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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: ESTUDOS LITERÁRIOS Raquel da Silveira MANU CHAO: a mescla como instrumento de crítica do intelectual quiebra ley Juiz de Fora 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: ESTUDOS LITERÁRIOS

Raquel da Silveira

MANU CHAO:

a mescla como instrumento de crítica do intelectual quiebra ley

Juiz de Fora

2011

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Raquel da Silveira

MANU CHAO:

a mescla como instrumento de crítica do intelectual quiebra ley

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras: Estudos Literários, área

de concentração em Teorias da Literatura e

Representações Culturais, da Faculdade de

Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora

como requisito parcial para obtenção do título

de Mestre em Letras.

Orientadora: Profa. Dra. Silvina Liliana Carrizo

Juiz de Fora

2011

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A minha mãe Marina que me ensinou a não

fugir da luta e a esquecer o medo. Aos amigos

que cresceram junto a mim, presos a canções e

entregues a paixões e aos Carlos de minha

vida.

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AGRADECIMENTOS

Acreditando que, como diz a canção, “é impossível ser feliz sozinho” e que nenhum

trabalho científico pode ser concretizado individualmente, cabe, nesse pequeno espaço ao

menos um breve reconhecimento às pessoas que participaram e contribuíram mais

diretamente para que esta dissertação fosse realizada. Desta forma, sou muito grata:

Aos meus pais, por me transmitirem sua base ética e sua sensibilidade e me

impulsionarem desde cedo a procurar meu próprio caminho, especialmente à minha mãe, que

se tornou também grande amiga e confidente; aos meus dois irmãos, que, à sua maneira,

vibraram a cada nova conquista minha; ao meu marido Carlos e todos os amigos com quem

compartilho a vida, pelo respeito, por compreenderem minha ausência e pela paciência nos

momentos difíceis;

À Prof(a) Terezinha Maria Scher pelos ensinamentos e por me proporcionar o

primeiro contato com a obra de Manu Chao; à Prof(a) Silvina Liliana Carrizo, pelo exemplo,

orientação, carinho e grande amizade ao dividir comigo decisivos momentos de reflexão

intelectual;

Ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFJF por oportunizar a

realização deste trabalho; à professora Jovita Maria Gerheim Noronha por toda atenção na

banca de qualificação trazendo aportes bibliográficos que contribuíram para um refinamento

de metodologias e hipóteses;

Aos componentes da banca Anderson Pires da Silva e Jovita Maria Gerheim Noronha

por terem aceitado fazer parte de minha dissertação;

Aos amigos Leonardo Mattos, Myrelle Miranda e Juan Cuenca, pela ajuda nas

traduções do francês e do inglês; Wagner Lacerda, Waldilene Miranda, Adriana de Lourdes,

Dayana Faria e Carolina Neder que me mostraram na prática que a amizade e a colaboração

caracterizam uma grande e importante via de construção do conhecimento e do

amadurecimento acadêmico.

Sinceramente, muito obrigada a todos.

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Yo no creo en una gran revolución que va a

cambiar las cosas, me parece muy utópico.

Creo en miles y miles de revoluciones de

barrio, juntándose unas a otras se hará la

diferencia [...] porque puede llegar a cambiar

las cosas desde uno mismo, desde su família.

MANU CHAO

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RESUMO

A canção e o trabalho engajado de alguns intelectuais constituem uma esfera artística e social

de grande alcance e importância. O texto literário, e neste incluímos também a canção, como

resultado de uma produção discursiva, participa tanto do processo social quanto do sistema

significante em que está inserido. Esta dissertação discute a presença de artistas intelectuais

na sociedade, tratando de identificar como estes cumprem seu papel no que se refere à

formação de opinião de seu público. Para tanto, enfocaremos o trabalho do cantor e

compositor franco-espanhol José Manuel Arturo Tomas, o Manu Chao, tendo como corpus

artístico o álbum Clandestino: esperando la ultima ola (Virgin Records/1998). Através da

análise de algumas canções e depoimentos, descreveremos e exemplificaremos como o

comportamento intelectual é exercido por esse sujeito cosmopolita, capaz de falar várias

línguas e transportar-se de um país a outro, sem mais dificuldades. Como resultado,

encontramos, então, um artista engajado que se comporta como o intelectual que chega para

observar, refletir e comunicar ao mundo, a partir da canção como crônica cosmopolita, o que

acontece nos lugares por onde passa, ao transformar suas canções e seus shows em momentos

de reflexão política, provocando, assim, uma abertura de fronteiras. Ao cantar, ato acima de

tudo de ação comunicativa, Manu Chao reivindica e mescla diferentes tradições culturais de

uma infinidade de países por onde passou e/ou viveu, utilizando a “patchanka” como voz que

assinala o hibridismo e unifica uma mensagem. Com isso, expõe um projeto musical concreto

que se encontra fora de uma formatação pré-estabelecida, mas dentro de uma maneira

inteligente de aproveitamento e subversão dos meios de comunicação para produzir e divulgar

seu projeto contra-hegemônico.

PALAVRAS-CHAVE: Manu Chao. Intelectual. Engajamento. Hibridismo. Cosmopolitismo.

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RESUMEN

La canción y el trabajo comprometido de algunos intelectuales constituyen una esfera artística

y social de gran alcance e importancia. El texto literario, y en éste incluímos también la

canción, como resultado de una producción discursiva, participa tanto del proceso social

como del sistema significante en el cual está inserto. Esta disertación discute la presencia de

artistas intelectuales en la sociedad, tratando de identificar cómo éstos cumplen su papel en lo

que se refiere a la formación de opinión de su público. Enfocaremos el trabajo del cantautor

franco-español José Manuel Arturo Tomas, el Manu Chao, teniendo como corpus artístico el

álbum Clandestino: esperando la ultima ola (Virgin Records/1998). A través del análisis de

algunas canciones y declaraciones, describiremos y ejemplificaremos cómo el

comportamiento intelectual es ejercido por este sujeto cosmopolita, capaz de hablar varias

lenguas y trasladarse de un país a otro, sin dificultades. Como resultado encontramos entonces

un artista comprometido que se comporta como el intelectual que se presenta para observar,

reflexionar y comunicar al mundo, a partir de la canción como crónica cosmopolita, lo que

sucede por los lugares por donde pasa al transformar sus canciones y sus conciertos en

momentos de reflexión política, provocando, de esta manera, una apertura de fronteras. Al

cantar, acto sobre todo de acción comunicativa, Manu Chao reivindica y mezcla distintas

tradiciones culturales de una infinidad de países por donde anduvo y/o vivió, ulizando la

“patchanka” como voz que señala el hibridismo y unifica un mensaje. Con ello, expone un

poyecto musical concreto que se encuentra fuera de una formatación pre-estabelecida, pero

dentro de una inteligente forma de aprovechamiento y subversión de los medios de

comunicación para producir y divulgar su proyecto contra-hegemónico.

PALABRAS-CLAVE: Manu Chao. Intelectual. Compromiso. Hibridismo. Cosmopolitismo.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO -------------------------------------------------------------------------------- 8

1 MANU CHAO COMO INTELECTUAL ---------------------------------------------- 16

1.1 Do rock segue a trajetória – do No Future ao Oui Futur -------------------------- 17

1.2 As contradições do intelectual clandestino------------------------------------------- 24

1.3 A presença do intelectual cosmopolita como interlocutor e cronista de seu tempo

---------------------------------------------------------------------------------------------- 38

2 MANU CHAO E SUA RELAÇÃO COM A INDÚSTRIA CULTURAL ---------- 49

2.1 O surgimento e as transformações do modelo conhecido como cultura de massa

---------------------------------------------------------------------------------------------- 50

2.2 O aproveitamento dos meios de comunicação para compor e divulgar um projeto

contra-hegemônico ---------------------------------------------------------------------- 58

2.3 “¿Qué pasó? ¿Qué pasó?” – O uso da repetição como constante chamada de atenção

---------------------------------------------------------------------------------------------------- 72

3 O HIBRIDISMO NAS MÚSICAS E NAS LETRAS --------------------------------- 78

3.1 “La Patchanka” ------------------------------------------------------------------------- 79

3.2 Mesclas musicais e interculturais em Clandestino: esperando la ultima ola...-- 84

3.3 O uso do portuñol como alternativa poética e política ---------------------------- 97

CONSIDERAÇÕES FINAIS ----------------------------------------------------------------- 103

REFERÊNCIAS -------------------------------------------------------------------------------- 109

ANEXO – Letras das músicas------------------------------------------------------------------ 115

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INTRODUÇÃO

O exílio é um modelo para o intelectual que se sente tentado, ou mesmo assediado ou esmagado, pelas

recompensas da acomodação, do conformismo, da adaptação. Mesmo que não seja realmente um imigrante ou expatriado, ainda assim é possível pensar como tal, imaginar e pesquisar apesar das barreiras, afastando-se sempre das autoridades centralizadoras em direção ás margens, onde se podem ver coisas que normalmente

estão perdidas em mentes que nunca viajaram para além do convencional e do confortável (SAID, 2005, p. 70).

Através de constantes estímulos recebidos durante nossa graduação no curso de Letras

da Universidade Federal de Juiz de Fora, fomos percebendo o quanto a canção e o trabalho

engajado de alguns intelectuais constituem uma esfera artística e social de grande alcance e

importância em nossa contemporaneidade.

Nosso primeiro contato com a obra Clandestino: esperando la ultima ola1 e o cantor

José Manuel Arturo Tomas, o Manu Chao, objetos de nossa pesquisa, foi justamente durante

essa graduação. Primeiro encontramos com ele no final de uma disciplina de literatura

brasileira em que estudávamos autores com o interesse observador e narrador como João

Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade, estes também possuidores de um fazer

literário comprometido com as questões humanas e políticas de sua época.

Um pouco mais a frente, em nosso último período da graduação, outra disciplina de

literatura nos apresentou a figura do intelectual, mais especificamente as reflexões do escritor

Edward Said sobre a história e as classificações atribuídas a essa figura. Além disso, Said fala

sobre as transformações por que passaram seus principais representantes e expõe sua tese

sobre qual seria o papel do intelectual contemporâneo.

Aliando esse conhecimento acumulado durante a graduação recorremos à epígrafe de

Edward Said para ir aos poucos assumindo nossa posição intelectual de pesquisador da área

dos estudos culturais que se movimenta e é sempre receptivo ao viajante, ao provisório, ao

arriscado, à inovação e à experiência. Tal epígrafe também vem para representar a figura do

1 Ver anexo com as letras de todas as canções do álbum, em ordem de execução no CD.

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músico intelectual que “encarna a condição de exilado e não responde a lógica do

convencional, mas ao risco da ousadia e ao movimento sem interrupção” (SAID, 2005, 70).

Esse primeiro contato já despertou nosso interesse por conhecer um pouco mais sobre

quem era, de onde vinha e sobre o que cantava esse artista, interesse que começamos a sanar

ao pesquisar a biografia do autor para uma apresentação durante uma disciplina da graduação

em língua espanhola. Descobrimos então uma obra de dimensões mundiais, seja em se

tratando das temáticas desenvolvidas em sua composição, seja pela variedade de línguas

cantadas por ele, pela densidade de mesclas presentes em seu trabalho ou pelo comportamento

intelectual de um francês de origem espanhola que, antes de ser conhecido, é identificado por

muitos como latino-americano.

A partir de 2009, começamos então a reunir informações para se compor realmente

nosso objeto de pesquisa: entrevistas, vídeos e cd´s. Tais materiais nos levaram a descobrir

um pouco mais sobre a figura de intelectual que o cantor representava e sobre quais eram os

meios utilizados por ele para cumprir um papel assumido na sociedade. Naturalmente,

ninguém está livre de ligações, sentimentos e contradições, por isso, estas também formaram

parte de nossas pesquisas e foram apontadas na trajetória profissional do cantor.

Por tratar-se de uma obra musical híbrida, labiríntica e desafiadora, e por

encontrarmos pouquíssimos trabalhos acadêmicos anteriores que nos servissem de base 2 ––

procuramos fundamentar o corpus artístico de nossa pesquisa no primeiro CD solo do cantor:

Clandestino: esperando la ultima ola...., lançado em 1998. A análise de suas canções, os

depoimentos retirados de vídeos e de algumas entrevistas dadas pelo cantor servirão para

descrever e analisar esse comportamento intelectual engajado enunciado por nós. Buscaremos

enunciar também que essas serão as maneiras de expressão e de atuação do sujeito em

questão.

Pensando em nosso papel de pesquisadores da área dos Estudos Culturais, recorremos

à reflexão do professor Diniz (2002, p. 179) que diz que esse “[...] vê-se, não subtraído, e sim

acrescido de novas funções” tendo a consciência de que “repensar-se criticamente implica

firmeza, tolerância e capacidade de propor novos olhares, atributos típicos de uma vida cultual

democratizada e plural”. Não podemos deixar de mencionar que, com isso, nos posicionamos

ao lado de outros pesquisadores que trazem a canção como tema de estudo dentro dos

programas de pós-graduação em estudos literários.

2 Na realidade encontramos apenas um trabalho acadêmico brasileiro produzido por uma estudante de

comunicação (SAYURI, 2007).

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Deixamos claro, porém, que nossa dissertação não visa tratar de possíveis relações,

diferenças e/ou comparações entre letra de música e poesia. Um dos motivos é por não sermos

provocados por qualquer desconforto no que tange a tais relações e outro, por enxergarmos

que as realizações da cultura não podem ser vistas como superiores ou inferiores, debate este

já exaustivamente abordado por pesquisadores do tema. Preferimos encerrá-lo já nessa

introdução, apontando que tanto a poesia da canção quanto a da literatura, apesar de serem

diferentes são igualmente valiosas e importantes e que podem chegar a mesclar-se e

transmutar-se na obra do artista em questão.

Em nosso primeiro capítulo “Manu Chao como intelectual” discutiremos sobre o tipo

de intelectual que representa o cantor. Para tratar desta figura, iniciaremos pela construção de

um pequeno histórico biográfico do cantor Manu Chao, incluindo fatos relevantes de sua vida

pessoal como filho de mãe basca e pai galego — o jornalista Ramon Chao — que emigraram

para França. Também traremos de sua vida profissional e de suas experiências, que incluíram

a passagem por diversos grupos musicais e seu pertencimento ao movimento punk,

explicitando, além disso, como aos poucos alguns cantores começaram a transformar seus

shows em momentos de reflexão política.

Percorreremos o início de sua carreira junto ao biógrafo Alessandro Robecchi e seu

livro Manu Chao – Música y libertad (2002), apoiados também em importantes declarações

proferidas pelo cantor e em informações encontradas em seu site oficial manuchao.net. Com

isso, chegaremos ao primeiro e mais famoso grupo a que o cantor já fez parte, a “Mano

Negra”, culminando em uma carreira solo, conciliada a apresentações com o grupo “Radio

Bemba Sound System”, grupo ao lado do qual o cantor se apresenta atualmente. Utilizaremos

também, em menor medida, o livro de Patricia Font e David Cabré Manu Chao... de primera

voz (2004) que se trata de uma coletânea de textos sobre o cantor e depoimentos proferidos

por ele em diferentes meios de comunicação e faremos um breve recorrido discográfico do

cantor.

Será discutida aqui a problemática central de nossa pesquisa: procuraremos

compreender qual é o papel de um cantor intelectual na formação de opinião de seu público,

assim como observar e exemplificar como ele exerce este papel. Para tal nos apoiaremos nas

reflexões de Edward Said em Representações do intelectual–As Conferências de Reith de

1993, identificando Manu Chao como exemplo de personalidade que possui atitudes sociais e

consequentemente políticas que arrastam milhares de pessoas à participação e compreensão

de diversos questionamentos mundiais.

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Formularemos algumas hipóteses críticas que possam se somar a estudos que venham

sendo realizados sobre a obra do cantor e o trataremos como um indivíduo de grande ação em

nossa sociedade contemporânea, através de suas várias formas de protesto inseridas dentro de

um cotidiano local-mundial. Para tal recorreremos aos conceitos de “hegemonia e política”,

formulado por Gramsci em 1955 e de “intelectual e engajamento”, como propostos por Sartre

em 1948.

Também procuraremos refletir sobre quais seriam as ferramentas e as formas

particulares de tomadas de posição do “intelectual clandestino”, na construção de um discurso

contra-hegemônico. Para tanto, retomaremos e ampliaremos a noção de “sujeito migrante”,

trazida por Cornejo Polar (2000), aliados às reflexões de Damatta (1984) sobre a relação entre

a casa e a rua.

Durante o século XX, o sucessivo vai dando lugar ao simultâneo e as distâncias vão se

reduzindo e se ampliando reciprocamente. Os apontamentos sobre vanguarda e

cosmopolitismo de Jorge Schwartz (1983) nos possibilitarão delimitar e distinguir os vários

níveis em que aparece o cosmopolitismo do intelectual em questão. O álbum Clandestino,

considerado pelo cantor como “no meio do caminho entre um diário de viagem e um relato de

si mesmo” (ROBECCHI, 2002, p. 241) nos permite enfocar a noção de cronista de seu tempo,

afirmada por nós durante essa pesquisa.

O artista que profere frases como “quando escrevo sou como um sampler que vê o que

passa ao seu redor [...]” (MANU Chao – Héroe por accidente, 2010) promove uma

humanização da tecnologia ao se aproveitar de sua evolução para apresentar nas letras no CD,

relatos com os quais interfere no cotidiano mundial. Percebemos que, desde “Mano Negra” —

antigo grupo do cantor — as marcas pluriculturais que fizeram parte de sua vida já podiam ser

observadas, mas é a partir de sua carreira solo que confirmamos o aumento do tom

representativo da pluriculturalidade de sua figura pública.

Em nosso segundo capítulo, “Manu Chao e sua relação com a indústria cultural”,

buscaremos avaliar como se processou e se processa até os dias atuais, a relação entre o cantor

e os demais representantes da chamada cultura de massa, destacando seu trabalho sob o selo

de grandes casas discográficas como a Virgin Music até chegar a produção em caráter

independente, como faz atualmente com a Because Music. Assim, procuraremos interpretar

como tal relação impactou ou vem impactando de alguma maneira sua produção artística

contemporânea.

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O arcabouço teórico utilizado nesse capítulo coloca em destaque a discussão com o

termo “cultura de massa”, considerado por nós, passível de análise e atualização. Trataremos

também do surgimento da chamada indústria cultural e das transformações ocorridas em tal

“modelo”, apoiados nas discussões, que se travaram no sentido histórico, de Eco (1964),

Martín-Barbero (1987) e García Canclini (1989).

Optaremos então por uma exposição do trabalho do cantor Manu Chao e pela análise

de algumas canções do álbum Clandestino: esperando la ultima ola (1998) no qual

destacamos um enfoque especial dado ao cenário cultural e político latino-americano,

principalmente ao México e ao Brasil. Em tais composições, Manu Chao promove maneiras

particulares, democráticas e politizadas de uso da imagem pública em relação com a indústria

cultural.

Na obra de Manu Chao, como na de qualquer figura pública que se destaque em sua

área, surgem contradições e questionamentos propostos, seja por sua audiência ou pela mídia

em geral. Sua trajetória pública e sua relação com a indústria discográfica se estabelece a

partir do momento em que grava seu primeiro vinil em 1985. Esse disco é editado por uma

pequena gravadora chamada Gougnaf Mouvement e daí em diante seguem as passagens pela

All or Nothing e pela Boucherie Productions, ambas gravadoras independentes cujo ideal era

trabalhar com a música, sem se distanciar do social e do compromisso político. Mas em 1989,

já pertencendo à Mano Negra, o cantor grava pelo selo da multinacional Virgin Records.

Apontaremos neste capítulo os questionamentos e polêmicas suscitados pela imprensa,

pelos fãs e pela própria cena independente francesa — através da canção “Manu Chao” do

grupo Les Wampas —, com relação a essa atitude de assinar um contrato com uma

multinacional, buscando explicitá-los através de entrevistas e depoimentos dados pelo próprio

cantor a fim de enxergar suas tomadas de posição como algo livre e diferenciado em sua

maneira de fazer, produzir e divulgar trabalhos artísticos e posicionamentos sociais.

A subversão do uso dos meios de comunicação aparece como forma de divulgar um

projeto contra-hegemônico. O cantor se utiliza de um mix intertextual do cinema, do rádio, da

televisão, etc. e tensiona desde o início, seu contrato com a Virgin Records, sem que, no

entanto, deixe de pertencer a ela. Essa tensão se expressa na clareza dos depoimentos do

cantor, que afirma sempre ter tido a palavra final durante seu contrato com a multinacional e

na necessidade inicial de pertencer a ela para tornar seu projeto e os projetos de seus amigos

conhecidos mundialmente.

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No início de seus shows e na letra de algumas canções, Manu Chao insere duas frases,

que para nós são de extrema importância, são elas: ¿Qué pasó? ¿Qué pasó? e ¿Por qué será?.

Estas aparecem como forma de apelo à atenção do público que é levado se não a responder,

pelo menos a pensar sobre uma possível resposta. Essa seria outra forma de atuação

intelectual e de subversão do consumo apontada por nós: a repetição. Nossa hipótese é que

tanto a repetição de canções apontada pela crítica aos outros álbuns do cantor, quanto de

algumas perguntas dirigidas ao público, funcionam como um ato de permanente protesto e

servem para anunciar o projeto do artista, projeto este que busca apresentar, questionar e

criticar as tensões por que passam milhares de cidadãos mundo afora, mas que também

espelham sua própria produção.

Apresentaremos, então, algumas repetições que podem ser identificadas dentro das

canções de nosso corpus artístico, as respostas dadas pelo próprio cantor quando questionado

sobre a repetição em suas canções, aliadas à reflexão de García Canclini (2008), sobre a

importância de manter vivas certas questões como a luta pela terra, a corrupção, a degradação

ambiental, etc.. Nossa intenção é expor um projeto musical concreto que se encontra fora de

uma formatação pré-estabelecida, mas dentro de um processo inteligente de aproveitamento e

uso dos meios de comunicação, principalmente a internet, apontada por nós, junto a Bellei

(2002) como instrumento democratizante do poder, para compor e divulgar o trabalho musical

e as outras formas de atuação intelectual de um artista consciente da prática utópica que

realiza.

E para essa realização Manu Chao retira da “mescla”, um potencial artístico de grande

relevância: a quebra de fronteiras. A “Patchanka” se torna então uma marca nas composições

de Manu Chao, especialmente em Clandestino por ser seu primeiro álbum solo que se produz

de forma caseira no chamado “Estúdio Clandestino”, inserido no contexto tecnológico dos

anos 90. O álbum não possui intervalos entre as faixas, o artista segue em frente e em seu

caminho de canções passa por Celta (Faixa 1 – “Clandestino”), Maracaibo (Faixa 6 –

“Lagrimas de Oro”), nos conta como é a vida de imigrantes e de estrangeiros americanos em

Tijuana (Faixa 10 – “Welcome to Tijuana”), caminha por Madri e sua Calle del Desengaño

(Faixa 12 – “Malegria”) [...] e segue pelas ruas do mundo.

Iniciaremos as discussões do terceiro capítulo “Hibridismo na música e nas letras”

conceituando as acepções do hibridismo (GARCÍA CANCLINI, 2008) 3 presentes nos ritmos

e nas letras de Clandestino. Ao compor, Manu Chao mescla diferentes tradições culturais,

3 Optamos por usar a edição de 2008 por se tratar de uma reimpressão que traz um novo prefácio do autor à

edição de 2001.

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musicais, artísticas e discursivas, e nos comprova que seu estilo híbrido encontrou lugar fértil

na América Latina — território de instabilidades e espaço de contato. O álbum é composto

por 16 canções cantadas em pelo menos quatro línguas, lembrando que uma língua sempre é

política e carrega com ela o peso da sua cultura, o capital cultural (CASANOVA, 2002).

Assim podemos observar na lista de canções:

Tracklisting

01. Clandestino

02. Desaparecido

03. Bongo Bong

04. Je Ne T'aime Plus

05. Mentira...

06. Lagrimas de Oro

07. Mama Call

08. Luna y Sol

09. Por el Suelo

10. Welcome to Tijuana

11. Día Luna... Día Pena

12. Malegria

13. La vie a 2

14. Minha Galera

15. La despedida

16. El Viento

Com a atitude de não inserir tais intervalos, o artista novamente subverte o potencial

comercial do disco, apresentando diversas crônicas que narram o trajeto de um caminhante e

suas viagens. Optaremos então por fazer um passeio que se iniciará na primeira faixa — e

aqui se fará necessário retomar canções já trabalhadas nos capítulos anteriores —,

percorrendo e demonstrando um caminho de hibridações considerado por nós de extrema

importância dentro do processo de composição do álbum. Aqui buscaremos apoio em Vargas

(2007) que recorre a García Canclini (1989) para identificar os processos de mistura de

gêneros e instrumentos regionais com as formas musicais globalizadas, nas composições do

grupo pernambucano Nação Zumbi.

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E no último ponto desse terceiro e último capítulo “O aproveitamento do portuñol

como alternativa poética e política”, abordaremos o uso do portuñol, uma língua híbrida, sem

identidade fixa — interlíngua fronteiriça por excelência —, mas representante de várias

realidades culturais, que carrega em sua gênese a característica de ser a língua dos deslocados,

dos vadios e da marginalidade como caracteriza Perlongher (2004), marcando essa atitude

sempre provocante e questionadora do intelectual. Recorrendo novamente a Said (2005) e

também a Casanova (2002), discutiremos a posição do intelectual José Manuel Arturo Chao,

o Manu Chao — que cresce em meio à profusão de línguas encontradas na periferia de Paris e

aos catorze anos fala francês na rua e espanhol em família. Além dos limites da língua, o

artista extrapola os limites da própria linguagem para expressar a realidade social e seus

desníveis de poder.

Caracterizaremos o aproveitamento dessa língua híbrida, o portuñol, como alternativa

de composição e posicionamento poético e político. Apontaremos como o cantor desenvolve

esse processo na canção “Minha galera” (faixa 14 do CD), assim como em composições

posteriores que lhe permitem ampliar as possibilidades de acesso e divulgação de suas

produções.

Em suma, o papel intelectual, o hibridismo e o cosmopolitismo são os conceitos

gerais que nortearão e que percorrerão toda a dissertação. A partir de uma visão inquiridora,

isto é, perguntando e examinando, e por que não dizer também de uma visão intelectual, é que

nossa pesquisa foi se abrindo e que fomos desdobrando a obra e o artista infinitos e

impossíveis de rotulação que são Clandestino: esperando la ultima ola.... e Manu Chao.

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1 MANU CHAO COMO INTELECTUAL

Nesse capítulo, construir-se-á um pequeno histórico biográfico do cantor Manu Chao,

incluindo fatos relevantes de sua vida pessoal como filho de mãe basca e pai galego – o

jornalista Ramon Chao – que emigraram para França; e sua vida profissional, percorrendo

diversos grupos musicais e passando do ideal punk do no future a um oui futur aliado à

mescla de diversos gêneros e linguagens para divulgar seu projeto contra-hegemônico. Sobre

a história do movimento punk, recorreremos à obra de Patrice Bollon A moral da máscara:

merveilleux, zazous, dândis, punks, etc.(1993).

Será discutida aqui a hipótese central de nossa pesquisa: procuraremos compreender

qual é o papel de um cantor intelectual na formação de opinião de seu público, assim como

observar e exemplificar como ele exerce este papel. Para tal nos apoiaremos nas reflexões de

Edward Said em Representações do intelectual – As Conferências de Reith de 1993 (2005)

identificando Manu Chao como exemplo de personalidade que possui atitudes sociais e

consequentemente políticas que arrastam milhares de pessoas à participação e compreensão

de diversos questionamentos mundiais. Formularemos algumas hipóteses críticas que possam

se somar a estudos que venham sendo realizados sobre a obra do cantor e o trataremos como

um indivíduo de grande ação em nossa sociedade contemporânea, através de suas várias

formas de protesto inseridas dentro de um cotidiano local-mundial.

Para descrever a trajetória musical do cantor, incluiremos uma breve exposição sobre

como alguns cantores aos poucos começaram a transformar seus shows em atos “políticos”

apoiados na obra de Roberto Muggiati Rock, o grito e o mito: a música pop como forma de

comunicação e contracultura. (1973). Começaremos, então, por mencionar alguns artistas que

tiveram a crítica social e a discussão política atreladas às suas obras localizando o contexto

musical que formou Manu Chao e toda uma geração de músicos franceses. Percorreremos o

início de sua carreira junto ao biógrafo Alessandro Robecchi e seu livro Manu Chao – Música

y libertad (2002), apoiados também em declarações proferidas pelo cantor e informações

encontradas em seu site oficial manuchao.net e na obra de Patricia Font e David Cabré Manu

Chao...de primera voz (2004). Com isso, chegaremos ao primeiro e mais famoso grupo a que

o cantor já fez parte, a “Mano Negra”, culminando em uma carreira solo – tendo como

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primeiro álbum: Clandestino: esperando la ultima ola..4– conciliada a apresentações com o

grupo “Radio Bemba Sound System”.

Também procuraremos refletir sobre quais seriam suas ferramentas e suas formas

particulares de tomadas de posição, na construção de um discurso contra-hegemônico. Para

tanto, retomaremos e ampliaremos a noção de ‘sujeito migrante’ (CORNEJO POLAR, 2000),

junto à noção de cronista de seu tempo observada por nós durante essa pesquisa.

1.1 Do rock segue a trajetória – do No Future ao Oui Futur

Os jovens da década de 50 nos Estados Unidos ficaram conhecidos como “a geração

silenciosa”, mas nos anos 60 a explosão de Bob Dylan e dos Beatles através do rock entoou

um grito de revolta, agregando o envolvimento social à um estilo musical. Canções como

Blowin’ in the Wind estouraram nas paradas de sucesso e foram transformadas em hinos

Quantos caminhos deve um homem percorrer até que seja chamado homem?/ Sim, e quantos mares deve a pomba branca singrar antes de repousar na areia?/ Sim, e

quantas vezes devem as balas de canhão explodir até que sejam banidas para sempre?/A resposta, meu amigo, está sendo levada pelo vento,/ A resposta, está sendo levada pelo vento (MUGGIATI, 1973, p. 18).

E mesmo que tenha recebido críticas e mudado um pouco seu estilo anos depois, Bob

Dylan foi porta-voz de sucessos que começaram a agitar a sociedade americana e a proferir

discursos como “Minhas canções protestam contra a guerra, contra as bombas e os

preconceitos raciais, contra o conformismo” (MUGGIATI, 1973, p. 18) e “Engajado, eu? Não

faço parte de nenhum movimento. Tenho apenas idéias na cabeça e as boto pra fora. Não

defendo a causa de ninguém. Não se faz uma revolução com canções” (MUGGIATI, 1973, p.

20).

Outro exemplo a meados da década de 60 é Bob Marley, que através de sua inspiração

poética, adaptada à maneira cadenciada e lenta do ritmo reggae, profere seu discurso social e

espiritual e arrasta multidões para escutá-lo falar sobre paz, raça, amor, guerra,

espiritualidade, política, etc.

Mas com o tempo essa geração otimista dos anos 60 foi sendo engolida e transformada

pela mídia: “Seus protagonistas, outrora tão próximos, quase idênticos ao seu público, eram

4 Optaremos a partir de agora por suprimir o subtítulo do álbum o qual trataremos apenas como Clandestino.

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agora estrelas inatingíveis, como vindas do ‘além’” (BOLLON, 1993, p. 139). Nos finais dos

anos 70, Patrice Bollon descreve o surgimento de um novo movimento musical que

expressava o pessimismo que sucedia ao otimismo dos anos 60 – o movimento punk.

Naquele mês de julho de 1977, quando Londres se preparava para festejar o jubileu de prata da rainha e os vinte e cinco anos de reinado de Elizabeth II, era como se a

cidade inteira estivesse ameaçada por uma enchente de uma espécie de ralé vinda não se sabe de onde, de nenhum lugar conhecido ou claramente localizável, ou pela invasão de uma lepra que estaria, insidiosamente, corroendo tudo. Um aparecimento inédito. Certamente aqueles zumbis eram apenas marginais, em pequeno número – mas sua presença bastava para estragar o que era, o que devia ser, para a Inglaterra, a ocasião de festejar sua grandeza passada ou o que restava dela [...] (BOLLON, 1993,

p. 131).

O termo punk, que em inglês, significa lixo, coisa podre ou sem valor, surge no início

de 1977 em meio à desestabilidade econômica inglesa que aumentava dia a dia as taxas de

desemprego do país. À primeira vista, sua estética é a da provocação, tanto visual (através de

sua indumentária, nas capas de seus discos e na paginação de seus fanzines), quanto musical –

“expressada por gritos e barulhos inaudíveis” (BOLLON,1993). Seu rock de garagem,

considerado como espelho da sociedade do momento, se destacava pelo seu

antiprofissionalismo assumido, seus poucos recursos instrumentais e sua estrutura simples.

Na trajetória desta considerada antimúsica, aos poucos se formam alguns grupos que

se destacaram por assumir um caráter mais social e político como o The Clash “[...] – quatro

‘rebeldes’ em macacões militares de sobrevivência – o que dava a impressão de que a

Inglaterra já mergulhara na guerra civil [...]” (BOLLON, 1993, p. 135) e os Sex Pistols, que

superando os limites de todo exagero punk dos grupos da época, gravam canções como God

Save the Queen, canção que foi proibida nas rádios inglesas por insultar a rainha e cantar a

revolta contra a miséria e a hipocrisia da sociedade.

Essas e outras manifestações culturais – que iremos perceber adiante – formam o

discurso do artista objeto de nossas pesquisas. O indivíduo em questão é Jose Manuel Arturo

Tomas, conhecido popularmente como Manu Chao, um cantor/poeta nascido na capital

francesa em 1961, filho de mãe basca e pai galego. Sua, assim definimos, trajetória migrante,

se iniciou quando seu avô materno imigrou para França, no intuito de escapar à di tadura

espanhola. Em 1955, seu pai, o jornalista e músico Ramon Chao já se encontra parisiense

graças a uma bolsa de estudos. A música e a política sempre foram presença constante em seu

ambiente familiar, incluindo sua mãe Felisa, uma cientista do CNRS (Centre National de

Recherche Scientifique) – órgão público francês destinado à pesquisa científica e tecnológica–

descrita como possuidora de destacada tendência artística.

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Assim Manuel e seu irmão Antonio, dois anos mais novo, cresceram na região de

Sèvres, periferia oeste de Paris, em contato com a rotina de imigrantes e trabalhadores,

recebendo suas primeiras lições políticas e musicais tanto em seu ambiente familiar quanto

das vidas presentes na rua. A presença permanente de escritores, como o cubano Alejo

Carpentier e de jornalistas e exilados que traziam novos sons e reflexões também

contribuíram para reforçar a formação política e cultural da família Chao.

Pierre Bourdieu cunha o conceito de capital simbólico e, posteriormente, de capital

linguístico e capital cultural. Nesse sentido, podemos pensar a “discoteca” de Manu Chao

como esse capital musical que ele acumula ao longo dos anos e que, por extensão, também

deveria se refletir sobre sua “biblioteca”, haja vista a família intelectual do cantor.

