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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA LUCAS NUNES STASI EXPRESSÕES LEIGAS DA FÉ CATÓLICA: IRMANDADES RELIGIOSAS NA FREGUESIA DE SANTANA EM SALVADOR (1876 1926) Salvador 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

LUCAS NUNES STASI

EXPRESSÕES LEIGAS DA FÉ CATÓLICA: IRMANDADES

RELIGIOSAS NA FREGUESIA DE SANTANA EM SALVADOR

(1876 – 1926)

Salvador

2017

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LUCAS NUNES STASI

EXPRESSÕES LEIGAS DA FÉ CATÓLICA: IRMANDADES

RELIGIOSAS NA FREGUESIA DE SANTANA EM SALVADOR

(1876 – 1926)

Dissertação de Mestrado apresentada como requisito

para a obtenção do grau de Mestre em História Social

no Programa de Pós-Graduação em História da

Universidade Federal da Bahia, sob a orientação da

Profa. Drª. Edilece Souza Couto.

Salvador

2017

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Modelo de ficha catalográfica fornecido pelo Sistema Universitário de Bibliotecas da UFBA para ser confeccionadapelo autor

Stasi, Lucas Nunes EXPRESSÕES LEIGAS DA FÉ CATÓLICA: IRMANDADES RELIGIOSAS NA FREGUESIA DE SANTANA EM SALVADOR (1876 – 1926)LUCAS NUNES STASI -- Salvador, 2017. 120 f.

Orientadora: Profa. Drª. Edilece Souza Couto. Dissertação (Mestrado - Programa de pós graduação em História) -- Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia eCiências Humanas, 2017.

1. Irmandades Religiosas. 2. Religião. 3.Devoções Leigas. 4. Auxílio-mútuo. I. Título II. Couto, Edilece Souza.

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Em memória de minha querida madrinha, Valdélia Pereira Gomes

(1945 – 2003) e minha avó Terezinha Alves Nunes (1929 – 2017).

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente à Deus e aos Orixás por me fornecerem forças para

persistir e concluir o mestrado. À minha mãe, Maria Nunes, pelo investimento massivo

em minha formação humana e profissional e aos meus familiares Fábio Nunes, Lúcia

Nunes, Fabiana Nunes, Almira Gomes, Lisetta Pagliai e Celeste Nunes por ajudarem

nessas contribuições.

Aos amigos sempre fiéis que tiveram participação fundamental no suporte, quer

seja emocional ou historiográfico para a realização desta dissertação: Daniel Vital, que

desde a realização do projeto, realizou leituras e comentários preciosos; Daniel Castro,

por ouvir meus desabafos contínuos; Adriano Guimarães e Julia Mendes, pela paciência

em tirar-me constantes dúvidas acerca das diferentes doenças do século XIX. Ao apoio

sempre precioso da minha grande amiga da “misericórdia”: Nadjara França e também

daqueles amigos que sempre me acompanham: Flávia Sena, Isis Piauhy e Nayra Moura.

Também a Franklin Lima, pelo companheirismo e apoio.

Agradeço também à minha orientadora Edilece Souza Couto que, desde 2010, me

ajuda a caminhar nos rumos da história das religiões; e aos membros da banca Milton

Moura e Armando Castro pelas contribuições durante a qualificação.

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Todo problema humano exige ser considerado a partir do

tempo. Sendo ideal que o presente sempre sirva para

construir o futuro. E esse futuro não é cósmico, é o do

meu século, do meu país, da minha existência. De modo

algum pretendo preparar o mundo que me sucederá.

Pertenço irredutivelmente a minha época. E é para ela

que devo viver. O futuro deve ser uma construção

sustentável do homem existente. Esta edificação se liga

ao presente, na medida em que o coloco como algo a ser

superado. (FANON, p.89)

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RESUMO

As irmandades religiosas, como instituições presentes na vida social da maior

parte dos indivíduos da sociedade brasileira até o século XIX, tiveram relevância

fundamental para a compreensão de parte da história social do país. A dissertação teve

por principal objetivo estudar parte da estrutura social e da vida religiosa na cidade de

Salvador por intermédio das irmandades da freguesia de Santana entre os anos de 1876 e

1926, analisando de que modo operaram as diferentes transformações sociais do final do

século XIX e início do século XX. Além disso, pretendeu-se perceber os traços de

sociabilidades dentro dessas instituições, os processos de permanências e rupturas que as

envolveram e analisar os principais vínculos associativos de seus membros. Para tal feito,

foram analisadas diferentes fontes como artigos de jornais e periódicos, compromissos,

relatórios, correspondências entre a arquidiocese e estas associações, diferentes

documentos contábeis, além da legislação vigente tanto no final do Brasil-Império quanto

na República.

PALAVRAS CHAVE: Irmandades Religiosas – Religião – Devoções Leigas – Auxílio-

mútuo.

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ABSTRACT

The religious brotherhood, as institutions that were linked to social life of the most part

of the individuals of the Brazilian society until the XIX century, had a fundamental

relevance to understand part of the social history of Brazil. This dissertation have as an

objective the study of a significant part of the social structure imbricated into the religious

lay life in the city of Salvador, through the brotherhoods of the Santana’s district between

the years of 1876 and 1926, analyzing how the social changes that happened in the end

of the XIX century and begin of XX century impacted these institutions. Besides that, it

is intend to perceive the traits of sociability into these associations, and the process of

permanence and ruptures that surrounds them and analyze the most important associative

links of its members. For this purpose, were analyzed deafferents historical sources such

as newspapers and periodicals, “compromissos”, reports, letters issued by the archdiocese

for those associations, accounting documents and the current legislation during the period

studied.

KEYSWORD: Religius brotherhoods – Religion – Lay devotion – Mutual-aid.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

APEB – Arquivo Público do Estado da Bahia.

LEV – Laboratório Eugênio Veiga.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Cristo Crucificado. Acervo do Museu da Misericórdia...................................43

Figura 2: Igreja e convento da Palma..............................................................................66

Figura 3: Mapa percurso da procissão do Bom Jesus da Cruz........................................68

Figura 4: Anúncio de produto contra os miasmas...........................................................93

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 12

CAPÍTULO 1 – IRMANDADES E AJUDA MÚTUA NA FREGUESIA DE SANTANA:

O DESENVOVLIEMTNO SOCIAL DAS ASSOCIAÇÕES LEIGAS NA CIDADE DE

SALVADOR ......................................................................................................................... 17

1. SURGIMENTO E CARACTERISTICAS DAS ASSOCIAÇÕES DE LEIGOS ........... 17

2. IRMANDADES E HISTORIOGRAFIA, A IRMANDADE COMO OBJETO DE

ESTUDO DA HISTÓRIA................................................................................................... 22

3. A CIDADE DE SALVADOR IMPERIAL E A FREGUESIA DE SANTANA ............ 26

4. AS IRMANDADES DA FREGUESIA DE SANTANA E SUA ORGANIZAÇÃO

INTERNA ........................................................................................................................... 31

5. COMPOSIÇÃO SOCIAL DAS IRMANDADES ........................................................... 36

CAPÍTULO 2 – VIVER, CRER E FESTEJAR – AS MUDANÇAS OITOCENTISTAS

E SUAS RELAÇÕES COM AS DEVOÇÕES LEIGAS ................................................... 41

1. MUDANÇAS NO CONTATO COM A FÉ, INDIVIDUALISMO E SUAS

REPRESENTAÇÕES ......................................................................................................... 41

2. O ULTRAMONTANISMO E AS REFORMAS RELIGIOSAS DO SÉCULO XIX .... 44

3. IRMANDADES E AS REFORMAS NOS OITOCENTOS ........................................... 49

4. AS LOTERIAS E AS AÇÕES DE CARIDADE: O PODER TEMPORAL E AS

IRMANDADES RELIGIOSAS .......................................................................................... 56

5. DEVOÇÕES, POMPAS E CELEBRAÇÕES: AS REDES DE SOCIABILIDADE E AS

RELAÇÕES ENTRE AS IRMANDADES DE SANTANA .............................................. 62

CAPÍTULO 3 – O AFAGO DA MORTE: TRANSFORMAÇÕES EM TORNO DA

ASSISTÊNCIA AO BEM MORRER PRESTADA PELAS IRMANDADES ................. 72

1. A BOA MORTE OU BEM MORRER ........................................................................... 72

2. MUDANÇAS OITOCENTISTAS NAS ATITUDES DIANTE DA MORTE .............. 76

3. MORTE E IRMANDADES: UMA RELAÇÃO SECULAR ......................................... 78

4. A RESISTÊNCIA DO BEM MORRER E A RUPTURA COM A MORTE BARROCA

............................................................................................................................................. 82

5. MORTE: ENTRE SECULARIZAÇÃO E HIGIENIZAÇÃO ........................................ 87

5.1. A MEDICINA NO FINAL DO SÉCULO XIX E OS MIASMAS .............................. 89

5.2. LEGISLAÇÃO, HIGIENIZAÇÃO E IRMANDADES ............................................... 93

5.3. A SECULARIZAÇÃO E A REPÚBLICA .................................................................. 98

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 105

LISTA DE FONTES .......................................................................................................... 108

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 114

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ANEXOS ............................................................................................................................. 118

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INTRODUÇÃO

As irmandades foram associações leigas cujos desígnios institucionais incluíam

em sua concepção inicial a promoção ao culto a determinado santo. A múltipla formação

dessas instituições que tinham objetivos e caráter sociais distintos, fazia de Salvador até

o século XIX uma cidade na qual parte considerável da vivência religiosa concentrava-se

nessas instituições. Nelas africanos e seus descendentes, pardos, portugueses,

comerciantes, músicos, mulheres, entre outros, estavam unidos por laços de solidariedade

entre os seus e praticavam a ajuda mútua.

Assim, para os mais desfavorecidos, a irmandade poderia ser, individualmente,

um mecanismo para mitigar as agruras de uma vida diária difícil; coletivamente, era um

ator social legitimado, que lhes permitia de alguma forma atuar na vida social de uma

cidade tão desigual quanto Salvador; e para os homens de posses, participar de um grande

número de irmandades era questão que envolvia, sobretudo, prestígio social – e daí o

grande número de nomes que se repetem em diferentes irmandades nos século XVIII e

XIX.

Sendo assim, estavam inseridos nas associações de leigos indivíduos de todos os

setores da sociedade, por isso, a ampla possibilidade de estudos que cerca, perpassa estas

associações. A própria historiografia nacional privilegiou em determinado momento o

estudo sobre irmandades religiosas. Como organismos presentes em diferentes vivências

sociais de cada período, através delas era possível compreender uma série de aspectos

acerca da história social do país. Uma parte desses estudos concentrara-se nas irmandades

que obedeciam a um caráter étnico na sua composição social, autores como Caio Boschi,

Julita Scarano, Lucilene Reginaldo e João José Reis debruçaram-se sobre o grande

arcabouço documental fornecido a partir dessas instituições para analisar as relações

étnico-raciais no contexto do mutualismo e do associativismo. Outros estudiosos,

diretamente relacionados à história das religiões, buscaram através do caráter devocional

presente nessas associações compreender o contato dos seus membros com o sagrado de

acordo com cada contexto histórico.

Até o século XVIII, tanto o poder temporal quanto o eclesiástico viam nas

irmandades uma força auxiliar na manutenção social e religiosa. Para o clero, estas

associações eram uma possibilidade de promoção da fé católica, deixando sobre sua

responsabilidade parte das devoções, ao mesmo tempo em que promovia e conservava os

seus ideais religiosos. Já o poder público remetia a estas instituições a administração

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assistencial da província, ficando sobre sua responsabilidade serviços como o enterro dos

indigentes, a realização de obras públicas e o amparo à saúde provincial.

Poucos trabalhos na historiografia abordaram as irmandades religiosas na

perspectiva das transformações e rupturas de cada período, especialmente na República,

momento em que estas irmandades, segundo parte considerável da bibliografia, perderam

suas funções sociais. Assim, o final do século XIX e início do século XX foi o período

no qual estudou-se pouco acerca dessas instituições. Katia Mattoso, por exemplo, afirmou

que “por volta do fim do século XIX, as irmandades e ordem terceiras já estavam

ultrapassadas. Foram substituídas por novas associações, mais representativas do espirito

católico de então e das aspirações da hierarquia” (MATTOSO, p.404). Contudo, assim

como Katia Mattoso, raros foram os estudiosos que buscaram compreender quais forças

sociais levaram estas instituições a enfrentarem tal processo de decadência.

Em meio a um corpo documental volumoso produzido pelas irmandades,

aparecem datados da segunda metade do século XIX os documentos que evidenciavam

este processo de sua desestruturação. Eram atas de reuniões, relatórios e uma infinidade

de pedidos de prestação de contas feitos pela arquidiocese e pelo governo provincial, o

que expunha que ambos os poderes concentravam forças a fim de controlar as associações

de leigos. A primeira pergunta surgida era de que maneira as irmandades sofreram tais

processos e o que de sua desestruturação a documentação poderia revelar.

As atas de eleição e de reunião entre os membros da direção de cada irmandade

revelaram o funcionamento interno destas, permitindo observar mecanismos de

funcionalidade das associações e as relações entre os seus membros, ou seja, notou-se

através da documentação o cotidiano da irmandade. Divergências entre os irmãos para o

preenchimento de cargos de autoridade, bem como diferentes formas de resolver os

conflitos com a Cúria perpassam os extensos volumes de atas. Acima de tudo, o conflito

entre os vigários e os irmãos apareceram com bastante frequência, evidenciando que

pensar o espírito de autonomia demonstrado nestes casos pode permitir entender mais

detalhadamente seu papel no período.

Os relatórios, de diferentes naturezas, incluem os de prestação de contas, de

eleição e edição dos compromissos. Estes relatórios, destinados à arquidiocese,

demonstram as relações entre a cúria central e as irmandades enquanto instituições.

Assim, no final do século XIX, por exemplo, foi possível notar por parte da Cúria a

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tentativa de maior controle em relação a estas associações, limitando seu número e campo

de ação.

Busquei compreender através de parte dessa documentação de que modo a vida

religiosa leiga no seio dessas irmandades funcionava em meio a um conjunto de

transformações típicas do período. Para isso, analisei quais foram e sobre quais

vicissitudes ocorreram tais transformações e de que maneira elas foram sentidas em uma

escala menor ao recortar três irmandades de uma freguesia da cidade de Salvador.

A escolha da freguesia de Santana deu-se por dois fatores: no campo prático, era

a freguesia com maior documentação sobre irmandades; e no campo teórico, era uma

região de alta heterogeneidade populacional. Estavam presentes na freguesia,

inicialmente, três irmandades (Confraria do Bom Jesus da Cruz, Irmandade do Santissímo

Sacramento e Santana e Irmandade de Nossa Senhora da Palma), que tinham

características e composições sociais diversas. Escolhi a freguesia pois esta permitiria um

estudo comparativo das relações de diferentes irmandades entre si, com a região em que

estavam inseridas e com os distintos poderes.

A definição do recorte temporal da pesquisa estabeleceu como marco inicial, o

ano de 1876, momento no qual surge a Irmandade de Nossa Senhora da Palma, e como

marco final, o ano de 1926, ano do fim da procissão do Bom Jesus da Cruz, o que apontou

o processo de destituição da Confraria de mesmo nome. Porém, estudar transformações

envolve compreender que, apesar de consolidadas em determinado período, estas são

fruto de um longo processo de rupturas que só pode ser compreendido através de balizas

temporais. Por este motivo, muitas vezes este estudo buscou também fontes e uma

bibliografia que contemplaram um recorte além do proposto pela pesquisa.

A dissertação foi dividida em três capítulos. O primeiro deles fornece um

panorama sobre as irmandades e as contribuições historiográficas sobre o que já foi

discutido sobre o assunto. Busquei também demonstrar a estrutura interna do

funcionamento das associações aqui estudadas, procurando abordar a composição social

dos seus membros, privilegiando analisar as restrições reveladas a partir da documentação

e compreendendo as mudanças dos critérios raciais durante o século XIX e o

desaparecimento do caráter restritivo de alguns compromissos, que significou em termos

práticos uma maior tentativa dessas associações de adaptarem-se as exigências do poder

temporal e eclesiástico e ao mesmo tempo angariar novos associados.

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No contato com as fontes intrigavam-me as relações institucionais destas

associações com o poder temporal e eclesiástico. Os conflitos observados na

documentação revelaram os meios de negociar e resistir às diferentes mudanças típicas

do período. A bibliografia abordava irmandades, ordens terceiras e confrarias que se

destacaram na cidade por seu aspecto econômico (Santa Casa de Misericórdia, Ordem

Terceira de São Francisco) ou por um aspecto racial de destaque (Irmandade de Nossa

Senhora do Rosário dos Pretos das Portas do Carmo). Estes fatores propiciavam

relativamente a sobrevivência dessas confrarias em períodos de fortes mudanças.

Por outro lado, questionava-me como irmandades que não tinham tanto destaque

em seus aspectos econômico ou racial, sobreviveram ou se adaptaram às mudanças no

recorte temporal proposto. Afinal, o século XIX foi um período de transformações

estruturais, autores como Candido da Costa e Silva (SILVA, 2000) apontavam para

mudanças no sentido do crer e do viver a fé por parte do crente, além de transformações

religiosas profundas em diferentes instâncias do poder eclesiástico. No campo político e

social, a implantação da República, o fim do padroado régio, a libertação progressiva dos

escravos e o processo de reestruturação urbana trouxeram consequências diretas para as

irmandades religiosas. Dessa maneira, o segundo capítulo da dissertação buscou

demonstrar quais foram essas transformações na Bahia oitocentista e como as irmandades

reagiram a estas, destacando suas relações com o poder temporal e eclesiástico.

Além disso, nesse mesmo capítulo, busquei compreender um dos principais

pilares associativos de uma irmandade, que era seu caráter devocional. Afinal uma

característica importante ao se tratar dessas associações é o seu forte vínculo com o seu

santo de devoção, o orago. Muitas vezes estas comunidades, antes de propiciar benefícios

mais concretos a seus integrantes, poderiam inicialmente ser organizadas para o simples

culto a determinado santo. A maneira mais visível de se reverenciar estes santos eram as

festas, nas quais as irmandades demonstravam seu poder por meio da pompa e da

exteriorização da devoção. Assim, a análise de determinada festa propicia muitas vezes a

compreensão dos principais vínculos devocionais dentro dessas instituições, o que acaba

por revelar a situação em que vivia a irmandade em cada período.

Outra atração associativa de importância oferecida pela irmandade, dentre os

benefícios materiais e espirituais, era a assistência funeral aos seus membros. No terceiro

capítulo da dissertação busquei compreender como a transformação das relações do

sujeito com a morte na sociedade oitocentista influenciava diretamente as associações

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religiosas na Bahia. Em meio a um movimento de secularização das instituições,

higienismo, da interferência dos médicos nas maneiras de realizarem os enterramentos e

dos medos das epidemias miasmáticas, as irmandades foram consideravelmente

prejudicadas.

Utilizei como fontes para os capítulos parte da legislação vigente em âmbito

nacional e local no período. Porém, compreendo o cuidado necessário em se utilizar tais

documentos, visto que muitas vezes as leis constituem-se como política de estado que não

necessariamente se reverbera na sociedade. Por isso, os jornais foram essenciais como

contraponto de como a sociedade interpretava e praticava estas leis e quais nuances se

contrapõem às mudanças. Os jornais também foram importantes na compreensão da

dimensão dos festejos, de modo que através dos editais de festa publicados nos diferentes

periódicos demonstravam-se o quanto as festas de devoção de santo estavam

profundamente integradas ao cotidiano da cidade de Salvador.

Através destas festas religiosas e da sua forte assistência social, as irmandades

foram uma das mais importantes formas de interação social na cidade do Salvador entre

os séculos XVIII e o século XIX. Mais do que expressões religiosas, elas foram espaços

de sociabilidade por meio dos quais os indivíduos se movimentavam socialmente. Em

última instância, foram elementos demarcadores de lugares, que permitiram organizar as

relações sociais durante o período estudado.

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CAPÍTULO 1

IRMANDADES E AJUDA MÚTUA NA FREGUESIA DE SANTANA: O

DESENVOLVIMENTO SOCIAL DAS ASSOCIAÇÕES LEIGAS NA CIDADE DE

SALVADOR.

1. Surgimento e características das associações de leigos.

Em um dos estudos clássicos para o entendimento das irmandades religiosas no

Brasil, Caio Boschi sintetizou a riqueza historiográfica revelada a partir da investigação

do catolicismo leigo e afirmou que o estudo das irmandades se revela de profundo

significado histórico, pois estas foram e são instituições que espelharam e retrataram os

diversos momentos e contextos históricos nos quais estavam inseridas (BOSCHI, 1986,

p. 12). Com registros historiográficos desde a idade média, as confrarias religiosas foram

instituições que possibilitaram a análise histórico-social de amplos períodos da história

mundial. Divididas entre ordens terceiras e irmandades, estas associações foram

estimuladas inicialmente como um meio de trazer uma maior participação leiga nos cultos

e práticas da Igreja Católica. Mas seria superficial analisá-las unicamente nesse sentido.

