universidade federal de alfenas - unifal-mg.edu.br · 2011 . graziela maria de carvalho ... daí...

38
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALFENAS Graziela Maria de Carvalho A Folia de Reis no Distrito de Milagre, Município de Monte Santo de Minas- MG Alfenas/MG 2011

Upload: lynhu

Post on 16-Dec-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALFENAS

Graziela Maria de Carvalho

A Folia de Reis no Distrito de Milagre, Município de Monte Santo de Minas- MG

Alfenas/MG

2011

Graziela Maria de Carvalho

A Folia de Reis no Distrito de Milagre, Município de Monte Santo de Minas- MG

.

Alfenas/MG

2011

Trabalho de conclusão de Curso

apresentado como parte dos

requisitos para obtenção do título de

Bacharel em Geografia pela

Universidade federal de Alfenas.

Área de concentração: Geografia

Cultural. Orientador: Evânio dos

Santos Branquinho.

Sumário:

Introdução................................................................................................05

1- Objetivos............................................................................................11

1.1- Objetivos Gerais...............................................................................11

1.2- Objetivos Específicos.......................................................................11

2- Justificativas........................................................................................12

2- Metodologia.......................................................................................13

4- O multiculturalismo e a tradição nas manifestações religiosas............14

4.1- Definição de cultura e suas vertentes...............................................14

4.2- Religião e Identidade cultural..........................................................16

4.3- Sincretismo religioso e Resistência cultural.....................................18

4.4- Rural e Urbano nas manifestações religiosas....................................19

5- A manifestação da Folia de Reis no distrito de Milagre.......................24

Conclusão..................................................................................................34

Bibliografia................................................................................................36

Resumo

“A cultura aparece como um conjunto de gestos, práticas, comportamentos, técnicas, know-

how, conhecimento, regras, normas e valores herdados dos pais e da vizinhança e adaptados

através da experiência a realidades sempre mutáveis. A cultura é herança da experiência”

(CORRÊA & ROZENDAHL, 2003:162).

A geografia cultural, assim como as manifestações culturais, estão ligadas aos sentidos do

corpo. Religião, música, culinária, vestimentas, costumes, artesanato, permite a distinção

entre os grupos. Dando origem a uma vasta produção cultural.

A cultura tradicional sendo vista como forma de resistência, em oposição a cultura de

assimilação (aculturação) trazem novos elementos ao cotidiano dos grupos sociais.

A Folia de Reis é uma representação subjetiva destes valores e costumes tradicionais que

foram mantidos em determinadas regiões do país. E manifesta sobre a forma de cultura

popular, a religiosidade e fé depositadas na crença nos três Reis Magos.

Palavras- chave: Cultura, tradição, Folia de Reis.

Introdução

O Município de Monte Santo de Minas se localiza na região sul/sudoeste (mesorregião) do

Estado de Minas Gerais, sua economia gira em torno da agricultura, sobretudo nas plantações

de café. Com IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) médio, cerca de 0,745

(PNUD/2000), e população total de 21.246 habitantes (Censo IBGE/2010).

Apresenta características fortemente rurais no que tange à economia, cultura, formação

social, etc. Em sua formação, o município passou a ser ocupado pelos trabalhadores expulsos

das jazidas de ouro de Jacuí, com a exaustão da mineração, estes trabalhadores foram em

busca de terras para iniciar a cultura de café em expansão no início do século XIX.

A economia local apresenta relativa dependência à atividade rural, de longa tradição na

região, principalmente à cultura de café, pela falta de uma rede industrial local de maior

significância. Com a mecanização das lavouras de café a partir da década de 80, houve intensa

migração da população rural para a área urbana do município, com consequente criação de

novos bairros na periferia da cidade. Da população total, 15.597 pessoas, ou seja, 73,5% da

população é considerada urbana.

Milagre, com população de 2.630 pessoas, é distrito da cidade de Monte Santo de Minas. O

Distrito foi criado pela lei estadual número 843, de 07 de setembro de 1923. Mais tarde, pela

lei de nº 336 de 12 de dezembro de 1948, o município de Monte Santo recebe a denominação

de Monte Santo de Minas, e pela mesma lei é criado o distrito de Milagre e anexado à cidade,

segundo dados da Prefeitura municipal de Monte Santo de Minas.

Um ramo econômico muito promissor para a cidade seria o turismo, se contasse com um

marketing e apoio mais efetivos da prefeitura, a exemplo dos encontros de Folias de Reis e do

carnaval, considerado um dos melhores da região, que chega a reunir em torno de 14.000

pessoas.

FIGURA 1- LOCALIZAÇÃO DO MUNICÍPIO DE MONTE SANTO DE MINAS NO ESTADO DE

MINAS GERAIS. Coordenadas: 21º 11’ 24” S e 46º 58’ 48” O

Fonte: IBGE. Acesso: 17/11/2011

FIGURA 2- VISTA DO DISTRITO DE MILAGRE-MG

Fonte: www.panoramico.com.br acesso: 17/11/2011

A Folia de Reis é uma festa popularmente (re)conhecida no interior do Brasil, em especial na

região sudeste, onde este tipo de manifestação é mais presente (sul de minas e interior de São

Paulo). Embora a forte religiosidade esteja presente, não é uma festa cristã reconhecida pelo

catolicismo. Com caráter profano- religioso busca no sincretismo se adaptar às mudanças

estabelecidas pelos costumes e tradições, e se mantém forte na área de estudo citada acima.

Fruto do pluralismo religioso, étnico e cultural, como afirma Pergo (2011:1) “as festas

populares são tradições que constituem a resistência dos povos em defesa de sua cultura e de

seus costumes”.

A Folia de Reis teve sua origem na Península Ibérica, sendo tal tradição difundida por toda

esta. Chegou ao Brasil, trazida através dos padres jesuítas no século XVI, durante a

colonização portuguesa. “Na evolução histórica do Brasil, as Folias de Reis sofreram um

processo de aculturação que as modificou, consequência do fenômeno de transplantação,

tendo como resultado atitudes e comportamentos novos com relação aos comportamentos

religiosos e culturais originários” (PASSOS, 2011:10).

Esta reencena a viagem feita pelos três Reis Magos a Belém, onde para referenciar o menino

Jesus Belchior oferece ouro, símbolo da realeza espiritual, Baltazar oferece mirra, símbolo da

mortalidade dos homens, e Gaspar oferece incenso, símbolo de oração e fé.

Os três Reis na sua chegada ofertaram seus presentes

Era incenso , mirra e ouro pro menino onipotente

A virgem tão contente: o incenso eu posso aceitar

O presente é tão sagrado pra santificar o meu altar

Mas a virgem contrariou a mirra e ouro

O menino nasceu pobre não podia ter tesouro

(citado por Geovani dos Reis, ”bastião” do grupo “Incenso, ouro e mirra” do

Distrito de Milagre -Mg)

Estes versos são referentes à visita dos Reis Magos a Jesus em seu nascimento, comumente

citados pelos “palhaços” das folias.

Como “herança” cultural portuguesa a dança, os instrumentos musicais, e os cânticos

presentes no teatro de Gil Vicente, apresentado em seus autos nas Catedrais este conjunto de

atores foi inserido na catequização dos índios e negros no Brasil. Estes não só absorveram a

cultura europeia presente no catolicismo, como utilizaram-se desses meios para manter e

manifestar sua fé. “Confrontados com valores estranhos a sua concepção do mundo, os negros

assimilaram os elementos e padrões europeus de devoção de acordo com suas próprias

concepções religiosas” (SOUZA, 2002:4 apud RIOS, 2006). Instrumentos de percussão como

tambores eram utilizados em culto às divindades africanas sob a imagem dos santos católicos.

A Folia de Reis é uma festa tipicamente rural, presentes nas regiões cafeeiras e de cana-de-

açúcar, com o êxodo rural esta manifestação migrou para a cidade onde sofreu modificações.

Geralmente os ternos ou grupos de Reis saem às ruas batendo de casa em casa do dia 24 de

dezembro, até 6 de janeiro quando se encerram as festividades. Pode se perceber certa

hierarquia dentro dos ternos, o grupo é composto pelo alferes ou bandeireiro, que leva a

bandeira (representação simbólica da estrela guia) à frente do cortejo e cuida das doações

recebidas, pelo embaixador ou capitão que é o mestre de cerimônia e quem entoa os cânticos,

pelo palhaço ou bastião que faz papel cômico e distrai os foliões. Segundo o Sr. Lázaro de

Lima, eles eram soldados do rei Herodes que perseguiam as caravanas em busca do

primogênito que viria a ser o “salvador”, quando encontraram a “sagrada família” se

renderam pela fé e passaram a distrair os perseguidores. Dai o fato das coreografias, roupas

coloridas, e máscaras serem usadas por estes integrantes.