Em meados dos anos 70, a presença de Chuck Berry (considerado o pai do rock em

todo o mundo) marcará a carreira de Manu Chao, assim como toda a juventude francesa da

época. O primeiro grupo que forma quando adolescente se chama Joint de Culasse (1982),

neste se encontram interpretações de canções famosas de Jerry Lee Lewis, Elvis Presley,

Chuck Berry, Fats Domino e outros. Mas, já a finais dos anos 70, um outro ritmo estala na

música mundial e tendo como seu maior representante o grupo The Clash, se torna presença

marcante em todas as bandas e obras posteriores de Manu Chao. O punk com seu ritmo

acelerado e sua agitação social apoiada na lógica cheia de atitude do “Faça você mesmo” (Do

it yourself!), aliado à mistura musical de outros ritmos como o rock, o rockabilly, o ska e o

reggae se tornam assim, marcas constantes e muito perceptíveis em toda a carreira posterior

do músico.

Das garagens de Sèvres surge a primeira participação considerada como já séria pelo

cantor no cenário independente do rock francês, são os Kingsnakes, que cantam clássicos do

rock em inglês. Logo após aparecem os Hot Pants, grupo formado nos anos 80 por Manu

Chao e seu primo Santiago Casariego, que inicia sua trajetória musical pública tocando em

ruas, bares, nas estações de metrô e dando seus primeiros passos pelo cenário europeu. O

grupo tem como base o punk e a atitude política, que no caso francês se distancia do ideal no

future britânico e assume uma concepção mais otimista ou um oui futur em relação à luta, seja

contra o racismo, a xenofobia ou as injustiças cometidas contra os trabalhadores.

Para dar uma ideia da extensão musical francesa da época, citamos um parágrafo da

biografia Manu Chao – Música y Libertad, publicada pelo escritor e jornalista italiano

Alessandro Robecchi.

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Paris, ali chegam músicos da África, do Magrebe, Argélia, Marrocos, que em sua pátria não podem trabalhar em paz. É a Meca das outras músicas, da hoje odiosamente chamada ‘música étnica’, world music, e à qual na França nomeiam ‘son mondiale’. Com a música lhes chega tudo o que existe ao seu redor: nas lojas de discos podem encontrar sons de outros países e outras culturas. E se oferecem

shows entre cujo público poderíamos muito bem passar por uma minoria branca (ROBECCHI, 2002, p. 34, tradução nossa).

5

Pelo Hot Pants e também por outros grupos da cena punk francesa como Los Carayos–

este último formado, também nos anos 80, por cinco músicos procedentes de outros grupos da

cena underground francesa, que trazem como bagagem uma mescla de nacionalidades, falas e

cantos em espanhol, francês, inglês, galego e alsaciano – vai seguindo a trajetória do cantor.

Nesse caminho Manu Chao efetiva sua necessidade de trabalhar com vários estilos musicais e

extrapolar os limites da cena fechada do rock francês que privilegiava o estilo britânico.

Questões desse tipo podem, por parte, observar-se a outros níveis, como quando na

gravação do LP chamado Persistent et Signent (Insistem e assinam), o cantor assina algumas

de suas composições com o pseudônimo de Oscar Tramor, inclusive uma das canções deste

álbum também se chama “Oscar Tramor”. Segundo Rocecchi (2002, p. 52), procede tal

explicação sobre o fato

“Oscar Tramor” é uma espécie de balada mariachi, aflamencada, com guitarra

acústica e bandoniôn. O nome da canção, por outra parte uma grande canção, é uma ideia de Manu Chao em alusão à qualidade vocal de Irma Serrano, rainha da música mexicana, chamada A Tigresa: Manu, traduzindo com habilidade o que ela canta, “Busca otro amor”, ou melhor, tergiversando-a, diz “Oscar Tramor” (que é o nome de um toureiro insignificante, bêbado e traído, não precisa nem falar). Gosta tanto da brincadeira que começa a assinar com este nome, que será seu pseudônimo durante

os primeiros anos da Mano Negra [...].6

e assim completa outra de suas biografias, escrita por Patricia Font e Daniel Cabré

[...] e ainda hoje existem pessoas do mundo da música que acreditam que Oscar Tramor é seu nome verdadeiro. Tente uma pesquisa no Google sob a seguinte entrada: Oscar Tramor Manu Chao... É curioso, porque encontrarão algumas webs

5 No original: “París. Allí llegan músicos de África, del Magreb, de Algeria, de Marruecos que en su patria no

pueden trabajar en paz. Es la meca de las otras músicas, de la hoy odiosamente llamada ‘música étnica’, world music, y a la que en Francia llaman ‘son mondiale’. Con la música les llega todo lo que hay alrededor: en las

tiendas de discos pueden encontrarse sonidos de otros países y otras culturas. Y se dan conciertos entre cuyo público podríamos muy bien pasar por una ‘minoría blanca’”. Todas as traduções do espanhol para o português são de nossa autoria.

6 No original: “‘Oscar Tramor’ es una espécie de balada mariachi, aflamencada, con guitarra acústica y

bandoneón. El nombre de la canción, por otra parte una gran canción, es una ocurrencia de Manu en alusión a la prestancia vocal de Irma Serrano, reina de la canción mexicana, llamada la Tigresa: Manu, traduciendo

buenamente lo que ella canta, “Busca otro amor”, o mejor, tergiversandolo, dice “Oscar Tramor” (que es el nombre de un torero de mala muerte, borracho y corneado, ni que decir tiene). Tanto le gusta la broma que empieza a firmar con este nombre, que será su seudónimo durante los primeros años de Mano Negra [...]”.

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que escrevem sem nenhum tipo de dúvida que Manu Chao é o nome que ele adotou em sua carreira solo (FONT; CABRÉ, 2004, p. 24).

7

O cantor então experimenta e participa de diversos grupos “em busca de sua própria

cria” (ROBECCHI, 2002, p. 35) até embarcar, a finais dos anos 80, em um projeto paralelo

que resulta em uma das maiores bandas de punk rock conhecidas mundialmente, a Mano

Negra, partindo agora da vontade de tocar em um ambiente familiar (aqui também estavam

seu irmão Antonio e seu primo Santiago) e de expressar por meio da música todas as marcas

pluriculturais que haviam lhe rodeado. Por outro lado, já a escolha de certos nomes como

“Oscar Tramor” e “Mano Negra” falam de uma vontade de provocação entre o anti -herói e o

herói. Segundo Font e Cabré (2004, p. 25), o nome Mano Negra:

É originário de um grupo anarquista da ex Yugoslavia que cometeu o atentado contra o herdeiro do trono austríaco, Francisco Fernando, que desencadeou a I Guerra Mundial. Também encontramos sua origem em outro grupo anarquista que

atuou na Andaluzia a finais do século XIX .8

Além de muitos Cd´s vendidos, e aqui destacamos o primeiro, nomeado de Patchanka

(cujo nome, segundo suas biografias significa “uma mescla de sons” e nos remete à palavra

quéchua Pachacuchi – elemento transformador e ao espanhol Pachanga – festa) e do

reconhecimento mundial, Mano Negra empreende projetos de viagens, na maior parte

autogestionadas, por regiões pequenas de Paris, chamadas de Caravane des Quartiers, com o

intuito de fazer com que sua música chegue ao maior número de pessoas possível, aprendendo

também outros sons e mesclando tudo com sua própria música.

No início de março de 1992, a banda se une à companhia teatral francesa Royal de

Luxe e empreende um projeto em um navio de carga (nomeado Melquíades – Ville de Nantes

em homenagem ao personagem “gitano” de Cem Anos de Solidão, do escritor colombiano

Gabriel García Marquez) que consiste em zarpar em direção à América do Sul e se apresentar

nas principais cidades e portos pelo caminho – é a Cargo Tour 92.

Em 1993, movido por outro sonho considerado como um disparate, Manu Chao decide

empreender outra viagem, agora de trem (El expreso del hielo – nome também em

7 No original: “[...] y aún hoy en día existe gente del mundo de la música que cree que Oscar Tramor es su

nombre real. Intentad una búsqueda en Google bajo la siguiente entrada: Oscar Tramor Manu Chao... Es curioso, porque encontraréis unas cuantas webs que escriben sin ningún tipo de duda que Manu Chao es el nombre que ha adoptado en solitário”.

8 No original: “¿De dónde proviene el nombre Mano Negra? Es originario de un grupo anarquista de la ex

Yugoslavia que perpetró el atentado contra el heredero del trono austriaco, Francisco Fernando, que desencadenó la I Guerra Mundial. Asimismo, encontramos su origen en otro grupo anarquista que actuó en Andalucia a finales del siglo XIX”.

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homenagem a García Marquez), por trilhos colombianos, percorrendo a rota de ida e volta de

Bogotá a Santa Marta: “De novo se obedece ao sonho de Manu: tocar e levar a Feira ali onde

ninguém vai, encontrar um público ‘virgem’ que nunca viu um show de rock nem nada

parecido” (ROBECCHI, 2002, p. 183).9 Desta empreitada, participa também seu pai, o

jornalista Ramón Chao, assumindo o compromisso de narrar toda a história, que se transforma

posteriormente em um relato de viagem chamado Un train de glace et de feu (Um trem de

gelo e de fogo).

Segundo relatos de Alessandro Robecchi, estas viagens serviram para minar pouco a

pouco a união da Mano Negra; e seu último disco Casa Babylon é lançado em maio de 1994

quando a banda já está quase totalmente dissolvida pelo caminho. Já no fim de 1993, antes da

viagem de trem, Manu Chao dava mostras de tal dissolução quando realiza um show em

Bilbao e o grupo que o acompanha (formado por somente alguns componentes da Mano

Negra) é anunciado pela primeira vez como Radio Bemba. Segundo Robecchi, alguns nomes

da crítica musical e talvez até o próprio Manu Chao, já consideravam o disco Casa Babylon

como o primeiro disco solo do cantor.

Durante esse período de transição entre bandas, o cantor teve a oportunidade de voltar

aos lugares por onde passou em turnê e conviver mais tempo com as comunidades locais. A

cultura desses países e de todos os grupos por que passou, marcaram profundamente toda sua

produção musical posterior e foram delineando seu projeto que aliava música e compromisso

social. Robecchi (2002, p. 221) explica a respeito:

A partir de então, para Manu vai ficando cada vez mais difícil separar os compromissos musicais dos políticos. O escutamos tocar em lugares e situações nos quais aproveitam, entre atuação e atuação, para pronunciar discursos, fazer chamadas, colher assinaturas. Organizam reuniões, estudam as ramificações da máfia OMC, apóiam campanhas a favor do meio ambiente. A antiga mania de ser

mexicano no México e colombiano na Colômbia, de fazer parte do lugar em que se encontre é agora uma aposta total.

10

Um exemplo dessa “mania” chamada pelo biógrafo, está em uma entrevista dada por

Manu Chao a uma TV alemã. Na ocasião lhe perguntam: “Você canta em francês, espanhol,

9 No original: “De nuevo se obedece al sueño de Manu: tocar y llevar la feria allí donde no va nadie, hallar un

público ‘virgen’ que no haya visto nunca un concierto de rock ni nada parecido”.

10 No original: “A partir de entonces, a Manu irá resultándole cada vez más difícil separar los compromisos

musicales de los políticos. Lo oímos tocar en lugares y situaciones en los que aprovechan entre actuación y actuación para pronunciar discursos, hacer llamamientos, recoger firmas. Organizan reuniones, estudian las

ramificaciones de la mafia OMC, secundan las campañas a favor del medio ambiente. La antigua manía de ser mejicano en México y colombiano en Colombia, de formar parte del lugar en el que se halle, es ahora una apuesta total”.

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italiano, português, haveria a possibilidade de fazer uma canção em alemão?” E a resposta do

cantor é de que ele teria que viver em Berlim por um tempo para aprender a língua e a cultura

alemã: “— E em alemão? Quando você pensa cantar em alemão? — Bem, quando eu

aprender alemão. Mas isso não é nada fácil. […] para isso tenho que morar aquí e conhecer a

cultura”.11

E, finalmente, a meados de abril de 1998, quatro anos depois de Casa Babylon, lança

oficialmente seu primeiro e mais conhecido disco solo Clandestino, tendo como instrumentos

principais, segundo Robecchi, um bloco de notas e um estúdio portátil, pondo em prática a

forma ideológica punk do “Faça você mesmo” (Do it yourself!) e exercendo papel de artesão

da música ao captar e mesclar todos os sons e manifestações que lhe chamavam atenção.

Clandestino é o primeiro de um contrato de três projetos para a grande casa

discográfica Virgin Records. Desde que assinou seu primeiro contrato com a Virgin, quando

ainda pertencente à Mano Negra (em 1989 com o álbum Puta s Fever), o cantor recebe

críticas, principalmente do meio alternativo e é questionado pelo abandono dos selos

independentes. Retomaremos tal discussão um pouco mais tarde quando formos analisar sua

relação com a cultura de massa no segundo capítulo.

Seus próximos e principais discos lançados são Próxima Estación: Esperanza (Virgin,

2001), Manu Chao y Radio Bemba Sound System (Virgin, 2002) – e assim, a Radio Bemba

vai consolidando-se como banda de emergência, ou seja, com o tempo vão chegando músicos

e/ou amigos – pois Manu Chao deixa claro que é mais importante tocar entre amigos do que

entre especialistas desconhecidos–que acompanham o cantor até os dias atuais. Em 2004

publica um livro de poemas em língua francesa com o título Siberie m’etait contéee (Radio

Bemba, 2004), que acabou musicando e transformando também em CD. Em 2007, já fora da

esfera da Virgin, lança La Radiolina (Because Music, 2007) e em 2009, o CD duplo e DVD

Baionarena (Because Music, 2009).12

11

No original: “—¿Y en alemán? ¿Cuándo piensas cantar en alemán? — Bueno, cuando lo aprenda. Pero eso no es nada fácil. (…) para eso tengo que vivir aquí y conocer la cultura”. Disponível em:

<http://www.youtube.com/watch?v=DcqyIsA97Hk&feature=PlayList&p=7BA1DA191A3C44E9&index=28>. Acesso em: 11 abr. 2009.

12 Dados retirados do site manuchao.net, acessado constantemente no decorrer da pesquisa (2009 – 2011).

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1.2 As contradições do intelectual clandestino

Enxergamos Manu Chao como um dos intelectuais mais ativos da sociedade atual e

para uma maior reflexão sobre esse papel, a partir de agora começaremos a refletir sobre esse

que nomeareamos ora de sujeito, ora de indivíduo, até chegarmos a um possível conceito que

possa se somar às reflexões já iniciadas sobre certos tipos de artistas que tiveram seu

posicionamento intelectual e político atrelado à suas obras.

Para iniciar, observamos que o debate entre críticos de diversas áreas, sobre o advento

de um indivíduo com certo poder de persuasão e conhecimento, um tipo de intelectual, vem

sendo desenvolvido há séculos e é cada vez mais citado nesses dois últimos, devido a uma

participação mais marcante na sociedade. Em sua trajetória pública, diversas instituições

utilizaram e utilizam os conhecimentos deste indivíduo em interesse próprio, podendo citar

aqui a igreja, o Estado e as empresas privadas.

Para tratar de exemplificar algumas discussões sobre o tema durante o século XX,

recorremos ao livro de Eduard Said Representações do intelectual – As Conferências de Reith

de 1993, cuja primeira edição é de 1994. Nele Said cita o filósofo político italiano Antonio

Gramsci, que diz que “todos os homens são intelectuais, embora se possa dizer: mas nem

todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais” (SAID, 2005, p. 19).

Segundo Said, Gramsci os divide em dois grupos, os “intelectuais tradicionais, como

professores, clérigos e administradores, que, geração após geração, continuam a fazer a

mesma coisa” e, segundo, em “intelectuais orgânicos, que são os que Gramsci considerava

diretamente ligados a classes ou empresas, que os usavam para organizar interesses,

conquistar mais poder, obter mais controle” (SAID, 2005, p. 20). Said também cita, em outra

posição, o também escritor e filósofo Julien Benda, que, segundo ele, definiu os intelectuais

como “[...] um grupo minúsculo de reis-filósofos superdotados e com grande sentido moral,

que constituem a consciência da humanidade” (SAID, 2005, p. 20).

Se posicionando mais de acordo com o pensamento de Gramsci e preocupado com a

questão de o intelectual se tornar “apenas mais um profissional”, Said atualiza suas definições

e salienta o fato de, para ele

[...] o intelectual ser um indivíduo com um papel público na sociedade, que não pode ser reduzido simplesmente a um profissional sem rosto, um membro competente de uma classe, que só quer cuidar de suas coisas e de seus interesses. A questão central [...] é o fato de o intelectual ser um indivíduo dotado de uma vocação para

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representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou opinião para (e também por) um público (SAID, 2005, p. 25).

Dentro desta definição incluímos Manu Chao, que usa de sua posição privilegiada e

aproveita o tom não restritivo de sua voz – afinal, as fronteiras se abrem diante de seu

passaporte francês, de sua herança familiar e de sua situação financeira – e beneficia-se de

uma autonomia que não o prende, a princípio, a filiações políticas, religiosas ou econômicas

para dar rosto e voz a assuntos mundiais de grande relevância, mas que são abafados e às

vezes até apagados da história.

Não retiramos aqui o mérito artístico de outros cantores, nem pretendemos com isso

superestimar a obra de Manu Chao, mas acreditamos que não é a mesma coisa aparecer num

comercial de cerveja (como mais um profissional sem rosto) e viajar pelo deserto do Saara

para gravar uma chamada em apoio ao movimento de libertação do território do Saara

Oriental que é ocupado pelo Marrocos há 35 anos, ou lançar e divulgar diversos outros

movimentos de apoio a imigrantes, a mineiros ou a indígenas que estão lutando por seus

direitos e perdendo suas vidas em diversas partes do mundo.

A esse artista, podemos aplicar, sem estarmos correndo qualquer risco de engano, a

definição de “intelectual engajado”, pois se nos basearmos em seu comportamento, este lado

pessoal e profissional é latente e facilmente detectado. Renato Ortiz em seu livro

Mundialização e Cultura escreve que “Arte e política são termos complementares. O artista é

um intelectual ‘engajado’, cujo compromisso com o destino nacional [que no caso do cantor

poderíamos falar em destino mundial] encontra-se indelevelmente expresso no seu texto, sua

pintura, sua música, sua poesia [...]” (ORTIZ, 1994, p. 188). Mas, o que seria para nós esse

engajamento?

O conceito que nos iluminou através de nossa pesquisa, encontra-se em Que é a

literatura? de Jean Paul Sartre, cuja primeira edição é de 1948. Em seu segundo capítulo

chamado “Por que escrever?” Sartre define como engajamento o agir através da palavra e

propõe como essencial sua tomada de posição contra todas as injustiças. “O escritor

‘engajado’ sabe que a palavra é ação: sabe que desvendar é mudar e que não se pode

desvendar senão tencionando mudar. Ele abandonou o sonho impossível de fazer uma pintura

imparcial da Sociedade e da condição humana” (SARTRE, 1993, p. 20-21). Além disso, o

escritor considera essa atitude extremamente necessária ao comportamento artístico e

intelectual

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Se os temas forem considerados como problemas sempre em aberto, como solicitações, expectativas, compreenderemos que a arte não perde nada com o engajamento: ao contrário (SARTRE, 1993, p. 23).

E de que maneira o escritor, que se considera essencial para o universo, poderia querer sê-lo para as injustiças que esse universo encerra? No entanto, é necessário

que o seja; mas se ele aceita ser criador de injustiças, é num movimento que as supera rumo à sua abolição. Quanto a mim, que leio, se crio e mantenho em existência um mundo injusto, não posso fazê-lo sem que me torne responsável por ele [...] (SARTRE, 1993, p. 50).

E se esse mundo me é dado com suas injustiças, não é para que eu as contemple com frieza, mas para que as anime com minha indignação, para que as desvende e as crie

com sua natureza de injustiças, isto é, de abusos-que-devem-ser-suprimidos (SARTRE, 1993, p. 51).

A partir de tais exemplos, afirmamos que este engajamento requer respeito e atenção,

principalmente em se tratando do desempenho de papéis públicos que certas profissões

carregam, como o papel de difusor e formador de opinião, aqui incluídos o de escritor e o de

compositor.

Mas também interessa-nos saber: No que ou como este ato de engajar-se vem se

transformando em nossa sociedade? O mesmo Sartre observa que, no século XVII falava-se

das massas sem consultá-las e sem ter sequer a noção de que um texto poderia ajudá-las a

tomar consciência de si mesmas. Se falava sobre, mas nunca para as massas; e que, nessa

situação, o escritor poderia aceitar com tranquilidade a ideologia vigente. Somente quando o

escritor se encontra ‘entre’ ele perceberá sua função. Em palavras de Jean Paul Sartre: “[...]

uma classe só adquire sua consciência de classe quando se vê ao mesmo tempo de dentro e de

fora, ou seja, quando se beneficia de auxílios externos: é para isso que servem os intelectuais,

eternamente à margem de todas as classes” (SARTRE, 1993, p. 79).

É no século XVIII que, pela primeira vez, os escritores intervêm na vida pública e

“[...] no século XIX, a literatura acaba de se desligar da ideologia religiosa e se recusa a servir

à ideologia burguesa. Assim, coloca-se como independente, por princípio, de qualquer tipo de

ideologia [...] pretende não beneficiar nenhum tema” (SARTRE, 1993, p. 94). Mas é claro que

a recusa vale um preço que até hoje alguns aceitam pagar, outro rejeitam ou até mesmo

fingem rejeitar para continuar a usufruir de benefícios.

Dentro desse exercício de engajamento, o autor menciona que não acredita na

expressão “o meio produz o escritor” por considerar que muitos escritores e também leitores

podem dissimular seu engajamento através de um simples processo de velamento: “Se todos

os homens embarcam, isso não quer dizer que tenham plena consciência do fato; a maioria

passa o tempo dissimulando o seu engajamento” (SARTRE, 1993, p. 61). Se observarmos

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com atenção esta questão levantada por Sartre, conseguiremos elencar vários exemplos dentro

de nossa sociedade tanto de autores quanto de leitores que dissimulam contando, por exemplo,

somente certa parte da história e sendo aceitos por um leitor omisso. Aqui podemos destacar

a obra do rapper MV Bill que ao colaborar na produção de um documentário e um livro sobre

o tráfico em diversas comunidades pobres do Brasil Falcão – meninos do tráfico, foi criticado

por retratar o caos pura e simplesmente, sem pensar em gerar nenhum benefício para tais

comunidades, mas sim em aumentar ainda mais o ibope da Rede Globo. Hoje, o mesmo MV

Bill é ator da novelinha teen Malhação e quando questionado por tal aceite, justifica que pode

servir como um exemplo do tipo: – Olha onde cheguei!, a outros moradores de comunidades.

Sartre (1993, p. 62, grifo nosso) afirmava sobre o escritor como intelectual que:

A tudo isso podem recorrer os escritores, tal como as outras pessoas. Alguns há, e são a maioria, que fornecem todo um arsenal de ardis ao leitor que quer dormir tranqüilo. Eu diria que um escritor é engajado quando trata de tomar a mais lúcida e integral consciência de ter embarcado, isto é, quando faz o engajamento passar, para si e para os outros, da espontaneidade imediata ao plano refletido. O escritor é

mediador por excelência, e o seu engajamento é a mediação. Mas, se é verdade que se deve pedir contas à sua obra a partir da sua condição, é preciso lembrar ainda que a sua condição não é apenas a de um homem em geral, mas também, precisamente, a de um escritor”.

Voltando às perguntas postuladas nas considerações iniciais deste capítulo, nos

interessa saber qual é o papel de um cantor intelectual na formação de opinião de seu público

e como ele exerce este papel sob a forma de uma interlocução entre o seu público e o mundo.

De início, consideramos que Manu Chao, o intelectual em questão, expõe com clareza

suas convicções e tem consciência do papel público e engajado que desempenha.

Personalidade que busca crítica social e divulgação de cultura, participa frequente e

ativamente de movimentos de luta pela terra, de ações políticas contra a corrupção, em defesa

dos imigrantes ou pela preservação ambiental. Com isso dá atenção à imagem, às

características pessoais, à intervenção efetiva que, segundo Said, constituem a própria força

vital de todo verdadeiro intelectual.

Ao cantar, ato de ação comunicativa, Manu Chao reivindica e mescla diferentes

tradições culturais de uma infinidade de países por onde passou e/ou viveu e utiliza meios de

comunicação de massa como a internet para propagar seu projeto que se situa à margem do

pensamento hegemônico. Ele é o intelectual que se pronuncia no momento em que os fatos

ocorrem, não deixando somente denúncias para depois. Esta é sua marca como intelectual,

marca de uma liberdade combativa com relação à uma ideologia dominante.

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28

Da obra do filósofo socialista italiano Antonio Gramsci – Concepção dialética da

história, cuja primeira edição é de 1955, formamos nossas reflexões em torno do conceito de

“hegemonia”. Nesta obra, Gramsci vai refletir sobre o comportamento filosófico e intelectual

do homem e como encontramos nas notas do próprio livro, seu pensamento vai influenciar

todos os que lutam por uma renovação democrática e humanista da cultura e da sociedade.

Gramsci define que um dos preceitos do marxismo ou “filosofia da práxis” seria a

aproximação dos intelectuais em relação às massas tornando possível um progresso intelectual

de massa e não apenas de pequenos grupos intelectuais,

Se a relação entre intelectuais e povo-nação, entre dirigentes e dirigidos, entre governantes e governados, se estabelece graças a uma adesão orgânica, na qual o sentimento-paixão torna-se compreensão e, desta forma, saber (não de uma maneira mecânica, mas vivencialmente), só então a relação é de representação [...] (GRAMSCI, 1978, p. 139).

Segundo ele, o “homem ativo de massa” passa por um processo de contradição entre

uma ação que gera a transformação prática da sociedade e uma herança acolhida sem crítica; e

reflete que tais contradições podem produzir no homem um estado de passividade moral e

política. Quanto a isso destaca sempre questões relacionadas à igreja católica – que nós aqui

atualizamos, como o uso da camisinha ou o aborto – questões que geram a passividade da

massa que ainda não sabe lidar com seu legado de contradições. Tal legado nasce atrelado à

noção de senso-comum e Gramsci explica que seus elementos principais são fornecidos pela

religião (e hoje em dia poderíamos dizer que também pelos meios de comunicação de massa),

possuindo uma relação muito mais íntima com estas do que com os sistemas filosóficos dos

intelectuais.

Para o filósofo, a consciência de fazer parte de uma determinada força hegemônica

isto é, a consciência política, só é adquirida após a sublimação de tais contradições, gerando

uma concepção do mundo coerente. Segundo ele “Toda relação de hegemonia é

necessariamente uma relação pedagógica” (GRAMSCI, 1978, p. 37) e “A hegemonia

realizada significa crítica real de uma filosofia, sua real dialética” (GRAMSCI, 1978, p. 94).

Como relação pedagógica, se compreende um processo ativo, de vinculações recíprocas que

estão presentes em todas as relações sociais em que se pode considerar, por exemplo, o

filósofo ou o intelectual, como fazendo parte de um ambiente professor-discípulo ou vice-

versa, possibilitando, assim, uma relação democrática entre ambos.

É por isso que se deve chamar a atenção para o fato de que o desenvolvimento político do conceito de hegemonia representa – além do progresso político-prático – um grande progresso filosófico, já que implica e supõe necessariamente uma

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unidade intelectual e uma ética adequadas a uma concepção do real que superou o senso comum e tornou-se crítica, mesmo que dentro de limites ainda restritos (GRAMSCI, 1978, p. 21).

Assumindo novamente tais conceitos que podem gerar um comportamento acrítico do

homem de massa, nos interrogamos. 1) Será que os ouvintes de uma mensagem intelectual

sempre compreendem do que se está falando? 2) Bob Marley falava de guerras, de

espiritualidade, de cultura, etc., seus ouvintes estavam ou estão preparados para entender sua

mensagem? 3) Ou será que captam e se fecham no que está mais explícito? 4) Possuem uma

interpretação crítica ou acrítica?

Tais questionamentos nos foram provocados através da observação atenta do

comportamento de fãs (através de discussões na internet ou em suas manifestações antes e

durante um show), que geralmente pensamos que são os que escutam com mais constância e

atenção as obras dos seus ídolos. Mencionamos aqui o cantor Bob Marley, e aqui poderíamos

trazer qualquer outro cantor de reggae que seguisse a mesma linha, por haver nos despertado

a mesma sensação com relação ao comportamento de fãs que as canções de Manu Chao

despertam. Em geral observamos que, para o público brasileiro, o que mais marca nas obras

de ambos é a menção – em um contexto totalmente diverso – do uso de drogas, que aparecem

nomeadas como kaya, marijuana, etc, dependendo de quem a denomina.

Percebemos que o público, em geral, expressa uma opinião totalmente reducionista

sobre as obras desses cantores. Bob Marley, em um contexto espiritualista torna recorrente

esta menção e Manu Chao, o faz em poucas canções, mas em algumas que se tornaram sua

marca como Clandestino. Os comentários dos fãs sobre tais artistas ou suas canções são em

geral: “Eu vou ao show pra fumar um bem grande”. Dentro de um contexto geral não

enxergamos tal atitude como uma sensação de liberdade momentânea ou de quebra de regras

sociais, e sim como um comportamento gerado pelo senso comum e pelo pensamento acrítico

que os impede de ir além e descobrir sobre o que mais falam as mensagens divulgadas por tais

cantores.

Não queremos dizer aqui que o ouvinte deve se manter cem por cento atento. Sabemos

e também gostamos do caráter de relaxamento que uma música ou um show nos proporciona,

mas tentamos questionar como uma mensagem intelectual é passada e como é absorvida pelo

público na maioria dos casos. Por exemplo, cada vez que Manu Chao vem ao Brasil, ademais

de motivos sentimentais (ele tem amigos e um filho aqui), acreditamos que mais alguma coisa

o move, uma prova é que não só aqui, mas em vários outros países da América Latina ele

sempre faz shows pagos e gratuitos para que todos tenham a oportunidade de escutá-lo.

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Sempre que perguntado sobre sua posição política, Manu Chao responde que a única

política e a única democracia que existe são a do dinheiro: “nos falam de democracia, mas

estamos em ditaduras, a ditadura do dinheiro. Nos falam de religiões, mas só existe uma

religião, a religião do dinheiro [...] é necessário procurar outras relações não sejam sempre

através destas ditaduras [...].”13

Neste sentido, refletimos junto a Gramsci, que define o homem político como “o

homem ativo que modifica o ambiente, entendido por ambiente o conjunto das relações de

que o individuo faz parte” (GRAMSCI, 1978, p. 40). Acreditando nessa forma política do

homem, afirmamos que para a figura pública de Manu Chao, cabe a definição de homem

político, que transforma seus shows em atos políticos, e que apesar de habitualmente vestir-se

com a cor vermelha, o que pode sugerir algum direcionamento, não se coloca ao lado de

nenhum partido específico e define que “[…] el socialismo de cierto modo es el saber

compartir.” (o socialismo, de certo modo, é saber compartilhar).14

Acreditamos que o objetivo de constantes ações políticas como as exercidas por ele

visam tirar a multidão da passividade, mas será que isso surte algum efeito real no seu público

e será que essas mensagens são passadas com o cuidado de pensar para quem e em que

situações estão sendo divulgadas? Encontraríamos então uma arte completamente politizada,

mas incomunicável com o grande público?

Não sabemos, por exemplo, se quando Manu Chao canta – em um show gratuito

oferecido em praça pública na Virada Cultural Paulista de 2010 como foi o presenciado por

nós – canções como “Pará de beber”, observa que está em um meio onde a maioria dos fãs

presentes são jovens e adolescentes ou se reflete sobre o uso de sua imagem pública de

formador de opinião. A letra diz assim:

Pará de beber, no paro.

Pará de fumá, também, Amigo, pára? No páro... Só se me levam pa FUNABEM.

Pará de beber,

13

No original: “[...] nos hablan de democracia pero es que estamos en dictaduras, la dictadura del dinero. Nos hablan de religiones, pero sólo hay una religión, la religión del dinero (…) hay que buscar otras relaciones que no sean siempre al través de estas dictaduras (…)”. Falas de Manu Chao em entrevista à Tatuy TV. Disponível

em: http://www.youtube.com/watch?v=-UymiVew_ag&feature=PlayList&p=7BA1DA191A3C44E9&playnext =1&playnext_from=PL&index=27. Acesso em: 11 abr. 2009.

14 Ibid.

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No páro. Pará de cherá, também. Amigo pára? No páro...

Só se me levam pá FUNABEM. O dia que voi morrír, yo quiero em mínha sepultura Trecientos litros de cachaça sin mistura

Pará de bebê, no páro. Comer salgadiño é ruim. Amigo pára?

No páro... Só se me levam pá FUNABEM. Só se me levam pá FUNABEM.

15

Consideramos que, complementar ao relato de Roberto Damatta em seu livro A casa e

a rua, obra de 1984, no momento em que a massa se detém a escutar a verdade passada por

certo indivíduo naquele espaço considerado público, várias mensagens podem cristalizar-se de

maneira equivocada.

[...] nas cidades ocidentais, as praças e adros, que configuram espaços abertos e necessariamente públicos, servem de foco para a relação estrutural entre o indivíduo – o líder, o santo, o messias, o chefe da igreja ou do governo – e o ‘povo’, a ‘massa’,

a coletividade que lhe é oposta e o complementa. Servem também como ponto de encontro entre alguém que interpreta ou inventa uma mensagem e a multidão que a recebe e cristaliza num drama que sugere ser a sociedade algo inventado pelo indivíduo que, nestes momentos, passa sua verdade para a massa (DAMATTA, 1991, p. 48,49).

A nosso ver, a canção de boteco “Pará de beber”, que segundo Manu Chao foi feita

por um amigo brasileiro chamado Nanico, peca por não refletir sobre as reais consequências

do uso do álcool e outras drogas. O cantor defende a legalização das drogas e declara que

tenta, de certa maneira, filtrar o que chega às suas mãos, mas isso seria possível?

A droga não é um problema em si mesma, acredito que o problema é o negócio que

se faz com a droga (FONT, 2004, p. 70).16

15

Esta letra foi escrita por nós com base na escuta da canção já que a mesma, como muitas outras, não foi disponibilizada no site oficial e se encontra no álbum Estación México gravado em março de 2006 durante a apresentação do cantor no Multiforo Alicia. O álbum foi produzido pelo mesmo Foro Alicia e teve edição limitada ao México. O dinheiro arrecadado por sua venda foi destinado à Comisión Sexta Del EZLN, presos

políticos de Atenco e Oaxaca.

16 No original: “La droga no es un problema en si mismo, yo creo que el problema es el negocio que se hace con

la droga.”

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Sou a favor da legalização, com os controles necessários. Me parece improdutivo que os governos deixem o negócio das drogas aos maus. Odeio que ese dinheiro vá para as máfias, que são o pior inimigo da democracia. Faço o possível para que o que eu consumo não tenha passado por mãos sujas.

17

Também perde uma ótima oportunidade de explicar realmente em que consiste a

FUNABEM (Fundação Nacional do Bem Estar do Menor) que nada mais foi que o utra

instituição criada pelo Estado, que serviu para nomear a cadeia para menores carentes e

infratores sob o rótulo de instituição sócio-educativa e que hoje se chama Fundação CASA.