É preciso compreendê-las a partir de sua grande abrangência que circundou importantes

aspectos sociais da Europa moderna.

Para entender o aspecto social dessas irmandades é necessário pensá-las dentro do

contexto de desenvolvimento das ações caritativas no continente europeu. As ações de

caridade através das irmandades religiosas surgiram em Portugal a partir dos séculos XI,

XII e XIII (RUSSELL-WOOD, 1968, p.4 e BORSCHI, 1986, p.12) devido às condições

adversas de pobreza e dos grandes surtos de pragas registrados no período. Russell-Wood

resume como “fome, praga e guerra” as necessidades nas quais as ações de caridade das

confrarias eram incidentes. Assim, desenvolveram-se dentro dessas instituições

interessantes engrenagens de assistência social, sendo as confrarias organismos auxiliares

de um meio de redução de danos às condições adversas de cada período. O estímulo

religioso por detrás dessas ações residia principalmente em princípios de caridade

retirados da parábola do juízo final de Matheus1, estes princípios referiam-se à assistência

aos pobres, aos doentes, aos desabrigados e aos prisioneiros. Era assim, a assistência ao

1 Mateus, 25 34-7

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outro que permitiria uma vida espiritual plena, algo intrínseco à mentalidade social da

Europa do período.

Em Portugal, as irmandades foram, em distintos momentos da história lusitana,

agentes sociais importantes, inclusive servindo de auxílio administrativo à Coroa

(RUSSELL-WOOD, 1968). A própria história da saúde no mundo ibérico é reveladora

desses aspectos. A assistência dos enfermos, dada principalmente pelas chamadas

hospedarias, passou por uma ação de centralização durante o reinado de Dom Manuel I,

incluindo-se justamente uma irmandade religiosa como expoente máximo desse processo,

foi a Santa Casa de Misericórdia ou Irmandade da Misericórdia, criada em 1498, uma das

mais poderosas dessas instituições.

O Brasil herdou de Portugal a vocação assistencial presente nessas instituições.

Na Bahia colonial, confrarias e irmandades foram organizações prestigiosas, muito destas

associações (como a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, a Ordem Terceira de São

Francisco e a Ordem Terceira do Carmo) chegaram a competir com grandes ordens

religiosas (como os Beneditinos e Jesuítas) (RUSSEL-WOOD, 1968) nos bens

adquiridos, na presença social e até mesmo nas suas relações com o poder temporal.

Além de sua característica assistencial, é importante destacar, por conta do forte

caráter heterogêneo presente em seu aspecto populacional, que a vida social dentro dessas

confrarias no Brasil foi muito mais intensa do que na Europa (BOSCHI, 1986). As

irmandades foram no Brasil organizações imbricadas com a vida cotidiana. Independente

da posição social, indivíduos tendiam a participar destas associações, onde se

estabeleciam, em seu seio, laços de sociabilidade, quer seja entre membros da elite local

quer seja entre os subalternos. Para homens da aristocracia, participar de uma irmandade

prestigiada lhes traria status social, riquezas, vantagens em determinados negócios e uma

importante segurança para o além2, para os subalternos, as irmandades constituíam uma

das poucas possibilidades de diminuição de agruras e de sociabilidade.

Os conflitos entre diferentes grupos raciais e econômicos eram

atenuados pela criação de uma identidade social que, do ponto de vista

psicológico, ajudava a valorizar até os mais carentes. No seio de uma

irmandade de mulatos ou de negros, um escravo se sentia igual a um

pequeno comerciante, e se gozasse do respeito de seus irmãos e irmãs,

podiam assumir a mesma responsabilidade que ele. Por outro lado,

negros e mulatos se sentiam iguais aos brancos: tinham a possibilidade

de construir e ornamentar suas próprias igrejas e ter capelães; ter

2 Assunto que tratarei com mais atenção no capítulo 3 deste trabalho.

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enterros tão suntuosos quantos os dos socialmente superiores. Exibir-se

com brilhos e grandeza nas procissões religiosas que marcavam a vida

da cidade. (MATTOSO, 1992, p.402)

Os mais excluídos da sociedade oitocentista não se igualavam à elite local por

estarem dentro dessas irmandades. Sendo assim, há um exagero na análise feita por Katia

Mattoso, que confunde a atenuação de condições de subalternidade à igualdade. Porém,

a citação é interessante na compreensão da importância da presença social que estas

instituições tiveram para diferentes grupos.

Para participar de uma irmandade era necessário o chamado “pagamento de joia”,

um valor estipulado por estas instituições como contribuição mínima para se tornar irmão.

Em troca deste valor, a irmandade oferecia benefícios aos seus membros, dentre estes: o

pagamento de dotes para casamentos das filhas, assistência à viúva, garantia de um

funeral católico e, para irmandades composta por escravos, a compra da alforria. São as

características da chamada “ajuda mútua”, um modelo de assistência baseado na

solidariedade intragrupal. Para além dos benefícios diretos dados para seus irmãos, uma

outra característica intrínseca à historicidade dessas instituições destaca-se dentro de uma

análise histórico-social: são as redes de sociabilidade contidas nessas relações de

solidariedade cotidiana. A irmandade, na sua nuclearidade, foi um terreno fértil para que

laços entre iguais se fortalecessem e se legitimassem.

No caso de irmandades de “gente de cor”3 este caráter é ainda mais evidente, pois

estas foram uma das poucas formas oficiais de sociabilidade permitida aos sujeitos

escravizados (SCARANO, 1976, p.14). Tornaram-se assim espaços de resistência, onde

muitas vezes revoltas se iniciavam4 e se reduzia relativamente as agruras do sistema

escravista.

A irmandade era também um espaço de equilíbrio entre as tensões cotidianas. No

seio dessas instituições ocorriam diariamente negociações5 para as condições dos sujeitos

3 Aproprio-me aqui do termo utilizado por Katia Mattoso no livro Bahia: uma província no império, no

qual, a autora se refere a irmandades composta em sua maioria por escravos ou ex escravos, como

irmandades de gente de cor. 4 Exemplo da Revolta dos Malês, ver, REIS. 2013. 5 Termo utilizado por João Jose Reis no livro Negociação e Conflito, remete-se diretamente ao conceito

apresentado por Thompson no Livro Costumes em comum para definir um equilíbrio de tensões nas

relações cotidianas. (REIS, 2009 e THOMPSON, 2015)

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subalternos. A festa em torno de seus oragos6, expoente máximo de representatividade

dessas associações7, era uma maneira de escapar dos sofrimentos da existência escrava e

propiciava a estes grupos ocupar e participar da cidade. Sendo assim, os festejos pensados

a partir de um universo simbólico próprio foram espaços propiciadores de negociação e

de resistência. As irmandades também foram um meio de busca e recriação identitária,

no qual grupos com similaridades em suas demandas sociais, ao se encontrarem,

dialogavam e negociavam as suas condições8.

Para além dos benefícios diretos, percebe-se assim que estas instituições, seja

para sujeito subalternos, seja para sujeitos sob a luz da legitimação social9, foram meios

de sociabilidade transversais, ou seja, estavam presentes em toda a vida social do

indivíduo, independentemente da posição ocupada por este.

Este caráter das irmandades perdurou por séculos no Brasil. Um exemplo claro foi

o de João de Matos de Aguiar, sobrinho e herdeiro de um grande senhor de engenho da

Bahia, foi grande proprietário de terras e se tornou um dos homens mais poderosos da

região no século XVII. João de Matos era membro de 8 irmandades e participava

ativamente de outras 2310, os seus negócios e a administração de parte de seus bens

estavam sobre a tutela da Ordem Terceira de São Francisco e da Santa Casa de

Misericórdia. Inclusive esta última foi a responsável pela distribuição de seus bens após

sua morte. Em seu testamento, as irmandades e confrarias foram as principais

beneficiadas com sua herança.

Da mesma maneira para homens de menor condição, como os músicos das

sinfônicas da cidade de Salvador no século XVIII, a Irmandade de Santa Cecília,

localizada na Igreja da Sé, promovia festejos e discutia melhorias para os seus membros

6 Orago, santo principal de devoção de determinada irmandade, normalmente aquele em que a irmandade

concentra o seu culto, exemplo: Irmandade de Santa Cecília, o orago é Santa Cecília e os festejos se

concentram em torno deste santo. 7 Objeto que explorarei com mais atenção no capitulo dois desse estudo. 8 Diversos autores se debruçaram sobre a festa e as irmandades com o intuito de perceber essas

características, destaco particularmente o trabalho de Marina de Mello e Souza no livro Reis negros no

Brasil escravista. História da festa de coroação de Rei Congo, no qual percebe a festa e as irmandades

como um marco de resistência da tradição africana e demonstra o quanto estas eram oportunidades

“oficiais” de preservação de tradições, por meio de uma adaptação ao calendário católico. 9 Ao utilizar o termo “Sujeito sob a luz da legitimação social, refiro-me a indivíduos que participavam da

elite local, permeando a elite aristocrática e econômica. Katia Mattoso demonstra que as irmandades

funcionavam como importante vínculo de manutenção de status social, assim afirma: Integrar uma

irmandade era prova de prudência e garantia de permanência no mesmo grupo social, em caso de

empobrecimento. ” (MATTOSO, p.400) 10 Financiando eventos, sendo juiz de festas religiosas entre outras.

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enquanto categoria profissional. Tinha assim uma importância significativa na

sociabilidade daquele grupo.

Os exemplos demonstram a análise das irmandades através de dois fenômenos:

a percepção da importância que estas associações tiveram na sociedade baiana

setecentista e oitocentista e sobre o ponto de vista individual, o seu papel em distintas

etapas da vida de um sujeito. Em diferentes períodos e para grupos sociais distintos, a

função social das irmandades transcorria diversas etapas da vivência social da população.

Pode-se dizer assim que estas organizações religiosas perpassavam pelos principais

momentos da existência de um indivíduo, os pilares sociais da sociedade brasileira

durante os séculos XVII, XVIII e XIX, isto é, o nascimento, o casamento e a morte. Não

se trata de um nascer físico, mas sim, a representação de um status de pertencimento.

É preciso também notá-las como organismos dotados de uma organização

interna bem estruturada, independente do caráter de sua composição social. Estavam

assim divididas internamente em diversos cargos que incluíam presidentes, tesoureiros,

mordomos e outros membros que compunham a chamada mesa administrativa. Nos

períodos de auge dessas associações havia grandes disputas para as eleições desses

cargos, revelando o prestígio de ser irmão de determinadas irmandades em diversos

momentos da história do país.

O prestígio e poder que estas associações tiveram no Brasil podem ser

compreendidos a partir de uma relação de certa autonomia quanto às instituições

eclesiásticas e ao poder temporal. Um exemplo pode ser notado ao pensar que, até meados

do século XIX, período com grande número de revoltas escravas, a exemplo da revolta

dos Malês (REIS, 2003), ocorreu maior controle em relação as irmandades de negros.

Seguindo essa linha de raciocínio Julita Scarano argumenta que:

Aqui, tanto o poder eclesiástico como o temporal se achavam de acordo,

procurando um e outro combater o espírito de independência que se

manifestava em várias irmandades. Estas, por sua vez, também

tentavam escapar ao controle dos vigários que, por mais próximos,

procuravam de todas as formas colocarem esses grupos sob a sua

jurisdição. (SCARANO, 1976, p.21)

Este aspecto dessas instituições é de suma importância para se pensar o quanto foi

intenso o seu caráter de sociabilidade no Brasil. Se na colônia estas instituições atuaram

como força auxiliar à coroa portuguesa, no império ambos os poderes concentraram uma

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maior vigilância a uma certa autonomia criada por estas associações. Para o poder

eclesiástico, as irmandades foram uma afronta à intenção de um movimento de

romanização que se intensificou no século XIX, e para o poder temporal, estas instituições

agrupavam o berço das revoltas que tanto preocuparam o período imperial.

2. Irmandades e Historiografia, a irmandade como objeto de estudo da história.

Vários autores analisaram diferentes realidades sociais a partir da ótica e da

inserção dos seus objetos relacionados a irmandades religiosas, uma vez que estas

instituições estavam profundamente imbricadas com as vivências sociais de parte

considerável da história brasileira. Este capítulo tem como objetivo demonstrar as

dinâmicas contidas nas redes de sociabilidade e de poder permeadas pelas irmandades,

analisando seu funcionamento interno e suas relações com a estruturação urbana da

cidade, além do seu desenvolvimento social enquanto instituições de ajuda-mutua.

Dentro do recorte espacial e temporal dessa pesquisa, alguns estudos são cruciais

para a compreensão do tema. Apesar de não ser o seu objeto central, Kátia Mattoso tratou

do catolicismo leigo, evidenciando a importância que essas irmandades tiveram na Bahia

desde o Brasil-colônia. Como uma obra de longa duração, pode-se entender diferentes

aspectos da Bahia oitocentista, destacando consideráveis análises como as principais

reformas religiosas do século XIX e os critérios de aceitação de cada irmão dentro das

irmandades. Percebeu assim algumas das intensas mudanças sofridas pelas irmandades

durante o período e a relevância que estas teriam para o que ela chama de “gente de cor”.

Para a análise da importância que estas associações tiveram para a “gente de cor”

e para o entendimento do intenso caráter de sociabilidade destas, cinco importante obras

se destacam para este estudo, são elas: a tese de doutorado de Lucilene Reginaldo, Os

rosários dos angolas; o livro de João José Reis, A morte é uma festa; a dissertação de

mestrado de Sara Oliveira, Irmãos de cor, de caridade e de crença; e as obras pioneiras

de Julita Scarano e Caio Boschi, respectivamente Devoção e escravidão e Os leigos e o

poder. Incluem assim a escala política, social e identitária dentro das relações que

envolviam as irmandades religiosas no período para os homens de cor, e forneceram um

itinerário para a compreensão de como as associações leigas operaram na sociedade

oitocentista.

Permeando a compreensão dessas associações em um sentido de sociabilidade, a

historiografia do tema em questão serviu de parâmetro para a montagem da minha

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compreensão sobre este caráter. Os autores apontaram que uma das poucas possibilidades

de sociabilidade entre cativos estaria expressa no espaço da irmandade religiosa. Esta

característica, já evidenciada nas confrarias católicas portuguesas do século XVI

(REGINALDO, 2011), se intensificou no Brasil e adquiriu novas roupagens, inserindo

indivíduos de categorias sociais distintas.

O trabalho de Lucilene Reginaldo analisou as irmandades religiosas, promovendo

uma contextualização que circundou desde o catolicismo em parte da África Central,

passando por Portugal até chegar ao Brasil. Analisou o contexto em que surgiram as

primeiras irmandades de escravos angolas na Bahia do século XVIII e sua atuação

enquanto espaços de “recriação de identidades étnicas”, ou seja, percebeu dentro dessas

irmandades traços de uma busca de identificações legitimadas pela condição de ser cativo.

Interessava-me, cada vez mais, pelas análises que privilegiavam as

irmandades negras como espaços de expressão da diversidade na

comunidade escrava e liberta. Assim, no tocante à diversidade étnica,

buscava alternativas de análise que superassem as meras constatações

da divisão das confrarias com base nas origens africanas.

(REGINALDO, 2011, p.2)

Dentre os estudos pioneiros sobre as irmandades religiosas, temos os trabalhos de

Julita Scarano e de Caio Boschi. Julita Scarano em Devoção e escravidão discutiu o

panorama das irmandades religiosas negras no século XVIII a partir do estudo da

Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino. Já Caio

Boschi em sua clássica produção Os leigos e o poder forneceu parte da estrutura de

compreensão da relação entre essas associações leigas e o poder temporal durante os

oitocentos. Seu estudo enfoca as relações entre Estado e Igreja a partir do entendimento

específico das irmandades religiosas em Minas Gerais.

Todavia, mais importante do que identificar o significado da Igreja

como instituição é captar o sentido e as formas de sua ação. Só assim

entender-se-á a importância das irmandades leigas. Ao mesmo tempo

força auxiliar, complementar e substituta da igreja nessa ação, elas se

propunham a facilitar a vida social, desenvolvendo inúmeras tarefas

que, pelo menos em princípios, seriam da alçada do poder público.

(BOSCHI, 1986, p.3)

Outra perspectiva sobre o entendimento das irmandades está presente na

dissertação de mestrado de Sara Oliveira Farias, Irmãos de cor, de caridade e de crença.

A partir da irmandade do Rosário dos Pretos das Portas do Carmo, apresentou um

panorama da história da irmandade e suas relações com o poder eclesiástico e político

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local. A obra analisou a história desta associação, os conflitos internos e externos entre a

irmandade e a Cúria, além da importância da chamada “tradição africana” e suas

apropriações. Tradição esta já relatada por Julita Scarano em sua obra “Devoção e

Escravidão”, na qual afirmou que as “confrarias serviram de veículo de transmissão de

diversas tradições africanas, que se conservaram pela frequência dos contatos, pela

conservação da língua e outras razões semelhantes” (SCARANO, 1976, p. 150).

A ideia de tradição também esteva presente na obra de João José Reis, A morte é

uma festa, que buscou, através do movimento denominado de cemiterada11, compreender

os vínculos sociais, sobretudo os de natureza étnico-racial dentro destas associações.

Demonstrou as irmandades enquanto organismos de produção de laços de solidariedade

que perpassavam e sobrepunham ao social e ao religioso, ou seja, o estudo conseguiu

principalmente compreender as relações sociais dentro destas instituições como veremos

no trecho que segue:

As irmandades tinham dessa maneira a função implícita de representar

socialmente, se não politicamente, os diversos grupos sociais e

ocupacionais da Bahia. Na ausência de associações propriamente de

classe, elas ajudavam a tecer solidariedades fundamentadas na estrutura

econômica, e algumas não faziam segredo disso em seus compromissos

quando exigiam, por exemplo, que seus membros possuíssem, além de

adequada devoção religiosa, bastantes bens materiais. Mas o critério

que mais frequentemente regulava a entrada de membros nas confrarias

não era ocupacional ou econômico, mas étnico-racial. (REIS, 1999,

p.53)

Mauro Dillmann, no livro Irmandades, Igreja e Devoção no sul do Império do

Brasil, tratou das relações devocionais dentro destas instituições conceituando a

possibilidade de uma religião de irmandades, notando no culto e festas religiosas

produzidas por estas associações, aspectos que se aproximavam de um catolicismo

barroco e oficial, mas que tinham características próprias. Ao analisar estas instituições

inseridas no contexto da segunda metade do século XIX, o autor percebeu nas relações

entre a Igreja e o Estado uma relação de diálogo e negociação.

O período destacado por Mauro Dillman é apontado pelos estudos clássicos de

história da Bahia como de decadência das irmandades12. A bibliografia aponta para o

11 Revolta que resulta na destruição do cemitério do campo santo em 25 de outubro de 1836, inclusive o

autor salienta que o acontecimento se inicia a partir de uma convocação de um protesto organizado por

irmandades e ordens terceiras. 12 Com o advento da República e a secularização dos poderes púbicos, segundo parte da bibliografia, as

irmandades evidenciam um período de decadência.

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desaparecimento de parte considerável destas instituições principalmente no final do

século XIX e no início do século XX, justificada pela perda progressiva da importância

de suas funções, aliando-se a isso o fim do padroado régio, a proclamação da República

e a libertação progressiva dos escravos:

Não me parece exagerado afirmar que, durante a primeira metade do

século XIX, quase todos os baianos pertenciam a, pelo menos, uma

irmandade. Elas entraram em decadência mais tarde, por volta de

meados dos séculos, quando os poderes locais começaram a se

interessar seriamente pelos problemas sociais da cidade, criando suas

próprias instituições de socorro e associações privadas assumiram

encargos suportados outrora pelas irmandades. (MATTOSO, 1992,

p.402)

Edilece Souza Couto, ao estudar o declínio destas instituições, notou as

engrenagens deste processo, demonstrando fatores relacionados a este, como a

localização geográfica, a composição social de seus irmãos e as relações dessas

instituições com o poder temporal e eclesiástico. Em seu livro Tempos de Festas:

homenagens a Santa Bárbara, Nossa Senhora da Conceição e Sant’Ana em Salvador,

forneceu parte da estrutura de compreensão das permanências e modificações das festas

religiosas nos séculos XIX e XX, percebendo o impacto da República e suas intervenções

urbanas nos festejos da cidade. Tratando especificamente sobre irmandades religiosas,

seus artigos mais recentes abordaram as relações entre estas e alguns bispos reformadores

(COUTO, 2016), analisando a busca por soluções e adaptações para os períodos de

declínio, tal como as fusões e as reformas de compromissos.