Pra cumprir essa promessa que o festeiro fez

Eu peço a benção sagrada pros amados Santos Reis

Santos Reis que abençoem, que tragam consagração

Pra fazer essa saída com muita fé e devoção

Me deram esta farda toda enfeitada de flor

Pra cumprir essa promessa com carinho e com amor

Me deram esse chicote e uma prova de coragem

Mais com ele eu defendo os três Reis nessa viagem

(...)

Três homens fantasiados naquela hora apareceram

Chamando toda atenção os soldados entreteram

Pra chamar a atenção fizeram acrobacia

Enquanto eles brincavam veja o que acontecia

Entre plumas e efeitos uma linda fantasia

Atravessaram seu destino naquele sagrado dia

Não importa o que carrego, o que trago na mão

O importante é que trago Cristo no coração

(Geovani dos Reis)

FOTO 1- PALHAÇO OU BASTIÃO CARACTERIZADO NA FOLIA DE REIS

Fonte: “Guerino” (grupo “Estrela Guia” do Distrito de Milagre- MG)

A visita dos Santos Reis ou três Reis Magos é estabelecida quando o dono da casa permite a

entrada da bandeira, beijando-a por respeito e fé, passando por todos os cômodos da casa em

sinal de agradecimento e proteção. Daí então, são entoados cânticos em louvor e

agradecimento, pedindo proteção e saúde, ou mencionando o nascimento de Jesus, são vários

os temas presentes nas canções. Quando se recebe a bandeira é estabelecida uma relação de

troca, aquele que a recebeu em agradecimento faz uma doação, oferece uma “prenda” que

pode ser em dinheiro, comida, ou o que poder doar. “Tudo é simbolicamente usado para

retratar a história pela fé cristã: objetos personagens, campos, roupas, e cores (...) acreditando

no caráter religioso atribuído popularmente aos três Reis Magos, protetores das famílias, das

criações, das lavouras e dos bens terrestres” (TIRAPELLI, 2003: 40 apud GONÇALVES,

2008).

A casa do pousio é onde a bandeira permanece no fim de uma jornada para a continuação da

peregrinação até o encerramento da festividade. A festa da chegada da bandeira é uma grande

celebração onde toda a comunidade se reúne para compartilhar desejos, pagar promessas,

agradecer as bençãos recebidas, etc. Estão implícitos valores cristãos de reciprocidade,

aceitação, submissão, e humildade. A Folia de Reis é uma forma de pertencimento, identidade

social e cultural das camadas mais pobres, uma forma dessas pessoas se sentirem parte

integrante da sociedade em que vivem.

FOTO 2- FESTA DE CHEGADA DA FOLIA DE REIS

Fonte: Vladimir Coelho 06/01/2010

Obs: Arcos de bambu representam a entrada para a gruta de Belém

FOTO 3- BANDEIRA REPRESENTANDO A ESTRELA GUIA

Fonte: “Guerino” (grupo “Estrela Guia” do Distrito de Milagre- MG)

03/01/2007

1-Objetivos

1.1- Objetivos Gerais

Realizar um levantamento histórico, simbólico e cultural da Folia de Reis como forma de

resistência e manifestação de fé no distrito de Milagre, pertencente ao Município de Monte

Santo de Minas. Uma vez que nestes, esta festa tradicional se mantém viva e a cultura

popular não é estática, muda com as transformações do tempo e espaço.

Estabelecer as transformações e adaptações desta manifestação sagrada e profana ao mesmo

tempo, a fim de verificar a coexistência desta no cotidiano e na vida das pessoas. Bem como a

ligação desta com a religiosidade e fé presentes.

1.2- Objetivos Específicos

A partir da definição de cultura, elaborar a noção de paisagem como elemento fundamental

para o estabelecimento de valores, diferenciação e correlação entre ambas; definir o caráter

tradicional, os costumes, a cultura popular local (Distrito de Milagre, Município de Monte

Santo de Minas) e suas modificações ao longo do tempo, considerando o seu contexto

histórico e geográfico. O objetivo, sobretudo, é criar hipóteses que expliquem a permanência

da tradição da Folia de Reis nessa localidade.

2-Justificativas

Sendo a cultura um conjunto de hábitos adquiridos envolvendo atitudes e preferências, que

foram inventadas ou se mantiveram no tempo, é de fundamental importância estabelecer os

critérios de sobrevivência desta cultura popular. Que é determinada pelo senso comum, pela

identidade cultural de um grupo fundamentada na legitimidade da tradição, pela religiosidade

nestas manifestações, e pela hegemonia de determinadas classes sociais na cultura de massa.

Não se trata de uma simples descrição folclórica, mas de uma manifestação interna dos grupos

que estão expostos a diferentes tipos de agentes, com intuito de estabelecer critérios entre as

possíveis causas de sua manutenção, transformações, e seu não desaparecimento.

3- Metodologia

Para o presente trabalho, inicialmente, foram realizadas a seleção e leitura bibliográfica para

formalizar a conceituação teórica sobre o tema. Também foram utilizadas reportagens

referentes à “Folia de Reis”, retiradas do jornal Folha do Povo Notícias, que tem circulação na

região (Monte Santo de Minas, Arceburgo, Guaranésia e Itamogi).

Para a pesquisa de campo, foram utilizados dados coletados, tais como: vídeos e fotografias

da Folia de Reis no Distrito de Milagre, e no município de Monte Santo de Minas.

Foram realizadas aproximadamente 15 entrevistas em caráter informal, com membros do

grupo de Folia de Reis “Ouro, Incenso e Mirra” no distrito de Milagre e seus seguidores,

escolhidos de forma aleatória.

4-O multiculturalismo e a tradição nas manifestações religiosas

4.1-Definição de cultura e suas vertentes

A partir da década de 70 com o processo de renovação da geografia, a geografia cultural

ganha maior destaque, a crítica à ciência como saber neutro e objetivo ganha enfoque

humanístico e subjetividade. Tal conceito se aproxima das definições feitas por autores como

Maia (2001); Corrêa e Rozendahl (2003); Melo (2005) ou Claval (2011). Partindo de La

Blache, onde “o homem é um fator geográfico”, o gênero de vida, ou modo de vida dos

indivíduos se propagava num conjunto de técnicas que definiam a relação deste com o meio

(“espaço vivido”), sendo a paisagem o principal fator dessas representações.

“A tarefa da geografia cultural é apreender e compreender essa dimensão da interação

humana com a natureza e seu papel na ordenação do espaço” (CORRÊA & ROZENDAHL,

2003: 103), ou seja, a cultura é a análise de significados representada por meio da técnica.

A paisagem é o suporte destas representações, pois funciona como matriz e marca, matriz

porque contribui para transmitir significado a outras gerações, marca porque cada grupo

contribui para modificar o espaço, “é uma forma especial de dar significado, estruturar e

compor o mundo externo” (COSGROVE e JACKSON, 2000 apud MELO, 2005:18).

A identidade cultural de um povo se baseia no conjunto de informações e

conhecimentos acumulados pelas pessoas ao longo do tempo, “as formações sociais

escrevem a história no espaço, e a história de tal formação é a história da

superimposição de formas produzidas em sua paisagem através da sucessão de

modos de produção. Uma vez que estes modos de produção são simbolicamente

construídos, lugar e paisagem são imediatamente dotados de significado humano”

(SANTOS, 1997:128 apud CORRÊA & ROZENDAHL, 2003).

Esta paisagem pode ser tanto material, tendo um objetivo apropriado e transformado pela

ação do homem; quanto imaterial tendo componente subjetivo, ou seja, significado. Não são

neutras, refletem relações de poder entre os grupos sociais e a forma como estes interpretam o

“espaço vivido”.

A paisagem aqui não é vista somente como meio natural, mas como reflexo da apropriação

do homem sobre o território. Paisagem é a “representação” do homem no espaço, representa

a cultura local carregada de símbolos, que trazem consigo significações e dão identidade ao

território. Reconhecer-se no espaço é fazer parte do cotidiano do lugar, uma sociedade não

existe fora do meio onde se instala, a organização desta no território é estruturada pelos

valores a que está vinculada.

