seja, a ideia que, ante, narrativas

que se voltam a experiências de sala de aula é possível indagar o vivido, buscar luzes para

perceber com maior amplitude os fenômenos educacionais (CONTRERAS, 2016). Neste

sentido, destaco que dentre estes fenômenos aqueles concernentes ao insólito das relações

entre professor e estudantes em sala de aula são muito importantes no processo de tornar-se

docente em contexto, pois evoca lugares, temporalidades, experiências distintas na

situacionalidade vivencial das interações encetadas em sala.

No vivido em sala de aula com Safo, ressalto que muita coisa acontece

simultaneamente, em uma sala de estudantes do Ensino Médio da Educação Básica em uma

escola da Rede Estadual de Ensino. Não obstante, emerge dentre esta diversidade de ações

concomitantes, o insólito e diante dele, testa-se a têmpora e se vai definindo o modo de ser do

professor em processo inicial de desenvolvimento.

A docente grafa na lousa disciplina a ser ministrada. O burburinho de vozes

se eleva, ela responde brevemente o questionamento de um dos alunos e

9 “Aunque podamos afirmar que la razón de ser de la investigación es siempre dar lugar a un saber, sin embargo,

desde la perspectiva de la experiencia, la pregunta por el saber tiene su origen en el modo en sí de vivir la

educación en cuanto que educadores: lo que hace que la experiencia sea tal y no simplemente “cosas que

suceden” es que da lugar al pensar educativo. Y lo que se propone la investigación a través de los relatos de

experiencia es continuar lo que ya nos pide la experiencia: seguir pensando. Indagar en lo que vivimos y nos

pasa para obtener una mayor consciencia, percepción, comprensión de los acontecimientos que vivimos”.

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recolhe da mesa o livro, o qual estivera sopesando antes. Checa algo, deixa o

livro aberto a um canto da mesa e se dirige à lousa, (mais um aluno ingressa

discretamente na sala), onde estivera grafando “Trovadorismo” se dirige à

porta e a fecha, enquanto observa de relance em direção aos alunos que

permanecem falando entre si, todos a um tempo. O recém-chegado percebe

a câmera e ri discretamente. (Narrativa Imagética, 2016).

[...] A professora enfatiza que sem sensibilidade não se pode entender o texto

poético ao passo que vai se movendo mais para a esquerda, sempre olhando

para os estudantes; estabelece uma analogia entre a sensibilidade requerida

pelo texto poético e a música. “A partir do momento que você escuta uma

música que o outro acha melosa... (O aluno a quem ela se dirigira antes

sugere) “Um fank!” A professora coça a cabeça: “Olha, não vou falar de

fank porque estou meio por fora de fank!” “Não, professora!” (ri). Ela

esclarece que é fã de letras, letras das músicas. O aluno redargue que fank

tem letra e pede para cantar um refrão. A professora: “Vamos, mate nossos

ouvidos aí, vai fala!” “Não, vou cantar... tem outro que até a Géssica gosta

(aponta em direção a uma das aulas que se encolhe, as demais riem) e

cantarola: “Eu, tu, nós bota nela” (ritma com sonorizações vocalizadas). A

professora indaga e ele repete, então ela pergunta onde está a poesia da

música. O aluno contesta (rindo) que há sentimento e que o sentimento fica

com ela (a personagem da música, risos de todo o grupo, incluída a

professora). “Partindo disso aí, desta leitura gostosa que fizemos, vamos

fazer o exercício da página seguinte”. (NARRATIVA IMAGÉTICA, 2016).

No encontro, talvez, desencontro entre perspectivas que marcam o gosto musical da

docente e do estudante no lugar, definido como a sala de aula, fazem-se presentes

experiências distintas elaboradas em temporalidades e situações divergentes, diferentes

trajetórias de formação, configuradas em tempos e lugares distintos, entrelaçam-se ali. Por um

lado, o olhar e a predileção de Safo por músicas que não coincidiam com as que o

interlocutor escuta e aprecia. Por outro, o estudante, seguro de que fizera uma escolha

inequívoca, pois se sente tocado pela canção e a expressa vivamente, como se um poema

fosse. Os sentidos que sustentam experiências tão distintas apontam para a constituição dos

sujeitos que dialogam de lugares diversos, cada um sustentado por construções que apontam

retrospectivamente para vivências desde grupos sociais e épocas que não coincidem,

prospectivamente pairam muitas projeções possíveis, inclusive a de ruptura etnocêntrica, na

qual professor e estudante poderiam se entrincheirar nos próprios referencias obstinadamente,

somente a compreensão mútua, calcada no olhar antropológico e no autêntico diálogo, evita

que ocorra a sobreposição das preferências do adulto sobre o gosto do adolescente. Quando

releio esta narrativa e, o fiz muitas vezes, sou levado a pensar que, talvez a professora,

pudesse ter explorado mais, o que passou naquela tarde com vistas a reafirmar a pluralidade

como um valor fundamental nos processos de interações sociais, inclusive poderia enfatizar a

equivalência dos gostos musicais, porquanto a possibilidade de que o estudante pudesse, a

partir da sensibilidade que demonstrou ao se sentir tocado pelo fank, deixar se tocar e

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reconhecer outros estilos musicais. Entretanto, isto me ocorre, agora que me debruço

demoradamente sobre o vivido, sinceramente, não sei se teria agido de modo diferente de

Safo, surpreendido pelo insólito e instado a agir na urgência.

As histórias que vivi no contexto que marca no continuum de desenvolvimento de

Safo, a etapa referida ao processo inicial de desenvolvimento profissional docente

(MARCELO, 1999, 2007, 2008, 2012; DAY, 2001, 2005) equalizam a experiência que como

pesquisador, venho construindo, pois fortalece a compreensão de que na Pesquisa Narrativa, o

viver e o contar, perpassados por experiências, inauguram novas epistemologias. Neste

sentido, é de grande relevo apresentar não somente o que se ouviu ou que se falou, mas as

circunstâncias em que se deram, com relevância, inclusive para acontecimentos que

antecederam o momento em que se estabelece a conversação, pois, a partir deles pode se

perceber os processos imbricados nas relações que contextualmente são estabelecidas e as

experiências narradas podem ser sentidas no âmbito de um continuum de vivências, em

permanente movimento.

Enuncio ainda que, desde a perspectiva teórico-epistemológica em que compreendo e

realizo Pesquisa Narrativa a temporalidade que, de certo modo, dimensiona as experiências

sejam elas consideradas individual ou coletivamente, é termo de grande relevo, por permitir

conjecturar e refletir sobre a vida ao ser experienciada em um continuum, cujos sentidos

quando considerados em relação a contextos mais ou menos abrangentes, mudam com o

passar do tempo. Todavia, as temporalidades não pairam em um espaço lacunar. Assim, ao se

constituírem como uma maneira de compreender a experiência, por meio da colaboração entre

pesquisador e participantes, pressupõe além do tempo co-vivenciado, considerar que tais

vivências ocorrem em um lugar e/ou em diversos lugares, como é caso da pesquisa aqui

enfocada; lugares, estes significados pela interação entre pesquisador e participantes, mil

outros eus, imersos no viver e contar, reviver, recontar de histórias das experiências que

compuseram as vidas destas pessoas. Referente aos atos de viver e contar, reviver e recontar

histórias Clandinin e Connelly (2011) os definem o ciclo essencial da Pesquisa Narrativa, para

o par de investigadores canadenses, este ciclo tornar possível que as experiências humanas

narradas adquiram novos sentidos, de modo ao narrado se possa reviver e recontar.

A seguir, apresentarei o contexto onde encontrei Helena em meio a um viver e contar

histórias perpassadas pelos sentidos experienciados por ela em meio a especificidades

próprias daquele lugar, no processo inicial de desenvolvimento profissional.

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1.9 Contexto Institucional onde Helena experiencia a profissão docente

Tornar-se docente demanda um processo complexo, idiossincrático (FLORES, 2010),

processo que não ocorre à margem de um contexto situado no que concerne a perspectivas

históricas e sociais, bem como ao sentido das relações que ali se negociam. A complexidade

advém principalmente do fato de que, o professor no processo inicial de tornar-se docente em

curto período de tempo, necessita encontrar um modo de se apropriar pessoalmente dos

saberes que sustentam a profissão, ao tempo em que precisa investir e muito nas relações que

ancoram o ajudar alguém a aprender, especificidade da docência como profissão (ROLDÃO

2004, 2007; FLORES, 2010). A idiossincracia refere-se ao modo como cada pessoa se

apropria e reinventa de uma maneira única, o jeito de ser professor, que ocorre marcado pela

tridimensionalidade: lugar/lugares, temporalidades e situacionalidade. O lugar, aqui

conceituado como contexto de atuação, configura-se como uma síntese de múltiplas

temporalidades reveladas nas interações da participante com outras pessoas que também

interagem no contexto da escola na qual Helena atua.

Assumo ao longo desta pesquisa que as interações entre o professor principiante e as

relações engendradas contextualmente desempenham um papel fundante na constituição

docente. Desta compreensão resulta a forma como percebo e apresento os contextos, nos quais

os principiantes que participam desta investigação vêm se tornando professores. No que tange

ao contexto institucional, onde Helena experiencia a docência, merece destaque a modalidade

que a ele acorre, jovens, adultos e até idosos. Ora, este público requer do professor

principiante ou não construir disposições (NÓVOA, 2016) muito particulares para se

relacionar e ajudá-los a aprender. Isto requereu de Helena que na graduação sequer havia

conjecturado atuar na Educação de Jovens e Adultos, muito menos em um Centro voltado

exclusivamente a este público, um duplo deslocamento já no processo inicial de se tornar

professora. O primeiro por debutar na docência, o segundo por atuar em um CEJA, quando

todos os sentidos que havia construído sobre ser professor se voltavam ao trabalho junto a

adolescentes. Afortunadamente, foi acolhida por um grupo que, apesar de que não haja nada

regulamentado no âmbito das políticas educacionais em âmbito estadual, não a abandonou à

própria sorte (CUNHA, 2013) e acompanhou ao longo dos primeiros anos do tornar-se

professora em contexto institucional e, este acompanhamento vem potencializando o

desenvolvimento profissional docente de Helena.

Atento à relevância do contexto institucional no processo inicial em que Helena vem

tornando-se professora, busquei ao elaborar a narrativa daquele lugar, marcar as

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especificidades que o caracterizavam tanto no que se referia à localização, centro de Várzea

Grande, quanto no que tange à demanda a que se voltava: jovens, adultos e idosos. Marcada

por construções amplas e áreas abertas, aquela escola me pareceu, um lugar de acolhimento,

que pese o fato de a edificação não ser recente. Todos os espaços que frequentei no âmbito

daquela unidade, apresentam-se em boas condições de usufruto. Ali, me sentia muito bem

acolhido, de modo que quando retornava, apesar da tensão que sempre me assolava ao

adentrar qualquer instituição de ensino, eu ficava contente por lá estar. Constatei isto, na

ocasião em que me preparava para filmar o encontro de formação. Decorridos alguns meses

desde que estivera naquele lugar pela última vez - à época, a professora participante da

pesquisa me concedera a entrevista ao abrigo das mangueiras que dão vivacidade ao pátio-

retornei a fim de solicitar a autorização da equipe gestora para proceder às filmagens do

projeto “Sala de Educador”, as coordenadoras me foram tão solícitas que a tensão inicial

sucedeu a leveza e a alegria por constatar que ainda existem pessoas generosas, educadas e

que estas pessoas se dedicam ao ato de educar, e, ainda que lidando com problemas de difícil

solução, não deixam de sonhar, aprender e projetar. Fato sobejamente marcado durante as

filmagens do encontro de formação. A equipe que conduziu o encontro, composta por

professoras, coordenador e técnicos planejaram a formação que, teve como ação principal

uma palestra sobre letramento, a partir de características culturais muito presentes na cidade

em que se insere a escola. Emergiu deste planejamento a integração de músicas, danças,

comidas, cores e movimentos, sobre os quais se moveram teorias, epistemes, narrativas,

acontecimentos feito experiências e a percepção de que Helena se sentia inteiramente acolhida

naquele contexto.

Pude constatar o quão acolhida a participante se sentia no contexto institucional em

que atua a partir das narrativas produzidas junto ela tanto no formato de entrevistas narrativas

quanto na forma de narrativas escritas pela participante. Nestas, Helena afirmava

reiteradamente que era parte daquela escola. Ao participar do encontro de formação no

âmbito do Projeto "Sala de Educador", vicejei uma possibilidade de compreender que

aspectos presentes naquele contexto institucional possibilitavam a Helena desenvolver

sentidos e sentimentos de pertença ao lugar. Atentei-me sobremaneira às interações entre ela,

os demais professores e membros da equipe gestora, pares de profissão e amigos críticos nas

palavras de Day (2001). Todo o tempo estive ciente de que deveriam conflitos mediando estas

interações, restava entender então como eram negociados a ponto de potencializar o processo

inicial do tornar-se docente da participante. Com estas indagações ingressei aquela manhã de

sábado no encontro de formação citado.

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Desde o princípio notei que os coordenadores - professores, apoio educacional e

membros da equipe gestora - da formação recepcionavam a todos indistintamente, cordial e

alegremente. Prepararam antes a sala e o átrio da escola, ao ingressar se podia ouvir músicas

regionais como tema de fundo, contemplar murais com cores e tecidos regionais. Os

convidados cumprimentavam-se efusivamente entre, às vezes, inclusive com pilhérias,

chacotas que provocavam o riso imediato. Destas, sequer o gestor da unidade saiu ileso.

Inicialmente, fiquei desconfiado, um clima relacional assim tão descontraído, quiçá, fosse um

modo de passar ao largo dos conflitos, sem necessariamente lidar com eles.

A desconfiança que a alegria desbordante provoca em mim, perdurou até o dia em que

ingressei na sala de aula de Helena, convidado por ela. Naquele princípio de noite, ingressei

na sala junto da professora, após conversamos sobre diversos assuntos tanto de âmbito pessoal

quanto profissional, essa era a tônica dos encontros com Helena. O ser professor em suas

múltiplas dimensões tangenciava narrativas para além do contexto onde ela atuava. O fato é

que tendo ingressado na aula, uma figura jovial move-se entre as fileiras, calça jeans, cabelo

preso ao modo de um rabo de cavalo. Nas cadeiras escolares, jovens, adultos e idosos ora

leem em voz alta, acompanhados pela jovem professora, ora dialogam com ela e entre si,

sobre os enunciados presentes nos textos. Repentinamente, um destes jovens dá uma guinada

ao rumo assumido até aquele momento pelo grupo. Irrompe o silêncio, a jovem docente para,

leva a mão ao queixo, volta-se ao aluno e receptiva anuncia: "Achei interessante tua

pergunta". Ali, ao fundo enquanto filmava me senti fortemente interpelado pela postura da

professora, tocou-me e se configurou para mim como uma nova experiência neste processo de

investigação.

[...] Diante do termo “persuasão” a professora explicita o sentido da palavra,

na sequência indaga os alunos sobre a veracidade do enunciado e prossegue

lendo. Diante da reposta afirmativa de um aluno à alternativa que declarava

que o texto apresenta os aspectos subjetivos da pesquisa, a docente se detém

na leitura e assevera que a pesquisa científica não tem nenhuma parte

subjetiva, não tem esse negócio de subjetividade: “a subjetividade é o ponto

de vista pessoal, já entra em conflito com a principal ideia dos textos

jornalísticos, em geral”. A continuar, pergunta ao grupo qual seria a resposta

adequada, dois alunos contestam que seria aquela apresentada na letra B; ela

indaga outra vez, eles confirmam. Todavia, um estudante de mais idade,

reluta em concordar que a alternativa correta seja a letra B, a professora ao

lado, afirma que é esta a alternativa correta, o discente argumenta que, uma

vez se tratando de dados preliminares, não é possível confirmar uma resposta

com objetividade. A mestra explica que o termo “preliminares” se refere ao

fato de ser uma pesquisa inicial e em desenvolvimento, ratifica a alternativa

como sendo a correta para toda a classe. (leva a mão aos cabelos, toca a

orelha) Enfatiza e relaciona os termos objetividade e pesquisa científica, em

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oposição à subjetividade. Uma das alunas a invoca, enquanto a docente se

dirige até a carteira daquela, outro pondera: “Professora, UFPA não seria a

sigla do estado e... a faculdade que foi feita a...”. A professora (com o livro

distendido diante de si) principia a dizer algo e o estudante reverbera:

“UFPA, seria Universidade Federal do Pará, né?” “Isso.” “Então, pronto,

Alter do Chão é lá”. Ante a afirmativa do aluno a docente move

positivamente a cabeça e confirma (cabeça baixa, andando de um lado para

outro): “Exatamente, os pesquisadores são de lá”. Um dos alunos que obstara

ante a afirmação de que as informações no texto são apresentadas de forma

objetiva, volta questionar: “Fiquei em conflito pelo uso de dados

preliminares.” A docente (se posiciona ao lado dele) e argumenta que a

objetividade e precisão se referem mais à forma como o texto foi produzido,

no entanto se os dados apresentados se confirmarão como verdadeiros,

dependerá da continuidade da pesquisa mencionada (afirma indo em direção

à carteira da aluna que a chama momentos antes). Recolhe o caderno da

estudante e, se volta ao aluno: “Achei interessante tua pergunta!”

(NARRATIVA IMAGÉTICA, 2016).

Conceber o trabalho em sala de aula como espaço, tempo e pessoas em interação é

entender, dentro outros aspectos, que na abertura ao insólito advindo da conversação, a

experiência emerge do encontro e, neste, a posição hierárquica do docente é colocada em

cheque. Na lindeza surpreendente destas relações mais horizontalizadas, o mestre, aprende

com o aprendiz que, circunstancialmente, o sobrepuja. Aqui, preponderam dois momentos em

que a beleza do aprender estando professor, se personifica. O primeiro pode ser notado na

insistência do estudante que tendo viajado, burila na memória e tenta sustentar o vivido no

narrado: “Alter do Chão seria uma cidade localizada no Pará; a docente o olha, menea

afirmativamente a cabeça: “Deve ser”. “Que eu penso que eu conheço esta cidade”.

Momentos antes, a docente tivera de requerer a escuta ao que lia - ao que parece pela primeira

vez - e, mesmo ela que até ali, regera uma aula pautada inteiramente por vivo dialogar, retoma

a leitura como se a pudesse sobrepor à inquietude do estudante que, então aguarda e decorrido

longo período de tempo, antes que tema fora cambiado reformula a pergunta e logra com este

feito uma escuta equalizadora: “Professora, UFPA não seria a sigla do estado e... a faculdade

que foi feita a...”. A professora (com o livro distendido diante de si) principia a dizer algo e o

estudante reverbera: “UFPA, seria Universidade Federal do Pará, né?” “Isso.” “Então, pronto,

Alter do Chão é lá”. Ante a afirmativa do aluno a docente move positivamente a cabeça e

confirma (cabeça baixa, andando de um lado para outro): “Exatamente, os pesquisadores são

de lá”. A intuição que provoca um cisma que remete a epistemologias que sustentam

diferentes concepções sobre pesquisa científica corporifica a singularidade do segundo

momento, neste o senhor que, depois fui informado por Helena, era artista plástico, movido

quiçá, pela sensibilidade intuitiva, mais que por saberes formais questiona o critério de

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objetividade científica enunciado no livro texto e ratificado pela docente. “um estudante de

mais idade, reluta em concordar que a alternativa correta seja a letra B, a professora ao lado,

afirma que é esta a alternativa correta, o discente argumenta que, uma vez se tratando de

dados preliminares, não é possível confirmar uma resposta com objetividade. A mestra

explica que o termo “preliminares” se refere ao fato de ser uma pesquisa inicial e em

desenvolvimento, ratifica a alternativa como sendo a correta para toda a classe”. O estudante-

artista, uma vez mais parece intuir que neste paradigma não cabe o saber que vem

construindo: “Fiquei em conflito pelo uso de dados preliminares”. Apanhada em aparente

contradição a docente não se furta ao diálogo, explicita que objetividade e precisão se

referem mais à forma como o texto foi produzido, no entanto se os dados apresentados se

confirmarão como verdadeiros, dependerá da continuidade da pesquisa mencionada. Mas,

deve ter reconstituído o processo em que aquela conversação emergiu, pois valora o que fora

dito pelo aluno desde o lado de dentro deste dialogar: “Achei interessante tua pergunta!”

Convidado a participar de um encontro de formação continuada, no âmbito do Projeto

"Sala do Educador" com a temática: Letramento de Jovens e Adultos nos anos iniciais da

Educação Básica, pareceu-me evidente que Helena participava ativamente e tinha audiência

entre os membros daquela comunidade escolar. Percebi que os conflitos relacionados a

trajetórias e perspectivas pessoais eram manifestos, debatidos, negociados, ainda que não se

lograsse alcançar ao consenso no grupo, todos se escutavam mutuamente, talvez por isso, eu

tenha, ao longo daquele encontro de formação pensado tantas vezes, no conceito de diálogo

próximo ao que fora definido por Gadamer (2002): um encontro, no qual os envolvidos se

transformam reciprocamente.

A percepção de que Helena se sente inteiramente acolhida no contexto onde vem se

tornando professora, exigiu do pesquisador a imersão no entrelaçamento das experiências -

conceito marcado no âmbito deste texto de tese tanto por contribuições de Dewey (2010) ;

quanto de Larrosa (1995, 2014) - compostas nesta travessia, isto tornou possível o

entendimento de que a Pesquisa Narrativa requer a compreensão da concatenação de alguns

fatores na constituição de um espaço tridimensional que de acordo com Clandinin e Connelly

(2011), referenciados por Dewey, são pessoal e social (interação); passado, presente e futuro

(temporalidade); combinados à noção de lugar (situação). A constituição no âmbito da

pesquisa deste espaço tridimensional tem possibilitado investigar introspectiva e

extrospectivamente, retrospectiva e prospectivamente, bem como tem tornado exequível situar

as experiências e os respectivos sentidos narrados contextualmente. Fato que me leva a

ratificar ipsis literis o enunciado “experienciar uma experiência- isto é, pesquisar sobre uma

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experiência- é experiênciá-la simultaneamente em quatro direções (introspectivo,

extrospectivo, retrospectivo e prospectivo), fazendo perguntas que apontem para cada um

desses caminhos” (CLANDININ; CONNELY, 2011, p.85/6). Com o intuito de prosseguir

experienciando experiências, narro na sequência histórias que marcam no seio desta pesquisa

uma dimensão de grande relevância, qual seja, encontros que se deram entre os participantes

da pesquisa e eu, destes encontros emerge toda a possibilidade de compor sentidos

experienciados entre o pesquisador narrativo e as pessoas que partilham com ele as histórias

que vivem, em meio ao viver destas mesmas histórias, feitas narrativas que ao tocarem aquele

que as escuta podem se converter em experiências (LARROSA, 2014). Somente então, poder-

se-ia dizer que o narrar configurou também ele, inusitadas experiências, posto que

10A investigação da experiência dá lugar a um saber que não funciona

exatamente como informação, nem como conhecimento acumulável. A

comunicação do saber que nasce da investigação da experiência não

pretende tanto transmitir conclusões do pensamento como um pensamento

vivo, um pensamento em conexão com o vivido que mostra um modo de

cultivar um saber, e que reclama, a quem o receba, criar sua própria

transferência também pessoal: o recebo como originado em uma relação

pessoal com a experiência que me pergunta acerca de minha própria relação

com minha experiência ; o recebo como aquele pensamento encarnado, que

presta atenção ao vivido, para que eu preste atenção ao que vivo e continue a

conversação iniciada, participando nela. (CONTRERAS, 2016, p. 18;

tradução nossa).

Acorde com a percepção enunciada por Contreras, destaco que os professores

principiantes que participam desta pesquisa enfrentam a sua maneira os desafios que se lhes

apresentam nos contextos de atuação. Decorridos aproximadamente vinte anos desde que

ingressei na carreira docente, as políticas não avançaram na perspectiva de situar a inserção à

docência, como etapa específica no âmbito do desenvolvimento profissional dos professores,

concebido no âmbito de trajetórias formativas compostas por pessoalidades,

profissionalidades e engendradas contextualmente (MONTEIRO, 2003, 2006, 2016). Fato de

grande impacto quando pensada o processo inicial de desenvolvimento profissional docente

como uma das etapas mais relevantes no processo de constituição de professores, pois a

10

La investigación de la experiencia da lugar a un saber que no funciona exactamente como información, ni

como conocimiento acumulable. La comunicación del saber que nace de la investigación de la experiencia no

pretende tanto transmitir conclusiones del pensamiento como un pensamiento vivo, un pensamiento en conexión

con lo vivido que muestra un modo de cultivar un saber, y que reclama, a quien lo reciba, crear su propia

transferencia también personal: lo recibo como originado en una relación personal con la experiencia que me

pregunta acerca de mi propia relación con mi experiencia; lo recibo como aquel pensamiento encarnado, que

presta atención a lo vivido, para que yo preste atención a lo que vivo y continúe la conversación iniciada,

participando en Ella.

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construção de um pensamento em conexão com o que se experiencia, pressupõe a elaboração

de sentidos que, uma vez elaborados se configurem em aprendizagens, no caso específico

desta pesquisa, aprendizagem da docência (MIZUKAMI, et al, 2002, MONTEIRO, 2003,

2006, 2016). Desde a perspectiva apresentada pelas autoras e que assumo nesta investigação

aprender a ensinar, configura o epicentro dos processos de tornar-se professor. Processos estes

que são erigidos com fulcro em um continuum experiencial (DEWEY, 2010) “iniciados antes

da preparação formal, prosseguem ao longo desta e permeiam toda a prática profissional

vivenciada” (MIZUKAMI, et al, 2002, p. 47).

Assim, ao ingressar nas salas de aula de Safo e Helena ou escutar as narrativas de

Odisseu, Heitor e Felix me é facultado compreender que aprendizagem da docência entrelaça

os saberes da profissão aos saberes pessoais em constante construção, no âmbito da qual esses

saberes, crenças e metas dos professores se articulam e se convertem em elementos que

impactam fortemente a motivação, as razões, o modo de fazer destes professores em sala de

aula. Neste sentido, aprender a ensinar é desenvolvimental (MIZUKAMI, et al, 2002) a

elaboração de saberes profissionais ou a mudança de práticas instituídas não ocorre em curto

período de tempo, tampouco se dá isoladamente ou apenas pela intervenção pontual marcada

no âmbito das políticas de formação continuada por perspectivas pautadas na Racionalidade

Técnica. Compreendo assim, que aprender a ensinar e se tornar professor implica o

envolvimento pessoal e coletivo dos professores, incluídos, os principiantes, em projetos de

desenvolvimento profissional e institucional (MARCELO, 2007; DAY, 2005) elaborados a

partir das experiências presentes em contextos específicos. Desconsiderar este fato e instituir

políticas educacionais concebidas desde perspectivas unidirecionais e homogenizadoras não

favorece a aprendizagem da docência, a construção de experiências potencializadoras

(LARROSA, 2014) e obstaculiza o desenvolvimento profissional dos professores. Emergem

daí, dilemas pelos quais os professores principiantes se veem afrontados diariamente.

Conforme, pode-se depreender da leitura do próximo capítulo, no qual constam narrativas

elaboradas com vistas a permitir a compreensão dos conflitos, das contradições que

perpassaram o desenvolvimento profissional dos participantes nos respectivos contextos de

atuação. Ante estes últimos, cada participante desta pesquisa elabora maneiras próprias de se

constituírem, evidenciados a partir da composição de sentidos textualizados ao longo dos dois

anos em que os acompanhei. Acompanhe você também, o limiar transitório destas histórias.

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1.9.1 Interações e negociações entre o pesquisador e os participantes

As experiências das quais advém os sentidos que vão sendo compostos ao longo desta

pesquisa, emergem de encontros entre o pesquisador e os participantes nos diferentes

contextos onde atuam. Encontros que marcam, por vezes, pela forma inusitada em que

ocorrem como aquele que se deu entre o professor Félix e eu. Já era noite, eu havia chegado a

uma das escolas onde o participante, atuava à época, horas antes, necessitava encontrá-lo e ao

ser informado de que não estava, decidi esperar, pois há muito buscava encontrá-lo sem lograr

êxito.

Após mais de duas horas de espera na sala da coordenação, vi o participante pela

primeira vez. Assomou-se à porta, sob o luso-fusco da lâmpada um homem moreno, baixo e

atarracado, traços indígenas, aparentava estar assustado:

- “Es el señor que quiere falar commigo?” indagou-me neste portunhol, bem

marcado. A esta altura, eu me levantara e estávamos frente à sala, onde eu o aguardara, ele de

mochila às costas, a qual me pareceu grande demais, dada a pequena estatura do sujeito que,

segurava papéis – provas- de modo um tanto estabanado. Cumprimentei-o em Português,

expliquei que era pós-graduando do PPGE/UFMT e que estava ali para convidá-lo a

participar, colaborar com a pesquisa. De olhos baixos, denotava pressa, a conversa não

parecia persuadi-lo, tive a impressão de que me olhava com desconfiança. Em um átimo,

retomei a fala, agora me anunciando em espanhol; subitamente, o semblante do professor

pareceu ir se iluminando. Levantou os olhos, me olhou e me convidou a acompanhá-lo até a

sala de aula. Quando ingressamos na sala, eu é que estava um pouco surpreso, com a mudança

de postura do professor, percebi que outra professora o substituíra e ficara com um grupo

remanescente de alunos, que ainda respondiam a prova. Na sala de aula, encetamos Felix e eu

profícua conversação, na qual ele disse, dentre outras coisas que vivia no Brasil há mais de

uma década, e que, ás vezes, os alunos o tripudiavam: “pensan que yo soy tonto, pero lo

importante es que aprendan, que estén a aprender".

Assim, de encontro em encontro veio sendo construída a relação de confiança

requerida pela pesquisa (CLANDININ e CONNELY, 2011) não somente no que concerne ao

professor Félix, mas também a Heitor, Odisseu, Helena, Safo, na carreira docente, todos

principiantes, aprendizes de um ser e estar na profissão, que entrelaça no existir mais de uma

dimensão, mesclando o ser professor com o ser pessoa (NÓVOA, 1995), por meio das

alegrias e tristezas, razão, intuição, emoção; em uma palavra experienciação, que a todos

afeta, envolve, compromete, por vezes, atordoa, nos meandros desta contínua relação. Posto

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que o ensinar lança a quem quer que a ele se disponha nesta rede relacional, entretecida no

entrelugar multidimensional.

Nas múltiplas paisagens visitadas, atravessei realidades e contextos que, também me

atravessaram e que, de certo modo, indelevelmente me marcaram. Porquanto, agora apresento

as circunstâncias em que se deram cada um dos encontros com estes docentes. Das histórias

vividas nestes encontros, resulta a composição de sentidos, sobre os quais se move este texto.

Aqui, convido a que escutes a história de Heitor, assim denominado por ter demonstrado

durante o tempo em que o acompanhei compromisso e honradez quase míticos. De fato a

escolha do pseudonônimo deste participante teve como leitmotiv a produção

cinematográfica, inspirada no poema épico- narrativa memorável- Ilíada, Troy (Tróia), filme

estadunidense lançado em 2004, dirigido por Wolfgang Petersen e roteirizado por David

Beinioff. Dentre todas as personagens míticas, metáforas dos valores sobre os quais se

assentam muitas comunidades ocidentais, Heitor me marcou indelevelmente. Paira na

construção desta personagem uma aura movida pelo sentido ético erigido sobre o

compromisso inquebrantável com a honra, a coragem e o ideal de justiça. Enquanto Aquiles

lutava em busca da glória pessoal, Heitor travava suas próprias batalhas, movido por ideais

mais coletivos, fazia-o com dedicação e comprometimento apaixonantes.

Resguardadas as distâncias temporais, contextuais e os propósitos que movem a

produção de um filme pautado por um épico e os contextos desta investigação, cuja feitura

não comporta, sob pena de alienação histórico-social, a construção de heróis; o fato é que ao

ouvir as narrativas do professor a quem com a devida anuência, passei a denominar pelo

epíteto de Heitor, vicejei o sentido ético advindo de um comprometimento tão enternecedor

quanto aquele despertado em mim pelas atitudes da personagem épica de Tróia.

Assim se deu o primeiro encontro entre Heitor e eu. Encontrei-o pela primeira vez em

dezembro de 2014, após procurá-lo por algumas vezes na escola onde atuava, finalmente

logrei agendar uma data para conversarmos, todavia mediado por telefone. Entretanto,

chegara finalmente o dia em que o encontraria; tenso o aguardei entre a movimentação intensa

de alunos e servidores. Enquanto espero, aspiro com certo contentamento o cheiro de chuva

molhando a terra, a grama, resvalando pelas paredes da escola de dois andares, regando o

amplo jardim e movendo o azul da piscina olímpica separada da quadra coberta por ampla

área verde, vistosa nesta tarde regada pela chuva fininha. Entre alunos na costumeira algaravia

jovial e os olhos perscrutados dos servidores, reconheço um professor de Língua Espanhola

com o qual frequentei muitos cursos e, enquanto conversávamos se aproxima um rapaz de

mediana estatura, cabelos lisos a altura dos ombros, olhar que acolhe e interroga

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simultaneamente. Aproxima, cumprimenta simpaticamente e me convida a conversamos em

uma sala, recém desocupada, parecia esforçar-se por não deixar transparecer estar

constrangido. Inicio a conversa, agradecendo ao professor por se dispor a participar da

pesquisa. Esclareço alguns aspectos conceituais e metodológicos concernentes a ela e, ao

justificar o porquê desta escolha, apresento em breves pinceladas, a narrativa da minha

própria constituição como docente. O diálogo floresce tal qual o alecrim, sem semeaduras

extenuantes. Espontaneamente, o professor começa a falar acerca de algumas percepções que

vem elaborando na condição de principiante na Rede Estadual. Escuto-o por um momento,

antes de pedir permissão para gravar em áudio. Ele assente positivamente, no entanto, por

alguns instantes, recorre a um tom ligeiramente formal, até o momento ausente naquela

conversação. Volta o olhar em direção à porta, parece concentrar muito ao enunciar-se, vez

por outra me olha; olha de volta à porta, ao gravador postado sobre a mesa, à qual ladeamos.

No transcorrer da conversa, as palavras voltam a fluir com maior naturalidade, todavia em

tom sempre reflexivo. Aproximadamente vinte minutos de um dizer prenhe de sentidos e o

professor discretamente pede uma pausa na gravação. Depois retroalimentamos o diálogo e,

ele fala por mais alguns minutos. Então, o agradeço, desligo o gravador e o diálogo é

retomado, por fim e para minha surpresa e alegria, Heitor pede que eu aponte em meu caderno

de campo, alguns temas sobre os quais quer falar comigo no próximo encontro.

Em seguida, contarei como encontrei a Odisseu. Outro pseudônimo encontrado no

poema homérico. Odisseu é o contador de histórias que dá nome ao poema Odisseia e, contar

histórias, quiçá constitua um dos pilares sobre os quais foram forjadas muitas civilizações. O

sentido das experiências entretecidas e narradas ao se contar histórias marca o encontro no

qual o próprio ato de existir ganha corpora, instaura-se aí uma conversação fundante do ser

em relação, capaz de integrá-lo a todos os demais, em uma dialogia transcendente

(BENJAMIN, 2013).

No espectro de histórias contadas desde tempos imemoriais, a Odisseia parece

personificar todo o encantamento de uma narrativa que, ao ser rememorada, remete ao

passado longínquo daquilo que vem se tornando a espécie humana e, simultaneamente aponta

para o porvir desta mesma espécie. Odisseu é o humano que transcendeu o próprio mundo e

ao vivenciar outros mundos jamais abdicou de aprender. Odisseu é um homem e, é muitos

homens; ao retornar à própria morada continua sendo ele mesmo – pai, marido, rei – mas se

sabe inteiramente outros – viajante, guerreiro, estrangeiro. Ao contar o que viveu Odisseu se

converte em múltiplos eus. De modo similar e singular, também o professor de Língua

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Portuguesa em início de desenvolvimento profissional a quem evocamos a contar histórias

vividas, vem compondo uma odisseia, porquanto se narra como Odisseu.

Para encontrar Odisseu pela primeira vez, percorri longo caminho, sob o sol fulgurante

da baixada cuiabana, dirigimo-nos minha esposa e eu à Escola D., localizada nos confins de

Várzea Grande, próxima à Av. Mario Andreazza, cumprida estrada que, serpenteando além,

muito além do Rio Cuiabá, alcança o sopé de pequenos montes que se elevam gradualmente.

No ponto exato em que o monte mais se eleva, à direita, no plano alto uma ampla avenida,

margeada por pequenas casas, dentre as quais um barracão retangular se eleva. Ao portão,

uma mulher negra e alta, que me fez lembrar aquele poema de Drummond “Café bom, café

preto/que nem a preta velha que o fazia”; esta recordação acalmou-me instantaneamente.

Próximo à mulher um homem de pequena estatura, sorriu e, por razões desarrazoadas,

remeteu-me ao personagem pequeno e esperto de “Ratos e Homens”. Ela, apoio

administrativo; ele, professor. Cálidos cumprimentos, breves apresentações. “Professor,

satisfação revê-lo, esta é Geni, minha esposa.” Escusas por exceder em um quarto de hora, o

momento previamente aprazado. “Desculpe, vivo em Cuiabá, subestimei o tempo que se leva

para percorrer um canteiro de obras e os respectivos desvios.” Cordial, Odisseu conduz-nos à

sala de professores. Silencioso espaço, parecia preparado para aquele que seria o primeiro

diálogo gravado com o participante. Gentil, Geni optou por aguardar fora do recinto e

lentamente, moveu-se rumo à porta um longo vestido, sustentado pela moça de olhar cúmplice

e verdejante. No momento mesmo em que nos acomodávamos, o professor chamou ao diretor

que passava ao largo no corredor e, um homem de estatura mediana, cavanhaque e olhos

perquiridores, sob lentes opacas, mas que pareciam dispostos à acolhida, foi-me apresentado.

Ex-aluno do mesmo programa em que estou pós-graduando, foi solícito ao ser apresentado ao

pesquisador, afirmou a importância em se realizar pesquisas na escola e com os professores e

não sobre a escola ou sobre os professores. Fraternuras de lado a lado: “Aceitam um suco de

abacaxi, tá bem gelado”, de parte à parte: “Muito obrigado.” O diretor se retira do recinto. O

método, a tese, as motivações da pesquisa são reexplicados, gravador ligado, diálogo

reiniciado. Acolhimento e espontaneidade marcaram as primeiras enunciações registradas,

naquele princípio de tarde.

Agora, mergulhemos um pouco mais no mar que marca os sentidos que compus a

partir dos encontros com Helena, personificação da beleza na Grécia Arcaica, justifica o

codinome por personificar a beleza e a paixão no ato de ajudar os estudantes a aprenderem.

Para Helena toda aula é uma oportunidade para fazer emergir a boniteza do encontro entre

docente e discentes. Neste sentido parece caminhar par e passo para a construção de um fazer-

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se que paulatinamente poderá se aproximar daquilo que Mélich (1997) conceptualiza como

Antropologia Pedagógica.

O primeiro diálogo com Helena fora precedido por muitas idas à escola onde ela atua,

de modo que ao rever algumas paisagens no trajeto, antecipo outras. Assim, pois, acelero na

Avenida Júlio Campos, artéria que cinge ao meio em seu derramamento geográfico, Várzea

Grande, conversão à esquerda, retorno à Avenida da Feb, avancemos, sempre à esquerda,

agora a Filinto Muller, depois, uma rua estreita, um pouco mais à esquerda e posso divisar

entre casas de tetos rebaixados, pequenos sobrados e mangueiras, grades e muro amarelos:

CEJA L. Aqui agendei com Helena todavia, por telefone. Quinze horas, ante o portão me

apresento uma vez mais ao agente de pátio, este eu ainda não conhecera. Não, sem certa

tensão, o saúdo e indago pela professora Helena e, explico as razões pelas quais a busco.

Solícito, ele sai à procura da docente. O agente de pátio retorna com um andar paquidérmico,

simpaticamente, informa que a docente a que procuro ainda não se encontra na escola, mas

chegará possivelmente, às 16h30. Agradeço, peço permissão para aguardar no interior da

escola. Ele me concede a autorização, ao passo em que me apresenta ao diretor, enfatizando a

que eu vinha. Do diretor, breves saudações. Dirijo-me a umas mesas, círculos de concreto

armado que contrastam com o verdor da grama e de duas mangueiras, no lado leste da escola,

às quais eu percebera nas visitas anteriores, e que, agora, com temperaturas mais brandas,

ofereciam acolhedora sombra. Abro a tese que estivera lendo e retomo a leitura. Intriga-me

particularmente, o modo como a autora tem conseguido aproximar os conceitos de

experiência, narração e rememoração em Benjamin com os conceitos de experiência e

sentidos de Larrosa. Cerca de uma hora se passa, imerso na leitura, não percebi que o tempo

empreendera desabalada fuga. Entrementes: “Professor R, este é o doutor que fará pesquisa

com a professora Helena, aquele agente de pátio, estava sendo mesmo simpático. “Está

aguardando, se o senhor ver ela...” “Se a vir, aviso. Professor, quer aguardar na sala de

professores? ”Deixo-me conduzir pelo sujeito, recém apresentado, estatura mediana, de

mediana idade, traços negroides, marcados pela elegância no traje e cordialidade nos gestos;

secundado por mim, ingressa na sala e anuncia: “Este professor quer falar com Helena,

esperará aqui.” Saúdo a todos, correspondidas as saudações, sento-me em um sofá vinho ao

lado de professor que me pareceu bastante jovem. As professoras presentes olham-me de

soslaio. O professor loiro, sentado no outro sofá, olha como quem quer denotar que está

olhando. Passada meia hora mais e, adentra a sala uma moça morena, cabelos castanhos à

altura dos ombros, saúda entre efusiva e terna a todos. Sorriso cativante. Pareceu

incrivelmente jovem. “Professora Helena?!” Levanto-me, estendendo a mão. “Professor

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Edson, falamo-nos ao telefone.” “Oi professor, satisfação, vamos lá!” Dirigindo-se à porta.