Os compromissos eram responsáveis por definir elementos como o caráter da

irmandade, bem como a composição social de seus integrantes. Um conceito

desenvolvido na bibliografia é importante para o entendimento e leitura de determinado

compromisso e da documentação que envolvem as irmandades. É a ideia de rede de

sociabilidade, uma vez que era no interior dela que se desenhavam as redes de

solidariedade, “fundadas nas hierarquias sociais que permitiam o apoio nos casos de

doença, morte, alforria, etc” (REIS, 2012, p.p.51-52). Ao fazer leitura da documentação

e dos compromissos enquanto forma de ordenar as sociabilidades possíveis a diferentes

sujeitos em distintos lugares sociais em Salvador no século XIX, pode-se entender melhor

o papel das irmandades. Tanto quanto espaço para o catolicismo leigo, a leitura do

compromisso nestes termos permite pensar a irmandade como demarcador de lugares

sociais.

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3. A cidade de Salvador imperial e a freguesia de Santana.

As confrarias eram divididas em ordens terceiras e irmandades, sendo organismos

aparentemente parecidos por se tratarem de associações entre leigos13, mas eram

estruturalmente diferentes. A maior diferença entre elas está na vinculação a outras

instituições. As irmandades, até o final do oitocentos, eram independentes na forma de

administração, com mesas administrativas formadas exclusivamente pelos irmãos; as

ordens terceiras, por sua vez, eram vinculadas a uma ordem primeira, ou seja, suas

atividades eram supervisionadas por um clérigo (BORSCHI, 1986) e ainda havia as

corporações de oficio que, geralmente, estavam vinculadas a algum grupo profissional14.

Porém, a conceituação dessas associações não é tarefa fácil. Há confusão,

principalmente, entre irmandade e confraria. Por vezes, os próprios irmãos resolvem

mudar a denominação sem deixar documentação que revele os motivos. Esse é o caso da

Irmandade do Senhor Bom Jesus da Cruz que mudou o nome para Confraria do Senhor

Bom Jesus da Cruz. O compromisso de 1874 (mandado reimprimir em 1914) traz o novo

nome, mas não explica a motivação para a mudança. João da Silva Campos (CAMPOS,

2001) afirma que consultou o compromisso de 1878, no qual aparece o nome Confraria

da Fortaleza do Senhor Bom Jesus da Cruz. Não tive acesso a esse documento. De

qualquer forma, ambos revelam que os irmãos preferiram denominar confraria a sua

associação.

A Salvador do império era uma cidade de grandes desigualdades cuja riqueza

estava concentrada em uma pequena parcela da população. João José Reis a define como

“uma cidade cujo povo era pobre, em grande parte escravizado, mas um povo inquieto e

frequentemente rebelde” (REIS, 1999, p. 37-48). Em relação à divisão administrativa da

cidade, esta era dividida em 10 freguesias15, sendo estas associadas a uma igreja que

muitas vezes concentrava um número elevado de irmandades sediadas nesta, do que se

depreende sua expressão inclusive em termos geográfico-administrativos.

A respeito do seu desenvolvimento econômico podemos destacar o crescimento

de Salvador profundamente ligado à economia atlântica até a metade do século XVIII.

13 Aqueles que não faziam parte do Clero. 14 As corporações de oficio também são instituições com menor vínculo religioso do que as irmandades.

Por vez, algumas irmandades com maior característica profissional se tornaram corporações de ofício. 15Divisão administrativas das cidade, em Salvador, as 10 freguesias eram: S. Salvador da Sé, N.Sra. da

Vitória, N.S. Da Conceição da Praia, Sto. Antônio Além do Carmo, São Pedro Velho, Santana do

Sacramento, Ssmo. Sacramento da rua do Passo, N.S de Brotas, Ssmo. Sacramento do Pilar e N.S da Penha

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Um dos maiores portos de comércio escravo no Brasil, milhares de cativos eram

negociados em seus mercados. Salvador ingressou no século XIX como uma cidade que

se destacava no panorama nacional, mas ainda carregada com grande parte dos traços que

havia adquirido durante o período colonial:

Salvador, no entanto, continuava como um caso particular. Desde sua

fundação, a cidade fora objeto de atenções especiais, pois era cidade-

capital, cidade real. Nós a vimos, ainda nos seus primórdios, dotada de

uma estrutura urbana herdada de experiências adquiridas nas Índias.

Vimos, em seguida, nascerem novas vilas, novas paróquias, novos

povoados. Teria a criação desses núcleos contestado de algum modo a

hegemonia excludente por Salvador sobre a imensa capitania baiana?

Ainda não podemos responder. É certo que Salvador exercia uma

dominação delegada por outro centro maior, outra metrópole, a distante

Lisboa, que a controlava, impondo-lhe ritmos segundo uma conjuntura

que era, sem dúvida, mais europeia do que brasileira. Mas isso não

impediu que a Cidade da Bahia fosse um centro a um só tempo

exportador e importador, verdadeira praça mercantil de múltiplas

funções. (MATTOSO, 1992, p.78/79.)

Marcada pelas imponentes construções do barroco, era a cidade na qual grande

parte da vivência religiosa estava concentrada nas irmandades (MATTOSO, 1992, p.

403); seus indivíduos, preocupados com questões relativas ao bem morrer, buscavam

nestas associações e nos seus ritos e festas uma forma de lidar e tentar obter amparo diante

das angústias da vida e da morte (REIS, 1991). De pessoas de posses, integradas em

confrarias que exigiam grande quantidade de bens em seus compromissos, para ingresso

dos irmãos; ou de oficiais mecânicos ou de escravos, grande parte da população urbana

de Salvador no período participava das irmandades ou ordens terceiras, distribuídas em

várias freguesias16. Katia Matoso (1992) estima que na primeira metade do século XIX

mais de 85% da população adulta livre de Salvador estava inserida em pelo menos uma

irmandade religiosa.

A divisão administrativa da cidade evidenciava a forte relação entre o poder

eclesiástico e o poder temporal. Para se expandir ou fazer qualquer modificação nos

limites de uma freguesia, assunto que parece da alçada civil, era necessária uma consulta

ao poder eclesiástico (NASCIMENTO, 2007). Assim, dentro dessas freguesias se

16 Utilizo-me da mesma conceituação de freguesia proposta por Anna Amélia Vieira Nascimento que

propõe: “Freguesia, no sentido lato, significa o conjunto de paroquianos, povoação sob o ponto de vista

eclesiástico, clientela. Freguesia no conceito em que está caracterizado neste estudo é um espaço material

limitado, divisão administrativa e religiosa onde estavam localizados os habitantes ligados à sua igreja

matriz. Tomavam parte se em suas solenidades, ali realizavam seus batizados, casamentos e eram

sepultados.” NASCIMENTO, p.44.

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desenvolviam interessantes relações entre os seus membros, as irmandades lá sediadas e

as constantes reformas urbanas, principalmente com a proximidade do fim do século XIX.

Existia, em cada freguesia, um grande laço emotivo que envolvia

vigários e paroquianos, e entre estes e sua igreja matriz. Eram eles

sempre contra qualquer alteração nos limites de suas paróquias, porque

existia uma conscientização, misto de orgulho e bairrismo pela parte da

cidade onde habitavam, ou pela estreita ligação aos oragos de suas

matrizes, ou na participação em irmandades que nelas se instalavam.

Daí ter sido tão combatida a ideia de aumentar-se a menor freguesia da

cidade, a da Rua do Passo, quando começaram a preparar o projeto de

lei, em 1861, que alargaria seus limites, trazendo para ela partes das

freguesias da Sé, de Santana e de Santo Antonio Além do Carmo.17

(NASCIMENTO, 2007, p. 45)

O cotidiano da Salvador oitocentista pode ser percebido através dos diários dos

viajantes estrangeiros. O século XIX foi um período conhecido pela quantidade

significativa de visitas estrangeiras ao Brasil. A mentalidade social europeia e suas

relações com um novo pensamento da burguesia atrelado ao desenvolvimento da ciência

e do espírito inventivo do homem, trouxe ao ato de viajar um outro significado social

(DIAS, 2013, p.22). Atrelado a isso, com a chegada de Dom João VI em 1808, a lei que

desde 1605 proibia a presença estrangeira no território, até então colônia de Portugal,

deixou de vigorar. Neste mesmo século as relações comerciais entre o Brasil e outros

países da Europa se estreitaram. Todos estes fatores trouxeram ao Brasil viajantes

famosos e que tinham intenção de relatar suas percepções sobre um território que

despertava curiosidade tanto pelos aspectos naturais, como pelos seus aspectos sociais.

Apesar de um olhar contaminado, afinal é a percepção da cidade sobre um

imaginário de perspectiva europeia, suas descrições trazem alguns indícios de como era

a Salvador do Império. Dentre estes relatos destaco os de Robert Bufort, Elizabeth

Agassiz, James Wheterell e Maria Graham que visitou o Brasil entre os anos de 1821 a

1823 (justamente no período de transição entre colônia e império). Seus relatos revelam

uma descrição sobre a população e sobre os entornos urbanos e geográficos da cidade.

Quase constante é o encantamento e certa euforia com a chegada à Baía de Todos

os Santos, seus aspectos relacionados a impactante beleza natural de sua localização

geográfica foram uma das primeiras observações de quase todos os relatos de viajantes

estrangeiros que visitaram a cidade.

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Ao raiar da aurora, meus olhos abriram-se diante de um dos mais belos

espetáculos que jamais contemplei. Uma cidade, magnífica de aspecto,

vista do mar, está colocada ao longo da cumeeira e na declividade de

uma alta e íngreme montanha. Uma vegetação riquíssima surge

entremeada com as claras construções e além da cidade estende-se até

o extremo da terra, onde ficam a pitoresca igreja e o convento de Santo

Antônio da Barra. Aqui e ali o solo vermelho vivo harmoniza-se com o

telhado das casas. O pitoresco dos fortes, o movimento do embarque,

os morros que se esfumam a distância, e a própria forma da baía, com

suas ilhas e promontórios, tudo completa um panorama encantador;

depois, há uma fresca brisa marítima que dá ânimo para apreciá-lo, não

obstante o clima tropical. (GRAHAM, 1823, p.144)

Aos poucos são revelados os aspectos peculiares a respeito das condições

sanitárias e organização de Salvador. A divisão entre a cidade alta e cidade baixa deixou

de ser um belo contemplar de um acidente geográfico e passou a ser um marco de

acentuação de diferentes características sociais, urbanas e arquitetônicas que se

amplificavam ainda no adentrar das freguesias da cidade.

A iluminação precária, que foi um problema até final do século XIX, se tornou

marco do atraso que Salvador ainda vivia até o final do século. Não só a iluminação, mas

a higienização dos espaços públicos, as divisões geográficas e urbanas das ruas e a forma

como a cidade era organizada foi alvo de severas críticas dos viajantes estrangeiros. Os

relatos não se limitavam apenas a aspectos urbanos, mas se estendiam ao próprio

comportamento dos habitantes da cidade, mesmo aqueles pertencentes à dita certa elite

colonial:

Quanto à sociedade portuguesa daqui, sei dela tão pouco que seria

presunçoso dar uma opinião a respeito. Encontrei dois ou três homens

do mundo bem informados e algumas mulheres vivamente

conversáveis, mas ninguém, em nenhum sexo, que me lembrasse os

homens e senhoras bem educadas da Europa. Aqui o estado da educação

geral é tão baixo que é preciso mais do que o talento comum e o desejo

de conhecimentos para alcançar um bom nível. (GRAHAM, 1823,

p.162)

Não é de interesse aqui fazer uma análise histórico social do eurocentrismo

presente nesses viajantes, mas apenas notar que estes relatos, mesmo carregando marcas

de um olhar especifico, contém indícios da organização urbana da Salvador Imperial, e

são estes aspectos aos quais me atento na apropriação da descrição dos mesmos. Apesar

de estar em um projeto de europeização pensado pela elite local e observado em

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freguesias importantes da cidade, como a freguesia da vitória, a Salvador do século XIX

ainda carregava marcas de seu passado colonial.

A Salvador imperial se urbanizou no curso de suas possibilidades. A freguesia

de Santana não era diferente, ela acompanhou o crescimento urbano da cidade ao mesmo

tempo em que carregou os seus atrasos. No início do século XVIII a região da freguesia,

antes chamada de freguesia do desterro, por conta do convento do que ali existia,18 ainda

era um lugar ermo e distante do centro urbano da cidade. No século XIX,

processualmente o espaço entre as freguesias se reduziram e a freguesia de Santana

passou a ocupar uma posição espacial central na cidade. Desde o século XVIII, eram

constantes as reclamações sobre a iluminação e higiene nas ruas da freguesia, os

viajantes já sinalizavam (NASCIMENTO, 2007, p.142) as más condições de suas ruas

estreitas e mal divididas.

Aparentemente, ainda no início do século XX, os problemas de desenvolvimento

urbano da freguesia persistiam. Em uma matéria da edição de 1914 do jornal A Notícia

(A NOTÍCIA, 14.dez.1914), denunciavam-se os problemas de iluminação enfrentados

pela freguesia, salientando que havia anos que os lampiões de suas ruas não eram

trocados. Em outra matéria, na edição de 1915 (A NOTÍCIA, 16.abr.1915) do mesmo

jornal, foram denunciados aspectos da estruturação urbana e os problemas que as ruas de

Santana passavam durante a chuva, segundo a matéria, o largo do Desterro sempre “se

transformava em um grande lamaçal”.

Em estudo realizado sobre as freguesias da Salvador oitocentista, Anna Amélia

Nascimento (NASCIMENTO, 2007, p.56-57) destacou a importância que a freguesia de

Santana do Sacramento tinha dentro da cidade. Apesar de ser a menor em proporção

territorial, era a que possuía maior densidade demográfica. A autora salienta a intensa

vivência religiosa - observada desde a sua criação - e o fato de que essa foi uma das

freguesias com maior diversidade social. Contava com dois bairros: Palma, com duas

capelas, Nossa Senhora do Rosário do Regimento Velho e Santo Antônio da Mouraria;

Saúde, com as igrejas de Nossa Senhora da Saúde e Nossa Senhora de Nazaré. Por meio

da lista de qualificação eleitoral de 1847/8, Nascimento (NASCIMENTO, 2007, p.142-

145) identificou, entre os habitantes da freguesia, desde ex-presidentes da província,

senhores de engenho, negociantes, médicos e estudantes de medicina, antigos senadores,

18 Convento de religiosas Clarissas, fundado no século XVII.

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31

bibliotecário, jornalista, professores (ali estava localizado o liceu do ensino secundário)

a artífices e artistas (músicos). Inclusive, seria esta a freguesia com maior número de

moradores “inclinados às artes”19, referência à quantidade significativa de músicos,

escultores e artistas que residiam na freguesia.

A diversidade social presente na freguesia tinha reflexos na própria configuração

das residências. Ali encontravam-se todos os tipos de casas, desde casarões bem

estruturados, com alcovas, varandas e fachadas que evidenciavam a influência europeia,

a casas pobres onde vivia a população mais carente, dentre estes descendentes de escravos

e libertos.

Estavam presentes na freguesia de Santana do Sacramento três irmandades: SS.

Sacramento e Santana, na igreja da matriz de Santana, e as irmandades da Palma e do

Bom Jesus da Cruz, na igreja da Palma. Estar dentro do mesmo limite geográfico

circundado por uma freguesia estava além de uma simples forma espacial, era

significante participar de uma rede de relações que se configuravam a partir do desenho

da freguesia, como a disputa de poder e prestigio por parte dessas irmandades traçava

uma trajetória social especifica que só pode ser entendida a partir da freguesia e de suas

relações com a cidade.

4. As irmandades da Freguesia de Santana e sua organização interna

A relação dos membros de uma irmandade com um santo de devoção era, até

meados do século XX, a força motriz devocional associativa de uma irmandade. Muitas

vezes uma origem mitológica, destacando um milagre feito por algum santo justificava o

caráter de devoção dessas instituições.

Como dito, sabe-se da presença de três marcantes irmandades dentro da freguesia

de Santana, uma das maiores delas foi a confraria do Bom Jesus da Cruz, criada em 1722

e regulamentada pelo rei Dom José I em 1764. A irmandade tem seu surgimento associado

ao culto do Cristo crucificado, uma das formas de devoção mais populares no século

XVIII, a descrição da origem mitológica da irmandade, como todo mito, remete-se à

19 Ao utilizar o termo “habitantes inclinados as artes”, aproprio-me da definição populacional proposta por

Anna Amélia Vieira Nascimento ao tratar da população da freguesia de Santana: “...Poderíamos, porém,

dizer que, abstraindo-se os elementos de superior categoria, habitantes de Satana, e os militares que ali

tinham morada, talvez fosse a freguesia na qual os habitantes mais se inclinassem às artes.”

(NASCIMENTO, 2007, p.144).

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justificativa para determinado tipo de ritual, vestimentas e procissões perante os seus

irmãos. O mito de origem leva a reprodução ou a (re)atualização do mesmo durante o

festejo ou procissão. É a representação do momento de formação da irmandade, o que

remete ao santo e ao milagre que levaria seus irmãos à determinada devoção.

Corria o mez de Março de 1719. O fulgurante e azulado Céo, desta

augusta Cidade, onde germinam fertilmente as cândidas flores da

Virtude, começou a vestir-se de negras nuvens. Uma enorme

tempestade, com um cortejo de copiosa chuva e furacões, parecia querer

tragar essa magestosa cidade. Os Céos, irritados, despidiam

frequentemente raios e relâmpagos, que de envolta com chuvas e

vendavaes, levavam temor até aos espíritos mais intrépidos. A tristeza

já se tinha apoderado do coração dos habitantes desta cidade. Todos

entregues a dolorosos pensamentos, iam, por uma vez, aos Templos,

para, por meio da Oração, que é “uma fonte inesgotável de toda a casta

de bens”, implorar a Clemência Divina.20

No meio desta catastrophe, um homem, de cor parda, em hábitos de

santa penitencia, apresentar-se nas ruas desta cidade, abraçado com a

Santa Cruz, que é, segundo as Escripturas Sagradas, “a expressão do

amor de Deus para com o homem”, convocando a outros para, em

Procissão, percorrerem as ruas da cidade. Este Devoto, ungido do fogo

sacro da Fé, viu suas aspirações realizadas, de sorte que, depois de uma

sublime penitencia, recolheu-se, com seus caríssimos Confrades na

Egreja de Nossa Senhora d’Ajuda, onde instalou a Pia Devoção da Via

Sacra. (COMPROMISSO BOM JESUS DA CRUZ..., 1914, p.1)

O momento de origem, o milagre e sacrifícios destacados nele, remetem-se ao

caráter devocional da irmandade e tendem a ser lembrados e (re)atualizados por esta. Este

movimento cíclico lembra aos fiéis a importância devocional instituída por aquela

associação. Mircea Eliade (1992, p.45) ao discutir as festas e a conceituação do tempo

festivo, demonstra que “o Tempo de origem de uma realidade, quer dizer, o tempo

fundado pela primeira aparição desta realidade, tem um valor e uma função exemplares”.

O tempo contemporâneo ao fiel associa-se diretamente ao tempo divino no qual o

milagre e a fé foram evocados, os festejos em homenagem ao orago da irmandade, o

responsável pelo milagre é o elo de associação a este tempo sagrado que é constantemente

reinventado e atualizado nos festejos e nos compromissos da irmandade.

Seja qual for a complexidade de uma festa religiosa, trata-se sempre de

um acontecimento sagrado que teve lugar ab origine e que é,

ritualmente, tornado presente. Os participantes da festa tornam-se os

contemporâneos do acontecimento mítico. Em outras palavras, “saem”

de seu tempo histórico – quer dizer, do Tempo constituído pela soma

dos eventos profanos, pessoais e intrapessoais – e reúnem-se ao Tempo

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primordial, que é sempre o mesmo, que pertence à Eternidade.

(ELIADE, 1992, p.45)

O compromisso da Irmandade do Bom Jesus da Cruz ressalta como requisitos para

se tornar irmão “ter boa conduta e estar de acordo com a fé católica, ser maior de 21 anos

e ter condições para obter o pagamento da joia”.21 É um compromisso com poucas

restrições, não havendo nele critérios raciais, sociais ou profissionais expressos22 como

exigência para a admissão de novos irmãos, ao contrário do que promoviam outras

confrarias da cidade, como a Santa Casa de Misericórdia e a Ordem Terceira do Carmo.

O mesmo compromisso é o único dentre as três irmandades estudadas que apresenta certo

interesse, ao menos no início do século XX, que seus irmãos tivessem algum tipo de

diplomação cientifica, abrindo exceção àqueles que a possuíssem.

Art 3 – Só podem ser Irmãos os maiores de 21 annos, salvo os casados,

os Clerigos, os que tiverem Diploma de qualquer Faculdade scientifica

ou litteraria, e os Officaes militares, nunca menores de 18 anos, e os

filhos dos Irmãos, ainda que de edade na circunstância do Art.1 e todos

de boa conducto moral e religiosa (COMPROMISSO BOM JESUS DA

CRUZ..., 1914, p.7)

Havia uma mesa diretora formada por 16 irmãos, dentre estes um presidente, um

procurador geral, um tesoureiro e um escrivão. Além disso, o presidente tinha o direito

de eleger 13 consultores para ajuda administrativa, incluindo um mordomo23 e um

procurador. As eleições para nova mesa ocorriam uma vez por ano, podendo variar de

acordo com cada período. No início do século XVIII a até final do século XIX a

documentação revela uma quantidade significativa de nomes com intenção de formação

de mesa diretora, o que prova o prestígio que era ser membro dessa irmandade durante

esse período.