A paisagem tem tanto uma perspectiva funcional, quanto arqueológica, onde os traços que a

moldaram permanecem no tempo, portanto a paisagem é simbólica. Reflete a realidade

objetiva dos homens em relação ao meio, respondendo às necessidades sociais, lúdicas e

estéticas; “(...) o espaço não é um meio contextual (real e lógico) sobre o qual as coisas estão

colocadas, mas sim o meio pela qual é possível a disposição das coisas (MERLEAU PONTY,

1993 apud FILHO, 2002:257)”.

A paisagem através da construção do “eu”, e na maneira com que se coloca no tempo e no

espaço torna-se a consciência do lugar. A imagem do espaço (paisagem) é expressa no

dualismo entre interior (eu) e exterior (materialização).

“O espaço cotidiano é totalmente desencantado, mas ele se duplica em um espaço mais

profundo, onde se pode descobrir a verdade do ser humano, da sociedade ou da natureza”

(CLAVAL, 2011:5). Ou seja, a noção de lugar evoca ao enraizamento, dá sentido à

experiência dos grupos.

As manifestações culturais no geral são produto das representações do cotidiano, território e

região é a maneira como os homens constróem e dão sentido à geografia que os cercam,

através das festas e rituais por exemplo.

Sua construção pode ser fenomenológica/ subjetiva e positivista/objetiva, é dada pela

integração do sujeito com o objeto, portanto histórico-cultural, sem dissociações.

Sendo o “modo de vida” o instaurador dos tipos de cultura, os costumes e as tradições são

valores e normas de comportamento estabelecidos através da repetição, pelo “senso comum”.

O conjunto de técnicas que definem a relação do homem com o meio constitui os costumes,

ou seja, o gênero de vida.

Já a tradição é algo transmitido, entregue às novas gerações sem necessariamente passar por

um registro histórico, é transmitida mais pela observação do “aprendiz”, do que pelos

ensinamentos que este venha a receber. Daí a importância da oralidade e da memória nas

manifestações culturais.

O encadeamento de conhecimento antrópico, o exótico e diferente presentes nas

manifestações culturais, e a identidade cultural de um grupo social expressos na legitimidade

das tradições é o que se define por folclore. Algumas manifestações folclóricas podem ser

exemplificadas, como por exemplo, Congadas, Folia de Reis, Festa de Nossa Senhora do

Rosário, São Benedito, etc. todas elas contidas de grande religiosidade.

Religião e paisagem juntas modificam a natureza do espaço, e criam lugares e valores

simbólicos com identificação cultural; “o lugar sagrado é o lugar simbólico, lugar que unifica

os grupos humanos quanto aos valores religiosos” (ROZENDAHL, 2003:182). É neste

contexto que a Folia de Reis se manifesta.

A cultura popular é legitimada pela tradição, pois a folia de reis é uma releitura singular e

popular realizada sobre a bíblia.

Cultura neste sentido, é a soma dos comportamentos, conhecimento, técnicas e valores, éticos

e morais ao longo da vida do indivíduo. Uma herança, não um conjunto fechado e imutável de

códigos que desencadeiam objetos e ações por meio da repetição.

A apreensão do mundo e da sociedade é feita através dos sentidos, a cultura é transmitida

pelas representações coletivas, num sistema hierarquizado de preferências e valores, num

conjunto de crenças e normas de domínio religioso. Os indivíduos agem independentemente

mais em conformidade com a sociedade.

Para CLAVAL, 2011:249 “Eles criam categorias geográficas e desenham contornos de

espaços sobre os quais ninguém tinha até então consciência”.

As culturas de classe provocadas pela hierarquização social, nada mais são do que a

consciência sobre o que une e distancia os grupos. Grupos que vivem à margem da sociedade,

seja por isolamento, ou por exclusão, possuem uma cultura própria e geram movimentos de

resistência; a cultura se transforma tanto pelas imposições do meio físico, quanto pela vida

social e suas experiências.

4.2- Religião e Identidade Cultural

O sentimento de identidade é baseado na ideia de uma descendência comum, sendo a

territorialidade o elo dessa identificação [ver Queiroz (1989) e Prandi (2001)].

A difusão das culturas faz nascerem novos centros de inovação, mas os códigos determinam

seu alcance. É possível que duas culturas convivam juntas num mesmo espaço sem perder

suas especificidades.

A impregnação dos códigos (linguísticos e outros) e a adesão aos mesmos valores centrais

estruturam uma cultura. Cultura esta que pode ser imposta (por dominação) ou sobreposta

(transformada), sem, no entanto perder a sua identidade, sua essência.

As estratégias desenvolvidas nas situações multiculturais não visam sempre à

integração individual, à aculturação de massa ou à proteção das identidades

presentes. Tentam, às vezes, solapar as normas dos diferentes grupos e propor

novidades, a partir das quais identidades originais poderão se construir e uma nova

sociedade poderá se constituir (CLAVAL, 2001, p. 184).

Os fundamentos políticos de uma sociedade são relacionados com a crença da mesma. O

pensamento ocidental se estruturou em torno da ética e moral cristã. O cristianismo, a Igreja

católica e a Bíblia difundiram a cultura ocidental por todo o mundo; os europeus impuseram

sua cultura durante muito tempo porque possuíam técnicas mais avançadas, e pelo domínio

religioso que estabeleciam nas terras conquistadas (catequização pelos missionários).

O sincretismo religioso é uma forma de resistir às crenças “estrangeiras” e manter a cultura

local, podendo haver ou não confusão e dificuldade de dissociação dessas religiões.

Já o nacionalismo ou fundamentalismo religioso indica a dificuldade dos grupos em relação

ao multiculturalismo (no ocidente essa relação é menos restritiva); Não é necessário

concordar com determinados traços culturais, mas se deve respeitá-los.

Os sistemas simbólicos têm função estruturadora mediante os consensos, a integração lógica

é condição da integração moral. Segundo BOURDIEU seu “poder” é uma espécie de “círculo

cujo centro está em toda parte e em parte alguma”. É algo invisível que só se concretiza com o

apoio de quem o exerce ou é sujeito a tal.

A religião possui função ideológica que legitima a força material ou simbólica de um grupo

ou classe. Ou seja, a moral de um grupo é apoiada na ética religiosa.

As religiões no Brasil são produto de uma ordem imposta pelos colonizadores. Que

utilizaram o poder político e simbólico como instrumento de dominação (das classes

superiores pelas subordinadas), indica um ideal mais ortodoxo, considerado como verdadeiro,

e que define a posição de um grupo em uma determinada classe.

As classes inferiores sempre buscaram conforto e amparo na religião. Através da cultura

popular, reinterpretam-se os valores simbólicos da religião pela modificação da linguagem

(uma reinterpretação de princípios mediante a posição ocupada em sua estrutura social),

dizendo a mesma coisa de forma bem mais simples.

É comum falar “errado” ao citar pedaços de orações e ladainhas das religiões afro-

brasileiras, assim como a religião, a língua se modificou e se misturou. Portanto as variações

fonéticas não devem ser encaradas como ignorância ou obscurantismo, sendo muitas vezes

ridicularizadas.

Por exemplo, utilizar um cântico para manifestar crenças particulares ou o descontentamento

sócio econômico e político, repletos de ideais de liberdade. São também fonte de

armazenamento histórico, manifestam a fé dos oprimidos num universo utópico, guardam a

memória de um povo, percebem a cultura e a reinterpretam através do outro.

Pensar a ordem social como relacional, e não como conservadorismo estrutural, pois

heranças culturais africanas como o samba, capoeira e feijoada, são incorporações dos negros

na cultura imposta.

4.3-Sincretismo religioso e resistência cultural

As religiões negras surgem como resistência cultural dos africanos e afrodescendentes às

imposições e dominação da sociedade branca e cristã, que marginalizava os negros, muitos

adeptos destas religiões se declaravam católicos pelo preconceito contra os negros. Podemos

dizer que as religiões africanas se escondiam sob a máscara de uma adesão superficial ao

catolicismo, considerada como única religião “verdadeira” no país.

A classe social e o nível de escolaridade (define o grau de cultura do indivíduo) também

influenciam na escolha da religião, a classe média branca em sua maioria é católica [ver

Prandi (2004)].

O multiculturalismo é sinônimo de sincretismo, pois se refere a estratégias para administrar

problemas causados pela diversidade cultural, seu discurso está focado na raça ou etnia para

caracterizar as diferenças culturais e religiosas. A grande heterogeneidade de traços culturais

(ligados a grupos étnicos) impediria o Brasil de se “civilizar”. Esse etnocentrismo gera

preconceito e cria uma tendência nos indivíduos, a de negar esta diversidade, como afirma

Ferreti (2008).