Enquanto eu a seguia pelo corredor, curioso indaguei e soube que ela tinha vinte e oito anos.

“Vamos ali!” Apontava com o indicador, as mesas sob as mangueiras, nas quais eu me

instalara para ler, umas duas horas antes. Como ela me parecesse um pouco indecisa sobre

qual mesa escolher, sugeri: “estive sentado, àquela, pareceu-me um bom lugar.” “Então

ficamos aqui”, disse entre convidativa e decidida. Reiterei os propósitos da pesquisa, agradeci

por aceitar colaborar e esclareci que este primeiro diálogo é apenas o início das conversas que

com ela pretendo entretecer. Ouvi da professora Helena que ela se considerava privilegiada

por ser escolhida para participar e ter alguém que a escutasse. Narrei monodalogicamente

(resumida e significativamente, neologismo cunhado a partir das mônadas benjaminianas),

minha trajetória. Então, Helena se pôs a narrar espontânea e apaixonadamente. Gravada a

narração, ofertei e, ela a escuta inteiramente, sorrindo, reafirmando, acrescendo pequenas

observações.

Façamos uma paragem para encontrarmos a Safo, participante, cujo pseudônimo

também se deve a Terras Gregas, o melhor a uma das ilhas gregas. A ousadia e coragem com

que esta professora enfrenta aos desafios que se lhe apresentam, tendo valor inclusive para

repensar os próprios erros, permite tracejar um paralelo entre ela e a predecessora habitante da

Ilha de Lesbos que ousou enfrentar o machismo e o preconceito patriarcalista da Grécia

Antiga e tomou por aprendizes, aquelas que na época eram considerados seres

intelectualmente inferiores, as mulheres. A mesma inquietude frente ao iníquo move a

professora principiante que nos limites deste texto denomina-se Safo.

O encontro com Safo se deu em meio a algumas percepções concernentes ao

entrecruzamento das paisagens que se apresentaram no caminho naquele momento com as

paisagens historiadas e presentes em minha memória, narrei-o como segue. Uma vez mais

transponho o Cuiabá, torrencial amarelado que corre sem cessar. Pela terceira vez faço esta

travessia em um mesmo dia e, agora me ocorre que nestas águas rasas, transitavam outrora,

navios de grande calhado. Súbita tristeza me invade, oxalá! Não despertemos muito tarde ou

teremos mais um Tietê, transpondo cerrados, baixios, pantanais famigerados, sumariamente

explorados. Assim, imerso neste pensar me vou distanciando quando finalmente chego aos

limites da cidade em seu peculiar derramamento, referencia-me o Armazém da Sinuelo,

conversão à direita, duas quadras adiante, escola U. Por uma igreja resguardada, parece estar

por um ginásio esportivo, prensada. Rua estreita. Estaciono rente à calçada. Guiado pela

diretora, encontro Safo na sala com um grupo de professores sentada. Ao saber que cheguei,

afirma que minha presença era esperada. Cumprimento a todos, olhamo-nos pela primeira

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vez, pois apesar de há muito por mim buscada, não fora nos momentos anteriores na escola

encontrada. Acompanho-a de volta ao pátio da escola. Abrigados à sombra, conversamos e,

creio, encetamos promissora caminhada; ausência somente da gurizada, àquela altura do ano

letivo, as aulas estavam sendo encerradas.

Principiar uma pesquisa com perspectivas teóricas acordes à Pesquisa Narrativa

(CLADININ, 2011; CONNELY, 2011) é um grande desafio e, desde o primeiro encontro é

exigido do pesquisador relacionar-se com os participantes de forma acolhedora, autêntica e

ética. Caso não aja segundo estes princípios não encetará as relações requeridas por este tipo

de investigação, pautada inteiramente na confiança mútua entre o pesquisador e os

participantes. Disto resulta a importância destes primeiros encontros, ao narrá-los tal como

constam neste texto, aprofundo um pouco mais na compreensão daquilo que os autores

mencionados no início deste parágrafo apontam sobre o fazer dos pesquisadores narrativos,

definido por meio da colaboração entre o pesquisador e o participante em determinado lugar

ou em vários, como é o caso desta investigação e, em interação com uma gama de

experiências em conformação a partir das histórias vividas, contadas, revividas e recontadas.

De modo que ao chegar encontra as histórias acontecendo e ao sair elas continuam, assim, o

pesquisador insere-se em meio ao movimento de experiências que compõem a vida das

pessoas tanto na perspectiva individual quanto social, movimento que não cessa quando ele

chega, tampouco quando se vai, compreender este fato é essencial a esse tipo de pesquisa, por

isso a um encontro sucedem outros, mas os princípios que sustentam a pesquisa permanecem.

Por outro lado, ao pesquisador narrativo, acalenta e exaspera a possibilidade de

construir o pensamento narrativo durante a pesquisa, tudo o mais são construções possíveis,

composições elaboradas a partir de uma infinidade de sentidos suscitados pelos encontros

com os participantes nos respectivos contextos. Por vezes, a inversão que o leva a viver para

somente depois, contar, teorizar, lança-o em um vazio epistêmico desolador. Na Pesquisa

Narrativa, o viver e o contar, perpassados por experiências, configuram um mesmo ciclo.

Neste sentido, é de grande relevo apresentar não somente o que se ouviu ou que se falou, mas

as circunstâncias em que se deram, com relevância, inclusive para acontecimentos que

antecederam o momento em que se estabelece a conversação, pois, a partir deles pode se

perceber os processos imbricados nas relações que contextualmente são estabelecidas e as

experiências narradas podem ser sentidas no âmbito de um continuum de vivências, em

permanente movimento.

Com vistas a narrar o pensamento encarnado atento ao vivido que conclama o

despertar para o que vivo e continuar perscrutando no continuum de desenvolvimento a

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tridimensionalidade: lugar, temporalidade e situacionalidade, narro na seção seguinte, o

acontecimento que marca minhas experiências na docência, meu batismo de fogo.

1.9.2 O processo inicial de tornar-se professor: o batismo de fogo do pesquisador

Adentrar e viver histórias que emergem de diferentes contextos e distintos saberes,

cuja feitura requer a construção de pontes que permitam ao pensamento vivido converter-se

em um pensamento vivo que, por conseguinte, reclama de quem o recebe, elaborar maneiras

pessoais ao apropriar-se dele. O que equivale dizer: relacioná-lo a própria experiência,

incorporando em uma carnalidade concreta capaz de atentar-se ao que aconteceu

(CONTRERAS, 2016; LARROSA,2014) como forma de iluminar o que se vive, levou-me a

rememorar as paisagens marcadas no início de meu próprio desenvolvimento profissional

docente. Viver com principiantes promoveu a paragem de pensamento (BENJAMIN, 2013)

que tal qual uma mônoda integrou o que eu vivenciei em sala de aula com Safo e Helena ao

que eu vivera antes. Deslocou-me para tempos e lugares marcados em meu ser de modo tão

intenso que as preocupações que antecederam o dia em que pela primeira vez ingressei em

sala para atuar como professor, bem como as interações que estabeleci no momento em que

principiei a ser docente, inundaram, de tal modo, a minha existência que se configuraram

como experiência revisitada e renascida no tempo presente (CLANDININ; CONELLY,

2011). Vi-me comprometido com este narrar; integravam-me no fluir destas novas relações

que surgiam ao compartilhar a sala de aula com professoras principiantes de Língua

Portuguesa. Convido a que faças comigo esta travessia venha reviver comigo as tensões do

primeiro dia na transição de estudante a professor (VAILLANT; MARCELO, 2012).

Suor, riacho que desliza por sobre as costas, filtra das axilas, vertedouro

incômodo que imiscui o tecido da camisa de mangas longas à pele das

costas, seda e carne compõem por algum mistério de alquimia uma única

matéria; ao menos na percepção daquele jovem magro, de pele negra e

cabelos crescidos que, anda de um lado para outro, sem saber o que fazer

com as mãos grandes de dedos longos, calejadas pelo trabalho que

desenvolvera no sítio, nos últimos meses. Calor e tremores parecem

competir por espaço em um e mesmo corpo. A antecipação deste momento

não foi capaz de preparar para vivência aqui e agora. Por mais que nos

últimos meses desde que soubera que estaria aqui, não fizera mais que

conjecturar e planejar como seria. Persignara este instante nos mais variados

locais e se deixara vagar nesta antecipação em meio ao labor cotidiano. Fora

inundado por esses pensamentos, cavalo desembestado que antecipa o devir,

enquanto ordenhava manualmente as vacas sob os chuviscos madrugadores

que transformam num pântano o curral sem cobertura e que torna agradável

o contato com os úberes e o couro das vacas, pois mesmo sob a chuva fria,

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são quentes, talvez por isso, fora surpreendido por aqueles pensamentos

futurísticos no instante mesmo em que de cócoras, com a cabeça encostada

no ventre da vaca e o balde preso entre os joelhos, fazia jorrar de tetas

generosas o leite quente com um aroma tão inconfundível e reconfortante

que contrastava com o frio aquoso daquela chuva de janeiro. Este mesmo

pensar, furtivo como onça pintada e, esquivo como a jaguatirica, o

surpreendera enquanto tomava banho no riacho, cochilava à sinfonia da

chuva no telhado, brandia a foice no roçado, tangia o gado, lia, indagava

sobre plano aula, planejamento... e o acompanhara ao longo da estrada

lamacenta no trajeto entre o sítio e a escola onde lograra ser contratado como

professor interino de Língua Portuguesa, Filosofia, História e Geografia, já

no primeiro ano de docência; cursava ainda o segundo semestre de

Pedagogia.

Todavia, agora os raios que atravessam a vidraça das janelas e deixam

vicejar o átrio de terra batida de uma escola sem muros e recém construída,

emergem do refulgir de um sol fulgurante que cintila no meio dia calorento

do mês de fevereiro, são os mesmos que fazem a sensação térmica na sala

aumentar demasiadamente e com ela o suor feito riacho ameaça afundar em

águas abissais o neófito com pretensões de se tornar docente. Vagava entre o

quadro e os alunos e falava e falava e transpirava e mais falava, como se do

falar dependesse todo um mundo que vicejava construir, de modo que, se

findasse o falar tudo, ruía. Sétimo ano do ensino fundamental, poucos

alunos. Sala tranquila e ninguém ao discurso, interrompia, olhares

acolhedores, gestos, acenos com a cabeça, sustentaram palavras sofríveis

ditas como se em um palanque eleitoral estivesse aquele que as proferia.

Histórica aula. História, não me lembro ao certo o conteúdo, mas trago

redivivo o estertor daquela classe que me inseriu no mundo da docência;

ainda recordo os rostos e os olhares de uns alunos que me fizeram sentir

capaz de me aventurar nesta viagem tão turbulenta, mas isto eu ainda não

sabia, venho descobrindo no viajar. (DIÁRIO DO PESQUISADOR, 2016).

A narrativa que marca em meu percurso o início da atividade docente estava há quase

duas décadas inscrita em minha trajetória pessoal, todavia somente ao contá-la pude situá-la

como experiência, cujos sentidos apontam para o contexto e as condições de

profissionalização que se me apresentaram em meados dos anos noventa do século vinte, bem

como evidencia o acontecer desta experiência (CONTRERAS, 2016; LARROSA, 2014). Ao

trazer a tona esta história sem nome, encontro a mim mesmo na interação com os professores

principiantes que participam desta pesquisa. E no momento em que me deixo tocar novamente

por esta experiência me ocorre que de fato eu a vivi como um acontecimento, por isso, sou

capaz de contá-la mesmo decorrido tanto tempo. De certo publicizá-la se apresenta como um

comprometimento com a metodologia e com os participantes, pois

[...] como pesquisadores narrativos, trabalhamos no espaço não só com

nossos participantes, mas também conosco mesmos. Trabalhar nesse espaço

significa que nos tornamos visíveis com nossas próprias histórias vividas e

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contadas. Às vezes, isso significa que nossas histórias sem nome e talvez

secretas, vêm a luz assim como aquelas de nossos participantes. Esse

confrontar de nós próprios em nosso passado narrativo torna-nos vulneráveis

como pesquisadores, pois transforma histórias secretas em histórias públicas.

(CLANDININ; CONNELY, 2011, p.98).

Ao elaborar narrativa a que venho fazendo menção, parti do tempo presente e burilei

na memória um tempo em que este presente situava-se no porvir, na movimentação que me

leva do presente ao passado, retorno ao presente e perscruto perspectivas futuras. Então,

muitas temporalidades se entrecruzam no âmbito das experiências que marcam o trajeto de

minha profissionalidade, que de certo modo se ilumina por meio do narrar (GALVÃO, 2005).

Dando novos sentidos a estas experiências ao contá-las de novo (CLANDININ; CONELLY,

2011) deparo comigo, mas percebo que não confundo plenamente com o mesmo que

vivenciou estes acontecimentos no princípio da docência há quase duas décadas. Aqui

emergem as outras duas dimensões sociabilidade e lugar, ao longo deste interagi com

milhares de pessoas, atuei em diversos contextos e, indubitavelmente, elaborei diversas

experiências, das quais emergiram muitos sentidos que interferiram na maneira como vim me

transformando em professor, bem como redimensionaram o meu jeito de ser como pessoa.

Assumo neste sentido que ao me tornar professor, também venho me tornando uma pessoa

diferente, porquanto fica evidente que a identidade se constitui relacionalmente e se configura

como uma realidade que evolui e compreende o modo como cada um se sente e se diz

professor, porquanto se trata de processos conflituosos, em permanente elaboração

(MARCELO, 1999; 2010, 2012; NÓVOA, 1995; 2016).

Presumivelmente, não poderia buscar nas experiências e nos sentidos narrados uma

identidade fixa que tornasse o eu que agora estou sendo, idêntico ao eu que fui, até concordo

que uma parte de mim possa ser permanente, mas outras se sabem de repente (FERREIRA

GULAR, 2000). Logo, faz sentido conceber os processos identitários por meio dos quais os

professores vão ao longo de muitas temporalidades, interações e contextos, como sendo

plurais (MARCELO, 2010; DAY, 2005). Há uma continuidade em meio a muitas rupturas e

ela não permite o esfacelamento total da personalidade que marcada pelos sentidos advindos

do constante acontecer se torna adaptativa, sem, contudo, aniquilar-se em meio ao

movimento. Percebo isto quando ao retomar a narrativa de meu próprio percurso encontro e

me reconheço nos lugares, utopias, planos, compromissos e paixões que moveram e ainda

movem o meu jeito de ser, por conseguinte, minha profissionalidade (SACRISTÁN, 1995;

ROLDÃO, 2004; 2007; FLORES, 2010) nos meandros da profissão docente. Por outro lado,

reconheço-me também em outros lugares que, à época, eu sequer poderia vicejar, ainda que

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em breves lampejos, como por exemplo, a atuação como pesquisador acadêmico, a assunção

da docência em uma instituição federal e no ensino superior, dentre outros.

Lugares e pessoas muito diferentes daquele em que principiei minha atuação docente

requerem novas interações que inscrevem em minha trajetória profissional, outras

experiências constituídas a partir do encontro se insinuam nas muitas temporalidades que

marcam meu percurso. Na época em que iniciei minha atuação como docente, a escola

desempenhava no contexto de uma cidade interiorana um papel institucional de relevo, talvez

representasse ao lado da igreja católica as duas instituições de maior reconhecimento social.

Tanto os professores quanto os padres gozavam de um prestígio elevado. De modo que a

carreira docente representava algo atrativo, mesmo para aqueles que assim com eu não

ambicionavam tornarem-se professores. Lembro-me de meu pai orgulhoso ao receber das

professoras mais renomadas naquele contexto, elogios referentes ao trabalho do professor

Edson junto a estudantes que havia aprendido a fazer redações.

Hoje, ao me debruçar sobre estas histórias percebo que havia naquele contexto uma

forte regulação da profissão (NÓVOA, 2009) não na entrada, mas durante o percurso do

principiante, quiçá, devido a isto eu a tenha vivido tão intensamente ainda na véspera de

ingressar pela primeira vez na sala de aula, ser um bom professor representava

reconhecimento social para a família inteira, por outro lado, as pessoas daquela cidadezinha

não eram nada indulgentes com as falhas cometidas por docentes, as quais os predispunham

ao opróbrio público rapidamente, por menores que fossem. Isto eu aprendi durante os oito

anos em que cursei o ensino fundamental e residi naquele município e ao iniciar minha

carreira sabia das altas expectativas que recaiam sobre mim.

Entretanto, apesar do forte controle e regulação sobre o que faziam os professores, não

me lembro de ter havido durante o ano em que atuei naquele contexto nenhuma formação

voltada aos problemas que eu enfrentava como professor principiante, os quais em virtude das

características que marcavam as relações entre professores, alunos e currículo, naquele

contexto, acentuadamente marcadas pelo paradigma da Racionalidade Técnica (MARCELO,

1999; MONTEIRO, 2003); (ROLDÃO, 2007), referiam no mais das vezes, a aspectos

burocráticos do cotidiano escolar. Conflitos que, no entanto, tive de lidar sem nenhum

acompanhamento sistemático, dado a inexistência de programas e/ou políticas de inserção

(MARCELO, 1999, 2008; DAY, 2001, 2005) na Rede Estadual mato-grossense de ensino.

Adentrar os contextos de atuação dos participantes da pesquisa e acompanhá-los em

diferentes demandas requeridas de um docente em processo inicial de desenvolvimento

profissional, planejar e gerir ações de sala de aula, relacionar-se com equipe gestora,

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professores, lidar com as expectativas tanto dos demais em relação a eles quanto deles em

relação a si mesmos, levou-me a pensar sobre o quão desafiador é o início da docência. Nóvoa

(2009) tem muita razão quando nos convida a refletir sobre o fato de que o modo como são

cuidados os professores que se iniciam na docência, ao mesmo tempo em que revela o status

desta profissão no tempo presente, aponta, no futuro, a viabilidade ou não da docência como

uma profissão atrativa.

Destarte, a pouca valoração social e econômica da profissão professor, ficou evidente

em diferentes ocasiões, quando por exemplo, o encontro de formação, converte-se em um

muro de lamentações e, tudo o que se pode vislumbrar é o quão fragilizadas estavam aquelas

pessoas, que, não obstante, insistiam em seguir acreditando que outros futuros seriam

possíveis, apesar de no presente se sentirem cada vez mais coagidos pela violência verbal,

psicológica, física; ademais de perceberem a pouca ou nenhuma efetividade das políticas de

fortalecimento do professor e da profissão. Professores/professores para quem a docência nem

sempre se apresentou como a primeira opção, mas que tão logo ingressam, a assumem, no

mais das vezes, com comprometimento e vocação apaixonada (DAY, 2001), capaz de

redimensionar as próprias trajetórias de formação, na busca contínua de sentidos a

experiências vividas, conforme será apresentado ao longo deste texto.

No capítulo seguinte, são apresentados os percursos dos cinco participantes da

pesquisa, com vistas a narrar percursos e trajetórias de professores principiantes a fim de

compreender sentidos elaborados contextualmente, a partir das interações que estabelecem

continuamente.

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CAPÍTULO II

PERCURSOS DE PROFESSORES DE LÍNGUAS PORTUGUESA E ESPANHOLA:

INSERÇÃO EM CONTEXTO

Na pesquisa narrativa as pessoas são vistas como

a corporificação de histórias vividas.

(CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 77)

O modo como são concebidas as pessoas na pesquisa, ou seja, o como se compreende

o lugar das pessoas na investigação, define sob muitos aspectos não somente a metodologia,

mas também a concepção epistemológica do pesquisador em interação com os participantes

desta mesma pesquisa. Em virtude disso, assumo que no âmbito desta tese, as pessoas são

entendidas como a corporificação das histórias que vivem. Assim, os eventos são

considerados necessariamente tanto em relação a ações e acontecimentos que os precederam

quanto referidos ao porvir, ambos dimensionados pelos sentidos das experiências narradas

(CONNELLY; CLANDININ, 1995) e pela possibilidade de essas narrativas se converterem

em experiências ao tocarem (LARROSA, 1995, 2014) tantos quantos a lerem e alcancem lhe

atribuir sentidos no tempo e lugar presentes.

De maneira que ao buscar compreender os sentidos que os participantes desta

pesquisa vêm elaborando ao longo dos respectivos percursos pessoais e profissionais me

ancoro nos termos essenciais da Pesquisa Narrativa (CLANDININ; CONNELY, 2011):

pessoal e social, constitutivos da interação; passado, presente e futuro, conceito de

continuidade; combinados ambos à noção de lugar, do qual emerge a ideia de situação.

Quando associados estes termos tornam possível a construção de um espaço tridimensional

para a pesquisa, por meio do entrelaçamento de três dimensões: temporalidade ao longo da

primeira, pessoalidade e sociabilidade ao longo da segunda e, lugar, ao longo da terceira

dimensão. Erigidos estes sustentáculos é facultado compreender que as experiências

acontecem narrativamente.

Em outros termos, importa compreender como cada pessoa vivencia o acontecer que

marca a própria trajetória. Trajetória, que, entretanto, não se dá em um vazio existencial,

porquanto, congrega e ressignifica toda uma diversidade de significados vivenciados

socialmente. Assim, compreendidas como um acontecer narrativamente, as narrativas dos

percursos dos participantes desta pesquisa podem ser concebidas como experiências

(DEWEY, 2010; LARROSA, 2014) que vem sendo elaboradas ao longo dos percursos de

formação destes docentes, cuja inserção em diferentes contextos é aqui sinalizada como uma

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das etapas mais relevantes do desenvolvimento profissional (MARCELO, 2007, 2008, 2012).

Fato que, a propósito pode se inferir das narrativas das trajetórias de Helena e Safo,

posteriormente sucedidas pelas de Heitor, Felix e Odisseu.

2.1 A docência como reinvenção pessoal e profissional: trajetórias de Helena e Safo

Helena é membro da terceira geração sucessiva de professoras que retrocede aos

tempos da bisavó que, assim como a avó e a mãe foram docentes. Iniciada nos espaços

escolarizados desde muito pequena, mesmo antes de frequentá-los formalmente, já o fazia ao

acompanhar a mãe na faina laboral. Assim, opta muito naturalmente por cursar letras, apesar

da ferrenha resistência do pai para quem as professoras da educação básica representam na

melhor das hipóteses, a pobreza, na pior, eram loucas. Assim sendo, hostilizou a filha bonita e

jovial quando esta abandonou o curso de Fisioterapia para cursar Leras, obstinadamente. No

entanto, o retorno a escolas públicas situadas na periferia desta capital na condição de

estagiária, a fez postergar por alguns anos o ingresso na carreira docente. As dificuldades

estruturais e relacionais por pouco não a levaram a abdicar do legado professoral. Trabalhou

em empresas privadas, foi funcionária pública concursada na Câmara Municipal. No entanto,

se submete à prova e tendo sido classificada, assume a cadeira como professora efetiva de

Língua Portuguesa na Rede Estadual de Ensino no de 2014.

O que me levou a ser... ser professora, assim a pensar no Magistério foi...

assim... influências familiares, eu venho de uma família de professores. É...

desde minha bisavó Ana Isadora, ela... ela foi professora em 1927, né, então

ela acompanhou muito a ditadura militar, as coisas que aconteceram em

Minas Gerais, né? As coisa... muita coisa aconteceu aqui no Brasil, e... e ela

sempre teve uma paixão em... assim... em lecionar; aí foi passando pra

minha vó; aí da minha vó foi passando pra minha mãe e, a minha mãe é

pedagoga, e... sempre teve assim, uma paixão (ênfase) é... em lecionar,

sempre me levou pra esse universo e, me levava pra escola com ela porque

não tinha com quem deixar, né? E... e aí, eu fui... eu fui desde pequena sendo

influenciada por esse meio, ah... meu lugar, meu assim... playground era o

pátio da... das escolas que minha mãe trabalhava. Então assim, isso eu levei

pra minha vida! Sabe, essa vontade de... de lecionar, de lidar com pessoas,

é... de transmitir alguma forma de conhecimento, né? (ENTREVISTA

NARRATIVA, HELENA, 2014).

[...] A primeira vez que expressei de maneira muito clara a vontade de seguir

a carreira de professora, meu pai resolveu argumentar contra a ideia e entre

seus argumentos estavam; a falta de uma bora remuneração, o estresse de

lidar com alunos em fase de adolescência, pressão psicológica a "falta de

autonomia" do professor frente a essa nova configuração de ensino. Enfim,

meu pai estava entre esses "muitos" que me apresentaram uma visão bem

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pessimista de ser professor. Apesar de estar no sangue a vocação para

Lecionar, resolvi agradar meu pai e me matriculei para a faculdade de

Fisioterapia. Como já era de se esperar não consegui avançar.

(NARRATIVA ESCRITA, HELENA, 2015).

[...] No estágio, e, algumas vezes, eu cheguei a questionar: “Será que é isso

mesmo que quero pra minha vida? Eu sei que os meus antepassados

tiveram...né, é... como se diz... tiveram assim, capacidade, né...

tiveram...gostavam de lidar com eu quero isso. Será que eu vou dar conta

também, né?”Aí eu tive a experiência do estágio, aí depois que eu me formei

eu fui trabalhar em empresa privada, trabalhei na câmara municipal, né, e... e

nunca... mais me envolvi com sala de aula. Aí, eu fiz concurso público em

dois mil e dez né, e aconteceu de eu ser classificada e, fui chamada

recentemente. (ENTREVISTA NARRATIVA, HELENA, 2014).

Safo, diferentemente de Helena não vicejava a docência como profissão e atuou em

muitos outros cenários antes de deliberar por ser professora e voltar a estudar. Inicialmente

queria ser professora de história, mas contextualmente contigenciada se tornou professora de

Língua Portuguesa.

Bom, primeiramente... nunca me vi professora. Cheguei aqui, não sei como

(risos). To sendo sincera! É... tive outras profissões [...] Até um determinado

momento, eu decidi voltar a estudar... então... escolhi... ser professora.

interessei por... pela profissão, e, resolvi fazer Língua Portuguesa porque...

no primeiro momento a minha ideia seria ser professora de História, mas a

UNIC não abriu turma e, acabei me apaixonando pelo curso de Letras.

(ENTREVISTA NARRATIVA, SAFO, 2014).

Não obstante a diferença de perspectivas no ponto de partida, as duas docentes

sinalizam sentidos que apontam a relação com os pares, assim como a relação com os alunos

como sendo sumamente importantes à aprendizagem, à experienciação, por conseguinte, ao

desenvolvimento docente. Aqui aprender é o reinventar(se) constante e urgente, mas não é

uma invenção no vazio, emerge de desafios inesperados surgidos no fazer cotidiano; desafios

que, contudo são enfrentados pessoal e coletivamente junto aos pares de profissão (Day,

2001). Engendram um reinventar-se com retumbância tanto na pessoalidade quanto na

profissionalidade, o qual advém e repercute nas interações que encetam no contexto em que

atuam, tem-se então pessoalidade, profissionalidade e contexto institucional, entrelaçados

como insistem cada um a seu turno e referenciado no respectivo contextos de investigação,

Nóvoa (1995, 2009); Marcelo (1999, 2007); Monteiro (2003, 2007, 2016). Um reinventar

advindo dos conflitos que complexificam o tornar-se professor (FLORES, 2010).

E, assim eu tava acostumada com aquela história do ensino regular de

bimestre, de prova, de avaliação, né, e todo mundo na idade-série, né,

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adolescentes, da época do estágio,né... aí, eu cheguei aqui prepa... fiz um

plano de aula, né, como se fosse lidar com pessoas adolescentes na idade-

série (suspiro, riso) eu tive que refazer todo meu plano de aula porque eu me

senti frus-tra-da! (enfática, escanindo bem as sílabas) né, porque um

conteúdo que eu conseguia desenvolver em uma aula de quarenta e cinco

minutos em uma aula de três horas aqui, eu não consegui. Porque eu me

deparei com vários tipos de realidade, vários tipos de idade, vários tipos

de...vamos dizer assim, algumas pessoas tinham o raciocínio mais

desenvolvido, outras menos, uma história de vida marcante... né, pais de

família, mães de família, reeducandos, presidiários, enfim. E aí, foi um

choque de realidade: falei “gente, como que eu vou trabalhar com tantas

tipologias, com tantas pessoas diferentes?” Né, aí trocando experiência com

os professores, né? A minha coordenadora de Área me ajudou bastante,

passou muita segurança. Falou: “não se desespere! (riso) professor em início

de carreira é assim mesmo!” Né, e pelo fato de eu ser jovem também né... eu

tive que batalhar pra conseguir respeito dentro da sala de aula né? Mas

assim... eu fui fazendo amizade com essas pesso... com os alunos, fui

entrando um pouco também na vida pessoal deles porque querendo ou não

você acaba entrando porque eles gostam de chegar desabafar, conversar, né.

Eu aprendi que... que os alunos de EJA são assim, entre aspas, muito

melindrosos né, cê tem que tratar com... assim, com muito carinho pra eles

não desistirem, pra não ter aquela evasão e, qualquer coisa que você fale em

sala de aula já ... é motivo deles desistirem. Então, assim, eu tive que me

refazer; todo aquele conceito que eu tinha construído de professor e que eu

vi um pouco da minha vó, um pouco da minha mãe eu tive que... tudo aquilo

teve que cair por terra! Eu tive que me re-fa-zer, me remodelar, me

reinventar né, falar a linguagem deles. E aí, eu tive, eu to tendo sucesso na

sala de aula. (ENTREVISTA NARRATIVA, HELENA, 2014).

Ante o “choque com a realidade” (VEENMAN, 1984; HUBERMAN, 1995)

apresentado sob a forma de um público diverso daquele em que ela desde a infância concebia

como sendo escolarizável Helena reinventa, com o apoio fundamental de seus pares mais

experientes novas maneiras de fazer, novos modos de ser, sustentados em uma nova

linguagem, em um diálogo forjado na compreensão de múltiplas alteridades. O legado da

bisavó foi reconstruído a fórceps neste novo contexto sobrepujado, a julgar pelo que foi

narrado, por uma experienciação intensa e significativa. De modo que, vem delineando já no

processo inicial do desenvolvimento profissional docente uma perspectiva bastante pessoal,

marcada pela capacidade de buscar novos caminhos diante dos desafios, aquilo que ela

própria conceitua como uma reinvenção de si. Certamente, esse modo de lidar com a

complexidade do tornar-se professora decorre de disposições pessoais da participante, no

entanto, ela mesma enfatiza a importância das pessoas com as quais interage no contexto

institucional neste processo. Matizou a importância tanto da coordenadora que, neste caso,

desempenhou a função do amigo crítico muito próximo ao conceituado por Day (2001, 2005)

quanto de outros professores, com ênfase nas aprendizagens (MIZUKHAMI, 2002)

resultantes das interações e negociações que estabelecia com os estudantes no contexto

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imediato da sala de aula. De forma que é possível afirmar que, resguardadas proporções, que

Helena vem elaborando teorias no contexto imediato da sala de aula (SCHONFELD, 1988).

Por seu turno, Safo também ressalta, ante a necessidade de compreender e trazer para

o contexto escolar aspectos, experiências elaboradas pelos alunos nos respectivos contextos,

percepções de que novos modos, novas maneiras de ser, novas aprendizagens, precisam ser

inventadas mediadas por diálogos e sustentadas por parcerias.

Eu acredito que na minha experiência... até agora, que é pouca...né, mas

acho que o mais importante no meu papel de professora sempre foi buscar

entender aquilo que... o que que o meu aluno pode... ter... além daquilo que

ensi... a sala de aula pode trazer pra ele. Tentar conciliar um pouco... eu to

aprendendo também dessa dificuldade de conseguir conciliar aquilo que a

escola deveria passar com aquilo que ele tem. Então assim, pra mim ainda é

uma construção... porque eles gostam de um tipo de coisa que, às vezes, a

escola não trabalha. Não sei se felizmente, se felizmente... porque se não a

gente fica muito, com o mundo muito fechado, né, então a gente tem que

melho... abri um leque pra eles. E aí, eu to nessa... nessa... briga aí, interna,

de vez em quando, às vezes, dá certo, às vezes, dá errado. Às vezes, eu

venho com uma coisa preparada, vejo que não dá, não deu certo, então, eu

tento me reinventar. E aí, a gente ta levando... isso, o meu... a minha

dificuldade é isso mesmo: trazer esse contexto que eles têm, de fora da

escola pra dentro da escola e tentar mesclar as duas coisas.[...] minhas

parcerias em sala de aula são os meus colegas de linguagem e... tudo que eu

vou fazer com os meus alunos a gente sempre tem um diálogo porque... até

onde eu posso ir? Até onde eu quero que eles vão? Não crio um padrão,

porque não tem como ter pra... padrão pra eles. Lógico que tem que aqueles

que vão além daquilo que eu esperava, e, aqueles que não chegam na meta...

na metade do caminho. Mas, assim, como eu tenho essa... inexperiência

também de sala de aula porque eu acredito que cinco anos é muito pouco, eu

acho que é muito pouco, três anos, seja o quanto for... então, eu busco os

meus colegas. Né, assim... essa interação de tentar esses meios pra poder

chegar no fim. Então, eu tenho uns colegas aqui que já tá há algum tempo

na... no caminho e que eles me ajudam bastante. Então, as minhas parcerias

são com os meus alunos e com os meus colegas da linguagem.

(ENTREVISTA NARRATIVA, SAFO, 2014)

Assim, Safo assume o compromisso de promover o encontro entre os conhecimentos

escolarizados e os saberes de experiência feitos. Neste encontro almeja que a escola vá além

das formalidades curriculares e, epistemologicamente se abra ao novo trazido pelos alunos.

Não advoga em favor do espontaneísmo pragmático, tampouco se deixa enredar por planos

inflexíveis. Ao “tentar conciliar o que a escola deveria passar com aquilo que os alunos

trazem”, Safo se predispõe a rever continua e coletivamente o modo como vem fazendo e se

fazendo. Compreende os riscos envolvidos e assume com sinceridade que, “ás vezes dá certo,

às vezes”. Entretanto, tão complexa tarefa para ser levado ao cabo e satisfatoriamente

necessita estar escudada em dupla parceira, a saber: os alunos e os colegas de linguagem.

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Potencializada pelo experienciar social e coletivo, a docente se reinventa para fazer frente aos

desafios que contextualmente se lhe apresentam.

É... a gente fica... a gente idealiza uma coisa, eu mesma, eu imaginava,

idealizava aquilo que se da sociedade... o aluno vai absorver e, ta tudo muito

bom! (Risos) E aí, vo... passava... na sala de aula: uma escola onde você

vai, lá você vai expor conhecimento cê se depara com alunos que não

querem estudar, com aluno que quer estudar muito e tem o aluno que não

sabe nem o que que ele tá fazendo ali. E aí, você tem que conciliar tudo pra

esses três... grupos de pessoas. Então é... você se reinventa, às vezes, aquilo

que eu faço pra uma turma não dá certo pra outra. Esse ano mesmo, eu

peguei uma turma, duas tur... dois... duas turmas diferentes... [...] Sétimos

anos e oitavos anos. Falei: “Beleza! (com um leve bater de palmas) Muito

fácil! Porque eu vou trabalhar com cinco turmas, mas os conteúdos vão ser

basicamente os mesmos. Muito semelhantes entre uma sala e outra.” Só que

não dá certo, porque cada turma tem seu tempo. Pra cada uma eu tinha que

fazer um tipo de trabalho. Pra cada uma eu tinha que ser uma professora

diferente. Então, esse reinventar é constante. Totalmente constante.

(ENTREVISTA NARRATIVA, SAFO, 2014).

Principiantes em contextos plurais que requerem um reinventar constante, os

participantes da pesquisa lidam com a complexidade que envolve a ação docente e cada uma,

a sua maneira, vai inventando maneiras de fazer e processando modos de ser, diretamente

relacionadas aos contextos das escolas onde atuam.

Assim, o modo como vêm se tornando docentes é uma mescla entre as disposições e

elaborações pessoais e os limites e possibilidades que vivenciam nos respectivos locais de

trabalho, fato marcado também na narrativa de Heitor.

2.2 A docência como comprometimento pessoal e opção profissional: trajetória de Heitor

Heitor ingressou via concurso público na rede estadual de educação em 2014, à época

que concedeu a entrevista ministrava aulas de Língua Portuguesa em uma escola de educação

básica localizada em um bairro periférico de Várzea Grande e concebida como modelo

arquitetônico em âmbito estadual: ampla, arejada, dois pisos, jardins e uma convidativa

piscina localizada a jusante da quadra poliesportiva com cobertura reluzente.

O instante que inicialmente referenda as narrativas entretecidas na conversação entre o

pesquisador e Heitor remete a um fim de tarde no qual o calor fora arrefecido por chuviscos

contínuos, treze de dezembro de 2014. Fim de aulas do período vespertino, inicio a conversa,

agradecendo ao professor por se dispor a participar da pesquisa. Esclareço alguns aspectos

conceituais e metodológicos concernentes a ela e, ao justificar o porquê desta escolha,

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apresento em breves pinceladas, a narrativa da minha própria constituição como docente.

Espontaneamente, o professor começa a falar acerca de algumas percepções que vem

elaborando no processo inicial de desenvolvimento profissional em contexto institucional da

Rede Estadual. Escuto-o por um momento, antes de pedir permissão para gravar em áudio.

Desponta nas narrativas de Heitor, desde o princípio, a chegada à docência, não por acaso,

mas como opção.

Primeiramente Edson, eu que agradeço pela oportunidade de estar

contribuindo, de alguma forma, em tua pesquisa, é... eu sempre...sempre

gostei da... da área da Linguagem, mas a minha primeira... a primeira

tendência, meu primeiro foco era mais a... a parte do... do jornalismo a

princípio, mas na minha cidade não tinha ainda o curso de jornalismo e, eu

optei por fazer Letras que é uma... uma coisa que me seduziu também, a...

anteriormente eu já havia iniciado um curso de assessor executivo que

também tinha uma parte que é uma parte administrativa; mesclada com a

parte da linguagem também, juntamente com a comunicação e organização

de... de eventos e... eu pude fazer as duas faculdades ao mesmo tempo,

então eu fiz o curso de assessor executivo e fiz a faculdade de Letras na

UFMT. É... a partir desse... desse momento, após a conclusão eu...eu... na

minha experiência profissional eu peguei algumas substituições é...na...

algumas escolas públicas, mas eu comecei a me reconhecer como

profissional é... é... foi quando eu ingressei no SENAI. No SENAI é... que

eu pude ser um professor de uma maneira prazerosa porque eu... tava que

aqui... aquilo, aquela minha didática ela tava voltada completamente para o

mercado de trabalho e, o perfil também que eu peguei naquela época era um

perfil de pessoas muito interessadas justamente por esse motivo que era esse

foco para o mercado de trabalho. (ENTREVISTA NARRATIVA, HEITOR,

2014).

Tempo, lugar e pessoas em interação na narrativa de Heitor, os três aspectos estão

entrelaçados. A escolha dos cursos que frequentaria na universidade é contigenciada desde o

princípio pela predileção pela Área da Linguagem. A dimensão pessoal, a sujetividade

geradora dos sonhos, na qual planos são projetados remete à profissionalidade, ambas se

articulam quando Heitor se enuncia. Do mesmo modo, a atuação como professor no SENAI,

embora não seja o momento em que o narrador tenha se iniciado na docência, inscreve na

percepção de si o reconhecimento como professor, e, este advento configura um aspecto de

identidade Compreendida esta última não como um atributo, mas como uma realidade que

evolui (MARCELO, 2010). Todavia, uma vez tendo reconhecido a si mesmo como professor

no âmbito de uma organização voltada inteiramente para as demandas profissionalizantes e

mercadológicas como reconhecer-se em um contexto marcadamente diferente no que

concerne a pessoas, perspectivas e modos de interação?

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É claro que... é... é... esse mercado entendo que... existe uma diferença entre

a matéria que você dá para o ensino regular e o ensino que você dá pro...

pro... a matéria que você dá pro ensino profissionalizante, mas o que me

interessou bastante é... nessa linha foi que eu pude é... eleger é... na ... na

disciplina é... instrumentos que realmente eram instrumentos de uso diário,

é... de uso... no campo profissional e... e isso fazia com que as pessoas que

estavam ali tivessem a certeza que realmente aquilo iria ser utilizado e, como

retorno vinha todo aquela atenção, vinha toda aque...aquela expectativa e,

isso se fazia uma relação é... muito agradável professor e alunos. É claro que

com os devidos problemas, mas nada que... que pudesse ser algo

preocupante. Aí o segundo (enfaticamente) momento é... depois de algum

tempo, é... nessa linha do ensino profissionalizante eu... eu... fui chamado

pro concurso que eu já havia feito e... tive uma... (pausa mais longa) uma

primeira experiência no ensino regular nas... na escola do Estado, foi a única

escola que eu... que eu tive; e, aí eu me deparei com algumas...