As eleições para novos membros ocorriam anualmente 15 dias antes da festa do

orago e a posse da nova mesa diretora 15 a 20 dias após a mesma, isso revela a

importância da festa do orago como marco temporal dessas instituições. A cerimônia de

posse da mesa obedecia a rituais que remetiam também ao “mito de origem” da confraria.

A descrição dessa posse no compromisso revela interessantes digressões: a primeira delas

21 O valor de doação para entrada de determinado irmão em uma confraria, chamava-se o “pagamento de

joia”. 22 O compromisso aponta como restrição apenas ser cristão e ter boa conduta. 23 Mordomos eram responsáveis pela consultoria de determinado aspecto de uma irmandade tais como

finanças, festas, patrimônio etc.

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se dá pela percepção da importância do próprio compromisso, que é recebido pelo novo

presidente como um símbolo que representa a honra e o comprometimento às regras da

irmandade; outro aspecto é a observação do detalhamento ritual expresso nesses

documentos, revelando em cada atitude uma organização peculiar dessas instituições.

As noves horas da manhã, do dia acima indicado, comparecerão na

Sacristia da Capella, paramentados com suas capas, não só a Mesa

novamente eleita, como a que ultimar, e dahi se dirigirão em acto à

Egreja para ouvirem a Missa do divino Espirito Santo, que será

celebrada pela Revd. Parocho da Freguezia, ou quem suas vezes fizer;

e depois desta concluída, seguirão todos para o Consistorio da

Confraria, e o Revd. Celebrante tornará assento em cadeira especial à

cabeceira da mesa e a direita do Presidente; o Escrivão senta-se-há na

cabeceira oposta, tendo ao se lado direito o Presidente que tiver sido

eleito; a Mesa finda occupará a bancada esquerda, e a nova a bancada

direita, e ambas na ordem das categorias dos cargos. O escrivão fará a

chamada da Mesa eleita pela lista nominal existente e publicada no

Púlpito, e cada um dos seus membros, por sua vez, irá prestando nas

mãos do Parocho o juramento aos Santos Evangelhos de bem servir o

seu cargo e de ser fiel à instituição e ao serviço de Deus, e ao credito e

interesses da Confraria. O presidente eleito receberá do seu antecessor,

logo que tenha prestado esse juramento, o Compromisso da confraria e

uma das chaves de cada cofre, e tornará o assento dele, que passará a

ocupar o que fora seu; o Escrivão em idêntico caso, e do que vae

substituir o Sello da confraria e uma outra das chaves dos mesmos

cofres se sentará no seu devido lugar. O Thesoureiro e o Procurador

Geral receberão de cada um dos seus antecessores uma das chaves dos

referidos cofres, e debaixo das mesmas formalidades tornando os seus

novos assentos; o Procurador de mordomos e do seu antecessor; e os

Consultores, trocando-se mutuamente uns pelos outros se sentarão em

círculo da mesa. (COMPROMISSO DO BOM JESUS DA CRUZ...,

1914, p.27/28)

Os membros da mesa diretora deveriam fazer donativos com valores fixos, são as

chamadas promessas, ficando isento deste pagamento apenas o tesoureiro. No início do

século XX, por exemplo, o presidente eleito da confraria deveria pagar o valor de 100 mil

réis24 de promessa.

Além da mesa diretora, havia duas outras formações administrativas: as chamadas

“junta e concordata”. Nelas residiam “todo o poder e soberania da confraria”. Era uma

formação com poder de decisão sobre as ações mais definitivas da irmandade, como

24 Segundo tabela de exportação do Jornal “O Constitucional”, de 19 de Fevereiro de 1853 anunciava a

avaliação de um escravo de 4 anos pelo valor de 100 mil réis (Edital, Jornal O constitucional, Sábado, 19

de feveiro de 1853, p.3). Já com quase metade deste valor, 55 mil réis, segundo tabela de exportação do

Jornal “O constitucional”, era possível comprar 1 pipa (424 litros) de aguardente da terra. (Genero de

cultura e industrial desta província, Jornal O constitucional, 17 de novembro de 1851.).

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venda e pagamento de joias, relação de bens, alterações nos compromissos, deliberação

e execução de qualquer negócio feito a partir de decisão da mesa e a decisão sobre

expulsão ou reintegração de algum membro pela irmandade (COMPROMISSO DO BOM

JESUS DA CRUZ..., 1914, p.28/29). A concordata era formada por 12 irmãos e a junta por

24 irmãos, sendo que todos estes deveriam ter tido algum tipo de cargo na mesa

administrativa.

A organização da estrutura interna administrativa das outras duas irmandades

presentes na freguesia era parecida com a da Confraria do Bom Jesus da Cruz. As

variações residiam na quantidade de membros para cada cargo, por exemplo, a Irmandade

da Palma (COMPROMISSO DA IRMANDADE DA PALMA..., 1873). Por ser a mais

nova dentre as irmandades, tinha um número menor de cargos administrativos. Já a

Irmandade do SS. Sacramento e Santana não havia a presença da concordata

(COMPROMISSO DA IRMANDADE DO SANTISSÍMO SACRAMENTO E

SANTANA..., 1916).

Para entrada de determinado irmão era necessário o chamado pagamento de joia,

um valor inicial estipulado pela irmandade para associação de novos membros. Para a

Confraria do Bom Jesus da Cruz, irmandade que no século XIX tinha quase dois séculos,

este valor variava de acordo com o período e com as características de cada irmão.

Na análise de diferentes compromissos, percebem-se os seguintes valores: de

1874 a 1897 era pago pelo ingresso de um irmão solteiro o valor de 20 mil réis, sendo

casado com uma irmã da confraria, o valor seria de 30 mil réis, caso o pleiteante irmão

tivesse alguma enfermidade, o valor era de 40 mil réis25. Estas variações obedecem aos

riscos e os custos que a irmandade poderia ter com irmãos com maior possibilidade de

despesas. Em 1897 a mesa alterou estes valores, passando a entrada de solteiros custar 35

mil réis e de casados 50 mil réis.

Comparando as irmandades da freguesia podemos observar que, dentre as três

instituições, as irmandades de Santana e do Bom Jesus da Cruz tinham valores de joias

de entrada superiores ao da Palma, que exigia no compromisso de 16 de janeiro de 1876

a quantia de 12 mil reis para entradas de novos irmãos. Um dos motivos para este fato se

25 Em 1 de Junho de 1976, com 40 mil réis era possível comprar um aparelho de almoço de metal inglês

(Best Britannia Metal, Jornal O monitor, 1 de junho de 1976)/ Em 27de Janeiro de 1877, era possível com

12 mil e 500 reis comprar um par de botas para senhoras (O Monitor, 27 de janeiro de 1877).

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deve ao fato de a irmandade da Palma ser, dentre as irmandades aqui estudadas, a mais

nova, formada precisamente no final do século XIX, no ano de 1872, a partir da reunião

de habitantes da freguesia preocupados com a administração da igreja da Palma e do culto

ao seu orago, Nossa Senhora da Palma. Como tal ainda não detinha o prestígio da secular

irmandade em que dividia espaço.

Em troca do pagamento de joias e do esforço coletivos de manutenção de uma

irmandade, todos os irmãos recebiam as chamadas regalias. Estes benefícios eram

divididos em diferentes tipos, condizentes com a esfera espiritual e material. As regalias

espirituais incluíam missas realizadas tanto para os vivos como para os mortos e

assistência espiritual em caso de prisão injusta e doença grave. Bastava o irmão requerer

da irmandade o socorro espiritual, que algum membro da mesa administrativa ficava

incumbido de tomar as providências necessárias. As regalias materiais concentravam-se

principalmente em torno de uma assistência funeral26, a assistência à viúva e aos filhos,

além da garantia de todos os rituais em torno de um funeral católico, mesmo àqueles

irmãos que não tivessem deixado os recursos necessários para isto.

As irmandades normalmente colocavam em seus compromissos situações em que

porventura um irmão não teria direito a receber as regalias. A irmandade de Nossa

Senhora da Palma é a única das três irmandades aqui estudadas que não expressava tal

situação em compromisso. A Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santana daria tal

punição aos membros que mudassem de religião, desencaminhassem os livros da

irmandade ou utilizassem indevidamente um de seus carneiros. Já a Irmandade do Bom

Jesus da Cruz destaca as seguintes situações:

Att 19- Perdem direito aos sufrágios:

- Os irmãos que deverem à Confraria. As mulheres do que falecerem e

que se casarem segunda vez, sem serem com Irmão, e as que não

viverem com honradez. Os filhos e as filhas, ainda menores que tiverem

tomado estado27; e as filhas que viverem deshonestamente28.

(COMPROMISSO DO BOM JESUS DA CRUZ..., 1914, p.32/33)

5. A composição social das irmandades

26 Assunto que tratarei com mais afinco no capítulo 3 dessa dissertação. 27 “Tomar estado” significava casar. 28 Viver desonestamente configura na análise uma ferramenta de controle e exclusão social e refere-se ao

adultério feminino e a falta de honradez em sua vida leiga.

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As restrições revelam aspectos peculiares da composição social destas

associações. Ter fé católica, assim como uma boa conduta, estão presentes nos

compromissos como critérios para entrada e permanência na irmandade. Outro aspecto

característico diz respeito à composição étnica de seus associados. A partir do século

XIX, os critérios raciais para entrada de novos irmãos deixam de aparecer expressamente

nos compromissos, mas isso não significava necessariamente que as irmandades não

adotavam outros meios excludentes para uma composição étnica específica dos seus

membros.

Em sua maioria, as irmandades de pardos restringiam a presença de negros entre

seus associados. Variando de acordo com cada irmandade, quando havia a aceitação

destes, esta era limitada, muitas vezes não sendo possível a participação daquele membro

na mesa administrativa29. De todo o modo, a maioria dos compromissos dentro do período

pesquisado não deixa este caráter étnico evidenciado. No caso da Freguesia que ora

analisamos, a Irmandade da Palma não tinha uma definição racial específica. Já a

Confraria do Bom Jesus da Cruz, definida enquanto uma irmandade de homens pardos

livres, nada tinha nos compromissos pesquisados a respeito de restrições étnicas, apesar

de ser uma das irmandades que atraia grande número de mulatos da cidade. Estes

encontravam representação na própria historicidade da instituição que foi fundada por um

homem pardo, os próprios festejos demonstram esse caráter da irmandade. Assim nos

revela o cronista João Silva Campos:

O dia era dos mais jubilosos, dos mais brilhantes da cidade. Os mulatos,

todos chibantes, todos ensimesmados, pois o Divino Salvador, sob

aquela invocação era-lhe o Pai querido, tendo alicerce tal devoção na

circunstância de haver sido a festa instituída por um homem pardo.

(CAMPOS, 2001, p.159)

A partir do século XIX, fatores como a decadência progressiva do trabalho

escravo e os movimentos higienistas do final do século, fizeram com que as dicotomias

raciais entre o liberto e o escravo30, o preto e o branco, o sangue puro e sangue novo

29 João José Reis a despeito desse tema em seu livro A morte é uma festa, exemplifica: “O compromisso de

1795 da Irmandade da Conceição dos Homens Pardos de Santana do Camisão, em Cachoeira, no Recôncavo

Baiano, admitia brancos e negros livres e escravos, mas os negros só podiam exercer, no máximo o cargo

de mordomo, responsável pela organização de festas e outras atividades. Na capital, os mulatos se

mostraram ainda mais restritos. A irmandade do boqueirão, também de pardos, não aceitava escravos,

mesmo como simples membros.” (REIS, 1999, p.54) 30 O critério de cor permanece de outras maneiras, o “livre” e “escravo” é substituído por “inferior”,

“Superior”, “normal” e “degenerado”.

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fossem progressivamente diluídas em novas categorias. Surgiram assim outros critérios

de poder e status social, como a diplomação acadêmica, a quantidade de bens adquiridos

entre outros. A maioria das irmandades religiosas também deixaram de impor

explicitamente tais empecilhos, a própria Santa Casa de Misericórdia, que tinha um dos

compromissos mais restritivos31 da cidade, reformulou no século XIX os critérios de

entrada de novos irmãos.

A irmandade da Palma, contrastando com um movimento de declínio percebido

em relação às devoções leigas, surge em 1872, no final do século XIX, por isso, já não

cabia em seu compromisso critérios raciais restritivos, impondo apenas restrições

relacionadas à fé católica e a boa conduta, elementos em comum a quase todos os

compromissos do período.

Das irmandades da freguesia, a Irmandade do Santíssimo Sacramento e

Sant’Anna, fundada em 1783, era a mais enfática quanto aos aspectos étnicos de seus

irmãos. Aquela era uma associação formada por homens brancos e somente eram aceitos

irmãos dentro dessa condição. Este caráter restritivo perdurou até meados do século XX.

Em seus compromissos, este aspecto só deixou de aparecer em uma reformulação feita

1929. Nesta ocasião, a irmandade justificou o tardar nas reformulações por conta de

dificuldades enfrentadas pela instituição e reconheceu a necessidade das alterações no

compromisso:

De há muito constituía necessidade premente a reforma do

Compromisso que vem regendo esta Irmandade desde 1865, que, por

sua vez, reformara o primitivo, datado de 1783.

Neste longo período de 84 anos, dificuldades sem conta teriam

retardado certas providências imprescindíveis à boa marcha das altas

finalidades da nossa Irmandade, se não fossem a bôa compreensão,

harmonia e espírito de cooperação cristão que, Deus louvado, nunca

faltaram a sucessivas Mesas que vêm dirigindo seus destinos por mais

de meio século.

Daí a necessidade da modificação de várias disposições nele contidas,

eivadas e anacronismos decorrentes do próprio tempo.

31 Até o século XIX, a Santa Casa de Misericórdia, seguindo o compromisso da Santa Casa de Lisboa,

obedecia aos seguintes critérios para entrada de irmãos: 1 - ser puro de sangue a pelo menos duas gerações,

o que equivale dizer: não ter sangue de negro, mouro ou judeu. Tal exigência também recaía sobre a mulher

do candidato [esta regra foi abolida no século XIX]; 2 - ser livre de toda infâmia de fato e de direito; 3 - ter

idade conveniente: pelo menos 25 anos no caso de ser solteiro; 4 - não servir a casa por salário; 5 - ser

isento de trabalhar com suas próprias mãos: em caso de ser ‘oficial mecânico' ser dono de sua tenda; 6 - ser

de bom entendimento e saber: que saiba ler e escrever; 7 - ter renda suficiente para acudir ao serviço da

irmandade quando necessário e para não ser suspeito de aproveitar do dinheiro da instituição em benefício

próprio. (Apud MELO, 1997)

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Todavia, em respeito à tradição, ficaram conservados os dispositivos

que se não tornavam incompatíveis com as diretrizes impressas pelas

suas co-irmãs, vivamente empenhadas na conservação, prosperidade e

elevação do culto divino, baseadas em compromisso enquadrados nos

imperativos dos tempos modernos. (EDIÇÂO DE REFORMA..., 1929)

Os membros dessas instituições acompanhavam até certo ponto a heterogeneidade

social presente na própria freguesia, o valor do pagamento das joias, os bens acumulados

pela associação, assim como os donativos necessários durante a vida de um indivíduo

dentro da irmandade, além das próprias restrições nos seus compromissos, indicavam

muitas vezes a condição financeira daqueles irmãos.

Comparativamente, a Irmandade do Irmandade do SS. Sacramento e Santana era

a única das três irmandades que detinha uma igreja própria, a irmandade surgiu associada

à própria construção da matriz e a aglutinação do seu novo orago acompanhou a escolha

da padroeira da igreja. Assim, percebe-se que a escolha do orago da igreja tem associação

direta com o processo de formação da irmandade, que se chamava até 1744 de Santíssimo

Sacramento e anexou ao seu nome e ao seu culto a Senhora Santana, sendo formada

oficialmente a nova irmandade em 1762.

A Irmandade também fornecia aos seus irmãos enterramentos em sua igreja. Até

meados do século XIX ainda havia um pequeno cemitério ao lado da matriz32 e diversos

carneiros no cemitério Quinta dos Lázaros. A igreja tinha 7 altares, inclusive um altar no

cemitério e um altar mor. Dentre os inventários ou consistórios das irmandades, sem

dúvida a Irmandade de Santana era a que detinha maior quantidade de bens valiosos. Para

se ter uma ideia, em um consistório de 1927, havia diversos itens de prataria e ourivesaria,

uma quantidade significativa de pedrarias (incluindo joias de diamantes), móveis de

jacarandá, diversas relíquias de santos e objetos de marfim. Nesse mesmo ano, a igreja já

contava com instalação elétrica e uma estrutura com lâmpadas de gambiarra para

iluminação externa do largo durante os festejos do orago. Os inventários revelam que

esta era a irmandade mais rica da freguesia e também onde se concentravam os irmãos de

melhor condição social (CONSISTÓRIO..., 1916).

Isso não significava que estes irmãos, principalmente no início do século XIX,

não faziam parte de outras irmandades, afinal, como já dito, sujeitos buscando prestígio

social participavam de diferentes sociedades de auxilio mútuo. Com a proximidade do

32 Os carneiros da irmandade passaram ocupar o cemitério quinta dos lázaros.

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século XX, período apontado como o declínio dessas instituições, houve uma redução

considerável do número de irmãos dentro das irmandades. Assim a maior parte delas

apresentavam serias dificuldades financeiras para se manterem.

Tanto no âmbito da assistência social, quanto nas relações religiosas e de prestigio

social, outras instituições assumiram o papel das irmandades33. Por isso, a composição

social dessas associações torna visível aspectos peculiares para a compreensão da

manutenção da irmandade na periodização proposta. Ter membros de posição social

privilegiada atuando ativamente na irmandade revela muito da condição que aquela

instituição se encontrava.

Dessa forma, estes aspectos, assim como o processo de formação de cada

irmandade são elementos reveladores da situação em que estas se encontravam no recorte

temporal da pesquisa. Há de se pensar que talvez a própria composição da irmandade

facilitaria o processo de continuidade da mesma, afinal, das irmandades aqui pesquisadas,

a única que permanece atuante é justamente a Irmandade do SS. Sacramento e Santana.

A bibliografia apontou para as razões que levaram a uma perda de relevância

social das irmandades no período: como a proclamação da república, momento em que

essas instituições passaram a ser tratadas com certa indiferença pelo poder público, pois

começou-se a criar outras ações de ajuda a essa população; ou seja: com o fenômeno do

aumento da urbanização aliada à institucionalização do poder político nas esferas sociais,

as irmandades acabaram por perder grande parte das funções citadas anteriormente.

Porém, o período apontado como de “declínio destas instituições” revela uma rede de

complexidades inseridas nas relações entre irmandades e os diferentes poderes. É

necessário mais do que apontar consequências e causas; identificar e analisar onde

estavam inseridas as associações de leigos dentro de um projeto republicano que

provocou mudanças urbanas, políticas, religiosas e consequentemente sociais.

33 Assunto que será abordado com mais atenção no capitulo dois desse trabalho.

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CAPÍTULO 2

VIVER, CRER E FESTEJAR – AS MUDANÇAS OITOCENTISTAS E SUAS

RELAÇÕES COM AS DEVOÇÕES LEIGAS.

O final do século XIX foi marcado por grandes transformações políticas,

religiosas e culturais. O fim do padroado régio e o processo de secularização

potencializado no período indicaram mudanças na Igreja, nos seus fiéis e no caráter de

suas devoções. A implantação da República trouxe ao poder eclesiástico um novo olhar

sobre sua estrutura interna e do papel ocupado pelo clero e suas relações com o poder

temporal e com as devoções leigas. Aliados a isto, como sintetiza a historiadora Katia

Mattoso (MATTOSO, 1992, p.302), os oitocentos foram marcados por novas concepções

de fé reveladas pelo aparecimento e circulação de novas ideologias, novos pontos de fé e

novos credos.

1. Mudanças no contato com a fé, individualismo e suas representações

Laura de Mello e Souza, em seu clássico estudo sobre religião e religiosidade na

colônia, defende que dentre práticas de reminiscência da feitiçaria europeia com a

religiosidade afro-indígena e o catolicismo oficial, havia várias maneiras de ser católico

na sociedade colonial34. Este processo permanece no século XIX, afinal, existia uma

heterogeneidade no rebanho da Igreja expressa nas diferentes práticas e vivências

religiosas.