Por outro lado o sincretismo origina hibridismo cultural, ou seja, fusão de diferentes

tradições culturais e religiosas dando um aspecto mais ameno em relação à ortodoxia, valores

opostos e complementares criam os paralelismos. Fruto do hibridismo cultural, religioso e

étnico que originaram uma cultura resultante, um sub-produto das culturas originais. Por

exemplo, a Folia de Reis.

Portanto sincretismo é uma reinterpretação que assimila mudança cultural relacionada com

as religiões afro-brasileiras. É uma síntese integradora entre religiões de diversas origens, já

que a ideia de pureza religiosa é um mito, uma ideologia.

O sincretismo afro-brasileiro é decorrente da repressão política sobre os negros, para eles, esta

era uma forma de sobrevivência.

A partir da imigração de europeus para o Brasil (principalmente italianos) na década de 20, o

sincretismo passou a ser visto como “ameaça” contra a cultura europeia, conservadora e

avessa a diversidade cultural.

A suposta “superioridade” étnica e religiosa dos brancos europeus não determinou portanto,

a anulação das religiões afro-brasileiras; pelo contrario, sua importância na construção

cultural do Brasil como um todo foi reconhecida (pelos intelectuais e religiosos)

caracterizando a aplicação de conhecimento em nível teológico às práticas religiosas.

A identidade nacional se expressa pela identidade cultural; as festas religiosas populares

estão relacionadas com o sincretismo, considerado aqui, como característico das classes

subalternas, a dicotomia entre popular e oficial não é aceita pela classe religiosa mais

intelectualizada e conservadora, mas todas as camadas sociais estão interligadas por um

estrato cultural semelhante, mudando apenas sua forma de representação num ou noutro

grupo.

Para concluir podemos dizer que o sincretismo, elemento essencial de todas as

formas de religião, está muito presente na religiosidade popular, nas procissões, nas

comemorações dos santos, nas diversas formas de pagamento de promessas, nas

festas populares em geral. Constatamos que o sincretismo constitui uma das

características centrais das festas religiosas populares. Nas religiões afro-brasileiras

o sincretismo é uma forma de relacionar o africano com o brasileiro, de fazer

alianças como o escravo aprendeu na senzala e nos quilombos “sem se transformar

naquilo que o senhor desejava” (REIS 1996: 20), nem ficar ”presos a modelos

ideológicos excludentes” (MUNANGA, 1996: 63) apud (FERRETI 1997).

4.4- Rural e Urbano nas manifestações religiosas

Nos regionalismos e nacionalismos estão em jogo tanto as conservações e transformações

na esfera social, como nas esferas simbólicas, individuais ou coletivas; mais pela

organização social, que pela materialização propriamente dita. Em função das

transformações econômicas, culturais e sociais, os diversos grupos têm passado por um

processo de desenraizamento cultural segundo Biazzo (2007), Silva Júnior (2007) e Bezerra

(2008).

O desenvolvimento das grandes religiões universais está relacionado com a divisão cidade

e campo, as longas distâncias espaciais e a sazonalidade do campo, em oposição ao

adensamento urbano e sua racionalização, geram aspirações éticas e morais a respeito do

bem e do mal, a linha entre eles diminui quando se está perto do sagrado, considerado fonte

de verdade.

O “século das luzes” provocou uma revolução intelectual, criando a oposição racionalismo

X religião; Deus não é mais a explicação para todas as coisas, questionar e produzir

informação são as novas diretrizes. Daí a racionalização e interiorização dos fenômenos

religiosos; não existe mais a ideologia de que as religiões universais “[...] estão associadas à

crença de que sua mensagem e sua doutrina tratam da vida e das relações com Deus ou

deuses de maneira apropriada para todas as pessoas [...] romperam seus laços com o lugar

específico de origem e disseminaram sua mensagem (ROZENDHAL, 2002:204)”.

A Igreja (como instituição) tenta manter o “monopólio” da fé e impedir a “concorrência”

religiosa. Ocorre uma “caução” institucional por parte desta, que põe em prática a

“ritualização” (ritmo) e canoniza as crenças populares, sujeitas à demanda das classes

inferiores (camponeses).

A diferenciação da capacidade produtiva entre campo e cidade baseada em nível de

conhecimento, traduz a oposição entre sagrado e profano no sentido de religião inferior e

superior. A religião dos que detém o conhecimento é sagrada, enquanto a religião dos

“ignorantes” é profana (vulgar). Aquele que detém o conhecimento é superior nas esferas

material e simbólica.

Assim sendo, a cidade é o espaço de produção cultural e intelectual, enquanto o campo é

fonte da materialização de uma “subcultura”. Reproduz o domínio das classes superiores

em relação às subalternas.

“Saber” sagrado e “ignorância” profana têm como consequência a pauperização religiosa

decorrente desta separação simbólica. Está em jogo o domínio prático e objetivo do campo,

contra o domínio erudito da cidade substanciado ao nível de conhecimento, que criam

ideologias religiosas apoiadas em “interpretações letradas”.

A cultura urbana está associada à economia, ao ritmo de trabalho, status social, etc.

Enquanto o campo se baseia no “tempo da natureza” (manhã, pôr do sol, noite, etc.) numa

sequência “não cronológica” ao tempo do relógio. Na sociedade contemporânea “tempo é

dinheiro”, algo a ser consumido. Já nas sociedades tradicionais, o tempo tem que ser criado

ou produzido, é o tempo vivido, acumulado, acontecido, não existem nem passado, nem

futuro. O “modo de vida” que compõem a cultura, é a forma pelo qual o indivíduo enxerga

a si mesmo e o mundo a sua volta, rural e urbano são condição das relações sociais.

Portanto não interfere na esfera das crenças e religiosidade, rural e urbano são tidos “como

conjunto de formas concretas a compor os espaços produzidos pela sociedade (BIAZZO,

2007:10)”.

No momento atual, apesar de manter o discurso tradicional, as religiões tentam se adaptar à

realidade do indivíduo (fruto das contradições entre fé e progresso); trazendo bem estar e

conforto.

As superstições populares estão misturadas aos dogmas mais refinados. Nem o

pensamento, nem a atividade religiosa encontram-se igualmente distribuídos entre

as massas de fiéis. Conforme os homens, os meios, as circunstâncias, tanto as

crenças como os ritos são percebidos de maneiras diferentes (BOURDIEU,

2007:41).

Não devemos confundir restos descontextualizados e reinterpretados de uma cultura

erudita do passado como vestígios de uma cultura original.

“Como construção relacional, a identidade supera posições essencialistas. Nessa

perspectiva, a construção é tanto simbólica quanto social (WOODWARD, 2004:10 apud

BEZERRA, 2008:11)”, transpõem o território; O espaço geográfico é um conjunto de

sistemas de objetos e ações intermediado pela organização social, já o território é a leitura

que o indivíduo faz deste espaço e o materializa através da paisagem. As festas religiosas por

meio deste são traduzidas como experiências e imagens da sociedade diante dos laços que

integram as percepções baseadas na tradição cultural e identidade local e regional, “(...) que

combinadas, ensejam as territorialidades particulares de cada localidade, município ou

recorte regional (BIAZZO, 2007:19)”, obtidas através de hábitos e costumes.

A paisagem (urbana ou rural), considerada aqui como simbólica é fruto das relações

interpessoais, ou seja, uma construção social ligada à disponibilidade dos homens em

viverem em sociedade. O espaço da cidade é o ponto de encontro para as festas religiosas

(auge das manifestações culturais), entre elas a Folia de Reis. São nos espaços públicos que

elas acontecem, por exemplo, praças e ruas. Reproduz no tempo e no espaço, a identidade

social tanto em nível simbólico, quanto material, e uma efetiva reunião de seus participantes

em nível sócio-geográfico.

A Folia de Reis é uma festa urbana levada para o meio rural, reforçada pelas relações de

proximidade existentes nesse tipo de comunidade. Considerando aqui espaço rural também

os pequenos municípios, com menos de 20 mil habitantes (baixo grau de urbanização), o

distanciamento provocado por este faz com que as pessoas se unam numa relação de

solidariedade, criando um efeito oposto em comparação à cidade (onde apesar da

proximidade, existe maior distanciamento nas relações interpessoais). Ou seja, as relações

tradicionais mantidas nas pequenas cidades sofrem menor influência do espaço geográfico

urbano e suas interações, que possibilita a regulação e inovação sócio-espacial que se apoia

nas posições de poder político e econômico.