(ENTREVISTA NARRATIVA, HEITOR, 2014).

Pese o fato de estar se iniciando na docência, Heitor parece ter percebido celeremente

alguns princípios da andragogia (MARCELO, 1999): adultos constroem expectativas próprias

de aprendizagem, mobilizam para transformarem o conhecimento em impactos positivos na

trajetória de formação, principalmente quando referida a profissão; a partir destes princípios

pode conceber e levar a cabo uma didática que sustentou não somente a autoridade dele, ainda

que fosse um jovem docente, como também equalizou as relações em sala de aula. No

entanto, esta mesma didática ainda que reorganizada parece não ter encontrada a mesma

retumbância no novo contexto institucional para o qual o professor acorrera ao assumir o

concurso público na escola estadual.

Eu fui ver realmente é...ter algumas dificuldades quando eu iniciei no Ensino

Regular; na minha primeira experiência enquanto professor de Língua

Portuguesa lotado na... em uma escola do Estado. É... falando um pouquinho

das dificuldades está essencialmente elencada à... à educação dos alunos, é

uma educação que eu digo é... que é uma educação de repente, assim uma

educação familiar, mas assim, nós estamos diante de uma clientela das que

eu tive experiência, uma clientela extremamente dispersa, extremamente

desatenciosa, extremamente... abusada! E, isso, é... isso implica diretamente

na... no ensino-aprendizagem porque você não consegue é... realmente é... é

dissipar o conhecimento, é... produzir o conhecimento, se você não tem esta

participação dupla professor e aluno e, quando você se vê de repente numa

sala e... não existe uma cooperação na sua... maior número de pessoas, você

se vê, às vezes rodeando em torno de uma matéria e, aí você se vê no

seguinte dilema: ou você tem o entendimento cronológico de que aquilo foi

dado e você segue adiante ou você tem o entendimento qualitativo e você

começa a re-buscar aquilo e aí você não vai sair do lugar; sempre repetindo

aquele mesmo ponto pra... até você ficar satisfeito de que aquela matéria foi

entendida por todos. (HEITOR, ENTREVISTA, 2014).

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Alterado o contexto institucional, público adolescente com perspectivas e expectativas

outras, agora muito dispersas e, o caminho que o professor principiava a tracejar, parece

conduzi-lo a um alcantilado. Este público diversamente dos adultos não está mobilizado para

aprender e muitas vezes, minimiza ou afronta deliberadamente a autoridade docente.

Emergem no horizonte existencial do docente em início de desenvolvimento profissional

dificuldades marcadamente advindas de um choque cultural que, aponta para aspectos sociais

significativos no contexto referido, interfere enormemente nas ações do professor principiante

com os alunos e, em última instância, gera sofrimentos, exasperação e até obsta a qualidade

nas aprendizagens. Heitor destaca ao narrar estas experiências causas externas à escola, mas a

escola é parte constituinte e integrada a este contexto múltiplo, diverso, desconexo, híbrido. O

relacional aponta em outras direções, as quais vão de encontro às perspectivas mais solidárias

que o jovem professor almejava e aprendera a estabelecer com os alunos em outro contexto.

Aqui, o interno e o externo se mesclam, confundem-se e desafiam o principiante na docência

a andar por outras paragens.

Pois bem, eu... eu me vi nestes seguintes problemas: entre avançar com o

conteúdo ou repetir aquele conteúdo quanto vezes forem necessárias até que

finalmente ficasse satisfeito é... que uma maior parte da... dos estudantes

teriam entendido. Só que aí... a gente tem um problema que é um problema

do tempo, problema da sequência das disciplinas que, ás vezes, até o próprio

aluno te cobra. “Ué, nós não vamos avançar?” E aí, você se... pergunta :

“mas, como que nós vamos avançar sendo que a gente ainda não finalizou

esse primeiro conteúdo que vai ser muito determinante pra esse avanço e vai

ser determinante para você faça uso nas demais etapas?” (ENTREVISTA

NARRATIVA, HEITOR, 2014).

O enunciado do jovem professor no processo inicial de desenvolvimento profissional

traz à tona conflitos e desafios de grande monta para qualquer profissional da educação

comprometido com a profissão. Ora, o foco do dizer em questão remete a uma dimensão

fundamental do sentido de ser nos meandros da docência, qual seja: como compatibilizar o

ensino de modo que os alunos aprendam; isto considerada toda a heterogeneidade, advinda da

condição histórico-social na qual se conformam os múltiplos percursos pessoais daqueles a

quem se almeja a ajudar a aprender. Lidar com a necessidade de que os alunos compreendam

conteúdos a partir da imprescindível consideração de saberes e desconhecimentos advindos de

contextos tão diversos que conformam formações tão únicas, pessoalidades inconfundíveis,

talvez, seja a maior tarefa com a qual os professores se veem às voltas cotidianamente. Não

podem se eximir de buscar continuamente soluções sempre provisórias, dado o próprio devir

histórico, sob pena de jamais se constituírem professores. Como se não bastasse o tempo

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(VIEIRA, 2015) sob a égide do qual se instituem as ações docentes, no mais das vezes, não

comporta as temporalidades necessárias e requeridas pelos ritmos em que se instaura a

multiculturalidade (HALL, 2005) que caracteriza o público que acorre à escola pública.

Assim, a temática concernente ao tempo se revela fundamental quando concebida a ideia de

que o desenvolvimento profissional docente mescla várias esferas existenciais a diversos

contextos plurais, híbridos. Não obstante, a percepção do tempo como um continuum único,

a-histórico e exógeno, porquanto igual para todos, pode obstaculizar o desenvolvimento

profissional docente, posto que conduz a conceitos, práticas, normatizações e políticas nas

quais as múltiplas temporalidades pessoais, porquanto tempos de kairós, tempos para dar

sentidos e conjeturar novas possibilidades no existir, são devorados pelo tempo cronológico,

pelos sincronizadores externos, mecânicos. Descompasso que pode levar à esquizocronia

(PINEAU, 2003).

De um professor principiante não se deveria esperar que lidasse com questões tão

complexas, sozinho. De modo que, para que o professor possa se potencializar desde o

processo inicial de desenvolvimento profissional é que se concebe a profissão professor como

eminentemente relacional (DAY, 2005). Em situações como a que fora narrada por Heitor é

de se supor que o docente possa encontrar apoio equalizado e equalizador em uma rede de

parceiros instituídos desde a escola: equipe gestora, pares com maior tempo e experiências

potencializadoras. Mas, que não se restrinjam ao interior da escola, conflitos que, de certo

modo ajudam a constituir as identidades docentes, deveriam ser pensados por comunidades ou

coletivos de aprendizagem e também por redes interinstitucionais, capazes de tornarem

possível a instauração de diálogos voltados a questões vivenciadas diariamente pelos

professores (DAY, 2005; NÓVOA , 2009). No entanto, neste caso, o docente, ainda que no

processo inicial de desenvolvimento profissional parece ter empreendido uma busca solitária;

voltou a burilar o baú da memória e encontrou em experiências recentes modos de fazer frente

ao problema que naquele contexto imediato da sala de aula se lhe apresentava.

E aí, eu venho...eu parei pra pensar nisso, só que eu já tinha uma experiência

antes e... e, eu sempre introduzi, assim como eu fazia no SENAI, eu sempre

introduzi a... o meu conteúdo, assim antes de mais nada, falando a respeito

dos ruídos da comunicação; tentando nesse...nessa primeira apresentação

diante da turma, você falar a respeito da importância do ato de... falar e

ouvir. E, essa... e, essa adequação no momento em que existe a vez de... de...

se falar e que existe a vez de se ouvir. Falar... é... introduzir desta maneira

falando a respeito dos ruídos da comunicação, como o ruído da comunicação

(enfático) ele prejudica o entendimento da disciplina. Falando a respeito

dessa ponte que é uma ponte importante entre A e B, do locutor e do

interlocutor e que é como se fosse um jogo de pingue-pongue, ou seja tem

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que ter uma certa ordem pra que o jogo aconteça, o jogo se estabeleça e que,

é necessário a cooperação de ambas as partes. É... eu acho que eu fui, nessa

experiência, sempre de introduzir essa parte da...da... dos ruídos da

comunicação, é... propunha, propõe-se o trabalho é... pra eles... é...

verificarem por eles mesmos, eles poderem levantar o quanto é prejudicial

pro... pro aprendizado [...]. (ENTREVISTA NARRATIVA, HEITOR, 2014).

Lançado a um novo contexto institucional, ao se deparar com a complexidade

constituída por desafios fundamentais na docência Heitor rememora e encontra em

experiências pregressas uma possibilidade de fazer face aos desafios do tempo presente,

entretanto o presente atualiza e reconstrói o passado. Às exigências apresentadas pelo agora as

aprendizagens laboradas outrora parece não terem sido suficientes.

[...] eu acho que... deu pra avançar, e muito é... em partes... mas, não sei por

que é diferente do... das turmas que eu já tinha tido esse efeito não foi ao

longo prazo, pelo menos por um prazo interessante, foi curtíssimo prazo, ou

seja, a gente finalizava um conteúdo que falava a respeito do... da

importância do ato de se escutar, do ato de se saber expressar, falávamos a

respeito do prejuízo que se tinha quando existiam os ruídos da comunicação

que são as interferências nas suas mais diversas vertentes, no entanto

(ênfase) por mais que tenha se atestado através dos trabalhos, durante as

propostas através inclusive da avaliação, que é prejudicial, no momento, no

dia a dia, a gente vê que nas atitudes que esse... esse conteúdo ele não foi

assimilado. (ENTREVISTA NARRATIVA HEITOR, 2014).

O professor parece cioso de que o diálogo, compreendido como um encontro em que

os envolvidos não saem como chegaram (GADAMER, 2002) e, tendo buscado elaborar junto

aos alunos um contrato didático em perspectiva dialógica, constata que a mudança não

sucedida nas atitudes daqueles a quem toma por educandos, é sinal de que não lograram

compreender o que se predispusera ajudá-los a aprender. Credita, à incapacidade de uma

escuta equalizadora a não aprendizagem dos conteúdos e destaca as limitações dos alunos no

que concerne à interpretação textual, por conseguinte à dificuldade de construir textos, ainda

que edificados nos contextos em que vivem.

Ou seja, ainda existia muitas das... das conversas paralelas, dos fones de

ouvido, dos celulares que são considerados ruídos porque atrapalham, né...

eles quebram aquela... aquela ponte que você quer fazer da... da

comunicação, ou seja, a partir do momento que você coloca um fone de

ouvido, a partir do momento que você dispersa, a partir do momento que

vem aquela musiquinha na cabeça, a partir do momento que existe uma

conversa paralela entre os alunos você acaba perdendo seu foco, perdendo

seu foco vai haver muita interferência, havendo uma interferência você não

vai assimilar o conteúdo. (...) O resultado disso Edson, acaba sendo um...

uma turma é... que não consegue realmente é... retirar do texto ah... o básico

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da sua interpretação... é o básico mesmo da compreensão desse texto, então

nós vemos uma leitura muito superficial, uma leitura que não... que não tem

uma reflexão ou que incita um intertexto, esse intertexto às vezes é um

intertexto muito simples, é um intertexto da sua vivência, um intertexto que

tá no seu dia-a-dia; mas que, às vezes, a aluno não consegue fazer essa

ponte, não consegue refletir é... essa é... quando dois textos e a sua vida tem

algo em comum, não consegue atribuir uma semelhança de um pra o outro e

poder formular isso, expressar isso através das palavras [...]. (ENTREVISTA

NARRATIVA, HEITOR, 2014).

Comprometido com a aprendizagem dos alunos, Heitor insiste, a seu modo, em

mobilizá-los para que se tornem melhores aprendizes. Centra-se inteiramente neles, busca

persuadi-los de que necessitam superar os limites que não lhes permite concentrarem-se em

aprender.

Então, eu creio que isso tudo se dá por conta principalmente de um ruído que

até esse ruído tem nome que é o chamado ruído interno, que é o ruído que

você mesmo provoca. Eu acho que... o maior desafio, a princípio, foi esse

de... convencer o... os alunos, os estudantes que existe um ruído, um tipo de

ruído que é esse ruído interno que só depende dele... pra poder se dissipar, só

depende dele mesmo pra ele poder evitar esse tipo de ruído e, às vezes, você

dizendo não... você não consegue e, adolescente, ele tem uma tendência

muito estranha de tentar atribuir é... a culpa em algo que é ao seu redor, mas

nunca... dificilmente enxergando a si próprio. E, quando você faz um

trabalho todo... cê vai eliminando as coisas que estão ao redor e que leva ele

a entender que realmente aquilo...aquele problema vem dele, de quando ele

não abre a porta para poder realmente receber as informações aí...aí...aí é o

momento que você tá muito próximo é... de... da grande mágica ou não

(enfático) porque, às vezes, é... você até acha que conseguiu atingir

realmente é... o... o estudante com essa informação, mas a prática, ela vem

pra... reverter tudo. É uma dúvida! É uma dúvida que eu tenho! É... ou seja,

eu tenho trilhado, eu trilhei esses caminhos, mas quando eu cheguei num...

num momento de comprovar essa... o resultado dessa... dessa prática, dessa...

dessa proposta... realmente eu fiquei... é... surpreso por não ter atingido o

mínimo de pessoas que eu gostaria de ter atingido! Não estou dizendo na

totalidade, eu observei que em algum... alguns trabalhos muitos

compreenderam, mas o número que eu gostaria, que eu ficaria satisfeito

não... não foi... não foi atingido. Então, nesse... esse é um problema tive

sucesso por um lado, por outro lado é... eu cai nessa barreira, que é um

barreira, eu tenho por mim que é uma barreira que vai muito além dos muros

da escola, é uma... é algo que você quer implantar em curto período de

tempo e, você tem todas as técnicas pra isso, você segue todas as etapas pra

isso, no entanto você tenta confrontar algo é... que... foi produzido com um

tempo muito maior, foi produzido desde quando a criança saiu, é... saiu da

maternidade. Então... eu acredito que... um pouco também é... de um

amadurecimento, de uma educação que vem justamente da família. É... e, eu

atestei que muitas daquelas pessoinhas que eu... que eu atingia através dessa

proposta foram pessoas que tiveram uma... um acompanhamento é... são

pessoas que tem um acompanhamento da família, são pessoas que têm um...

um básico, um mínimo de instrução familiar e que, no mínimo se permite

(ênfase ao pronunciar o termo) é... ser orientado; porque uma das barreiras

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também que eu tenho visto é uma certa revolta geral nessa... nessa clientela

que...é a não aceitação das coisas boas, é uma... uma barreira que se impõe.

É... como se fosse uma revolta e, essa revolta com certeza não vem da

escola, não pode ser da escola porque a escola, ela é muito flexível e, ela

adota um... uma postura muito de... acolhimento; eu acredito que... um

pouco desse bloqueio se vem de uma revolta que é... de algo que não foi

resol... resolvido na... na... fora da escola e que, a escola acaba sendo um...

um... uma maneira de... dessa pessoa soltar um pouco dessa revolta que de

repente não consiga fazer isso em casa ou em algum outro lugar... e, assim

por consequência, nós professores, por consequência, equipe... equipe

gestora, equipe de pátio, e, demais acabam sofrendo um pouco do... dessa...

dessa cultura aí, que a gente ainda tá tentando entender e espero

compreender também ( riso discreto). Acho que a gente pode dar uma

pausa... Risos. (ENTREVISTA NARRATIVA HEITOR, 2014).

Premido pela urgência do contexto imediato da sala de aula, o participante busca nos

conhecimentos advindos de outros contextos maneiras que o ajudem no desafio de mediar os

conhecimentos que desde sua perspectiva os alunos necessitavam construir. Aqui,

conhecimentos e crenças se movem juntamente no caminho em que o docente vem se

constituindo. Ele próprio como principiante parece mover-se em um terreno pantanoso. Ora,

seguro de que labora em uma trilha que o afaste do abismo, ora percebe que caminhou rumo a

lugar nenhum e se surpreende. Às vezes, parece inteiramente focado na aprendizagem, outras

no ensino. Neste entremeio, percebe que para ajudar alguém a aprender somente as técnicas

não são condições bastantes. Pairam outras questões que complexificam a ação docente e

inserem o professor em uma rede entretecida socialmente; referente a este fato, Lee Sulhman

(1988), insiste há décadas que é preciso considerar tanto na formação de professores, quanto

no ingresso na docência, uma base de conhecimento da e para a docência. Para pesquisador,

não basta o conhecimento do conteúdo para ajudar alguém a aprender, embora conhecer os

conceitos disciplinares, bem como os da área a que se vincula, seja fundamental à docência,

Sulhman destaca outros saberes sem os quais o processo de ensinar e de aprender não

acontece, estes denomina pedagógicos e reitera que são fundamentais ao conceitua como

sendo raciocínio pedagógico, conceito que, desde a perspectiva delineada neste texto,

resguardadas as devidas especificidades teóricas, aproximo ao conceito de aprendizagem da

docência e de teoria em contexto.

Entrementes, ao se debruçar sobre estes infindos fios que enredam a escola à

comunidade, Heitor narra imerso em um pensar que vem construindo a partir das percepções

vivenciadas neste novo contexto, interrupções e retomadas marcam no enunciado do narrador

a intensidade das experiências (LARROSA, 2014) que o perpassam nesta paisagem, de pouco

em pouco, descoberta. Está tentando entender os sentidos que sustem o agir dos alunos; vasto,

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importante e complexo caminhar perscrutará no horizonte de perspectivas e, ele está cônscio

disto. Embora principiante, revela que não quer seguir por qualquer caminho pavimentado e

sedutor, nega-se a pensar pensamento pensado, por mais caústicos que lhe sejam os conflitos

enfrentados na escola pública.

[...] eu tenho visto que alguns professores, eles têm uma maneira de lidar

com essa clientela que nós temos aqui, só que... é uma maneira que, por mais

que tenha um certo domínio, é uma maneira que eu não... que eu não

gostaria de repetir, não que eu não consiga, eu conseguiria, até conseguiria,

mas que eu não gostaria de repetir, é... eu acho que, às vezes, a gente se

adapta à realidade do aluno, mas... de uma maneira que eu não acho que seja

vantajosa. É... eu vou citar um exemplo, um professor que eu conheço que

tem uma turma bastante... que fica bastante silenciosa, durante suas aulas...

mas eu também sei que ele age com uma bruta... brutalidade muito grande

é... fala de igual pra igual quando o aluno é bruto e... e, ele se exaspera e, aí

ele consegue esse domínio. Eu... particularmente, é... eu acho que essa é

uma maneira muito rápida de você resolver os problemas que nós temos na

sala de aula. E, se a gente acaba repetindo um discurso que é um discurso

violento, nós enquanto profissionais da educação, a gente acaba perdendo

um pouco da nossa razão de ser enquanto educadores. E, se eu for repetir

aquilo que de repente o... o alu... o aluno, o estudante tem na sua casa que, ás

vezes, a única maneira dele respeitar o pai ou a mãe é com a brutalidade, é

com o xingamento, com o tapa, e, se ele ter isso reproduzido na sala de aula

através de um professor, não tem como eu sentir que eu to dando pra ele uma

opção diferenciada do seu comportamento, que eu to dando a ele a

oportunidade de ver que existe uma outra maneira de ele ser educado, que

não seja pela brutalidade, que não seja... é... pelo xingamento, que não seja

pela aquela bateção na mesa... ou, às vezes, tem... tem professor que atira

apagador na cabeça do aluno, existe isso! E, às vezes, isso dá certo, dá certo

pro controle da sala, mas será que dá certo pra você ...é... se tornar um

espelho? Que é isso que o estudante tem que ter na sala de aula! Espelho de

uma educação melhor! Então, eu acho que não, pra mim particularmente, eu

acredito que não. (ENTREVISTA NARRATIVA, HEITOR, 2014).

Docentes em processo inicial de desenvolvimento profissional se veem diante de

desafios inusitados para os quais por mais que tenham frequentado boas faculdades, não têm

um repertório de possíveis atuações previamente definidos. Destarte, lançar um professor

principiante a uma sala de aula sem a instituição de políticas públicas oficiais que sustentem

uma rede de parcerias capazes de potencializar o continuum de desenvolvimento deste

profissional é um grave problema, gerador de infindos dilemas que tornam o ingresso na

carreira por si tão complexo, em aventura, marcada muitas vezes, por sofrimento, angústia,

doenças, abandonos; como também criatividade, invenção, superação. Neste sentido, Vaillant

e Marcelo (2012) declaram que o conceito de desenvolvimento profissional ao congregar as

ideias de evolução e continuidade supera a justaposição entre formação inicial e a

aperfeiçoamento docente e, desde esta óptica, o termo compreende também atitude de

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constante indagação, proposição de perguntas, percepção de problemas e tentativas de

soluções. Neste sentido, declaro que nos limites deste texto de tese, o termo políticas deve-se

compreender não somente como denominação às políticas públicas oficiais, mas também

como um conceito que atravessa a experienciação dos professores, inclusive os principiantes

e, ao ser apropriada por eles se configura como um dos elementos de grande impacto nos

processos de constituição docente. De maneira que a ausência de uma política oficial de

inserção à docência, por vezes, dificulta enormemente esse processo de constituição, não

obstante, em alguns contextos se insinuam outras possibilidades que também se configuram

como políticas, mas com um alcance reduzido não chegam a se instaurar em outros contextos,

como por exemplo, aquele em que Heitor atuava, à época da entrevista.

Assim, as políticas oficiais de Estado, no que concerne à inserção docente inexistem

em Mato Grosso, até o momento. Todavia, não podem ser concebidas com fulcro na

homogenização, antes deveriam ser pensadas e instituídas a partir dos sentidos elaborados

contextualmente por estes profissionais ao longo dos respectivos percursos de formação, bem

como sustentadas pelas experiências (CONTRERAS, 2016; DEWEY, 2010) emergidas do

modo como relações são negociadas contextualmente e pela maneira como os professores

principiantes lidam com a complexidade em tornar-se professor. Sustenta-me nesta

perspectiva de política definição de Finger (1988) ao conceituar o termo como epifenômeno;

definição que assumo aqui, por possibilitar situar nos entremeios das narrativas pessoais e

profissionais, a maneira particular como cada docente elabora sentidos ao instituído

oficialmente ou à ausência do que lá deveria estar. Esta se configura como relevante

percepção elaborada no decorrer desta pesquisa e adquire destaque quando consideradas as

tessituras compostas a partir dos sentidos auscultados no narrar de professores principiantes.

No longo processo que remete, conforme venho destacando aqui, a tempos das

primeiras experiências escolarizadas (BUENO, 2002), o principiante vai aprendendo a ser

docente e a rede de relações desempenha um papel crucial (DAY, 2005). Alunos, pares, a

equipe gestora, perspectivas pessoais e profissionais, culturas vigentes no contexto escolar,

dentre outros, são fatores decisivos. De modo que cumpre aclarar que no âmbito desta

pesquisa, cujos participantes são professores principiantes, a inserção à docência é concebida

com fulcro nos estudos de Marcelo (2007) como uma das etapas essenciais do

desenvolvimento profissional docente, decorre desta percepção, a insistência em declarar que,

sem pretensões homogeinizadoras, a existência de políticas oficiais de inserção à docência é

crucial. A etapa corresponde à inserção docente, segundo o professor e pesquisador de Sevilha

se inicia logo nos primeiros contatos com a realidade da escola e se estende ao longo de anos,

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assim, estes primeiros contatos com a realidade escolar além de constituírem uma fase crucial

para desenvolvimento profissional docente, o qual ocorre ao longo de toda a carreira,

vinculam-se a outros aspectos vigentes na educação formal, como: qualidade do ensino

ofertado aos alunos, envolvimento com a profissão e, em última instância, à caracterização da

docência como profissão. Neste sentido, Francisco Imbernón (2011) esclarece que é preciso

entender o desenvolvimento profissional para além da formação e atrelar a este, diversos

fatores que perpassam a profissão docente: salários, condições de trabalho, relações de poder

no contexto da escola, as possibilidades de evoluir dentro da carreira, dentro outros, além é

claro da formação permanente que cada professor vai realizando ao longo da vida

profissional.

Porquanto, quando se fala no âmbito deste texto, em desenvolvimento profissional

trata-se do reconhecimento de uma especificidade que marca a docência como profissão, de

modo que nos contextos onde atuam, os professores sejam reconhecidos como agentes

sociais, cujas trajetórias devem ser compreendidas em um continuum de desenvolvimento

histórica e contextualmente engendrado. Logo, é possível afirmar que o desenvolvimento

profissional docente vincula-se à aprendizagem da docência, relaciona-se ao trabalho; envolve

as trajetórias profissionais, bem como pressupõe a aportunização de experiências que

fortalecem a prática e, no âmbito da formação de professores, incide sobre as pessoas, não

sobre programas (VAILLANT, 2012; MARCELO, 2012).

Destarte, ser professor engendra toda uma gama de aspectos que inscrevem o docente

em uma rede histórica e relacional, na qual o percurso pessoal e a trajetória profissional se

entrelaçam inextricavelmente (NÓVOA, 2009). Assim, o tornar-se professor configura

processos complexos que remetem a variados contextos experienciados ao longo de uma

trajetória. Os lugares, paisagens e pessoas pelas quais se passa e/ou com as quais se interatua

deixam marcas que paulatinamente vão constituindo o jeito de ser de cada docente.

Mormente, o docente principiante, no âmbito deste estudo, aquele que ingressou na carreira

em até cinco anos (MARCELO, 2010; NÓVOA, 1995).

O entendimento de que o processo de inserção profissional de professores

principiantes ocorre no âmbito de trajetórias inscritas em um movimento contínuo de

evolução e desenvolvimento corrobora para a composição de sentidos apresentados nesta tese,

à medida que permitem vicejar que no desenvolvimento profissional docente estão

implicados, por meio de interações, os contextos: espacial e temporal. Referido o primeiro ao

lugar social, organizativo e cultural, onde os docentes atuam e que está constituído de

múltiplas interações sociais, que envolvem companheiros, pais, estudantes, gestores, dentre

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outros. O segundo se refere à dimensão temporal ou biográfica que, a exemplo do primeiro,

exerce forte influência na atitude que se adota ante o desenvolvimento profissional

(MARCELO, 2012; VAILLANT, 2012). De modo que, desde esta perspectiva de

desenvolvimento, tanto as condições de trabalho quanto a atitude e disposições de cada pessoa

impactam na inserção profissional docente, facultando ou inibindo o desenvolvimento

profissional dos professores, incluídos, os principiantes, nos respectivos processos de

constituição docente.

2.3 A docência no entrelugar: trajetória de Félix

A conceituação de linguagem como moradas nas quais as pessoas se constituem,

conforme concebida nesta tese, ajuda na compreensão dos dilemas narrados por Félix,

experiências elaboradas ao longo de um percurso. Deste professor principiante, foi exigido

afastar-se da própria morada, sem, contudo, deixar de residir nela. E, simultaneamente,

perscrutar aquilo que é específico de outras moradas, sem sobreposição valorativa. Atitude

que em alguma medida é requerida de todos os docentes, pois, este é um dos aspectos que se

nos apresenta como ponto crucial para o desenvolvimento pessoal e profissional docente na

contemporaneidade. A isto, ou algo próximo, Lévinas (2005) conceituou como alteridade;

Canen; Santos (2009) qualificam este tipo de atitude como multicultural. Por seu turno Day

(2005), denomina conviviabilidade; ao passo que Nóvoa (2016) proclama que são disposições

requeridas dos docentes contemporaneamente nos contextos institucionais e respectivas

comunidades de aprendizagem. O fato é que, neste entrelugar (Hall, 2005), em termos

identitários, pessoais e institucionais, instaurado nas interfaces das moradas erigidas na

linguagem e sustentadas pelo diálogo, ou pela ausência dele, ao menos com a autenticidade

enunciada por Gadamer (2002) se encontra o professor Félix, cuja trajetória, agora passo a

narrar.

Yo vine de Perú, ya casi diez años, a ver, doce años que estoy en Brasil. Ahí,

yo vine aquí… en busca de una oportunidad, hum. [....] Ahí, yo vine en

busca de una oportunidad. [...]Yo entré en la universidad en dos mil cinco.

Yo vine aquí en abril de dos mil cuatro. Yo vine en abril de dos mil cinco…

en julio, yo entré en la universidad. Entonces para mí… yo había aprendido

poco portugués y, el portugués que yo había aprendido era difícil. Porque

yo había aprendido aquel Portugués de la calle. De la calle, ¿entiendes?

Aquel portugués empírico que habla el… pessoal de la calle y todo.

[...]Entonces pa mí, cuando yo entré fue un choque tremendo. Oh por… yo

te dije, yo vine aquí a Brasil… a superarme y, yo vi que en Brasil tiene

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bastante mano de obra barata, mas no profesional, entonces, yo quería

ser… ¿mano de obra barata más? Iba ser difícil para mí.

Deja familia, usted deja todo. Yo dice, yo vine a otro país, yo estaba

trabajando en mi país, yo vine aquí pa superarme, para ver la manera…

más suave de trabajar. (FÉLIX, ENTREVISTA, 2014).

Peruano, radicado no Brasil há mais de uma década, o mencionado professor não se

contentava em ser mais uma mão de obra barata no País de origem. Então, migra para a Terra

Tupiniquim em busca de oportunidade, e, ao fazê-lo traz consigo o próprio mundo linguística

e culturalmente engendrado, no entanto, os limites deste mundo, prontamente são alargados

nas novas paisagens que passa a experienciar.

O deslocamento e, o encetar de novas relações em uma nova morada linguística,

cultural, sócio-política, quase sempre constitui um choque. Advindo, sobretudo, dos novos

referenciais, novas pautas culturais, diferentes ou mesmo ausentes na Língua Materna. Não

obstante, diante do choque o docente entrevistado, predispõe-se tenazmente a construir um

entrelugar, nas franjas destes dois mundos, o peruano e o brasileiro, entre os quais passa a

viver. Neste ínterim, quiçá, passe a habitar naquele cenário em que Hall (2003) situa o

conceito de “hibridismo cultural” posto que agora, vivendo no Brasil, enuncia-se como um

estrangeiro, todavia, estando em um lugar ao qual não pertence originalmente, que entanto,

tendo vivido mais de uma década, frequentado faculdade, constituído família, logrado se

tornar servidor público, passa a ter pertencimento. Contudo, sequer conjectura deixar de ser

peruano; de modo que, está em ambos os lugares, mas já não pertence definitivamente, a

nenhum deles. Hibridismo, marcado inclusive na oralidade, que por vezes, mescla ao se

enunciar a Língua Materna, com a Língua Portuguesa e, neste caso, o famigerado portunhol

não configuraria mais um equívoco linguístico, mas, a marca do processo em que vem se

dando a configuração de uma nova identidade pessoal e profissional.

Entonces, para mí que yo quería… ellos a mí me veían como un bicho raro.

Como yo no sabía el idioma. Yo fue… afas… afastando… separando; solo

que después con el transcurrir del tiempo yo comience… yo comience, como

te dijo, dedicarme, estudiar cinco seis horas diarias.

Tenía, oh… tenía que dedicarme ¿por qué? Porque como yo te dijo para mí

era difícil, mis amigos que estaban en la… en la universidad, ellos eran

naturales de aquí, ya sabían la lengua. Y para mí era más difícil porque…

eso es lo que trato de decir a los alumnos de una experiencia mía: el

idioma entra por el oído. El idioma no entra, se tú no prestas atención y no

colocas el oído. Y no haga listos el oído, tú nunca… nunca vas a aprender

otra lengua. No… tiene otra compensación más, que lo mejor que tienes tú:

prestar atención y colocar oído eso lo que yo trato de decir a los

alumnos:“Oh, ¡preste la atención! Coloque el oído!¿Por qué? Porque

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eso… a mí nadie me contó. Yo vine aquí, aprender un idioma de cero.

(FÉLIX, ENTREVISTA, 2014).

A experiência (DEWEY, 2010; LARROSA, 2014) elaborada em virtude do

significativo deslocamento, sucedido, possivelmente por uma série de outros pequenos, mas

não menos significativos deslocamentos contextuais, leva o professor, uma vez, estando

diante dos alunos, que assim como ele, necessitam adentrar e compreender as experiências

elaboradas em torno de uma Língua Estrangeira, a tentar partilhar os sentidos desta

aprendizagem por ele próprio construída. Ao recorrer a esta experiência, almeja

presumivelmente, que os aprendizes, sejam capazes de, também eles se perceberem neste

entrelugar, onde o múltiplo seja possível, necessário, desejável. Ao fazê-lo, evoca – quer

esteja ciente deste fato ou não - a autenticidade dialógica, sustentada pela escuta equalizadora,

como insiste Gadamer (2002, p. 172) para quem no contexto do diálogo vivo: “um escuta o

outro, e, por ter lhe escutado, responde de modo distinto do que faria se o outro não houvesse

perguntado ou falado”.

Imerso em outra cultura, resta ao professor estrangeiro escutar e equalizar ao máximo

esta escuta, para somente então responder com o intuito de caminhar em direção ao outro.

Não lhe resta alternativa, a não ser tentar se guiar pelos preceitos da multiculturalidade

(CANEN, 2009; SANTOS, 2009). Entretanto, o caminho para o multicultural, está repleto de

conflitos, desentendimentos e recomeços, sempre pautado pela busca do autêntico dialogar.

Yo con este… y esto cuaderno aquí un monte de apuntes y leer, leer esto…

tudo. ¿Para qué? Porque yo había venido, yo había viajado prácticamente

un andero y la gente acá dice: “Ah, es extranjero, y, no sé cuál, él no

sabe.” Todo deja. No es ¡fácil pa uno!

[...] En la universidad… todos me miraban porque la materia, yo la leía

toda. Toda (batendo com a mão espalmada sobre a mesa) toda, tudo.

Lengua Portuguesa, uno, dos, tres, todo, lo leía todo. Diez apostillas, diez

me la leía porque tenía seis horas de dedicación. Entonces, yo llegaba allá

en sala de aula y cuando la profesora comenzaba en la universidad, yo

comenzaba ya a explicar, hablar todas las cosas, todo. Ahí, comenzaba a

discutir, “mas no es así, porque no sé qué”, jam ¿Por qué… que yo, un poco

yo discutía? Porque yo tenía otra visión del mundo. (FÉLIX,

ENTREVISTA, 2014).

Ora, precisamente, a não coincidência entre as perspectivas do professor vindo da

Terra dos Incas com o horizonte de expectativas daqueles cujo modus vivendis vem sendo

laborado do lado de cá da Cordilheira, é que gera por um lado, o “choque tremendo” e, por

outro lado, permite a ambos perscrutarem no horizonte relacional que se lhes apresenta a

partir deste encontro, novas possibilidades de coexistência. Neste sentido, o tempo presente, é

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vivenciado pelo docente em questão, de forma multidimensional, em que tanto o passado,

com as respectivas experiências, quanto o porvir, prenhe de sonhos e exigências configuram o

horizonte existencial, no qual novos processos identitários são desencadeados. Neste sentido

cumpre esclarecer que desde a perspectiva enunciada neste texto,

A identidade não é algo que se possua, mas sim algo que se desenvolve

durante a vida. A identidade não é um atributo fixo para uma pessoa, e sim

um fenômeno relacional. O desenvolvimento da identidade acontece no

terreno do intersubjetivo e se caracteriza como um processo evolutivo, um

processo de interpretação de si mesmo como pessoa dentro de determinado

contexto. (MARCELO; 2009, p. 112)

Nas paisagens em que se dá este processo evolutivo e de interpretação de si mesmo,

possivelmente o docente a que vimos fazendo referência, interpreta a si mesmo de um modo

diverso de como o faria caso jamais tivesse deixado o próprio País, a morada Linguística, a

qual mesmo estando distante há mais de uma década, marca e referencia sempre que possível

tanto às percepções, quanto o juízo de valor, e, as possíveis decisões por aquele pautadas.

Inclusive quando aludidas as ações delineadas no âmbito da docência, o entrelugar de onde

ele se enuncia não permite que haja coincidência de perspectivas, ainda que pese o fato de ter

cursado a licenciatura no Brasil.

Parece mentira, yo soy de otro país, yo estudié aquí Portugués, mas la

visión mía es diferente de la visión del profesor de aquí. Eso, es; aquí el

profesor… él… él se… yo vi un aquí en la hora que entré a trabajar, tiene

profesor en estas escuelas estaduales que tiene ese ideal y él cree, que él… o

“Ah, ¡el alumno tiene que aprender! Y tiene que aprender, porque ele tem

que aprender( espalmada ambas as mãos sobre a mesa) e se ele não

aprende, es problema del profesor porque el profesor que tiene que ser, que

tiene que tomar dedicación para él. ¡Tienes que dar un aula a parte! Mas

así… lo… nosotros somos profesores. Nosotros no somos padre de ellos. Si

nosotros, como profesores, no tenemos ayuda del padre, de la familia, no

podemos hacer nada. ( último termo, em tom baixo, com quem se desculpa

ou se lamenta de algo). Lamentablemente ¡no podemos hacer nada! Que

nosotros venimos aquí tenemos cuatro, cinco horas que estamos con una

hora aula semanal con el alumno, y nada más. Entonces no tenemos nada.

Nosotros… quien que tiene que… cumplir lo que tá en la… el alumno llega

deja las… y chao. ¿Cómo…qué? Yo te dijo mi vida… mi vida de estudiante,

si ¿no hubiese hecho? Llegase y solo me metiese con los textillos que me

dieron allá, pa… pa… Para mí era más difícil. (FÉLIX, ENTREVISTA,

2014).

As narrativas do docente, aqui apresentadas tangenciam uma série de questões

pessoais, profissionais, identitárias (NÓVOA, 2009; MARCELO, 2009; HALL, 2005).

Questões que apontam para modos de ser linguisticamente constituídos (GADAMER, 2002);

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nestes modos de ser são engendradas formas de fazer constituídas no entrelaçamento de

culturas distintas. Neste entrelugar, o professor peruano vem se constituindo identitariamente,

como docente e como pessoa. Emigrado da respectiva morada que a Língua Materna lhe

proporcionava, tem inventado, ainda que provisoriamente novas moradas erigidas igualmente

nos meandros da Linguagem, agora não mais na Língua Castelhana, mas, nas interfaces entre

o Espanhol e o Português. De modo que, no limite das similitudes e das diferenças em que

estas Línguas se aproximam ou se distanciam, não lhe resta alternativas que, necessariamente

não o levem a se tornar professor em uma perspectiva multicultural (CANEN; SANTOS,

2003).

A multiculturalidade emerge nos contextos desta pesquisa como traço fundamental no

processo de profissionalização de Félix, aspecto que atravessa nestes lugares a atuação do

participante e inscreve nas perspectivas de desenvolvimento profissional que se lhes é

permitido vislumbrar a necessária construção de novos jeitos de estar e ser na profissão

docente, cuja especificidade de acordo com Roldão (2007) referenciada nas próprias

investigações e nos estudos de Antônio Nóvoa, reside no ensinar. Sendo que ensinar não se

confunde na contemporaneidade com transmissão de saber. Atualmente, este fato deixou de

ser socialmente útil e não contribui para o reconhecimento social e conseguinte

reconhecimento da docência como profissão. Segundo o argumento da pesquisadora

portuguesa, o ensinar que, contemporaneamente potencia a docência como profissão assenta-

se na figura da dupla transitividade e no lugar de mediação, configura-se assim,

essencialmente como a

especialidade de fazer aprender alguma coisa (a que chamamos currículo,

seja de que natureza for aquilo que se quer ver aprendido) a alguém (o acto

de ensinar só se actualiza nesta segunda transitividade corporizada no

destinatário da acção, sob pena de ser inexistente ou gratuita a alegada acção

de ensinar) (ROLDÃO, 2007, p. 95).

Logo, o ensinar que marca a especificidade da profissão docente atualmente,

compreende a mobilização de disposições (NÓVOA, 2016) e saberes que, consideradas as

peculiaridades multiculturais de cada contexto e as trajetórias daqueles que a ele acorrem,

para ajudá-los a aprenderem algo. Dito em outras palavras a ação de ensino que fortalece a

docência como profissão é aquela que converte o que quer se esteja ensinando, em alguma

coisa que toca e se converte em um acontecimento experiencial, sobre o qual vale a pena

pensar. Ensinar, nesta perspectiva, simultaneamente, faz emergir a função social da escola

lugar onde inicialmente, a docência passa adquirir as configurações de profissão; fato

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extrínseco que se relaciona à institucionalização daquele espaço, assim como, a necessidade

de se legitimar o grupo social docente por meio da afirmação de um saber profissional

específico, de natureza intrínseca, vinculado à necessidade de formação permanente para o

exercício da docência. Fato que conforme Roldão (2007) foi crucial para que em princípios do

século houvesse um reconhecimento social dos docentes como grupo profissional.

Tal processo de profissionalização, contudo, não se deu de modo unidirecional, foi

marcado por rupturas, recomeços e tensões como adverte Nóvoa (1995). Tensões e

contradições que conforme se pode depreender das narrativas de professores principiantes

apresentadas neste texto, estão muito presentes nos contextos institucionais escolares ainda

nos dias de hoje e que marcam um momento crítico quando reiteradamente são suscitadas

políticas, bem como modos de organizar e planificar a docência que afrontam sob muitos

aspectos tanto as especificidades de natureza intrínseca da profissão docente quanto aquelas

de natureza extrínseca.