Aliado a isto, o desenvolvimento do individualismo, impulsionado pelo

romantismo típico do século XIX, exerceu influência no caráter devocional moderno

(SILVA, 2000). Houve uma sobreposição do homem individual ao coletivo, ou seja, o

homem passou a ser entendido e percebido para além de sua inserção como parte de uma

coletividade. Como consequência, o contato com o sagrado passou a incluir com mais

veemência o exercício meditativo e intimista. Apesar disso, Candido da Costa e Silva

(2000) aponta para uma paradoxalidade nesse processo, de forma em que define o ritmo

de devoção do século XIX como pendular, no qual “[...] insiste na interioridade de cada

34Laura de Mello e Souza diz que “a especificidade da religião vivida pela população colonial, eivada de

reminiscências folclóricas europeias e paulatinamente colorida pelas contribuições culturais de negros e

índios. ” SOUZA, 2014, p.16.

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um, o que acentua o caráter intimista. Por outro, subministra estímulos e apelos projetados

pelo cênico” (SILVA, 2000, p.97).

Este individualismo traz consequências diretas às associações de leigos que têm

em sua essência um caráter de coletividade. O aspecto paradoxal das práticas religiosas

observado por Candido da Costa e Silva está presente nestas associações. As festas em

homenagem aos seus oragos buscaram acoplar estes dois polos devocionais; nestas havia

a reflexão intimista através da homilia de padres como Turíbio Tertuliano Fiuza (FIUZA,

1883), que no século XIX fazia sermões sobre a oração íntima e a importância das atitudes

e reflexões individuais do seu fiel. Por outro lado, o caráter cênico das procissões

permaneceu. Um exemplo é pensar sobre a importância que tiveram os fogos de artifício

nestes eventos, como veremos nos tópicos subsequentes.

Esse movimento também é percebido nas representações iconográficas e teatrais

do sagrado. A imagética, pintura e a descrição das procissões realizadas pelas irmandades

promoviam a dramaticidade dentro da retórica litúrgica, permeando a sensibilidade do

fiel através de traços realísticos e da aproximação entre a personificação do Deus cristão

e seus atributos mais humanos. Isso é, na arte sacra, uma forma de esculpir que

privilegiava um detalhamento sutil da expressão do santo, que muitas vezes remetia à sua

hagiografia. É justamente neste século, por exemplo, em que houve um retorno à presença

dos olhos de vidro em estátuas de santos, o que tornava a escultura mais expressiva e

realista.

A maneira de esculpir as obras sacras, buscando contemplar formas e expressões

mais próximas de aspectos humanos penetra as artes religiosas a partir do final do século

XVIII (TOMAN, 2010). É possível tomar este realismo numa perspectiva de duração com

artistas como José Joaquim da Rocha, famoso por obras como o teto da Igreja da

Conceição da Praia, e José Teófilo de Jesus, que adotou a pintura em perspectiva como

forma de aproximação entre o fiel e as obras expostas. Como dito, nas esculturas não foi

diferente. O traço dos escultores privilegiava os sentimentos dentro das imagens dos

santos, que anunciavam dor, angustia e sofrimento em detalhes e gestos expressivos.

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Figura 1: Estátua do Cristo Crucificado, madeira policromada, século XIX

Fonte: Acervo do Museu da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, Século XIX.

Os objetos de arte sugerem essa nova percepção na forma de viver a fé. No Cristo

acima, em madeira policromada do século XIX, observamos o detalhamento na expressão

na escultura: cada detalhe remete à dor e o sofrimento do crucificado, trazendo àquele

que o observa similaridade nos sentimentos empregados. Este movimento catártico

indicava que o contato com o individual atingia os níveis mais íntimos da devoção. As

diferentes dinâmicas dentro das instâncias da fé refletiam as progressivas mudanças na

concepção de crer e de viver a fé por parte do crente, a própria relação com a oração

reflete este movimento.

A oração mental, o meditar, era o prelúdio da oração vocal, o rezar. Sem

esforço maior, fica patente que o homem pio revelava-se na dimensão

da individualidade, o que enfraquecia o caráter comunitário das

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celebrações litúrgicas e a percepção da Igreja como assembleia dos fiés.

(SILVA, 2000, p.89)

2. O ultramontanismo e as reformas religiosas do século XIX

O quadro devocional no Brasil reflete permanências e transformações típicas dos

oitocentos. A Igreja em suas diferentes instâncias responde a essas mudanças através do

ultramontanismo. A expressão refere-se a um movimento firmado durante o século XIX

que adotou um novo olhar sobre o papel da Igreja, propondo uma reserva de esferas de

atuação com a autoridade civil; e, do ponto de vista dos bispos, a busca de uma relação

mais próxima com Roma35.

No Brasil do século XIX, o fluxo reformador da Igreja tinha o ultramontanismo

como cerne. Dessa forma, a segunda metade do século foi marcada por bispos que

adotaram este movimento como projeto teológico, idealizando uma Igreja voltada para

si, hierarquizada em suas diferentes instâncias e que repensou o papel de seus membros

através de uma moralização e instrução destes. Dessa forma, “o padre” neste projeto teria

um novo papel. Em lugar de participação política, este deveria voltar-se para a vida

religiosa, isso é, para o seu rebanho, sobretudo no sentido de atender a suas necessidades

espirituais. Vale ressaltar que, em paralelo a isso, movimentos liberais, quer em Portugal

quer no Brasil, questionaram também o papel do sacerdote, especialmente voltando-se

contra aspectos basilares de sua figura, a exemplo do celibato.

Também é importante salientar que o doutrinário ultramontano

procurou colocar em prática os principais ditames do Concílio de

Trento, ocorrido entre 1545 e 1563, especialmente os relacionados à

moral do sacerdote e a seu ofício religioso. (MARTINS, 2011, p.4)

O concilio de Trento era claro ao salientar a necessidade da criação de uma

educação para aqueles que desejassem ingressar ao clero. As medidas só foram adotadas

a partir do século XVIII no Brasil. A professora Karla Martins destaca, dentre as razões

para isto, o próprio regime do padroado:

Entendemos que vários motivos podem ser elencados para demonstrar

a pouca observação das decisões do Concílio de Trento em terras

brasileiras, entre eles destacamos: o distanciamento do país com relação

a Roma, a grande extensão territorial conjugada à existência de um

número pequeno de clérigos, além das limitações impostas pelo regime

do padroado vigente no Brasil. Sobre essa questão, autores como

Eduardo Hoornaert e Riolando Azzi defendem a ideia de que as

35 Por isso também o nome de Romanização.

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decisões de Trento não tiveram impacto no Brasil em virtude da

presença do regime de padroado orientador das relações Igreja e Estado

desde o período colonial. (MARTINS, 2011, p.12)

As propostas do concílio tridentino foram sistematizadas, no Brasil, a partir das

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia elaboradas em 1707 no episcopado de

D. Sebastião Monteiro de Vide. Nelas, aspectos pastorais aparecem mais salientados,

apresentados como referências seguras a serem seguida pelo sacerdote. As constituições

primeiras foi o único regimento eclesiástico em vigor no território por mais de 200 anos,

sendo substituído em 1917 pelo Código de Direito Canônico.

A constituição também fazia referência à criação de seminários e sinalizava a

necessidade de exigências na formação dos clérigos. No Brasil, de fato os bispos não

demonstraram interesses até o século XIX na manutenção ou na instauração de

seminários36, indicando a pouca disponibilidade de recursos para a sua criação. Dom

Romualdo Antônio de Seixas, porém, agiu no sentido contrário, atuando diretamente a

favor da criação de seminários e da moralização do clero.

D. Romualdo ainda advertiu na mesma pastoral que nenhum candidato

ao sacerdócio seria admitido ao presbitério sem antes frequentar as

aulas do Seminário. E mais, nessa admissão, “daremos sempre

preferência e usaremos de maior contemplação com os que residirem

dentro, sujeitos à disciplina e regime do Seminário”. Ou seja, o prelado

dava prioridade aos seminaristas internos, por seu contato reduzido com

o mundo, o que, por tabela, reduzia também a possibilidade da

aquisição dos vícios tão prejudiciais à mocidade pretendente à obtenção

das ordens. (SANTOS, 2014, p.149)

Dom Romualdo foi considerado um dos precursores das reformas religiosas do

século XIX. Durante seu arcebispado, entre os anos de 1828 a 1860, buscou aplicar

reformas à Igreja e a subordinar parcialmente as exigências de Roma. Seu projeto

reformador no plano diocesano promoveu o estreitamento entre o Arcebispado e o

sacerdote, reiterando uma hierarquização do clero.

Apesar da fama de ultramontano, adjetivo que o mesmo evitava, Dom Romualdo

tinha uma estrita relação com o poder temporal. Inclusive chegou a ser deputado da

Assembleia Provincial da Bahia entre os anos de 1835 a 1839. A sua atuação enquanto

deputado foi diretamente voltada a propostas de maiores investimentos e recursos para a

36 Ver SANTOS, 2014.

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Igreja, evocando o regime de padroado, quando necessário. Afinal, a ação do arcebispo

“caminhava entre o papa e o imperador” (SILVA, 2000, p.118), sendo até o fim do

padroado o poder secular responsável por encargos importantes na manutenção da Igreja,

como o próprio financiamento de suas obras. Dessa maneira, Dom Romualdo

compreendeu e atuou dentro dessas dinâmicas, reformando o clero dentro do padroado

quando necessário, dialogando com o poder temporal e administrando o poder

eclesiástico.

Embora a proibição de membros do clero em candidatar-se a cargos públicos só

surgiu de forma oficial na constituição de 189137, Dom Romualdo foi o último arcebispo

da Bahia a ter uma atuação direta em empregos políticos. Isso, assim como a criação

incisiva de seminários durante o século XIX, demonstrava um movimento de sacralização

do clero. Assim, a Igreja na Bahia voltou-se cada vez mais para questões de ordem

religiosa.

Dom Romualdo também retomou pontos importantes das Constituições Primeiras

e consequentemente do Concilio de Trento. A legislação eclesiástica tratava da própria

autoridade do arcebispo, conferindo-lhe certa autonomia no controle local da Igreja e do

seu rebanho. Candido da Costa e Silva demonstra como características presentes nessa

relação dois lineares do oficio do arcebispo, as chamadas “pastoralis correctio” e a

“episcopalis audientia”. Assim define seu papel: “era o censurar, repreender, admoestar,

objetivando coibir desvios na doutrina da Fé ou distorções e abusos na disciplina e

costumes de clérigos e leigos” (SILVA, 2000, p.122).

Dom Romualdo, assim como outros bispos, acompanhou uma tendência da Igreja

no Brasil da primeira metade do século XIX, a qual buscou reformar-se através de um

movimento de reestruturação interna, como dito, promovendo uma hierarquização

contínua, uma moralização do clero e uma aproximação com a cúria central. A expansão

deste processo de reforma intensificou-se a partir de 1891 com o fim do padroado régio.

Com a separação oficial entre Igreja e Estado, o arcebispado criou estratégias de

controle e de expansão das reformas propostas, dentre elas: o aumento das dioceses,

37 Art 70 - São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei. § 1º - Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais ou para as dos Estados: 1º) os mendigos; 2º)

os analfabetos; 3º) as praças de pré, excetuados os alunos das escolas militares de ensino superior; 4º) os

religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades de qualquer denominação,

sujeitas a voto de obediência, regra ou estatuto que importe a renúncia da liberdade Individual. § 2º - São inelegíveis os cidadãos não alistáveis.

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buscando ampliar a presença dos alicerces episcopais em diferentes áreas e promover as

relações entre a Igreja e setores políticos e econômicos; as publicações contínuas de cartas

pastorais e a implantação de visitas pastorais. Nestas os bispos:

Conferiam o estado das igrejas e dos paramentos necessários ao culto,

conferiam os livros de Tombo das paróquias e outras documentações

(estatutos de Irmandades e balanço das fábricas, por exemplo.),

regularizavam uniões ilícitas pelo sacramento do matrimônio,

realizavam a crisma e a primeira comunhão de jovens e adultos,

abençoavam doentes e, nos contatos com as famílias e autoridades

locais, angariavam fundos para as obras diocesanas. (CAES, 2002,

p.113/114)

Através destas medidas foi viável a expansão dos ideais de reforma encarnados

pelos arcebispados. Dessa maneira, a Igreja combatia práticas que se chocassem com a

doutrina cristã. Além disso, era possível traçar redes de relações e de vigilância

imprescindíveis na manutenção do seu caráter reformador.

Àqueles que sucederam a Dom Romualdo, restou combaterem a secularização da

cultura e da espiritualidade, do mesmo modo em que promoveram uma hierarquização

mais consistente de sua organização interna. Assim foram os arcebispados de Dom

Manoel Joaquim da Silveira (1861-1874), Dom Joaquim Gonçalves de Azevedo (1876-

1879) e de Dom Luís Antônio dos Santos (1879-1890), que apesar de terem tido um

período de atuação mais curto do que o de Dom Romualdo, buscaram seguir com

vivacidade seu projeto reformador. Edilece Souza Couto (2016) aponta que o

desempenho destes bispos estava associado a um intuito de “purificação” dos cultos

católicos, intencionando um afastamento da influência de outras crenças, principalmente

durante o período de Dom Manoel Joaquim da Silveira. A atuação dos outros dois bispos

retomou um plano de “fortalecimento da ortodoxia católica” através de uma supervisão

mais consistente às associações de leigos (COUTO, 2016, p.89).

Dom Jerônimo Tomé da Silva (1893 – 1924), o segundo arcebispo do período

republicano, atuou sobre essa configuração das redes de relações necessárias à Igreja após

o fim do padroado régio, criando novas dioceses e estabelecendo “boas relações com a

elite católica baiana, não só da capital, mas também do interior, buscando a colaboração

das famílias influentes nas esperas dos poderes locais e regionais” (COUTO, 2016, p.90).

Em toda a atuação do arcebispado da Bahia a partir dos oitocentos, é possível

notar que a reestruturação da Igreja buscou seguir com mais vivacidade as diretrizes de

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Roma e as novas concepções na espiritualidade, e indicaram mudanças na atuação dos

bispos. Riolando Azzi (1992) demonstrou que o ultramontanismo estava imbricado num

aspecto de romanização, no qual pretendeu-se uma aproximação com Roma e com a

autoridade papal através de reformas religiosas. Estes aspectos buscaram amplificar a

hierarquia interna da igreja até alcançar os fiéis “reformulando suas crenças (por meio do

ensino da doutrina) e os ritos (tantos nas celebrações dentro das igrejas, como nas

procissões e outros atos públicos) (SANTOS, 2014, p.10). Tendo como referência a obra

de Azzi, Israel dos Santos ratificou que a partir da década de 70 dos oitocentos, o

ultramontanismo se tornou uma corrente ideológica hegemônica da Igreja e que um dos

seus principais aspectos seria a romanização caracterizada em essência “na tentativa de

centralização da Igreja no que diz respeito ao pontífice” (SANTOS, 2014, p.9).

Porém em um artigo publicado pela revista temporalidades, Ítalo Santirocchi

critica a utilização do termo romanização, pois este transpareceria a ideia de que o

movimento de reformas religiosas nos oitocentos foi através de uma imposição unilateral

da Santa Sé. Do mesmo modo, a utilização do termo constituiria uma “simplificação

acadêmica”, negando o complexo processo que este fluxo reformador teve. Santirocchi

sugere, em lugar ao termo romanização, a utilização do conceito de reformas,

demonstrando que a igreja as aplicou no curso de suas possibilidades, propondo a

interpretação de que houve “reformas sutis” (SANTIROCCHI, 2010, p.31) durante estes

períodos.

Apesar de compreender sua crítica em relação a uma restrição analítica dada pela

utilização do termo romanização, é difícil analisar as reformas religiosas do século XIX

e XX como uma “reforma sutil”. Santirocchi considerou documentos enviados entre os

grandes bispos reformadores e a Santa Sé para fazer sua proposição. Por outro lado,

deixou de analisar se este conceito de “sutileza” funcionaria a nível local. Será que estas

reformas foram sutis para quem não participava da alta hierarquia eclesiástica? Afinal,

como analisarei adiante, as mudanças nas relações entre Igreja e as associações de leigos

afetaram estruturalmente as irmandades religiosas, impactando diretamente na

organização de seus festejos e em sua estrutura interna, tanto que o arcebispado voltou

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seu olhar para os leigos e buscou combater o “espirito de independência”38 de suas

associações.

3. Irmandades e as reformas nos oitocentos

As relações entre o poder eclesiástico e as irmandades se caracterizaram por uma

contínua negociação. No século XIX, o prestígio devocional destas instituições fazia com

que houvesse até mesmo a presença de membros da Igreja associados às irmandades.

Uma delas, inclusive, tinha um caráter clerical: São Pedro dos Clérigos, localizada na

Freguesia da Sé; o próprio Dom Romualdo foi membro da Santa Casa de Misericórdia,

sendo provedor dessa instituição no ano de 1846. As irmandades funcionavam como um

elo de aproximação entre uma liturgia em latim que era de difícil acesso e as vivências de

fé próprias da população. Era no seio das associações de leigos que ocorriam dinâmicas

devocionais necessárias ao poder eclesiástico.

Com o processo de reforma da Igreja, o clero buscou exercer controle sobre uma

autonomia observada nessas associações, ao mesmo tempo em que compreendeu a

importância do seu caráter devocional. Os relatos, como veremos abaixo, indicam que já

no século XIX havia uma relação conflituosa entre a arquidiocese e as irmandades

religiosas.

As confrarias, desde o Brasil Colonial, atuaram de forma paralela ao controle da

Igreja, elegendo mesa diretora própria, construindo e administrando templos de maneira

independente e atuando de forma intensa nas devoções religiosas, através da promoção

das procissões e festas em homenagem aos seus oragos.

O aspecto de secularização presente nessas instituições fugia à autoridade da

Igreja. Julita Scarano (1976) relata que em muitos casos membros das irmandades e do

próprio corpo eclesiástico viam na Coroa a possibilidade de resolução de problemas que

viessem a surgir. No caso do recorte temporal e espacial desta pesquisa, dois casos, que

serão analisados a posteriori nesta dissertação, exemplificam esta relação: as obras

públicas realizadas em 1872 pela Irmandade do Bom Jesus da Cruz, no qual não houve

nenhuma interferência de instâncias eclesiásticas; e a disputa entre irmandades pela

38 Aproprio-me aqui do termo utilizado por Julita Scarano no seu livro “Devoção e Escravidão - A

Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII”

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administração da Igreja de Nossa Senhora da Palma em 1878, em que coube ao governo

provincial a resolução do conflito. Isso sinalizava o quão podiam ser distantes as relações

entre clero e leigos dos ideais propostos por Trento. Com as reformas do século XIX, a

Igreja pretendia exercer controle sobre a fé de maneira incisiva e as irmandades eram um

dos alvos desse projeto reformador.

Traçando um paralelo comparativo entre a documentação do período, é possível

perceber, que a partir de meados do século XIX, a Igreja exerceu uma atuação direta

nessas instituições. Os editais de festas, a obtenção das apólices de juros e as eleições

para a mesa diretora passaram a necessitar da aprovação da arquidiocese. A Igreja

orientava as irmandades a reformarem seus compromissos a fim de adequá-los às

necessidades de cada época. A partir da segunda metade dos oitocentos, a orientação

passou a ser uma obrigação, na qual a arquidiocese exigia não só as reformas, como

também prestação de contas de todos os bens pertencentes às irmandades.

O clero em foco era primeiramente partícipe de uma nova orientação

espiritual, compondo-se com os leigos nas associações controladas por

estes. Além do que, a auto compreensão dos seus ministérios estava sob

essa luz. Por fim, tornou-se o protagonista da inversão que se operou

por conta da hegemonia representativa na Igreja, resultando em controle

pleno, de que indicadores os conflitos de Irmandade e, mais tarde, o

esforço coativo da hierarquia, já no período republicano, em reformar

seus Compromissos e Estatutos. (SILVA, 2000, p.88)

A nova forma de atuar sobre os leigos já estava presente num plano de ação

pensado pelos bispos de todo o Brasil no final do século XIX (CAES, 2002). “A primeira

reunião do episcopado brasileiro”, realizada em 1891 em São Paulo, discutiu os rumos da

igreja e seu rebanho com o fim do Império e do padroado-régio. Dentre os tópicos, os

bispos salientaram a necessidade de ações sobre os leigos, suas associações e, com isso,

a retomada da hegemonia da Igreja sobre as diferentes formas de devoção.