Assim, a festa, é do ponto de vista da geografia, uma oportunidade de (...) perceber

os signos especializados pelos quais os grupos sociais se identificam a contextos

geográficos específicos que fortificam sua singularidade. A festa possui com efeito,

a capacidade de produzir símbolos territoriais cujo o uso social se prolonga além

de sua duração. Esta simbólica festiva une e qualifica lugares (...) (DI MÉO,

2001:1-2 apud BEZERRA, 2008:9).

Nesse sentido, confere ao território visibilidade. O que caracteriza o evento, nesse caso a

Folia de Reis, é que ela se inscreve sempre de acordo com as lógicas sociais do momento

(racionalismo) e entra no processo de fabricação permanente das relações espaciais e dos

territórios (identidade). A festa tem um caráter integrador que vai além da sua duração (de

24 de dezembro a 06 de janeiro), sua permanência está nas relações mantidas pelos

indivíduos desde sua preparação, tais como confecção de vestimenta, organização e

estruturação do grupo de reis, identificação das casas de pousio, arrecadação de prendas,

etc., até o ápice da manifestação.

As festas, contudo, não têm sido utilizadas somente para afirmar a coesão dos

habitantes nas cidades e, portanto, das relações hegemônicas, mas também foram e

são utilizadas para construir uma unidade e (re) significar a identidade de grupos

subalternizados historicamente, a exemplo da população negra no período colonial

no Brasil (BEZERRA, 2008:9).

Representam particularidades e singularidades, sua (re) interpretação provoca redefinição

das espacialidades e temporalidades, necessárias para a manutenção da tradição (definidas

de acordo com o consenso do grupo), bem como o entrelaçamento entre a cidade e os rituais

festivos que desempenha papel importante na relação homem meio (confere unidade ao

território e aos grupos). Os habitantes são ao mesmo tempo atores e espectadores, através

das festas populares tem a oportunidades de vivenciarem as tradições e valores culturais

africanos. Que se apresenta num conjunto de práticas e de comportamentos do cotidiano

através de cerimônias, memórias, simbolismo, discursos históricos e mitológicos. Do ponto

de vista geográfico, permite compreender a natureza do laço territorial e compartilhamento

do símbolo que é comemorado.

A síntese dessas relações sociais ultrapassa o limite do território, sejam cidades ou regiões,

sua legitimação é reconhecida por outros grupos. Vai além do seu acontecimento, reproduz

as ambiguidades e contradições sociais pelo seu calendário rítmico, espaço relativamente

fixo e reprodução dos fenômenos sociais e territoriais locais de acordo com Souza apud

Almeida (2011).

A reinvenção das festas traz consigo a resignação e reafirmação da identidade local

acompanhada pela reestruturação e reorganização do espaço, que são reflexo da forma de

pensar de determinada sociedade. O espaço- tempo da festa, separa o espaço- tempo do

cotidiano, constrói uma geografia simbólica; o espaço nesse caso é mítico, o território

constrói um universo político e ideológico, por exemplo, um bairro, cidade, povoado, etc.

rompendo as relações de poder entre altas e baixas classes sociais; “a festa rompe com o

cotidiano ao criar um espaço- tempo governado provisoriamente pela ficção, pelas

reviravoltas ou inversões das situações, dos papéis e das posições, seja pelo absurdo, seja

pela alegria (ALMEIDA, 2011:251)”.

A territorialização se dá pelas ornamentações dos locais onde se realiza o festejo, onde são

traduzidas as experiências e imagens da sociedade em questão, o território é espaço

geográfico acrescido de sentimento e identificação.

5- A manifestação da Folia de Reis no distrito de Milagre

A Folia de Reis é uma festa popular de origem portuguesa, relacionada com o culto católico

do natal, trazida para o Brasil na formação de sua identidade cultural, está presente em

diversas manifestações folclóricas de diferentes regiões do país.

Relata a tradição católica do nascimento de Jesus e a visitação dos “três Reis magos”; que

é comemorada por grupos que visitavam as casas tocando músicas alegres em louvor aos

"Santos Reis" e ao nascimento de Cristo.

Desde mil e quatro no tempo da monarquia

Havia um sinal na Terra

A vinda de Deus Messias

Vinda de Deus ao mundo ninguém podia perceber

Só os profetas de Deus poderiam compreender

(alusão aos Reis Magos)

Os grupos são compostos por músicos instrumentistas e cantores, e também por palhaços e

outras figuras folclóricas de acordo com as lendas e tradições locais. Todos se organizam

mediante a liderança do Mestre da Folia e seguem com reverência os passos da bandeira

(sempre à frente do grupo), cumprindo rituais tradicionais de inquestionável beleza e riqueza

cultural.

No Sul de Minas o grupo de Folia de Reis é composto pela Bandeira que é decorada com

figuras alusivas ao menino Jesus, pelo Bastião que se veste de modo característico, sempre

mascarado, e exerce a função de folião propriamente dito, levando alegria por onde a folia

passa, como que abrindo caminho para a passagem da Folia que de certa forma representa os

próprios Reis Magos. O Bastião tem também a função de citar textos bíblicos e recitar poesias

alusivas.

Eu peço ao pai eterno que está lá nas alturas

Que nasceu um santo humilde

De uma virgem tão pura

Que nos dá o ensinamento e também a sagrada escritura

Eu peço a Jesus Cristo, nesta hora, neste momento

Que purifica minha alma e também meu pensamento

Que me livra de todo mal e também do sofrimento

Dentro do prazo marcado, vai chegando a companhia

Recebemos o poder maior, o poder da estrela guia

Que Jesus derrame sua luz, a esta sagrada família

(citado por Geovani dos Reis, ”bastião” do grupo “Incenso, ouro e mirra” do Distrito

de Milagre -Mg)

Na sequência, o grupo de vozes que compõem os cânticos se organiza em: Mestre ou

Embaixador, Respondedor e Ajudante formando a primeira voz. Tala, Contrato e Caceteiro,

formam o coro. E Finório as vozes mais agudas. Esses nomes se referem a uma organização

das vozes em tons e contra tons, durante a cantoria, o que leva a formação de um coro. O

Mestre, por sua vez, tem papel especial de iniciar o canto, que é feito em versos de improviso,

agradecendo os donativos da casa visitada. Os outros componentes então repetem os versos,

cada qual em sua voz, acompanhados pelos instrumentos que portam.

As canções são sempre sobre temas religiosos, ou em agradecimento aos almoços e jantares

oferecidos pelos donos da casa que recebem os foliões. Em algumas regiões as canções de

Reis são incompreensíveis, devido ao caos sonoro produzido. Isto ocorre quase sempre

porque o ritmo ganhou, ao longo do tempo, contornos de origens africanas com fortes batidas

e entonação vocal. Contudo, um componente permanece imutável: a canção de chegada, onde

o líder (ou Capitão) pede permissão ao dono da casa para entrar, e a canção da despedida,

onde a Folia agradece as doações e a acolhida, e se despede.

Ao contrário dos Reis da tradição, o propósito da Folia não é dar presentes, mas sim recebê-

los para compartilhar com toda comunidade (finalidade filantrópica).

As comemorações vão do dia 24 de dezembro até 06 de janeiro, essa tradição ganhou força

a partir do século XX e se mantém sobretudo em pequenas cidades dos estados de São

Paulo, Minas Gerais, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Rio de Janeiro, dentre outros.

FOTO 4- GRUPO DE FOLIA DE REIS Fonte: Renato Aguiar Júnior 27/12/2010

Tomando por base o conceito tradicional de cultura popular e a importância do senso comum

e das manifestações religiosas presentes nas festas populares, podemos dizer que esta é uma

forma de resistência e assimilação de novos elementos aceitos por determinado grupo, e que

dão margem a variações de ritual.

Os valores não são nem permanentes e invariáveis, e nem inerentes aos objetos, mas

ao contrário, resultam de uma construção que se faz de determinados contextos

sociais e históricos. Valores são atribuídos a partir de qualidades que são

reconhecidas nos objetos, mas que variam conforme os diferentes grupos os

concebem (MENESES, 1992:1996 apud PAES, 2010).

As festas populares são mantidas em meio rural por este definir o caráter tradicional dos

grupos na sociedade. Neste, os valores são mantidos como forma de preservar a ação do

tempo e espaço nas relações humanas. Muitas vezes tido como obsoleto e atrasado, o rural

mantém a tradição e não aceita as imposições e “influências modernas” do mundo

globalizado.