2.4 A docência como contradição: trajetória de Odisseu

Em cenários de tensão, conflitos e contradições no que concerne a potenciação da

docência como profissão, evoca-se mais um professor no processo inicial de desenvolvimento

profissional a contar histórias vividas, as quais vêm compondo, a moda de uma odisseia,

porquanto este se narra como Odisseu.

De criança viveu a liberdade daqueles que fazem no campo sua morada, um reino

peculiar. Emigrado para a capital foi motoboy, vendedor, acadêmico e professor. Não

obstante, a opção pela docência se faz tardiamente, primeiro Odisseu, agora educador, viajou

por outros contextos e tendo aprendido deles e com eles construíra já muitas percepções no

que tange à educação brasileira, ao trabalho docente e à docência como profissão pouco

prestigiada socialmente.

Bom, na verdade, é... quando eu fui pra faculdade, não estava é...do, gosto da

área do ensino sim, mas eu, no primeiro momento, não estava pensando é...

em ter uma formação na área da educação não, né. Mas, acabei fazendo um

curso... na... na Área de Letras, né, na verdade eu pretendia fazer História, né

(divertido). Mas devido às circunstâncias na faculdade, é... não abriu vagas

para o Curso de História. E eu falei: “Bom, eu tenho que correr, tenho que

fazer alguma coisa” e, optei por fazer...é... fazer o Curso de Letras, né. É...

estava empolgado quando terminei o Curso e, quando terminei o Curso eu

havia, no momento, desencantado com questão da educação, como? Ao

observar a situação é... dos professores, salários, é... greve, todo ano cê vê

greve, aquela situação toda ocorrendo, a cobrança do professor é muito

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grande. A... a gente vê é... no noticiário do dia-a-dia que... cada dia que

passa é... o professor tem maior dificuldade, em que os alunos estão se

tornando mais violentos, mais desinteressados, né, então, juntando tudo isso,

eu comecei... eu falei: “cara, eu não vou... eu não vou entrar pra área da

educação! Eu vou me profissionalizar em uma outra área... Pra quê que eu

vou ficar perdendo tempo com filhos dos outros, né? Com toda a situação aí,

desvalorizado, é... que que vou ganhar com isso, né?” Então, gente... eu vi

muito noticiário negativo envolvendo a área da educação. Parece que cada

dia que passa o professor é mais desvalorizado. Então, eu a cheguei a ter é...

essa, esse pensamento, né, mas aí, passou-se os tempo... passou-se os dias

né, houve o concurso dois mil e nove, não pretendia fazer. “Não, faz!

Aqui”... faz não faz, acabei fazendo, né. E, aí, eu fui classificado e, mas não

estava assim... tão... fui classificado. Hum, estava assim uma distância bem...

longa do último colocado é... então, eu não...não... eu pensei: “Cara, eu não

vou... não vou entrar, tá!” Aí, até me ligaram, no ano seguinte, eu fiz a... a...

pra ver se eu queria trabalhar na escola como contratado, não quis! Então, eu

vim quando eu fui chamado é... agora em janeiro de dois mil e catorze. Eu

estou na escola porque eu passei no concurso. Se não, eu sempre tenho dito

pros colegas, eu não teria... (ENTREVISTA NARRATIVA, ODISSEU,

2014).

Tantas construções laboradas mais pelo dizer de outrem que pelo experienciar

contínuo no âmbito da prática docente, escolhas delineadas pelas contingências socioculturais.

Enfático Odisseu conta que inicialmente não pretendia ser professor de Língua Portuguesa e

que inclusive desejava fazer outro curso, mas que ao final foi este o curso possível. Nesse

ínterim, mesmo cursando licenciatura estava em dúvida quanto a inserir-se no contexto

institucional escolar, dúvida emergida em parte devido à imagem de escola e de professor

publicizadas pela mídia.

Preocupações de um aprendiz de professor movidas pelo temor do não

reconhecimento, para ele nada era mais decepcionante que a certeza de não ser reconhecido

social e financeiramente pelo trabalho e isso o manteve afastado da escola por um bom tempo.

Interessa nesse momento, entender como este professor se coloca, pois mesmo tendo cursado

uma licenciatura faz uma escolha que vai em direção contrária, examina aqueles que pensa

serem os próprios limites e opta por trilhar outros caminhos que inexoravelmente o manteriam

distante da carreira docente.

De fato, excetuadas raríssimas exceções, o status social de que goza a carreira docente

é notadamente inferior às demais que requerem formações análogas. Nóvoa (1995) apresenta

historicamente como vem sendo construída esta menos valia. Segundo o autor contribuiu para

este fator dentre outros: a feminilização do magistério e o baixo controle que os professores

têm sobre a própria profissão, aspecto que contemporaneamente acena à proletarização da

docência. Neste sentido, desde a perspectiva que venho elaborando o não reconhecimento da

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profissão professor que, vem ganhando contornos dramáticos em muitos países ocidentais,

representa a crise econômica, social e estrutural porque passam os países sob a égide das

políticas levadas a cabo pelo capitalismo. Nas últimas décadas do século XX, o liberalismo do

século anterior fora reeditado e uma mercantilização sem precedentes vem convertendo, desde

então, produtos, processos e mesmo as relações menos genuínas em mercadorias. Todavia, a

profissão docente se institui no epicentro de relações autênticas, ontológicas, por conseguinte,

com poucas propensões a serem convertidas em mercancias. O pesquisador português ciente

desta crise paradigmática, tem vicejado outras possibilidades para a potencialização e o

ulterior reconhecimento da docência como profissão fundamental ao devir humano (NÓVOA,

2009). E, de alguma maneira Odisseu vislumbrou estas possibilidades, uma vez que diante de

todas estas percepções negativas, ele participa de um concurso público para docentes, por este

motivo acaba indo trabalhar em uma escola e lá compreende que nem tudo é como pensava.

Mas aí, depois que eu entrei é... eu vi assim, que algumas situações não são

tão ruins, é... quanto se comenta lá fora, quanto sai no meio so...é na... na

mídia, aquela coisa toda. Há o problema sim com... de alunos

indisciplinados, é muito grande, né; aluno parece, a criança né, parece que

ele, nada que ele faz tem é... tem problema, né; nada ele, ele tem uma

cobrança efetiva em cima de seus erros, eh... Mas aí, a gente percebe que o

professor não é desvalorizado em tudo não. Então depende da gente, fazer a

nossa parte, né. Eu acredito (enfático) que se eu trabalhar eu consigo fazer

um trabalho bem melhor! Eu acho que a educação tem jeito sim!

(ENTREVISTA NARRATIVA, ODISSEU,2014).

Odisseu necessitou viver no universo narrado para construir novos sentidos à história

que vem contando. A experiência e os tremores ensejados por ela o levaram a desconstituir o

discurso em que todos falam, sem dizer nada de novo, desconfiado não mais se satisfaz com a

Língua dos deslinguados (LARROSA, 2014). E agora movido por uma crença motivadora de

outro caminhar, move-se como um ser capaz de equalizar a existência junto a outras pessoas

também elas demasiadamente humanas, por isso deslocam sempre o horizonte de perspectiva

que se lhes apresentam e o levam a perguntar de outros modos (GADAMER, 2002).

Mas assim, é difícil? É. É difícil e, infelizmente, é... não é aceito, é... parece

que aqueles que... os orientadores da, na educação, é o que eu tenho ouvido,

parece que não aceita (enfático) é... a reclamação do professor que está em

sala de aula. Ao dizer: “alunos desinteressados, alunos que vêm na escola

pra brincar”, o tempo inteiro, isso é constante, “alunos que não te levam a

sério”. Então, você utiliza de... algumas metodologias diferentes e, você...

não surte efeito. Mas, uma coisa, eu vejo o seguinte: o aluno não é cobrado,

parece que o professor não tem respaldo pra cobrar do aluno, efetivamente.

Então, os erros que ele comete é irrelevante, né, é irrelevante, ao passo que,

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uma palavra de um professor ela é questionada, na verdade, eu tenho ouvido

muitas histórias em até processar, o aluno faz o que quer, né; e, tipo assim,

efetivamente, não acontece nada com ele. Efetivamente, não. Nós tivemos

um caso aqui na escola, eu não trabalhava ainda, mas me disseram, uma

aluna que... mal elemento, aprontava, brigava, é... fazia de tudo que era, eu

ouvi dizer aqui que um aluno chegou a... a quebrar uma clavícula de um

professor e, que que pode fazer com esse aluno? Nada, nada, absolutamente

nada e, ao passo que, numa palavra do professor, ele pode ser processado.

[...] Não existe nada que... que penalize e...esse, essa criança, esse

adolescente? Isso está correto? Então, eu... eu questiono porque eu penso que

a criança está sendo tratada como se não tivesse inteligência! Porque eles são

seres pensantes, se ele é um ser pensante, ele tem que assumir

responsabilidades. (ENTREVISTA NARRATIVA, ODISSEU, 2014).

Aqui, o professor principiante conta do vivido e do que ouviu contar, integra ambas as

narrativas no horizonte de experiências próprias e, angustia-se ante os desafios, envolvendo

diretamente os alunos, que emergem no contexto imediato da sala de aula. Coloca-se firme e

enfaticamente a questão da indisciplina como um dos problemas a serem solucionados. Volta-

se sobremaneira para as interações que estabelece com os alunos e denuncia a forma como

agem, fala pungente de um docente ante a complexa tarefa de compartilhar com múltiplos

outros os lugares, nos quais se aprende sempre precariamente e de modo inacabado a ser

gente. Odisseu se opõe à tutoria que desresponsabiliza e não concebe a criança ou o

adolescente como um ser capaz de se perceber nas interações que estabelece, principalmente

nos contextos institucionais escolares. Paradoxalmente revela toda confiança na capacidade de

compreensão daqueles, ao tempo em que os singulariza como: indisciplinados. No entanto, a

indisciplina dos alunos resulta da postura dos “Dirigentes” que por um lado apontam sempre

inquisitoriamente para o professor, por outro, absolvem negligentemente ao discente. Eis a

experiência que atravessa inteiramente o narrar de Odisseu.

Cabe situar as experiências, cujos sentidos o professor em processo inicial de

desenvolvimento profissional vem elaborando, contextualmente. Odisseu à época trabalhava

em uma escola pública de médio porte, situada na periferia de Várzea Grande e ministrava

aulas para grupos de alunos que cursavam do sexto ao nono ano, adolescentes, cujos pais têm

baixo poder aquisitivo e, em sua maioria, pouca escolaridade. Mas, presumivelmente vivem

tanto, os pais quanto, os filhos urgidos pela premência de mais ter para mais consumir. Que

perspectivas a escola, no caso um galpão transformado em salas de aula, apresenta a estes

alunos e respectivas famílias?

Assim, a julgar pelas investigações de Cristhopher Day (2005), é necessário considerar

a despeito da indisciplina que as salas de aula estão cheias de alunos com diferentes

motivações e disposições para aprender, e nesse caso é preciso pontuar que nem sempre os

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professores conseguem distinguir essas motivações e disposições. O autor diz ainda que, por

isso, ensinar é reconhecidamente um processo complexo, principalmente, quando considerado

um professor principiante que faz questão de marcar que o ato de ensinar se torna cada vez

mais complexo pelo fato dos alunos não estarem dispostos a aprender, ao menos do modo

como Odisseu se dispõe a ensinar ou está aprendendo a fazê-lo. Tensão que revela grave

conflito, já que de conformidade com Roldão (2007), ensinar em uma perspectiva que ajude o

aluno a aprender e saber fazê-lo, por que o faz e para quem o está fazendo constitui uma

especificidade da profissão docente.

De fato, transforma-se em docente é um longo processo. Ao chegarem às instituições

de cursos superiores, os candidatos ao magistério trazem consigo crenças, concepções,

saberes elaborados durante muitos anos em que se dedicaram à discência (MARCELO, 1999,

2007, 2009; BUENO, 2002; MARCELO; VAILLANT, 2012; CUNHA, 2013), ensinar e

aprender fazem dos mais variados contextos humanos. Marcelo há anos desenvolve pesquisas

em distintos países de diferentes latitudes, as quais apontam sistematicamente para a

necessidade de se instituir políticas públicas de acompanhamento nos respectivos contextos de

atuação dos professores em processo inicial de desenvolvimento profissional. Cunha, por sua

vez, desenvolve pesquisas especificamente no Brasil e vem acenando para a importância de se

fortalecer algumas iniciativas no sentido de fomentar ações muito incipientes voltadas ao

acompanhamento dos professores principiantes nos contextos escolares. Bueno investiga as

influências que os anos vivenciados em contextos institucionais escolar exercem sobre os

professores no processo de se tornarem docentes.

No entanto, a transição de discente a docente não é simples, não basta ter sido

estudante, por mais que tenha se destacado no percurso, para se transformar em professor,

apesar do fato de as crenças e imagens construídas pelo mesmo, influenciarem fortemente na

atuação de professores principiantes. Odisseu, neste sentido, parece suscitar crenças e

imagens que vem elaborando informalmente há muito tempo, por conseguinte, é preciso antes

de tudo enxergar a indignação que marca a narrativa anterior como uma forma de defesa, pois

este está a todo tempo tentando fazer o melhor trabalho possível. Como ele mesmo aponta no

início da narrativa, ele acredita que é possível fazer um bom trabalho, mas ao conviver

diariamente com estes, que são o motivo do seu esforço, ele não consegue se realizar

profissionalmente e como era de se esperar, este e tantos outros professores vão tentar

entender onde está o problema, quem está errando. E em muitos casos o problema é

relacionado aos alunos, até mesmo porque estes alunos, principalmente por considerarmos a

idade dos alunos que são adolescentes, já viveram muitas experiências nessa escola que tem

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se mostrado um tanto quanto excludente. É preciso considerar ainda as questões que são

inerentes a este professor, pois se mostra como alguém questionador e na sua defesa chega a

apontar que é preciso penalizar o aluno indisciplinado e não, apenas, ignorar, pois de acordo

com a experiência que ele vem construindo, os alunos percebem a complacência dos adultos

e, devido a isso, não se mobilizam para uma mudança de postura.

Não obstante, de modo muito peculiar, Odisseu vem se constituindo como docente

nesta mesma relação tão contraditória e complexa que estabelece com os adolescentes, de

modo que nela encontra também motivação para continuar acreditando e buscando novas

maneiras de fazer e de se fazer como professor, aprendiz de si na dialética relacional com

outros.

Eu ainda não descobri a fórmula, eu to procurando. Eu acredito que eu possa

encontrar, que nós juntos, vamos encontrar! Sim, tá. Então, assim, no dia-a-

dia, estou procurando influenciar o aluno dessa forma, né; com muita

conversa, muito bate-papo, né, tudo direcionado pra ver se ele desperta, pra

que ele tenha um... pra ele ter uma vida melhor, tanto financeira, quanto

social, né; ele precisa do estudo, né. Um dia um aluno, eu falando pro aluno

a necessidade, falando na sala de aula, do estudo, o aluno disse assim, um

aluno, sexto ano, onze, doze anos, o aluno pergunta assim: “ Professor”, é...

alguns, vários alunos perguntaram, né. É... “ Pra ser tal profissão precisa

estudar, pra que... tal, mas um aluno perguntou: “Professor, e pra ser

matador, precisa estudar?”(Longa pausa) Qual é a influência que esse aluno

está recebendo da sociedade? Qual é a influência que esse aluno tá

recebendo quando ele vê que os maus elementos tão premiados pelos seus

malfeitos? É influência que ele tá sofrendo, pra ele fazer essa pergunta. Aí,

eu pergunto é o professor que é o culpado? Ou é o nosso sistema que parece,

parece (ênfase), parece privilegiar quem comete é... é... crimes, quem comete

é...é extorsões, e o trabalhador, não. Então, qual é o referencial dessa

criança? Aí, eu... a minha resposta pro aluno foi o seguinte, eu falei: “ Quem

que é o maior bandido do Brasil, cês sabem? “Não”. Aí, eu citei um nome,

falei: “Fernandinho Beira-mar, está preso, no presídio de segurança

máxima”. Eu falei: “Fernandinho Beira-mar é um dos maiores bandidos do

Brasil e ele lê livros. Lá na prisão ele está lendo. Lá, na prisão, ele está

escrevendo um livro”. E falei: “Bom, se ele que é um bandido, se ele que é

um mal elemento está valorizando o estudo, porque que nós que não somos

mau elementos, não vamos estudar.” Então foi a resposta que tive pro aluno

naquele momento. (ENTREVISTA NARRATIVA ODISSEU, 2014).

Resta ainda, dentre as muitas experiências que Odisseu elaborará, erigir sentidos

naquela que o leve a perceber que não há fórmula a ser encontrada, tudo que há é uma longa

estrada e, que somente no caminhar é que pode ser inventada; assim como as maneiras de

fazer na docência sempre inconclusas e coletivamente elaboradas, com vistas, a quem sabe

construir uma sala co-habitada, na qual a indisciplina advinda em parte, das aulas

magistralmente dadas, converta em um novo pensar, em aulas co-construídas, nas quais a

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intenção do professor, os desejos, perspectivas e sonhos dos alunos possam pavimentar uma

ampla avenida, inacabada, sempre em construção.

Tornar-se professor constitui-se de processos multidimensionais, complexos e

idiossincráticos (FLORES, 2010; DAY, 2005). Nestes processos, à medida que vai buscando

encontrar modos de ajudar outros a aprenderem, o professor principiante se insere

gradualmente nas culturas que marcam as paisagens do contexto escolar e vai construindo

paulatinamente e em interação constante com os contextos, a identidade, o modo de ser e de

fazer nos meandros da profissão. A travessia que perfaz o professor principiante, de estudante

a professor, encontra-se marcada pela necessidade de ser reconhecido desde um novo lugar

institucional e, neste processo se instaura grande complexidade marcada pelo entrelaçamento

de diferentes perspectivas.

A inserção profissional docente, como etapa do desenvolvimento profissional

congrega diferentes dimensões: percursos pessoais, perspectivas ante a carreira, condições de

trabalho que podem expandir ou diminuir as possibilidades de desenvolvimento, interações

com companheiros, estudantes, equipe gestora e pais, além das disposições de cada docente

para buscar evoluir continuamente. De forma que quando os professores ingressam na

docência se instauram processos tão complexos que, em última instância, influenciam na

definição desta área de atuação como profissão. Para estudiosos do tema (NÓVOA, 2009;

ÁVALOS, 2000; VAILLANT, 2012) no limiar dos anos dois mil a docência irrompe outra

vez, no cenário político e o docente volta a estar na ribalta, assim, pois, a ênfase recai tanto na

docência como profissão quanto na ação fundamental do professor que a constrói desde os

respectivos contextos de atuação ao perscrutar possibilidades de se desenvolver e laborar

novos sentidos ao fazer docente.

2.5 A docência: reescrevendo sentidos sobre o processo inicial de tornar-se professor

A necessidade de diálogo num movimento que a pesquisa narrativa chama de olhar em

quatro direções- introspectiva, extrospectiva, retrospectiva e prospectiva- levou-me a intentar

compreender juntando a literatura de formação docente os processos constitutivos do ser

professor. Processos, nos quais, destacam-se dimensões pessoais, históricas, institucionais e

identitárias. Dimensões que durante a pesquisa e ao longo deste texto, foram mediadas tanto

pelo aporte teórico da Pesquisa Narrativa (CLANDININ, 2011; CONNELY, 2011), do

desenvolvimento profissional docente (MARCELO, 1999, 2008, 2010, 2012; NÓVOA, 1995,

2009; DAY, 2005, VAILLANT, 2012) quanto pela apropriação de dois conceitos buscados na

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hermenêutica filosófica de Gadamer (1997; 2002), quais sejam: a conceituação de diálogo

vivo, concebido como escuta responsiva que equaliza e transforma os envolvidos durante o

dialogar, bem como o conceito de linguagem compreendida aqui como uma infinidade de

moradas, possibilitadoras de um sem-fim de maneiras de ser (GADAMER, 2002).

Neste sentido, destaco, com aporte na literatura consultada que, a massificação de

informações promovida pelo advento de novas tecnologias possibilitou acesso ilimitado a

ideias que desde a organização da Escola moderna no último quartel do século XIX, até o

final dos anos 80 do século XX era exclusividade dela. As céleres transformações ocorridas a

partir desta época destituíram a instituição escolar da condição de centro irradiador de saberes

catedraticamente professadas por professores, fato que afeta fortemente tanto a docência

como profissão como o status daqueles que optam por se tornarem professores (NÓVOA,

1992, 1995, 2009; MARCELO, 1999, 2008, 2012); (ROLDÃO, 2004). Se considerada a

perspectiva clássica da sociologia das profissões, a pulverização das informações destitui a

docência do campo das profissões, pois estava constituída com base na transmissão de um

saber especializado, cuja posse assegurava aos professores o reconhecimento social. Disto se

origina o baixo estatuto social da profissão docente, “é óbvio que, no caso dos professores, a

definição exata do conceito de profissionalidade não é fácil. Do ponto de vista sociológico,

diz-se que é uma semiprofissão. Sacristán, (1995) recorre a este termo para explicar, por

exemplo, porque a docência não goza, ao menos, na maior parte dos países ocidentais, do

mesmo prestígio de outras profissões que requerem formação equivalente. Entretanto,

perspectivas históricas e sociológicas mais contemporâneas (DUBAR, 1997) possibilitam que

a docência seja compreendida e definida como uma profissão. Assim, muitos investigadores

contemporâneos, cada um com a respectiva abordagem, coincidem em defender a docência

como profissão com características próprias. Nóvoa (1995, 2009) e Marcelo (1999, 2008,

2012) a compreendem como uma profissão, na qual pessoalidade, profissionalidade e

contextos institucionais se entrelaçam; Imbernón (2000, 2012) a define como sendo a única

capaz de transformar as realidades que se nos apresentam; Flores (2010) a concebe como

sendo eminentemente complexa e idiossincrática. Roldão (2004) sentencia, a docência veio se

transformando ao longo do tempo e, agora, a especificidade desta está não mais na posse e

transmissão de saberes especializados, mas no predomínio de ensinar- fazer aprender alguma

coisa a alguém.

Assim, o conceito de profissionalidade docente é reelaborado continuamente e deve

ser definido em consonância com o momento histórico que o enseja e em função dos

conhecimentos que a escola pretende legitimar, em outros termos, o conceito de

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profissionalidade no âmbito da docência se institui contextualmente (SACRISTÁN, 1995) e

se relaciona diretamente com a capacidade que os professores desenvolvem de ajudar alguém

a aprender alguma coisa. Entretanto para ensinar bem os professores necessitam rever

regularmente os princípios de diferenciação, coerência, progressão, continuidade e equilíbrio,

pensados concomitantemente ao que ensinar, como ensinar e por quê ensinar, no

entrelaçamento de perspectivas técnicas, morais e éticas, “por outras palavras, os professores

não têm apenas de ser profissionais, têm também de agir como profissionais” ( DAY, 2001,

p. 25, grifos do autor). No que concerne aos novos sentidos que o ensinar adquire nesta nova

configuração da docência como profissão, Roldão (2004) assim se enuncia.

A situação actual indicia assim a necessidade de reinvestir a débil

profissionalidade docente no predomínio da função de ensinar-fazer

aprender alguma coisa a alguém, sem o que a profissão docente se encontra

condenada ou a um esvaziamento de sentido social, ou a uma ineficácia

persistente geradora do seu descrédito [...] Ensinar não se tornou socialmente

supérfluo, bem pelo contrário. A ampliação e diversificação dos sujeitos que

frequentam as escolas, inseridas em sociedades que exigem qualificações

crescentes extensivas à totalidade da teia social, cada vez mais conduz, na

perspectiva que eu aqui defendo, a um reforço da premência social da função

de ensinar. (ROLDÃO, 2004, p. 99).

Concomitante à premência social da função de ensinar como um dos núcleos da

docência como profissão, tal como requerida contemporaneamente, a definição da

profissionalidade docente concebida com fulcro nas trajetórias pessoais e profissionais

constituídas por processos evolutivos delineados ao longo da carreira e em diferentes

contextos institucionais, emergem como aspectos que sustentam a profissão professor em um

continuum de desenvolvimento profissional (DAY, 2001, 2005; NÓVOA, 1992, 1995, 2009;

MARCELO, 1999, 2012; VAILLANT, 2012; IMBERNÓN, 2012;). Perspectiva que assumo

neste texto e que dimensionou meu olhar de pesquisador durante toda a investigação. Neste

sentido, Day (2001, p. 15) adverte “o sentido do desenvolvimento profissional de professores

depende de suas vidas pessoais e profissionais e das políticas e contextos escolares nos quais

realizam a sua atividade docente”. Ao integrar esta perspectiva de desenvolvimento

profissional à concepção da docência como profissão, emergem duas outras dimensões que,

no âmbito deste processo, imbricam-se mutuamente. A primeira se refere à conceptualização

da inserção docente como etapa do desenvolvimento profissional, portanto uma etapa

fundamental no processo em que os principiantes paulatinamente vão se tornando professores,

mas que deve ser compreendida segundo uma visão holística do desenvolvimento profissional

contínuo de professores. A segunda dimensão é atinente a construção de sentimento de

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pertença e constituição identitária nestes meandros pessoais, profissionais e políticos. O

entrelaçamento destas dimensões adquire relevo neste texto por me permitir vicejar nas

experiências, cujos sentidos atravessam as histórias de Safo, Heitor, Helena, Odisseu e Félix

na condição de professores principiantes, o modo como vêm se tornando professores e

principalmente os sentidos que sustentam esse processo inicial do tornar-se professor no

desenvolvimento profissional.

A interpretação das narrativas produzidas junto a esses participantes no decorrer de

dois anos, aproximadamente, permitem compreender que os sentidos construídos no processo

inicial de tornar-se professor em contextos institucionais emergem tanto das disposições

pessoais destes profissionais para lidarem com conflitos quanto das interações, negociações

que lhes sejam facultadas encetar nesta travessia. Dependendo do modo como realizam estas

negociações tanto com os pares de profissão quanto com os estudantes no contexto imediato

da sala de aula, bem como do modo que se deixam tocar pelas vivências, convertidas em

experiências ao longo das respectivas trajetórias, elaboram os sentidos que os fazem sentir-se

professores. Este processo como vimos sinalizando com fulcro, principalmente, nas

investigações de Flores (2010) é complexo, idiossincrático. Assim, Safo consegue perceber-se

como professora precisamente ao se debruçar sobre a maneira como vem ajudando os

estudantes a aprenderem. Ao pensar sobre o que se passou, e no diálogo com o pesquisador

observar e perscrutar outras possibilidades, epifanicamente, descobre-se professora e, este fato

marca no horizonte de perspectivas que se lhe apresenta o contexto, lugar onde está se

inserindo na profissão; a identidade, o modo como percebe a si mesma no encontro da

pessoalidade com a profissionalidade, bem como a ideia de evolução, marcada na

compreensão de que outras maneiras de fazer necessitam ser prospectivadas (CLADINNIN;

CONNELY, 2011).

Eu acho que... essa... troca, entre a gente, meio que possibilita, me possibilita

me olhar de outra maneira, não me olhar como pessoa, me olhar enquanto

professora! Tenta desvincular estas duas pessoas, mas já decidi que não

consigo (entre riso). Mas, assim, me ver como profissional! E aí, eu me vejo

falha. Falha por quê? Porque eu tenho dificuldades que a própria... disciplina

me traz, às vezes, né; igual algumas dificuldades que eu tenho e tenho de

superá-las. O próprio vídeo me mostrou ...o, é... a questão das minhas

dificuldades em atingir alguns alunos. Então assim, durante esse período o

que eu pude perceber, isso. Eu, quando tenho estas entrevistas, quando faço

isso, eu me vejo professora! Eu vejo ali, enquanto professora. Eu, até então,

no meu dia-a-dia, não vejo (riso discreto), não consigo me enxergar. Muitas

vezes, eu paro: “Gente, eu sou professora!” É legal, é legal! (ENTREVISTA

NARRATIVA, SAFO, 2016).

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O mover-se para o futuro, ancora-se decididamente na assunção da identidade

profissional no tempo presente, no contexto e no percurso até aquele momento vivenciado

(retrospectivamente e prospectivamente). Identidade erigida nestas múltiplas dimensões e

vocalizada por Safo ao perceber-se nestes processos evolutivos e conflituosos, porquanto,

processos identitários (NÓVOA, 1995, MARCELO, 2010) “Gente, eu sou professora!”

Presumivelmente, para assumir-se como profissional, Safo considerou antes e primeiramente

as relações estabelecidas contextualmente, relações de ensino, entretanto a conversa com o

pesquisador ensejou a possibilidade de ver-se a si mesma como docente. Este fato me fez

lembrar Day (2001, 2005) quando o autor apresenta dentre as várias possibilidades para

estabelecer uma perspectiva de desenvolvimento desde os contextos escolares, a figura do

amigo crítico ou crítico amigo, instituída por meio de negociações entre diferentes redes de

ensino, com vistas a ajudar os docentes a perceberem as limitações vivenciadas nas

respectivas salas de aula e evoluírem na carreira, na aprendizagem permanente, na

profissionalidade e na profissionalização, desde os respectivos contextos de trabalho. A

narrativa de Safo evoca ainda a dimensão formativa da pesquisa narrativa como possibilidade

de iluminar a experiência e potencializar os processos de desenvolvimento profissional

docente (GALVÃO, 2005).

Heitor assume-se como professor de carreira, mas situa a inserção na docência no

âmbito do próprio percurso e destaca as profissões do pai e da mãe, bem como a própria

idade. Deste modo tangencia simultaneamente as dimensões pessoais e profissionais e denota

compreender a docência como uma profissão, com destaque, inclusive para a contradição

entre aquilo que concebia como profissionalismo e as condições de profissionalização que se

lhe apresentam no respectivo contexto de inserção (NÓVOA, 1992, 1995, 2009; MARCELO,

2009, 2012).

Tenho 31 anos, sou natural de Rondonópolis, filho de uma ex-professora e

assistente social e um eletricista de automóveis. Trabalho como professor de

carreira desde março de 2014. [...] No ensino regular, no início da minha

carreira, tive que me deparar com uma realidade que se distanciava muito da

ideia que tinha sobre educação, profissionalismo e comportamento. Posso

adicionar que também existiu um desafio interno de readaptação. [...]

cheguei a pensar que se houvesse uma oportunidade, um convite eu me

afastaria da sala de aula, mas com o passar do tempo, a mudança de escola,

percebi que tem algo mais que move, que nos move a ser professor, a

encontrar satisfação em ser professor. E aqui, desde o começo fui bem

acolhido. (NARRATIVAS ESCRITAS, HEITOR, 2015; 2016).

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Da distância entre o que este professor principiante concebia como sendo

profissionalismo e as circunstâncias que experiencia ao ingressar na carreira, emergem

conflitos que o instam a ressignificar as concepções que construira ao longo da trajetória. Este

fato corrobora de forma decisiva nos processos em que Heitor vem se tornando docente e

compreende a si mesmo como professor, configura-se então, uma mescla entre o perceber-se,

o dizer e o vir a ser engendrados contextualmente e, isto forja a identidade em meio ao

movimento ensejado no âmbito destas diferentes dimensões que integram o desenvolvimento

profissional docente desde os respectivos contextos, tal como enunciado por Marcelo (2009)

ou, seja uma realidade evolutiva que se dá no entrelaçamento da dimensão pessoal com o

coletivo, porquanto se trata de algo em constante desenvolvimento, um fenômeno relacional

que ocorre na intersubjetividade, um processo evolutivo de interpretação de si em contextos

específicos, os quais para Heitor se diferenciam muito. Na primeira escola se dá o choque

entre as perspectivas que ele trazia sobre a profissão e o que encontra, na segunda instituição,

acolhimento e sentimento de pertença, reencontro consigo mesmo, com a utopia que o movera

até ali.

Conforme ressaltado em várias ocasiões neste texto, a inserção à docência pode durar

vários anos (MARCELO, 2007, 2008, 2012), nos quais o professor principiante necessita

desenvolver a própria identidade, para tanto tem de assumir um papel em contextos escolares

específicos. Das negociações estabelecidas entre o novato e a comunidade na qual se insere

resultam diversas relações que podem facilitar ou obstaculizar o desenvolvimento pessoal e

profissional de professores principiantes em início de carreira e, ainda que resguardadas e

responsavelmente consideradas as especificidades apresentadas nos diferentes contextos,

Marcelo e Vaillant (2012) apresentam diversos fatores que podem minimizar ou maximizar as

dificuldades enfrentadas por principiantes. Fatores que atingem também aos professores em

outras etapas de desenvolvimento profissional, como: gestão da sala da disciplina na sala de

aula, envolvimento dos estudantes no processo de aprendizagem, organização do trabalho em

sala, problemas relacionais com estudantes e os pais dos mesmos. No entanto, conforme se

pode denotar nas narrativas dos participantes desta pesquisa, aos principiantes faltam

referências, experiências precedentes para enfrentar os problemas que desde os contextos

escolares se lhes apresentam. Devido a esta ausência de sentidos elaborados a partir da

experiência como docente em sala de aula, os principiantes vivenciam os conflitos com maior

envolvimento e, por vezes, maiores desgastes físicos e emocionais. Sendo que estes últimos

podem ser relativizados dependendo do modo como o professor principiante é inserido no

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contexto escolar ao ingressar na carreira docente, fato muito presente nas narrativas de

Helena.

[...] os professores também né, é... que esse o universo do professor existe o

mundo da sala de aula e existe o mundo da sala dos professores... (Risos),

né? É... eu fui muito bem recebida... pelos professores. É claro que alguns

deles dissera... me confessaram que... pensaram, imaginaram tipo: “Nossa,

ela é nova. (Risos) Ih! Será que ela vai dar conta? Ih! Esses alunos vão fazer

miudinho dela aqui na sala de aula, aqui na escola (Risos) Mas aí é... alguns

disseram que surpreende... se surpreenderam não só comigo, com outras

professoras jovens também que vieram, a gente tem a professora J também

que é nova, enfim eu fui muito bem acolhida pelos professores e... eu fui

atrás de saber eu pergunto tudo; eu, se eu não sei uma coisa, eu me abro,

falo: “olha, eu não sei”. Tenho a humildade de chegar e tirar todas minhas

dúvidas, de aprender com os mais velhos... questão de Lei, portaria, tudo eu

pergunto... eu... sou assim muito... muito curiosa (riso). E, enfim, eu tive

ajuda, muita ajuda aqui na escola , de minha coordenadora é... de Área, da

minha coordenadora pedagógica, a C, e... muita ajuda dos professores

também, graças a Deus fui muito bem recebida e, é isso que... me deixou

feliz, assim... instigada a continuar. (HELENA, ENTREVISTA, 2014).

É notável que o acolhimento dos pares que vivenciam outras etapas de

desenvolvimento profissional, atravessa o modo como Helena se sente e anuncia como

professora. Tal acolhimento, potencializa o processo inicial de desenvolvimento profissional

da docente desde o contexto institucional onde ela atua. Isto possibilita o envolvimento

comprometido com a instituição e eleva o sentimento de pertença. Helena se sente

inteiramente integrada, contente com a percepção de si naquele contexto, marca a

reciprocidade e a confiança ao negociar as relações que ali se estabelecem e destaca o papel

das coordenadoras neste processo.

Possivelmente também a ela lhe faltam referências para lidar com a gestão de sala,

organização do trabalho, relacionamento com pais de alunos, dentre outros dilemas presentes

no caminho dos professores principiantes, não obstante, a maneira como estavam organizadas

as relações naquele contexto a potencializou para o enfrentamento destes problemas. De modo

que pode manter certo equilíbrio pessoal, mesmo diante das tensões que marcam o período de

inserção à docência (MARCELO, 2012; VAILLANT, 2012).

Odisseu, por seu turno, necessitou de um período mais longo para se sentir integrado à

comunidade escolar e engendrar sentidos mais profícuos à experiência que vem elaborando

como professor principiante. No decorrer de dois anos buscou aprender com voracidade e se

debateu sobremaneira com aspectos concernentes a gestão da disciplina em sala de aula, não

sinalizou com mais ênfase o papel dos coordenadores no acolhimento e acompanhamento ao

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ingressar na carreira. Entre as tensões e aprendizagens que marcam a inserção à docência, o

principiante, tenta manter a duras penas o equilíbrio pessoal ante as aprendizagens requeridas

profissionalmente (MARCELO, 2012), com isto corrobora com a compreensão de que esta

etapa é peculiar, longe de ser um período lacunar entre a formação inicial e a formação

contínua reveste-se de características próprias e requer políticas capazes de integrar esta etapa

do desenvolvimento profissional, na qual o docente necessita de apoio particular para inserir

de modo autônomo na profissão e erigir novas profissionalidades capazes de a fortalecerem.

(VAILLANT, 2012; FLORES, 2010; NÓVOA, 2009; ROLDÃO, 2007).

[...] Eu acredito que é possível melhorar a educação, mas isso não depende

apenas do professor, ou da unidade escolar. É um problema social. Muitos

dizem: esse problema precisa ser enfrentado. Então eu pergunto: quando e

como? A sociedade vai continuar empurrando o problema para ser resolvido

no futuro? (NARRATIVA ESCRITA, ODISSEU, 2014).

Nesse final de ano de 2015, tenho refletido bastante sobre o caminho

percorrido como professor desde o ano de dois mil e quatorze, ou seja, dois

anos completos. Agora, findando meu segundo ano, integrado à escola,

percebo que muito ainda tenho a aprender nesta jornada. Por quê? Porque

entre a teoria e a prática é necessário construir pontes. E elas são construídas

no dia a dia com os alunos, tendo em vista seu pleno desenvolvimento

escolar. (NARRATIVA ESCRITA, ODISSEU, 2015).

[...] Eu tenho notado isso agora, inclusive foi, nós estamos no, terminou

agora o primeiro bimestre né, e, eu percebi assim, alguns alunos que dão

muito trabalho, querem falar o tempo inteiro, ele não presta atenção, mas

quando eu mudei, é... é... alguns métodos com eles, na forma de conduzir,

né, pra que ele percebesse que há consequências pra os seus atos, assim,

começou a chamar a atenção deles. Não ficou cem por cento, não chegou

nem... não se transformaram não, mas assim, melhorou e assim, eu estou até

confiante que nesse próximo bimestre vai ser melhor. (ENTREVISTA

NARRATIVA ODISSEU, 2016).

Para Odisseu o processo inicial de tornar-se professor parece ter sido marcado mais

pela solidão que pelo compartilhamento de dúvidas, ansiedades e inseguranças, muito embora

ele afirme: “meu relacionamento com os professores nessa escola, é igual ao da escola

anterior que eu trabalhava, muito bom, tranquilo; com a equipe gestora também, muito bom”,

não apresenta nas narrativas, aspectos que permitam situar o processo que vivenciou durante a

inserção em um continuum constituído a partir de parcerias estabelecidas com os pares e/ou

com a equipe gestora. Ao narrar-se, corrobora em muito com o entendimento de que esse

processo inicial de desenvolvimento é importante para a construção dos sentidos que

iluminam trajetória docente. Processo inicial, no qual, para tornar-se professor necessita

elaborar conhecimentos da e sobre a profissão em breve período de tempo, e no mais das

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vezes, na maior solidão (MARCELO, 2012; VAILLANT, 2012). Entretanto, de uma maneira

muito própria ele vem se constituindo identitária e profissionalmente, movido mais pelos

sentidos elaborados na relação com os alunos do que pela negociação com os pares.

Se por um lado, Odisseu necessitou experienciar o contexto escolar por um longo

período para lograr finalmente se sentir integrado, Félix deixa transparecer por meio das

narrativas produzidas que jamais logrou alcançar a elaboração de sentidos que o fizessem

sentir inteiramente pertencente aos contextos institucionais onde atua. Para ele, este processo

inicial de desenvolvimento profissional tem se caracterizado como um período de

sobrevivência, todos os sentidos que sustentam o tornar-se professor, neste caso, reiteram este

fato e, levam o professor a lidar com os conflitos que se lhe apresentam, desde uma

perspectiva marcada pela sensação de não aceitação no contexto institucional. Este aspecto

maximiza, na dimensão profissional o sentimento de estranheza, não pertencimento; na

dimensão pessoal estes sentidos geram sofrimentos. Em meio a descobertas, adaptação e

aprendizagens, a transição de acadêmico a profissional tem sido permeada por desafios

gigantescos que complexificam ainda mais o caminho em que vem se tornando professor. O

fato de ser de outro País, onde vigoram outras pautas culturais para Félix aspectos essenciais

neste processo, como: conhecer os estudantes, o currículo e os contextos das escolas onde

atua com vistas a planejar melhor, bem como a construção de um repertório de sentidos que

lhe permita sobreviver como professor em processo inicial de desenvolvimento, ao tempo em

que o integrasse a uma comunidade de aprendizagem que potencializasse processos de

constituição de uma identidade própria (MARCELO, 1999, 2007, 2012) têm sido sumamente

difíceis. De forma que o processo inicial de desenvolvimento profissional de Félix, apresenta-

se, em última instância, marcado por conflitos que tem obstado o principiante na docência de

elaborar experiências, cujos sentidos lhe permitam desenvolver-se profissionalmente.

Na penúltima vez em que nos falamos, meados de dezembro de 2015, encontrei-o um tanto

inquieto, parecia ter uma necessidade premente de audiência. De modo que assim que

iniciamos a conversa, convidou-me a ingressar em uma sala vazia, fechou hermeticamente a

porta e confidenciou:

“Yo quiero denunciar, estoy sufriendo xenofobia en esta escuela, estoy

siendo victima de xenofobia”. Naquele meio de tarde falou longamente

sobre aqueles que na visão dele eram problemas que se lhe apresentavam

devidos ao fato de ser um estrangeiro. Ao narrar evocava situações

emergidas das interações cotidianas que, como docente, estabelece com

alunos, professores e equipe gestora, principalmente. (DIÁRIO DO

PESQUISADOR, 2015).