As irmandades do Rio de Janeiro, dentre os anos de 1891 a 1894, encontraram na

atuação do bispo D. José Pereira da Silva Barros a personificação das novas formas de

controle sobre as irmandades. Segundo André Luiz Caes (2002), o bispo travou uma

verdadeira “queda de braço”39 com as confrarias cariocas. O relato deste, em sua carta de

despedida, explicita o pensamento da cúria sobre parte das associações de leigos:

39 Termo utilizado pelo autor, ver CAES, 2002, p.128.

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Esta necessidade de trazer as corporações religiosas à regra canônica

não affecta somente a esta diocese, mas a todas as outras do Brasil, pois

por todas ellas formigam associações com o nome de religiosas, cada

qual mais incompreensivelmente capacitada de sua independência, de

sua soberania; cada qual mais entumecida da sua dominação nos

templos sagrados, onde pretendem dar regulamentos e reputam por

inquilinos seus, senão por impertinentes hospedes, os sacerdotes e os

próprios parochos! (CARTA DE DESPEDIDA..., 1894)

Na Bahia, a Igreja também seguiu a mesma tendência que outros estados, sendo

que as cobranças feitas pelo arcebispado se intensificaram significativamente após a

aprovação do código de direito canônico em 1917. Na legislação, o livro II – referente às

pessoas, parte terceira - dos leigos, fornecia base normativa específica sobre as relações

entre o clero e as irmandades, salientando que as associações de leigos deveriam estar

subordinadas ao arcebispado. Era o aval legislativo eclesiástico para o controle exercido

sobre as irmandades e que era proclamado pelo arcebispado, quando necessário.

As irmandades resistiram às novas condições impostas e as negociaram com as

formas de controle pensadas pela Cúria, assim, cresceram as tentativas durante o final do

século XIX de participar ao arcebispado o processo de arrecadação de fundos para as

festas, os convites a convocações para as homenagens ao orago e as reformas nas igrejas.

Por outro lado, quando o controle se referia ao funcionamento estrutural destas

associações, os conflitos surgiam.

Depois de enviar diversas cartas solicitando a prestação de contas à Irmandade do

Bom Jesus dos Passos, localizada na antiga Freguesia da Sé, sem obter sucesso, o então

Secretário do Arcebispado emitiu uma carta à irmandade solicitando a prestação de

contas:

Venho, por meio desta, solicitar os seus bons ofícios junto à tesouraria

da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos e Vera Cruz, para que

organize um relatório sobre os bens da Irmandade e a devida prestação

de contas à Cúria, como manda o Direito Canônico.

Bem como, teremos de tratar em breve da nomeação de uma comissão

de membros da Irmandade, para a reforma dos Estatutos da mesma.

Seria conveniente e bem interessante um entendimento nosso nesse

sentido. (CARTA A DR RODOLFO TOURINHO..., 1936)

As confrarias não reagiam bem às inúmeras cartas enviadas pela cúria com

pedidos de modificações e alterações em seus compromissos, prestação de contas de seus

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bens e intervenção na periodicidade das eleições de suas mesas diretora. A arquidiocese

buscava demarcar os espaços sacros, assumindo controle sobre os templos, impondo a

presença dos párocos e vigários nas igrejas. Os conflitos entre irmandades e párocos se

intensificaram ainda mais no início do século XX.

Em 09 de setembro de 1931, após notificações sobre a falta de prestação de contas

de seus bens, a Irmandade de Santa Cecília, localizada na freguesia da Sé, responde ao

Arcebispado justificando desconhecimento das novas normas eclesiásticas. O escrivão da

irmandade aproveitou a oportunidade para explicitar a difícil situação em que vivia a

irmandade.

Esta instituição religiosa e beneficente, que atravessou uma phase de

grandes dificuldades financeiras, não possuindo, siquer, um vintém

para ocorrer às suas despesas, esta prestamente a desaparecer.

Graças, porém, à bôa vontade, perseverança e sincero amor e devoção

a Matriarcha e Gloriosa Virgem Santa Cecília, o venerado Professor

Anacleto Vidal da Cunha, no intuito de não deixar sumir-se esta

benemérita Irmandade de longiquas tradições, reuniu um grupo de

velhos irmãos e, depois de eleito juiz, a contento de todos os seus pares,

conseguiu abnegadamente e devida constância, reerguer a instituição,

continuando, assim, com o mesmo brilho de outrora, o culto divido da

S.S Virgem Padroeira da Música. (DOCUMENTO IRMANDADE DE

SANTA CECÍLIA..., 1931)

Na freguesia recortada por esta pesquisa, um caso particular chama atenção. Em

uma carta de 12 de julho de 1928, destinada à arquidiocese, a mesa administrativa da

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santana pedia a substituição do pároco da matriz,

o vigário Francisco Ayres de Almeida Freitas.

O documento indica que havia uma relação conflituosa entre a mesa

administrativa e o pároco desde a chegada do último, quando este decidiu abrir uma escola

infantil encima da sacristia do templo e as crianças destruíram importantes obras do

cemitério, que precisaram de reparo, o que gerou custos à irmandade. A mesa descreveu

que, por diversas vezes, as crianças da escola jogavam futebol em meio aos corredores da

igreja, atitude pouco respeitosa com o espaço sagrado. Os conflitos se acirraram quando,

sem a concessão da mesa administrativa, mas com autorização do vigário, uma outra

irmandade tentou ocupar a igreja:

A 10 de junho ultimo dia marcado para sessão, esperavam alguns

mesários a formação de numero legal, quando entrava na Sachristia um

carregador com uma mesa acompanhada de um cavalheiro. Inquerido,

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o zelador disse que a mesa era para sessão de uma outra Irmandade ou

Confraria sob a presidência desse cavalheiro. Após a missa, estavam os

mesários da Irmandade Supp. no Consistorio, quando ali penetrou o

referido cavalheiro, Sr. Fabricio de Barros, nome de que depois

souberam para comunicar que a confraria que ele representava iria

funcionar na Sachristia e que nada comunicou anteriormente por

ignorar a existência da Irmandade e da respectiva Mesa, mas sciente

disso pedia aprovação a essa deliberação, já tendo tido o consentimento

do vigário. (CARTA DA IRMANDADE do Santíssimo Sacramento e

Santana..., 1928)

A mesa administrativa da Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santana optou

que decidiria sobre a permissão de ocupação do espaço, desde que a Irmandade

pleiteante40 oficializasse o pedido para sua instalação na igreja. Após não obter a devida

oficialização, a Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santana encontrou a mesa da

confraria pleiteante em reunião na qual não foi convocada, questionou o pároco sobre a

situação e relatou as seguintes ocorrências:

Os mesários foram recebidos pelo Revmo. Sr. Vigario aos gritos que

fora por sua ordem que o Sr Fabricio não officou e que a Supp nada

tinha que ver com a reunião e ali nada podia determinar, acrescentando

que havia muito tempo, esperava oportunidade para provar que a função

única da Supp. era guardar prata velha e propagar calunias e de tal modo

irritou-se a ponto de chamar os mesários bandidos e deshonestos,

procurando logo depois entender-se pelo telefone para o Arcebispado

envertando os factos que se passava no momento, com quem logrou a

falar. (CARTA DA IRMANDADE do Santíssimo Sacramento e

Santana..., 1928)

A Irmandade prestou queixa ao provisor do Arcebispado e o pároco buscou junto

aos paroquianos uma manifestação, segundo a mesa administrativa, “solicitada de porta

em porta”, e a convocação de uma reunião na qual foram dirigidos “discursos violentos

contra a Mesa, deversos oradores dentre os encarregados da referida manifestação, os

quaes se excederam no ataque a alguns mesários” (CARTA DA IRMANDADE do

Santíssimo Sacramento e Santana..., 1928).

O capítulo III (COMPROMISSO DA IRMANDADE S.S SANTANA..., 1916) do

compromisso da Irmandade era especifico ao salientar que todas as sessões e reuniões

deliberativas convocadas pela confraria deveriam incluir a presença do pároco da igreja

que, inclusive, poderia convocar sessões. Entretanto, a mesa administrativa comunicava,

40 Não encontrei na documentação pesquisada referência ao nome da Irmandade que pleiteava ocupar a Igreja de Santana, por isso, a utilização do termo “irmandade pleiteante”.

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no mesmo documento citado acima, que, a partir daquele dado momento, o pároco da

igreja estaria proibido de participar de quaisquer reuniões da Irmandade.

Em 14 de julho de 1928, os membros da Congregação Mariana41 da Matriz de

Santana emitiram uma carta ao arcebispado narrando os episódios presenciados na igreja.

Ao se colocarem como testemunhas das ocorrências, os Marianos afirmaram a surpresa

ao saberem da queixa feita pela irmandade e emitiram o documento em defesa do pároco.

A outros que não a nós, Marianos, testemunhas do incidente verificado

em 17 de Junho, entre os signatários da queixa e o Revmo. Com.

Francisco Ayres, o conhecer o teor da mesma queixa talvez não fosse

uma felicidade e sim um dessabor, como são todas as leituras de

inverdades escriptas contra a dignidade de alguém, mas, a nós, é sempre

uma felicidade, por isso que, são felizes aquelles que, conhecedores da

verdade de um facto, podem desmascarar a inverdade com que o tente

rebuçar, para molda-lo a interesses poucos assignalaveis. (CARTA

ENVIADA PELA CONGREGAÇÃO MARIANA..., 1928)

A associação afirmou que o vigário tinha prestigio na comunidade, ao contrário

da irmandade, que há muito havia praticado atos hostis ao pároco. Os membros ainda

afirmaram que, graças ao esforço do vigário, o número de fiéis devotos a Santana havia

aumentado significativamente. A congregação ainda contestou a teoria de que as

assinaturas da manifestação enviadas pelo pároco haviam sido solicitadas pelo mesmo,

sendo sua produção devida à “consciência dos paroquianos”.

No dia 17 de junho do mesmo ano, os conflitos entre o vigário e a irmandade

tomaram projeções potencializadas quando os membros da confraria e o pároco brigaram

com ataques verbais e ameaças físicas.

No domingo 17 de Junho, ultimo, estávamos nós, os Marianos, às 10

horas mais ou menos, ao lado de fora da Egreja, aguardando que o

Revmo. C. Francisco Ayres ultimasse as cerimonias religiosas do dia,

para dirigir a segunda reunião mensal da Congregação de que fazemos

parte, quando, um vozerio estranho nos dispertou a atenção para algo

de anormal que se passava dentro da Egreja, em um dos seus

compartimentos lateraes. Curiosos, confessamos, uns entre os outros

procuramos saber “o que era aquillo”, e logo sabemos se tratava de uma

reunião da Irmandade. Deante disso, conversamo-nos indiferentes até

que, o aumento do vozerio nos aguçou a curiosidade e penetramos na

Sachristia da Egreja, onde falando em alta vóz, dizia o C. Ayres: “Aqui

41 As Congregações Marianas no Brasil estavam vinculadas até o século XVIII aos colégios jesuítas. Com a expulsão destes em 1759, a congregação praticamente desapareceu do território. No site oficial da congregação: http://cncmb.org.br, afirma-se que a congregação foi refundada em 1870 e, a partir do final do século XIX, houve uma expansão da congregação associada ao crescimento das paróquias e dioceses pelo país.

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dentro, só tenho que pedir licença para o funcionamento ou creação de

qualquer Associação religiosa ao Exmo E revmo. Sr Arcebispo.”

Retrucando-lhe, e já um pouco exaltado, o Sr Edgard Barros, dizia-lhe:

“Está enganado... Tem que pedir também, à Irmandade, quando nada

por uma questão de modus vivendi... Continuando o dialogo, apezar de

intromissão de outros mesários, em apoio de tudo o que dizia o sr.

Edgard Barros, o Revmo.C. Ayres repetia o que havia dito,

acrescentando. “Tomem nota do que estou dizendo, alto e em bom ton,

para não inverterem as minhas palavras: Para o funcionamento ou

creação de qualquer associação não careço da licença da Irmandade,

tanto mais quanto, a Irmandade de Sant’Anna em nada auxilia o culto,

senão fornecendo-lhe a luz elétrica, e assim mesmo, Deus sabe como.

A irmandade aqui nada faz, nem ao menos comparece às festa da

Egreja. Tudo aqui, quem dá é o vigário: agua, velas, ornamentos e

enumerou todas as suas contribuições.

Replicando, diz o sr. Edgard Barros: “Isto é obrigação do vigário”,

passando depois a alegar a concessão, por mero favor da Sachristia da

Egreja, para utilização do vigário, e para valorizar a liberalidade,

concluiu: “A Egreja é minha... ao que como estas palavras causassem

certa estranhesa entre os próprios Mesários presentes, emendou: “A

Egreja é da Irmandade e a Irmandade somos nós e se o Senhor tem

prestigio, nos suspenda”. (CARTA ENVIADA PELA

CONGREGAÇÃO MARIANA..., 1928)

O tumulto chegou às vias extremas no momento em que Edgard Barros, um dos

membros da mesa administrativa, ao ouvir insultos do padre que, segundo a mesa, referiu-

se aos irmãos como desonestos e bandidos, disse: “Aqui está o homem que se inculca

ministro de Deus”. Um outro mesário, não identificado na documentação, foi contido

pelos Marianos ao encontrar-se na iminência de agredir o padre. Segundo a congregação

o irmão achava-se com “o indicador erguido” e gritava: “Olhe lá... Deixo de lhe tratar

como padre para lhe tratar como homem” (CARTA ENVIADA PELA

CONGREGAÇÃO MARIANA..., 1928).

A documentação não permitiu obter maiores informações sobre a resolução do

ocorrido, mas demonstrou que o arcebispado não atendeu ao pedido de afastamento do

pároco e ampliou o seu poder de atuação na matriz. Um documento emitido pela

Secretaria Eclesiástica de Salvador em 5 de agosto de 1952, 20 anos após o conflito

relatado acima, evidenciava que o Cônego Francisco Ayres de Almeida Freitas

continuava como pároco da matriz. Era a ele a quem cabia solicitar ao arcebispado as

alterações nos estatutos da irmandade e, para obter aprovação das eleições para novos

membros da mesa diretora, era necessário que a sessão fosse presidida pelo pároco.

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O artº 22 deve ser formulado da seguinte maneira: Para a validade da

eleição é necessário que ela seja presidida pelo Revmº Pároco ou um

presbítero local, representando a autoridade diocesana, junto às

associações e irmandades de sua freguesia. Feita a eleição será

encaminhada ao Exm. Rvmº Arcebispo Primaz para que faça seu

julgamento e aprovação, constando o requerimento de ter sido efetuada

a eleição com a presença do Revmº Pároco ou representante.

(NOTIFICAÇÃO..., 1952)

Os conflitos comprovam as relações difíceis entre as irmandades e os párocos.

Estes adquiriram mais independência de ação dentro das igrejas a partir do fim do século

XIX. Com as reformas oitocentistas, uma das ações dos bispos ultramontanos foi o

aumento das dioceses subordinadas a estes e a criação de paróquias.

Como dito, a Igreja compreendia a necessidade das irmandades como elo de

ligação entre a devoção e a liturgia oficial. Ao pensar mudanças e reformas no clero, a

criação das paróquias e das instâncias subordinadas a estas, suprimia em parte as ligações

com as devoções, ouso então dizer que parcialmente as paroquias assumiram o caráter

devocional subordinado às irmandades.

A própria presença das congregações Marianas e de outras formas de devoção que

tinham sua direção, criação e manutenção sob a tutela do pároco, respondiam às demandas

da Igreja reformada. Sobre o controle do arcebispado, a Igreja impedia que novas reuniões

de leigos desenvolvessem uma independência indesejada e combatiam doutrinas que

viessem de encontro a Roma.

4. As loterias e as ações de caridade: poder temporal e as irmandades religiosas.

As transformações oitocentistas não se restringiram às reformas religiosas a

segunda metade do século foi marcada por transformações estruturais nos campos sociais,

econômicos e principalmente políticos. O crescimento das cidades, o fim progressivo da

escravidão, a mudança dos eixos econômicos, assim como o início do desenvolvimento

industrial no Brasil, marcaram este período. A República e sua implantação, a partir de

1889, carregou consigo uma nova forma de entender e fazer vigorar a política. A própria

constituição de 1891 apontava no sentido de uma restruturação do poder político,

atribuindo maior independência aos estados e uma divisão clara dos poderes e sua

judicialização.

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O papel do estado e sua inserção social também sofreu alterações. A república e a

reestruturação urbana típica do período refletiu uma nova forma de perceber, idealizar a

cidade e o ritmo de vida de seus moradores. A intenção era de afastamento do passado

colonial e de aproximar-se em diferentes aspectos da Europa. Mas de que modo estas

novas instâncias inseridas nos ideais de progresso e civilização ao espelho europeu

afetaram as irmandades religiosas?

Desde o período imperial, o espírito de liberdade presente nessas instituições

chamava a atenção não somente do poder religioso, como do poder temporal. Berço de

relevantes revoltas que comediram a região, a exemplo da Cemiterada (REIS, 2012), as

irmandades representavam um território perigoso aos olhos do poder público. Por outro

lado, este compreendia a importância que estas instituições tinham para a manutenção de

uma certa assistência social necessária. A bibliografia aponta que a, partir do final do

século XIX, parte dessas irmandades perderam sua função social com a implantação de

uma política assistencialista diretamente relacionado ao estado42.

Efetivamente, muitas irmandades permaneceram atuantes, a Santa Casa de

Misericórdia, por exemplo, manteve sua aliança com a administração política e ainda

conservar-se como uma instituição poderosa até os dias atuais43. Outras instituições,

atingidas mais rigorosamente, apelaram para outras formas de manutenção, como as

fusões.

Para evitar o desaparecimento, alguns grupos optaram pela fusão. A

Igreja da Conceição da Praia, por exemplo, abrigava duas irmandades:

Nossa Senhora da Conceição e Santíssimo Sacramento. Em 1868, os

irmãos do Sacramento, por meio de ofício, propuseram a junção. Depois

de discutido o assunto, os membros da Irmandade da Conceição

aceitaram a proposta, com a condição de o novo nome ser Irmandade

de Nossa Senhora da Conceição e SS. Sacramento da Conceição da

Praia. (COUTO, 2010, p.68)

A ideia de que o poder temporal, a partir do século XIX, procurou outras

instituições que substituíssem o caráter das irmandades não é de todo verdadeira. O poder

público buscou, assim como o Arcebispado, exercer controle sobre estas associações,

42 VER COUTO, 2010 E MATOSO, 1992. 43 Hoje ainda pertence à instituição: o Hospital Santa Izabel, um dos maiores hospitais do norte-nordestes, atendendo 2 mil pacientes; o cemitério Campo Santo, sendo 50% dos enterramentos feitos na cidade realizados neste cemitério; uma maternidade referência e uma série de obras sociais em bairros periféricos na cidade.

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tanto que as irmandades necessitavam prestar contas de seu funcionamento interno

também ao poder temporal desde o início do século. Assim dizia a lei provincial nº 93

aprovada em 25 de fevereiro de 1839:

Art 1º O Governo da Provincia fica authorisado a confirmar os

Compromissos das Irmandades, e quaisquer alterações, ou reformas que

venha a ter, conformando-se com as leis em vigor.

Art 2º: Esta confirmação terá lugar depois da aprovação da Autoridade

Ecclesiastica da parte Religioza, sendo ouvido o Procurador da Côroa,

Soberania, e Fazenda Nacional. (LEIS PROVINCIAIS..., 1839)

Por vezes, o próprio poder temporal fazia alterações que julgasse necessárias aos

compromissos da irmandade, ingerindo inclusive em questões devocionais. Em 11 de

maio de 1878, o então presidente da província Barão Homem de Mello autoriza a reforma

no compromisso da Confraria do Bom Jesus da Cruz alterando e acrescentando ao artigo

nº19 a seguinte redação: “prestar todo o auxilio ao culto de Nossa Senhora da Palma e

promover por si ou auxiliar o culto dos santos e santas da Capella”, no texto original

encontrava-se apenas o culto à Nossa Senhora da Palma e do Bom Jesus da Cruz

(INSTRUÇÕES..., 1878).

Em 28 de fevereiro de 1875, a Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santanna

responde ao governo provincial relatando que, conforme Ordem Imperial44, a irmandade

deveria informar a sua relação de bens e investimentos, carta de juros, relatório de mesa

administrativa e enviar uma cópia do compromisso da irmandade. A resposta foi a uma

notificação enviada pelo Governo solicitando à Irmandade o envio da prestação de contas

que se encontrava em atraso (RESPOSTA À NOTIFICAÇÃO..., 1875).

Estes pedidos tinham regularidade durante o ano e a prestação de contas também

se estendia às eleições da mesa diretora. Apesar das formas de controle, os conflitos em

relação ao poder temporal eram menores. O próprio Estado buscava, junto às diferentes

instâncias de poder, formas de manutenção do caráter social das irmandades. Afinal,

algumas confrarias funcionaram como forças auxiliares da administração pública. Basta

pensar que, em diferentes momentos da Bahia, o principal hospital da cidade era

administrado pela Irmandade da Misericórdia45 além disso, muitas irmandades faziam

44 A ordem imperial não é especificada ou tipificada na documentação. 45 Hospital de Caridade São Cristóvão (1549-1907) e Hospital Santa Izabel (1907 - )

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empréstimos, atuando na concessão de créditos. Mesmo irmandades menores tinham

alguma relevância na assistência social local.

A Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santana promovia ações caritativas para

a comunidade regional durantes diferentes momentos. A confraria do Bom Jesus da Cruz

seguia os mesmos padrões de sua vizinha de freguesia. Um documento datado de 1870

demonstrou os esforços da irmandade em recolher fundos junto à Cruz Vermelha,

prestando assim auxílio em conter os prejuízos decorrentes de um desastre ocorrido no

Taboão naquele mesmo ano (CORRESPONDÊNCIA..., 1870).

Não somente as ações caritativas, mas muitas vezes as irmandades assumiam

obras públicas ao redor de suas instituições. Em 14 de agosto de 1872, a Confraria do

Bom Jesus da Cruz enviou documento solicitando ao Governo Provincial o recolhimento

da quantia constante em oficio orçamentário em face das obras realizadas pela irmandade

no calçamento ao redor da igreja da Palma (CORREPONDÊNCIA ENTRADA..., 1872).

Já a Irmandade de Nossa Senhora da Palma requisitou 1:200.000 réis do governo

provincial a fim de repor os custos que a irmandade teve com a reforma do adro da mesma

igreja (REQUISIÇÃO..., 1874).

Como contrapartida, o governo precisava fornecer meios de sustentabilidade para

estas instituições. O decreto de lei nº 2.874, de 31 de dezembro de 1861, proibia as loterias

e rifas em todo o território nacional. Entretanto, permitia a concessão de loterias às

irmandades religiosas devidamente autorizadas pelo governo provincial. Para pleitear a

concessão era necessário enviar relatório à secretaria da fazenda, a lei restringia esta

concessão às instituições que necessitassem reformar suas matrizes e limitava

inicialmente a 56 destas ao ano, posteriormente se expandiu a concessão para irmandades

que realizassem ações caritativas.

Em 8 de julho de 1878, o governo provincial da Bahia criou um projeto de lei

aumentando a concessão das loterias para irmandades, com parecer assinado por Antonio

Carneiro da Rocha, Ruy Barbosa, Prisco Paraiso e Carlos Borges.

As comissões 1ª de fazenda e de constituição e poderes às quaes foi

presente o requerimento de Eduardo Gomes Mascarenhas, pedindo a

concessão de pesquenas loterias anexas às que constumão correr com o

produto delas auxiliar às irmandades e egrejas necessitadas, e assim

desaparecerem esses indivíduos com capas, bolsas e estampas, que

transitão pelas ruas desta cidade pedindo esmolas, são de parecer que

tratando-se de matéria importante, que entende com os interesses de

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algumas egrejas e irmandade se ouça o Exm E Rem. Prelado diocesanos

(ANNAES, 8 de julho de 1878).

O projeto foi aprovado e ocorreu o aumento das concessões das loterias para as

irmandades na Bahia. Das instituições pesquisadas aqui, todas tinham loterias e

divulgavam seus sorteios em diferentes jornais da capital. As arrecadações contribuíam

para a manutenção das irmandades e auxiliavam na organização estrutural das festas e

das ações que circundavam estas associações.

Um projeto de 1880 visava conceder ainda mais 10 loterias a casas de caridade. O

projeto encontrou um opositor ferrenho, o Sr Conego Soares. Este alegava que a

concessão de mais 10 loterias prejudicaria o andamento caritativo de outras irmandades,

pois diminuiria a adesão as loterias já existentes na cidade. Sinalizava também que a

resolução do projeto buscava retirar o envio de verbas à Irmandade da Misericórdia (Santa

Casa) e outras instituições e, em seu lugar, conceder loterias.

O vigário também alertou para o limite de donativo, podendo-se correr apenas

52 loterias ao ano e a concessão de loterias a Santa Casa prejudicaria ainda mais outras

instituições de caridade da cidade.

O Sr. Conego Soares: - Quantas loterias podem correr no anno?

Um Sr. Deputado: - Só podem correr 52.

O Sr Conego Soares:- Correndo estas para acudir as Santas Casa de

Misericordia, deixarão de correr aquellas que são concedidas para

matrizes e mais obras. Por consequência as loterias de que o projecto se

ocupa prejudicão as matrizes, prejudicando as casas de caridade e outras

obras, para as quaes concedemos loterias.

Sr presidente, em nome d’esta província cujos interesses nós

representamos, em nome da caridade christã.

Um Sr. Deputado: - Em nome do direito e da justiça

O Sr. Conego Soares: - ... em nome dos pobres enfermos, que olhão esta

casa esmolando o obulo que irá consolar no leito da agonia, em nome

d’esta terra, que tanto confia em nos, peço V. Ex. que risque este

projecto porque V. Ex. há de convir que ele vae com certeza levantar

um brado de indignação no paiz.

O Sr Vigário Rocha Vianna: - Apoiado; ele é impopular.

O Sr Conego Soares: - Ele é impopular, como bem diz o nobre

deputado, é anti-christão, porque se opõe aos princípios da caridade

cristã porque se apõe aos principios da nossa santa religião. (ANNAES,

1880)

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O Deputado Carneiro da Rocha, autor do projeto (ANNAES, 1880), justificou sua

utilidade através da estabilização orçamentária necessária à província, alegou que a

comissão de orçamento não deveria buscar “o restabelecimento das finanças e o equilíbrio

orçamentário somente de boca”, era “preciso que queiramos por fatos e por actos”, ou

seja, era preciso medidas concretas. Interrompendo o discurso, o Cônego Vigário Rocha

Vianna questionava a legitimidade do projeto, alegando que se tivesse que haver cortes,

estes deveriam ser no Teatro. Após esquivar-se dos questionamentos, o deputado alegou

que “economicamente a caridade não deveria ser feita através dos cofres públicos”. As

sugestões sobre os cortes tornaram-se acirradas na sessão e outros deputados fizeram coro

ao corte de orçamento no teatro. O deputado Carneiro então defendeu que “em uma cidade

civilizada teatro público não é apenas coisa de luxo”. O Deputado Santos Silva proclamou

“quem não tem dinheiro não se diverte”.

A sessão foi adiada e, em um discurso de finalização, o Deputado Carneiro da

Rocha sinalizava que muitas vezes os impostos referentes às loterias que não eram

destinadas às casas pias e instituições de caridade eram tão elevados que quase não

permitiam obtenção de lucro. O deputado, em seu discurso, sinalizou que a casa se referiu

a ele quase como um “inimigo da caridade”. As menções utilizadas pelo deputado para

se defender das acusações são bastante peculiares:

Os nobres deputados talvez pensem que eu tenho má vontade aos

estabelecimentos pios, levantaram tamanho clamor, que parece que sou

inimigo da caridade! Senhores, eu não sou exagerado em matéria

religiosa; mas também não sou espirito livre. Os nobres deputados não

sabem que tenho exercido diversos cargos em irmandade e

estabelecimentos religiosos, e na medida do meu orçamento faço a

caridade que posso? (ANNAES, 1880)

Ao utilizar a associação a uma irmandade religiosa como caráter legitimador da

sua condição de “homem de caridade”, o discurso do deputado fornece indícios sobre o

prestígio caritativo que as irmandades ainda tinham no período. De fato, os discursos

políticos refletiam o caráter de caridade dessas instituições. Uma cidade que pleiteava os

moldes civilizatórios europeus pensados a partir de meados do século XIX, precisava

reduzir suas agruras sociais, e as ações de combate à pobreza e consequentemente de

diminuição dos famintos, indigentes, doentes e desabrigados promovidas pelas

irmandades e casas pias eram incentivadas pelo poder temporal.

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Por outro lado, com o fim do padroado régio, outras instituições assumiram o

caráter assistencialista das irmandades menores e o Estado retirou progressivamente as

concessões de loterias a estas associações. A legislação pós República

(DECRETOS...1902, 1910 e 1911) procurou outros tipos de vínculos aos sorteios,

inclusive com a instauração da Companhia de Loterias Nacional, que permitiu a criação

de diferentes loterias desde que observadas as devidas taxações sobre o serviço. Com isso,

as irmandades perderam uma de suas fontes de arrecadação de fundos. O estado, afastado

da Igreja também não prioriza o financiamento de suas festas e homenagens, impactando

diretamente na sustentabilidade destas instituições.

5. Devoções, pompas e celebrações: As redes de sociabilidade e relações entre as

irmandades de Santana.

Os santos protetores compunham um importante aspecto para o entendimento das

relações entre as confrarias e seus membros, sendo que as festas em homenagem ao orago

constituíam-se como uma das ocasiões de maior relevância para os irmãos. Era naquele

momento em que as irmandades poderiam demonstrar o seu tamanho, prestígio e poder.

Este forte vínculo entre essas associações leigas e os santos se deve à ligação crucial entre

o orago e os fiéis, tendo-se, assim que, quanto maior fosse a homenagem àquele santo,

maior seria a satisfação individual:

A data máxima do calendário das irmandades era a festa do santo de

devoção, quando irmãos e irmãs saiam das confrarias aparatados com

suas vestes de gala, capas, tochas, bandeiras, andores, cruzes e insígnia

em pomposas procissões, seguidas de danças e banquetes. (REIS, 2012,

p.61)

A renovação na fé reflete as formas de exterioriza-la. Em um período com fortes

mudanças estruturais nas relações entre Igreja, Estado e no contato com a fé, as devoções

e o modo de expressá-las acompanharam as dinâmicas das transformações. Dentro desse

ritmo de mudança, as formas das procissões, os seus ritos e devotos se modificaram.

Muitas procissões que se tornaram famosas, no final do século XIX já não eram mais

realizadas. Já outras não tinham mais a adesão de fieis como em outros tempos.

Percebe-se o desaparecimento de várias festas, a introdução de novas

em outros locais, o reduzido número Indulgências assinaladas e a

sobrevivência de apenas uma dentre as quatros maiores procissões entre

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a Quarta-feira de Cinzas e a Sexta-feira da paixão. O aparato desses

préstitos, a riqueza cênica das alegorias, o grande número de andores e

insígnias, tudo vai se tornando anacrônico e grotesco, mesmo na

avaliação de seus promotores. (SILVA, 2000, p.99)

Apesar das transformações, a festa permite analisar as engrenagens sociais dentro

das relações dos que dela participam. Dessa maneira, os estudos sobre a festa constituem

um dos campos férteis da historiografia brasileira. A análise das irmandades através da

perspectiva da festa em torno dos seus oragos propicia entender aspectos importantes da

história dessas instituições, sendo possível traçar as relações de poder entre membros

dessas irmandades, poder político e eclesiástico. Sendo assim, analisar historicamente

uma festa ajuda a demonstrar as dinâmicas imbricadas nos diversos atores sociais que

dela participam. Afinal, a partir do contato íntimo com o santo, laços de sociabilidade e

solidariedade se estreitavam e a festa tornava ainda mais evidente essas relações. Porém,

como afirma Michel Vovelle (1991, p.147), no momento festivo, determinado grupo

revela sua visão de mundo e filtra suas tensões. Assim, as irmandades eram espaços

privilegiados da sociabilidade e suas festividades, com pompa e celebrações

espetaculares, reuniam os irmãos, exteriorizavam a fé, mas, por vezes, também eram

palcos de conflitos. E as disputas entre as instituições, o poder eclesiástico e temporal

apareciam e se potencializavam durante os festejos.

Das três irmandades aqui estudadas, a documentação relata um conflito direto

entre a Confraria do Senhor Bom Jesus da Cruz e a Irmandade da Palma. A partir de 1877

ambas disputaram durante anos a administração da Igreja da Palma, na qual estavam

sediadas. Na disputa houve envolvimento de autoridades do poder temporal e eclesiástico

que se estendeu à esfera pública, aparecendo em diversos artigos de jornais.

Em 4 de outubro de 1873 (CARTA..., 1873), a Irmandade da Palma pedia à

Confraria do Bom Jesus da Cruz que esta desse ciência ao arcebispado dos feitos da

primeira no sentido de reformar o templo, explicitou em detalhes minuciosos que a

irmandade já havia restaurado a imagem de seu orago que “há muito estava deteriorando-

se” e “mandado trocar o nicho” ao redor do mesmo, além de limpar e dourar o forro da

igreja, permitindo que as missas voltassem à normalidade.

A Irmandade da Palma já havia sinalizado em cartas enviadas ao arcebispado as

más condições em que se encontrava a igreja e indicava a intenção da irmandade em

administrar o templo. Não encontrei a documentação referente às respostas do

arcebispado, mas os pedidos para a administração não se restringiram à arquidiocese,

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afinal, até aquele período ainda vigorava o regime do padroado e cabia à administração

provincial decidir sobre o assunto. Assim, no dia 10 de janeiro de 1878, o jornal “O

monitor” divulgou a seguinte nota:

Consta-nos que o governo da província, autorizado pelo ministério do

império a conceder a administração da capella da Palma, ouvindo

previamente ao Exm prelado, a uma das duas irmandades ali erectas,

uma sob a invocação do Sr Bom Jesus da Cruz, e outra sob a de Nossa

Senhora da Palma, acaba de conceder a administração a esta ultima. (O

MONITOR, 10 de Janeiro de 1878)

Na mesma edição, a mesa diretora da Irmandade do Bom Jesus da Cruz publicou

uma solicitação convocando todos os irmãos a se reunirem, apelava para a honra e

dignidade de todos os seus membros:

A mesa administrativa da confraria do Senhor Bom Jesus da Cruz

convoca a todos os seus irmãos em geral para no domingo 04 do

corrente, pelas 4 horas da tarde, comparecerem no nosso consistório

afim de tratar-se de negócios importantes à mesma confraria visto que

por acto do governo de 8 do andate fora concedida a administração da

capella que a longos anos administramos à nova irmandade de Nossa

Senhora da Palma, o espera o concurso de todos seus irmãos, visto o

caso affeciar a honra e dignidade de todos. (O MONITOR, 10 de

Janeiro de 1878)

A irmandade reuniu-se com os irmãos e em conjunto apelaram às decisões

tomadas a respeito da administração da Igreja. Dessa maneira, as disputas entre as

associações estenderam-se por mais alguns meses. O mais icônico dos conflitos

envolvendo as confrarias, se deu na edição do dia 18 de janeiro de 1878 do jornal O

Monitor. No artigo assinado como “a verdade”, se expunha o histórico da construção da

capela da Palma, em 1630, com recursos do alferes Bernardo da Cruz Araos para

perpetuação do culto e adoração da Santíssima Virgem da Palma. O artigo narra que desde

1751 a administração da igreja era feita pela Irmandade do Bom Jesus da Cruz e denuncia

que a esta “[...] nunca se importou com o culto da Santíssima Vigem dona dela, que desde

então esteve abandonada, quebrada, e sua igreja muito deteriorando-se” (O MONITOR,

10 de Janeiro de 1878). Assim, a partir de 1872, um grupo de senhoras, preocupadas com

a igreja e com a devoção de Nossa Senhora da Palma, fundou a Irmandade da Palma, que

passou a zelar pela igreja e pedia naquele período a tutela da administração da mesma ao

imperador, que assim o fez.

Então, os maridos, pais e irmãos daquelas senhoras e outras pessoas,

que isso presenciavam, trataram de instituir a irmandade de Nossa

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Senhora da Palma, fizeram e aprovaram seu compromisso e deram

começo às obras mais urgentes, levando a capela ao brilhantismo em

que hoje se vê, estatuiram (sic) missas nos sábados e domingos, que não

havia, com o que muito se alegraram os moradores d’aquele bairro, que

hoje aplaudem a irmandade da Palma, ao passo que mais se azedou a

confraria do Senhor Bom Jesus da Cruz e continuaram de sua parte os

desacatos para com a irmandade da Palma: esta certa de que a confraria

nenhum direito tinha na capela, bem nacional que estava sem

administração legal, pediu a S.M, o Imperador a nomeação de

administradora da capela e também requeriu ao mesmo tempo a

confraria do Senhor Bom Jesus da Cruz, cônscia de que nenhum tinha

nela a devoção da capela. (O MONITOR, 10 de Janeiro de 1878)

A Irmandade do Bom Jesus da Cruz, no dia posterior a publicação acima

descrita, publicou no mesmo jornal a sua réplica ao artigo, ficando evidente a acentuação

do conflito entre as duas irmandades. Descreve o irmão Epaminondas, da Irmandade do

Bom Jesus da Cruz, as ações da Irmandade da Palma feitas na Igreja:

Entrando agora na questão do abandono da imagem e na deterioração

do templo, diremos que o altar da Palma se achava, como todos viam

ornado de castiçais, velas, jarras, flores, toalha, etc, e que se bem que a

confraria da Cruz não dispusesse de recursos pecuniários, todavia, em

todos os anos logo depois da festa de seu orago, mandava celebrar a

padroeira da igreja uma missa com órgão e incenso; não podendo, pela

escassez de recursos, fazer mais do que isto.

O templo não se achava deteriorado, por que se o estivesse os primeiros

cuidados da devoção (irmandade da Palma em março de 1874) seriam

todos empregados em sua reparação, e seus esforços não resumir-se-

iam apenas no embelezamento da capela mor onde está assentada a sua

padroeira, na sacristia e no adro da igreja, únicas obras que a irmandade

da Palma tem feito na mesma igreja, que hoje incompetentemente e

ilealmente (sic) está sob a sua administração. (IDEM)

Em 22 de abril de 1878, através de notificação da administração provincial

(INSTRUÇÕES..., 1878), ocorreu a decisão sobre a direção da igreja. O presidente da

província, Barão Homem de Melo, optou por dividir entre as irmandades a tutela do

templo, ao que chamou de administração coletiva, sendo necessária a autorização de

ambas as irmandades para a tomada de quaisquer decisões, dessa maneira, qualquer

intervenção necessitaria do consentimento de ambas confrarias.

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Figura 2: Capela de Nossa Senhora da Palma

Fonte: Reitoria da UCSAL (Universidade Católica de Salvador)

Esses conflitos são demarcados e revelados potencialmente no espaço da festa.

Em uma das principais procissões da cidade, a do Bom Jesus da Cruz, realizada pela

irmandade de mesmo nome, o cronista Silva Campos (CAMPOS, 2001, p.161) em um

texto publicado nos anais do arquivo público em 1941, republicado em uma edição de

2001, traz em seus documentos a presença maciça da Irmandade da Palma durante a

procissão. De acordo com a documentação pesquisada, após o período de disputa entre as

irmandades, já não se encontravam nos convites e relatórios de festas a presença dos

irmãos da Palma, se opondo a outras irmandades que se faziam presentes na procissão. A

própria irmandade do SS. Sacramento de Sant’Ana, localizada na mesma freguesia das

irmandades acima descritas, participava ativamente da procissão, inclusive publicava

chamados em jornais convocando seus irmãos à festa.

A mesa administrativa da Irmandade do Santíssimo Sacramento e

Sant’Anna convida os caríssimos irmãos a se reunirem no domingo 13

do corrente, às três horas da tarde na sacristia da respectiva matriz afim

de incorporados irem acompanhar a procissão do Senhor Bom Jesus da

Cruz, a qual tem de sair da capela de Nossa Senhora da Palma. (O

MONITOR, 11 de Outubro de 1878)

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Entretanto, maior do que as diferenças ideológicas e as disputas de poder nas

irmandades era o esforço para festejar o orago com ostentação, pompa e solenidade.

Dessa forma, as redes de sociabilidade na prática estavam inseridas na própria história da

procissão e dos festejos, no qual aqueles que deles participavam encontravam

representação na hagiografia do respectivo santo ou na história da criação da própria festa.

Durante a procissão, havia também sinais de laços étnicos que se costuravam por

intermédio dessas representações, a presença forte de homens mulatos nos festejos do

Bom Jesus da Cruz nos revela este traço marcante da procissão e evidenciava uma

característica de sociabilidade importante tratando-se de irmandades religiosas: as festas

promovidas por estas confrarias era uma forma socialmente aceita de sujeitos subalternos

se apresentarem de forma positivada e até mesmo luxuosa.

Esta procissão era uma das maiores de Salvador no Império, seu percurso de 1893,

segundo João da Silva Campos era um dos mais extensos:

Saindo da palma, seguia a procissão pelas ruas de Santo Antônio da

Moraria, Ferraro, Independência, Gravatá, Tijolo, São Francisco e

Cruzeiro de São Francisco, passando por defronte de São Domingos e

descendo o Maciel de Cima. Beiradejava o alto do largo do pelourinho,

subindo as Portas do Carmo; atravessava, pela segunda vez, o Terreiro,

passando em frente a Catedral; enfiava pelas ruas Direita do Colégio,

do Liceu e da Misericórdia. Cruzava a praça do Palácio e descia a rua

Chile, dobrando a dos Capitães. Que seguia até a ladeira da Praça,

descia esta, atravessava o largo de Guadalupe e subia enfim a ladeira da

Palma. (CAMPOS, 2001, p.161)

Este grande percurso chamava atenção da cidade, especialmente pela integração

de diferentes freguesias e irmandades que se solidarizavam e participavam da procissão.

Além disso, os devotos e observadores se impressionavam com a ostentação e o luxo,

presentes na indumentária dos homens– capa branca e murça (vestimenta usada pelos

cônegos ou membros das irmandades por cima da sobrepeliz) roxa – e das imagens dos

santos, vestidas com túnicas de tecidos finos.