Portanto o meio rural favorece as relações de troca entre os indivíduos na sociedade, ou

seja, o contexto do ambiente urbano provoca um maior nível de desenraizamento cultural

(através dessas relações) pelo número de informação. O conhecimento faz com que o senso

comum perca o seu sentido de homogeneizar a realidade dos grupos. Os valores assimilados

no meio urbano estão a todo tempo sofrendo mudanças conforme a apropriação das técnicas

disponíveis. O que não ocorre no Distrito de Milagre, e no município de Monte Santo de

Minas, pois se observa nestes, grande influência do rural em seu “modo de vida”.

A cultura de massa é proveniente da assimilação dos grupos a determinado conceito, o que

cria uma identidade cultural (local ou regional) quase sempre subordinada à religião, os

símbolos produzidos por esta é que define o caráter tradicional das classes sociais. A religião

é o elo entre as elites e classes subordinadas por representar simbolicamente o cotidiano do

lugar. A religião é quem determina a posição de um grupo na sociedade. Este sentimento de

religiosidade é mantido frequentemente em meio rural, pois estes permanecem em sua

maioria, tradicionais. Já a urbanização produz um racionalismo maior, maiores

questionamentos acerca da fé fazendo com que se percam os costumes e valores

provenientes da comunidade, a urbanização é sinônimo de individualismo. Opõem-se aos

relacionamentos de união produzidos pelas festas populares em meio rural.

O pluralismo étnico, religioso e cultural favorece a relação homem, espaço e religião que

materializou esses símbolos. A identidade cultural de um grupo é construída através desses

símbolos, que são incorporados pelos grupos e mutáveis no tempo e no espaço, conforme a

apropriação do território (poder político e econômico). A assimilação de uma cultura por

outra, acaba com os efeitos de dominação. Ter vantagem de autoridade religiosa implica

vantagem em exercer o poder político, pois toda população participa de rituais comuns e

aceita as mesmas crenças.

As festas religiosas também assumem esse caráter político, pois é instrumento para

viabilizar a legitimação das elites políticas locais. No Distrito de Milagre, subordinado ao

município de Monte Santo de Minas, em Minas Gerais, o dia de “Santos Reis” é feriado

municipal decretado pela Lei municipal nº 494, de 28 de abril de 1975, pelo antigo prefeito

Luiz Alberto Paulino da Costa. Bem como a construção de uma capela nesse distrito

financiada pelo mesmo, em terreno da prefeitura.

Manifestação de fé ou estratégia política que também pode ser percebida pelos prefeitos

sucessores, o atual prefeito do município de Monte Santo de Minas, Militão Paulino de

Paiva, que se diz devoto fervoroso dos três “Reis Santos”, afirmou em entrevista ao jornal

Folha do Povo Notícias, de circulação no mesmo e região, em 26 de junho de 2011, que

“Eles (Santos Reis) nunca me abandonaram (p.06)”. Recebendo a Companhia de Reis

“Reunidos Amigos da Fazenda Onça” em seu gabinete na prefeitura.

FIGURA 3- PREFEITO DO MUNICÍPIO DE MONTE SANTO DE MINAS RECEBENDO

COMPANHIA DE REIS EM SEU GABINETE.

Fonte: www.jfpnoticias.com.br acesso: 21/11/2011.

Fruto das imposições das elites locais, do preconceito contra os negros e da fé dos mais

pobres, a Folia de Reis entra no processo de aculturação como manifestação de fé e

resistência diante das mudanças provocadas pela síntese social dos grupos. Não se trata de

hibridismo cultural propriamente dito, mas do multiculturalismo desenvolvido pela presença

de culturas distintas ao longo do tempo. Pois não ocorre “fusão” dos elementos, e sim

reinterpretações que assimilam diferenças culturais mantendo suas especificidades, e seus

valores centrais. A resistência formada se refere ao “falso” sincretismo originado a partir da

pressão política contra os negros e afrodescendentes em seu processo de desenraizamento e

enraizamento cultural em uma nova pátria.

Religião e política sempre andaram juntas, predominando a crença das classes superiores e a

ortodoxia presente em seus dogmas. A política é na verdade, o meio pelo qual se impõem e se

viabiliza os instrumentos de dominação pretendidos pelas elites.

Portanto é mais ideológica que material, neste tipo de dominação está contido o poder

simbólico que a religião tem sobre os indivíduos, o que não representa a fé dos mesmos.

Diante deste contexto, o nível cultural é comumente relacionado ao nível de escolaridade de

determinada classe social. As elites por dominarem as classes subalternas através de objetos

políticos e econômicos, no entanto mais favorecidas quanto ao nível de conhecimento, são

vistas como superiores na esfera cultural; mas a produção de conhecimento por meios

técnicos não seleciona o nível cultural de um grupo. Cultura é o acúmulo das experiências

vividas pelos sujeitos ao longo do tempo e espaço. A produção cultural apesar de intrínseca à

relação homem meio, e a forma como este modifica o espaço não se relaciona em nada com o

nível de escolaridade, já que os objetos produzidos pelo “gênero de vida” são decorrentes da

percepção e apreensão do mundo pelo indivíduo. A produção intelectual não interfere na

maneira como o homem vê e sente o mundo a sua volta. O que pode ser percebido em trechos,

transcritos das entrevistas realizadas no presente trabalho em 29/11/2011, na Subprefeitura do

Distrito de Milagre, Município de Monte Santo de Minas- MG.

Segundo o senhor R.C., participante da Folia de Reis desde os oito anos de idade, ocorreram

mudanças;

“- Ah... Mudou que antigamente o povo tinha mais... O povo parece que gostava mais né?

Hoje parece que o povo não tá... A gente era moleque e gostava de cantar. Hoje você vê

menos, porque ninguém quer mais aprender a cantar. Pra você ver, as pessoas de trás vai

acabando... vai acabando... né?”

(Graziela) Seus netos e seus filhos, ninguém se interessou?

“- Nenhum! Não! Meus netos e meus filhos ninguém se interessou (R.C., 64, aposentado)”.

(Graziela) E você?

“- Ah... eu venho de família também né?! Eu e meu pai desde pequeno sempre ia, meus

avós... então... foi indo de geração em geração.

(Graziela) Mas foi pra cumprir promessa?

“-Não... Não! Foi por que... nossa eu amo gente! De paixão! Eu adoro, então foi por isso...“

“- E eu gosto muito de tocar instrumentos, sanfona, violino...“

(...) “Nossa! porque os jovens de hoje em dia não quer mais saber né? É difícil uma pessoa

que se interessa por esse tipo...”

“É! Eu acho que deveria ter mais projetos sabe? Devia ter mais projetos pra fazer... pra

incentivar né? Os jovens de hoje em dia. Pra poder cultivar a nossa cultura...”

(Graziela) A prefeitura não investe?

“Não... quando a gente vai em festival (Encontros de Folia de Reis) até apoia sim... em

transporte... Mais assim... em projetos, não! Um projeto assim, pra cultivar a cultura do lugar

não tem. Mais se tivesse seria bom viu?! Nossa, seria ótimo! Nossa... Eu acho que falta um

pouco de interesse, de divulgação porque... acaba parando... vai acabando... (L.C., 22,

estudante)”.

“(...) Ah... eu sou muito devota de Santos Reis desde pequena. Eu faço a minha missão,

porque Santos Reis me deu a cura pra mim. E eu sou muita devota, com amor e carinho, eu

tenho que cumprir minha missão com Santos Reis até o fim da minha vida (V.L., 44,

trabalhadora rural)”.

“(...) Eu sempre acompanhei né? Mais assim pra participar... o seu Alceu (integrante do grupo

“Ouro, incenso e mirra”) agora chamou a gente pra vim, ai eu vou participar. Porque eu vou

fazer uma promessa, porque minha mãe tá muito doente, e eu tenho um filho também, com

problema na vesícula... ai eu vou fazer um voto com ELES (Santos Reis e o grupo se fundem

numa única imagem) pra ver se eu consigo a cura pro meu filho. E vou continuar a vida

(M.A., 42, dona de casa)”.