Pensamos que em situações como esta, o próprio artista (que às vezes se apresenta tão

heterodoxo, a ponto de num dia dar uma entrevista sobre alimentação saudável em um

programa de culinária ou para uma Revista chamada Namasté 18 e no outro pregar uma vida

desregrada) pode corroborar e reforçar a opinião distorcida de seu público, de que a liberdade

encontrada em suas canções se resume somente em falar sobre o uso de drogas. Mas surgem

iluminações quando assistimos aos vídeos desta canção postados no site do youtube em que,

frequentemente encontramos entre os comentários, estrangeiros perguntando sobre o que é a

FUNAMBÉ de que Manu Chao se refere na música. Parece que pelo menos as palavras são

lançadas e a curiosidade é despertada.

Por outro lado, seu discurso está sempre carregado ideologicamente e é produzido a

partir de uma interação conflitiva entre várias vozes. Seus shows, que como já mencionamos,

podem ser pagos ou gratuitos, geralmente são marcados por um clima de surpresa. De repente

são anunciados seja pelo site oficial, pela imprensa ou por algum fã – em sites de

relacionamento ou blogs – e então começa o rumor sobre a veracidade das informações.

Encontramos em uma de suas biografias a seguinte observação

Manu não perde a oportunidade de fazer parte de qualquer manifestação ou empreender uma iniciativa por onde quer que passe. Em todo caso, a peregrinação pela América do Sul lhe permite viver a vida de todos esses lugares, entrar em contato com os problemas diários das pessoas, mobilizar-se pelas causas mais

importantes (ROBECCHI, 2002, p. 230).19

17

No original: "Estoy por la legalización, con los controles que sean. Me parece contraproducente que los

Gobiernos dejen el negocio de las drogas a los malos. Odio que ese dinero vaya a las mafias, que son el peor enemigo de la democracia. Intento que lo que consumo no haya pasado por manos sucias". Disponível em: http://www.perspectivaciudadana.com/contenido.php?itemid=16744. Acesso em: 27 jun 2010.

18 Revista Namasté entrevista Manu Chao. Disponível em: <http://www.revistanamaste.com/manu-chao/>.

Acesso em: 10 jan. 2010.

19 No original: “Manu no pierde ocasión de formar parte de cualquier manifestación o emprender una iniciativa

por dondequiera que pasa. En todo caso, la peregrinación por Sudamérica le permite vivir la vida de todos esos lugares, entrar en contacto con los problemas diarios de la gente, movilizarse por las causas más importantes”.

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Pensando junto a este argumento e à pesquisa constante sobre o comportamento do

cantor, podemos concluir que a expressão dessas atitudes de tomada de posição em relação à

sociedade se reafirma através do movimento da viajem. Sartre nos diz que “[...] o viajante é

uma perpétua testemunha, que passa de uma sociedade a outra sem jamais se deter em

nenhuma [...]” (SARTRE, 1993, p. 98). Ademais da condição de viajante, definimos este

indivíduo, junto a Antonio Cornejo Polar como “sujeito migrante”. Em suas reflexões sobre o

sujeito e o discurso migrantes no Peru moderno, o autor define tal comportamento na citação

abaixo,

Assim, sublinho a dinâmica centrífuga do discurso migrante e sua reivindicação da múltipla vigência do aqui e do lá, do agora e do ontem, quase como um ato simbólico que, no próprio instante em que afirma a rotundidade de uma fronteira, está burlando-a e mesmo escarnecendo-a, mediante a fluidez de uma fala que se admite de qualquer dos seus lados e sempre de maneira eventual, transitória,

repetindo a condição viajeira do sujeito que a diz (CORNEJO POLAR, 2000, p. 133).

Segundo Cornejo Polar, a migração pode ser classificada como uma aventura

individual que traz implícita os conteúdos de multiplicidade, instabilidade e deslocamento,

agregando também sua indispensável referência a uma dispersa variedade de espaços

socioculturais que tanto se espalham quanto se articulam. No DVD Babylonia en Guagua

(2003), Manu Chao define seu projeto migrante em frases como “[...] a melhor escola de vida

é poder viajar, por isso viajo. Acredito que é a melhor maneira de aprender coisas novas, de

ver coisas diferentes e, de certo modo, romper a rotina de onde você vive cada dia” .20; e

explicita seu conceito de migração em “[...] e quando se estancam as migrações nunca é algo

bom porque as migrações é como um rio não? E se o rio se estanca a água apodrece”.21

De acordo com Cornejo Polar (2000, p. 304) “[...] o deslocamento migratório duplica

(ou mais) o território do sujeito e lhe oferece a oportunidade de falar a partir de mais de um

lugar ou o condena a essa fala. É um discurso duplo ou multiplamente situado” em que esse

sujeito

dramatiza em e com sua linguagem a condição migrante e fala com espontaneidade

a partir de vários lugares, que são os espaços de suas diferentes experiências, atribuindo cada segmento do discurso a um locus diverso, com tudo o que isso significa, incluindo a transformação da identidade do sujeito; tal locus lhe confere

20

No original: “[...] la mejor escuela de la vida es poder viajar, por eso viajo. Creo que es la mejor manera de

aprender cosas nuevas, de ver cosas diferentes y de cierto modo romper la rutina de donde vives tú cada dia”.

21 No original: “[...] y cuando se estancan las migraciones nunca es algo bueno porque las migraciones es como

um río no? y si el río se estanca el água se pudre” (tradução nossa mantendo as palavras do cantor).

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um sentido de pertença e legitimidade e lhe permite atuar como emissor fragmentado de um discurso disperso (CORNEJO POLAR, 2000, p. 307).

Em seu livro Reflexões sobre o exílio e outros ensaios, Edward Said afirma que

vivemos a era do refugiado, da pessoa deslocada e cita o filósofo e crítico judeu alemão

Theodor Adorno “Adorno diz, com grave ironia, que ‘faz parte da moralidade não se sentir

em casa na própria casa” (SAID, 2003, p. 58). Assim se desenvolve a atuação pública de

Manu Chao, através do movimento constante que no seu caso gera uma aproximação, um

contato e uma identificação à partir das quais se lança ao trabalho de compor e ao mesmo

tempo de testemunhar, “cronicar” cada lugar e cada problemática que conheceu de perto.

Em entrevista concedida a um site alemão quando de sua visita ao país, Manu Chao

assim define seu lugar de enunciação e sua fonte de criatividade

Existe algo que eu necessito para viver, e é o sol, por uma razão muito específica: eu preciso da vida da rua. Não quero viver em casas, as casas existem ssomente para dormir nelas….A rua é uma fonte permanente de inspiração. Ali escrevo minhas canções, me encontro com as pessoas e me deixo inspirar. A casa é o lugar onde você ordena suas ideias e organiza todas as anotações que fez, mas não é lugar para escrever canções.

22

Focando o espaço da rua como o espaço do movimento e o espaço da casa como o

lugar de repouso e calma, recorremos a DaMatta (1991, p. 61) que acrescenta que

[...] na rua, podem-se admitir contradições próprias deste espaço; mas na casa as contradições devem ser banidas, sob pena de causarem um intolerável mal-estar. Afinal de contas, a casa não admite contradições, se essas contradições não podem ser imediatamente postas em ordem, em hierarquia ou gradação. A equivalência entre sentimentos ou moralidades, comuns na rua, é perigosa em casa.

Podemos pensar, assim, que Manu Chao opta por um tipo de exílio às avessas, que

nada tem de solidão ou de banimento e escolhe seu espaço – a rua ou la calle – que segundo

DaMatta “[...] pode ter locais ocupados permanentemente por categorias sociais que ali

‘vivem’ como ‘se estivessem em casa’, como dizemos em linguagem corrente” (DAMATTA,

1991, p. 61). DaMatta também chama a atenção para o fato de que a rua é o espaço da

22

No original: “Hay algo que yo necesito para vivir, y es el sol, por una razón muy específica: yo necesito la vida de la calle. No quiero vivir en casas, las casas están ahí sólo para dormir en ellas…La calle es una fuente permanente de inspiración. Ahí escribo mis canciones, me encuentro con la gente y me dejo inspirar, La casa es el lugar donde ordenas tus ideas y organizas todos los apuntes que has hecho, pero no es sitio para escribir canciones.

” Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=DcqyIsA97Hk&feature=PlayList&p=7BA1DA

191A3C44E9&index=28>. Acesso em: 11 abr. 2009.

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transgressão, onde vivem os malandros, marginais e meliantes. Consideramos que Manu

Chao, nesse sentido, aproveita esse espaço, perturbador para alguns e aconchegante para

outros, onde “ninguém conhece ninguém” para se lançar ao anonimato, sair de sua condição

econômica e européia privilegiada e garimpar seu material de trabalho nas ruas dos mais

diversos países através de seus sons, suas línguas, seus personagens, seus problemas, enfim,

seu cotidiano. É deste material colhido por sua observação e participação que se formará a

maior parte de seu trabalho, incluindo o CD Clandestino (1998).

Neste álbum, Manu Chao reduz as distâncias e derruba todas as fronteiras, canalizando

sua raiva punk nas letras de suas canções e aproximando temáticas mundiais, assim como

elementos musicais tradicionais (como o cubano Bola de Nieve e a mexicana Chavela Vargas)

e modernos (como as batidas eletrônicas). O cantor impressiona pela energia latente que o

move. Um show de Manu Chao nunca dura menos que duas horas e se converte em uma

mescla de êxtase e reflexão harmoniosa. Esta energia é a mesma, seja tocando em um estádio

de futebol com capacidade para 50 mil pessoas ou em um bar para meia dúzia que mal o

conhecem.

Porém não o consideramos como inaugurador de uma nova posição, pois é certo que

existem outros artistas que desenvolvem trabalhos semelhantes, nem como “hombre del

pueblo” como define a biógrafa Patricia Font, mas sim como um homem que sabe ouvir e não

apenas representar os que não têm voz, mas também servir de interlocutor entre estes e o

mundo. Quanto à parte política de seu trabalho, Manu Chao rejeita ser rotulado apenas como

ativista político devido às próprias contradições presentes no meio artístico, ele argumenta:

Vejo tantas vezes que por aí estão utilizando as idéias políticas para vender e vejo a rebeldia utilizada como um instrumento de marketing muito forte para Levi´s, para

MTV, para Nike, que tenho que ter cuidado. Não quero ser atacado por aí. Não quero fazer um negócio. Estas são minhas idéias e as divido ora pois, mas quando você chega a essas rádios, assim mais tradicionais, nas quais você sabe que questões políticas não lhes interesse o mínimo; que se em Chiapas ou se no bairro ao lado as pessoas estão apodrecendo ... não lhes importa coisa alguma, e você vai ali e te dizem: então você é o Manu Chao e a sua é ser o cantor político, então a gente diz:

¡Vá à merda! cara, essa é minha vida particular, não me venha com o artifício de tentar me presentear com um detergente. Poxa! o cantor rebelde, pois foda-se não sou o cantor rebelde porque é muito fácil me definir assim, procure um pouquinho mais. Valem-me minhas ações, me vale o que faço, me vale que a imprensa repercuta o que estamos fazendo por aqui ou por ali, mas isso de cantor rebelde, vão se catar!, é mais um neutralizante.

23

23

No original: “Veo tantas veces que por ahí se están utilizando las ideas políticas para vender y veo la rebeldía

utilizada como un instrumento de marketing muy fuerte para Levi´s, para MTV, para Nike, que tengo que tener cuidado. No quiero ser atacable por ahí. No quiero hacer un negocio. Estas son mis ideas y las comparto con todo Dios, pero cuando llegas a esas radios, así más clasicotas, en las que sabes que lo político les suda la polla;

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Consideramos que, para um artista que valoriza a liberdade em seu processo criativo,

seria um legado e uma responsabilidade muito grande assumir este rótulo de “ativista

político”. Sobre isso ele afirma que “Se as pessoas compram minha música, quero que o

façam por minha música e não por minhas idéias políticas” (FONT; CABRÉ, 2004, p. 48) 24,

mas ao mesmo tempo declara “Gosto muito das coletivas de imprensa, às que não só vem

jornalistas, mas também estudantes, professores, grupos políticos. Mais que uma entrevista, se

produz um debate, e o que me interessa é conhecer os problemas do lugar onde estou, não

falar de mim” (ROBECCHI, 2002, p. 261).25 Alessandro Robecchi afirma que “É uma cena

que se repete quatorze vezes em um mês e meio. Manu se reunindo com os estudantes,

visitando as prisões, falando com os meios de comunicação, escutado mais como intelectual

do que como um cantor” (ROBECCHI, 2002, p. 262, grifo nosso).26

Observando tais declarações, nos deparamos com uma problemática: Como querer que

comprem seus discos por sua música e não por suas ideias políticas e ao mesmo tempo cair na

condição de por vezes ser “escutado mais como intelectual do que como um cantor”?27 Essas

serão algumas das contradições que o intelectual contemporâneo carregará. Seu trabalho não

se faz sob pura teoria, agora ele é aquele que desce o degrau de superioridade e fala de fora de

uma casta ou de um grupo e pensa-se em conjunto com a esfera pública e cotidiana. No caso

de Manu Chao, existe um processo de defesa da contradição, talvez se lhe fizéssemos a

mesma pergunta hoje a resposta seria diferente porque se tornou impossível pensar sua música

que si Chiapas, que si en el barrio de al lado se está pudriendo la gente… les suda la polla, y vas tú allí y te

dicen: así que tú eres Manu Chao y lo tuyo es ser el cantante político, pues les dices: ¡vete a la mierda! tío, esa es mi vida privada, no me vengas con el tinglado ese de intentarme presentar como un detergente. ¡Hala! el cantante rebelde, pues ¡jódete! no soy el cantante rebelde porque es muy fácil explicarme así, búscatelo un poquito más. Me valen mis acciones, me vale lo que hago, me vale que en la prensa repercuta lo que estamos haciendo por aquí o por allá, pero eso del cantante rebelde ¡a tomar por culo!, es un paquete de lejía más”. Manu Chao: "Lo de cantante rebelde ¡a tomar por culo!". Disponível em: www.lahaine.org/musica/manu_culo.htm>.

Acesso em: 16 abr. 2008.

24 No original: “Si la gente compra mi música, quiero que lo haga por mi música y no por mis ideas políticas”.

25 No original: “Me gustan mucho las conferencias de prensa, a las que no sólo vienen periodistas, sino también

estudiantes, profesores, grupos políticos. Más que una entrevista, se produce un debate, y a mí lo que me interesa es conocer los problemas del lugar donde estoy, no hablar de mí”.

26 No original: “Es una escena que se repite catorce veces en um mes y medio. Manu reuniéndose con los

estudiantes, visitando las cárceles, hablando con los medios de comunicación, escuchado más como un intelectual que como un cantante”.

27 Outros exemplos dessa posição intelectual do cantor são os títulos de algumas de suas entrevistas: “Manu

Chao critica Bush em show gratuito no Chile” (22/03/2006). Disponível em <http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,manu-chao-critica-bush-durante-show-gratuito-no-chile,0322p3922.htm> Acesso em 09 abr. 2009. “Manu Chao diz ter medo do presidente francês Sarkozy e

defende Chávez” (30/08/2007). Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult 90u324234.shtml>. Acesso em: 9 abr. 2009.

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fora de um contexto político quando praticamente todas as suas apresentações públicas estão

atreladas a eventos de caráter engajado.

Esse tipo de intelectual não surge somente para representar, mas também para pôr em

diálogo as problemáticas mundiais, se comportando como interlocutor e dando voz aos que

não são ouvidos como, por exemplo, os internos do hospital psiquiátrico argentino Borda que

possuem seu trabalho radiofônico “La Colifata” divulgado pelo cantor e seu CD “Viva la

Colifata” produzido por Manu Chao e disponível para baixar gratuitamente no site oficial do

cantor manuchao.net.

Acreditamos que toda formação intelectual ocorre dia a dia e que, citando Edward

Said (2005, p. 31): “O objetivo da atividade intelectual é promover a liberdade humana e o

conhecimento”. Entretanto, para essa efetiva promoção não pode haver descanso, por isso

Manu Chao por vezes se converte em interlocutor e tece uma convocação massiva para lutar

dizendo que não é possível passar indiferente a tantas barbaridades que ocorrem dia a dia.

Reclamando seu direito à incoerência, repete em diversas entrevistas que se sente um homem

privilegiado por poder viver de sua paixão, a música.

Néstor García Canclini em seu livro Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair

da modernidade, obra de 1989, afirma que “[...] toda mensagem está infestada de espaços em

branco, de silêncios, interstícios, nos quais se espera que o leitor produza sentidos inéditos”

(GARCÍA CANCLINI, 2008, p. 151). Assim também vemos a canção e todo o trabalho de

reflexão intelectual que gira em torno dela.

Em 1948 Jean Paul Sartre, em seu livro Que é a literatura? afirmava que “[...] não há

‘intelectuais’ entre os oprimidos. Os intelectuais são necessariamente parasitas das classes ou

raças opressoras” (SARTRE, 1993, p. 63). Sustentamos que noções como essas, aplicadas a

finais da década de 40, nos fazem enxergar com certo otimismo a transformação dos

intelectuais, quando no século XXI nos deparamos com personagens como Manu Chao,

pertencentes por origem a uma classe social privilegiada, mas também encontra ndo outros

tipos intelectuais como o cantor Mc Leonardo e o rapper e poeta Ferréz, representantes da

população pobre de grandes metrópoles brasileiras, dialogando e expressando, dentro e fora

da grande mídia publicitária, seus conhecimentos e opiniões sobre os mais variados temas

sociais lado a lado com importantes sociólogos, filósofos e educadores.

Comprovado está que canções em que predomina o teor engajado servem, pelo menos

para o autor colocar em destaque o que sente e o que vê. A partir daí elas estarão nas mãos de

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38

um público que será tão variado quanto suas interpretações. Aqui termina a produção do

artista e começa a nossa, a do ouvinte.

1.3 A presença do intelectual cosmopolita como interlocutor e cronista de seu tempo

Como se vê, há muito por fazer. Mas se dedicássemos toda a nossa vida à crítica, quem poderia recriminar-

nos? A tarefa da crítica tornou-se total, ela engaja o homem por inteiro [...]. Por certo, a crítica por si mesma não traz nenhuma solução positiva. Mas hoje em dia, quem traz? (SARTRE, 1993, p. 212).

Silviano Santiago, em seu artigo “O Cosmopolitismo do Pobre”, publicado em livro de

mesmo nome, ao se referir às mudanças por que passa a sociedade desde a revolução

industrial, com o surgimento dos chamados por ele de “novos pobres” que assumem uma

reconfiguração cosmopolita e se transformam em migrantes e “passageiros clandestinos da

nave de loucos da pós-modernidade”, cita também a presença de “ilustres estrangeiros que, há

alguns anos percorrem outras partes da terra e constituem ‘novos interlocutores’ entre o

asfalto e as favelas” (SANTIAGO, 2004, p. 62). Estas reflexões nos ajudarão a pensar sobre a

atuação de Manu Chao relacionando esse CD, a um contexto mundial.

Jorge Schwartz (1983) em sua reflexão sobre vanguarda e cosmopolitismo, caracteriza

as primeiras décadas do século XX como “um verdadeiro laboratório cultural”. Durante esse

século, o sucessivo vai dando lugar ao simultâneo e as distâncias se reduzem e se ampliam

reciprocamente. Schwartz caracteriza o homem cosmopolita como aquele que vê o mundo

como sua pátria e que capta esse mundo da experiência, refletindo-o na obra de arte. Homem

esse, capaz de falar várias línguas e transportar-se de um país a outro sem maiores

dificuldades, provocando uma abertura de fronteiras.

Detectamos em Manu Chao esse sujeito cosmopolita, que tem vontade de pertencer a

vários lugares quando analisamos suas declarações e seu histórico de constantes viagens e,

por conseguinte, constante movimento. Para dar um exemplo, No DVD Babylonia en Guagua

(2003/EMI) há um documentário que foi produzido pela Radio Bemba em 1999 – um ano

após o lançamento do CD de mesmo nome – em que Manu Chao aparece logo na introdução

dizendo: “Nasci em Paris, me criei na França. Minha família é da Galícia, do País Vasco.

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Tenho orgulho de ter raízes ali, mas mais que tudo, tenho orgulho do lugar onde estou no

presente. Me sinto cidadão do presente, perdido no mundo, perdido no século, mas no

presente, é o que conta.” 28

O movimento de Manu Chao é de origem familiar, começando pelo avô na época da

ditadura espanhola e depois também pelos pais. Mas antes mesmo desse depoimento de 1999,

o cantor já havia confirmado essa afirmação na canção notadamente autobiográfica

“Desaparecido”, segunda faixa do CD Clandestino de 1998:

Me llaman el desaparecido Que cuando llega ya se ha ido

Volando vengo, volando voy Deprisa deprisa a rumbo perdido Cuando me buscan nunca estoy Cuando me encuentran yo no soy El que esta enfrente porque ya

Me fui corriendo mas allá Me dicen el desaparecido Fantasma que nunca está Me dicen el desagradecido Pero esa no es la verdad

Yo llevo en el cuerpo un dolor Que no me deja respirar Llevo en el cuerpo una condena Que siempre me hecha a caminar Me llaman el desaparecido

Que cuando llega ya se ha ido Volando vengo, volando voy Deprisa deprisa a rumbo perdido Yo llevo en el cuerpo un motor Que nunca deja de rolar

Yo llevo en el alma un camino Destinado a nunca llegar Me llaman el desaparecido Cuando llega ya se ha ido Volando vengo, volando voy

Deprisa deprisa a rumbo perdido Perdido en el siglo... siglo veinte... rumbo al veintiuno

29

28

No original: “Nací en Paris, me crié en Francia. Mi família es de Galícia, de Pais Basco. Tengo orgullo de tener raíces allí, pero más que todo, tengo orgullo del lugal donde estoy en el presente. Me siento ciudadano del

presente, perdido en el mundo, perdido em el siglo, pero en el presente es lo que cuenta” (Babylonia en Guagua, 2003).

29 A transcrição de todas as letras foram retiradas do encarte do álbum Clandestino:esperando la ultima ola....

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Nesta canção, o sujeito da enunciação, uma primeira pessoa do singular se confessa

impulsionado por algo como um motor ou uma dor, que o mantém sempre a caminhar. Ele é

portador de uma pressa constante, que o incomoda e o deixa perdido e sem rumo na época de

uma virada de século que sempre vem acompanhada de especulações e perguntas. E m

entrevista publicada em 2007 no site da Folha de São Paulo, Manu Chao assim reforça o

pacto autobiográfico da canção: “Ela diz: ‘Me llaman el desaparecido, que cuando llega ya se

ha ido’. Esse sou eu. A vizinha de meu pai, na Galícia, sempre que chego para visitá-lo, diz:

‘— Aí vem o desaparecido’. Ou seja, sou eu, apenas um sujeito que não pára num lugar".30

Consideramos que esse “apenas” é algo muito maior que o significado literal da

palavra e alinhavamos tal definição – a de sujeito cosmopolita – à de cronista de seu tempo,

ou seja, alguém que chega para observar, refletir e comunicar ao mundo o que acontece em

cada lugar por onde passa.

Pensamos em Manu Chao como um cronista particular do seu tempo e que as canções

do CD Clandestino, promovem, se podemos assim dizer, uma humanização da tecnologia,

combinando a crônica em interlocução com o contexto mundial e suas problemáticas da

imigração, da pobreza, das fronteiras, das línguas, da tecnologia, da política, etc.

Redmond (2008, p. 11, grifo nosso) caracteriza a crônica da seguinte maneira:

A crônica, em seu sentido geral, é um breve comentario sobre algum fato do cotidiano (…) Poética ou irónica, seu motivo são os pequenos acontecimentos: a

noticia em que ninguém prestou atenção, cenas do cotidiano, tudo o que é corriqueiro, criando-se, assim, no transcurso do tempo – días, semanas – uma familiaridade entre o escritor e aqueles que o lêem.

Já o escritor João do Rio, um dos grandes expoentes do gênero no Brasil, nos empresta

esta poética definição de crônica: "Espelho capaz de guardar imagens para o historiador

futuro”.31

Este gênero, que aparece frequentemente no ambiente jornalístico, é considerado como

adequado à sociedade contemporânea por sua escrita leve, curta e próxima ao leitor. O

escritor Affonso Romano de Sant’Anna (1995) diz que uma das funções da crônica é interferir

no cotidiano da sociedade; e autores como Luís Fernando Veríssimo se utilizam deste gênero

como veículo de crítica e de alerta em relação a problemas sociais.

30

Disponível em http://www.manuchao.net/news/folha-online-brasil/index.php. Acesso em 02 jun. 2009. (grifo

nosso).

31 In: RUFFATO, Luiz. A permanência da crônica. Disponível em: <http://www.portalentretextos.com.br/

colunas/amores-expressos/a-permanencia-da-cronica,227,3916.html>. Acesso em: 2 abr. 2011.

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Em matéria publicada em abril de 2010 em sua coluna “Amores Expressos” no site da

editora Entretextos, o escritor e jornalista Luiz Ruffato reflete sobre a permanência do gênero

crônica na contemporaneidade. Em seu texto chamamos a atenção para o seguinte comentário:

Penso que certa resistência em compreender a crônica como gênero literário específico assenta-se basicamente num preconceito e num estereótipo. O preconceito

advém de sua dupla origem plebéia: nascida nas páginas dos jornais, veículo utilitário e descartável, é cultivada em troca de uma remuneração em dinheiro. Nada mais abominável para aqueles que imaginam um ofício aristocrático para as letras... Já o estereótipo é aquele que reduz a crônica a "um comentário ligeiro a respeito de assuntos cotidianos, vazado numa linguagem simples e direta", como se "ligeiro" fosse sinônimo de "superficial", "assuntos cotidianos" fossem "irrelevantes" e

"linguagem simples e direta" equivalesse a "linguagem pobre e reducionista". 32

Ruffato (2011) ainda destaca a importância da crônica no Brasil. Segundo ele, “O

hibridismo da crônica, que dialoga ao mesmo tempo com o jornalismo, com a prosa de ficção

e com a poesia, é o que dá a nota original ao gênero [...]”. O autor comenta sobre o prazer de

ler ainda hoje as crônicas de José de Alencar e Machado de Assis e o resgate e

enriquecimento do gênero através da crônica em versos, feita por Carlos Drummond de

Andrade ou a aproximação desta com a narrativa de ficção em Fernando Sabino.

Retomando a citação inicial de Silviano Santiago em O Cosmopolitismo do Pobre,

podemos localizar Manu Chao em meio a esses “novos interlocutores”, aqui não mais ou não

só entre o asfalto e as favelas, mas entre as ruas do mundo — destacando principalmente as

dos subúrbios — e todo um cenário mundial. Neste constante processo de enriquecimento do

gênero mencionado anteriormente, Manu Chao transfere o fazer literário da crônica para o da

canção, realizando também uma espécie de atualização da mesma. O cantor retrata tanto a

notícia polêmica e amplamente divulgada como, e principalmente, “a que ninguém prestou

atenção” ou porque foi pouco divulgada ou porque sua divulgação não era de interesse da

grande mídia a que a maior parte da população tem acesso.

Manu Chao pertence a várias casas e não deixa escapar o compromisso ideológico

com sua época. Para exercer esta função de cronista, ele usa, além da canção, seu site

manuchao.net para divulgar movimentos e ações sociais mundiais que apóia e dos quais

muitos de nós nem tomamos conhecimento pelos meios de comunicação mais dominantes.

O álbum Clandestino (1998) aborda, como já insinuado em seu próprio título, um

objeto de polêmica e pesquisa que está presente entre a população de diversos países – as

32

Disponível em: <http://www.portalentretextos.com.br/colunas/amores-expressos/a-permanencia-da-cronica,227,3916.html>. Acesso em: 2 abr. 2011.

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fronteiras (geográficas e simbólicas), a porosidade das mesmas e os sujeitos que se utilizam

ou são utilizados por elas. Já no encarte do CD nos deparamos com uma foto de Manu Chao

encostado em um muro, um pé do cantor está no chão e o outro se apóia no muro.

Considerando este muro como uma metáfora de fronteira, esperamos e iremos encontrar um

artista que busca e consegue extrapolar fronteiras mundiais e apresentar para seus ouvintes

uma multiplicidade de sons e realidades diversas.

Além disso, Clandestino (1998) é considerado, segundo o biógrafo do cantor

Alessandro Robecchi (2002), algo no meio do caminho entre um “diário de viagem” nem um

pouco desinteressado, em que o cantor se comporta como interlocutor entre diversas culturas

e o mundo e “um relato de si mesmo”, ao referir-se a algumas canções assumidamente

autobiográficas como “Desaparecido”. Algumas rotulações do álbum serão admitidas pelo

cantor:

Ele admitiu definições como “polaróide” da América Latina ou “diário de viagem”, e assumiu de bom grado o papel de “jornalista musical” que alguém o concedeu, pensando seguramente no jornalismo de reportagem, ofício nobre e cada vez menos praticado (ROBECCHI, 2002, p. 242).

33

O álbum não possui intervalos entre as faixas, o artista segue em frente e em seu

caminho de canções passa por Celta (Faixa 1 – “Clandestino”), Maracaibo (Faixa 6 –

“Lagrimas de Oro”), nos conta como é a vida de imigrantes e de estrangeiros americanos em

Tijuana (Faixa 10 – “Welcome to Tijuana”), caminha por Madri e sua Calle del Desengaño

(Faixa 12 – “Malegria”) [...] e segue pelas ruas do mundo.

No percurso do álbum nos deparamos com sons hibridizados oriundos de várias partes

do mundo, além das diversas inserções através de samplers34 de canções mexicanas, narrações

de jogos de futebol no Brasil, trechos de novelas, de discursos políticos, de programas de

rádio, etc. Desde o primeiro contato com a obra de Manu Chao percebe-se um delicado

trabalho com as mesclas de ritmos, línguas e mídias utilizadas nas composições ,

demonstrando que seu cosmopolitismo não é apenas geográfico, ele aparece também em sua

linguagem.

33

No original: “Él ha admitido definiciones como “polaroid” de América Latina o “diario de viaje”, y ha asumido de buen grado el papel de “periodista musical” que alguien le ha reconocido, pensando seguramente en el periodismo de reportaje, oficio noble y cada vez menos practicado” (ROBECCHI, 2002, p. 242).

34 “[...] os samplers, são aparelhos que podem converter qualquer som gravado em matriz de múltiplas

transformações operáveis pelo teclado (seja a voz de qualquer pessoa, o pio de um pássaro, uma tampa de panela, um bombardino, ou ondas estelares captadas em radiotelescópico e transformadas em ondas sonoras)” (WISNIK, 1989, p. 48).

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Dando continuação à nossa exposição de ideias, gostaríamos de apresentar como esses

recursos e formas de composição aparecem transfigurados na forma estética da canção, tendo

sempre como pano de fundo a reflexão já iniciada sobre o cosmopolitismo, a crônica e a

interlocução.

Consideramos a obra de Manu Chao como uma obra de mescla e quando nos

referimos a tal encontramos subsídio no conceito de hibridismo utilizado por Néstor García

Canclini em Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade:

Serão mencionados ocasionalmente os termos sincretismo, mestiçagem e outros empregados para designar processos de hibridação. Prefiro este último porque

abrange diversas mesclas interculturais–não apenas as raciais, às quais costuma limitar-se o termo 'mestiçagem'–e porque permite incluir as formas modernas de hibridação, melhor do que 'sincretismo', fórmula que se refere quase sempre a fusões religiosas ou de movimentos simbólicos tradicionais (GARCÍA CANCLINI, 2008, p. 19).

[...] hoje todas as culturas são de fronteira. Todas as artes se desenvolvem em relação com outras artes: o artesanato migra do campo para a cidade, os filmes, os vídeos e canções que narram acontecimentos de um povo são intercambiados com outros [...] (GARCÍA CANCLINI, 2008, p. 348).

Dessa forma, poderíamos dizer que a crônica em Clandestino irá passar por um

processo de hibridação – mesclas interculturais e intraculturais – a vários níveis, como marca

cultural e estética desse cosmopolitismo, desses “estrangeiros ilustres” de que fazia menção

Silviano Santiago.

Uma das canções que irá representar bem o ambiente de relato híbrido do cotidiano é

“Mentira”. Até aqui Manu Chao já cantou em espanhol (“Clandestino” e “Desaparecido”),

inglês (“Bongo Bong”) e francês (“Je ne t’aime plus”). “Mentira” é a faixa 5 do álbum e sua

letra é toda em espanhol e sua base foi sampleada da canção “Tell me is it true” do grupo

britânico UB40.

MENTIRA… Mentira lo que dice Mentira lo que da Mentira lo que hace

Mentira lo que va Mentira la mentira Mentira la verdad Mentira lo que cuece Bajo la oscuridad Mentira el amor Mentira el sabor

Mentira la que manda Mentira comanda Mentira la tristeza

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Cuando empieza Mentira no se va Mentira, Mentira La mentira...

Mentira no se borra Mentira no se olvida Mentira, la mentira Mentira cuando llega Mentira nunca se va

Mentira la mentira Mentira la verdad… Todo es mentira en este mundo Todo es mentira la verdad Todo es mentira yo me digo

Todo es mentira ¿Porque será?

Citando o ensaio de Francisco Bosco–“Cinema-canção” publicado em Lendo Música:

10 ensaios sobre 10 canções (2007) e sua reflexão sobre o rap, observamos que “A entoação

é uma espécie de metáfora melódica da fala [...] a entoação é a prosódia do canto: trata-se de

cantar a melodia como se estivesse falando, ou melhor, como se fosse falada” (BOSCO, 2007,

p. 65 – grifo do autor). Nessa canção em que percebemos esse canto/falado, além da repetição

da palavra “mentira” do início ao fim da canção, também escutamos a repetição de um som

pendular refletindo aqui o ideal punk experimentado pelo cantor no início de sua carreira

musical, no que se refere à união de uma melodia simples e uma letra de protesto que se

repetem, transformando-se assim em uma espécie de mantra político. Ao escutar inicialmente

esta canção, tivemos dois comportamentos totalmente opostos, o primeiro foi o de achá-la

chata e repetitiva, mas algo de curiosidade nos foi despertado ao perceber que seu final

escondia informações cruciais para compreendê-la como um todo.

Um verso de destaque para nós dentro da canção seria “Todo es mentira [...]”, pois

explicita, quando o escutamos preferencialmente com um fone de ouvido, uma entoação

melancólica, baseada na descrença de quem canta com relação a uma realidade mundial. Em

“Mentira”, encontramos um sujeito desenganado que se questiona a todo tempo: “Por que será

que tudo é mentira nesse mundo? Mentira o que se trama sob a escuridão / Mentira o amor /

Mentira o sabor/ Mentira, a que manda/ Mentira comanda […]”. E que para reforçar esse

sentimento, ele insere um pensamento antitético: até o que pensamos ser a verdade, é mentira

“Mentira la verdad”.

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Mas é no final desta canção que encontramos o que para nós é uma de suas maiores

marcas como cronista: Manu Chao, através de algumas inserções35 em estilo direto, mantendo

a linguagem e o formato original de cada informação, elenca e confirma algumas dessas

muitas mentiras, gerando um intertexto global – processo de hibridação e obviamente de

dialogismo – no qual discursos chamam outros discursos para interferir na realidade. A

mentira consegue a partir desses recursos, da irrupção da crônica e da sua performance em

castelhano, a “cosmopoliticidade” necessária para se tornar universal.

A primeira parte dessas inserções se inicia com a interferência da canção “La llorona”,

versão cantada pelo grupo mexicano “Que viva la huasteca”.

No sé si el corazón peca llorona En aras de un tierno amor [...]