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[…] en mi vida profesional, yo decía, profesional, profesionalmente, yo

fui… aprendiendo del día-a-día, en el día-a-día con los alumnos, con todo

eso que fu… yo, hasta ahora continuo aprendiendo, mas se tú me dices cómo

que yo estoy creciendo y… profesionalmente… De acuerdo con…

profesionalmente…Yo estoy creciendo, aí yo te voy a decir que no he

¡Crecido nada! (ENTREVISTA NARRATIVA FÉLIX, 2016).

[…] Porque supongamos, tú vienes a una institución, esta institución aquí en

la escuela N, yo vine aquí, los coordinadores y como la palabra misma dice

“COORDINADORES” de coordinarse, ellos nunca me ayudaron en nada

(voz baixa, triste, queixosa) (Pausa) ellos lo único que ellos saben decir es:

“Us… usted la prueba, la puso difícil”. ( ENTREVISTA NARRATIVA,

FÉLIX, 2016).

Compreender os sentidos que os professores elaboram no processo inicial de

desenvolvimento profissional docente, pressupõe entender que os contextos interferem

decisivamente sobre as perspectivas e sentidos compostos ao longo das trajetórias de

formação docente, com destaque para as experiências elaboradas durante os primeiros anos de

atuação na carreira. Etapa de tensões e experienciações intensas, na qual os docentes

principiantes são instados a formularem saberes que suscitados dos sentidos das experiências,

gradativamente se convertem em conhecimentos da profissão. (MARCELO, 2007, 2012).

Porquanto, investigar e compreender os sentidos que sustentam o tornar-se professor desde o

processo inicial de desenvolvimento profissional e considerá-los na formulação das políticas

públicas educacionais poderia potencializar sobremaneira os modos de ser e maneiras de fazer

de professores principiantes nos respectivos contextos de atuação. O processo inicial de

desenvolvimento profissional configura-se como etapa fundamental na trajetória docente.

Etapa, na qual se veem compelidos a fazerem a transição de estudantes a docentes e, nesta,

emergem dúvidas, tensões, crises muito específicas, com as quais os professores principiantes

lidam cotidianamente nos diferentes contextos, daí emergem muitos dos sentidos que

sustentam o fazer destes profissionais, às vezes, ao longo de uma trajetória existencial.

Portanto, para fazer frente aos problemas que se lhes apresentam estes docentes vão

constituindo maneiras pessoais, das quais derivam sentidos próprios que subjazem à

profissionalidade, identidade e profissão.

Cada vez que retomo e releio as narrativas de Félix, Heitor, Odisseu, Safo e Helena

percebo que muitas são as perspectivas ante o modo como cada pessoa se torna professor, ou

seja, constituir-se como professor pressupõe o entrelaçamento de muitas dimensões que

mudam de um contexto para outro, de um sujeito a outro. Dimensões como

pessoalidade/profissionalidade, que tem que ver com jeito de ser de cada professor, bem como

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com as perspectivas, crenças e saberes que tem acerca do processo inicial de converter-se em

docente e com as possibilidades e limites definidos contextualmente.

De maneira que, as expectativas que se cumprem ou que se frustram, leva cada um/a a

proceder uma recontextualização dos sentidos que nutriam acerca de si mesmos e do ser e

estar na profissão. Alguns se sentem desafiados e se envolvem ainda mais no processo, outros

se ressentem e passam a buscar outras possibilidades profissionais, ainda que permaneçam

atuando como professores. Fato é que os conflitos na medida em que se constituem como

desafios deformam e formam, concomitantemente. Entretanto, nem todos os professores em

início de desenvolvimento profissional docente concebem os conflitos cotidianos como

desafios, por vezes, transformam-se em limitadores, que, desde uma perspectiva pessoal e

individual, não vicejam possibilidades de continuar atuando e aprendendo com estes conflitos.

Nestes casos, caso não haja o acompanhamento dos pares: membros da equipe gestora,

colegas de profissão e outros; a intensidade do vivido e urgência em ter de lidar com muitas

demandas simultaneamente, pode gerar muito sofrimento, dor e desalento, por vezes,

abandono da carreira, nisto o produzido nesta investigação coincide com aquelas levadas a

cabo em outras regiões de latinoamérica por Marcelo e Vaillant (2012). Esta a temática a ser

desenvolvida no próximo capítulo.

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CAPÍTULO III

CONFLITOS NARRADOS POR PRINCIPIANTES EM ESCOLAS PÚBLICAS DE

MATO GROSSO

Requer aproximar-se do texto com o cuidado e o

respeito devido ao outro distinto de mim. Entra-se

no texto. Não basta o ler com a atenção externa de

quem lê somente para se informar. É necessário

habitá-lo.11

(FERRAROTTI, 2011, p. 28, tradução

nossa).

Para habitar e co-habitar as paisagens que cada pessoa elabora é necessário adentrar

ciosa e cuidadosamente as moradas, nas quais cada um dá sentido e sustenta o viver. Moradas

forjadas na Linguagem, configurada ela mesma como lugar onde se produz modos de existir,

maneiras de ser (GADAMER, 2002). Almejando adentrar nas tessituras que professores

principiantes de Língua Portuguesa e Língua espanhola vêm elaborando, assim como

buscando formas para habitar, por um tempo que fosse, nas respectivas moradas

linguisticamente textualizadas, acompanhei ao longo de dois anos o constituir-se de cinco

professores em início de desenvolvimento profissional docente. Durante todo este tempo

perscrutei e busquei compreender o modo como os professores em processo inicial de

desenvolvimento profissional constroem experiências e elaboram os sentidos que sustentam

tanto modos de ser quanto maneiras de fazer nos contextos institucionais, nos quais atuam.

Neste entremeio, elaborei o entendimento de que por atuarem em contextos de grande

complexidade, docentes de modo geral, mas principalmente aqueles que estão iniciando a

carreira enfrentam problemas relacionados à especificidade da profissão (FLORES, 2010;

ROLDÃO, 2004, 2007) e que se referem, no mais das vezes ao como ajudar os estudantes a

aprender ou como lidar com as questões que emergem das interações cotidianas. A estes

desafios com os quais os professores principiantes têm de aprender a lidar no processo de se

tornarem docentes, denomino neste texto conflitos. Entendo que estes conflitos são

característicos da profissão professor e que dependendo da maneira como cada professor

principiante, no âmbito dos respectivos contextos de atuação é auxiliado a experienciá-los,

configuram-se perspectivas que potencializam ou enfraquecem a construção da

profissionalidade de cada um, bem como da profissão como constructo sócio-histórico

11

Se requiere acercarse al texto con el cuidado y el respeto debido a otro distinto de uno mismo. Se entra al

texto. No basta con leerlo con la atención externa de quien lee solo para informarse. Es necesario habitarlo.

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(ROLDÃO, 2007; CUNHA, 2013; MARIANI, 2016; ZICHNNER, 2005; NÓVOA, 2009,

2016).

Tangido por conflitos que afligiam em maior ou menor proporção, todos os que

participaram desta pesquisa, acompanhei-os em um trecho do caminho em que vem se

tornando professores e, ao caminhar pavimentamos juntos, os participantes e eu, diferentes

estradas, apresentadas nos meandros deste texto de tese. Conflitos de ordem pessoal, como

por exemplo, as dificuldades que alguns participantes encontraram ao interagirem tanto com

os pares quanto com os estudantes, ou ainda dificuldades conceptuais no que tange ao

conceito de autoridade, como denotaram as narrativas de Odisseu. Conflitos de ordem

profissional referidos à gestão de sala de aula, bem como a processos de elaboração do

Raciocínio Pedagógico (SHULMAM, 2001) no contexto imediato da sala de aula. Nesta

mesma perspectiva, a continuidade e equalização das experiências (DEWEY, 2010)

vivenciadas em contexto institucional, representa um conflito de grande monta para todos os

participantes. A hegemonia do tempo escolar (VIEIRA, 2015), ao sobrepujar e mecanizar

todas as demais temporalidades também instaura grande conflito no processo inicial do

tornar-se docente.

Convido-te a me acompanhar em mais trecho desta travessia, cujos caminhos não

estão prontos e comportam sempre novas rotas, as quais, insisto que ajudes a compor,

prosseguindo também nesta jornada. Venha, chegues mais perto e ingresses nas moradas de

Félix, Odisseu, Heitor, Helena e Safo, mas, tenha cuidado não abrevie demasiadamente tua

estadia, tentes habitar, ou melhor, co-habitar estas paisagens.

Há dois anos aproximadamente, venho acompanhando por meio de

conversas e entrevistas a trajetória do professor de Espanhol, Felix. Intriga o

modo como o professor em início de desenvolvimento profissional vem

lidando com o duplo deslocamento a que se vê compungido a realizar todo o

tempo: como peruano tem que lidar com as diferenças culturais entre o país

de origem e o Brasil, como professor principiante está às voltas com diversos

dilemas, desafios e demandas requeridas de um docente em início de

carreira. Estes dois aspectos fazem-se sempre presentes nos diferentes narrar

do professor mencionado (Diário do pesquisador, 2016).

Adentrar na existencialidade que Félix vem constituindo em lugar situado entre as

paisagens que traz dentro de si que remetem à vivência no País de origem e as novas

paisagens experienciadas no Brasil representou um grande desafio. Primeiramente foi

necessário superar a desconfiança com a qual o professor se protege ante o desconhecido,

quiçá não lograsse sequer adentrar os umbrais deste entrelugar, onde o docente vem

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edificando uma nova identidade, se não o tivesse feito a partir da Língua Materna do

participante, conforme narrado no capítulo III. Uma vez instituída uma relação de confiança,

foi possível ingressar na morada provisória que o participante habita, todavia, não se trata de

uma arquitetura apolínea, cujos ângulos permitem vicejar claramente os pilares em que se

sustenta. Não, a morada que Felix vem erigindo está cheia de reentrâncias, difíceis de serem

perscrutadas, mais ainda, quando o arquiteto parece a estar reconstruindo o tempo todo. Neste

sentido, o fato de ter confidenciado a percepção que o levou a acreditar que estava sendo

vítima de xenobofia, inaugura um novo patamar em nossa conversação, naquele instante fui

convidado à adentrar um pouco mais a moradia de Félix. Todavia, para co-habitar ali, foi

preciso entender que o participante foi quem, estabeleceu implicitamente as regras, de modo

que, ainda que instado muitas vezes e de diferentes formas, deixou de produzir narrativas

escritas convencionadas ao longo da pesquisa. Também na conversação feita entrevista,

matizava os temas conforme se lhe interessava. Autônomo e perspicaz, trava a sua maneira,

um combate aguerrido e constante que denuncia mais que o desespero deste professor as

condições de trabalho, a complexidade e o sofrimento que os contextos onde tem atuado

fazem aflorar.

Naquele meio de tarde falou longamente sobre aqueles que na visão dele

eram problemas que se lhe apresentavam devidos ao fato de ser um

estrangeiro. Ao narrar evocava situações emergidas das interações cotidianas

que, como docente, estabelece com alunos, professores e equipe gestora,

principalmente. Narrativas que denotavam sofrimento vívido; no entanto,

contrastavam com o narrador que ressaltava sempre altaneiramente, aquilo

que compreendia ser um conceito de política erigido desde a vivência

histórica no Peru, percepção relacionada, no mais das vezes, ao

enfrentamento do Sendero Luminoso. Ao término da conversa, convidei-o a

narrar por escrito tudo quanto me havia dito, assentiu positivamente e,

enquanto falava da aquisição de uma casa, relatou que está buscando

naturalizar-se brasileiro. Decorridos cinco meses e, mesmo diante de

diversas mensagens que o conclamavam e animavam a proceder ao registro

escrito daquela conversa, não o fez. (DIÁRIO DO PESQUISADOR, 2016).

Novas e sucessivas mensagens levam-me a encontrá-lo no dia 16 de maio de

2016 na Escola Estadual N, por volta das catorze horas. [...] encontro Félix

no laboratório de informática, atento digitando no notebook pessoal.

Cumprimentou-me em espanhol, como de costume, ele permanece sentado,

caminho até onde está lhe estendo a mão. Recebe-me de modo diverso, não

está tão efusivo como o fora no encontro anterior. Ainda assim, convida-me

a sentar e imediatamente põe-se a justificar por não ter escrito a narrativa,

conforme havíamos combinado. “Estoy te debiendo profesor, no he tenido

tiempo, mucho trabajo en dos escuelas.” (DIÁRIO DO PESQUISADOR,

2016).

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A intensidade dos trabalhos em meados do segundo semestre, somados, ao fato de o

professor, segundo juízo formulado por ele, estar em débito com o pesquisador dão a este

começo de conversa, ares diverso daquele que tivera outros encontros. No entanto, parece

haver mais fatores influenciando a “indisposição” de Félix. Ao denunciar que sofria xenofobia

o participante, talvez esperasse a interferência do pesquisador; mais ainda, teria o participante

concebido e alimentado perspectivas de que a pesquisa possibilitasse o enfrentamento mais

imediato dos problemas que o afligiam? Emergiu para mim, na condição de pesquisador que

trilha as veredas da Pesquisa Narrativa (CLANDININ; CONELLY, 2011) um dilema ético,

posto que ao convidar Félix para participar da Pesquisa me inseri no meio do acontecer

histórico e propus acompanhá-lo a fim de compreender e compor os sentidos a partir das

experiências que os sustentavam. Entretanto agora, ao me debruçar sobre as narrativas que

produzimos percebo que ele ao aceitar o convite, visava a encontrar mais que um pesquisador,

um parceiro que o pudesse potencializar para sobreviver como professor principiante de

Língua Espanhola vindo de outro País. Talvez, tenha vicejado ao participar da pesquisa

diminuir a solidão (MARCELO, 2007; VAILLANT; MARCELO, 2012) que o acossava nesta

dupla inserção: na docência e na cultura brasileira. Confesso que esta percepção me tocou e

ainda desperta em mim um misto de gratidão e desalento. Gratidão por ter cultivado uma

relação de tamanha confiança e desalento porque efetivamente não interferi nos meandros

daquelas paisagens, a ponto de redimensioná-las.

Não obstante, desde outra mirada é possível entender que tendo iniciado a pesquisa e

encontrado Félix em meio a histórias, também o deixei em meio ao acontecer histórico que

revela dilemas que perpassam a constituição profissional de professores principiantes em

contextos escolares mato-grossenses. Dilemas que pedem premência sob pena de que cada

vez mais a docência como profissão se fragilize, afinal

se observarmos como as profissões incorporam e socializam os novos

membros, nos daremos conta do grau de desenvolvimento e estruturação que

têm essas profissões. Não é comum que um médico recém-egresso realize

uma operação de transplante de coração. Nem, muito menos, que um

arquiteto com pouca experiência assine a construção de um edifício. Não se

permite a um piloto com poucas horas de vôo que comande um Airbus 380.

(VAILLANT; MARCELO, 2012, p. 135).

O conjunto das narrativas compostas junto a Félix, longe de revelarem qualquer

deferência ou cuidado devidos as particularidades que marcam o percurso dele inexistiram.

Ao estrangeiro principiante coube arcar com o ônus de ter de trabalhar em três instituições

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diferentes e além de ter de aprender rapidamente os trâmites burocráticos, lidar com a

heterogeneidade de um número enorme de estudantes, aproximadamente seiscentos, desde o

primeiro dia, em que iniciou a carreira docente na rede estadual de ensino. Eis as condições

em que vem se dando a profissionalização nestes contextos, conforme se pode depreender das

narrativas seguintes que revelam ainda aspectos referentes a negociações entre o pesquisador

e o participante ao longo da investigação.

Convido-o a me conceder aquela que muito provavelmente, seria a última entrevista e

rememoro que vimos conversando há quase dois anos. “Ahorita, estoy ocupadito (olhando ora para

monitor, ora para mim), pero, vamos charlando, después, grabas”. Encetamos uma conversação que

vai gradativamente de temas mais familiares àqueles que, no momento, eram de relevo maior para a

pesquisa. Decorrido um tempo considerável, a conversa passa a fluir menos tensa, agora Félix fala sem

meneios, gesticula, ri, por vezes profere algo anedótico. Então predisponho a iniciar a entrevista, ele

desliga o notebook e o fecha sobre a mesa, aproximo um pouco mais a cadeira e olhar do participante

se volta inteiramente para mim, o rosto menos tenso parece demonstrar a antiga disposição em narrar-

se. (DIÁRIO DO PESQUISADOR, 2016).

Mais que conceder entrevista importa ao participante “charlar”, envolver-se na

conversação com o pesquisador, por, isso quando, o pesquisador o convida de pronto a

principiar a entrevista propõe conversarem e, somente depois gravar. Esta postura estivera

presente em todos os encontros e, ao que parece já estabelecera entre o docente e o

pesquisador este tácito contrato de que muito além da entrevista pudessem conversar sobre os

temas mais variados, suscitados ao sabor do diálogo. Para narrar-se, não basta eleger um tema

qualquer, requer o acolhimento e confiança (CLADINNIN; CONNELY, 2011) recíprocos,

construídos e retroalimentados continuamente. Ao longo da pesquisa o participante parece ter

se apropriado intuitivamente deste princípio e quando, o pesquisador propõe outra abordagem,

o professor principiante, exige que a maneira como vinham dialogando seja mantida, ao fazê-

lo Félix me leva a rememorar um dos postulados da Pesquisa Narrativa: “A experiência da

narrativa do pesquisador é sempre dual, é sempre o pesquisador vivenciando a experiência e

também sendo parte da própria experiência” (CLADINNIN; CONNELY, 2011, p. 120).

Reinstituídas as condições que sustentaram sempre o diálogo com o participante, o narrar-se

acontece e a entrevista ocorre entremeada nesta dialogia.

Bueno, pa comenzar, en mi vida, en mi vida profesional, yo decía,

profesional, profesionalmente, yo fui… aprendiendo del día-a-día, en el día-

a-día con los alumnos, con todo eso que fu… yo, hasta ahora continuo

aprendiendo, mas se tú me dices cómo que yo estoy creciendo y…

profesionalmente…[…]

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Nada! ¿Por qué? Porque primeramente, yo entré… eu… e… en el Estado

como se dice, en el Estado, si tú entras, tú estás en el estado como

concursado tú te das cuenta que tiene otras personas que ya están antiguas

aquí y ellos también no tienen (baja la voz) información. Ellos entraron en

el circulo, como se dice, ellos entraron no sistema, entones, ellos… y ese

sistema va dando vueltas, va dando vueltas, y va todo lo día viene, todo lo

día, todo lo día, todos los días, todos los días y, nada más. Porque cada día

que va pasando, humhum… usted se va quedando más difi…, porque dicen:

“ ah”, el profesor trabaja veinte horas, diez de hora-actividad, mas de esas

diez de hora-actividad (voces al fondo), usted tiene que ver ahora que salió

este curso de PEIP12

… […] son cuatro horas, aí você tiene que fa… hacer,

¿qué te tienes que hacer? Diário. Cuando son las pruebas, corregir pruebas.

(ENTREVISTA NARRATIVA, FÉLIX, 2016).

O narrar de Félix está carregado de uma multiplicidade de sentidos, cuja

compreensão pressupõe adentrar o contexto de onde o participante se enuncia; para se

aproximar do que comporta esta narrativa, é preciso habitar o texto em que ela se configura e

entendê-la contextualmente, como insiste Clandinin e Connely (2011, p. 65-66).

No pensamento narrativo o contexto está sempre presente. Isso inclui noções

tais como contexto temporal, espacial e contexto de outras pessoas. O

contexto é necessário para dar sentido a qualquer pessoa, evento ou coisa

[...]. No pensamento narrativo, a pessoa em contexto é o que interessa.

A temporalidade contextual se lhe apresentava a Félix como uma quase

impossibilidade, como professor de Língua Espanhola atuava em três escolas,

geograficamente distantes, como também distantes se situavam do local onde, por fim, lograra

comprar uma casa e nela habitar. Tangenciado pela urgência em planejar aulas para

aproximadamente vinte turmas, além de ter de lidar com questões de avaliação e registros, as

temporalidades pessoais, o tempo de existir e dar sentido ao existir (Kairós) apresenta-se na

quase totalidade, sobrepujado pelo tempo social e mecânico (Chronos). Nestes desencontros

temporais o docente em início de carreira vive a esquizocronia, tal como enunciado por

Pineau (2003). Ao lidar com tantas turmas e um número tão elevado de alunos na Educação

Básica, o professor principiante tem reduzido a possibilidade de interação com os pares,

parceiros, demais seguimento do contexto da escola. Com tempo rotinizado e mecanizado,

elabora a percepção de que não é possível aprender fora da sala de aula, no dia-a-dia com os

estudantes. O sistema escolar passa a ser concebido como uma engrenagem que dá voltas e

voltas, mecaniza o tempo e o fazer, amortiza o sentir e contextualmente retroalimenta a

12

PORTARIA Nº 161/2016/GS/SEDUC/MT, que institui novas diretrizes organizacionais à formação contínua

de professores e demais servidores na rede.

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sensação de que nenhum professor está em condições de ajudá-lo a aprender, pois também

dão voltas e voltas movidos pela engrenagem. Assim o contexto espacial se lhe apresenta

como inóspito, pouco alentador, um quase impossibilitador do desenvolvimento profissional.

Ao contexto pessoal, restam as queixas ressentidas de quem não recebeu a alvissareira ajuda

que almejava ao ingressar na escola e, no ressentimento que marca o narrar de Félix, o fato de

ser estrangeiro, prepondera.

Y cuando tú estás, es como te digo, como yo te digo, cuando tú estás, entras

en el Estado, cualquier profesor que recién entra “pues ah que!”; lo único,

el único el respaldo que te da a ti entrar en el Estado es que tú estás seguro

en el salario. Mas, después, tú no aprendes nada (bajo tono de voz). Porque

supongamos, tú vienes a una institución, esta institución aquí en la escuela

N, yo vine aquí, los coordinadores y como la palabra misma dice

“COORDINADORES” de coordinarse, ellos nunca me ayudaron en nada

(voz baja, triste, tal vez quejosa). (Pausa) ellos lo único que ellos saben

decir es: “Us… usted la prueba, la puso difícil”. […] Das cuenta, porque

digo, el sistema age así, porque en lugar de ello ayudarte, ello no te ayuda,

no te ajuda! Ellos, ellos te perjudican (pausa) entiendes, y supones que en

esta escuela, que esta escuela es tradicional, tradicional así, aquí es más

conocidos, cuando yo vine aquí, yo era como se dice un nuevo… un animal

aquí, un… un bicho. […] só que yo tengo una línea de pensamiento, yo…

pudo… nosotros allá, es lo que dice, yo tengo un amigo que también es

profesor, él me dice: “¿Sabe cuál el problema de nosotros? Que nosotros

hablamos las cosas. Y acá, no. Acá existe la falsedad”. Dame la mano y por

atrás me apuñala, es la única… yo vine, y aí, yo me choqué con muchas

cosas. (ENTREVISTA NARRATIVA, FÉLIX, 2016).

A maneira como Félix vem apreendendo o contexto escolar está intrinsecamente

vinculada ao contexto de outras pessoas, ao modo como o participante se relaciona com elas,

inclusive em outros contextos. Da ausência do acolhimento que potencialize o

desenvolvimento do docente, nasce a crítica sustentada pela percepção de que uma vez

ingressadas no sistema as pessoas homogeneízam o modo de agir, rechaçam o diferente e o

tratam com dissimulação. Põe-se em marcha o choque entre as duas culturas e o professor

peruano alenta, quiçá, de forma visceralmente parcial, as paisagens que leva dentro de si.

(FERRAROTTI, 2007).13

Creo… oh, si tú comienzas a averiguar bien nos… de mi País, el Perú,

nosotros vivimos una época… dura, de terrorismo, de todo eso, entones,

nosotros, políticamente, venimos preparados…[…] Tenemos pensamientos

y, nosotros, oh (tosse) yo fico sorpreso como Brasil siendo tan grande y tan

rico, porque aquí tiene dinero, aquí quien dice: “Ah, eu no tengo, no, la

situación, la situación está… fea económicamente”; mentira. Cuando la

13

“Cada persona lleva dentro de si sus paisajes”.

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situación está fea, tú no tiene que comer. Pasa por aí, todos los bares llenos,

dónde, aonde que tiene, aonde que tem crisis? Ahm? Tú no ves una banca,

una banca de periódicos, tú no ves una banca de periódicos, aí… bebe todo;

una banca de periódicos coloca los periódicos así para leer y todos lo

tienen, la mayoría se cuesta cincuenta centavos o un real, para comprar su

periódico, y se lo leen todo. Acá, tú mandas a leer un, a un alumno, un

textinho, un texto, él no quiere leer. No quiere leer. ¿Entiendes? Aí, ¿qué va

hacer? (ENTREVISTA NARRATIVA, FÉLIX, 2016).

Desde esta realidade, um entremeio que se configurando entre o Brasil, País onde vive

há mais de uma década e a Terra Natal, Félix como um estrangeiro, esforça-se por firmar-se

neste entremeio – este fato configura importante fator identitário - e muito embora esteja

“olhando com os olhos, está vendo com as recordações, as impressões, leituras precedentes”

(FERRAROTTI, 2007; tradução nossa)14

. Desta mirada dirigida aos problemas que o atingem

contextualmente, podem resultar percepções e críticas procedentes e que, caso tivessem

audiência, poderiam aportar novas maneiras de lidar com dilemas presentes na escola;

conforme é possível inferir a partir do texto de campo produzido pelo pesquisador que, imerso

no contexto de trabalho do participante da pesquisa, evoca a que o sintam e abarquem o lugar

em pauta com um olhar, que o apreenda nas minúcias e aprofunde a compreensão no que no

tange a um dos contextos de atuação de Félix. Contexto onde muitas histórias são vividas,

contadas e tangencia fortemente o modo como ele vem se tornando professor, seja pelos

desafios que se lhe apresenta, seja por inscrever na profissionalização dele conflitos de ordem

identitária, intersubjetiva, política (MARCELO, 199, 2007, 2012; DAY, 2001, 2005;

NÓVOA, 1995, 2009, 2016).

Ao ingressar na EE N, no final de manhã daquela sexta-feira, o visitante

atento perceberia que sentado em um banco à direita do portão de acesso, um

homem negro trajando calça jeans e camisa de mangas longas escutava

atentamente o falar de uma mulher de mediana idade, cabelos amarrados ao

formato de um rabo de cavalo, baixa estatura bem provida de corpo, lábios

grossos que tremulavam ao falar. Caso o visitante seja tocado por este

estranho sentir que o leve a atentar-se à conversação que humaniza as

pessoas, perceberá que em alguns instantes o dizer da mulher vívido e fluído

no usual, ficará embotado, trêmulo e que nestes momentos ela levará a mão à

própria face e com a ponta do dedo indicador enxugará as lágrimas que se

esgueiram entre a lente dos óculos e as pálpebras e deslizam sinuosas pela

face corada e rechonchuda. Depois retomará a fala e com uma voz a que não

é outra coisa senão a presença evocada pelo contar de experiências que

mesclam nostalgia, tristeza e sofrimento, desenredará histórias vividas que

compõem uma rede que entrelaça o viver e, neste caso, o morrer de muitas

pessoas que integram o horizonte vivencial da narradora, pessoas com as

quais se relacionou de múltiplos modos: alunos, pares de profissão, mães de

14

“(...) miramos con los ojos y vemos con los recuerdos, las impresiones, las lecturas precedentes”.

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alunos; alunos-pessoas que trabalham no comércio nos arredores, que pedem

dinheiro na lanchonete, que lideram gangues, traficam, matam, morrem.

Professoras que enlouquecem, mas que não deixam de se reconhecerem na

cotidianidade da escola e nas histórias das pessoas que fazem a escola e que

ao ser convidada para o evento que visa a provocar a rememoração,

reconhece-se na lembrança do tempo em que fora professora, do tempo em

que comia da comida trazida pela amiga professora. Professor que ao ser

abordado por um assaltante ante o portão da casa que sempre vivera aponta

em direção à escola localizada a poucas quadras dali e se nega a ser

vitimado: “Vai me assaltar? Vai assaltar a um professor? Sou professor desta

escola há décadas, você deve me conhecer e quer me assaltar?!”. Professor

que desafia a barbárie protegido pelo frágil escudo profissional, pela

indignação de não ser reconhecido, volta as costas para o motoqueiro que

anunciara o assalto, abre o portão e entra em casa. Motoqueiro,

possivelmente ex-aluno, segue o passo, desiste do intento, um atentado

contra o mestre autêntico. O homem negro parece um pouco perplexo ante

este contar que o ronda, areia movediça que o envolve, labirinto inescapável.

Mas, justo ele foi quem incitara a moça a falar e fizera porque queria saber

mais destas histórias nas quais imergira ao filmar um dos encontros de

formação nesta escola. Encontro em que fora mencionado muitas vezes o

evento que ocorreria em novembro, curioso quis saber. Por quê? Se já sabia

que quem ouve este narrar não está incólume ao sofrer? Fato é que tendo

retornado à escola em busca do professor que participa da pesquisa que ora

desenvolve, levado por razões que transcendem o logos grego ou a razão

cartesiana, dissera à coordenadora que estava curioso por saber do Projeto:

“Nossa Escola tem História”, cuja culminância se dera em novembro. Agora,

enredado nas tramas deste dizer que tangencia muitas temporalidades,

emociona, repulsa, contagia; ouve que na gestão atual a comunidade do

entorno, os alunos são concebidos como bandidos e como tal, tem o acesso

cerceado; a narradora discorda, pois são pessoas e assim é que tem de ser

tratados. Lágrimas derretem a moldura destes últimos enunciados. (DIÁRIO

DO PESQUISADOR, 2015)

A narrativa posposta demonstra primeiramente, que os contextos escolares são

complexos, atravessam-nos uma infinitude de experiências marcadas no acontecer que suscita

uma gama imensurável de sentidos (LARROSA, 2014) erigidos nestas experiências, eles

apontam múltiplas direções às pessoas que ali se inserem. Pessoas que os povoam com as

próprias histórias. Em segundo lugar o narrado instiga a pensar quão difícil é inserir-se nestes

espaços plenos de relações, subjetivações e intersubjetividades. Espaço, porquanto, eivado de

conflitos, resistências, afirmações, gritos e silêncios, no qual o postulante à docência ingressa

em meio a toda esta movimentação, contudo, necessita se situar. Celeremente, o professor

principiante tem de entender a cultura docente e adentrar nos saberes, valores e símbolos da

profissão; fazer desta cultura parte integrante da própria personalidade, isto tudo, aprendendo

enquanto ensina (VAILLANT; MARCELO, 2012). Para tornar ainda mais complexos os

dilemas vivenciados pelos participantes desta pesquisa, em nenhuma das escolas foi constada

a existência de programas e/ou políticas voltadas especificamente aos docentes principiantes,

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tal como ocorre em muitos países europeus, Estados Unidos, parte da América Latina e

mesmo em alguns estados brasileiros, em que os programas de inserção são pensados, embora

em perspectivas e formatos distintos, como propostas específicas para a inserção, entendida,

como etapa distinta tanto da formação inicial quanto da formação em serviço. (MARCELO,

2007; VAILLANT; MARCELO, 2012; DAY, 2005).

Tocado pela percepção dos conflitos com os quais se deparam, em maior ou menor

intensidade, os participantes desta pesquisa, faço coro à pergunta apresentada por Marcelo e

Vaillant (2012, p. 134/5) “como conseguir que a docência seja uma profissão atrativa?” E

como conseguir manter na docência o maior número possível de professores que se destacam

nos respectivos contextos de atuação? Estes questionamentos procedem à medida que o não

atendimento a problemas que os professores principiantes enfrentam nos contextos escolares

resulta, muitas vezes, no abandono da profissão (MARCELO, 1999, 2007). Por mais

comprometidos e apaixonados (DAY, 2005) que sejam pela docência, os professores

principiantes para que possam se constituir como pessoas e profissionais capazes, necessitam

do acolhimento no seio de uma comunidade de aprendizagem, construída autonomamente

pelo coletivo de profissionais docentes em parceria com outras redes e instituições (NÓVOA,

1992, 1995, 2009, 2016). Entretanto, nos contextos onde atuam os participantes desta

pesquisa, nem sempre estes coletivos estão organizados como comunidades aprendentes,

então, o principiante é lançado à arena e tem de lutar para sobreviver sem sequer saber qual

rival o espreita, tampouco com quais armas poderá se defender, instaura-se muitos conflitos

de ordem cognitiva, relacional, ética, identitária, profissional. Conflitos presentes também na

narrativa que segue.

O visitante é agora instado a atentar-se aos dois homens, cuja conversação se

dá em castelhano. O primeiro, uma figura longilínea, negro de cabelos

curtos, olhos pequenos e castanhos, magro e alto. O segundo, baixo, traços

indígenas, cabelos curtos e escovados, dão a ele certo ar de jovialidade,

talvez realçado pela bermuda jeans e a camiseta branca. A conversa tem

início no mesmo local onde antes o primeiro homem e uma mulher

estiveram. Entretanto, instantes depois, o segundo homem convida a que

ingressem na sala ao lado, pois, ali onde estavam não diria o que tinha a

dizer. Ingressam na sala e, antes mesmo de se sentar, após depor sobre a

carteira a pesada mochila que trazia às costas, o homem que trajava a

bermuda jeans enuncia que sofre de xenofobia. O negro parece frangir a

testa, numa interrogativa sem palavras. O provável descendente dos Incas

percebe e prossegue. Conta das dificuldades que tem enfrentado para se

firmar como professor de Língua Espanhola, pois compreende que antes da

gramática, da sintaxe, da estrutura da Língua é preciso levar os alunos a

vivenciarem a cultura das pessoas constituídas por esta Língua. Não

obstante, os pares, incluída a equipe gestora, não parecem comungar desta

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percepção, tampouco parecem dispostos a aceitá-la, haja vista terem

enunciado no colegiado que tornarão o Espanhol uma disciplina optativa,

portanto não obrigatória. Mas, o herdeiro de Tupac, obstinado pretende ir à

secretaria de educação reivindicar os respectivos direitos de professor

efetivo. Aguerrido guerreiro padecendo dos dilemas de não ser mais que um

estrangeiro: “Esta semana fue difícil, muy difícil”. Entretece um contar no

qual reafirma o mérito pessoal por ali estar, assim denuncia o não

reconhecimento deste direito, pelo qual, mesmo sendo sobejamente capaz,

necessita constantemente lutar. Queixa-se de ser criticado e não ser ajudado,

como o fora em outras épocas em outra escola, na qual fora capaz de

desenvolver um trabalho bastante aceito e valorizado: Uma feira de

conhecimentos em que os alunos pesquisaram e expuseram aspectos

culturais de diversos países latinos. Por fim, anuncia que pretende pedir

remoção daquela instituição. Depois, evoca a possibilidade bastante tangível

de naturalização, a ajuda financeira e afetiva que tem destinado a um irmão e

a compra de uma casa nestas terras, nas quais vem se esforçando para viver

como cidadão. (DIÁRIO DO PESQUISADOR, 2015).

Tangenciadas que estão pelo olhar do estrangeiro, as críticas advindas da percepção

deste professor principiante podem dar passo à intolerância, ao etnocentrismo, gerar não

aceitação, ruptura dialógica e sofrimento, já bastante presente nas narrativas do docente. Mas,

na perspectiva em que os humanos vêm se constituindo (GADAMER, 2002), uma mirada

pode engendrar muitas percepções, antagônicas, por vezes e Félix, no processo muito peculiar

em que vem se tornando professor (FLORES, 2010), também vivencia este antagonismo

salutar, por assim dizer, e, isto, leva-o a compadecer do outro e buscar compreender as

paisagens que este outro leva dentro de si (FERRAROTTI, 2011).

Adolecente de trece, catorce años, está embarazada, ya está embarazada.

Embarazo, embarazo, embarazo… y algunas tienen abandonado. Tiene

alumno drogadicto. Es eso el mercado que todos tenemos en sala de aula

(tono de queja). Drogadictos, embarazada, hijas, también… violadas (baixo

tom de voz), pai alcohólico, (Vozes se elevam ao fundo) llega y le pega a la

mama, ellos son violentos. Por eso que, a veces, cuando yo veo violencia en

la escuela, a veces primer el alumno me reza también, me pongo a querer

llegar a él “Ham, que no se qué”, jugar algo, una jugadita aquí, otra jugada

por aquí, ¿no?

[…] Para sacarle informaciones, aí cuando conozco aquella información,

¡Vixe Maria! Es… ¡Sufrido demás! (Pausa). Si tú lo réprobas, él ya no viene

más a la escuela, lo que más quiere es el certificado al terminar el ensino

medio, esto para ellos es lo máximo. (ENTREVISTA NARRATIVA, FÉLIX,

2016).

Desde este entrelugar (HALL, 2005) identitário, cultural que vem erigindo sempre em

contexto, Felix, em dados momentos, elabora uma narrativa fortemente matizada por

percepções bastante aprofundadas referidas a muitos paradoxos vigentes em contextos

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híbridos, nos quais se movem crenças, ideias e fazeres que integram os paradigmas, sobre os

quais vem sendo forjado o ensino formal, quando mencionada a Educação Básica no Brasil.

[…] si tú te pones a pensar, de lo que yo te hablo, es lo mismo que todo

mundo. De todo profesor, la misma problemática. No tiene otra

problemática. Es igual al profesor que trabaja en la escuela particular, en

la escuela particular, él da aulas en la escuela particular, avanza y todo,

¿por qué él avanza y faz y los alumnos hacen? No creo que lo hace porque

los alumnos allá son buenos, no, sabes por qué, porque o papá de ese

alumno, ese alumno no va solamente a la escuela, él faz curso de kumon, él

faz curso de portugués, qué más, aula de violão, aula de eso…(…) Una vez,

yo escuché allá un profesor Pardal hablando: “Ah, que vamos hacer un

aula y los alumnos, que no sé más”, claro que ellos hacen… claro que ellos

hacen, porque ellos tienen plata. Que papá… aquí, no, aquí, el alumno de

aquí se va adónde, a su casa, come, viene Cadeia Neles15

, ver lo futbol, hoy

día, y duerme. Se levanta a las cuatro, está esperando que baje al sol para ir

a andar por aí. En la noche, si pone a ver la televisión, la novela una sobre,

sobre otra, apaga la televisión a las diez de la noche, se pone en el

facebook, computadora y llegó media noche (golpea las manos una en

contra la otra) a dormir, viene aquí, y, no sabe ni que le dejaron… le

dejaron en el cuaderno. “Ah você dejó” “No, você no dejó” (Pausa).

¿Entiendes? Es la… (ENTREVISTA NARRATIVA, FÉLIX, 2016).

Merece menção esta observação, quanto mais quando vinda de um viajante nestas

terras de Pindorama. Neste excerto Félix analisa com argucidade antropológica o cotidiano

daqueles a quem assiste; demonstra atentar-se ao modus vivendis tanto do público que acorre

às escolas em que atua, como de outros grupos sócio-culturais, a que pertencem. Evoca neste

falar a dual constituição do sistema de ensino no Brasil, isto a partir do contexto escolar onde

trabalha na junção com os contextos dos estudantes com os quais convive. Construção

laboriosa de um professor principiante que lança uma mirada própria à educação formal no

Brasil e denúncia, conforme narrado no entrecho seguinte, as condições de trabalho docente, a

sobreposição do tempo rotinizado sobre outras temporalidades, a proletarização do trabalho

do professor (NÓVOA, 1995).

[…] Como están y si continúan así, va a entrar en colapso. Porque cada día

que… que ellos quieren colocar una cosa para los profesores, así, ellos

colocan, aquí se dice, ¿cómo se llama? Educación continuada, Formación

continuada, mas de Formación continuada, no tiene nada. Porque tú que

tienes que venir, tú que tienes… implantaron un paquete con trescientas

horas, aí tú tienes que leer. Hay unos que dicen: “No, yo no voy leer en mi

casa, ya tengo bastante trabajo, todo día voy a leer en mi casa, ah no, yo

voy a leer aquí”. Y, aí, lee y leemos, tú crees que uno va a leer y ¿tú vas a

entender? Alguien vino, que es Formación continuada, ¿alguien vino dar la

15

Programa televisivo de cunho policial, com forte apelo popular.

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formación, a explicarnos? (Multitud de voces) a dar una metodología. Nos,

nosotros que tenemos que buscar la manera. Por eso, te estoy diciendo, el

profesor que tiene dos trabajos, de profesor, da aula mañana, de tarde y de

noche, ¿Tú crees que él va a querer llevar hojas para estudiar en casa? ¿Y

los hijos que tiene? ¿Y si tiene marido? Como te dice, primero, todo va a

colapso en tu vida familiar. Todo va al colapso, que te vas dejando cada día

más, más. (ENTREVISTA NARRATIVA, FÉLIX, 2016).

Na resistência característica das pessoas que não abdicam de ser gente, Félix entretece

uma história de desencontros, estranhamentos, complexidade e sofrimento. Uma narrativa que

toca pela crueza e autenticidade com que se move e a outros move. Quem sabe, seja por essa

entrega ao narrar que o Peruano tenha exigido inserir a entrevista no fluxo da conversação,

para se dizer, ele necessita ir além de uma fala roteirizada, feita entrevista. Necessita um

espaço, temporalidades e audiências que possam se expandir continuamente, a fim de

açambarcar, apropriar e ressignificar o enunciar feito de clamores, proferidos em tom

anedótico; tristeza metamorfoseada em risos; críticas temperadas por gracejos, porém,

entretecidas com toda seriedade.