Percebe-se nas entrevistas grande doação e envolvimento dos integrantes do grupo “Ouro,

incenso e mirra”, e a fé contida nas ações destes dentro do grupo e na sociedade. O “poder”

que os ditos “Santos Reis” têm sobre a vida cotidiana desses indivíduos, manifesta de forma

simples e clara a fé e devoção contidas nos atos destas pessoas durante e após a realização da

festa da Folia de Reis. Principalmente no que tange à saúde e cura; participar direta (fazer

parte do grupo de Folia de Reis) ou indiretamente (pagar promessas ou oferecer doações) da

Folia de Reis é uma forma de agradecer as bênçãos recebidas pelos três “Reis santos”.

Manifestação de fé ou resistência cultural que está ameaçada pela falta de interesse de novos

participantes e incentivo das autoridades locais, que não investem na preservação desta

manifestação e em projetos que contribuam para a manutenção da cultura local. A Folia de

Reis por representar a camada mais pobre da sociedade, muitas vezes tida como inferior, é

alvo de comentários pejorativos, e os jovens que poderiam dar continuidade a esta

manifestação folclórica sentem vergonha de fazer parte desses grupos.

E como percebido na fala de um dos entrevistados, a prefeitura do Município de Monte

Santo de Minas não incentiva de forma persistente e concreta a preservação cultural. O que se

estende ao distrito de Milagre, colocando em risco a continuidade e manutenção das Folias

tanto na sede municipal quanto no distrito.

Segundo os relatos dos integrantes do grupo de “Ouro, incenso e mirra” apesar da

colaboração e envolvimento da comunidade, a tradição da Folia de Reis está em risco. Pois

não se observa interesse dos jovens e dos órgãos públicos em dar continuidade a esta; faltam

incentivos ao setor cultural, e interesse de novos adeptos aos grupos. A prefeitura contribui

apenas com a organização de encontros, e transporte dos integrantes para os mesmos em

cidades vizinhas. Mas não disponibiliza verbas de incentivo à cultura, como por exemplo, a

criação de barracões e centros culturais para se preservar a tradição da Folia de Reis no

município, e consequentemente no distrito.

O descontentamento dos membros do grupo é perceptível diante dos fatos, porém o esforço

em preservar aquilo que dá sentido à vivência desses indivíduos na sociedade a que

pertencem, e prosseguir com aquilo que acreditam ser algo essencial em sua existência, é

maior que as dificuldades enfrentadas por eles.

Uma forma encontrada por estes integrantes para a manutenção da Folia de Reis é a

realização de Encontros de Folias, tanto na sede como no distrito e cidades vizinhas a eles. O

intuito destes tipos de Encontro é trocar experiências e compartilhar a vivência tida pelos

participantes em diferentes contextos, pois se tratam de realidades distintas, uma vez que os

grupos embora parecidos sofram influência direta do meio social e cultural a que pertencem e

integram.

Na cidade de Muqui, no Espírito Santo, acontece desde 1950 o Encontro Nacional de Folia

de Reis, que reúne cerca de 90 grupos de Folias do Espírito Santo, Rio de Janeiro, Minas

Gerais e São Paulo. É o maior e mais antigo encontro de Folias de Reis do país. Uma forma

de sobrevivência dos Grupos de Folia de Reis, principalmente nas grandes cidades, foi a

incorporação de figuras folclóricas a estes com a finalidade de promover apresentações à

comunidade no sentido de manifestação cultural.

Para o Encontro de Folias que foi realizado no dia 13 de novembro de 2011 no distrito de

Milagre-MG, segundo o cabo Juvenil Coelho, organizador do evento à frente da prefeitura

municipal de Monte Santo de Minas, foram arrecadados quase uma tonelada de alimentos que

irá alimentar cerca de 3.500 pessoas participantes de 32 grupos de Folias que estavam

presentes. Os alimentos foram cedidos pela comunidade do distrito no intuito de contribuir

para a realização da festa. Quando questionado sobre o que iria fazer com os alimentos que

sobrassem/restassem do evento, ele respondeu sem titubear que iria distribuir entre os menos

favorecidos, e em instituições como escolas e creches de Milagre. No distrito, esse tipo de

encontro é recorrente, afirma a permanência da tradição e o empenho em mantê-la viva.

FOTO 5- ENCONTRO DE FOLIAS DE REIS NO DISTRITO DE MILAGRE

Fonte: Terezinha Feliciano 13/11/2011.

A paisagem como forma de representação dos objetos apreendidos pelo homem através do

seu “modo de vida” deixa claro que as mudanças culturais, dependem e estão numa constante

transformação diante das imposições da sociedade e da necessidade de adaptação desta,

referente aos novos objetos e ações produzidos pela técnica (rural x urbano).

Em lugar do “eu” com o mundo, está a produção material pautada ao nível de conhecimento

teórico e ideológico do meio técnico-científico-informacional nos “tempos modernos” que

provoca a perda das raízes culturais pelo encurtamento do tempo e das distâncias espaciais

entre os grupos. Fazendo com que estes se identifiquem ou se distanciem mais facilmente.

A redefinição destas espacialidades e temporalidades dentro do recorte das cidades delimita

melhor o alcance das manifestações culturais. Pois são nas pequenas cidades que as festas

populares obtêm maior força e destaque. Em sua estrutura arcaica e deficiente de

instrumentos tecnológicos que definam novas condutas de comportamento em relação à

globalização, estas mantém as estruturas tradicionais que caracterizam os grupos e as

manifestações folclóricas do lugar.

A festa é o que define o caráter tradicional do lugar, é ela que irá compor o reconhecimento

territorial de determinada localidade. Ou seja, o Distrito de Milagre e o município de Monte

Santo de Minas são reconhecidos territorialmente por grupos de localidades vizinhas e região

pelo alcance das festividades da Folia de Reis. O caráter tradicional mantido nestas

localidades viabiliza a legitimação desta festa conferindo ao espaço uma territorialização que

o caracteriza e distingue dos demais. O distrito de Milagre como espaço geográfico é apenas

um local, uma denominação, já enquanto relacionado à Folia de Reis ganha enfoque

territorial e sentido se tornando o lugar dos Encontros de Folias de Reis. São os Encontros de

Folias e a permanência dos grupos de Folia de Reis que adjetivaram esta característica ao

Distrito e Município por meio da manifestação cultural que simboliza este grupo e representa

o cotidiano presente nesta sociedade, a Folia de Reis é a realidade (local) que se apresenta

dando imagem ao lugar.

Conclusão

Fruto da divergência entre diferentes culturas de classe, a Folia de Reis é uma das festas

populares que melhor exemplifica o sincretismo religioso no país.

Em sua origem, proveniente do preconceito racial e da aversão às religiões negras ou afro-

brasileiras, o sincretismo no Brasil demonstra antes de qualquer coisa, a imposição de uma

classe sobre a outra. Negando sua própria identidade cultural baseada na diversidade étnico-

religiosa e na heterogeneidade cultural, se instaurou um pensamento ortodoxo e excludente,

num contexto social onde a “minoria” foi marginalizada, e a moral cristã, branca e europeia

foi tomada como verdadeira identidade nacional.

A cultura negra considerada inferior era um atraso ao desenvolvimento do país, bem como

qualquer relação desta com os estratos mais abastados da sociedade. O catolicismo era a única

religião considerada legítima e cultuada pelo setor que detinha o poder religioso e político no

país.

Para manter viva a cultura e religião africanas, os negros assimilavam a cultura branca

cultuando as divindades africanas sob o disfarce dos santos católicos; uma forma de

sobrevivência, mas também de pluralidade religiosa, étnica e cultural, a ponto de se fundirem

e se tornarem indissociáveis. Caracterizando assim uma identidade nacional múltipla e

originada da diversidade cultural entre diferentes grupos.

As festas populares demonstram a riqueza cultural proveniente do sincretismo religioso em

seu sentido positivo, afirmam a capacidade criativa e o nível de conhecimento antrópico

decorrente da religiosidade e fé cristã, misturadas aos ritos africanos.

O conhecimento teológico da religião cristã pelas camadas populares, e sua reinterpretação

mediante a realidade social em que se deu, é que torna essas manifestações tão interessantes e

com valor de beleza cênica incontestável. Portanto a ortodoxia e o conservadorismo

representariam uma perda cultural incalculável.

As manifestações populares incumbidas de senso comum são mutáveis no tempo e no

espaço, porém nunca perdem sua essência. Os valores são reformulados dentro do grupo

criando novos símbolos e decorrentes a isto novas manifestações.

O importante, entretanto, é que não se perca a identidade cultural típica do Brasil, negra,

europeia, cristã, ou simplesmente afro-brasileira que configura características tão intrínsecas à

realidade e origem desse povo.