[...]Te quiero más que a mi vida llorona ¿Qué más quieres?, ¿quieres más? Te quiero más que a mi vida llorona ¿Qué más quieres?, ¿quieres más?

Canção que representa o folclore da América Latina, “La llorona” possui várias

versões, de acordo com cada país, mas a versão considerada mais antiga e original é a que

vem do México e data do século XVI:

O documento oficial do país registra a história de La Malinche como doña Marina, uma jovem mexicana que falava maia, além de sua língua e por isso foi entregue como escrava ao conquistador Hernán Cortés. Esta, além de tradutora, tornou-se sua amante. Por conseguinte, foi considerada traidora por seus compatriotas. Depois da

conquista, Cortés desprezou Malinche, pois já não precisava de seus serviços. Também, a coroa espanhola, temendo Cortés e seu império que se formava, desejava sua presença na Espanha. Para tanto, mandou uma bela espanhola para seduzi-lo. Cortés regressa então à Espanha levando consigo os dois filhos que tivera com Malinche. Traída, a índia tentou fugir com os filhos, mas ao se ver encurralada, apunhalou-os e jogou seus corpos no rio. Arrependida de seus atos, Malinche passou

o resto de seus dias chorando pelos filhos mortos dizendo: “oh! hijos mios”, o que os mexicanos também interpretam como sendo o lamento pela traição ao seu povo. Desde sua morte dizem que nas noites mais frias pode-se ouvir o choro de Malinche, e que este choro segue até as margens do lago Texcoco, no México, onde desaparece. (NASCIMENTO; LAGUARDIA RESENDE, 2007).

Perceberemos que as referências ao México e às constantes lutas de seu povo pela

divisão de terras serão bastante frequentes na obra de Manu Chao, principalmente no CD

Clandestino, que inclusive menciona nas dedicatórias do encarte o Exército Zapatista de

Libertação Nacional (EZLN) e traz a foto de seu líder, o Sub Comandante Marcos–uma figura

35

Inserções estas que não estão descritas no encarte e que fomos transcrevendo no decorrer de nossa pesquisa.

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de origem polêmica que nunca mostra seu rosto, pois num mundo de máscaras, a máscara dele

só vem a reforçar que não importam os rostos.

Em seguida escutamos, também em espanhol, uma notícia da Radio França

Internacional sobre a Conferência Internacional de Mudanças Climáticas que foi realizada em

Quioto (Japão) em 1997. Como resultado de uma série de eventos que vinham sendo

realizados anteriormente (um deles no Brasil – a Eco 92) foi criado um tratado internacional

denominado Protocolo de Quioto, em que os países signatários se comprometeriam em

reduzir a emissão dos gases que agravam o efeito estufa e causam o aquecimento global. Tal

notícia também aponta os Estados Unidos (que através de seu então presidente Jorge W.

Bush, se negaram a ratificar o Protocolo alegando possíveis prejuízos econômicos e

questionaram a teoria de que os poluentes emitidos pelo homem possam causar a elevação da

temperatura) como portador de um quarto das emissões de gás carbônico do planeta. A voz

em off que vem da Rádio França Internacional diz assim:

Noticias en Radio Francia Internacional, esta mañana se inició en Kyoto, Japón, la Conferencia Internacional sobre cambios climáticos, tienen la difícil tarea de

encontrar un acuerdo que permita luchar eficazmente contra el calentamiento progresivo del planeta, la magnitud y la gravedad de este reto planetario contrasta con el escepticismo que predomina en cuanto a los resultados de esta cumbre; las divergencias han vuelto a resurgir en vésperas de esta conferencia de Kyoto, en particular entre los países ricos y los países en vias de desarrollo. Estados Unidos, país responsable de una cuarta parte de las emisiones planetarias de gas carbónico,

no es un modelo de referencia [...]

O resultado de tal comportamento nos leva, dentro da canção, a um próximo

comentário em português que parece ter sido retirado de algum telejornal. Esse aborda

também a mentira da preocupação com as modificações climáticas expressa pelos países mais

ricos: "É sempre mais fácil empurrar com a barriga e deixar o abacaxi para os netos, mas

enquanto o mundo continua parolando o termômetro e água vão subindo." Aqui, a denúncia é

a respeito dos constantes adiamentos através das tais Conferências em que comparecem

diversos países, mas os maiores responsáveis pela emissão de gases que são EUA e China

parolam, parolam e nunca assumem um compromisso realmente sério com a questão.

E com uma última inserção a canção continua assim:

- Señor delegado y... en respecto a nuestro problema de desalojo, ¿qué nos dice?

- ¿Pero quién se acuerda ahorita de problemas linda? Valla por ahí, diviértase, Andele diviértase.

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O diálogo que foi retirado do filme mexicano Hermelinda Linda (1984) nos induz à

seguinte pergunta: para que se preocupar com questões ambientais ou com o problema da

desocupação de áreas (el desalojo) que acontece arbitrariamente em tantos países? Vamos

assistir nossa TV, deixemos que a novela se preocupe e resolva essas questões para nós,

afinal, suas soluções são sempre mais agradáveis de assistir. É o jogo de contrastes de

apocalípticos e integrados, no qual as diversas formas de mídia podem estar contribuindo

numa função de alienação do ouvinte ou público.

No final de seu artigo sobre a crônica, Luiz Ruffato chama a atenção para os sinais da

vitalidade do gênero dizendo que hoje quase todos os jornais e revistas possuem seus

cronistas, assim como podemos também encontrá-los no mundo virtual da internet. As

canções de Manu Chao são um sinal de que no mundo da música este gênero afirma sua

presença marcante aliada à própria bagagem de hibridação, que é atualizada e internalizada

pelo cantor na forma e no conteúdo de suas canções, mantendo vivos certos questionamentos.

Desde “Mano Negra” já podíamos observar as marcas pluriculturais que fizeram parte

da vida do cantor, mas é a partir de sua carreira solo que percebemos o aumento do tom

representativo de sua figura pública, que ao mesmo tempo que diz que não quer que julguem

sua música somente pelo caráter politizado das letras, se envolve e é constantemente

interrogado sobre questões sociais e políticas. Assim se dá o processo de interlocução do

cantor entre a periferia de Paris e o mundo–Caravane des Quartiers – entre a América do Sul e

o mundo – Cargo Tour 92 – e que à partir daqui extrapola todas as fronteiras (geográficas,

simbólicas e virtuais) seja viajando e se manifestando pessoalmente em forma de entrevistas e

canções ou via internet, através da publicações de seu site.36

Os deslocamentos de Manu durante o ano anterior à saída de Clandestino são difíceis de reconstruir com precisão. Ao contrário do caso da Cargo Tour, ao contrario do da Colômbia, desta vez se move sozinho. Quantas vezes terá tocado nos bares ao longo de seu percurso? Quantas vezes terá escutado tocar? E que sons terá roubado pela rua? (ROBECCHI, 2002, p. 232).

37

Em nosso século já se tornou comum e facilitado o uso de elementos da cultura de

massa como a internet na maior parte do mundo, assim como as gravações através do

36

O site manuchao.net traz sua primeira divulgação de uma causa mundial apoiada por Manu Chao “Carta de Cacique Guaicaípuro Cuatemoc ante la reunión de jefes de Estado de la Comunid Europea” datada de fevereiro de 2004.

37 No original: “Los desplazamientos de Manu durante el año anterior a la salida de Clandestino son difíciles de

reconstruir con precisión. Al contrario del caso del Cargo Tour, al contrario del de Colombia, esta vez se mueve en solitario. ¿Cuántas veces habrá tocado en los bares a lo largo de su recorrido? ¿Cuántas veces habrá escuchado tocar? ¿ Y qué sonidos habrá robado por la calle?” (ROBECCHI, 2002, p. 232).

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computador e seus programas cada vez mais evoluídos. Mas destacamos o modo artesanal e o

contexto de produção utilizados pelo cantor nos anos 90. Manu Chao recolhe, durante suas

viagens, cada som, cada palavra, cada história e, num trabalho que provavelmente exigiu

meditação e seleção desses sons, grava em meio a uma sensação de liberdade, sem a comum

obrigação de gravar só porque as máquinas estão reservadas em um Studio.

Buscaremos avaliar a partir de então, como se processou e se processa até os dias

atuais, a relação entre o cantor e os demais representantes da chamada cultura de massa,

destacando seu trabalho sob o selo de grandes casas discográficas como a Virgin Music – que

provocou críticas do meio alternativo francês – sua relação já mencionada com o uso da

internet para divulgação e tomadas de posição, até chegar a produção em caráter

independente, como faz atualmente com a Because Music. Procuraremos interpretar como e

se tal relação impactou ou vem impactando de alguma maneira sua produção artística

contemporânea.

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2 MANU CHAO E SUA RELAÇÃO COM A INDÚSTRIA CULTURAL

A evolução da tecnologia nos transporta para um cenário que busca suprir algum tipo

de perda ou falta por que passa a sociedade. Aos poucos fomos perdendo o prazer do

imprevisto. Hoje os meios massivos já nos apresentam tudo programado e devidamente

digerido conforme seus interesses. O comportamento individual contemporâneo atua com

base nos modelos oferecidos e o atual espaço público é o espaço que se configura na e pela

televisão, meio de comunicação de massa que se tornou instrumento de pacificação e controle,

material de evasão.

Pensando nisso, Néstor García Canclini aponta uma relevante mudança no quadro

geral de divulgação e absorção da informação a partir dos anos 70. Segundo ele, a

“conceitualização do popular como entidade subordinada, passiva e reflexa é questionada

teórica e empiricamente” (GARCÍA CANCLINI, 2008, p. 261). Meios de comunicação como

o rádio, a televisão e, principalmente, o surgimento e ampliação do uso da internet são provas

de que o poder está em constante divisão e distribuição dentro de uma sociedade e que a

evolução da tecnologia pode dar mais voz e voto ao cidadão.

Sergio Luiz Prado Bellei, em seu livro O livro, a literatura e o computador (2002),

discute o poder relacionado ao uso da tecnologia e destaca que “Se mais acesso à informação

significa um potencial maior de sujeitos racionais em diálogo, talvez a verdade tecnológica

nos tornará finalmente livres ou, pelo menos, mais livres” (BELLEI, 2002, p. 128).

Também dentro dos meios de comunicação de massa, uma indústria que se tornou de

grande importância é a indústria fonográfica, com seus milhões e milhões de cópias vendidas.

As alterações na relação artista e público – que tem o rádio, a televisão e a internet como seus

principais divulgadores – trouxeram a publicidade e a exploração da imagem, transformando

os shows em momentos de comunhão entre admiradores e admirado, mas também de uma

enorme e às vezes até extravagante geração de capital.

Nossa intenção no presente capítulo é expor um projeto musical concreto que se

encontra fora dessa formatação pré-estabelecida, mas dentro de um processo inteligente de

aproveitamento e uso dos meios de comunicação, principalmente a internet, para produzir e

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divulgar canções, promovendo maneiras particulares, democráticas e politizadas de uso da

imagem pública em relação com a indústria cultural.

Optaremos então por uma exposição do trabalho do cantor Manu Chao e pela análise

de algumas canções do álbum Clandestino (1998) – no qual destacamos um enfoque especial

dado ao cenário cultural e político latino-americano, principalmente ao México e ao Brasil –

usando como suporte teórico as reflexões de Umberto Eco (1964), Jesús Martín-Barbero

(1987) e Néstor García Canclini (1989) no que se refere ao estudo da cultura de massa para

exemplificar como o cantor faz uso dos meios de comunicação, através de um processo de

subversão dos mesmos, em interlocução com a canção e o compromisso social.

Na obra de Manu Chao, como na de qualquer figura pública que se destaque em sua

área, surgem contradições e questionamentos propostos, seja por sua audiência ou pela mídia

em geral. Apontaremos neste capítulo tais questionamentos, buscando explicitá-los através de

entrevistas e depoimentos dados pelo próprio cantor a fim de enxergar suas tomadas de

posição como algo livre e diferenciado em sua maneira de fazer, produzir e de divulgar

trabalhos artísticos, mas também sociais.

2.1 O surgimento e as transformações do modelo conhecido como cultura de massa

Umberto Eco, semiólogo italiano, propõe em seu livro Apocalípticos e integrados,

cuja primeira edição é de 1964, uma discussão sobre o surgimento da indústria cultural e

insere uma importante análise dos chamados por ele de “meios modernos de massa”. Em seu

primeiro capítulo intitulado “Cultura de massa e ‘níveis’ de cultura” o autor afirma que:

A situação conhecida como cultura de massa verifica-se no momento histórico em que as massas ingressam como protagonistas na vida associada, co-responsáveis pela coisa pública. Frequentemente, essas massas impuseram um ethos próprio, fizeram valer, em diversos períodos históricos, exigências particulares, puseram em circulação uma linguagem própria, isto é, elaboraram propostas saídas de baixo. Mas

paradoxalmente, o seu modo de divertir-se, de pensar, de imaginar, não nasce de baixo: através das comunicações de massa, êle lhes é proposto sob forma de mensagens formuladas segundo o código da classe hegemônica. Estamos, assim, ante a singular situação de uma cultura de massa, em cujo âmbito um proletariado consome modelos culturais burgueses, mantendo-os dentro de uma expressão autônoma própria (ECO, 1970, p. 24).

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Existia então, o pensamento de que tudo o que era criado visando a massa acabava

sendo consumido de baixo para cima devido à incapacidade da mesma no que se refere à

produção de cultura.

Também Jesús Martin-Barbero em Dos meios às mediações: comunicação, cultura e

hegemonia, trabalhou com a crítica da cultura de massa. Nesta obra de 1987, o autor, dando

um enfoque especial ao cenário cultural latino-americano, observa que a aparição das massas

no cenário social, se dá desde a concentração industrial de mão de obra nas grandes cidades.

Assim destacamos seu conceito de massa e de cultura de massa:

Massa designa, o movimento da mudança, o modo como as classes populares vivem as novas condições de existência, tanto no que elas têm de opressão quanto no que as novas relações contêm de demanda e aspirações de democratização social. E de massa será a chamada cultura popular (MARTIN-BARBERO, 2009, p. 174 e 175).

A cultura de massa não aparece de repente, como uma ruptura que permita seu confronto com a cultura popular. O massivo foi gerado lentamente a partir do popular (MARTIN-BARBERO, 2009, p. 175).

Jesús Martin-Barbero considera que o surgimento da cultura de massa se dá através da

articulação com as readaptações da hegemonia e seu impulso de reconciliação das classes e de

absorção das diferenças sociais. Observando o cenário Latino-Americano, o autor explicita

por quais meios se expressam tais articulações:

Juntamente com o cinema, o rádio será o outro meio que permitirá conectar o que vem das culturas camponesas com o mundo da sensibilidade urbana. Conservando suas falas, suas canções e não poucos traços de seu humor, o rádio mediará entre

tradição e modernidade. E será também o veículo mais eficaz – até o surgimento da televisão em finais dos anos 1950 – para a transmissão de valores de classe e raça, bem como para a redução da cultura a slogans [...] (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 270).

Um meio de comunicação de grande destaque mencionado pelo autor em tal processo

será a televisão. Este talvez seja o mais importante, pois atrai a atenção de todas as classes

sociais, que se apropriam cada qual ao seu modo do que está sendo exposto, seja de uma

mensagem de esperança ou da última moda em roupas e cabelos usada pelas atrizes. O autor

caracteriza a televisão como meio que “desenvolverá ao máximo a tendência à absorção das

diferenças “[...] exibindo-as livres de tudo aquilo que as impregna de conflitividade”

(MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 253).

O surgimento desses meios de comunicação, aliados ao da publicidade, aos poucos vai

também transformando as relações do chamado consumo de massa. Umberto Eco, no Prefácio

de Apocalípticos e Integrados, cita duas características que se mantém desde o século XVI

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com a impressão da biblia pauperum, se trata da “adequação do gôsto e da linguagem às

capacidades receptivas da média” (ECO, 1970, p. 12) e, em se tratando agora dos produtos de

massa, a “efemeridade” (ECO, 1970).

Em Consumidores e Cidadãos, livro de 1995, Néstor García Canclini aponta, no

capítulo intitulado “Consumidores do século XXI, cidadãos do XVIII”, que as mudanças na

maneira de consumir e de exercer a cidadania se deveu a uma profunda descrença no sistema

político. O que isso gera são outros modos de participação na sociedade, baseados no

consumo privado de bens e dos meios de comunicação de massa. Aqui encontra-se destacada

a ‘cultura do efêmero’ (GARCÍA CANCLINI, 2010) já mencionada por Umberto Eco. Trata-

se dessa sensação de que a cada instante tudo o que possuímos vai se tornando obsoleto e

fugaz, não tanto devido à constante experimentação, mas sim às exigências do mercado.

Já nos anos 60, Umberto Eco abordava o termo “cultura de massa” como “um híbrido

impreciso” (ECO, 1970, p. 15) e trazia à tona sua análise da crítica cultural existente no

momento, apontando suas falhas e suas conquistas. Destacamos abaixo pensamentos que

ainda procedem ao analisarmos o comportamento da indústria cultural nos séculos XX e XXI,

em que estão inseridas as produções culturais do cantor Manu Chao. São eles:

[...] a cultura de massa é um fato industrial e, como tal, sofre muitos dos condicionamentos típicos de qualquer atividade industrial (ECO, 1970, p. 49). Os mass media tendem a provocar emoções vivas e não mediatas; em outros termos, ao invés de simbolizarem uma emoção, de representá-la, provocam-na; ao invés de a sugerirem, entregam-na já confeccionada (ECO, 1970, p. 40).

Os mass media, colocados dentro de um circuito comercial, estão submetidos à lei da ‘oferta e da procura’. Dão ao público, portanto, somente o que êle quer, ou, o que é pior, seguindo as leis de uma economia baseada no consumo e sustentada pela ação persuasiva, sugerem ao público o que êle deve desejar (ECO, 1970, p. 40, grifo nosso).

Por isso os mass media encorajam uma visão passiva e acrítica do mundo. Desencoraja-se o esforço pessoal pela posse de uma nova experiência (ECO, 1970, p. 41). [...] desenvolvem uma função, que, em certas circunstâncias históricas, tem cabido

às ideologias religiosas (ECO, 1970, p. 41).

Permanece e cresce cada vez mais o condicionamento provocado pela indústria

cultural por ser uma atividade industrial, apesar de subterfúgios como a pirataria que tenta

boicotar a indústria e oferecer produtos genéricos a preços mais acessíveis.

Também as emoções já se encontram devidamente digeridas antes de chegarem ao

público, estimulando sua passividade e entregando-lhe somente o que ele quer ouvir. E aqui

justificamos nosso grifo ressaltando a imprecisão e/ou a avaliação preconceituosa que o termo

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“pior” sugere, baseados nos milhares de debates sobre cultura superior e inferior, baixa ou

alta, melhor ou pior, etc, inseridas também no discurso de Apocalípticos e Integrados, mas

que achamos desnecessário retomar nessa pesquisa.

E, por fim, se torna cada vez mais forte como alguns ramos dos meios de comunicação

de massa – como, por exemplo, a televisão – atuam sobre o público angariando seguidores.

Ela dita as roupas e os acessórios da moda, a música e as gírias da moda, ou seja, o

comportamento a ser seguido para quem deseja estar inserido no mundo globalizado.

Mas, felizmente, outros pensamentos que talvez pudessem ser cabíveis para o contexto

da década de 60, hoje tomaram outros rumos. Pensamentos como:

Os mass media dirigem-se a um público incônscio de si mesmo como grupo social caracterizado; o público, portanto, não pode manifestar exigências nos confrontos

com a cultura de massa, mas tem que sofrer-lhe as propostas, sem saber que as sofre (ECO, 1970, p. 41).

Não podemos dizer que atualmente nos deparamos com um público ingênuo ou

incônscio, senão passivo e altamente influenciável em sentido geral, mas que têm nas mãos –

e muitos o usam – instrumentos vários para sair dessa passividade.

De saída, viciam a nossa atitude, e por isso, mesmo uma sinfonia, ouvida através de

um disco ou do rádio, será fruída do modo mais epidérmico, como indicação de um motivo assobiável, e não como um organismo estético a ser penetrado em profundidade, mediante uma atenção exclusiva e fiel (ECO, 1970, p. 41, grifo nosso).

Acreditamos que, nos dias atuais, tal “atenção exclusiva e fiel” só pode ser exigida de

um especialista – considerando como tal alguém que fará uso profissional de tal escuta –

porque com ajuda da tecnologia, as pessoas de um modo geral não mais se detêm em um

momento único para escutar uma canção.

Com a modificação e a posterior negatividade que o sentido do ócio – esse tempo livre

que com a evolução da industrialização e dos processos de globalização se transformou nessa

impressão de estarmos sempre perdendo alguma coisa se pararmos um pouco, nos dando a

sensação de estarmos obrigados a aproveitar o tempo sempre produtivamente – assumiu em

nossa sociedade e com o surgimento dos celulares, MP3´s, etc, aproveitamos de qualquer

espaço físico e/ou temporal – como um percurso de ônibus ou uma caminhada – para ligar

nossos aparelhos, acionar nossos fones de ouvido e aproveitar esse tempo em que somos

obrigados a ficar parados em um lugar, fazendo mais alguma coisa. E isso não quer dizer que

a escuta será totalmente desinteressada.

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[...] Com efeito, aparentemente êles põem à disposição os frutos da cultura superior, mas esvaziados da ideologia e da crítica que os animava. Assumem os modos exteriores de uma cultura popular, mas ao invés de crescerem expontâneamente de baixo, são impostos de cima (e da cultura genuinamente popular não possuem nem o sal, nem o humor, nem a vitalíssima e sã vulgaridade) (ECO, 1970, p. 42).

Outra crítica que não cabe mais em nossos dias, é essa que se refere à imposição de

cima para baixo e aqui podemos exemplificar com alterações na indústria fonográfica citando

a divulgação da música funk. Este faz um caminho inverso, sai das periferias do Brasil e

conquista seu espaço no asfalto, principalmente entre jovens de classe média e estimula

diversas pesquisas dentro dos estudos culturais.

Em matéria publicada no site Folha Online, Bruna Bittencourt cita que no estudo "O

Mundo Funk Carioca" (1988) de Hermano Vianna, o autor afirma que:

Todo esse mercado foi criado nas duas últimas décadas, sem ajuda da indústria cultural estabelecida", diz Vianna. "Não conheço outro exemplo tão claro de virada mercadológica na cultura pop contemporânea. O funk agora tem números claros, que

mostram uma atividade econômica importante, que pode assim ser levado a sério pelo poder público.

38

Quando tratamos do universo musical do cantor Manu Chao e sua relação com o

underground, convivendo desde o início de sua carreira com esse ambiente cultural do punk

que foge dos padrões pré-estabelecidos, citamos também o surgimento dos selos

independentes e de posicionamentos como os do cantor que servem para amenizar o problema

da cultura de massa que perpassa décadas e que é apontado por Eco (1970, p. 50-51):

O problema da cultura de massa é exatamente o seguinte: ela é hoje manobrada por

‘grupos econômicos’ que miram fins lucrativos, e realizada por ‘executores especializados’ em fornecer ao cliente o que julgam mais vendável, sem que se verifique uma intervenção maciça dos homens de cultura na produção. A atitude dos homens de cultura é exatamente a do protesto e da reserva.

Aqui, enxergamos a definição “homens de cultura” equiparando-a a de “intelectual” já

trabalhada no nosso primeiro capítulo. Manu Chao não se contenta com o simples protesto

reservado e parte para a ação através da participação em selos independentes e da constante

divulgação de trabalhos próprios ou de novos artistas, seja através de seu site na internet ou do

uso de sua figura pública e de seu passaporte europeu que lhe permite chegar a diversas partes

do globo. Caminhando ao lado com o pensamento de Umberto Eco aqui citamos que “O

38 Funk movimenta R$ 10 milhões por mês só no Rio de Janeiro, diz estudo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u492067.shtml>. Acesso em: 21 jan. 2010.

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silêncio não é protesto, é cumplicidade; o mesmo ocorrendo com a recusa ao compromisso”

(ECO, 1970, p. 52).

Ao se referir à crítica cultural, Umberto Eco faz referência a relação dialética que deve

haver entre “produtores” e “fruidores”:

A intervenção crítica pode, antes de mais nada, levar à correção da convicção implícita de que cultura de massa seja a produção de cibo cultural para as massas (entendidas como categoría de subcidadãos), realizadas por uma elite de produtores. Pode repropor o tema de uma cultura de massa como ‘cultura exercida no nível de todos os cidadãos’. Embora isso não signifique que cultura de massa seja cultura

produzida pelas massas; não há forma de criação ‘coletiva’, que não seja medida por personalidades mais dotadas que se fazem intérpretes de uma sensibilidade da comunidade onde vivem. Logo, não se excluí a presença de um grupo culto de produtores e de uma massa de fruidores; salvo que a relação, de paternalista, passa a dialética: uns interpretam as exigências e as instancias dos outros (ECO, 1970, p. 54).

Através dessa percepção, os próprios cidadãos vêm desenvolvendo atividades de uso

dos meios de comunicação de massa de maneira crítica e coletiva. Um exemplo é a criação

das rádios comunitárias, tão comuns dentro de algumas favelas. Nessas rádios são oferecidas

aos moradores, oportunidades das quais os grandes meios de comunicação os privam, como

ouvir músicas produzidas por moradores locais; saber o que se passa dentro da comunidade –

opções culturais, projetos sociais, oportunidades de trabalho, e até anúncios publicitários que

subvertem a indústria do consumo, como foi o caso da lanchonete “Mec Favela” em

Heliópolis (SP).

Para realização de tais atos, o público teve como importante aliada a internet, meio de

comunicação também utilizado frequentemente por Manu Chao e tantos outros cantores e

compositores como instrumento de produção e divulgação de seus projetos.

Esse meio tão importante na sociedade contemporânea estoura na era da informação

dos anos 90 com a multiplicação de sites de busca e de portais, e é objeto de reflexão de

Sergio Luiz Prado Bellei, em seu livro O livro, a literatura e o computador (2002). Em

capítulo intitulado “Questões de tecnologia, política e poder”, Bellei explicita como a

tecnologia pode dar poder e voz ao cidadão, permitindo uma vida mais democrática, mas

também, em virtude de sua imaterialidade, ser mais facilmente falsificável e passível de ser

simulada e utilizada como forma de poder e controle.

Citando Pierre Bourdieu, o autor afirma que

[...] a internet existe para gerar e fazer circular capital econômico e ‘simbólico’, ou seja, propriedades materiais ou simbólicas (coisas como a coragem ou o acesso ao saber) que são percebidas em uma comunidade como formas de poder produtivo.

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[...] A rede é o local do acúmulo eletrônico do capital, através do uso adequado da moeda da informação e do conhecimento (BELLEI, 2002, p. 130)

Outra vez nos deparamos com o tema das “readaptações da hegemonia” já inserido por

Jesús Martin-Barbero, pois como afirma Bellei “A rede não dissolve processos hegemônicos.

Ao acumular capital, prolonga, modifica ou intensifica os já existentes, ao mesmo tempo que

instaura novas formas de hegemonia” (BELLEI, 2002, p. 132). Mas aliado a esse potencial

gerador de hegemonias, surge a possibilidade de examinar criticamente esse processo para

aproveitar seu potencial democratizante e o uso político que pode ser feito da tecnologia.

Também Néstor García Canclini, tece toda uma reflexão sobre as tradições populares

da América e sua relação com os termos cultura massiva e cultura de massa. Deve-se, com

isso, atentar para o histórico do debate iniciado de alguma forma com Apocalípticos e

Integrados de Umberto Eco em 1964 e Jesús Martin-Barbero em Dos meios às mediações:

comunicação, cultura e hegemonia de 1987. Segundo García Canclini (2008, p. 255-256),

A rigor, o processo de homogeinização das culturas autóctones da América, começou muito antes do rádio e da televisão: nas operações etnocidas da conquista e da colonização, na cristianização violenta de grupos com religiões diversas – durante a formação dos Estados nacionais -, na escolarização monolíngue e na organização colonial ou moderna do espaço urbano.

Hoje os meios eletrônicos de comunicação são reinterpretados dentro de uma tendência mais geral das sociedades modernas. A industrialização e a urbanização, a educação generalizada, as organizações sindicais e políticas foram reorganizando de acordo com leis massivas a vida social desde o século XIX, antes que aparecessem a imprensa, o rádio e a televisão. A noção de cultura massiva surge quando as sociedades já estavam massificadas.

García Canclini esclarece que a meados do século usava-se o termo “cultura de

massa”, até que se percebeu que os novos meios de comunicação, como o rádio e a televisão

não eram propriedades das massas. Gerou-se então outro termo, o de “cultura para a massa”,

que também durou somente até que se percebeu que a ideia de manipulação absoluta e de

recepção submissa das massas possuía ainda muitos questionamentos.

Com base em tais constatações, García Canclini registra a dificuldade de incorporar

aos estudos culturais esses “novos processos de produção industrial”, assim como outros

formatos dessa produção–como a fotografia e a televisão – considerados: “processos de

circulação massiva e transnacional”; e também os “novos tipos de recepção e apropriação” de

tais processos, afirmando ser “impossível sintetizar formatos e processos tão variados sob um

único nome”:

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Alguns rótulos, os de cultura de massa ou para a massa, podem ser usados com a precaução de que designam um único aspecto e não o mais recente; as noções de indústria cultural, cultura eletrônica ou teleinformação são pertinentes para designar aspectos técnicos ou pontuais. Mas a tarefa ainda mais árdua é explicar os processos culturais globais que estão acontecendo pela combinação dessas inovações.

Desenvolvem-se novas matrizes simbólicas nas quais nem os meios de comunicação, nem a cultura massiva operam isoladamente, nem sua eficácia pode ser avaliada pelo número de receptores, mas como partes de uma recomposição do sentido social que transcende os modos prévios de massificação (GARCÍA CANCLINI, 2008, p. 258).

Ao ampliar o pensamento de Canclini para o século XXI, acreditamos estar em uma

posição ainda mais complicada diante da definição de “cultura de massa” já que hoje, os

meios de comunicação estão quase que totalmente universalizados. Tão universalizados que já

extrapolaram as barreiras sociais. O próprio Umberto Eco, ao se referir ao termo “massa”, já

esclarecia que “em muitos momentos do dia, cada um de nós é [massa], sem exceção” (ECO,

1970, p. 297).

Silviano Santiago em seu artigo “O cosmopolitismo do pobre” (2004) nos mostra

como as classes menos favorecidas estão encontrando seu lugar no uso dos meios de

comunicação sendo beneficiadas, principalmente, pelo já citado advento da internet. Hoje em

dia qualquer pessoa, com um mínimo de conhecimento em informática pode ter/criar um site,

como o movimento dos sem-terra citado por Santiago. Para os que não possuem

computadores, existem as lan houses, que estão localizadas em qualquer garagem, cômodo ou

pequeno espaço dentro das favelas–chamadas hoje de comunidades–e que cobram preços

ínfimos por cada intervalo de tempo de conexão rápida com o mundo.

A relação massa-povo no que tange aos meios de comunicação foi se perdendo, ou

melhor, tornou-se uma só realidade e baseia-se em outro contexto, o de popularidade. A

televisão e a internet como seus maiores representantes atualmente, podem cativar, e por

vezes aprisionar todas as classes sociais, sem exceções.

Observamos que o questionamento iniciado nos anos 60 sobre a conceitualização do

popular como entidade subordinada e passiva passa ao nível do questionamento sobre a quem

os meios de comunicação de massa atingem e até de nos perguntarmos quem será essa massa.

Surge então a proposta de uma possível diluição deste conceito que não mais pode representar

o sentido e o uso contemporâneo do termo.

Passaremos agora a abolir o termo “massa” e trabalhar somente com “meios de

comunicação”, observando como o cantor Manu Chao se relaciona e faz um reaproveitamento

criativo e híbrido de tais meios em seu trabalho intelectual, incl uindo as canções do álbum

Clandestino (1998).

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2.2 O aproveitamento dos meios de comunicação para compor e divulgar um projeto

contra-hegemônico

Já em 1948, Jean Paul Sartre afirmava que para atingir o público era preciso

conquistar os mass media, mas não acreditava que iríamos utilizá-los inteiramente. Sartre

(1993, p. 197-198) observava:

[...] É preciso, portanto, recorrer a novos meios, e eles já existem; já os americanos os enfeitaram com o nome de mass media; são os verdadeiros recursos de que

dispomos para conquistar o público virtual: jornal, rádio, cinema. Que não se diga que essa indústria não têm nada a ver com a arte: afinal, a imprensa também é uma indústria, que os escritores antigos conquistaram para nós; não creio que cheguemos a utilizar inteiramente os mass media, mas seria belo começar já a sua conquista, em benefício dos nossos sucessores.

A trajetória pública de Manu Chao e sua relação com a indústria discográfica se

estabelece a partir do momento em que grava seu primeiro vinil em 1985 com o grupo Hot

Pants. Esse disco é editado por uma pequena gravadora chamada Gougnaf Mouvement. Um

ano depois os Hot Pants gravam seu primeiro e único CD Loco Mosquito (1986), também

editado por outra pequena gravadora, a All or Nothing. Outro selo independente de grande

importância para a cena punk francesa da época é a Boucherie Productions, gravadora que

lança em 1987, um dos discos de Los Carayos – outro grupo de que Manu Chao fez parte – e

que, consequentemente lança o primeiro álbum da Mano Negra Patchanka (1988). O lema da

Boucherie Productions, assim como o da maioria das gravadoras independentes era trabalhar

com a música, sem se distanciar do social e do compromisso político.

Esse era, pois, o cenário geral do rock francês, apontado pelo biógrafo Alessandro

Robecchi, caracterizado pelo surgimento desenfreado de pequenas associações, selos

discográficos, fanzines e lugares de encontro que gravam, publicam e vendem, segundo as

possibilidades de seu circuito de distribuição.

Alessandro Robecchi demonstra sua perplexidade diante da lucidez e determinação de

Manu Chao ao ser questionado sobre a produção de discos através de selos independentes:

Sobre os selos independentes diz: “É o melhor meio para fazer música sem pressões

e sem que te controlem de fora.” Mas depois se referindo às ofertas que recebe das grandes casas discográficas, acrescenta: “Não sou de ferro! A tentação é forte, claro:

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você se prostitui uma vez e depois tem dinheiro suficiente para fazer o que quiser, inclusive sem selo. Duvidamos um momento em aceitar, mas ao final decidimos que não valia realmente a pena... Isso não quer dizer que não o faça. Não sou puro e íntegro. Eu com o gueto rock não tenho nada a ver (rien à foutre), eu quero que todo mundo goste da minha música, quero tocar para todos. Quero poder fazer o

que me dê vontade.” Falando de tudo isso a pouco, com o distanciamento dos anos, quase como se se tratasse de uma vida anterior, Manu explica que não havia muitas diferenças entre pequenos e grandes. Ao contrário, em certo sentido a relacão estava mais clara com as grandes companhias: é questão de dinheiro e pronto. Com os selos independentes

de então era mais difícil. Ri ao recordar como se mesclavam os negócios e a amizade: “Aconteciam coisas como: Manu, esta tevê dá nojo, realmente é uma merda, mas se você vai conseguimos uma grana para fazer o disco dos seus amigos...Você não vê? Manu, faça um pequeno esforço...pelos amigos... um pequeno esforço, sim, e nada mais, heim? (ROBECCHI, 2002, p. 58-59, grifo nosso).