A sua maneira Odisseu também reclama uma audiência capaz de acompanhar e

compreender as nuance que compõem o narrar perpetrado por vivências nas quais e por meio

das quais este professor principiante vem se constituindo (CONNELLY; CLANDININ, 1995;

CONTRERAS, 2016). As narrativas de Odisseu, de certo modo, o constituem, pois

inauguram no instante em que são construídas, pontes entre o passado e o porvir e, no

horizonte que se lhe apresenta, abrem-se novas perspectivas. Rememora e projeta e constrói

outras possibilidades no ato de narrar-se tal qual aquele Contador de Histórias Grego, de

quem herdara o epíteto. Mas, somente após intensa negociação com o pesquisador que lograra

elaborar junto com o participante o entendimento de que as narrativas que vinha produzindo,

o lançava em uma existencialidade discursiva, identitária e ontológica, concordara em ser

Odisseu.

[...] Neste ritmo a conversação ganha corpora e passo a negociar com ele um

codinome com o qual se apresentaria na tese, rememoramos que venho

insistindo nisto, apesar dele dizer que não há problema em ser apresentado

no texto da tese com o nome próprio. Argumento que tal insistência se deve

ao fato de que uma vez apresentado o texto permanece e, a identidade dos

sujeitos evolui continuamente. Recorro às interpretações das narrativas que

vimos produzindo com o intuito de que ele perceba que este codinome não

seria escolhido ao acaso, ainda que ele não o escolhera por si mesmo.

Retomo a grande narrativa da Odisseia, tento demonstrar que Odisseu

constitui-se pelo próprio narrar, em seguida evoco o fato de que ele também

recorre a narrativas em diversas circunstâncias tanto em sala de aula, quanto

em nossas conversas. Ele concorda, então arremato: no texto da tese,

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pretendo chamá-lo Odisseu, ele gargalha demoradamente, rio junto. Ao fim,

percebo que não está disposto a ser chamado por nenhum codinome por mais

plausível que seja. Neste ínterim, o professor narra as experiências que tivera

como vendedor: em um destes trabalhos fora apelidado pelo patrão, com o

passar do tempo, este fato o incomodou tanto que, ao mudar de emprego

diante da primeira pessoa que o chamou por um novo apelido, assumiu uma

postura que segundo ele chocou ao outro: “Meu nome é S!”. Teria sido

reprochado inicialmente, mas nunca mais aceitou ser denominado por outros

nomes. Passo a expor todos os codinomes negociados com os demais

participantes e os motivos por foram escolhidos, à exceção do professor

Felix que, assim como ele, insiste em ser apresentado no texto da tese com o

nome próprio: “La história me juzgará!”, dissera o outro participante

mencionado, referenciando-se em Fidel Castro.

Feitas estas ponderações, afirmei que ele é quem decidiria, então ele disse

que agora compreendera e que estava tudo bem, insisto que, caso, queira o

apresentarei com nome próprio e ele rebate que entendeu e que está disposto

a ser denominado na tese por Odisseu. (Diário do pesquisador, 2016).

A investigação narrativa, de fato, institui novos lugares nos quais o pesquisador,

imerge nas paisagens narradas e ao vivenciá-las com o participante vai negociando e

compondo junto a ele os sentidos que sustentam a relação entre ambos (CONNELLY;

CLANDININ, 1995; CLANDININ; CONNELLY, 2011). Por vezes, enseja o diálogo vivo e

já não são mais os mesmos que principiarem a conversa, no curso dela algo se move no

horizonte, algo lhes acontece (GADAMER, 2002). O pesquisador, ao compreender os

motivos que levam o participante a rechaçar o codinome que passara horas persignando na

confluência entre as narrativas que vinha elaborando com aquele e todas as outras histórias

que compunham o viver dele próprio, como pessoa, professor, pesquisador, olha desde outro

prisma e explicita as razões para a eleição do pseudônimo. Mas, não visa a persuadir o

participante, porque agora sabe da motivação daquele que, por sua vez, entende a perspectiva

do pesquisador e assente positivamente. Ocorre deste modo, o encontro entre as duas

perspectivas e, doravante Odisseu passa a se configurar como apropriação também do

participante da pesquisa.

Envolto no processo em que elabora as respectivas narrativas Odisseu está atento ao

tempo presente, aos dilemas presentes, o viver neste presente, disto estão feitas as histórias

que compõem teu narrar. Aqui assume a posição de quem viu, ouviu, sentiu, viveu, por isso

tem algo que dizer (CLANDININ; CONELLY, 2011).

Ao ingressar na docência da educação básica, pude ouvir e, ver com meus

próprios olhos que a situação é muito complicada, pois realmente crianças e

adolescentes são tratados pelo sistema legal como seres desprovidos de

inteligência, incapazes de perceberem entre o certo e errado. Há proibições

sim, mas se desrespeitadas, não ocorrem punições exemplares no sistema

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legal para desencorajar as atitudes descabidas, desrespeitosas e delinquentes

por parte de muitos em nossa pátria varonil. Limites apenas em uma

conversa macia, não surte efeito para todos. Muitos tiram proveito da

impunidade, deixando-nos impotentes para lidar com muitas situações nas

quais estes são envolvidos. Tenho alunos de onze e doze anos que

questionam o estatuto da criança e do adolescente, julgam-no permissivo e

incentivador de atitudes erradas pelos que já têm tendências negativas. E

preciso criar mecanismos legais de coerção, para desencorajar jovens

infratores que, se não trabalhados adequadamente na proporção necessária

caso a caso, serão problemas graves no futuro como muitos exemplos que

bem conhecemos atualmente. (NARRATIVAS ESCRITAS, ODISSEU,

2015).

Ao adentrar a docência, Odisseu se depara com interações na sala de aula que diferem

daquelas que, possivelmente vicejava como sendo ideais entre professor e aluno, ressente-se

ao não poder gerir a sala de aula segundo os preceitos de disciplina a que aspira. Questões

disciplinares constituem um nó górdio na negociação das relações estabelecidas nos contextos

escolares, no caso dos professores principiantes, configuram-se como um grande problema, à

medida que sem ter elaborado ainda experiências que os referencie no novo contexto de

atuação, buscam ao longo do próprio percurso exemplos nos quais possam se referenciar e,

por ensaio e erro, tendem a hora serem autoritários, hora demasiadamente liberais em busca

do mítico domínio de sala, comparando-se a um ideal que não existe (VAILLANT;

MARCELO, 2012). Quando deixados a própria sorte despendem muita energia buscando o

equilíbrio, aspecto que afeta diretamente a qualidade das aulas, assim como as percepções do

docente no que concerne ao próprio processo de profissionalização e as perspectivas que lhe

permitam sentir e ver a si mesmo como docente com vistas a se desenvolver na rotina diária

da vida escolar, já que “o sentido do desenvolvimento profissional dos professores depende

das suas vidas pessoais e profissionais e das políticas e contextos escolares nos quais realizam

a sua actividade docente” (DAY, 2001, p. 15).

Sem apoio que lhe permita perspectivar no porvir condições condizentes com o

sentido de desenvolvimento profissional que entrecruze a vida pessoal, os aspectos

profissionais e as políticas no contexto onde atua, Odisseu volta-se a esfera educacional e

tenta se situar ante os dilemas que vivencia contextualmente da melhor maneira que logra

fazê-lo, entretanto no âmbito educacional, o melhor nem sempre é o bastante. É preciso

pensar questões como as apresentadas por este principiante a partir dos impactos que as

transformações sociais provocam no contexto da sala de aula, pois influenciam as relações

entre professores e alunos, frequentemente marcado por conflitos que colocam em cheque as

relações que se estabelecem entre os docentes e os estudantes no que concerne à autoridade e

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à disciplina. Sendo que estes conflitos surgem em muitas ocasiões e derivam, dentre outros

fatores, das dificuldades que professores, ainda que jovens e principiantes, encontram para

lidar com o público heterogêneo que atualmente acorre às escolas públicas. Deste modo, as

transformações sociais que operam também sobre o contexto da sala de aula pressupõem uma

revisão profunda de muitos conteúdos curriculares, fato que torna ainda mais difícil a

caminhada dos professores em início de desenvolvimento profissional (VAILLANT;

MARCELO, 2012). Questões estruturais que não são solucionadas pela ação isolada de um

professor, ainda que se lançasse a elas utópica e quixotescamente, Odisseu pelo que vem

vivendo na escola, sabe disso.

Todos esses problemas transitam nas unidades educacionais em maior ou

menor proporção. Eu acredito que é possível melhorar a educação, mas isso

não depende apenas do professor, ou da unidade escolar. É um problema

social. Muitos dizem: esse problema precisa ser enfrentado. Então eu

pergunto: quando e como? A sociedade vai continuar empurrando o

problema para ser resolvido no futuro? Continuar a premiar infratores de

qualquer ordem alegando direitos? Direitos, deveriam exigir deveres

imediatos. Deveres não cumpridos, deveria exigir compensação imediata.

Somente com atitudes de todos os segmentos da sociedade teremos

mudanças reais e de transformação para uma juventude perdida em direitos e

mais direitos que não servem para muitos destes repensarem suas atitudes. A

sociedade está se tornando vítima de sua própria permissividade. A escola

está em dificuldade para realizar seu trabalho. Professores e funcionários

precisam tomar cuidado com cada palavra que dizem, pois podem ser

processados até por uma palavra mal interpretada, ao passo que alunos

fazem e falam tudo que quiserem sem se preocupar com maiores

consequências. Palavrões, brigas e agressões ocorrem na escola Brasil afora.

(NARRATIVA ESCRITA, ODISSEU, 2015).

Findo o primeiro ano desde que ingressara como professor concursado na Rede

Estadual de Ensino, o participante percebe a complexidade do trabalho docente no contexto

da Educação Básica em uma escola de periferia, a experiencia cotidianamente e no processo

em que vem se tornando professor, perscruta o horizonte, formula muitas questões para si

mesmo, amplia a compreensão parece evocar aquilo a que Gadamer (2002) conceitua como

“autoridade”. Todavia, para o professor principiante tangido por problemas a pedirem

premência, o termo não se lhe apresenta com a mesma clareza iluminativa dos escritos do

pensador alemão e, por vezes, o tom poderia dar margem ao entendimento de que se trata de

uma denúncia exasperada. Não obstante, quando perquiridas em processo e contextualmente,

as narrativas de Odisseu dão passo a outras miradas, das quais podem emergir outros

entendimentos. Dentre eles, a percepção de que está inteiramente comprometido com o

público com o qual trabalha e que, mesmo ante a voracidade dos dilemas que o acossam,

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envereda pelas franjas de outras temporalidades (PINEAU, 2003; VIEIRA, 2015) e, ainda

que, estando preso ao presente, espreita veredas que tornem possível vir a ser o docente que

potencialmente, poderia se tornar.

[...] A conversa acontece na temporalidade peculiar e na expressividade

marcada do professor que afirma ter enfrentado dificuldades, mas ter

igualmente aprendido este ano. “Professor, eu sei que é impossível, mas o

que eu quero é aprender a ensinar alunos que não querem aprender! Quero

ser o cara na Educação! Que quando eu chegar os alunos digam: ‘esse

professor é o cara!’ Sempre trabalhei na iniciativa privada e sempre tive de

prestar contas de meu trabalho a alguém, não é porque agora sou servidor

público que vou deixar de lado a minha responsabilidade.” (DIÁRIO DO

PESQUISADOR, 2015).

Nas teias que vai tecendo, os dilemas enfrentados em âmbito escolar, dos quais, parece

estar claro, não pode, tampouco deseja escapar incólume. Problemas que, a julgar pelo narrar

de Odisseu, não estão dissociados da questão social que em maior ou menor proporção afeta a

todos. Percepção relevante de um professor principiante que não tem medo de almejar ao que

se lhe dizem ser impossível: ensinar até para aqueles que não queiram aprender e, mais, ser

reconhecido pelo êxito como docente. Entretanto, não ambiciona o reconhecimento de

autoridades, não menciona, neste aspecto sequer os pares, professores, busca ser reconhecido

por aqueles a quem assiste como estudantes. Singelo desejo, poesia autopoiética,

sustentáculos dos sonhos projetados com olhos abertos. Neste processo, narra descobertas,

aprendizagens e novas maneiras de fazer face ao porvir. E, característico de Odisseu este

narrar se compõe de muitas histórias que tocaram ao professor principiante, converteram-se

em experiências, pois o conclamaram a procurar novos modos de pensar (CONTRERAS,

2016), outras possibilidades para interagir com os estudantes, aspecto complexo e essencial

no processo de constituição de professores principiantes (MARCELO, 2007; 2008; DAY,

2005). Assim, não, por acaso o termo experiência aparece como núcleo sujeito da oração com

a qual intitula a narrativa escrita que produzira no limiar de 2015. Oração que a propósito está

predicada com um adjunto adverbial de lugar que, remete a paisagem intensamente

vivenciada por Odisseu, a sala de aula, porquanto não se trata de uma experiência qualquer,

mas daquela vivida e corporificada (LARROSA, 2014) pelo participante, por isso, antecedida

pelo pronome possessivo de primeira pessoa.

Minhas experiências em sala de aula.

Profissionalmente, o ano de 2015 foi um ano muito bom, pois nesse momento, sinto-

me mais à vontade e seguro em sala de aula. As experiências adquiridas durante esses dois

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anos no desenvolvimento de meu trabalho, fizeram com que tenha um olhar mais atento às

necessidades dos alunos. Agora neste último ano procurei interagir com os alunos através de

uma forma que considero mais adequada ou diferenciada do que em meu primeiro ano nessa

missão que é servir como mediador nesse importante processo de desenvolvimento na vida

desses pequenos.

Nesse final de ano de 2015, tenho refletido bastante sobre o caminho percorrido como

professor desde o ano de dois mil e quatorze, ou seja, dois anos completos.

Agora, findando meu segundo ano, integrado à escola, percebo que muito ainda tenho

a aprender nesta jornada. Por quê? Porque entre a teoria e a prática é necessário construir

pontes. E elas são construídas no dia a dia com os alunos, tendo em vista seu pleno

desenvolvimento escolar [...]. ( NARRATIVA ESCRITA ODISSEU, 2015).

Ao findar o segundo ano desde que se integrara à escola percebe que tudo está por

aprender, pois é necessário construir pontes entre as teorias – saber de outrem- e prática –

saber de si- e tal intento pode-se lograr somente nas interações cotidianas, na experiência

comum vivida com os estudantes na trivialidade da sala de aula. Na construção destas

experiências mais holísticas e menos duais, o participante, caso lograsse inserir-se em um

coletivo de aprendizagens desde dentro da escola poderia elaborar a compreensão de que é

necessário centrar-se no sujeito que aprende, nas necessidades e vivências que o tocam, mais

que em um currículo fechado, aspecto ressaltado por Vaillant e Marcelo (2012) quando

retomam o conceito de heutagogia elaborado por Kenyon e Hase (2010) com vistas a

comentar que “a aprendizagem ocorre quando aquele que vai aprender está preparado e não

quando o docente pensa que ela deveria ocorrer, e também ocorre como conseqüência de

alguma experiência que normalmente está fora do controle do educador” (VAILLANT;

MARCELO, 2012, p. 35).

Dois anos foram necessários para que Odisseu pudesse se sentir mais seguro ante os

próprios alunos, quão desafiadores são os contextos vigentes na escola. O professor em início

de desenvolvimento profissional, possivelmente, teve de lidar, dentre outros, com a afirmação

dos saberes pessoais ante as culturas presentes na escola, no entanto, de alguns destes saberes

teve de se despir, outros ressignificar, de outros tantos teve de apropriar por meio das

experiências pelos quais se deixou tocar, quantos conflitos neste processo! Mas, por fim, pode

dizer que após este tempo vivendo a profissão docente está mais atento às necessidades dos

alunos (DAY, 2001; HUBEMAN, 1995), foi preciso percorrer um longo caminho, para então

iniciar a caminhada.

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[...] Trabalhei nesse período em uma escola em que grande parte da

comunidade local é constituída de famílias de baixa renda, e, alguns

problemas sociais característicos são muito concentrados naquela região.

Certo dia, no início de minha carreira profissional, enquanto conversava com

um professor mais experiente, sobre o progresso que aluno pode alcançar em

sua vida escolar, não dei crédito e até contestei quando o mesmo afirmou

que o contexto familiar e social pode, e, na maioria das vezes influencia nas

perspectivas e rendimento escolar da criança. Depois de algum tempo

comecei a perceber que a escola não consegue sozinha dar conta dessa

grande tarefa que é a transformação do aluno em cidadão capaz e consciente

em um mundo que a cada dia cobra mais e mais de cada ser pensante em

uma sociedade que não se detém em seu desenvolvimento. Então, o apoio

familiar é fundamental para o desenvolvimento de cada infante.

(NARRATIVA ESCRITA ODISSEU, 2015).

Ao observar os estudantes onde vivem os estudantes, Odisseu é levado à percepção da

própria paisagem em que aqueles se movem e habitam e povoam como pessoas em interação

constante na escola e para além, muito além da escola, de modo que trazem estas paisagens

dentro de si. Contextos que, podem ser historiados pelo professor, narrador e personagem da

própria história e de outras narratologias, que aprendeu a olhar, escutar, a compor narrativas

que integram muitas histórias que configuram vidas reladas e representam a forma como os

seres humanos experimentam o mundo. Principiante que não deixa esquecer que a educação

pode ser compreendida como a construção e a reelaboração das histórias pessoais e coletivas;

“16

tanto os professores como os alunos são contadores de histórias e também personagens nas

histórias dos demais e das próprias histórias” (CONNELLY; CLANDININ, 1995, p. 12). De

maneira que ao relatar o vivido, Odisseu compõe os sentidos da própria história na interface

com as histórias dos estudantes, dos pares, dos pais, da comunidade de influência no contexto

onde atua.

Neste contexto, quero destacar no ano passado uma aluna do oitavo ano

constituído de vinte e oito alunos, a mesma muito dedicada e capaz somando

a mais cinco que se sobressaiam entre os demais. A mãe desta, formada em

turismo, sempre acompanhou a vida escolar da filha, a qual podemos chamar

de Léia (nome fictício). Pude perceber que a dedicação da mãe em ter

participação ativa nesse processo foi essencial no desempenho da aluna. Um

outro aluno que também se destacou entre seus colegas do sétimo ano em

dois mil e quinze foi Fabiano (nome fictício). A presença dos pais na escola

foi constante, para se informarem in loco, e acompanhar o filho em todas as

situações que se fizessem necessárias. A grande maioria dos colegas de sala

desses dois alunos, cujos pais não se preocupavam ou apresentavam

dificuldade em acompanhar o crescimento intelectual dos mesmos, não se

percebia o mesmo resultado, pois, era visível o pífio desenvolvimento destes.

16

Livre tradução do original em espanhol.

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Uma situação que destaco com tristeza é caso de Alfredo (nome fictício).

Este, um garoto do sétimo ano, apresentando déficit de atenção e

consequentemente grande dificuldade em assimilar conteúdo. Essa situação

ocorreu em dois mil e quatorze. Já no mês de outubro, sua mãe esteve na

escola, e, quando interpelada por mim e a professora de matemática para

conversar sobre as dificuldades do filho, a mesma alegou que não sabia

dessa grave situação apresentada. Mas, quando indagada se a mesma não

observava o caderno do filho, sem conteúdo, a mesma deu uma resposta

negativa. Essa infelizmente é a realidade de muitas crianças e adolescentes.

Acredito que situações como essas ocorrem devido à incompreensão ou

dificuldade de muitos pais no acompanhamento em casa desses pequenos.

Assim são criadas potenciais consequências negativas na vida de cada um

desses estudantes não assistidos adequadamente em casa. (NARRATIVA

ESCRITA, ODISSEU, 2015).

Odisseu se reconhece nas narrativas dos estudantes com os quais convive, aproxima-

se, adentra e as povoa (FERRAROTTI, 2011); porque se deixa tocar por elas, vive

experiências (LARROSA, 2014) que provocam um novo sentir e um novo pensar. Embebido

em lucidez, percebe-se um ser em relação com os estudantes, com a mãe dedicada, com a mãe

desatenta e no encantamento daquele que aprende se alegra, no desalento do que não

consegue avançar a contento, entristece; agora sabe que não pode caminhar sozinho porque

árduo é o caminho. Todavia, experimentou a gratificação de ajudar o outro a desenvolver as

disposições que o tornam maior como pessoa e rejubila-se por ter participado deste processo.

É gratificante quando se vê o desenvolvimento intelectual desses infantes.

Saber que pudemos contribuir para seu progresso cultural. Porém o caminho,

já percebo, é árduo e cheio de muitos vieses, variando de aluno a aluno.

Expandindo ou diminuindo as possibilidades acima. (NARRATIVA

ESCRITA, ODISSEU, 2015).

Tocado por estas experiências que, de certo modo, atravessam e se integram à

trajetória na qual e pela qual vem se constituindo este docente em início de desenvolvimento

profissional inaugura uma nova espiral epistemológica na trajetória de formação, a teoria

antes compreendida como o saber de outrem, vindo de alhures para iluminar a prática aqui e

agora, passa a ser questionada, entendida na necessária reconstituição requerida pelas práticas

temporalizadas no tempo e lugar presentes.

[...] nestas nossas reuniões a princípio da... no primeiro ano, que participei da

coisa, eu achei que era um, como que eu posso dizer, perda de tempo né, mas

eu comecei a analisar com atenção, a partir do ano passado e neste ano, é...

por que a gente via como perda de tempo? Porque existem, é tratado sobre

muitas teorias; muitas teorias da educação, que “isso não pode”, que “isso

não tá certo”, não dá. E na realidade, é... entre a teoria e a prática existe um

abismo muito grande. Muitas vezes, nestas reuniões quando se fala “Olha, a

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metodologia correta é esta” né, e... as vezes, vem o questionamento: “todos

que estão aqui, isso aqui, esse tipo de assunto não”, é... existe aí, essa defesa

toda por pessoas que... desenvolveram essa teoria, mas, isso não funciona.

Mas, por que não funciona, né? Porque, a situação, como eu disse, na escola

que eu trabalhava, nem sempre a metodologia que eu utilizava lá, vai

funcionar na escola que eu trabalho hoje. Porque o público é diferente.

Então, o mundo destas teorias que a gente estuda, por que não dá certo?

Porque a situação atual, público local, daquela comunidade né, é... e também

a situação, o tempo é outro, os tempos são outros, a forma como as pessoas

percebem a vida, é diferente muitas vezes, da época em que esse teórico

criou essa teoria né. Uma pessoa que criou uma teoria, por exemplo, nos

anos setenta, a realidade da comunidade era totalmente diferente, a

sociedade pensava diferente, reagia diferente aos mesmos estímulos de hoje.

Então assim, mas hoje, eu... é importante sim! Porque a gente analisa aquela

teoria tudo que é... é posto à mesa ali, né, pra nós e, tem que analisar por que

não dá certo e procurar um caminho melhor. Então, é importante.

(ENTREVISTA NARRATIVA, ODISSEU, 2016).

Após dois anos atuando nos contextos de uma escola, Odisseu se transfere para outra

instituição de ensino e, nas paisagens que compõem este novo lugar, o aprendiz da docência

prossegue na senda em que vinha construindo, por meio do trabalho, um jeito próprio de estar

sendo na profissão professor. Nesta transição, elabora, continuamente modos de averiguar os

novos contextos em que está se inserindo e, ao cotejar esta instituição àquela na qual se

iniciara na carreira docente, é instado a se deixar tocar por novos acontecimentos, elaborar

novas experiências.

[...] Quando eu mudei de uma escola pra outra. Eu achei que foi muito bom

porque eu percebi a... a identidade da escola, ela não é igual às demais. Ela

tem identidade própria, existem situações totalmente diferentes é... das

demais. Então, assim, foi muito bom pra mim. Ah, na primeira escola, escola

D, que eu trabalhava é... a gente percebia assim, uma necessidade muito

grande, como o senhor mesmo, estamos citando, né; a questão... social, a

questão financeira da comunidade né, e, na nova escola que eu trabalho

agora, escola C, que fica ali no Jardim Itamarati, é... a gente vê uma

diferença na... na comunidade escolar, né. Os alunos, assim, a... a... como

que eu posso dizer, a questão de números né, proporcionalmente falando, é

bem maior é... a questão do interesse, a questão de... assim, reagir com o

professor em sala de aula, né. Então, eles dão mais atenção; é lógico que

existem problemas, como em todos os lugares, como havíamos conversado.

Mas, assim, a... a proporção de alunos que tem interesse, que... consegue,

que nós conseguimos atingir é, o objetivo com é bem maior, bem maior.

Então, e, isso, é relevante, né, pra mim é relevante. E, com isso, a gente

aprende que em cada lugar, você tem que trabalhar diferente.

(ENTREVISTA NARRATIVA, ODISSEU, 2016).

Na mudança de paisagem Odisseu constrói a percepção de que as instituições são

marcadas por especificidades próprias, contextos diversos, porque estão povoadas por pessoas

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diferentes. De fato, o que professor principiante ressalta ao cotejar as duas instituições são as

pessoas com as quais se relaciona, principalmente os alunos. As escolas possuem identidades

diferentes porque são habitadas por pessoas diferentes, parece ser este o pensar que subjaz à

experiência que alcança Odisseu na mudança de escola. Mais que comparar a gente daqui com

a gente de lá, o docente revela construções que vem elaborando a partir da convivência com

os dois grupos. Na descontinuidade nascida da mudança de espaço, vida que segue sendo

preenchida por narrativas que maximizam a compreensão do mundo, inclusive daqueles

mundos em que se move Odisseu; de forma que é exequível

[...] dizer que se entendemos o mundo de forma narrativa, como fazemos,

então faz sentido estudá-lo de forma narrativa. Para nós, a vida- como ela é

para nós e para os outros – é preenchida de fragmentos narrativos,

decretados em momentos históricos de tempo e espaço, e refletidos e

entendidos em termos de unidades narrativas e descontinuidades.

(CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 48).

Nas franjas destes fragmentos narrativos, que atravessam e integram a vida em

momentos históricos de tempo e espaço que, compõem unidades narrativas e

descontinuidades, também Heitor vem se fazendo professor em meio a um narrar, cujas

unidades estão marcadas no estertorante desejo de se tornar professor, mesmo quando as

rupturas ensejadas por mudanças insiram nos meandros destas narrativas descontinuidades.

[...] No ensino regular, no início da minha carreira, tive que me deparar com

uma realidade que se distanciava muito da ideia que tinha sobre educação,

profissionalismo e comportamento. Posso adicionar que também existiu um

desafio interno de readaptação.

Três dias antes de tomar posse, eu estava morando na Irlanda e bastante

satisfeito com as pessoas, com o que eu estava fazendo e modo de vida por

lá. Contudo, efeito de uma consideração familiar e da oportunidade de

estabilidade profissional, lá estava eu de volta ao Brasil, numa escola, numa

cidade desconhecida e tendo que retirar o substancial e o positivo daquela

opção. Eu me tornei professor.

Tentar oferecer o melhor de mim é condição básica para tudo que faço. Se eu

tiver de ser professor, então que eu seja o melhor do Brasil, eu pensava.

Desafios existiram nessa escolha. Morei de favor durante três meses, vinte e

quatro quilômetros de distância do trabalho. Até que depois foi

disponibilizado um local a quatro quadras da escola.

Neste primeiro tempo, lembro-me da primeira reunião que participei e no

primeiro dia de serviço. Eram os meus primeiro minutos ali. Depois dela, iria

pra sala de aula do período noturno.

Confesso que fiquei horrorizado, pois os professores pronunciaram toda a

forma de violência que existia naquele lugar. Armas, drogas, roubos e

desafios pedagógicos dos mais variados naquelas duas horas de diálogo.

Considerando que era meu primeiro dia, acreditei até que podia até se tratar

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um tipo teste para este novato aqui. Achei que fosse um trote. Alguma

brincadeira. Mas não era [...]. (NARRATIVA ESCRITA, HEITOR, 2016).

“Eu me tornei professor.” Na narrativa de Heitor, tornar-se professor requer aventurar-

se. Aventuras nem sempre venturosas vivificam o viajar deste docente. Viagens que

comportam um duplo deslocamento: externo e interno. Move-se da Irlanda à Várzea Grande

e, ao ingressar na docência, muito do que acreditava se move nele. Novos modos de viver se

lhe apresentam e ele tem de “retirar o substancial e o positivo daquela opção.” E, isso, apenas

para começar. Desafiado a viver de favores, enfrentar o trânsito caótico e a longa distância,

continuava nutrindo o desejo de se tornar “o melhor professor do Brasil”. No entanto, o jovem

que tivera coragem de buscar novos modos para existir com vistas a se tornar professor,

estarrece e fica horrorizado já na primeira reunião com os pares professores, com os quais iria

compartilhar modos de ser e maneiras de fazer no âmbito da docência. As histórias que

sustentavam o viver naquela escola tocaram-no quando foram narradas e, por absurdas que

fossem, eram reais, conforme Heitor pode perceber durante o período que trabalhou naquele

contexto, corroborando para a atualidade das investigações de Cunha (2013, p. 259) que

aponta “distantes da condição de ingressarem numa carreira estruturada, esses professores

iniciantes, salvo em raras situações, são jogados ao léu, sem que haja uma preocupação com a

construção de sua profissionalidade e com o acompanhamento de seu cotidiano”.

O cotidiano constatou o que naquele meu primeiro dia foi assunto da

reunião. De fato os desafios se mostraram diferentes do que esperava.

Entretanto eu estava ali por um propósito, então comecei. [...].

Posso dizer que de algum modo eu me saí muito bem em boa parte da

atividade. Senti isso com o elogio de alguns alunos, de professores colegas e

a coordenadora. Sempre consultava as pessoas para melhorar e me adaptar,

me corrigir. (NARRATIVA ESCRITA, HEITOR, 2015).

Desde meados dos anos noventa do século passado pesquisas demonstram que existe

uma correlação entre o sucesso escolar e a qualidade do trabalho dos professores (NÓVOA,

1992, 1995, 2009, 2016; MARCELO, 1999, 2007, 2008; DAY, 2001; VAILLANT;

MARCELO, 2012; FLORES, 2010; ROLDÃO, 2007). No entanto, evidenciar esta correlação,

não parece haver sido suficiente para elevar as condições de profissionalização docente. Em

diversos contextos, inclusive naquele em que Heitor se insere na docência, a constatação de

que o professor desempenha um papel fundamental na aprendizagem dos alunos e na melhoria

da educação como um todo vem se prestando à responsabilização e ulterior culpabilização dos

docentes pelo fracasso dos estudantes. Em contextos influenciados pelo pragmatismo de

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políticas de orientação neoliberal, os docentes, principiantes ou não, acabam sendo

responsabilizados individualmente pelo mau desempenho dos estudantes. Disto, emerge a

ideia de que o desenvolvimento profissional docente é demanda exclusiva do docente.

(CUNHA, 2012). Tornar-se professor, nestes contextos é sobreviver à duras penas, pois a

inserção como etapa do desenvolvimento profissional docente, concebida e implementada

como dispositivo político, na maioria dos casos, sequer é conjecturada.

Resta ao candidato ao magistério, munir-se como pode e Heitor se compromete

inteiramente com a própria constituição docente, deste comprometimento emerge a atitude e o

professor principiante busca amparo nos propósitos, princípios de uma ética em que sustenta o

próprio agir. Age na urgência e parece intuir que o ato de educar é relacional,

consequentemente, alimenta-se na interação com outro e se volta ao coletivo. Coletividade a

que consulta visando a melhorar, adaptar, corrigir, em outros termos, dotar de sentidos as

experiências que vem elaborando e evoluir como docente. Percepções caras a um professor

principiante, posto que vão ao encontro do que Day (2005) ratifica como sendo aspectos

essenciais do desenvolvimento profissional docente, que, aliás, embora requeira a

compreensão de que se dá em um continuum de formação ao longo da vida, comporta

conflitos, rupturas, descontinuidades suscitados por contextos plurais com os quais e nos

quais interage. Heitor não tarda em deparar com este fato.

[...] após um tempo de surpresa que um novo professor traz, veio a

banalização e junto com ela as mais diversas formas de violência. Fui

xingado em sala de aula, desrespeitado e ameaçado. Pude testemunhar nestes

meses, dois alunos vitimados por arma de fogo. Sendo um deles da turma em

que eu lecionava e que poucos dias antes do acontecido, tive uma conversa

em particular falando de esperança, de comportamento e vida. Pude

experimentar a falta de segurança por meio dos furtos que se tinha notícia e

das invasões de pessoas estranhas à escola para brigar durante o recreio. Em

uma dessas invasões, um professor recebeu uma cadeirada ao tentar apartar

os rapazes. Embasbacado, eu pude ouvir de um dos colegas de profissão

“isso é normal”, “é assim mesmo”.Tentava repetir tudo que sabia de mais

moderno de didática. Pesquisava problemas comportamentais, psicológicos,

fazia perguntas na internet, usava youtube e cheguei até mesmo a assistir

“Mestre, Minha Vida”. Ia me arrastando neste caminho árduo entre os sopros

de auto-motivação e esperança. ( Narrativa escrita, Heitor, 2016).

A saga de Heitor naqueles primeiros tempos de docência poderia constar de um

romance capaz, quem sabe, até de fazer brotar lágrimas de olhos que aprenderam a ouvir. Para

o pesquisador atravessado por estas narrativas e se debatendo para compreender a pessoa que

as vivencia em contexto, surge uma tensão conflituosa: uma parte importante dele como

humano imerso e enredado por narrativas, fenômeno que, às vezes faz com as pessoas se

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compadeçam de outras, se deixa tocar pela narrativa de Heitor. Outra parte, não menos

importante, nesta configuração de múltiplos eus, recorda que como pesquisador necessita

entender a narrativa como método, instaura-se então a compreensão de que está habitando um

lugar pautado na pluralidade e eivado de contradições.

Desde este lugar, o pesquisador passa a esboçar o entendimento de que

contextualmente, as narrativas que o tocam remetem a muitos dilemas vivenciados por

professores principiantes conforme apontaram investigações precedentes (MARCELO, 2007,

2008) e encontra a Heitor envolto por muitas tensões que se referem ao ingresso nas culturas

vigentes na escola, à historicidade encarnada em cada aluno, a questões institucionais e

políticas, além da violência exarcebada, dentre outras. O choque (VEENMAN, 1984;

HUBERMAN, 1995) inicial com a realidade se origina no confronto do ideal que o

principiante trazia sobre a profissão e o significados que o ser professor tinha naquele

contexto, não somente a partir da perspectiva dos alunos, como também de outros professores.

Este último fato ao que parece levou o professor que não queria se ver apresado pelas

premências contextuais a buscar desesperadamente modos de intervir, termina por se afastar

dos pares, isolado se despotencializa e se torna vítima do que buscara combater. Combalido,

atingido nos princípios que sustentava o caminhar, a Heitor não interessa sob nenhuma

circunstância continuar trabalhando naquele contexto, ruptura marcante que poderia afastá-lo

da docência definitivamente. De forma que poderia constar da triste estatística daqueles que

abandonam a docência já nos primeiros anos; em consonância com as investigações de

Vaillant e Marcelo (2012)

A realidade cotidiana do docente principiante indica-nos que muitos

professores abandonam a educação e o fazem por estarem insatisfeitos com

seu trabalho, devido a baixos salários, aos problemas de disciplina com os

alunos, à falta de apoio e às poucas oportunidades para participarem de

tomadas de decisões (VAILLANT; MARCELO, 2012, p. 132)

Heitor não faz menção ao baixo salário, mas a falta de apoio e os problemas de

disciplina, exaurem tenacidade e resistência do principiante.

Na última ameaça sofrida naquela escola, peguei uma licença e fiz um

pedido administrativo de remoção de município. Isso não aconteceu de

maneira fácil. Tive de juntar diversos documentos, como laudo de médico,

registro do boletim de ocorrência, ata de registro do aluno e argumentar

sobre a distância da minha residência, revelando os riscos e demais

desvantagens.

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Estava certo de que se nada disso resultasse em êxito, não me importaria em

pedir mais afastamento ou mesmo exonerar-me [...]. (NARRATIVA

ESCRITA, HEITOR, 2016).

Entretanto, como insiste Day (2005) a docência requer uma vocação apaixonada capaz

de firmemente assentar-se em um comprometimento pessoal, alimentar os sonhos por mais

utópicos que pareçam e Heitor parece mover-se tangenciado por ambos. Tanto assim que,

nada mais que sair a remoção administrativa, encontra motivos para continuar no âmbito da

docência.

[...] ali eu estava com a comodidade de estar próximo do meu lar e isso me

fez suportar algumas angustiantes situações e tentar mais uma vez.

(NARRATIVA ESCRITA, HEITOR, 2016).

[...] A esperança renascida, o retorno do sonho em prosseguir na docência

Heitor os reencontrou, segundo ele no acolhimento e novas amizades na

escola onde atua neste momento. Enfatiza muitos aspectos que concorrem

para este realentar do desejo da docência: a proximidade da escola com lugar

onde reside: “Um minuto e meio computado de casa à escola; isto é um fator

importante. Antes eu percorria quarenta e seis quilômetros considerados a

ida e a volta, tempo perdido no trânsito. Agora, a escola é uma extensão de

meu quintal; apesar de eu viver em apartamento e não ter quintal, a escola é

o quintal de minha casa”. O fato de ter sido, inicialmente encorajado pelos

pares, depois eleito coordenador pedagógico por unanimidade, também é

mencionado dentre os fatores que o fizeram reencontrar a satisfação em

trabalhar na educação: “Depois do ocorrido, cheguei a pensar que se

houvesse uma oportunidade, um convite eu me afastaria da sala de aula, mas

com o passar do tempo, a mudança de escola, percebi que tem algo mais que

move, que nos move a ser professor, a encontrar satisfação em ser professor.

E aqui, desde o começo fui bem acolhido. Nunca havia pensado em ser

coordenador, mas quando apresentei meu projeto de trabalho e fui eleito por

unanimidade, fiquei muito satisfeito. (DIÁRIO DO PESQUISADOR, 2016).

Em um dos encontros do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas e Formação

docente/PPGE/UFMT em Março de 2016, Filomena Maria de Arruda Monteiro em meio a

vivo dialogar convidou a pensar nos dilemas que rondam ao trabalho docente nos seguintes

termos: “Se a gente não mudar, aventurar para fazer algo diferente, a gente não evolui”.

Mudança, evolução, rupturas, continuidades... na pluralidade em que vem se tornando

professor e construindo da melhor maneira que pode uma narrativa própria, Heitor vem se

aventurando, busca vicejar criativamente novas possibilidades no contexto de trabalho; ao

tempo em que se atenta aos dilemas que vivencia na profissão, reafirma a convicção e o modo

em que quer prosseguir burilando o ser professor.

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[...] A escola tem um leque de possibilidades de nichos que podem ser

preenchidos com criatividade e um pouco de ousadia. A auto-motivação é

fundamental para que o dia a dia possa ser uma experiência menos difícil.

Talvez, você ser predecessor de um movimento seja um ponto interessante a

se focar na relação profissional com essa tão devastada educação brasileira e

que tanto desvaloriza seus profissionais.

Não sei o que esses próximos anos reservam. Não sei como serão meus

estímulos, minha paciência, meu reconhecimento e motivação nessa

profissão. Tentando entender que cada experiência é motivadora e sempre

seguindo a filosofia de que reclamação não substitui ação, eu vou seguir

tentando oferecer o melhor de mim na esperança de contribuir com essas

vidas em formação. (NARRATIVA ESCRITA, HEITOR, 2016).

Contribuir com vidas em formação constitui princípio de uma ética pessoal sobre a

qual se assentam também as ações profissionais de Helena, jovem principiante, enamorada

pelo trabalho docente, capaz de conjugar leveza com gravidade, riso com seriedade, singeleza

com profundidade, revela ao narrar-se uma perspectiva política do fazer docente, com fulcro

na relação que estabelece tanto com os alunos quanto com os professores, pares de profissão.

[...] Hoje posso dizer com propriedade que escolhi o meu caminho,

encontrei na minha profissão uma forma de me realizar de ser feliz como

pessoa, de contribuir. Estou me construindo não apenas como professora,

mas como uma agente transformadora da sociedade.

[...] EJA é muito específico, né, nós já... temos aqui jovens, embora não

sejam, é... letrados, eles já, já agem, já... são funcionais dentro da sociedade

como... como cidadãos, né; reconhecedores dos seus direitos e deveres né,

e... é isso, eu fico muito feliz em participar desse processo, contribuir

também como professora, em alguns aspectos também, como formadora de

opinião e... aprendiz! Deles, principalmente. Aprendiz deles, dos meus

alunos, né, é muito bom, isso, gratificante.

[...] Então assim, pra mim é tranquilidade. A interação, esse processo de

interação com os professores, é... os alunos. Os professores me ajudam

muito, por eu ser iniciante, eles têm muita mais experiência, alguns à beira

da aposentadoria, né, hum... eles me ajudam muito nessa questão aí da,

qualquer intervenção que eu queira fazer, eu consulto a minha coordenadora

pedagógica a M, né. E, é isso, é tranquilidade. (ENTREVISTA

NARRATIVA, HELENA, 2016).