As festas populares, marginalizadas pelos setores públicos e políticas culturais, revela pouco

empenho e pouca valorização referente às tradições, exceto pelo interesse de poucos. “É

inegável a necessidade de serem valorizadas por constituírem a memória do povo, de uma

história e de um tempo da sociedade contemporânea. Isto é, a festa é um bem cultural

(ALMEIDA,2011:262)”.

E como bem cultural (imaterial), é incalculável o “preço” que se pode pagar pelas perdas

decorrentes às mudanças sociais e pelo modo de produção e apropriação do espaço (modelo

produtivo capitalista); que visa muito mais o ter do que o ser. Participar deste tipo de evento é

vergonhoso para quem quer ser considerado bem sucedido na sociedade contemporânea, pois

ainda existe o pensamento equivocado de que o “popular” é sinônimo de retrocesso (material

e ideológico). Vestígios da origem e pensamento cultural brasileiro, fundados no

conservadorismo europeu do século XIX, e de uma cultura ainda em linhas de expansão e

desenvolvimento.

A tradição, os costumes, os valores que acima de qualquer interesse individual ou mudanças

contínuas e/ou repentinas ainda persistem, nos dá margem para o verdadeiro ideal da

preservação deste tipo de manifestação cultural: O objetivo da cultura e da geografia cultural

é criar pontes, não construir muros.

Bibliografia

ALMEIDA, M.G. O patrimônio festivo e a reinvenção da ruralidade e territórios emergentes

de turismo no espaço rural. In: SOUZA, M., ELESBÃO, I. Turismo rural- Iniciativas e

inovações. Porto Alegre, ed. da UFRGS, 2011. 360p. (243 a 264p.)

ANDRADE, T. M., ESPINHEIRA, C. G. A presença das bebidas alcoólicas e outras

substâncias psicoativas na cultura brasileira.

BEZERRA, A.C.A. Festa e cidade: entrelaçamentos e proximidades. Espaço e Cultura,

UERJ, nº23, p.07-18, jan./jun.de 2008.

BIAZZO, P.P. Campo e rural, Cidade e urbano: distinções necessárias para uma perspectiva

crítica em Geografia agrária. In: MARAFON, G.I., PESSOA, V.L.S. Interações geográficas:

a conexão de grupos de pesquisa. Uberlândia, Roma, 2007. (10 a 22p).

BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007. (27 a

78p).

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. 11ªed. (322p.)

CASTRO, I. E; GOMES, P.C.; CORRÊA, R.L.; Explorações geográficas. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 2006. (89 a 154p.)

CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano. Petrópolis, RJ, Vozes, 2008. 14ªed. (75 a 90p.)

CLAVAL, P. A geografia Cultural. Editora da UFSC, Florianópolis, 2001, 2ªed. 453p.

CLAVAL,P. Epistemologia da geografia. Florianópolis, ed. da EFSC, 2011. 406p. (219 a

252p.)

CLAVAL, P. Política, espaço e cultura: as ligações entre poder e religião. Disponível em:

http://confins.revues.org/7115 (acesso em: 06/09/2011).

CORRÊA, R.L., ROZENDAHL, Z. Introdução a Geografia cultural. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 2003. 224p.

FERRETTI, S.F. Sincretismo Afro-brasileiro e resistência cultural. In: Congresso Afro-

Brasileiro, 5º, Salvador: 17 a 22 de agosto de 1997.

FERRETTI, S.F. Multiculturalismo e sincretismo. Publicado In: MOREIRA, A.S.,

OLIVEIRA, I.D. O futuro da religião na sociedade global. Uma perspectiva multicultural.

São Paulo: Paulinas, UCG, 2008. (p 37-50)

FRANCISCO, K. P. Do rural ao urbano, uma análise sócio espacial do bairro Santos Reis

no município de Alfenas-MG: Urbanização, segregação sócio espacial, características sócio

econômicas e culturais. Universidade Federal de Alfenas. Alfenas / MG, 2010.

FREITAS, V. A., TELLES, N. Com Fé e Folia: A performance do Palhaço da Folia de Reis

no Triângulo Mineiro. Revista do NIESC: Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Estudos

Culturais. Universidade Federal de Goiás – Campus de Catalão. Catalão – GO, Vol. 4, p.25-

34, 2004.

GOLOVATY, R. V.A folclorização da cultura popular: A folia de Santos Reis no jornal

correio de Uberlândia, 1984-2002. História e Perspectivas, Uberlândia (32/33): p.221-244,

Jan. Jul./ Ago.Dez.2005.

GOMES, A. C. R. Em nome dos três Reis Santos: A recriação da Folia de Reis no

Município de São Carlos-SP, sob uma perspectiva geográfico cultural. UNESP - Universidade

Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, I.G.C.E. - Rio Claro–SP.

GONÇALVES, M. C. S. Folias de reis: o eco da memória na (re) construção da performance

e identidade dos foliões em João Pinheiro, estado de minas gerais. In: Encontro de Estudos

Multidisciplinares em Cultura- ENECULT, 4º, 28 a 30 de maio de 2008. Faculdade de

Comunicação/UFBa, Salvador-Bahia-Brasil.

GREGORY, D., MARTIN, R., SMITH, G. Geografia Humana: sociedade, Espaço e Ciência

social. Rio de Janeiro, 1996.

KIMO, J. I. V Estratégias de manutenção em um terno de Folia de Reis do norte de

minas Gerais. In: ANPPOM – Décimo Quinto Congresso, UFMG, 2005.

MAIA, D. S. A Geografia e o estudo dos costumes e das tradições. Terra Livre, São Paulo,

nº16, p.71-98, 1ºsemestre 2001.

MELO, V.L.M.O. A paisagem sob a perspectiva das novas abordagens geográficas. In:

Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina, São Paulo: Universidade de São

Paulo, 20 a 26 de março de 2005.

MENDONÇA, F., KOZEL, S. Elementos de epistemologia da geografia contemporânea.

Curitiba, Ed. da UFPR, 2002. 270p. (187 a 265p.)

OLIVEIRA, I D. O futuro da religião na sociedade global. Uma perspectiva multicultural.

São Paulo: Paulinas/UCG, 2008. (37 a 50p.)

PAES, M.T.D.; OLIVEIRA, M.R.S.; Geografia, Turismo e Patrimônio Cultural. São Paulo:

Annablume, 2010. 230p.

PASSOS, M. Lá vem a Bandeira... Os Reis e seus atores. Revista Brasileira de História das

Religiões, ano III, n. 9, p.253-268, Jan. 2011.

PERGO, Vera Lucia. “Os rituais na Folia de Reis: Uma das festas populares brasileiras”.

Disponível em: www.dhi.vem.br. Acesso: (25/05/2011).

PINTO, J. L. D. Hoje é dia de Santos Reis: A visita do Sagrado nas casas de Maringá- PR.

Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá (PR) v. III, n.9, jan/2011.

PRANDI, R. O candomblé e o tempo. Concepções de tempo, saber e autoridade da África

para as religiões afro-brasileiras. Revista Brasileira de Ciências Sociais- RBCS Vol. 16, nº 47,

p.43-59, outubro/2001.

PRANDI, R. O Brasil com axé: candomblé e umbanda no mercado religioso. Estudos

Avançados, 18(52), 2004 (223-238p).

QUEIROZ, M.I.D. Identidade cultural, Identidade nacional no Brasil. Tempo Social - Rev.

Sociologia da USP. São Paulo, 1(1), 1ºsem. 1989.

RIOS, S. Os cantos da festa de Nossa Senhora do Rosário e da Folia de Reis. Sociedade e

Cultura, Goiás, vol. 9, nº 001, p.65-76, jan./jun.2006. (p.65-76)

ROZENDAHL, Z. Espaço, simbolismo e religião: Resenha do simpósio temático. Revista

Brasileira de História das Religiões, Maringá (PR), v. 1, n. 3, 2009.

SILVA JÚNIOR, J. H. A apropriação e o uso do território compreendido pelos municípios

mineiros da bacia do rio São Francisco e as formas culturais de apropriação

reconhecidas pela população, que resistem ao tempo. Pretexto, Belo Horizonte, v. 8, n. 1,

p. 63-74, jan-jun. 2007.

TREMURA, W. A. A música caipira e o verso sagrado na Folia de Reis. In: Anais do V

Congresso Latino americano da Associação Internacional para o Estudo da Música Popular.

Disponível em: http://www.hist.puc.cl/historia/iaspmla.html (acesso: 08/06/2011).