39

A claridade do pensamento do cantor com relação às gravadoras é demonstrada nas

frases: “Não sou puro e íntegro. Eu com o gueto rock não tenho nada a ver, eu quero que todo

mundo goste da minha música, quero tocar para todos”. O cantor deixa claro que não se

prende a um estilo musical e que a intenção é que sua música chegue ao maior número de

gente possível. Para ele, se isso tiver que ser através de uma grande gravadora, assim será.

Mostra também, que para atingir seu objetivo não pode ficar preso ao ideal punk de estar

sempre contra as grandes gravadoras e que mesmo dentro dos selos independentes já se

pensava em negócios.

Alessandro Robecchi assim inicia o capítulo seis da biografia de Manu Chao:

“Vendidos! Traidores! Putas! O que acontece quando um grupo underground ou alternativo,

que se fez e produziu a si mesmo, termina nas garras de uma multinacional?” (ROBECCHI,

2002, p. 81).40 Robecchi comenta sobre como a fama mundial que foram ganhando vários

grupos independentes da época despertou o interesse das multinacionais. Quanto à Mano

39

No original: “Sobre los sellos independientes dice: “Es el mejor medio para hacer música sin presiones y sin

que te controlen desde fuera.” Pero luego refiriéndose a las ofertas que recibe de las grandes casas discográficas, añade: “¡No soy de piedra! La tentación es fuerte, claro: te prostituyes una vez y luego tienes dinero suficiente para hacer lo que quieras, incluso sin sello. Dudamos un momento si aceptar, pero al final decidimos que no valia realmente la pena...Eso no quiere decir que no lo haga. No soy puro e íntegro. Yo con el gueto rock no tengo nada que ver (rien à foutre), yo quiero que mi música guste a todo el mundo, quiero tocar para todos. Quiero poder hacer lo que me dé la gana.”

“Hablando de todo eso hace poco, con el distanciamento de los años, casi como si se tratase de una vida anterior, Manu explica que no había muchas diferencias entre pequeños y grandes. Al contrario, en cierto sentido la relación estaba más clara con las grandes companías: es cuestión de dinero y listo. Con los sellos independientes de entonces era más difícil. Se ríe al recordar cómo se mezclaban los negócios y la amistad: “Pasaban cosas como: Manu, esta tele da asco, realmente es una mierda, pero si vas sacamos una pasta para hacer el disco de tus amigos...¿No lo ves? Manu, pon un poco el culo...por los amigos... Un poco el culo, sí, pero

nada más, ¿eh?”.

40 No original: “¡Vendidos! ¡Traidores! ¡Putas! ¿Qué pasa cuando un grupo underground o alternativo, que se ha

hecho y producido a si mismo, termina en las garras de una multinacional?”.

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Negra em particular, as altas vendas do álbum Patchanka (1988), não somente dentro do

circuito alternativo, fizeram com que grandes casas discográficas começassem a seguir seus

passos.

Em 1989, Mano Negra lança o CD Puta’s Fever sob o selo da multinacional Virgin

Records, o título bilíngue do CD já começa a responder as infinitas polêmicas sobre se o

grupo teria se vendido ao capital,

A verdade (sua) [de Manu Chao] é que se fechou o contrato com a Virgin e deixava claro todos os aspectos, desde a produção até a promoção, estipulando que não deveria haver nenhum produtor para o novo disco (um ‘técnico’ isolado numa cabine de controles, jamais!), que o grupo tinha a última palavra em tudo que fosse relacionado à promoção (‘podemos recusar qualquer canal de televisão’), etc

(ROBECCHI, 2002, p. 83).41

O grupo e principalmente o vocalista Manu Chao agora tem a missão de enfrentar a

imprensa e responder com frequência a mesma pergunta: “Agora que assinaram com uma

grande multinacional, vocês não temem que sua música possa ser controlada?” (ROBECCHI,

2002, p. 86).42 E o vocalista assim respondia:

Claro que tivemos muitas dúvidas – diz Manu – antes de assinar o contrato com a Virgin. Nos perguntávamos se nosso público nos seguiria. Se tudo saiu bem, se as grandes companhias repararam em nós, é porque milhares de pessoas vinham nos ver tocar. Portanto, ainda que para o grupo representasse una evolução, queríamos conservar esse público de base. [...] Antes de nos ver atuar de novo e ter-se

tranqüilizado me perguntavam: “Mas Manu, você está certo do que está fazendo? [...] Para nós, o problema é bem simples: há um ano tocávamos para alguns poucos fãs, e agora, além dos mesmos do princípio, nos encontramos também com gente muito diferente, que escutou nosso disco na radio e ouviu falar vagamente de nós na televisão. [...] E, além disso, há a questão fundamental do ‘poder contratual’, na qual Manu sempre

ressalta. Vender discos, levar as pessoas aos shows, encher as salas, significa difundir a própria música, mas também poder ditar um tipo de comportamento e impor umas condições. [...] a estratégia é do grupo inteiro: consiste em se fazer respeitar, impor o critério artístico próprio e conservar autonomia total (ROBECCHI, 2002, p. 86 e 87).

43

41

No original: “La verdad (suya) [de Manu Chao] es que el contrato con la Virgin se cerró y reflejaba todos los aspectos, desde la producción hasta la promoción, estipulando que no debía haber ningún productor para el nuevo disco (un ‘técnico’ ajeno en la cabina de mandos, ¡jamás!), que el grupo tenía la última palabra en todo lo

relacionado con la promoción (‘podemos rechazar cualquier cadena de televisión’), etcétera”.

42 No original: “Ahora que hábeis firmado con una gran multinacional, ¿no teméis que vuestra música vaya a ser

controlada?”.”

43No original: “Claro que lo dudamos mucho – dice Manu – antes de firmar el contrato con la Virgin. Nos

preguntábamos si nuestro público nos seguiría. Si todo ha salido bien, si las grandes compañías han reparado en nosotros, es porque unos cientos de personas venían a vernos tocar. Por tanto, aunque para el grupo ha

representado una evolución, queríamos conservar a esse público de base.[...] Antes de vernos actuar de nuevo y haberse tranqüilizado me preguntaban: “Pero Manu, ¿estás seguro de lo que haces? [...] Para nosotros, el problema es bien sencillo: hace un año tocábamos ante unos cuantos fans, y ahora, además de los mismos del

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Patricia Font e David Cabré acrescentam em sua biografia Manu chao...de primera voz

(2004) uma outra resposta do cantor sobre seu contrato com a Virgin, que terminou em 2001,

quando Manu Chao já seguia carreira solo com seu segundo CD Próxima Estación:

Esperanza.

O único contrato que assinei em minha vida foi com a Virgin. É um contrato em que tenho poder de decisão em todos os níveis, exceto que devo certo número de discos, claro. Mas, se pensar bem, um papel é um papel. Se um dia me canso da Virgin e ainda lhes devo dois discos, ignoro o contrato e vou viver na Patagônia e que venham me buscar. O que te ata a um papelzinho?

Politicamente não posso seguir nesse caminho, essas multinacionais ficaram totalmente loucas. Como vou ficar na Virgin se demitiram 20% do pessoal? É uma questão de ética, se demitem 20% de trabalhadores me vou com eles, porque são meus colegas e não posso ficar ali. Com contradições todos vivemos, mas existem contradições maiores com as quais não se pode concordar (FONT; CABRÉ, 2004, p.

96 e 97).44

Mais uma vez, a liberdade de decisão é ressaltada, mas existe a informação de que o

início do contrato com Mano Negra em 1987 estipulava um número X de discos que só se

completou quando o grupo já havia se dissolvido e o artista seguia então sua carreira solo e

pôde escolher entre seguir com a Virgin ou não, optando pela segunda opção, segundo ele,

por motivos éticos. Ele pode até ter possuído certo poder em relação à suas gravações, mas

percebe que todo poder de decisão também esbarra em limites.

A partir do fim do contrato, Manu Chao começa a buscar outros meios para

distribuição de seu trabalho. Em entrevista publicada no site rebelion.org, o cantor já sinaliza

a internet como importante instrumento de criação e divulgação:

E que caminhos te ocorrem para difundir sua música agora?

Não sei, estou procurando, conversando com as pessoas. O caminho mais plausível me parece a internet. Meu problema como músico não é a criação, porque tenho as ferramentas, mas sim a distribuição, como chegar às pessoas. Por enquanto o único

principio, nos encontramos también con gente muy distinta, que ha escuchado nuestro disco en la radio y ha oído hablar vagamente de nosotros en la televisión [...] . Y está además la cuestión fundamental del ‘poder contractual’, en la que Manu hace hicapié siempre. Vender discos, llevar a la gente a los conciertos, llenar las salas, significa difundir la própia música, pero tambiém poder dictar un tipo de comportamiento e imponer unas condiciones. [...] la estrategia es la del grupo entero: consiste en hacerse respetar, imponer el criterio artístico

própio y conservar una autonomia total”. 44

No original: “El único contrato que he firmado en mi vida ha sido con Virgin. Es un contrato en el que tengo poder de decisión en todos los niveles, excepto que debo un cierto número de discos, claro. Pero, si lo piensas bien, un papel es un papel. Si un día me canso de Virgin y les debo aún dos discos, pues me meto el contrato en el culo, me voy a vivir a la Patagonia y que me vengan a buscar. ¿Qué te ata un papelito? [...]. Políticamente no puedo seguir en esa vía, esas multinacionales se han vuelto totalmente locas. ¿Cómo voy a quedarme yo en

Virgin si han echado al 20% del personal? Es una cuestión de ética, si echan al 20% de trabajadores me voy con ellos, porque son mis colegas y no puedo quedarme ahí. Con contradicciones vivimos todos, pero hay contradicciones mayores con las que no se puede transigir”.

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sistema de distribuição massiva que existe é o que usam as multinacionais. O outro é o underground e é do caralho, mas não chega, por exemplo, à Argentina. Esse é o problema. O que vejo claramente é que como está a situação, os músicos cada vez vão ganhar menos dinheiro vendendo discos. Eu não tenho problemas financeiros, para mim não é um problema presentear minha música, mas eu sou um caso

particular. O problema são os músicos que necessitam do dinheiro. Temos que encontrar alguma maneira de retribuir estes músicos pela difusão de sua obra na internet. [...] A tecnologia foi muito positiva, agora todo mundo tem suas ferramentas para poder criar e fazer um disco já não é tão caro como há dez anos. Não considero que a qualidade do som seja o mais importante, mas o sim o conteúdo. Agora os jovens baixam a música da internet e a escutam com MP3, para

eles o som tanto faz.45

Assim o cantor aos poucos atingia seu objeto de divulgação musical. Mas além da

imprensa e do público, existiu o questionamento por parte de outras bandas de rock, formadas

por artistas que tocavam com ou na mesma época em que Manu Chao começou, ou seja,

gravando sempre através de selos independentes. É o caso do grupo francês Les Wampas, que

também começou nos anos 80, ao lado dos Hot Pants e que lançou, em 2003, um CD

chamado Nunca confie em um cara que depois de ter sido um punk agora toca eletro (Never

trust a guy who after having been a punk, is now playing electro). Neste CD, chamamos

atenção para a faixa de nome “Manu Chao”:

Manu chao Eu canto no Les Glaviots, um grupo punk da Normandia A gente ensaia no celeiro todas as terças e quintas Quando no fim de 15 minutos a gente fez bastante barulho

A gente se senta sobre o feno e a gente canta este refrão Se eu tivesse o dinheiro do Manu Chao Eu sairia de férias pelo menos até o Congo. Se eu tivesse a conta de banco que tem Louise Attaque Eu sairia de férias pelo menos até a Páscoa

É linda a Normandia como o diz minha grande tia Marie Mas se eu tivesse dinheiro eu iria pra bem longe daqui.

45

No original: “¿Y qué vías se te ocurren para difundir tu música a partir de ahora? No sé, estoy buscando, hablando con gente. La vía más plausible me parece Internet. Mi problema como músico no es la creación, porque tengo las herramientas, sino la distribución, cómo llegar a la gente. Por ahora el único sistema de distribución masiva que existe es el que manejan las multinacionales. El otro es el underground y es de puta madre, pero no llega, por ejemplo, a Argentina. Ese es el problema. Lo que veo claramente es que, tal y

como está la situación, los músicos cada vez vamos a ganar menos dinero vendiendo discos. Yo no tengo necesidades económicas, para mi no es un problema regalar mi música, pero yo soy un caso particular. El problema son los músicos que necesitan el dinero. Hay que encontrar alguna manera de retribuir a estos músicos por la difusión de su obra en Internet. [...] La tecnología ha sido muy positiva, ahora todo el mundo tiene sus herramientas para poder crear y hacer un disco ya no es tan caro como hace diez años. No considero que la calidad del sonido sea lo más importante, sino el contenido. Ahora los chavales se bajan la música de Internet y

la escuchan con MP3, les da igual el sonido”. Disponível em: <http://www.rebelion.org/hemeroteca/cultura/ manuchao151102.htm>. Acesso em: 4 jul. 2010.

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Várias vezes nas noites de verão eu me assento no campo de trigo Fecho devagar os olhos e escuto as macieiras cantando Se eu tivesse o dinheiro do Manu Chao Eu sairia de férias com os meus amigos Se eu tivesse a conta de banco que tem Louise Attaque

Eu sairia de férias pelo menos até a Páscoa Se eu tivesse o dinheiro do Manu Chao Eu sairia de férias em um super carro Se eu tivesse a conta de banco que tem Louise Attaque Eu sairia de férias pelo menos até a Páscoa Eu também, se pudesse, iria até o México

Beber tequila com o comandante Marcos Mas ainda tenho pelo menos 5 hectares para trabalhar Eu subo no meu trator e canto para me animar Se eu tivesse o dinheiro do Manu Chao Eu sairia de férias pelo menos até o Congo. Se eu tivesse a conta de banco que tem Louise Attaque

Eu sairia de férias pelo menos até a Páscoa Mas eu não tenho um bom emprego como Manu Chao E eu sairia de férias somente à Saint Lô. E eu não sou chique como Didier Wampas Ficarei durante as férias Sozinho com as minhas vacas

Se eu tivesse o dinheiro do Manu Chao Eu sairia de férias com os meus amigos Se eu tivesse a conta de banco que tem Louise Attaque Eu sairia de férias pelo menos até a Páscoa

46

A canção tece uma crítica ao modo de vida privilegiado do artista, sua proximidade

com figuras como o Subcomandante Marcos do EZLN (Exército Zapatista de Libertação

Nacional) e suas constantes viagens pelas mais diferentes partes do mundo. No clip da

canção, aparece um homem representando o cantor Manu Chao, vestido com uma camiseta de

paetês prateados, uma touca vermelha na cabeça e luvas de boxe. Essa imagem passa a ideia

de que apesar da aparência de simplicidade que o cantor transmite através de roupas simples

46

No original: Je chante dans les Glaviots un groupe punk de Normandie/On répète dans la grange tous les mardis et les jeudis/ Quand au bout d'un quart d'heure on a assez fait de bruit/ On s'assoie dans le foin et on chante ce refrain/Si j'avais le portefeuille de Manu Chao/ Je partirais en vacances au moins jusqu'au Congo/ Si j'avais le compte en banque de Louise Attaque/ Je partirais en vacances au moins jusqu'à Pâques/

C'est beau la Normandie comme le dit ma grand tante Marie/ Mais si j'avais du blé je partirais bien loin d'ici/ Souvent les soirs d'été je m'assoie dans les champs de blé/ Je ferme doucement les yeux et j'écoute les pommiers chanter/ Si j'avais le portefeuille de Manu Chao/ Je partirais en vacances avec tous mes potos/ Si j'avais le compte en banque de Louise Attaque/ Je partirais en vacances au moins jusqu'à Pâques Si j'avais le portefeuille de Manu Chao/ Je partirais en vacances dans une superbe auto/ Si j'avais le compte en banque de Louise Attaque/ Je partirais en vacances au moins jusqu'à Pâques/

Moi aussi si je pouvais j'irais bien jusqu'au Mexique/ Boire de la téquila avec le commandant Marcos/ Mais j'ai encore au moins cinq hectares à labourer/ Je remonte sur mon tracteur et je chante pour me donner du coeur/ Si j'avais le portefeuille de Manu Chao/ Je partirais en vacances au moins jusqu'au Congo/ Si j'avais le compte en banque de Louise Attaque/ Je partirais en vacances au moins jusqu'à Pâques/ Mais j'ai pas un beau chapeau comme Manu Chao/ Et j'irai en vacances seulement à Saint Lô/ Et j'ai pas de la classe comme Didier Wampas/ Je resterai pour les vacances/ Tout seul avec mes vaches/

Si j'avais le portefeuille de Manu Chao/ Je partirais en vacances avec tous mes potos/ Si j'avais le compte en banque de la Louise Attaque/ Je partirais en vacances au moins jusqu'à Pâques. (Tradução Leonardo Mattos e Myrelle Miranda)

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que usa normalmente em seus shows e de portar sempre algum acessório vermelho

simbolizando uma possível rebeldia, ele não conseguiu se esquivar o suficiente do brilho do

show business, rendendo-se, como tantos outros, à indústria musical. Mas, como o próprio

Manu Chao afirma, ele também não é de ferro e quando um artista alcança reconhecimento

mundial, acaba tendo que assumir todas as contradições que tal reconhecimento impõe.

Exemplificaremos agora, como, aliado a todas as “justificativas” cobradas e dadas

pelo cantor, podemos observar dentro de sua obra – e aqui nos limitaremos ao CD

Clandestino (1998)47 – processos considerados por nós de subversão dos meios de

comunicação. O artista que profere frases como “Quando escrevo sou como um sampler que

vê o que passa ao seu redor [...]” 48 tensiona desde o início seu contrato com a Virgin sem que,

no entanto, deixe de pertencer a ela e constantemente faz uso dos meios de comunicação para

divulgar seu projeto contra-hegemônico.

No capítulo anterior, analisamos a faixa cinco do CD Clandestino (1998) “Mentira”,

com destaque para as inserções retiradas de meios de comunicação como o rádio, a TV e o

cinema; e expressamos exemplos de como Manu Chao promove uma humanização da

tecnologia nos apresentando a canção como crônica. Sua linguagem está atrelada ao cotidiano

cuja história ela ajuda a criar, contar e, principalmente, estimula uma crítica consciente

através da interpretação que os diversos ouvintes podem propor sobre suas letras.

A faixa número seis “Lagrimas de Oro”–crônica da imigração – está regada pelo ritmo

mariachi (música e dança populares mexicanos, procedentes do Estado de Jalisco)49. A canção

tem como fundo uma narração em português. Trata-se de uma partida de futebol no Brasil em

que joga um dos maiores times do país em número de torcedores, o Flamengo.

Manu Chao sempre confessa seu gosto pelo futebol e inclusive escreveu uma canção

para o jogador argentino Diego Maradona por quem demonstra profunda admiração. Mas

longe de qualquer alienação – a canção chamada “Santa Maradona” também fala de brigas

dentro dos estágios e de racismo – podemos encontrar na internet fotos do cantor vestindo o

mais variável número de camisas de clubes quanto os mais diversos países por onde ele

passou.

47

Clandestino vendeu em torno de dois milhões de cópias em todo o mundo, quase o mesmo número de vendas se juntarmos todos os álbuns vendidos pela Mano Negra.

48 Manu Chao – Héroe por accidente. Disponível em: < http://www.rebelion.org/hemeroteca/

cultura/manuchao151102.htm>. Acesso em: 4 jul. 2010.

49 Fonte de consulta: Dicionário online da Real Academia Espanhola. Disponível em: <www.rae.es>. Acesso

em: 21 set. 2009.

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Essa menção ao futebol –“outro grande criador de ídolos e paixões populares”

(MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 270), volta nossa atenção para como os meios de

comunicação – principalmente a televisão, já que é o de maior alcance e de mais fácil acesso

hoje em dia – aliada aos interesses do capital, têm usado jogos e mais jogos de futebol para

distrair a sociedade de seus problemas reais. Nas palavras de Manu Chao: “Existe o

desemprego? Dê-lhes futebol. Existem problemas econômicos? Dê-lhes futebol. Existem

desaparecidos políticos? Dê-lhes futebol [...]” (FONT; CABRÉ, 2004, p. 60-61) 50.

Aqui apresentamos a letra de “Lágrimas de Oro”:

Tú no tienes la culpa mi amor Que el mundo sea tan feo Tú no tienes la culpa mi amor De tanto tiroteo Va por la calle llorando

Lágrimas de oro Va por la calle brotando Lágrimas de oro Tú no tienes la culpa mi amor De tanto cachondeo Tú no tienes la culpa mi amor

Vamonos de jaleo Ahí por la calle llorando Lágrimas de oro Ahí por la calle brotando Lágrimas de oro

Llegó el Cancodrilo y Super Chango Y toda la vaina de Maracaibo En este mundo hay mucha confusión Suenan los tambores de la rebelión Suena mi pueblo suena la razón

Suena el guaguancón Baila mi mama Suenan los tambores de la rebelión Suena mi pueblo suena la razón Suena el guaguancon Tú no tienes la culpa mi amor

Lagrimas de oro...

Os intertextos populares como o folclore, o ritmo mariachi, o som dos tambores e do

“guaguancó” (gênero musical popular cubano de canto e dança) 51, redimensionam o sujeito

migrante, pois a letra canta suas penas, devolvendo-lhe a humanidade que os serviços de

50

No original: “¿Hay paro? Denle fútbol. ¿Hay problemas económicos? Denle fútbol.¿Hay desaparecidos

políticos? Denle fútbol [...]”.

51 Fonte de consulta: Dicionário online da Real Academia Espanhola. Disponível em: <www.rae.es>. Acesso

em: 21 set. 2009.

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notícias lhe retiram. Nas notícias eles são apenas números, bandidos, inimigos e corpos sem

nome e sem rosto.

“Lagrimas de Oro” também aborda o tema da “Feira das Mentiras”, um festival

idealizado pelo cantor a partir de um conto escrito e divulgado por ele em seu site

manuchao.net. O conto é perpassado pela ironia e possui como destaques personagens como

“Cancodrilo” e “Super Chango”. Assim como nessa canção, o conto tem como temas centrais

a imigração, a exploração e a busca de “la risa”, o sorriso perdido em meio à confusão e às

mentiras presentes no mundo.

A partir do conto produziu-se então a “Feira das Mentiras” considerada um novo

conceito de festival itinerante em contraposição ao mercantilismo em que caem muitos

festivais. A Feira, descrita por Manu Chao como a celebração da maior das mentiras–a

chegada do ano 2000 e o anúncio do fim do milênio – foi composta por uma semana inteira de

festa em Santiago de Compostela no mês de julho de 1998 e reuniu as mais diversas

manifestações artísticas e esportivas. Nela Manu Chao sobe ao palco e canta as canções de

Clandestino.

Na canção “Lágrimas de Oro” o cantor consegue mesclar diferentes níveis do popular

como a alegria de uma partida de futebol e o ritmo dos mariachis à tristeza e a desilusão

sentida pelos imigrantes que passam suas vidas buscando um lugar melhor para viver.

Observando as composições de Manu Chao citamos Néstor García Canclini, que diz que “em

toda fronteira há arames rígidos e arames caídos” (GARCÍA CANCLINI, 2008, p. 349).

Localizamos o papel da cultura – e aqui destacamos o da canção – como expressão simbólica

para sustentar uma demanda quando as vias políticas se fecham. Manu Chao se transporta a

todo momento através desses arames para cumprir seu papel público de atuação intelectual.

Ao final da canção – e aqui se interrompe o ritmo mariachi e a narração de futebol –

escutamos dois fragmentos de diálogos. No primeiro conversam duas mulheres, que em tom

político e reivindicatório, mencionam o quão rápida é a vida e o quanto elas são fortes diante

de suas dificuldades. O segundo diálogo é uma ameaça entre dois homens, que após pesquisas

descobrimos que se trata também de um fragmento do filme mexicano “Hermelinda Linda”

(1984)52, dirigido por Julio Aldama – o mesmo de onde o cantor extraiu o diálogo que foi

inserido no final da canção “Mentira” e que aparece em “Welcome to Tijuana”, canção que

veremos mais à frente.

52

Para outra percepção da presença desse filme em outras canções ver a análise da canção “Mentira”: Capítulo 1, p. 33.

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A ameaça no filme se trata de um trote passado pela bruxa Hermelinda a um político

corrupto da cidade que ameaça uma desocupação na área onde ela e outros “pepenadores” –

catadores de lixo – vivem.

Ouça! cacique descontinuado

Esta é a segunda advertência que lhe fazemos. Se não deixar em paz os catadores de lixo algo grave pode acontecer contigo. Mas, quem demônios está falando?

53

Novamente o México aparece mencionado em uma canção que utiliza o cinema para

anunciar problemas vividos tanto pelo povo mexicano, quanto por habitantes mais humildes

de outros países. O filme “Hermelinda Linda” (1984) tece uma profunda crítica social, aliando

a ironia e a paródia para tratar de temas como a corrupção, a violência contra a mulher, a

exploração dos pobres, o problema da moradia, a vaidade, etc.

A presença da cultura da América Latina, em especial do Brasil e do México, serão

temas constantes no álbum Clandestino (1998; como já enfatizamos, porém uma prova ainda

mais explícita disso é a faixa de número 10 “Welcome to Tijuana”.

Welcome to Tijuana Tekila, sexo y marihuana Welcome to Tijuana

Con el coyote no hay aduana Bienvenida a Tijuana Bienvenida mi amor De noche a la mañana Bienvenido a Tijuana...

Bienvenida mi suerte A mi me gusta el verte Bienvenida a Tijuana Bienvenida a Tijuana Bienvenida mi amor De noche a la mañana

Bienvenida mi amor Bienvenida a Tijuana Bienvenida tu pena Bienvenida la cena Sopita de camaron... Bienvenida a Tijuana

Bienvenida mi suerte Bienvenida la muerte Por la Panamericana Welcome to Tijuana Tekila, sexo y marihuana

53

No original: ¡Oiga!/ cacique descontinuado... Esta es la segunda advertencia que le hacemos. Si no deja en paz a los pepenadores algo grave puede sucederle/ Pero, ¿quién demónios habla?

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Welcome to Tijuana Con el coyote no hay aduana...

Nesta canção, nos são apresentados os contrastes de Tijuana, uma cidade Mexicana

que faz fronteira com os Estados Unidos. Conhecida pelos americanos como o lugar onde

tudo é permitido “Tekila, Sexo y Marihuana” e pelos mexicanos como um ponto de grandes

oportunidades econômicas, mas também de alta criminalidade e de precariedade nos serviços

públicos. A alternância entre o inglês e o espanhol na letra da canção também expressam a

situação fronteiriça da cidade. Ao estudar esta vida fronteiriça e os conflitos interculturais do

lado mexicano, Néstor García Ganclini (2008) assim descreve a cidade de Tijuana

Desde o princípio do século até quinze anos atrás, Tijuana era conhecida por um cassino (fechado no governo de Cárdenas), por cabarés, dancing halls, liquor stores, onde os norte-americanos chegavam para ludibriar as proibições sexuais, de jogos de azar e de bebidas alcoólicas de seu país. A instalação recente de fábricas, hotéis modernos, centros culturais e o acesso a uma ampla informação internacional tornaram-na uma cidade moderna e contraditória, cosmopolita e com uma forte

definição própria (GARCÍA CANCLINI, 2008, p. 318).

Mas mantendo nosso foco no que se refere ao aproveitamento dos meios de

comunicação dentro das canções do álbum Clandestino, observamos em “Welcome to

Tijuana” novamente a aparição do cinema em forma de fragmentos do filme mexicano

“Hermelinda Linda” de 1984 que perpassam agora toda a canção, do início ao fim. O título do

filme é pronunciado aos dezenove segundos da canção e alguns de seus diálogos

entrecortados de diferentes partes do filme são inseridos ao final da mesma. Outra inserção de

grande importância que inicia e finaliza essa faixa de Clandestino consiste em partes do texto

do Manifesto Zapatista proferida pelo já citado Subcomandante Marcos – cuja foto e

dedicatória, por sua vez, aparecem no encarte54 do CD.

Abrimos aqui um parêntese para tratar dessa dedicatória: Considerando o encarte

como o lugar do CD direcionado, entre outros, ao texto escrito, ou seja, às letras das canções,

refletimos junto a Gérard Genette, que em Paratextos editoriais, obra de 1987, recorre a

Philippe Lejeune para definir o paratexto55 como “franja do texto impresso que, na realidade,

comanda toda a leitura” (GENETTE, 2009, p. 10). Genette considera essa franja não apenas

como zona de transição, mas também de transação entre o texto e o extratexto. O paratexto

então é um meio que possibilita esse momento de negociação do autor com seu leitor, não

54

Não esgotaremos, porém, todas as informações encontradas em tal encarte.

55 Fazem parte do paratexto do texto literário: apresentação, editorial, nome do autor, títulos, dedicatórias,

epígrafes, prefácios, notas, entrevistas e debates sobre o livro, confidências mais ou menos calculadas, e outros avisos de quarta capa.

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permitindo que o texto se apresente completamente nu a seu público. Um dos elementos que o

compõem é a dedicatória e Genette (2009, p. 109, grifo nosso) assim a define:

A palavra dedicatória designa duas práticas evidentemente aparentadas, mas que é importante diferenciar. Ambas consistem em prestar uma homenagem numa obra a uma pessoa, a um grupo real ou ideal, ou a alguma entidade de outro tipo. No entanto, uma diz respeito a doação ou venda efetiva; a outra diz respeito à realidade ideal da própria obra, cuja posse (e portanto cessão, gratuita ou não) só pode ser

evidentemente simbólica.

Refletindo sobre as origens clássicas da dedicatória de obra, Genette a menciona como

homenagem remunerada e bajuladora a um protetor e/ou benfeitor, o que desaparece à partir

do século XIX, em que seu destinatário passa então a ser um confrade, um mestre ou um

inspirador. No encarte de Clandestino as dedicatórias são para entidades coletivas e para

pessoas, “inspiradores”, com quem o cantor possui uma relação pessoal, intelectual, artística

ou política. São elas: em primeiro lugar, ao Exército Zapatista de Libertação Nacional

(EZLN- México), à Caravane des Quarties (França), ao movimento galego Galizia Bravu à

sua família, e à Anouk Khelifa, quem canta e compõe a letra de “Je ne t’aime plus”.

Manu Chao alia as duas práticas da dedicatória apontadas na citação de Genette

quando direciona parte das vendas do álbum Clandestino ao EZLN. Genette afirma que

ninguém é obrigado a ler um prefácio, mesmo que isso não seja sempre bem-vindo para o

autor. Também ninguém é obrigado a ler as participações ou as dedicatórias no encarte dos

Cd´s, mas sabemos que essas são dirigidas a alguns ouvintes, aqueles que estão atentos à obra

e que possuem a consciência de que os paratextos ali presentes podem trazer informações

adicionais ou até mesmo esclarecer alguma dúvida. A ordem, primeiro escutar o CD e depois

ler o encarte ou vice-versa e, até mesmo de fazer os dois ao mesmo tempo fica a cargo do

ouvinte.

Continuando nossa reflexão sobre a canção “Welcome to Tijuana”, vejamos abaixo

parte do Manifesto Zapatista inserido ao final da mesma:

Nossa luta é pelo respeito ao nosso direito a governar e governar-nos, e o mau governo impõe à maioria a lei de uma minoria.

Nossa luta é pela liberdade para o pensamento e o caminhar, e o mau governo constrói prisões e tumbas. Nossa luta é pela justiça, e o mau governo se enche de criminosos e assassinos. Teto, terra, trabalho, pão, saúde, educação, independência, democracia, liberdade [...] Estas foram nossas demandas na longa noite dos 500 anos. Estas são hoje nossas exigências.

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Irmãos e irmãs de outras raças e outras línguas [...] a aquele cuja mão se aproxime este manifesto que o faça passar a todos os homens desses povoados.

56

Observaremos que a percepção do artista está, em grande medida, em dar a situação do

México um lugar central, isso é o que podemos confirmar também ao ler as dedicatórias.

Manu Chao passeia pelo cinema mexicano de 1984 representado aqui pelo filme “Hermelinda

Linda” e também pelo levantamento do EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional)

em 1º de janeiro de 1994, que foi a público neste mesmo ano se posicionando contra, entre

outros, à formação da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) por entender que esta

transformaria toda a América Latina em uma extensão dos interesses imperialistas norte-

americanos.

O cantor sempre afirmou seu apoio às forças revolucionárias mexicanas divulgando

seus ideais e manifestos através de suas canções, de seus shows e de seu site. Aqui

encontramos a maior de todas as fontes de aproveitamento dos meios de comunicação para

divulgação do cantor: a internet. Em entrevista publicada em fevereiro de 2011 no site do O

Estado de São Paulo encontramos o atual comportamento e pensamento do cantor sobre a

gravação e a distribuição de sua produção musical que hoje se realiza através do site do cantor

e da Because Music – uma gravadora independente com sede na França:

Manu não quer mais gravar discos ou álbuns conceituais, afirma. Não tem vontade. No máximo, fará um combo de duas ou três músicas relacionadas entre si. Conta que fica satisfeito em ver as canções novas que toca por aí, nos bares, ganharem o mundo pela internet. [...]

"Minha proposta sempre foi esta: um tipo de pacto entre o público e o artista. Que o

público faça o esforço de comprar o CD ou qualquer matéria que o artista comercialize. Mas que o artista também faça o esforço, quando tiver todo seu investimento recuperado, de ter dado de comer à sua família, de dizer: está bom, então agora é de graça. É uma utopia que estou realizando ao meu nível".

"Há alguns anos, a gente fazia shows para vender CDs. Agora, a gente faz CDs para

fazer shows. Daqui a pouco vai ser muito difícil viver de qualquer coisa gravada. Eu vendo até o ponto em que recupero o investimento. Lancei na França o disco Siberie M’Etait Contée (algo como "Se a Sibéria me fora contada"), 150 mil cópias apenas, com um livro de um artista gráfico polonês chamado Wozniak. Agora, a gente já

recuperou os gastos do CD e do livro, e o disco pode ser baixado de graça na minha página. [...] De qualquer modo, é muito apaixonante o que está acontecendo. Tudo

56

No original: “Nuestra lucha es por el respeto a nuestro derecho a gobernar y gobernarnos, y el mal gobierno impone a los más la ley de los menos. Nuestra lucha es por la libertad para el pensamiento y el caminar, y el mal gobierno pone cárceles y tumbas. Nuestra lucha es por la justicia, y el mal gobierno se llena de criminales y asesinos. Techo, tierra, trabajo, pan, salud, educación, independencia, democracia, libertad [...] Estas fueron nuestras demandas en la larga noche de los 500 años. Estas son, hoy, nuestras exigencias. Hermanos y hermanas

de otras razas y otras lenguas [...] a aquel a cuya mano se acerque este manifiesto que lo haga pasar a todos los hombres de esos pueblos”. Disponível em: <http://www.nodo50.org/pchiapas/chiapas/documentos/selva.htm >. Acesso em: 21 jun. 2009.

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está mudando, todo o copyright da música, e da imprensa também, e nós estamos no meio do processo."

57

E no final da entrevista encontramos a seguinte informação:

MANU CHAO. Vila dos Ipês. Av. Mofarrej, 1.505, V. Nova Leopoldina, tel. 3835-8198. Hoje, 22h30, R$ 100 [grifo nosso].

Centro Cultural Ruth Cardoso. Av. Dep. Emílio Carlos, 3.641, V. Nova

Cachoeirinha. Dia 13, 15 h, grátis [grifo nosso].