Helena exulta com a percepção de que também é aprendiz daqueles a quem ajuda a

aprender. Presumivelmente, a esta percepção subjaz toda uma epistemologia que, em última

instância remete às teorias sociointeracionistas. Porém, escutar a professora principiante

referir-se a sala de aula com a alegria de quem vem descobrindo e aprendendo junto aos

estudantes, toca ao pesquisador e se lhe assoma à mente imagens suscitadas pelo dizer

daquele jagunço rosiano, dotado de infindos sentidos de humanização, Riobaldo Tatarana que,

ao narrar-se, construira os mundos pelos e nos quais ganhava vida e podia existir. E, por

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apropriar-se desta cosmovisão foi capaz de marcar no horizonte em que se movia uma

experiência ontológica envolta pelo saber de que mestre é quem de repente aprende. Note que

tanto no caso do Jagunço, contador de Histórias, sabidamente incapaz de sobreviver aos

perigos sem a presença alentadora de Diadorim, por quem se sentia igualmente responsável,

quanto na narrativa da professora principiante, “de repente aprender” longe de remeter a um

viver descuidado, pressupõe o vivo comprometimento com o mundo em que se vive. De

maneira que, quando Helena afirma lidar tranquilamente com os dilemas com os quais depara

cotidianamente, imediatamente expõe a teia de relações e de parcerias na qual está imbricada,

o coletivo que a ampara e que requer dela total engajamento.

[...] Convidada a se enunciar a respeito de fatos significativos que tenham

marcado a respectiva trajetória profissional nestes últimos dois anos.

Reafirma a relevância do episódio no qual um aluno cadeirante que vive a

cerca de quatro quilômetros da escola, ao ser ignorado por motoristas de

ônibus coletivos que se negaram a parar para levá-lo, não titubeou moveu a

cadeira de roda entre os veículos até a escola para assistir as aulas. A este

episódio somaram-se outros que demonstram quão valoradas pela professora

principiante são as relações que ela estabelece com os alunos.

Outrossim, marca enfaticamente no espaço de formação continuada as

parcerias firmadas com os pares, professores mais experientes, bem como as

aprendizagens destas advindas. (DIÁRIO DO PESQUISADOR, 2016).

Embora, principiante, Helena demonstra ter ciência de que está inserida em uma trama

relacional. Construção que merece destaque no escopo desta tese, pois o sentido do

desenvolvimento profissional docente perpassa a vida dos professores em muitas dimensões,

bem como, entrelaça-a a políticas e dilemas presentes nos contextos escolares nos quais

trabalham (DAY, 2001). Assim, pois, o ensino adquire configurações que encerra um

propósito moral que visa a provocar melhorias nas condições vivenciadas pelos alunos e face

às políticas reinterpretadas nos contextos de atuação, os professores podem se converterem

em iniciadores da mudança.

Tem um aluno, esse ano, é o V, ele desenvolvia uma liderança muito

negativa dentro da sala de aula. Ele é... [...], muito articulado; ele tem uma...

persuasão incrível, ele consegue (riso), desculpe pelo... pela palavra né,

assim, mas ele é capaz de, eu sempre digo pra ele, ele... ele é capaz de

vender gelo para esquimó; de tão persuasivo que ele é. Só que ele estava

desenvolvendo uma liderança muito negativa por ser usuário de drogas.

Dentro da sala, ele tava usando esta persuasão dele pra... tirar a atenção dos

alunos da aula, pra fazer com que os alunos se evadissem da aula pra vir usar

droga (enfática) fora da escola. Só que eu fui faze... eu fui entrando no

universo dele, assim no sentido de mostrar pra ele que ele era um aluno

normal como qualquer outro aluno. Não tinha motivo pra eu ter medo dele.

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E, a gente foi desenvolvendo uma amizade mesmo dentro da sala de aula,

uma certa amizade, eu fui conquistando a confiança dele e, fui colocando ele

pra me ajudar em algumas tarefas ali da sala de aula... colocar ele pra ajudar,

colocava ele pra ajudar os outros colegas que eram um pouquinho mais...

devagar, vamos dizer assim. E, ele foi desenvolvendo a liderança positiva.

Hoje em dia, ele é um formador de opinião dentro da sala, ele é mui... ele é

articulado pro lado positivo da coisa; ele é muito inteligente mesmo. E pra

mim, resgatar, porque pra mim foi um resgate que eu consegui fazer, né,

através de muito diálogo. É o processo... é aceitar o aluno (pausa), não

recriminar; ele já... ele já é marginalizado. Então, ele já vem pra escola com

uma autoestima abalada e, ele quer mudar o foco desenvolvendo a liderança

negativa e, o professor observar e entender isso, ele tem que ter... ah, não sei

a palavra (ri), mas, tem que ter uma certa sensibilidade. Então, assim, eu

creio que minha grande conquista esse ano foi o resgate do V. (HELENA,

ENTREVISTA, 2016).

Ao narrar de Helena subjaz comprometimento, paixão e alteridade que propiciam

cotejar o vivido e narrado por ela com as investigações levadas a cabo por Christopher Day

(2001) para quem, o desenvolver-se profissionalmente requer do professor empenhar-se em

um processo que implica responsabilidades e disposições que vão além da pura transmissão

magistral quer seja de conteúdos, quer seja de destrezas; mais que técnicos competentes, os

docentes devem se constituir paulatinamente em pessoas bem informadas, mas capazes de

respeitarem o não saber de outrem; justas ao lidarem com os demais, atentos ao específico de

cada aprendiz e às necessidades do grupo; pessoas com disposição para se constituírem como

autoridade que preza a autonomia própria e de outrem, capaz de conjugar disciplina com

fantasia e espontaneidade. Helena propicia ainda, a compreensão de que professoras são

pessoas, que, acalentam dúvidas e apreensões, mas que podem manter o entusiasmo que as

potencializa a lidar com o imprevisto, inclusive na relação com os alunos e não se afastarem

dos princípios que dão sentido ao estar e ser na profissão; por fim, a principiante, de riso terno

e acolhedor, ensina que professor deve saber sorrir e, mesmo nos piores dias, ser capaz de

mesclar a leveza de uma dança ao dificílimo ato de ajudar o outro a aprender e reconhecer

neste outro os saberes que o constituem.

“Vocês se lembram quando falei que ao ler é preciso encontrarmos o ritmo?”

Ao lado do aluno cantarola um trecho do texto, o qual remetia a um samba,

ao fazê-lo dança. Riem. Depois sentencia: acompanharei o Edson, continuem

a leitura. No corredor, a agradeço, uma vez mais e ela põe-se a falar sobre

alguns alunos, dentre aqueles que estavam na aula. Um dos mais

participativos, segundo ela, exercerá durante certo tempo uma liderança

negativa ante o grupo e requereu dela, uma aproximação cuidadosa, uma

escuta e valoração equalizadoras. Outro, artista plástico, apresentara

argumentos plausíveis ante a suposta objetividade de um artigo científico

que leram e debateram. Ela aponta no painel afixado na parede do corredor,

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artes produzidas pelo aluno: “Edson, ele não tinha o saber formal, mas

conhece muito”. (DIÁRIO DO PESQUISADOR, 2016).

Assim como Helena, não obstante, com apropriações muito peculiares Safo vem se

descobrindo professora no contexto de uma Escola pública estadual. Percebe-se a si mesma

como docente em meio ao torvelinho da sala de aula e se assusta. Todavia, reitera o

compromisso com a profissão, compreende as limitações que perpassam o modo como vem se

constituindo. Destaca conflitos que marcam a construção da própria identidade (MARCELO,

2010), contradições entre ser professor e o ser pessoa (FLORES, 2010, NÓVOA, 1995, 2009)

e, enfatiza as relações que estabelece, inclusive com o pesquisador como possibilitadoras de

um novo olhar que lhe permita compreender a si mesma como profissional. Nesta perspectiva,

é importante ressaltar que a profissão docente, tal como a conceituamos e compreendemos

neste texto vincula-se e evolui pari e passo com a profissionalidade (DAY, 2001; NÓVOA,

1995; SACRISTAN, 1995; IMBERNÓN, 2012; ROLDÃO, 2004, 2007; FLORES, 2010), dito

de outro modo, quando referida a docência o comprometimento pessoal com a aprendizagem

dos alunos e zelo nas relações estabelecidas em sala de aula, são tão importantes quanto os

aspectos institucionais e organizacionais para o fortalecimento da docência como profissão,

de modo que profissionalidade e profissão são termos que, embora independentes, replicam-se

mutuamente, conforme pode se evidenciar nas narrativas compostas com Safo.

[...] capaz de se dizer sempre de uma maneira muito própria, não se exime

dos compromissos docentes e, ao mesmo tempo, diz ainda se assustar,

quando distraidamente, percebe-se como professora. (DIÁRIO DO

PESQUISADOR, 2016).

Eu acho que... essa... troca, entre a gente, meio que possibilita, me possibilita

me olhar de outra maneira, não me olhar como pessoa, me olhar enquanto

professora! Tenta desvincular estas duas pessoas, mas já decidi que não

consigo (entre riso). Mas, assim, me ver como profissional! E aí, eu me vejo

falha. Falha por quê? Porque eu tenho dificuldades que a própria... disciplina

me traz, às vezes, né; igual algumas dificuldades que eu tenho e tenho de

superá-las. O próprio vídeo me mostrou ...o, é... a questão das minhas

dificuldades em atingir alguns alunos.(ENTREVISTA NARRATIVA,

SAFO, 2016).

A mesma professora que distraidamente vem se descobrindo docente, apresenta

disposições para ver com um olhar demorado, ver como um ler articulado (GADAMER,

1997) e, ao horizonte com que se depara formula perguntas impossíveis, a quem não esteja

empenhado em aventurar-se, evoluir, alcançar novos patamares existenciais e se desenvolver

profissionalmente.

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Ao ler sua narrativa detalhada desse dia de aula em questão mais uma vez

questiono-me enquanto professora. Minhas atitudes condizem com aquilo

que desejo transmitir? Momentaneamente digo que não. Procuro fazer das

aulas algo mais leve e menos enfadonho, porém, sinto que estou caminhando

para o caricaturato e isso jamais foi meu norte na docência. Essa experiência

permeada pelo nobre colega ascendeu uma fagulha a ser assoprada buscando

iluminar em outras direções. Ou seja, preciso reescrever-me. (NARRATIVA

ESCRITA, SAFO, 2016).

Safo se deixa tocar pelo que passa em sala, atravessada pela experiência de olhar para

si mesma imersa no contexto de atuação não se reconhece e deste estranhamento nasce o

questionamento que visa à autencidade entre o ser e o agir. Flagrada na contradição

momentânea, não lhe falta coragem para retomar os princípios que sustentam a respectiva

ação docente e constata que precisa reescrever-se. Compreende que são muitos os desafios e

que para superá-los não pode se eximir de ser sempre ela mesma nas relações em que outros

igualmente necessitam ser. Nesta percepção, de acordo com Safo, o docente deve se dedicar

inteiramente ao outro, mas não pode abdicar do direito de também ser outro, tampouco

desistir de aprender.

A docência é sempre um desafio constante, o tempo é sempre nosso amigo e

inimigo. E nessa dicotomia que transcendemos nossas superações e

fraquezas. Superação pelo fato de trabalharmos com indivíduos que almejam

uma elevação em conhecimento, cultural ou emocional, e fraqueza por

envolvermos em problemas pessoais dos alunos, mesmo quando não agimos

diretamente nas situações. [...] Ser professor é se desprender da sua limitação

humana de querer mudar a si próprio e buscar sua autopromoção profissional

para se dedicar ao outro de maneira a auxiliá-lo na caminhada, porém, sem

jamais se anular ou deixar de (re)aprender no trajeto. (NARRATIVA

ESCRITA, SAFO, 2015).

Ainda que seja professora principiante e, talvez, por o ser, Safo parece ter entendido

que o tempo escolar não favorece a integração com outras temporalidades conforme

problematizado nas investigações de Gastón Pineau (2003) e Nuno Vieira (2015). De modo

que o define como amigo e inimigo, simultaneamente, como causador de uma dicotomia a

que precisa transcender na hercúlea tarefa de fazer-se professora. Entretanto, neste processo

avalia-se com rigor e, busca a sua maneira, encontrar brechas onde outras temporalidades

possam eclodirem em meio ao tempo escolar. Ora, expandindo a duração dos ciclos letivos

junto a um grupo de alunos. Ora, por meio da extensão da própria atuação para outro turno.

Importa para ela integrar-se cada vez mais no contexto escolar, participar de modo mais

efetivo da vivência dos estudantes que acompanha.

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De fato, a temática concernente aos tempos se revela fundamental quando concebida a

ideia de que o desenvolvimento profissional docente mescla várias esferas existenciais a

diversos contextos plurais, híbridos. No obstante, a percepção do tempo como um continuum

único, a-histórico e exógeno, porquanto igual para todos, pode obstaculizar o

desenvolvimento profissional docente, posto que conduz a conceitos , práticas, normatizações

e políticas nas quais as múltiplas temporalidades pessoais, porquanto tempos de kairós,

tempos para dar sentidos e conjeturar novas possibilidades no existir, são devorados pelo

tempo cronológico, pelos sincronizadores externos, mecânicos. Descompasso que pode levar

à esquizocronia (PINEAU, 2003). Assim, é necessária a construção de um pensar que permita

perceber que

O tempo diz respeito em primeiro lugar a todo poder que só se torna e

permanece tal se conseguir ordenar e subordinar os múltiplos tempos dos

outros ao seu próprio. [...] a história do tempo, é a história dos tempos que é

feita de sua relação pelo ângulo do domínio de um tempo oficial sobre os

outros. Domínio que se exerce pela imposição de um sentido – significado e

direção – e de uma medida para contabilizar (irreversibilidade) e trocar

(reversibilidade), mas também contra a desmedida. [...] Existe, portanto, uma

ligação muito forte entre medida do tempo e ordem social, mas também

entre mudança de medida e mudança social. (PINEAU, 2003; p. 67-68)

Na historização que marca a construção de um tempo oficial que solapa todos os

tempos, é importante demarcar no âmbito desta pesquisa, o tempo das máquinas. A

construção deste tempo mecânico que circunscreve toda a modernidade remonta ao

Renascimento; o tempo dos comerciantes sobrepuja o tempo cristão, pouco a pouco e a partir

da invenção de relógios mecânicos e mais precisos, a imposição do tempo comercial avança

modernidade adentro, mundo afora. No afã de sincronizar todos os tempos, o relógio de bolso

e o cronômetro são inventados e, então a medida do tempo desce das torres das igrejas e

enche os bolsos na terra e nos mares nunca dantes navegados; aliada à invenção de outras

máquinas, a vapor, por exemplo, a imposição do tempo oficial burguês avança. Argutos

pesquisadores denunciavam a criação deste pequeno deus tirano “O tempo é tudo, o homem já

não é mais nada; ele é, quando muito, a carcaça do tempo.” (MARX K., apud PINEAU, 2003,

p. 72).

Perversa dominação, o tempo astrológico que despertava o humano para percepção da

ecologia circundante e o sintonizava consigo mesmo, foi devorado com voracidade pelo

tempo moderno, mecanicidade alienante capaz de despojar todo o sentido humanizante das

temporalidades. O humano, alijado de todo o tempo livre é carcaça descarnada pela

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expropriação temporal do trabalho capitalizado. Chronos, redivivo e esfaimado, a procura de

todo o fragmento de tempo livre no trabalho e fora dele. Tempo de redução e supressão de

feriados. Tempo de invenção da Escola Moderna: instrução pública e obrigatória para as

crianças, elas necessitam serem instrumentalizadas para a nova ordem. Tempo de organização

científica do trabalho, tempo de não matar tempo. Tempo das máquinas que se não logrou

transformar todos os tempos livres em tempos de produção, perverteu-os tornando-os, no mais

das vezes, tempos de consumo. (PINEAU, 2003).

A época do tempo das máquinas ainda não foi, está sendo. Presentifica-se

contemporaneamente dentre outros espaços, nos meandros escolares. A escola configura uma

das invenções modernas tão bem sucedidas que mesmo ante a pluralidade dos tempos ditos

pós-modernos, pauta-se, salvo raríssimas exceções pela cronologia do tempo mecânico.

Reproduz, muitas vezes, discursos que denotam naturalmente o controle exacerbado do tempo

homogeneizador de múltiplas, infindas temporalidades.

Na escola é preciso prestar atenção para não perder tempo, andar no ritmo para não se

afastar muito dos demais: ser pontual, assíduo, comprometido com o tempo oficial. Imersa

neste ritmo inexorável, os professores principiantes são instados a cada instante a lidar com

muitas demandas e, por vezes, deixam-se conduzir por práticas rotinizadas, performáticos,

tentam sobreviver aos primeiros anos de docência (CUNHA, 2013; HUBERMAN, 1995), e,

então muita coisa passa e nada acontece (LAROSSA, 2014). Tangido pela celeridade e

premido por muitas urgências, muitas o neófito (FLORES, 2010) na docência, não consegue

vicejar na hegemonia do tempo escolar (VIEIRA, 2015), temporalidades que lhes permitam

integrar pessoalidade e profissionalidade nos respectivos contextos organizacionais. Disto

resulta que muitos principiantes não conseguem dotar de sentidos as experiências, em outros

termos, não alcançam viver o que passa com experiências (LARROSA, 1995, 2014), logo, a

aprendizagem deles próprios na condição de docentes se despontecializa enormemente e as

perspectivas de desenvolver profissionalmente se restringem drasticamente, no momento

mesmo em que iniciam a carreira docente, aspecto que impacta incisivamente o

reconhecimento social da docência como profissão (SACRISTÁN, 1992; FLORES, 2010;

ROLDÃO, 2007). Neste entremeio Safo se move em busca de maior integração entre as

diversas temporalidades presentes nas vidas das pessoas que coexistem na escola, inclusive a

dela própria, neste sentido, pondera sobre os limites e possibilidades presentes.

Como qualquer coisa que a gente faça, tem sempre pontos positivos e pontos

negativos, eu tenho por natureza sempre destacar os negativos, né. Eu não sei

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por que, mas os pontos positivos que eu poderia destacar é... integrar, fazer

mais parte da escola. Fazer mais parte da vida de meus alunos! Até mesmo

porque eu tenho o privilégio de acompanhá-los por três anos que eles já fazem

parte já, pelo menos os da tarde. E, esse ano, vim com um tempo mais à noite,

tempo maior à noite; que está me proporcionando também outra visão.

(ENTREVISTA NARRATIVA SAFO, 2016).

No entanto, mesmo para alguém que tem disposição para perscrutar fissuras na

inflexibilidade mecanizada do tempo escolar se lhe apresentam desde os contextos da escola,

dilemas de grande complexidade. Para Safo, uma destas situações complexas com grande

impacto no contexto onde trabalha está relacionada a um novo direcionamento engendrado

pelo texto da política referida à formação continuada e aos critérios de contratação e

realocamento de professores nas unidades escolares, aspectos que afetam dimensões

importantes do desenvolvimento profissional da docente.

Do ano passado, “Sala de Educador” do ano passado, eu acredito que ela foi

muito relevante porque... ela trouxe essa coisa do desvincular só com a

teoria, ela veio com... junto com a prática. Esse ano, é essa promessa

também , mas, não sei se isso vai se cumprir com essa política que tá aí! Tá

muito puxado! A carga horária se estendeu muito, ele passou de oitenta

horas pra uma média de cento e sessenta horas, então, ela ficou bem extensa.

E agora, a gente está num período de estudos. O ano passado a gente

conseguiu trabalhar com a turma, apresentar, fazer várias coisas, e, sentia

sempre essa interação com os alunos; por enquanto, agora esse ano, eu não

sei o que dizer, ainda não, que... que vem aí pela frente.[...]. Agora, com os

pares, com colegas é... esse ano foi um ano de mudança (parece emergir

certa melancolia no tom de voz), o Estado mudou muito , a política fez com

que mudasse, por exemplo, nosso corpo docente mudou bastante; isso,

porque nós aqui na escola somos, grande maioria, efetivos. Mas, grande

parte dos contratados, se foram e, assim, eram pessoas com quem eu tinha

mais... a troca, experiências, a troca de conversas, o ano passado mesmo

tinha a S, a D, são pessoas muito próximas que me ajudavam, me

auxiliavam, me davam ideias, e, eu... a gente trocava ideias. (ENTREVISTA

NARRATIVA, SAFO, 2016).

A política pensada desde os gabinetes emergiu no horizonte perspectivado pela

professora principiante como problemas impactantes. Primeiro, reduziu a margem de tempo

livre encontrado pela professora para, entre o espaço de aprender e o tempo de ajudar outros a

aprenderem edificar pontes que vinculassem o pensado ao vivido e promovesse maior

interação entre o aprender e o ensinar. Depois, estas disposições vindas de alhures e

implementadas no universo escolar promoveram ausências muito significativas, ao

impossibilitarem a continuidade das interações construídas entre Safo e outras docentes,

parceiras no processo em que a novata vem se tornando professora. Não se trata aqui de

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questionar a legitimidade do texto político e/ou dispositivos legais, antes o foco está em

compreender o impacto que estes dispositivos promovem e promoveram no percurso desta

professora principiante. Estes acontecimentos atravessaram a trajetória de Safo e a tocaram de

tal modo que a fizeram repensar algumas convicções pessoais, sobre as quais, de certo modo,

sustentavam-se ações da professora levadas a cabo tanto em sala de aula quanto em outras

dimensões.

Então, acho que nesses dois anos, se eu for colocar na balança se eu ganhei

ou se eu perdi, eu acho que eu ganhei mais do que perdi. Perdi por quê?

Porque, às vezes, a gente fica meio que na ilusão de querer mudar; e a gente

descobre que a gente não pode mudar! A gente pode ajudar a dar uns

passos, mas mudar, não! Mudar não... hoje, eu já não tenho esta visão mais

de mudança (enfaticamente) total. De degraus, mas mudança total, não.

(ENTREVISTA NARRATIVA, SAFO, 2016).

Safo avalia que ao longo destes anos ganhou mais que perdeu, entretanto, o impacto de

perder a esperança de ajudar os estudantes a se transformarem ao longo da caminhada

reverbera com uma potência avassaladora na constituição docente. No entanto, é possível a

percepção de que a professora, ainda que de uma maneira menos utópica, persiste em

continuar vicejando e acreditando que mudanças são factíveis desde que social,

historicamente e contextualmente engendradas. Oxalá, os conflitos enfrentados diariamente,

não a impeçam de continuar se deixando tocar pelo vivido, que não a impeçam de prosseguir

descobrindo que o cotidiano é extraordinário, inclusive aquele vivenciado por ela em sala de

aula, na relação amistosa, comprometida e apaixonada com os estudantes.

[...] os alunos; acredito que assim, a partir do momento que você consegue

interagir com eles, é mais fácil perceber as suas dificuldades, as suas

angústias mesmo, porque eles não veem... muitos deles, eles não veem a

necessidade da escola; eles não veem o por que da escola. Por que da Língua

Portuguesa; eles não veem esse... esse... essa ponte entre a escola e o mundo

real (falar pausado) parece que são dois pólos diferentes. Mas, ah, essa

interação favorece. Porque quando você se apropria de uma linguagem mais

próxima da dele, você consegue atingi-lo (enfática) de alguma forma, não

que você vá ter cem por cento de... de êxito, mas algum êxito você vai ter.

(ENTREVISTA NARRATIVA, SAFO, 2016).

Por fim, é importante ressaltar que o pesquisador ao longo dos dois anos em que

acompanhou a mencionada professora elaborou a compreensão de que Safo “vem se tornando

professora no entrecruzamento de múltiplas relações e parece dimensioná-las mais

enfaticamente no horizonte de experiências que vem elaborando”. (Diário do pesquisador,

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2016). De modo que, “vem se constituindo como docente a partir da permanência de algumas

percepções e a transformação de outras. Enfatiza a relevância das interações desencadeadas

em sala de aula junto aos alunos, bem como na escola com pares na docência. Por outro lado,

parece vir atribuindo outros sentidos ao conceito de mudança; para esta professora, a mudança

total no âmbito da docência é inviável, pelo simples fato de que não se pode em nome de

qualquer ideal de transformação coibir o outro de ser em sua outridade” (Diário do

pesquisador, 2016).

Assim, pois, educar é antes de tudo estar aberto ao relacional, como possibilidade e

devir do tornar-se humano, em outros termos, o ato de educar como ontologia afeta e envolve

as pessoas, lançado-as em redes interacionais. Em sendo assim, o trabalho educacional em

contextos institucionais escolares pode se constituir em experiências, posto que se configura

enquanto um trabalho de humanização. Erigido nas interfaces de infindas existencialidades,

mencionado labor, em virtude de ser eminentemente relacional, compreende por princípio

algo que se vive contextualmente. Tendo sido vividas, as histórias delineadas com fulcros nas

experiências que acontecem nas aulas podem ser organizadas por meio de narrativas, relatos

que, longe de se constituírem em textos hermeticamente acabados, convertem-se em obras

abertas, pois pretendem invocar sempre os sentidos inscritos no viver de outrora, como mote

para suscitar novos sentidos no viver de agora, instantizado no presente daquele que lê tais

relatos. Todavia, a instantização de tais sentidos ressignificados no presente, não esgota o

alcance das experiências narradas, uma vez inscritas nas epistemologias que sustentam o

saber, por conseguinte, uma dimensão relevante do viver de quem as lê sob a forma de relatos

narrativos inscrevem-se na trajetória daqueles, não mais como um viver voltado para o

passado, mas como possibilidades a serem perscrutadas no porvir, fontes, porquanto de novas

experiências. Logo, o que se passa nas salas de aula é aquilo que se vive nestes e em outros

contextos, e o que se vive pode ser organizado como narrativas, o relatar que enseja também,

maneiras inusitadas de experienciar, posto que [...] 17

a intenção narrativa, como proposta de

investigação, não pretende somente contar relatos sobre o vivido, antes quer fazer do relatar,

uma experiência. (CONTRERAS,2016, p. 18, tradução nossa).

Na vida, criamos a nossa própria realidade (ANZUL, et.al., 2001), não obstante, trata-

se muita mais de uma co-criação do que de um artífice genial arquitetado por um ermitão. De

modo que as pessoas com as quais nos relacionamos nos ajudam a compor os sentidos que se

17

[...] la intención narrativa, en cuanto que propuesta de investigación, no pretende tan sólo contar relatos sobre

lo vivido, sino que quiere hacer, del relatar, una experiencia.

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nos afiguram, ainda que momentaneamente como plausíveis, reais, verdadeiros. Este mesmo

princípio, resguardadas proporções, pode ser aplicado à Pesquisa Narrativa (CLANDININ,

2011; CONNELLY, 2011) que constitui processual e relacionalmente desde os primeiros

contatos com os participantes, sempre mediada por interações, negociações, construções que

possibilitam a busca de relações cada vez mais autênticas. Entretanto, este processo não é

linear, compõe-se de muitas nuances e, mesmo acompanhando os participantes, atento à

postura de pesquisador no zelo com estas relações, é fato que em alguns casos, a confiança e a

proximidade entre o pesquisador e participantes acontece com maior autenticidade. De certo,

muitos fatores perpassam e interferem na construção desta relação de confiança entre

pesquisador e participantes, aspectos de ordem contextual, como, por exemplo, o modo como

o docente se sente e se percebe profissional na trama das múltiplas interações que vivencia na

escola.

Em virtude da confiança co-construída junto aos participantes desta pesquisa foi me

possibilitado o acesso aos conflitos que marcam as perspectivas de cada um/uma, por meio

das narrativas apresentadas neste capítulo. Conflitos que, dependendo das disposições

pessoais e do acompanhamento que os professores recebem nos respectivos contextos de

atuação podem se constituir em oportunidade, possibilidade de aprendizado e formação, como

evidenciados nas narrativas de Safo e Helena.

No entanto, os conflitos que perpassam o processo inicial de desenvolvimento

profissional docente podem, dependendo de uma série de fatores, representarem limites

críticos na trajetória de formação, quando isto ocorre, por vezes, às experiências elaboradas

nos contextos de atuação, o participante se lhes atribui sentidos que apontam para a debilidade

do tornar-se professor e, nestas circunstâncias, sentem acossados, por vezes, perseguidos e

não alcançam perceber estas experiências como algo positivo, como ocorre nas narrativas de

Félix. Tem-se então que a temática concernente ao modo como os professores em processo

inicial de desenvolvimento profissional docente constroem experiências e elaboram sentidos

na etapa inicial da carreira, é sumamente complexa, logo pressupõe a delimitação de um

campo teórico, com vistas a iluminar o vivido com professores principiantes no decorrer da

investigação. Este é o assunto do capítulo que segue.

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CAPÍTULO IV

DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL DOCENTE: APROXIMAÇÕES

CONCEITUAIS AO CAMPO DE INVESTIGAÇÃO

Como é que cada um se tornou no professor que é

hoje? De que forma a ação pedagógica é

influenciada pelas características pessoais e pelo

percurso de vida profissional de cada professor.

(NÓVOA 1995, p. 16)

Ao questionamento apresentado por Nóvoa na epígrafe deste capítulo não se pode

responder de modo simplista, tampouco é possível contestá-la de modo cabal e definitivo,

constitui-se como perguntar que move a perscrutar sempre novas perspectivas no horizonte

que se apresenta. Há tempos, esta é uma pergunta que me instiga e me move a investigar

processos de desenvolvimento profissional docente. No que tange, à investigação da qual,

veio sendo composto este texto de tese, mais especificamente, a questão apresentada pelo

professor português motivou a pergunta da tese: como professores principiantes de Língua

Portuguesa e Língua Espanhola dos anos finais da Educação Básica experienciam e

constroem sentidos que sustentam o processo inicial de tornar-se professor no

desenvolvimento profissional docente?

Assim, pois, tanto a questão elaborada por Nóvoa quanto a pergunta sob a qual se

moveu a pesquisa da qual resultou este texto, inscreve esta investigação no campo da

formação de professores. Campo complexo, polissêmico que gera discussões apaixonadas,

teorias que se contrapõem e políticas distintas. Em sendo assim, começo a delimitar o modo

como compreendo o campo da formação e me situo nele, a partir das palavras de Souza,

pesquisador baiano com vasta produção na área:

Convém demarcar a compreensão que tenho da formação como movimento

constante e contínuo de construção e reconstrução da aprendizagem pessoal

e profissional, envolvendo saberes, experiências e práticas. A formação

integra a construção da identidade social, pessoal e profissional, que se

interrelacionam e demarcam a autoconsciência, o sentimento de pertença.

(SOUZA, 2010, p. 158).

Ao enunciar o entendimento da formação como "movimento constante de construção e

reconstrução que integra a construção da identidade social, pessoal e profissional", Souza abre

possibilidades de um cotejamento com diversos pesquisadores que vêm investigando a

formação docente entrelaçada à noção de desenvolvimento profissional docente ao redor do

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mundo, ao menos do mundo ocidental. Dentre estes pesquisadores, situo no contexto

brasileiro, por inversão intencional, do modo costumeiro de começar referenciado sempre

pesquisadores europeus, a professora Doutora Filomena Maria de Arruda Monteiro que, ao

largo de mais de uma década têm coordenado pesquisas assentes sobre o entendimento da

formação atrelada ao desenvolvimento profissional, pensado com propósito de compreender o

profissional docente em perspectiva multidimensional:

[...] a concepção de desenvolvimento profissional aqui defendida tem como

propósito recontextualizar o profissional docente, o que significa

reconhecermos que o sentido desse processo para os professores vai sendo

construído pelo entrelaçamento das dimensões pessoais/profissionais, dos

contextos e demais aspectos constitutivos da profissionalidade docente, das

políticas e práticas formativas num movimento permanente de indagação,

problematização, experienciação e ressignificação do exercício docente.

Embora esse processo revele tamanha complexidade e

multidimensionalidade, é uma necessidade individual/coletiva e

organizacional que pressupões comprometer-se com uma aprendizagem

contínua [...] (MONTEIRO, 2014, p. 719).

Ao defender a concepção de desenvolvimento profissional com foco na

recontextualização do profissional docente desde uma perspectiva multidimensional que

entrelaça as dimensões pessoais/profissionais e contextos, bem como torne possível a

compreensão dos sentidos que subjazem ao processo, Monteiro evoca toda uma gama de

investigadores na área de formação docente e aprendizagem em contexto, pesquisadores de

diferentes latitudes tais como: Cunha (2013), Mizukami (2002, 2006), no cenário nacional e,

Nóvoa (1995; 2009); Marcelo (1999, 2010), Day (2001, 2005), no cenário internacional,

dentre tantos.

Cunha (2013), vem publicando pesquisas na área de formação docente, principalmente

em contextos universitários brasileiros, sempre pautado no estudo de percursos e trajetórias

profissionais em contextos de desenvolvimento institucional. Compreendidos estes contextos

como lugares nos quais os professores se constituem simultaneamente como profissionais e

pessoas. Mizukami (2002, 2006) por seu turno, vem aportando desde décadas, contribuições

no sentido de se aprofundar a compreensão do que se passa nos contextos escolares, inclusive

nas salas de aula brasileiras. A partir dos estudos de Schonfield (1998) e de outros

pesquisadores desenvolve pesquisas sobre processos de desenvolvimento profissional docente

em contextos e destaca aspectos importantes que marcam os processos de aprendizagens ao

longo das trajetórias dos professores. Aspectos relacionados à natureza individual e coletiva

das aprendizagens, ao contexto de influência da escola, aos conhecimentos necessários à

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docência, às práticas e aos conhecimentos da e para a prática, bem como questões

relacionadas à reflexividade dos professores.

Nóvoa (1995, 2009, 2016), veio se constituindo nas últimas como uma destas

"celebridades" que, por vezes, destacam na ribalta educacional. Todavia, para além da

notoriedade do Português, ex presidencial, nas terras além Tejo, ele apresenta contributos de

grande impacto no campo da formação profissional docente de modo geral e, aporta

contributos inestimáveis a esta tese, de modo particular. Nos anos noventa do século, Nóvoa a

partir dos estudos de Jhennifer Nias (1991, apud NÓVOA, p. 15) popularizou o enunciado de

grande retumbância na área de formação docente, na qual asseverava que o professor é a

pessoa; e uma parte importante da pessoa é o professor. Ao relacionar este enunciado às

evidências das pesquisas coordenadas por ele, o Lisboeta, elaborou um conceito de formação

entrelaçada ao desenvolvimento profissional docente sustentado na tríade:

pessoalidade/profissionalidade/institucionalidade.

A formação de professores deve dedicar uma atenção especial às dimensões

pessoais da profissão docente, trabalhando essa capacidade de relação e de

comunicação que define o tacto pedagógico. Ao longo dos últimos anos,

temos dito (e repetido) que o professor é a pessoa, e que a pessoa é o

professor. Que é impossível separar as dimensões pessoais e profissionais.

Que ensinamos aquilo que somos e que, naquilo que somos, se encontra

muito daquilo que ensinamos. Que importa, por isso, que os professores se

preparem para um trabalho sobre si próprios, para um trabalho de

autoreflexão e de auto-análise. (NÓVOA, 2009, p. 38).

Concomitantes às pesquisas de Nóvoa, outro pesquisador também da Península

Ibérica, debruça-se sobre a questão da formação docente e desenvolve investigações que

igualmente contribuem para novas definições do Campo e, auxiliem enormemente na

composição deste texto; enuncio então, as pesquisas de Marcelo (1999, 2010, 2012, 2013),

investigador espanhol que realiza pesquisas sobre formação de professores e desenvolvimento

profissional docente em diversos países, inclusive na América Latina. Para Marcelo à

formação docente, tanto a inicial a contínua deve-se compreender em um continuum de

formação delineado ao longo de uma trajetória formativa, considerados como aspectos

fundamentais nesta trajetória, além dos percursos pessoais, as condições, nas quais

efetivamente, os docentes atuam. Condições organizacionais, no bojo das quais, aspectos

como remuneração e carreira aliados a crenças e desejos pessoais, são veemente destacados.

Falar da carreira docente, não e mais do que reconhecer que os professores,

do ponto de vista do “aprender a ensinar”, passam por diferentes etapas (pré-

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formação, formação inicial, iniciação e formação permanente, de acordo

com Feiman, 1983), as quais representam exigências pessoais, profissionais,

organizacionais, contextuais, psicológicas, et., específicas e diferenciadas.

(MARCELO, 2013, p. 12).

Reconhecer que os professores, do ponto de vista do 'aprender a ensinar', passam por

diferentes etapas que integram um continuum de desenvolvimento, é tema recorrente nas

publicações de Marcelo que desde da década de noventa do século passado, investiga o

assunto tanto na rede de investigação internacional a que coordena, quanto em parceria com

pesquisadores ao redor do mundo. No que concerne ao que se buscou a investigar para

compor este texto de tese, tem desenvolvido investigações concernentes ao processo inicial de

desenvolvimento profissional docente em parceria com Denise Vaillant (2012) em diversos

países da América Latina. Mencionadas investigações revelam, que muito embora, a etapa de

inserção à docência, tenha sido contemplada por políticas públicas em países como Argentina,

Chile e em alguns estados e municípios brasileiros, o que paira em muitos contextos, é a

ausência de políticas sistemas de acompanhamento a professores em processo inicial do

tornar-se docentes. Fato que coincide com o que revela a pesquisa da qual resulta esta tese,

levada a cabo em escolas públicas da Rede Pública de Mato Grosso e que evidenciou a

inexistência de tais políticas nas escolas onde os participantes da pesquisa atuavam.

Por seu turno, Christopher Day (2001, 2005), desde o cenário britânico e europeu tem

desenvolvido ao longo de muitos anos, investigações sobre a formação profissional docente

em serviço, em outros termos, aborda o desenvolvimento profissional docente e os contextos,

bem como as relações que neles se estabelecem como aspectos que podem potencializar,

mitigar ou mesmo inviabilizar a carreira docente. Day (2001) defende perspectivas muito

próximas as defendidas por Nóvoa (1995), enfatiza no âmbito do desenvolvimento

profissional docente a indissociabilidade entre o ser pessoa e o ser professor e destaca a

relevância de dispositivos políticos, relações interpessoais e compromisso pessoal na

profissão docente. A propósito, convida a refletir sobre questões atinentes a profissionalidade

e profissionalização docente, termos que para ele estão associados, mas não se confundem. A

profissionalidade se refere, segundo Day (2001) ao envolvimento e compromisso pessoal

requerido do docente; profissionalização, remete à melhoria necessária e constante das

instituições onde atuam, assim como do fortalecimento da carreira desde os respectivos

contextos de atuação. Fortalecimento que para o pesquisador inglês requer dentre outros

fatores: o compromisso, vocação apaixonada, em ajudar o aluno a aprender e o apoio

interinstitucional, no qual a equipe gestora joga um papel fundamental (DAY, 2005). Insiste

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tanto quanto Nóvoa (2010), que as escolas devem se configurar como comunidades

aprendentes. O autor ressalta, igualmente, os professores como são sujeitos ativos que

precisam se prepararem para cumprir os fins educativos, com foco no compromisso e

entusiasmo frente à aprendizagem contínua. De modo que assume o conceito de

desenvolvimento profissional que dá ênfase à aprendizagem a partir da experiência, tanto

individual, sem ajuda externa ou da partilha de experiências entre pares. Assim, coincide com

Nóvoa, uma vez mais, para quem

Ser professor é compreender os sentidos da instituição escolar, integrar-se

numa profissão, aprender com os colegas mais experientes. É na escola e no

diálogo com os outros professores que se aprende a profissão. O registro das

práticas, a reflexão sobre o trabalho e o exercício da avaliação são elementos

centrais para o aperfeiçoamento e a inovação. São estas rotinas que fazem

avançar a profissão. (NÓVOA, 2009, p. 30).

Se para Nóvoa ' é na escola e no diálogo com os outros que se aprende a profissão'

para Day (2001, 2005) a docência é uma profissão eminentemente relacional com forte

componente pessoal e, estas são asserções que tangenciam muito proximamente os sentidos

compostos ao longo desta pesquisa. Posto que, ao longo da investigação da qual decorre este

texto de tese profissionalidade/pessoalidade, aspectos políticos e organizacionais se

entrelaçam e configuram o processo inicial de desenvolvimento profissional docente. Os

sentidos que vão sendo elaborados pelos principiantes nesta caminhada do tornar-se professor

se compõem de muitos outros sentidos que estes se apropriam no contexto de atuação,

sentidos estes que se integram ao modo muito particular que cada participante da pesquisa foi

atribuindo à instituição em que atuava e/ou atua; na forma como dialogam e aprendem com os

professores que com mais tempo de atuação. Diálogo, por vezes, ausente , configura o

processo de ser professor, mais pelo desencontro, que pelo acolhimento e camaradagem.

Ausência de autêntica conversação que fomenta silenciamentos e distâncias. Deformação que

nem sempre forma, ao tempo em que despontencializa o professor e desempodera a profissão.