Os depoimentos acima nos apresentam um artista totalmente consciente da prática

utópica que realiza “ao seu nível”, por exemplo, realizando shows pagos e gratuitos e

oferecendo seu som ao maior número de espectadores possível, mas não podemos esperar que

outros possam ou façam o mesmo. O site manuchao.net disponibiliza a partir de 2011 uma

loja virtual onde o público pode adquirir CD´s, vinis, DVD´s e camisetas. Os preços variam e

alguns são disponíveis para baixar gratuitamente como o CD e o livro “Siberie M’Etait

Contée” em formato pdf, o CD “Viva la colifata” – produzido pelo cantor e gravado junto aos

internos do hospital psiquiátrico José Tibúrcio Borda (Buenos Aires–Argentina), proteções de

tela para computador e textos escritos pelo cantor.

Além de seus trabalhos próprios, o site do cantor também expõe a produção de artistas

plásticos através do link “Expo”. Em “La Radiolina” e “Tevelina” encontramos vídeos e

músicas de outros cantores ou grupos, de várias partes do globo, que se encontraram com

Manu Chao durante suas viagens e hoje são produzidos por ele. É o caso do casal Amadou e

Mariam (Mali) e dos músicos Akli d. (Argélia) e Tonino Carotone (Itália).

Retomando nossa reflexão sobre o uso da internet, podemos observar no trabalho de

Manu Chao a existência de um comportamento otimista de uso da tecnologia apontado por

Sergio Bellei em já mencionado capítulo “Questões de tecnologia, política e poder” segundo o

qual “Tecnologia significa, mais do que nunca, progresso puro e simples, seja em termos de

conforto e produtividade individuais, seja em termos de uma vida social mais democrática,

participativa e igualitária” (BELLEI, 2002, p. 127).

Mas apoiados nos depoimentos do cantor, podemos apontar também algumas

modificações nas relações: meios de comunicação/ artista/ público no que tange a uma

redistribuição de poder. Com o uso da internet e dos arquivos em MP3 o público pode ter

acesso gratuito a qualquer gravação musical, colocando a venda de CD´s em xeque. A solução

57

Manu Chao e o boteco sônico. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/estadao dehoje/20110209/not_imp676939,0.php>. Acesso em: 10 fev. 2011.

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apontada foi a divulgação eletrônica – cobrando ou não por isso – para daí vender shows de

onde pode sair a maior parte da renda dos artistas de hoje já que, segundo o cantor: “Daqui a

pouco vai ser muito difícil viver de qualquer coisa gravada”.

E num trabalho tão amplo e diverso não podemos passar sem as críticas. Além do

questionamento já apresentado – que o cantor enfrentou ao assinar contrato com uma

gravadora multinacional – nos deparamos com títulos de reportagens como “Em novo álbum,

Manu Chao continua interessante, mas chega ao limite criativo” publicada no site do jornal

Folha de São Paulo em 2007 quando Manu Chao lança seu novo álbum “La Radiolina”.

Como já estávamos atentos à produção do cantor, fomos percebendo então, mediante a

escuta de suas produções desde os Hot Pants, uma certa “repetição” que nos instigou alguns

questionamentos que resolvemos aprofundar e investigar um pouco mais.

2.3 “¿Qué pasó? ¿Qué pasó?” – O uso da repetição como constante chamada de atenção

No início de seus shows e na letra de algumas canções, Manu Chao insere duas frases,

que para nós são de extrema importância, são elas: ¿Qué pasó? ¿Qué pasó? e ¿Por qué será?

Consideramos um apelo à atenção do público essa atitude de iniciar uma apresentação ao vivo

ou uma canção com um questionamento.

Apesar de nosso foco principal ser o álbum Clandestino (1998), não pudemos deixar

de prestar atenção durante nossa pesquisa que, por diversas vezes o cantor fora criticado por

se repetir muito após a produção desse primeiro CD solo. Umberto Eco escreve que: “(…)

uma das características do produto de consumo é que êle nos diverte não por revelar-nos algo

de nôvo, mas por repetir-nos o que já sabíamos, o que esperávamos ansiosamente ouvir

repetir e é o que únicamente nos diverte” (ECO, 1970, p. 298).

Mas quando essa característica extrapola a canção de consumo – aquela que é

produzida de maneira desenfreada e sem muita reflexão –, ela se transforma em grave defeito

do artista intelectual que aí se repete por ter esgotado seu gênio criativo, indicando a falência

de seu trabalho artístico.

Nossa hipótese aqui é que tanto essa repetição de canções, quanto de algumas

perguntas dirigidas ao público funcionam como um ato de permanente protesto e servem para

anunciar o projeto do artista, projeto este que busca apresentar, questionar e criticar as tensões

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por que passam milhares de cidadãos mundo afora, mas que também espelham a própria

produção do artista. Exemplificaremos nosso pensamento a partir de depoimentos dados pelo

próprio cantor. Segundo Manu Chao,

As pessoas vivem dizendo que sou repetitivo, porque faço menções e uso referências de músicas do passado. Mas não acho essa crítica pertinente. Primeiro porque não

me sinto obrigado a me dobrar diante dessa "ditadura do novo". Minhas canções que têm continuidade seguem uma idéia que vai além dos discos.

58

Manu gosta de desmitificar o processo de criação: “As canções são bichinhos que se reproduzem. A mesma música pode te servir para duas ou mais canções, não entendo que me recriminem por isso”. Se reconhece o rei da reciclagem: “Vou

provando idéias ao longo dos anos. Um tema que estava no disco de Amadou e Mariam (músicos cegos de Mali que Manu produziu em 2004) reaparece em La Radiolina. Existem canções como El hoyo que ficam séculos rodando pela internet. Igual a The Bleedin Clown, que vem dos princípios da Mano Negra”.

59

Aqui está expresso um projeto que, desde o nosso primeiro capítulo, já havíamos

demonstrado estar muito além da gravação de discos. Quando assistimos a um show de Manu

Chao ao vivo – que é considerado excepcional pela maioria dos críticos – percebemos que

além de canções que trazem questionamentos, o cantor também conversa de certa maneira

com o público através de gestos e perguntas que nos fazem refletir. Perguntas como: “O que

aconteceu ou o que está acontecendo pelas ruas do mundo ou do lugar onde você se encontra

agora?” não faltam em suas apresentações. E logo depois desse momento, o cantor dita um

coro: “Próxima estación...esperanza”, não uma esperança que vem de uma atitude passiva,

mas um sentimento provocado por reflexões e, principalmente, por ações.

Dentro do CD, algumas repetições que fazem referência ao tema da imigração, da

viagem e da clandestinidade podem ser observadas em “Clandestino” (faixa 1) que relata a

situação de ilegalidade em que se encontram os que vivem “sin papeles”, sozinhos, burlando a

lei às vezes involuntariamente pela falta de documentos e perdidos em um lugar

desconhecido. Em “Desaparecido” (faixa 2) temos uma canção autobiográfica que

redimensiona e relata a adicção às viagens. “Bongo Bong” (faixa 3) é a história de um rei sem

coroa, o rei do bongô que vai da selva para cidade, lugar onde percebe que seus

58

Manu Chao se entusiasma com ebulição social na Venezuela. Disponível em: <http://www.manuchao.net/news/folha-online-brasil/index.php>. Acesso em: 2 jun. 2009.

59 No original: A Manu le gusta desmitificar el proceso de creación: "Las canciones son bichitos que se

reproducen. La misma música te puede servir para dos o más canciones, no entiendo que se me recrimine por eso". Se reconoce el rey del reciclaje: "Voy probando ideas a lo largo de los años. Un tema que estaba en el disco de Amadou et Mariam [músicos ciegos de Mali a los que Manu produjo en 2004] reaparece en La radiolina. Hay

canciones como El hoyo que llevan siglos rodando por Internet. Igual que The bleedin Clown, que viene de los principios de Mano Negra". Disponível em: <http://www.perspectivaciudadana.com/contenido. php?itemid=16744>. Acesso em: 27 jun. 2010.

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conhecimentos não têm nenhum valor, novamente aqui, o tema da imigração e da viagem.

“Welcome to Tijuana” (faixa 10) retoma as características de uma cidade fronteiriça e “El

Viento” (faixa16) constata como às vezes o homem, assim como o vento se desloca pelas

fronteiras não sabendo o que o futuro lhe reserva mais adiante e nem quando regressará a sua

cidade natal.

“Luna y Sol”, (faixa 8 do CD), retoma a letra de “Mentira” (faixa 5) e nos mostra

como Manu Chao apresenta a repetição como um constante processo de reciclagem, fugindo

assim à obrigação do novo exigido pelo mercado de consumo e distanciando-se do raso

aspecto de mercadoria. No meio dessa reciclagem surgem algumas variações através de

frases, tais como: “Esperando a última onda” (Ultima Onda – deusa do fim do mundo descrita

por Manu Chao em “La Feria de las Mentiras – cuento en portuñol”) e “Acima a lua.”, além

das perguntas “Quando será?” e “Por onde sairá o sol?”.

Todas as frases acima provocam uma sensação de expectativa e também de esperança

em relação ao futuro. Vejamos as letras de “Mentira” e “Luna y Sol”:

MENTIRA…

Mentira lo que dice Mentira lo que da Mentira lo que hace Mentira lo que va Mentira la mentira

Mentira la verdad Mentira lo que cuece Bajo la oscuridad Mentira el amor Mentira el sabor Mentira la que manda

Mentira comanda Mentira la tristeza Cuando empieza Mentira no se va Mentira, Mentira

La mentira... Mentira no se borra Mentira no se olvida Mentira, la mentira Mentira cuando llega

Mentira nunca se va Mentira la mentira Mentira la verdad… Todo es mentira en este mundo Todo es mentira la verdad

Todo es mentira yo me digo Todo es mentira

LUNA Y SOL

Todo es mentira en este mundo

Todo es mentira la verdad Todo es mentira yo me digo

Todo es mentira ...¿Porqué será?... Esperando la ultima ola... Esperando la ultima rola... …Arriba la luna Ohea... Mentira lo que dice

Mentira lo que va Mentira lo que cuece Bajo la oscuridad... ...Arriba la luna Ohea... Todo es mentira en este mundo Todo es mentira la verdad

Todo es mentira yo me digo ¿Todo es mentira? ¿Porqué será? Mentira la mentira Mentira la verdad Mentira lo que cuece

Bajo la oscuridad... Buscando un ideal Buscando un ideal ¿Cuándo será? ¿Cuándo será?

¿Por dónde saldrá el sol? (grifo nosso)

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¿Porque será?

O ritmo eletrônico anuncia um clima de festa; e os mariachis, um caminho de busca

que deve ser feita sempre de cabeça erguida, representada pelo ato de olhar pra cima para ver

a lua “Arriba la luna”. A mensagem final novamente procede das montanhas de Chiapas com

a introdução de parte do Manifesto do EZLN que aparece nessa faixa e também em “Por el

suelo (faixa 9)” e “Welcome to Tijuana (faixa 10)”.

Nós nascemos da noite. Nela vivemos. Morreremos nela. Mas a luz será manhã para

os demais, para todos aqueles que hoje choram a noite, para quem se nega o dia [...]. Para todos a luz. Para todos, tudo. [...] para nós a dignidade insurreta, para nós o futuro negado, para nós, nada. Reforma, Liberdade, Justiça e Lei. General do Exército Libertador do Sul Emiliano Zapata. Manifesto zapatista em náhuatl.

60

O álbum Clandestino é permeado por manifestações e ritmos que nos dão a sensação

de desânimo e desalento, mas uma próxima faixa – lembrando que não há intervalo entre elas

– sempre pode nos surpreender por sua alegria.

Assim também são os shows do cantor, acompanhado ou não por sua banda Radio

Bemba. O reggae pode estar sendo tocado solto e relaxante, mas de repente escutamos a frase

“¡Sube!”, e os ritmos passeiam entre o ska, a rumba, a salsa, o rock, não havendo quem não se

excite e gaste até a última energia que sobra dentro de seu corpo.

Além da repetição, outra característica que percorre a obra do artista e que moveu um

dos questionamentos de nossa pesquisa foi a de como um cantor europeu poder ser, pelo

menos para nós, tão representativo e tão identificado com a realidade latino-americana?

O primeiro motivo é expresso por ele em diversas entrevistas. Além do contato com

artistas latino-americanos desde sua infância, as viagens que realizou pela América Latina

logo após o fim da Mano Negra despertaram nele um sentimento de admiração pelo povo –

sempre otimista diante de suas dificuldades – e pela cultura, que aponta milhares de países

diferentes dentro de um só, como por exemplo, o Brasil.

Constatamos que a maior das iluminações sobre o fato se deve mesmo ao seu estudo e

envolvimento constante, declarado e legitimado em diversas discussões e ações que envolvem

a América Latina. Suas canções possuem um caráter aberto, suas letras falam de um

60

No original: “Nosotros nacimos de la noche. En ella vivimos. Moriremos en ella. Pero la luz será mañana para los más, para todos aquellos que hoy lloran la noche, para quienes se niega el dia [...]Para todos la luz. Para todos todo. [...]para nosotros la dignidad insurrecta, para nosotros el futuro negado, para nosotros nada. Reforma,

Libertad, Justicia y Ley. El General en Jefe del Ejército Libertador del Sur Emiliano Zapata. Manifiesto zapatista en náhuatl”. Disponível em: <http://www.nodo50.org/pchiapas/chiapas/documentos/selva.htm>. Acesso em: 21 jun. 2009.

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imaginário compartilhado e seu projeto serve também para dar visibilidade a causas,

geralmente humanitárias, que necessitam de apoio.

Numa reflexão sobre a cultura do rap, o ensaísta e letrista Francisco Bosco cita o título

de uma canção do grupo Racionais MC’s: “O fato de que um gênero de origem estrangeira

possa ser plenamente realizado, isto é, possa atingir seu sentido pleno numa outra cultura

significa necessariamente uma adequação entre forma e lugar. Em outras palavras: ‘Periferia

é periferia (em qualquer lugar)’” (BOSCO, 2007, p. 79 – grifo nosso).

E na continuação diz que “Em um mundo globalizado, os problemas do capitalismo

são semelhantes nas diversas periferias do mundo [...] (BOSCO, 2007, p. 80)”. Antônio

Candido nos diz que “na América Latina o problema dos públicos provêm culturalmente de

metrópoles que ainda hoje têm áreas subdesenvolvidas (Espanha e Portugal)” (CANDIDO,

2006, p. 173), ou seja, nós latino-americanos fomos colonizados pela então chamada

“periferia da Europa”. Estendendo um pouco mais nossa reflexão no âmbito da canção

encontramos também na letra da canção “Miséria” do grupo brasileiro Titãs o seguinte verso:

“miséria é miséria em qualquer canto [...]” 61; e então podemos perceber o possível por que da

impressão de identificação entre periferias percebidas e denunciadas pelo cantor.

Acreditamos que como em suas produções e em seu laboratório de criação, aliado ao

projeto musical também está um projeto social muito amplo, fazendo com que essa repetição

se torne além de válida, muito necessária. Nestor García Canclini afirma: “Mas em todo

laboratório manter vivas certas perguntas, ou experimentar formas diferentes de fazê-las, pode

ter ao menos o valor de mantê-las vivas” (GARCÍA CANCLINI, 2008, p. 114), ou seja, certas

questões necessitam ser repetidas para não serem esquecidas.

Numa perspectiva hegemônica, o olhar de Manu Chao pode parecer um olhar utópico

que não levará a nada, mas não podemos deixar de mencionar que o cantor teve um show

cancelado no México por causa de pressão política. Segundo matéria publicada no site da

Revista Rolling Stone em abril de 2009, “Por ter se referido a um episódio ocorrido em São

Salvador Atenco (município próximo à Cidade do México), em 2006, como ‘terrorismo de

Estado’, o artista virou alvo de investigação por parte de autoridades locais”.62 Resumindo, a

atitude punk que visa, nos projetos polêmicos do cantor, espetar e incomodar reforçam sua

atuação intelectual.

61

No CD Õ Blesq Blom (WEA, 1989).

62 “Manu Chao pode ser deportado do México”. Disponível em: <http://www.rollingstone.com.br/secoes/novas

/noticias/4962/>. Acesso em: 21 set. 2009.

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Mas, como chegar a ser ouvido pelo mundo, por um público tão diverso, às vezes

possuidor das mesmas questões sociais, mas que enfrenta barreiras como a língua, a diferença

econômica, etc.?

Acreditamos que a solução encontrada pelo cantor foi, por sua vez, a da mescla. Este

conceito que o acompanhou desde criança, serviu para nortear sua vida e sua música,

rompendo qualquer fronteira de comunicação e justificando o emblema World Music, que

apesar de funcionar como uma catalogação midiática possui um tom altamente verdadeiro ao

falarmos de Manu Chao.

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3 HIBRIDISMO NA MÚSICA E NAS LETRAS

A meados da década de 60 surge o conceito de Soundscape cunhado pelo compositor

canadense R. Murray Schafer. A paisagem sonora, segundo Schafer, seria então: “o ambiente

sonoro. Tecnicamente, qualquer porção do ambiente sonoro vista como um campo de

estudos”.63 As paisagens sonoras retrataram um sujeito que ouve e registra/grava eventos

sonoros que acontecem a sua volta.

As colagens, costumeiramente relacionadas às artes plásticas, proliferaram também na

música. Tal procedimento já podia ser observado em grupos como os Beatles em “Revolution

9” The Beatles (1968) e Pink Floyd “Several Species of Small Furry Animals Gathered

Together in a Cave and Grooving with a Pict” Ummagumma (1969) estruturados por uma

justaposição de sons aparentemente caótica. No decorrer de nossa pesquisa, percebemos uma

aproximação a tais conceitos a partir da análise das canções de Manu Chao.

Iniciaremos as discussões deste capítulo, observando e conceituando o hibridismo

presente em tais obras. Ao compor – por junto, combinar, colocar lado a lado –, Manu Chao

mescla diferentes tradições culturais. Para pensar nestas questões lançaremos mão do conceito

de hibridismo expresso por García Canclini em Culturas híbridas: estratégias para entrar e

sair da modernidade (2008) quem aponta que a cultura é hoje “um processo de montagem

multinacional, uma articulação flexível de partes, uma colagem de traços que qualquer

cidadão de qualquer país, religião e ideologia pode ler e utilizar” (GARCÍA CANCLINI,

2008, p. 32).

Destacando a música como um dos principais produtos da cultura em que se dão essas

apropriações, conexões e mesclas, pensaremos também junto a Herom Vargas e seu livro

Hibridismos musicais de Chico Science & Nação Zumbi (2007), que trabalha com o mesmo

conceito de García Canclini para analizar as canções do grupo musical pernambucano, não

perdendo de vista que já o conceito de hibridismo também se encontra atravessado por termos

como mescla, mistura e fusão, este último utilizado na música.

63

TOFFOLO, Rael B. Gimenes; OLIVEIRA, Luis Felipe. “Paisagem Sonora: uma proposta de análise. Disponível em: < http://cogprints.org/3000/1/TOFFOLO_OLIVEIRA_ZAMPRA2003.pdf>. Acesso em: 2 mar. 2010.

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Apesar de Clandestino expressar um afastamento do rock, o ideal punk – músicas

simples em execução, mas com temas sociais importantes – continua permeando este e todos

os outros álbuns do cantor. Em uma análise geral, encontramos também, sempre presente o

plus de bruit, o barulho provocador característico do punk. As canções do álbum não são

limpas, a “sujeira” ou o barulho são escutados sem interrupção e dentro deste alguns sons

tanto podem ser reconhecidos e analisáveis, como expressar incômodos eletrônicos que

quebram com qualquer tipo de escuta passiva.

O álbum Clandestino nos comprova que o estilo híbrido do cantor encontrou lugar

fértil na América Latina – território de instabilidades e espaço de contato. A riqueza rítmica, o

folclore (como exemplificado em nosso primeiro capítulo, através da canção “La llorona”) e a

língua são retratados com o uso da tecnologia, através do sampler e da mesa portátil que

proporcionaram condições instrumentais para as criativas combinações desenvolvidas por ele.

Confirmando a atitude de intelectual cosmopolita, Manu Chao faz deste álbum um mix

não só de ritmos, mas também de línguas. Aqui escutamos canções em: espanhol, inglês ,

francês e portuñol. Em “Mama Call” (faixa 7) escutamos ora o inglês, ora o espanhol. Em

“Welcome to Tijuana” (faixa 10) escutamos o inglês do título que também faz parte do refrão

e o restante da letra em espanhol. Mas é em “Minha galera” (faixa 14) que o artista chega ao

ápice de sua experimentação linguística e compõe em uma mescla de português e espanhol,

passando por neologismos característicos de um falante não nativo de uma delas.

O uso do portuñol, uma “língua” híbrida, sem identidade fixa, mas representante de

várias realidades culturais e que carrega em sua gênese a característica de ser a língua dos

deslocados, dos vadios, da marginalidade marca essa atitude sempre provocante e

questionadora do intelectual em questão.

3.1 “La Patchanka”

Ao descrever o estilo do grupo Mano Negra, Robecchi (2002, p. 19) diz:

Os encontramos em Nova York sob a etiqueta World Music/França, mas não nos surpreendamos se em Barcelona os colocam nas estantes de Rock Espanhol, ou se aparecem também procurando em Variedade Francesa na FNAC, ou em lugares

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mais tacanhos ainda, sob a voz Punk ou Reggae. Tampouco esta mestiçagem é casual em absoluto. Se já a vida é mestiça em si, figuremos a música.

64

Dentro das produções da Mano Negra encontramos um recurso de composição

denominado mestiçagem. Segundo o biógrafo Alessandro Robecchi: “A mestiçagem das

músicas deriva da mestiçagem daquele que as toca [...] (ROBECCHI, 2002, p. 81), ou seja, a

formação étnica do grupo já revela suas origens mestiças e estas, por sua vez, são transferidas

para suas composições. A “Patchanka” se torna então uma marca nas composições de Manu

Chao. Lançado em 1988 o álbum Patchanka foi o responsável por atrair os olhares das

grandes casas discográficas como a Virgin Records para o grupo Mano Negra. A expressão

também apareceu em forma de canção no álbum América Perdida (1991). Nesta, o conteúdo

da letra é uma espécie de apresentação do grupo e uma das frases do refrão diz: “La

Patchanka, is the wild sound” – o som selvagem apresentado por Mano Negra.

O termo “Patchanka” também faz lembrar outro bem parecido da língua espanhola:

Pachanga, que segundo o dicionário da Real Academia Espanhola significa, em seu uso

coloquial, alboroto, fiesta, diversión bulliciosa, ou em português, alvoroço, festa, diversão

barulhenta. Mas a definição que mais se aproxima da análise que estamos desenvolvendo

nessa pesquisa é a que nos apresenta Alessandro Robecchi. Patchanka, “mescla de sons”

(ROBECCHI, 2002, p. 69) ou processo de “[...] dominar alguns gêneros e fazer que

convivam” (ROBECCHI, 2002, p. 71).

Néstor García Canclini em Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da

Modernidade, cuja primeira edição é de 1989, traz em sua quarta edição (2008) – utilizada por

nós em nossa pesquisa – uma introdução à edição de 2001, chamada “As culturas híbridas em

tempos de globalização”. Em tal introdução, García Canclini destaca que o momento em que

mais se estende a análise da hibridação a diversos processos culturais é na década final do

século XX, propondo, nesta nova introdução, valorizar seus usos disseminados e as principais

posições apresentadas.

Logo de início a questão marcada por ele é se “híbrido” seria uma boa ou má palavra

para conceituar um processo, pois, ao ser transferido da biologia, o termo se mostra bastante

64

No original: “Los encontramos en Nueva York bajo la etiqueta World Music/France, pero no nos sorprendamos si en Barcelona los ponen en las estanterías de Rock Español, o si nos aparecen también

rebuscando en Varieté Français en la FNAC, o en sítios más cutres aún bajo la voz Punk o Reggae. Tampoco este mestizaje es casual en absoluto. Si ya la vida es mestiza en si, figurémonos la música”.

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polêmico. Sobre ele encontramos diversas definições, destacando um dos conceitos negativos

do termo, em que o “ser híbrido” estaria ligado à esterilidade.

García Canclini (2008, p. XXII) sustenta então que

[...] o objeto de estudo não é a hibridez, mas, sim, os processos de hibridação. A análise empírica desses processos, articulados com estratégias de reconversão,

demonstra que a hibridação interessa tanto aos setores hegemônicos como aos populares que querem apropriar-se dos benefícios da modernidade.

E observa como os processos de hibridação, que de início simbolizavam esterilidade,

deixam o discurso da pureza cultural e passam a surgir como “resultado imprevisto de

processos migratórios” (GARCÍA CANCLINI, 2008, p. XXII) e também da criatividade

individual e coletiva que pode interessar tanto aos setores hegemônicos quanto aos populares

no que se refere à reconversão de idéias ou funções com o objetivo de apropriar-se e/ou

inserir-se em certas circunstâncias históricas. Retomando também a citação de Néstor García

Canclini e a reflexão sobre a mescla já iniciada no ponto 2.3 de nosso primeiro capítulo,

justificamos que recorreremos sempre ao termo hibridismo para ilustrar tais mesclas,

considerando o CD Clandestino como portador de um processo de composição que “abrange

diversas mesclas interculturais”.

Outra reflexão marcante encontrada nesta “Introdução” trata de distinguir entre as

oportunidades e os limites da hibridação. Segundo o autor, a ameaça que nos dias atuais

substitui o destino folclorizante ou nacionalista da representação cultural é a sedução do

mercado globalista, que visa reduzir a arte a um “discurso de reconciliação planetária”. García

Canclini afirma que “Trata-se, antes, de colocá-los [a cultura e a arte] no campo instável,

conflitivo, da tradução e da ‘traição’” e que “As buscas artísticas são chaves nessas tarefas, se

conseguem ao mesmo tempo ser linguagem e ser vertigem” (GARCÍA CANCLINI, 2008, p.

XXXVIII, grifo nosso).

Acreditamos que esta difícil tarefa de converter a arte em linguagem e vertigem estão

presentes nessa obra labiríntica que é o CD Clandestino. Apesar do entrelaçamento entre as

faixas apontado por nós quando afirmamos que o ideal é escutá-lo de uma só vez e seguir sua

história através das crônicas contadas a cada faixa, também é possível embarcar na vertigem –

essa revolução repentina e passageira dos sentidos – de certas canções e nos perder em seu

labirinto. O disco deixa claro alguns enfoques e representações culturais, mas outros são puras

vertigens que instigam e provocam desconcerto e inquietação no ouvinte. Percebe-se uma

certa ansiedade de Manu Chao em divulgar as crônicas dos lugares por onde passou e de

mostrar ao público pelo menos alguma característica marcante de cada lugar.

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Como já abordado no capítulo 2, a maioria das composições do cantor dentro do CD

Clandestino recorre a uma identificação muito grande com temáticas latino-americanas.

Quando García Canclini aponta que: “O lugar a partir do qual vários milhares de artistas

latino-americanos escrevem, pintam ou compõem músicas já não é a cidade na qual passaram

sua infância, nem tampouco é essa na qual vivem há alguns anos, mas um lugar híbrido, no

qual se cruzam os lugares realmente vividos” (GARCÍA CANCLINI, 2008, p. 327), se faz

necessário relacionar “o lugar híbrido” com uma definição biográfica expressa por Manu

Chao em uma entrevista publicada no site voltaire.org em dezembro de 2006:

Nasci na França, na periferia de Paris. E ali aprendi a cultura francesa, mas na periferia, onde setenta por cento da cultura, pela imigração, é árabe. Então, essa cultura, com relação à música, traz uma mescla que tínhamos no bairro, não era algo de fora. A primeira vez que entrei na África negra foi no meu bairro, na casa dos meus amigos, com as avós, as mães, que esquecem sua origem. Não cresci em uma

realidade já feita, em uma cultura já definida, eram milhares de culturas se mesclando e eu ali (grifo nosso).

65

Dessas viagens dentro de seu bairro o artista opta por viver em estado nômade e passa

a viajar pelo mundo (“esta foi sua universidade”). Também assim nasce Clandestino,

incluindo sons e expressões culturais através de canções que expressam também recordações

de lugares vividos.

Na obra do cantor, o conceito de hibridismo – que ele aponta como essa mescla de

culturas presentes no ambiente em que ele cresceu – perde totalmente a noção de esterilidade

e passa a simbolizar uma infindável produtividade. Os signos que se hibridizam em todas as

canções servem para unificar uma mensagem no sentido de sua própria produção dentro do

gênero canção. Essa pode aparecer de maneiras cada vez mais surpreendentes, seja tomando

corpo de uma narração de jogo de futebol no Brasil, de gravações de programas de rádio e TV

na França ou de discursos políticos proferidos em diversas partes do mundo.

No início de sua carreira musical, Manu Chao – assim como muitos músicos da cena

punk francesa – cantava em estações de metrô, segundo ele por ser uma escola que permite

fazer novos contatos, conhecer e experimentar a variedade de gêneros e tendências, além de

se apresentar para um público ganho de antemão, sem pagar ingressos (ROBECCHI, 2002).

65 No original: “Nací en Francia, en la periferia de París. Y ahí aprendí la cultura francesa, pero en la periferia, donde el 70 por ciento de la cultura, por la inmigración, es árabe. Entonces, esa cultura, a la hora de la música, lleva una mezcla que teníamos en el barrio, no era algo de afuera. La primera vez que entré en África negra fue en mi barrio, en la casa de mis amigos, con las abuelas, las madres, que no olvidan su origen. No crecí en una

realidad ya hecha, en una cultura ya definida, eran miles de culturas mezclándose y yo ahí.” Manu Chao: “Todos tenemos derecho a la felicidad”. Disponível em: <www.voltairenet.org/article144226.>. Acesso em: 30 mar. 2009 – grifo nosso.

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Como já mencionado no ponto 3.2 de nosso capítulo 2, um dos instrumentos utilizados

pelo cantor para sua produção musical é a internet. Apontamos também que atualmente Manu

Chao encontrou na internet uma maneira eficiente de divulgar seu trabalho e atingir o público

sem a necessidade de agentes intermediários.

García Canclini (2008, p. XXXVI), em sua “Introdução”, também a aponta como

facilitador dos processos de hibridação:

A hibridação, de certo modo, tornou-se mais fácil e multiplicou-se quando não depende de tempos longos, da paciência artesanal ou erudita e, sim, da habilidade para gerar hipertextos e rápidas edições audiovisuais ou eletrônicas. Conhecer as inovações de diferentes países e a possibilidade de misturá-las requeria, há dez anos, viagens frequentes, assinaturas de revistas estrangeiras e pagar avultadas contas

telefônicas; agora se trata de renovar periodicamente o equipamento de computador e ter um bom servidor de internet.

O baterista e percussionista Leo Morel, em seu livro Música e tecnologia: um novo

tempo apesar dos perigos (2010), além de trazer várias entrevistas que mostram como

músicos e produtores brasileiros vêm desenvolvendo seus trabalhos aliados às novas

tecnologias que se encontram longe da limitação do vinil, do cassete e até do CD, comenta

como o processo de inovação tecnológica e a tecnologia da música gravada mudou a forma de

se consumir música de modo nunca antes visto. Morel destaca que: “No início do século

passado, ao ouvir uma música gravada, o ouvinte estava apreciando uma performance que

fora executada de uma só vez [...]”(MOREL, 2010, p. 29).

Acreditamos que a ininterrupção entre as faixas de Clandestino e seu processo de

gravação faz parte dessa mudança, pois subverte totalmente o potencial de consumo do disco.

Como, por exemplo, escutar suas canções com independência, se uma faixa é continuação da

outra? Algumas canções como “Clandestino” (faixa 1) podem até possibilitar uma execução

independente, mas isso pressupõe algumas perdas ao ouvinte, porque aos 2:26 já começamos

a escutar a introdução da segunda faixa “Desaparecido”. Então, para reproduzi -la em uma

radio, teríamos que interrompê-la neste momento ou um pouco antes e assim perderíamos sua

“continuação”.

Leo Morel (2010, p. 30) assim se expressa sobre os efeitos da inovação:

Se até o final do século passado grande parte dos insumos necessários para se realizar o registro de uma música era detido principalmente pela empresas produtoras de discos, no cenário atual vemos que o processo de inovação tecnológica fez surgir estúdios de menor porte e até caseiros.

É nesse contexto tecnológico dos anos 90 que Manu Chao inicia sua produção caseira.

A “Patchanka”, como voz que assinala o hibridismo, manifesta-se na forma de compor e

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produzir suas canções e a tecnologia eletrônica lhe possibilita fundar o chamado “Estúdio

Clandestino”:

O “estúdio clandestino”, hoje instalado em Barcelona, mas que em poucas horas pode se deslocar e se montar em qualquer parte do mundo, é a fábrica de Manu, que se torna, assim, dono de seus próprios meios de produção. Esse é o nome com o que Manu batiza sua simples fábrica de sons portátil: já não voltará a se apresentar em um estúdio carregado de cassetes e fitas dispersas, e quilômetros e quilômetros de

gravações piratas, e sim, levará o estúdio consigo e o irá montando na África, Brasil (no Rio) e em muitos outros lugares aos que comparece para procurar sons e fazer peregrinações (ROBECCHI, 2002, p. 228).

66

3.2 Mesclas musicais e interculturais em Clandestino: esperando la ultima ola...

Continuando nossa reflexão sobre como os processos de hibridação se fazem presentes

em algumas canções de Clandestino, se faz necessário retomar algumas já trabalhadas nos

capítulos anteriores. Optaremos agora por fazer um passeio que se iniciará na primeira faixa,

percorrendo e demonstrando um caminho de hibridações considerado por nós de extrema

importância dentro do processo de composição do álbum.67

Clandestino é marcado pela circularidade e pelo minimalismo, apontados por nós

como marcas do gênero punk dentro do álbum. O cantor reforça tal minimalismo ao afirmar

“[...] ao invés de mudar três vezes de ritmo, escrevo três canções” (“[...] en lugar de cambiar

tres veces de ritmo, escribo tres canciones” (ROBECCHI, 2002, p. 245)).

Começamos então pela faixa de número um, “Clandestino”, canção que acaba se

convertendo em manifesto político por tratar de temas como a clandestinidade e a fronteira.

Cantando em primeira pessoa “Solo voy con mi pena/ [...] Yo soy el quiebra ley”

(Sozinho vou com minhas penas/ [...] Eu sou o fora da lei), o cantor assume a voz dessas

pessoas e se comporta como o intelectual interlocutor identificado em nosso primeiro

capítulo, aquele que põe em diálogo as problemáticas mundiais. Já o processo de hibridação

66

No original: “El ‘estudio clandestino’, hoy instalado en Barcelona, pero que en pocas horas puede trasladarse y montarse en cualquier parte del mundo, es la fábrica de Manu, que se vuelve así el dueño de sus propios medios de producción. Ese es el nombre con el que Manu bautiza su sensilla fábrica de sonidos portátil: ya no volverá a presentarse en un estudio cargado de casetes y cintas dispersos y kilómetros y kilómetros de grabaciones pirata, sino que se llevará el estudio consigo e irá montándolo en África, Brasil (en Río) y en muchos lugares más a los

que acude a buscar sonidos y hacer sus peregrinaciones” (ROBECCHI, 2002, p. 228).

67 Procuramos explicitar aqui tudo que nossos ouvidos atentos e nossa pesquisa constante conseguiram apurar,

mas não temos a intenção de esgotar todas as canções do álbum.

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pode ser observado em todo o ambiente sonoro da faixa e se expressa por inserções de vozes e

de sons da rua hibridizados ao ritmo e à letra do início ao fim da mesma.

Sobre a segunda faixa, “Desaparecido”, destacamos a análise de Alessandro Robecchi:

“Desaparecido”, a segunda faixa do disco, é uma breve biografia deste Manu explorador. É uma rumba inquieta na qual Manu revela muito de si mesmo; quando

chega já se foi, tem “no corpo um motor que nunca deixa de rodar”. É todo ele, enfim, começando pelas estratosféricas velocidades dos tempos da Mano Negra às peregrinações dos últimos anos (ROBECCHI, 2002, p. 244).

68

No encarte do CD, depois de todos os agradecimentos encontramos a assinatura do

cantor como: “El desaparecido”. Além do conteúdo autobiográfico expresso por ROBECCHI

(2002) e já analisado em nosso primeiro capítulo, podemos observar também a repetição da

pergunta: “Quando chegarei?” (¿Cuándo llegaré?) feita a partir de uma espécie de dueto do

cantor com si mesmo. Essa pergunta continua a se repetir então como uma segunda voz do

próprio cantor e nos provoca a sensação de se tratar de uma coletividade de vozes que se

fazem o mesmo questionamento.

Em seu livro Hibridismos musicais de Chico Science & Nação Zumbi (2007) o

professor Herom Vargas explicita a riqueza do grupo pernambucano que surge dentro do

movimento conhecido como Manguebeat. O professor recorre, assim, a Néstor García

Canclini e seu conceito de hibridismo para narrar os processos de mistura de gêneros e

instrumentos regionais com as formas musicais globalizadas nas composições do grupo.

Segundo Herom Vargas, “[...] o híbrido pode pressupor manutenção ou sobreposição dos

elementos que o antecederam, não havendo a dinâmica simplista da superação” (VARGAS,

2007, p. 22).

Assim, observamos que, desde a Mano Negra este processo já se manifestava, tendo

como continuação o álbum Clandestino (1998). Para exemplificar tal continuação, temos a

terceira faixa “Bongo Bong”, que já havia sido gravada em uma versão mais rock nomeada de

“King of Bongo” em álbum de mesmo nome lançado pela Mano Negra em 1991.

Em “Bongo Bong”, hibridizados a “um oscilante ritmo de beguine [uma variação da

rumba], com guitarra em primeiro plano e um suave reggae da voz” (ROBECCHI, 2002, p.

245) escutamos os sons dos instrumentos de sopro sampleados da canção “Bull in the Pen”

68

No original: “Desaparecido”, el segundo tema del disco, es una breve biografia de este Manu explorador. Es una rumba inquieta en la que Manu revela mucho de si mismo; cuando llega ya se ha ido, tiene “en el cuerpo un

motor que nunca deja de rodar”. Es todo él, en fin, empezando por las estratosféricas velocidades de los tiempos de Mano Negra a las peregrinaciones de los últimos años (ROBECCHI, 2002, p. 244).

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gravada no álbum Anthem Istand (1983) do grupo de reggae jamaicano Black Uhuru.

Enxergamos que tais inserções – esses samplers de outras canções da Mano Negra ou de

outros grupos – servem para compor um álbum que se encaixa num universo híbrido de

ritmos.

Je ne t’aime plus, faixa quatro, retrata o fim de um amor e possui a mesma base de

guitarra de “Bongo Bong”. A canção possui música e letra da cantora francesa Anouk Khelifa

que também a canta a duo com Manu Chao. Aos 1:36 a letra é interrompida para dar lugar

somente à base que se repetia em “Bongo Bong” e continua até 2:01, final da canção. Essa

talvez seja a única canção do álbum que não possui nenhum sampler, excluindo um sinal

eletrônico que percorre todo o CD.

Ao iniciar a próxima faixa “Mentira”, temos a sensação de que já escutamos essa base

antes e descobrimos então se tratar da mesma base da canção “Tell Me Is It True” gravada no

álbum Guns in the Ghetto (1997) do britânico UB40, grupo que surge em 1978 e forja uma

identidade musical desvinculada do punk, agregando um forte caráter político e social ao

divulgar o ritmo jamaicano do reggae entre os ingleses.

Através de diversas inserções já transcritas em nosso primeiro capítulo, “Mentira”

hibridiza também algumas temáticas sociais mundiais – e diversas mentiras – como as

mudanças climáticas, as desocupações de terras e a corrupção. O movimento pendular da

música provoca a sensação de que algo é segurado por um pêndulo e impedido de se

movimentar livremente. São as mentiras, que ao final, insistem em manifestar-se em forma de

denúncias divulgadas sutilmente por Manu Chao.

Em “Lagrimas de Oro”, faixa 6, observamos a hibridação entre a música, a narração de

futebol e a letra da canção. Gradativamente também aparecem os instrumentos de sopro e a

percussão, que provocam um total desconcerto no ouvinte. Vargas (2007, p. 23) recorda que o

híbrido:

[...] provoca impactos e é sempre mutante. Como um celeiro de criações, seduz e fascina; da mesma forma que assusta pelo descontrole, às vezes próximo do absurdo,

e pela tranquila capacidade de amalgamar estranhos. Agnóstico e desvairado, o híbrido funda sobre si novos olhares e escutas.

O diálogo inserido ao final da canção expressa esse ritmo frenético,–a vertigem a que

fazia referência García Canclini – de hibridações, “es muy atômica, muy rápida la vida”.

A próxima faixa “Mama Call”, expressa o desespero de um sujeito que se encontra

sozinho e sem voz, ninguém o escuta e ele segue perambulando, muito longe de casa pela

noite que anuncia que vai ser longa. Mas, que mãe é essa que encontramos aqui? Talvez seja a

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mãe terra, a Patchamama, a quem o cantor faz referência constante e que apesar de todas as

manifestações e avisos que temos acompanhado, também se encontra sem voz. Nos versos

“Tonight tonight / It's a long long night” encontramos uma referência à letra da canção “Long

long Nite” que podemos ouvir no álbum The Best of Mano Negra, uma compilação lançada

pela Virgin em 1998.

Caminhando para o final de “Mama call” ouvimos um coro que repete a frase: “Oh, se

acabou/oh, se acabou/se acabou/ se acabou/ se acabou” expressando um desânimo profundo

do sujeito nessa noite longa e fria. Outros elementos hibridizados à música são o bip da

secretária eletrônica de Manu Chao que será retomado em outra canção e o som de um radio

que parece ter ficado ligado e está sintonizado em emissora russa.69

As faixas oito “Luna y Sol”, nove “Por el suelo (esperando la ultima ola)” e dez

“Welcome to Tijuana” têm em comum as inserções do Manifesto do Exército Zapatista de

Libertação Nacional que ora se encontram hibridizadas à música e ora são inseridas em

momentos de destaque em que não ouvimos qualquer outro som a não ser a voz do

Subcomandante Marcos.

Em “Por el suelo (esperando la ultima ola)”, além do manifesto descrito acima,

escutamos no início da canção, mesclado ao ritmo reggae predominante, uma fala em inglês

na qual um narrador apresenta um espetáculo e agradece ao público por ter comparecido ao

lugar70. O título da canção–que retoma o subtítulo do álbum “Esperando la ultima ola”–

também já foi escutado em “La Verdolaga”, cantada originalmente por Toto La Momposina

(cantora colombiana que mistura os ritmos tradicionais dos índios sul-americanos com a

música afro-latina) e regravada e mixada por P. 18, grupo de Tom Nardal (ex-Mano Negra).

Aqui temos parte da letra na qual uma vez mais o México é destaque, aqui representado pela

“verdolaga”, uma verdura muito consumida neste país:

Es bonita y es bonita, la verdolaga "por el suelo" Bonito como se riega la verdolaga "por el suelo"

Hay como se riega "por el suelo" Hay es de bonita Hay es verdecita Hay la verdolaga Hay la verdolaga

69

Agradeço a ajuda de Myrelle Miranda para escutar o idioma da gravação de rádio.

70 Agradeço a ajuda de Juan para escutar essa parte da canção.

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Hay yo la sembré Hay yo la sembré [...] (grifo nosso)

71

Já na letra de “Por el suelo (esperando la ultima ola) temos:

Por el suelo hay una compadrita Que ya nadie se pára a mirar Por el suelo hay una mamacita Que se muere de no respetar Patchamama te veo tan triste

Patchamama me pongo a llorar... Esperando la ultima ola Cuidate no te vayas a mojar Escuchando la ultima rola Mamacita te invito a bailar...

Por el suelo camina mi pueblo Por el suelo hay un agujero Por el suelo camina la raza Mamacita te vamos a matar... Esperando la ultima ola Patchamama me muero de pena

Escuchando la ultima rola Mamacita te invito a bailar... Por el suelo camina mi pueblo Por el suelo moliendo condena Por el suelo el infierno quema

Por el suelo la raza va ciega... Esperando la ultima ola Patchamama me muero de pena Escuchando la ultima rola Mamacita te invito a bailar...

“Por el suelo camina la raza”, esta canção se destaca dentro do álbum como um hino à

“Patchamama” – a grande mãe terra, divindade adorada pelos povos andinos. Aqui

encontramos a terra representada por uma “mamacita” (mamãezinha) triste, frágil e

desprotegida, para quem ninguém mais olha com o respeito e a adoração de antes. Mas

enquanto esperamos a “ultima ola”, o anunciado fim dos tempos, seguimos aqui, escutando a

“ultima rola”, a última canção e desfrutando o que ainda podemos da terra.

Outra “terra” retratada no álbum em questão é Tijuana, lugar onde se pode contemplar

esse mundo de mentiras, de clandestinidade, de tráfico e de fronteiras. Em 1997, um ano antes

do lançamento de Clandestino, Manu Chao participa em duas canções do álbum El poder del

Machín do grupo espanhol Amparanoia. Na canção “Buen rollito” podemos escutar o refrão

71

Disponível em: < http://www.planetadeletras.com/index.php?m=a&a=toto+la+momposina> Acesso em: 10 jan. 2010.

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“Welcome to Tijuana/ Tequila, sexo y marijuana”, que será o mesmo da faixa dez de

Clandestino.

Destacamos aqui, outro gesto híbrido e cosmopolita marcante do cantor. Além de

produzir e/ou lançar amigos ou músicos que admira. Manu Chao também faz constantes

participações em trabalhos de outros músicos. Somente no Brasil podemos citar algumas

gravações com Skank, Paralamas do Sucesso e Mundo Livre SA. Em “Welcome to Tijuana”,

escutamos a voz rouca de seu compositor Paco Meslouhi, um amigo marroquino do cantor

que vive no Brasil.

“Welcome to Tijuana” possui como instrumentos de hibridação, além das inserções do

cinema Mexicano e do Manifesto Zapatista, comentadas no capítulo 2, sons da rua e parte da

conhecida música “Tequila”, gravada pelo grupo The Champs em 1958. Aqui também já

começamos a ouvir o som do vento que será o tema da última canção do álbum.

Sobre os “sons da rua” identificados por nós, destacamos, junto à Herom Vargas

(2007) e sem perder o foco no contexto de viagens pela América Latina que culminaram em

algumas composições de Clandestino, as cidades como um dos espaços paradigmáticos de

observação dos processos de hibridação. Segundo Vargas (2007, p. 230), em diálogo com

García Canclini (2008):

Já na modernidade, com a industrialização, o crescimento e a imigração, a cidade torna-se o local por excelência da mescla, sobretudo na América Latina, local cujas

tradições mais ancestrais são recriadas ao lado das novas marcas da tecnologia e das comunicações.

Seguindo nossa trajetória por Clandestino, chegamos à faixa onze, “Día luna...día

pena” que repete algumas partes de “Luna y sol” (faixa 8), mas agora a alegria da primeira é

suprimida e o tom predominante é o de desilusão.

Hoy día luna día pena

Hoy me levanto sin razón Hoy me levanto y no quiero Hoy día luna día pena Hoy día luna día pena Hoy me levanto sin razón Hoy me levanto y no veo

Por ahi cualquiera solución... Arriba la luna Ohea... Hoy día luna día pena Hoy me levanto sin razón Hoy me levanto y no quiero

Hoy día luna día muero...

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Arriba la luna Ohea... (grifo nosso)

O verso “Arriba la luna Ohea...” que em “Luna y Sol” (música que soa ao fundo) era

pronunciado com tom festivo e esperançoso, agora demonstra desânimo e rendição. A voz de

Manu Chao, como já escutado também em algumas outras canções, aparece novamente

dobrada pelo mixer, portando assim um sentido de articulação coletiva.

Manu Chao, em uma de suas falas no documentário “Próxima Estación...Esperanza”

que está no DVD Babylonia en Guagua (2003), diz que quando está gravando pode mudar de

ideia muito rápido porque não tem uma ideia muito precisa do que quer no final: “A cada

momento a canção pode mudar totalmente de rumo. Podemos estar terminando uma mescla e

no último segundo decidimos destruí-la para fazer outra coisa dessa música”.

Aliados a tal consideração observamos mais uma vez a admiração e as marcas latino-

americanas presentes no estilo do cantor, recorrendo a Vargas (2001, p. 225) que, ao

descrever a canção latino-americana observa que

A canção se constrói, assim, ao sabor da criatividade de indivíduos e grupos, músicos, cantores, dançarinos e ouvintes; e continua se construindo a cada execução, a cada variação, momentos em que elementos são descartados, absorvidos,

intercambiados e fusionados, porque toda a estrutura está fundada nessa dinâmica combinatória e experimental.

Através de nossa escuta, percebemos que os versos “Hoy me levanto y no veo/ Por ahí

cualquiera solución” estão na letra do encarte, mas não são cantados, sendo substituídos por

“Hoy me levanto y no llego/ A ninguna destinación”. Atualmente o cantor também insere

outras modificações na letra dessa canção quando de seus shows ao vivo. Agora ele canta:

“Hoy me levanto con razón” e justifica essa mudança com a seguinte frase: “Cada dia temos

que nos levantar com razões, ao contrário do que diz a canção. Se você se levanta sem razão

tem que encontrá-la rápido porque senão o desengano te come”.72

Encontramos também, hibridizados ao final da canção “Día luna...día pena”, algo que

não aparece em outras canções do álbum. Trata-se de falas de um trecho do desenho animado

Garfield, um gato preguiçoso e irônico que só pensa em comer, dormir e se dar bem. O que

72

No original: “Cada día hay que levantarse con razones, al contrario de lo que dice la canción. Si te levantas sin razón hay que encontrarla rápido por que si no te come el desegaño”. Falas de Manu Chao no DVD Babylonia en Guagua (EMI/2003).

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ouvimos é mais ou menos isso: “E assim o gato se transformou na primeira criatura não

voadora eu voou [...] oh, oh, acho que vou inventar a aterrissagem forçada”.73

Percebemos aqui, um tom de ironia em meio a todo esse desengano. Esta mesma

ironia convertida em alegria que Manu Chao confessa ter se surpreendido ao encontrar como

uma das características marcantes dos latino-americanos, um povo sofrido que, apesar de

tudo, consegue manter sempre um sorriso no rosto, o que pode ser justificado pela busca de

uma razón para continuar:

A palavra que é meu medicamento e que me ajuda a agüentar tudo isso: a esperança. Quanto mais a situação está ruim, mais há que se ter esperança. Por que se não o

quê? Eu aprendi muito de esperança na América Latina. Você se levanta pela manhã, tem quatro filhos e não tem nenhum centavo. Não se pode permitir estar depressivo ou sem forças. Você tem que sair como for, com esperança, procurar algo de comer pra seus filhos.

74

A faixa doze de Clandestino já pode ser considerada híbrida desde seu título:

“Malegría”

Por la calle del desengaño

Esta mañana yo pasé Con malegría otra vez Por la calle del desengaño Mi malegría emborrache Dentro un vasito de jerez. Cuando tú me hablas...

Por la calle del desengaño Mañana pasearé Con malegría otra vez Por la calle del desengaño Mi malegría ahogaré

Dentro un vasito de jerez... Cuando tú me hablas... Alíviame, Maria, alíviame Dáme otro beso de jerez Mañana te lo pagaré

Tu risa me da risa Tu calor me da valor Dáme otro beso de licor...

73

No original: “Y así el gato se convirtió en la primera criatura no voladora que voló [...] oh,oh, creo que voy a inventar el aterrizaje forzoso”.

74 No original: “La palabra que es mi medicina y que me ayuda a aguantar todo eso: la esperanza. Más la

situación está jodida, más hay que tener esperanza. ¿Por que si no qué? Yo aprendí mucho de esperanza en latinoamerica. Te levantas por la mañana, tienes cuatro hijos y no tienes ningun centavo. No te puedes permitir estar depresivo o sin fuerzas. Tienes que salir como sea, con esperanza, a

buscar algo de comer pa tus hijos.” Falas de Manu Chao no documentário “Malegría” realizado pelos cineastas cubasnos Marcelo Martín e Daniel Diez. Disponível em: <http://www.rtve.es/alacarta/programas /tve/todos/1/?order=1&criteria=asc&emissionFilter=all >. Acesso em: 10 jun. 2010.

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Cuando tú me hablas...

O vocábulo “Malegría” que, segundo o cantor, é “ uma tristeza inexplicável. Não está

no dicionário. Uma tristeza que se combate com um riso. É uma lágrima de ouro ” 75; já

aparecia como neologismo, segundo o biógrafo Alessandro Robecchi, no volume ilustrado

das edições Syros (1994) definido como “uma alegria melancólica, uma tristeza ilimitada que,

por falta de alternativas, [...] acaba num sorriso” (ROBECCHI, 2002, p. 248).76

Criação ou não do cantor a palavra “Malegría” representa um híbrido de alegria e

melancolia. Um sentimento que expressa que as coisas vão bem, mas não tanto quanto

gostaríamos. Palavras como “emborraché” (embriaguei), “vasito de jerez” (copinho de jerez),

“ahogaré” (afogarei), “beso de jerez” (beijo, dose de jerez) e “beso de licor” (beijo, dose de

licor); nos fazem defini-la como “canción borracha”, canção que tem como tema central a

embriaguez.

Passeando pela “Calle del desengaño” – nome de uma rua que realmente existe em

Barcelona (Espanha), cidade onde atualmente reside o cantor – Manu Chao destaca o álcool

como um instrumento estimulador de “malegrías”, de sentimentos mesclados e em conflito,

que podem percorrer o caminho que vai da melancolia à alegria ou vice-versa. A música

também possui milhares de efeitos eletrônicos hibridizados ao ritmo do ska, que provocam no

ouvinte uma sensação de embriaguez e desconcerto.

Nota-se que Clandestino é um álbum triste de maneira geral, que retrata um caminho

de busca pessoal e de crônicas sobre o estado do planeta e suas mentiras. Sobre o álbum,

Manu Chao afirma: “Me coloquei no lugar do clandestino em todas as culturas que pude

encontrar. Também musicalmente, não se submeter aos esquemas impostos já é se comportar

como um clandestino” (ROBECCHI, 2002, p. 250).77

Quando o cantor menciona que buscou se colocar no lugar de um clandestino, ele

passa de uma autobiografia individual/pessoal – de contar sua história: “Desaparecido” (faixa

2) – à uma autobiografia coletiva – colocando-se no lugar e intermediando a situação dos que

vivem como quiebra ley. Evidenciamos, porém, a importância de se pensar que Manu Chao

75

No original: “una tristeza inexplicable. No está en el diccionario. Una tristeza que se combate con la risa. É una lágrima de oro.” Falas de Manu Chao no DVD Babylonia en Guagua (EMI/2003).

76 No original: “una alegría melancólica, una tristeza ilimitada que, por falta de alternativas, [...] acaba en la

risa.” (ROBECCHI, 2002, p. 248).

77 No original: “Me he puesto en el lugar del clandestino en todas las culturas que he podido encontrar. También

musicalmente, no someterse a los esquemas impuestos es ya comportarse como un clandestino” (ROBECCHI, 2002, p. 250).

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metaforiza enquanto sujeito da enunciação e cantor, é claro, sua situação de estrangeiro78 para

tratar da situação do imigrante.

Aos 2:51 de “Malegría” já começamos a escutar a introdução da faixa treze “La vie a

2”. Que segundo Robecchi (2002) é “Cantada como um rap lento sobre um compasso

hipnótico de guitarra”. O refrão, por sua vez, repete outra pergunta: “Por que, até mesmo

quando as pessoas se amam, existem sempre problemas?”.

“La vie a 2” traz, como elementos hibridizados, a mesma narração em inglês que

apareceu em “Por el suelo” (faixa 9) e ao final, uma voz feminina recitando dois poemas de

autoria do próprio Manu Chao. Trata-se de “Clandestino: le voyager” e “Touki Kat”,

publicados no livro Siberie m’etait contéee.... Um livro de poemas escritos por Manu Chao e

ilustrado pelo artista polonês Jacek Wozniak, de edição limitada vendida junto com um CD de

mesmo nome, inicialmente em bancas de jornal na França.

Lançado em 2004 pela Radio Bemba, o CD é registrado e mixado por Oscar Tramor

(pseudônimo de Manu Chao) e o livro traz como editora a “Edições Mil Paetês” (Editions Les

Mille Paillettes) – mesmo nome de uma das canções do CD. Do primeiro poema, em francês,

nos foi possível traduzir e o transcreveremos abaixo, já do segundo “Touki Kat” não nos foi

possível a tradução, pois está em “wolof”, uma língua falada no Senegal, registrada por Manu

Chao em uma de suas viagens pela capital Dacar.

Clandestino O viajante O mundo é minha casa O amor é minha estrela

Bob Marley meu professor. E eu vôo, e eu vôo, E eu vôo... Sobre ti, ainda mais alto Você me dá vertigem

78

Quando mencionamos os termos “estrangeiro” e “imigrante”, estamos pensando junto a Pablo Gasparini que em seu artigo “Riscos do português/ Riscos do castelhano: a língua portuguesa na poesia do argentino Néstor Perlongher” cita os conceitos de Abdelmalek Sayad em que: “Sigo aqui os conceitos que propõe Abdemalek Sayad em ‘Imigração e convenções internacionais’ e em ‘A ordem da imigração na ordem das nações’. Segundo as reflexões do autor, ainda que não exista diferença jurídica entre a condição de estrangeiro e a condição de

imigrante (pois desde o ponto de vista legal, a categoria de estrangeiro subsume quaisquer outras), é preciso ultrapassar as fronteiras do estatuto jurídico para se apreender a situação de fato dos seres que ultrapassam as fronteiras nacionais. Assim, conforme Sayad, o imigrante é aquele em quem ‘os efeitos da condição social dobram os efeitos da origem nacional’, e estes, por sua vez, reiteram a hierarquia entre nações. Daí decorre que o imigrante é sempre alguém oriundo de um mundo dominado’ que só forneceria imigrantes’. Já o estrangeiro, que seguindo a formulação do autor pode ser definido como aquele em quem os efeitos da condição social

anulam os efeitos da origem nacional ‘ser[á] tratado com o respeito devido a sua qualidade de ‘estrangeiro’. GASPARINI, Pablo. “Riscos do português/ Riscos do castelhano: a língua portuguesa na poesia do argentino Néstor Perlongher”. Ipotesi. Juiz de Fora, v.9, n. I, n.2, p. 36, jan/jun,jul/dez, 2005.

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[...] eu parto em viagem E eu me vou, eu me vou, e eu me vou... Mas eu sei que vou voltar Tudo vai bem Não há nenhum problema

eu te amo.79

Neste poema encontramos um sujeito cosmopolita que reafirma sua afeição pelas

viagens e suas referências musicais: “Bob Marley/meu professor.” Outra forma de cooptar

esse cosmopolitismo aparece nos seguintes versos ao final da canção: “É meia noite em

Toquio/ São cinco horas em Mali/ Que horas são no paraíso?”.80 As referências ao tempo em

diversas partes do mundo nos remetem, por outro lado, a repetitiva pergunta de Manu Chao já

comentada em nosso segundo capítulo “¿Qué pasó? ¿Qué pasó?”. Repetição que pode ser

pensada, nesse caso em particular, como uma pergunta que reaparece em todos os tempos e

espaços do planeta.

A simultaneidade de territórios metaforiza a aceleração de nossa realidade

comprimindo as categorias de espaço e tempo como apontado por Marc Augé em Não-

lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade, cuja primeira edição é de

1992. Augé (AUGÉ, 1994) afirma que a aceleração da história corresponde a uma

multiplicação de acontecimentos ou, em palavras do autor, uma “superabundância factual do

mundo contemporâneo” que nos provoca a sensação de vivermos num planeta cada dia

menor.

Continuando a análise de “La vie a 2” citamos novamente Robecchi (2002), que

considera que as faixas: “La vie a 2” (faixa 13), “Je ne t’aime plus” (faixa 4), e “La

despedida” (faixa 15), que possuem o amor como tema principal – o tratando como um amor

ainda vivo, mas acabado – teriam sido um desabafo e uma despedida do cantor ao antigo

grupo Mano Negra. Esta seria uma das possibilidades de análise, mas acreditamos que, a

exceção da letra de “La despedida”, o amor é um tema extremamente vasto para resumir a

análise de três canções a um desabafo particular.

Vejamos a décima quinta faixa do álbum “La despedida”:

79

No original: Clandestino (Le voyageur): “Le monde est ma maison/ L’amour est mon étoile/ Bob Marley/ mon professeur./ Et je vole, et je vole,/ et je vole.../ Sur toi, plus haut encore/ Tu me donnes le vertige /[...] je pars en voyage/ Et je m’en vais, je m’en vais, et je m’en vais.../ Mais je sais que je reviendrai/ Tout va bien/ Y a pas de problème/ je t’aime”. MANU CHAO & WOZNIAK. Siberie m’etait contéee...Editions Les Mille

Paillettes. Paris: 2004.

80 No original: “Il est minuit à Tokyo / Il est cinq heures au Mali /Quelle heure est-il au paradis?”.

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Ya estoy curado Anestesiado Ya me olvidado de ti... Hoy me despido De tu ausencia

Ya estoy en paz... Ya no te espero Ya no te llamo Ya no me engaño Hoy te he borrado

De mi paciencia Hoy fui capaz... Desde aquel día En que te fuiste Yo no sabía

Que hacer de ti Ya están domados Mis sentimientos Mejor asi... Hoy me he burlado De la tristeza

Hoy me he livrado De tu recuerdo Ya no te extraño Ya me he arrancado Ya estoy en paz...

Ya estoy curado Anestesiado Ya me olvidado Te espero siempre mi amor Cada hora, cada dia

Cada minuto que yo viva... Te espero siempre mi amor... Te quiero... Siempre Mi amor... Sé que un día... volverás... No me olvido y te quiero...T.E.S.M.A...T.E.S.M.A...

81

Palavras como curado, olvidado (esquecido), ausência, borrado (apagado) e frases

como “Hoy me he burlado/De la tristeza”, algo como “Hoje zombei da tristeza” e “Hoy me he

livrado/ De tu recuerdo” (Hoje eu me livrei de sua lembrança) expressam claramente tal

desabafo apontado por Robecchi. Também a repetição dos versos “Oh, se acabo... oh, se

acabó..., se acabó, se acabó, se acabó...” que aparecem proferidos por um refrão que

escutamos ao fundo nós dá essa sensação, mas os versos finais nos quais destacamos as letras

T.E.S.M.A “Te espero siempre mi amor.”, simbolizam uma esperança em relação a um amor

que ainda “volverá” (voltará).

81

grifo nosso – optamos pelo destaque em negrito já que a intenção não é grifar a palavra toda e sim destacar suas primeiras letras que representarão a “sigla” T.E.S.M.A criada pelo cantor para resumir uma frase.

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Sendo assim, podemos até ver alguma possibilidade de desabafo quanto ao fim da

Mano Negra, mas queremos deixar claro que este “amor” pode também estar sendo

direcionado a outrem que talvez esteja em um dos recados da secretária eletrônica de Manu

Chao, inseridos no final dessa canção.

Passamos agora a última faixa do CD. Esta traz um elemento que possui a liberdade de

passar pelas fronteiras: “El viento”

El viento viene El viento se va Por la frontera El viento viene El viento se va

El hombre viene El hombre se va Sin más razón El hombre viene El hombre se va Ruta Babylon...

Por la carretera La suerte viene La suerte se va Por la frontera La suerte viene La suerte se va

El hombre viene El hombre se va Sin más razón El hombre viene El hombre se va Cuándo volverá

Por la carretera

Ao som do reggae tocado por Manu Chao, a personificação do vento através de seu

som percorre todo o álbum. Escutamos novamente os sinais eletrônicos que estavam em

outras canções do álbum, assim como os sons da rua, pessoas falando... Mas a partir de 1:55

não escutamos mais nada, a não ser o som do vento que segue até o final da canção (2:26).

Como o vento, o homem pode ir e vir, mas sem a mesma liberdade desse. Ele caminha por

todo o CD buscando extrapolar fronteiras, denunciando o que está errado e apresentando a

riqueza cultural com que se depara, mas ao final o sujeito se pergunta: ¿Cuándo volverá?

Quando voltará esse homem que vem e vai, que passa por diversos caminhos a procura de

uma razão que lhe dê esperança para continuar?

Através de suas composições, Manu Chao extrapola qualquer limite de pureza e sua

prática musical o libera de divulgar ao mundo apenas uma identidade, conseguindo captar e

transportar para a canção as ‘mesclas interculturais’ (GARCÍA CANCLINI, 2008) presentes

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desde sua infância e que formaram sua bagagem de cronista-compositor, cosmopolita,

individual e musical.

Outra característica que chama atenção em Clandestino são as várias línguas utilizadas

pelo cantor. Edward Said (2005) considera que existem várias línguas diferentes para os

intelectuais. O conhecimento ou o interesse por essas línguas, aliados aos das tradições e

problemáticas culturais de cada povo, nos transmite o tom cosmopolita da obra do cantor que

ultrapassa uma aplicação estritamente local em sua função intelectual.

3.3 O uso do portuñol como alternativa poética e política

Edward Said em Representações do intelectual – As Conferências de Reith de 1993

(2005) escreve que:

Cada intelectual enquanto indivíduo nasce com uma língua e geralmente passa o resto da vida com essa língua, que é o veículo principal de sua atividade intelectual. [...] o intelectual é obrigado a usar uma língua nacional não apenas por razões óbvias de conveniência e familiaridade, mas também porque ele espera imprimir-lhe um som particular, uma entonação especial e, finalmente, uma perspectiva que é própria

dele (SAID, 2005, p. 39–grifo nosso).

Na obra de Manu Chao, mais especificamente no CD Clandestino, encontramos 16

canções cantadas em pelo menos quatro línguas, sendo elas:

Tracklisting

01. Clandestino (espanhol)

02. Desaparecido (espanhol)

03. Bongo Bong (inglês)

04. Je Ne T'aime Plus (francês)

05. Mentira... (espanhol)

06. Lagrimas de Oro (espanhol)

07. Mama Call (inglês e espanhol)

08. Luna y Sol (espanhol)

09. Por el Suelo (espanhol)

10. Welcome to Tijuana (espanhol)

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11. Día Luna... Día Pena (espanhol)

12. Malegria (espanhol)

13. La vie a 2 (francês)

14. Minha Galera (mistura português e espanhol–portuñol)

15. La despedida (espanhol)

16. El Viento (espanhol)

Para nós fica uma questão: o cantor é possuidor de uma língua nacional?

Sabemos que existe uma atribuição de prestígio ligado a certas línguas. Numa

discussão sobre língua e literatura, marcada pelos conceitos de Pierre Bourdieu, Pascale

Casanova se refere à existência de “mercados verbais”. Para ela, uma língua é “nacional

porque necessariamente nacionalizada, isto é, apropriada pelas instâncias nacionais como

símbolo de identidade [...]” (CASANOVA, 2002, p. 53). Ela aponta que a língua é “ao mesmo

tempo um problema de Estado (língua nacional, portanto objeto político) e ‘material literário’

[...]” (CASANOVA, 2002, p. 53), o que para nós especificamente, poderíamos pensar como

um dos materiais de composição do cantor.

Se considerarmos então a língua nacional como a língua oficial do país onde o cantor

nasceu (França) e observarmos que esta língua esta impregnada pelas tradições desse país, a

resposta para nossa última pergunta será afirmativa, mas se considerarmos a filiação

espanhola do cantor, sua vida na periferia de Paris que, de um lado, traz uma experiência não

monumentalizada da França e de outro, se nutre de um meio de imigrantes das mais diferentes

partes do mundo onde tudo se mesclava, talvez deveríamos por sob suspeita a afirmativa de

Said, que certamente responde a uma figura de intelectual mais “moderna”, até porque ele era

um cidadão bicultural, sujeito colonizado, de cultura árabe e inglesa.

Como afirma Robecchi: “Manuel Chao, aos catorze anos fala francês na rua e

espanhol em família” (2002, p. 22), ou seja, vive uma experiência bilíngue, típica em parte, ao

multilinguismo europeu, porém também particular a uma situação de exílio (dos pais, como já

citado em nosso primeiro capítulo) e nesse ponto esse bilinguismo torna-se uma sorte de

diglossia, mesmo quando o francês e o espanhol são línguas de prestígio. Não se deve

esquecer, porém, que essa situação também marca uma abertura para outros sons e sotaques.

Podemos intuir que Manu Chao expressa esse “som particular” citado por Said como

um intermediário cosmopolita, longe dos clichês, numa sorte de plurilinguismo, a partir do

contato e da experimentação cultural que obteve na convivência com diversos povos e bairros,

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como ele gosta de falar. Entretanto, não podemos esquecer o valor histórico e político de sua

origem e sua extrema vontade de dizer isso em público e, também, de construir uma poética e

uma política afinada a essa experiência contemporânea, cosmopolita e contra-hegemônica.

Além dos limites da língua, Manu Chao extrapola os limites da própria linguagem para

expressar a realidade social e seus desníveis de poder. Se ele somente utilizasse uma

linguagem europeia, com seu conjunto de características implícitas, preconceitos e hábitos

rígidos de pensamento, seu trabalho com certeza não teria o mesmo valor e a mesma “função”

política e humanitária. Poderíamos afirmar então que, o uso de um vocabulário e frases

estrangeiras marcam, em decorrência, o cosmopolitismo poético do cantor.

Em seu terceiro capítulo intitulado “Vous m’accordez ce pogo, mademoiselle?” (Algo

como: “Me concede esse pogo (estilo de dança típica dos punks), senhorita?”) Alessandro

Robecchi destaca um fato marcante que acontecia na cena punk francesa. Segundo ele, o

idioma utilizado nas canções era quase sempre o francês, mas podíamos reconhecer “talvez

intercalados entre a versão de alguma canção famosa de Berry e uma balada rock, acentos

espanholizantes ou toques de música árabe [...]” (ROBECCHI, 2002, p. 45).

Como já dito, durante o tempo de composição de Clandestino, Manu Chao refaz

algumas viagens da época da Mano Negra e “Volta às fontes da rumba, regressa novamente a

Colômbia, visita muito o Brasil e até inventa um neologismo para denominar esses

deslocamentos entre as línguas e as culturas da América do Sul, o portuñol, outra patchanka,

outro emaranhado de línguas (ROBECCHI, 2002, p. 229, grifo nosso).82

Claro que não foi Manu Chao quem “inventou” essa língua híbrida, o portuñol. Muito

antes dele o idioma fronteiriço já tinha esse nome e já era utilizado nas comunicações entre

falantes de português e de espanhol. Mas tocou-se aqui em um ponto muito importante no

trabalho de composição e comunicação do cantor.