A despeito disso, parece oportuno, retomar Monteiro (2014) que, referenciada nos trabalhos

de Day (2001), Contreras (2002) e Zeichner (2008) amplia a conceituação do termo

desenvolvimento profissional na medida que o define como um processo no qual os

professores revivem, renovam e ampliam o compromisso com a própria aprendizagem, bem

como com a aprendizagem dos estudantes, para além disso, o termo implicaria refletir sobre

os propósitos éticos e morais do ensino, do mesmo modo que supõe compreender que

mencionados compromissos emanam das experiências e para elas convergem. Assim,

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desenvolvimento profissional, desde o lugar teórico em que se sustenta está tese, é um

conceito que abarca toda a trajetória do professor, assim como as efetivas condições que se

lhe apresentam no contexto onde atua, experiências, aprendizagens e tomada de decisões

visando a melhorias, conforme sintetiza a autora a que vimos fazendo referência

Em síntese o desenvolvimento profissional está intimamente entrelaçado ao

trabalho docente e suas condições, ás experiências e aprendizagens

formativas, incluindo tomada de decisões para melhoria na prática

pessoal/profissional e nos aspectos organizacionais. É preciso conhecer e

compreender todo cenário profissional para se estabelecer políticas públicas

que possam apoiar inovações institucionais, fortalecendo o trabalho docente.

(MONTEIRO, 2014, p. 719)

Ao enfatizar a importância de se compreender o cenário profissional para estabelecer

políticas públicas que favoreçam inovações institucionais, ao tempo em que fortaleçam o

trabalho docente, Monteiro (2014) se aproxima do entendimento de Zeichner ( 1992, 2008,

2009), pois o pesquisador americano vem ao longo de décadas de investigações construindo a

concepção de que a formação de professores deve integrar diferentes dimensões se voltar à

transformação das condições circundantes, pautada sempre no princípio de justiça social. Vale

ressaltar que para o pesquisador mencionado justiça social, longe de se constituir em categoria

abstrata, configura-se antes como um conceito a ser construído cotidianamente no encontro

entre o pessoal e o coletivo, o privado e o social, o vivido e o institucionalizado. Logo, a

política deve se constituir dimensão fundamental da formação contínua e o conceito de

justiça, pensado a partir do comprometimento incansável, crítico, transformador, formador do

ser pessoa, tornar-se professor. Ao se referir à formação de professores, atesta que por melhor

que tenham preparados pela universidade, não estão prontos para a complexidade que os

espera nos contextos de atuação, ou seja, a formação inicial e formação contínua e em serviço,

compõem as faces do mesmo processo de desenvolvimento profissional.

Em sendo assim, resguardadas proporções, é possível cotejar o conceito de formação

docente tal qual pensado por Zeichner (2009), desde o contexto americano, ao conceito de

formação, concebido por Andrés Klaus, desde latitudes mais ao sul, Colômbia. Pesquisador e

professor da Universidade de Antioquia Klaus (2005), recorre ao conceito alemão de Bildung,

tal como concebido por Humbolt, para por em causa a formação desde uma perspectiva mais

enciclopédica, cientificista, pautada na perspectiva de conhecimento como transmissão, em

detrimento de um conceito de formação mais humanizante, sustentada "pela práxis

autoformativa", segundo palavras de Klaus (2005, p. 05)

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[...] como lo queremos resaltar la formación ha de ser entendida como una

formación de sí que apunta al desarrollo de la personalidad propia. Todo lo

anterior implica que la formación como formación de sí no es algo fijo, sino

un flujo de la vida vivida que debe ser experimentado, vivenciado e, incluso,

padecido. La praxis autoformativa se constituye entonces en una actividad

vital mediante la cual los individuos y la humanidad crean el mundo y, a su

vez, se autoconstituyen genéricamente, es decir, se forman a sí mismos.18

Se para Zeichner (2009) formação, desenvolvimento profissional docente e justiça

social são termos interrelacionados, com destaque para o componente pessoal e político deste

processo, como ele insiste; para Klaus (2005) a formação deve voltar-se para o

desenvolvimento de uma personalidade própria que, contudo não se configura como algo fixo,

mas como um fluxo da vida vivida, na qual por meio das experiências, inclusive sofridas, é

possível criar o mundo, em uma relação dialética com os outros e consigo mesmo. Ao abordar

o tema desde uma mirada pessoal, subjetiva, mas ao mesmo tempo geral e humana, o

pesquisador colombiano se aproxima do conceito de formação tal qual defendido nesta tese,

ou seja, permite vicejar o conceito em um continuum de desenvolvimento que abarca

pessoalidade, profissionalidade e contextos, tal similitude se torna ainda mais evidente quando

Klaus (2005) recorre ao termo práxis autoformativa para explicar o processo de constituição

do sujeito que se forma.

Por outra parte, Klaus (2005) compreende a formação como atividade vital. O que

equivaleria a dizer que a formação é dimensão essencial da vida do ser que aspira à

humanização processual, conflituosa, deformativa, mas perene. Ora, uma conceitualização

com tamanha amplitude, contribui para o entendimento da formação para além dos espaços

institucionalizados, todavia, põe em causa, o distanciamento entre os modelos de formação

que tendo sido institucionalizados se afastam do fluxo contínuo da vida e, transformam

conhecimentos, métodos e modos de agir em dogmas, aceitos acriticamente. Fato que não

escapa à argucia do mestre colombiano

18

[...] como queremos ressaltar a formação há de ser compreendida como uma formação de si que aponta para o

desenvolvimento da personalidade própria. Todo o anterior implica que a formação como formação de si, não é

algo fixo, se não um fluxo da vida vivida que deve se experimentado, vivenciado, e, inclusive, padecido. A

práxis autoformativa se constitui então em uma atividade vital mediante a qual os indivíduos e a humanidade

criam o mundo, e, por sua vez, se autoconstituem genericamente, ou seja, formam a si mesmos.

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19A nuestro modo de ver, la curiosidad teórica y el deseo por saber del ser

humano contemporáneo se han visto degradados a tal punto que muchos de

los y las investigadoras con quienes nos las vemos en la actualidad

parecieran haberse convertido en simples máquinas de producción de

conocimientos científicos; es decir, para usar una expresión frecuente y

fuerte dentro del ámbito universitario alemán, en “Fachidioten” o idiotas

especializados. Hablamos de profesionales, técnicos, sabihondos, pero no

necesariamente de sujetos críticos y reflexivos formados mediante la ciencia.

(KLAUS, 2005, p. 03).

De fato, o pesquisador Colombiano advoga em favor de um conceito de formação

crítica e, neste aspecto, possibilita o cotejamento com as perspectivas defendidas por

Francisco Imbernón (2000, 2012), para quem a formação deve se voltar à transformação

social, incluídas nestas transformações, as mudanças necessárias ao fortalecimento da

profissão docente, marcada pela busca constante daquelas. A busca por estas últimas, seriam

na visão do pesquisador espanhol, aspecto essencial da dimensão política da formação.

De modo que, o questionamento que Klaus (2005) apresenta ao conceito de formação

marcada pela acriticidade o aproxima da intransigência de Imbernón (2000) quanto à

necessidade de que o termo seja pensado desde uma ótica crítica e transformadora. Nesta

perspectiva, ambos aportaram muito à pesquisa, da qual resultou este texto, posto que, durante

a investigação, principalmente, no período em que estive imerso nos contextos de atuação dos

participantes da pesquisa, logrei compreender o quão mecânico pode se tornar o cotidiano

escolar, até mesmo para os professores em início de desenvolvimento profissional docente. Às

vezes, nos momentos em que frequentei, os encontros de formação continuada, parecia que

tudo passava sem que nada acontecesse (LARROSA, 2014). Era como se, por vezes, os

palestrantes internos ou externos, por "sabihondos" que fossem, falassem uma língua de

deslinguados, incapaz de tocar, de sensibilizar os docentes.

O dilema exposto no parágrafo precedente, ficou bastante evidente, por exemplo em

encontros de formação que se deram no projeto Sala de Educador, encontros, aos quais,

conforme narrado em outros momentos deste texto assisti e registrei em vídeo. Em um destes

encontros, no contexto de atuação de Odisseu, por mais que a equipe gestora tenha planejado

atividades com vistas a provocar reflexões sobre o processo de ensinar e de aprender em sala

de aula, era nítido o pouco envolvimento da maioria dos que estavam presentes.

19

A nosso modo de ver, a curiosidade teórica e o desejo por saber do ser humano contemporâneo tem se degrado

a tal ponto que muitos dos e das investigadoras que vemos na atualidade parecem haver se convertido em

simples máquinas de produção de conhecimentos científicos; ou seja, para usar uma expressão ferquente e forte

dentro do âmbito universitário alemão, em 'Fachidioten' ou idiotas especializados. Estamos falando de

profissionais, técnicos, sabichões, porém, não necessariamente de sujeitos críticos e reflexivos formados

mediante a ciência.

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Alguns pareciam estar ali por pura performatividade (ZEICHNER, 2009), outros

estavam envoltos com os telefones portáteis, enquanto o coordenador se esmerava por trazê-

los para o debate. Mesmo Odisseu, em certo momento cochilou, talvez sucumbido pelo

cansaço de acorrer ao encontro depois de dupla jornada de trabalho. Não faltavam, inclusive,

professoras que, depois dali, deslocariam para outra escola com vistas a iniciar a terceira

jornada do dia. Como tocar, envolver, potencializar os sentidos da experiência em condições

tão iníquas do ponto de vista da justiça social, para com os próprios professores? Em outros

termos, como desenvolver desde o contexto escolar formações que se inscrevam em um

continuum de desenvolvimento e se configurem como processos vitais? Formações capazes

de fortalecerem os professores nas dimensões pessoal e profissional para que transformem os

contextos de atuação?

Não obstante, a complexidade que circunda o tema, há uma situação ainda mais

desafiante, alguns professores simplesmente se negam a participar dos encontros. Que

paradoxo, uma formação pensada para e não com um sujeito que se reconhece tão pouco nela

a ponto de sequer comparecer ao local e momento definidos previamente. Este foi o caso de

Félix que não compareceu ao encontro e em entrevistas posteriores afirmou que dada à

demanda de trabalho a que estava submetido e do sem sentido do que ali se passava, decidira

não mais participar do projeto Sala de Educador. Professor de Língua Espanhola em três

escolas localizadas em um raio de aproximadamente quinze quilômetros, era obrigado a

deslocar continuamente de um contexto a outro. Ao tempo em que se via enredado com uma

série de procedimentos burocráticos caros a um professor em processo inicial de

desenvolvimento: planejar aulas para turmas distintas; avaliar e pensar dispositivos para

ajudar na aprendizagem de um número estimado em seiscentos alunos; além de corrigir

provas, lançar notas e lidar com toda uma gama de conflitos que a interação em três contextos

distintos se lhe apresentavam. Acompanhar este processo, levou-me a formular os

questionamentos anteriores e a investigar o que diz literatura da Área. Foi então que encontrei

os autores apresentados neste capítulo.

Assim, pois, àqueles questionamentos pospostos, Day (2001, 2005), Nóvoa (2009)

mesmo escudados pela premissa de que se tratando de formação docente, não há receitas a

serem seguidas, sugerem que sejam instituídos coletivos ou comunidades de aprendizagem no

âmbito das instituições escolares. Ambos coincidem que para a constituição e continuidade

destas comunidades as dimensões pessoais, profissionais e contextos devem ser investigadas e

consideradas todo o tempo. Enquanto o primeiro insiste na importância da equipe gestora para

o andamento destes coletivos, inclusive, com na configuração de coletivos interinstitucionais,

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bem como na vocação apaixonada do professor e no comprometimento pessoal; o segundo,

faz fincapé na necessidade de se considerar no processo os percursos pessoais e as trajetórias

de formação que fizeram com que cada um dos docentes se tornassem o que estão sendo.

No que tange, mais especificamente ao tema desta tese, Marcelo (2008, 2010) situa a

problemática da formação em um continuum de evolução, no qual formação inicial e

formação em serviço, são momentos que se entrecruzam. Desta maneira, logo, é preciso criar

e manter dispositivos de acompanhamento para os professores principiantes desde o ingresso

no contexto escolar, a fim de potenciar o processo de desenvolvimento desde o início. De

forma que, as questões que me assolam desde o momento em que passei a acompanhar a

formação dos participantes da pesquisa no lugar onde atuavam, conforme apresentado

anteriormente, me levaram a elaborar a compreensão de que formações pontuais, embora,

possam render bons frutos, não se constituírem como regra: é preciso que a formação seja

concebida ao longo de um processo e como parte dele.

Todavia, as pesquisas de Monteiro (2003, 2007, 2014), bem como a concepção de

desenvolvimento profissional como termo que abarca não somente a formação inicial,

contínua e em contexto, mas também os sentidos que sustentam a experiência dos sujeitos em

formação, foram as que mais aportaram reflexões acerca dos questionamentos que me foram

surgindo no decorrer desta investigação.

Certamente, para fazer face a questões tão complexas que perpassam a formação

docente, principalmente a formação continuada e em serviço, é preciso uma concepção que

busque entender, desde os contextos de atuação, o profissional docente. Um arcabouço

teórico/prático que, forjado com base no reconhecimento de que o sentido que os professores

atribuem à própria formação vai sendo construído pelo entrelaçamento tanto das dimensões

pessoais/profissionais, quanto por características específicas dos contextos onde atuam. Além

disso, esse arcabouço deve possibilitar o reconhecimento de muitos outros aspectos

constitutivos da profissionalidade docente, das políticas e práticas formativas num movimento

permanente de indagação, questionamento e experienciação do e no metier docente

(MONTEIRO, 2014).

Somente uma concepção capaz de abarcar todas as dimensões mencionadas por

Monteiro (2014), possibilita compreender os sentidos que compõem as narrativas de

formação/deformação tanto de professores como Félix, que, por vezes, não reconhecem a

formação instituída nos contextos onde vem se dando o processo inicial de desenvolvimento

profissional dos mesmos como algo que impacte a própria constituição, quanto as narrativas

de Safo e Helena que sinalizam outros sentidos para a formação continuada e em serviço, já

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que para elas, integradas que estavam aos contextos de atuação, participar do projeto Sala de

Educador, revelou-se de fundamental importância no processo em que vem se tornando

professoras. Neste sentido, a pesquisadora matogrossense sinaliza possíveis caminhos a serem

trilhados nesta árida seara da formação docente ao caracterizá-la como processo complexo e

multidimensional, constituído como uma necessidade individual/coletiva e organizacional que

aponta para a assunção de um compromisso com um contínuo aprender.

Na conversação com autores/autoras de um campo tão pantanoso, polissêmico como o

da formação de professores, desenvolvi ao longo da investigação que originou este texto de

tese percepções elaborados pelo encontro entre o viver e o contar, o reviver e o recontar.

Percepções erigidas na busca pelos sentidos que sustentam as experiências do aprender a ser

pessoa, professor, nesta experienciação contínua e práxica que, em última instância sustenta

processos vitais de humanização, como não nos deixa esquecer Klaus (2005). Disto tratarei no

próximo tópico.

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CONSIDERAÇÕES

SENTIDOS APREENDIDOS COM AS NARRATIVAS DE PROFESSORES/

PROFESSORAS EM PROCESSO INICIAL DE DESENVOLVIMENTO

PROFISSIONAL

20Ningún nombre,

ninguna palabra puede definirnos.

Y sin embargo,

somos todos los nombres, todas las palabras.

(Pedro Arturo Estrada)

No limiar transitório deste texto, parece-me oportuno, aclarar que ao optar por compor

uma tese estruturada desde uma perspectiva narrativa, assumi desde o princípio os riscos que

tal feito pressupõe, contudo, como pano de fundo, movia-me sempre a busca por coerência

epistemológica e política. Confesso alcançar este feito foi e continua sendo um desafio

imenso. Assim, pois, consequente com a opção metodológica, marcada também por uma

perspectiva de política, sobrepujei o cânone acadêmico e, todavia, não estou seguro de que

alcancei um ponto ideal requerido por esta nova epistemologia, do que estou seguro, sem

sombra de dúvida é que já não quero escrever como o fazia antes, altivo e confiante no poder

da escrita acadêmica. Estou no meio do caminho, em uma travessia de deformação,

sofrimento e formação. No movimento de compartilhar sentidos por meio de diferentes

diálogos, tornei-me pequeno como pesquisador- ao menos da perspectiva dos padrões

vigentes -, como artífice da palavra literária pequei contra a tridimensionalidade requerida

pela Pesquisa Narrativa - termo que me dá triplo calafrio, cada vez que o ouço. Assim, pois,

no caso desta tese, a opção metodológica impactou fortemente o pesquisador na

multidimensionalidade em que se constitui. Contudo, tornou possível apreender com os

sentidos compostos a partir de experiências múltiplas e únicas.

Graças a opção metodológica que sustenta esta tese pude vivenciar junto aos

participantes da pesquisa processos de desenvolvimento desde uma perspectiva pessoal e

profissional, simultaneamente. A Pesquisa Narrativa me possibilitou relacionar com estes

outros/outras sem hierarquizar a relação pesquisador/participantes, sem reduzi-los a

generalizações abstratas e desincorporadas, compartilhamos histórias, cujas experiências se

assemelham mais pelas idissiocracias que por pontos comuns. Experiências, nas quais

individualidade e coletividade se encontra, sem que uma se reduza a outra. Sentidos

20

Nenhum nome/Nenhuma palavra pode nos definir/ Apesar disso/somos todos os nomes, todas as palavras.

(Tradução nossa)

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suscitados pelo encontro do singular com o universal, ambos em constituição sempre

provisória no âmbito de contextos complexos e plurais. Nos quais, logrei ingressar aos poucos

e, confesso que apenas esbocei algumas leituras possíveis nos momentos em que ali estive.

Em se tratando de contextos de atuação foi possível entender que interferem

fortemente nos processos de desenvolvimento profissional docente, com um impacto

preponderante nas trajetórias de professoras/professoras principiantes; impactam de modo

distinto aos docentes principiantes. O que para uns é desalento, para outros, são

possibilidades, desafios e um convite a reinvenção de si. Estas, nas palavras de Nóvoa (2016),

disposições pessoais, jogam um papel importante no modo como cada principiante vai se

tornando professor. Assim, a pessoalidade, o percurso de cada um/uma, a maneira como lida

com as dificuldades que se lhe apresentam, o comprometimento com o apreender

continuamente, o jeito de ser: mais extrovertido ou introvertido, a capacidade de se apropriar

das culturas vigentes em cada contexto e estabelecer relações que o fortaleça ou não, são

aspectos fundamentais neste processo. Mobiliza-se muito do que se é como pessoa no

processo de tornar-se professor.

No entanto, outros aspectos que transcendem a esfera da pessoalidade impactam

marcadamente o processo inicial de desenvolvimento profissional, limitações temporais e

organizacionais, impostos, muitas vezes, de cima para baixo, frustram demasiadamente os

principiantes, assim como questões sociais, como a violência em âmbito escolar. Safo, por

exemplo, viu-se, de repente, sem a companhia de colegas de trabalho, com as quais, havia

estreitado laços de amizade ao largo de anos e se sentia fortalecida como profissional. Este

fato, teve origem na decisão da Secretaria de Estado de Educação de alterar o sistema de

contagem de pontos para lotação de professores contratados nas escolas da rede. Não se trata

aqui de questionar a legitimidade desta decisão política, o fato é que quando a encontrei logo

após a lotação quase compulsória das colegas em outras escolas, mencionou o fato, com um

pesar visível e dizia não saber o que fazer em um futuro próximo, como prosseguir alijada de

companheiras tão importantes para o desenvolvimento de seu labor em sala de aula. Também

Helena teve de lidar com o conflito concernente ao consumo e tráfico de drogas na escola, na

sala de aula; aflita, buscou firmar parcerias com outras instituições a fim de fazer frente ao

problema e cada vez que lograva a colaboração de alguns estudantes que, segundo, em outros

tempos, exerceram liderança negativa junto a outros discentes, vibrava. Entretanto, vezes

houve em que sofreu ameaças veladas e seguiu atuando naquele contexto, apesar da

insistência do marido para que ela transferisse de escola. Do mesmo modo, Félix apresenta

nas respectivas narrativas questionamentos a graves problemas estruturais que afetam tanto o

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entorno social quanto a comunidade escolar e colocam em xeque o sentido de continuar na

profissão docente. Heitor quase sucumbiu à agressividade de um aluno e logrou retomar à

profissão tão almejada, somente após longo afastamento e em outro contexto. Odisseu busca

enfrentar o problema da violência, de certo modo, segundo ele institucionalizada, a partir de

uma construção bastante peculiar do conceito de autoridade nas interações com os alunos.

Em se tratando do encontro entre a escolha e o exercício inicial da docência é possível

dizer sobre o tornar-se profissional que os sentidos construídos nesta etapa envolvem tanto

aspectos pessoais, como institucionais e sociais, tais constatações longe de eximir os poderes

publicamente instituídos de se comprometerem com a melhoria das condições gerais de

atuação dos docentes desde os contextos escolares, implica em maior responsabilização no

que concerne ao planejamento e execução de políticas públicas educacionais. Primeiramente,

estas políticas, ao menos no que tange, a formação docente em serviço e processos iniciais de

desenvolvimento profissional, não podem ser concebidas desde uma perspectiva homogênea,

já que como visto, cada docente lida como os desafios que se lhe apresentam de modo

pessoal, corroborando neste sentido com o entendimento de Klaus (2005) ao definir a

formação como processo pessoal e vital, uma práxis autoformativa.

Retomando a questão da pesquisa: como professores principiantes de Língua

Portuguesa e Língua Espanhola dos anos finais da Educação Básica experienciam e

constroem sentidos que sustentam o processo inicial de tornar-se professor no

desenvolvimento profissional docente? Pode-se responder afirmando, a princípio, que por

meio de processos complexos, marcados pela particularidade de cada caso. Particularidades

que envolvem percursos e disposições pessoais, aspectos, profissionais, políticos e contextos.

Particularidades que remetem aos sentidos que cada docente atribui às experiências, tanto as

atuais quanto aquelas vivenciadas ao largo da trajetória de formação. De modo que os

participantes desta pesquisa atribuem sentidos bastantes idiossicráticos ao modo como vêm se

tornando professores. Para Helena, o fato mais marcante é possibilidade de transformar vidas,

redimensionar as existências de jovens, adultos e idosos que frequentam as aulas dela. Safo

destaca a possibilidade de reinventar-se sempre, a fim de se aproximar dos estudantes e

compreender as razões que os levam a fazer o que fazem, desafiada por grupos de

adolescentes, busca tanto quanto possível se constituir como professora ali onde os conteúdos

que leciona confluem para as vidas vividas por seres neste intenso metamorforsear.

Certamente, não o faz de modo quixotesco e solitário, buscava sempre o apoio fundamental

dos pares. Para Félix a profissão docente carece de sentido, por isso, embora, siga atuando,

não encontra mais motivos para continuar como professor. Odisseu ressalta que o sentido do

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tornar-se professor está em alcançar o reconhecimento máximo pelos alunos “ser o cara para

eles”. Heitor encontra sentido em ser docente, pautado em uma deontologia, na qual o

professor não pode se deixar enveredar por caminhos costumeiros e fáceis, deve estar

comprometido com a evolução pessoal de cada estudante.

A intensidade das experiências vividas/padecidas (KLAUS, 2005), no processo inicial

de tornar-se professor no desenvolvimento profissional docente, pode, por um lado, levar

alguns docentes a não se reconhecerem como parte integrante da instituição e desenvolverem

atitudes pessimistas, ressentidas, chegando inclusive, ao absenteísmo já no início do processo,

caso não sejam acompanhados no labor cotidiano com os alunos, pais e gestores; bem como,

não sejam acolhidos e estimulados a se sentirem valorados como profissionais da Educação.

Este acolhimento ou a ausência dele, faz-se presente em maior ou menor intensidade nas

narrativas dos participantes e se refere no mais das vezes ao modo como a equipe gestora,

principalmente a coordenadora e os pares de profissão recebem e interagem com os

principiantes. Neste sentido, a importância das relações estabelecidas nos contextos de

atuação é primordial para que o principiante se sinta e se anuncie como professor. A pesquisa

revela que sala de professores é mais que o espaço para planejar, refazer as energias no

intervalo entre as aulas, configurasse como um lugar crucial para a sociabilidade do professor

principiante, das conversações que ali se estabelecem, podem emergir parcerias, afetos e

desafetos que corroboram decisivamente no processo inicial de tornar-se professor.

Por outro lado, o acompanhamento ao professor desde o ingresso na instituição, ainda

que não seja sistemático, pode transformar a intensidade das experiências vividas/padecidas

em elemento potencializador, capaz de impactar fortemente a identidade dos envolvidos, a

ponto de se assumirem como profissionais, com uma vocação apaixonada (DAY, 2001) a

despeito de toda a complexidade que marca o ingresso à docência. Experiências enfatizadas

nas narrativas dos participantes de modo muito distinto. Odisseu ressaltou retrospectivamente

as aprendizagens elaboradas na convivência com os alunos, tais como a marcante percepção

de que toda a teoria precisa ser contextualizada com fulcro no vivido tanto pelo professor

quanto pelos alunos, oscilava entre a compreensão de experiência como acúmulo de saberes e

o entendimento do termo como um ir e vir práxico, contraditório, mas contínuo. Heitor situou

as próprias experiências sempre prospectivamente, equivale dizer que, sempre que narrou

algo, inclusive a frustração logo no início da docência, fazia-o de forma a aprender e a

fortalecer posteriores atuações como professor, coordenador, pessoa. Safo e Helena estiveram

sempre tão presas ao tempo presente, à vida presente que convertiam, no mais das vezes, o

sentido das experiências como um intensificador das relações com os alunos em sala, no

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momento mesmo em que aconteciam. Félix sofria as experiências narradas, como uma rotina

repetitiva e atroz, ciclo inescapável.

Assim, apesar de todos os riscos e equívocos que comporta a opção por uma

metodologia de investigação inovadora no âmbito da academia, estou certo de que ao eleger a

Pesquisa Narrativa, como método, fiz uma opção que me possibilitou adentrar um pouco mais

nesta seara tão subjetiva, pessoal e fundamental aos processos de formação, os sentidos das

experiências docentes. Por outro lado, busquei que o texto de tese não se constituísse um

relato apenas para um grupo de iniciados na Academia; quero que este texto seja

compreensível para todos que se predispunham a ler o mesmo, inclusive aqueles de baixa

escolaridade como minha mãe e meu pai, pois ao largo de milênios para isto se prestaram as

narrativas, para contar histórias, cujos sentidos estivessem a alcance de todos. Por isso,

agradeço-te amada leitora, estimado leitor, a tolerância para com esta composição em que o

poético e científico, sem preciosismo algum, por vezes se tocam. Pois bem, partamos rumo

à última paragem nesta travessia que, não obstante, jamais cessará definitivamente, posto que

aqui ambicionei elaborar uma obra aberta a experiências outras e novos sentidos neste

experienciar constante, sempreternamente.

Esta tese se configura pelo entrecruzamento de múltiplas itinerâncias, a saber: a do

próprio do pesquisador entrelaçada as de cinco docentes de Língua Portuguesa e Língua

Espanhola. Professores principiantes que compartilharam tão generosamente as narrativas que

compõem o modo como vem se tornando docentes e, ao fazê-lo permitiram o aprofundamento

da compreensão de que se tornam professores paulatinamente, imbricados em complexos

processos que envolvem simultaneamente o ser pessoa e o ser professor, contextos imediatos

da sala de aula e os contextos institucionais. Assim, pois, esta investigação permite vicejar

para além de estudos concernentes a sociologias das profissões, muitas das quais abordam

estas últimas pautadas em racionalidades mais técnicas, menos relacionais, subjetivas e

pessoais. No processo inicial de tornaram-se docentes, professores principiantes perfazem

trajetórias complexas, nas quais conhecimentos técnicos e saberes experienciais se entrelaçam

em diferentes dimensões, as quais cobram sentido somente no encontro da pessoalidade com a

profissionalidade.

A investigação levada a cabo ao longo dos últimos três anos e meio corrobora o

entendimento de que no processo de tornar-se professor os contextos de atuação preponderam

no sentido de potencializar ou dificultar o desenvolvimento profissional dos professores em

processo inicial de desenvolvimento profissional. No âmbito destes contextos, o professor

principiante sente-se instado a agir diante de situações inesperadas e, a maneira como age ante

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o insólito afeta a todo o entorno: alunos, demais professores, gestão, pais de alunos; de modo

inescapável ao próprio professor principiante. Os participantes envolvem-se e são envolvidas

inteiramente e, as marcas deste envolvimento se fazem sentir nos próprios corpos, bem como

acabam por tangenciar a construção de sentidos que sustentam os modos de ser e as maneiras

de fazer daqueles. Marcas que fazem emergir sentimentos diversos, como por exemplo, a

frustração de Félix, ao não receber o apoio desejado; a alegria de Helena ao se sentir acolhida

e integrada ao contexto institucional; a dor de Heitor, ao sucumbir à violência que grassava no

contexto em que passou a atuar como docente, pós nomeação no concurso público, ou a

felicidade deste mesmo Heitor, ao se reencontrar em outro contexto de atuação; o

contentamento de Safo, ao epifanicamente, sentir-se professora, profissional docente ou na

autenticidade de Odisseu ao narrar-se tão genuinamente.

Assim sendo, as relações que os principiantes encetam nestes contextos de atuação

desempenham um papel fundamental e, definem, em última instância, a viabilidade da

carreira em particular e o fortalecimento da profissão docente. Faz-se urgente e necessário

compreender que a docência é uma profissão de relacionamentos feita; tornar-se professor,

pois, é ser lançado a esta rede de interações, constituir-se desde dentro. Contraditório seria

tornar-se professor apesar da escola. Porquanto a qualidade destas interações é crucial ao

continuum de desenvolvimento profissional docente desde o processo inicial de tornar-se

professor.

Assim, pois, no processo inicial do desenvolvimento profissional docente dos

participantes desta pesquisa, os contextos nos quais atuam, e/ou, atuaram se revelaram

cruciais. Poder-se-ia dizer que mencionados contextos impactam tão fortemente a constituição

dos docentes principiantes que no âmbito deste processo passam a configurar como dimensão

precípua da identidade profissional destes professores, compreendida a identidade como

fenômeno relacional, reitero. Para aclarar tal fato, parece-me factível traçar um paralelo

elaborado a partir das narrativas cuja composição de sentidos sustenta a tese que venho

defendendo. Não retomarei as narrativas, se não que sinteticamente, apresento uma leitura que

desde uma perspectiva pessoal faço do modo como cada docente vem se constituindo a partir

de sentidos diversos que sustentam as experiências vividas nos respectivos contextos

institucionais.

Reconstituo, em virtude do exposto no parágrafo precedente, inicialmente as narrativas

de Félix e Helena, cotejo-as com vistas a aclarar quão relevante são os contextos de atuação à

constituição docente; em seguida, entreteceremos sentidos outros às narrativas de Heitor,

Odisseu, Safo e do próprio pesquisador.

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Escutamos de Helena que a despeito dos desafios que se lhe apresentaram ao iniciar a

respectiva carreira como professora concursada da Rede Estadual Mato-grossense, foi

tranquilo lidar com os conflitos que se lhe apresentaram, pois encontrara na coordenadora o

apoio de que necessitava, ao dizê-lo manifestava corporalmente, quão acolhida e integrada se

sentia naquele contexto. Nestes instantes, sorria muito e os olhos brilhavam ainda mais, a

conversa se estendia longamente muito além das entrevistadas gravadas, seguia-me sempre

solícita e falante até o portão. Permitia-se brincar com os comentários dos colegas referentes a

primeiras impressões que dela tiveram, quando a viram ingressar tão jovem em um Centro de

Educação de Jovens e Adultos. Nestas ocasiões reiterava que todos a ajudaram e ajudam

muito, por isso, sente-se segura, mesmo ante os conflitos de difícil resolução, como por

exemplo, o enfrentamento corajoso e ético, ante o comércio e consumo de entorpecentes

naquele contexto. Helena, é como o próprio pseudônimo sugere a beleza personificada no ato

de aprender e ensinar, desaprender e recomeçar, reinventar-se, esperançar sempre.

De Felix, ouvimos em diferentes registros, quão triste e despotencializador, sob muitos

aspectos, fora o contexto em que principiara o respectivo processo inicial de desenvolvimento

profissional. Durante as entrevistas, conversas e narrativas escritas, este participante me

transmitira, no mais das vezes, a sensação de que se movia desconfortavelmente naquela

paisagem, tanto que, com o convívio que estabelecemos, levou-me a construir metáforas.

Nestas, se me afigurava ora como um pegureiro movendo-se lenta e dificultosamente em um

pântano, cujo lodo o impedia de avançar; ora como o nadador que surpreendido, por um

sorvedouro no meio do rio, põe-se a debater fragorosamente, entretanto, ainda que vislumbre

a margem, não logra a alcançá-la. Ocorreu-me de, em certas ocasiões, como aquela em que se

queixara longamente e ressentido, de que sequer na coordenadora encontrara amparo para

levar avante aquilo que projetava desenvolver no contexto imediato da sala de aula, de

também subitamente ser surpreendido em meio ao lodaçal, prontamente, transfigurado em

portentoso rio, cujas águas me ameaçavam vivamente. Durante todo o tempo em que o

acompanhei Felix, jamais demonstrou sentir-se acolhido, muito menos integrado ao contexto

onde atuava. Por fim, confidenciou-me que vicejava seguir outra carreira, gastrônomo, quiçá.

O impacto do contexto de atuação no processo inicial de desenvolvimento

profissional, faz-se sentir de modo intenso, violento, surpreendente em Heitor. Vívido

sonhador comprometido com a profissão, entrega-se inteiramente e se frustra intensamente.

Heitor é ave abatida no princípio do voo, tolhida pelo estertor de um contexto institucional

onde a violência gera mais violência, institucionaliza-se. Nega-se obstinadamente a pactuar

com este modus, destoava de tudo quanto acreditara e almejara viver no seio da profissão.

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Argonauta que viaja sozinho, fragiliza-se, interrompe a viagem. Entretanto, Heitor a todos

honra com luta, por inglória que pareça. Redivivo, reencontro-o em outro contexto, nova

escola, novas possibilidades, a mesma entrega, o mesmo comprometimento, esperança eterna.

Heitor é fênix que, no entanto, pode ressurgir somente quando encontrou um contexto de

atuação mais propício a alguém que sonha sonhos sonhados com olhos abertos.

Odisseu, contador de histórias entretecidas com os fios da própria vida, tanto a dele,

como a das pessoas com os quais experiencia o tornar-se professor desde o contexto escolar.

Na teia das histórias enredas na própria narrativa este professor elabora os sentidos da

profissão docente na trama em que mescla fatos envolvendo os alunos, outros professores,

pais de alunos, dentre outros. Testemunho do viver, contar, conviver e recontar, preocupa-se

sobremaneira com a gestão da sala aula e reivindica ao professor autoridade quase régia.

Entretanto, ao longo do período em que convivemos, veio vindo reconsiderando algumas

perspectivas, inclusive a que se refere à ideia inicial de que ao professor cabia ensinar, apenas.

Contribui para esta mudança de perspectiva a capacidade muito peculiar que ele tem para

investigar narrativas familiares, ademais de muitos outros desafios vivenciados na escola. A

transferência de uma escola para outra, também o fez repensar sobre a diversidade de culturas,

histórias e pessoas com os quais se relaciona como professor. Odisseu é a própria narrativa

vivida e contada, o Narrador e como tal necessita ser escutado na temporalidade própria, tal

qual os contadores de causos de alhures.

Por seu turno, Safo também se enreda na rede narrada, alegra-se com a percepção de

que fala de si mesma como professora e ao fazê-lo se situa na profissão docente. Desde aí se

empodera sempre mais e situa no epicentro da própria narrativa, primeiro, aqueles a que se

refere como “meus alunos”, depois os colegas de profissão, professores, com os quais busca

compartilhar tanto os saberes quanto os sabores que convertem parcerias em amizades.

Ressente-se muito ante o reordenamento estabelecido em âmbito estadual, o qual estabelecera

contagem geral de pontos e não mais por unidade escolar, pois a afastara da maioria das

amigas com as quais trabalhara anos seguidos. No entanto, adentra cada vez mais as culturas

da escola, passando inclusive, a atuar também junto a jovens e adultos. Inquieta, perscruta

continuamente o horizonte e desconfia sempre do que toma por certo em dado momento. Safo

é o ser não ensimesmado em si mesmo, tem uma parte permanente, mas igualmente se

constitui de muitas outras que se sabem de repente, porquanto, repouso em movimento,

reafirmação e estranhamento, criticidade e acolhimento, reinvenção.

Todas estas narrativas, as pessoas e contextos que as evocam me conduzem a termos

como: alteridade (LEVINAS, 1991), diálogo vivo ou viva conversação (GADAMER, 2002)

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antropologia pedagógica (MÉLICH, 1997), experiência (LARROSA, 2014), todos

compreendidos desde a perspectiva da Pesquisa Narrativa (CLANDINNIN; CONNELLY,

2011) tornam factível esta travessia ao encontro de outrem e encontrar muito dele em si

mesmo, quem sabe seja esta uma maneira de sintetizar os saberes que esta investigação me

proporcionou. Ao encontrá-los algo se moveu em mim, ainda que eu tenha clareza de quem

estou sendo, não mais coincido inteiramente com quem eu fora antes destes encontros, antes

de adentrar as histórias vividas e narradas; antes de perguntar os sentidos que os professores

principiantes atribuem às experiências vividas, muito menos o quanto os contextos e a

qualidade das relações que aí se estabelecem são relevantes neste processo.

Viver as histórias de professores de Língua Portuguesa e Língua Espanhola em

processo inicial de tornar-se docente no desenvolvimento profissional, remeteu-me a meu

próprio processo, ao regressar ao tempo em que também era principiante, encontrei um eu tão

distinto de mim em muitos aspectos, não obstante, tão semelhante, em muitos outros. No

princípio, uma necessidade existencial de convencer a mim mesmo e aos demais de que eu

reunia condições ideais para me tornar professor. Quanto preciosismo, quantas aulas

magistrais, quanto incompreensão de que tornar-se docente requer muito mais que um falar

culto, que dominar as regras da Língua Padrão, que ensinar alunos a escreverem

aleatoriamente um sem fim de redações.

No entanto, o mesmo comprometimento, reiterada entrega que naquele tempo, por

vezes, expulsavam o sono e me levavam a angustiosamente refletir, tendo por companhia o

brilho da Lua, - que não raro, refulgia tão fria - sobre os conflitos, que se me apresentavam

como professor principiante em uma escola estadual em um município do interior deste

Estado, levam-me ainda hoje a me deter sobre o vivido, buscando sentidos para

acontecimentos que me tocam sempre em sala de aula, desde contextos acadêmicos. A

angústia paulatinamente parece ir cedendo espaço a tentativas de compreender; o foco em

busca de afirmação vai se deslocando em direção ao processo de ajudar o outro aprender; mas

o compromisso, a entrega, a paixão, recrudescem a cada encontro com novos estudantes, cada

novo contexto de atuação, a cada nova estação e, muitas lá se vão.

Encontro-me e me reconheço em diferentes experiências vividas junto aos

participantes desta pesquisa, quer seja, porque me tocam ao partilharem as experiências ou

pelos conflitos que vivenciam e o sofrimento que, por vezes, geram. Quer seja pelo

compromisso, esperança, inventividade e beleza com que enfrentam os desafios

extraordinários que surgem nos respectivos contextos. Portanto, por oportuno, enfatizo que

nenhuma palavra, nenhum nome pode definir objetivamente os sentidos que comportam o

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tornar-se professor, para este processo estão reservados todos os nomes, todas as palavras com

as quais e por meio das quais narram-se a si mesmos e, em meio a este narrar, por vezes,

surpreendem-se ante o reviver do vivido, mágica epifania que inscreve no seio desta pesquisa

o experienciar de experiências. Revelação que comporta toda uma gama de sentidos que

sustentavam diferentes maneiras de fazer, diversos modos de ser que marcam a docência

desde o princípio.

Igualmente, cumpre aclarar que esta investigação não corrobora com a ideia de que no

processo inicial de desenvolvimento profissional os professores principiantes tendem a, diante

das dificuldades encontradas nos contextos imediatos de sala de aula ou nas negociações

requeridas na resolução de conflitos que se lhes apresentam desde os contextos institucionais,

a imitar acriticamente os modelos de bons professores que porventura tenham marcada as

trajetórias dos mesmos, tampouco são condicionados apenas pelos preconceitos oriundos da

“aprendizagem da observação” calcadas em preconceitos sobre como funcionaria o mundo do

ensino conforme apontaram Marcelo; Pryjma, (2013). Se bem, em casos como o de Odisseu,

os preconceitos sobre o modo como se dão as relações no contexto institucional, estejam

presentes quando adentram estes contextos, ao longo do processo inicial de tornar-se

professor, as interações mesmas que têm lugar naquele contexto, os levam a dotar de novos

sentidos as experiências vivenciadas. Assim, a investigação levada a cabo, nesta tese, aponta

que ainda que não encontrem condições ideais nos respectivos processos iniciais de

desenvolvimento profissional, muitos docentes interagem, negociam e inventam maneiras

novas de fazer, obviamente tangenciadas fortemente pelos contextos de atuação, mas nunca

condicionados inteiramente por estes contextos, tampouco pelos preconceitos que trazem

consigo acerca destes últimos, na interação e na negociação, transcendem a ambos.

Por fim, importa asseverar que mais que escutar é urgente e fundamental que, ao se

tratar de processos de desenvolvimento profissional de professores principiantes, dar-lhes

audiência. Tal fato impactaria fortemente as políticas educacionais e, talvez ensejasse o

entendimento de que quando consideradas e reconhecidas as narrativas, cujos sentidos

apontam para o tornar-se docente desde os contextos de atuação, possibilitasse a compreensão

de que quando se trata de Educação, toda política deveria configurar-se antes e primeiramente

como epifenômeno pessoal, relacional, contextual e organizacional.

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