Escritores como o argentino Néstor Perlongher, que entreviram no portuñol uma

língua poética, descreve assim esse mix:

Peço permissão para falar em portuñol. Meus colegas lingüistas me ajudarão a identificar o estatuto deste erro, que tem o mérito de proceder em uma destruição simultânea de duas línguas. Destruição que se deve tomar com muitas advertências, com muitas aspas. Já que o equívoco instável do portuñol não o impede de ‘ser entendido, não o impede de funcionar, também como forma de uma língua, ou seria melhor dizer, de uma ‘má língua’. Mistura instável de vozes, o portuñol é o jargão

dos exilados, dos transumantes, dos trânfugas: de uma margem a outra do Chuí, um

82

No original: Vuelve, pues, a las fuentes de la rumba, regresa de nuevo a Colombia, visita mucho a Brasil y hasta inventa un neologismo para denominar esos desplazamientos suyos entre las lenguas y las culturas de Sudamérica, el portuñol, otra patchanka, otra maraña de lenguas (ROBECCHI, 2002, p. 229).

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contrabando de sentidos. Uso menor, incorreto ainda que reiterado, instável mas perdurável, que as recentes tragédias políticas destas terras contribuíram para atualizar, mas que se alguém quiser indicar alguma genealogia tentativa, precária ou provisória como é o mesmo portuñol, talvez a encontrará nas vozes da marginalidade, dos vadios que, ao vaivém das crueldades estatais, se deslocam de

um lado a outro destas elásticas fronteiras (PERLONGHER, 2004, p. 241).83

[...] portuñol: travessura do idioma frente a caretice das línguas oficiais (PERLONGHER, 2004,p. 247)

Perlongher caracteriza o portuñol como “destruição simultânea de duas línguas” e

essas aspas que o escritor pede para a palavra “destruição” apresentam também outro olhar

para o híbrido, aquele que mencionamos sair da infertilidade e passar ao terreno da fertilidade.

Uma língua que antes de chegar ao uso intelectual, traz em sua gênese o jargão dos exilados,

dos deslocados, dos desertores, dos vadios, enfim, a língua do quiebra ley, do que vive à

margem das regras, mas que também, por ser a língua dos exilados, se aproxima do fora de

lei.

Em “Minha galera” (faixa 14) de Clandestino, o cantor propõe um diálogo trans-

fronteiriço português-espanhol

Minha galera O minha macona Minha torcida Minha querida

Minha galera O minha cashueira Minha menina Minha flamenga Minha capoeira O minha menina

Minha querida Minha Valeria... O minha maloka Minha larica Minha cashaca Minha cadea

Minha vagabunda

83

No original: “Pido permiso para hablar en portuñol. Mis colegas lingüistas me ayudarán a identificar el estatuto de este error, que tiene el mérito de proceder a una destrucción simultânea de dos lenguas. Destrucción que debe tomarse con muchos reparos, con muchas comillas. Ya que el inestable equívoco del portuñol no le

impide ‘entenderse’, no le impide funcionar, también, a la manera de una lengua, o sería mejor decir, de una ‘mala lengua’. Mistura inestable de voces, el portuñol es la jerga de los exilados, de los trashumantes, de los transfugas: de una a outra margen del Chuí, un contrabando de sentidos. Uso menor, incorrecto aunque reiterado, inestable empero perdurable, que las hace tan poco pasadas tragedias políticas de estas tierras han contribuído a actualizar, pero que, si uno quiere indicar alguna genealogía tentativa, precária o provisória como el mismo portunõl, la encontrará quizás en las voces de la marginalidad, de los lúmpenes que, al vaivén de las crueldades

estatales, se desplazan de un lado a otro de estas elásticas fronteras”. [...] portuñol: travesura del idioma frente a la careticie de las lenguas oficiales.

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O minha vida Minha mambembe O minha ladera O minha menina Minha querida

Minha Valeria O minha torcida Minha flamenga Minha cadea O minha macona Minha torcida

Minha querida Minha galera Minha vagabunda Minha mambembe Minha belleza Minha capoeira...

O minha menina Minha querida Minha Valeria... Minha torcida Minha flamenga Minha cadea

O minha macona Minha torcida Minha querida Minha galera... (grifo nosso)

Nesta canção o cantor mistura e faz conviver tanto palavras nas duas línguas –

português (minha) e espanhol (belleza) – quanto vocábulos criados a partir da mistura das

duas línguas como a palavra “macona”. No que se refere a esta última vale destacar que o

encarte e o site do cantor trazem a letra “n”, mas o que escutamos na entonação da voz de

Manu Chao pode ser o som da letra “ñ” do espanhol ou do “nh” do português, mas nunca do

“n”. Palavras como “cadea” e “ladera” perderam o “i”; e “cashaça” e “cashueira”

transformaram o “ch” em “sh”.

Manu Chao passa a cantar em uma língua formada por um processo de hibridação,

como define García Canclini (2008, p. XXI):

Parto de uma primeira definição: entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas. Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas foram resultado de hibridações, razão pela qual não podem ser consideradas fontes puras.

Ou seja, também as línguas de que partiram os falantes para gerar o portuñol, não

eram, em sua gênese, fontes puras, nesse sentido, tanto o espanhol quanto o português são

resultados de hibridações anteriores.

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A simpatia do cantor pela América Latina o fez mixar o português e o espanhol em

diversas canções. Em “Giramundo” (Estación México84 – 2008) o sujeito se coloca na

situação de aprendiz, ele não fala português nem espanhol, ele só fala portuñol:

[...] Yo no falo español

Yo no falo português Só desculpa minha gente Yo só falo portuñol [...]

No mesmo álbum Estación México de 2008, também encontramos a canção “Cabra da

peste”, que trata dessa situação cosmopolita do sujeito que não é brasileiro, é estrangeiro, mas

se considera “cabra da peste”: uma expressão utilizada no nordeste do Brasil para designar

uma pessoa valente e forte. Vejamos parte da letra:

Cabra da peste

Yo no soy brasileiro Yo soy filho do Nordeste Yo soy cabra da peste Yo gostei do Ceara Yo soy estrangeiro [...]

A utilização do portuñol na composição da letra, aqui forma artística e sonora, pois é

também uma entoação e ao mesmo tempo metáfora do: “devir de uma língua que torna

permeável o conflito das falas, ali onde as línguas nacionais se desmancham, se vaporiza m”

(CARRIZO, 2010, p. 30), contribui para a reafirmação de sua atitude de intelectual

cosmopolita que aplicando e estetizando uma marca linguística sobre essa falta de pertença

intrínseca a um espaço nacional determinado, presentificado através do “erro” e do

“contrabando de sentidos” aludido por Perlongher.

O que chama atenção é o fato de o cantor elaborar suas composições pensando numa

comunidade maior, ampliando assim as possibilidades de acesso e divulgação de suas

produções. Em atitude que podemos denominar de mestiça, no sentido de estar em constante

construção segue assim o trabalho de livre trânsito de pensamento do cantor, que

independente de pátrias, busca a dissolução das fronteiras.

84

Este CD duplo foi gravado durante a apresentação do cantor no Foro Alicia (México) e durante o mesmo evento e vendido para apoiar os movimentos sociais mexicanos : Comisión Sexta EZLN, Presos Políticos de Atenco y de Oaxaca.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se podemos definir Manu Chao, podemos dizer que ele representa um artista e uma

obra labirínticos, que percorremos com todo cuidado para não nos perder pelo caminho. Não

tivemos a pretensão de esgotar toda a sua densidade de informações, mas percorremos um

caminho de descobertas que supriram as expectativas do início de nossa pesquisa.

Confirmando a atitude de intelectual cosmopolita, Manu Chao faz do álbum

Clandestino um mix não só de ritmos, mas também de línguas e de mídias – rádio, televisão,

cinema, etc. – ao mesmo tempo em que subverte de várias maneiras a produção e o potencial

de consumo do disco. Uma forma de subversão apontada por nós se encontra na atitude de

não incluir intervalos entre as faixas. Clandestino acaba se apresentado, apesar da

circularidade entre temas e ritmos que são retomados em diversas canções, como uma história

sem interrupção.

Passamos pelo cinema, o rádio, a TV, a poesia e quantos caminhos latino-americanos

mais o cantor nos apresentou. Encontramos grupos musicais e canções representando a cultura

mundial – cosmopolita e anti-hegemônica – dentro de um só CD. Escutamos línguas por nós

conhecidas como o espanhol, o francês e o inglês; línguas de fronteira como o portuñol; e

outras das quais nem sabíamos a existência como o “wolof” – uma língua falada no Senegal.

Considerando que todas as línguas possuem um caráter social observamos que o mix

de línguas operacionaliza também esse cosmopolitismo contemporâneo de Manu Chão pois

assim como afirma Renato Ortiz: “a sonoridade musical de uma língua torna-se elo de

solidariedade entre culturas distantes” (1994, p. 192), poderíamos pensar que as várias

sonoridades de línguas e interlínguas, seus sotaques e sua entoação contribuem na recriação

dessa solidariedade.

Tal elo entre culturas distantes sempre se fez presente na formação intelectual de

Manu Chao, desde sua origem, seu convívio com os imigrantes na periferia francesa,

passando pelo contato com intelectuais latino-americanos que frequentavam sua casa e pela

participação no movimento punk. Seu olhar sempre aberto e sua vontade de se aproximar e de

conhecer o novo através de suas viagens lhe proporcionaram uma bagagem privilegiada e rara

que ele soube e sabe aproveitar, tanto no momento de compor quanto no de denunciar,

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reivindicar e defender causas mundiais, momentos esses que podem também se unir e/ou se

mesclar dentro de sua obra.

Deparamo-nos com um indivíduo que une em si os conceitos de sujeito migrante,

intelectual engajado e cosmopolita e cronista particular de seu tempo. Um sujeito que se

desloca, que narra, mas que também se posiciona, descendo o degrau de superioridade e se

pensando em conjunto com a esfera pública e cotidiana. Com as canções do álbum

Clandestino nos transportamos através uma viagem musical que se concentra principalmente

na América Latina com seus sons, suas crenças, sua língua e suas problemáticas.

As contradições presentes na vida de qualquer artista nos serviram para pensar no

posicionamento intelectual do cantor e observar como este consegue conviver, mas ao mesmo

tempo subverter a hegemonia dos meios de comunicação e das grandes casas discográficas.

Estas foram utilizadas como um tipo de trampolim que lhe permitiu ser conhecido

mundialmente; e também trazer consigo outros músicos. O CD Clandestino inaugura uma

nova fase nas composições de Manu Chao que, através do “Estúdio Clandestino”, anuncia o

fim da ditadura da figura do técnico que, segundo ele, nem sempre entende o que quer o

compositor.

Após cumprir a etapa de se tornar conhecido o cantor assume cada vez mais sua

posição de intelectual engajado e de indivíduo político, passando a oferecer suas composições

de maneira democrática, desenvolvida numa espécie de utopia própria, ou “ao seu nível”

como ele mesmo declara. O que importa não é se seu trabalho estimula politicamente ou não o

cidadão que lhe escuta cantando ou palestrando. Estamos tratando aqui de milhões de

indivíduos pertencentes a culturas e a crenças diferentes, mas o que realmente importa é que

questões de interesse e relevância mundiais estão sendo difundidas. Podemos citar um

exemplo do comportamento desse intelectual que provoca e incomoda quando lemos que ele

não foi bem-vindo ao México em certa época, mas ao mesmo tempo foi requisitado e

escutado na Alemanha, no Brasil, no Senegal e em diversas partes do mundo.

A internet surge como outro canal para a intervenção do intelectual e a produção

independente lhe dá mais liberdade de escolha. A evolução da tecnologia transforma as

maneiras de produção e divulgação da música no contexto mundial e o público que a escuta já

não é o mesmo limitado aos Cd´s gravados, aos shows e aos conceitos de subordinação e

manipulação passiva. Cronicar o mundo através de suas próprias palavras e de seus próprios

sons se torna um processo cada vez mais facilitado se aliada à essa evolução estiver presente

também o potencial crítico.

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Utilizamos como título do ponto 3.2 de nosso segundo capítulo: “O aproveitamento

dos meios de comunicação para compor e divulgar um projeto contra-hegemônico”. Eis aqui

expressa outra forma de atuação de Manu Chao que assumindo a postura do sujeito migrante

não se beneficia somente da viagem real, mas também da virtual. Sartre, que em 1948 não

acreditava que os meios de comunicação poderiam ser inteiramente utilizados pelos

intelectuais, mas reflete sobre como isso seria uma bela conquista de seus sucessores, teria

muitos discursos a proferir sobre os benefícios tecnológicos do século XXI.

O recurso da repetição, da reciclagem – como o próprio Manu Chao denomina – nos

traz a reflexão sobre a ditadura do novo presente, principalmente no meio musical. Certo é

que até desse recurso a indústria fonográfica tentou se aproveitar ao perceber que os Cd´s com

versões remix e as coletâneas possuem um potencial comercial considerável. Mas o trabalho

de Manu Chao está muito além de uma versão remix, ele trata de questionamentos, de

denúncias que necessitam de visibilidade e menção constantes. Para ele pouco importa o

potencial comercial de seus discos, o que vale realmente é a continuidade de seus

posicionamentos expressos através de canções, o que vale é discutir com seu público e saber

“¿Qué pasa por la calle?”.

Clandestino é considerado um álbum triste pelo cantor (ROBECCHI, 2002, p. 250),

mas aliada a tristeza presente na temática geral do álbum está a maneira sutil e irônica de

tratá-la. Em diversas entrevistas, Manu Chao afirma que necessita de um tipo de música

medicinal, uma música que o cure. E como na medicina existem remédios amargos e outros

bem doces, a medicina musical do cantor também nos oferecerá tais opções.

O realismo da luta pela terra, dos desastres climáticos, da corrupção, da mentira ou

das mentiras – apontado por nós como a temática maior desse disco – nos é apresentado de

forma também provocante e instigante, mas nunca violenta, talvez por essa forma de relato de

viagem que o disco possui. A alternância entre ritmos alegres e dançantes e outros mais lentos

não permite que o ouvinte se concentre apenas na tristeza, mas pense também na esperança

que seu discurso anuncia.

A música mundial executada pelo cantor, que utiliza a mescla e todo seu potencial de

quebra de fronteiras nos leva a refletir junto a Stuart Hall que em A identidade cultural na

pós-modernidade, obra de 1992, nos apresenta também o hibridismo como “fusão de

diferentes tradições culturais [...]” (HALL, 2006, p. 89) observando que “As culturas híbridas

constituem um dos diversos tipos de identidade distintivamente novas produzidas na era da

modernidade tardia” (HALL, 2006, p. 91).

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O processo de tradução cultural por que passam indivíduos que foram dispersados de

sua terra natal nos faz retomar aqui a referência a Said (2003) que afirma que vivemos a era

do refugiado. O exílio por escolha ou “às avessas” identificado por nós e apontado em nosso

primeiro capítulo nos mostra como Manu Chao opta por traduzir-se, por transportar-se entre

fronteiras, assumindo a posição do cantor migrante, pertencente não só a dois, mas a diversos

mundos, desenvolvendo a cada chegada – e repetimos, por formação e por opção – a

habilidade de habitar e de negociar com as culturas híbridas e suas diferentes nuances.

O intelectual também é o interlocutor que tece uma convocação massiva para lutar

dizendo que não é possível passar indiferente a tantas barbaridades que ocorrem dia a dia,

repetindo em diversas entrevistas que se sente um homem privilegiado por poder viver de sua

paixão, a música, já que para ele “a cultura é algo que define uma civilização... a cultura é

inventar, a cultura é revolucionar [...]” 85.

O cantor não se deixa iludir pela falsa ideia de que tudo já está expresso na letra e

nunca recusa o microfone para dar entrevistas e expressar sua opinião sobre os mais diversos

temas do cenário mundial se apresentando como um tipo de intelectual que não surge somente

para representar, mas também para por em diálogo as problemáticas mundiais, se

comportando como interlocutor e dando voz aos que não são ouvidos. Perpassamos por vários

depoimentos que demonstram sua consciência intelectual e nos permitimos agora citar mais

um proferido em uma entrevista na época do lançamento de Clandestino e durante os

preparativos para a realização da “Feira das Mentiras”. Quando questionado sobre sua opinião

em relação à proliferação de letras engajadas no mundo da música, Manu Chao responde:

Tem de tudo. A rebelião é algo precioso que vem sendo muito retomado atualmente. O que acontece é que é muito fácil subir ao palco e, no momento em que a música

perde a força, gritar um bom VIVA ZAPATA com o que consegue levar a galera e vejo muitos grupos que abusam disso e outros que o dizem sinceramente e no momento adequado. Tem muita gente que se aproveita da rebelião, de músicos a publicitários. Veja as publicidades da Nike, a imagem da rebeldia transferida ao campo econômico [...]

86

85

Falas de Manu Chao em entrevista à Tatuy TV. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=-UymiVew_ag&feature=PlayList&p=7BA1DA191A3C44E9&playnext=1&playnext_from=PL&index=27.>. Acesso em: 11 abr. 2009. 86

No original: “Hay de todo. La rebelión es algo precioso que actualmente está muy recuperado. Lo que pasa es que es muy fácil subirte a un escenario y, en el momento que se te afloja la música, gritar un buen VIVA ZAPATA con el que te lleva a toda la peña y veo muchos grupos que abusan de ello y otros que lo dicen

sinceramente y en el momento justo. Hay mucha gente que se aprovecha de la rebelión, desde músicos a publicitarios. Mira las publicidades de Nike, la imagen de rebeldía trasladada al campo econômico [...] Disponível em <http://www.angelfire.com/ma2/mano/E3.html>. Acesso em: 24 ago. 2010.

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Em sua obra, numa mesma canção convivem várias, e sua linguagem própria e

poética se transforma em códigos a serem observados atentamente por quem escuta

comprovando que a história da indústria da música, que não é a indústria fonográfica, vai

muito além da indústria do consumo porque o trabalho musical está calcado nas relações

interpessoais. A música se apresenta então como prática social comunicativa.

Esse era um de nossos objetivos, ressaltar a importância da atuação conjunta entre o

estudo de canções e os estudos culturais, vendo estes como portadores de conteúdos sutis e

imprescindíveis que influem ativamente no processo dialético que estrutura a história do

homem. Acreditamos que o artista mergulha de cabeça nessa constante experimentação do

mundo, correndo os riscos que a vida moderna impõe, mas sem nunca perder de vista que “O

objetivo da atividade intelectual é promover a liberdade humana e o conhecimento” (SAID,

2005, p. 31) e que para esta efetiva promoção não pode haver descanso.

Reportando-nos ao conceito de democracia, que para García Canclini (2008) está

relacionado com pluralidade cultural e polissemia interpretativa; e nos relembrando dos

depoimentos proferidos pelo cantor e abordados em nossos capítulos, nos inspiramos e nos

iluminamos na tentativa de compreender o projeto deste artista. Voltamos então à imagem da

capa do CD: o cantor clandestino encostado em uma parede, “esperando la ultima ola 87” – a

deusa que em seu conto “A feira das Mentiras”, representa o anunciado fim do milênio e a

virada do século. Não há dúvidas, no entanto, de que essa espera não é passiva, ela se

movimenta, denuncia e lança um tom de esperança no que vem pela frente.

Em sua tese profissional que tem como título “Toda música é política por natureza... A

lírica de Manu Chao, sua música como outra forma de fazer política”, Gorjón Salcedo (2004,

p. 85) comenta que:

A música [...] é parte fundamental de nosso fazer político como seres sociais de nossos tempos. Nosso fazer político não se limita a emitir um voto em uma urna.

Um dia, isolado. O fazer político foi mal interpretado, foi minimizado às classes governantes, pela profissionalização da política e, entretanto, se encontra perto de nós a todo tempo. A música é somente um exemplo de como fazer política de outra forma, por meio das melodias e da lírica. [...].

88

87

O dicionário Senãs traz como uma das definições possíveis para a palavra ola a: “Aparição não esperada de uma grande quantidade de coisas, acontecimentos ou pessoas.” – (Aparición no esperada de una gran cantidad de cosas, acontecimientos o personas).

88 No original: La música [...] es parte fundamental de nuestro quehacer político como seres sociales de nuestros

tiempos. Nuestro quehacer político no se limita a emitir un voto en una urna. Un día, aislado. El quehacer

político ha sido malinterpretado, ha sido minimizado a las clases gobernantes, por la profesionalización de la política y sin embargo se encuentra cerca de nosotros todo el tiempo. La música es solamente un ejemplo de cómo hacer política de otra forma, por medio de las melodías y la lírica.

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Citando novamente García Canclini acreditamos que: “[...] toda mensagem está

infestada de espaços em branco, de silêncios, interstícios, nos quais se espera que o leitor

produza sentidos inéditos” (GARCÍA CANCLINI, 2008, p. 151). Manu Chao busca esta

produção, suas letras questionam e denunciam suas inquietudes políticas e sociais mesclando

desde melodias tradicionais até as mais modernas de maneira sutil e irônica. Sua atuação

busca uma reflexão pública sobre o que está sendo cantado como a realidade em que vivemos,

afirmando e chamando a atenção para o fato de que também fazemos parte de toda essa

mescla.

Esperamos com nossa pesquisa, iniciar uma interpretação desse tipo de composição

sem superestimar a produção do artista. Nossa intenção é trazer para perto dos meios

universitários algumas reflexões sobre um artista muito apreciado, mas ainda pouco estudado

no meio acadêmico brasileiro como pudemos confirmar tanto na fase de elaboração de nossas

leituras quanto cada vez que apresentávamos nosso trabalho em semanas, congressos,

jornadas e simpósios realizados por instituições acadêmicas.

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ANEXO – Letras das músicas

1- CLANDESTINO

Solo voy con mi pena

Sola va mi condena

Correr es mi destino

Para burlar la ley

Perdido en el corazón

De la grande Babylon

Me dicen el clandestino

Por no llevar papel

Pa una ciudad del norte

Yo me fui a trabajar

Mi vida la dejé

Entre Ceuta y Gibraltar

Soy una raya en el mar

Fantasma en la ciudad

Mi vida va prohibida

Dice la autoridad

Solo voy con mi pena

Sola va mi condena

Correr es mi destino

Por no llevar papel

Perdido en el corazón

De la grande Babylon

Me dicen el clandestino

Yo soy el quiebra ley

Mano Negra clandestina

Peruano clandestino

Africano clandestino

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Marijuana ilegal

Solo voy con mi pena

Sola va mi condena

Correr es mi destino

Para burlar la ley

Perdido en el corazón

De la grande Babylon

Me dicen el clandestino

Por no llevar papel

2- DESAPARECIDO

Me llaman el desaparecido

Que cuando llega ya se ha ido

Volando vengo, volando voy

Deprisa deprisa a rumbo perdido

Cuando me buscan nunca estoy

Cuando me encuentran yo no soy

El que está enfrente porque ya

Me fui coriendo más allá

Me dicen el desaparecido

Fantasma que nunca está

Me dicen el desagradecido

Pero esa no es la verdad

Yo llevo en el cuerpo un dolor

Que no me deja respirar

Llevo en el cuerpo una condena

Que siempre me hecha a caminar

Me llaman el desaparecido

Que cuando llega ya se ha ido

Volando vengo, volando voy

Deprisa deprisa a rumbo perdido

Yo llevo en el cuerpo un motor

Que nunca deja de rolar

Yo llevo en el alma un camino

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Destinado a nunca llegar

Me llaman el desaparecido

Cuando llega ya se ha ido

Volando vengo, volando voy

Deprisa deprisa a rumbo perdido

Perdido en el siglo… siglo veinte…

rumbo al veintiuno

3- BONGO BONG

Mama was queen of the mambo

Papa was king of the Congo

Deep down in the jungle

I started bangin’ my first bongo

Every monkey’d like to be

In my place instead of me

Cause I’m the king of bongo, baby

I’m the king of bongo bong

I went to the big town

Where there is a lot of sound

From the jungle to the city

Looking for a bigger crown

So I play my boogie

For the people of big city

But they don’t go crazy

When I’m bangin’ on my boogie

I’m the « king of the bongo, king of the bongo bong »

Hear me when I come

« King of the bongo, king of the bongo bong »

They say that I’m a clown

Making too much dirty sound

They say there is no place for little monkey in this town.

Nobody’d like to be in my place instead of me

Cause nobody go crazy when I’m bangin’ on my boogie

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I’m the « king of the bongo », king of the bongo bong

Hear me when I come

« King of the bongo, king of the bongo bong »

Bangin’ on my bongo all that swing belongs to me

I’m so happy there’s nobody in my place instead of me

I’m a king without a crown hanging loose in a big town

But I’m the king of bongo baby I’m the king of bongo bong

« King of the bongo, king of the bongo bong »

Hear me when I come, baby, king of the bongo, king of the bongo bong…

4- JE NE T’AIME PLUS

Je ne t’aime plus

Mon amour

Je ne t’aime plus

Tous les jours

Parfois j’aimerais mourir

Tellement j’ai voulu croire

Parfois j’aimerais mourir

Pour ne plus rien avoir

Parfois j’aimerais mourir

Pour plus jamais te voir

Je ne t’aime plus

Mon amour

Je ne t’aime plus

Tous les jours

Parfois j’aimerais mourir

Tellement y’a plus d’espoir

Parfois j’aimerais mourir

Pour plus jamais te revoir

Parfois j’aimerais mourir

Pour ne plus rien savoir

Je ne t’aime plus

Mon amour

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Je ne t’aime plus

Tous les jours…

5- MENTIRA…

Mentira lo que dice

Mentira lo que da

Mentira lo que hace

Mentira lo que va

Mentira la mentira

Mentira la verdad

Mentira lo que cuece

Bajo la oscuridad

Mentira el amor

Mentira el sabor

Mentira la que manda

Mentira comanda

Mentira la tristeza

Cuando empieza

Mentira no se va

Mentira, Mentira

La mentira…

Mentira no se borra

Mentira no se olvida

Mentira, la mentira

Mentira cuando llega

Mentira nunca se va

Mentira la mentira

Mentira la verdad…

Todo es mentira en este mundo

Todo es mentira la verdad

Todo es mentira yo me digo

Todo es mentira

¿Porque será?

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6- LAGRIMAS DE ORO

Tú no tienes la culpa mi amor

Que el mundo sea tan feo

Tú no tienes la culpa mi amor

De tanto tiroteo

Vas por la calle llorando

Lágrimas de oro

Vas por la calle brotando

Lágrimas de oro

Tú no tienes la culpa mi amor

De tanto cachondeo

Tú no tienes la culpa mi amor

Vámonos de jaleo

Ahí por la calle llorando

Lágrimas de oro

Ahí por la calle brotando

Lágrimas de oro

Llegó el Cancodrilo y Super Chango

Y toda la vaina de Maracaibo

En este mundo hay mucha confusión

Suenan los tambores de la rebelión

Suena mi pueblo suena la razón

Suena el guaguancon

Baila mi mama

Suenan los tambores de la rebelión

Suena mi pueblo suena la razón

Suena el guaguancon

Tú no tienes la culpa mi amor

Lágrimas de oro…

7- MAMA CALL

Can’t you hear me mama call

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Can’t you hear me crawling

Can’t you hear me mama call

Can’t you hear me trying

Can’t you hear me when I call

I’m a long way from sight

Tonight tonight

It’s a long long night

Tonight tonight

It’s a long long night

Can’t you see me baby fly

Can’t you see me falling

Can’t you hear me when I call

Can’t you see me fall

Can’t you hear me mama call

Can’t you hear me mama call

Tonight tonight

It’s a long long night

Tonight tonight

It’s a long long night

Can’t you hear me mama call

Can’t you hear me crawling

Can’t you hear me when I call

Can’t you see me fall

Can’t you hear me mama call

Can’t you hear me mama call

Can’t you hear me mama call

Me hielo en la habitación

No tengo calefacción

Can’t get no satisfaction

So me bajo par la calle

It’s a long long night

Can’t you hear me mama call

Can’t you hear me crawling

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Can’t you hear me call

Can’t you hear me falling

Can’t you hear me fall

I’m a long way from home…………….

8- LUNA Y SOL

Todo es mentira en este mundo

Todo es mentira la verdad

Todo es mentira yo me digo

Todo es mentira

…¿Porque será?…

Esperando la ultima ola…

Esperando la ultima rola…

…Arriba la luna Ohea…

Mentira lo que dice

Mentira lo que va

Mentira lo que cuece

Bajo la oscuridad…

…Arriba la luna Ohea…

Todo es mentira en este mundo

Todo es mentira la verdad

Todo es mentira yo me digo

¿Todo es mentira?

¿Porque será?

Mentira la mentira

Mentira la verdad

Mentira lo que cuece

Bajo la oscuridad…

Buscando un ideal

Buscando un ideal

¿Cuándo será?

¿Cuándo será?

¿Por dónde saldrá el sol?

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9- POR EL SUELO

(Esperando la Ultima Ola)

Por el suelo hay una compadrita

Que ya nadie se para a mirar

Por el suelo hay una mamacita

Que se muere de no respetar

Patchamama te veo tan triste

Patchamama me pongo a llorar…

Esperando la ultima ola

Cuidáte no te vayas a mojar

Escuchando la ultima rola

Mamacita te invito a bailar…

Por el suelo camina mi pueblo

Por el suelo hay un agujero

Por el suelo camina la raza

Mamacita te vamos a matar…

Esperando la ultima ola

Patchamama me muero de pena

Escuchando la ultima rola

Mamacita te invito a bailar…

Por el suelo camina mi pueblo

Por el suelo moliendo condena

Por el suelo el infierno quema

Por el suelo la raza va ciega…

Esperando la ultima ola

Patchamama me muero de pena

Escuchando la ultima rola

Mamacita te invito a bailar…

10- WELCOME TO TIJUANA

Welcome to Tijuana

Tekila, sexo y marihuana

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Welcome to Tijuana

Con el coyote no hay aduana

Bienvenida a Tijuana

Bienvenida mi amor

De noche a la mañana

Bienvenido a Tijuana…

Bienvenida mi suerte

A mi me gusta el verte

Bienvenida a Tijuana

Bienvenida a Tijuana

Bienvenida mi amor

De noche a la mañana

Bienvenida mi amor

Bienvenida a Tijuana

Bienvenida tu pena

Bienvenida la cena

Sopita de camarón…

Bienvenida a Tijuana

Bienvenida mi suerte

Bienvenida la muerte

Por la Panamericana

Welcome to Tijuana

Tekila, sexo y marihuana

Welcome to Tijuana

Con el coyote no hay aduana…

11- DÍA LUNA… DÍA PENA

Hoy día luna día pena

Hoy me levanto sin razón

Hoy me levanto y no quiero

Hoy dia luna dia pena

Hoy dia luna dia pena

Hoy me levanto sin razón

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Hoy me levanto y no veo

Por ahi cualquiera solución…

Arriba la luna Ohea…

Hoy dia luna dia pena

Hoy me levanto sin razón

Hoy me levanto y no quiero

Hoy dia luna dia muero…

Arriba la luna Ohea…

12- MALEGRIA

Por la calle del desengaño

Esta mañana yo pasé

Con malegría otra vez

Por la calle del desengaño

Mi malegría emborraché

Dentro un vasito de jerez.

Cuando tú me hablas…

Por la calle del desengaño

Mañana pasearé

Con malegría otra vez

Por la calle del desengaño

Mi malegría ahogaré

Dentro un vasito de jerez…

Cuando tú me hablas…

Alíviame, Maria, alíviame

Dame otro beso de jerez

Mañana te lo pagaré

Tu risa me da risa

Tu calor me da valor

Dáme otro beso de licor…

Cuando tu me hablas…

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13- LA VIE A 2

Donne moi de quoi tenir tenir

Je ne veux pas dormir dormir

Laisse moi voir venir le jour…

Notre vie à deux s’arrête donc là

Dans les grandes plaines des peines à jouir

D’une vie qui ne veut plus rien dire

J’espère ne plus jamais faire souffrir quelqu’un

Comme je t’ai fait souffrir…

Je n’étais qu’un mauvais présage

On s’est aimé

Puis vint l’orage

Moi qui aimais tellement ton sourire…

J’espère ne plus jamais faire souffrir quelqu’un

Comme je t’ai fait souffrir

Pourquoi pourquoi même quand les gens s’aiment

Il y a, il y a, toujours des problèmes?

Fallait pas qu’on se connaisse

Fallait pas qu’on soit deux

Fallait pas se rencontrer et puis tomber amoureux

Notre vie à deux s’arrête donc là

Là où les dieux ne s’aventurent pas

Moi qui aimais tellement ton sourire…

Pourquoi, pourquoi, même quand les gens s’aiment

Il y a, il y a, toujours des problèmes?

Moi qui aimais tellement ton sourire

Je n’entends plus que tes soupirs

J’espère ne plus jamais faire souffrir quelqu’un

Comme je t’ai fait souffrir

Moi qui aimais tellement ton sourire

Je n’entends plus que tes soupirs…

Donne moi de quoi tenir tenir

Je ne veux pas dormir dormir

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Laisse moi voir venir le jour…

Il est minuit à Tokyo

Il est cinq heures au Mali

Quelle heure est-il au paradis?

14- MINHA GALERA

O minha macona

Minha torcida

Minha querida

Minha galera

O minha cashueira

Minha menina

Minha flamenga

Minha capoeira

O minha menina

Minha querida

Minha Valeria…

O minha maloka

Minha larica

Minha cashaca

Minha cadea

Minha vagabunda

O minha vida

Minha mambembe

O minha ladera

O minha menina

Minha querida

Minha Valeria

O minha torcida

Minha flamenga

Minha cadea

O minha macona

Minha torcida

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Minha querida

Minha galera

Minha vagabunda

Minha mambembe

Minha belleza

Minha copoeira…

O minha menina

Minha querida

Minha Valeria…

Minha torcida

Minha flamenga

Minha cadea

O minha macona

Minha torcida

Minha querida

Minha galera…

15- LA DESPEDIDA

Ya estoy curado

Anestesiado

Ya me he olvidado de ti…

Hoy me despido

De tu ausencia

Ya estoy en paz…

Ya no te espero

Ya no te llamo

Ya no me engaño

Hoy te he borrado

De mi paciencia

Hoy fui capaz…

Desde aquel día

En que te fuiste

Yo no sabía

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Que hacer de ti

Ya están domados

Mis sentimientos

Mejor así…

Hoy me he burlado

De la tristeza

Hoy me he livrado

De tu recuerdo

Ya no te extraño

Ya me he arancado

Ya estoy en paz…

Ya estoy curado

Anestesiado

Ya me he olvidado

Te espero siempre mi amor

Cada hora, cada día

Cada minuto que yo viva…

Te espero siempre mi amor…

Te quiero… Siempre

Mi amor…

Sé que un día… volverás…

No me olvido que te quiero…T.E.S.M.A…T.E.S.M.A…

16- EL VIENTO

El viento viene

El viento se va

Por la frontera

El viento viene

El viento se va

El hombre viene

El hombre se va

Sin más razón

El hombre viene

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El hombre se va

Ruta Babylon…

Por la carretera

La suerte viene

La suerte se va

Por la frontera

La suerte viene

La suerte se va

El hombre viene

El hombre se va

Sin más razón

El hombre viene

El hombre se va

Cuándo volverá

Por la carretera