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Figura 3: Cortejo da Procissão do Bom Jesus da Cruz

Fonte: Adaptação de Mapa da Salvador do século XIX, mapa encontrado no site:

http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/fonfon/fonfon. Acesso: 03-09-201746

Segundo Silva Campos (p.161), em brilhantismo, o préstito concorria com as

irmandades de Nossa Senhora das Angústias (criada em 1645 e extinta em 1928, sediada

na Igreja do Mosteiro de São Bento e que realizava procissão em 14 de agosto), Nossa

senhora da Conceição da Praia (padroeira do Brasil até 1930) e do Bom Jesus do Bonfim

(criada em 1745), que eram as mais importantes. Em suas palavras, “ao tempo de mor

soada na Bahia”. Era uma ocasião aguardada e que marcava o calendário festivo da cidade

de Salvador.

Reza o compromisso, em seu título IV – Da regalia dos irmãos vivos e defuntos,

da Festa, Te Deum e Procissão – capítulo I, artigo 41, que, as missas devem ser “com

canto de órgãos e incensadas”. E os irmãos não podem se ausentar das missas, da eleição

e da posse da nova mesa, salvo em caso de doença. O capítulo II – Da Festa, te Deum e

Procissão – determina que a festa seja realizada em 21 de setembro, “com toda a

46 Ver em anexo mapa completo

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solenidade e pompa possíveis, conforme permitirem as circunstâncias da Confraria”.

Mas, quando a data caísse “em dia de serviço”, podia ser adiada até o segundo domingo

de outubro.

Silva Campos nos deixou um interessante relato da festa do Bom Jesus da Cruz,

que, após a procissão, entrava pela noite, atraindo fiéis e soldados:

[...] Enfim, um Deus-nos-acuda no seio da sociedade café-com-leite,

que saía à rua em massa, com seus melhores vestidos, a fim de tomar

parte nas solenidades internas e externas que se efetuavam na Palma.

[...] As diversões no rossio da igreja tinham estupenda concorrência,

mal se podendo locomover uma pessoa. Iluminava-se o quartel do 9º,

cuja frente se elevava onde corre agora o muro traseiro do Quartel

General da Região Militar. Franqueado o seu portão ao público, nos

alojamentos das praças e em outros cômodos do estabelecimento, havia

animadas danças, conservando-se a capelinha de Nossa Senhora do

Rosário, erguida no centro do pátio, aberta e acesa até tarde. (CAMPOS,

2001, p.160)

Era aquela ocasião em que havia uma preferência na realização de casamentos e

batizados. A procissão também propiciava uma forte rede de relações de negócios inserida

na dinâmica da própria festa. Grande é o número de recibos encontrados na documentação

da irmandade relativa aos festejos. O mais interessante é que as datas de pagamento

percorrem diferentes períodos do ano; no ano de 1887, por exemplo, havia um recibo

datado de 12 de outubro para o pagamento referente à iluminação da procissão. Outro do

dia 09 de abril para a divulgação da procissão em jornais; e um último do dia 11 de

outubro relativo aos fogos de artifício que foram utilizados na procissão em janeiro

(RECIBOS..., 1897).

As irmandades utilizavam o máximo de recursos para atrair tanto a atenção dos

devotos como do Arcebispado. Em tempos de mudanças, tais recursos garantiam a

funcionalidade da irmandade, assim como a continuidade do seu prestígio devocional.

Estes recursos eram expostos nos convites emitidos oficialmente à cúria, a outras

irmandades e instituições de importância na cidade, além dos jornais e periódicos para o

grande público. Na edição de 13 de outubro de 1878, a Confraria do Bom Jesus da Cruz

emitiu nota divulgando sua festa e seus atrativos, dentre estes: os fogos de artificio e a

oratória do Revd. Padre Turibio Tentuliano Fiuza, famoso religioso oitocentista,

professor de latim e do Seminário da Bahia.

Celebra-se hoje às 11 horas da manhã na capella da Palma, a festa do

Sr Bom Jesus da Cruz. Orando ao evangelho e o ilustrado pregador

imperial RVd. Pedre mestre Turibio Tetuliano Fiuza.

Às 4 horas da tarde sahirá a procissão que percorrerá as ruas de Santo

Antonio da Moraria, Campo da Pólvora, Independência, Caminho

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Novo do Gravatá, ladeira de S. Francisco, Terreiro, Maciel de Cima,

Pelourinho, Portas do Carmo, rua do Collegio, Misericórdia, rua do

Palácio, Nossa Senhora da Ajude, Pão-de-ló, Ladeira da Praça,

Veteranos e Ladeira da Palma

A noite haverá fogo de artificio. (O MONITOR, 13 de Outubro de

1878)

Para se mesurar a importância destes recursos, um caso chama atenção na edição

do dia 28 de setembro de 1841 do jornal “O correio mercantil”. O presidente da irmandade

do Bom Jesus da Cruz havia mandado prontificar fogos de artificio para serem utilizados

na procissão. Porém, um acidente na casa do “fogueteiro”47, durante a preparação dos

atrativos, levou a óbito duas pessoas. A irmandade então anunciou que, apesar do

acidente, a procissão permaneceria com os fogos de artifícios, mudando apenas o seu

cortejo para o dia 2 de outubro, data em que haveria uma peça de teatro programada na

cidade, mas cujo o ator responsável, evitando a concorrência do público, optará por alterar

o período de sua apresentação (CORREIO MERCANTIL, 28 de setembro de 1841).

As confrarias buscavam auxílio também do poder público para a manutenção da

festa. Em carta enviada ao presidente da província em 2 de abril de 1867, a Confraria do

Bom Jesus da Cruz solicitava apoio nos festejos, requerendo homens da “guarda de

função” afim de garantir maior “pompa e solenidade” (REQUISIÇÃO..., 1862) à

procissão. Apelou inclusive para os sentimentos religiosos do presidente que já havia

demonstrado em outros eventos realizados pela irmandade a intenção em ajudar no

andamento das homenagens ao orago.

As outras irmandades da freguesia promoviam seus festejos em escala menor, não

tinham procissões tão extensas como o Bom Jesus da Cruz e nem adesão popular ao culto

de seus oragos. Por outro lado, utilizavam todos os recursos necessários para manter o

prestígio de suas homenagens. A Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santana

divulgava nos jornais locais os dias e os atrativos para as procissões de seus dois oragos:

No domingo próximo celebram-se as seguintes:

Na egreja da Sé a festa da Virgem Santissima da Fé; na de Sant’Anna a

primeira do orago da Irmandade do Santissimo Sacramento, sendo

oradores os padres mestre pregadores imperiais Manuel Theodolino

Ferreira e Turibio Teruliano Fiuza [...]. (O MONITOR, 22 de Julho de

1876).

47 Termo encontrado na documentação.

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Isso nos mostra que a realização desses festejos envolvia um forte empenho das

irmandades, que se preparavam durante todo o ano para realizá-los, angariando fundos e

elegendo mordomos (responsáveis pelos preparativos da festa). Afinal, era o momento

mais importante para essas instituições. Em termos práticos, a festa era um marco

cronológico, o parâmetro temporal para a convocação de irmãos, possíveis reuniões e de

eventos que demandassem decisões importantes, como as eleições das mesas

administrativas, realizadas, normalmente, algumas semanas antes da festa, para que, no

dia principal, ocorresse a posse. A Irmandade do SS. Sacramento de Santana realizava

suas eleições quinze dias antes dos festejos e a posse da nova mesa administrativa se dava

20 dias depois.

Os compromissos expressam a importância da festa do orago, destacando essa

como a obrigação primordial da irmandade. Assim é descrito no compromisso de 1877

da Irmandade da Palma, página 7, referente às obrigações do Irmãos da Irmandade: “[...]

é restrita obrigação da irmandade a realização da festa em homenagem a Nossa Senhora

da Palma todos os anos com a maior decência possível”.

O sucesso de uma festa e a pompa de sua celebração indicam muitas vezes a

situação em que se encontrava determinada irmandade. A não realização de uma

festividade sinalizava uma eminente decadência. O ano de 1927 foi difícil para a

Irmandade do Bom Jesus da Cruz, pois o seu então presidente pediu destituição do cargo,

não havendo candidatos para ocupar a mesa administrativa. Os preparativos ficaram

comprometidos e a festa não pôde ser realizada. Era a evidência fatal do fim da

irmandade, tanto que nos anos seguintes a irmandade foi se desfazendo dos seus bens e

alfaias até a destituição completa. Chegava ao fim uma secular irmandade e,

consequentemente, a sua pomposa procissão.

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CAPÍTULO 3

O AFAGO DA MORTE: TRANSFORMAÇÕES EM TORNO DA ASSISTÊNCIA

AO BEM MORRER PRESTADA PELAS IRMANDADES.

Vimos como as grandes transformações urbanas, religiosas, políticas e

econômicas do final do século XIX e início do século XX operaram em torno das relações

entre as associações de leigos e os diferentes poderes, refletindo na maneira como as

irmandades festejavam os seus oragos. Este capítulo tem por objetivo compreender os

aspectos de transformação entre estas associações e um dos seus principais pilares

associativos: a manutenção de uma segurança para além da vida, através do aspecto da

boa morte ou do bem morrer.

1. A boa morte ou o bem morrer

Em uma conferência realizada em 1972 na Louvaina, Bélgica, Jaques Lacan, uma

das principais referências para a psicanálise moderna, afirmou que: “a morte entra no

domínio da fé. Fazemos bem em crer que vamos morrer, certamente isso nos dá forças.

Se não acreditarem nisso, poderiam vocês suportar a vida que levam?” (LACAN, 1972).

A fala de Lacan nos provoca a refletir sobre o papel desempenhado pela morte em cada

sociedade. A morte exerce uma função fundamental na consciência coletiva, afinal,

através dela indivíduos passam a avaliar as consequências de suas ações dentro do

pertencer ao todo, ao mesmo tempo em que percebem objetivamente a fugacidade e a

finitude da vida. Porém, como salienta João José Reis (REIS, 2012 p.73): “existem

maneiras cultural e historicamente situadas de homens e mulheres encararem seu destino

derradeiro”.

Alguns estudiosos analisaram diferentes sociedades a partir da perspectiva das

relações dos seus sujeitos com o morrer. Michel Vovelle (2010), ao avaliar as maneiras

como as sociedades ocidentais lidavam com a morte, teorizou que a Igreja Católica

buscou exercer controle sobre a mudança na mentalidade funerária através da criação do

purgatório e das reformas a partir do concilio de Trento (1545 – 1563). Já Jean Delumeau

(1989), ao analisar os medos e temores da Europa medieval e moderna, compreendeu que

a necessidade de preparação para a morte por parte da população foi essencial para a

manutenção da Igreja em diferentes períodos da história.

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A representações sociais em torno da morte no medievo ratificaram-se quando o

cristianismo se tornou oficial e a Igreja Católica consolidou sua força enquanto

instituição, sendo uma das estratégias de manutenção de seu poder a demarcação de uma

rede de controle que buscava exercer domínio sobre diferentes instâncias da vida temporal

de um indivíduo. Os próprios sacramentos do matrimônio, batismo e eucaristia

evidenciavam esta característica. Philippe Ariès, Michel Vovelle e Delumeau

demonstraram, que a partir do século XIII (ARIES, 2014, p.212), houve um movimento

de clericalização da morte, ou seja, a Igreja passou a assumir com veemência todos os

ritos que envolviam a finitude da vida.

Os principais papeis são, dali por diante, reservados aos padres e, em

especial, aos monges mendicantes, ou ainda a personagens semelhantes

aos monges, laicos com funções religiosas como os das ordens terceiras

ou confrades – isto é, novos especialistas da morte.

Desde o último suspiro, o corpo não pertence nem aos seus pares,

companheiros ou à família, mas à Igreja. (ARIES, 2014, p.217)

Consolida-se uma mudança nas atitudes perante a morte, pois modifica-se a

concepção sobre o morrer. Em Gênesis, capítulo II, encontramos o seguinte trecho: “mas

a serpente era o mais astuto de todos os animaes do campo que o Senhor Deus tinha feito.

E ella disse para a mulher: Nós comemos do fructo das arvores, que estão no paraiso?

Mas do fructo da arvore, que está no meio do paraiso, Deus nos mandou que não

comêssemos, nem a tocássemos não suceda que morramos” (BÍBLIA, 1867, GN 2-3). A

morte física para o cristianismo não representava o fim, porém, como explicitado no

trecho, a morte plena existe e está profundamente associada ao pecado. Logo, aquele que

não encontrou perdão e não buscou em sua vida temporal mitigar seus pecados, poderia

estar condenado à morte eterna. Além disso, na compreensão cristã, a forma da morte

física impactava na salvação. Assim a ideia do bem morrer constitui-se como um aspecto

crucial na passagem para a vida eterna.

A manutenção dualista de inferno e céu foi um outro aspecto que alimentava o

imaginário da morte e sua proximidade com os vivos. Iria para o céu aquele que

conseguisse sua salvação absoluta; ao inferno, o condenado à morte eterna através do

pecado. A partir da segunda metade do século XVII (LE GOFF, 1995) aparece na

literatura litúrgica de maneira ortodoxa uma antiga crença da maioria dos cristãos: um

lugar intermediário, probatório, entre o céu e o inferno.

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Os mortos não estavam todos reagrupados no recinto guardado e

organizado de Dante, nem entregues às chamas purificadoras e

localizadas dos retábulos dos séculos XVIII-XIX. Ficavam então, no

local dos seus pecados ou no de sua morte, e apareciam aos vivos, pelo

menos em sonho, para lhes pedir missas e orações. (ARIES, 2014, p.

202)

Dentre as punições para aquele que não foi condenado à morte eterna havia o

purgatório, um local onde a alma pagaria pelos pecados momentaneamente. Os vivos

nessa engrenagem tinham uma participação fundamental, afinal, estava sobre sua

responsabilidade uma parte dos ritos de salvação. As orações e missas rezadas pela alma

daquele que se foi o ajudavam a sair mais rapidamente do purgatório.

O purgatório era uma região de passagem na geografia celeste. Para

dele escapar mais rapidamente, além do arrependimento na hora da

morte, os mortos precisavam da ajuda dos vivos, na forma de missas e

promessas a santos. A existência do Purgatório permitia e promovia a

relação entre vivos e mortos. (REIS, 1997, p.97)

Philippe Ariès avaliou, em uma perspectiva de longa duração, os comportamentos

de homens e mulheres em diferentes sociedades e em períodos que circundavam desde a

Idade Média até meados do século XVIII. A partir de seu estudo, propôs uma chave

analítica para compreender as reações dos indivíduos perante a morte: o conceito de morte

domada.

Para a formulação desse conceito, Philippe Ariès, respeitando as devidas variações

históricas, percebeu quase que uma atitude global diante da morte, na qual indivíduos de

diferentes estratos e espaços sociais tinham a morte e a preparação para esta imbricados

nas suas vidas cotidianas. Propõe a ideia de uma morte domada não no sentido de um

processo de domesticação de uma morte que foi selvagem em determinada instância, mas

como uma proximidade quase que familiar do sujeito com o morrer.

Se este individuo, durante sua vida temporal, estava familiarizado e conformado

com a morte, havia no momento dos enterramentos certo contraste expresso na forma

exacerbada de viver o luto por parte dos que acompanhavam os funerais. Já que estes,

inspirados na maestria barroca, demandavam uma atenção especial tanto do moribundo,

que planejava durante toda a sua vida o seu enterramento, quanto daqueles responsáveis

pelo seu sepultamento. O ato de morrer necessitava de uma série de medidas para

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concretizar o bem morrer, dentre estas medidas era essencial que os funerais carregassem

toda a pompa possível, tornando-se algo de destaque. A Ariès denomina de luto selvagem.

O moribundo, como já vimos, lamentava perder a vida apenas na

medida necessária; conservava até o final a calma e a simplicidade.

Mas, se a morte estava realmente domada, o luto dos sobreviventes era

selvagem ou devia parecê-lo. Tão logo se constava a morte, em torno

dela se rompiam as cenas mais violentas de desespero. (ARIES, 2014,

p.188)

Philippe Ariès aponta que esta atitude diante do ato de morrer desapareceu

totalmente da sociedade europeia no final do século XVIII (ARIÈS, 2014, p.39). Porém,

João José Reis aplicou seus conceitos ao debruçar-se na análise do imaginário sobre a

morte durante o início do século XIX no Brasil, e percebeu as nuances da cultura funerária

da Bahia oitocentista, seus ritos e a observação de uma importante economia mortuária

no período.

Na Bahia do início do século XIX, a morte estava profundamente ligada ao

cotidiano da população. Parte de suas ações concentrava-se no limiar entre a vida

temporal e a espiritual. Acreditava-se que a morte era apenas uma continuidade e não o

fim, e nessa engrenagem a forma de morrer era essencial. Por isso, eram necessárias uma

preparação e a tomada de uma série de precauções para esta. O bem morrer ou a boa morte

relaciona-se justamente na melhor forma possível de morrer.

Dessa maneira, notamos que a relação do homem com a morte regulava-se através

de uma preparação da vida terrena para se alcançar a plenitude espiritual, ou seja, apesar

dos rituais em torno da morte serem extremamente dramáticos, havia uma conformidade

do indivíduo para com esta; prova disso são os constantes relatos de temores de dois tipos

específicos de morte que rompem justamente com estes ritos preparativos: a morte

solitária e a morte repentina. É a aplicação plena do conceito de Ariés de “morte domada

e luto selvagem” para o Brasil oitocentista.

Os manuais do bem morrer explicitam claramente esta relação. Contendo

instruções diretas dos procedimentos para a preparação da boa morte, estes manuais se

tornaram populares a partir do século XV na Europa (ARIES, 2014) e influenciaram

diretamente os ritos e as atitudes necessárias na preparação e na organização da morte,

destacando a importância das orações para os mortos, da preparação e vestimentas para o

corpo e o recebimento dos sacramentos. Não encontrei referência alguma a estes manuais

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no século XIX, mas João José Reis utiliza como fonte um artigo de 1836 encontrado no

Diário da Bahia; descreve que este documento continha definições sobre os diferentes

estágios da vida e que a velhice, determinada a partir dos 64 anos, deveria ser envolta

com uma essencial preparação para a morte que incluía “Rosário à noite, testamento e

missa diária” (REIS, 1997, p.101).

Já uma reportagem do Jornal O Monitor de 4 de janeiro de 1877 , ao comparar as

despesas do Hospital da Santa Casa de Misericórdia da Bahia às do Asilo São João de

Deus, justificou o custo elevado do hospital, destacando a importância destinada à

estrutura propiciadora do bem morrer na instituição:

O serviço do culto, muito mais pezado no hospital do que no asylo, pois

ali além das missas, há a administração dos últimos sacramentos aos

enfermos, o ajudar a bem morrer os moribundos, as encomendações aos

cadavares e a obrigação de morar o capellão no estabelecimento ou

muito perto dele” (O MONITOR, 1877).

Os exemplos ratificam uma permanência de uma característica associada à “boa

morte” ou “bem morrer” no século XIX. Indivíduos de diferentes estratos sociais ainda

se preocupavam com os rituais após seu derradeiro destino. A sociedade oitocentista

manteve uma estrutura de assistência funerária que beneficiava indivíduos de diferentes

setores. Para a elite aristocrática do início do século XIX, ainda era essencial que o ato da

morte fosse carregado de toda a pompa possível e isso incluía uma quantidade

significativa de pessoas que seguiriam os cortejos fúnebres e a presença de devoções.

Para os subalternos, era necessária uma espécie de previdência que garantiria os elevados

custos de seus funerais. No centro dessas engrenagens, as irmandades religiosas ainda

ocupavam um papel relevante na cultura social funerária da Bahia oitocentista, mas um

conjunto de transformações que começaram a operar a partir da segunda metade deste

século afetaram diretamente estas instituições.

2. Mudanças oitocentistas nas atitudes diante da morte.

Philippe Ariès, ao propor os conceitos de “morte domada” e “luto selvagem”,

sinaliza uma mudança nas atitudes diante da morte concretizada no século XIX, mas já

observada a partir do final do século XVIII: analisa que, por influência do romantismo,

progressivamente a morte começou a ser encarada como uma ruptura ligada diretamente

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a um sentimento de perda, o que rompia com a ideia de uma atitude conformista diante

do morrer. Assim a familiaridade diante da morte foi progressivamente se perdendo.

A morte romântica, influenciada pelo movimento literário, passa a ser admirada

pela sua beleza e poesia ao mesmo tempo que pela dor sentida por aqueles que perderam

alguém. Philippe Ariès demonstra que os relatos do século XVIII na Europa carregavam

esta característica, aliando-os à potencialização do luto selvagem:

O luto se desenrola com ostentação além do usual. Simulou até mesmo

não estar obedecendo uma obrigação mundana e ser a expressão mais

espontânea e mais insuperável de uma gravíssima dor, chora-se

desmaia-se, desfalece-se e jejua-se como outrora os companheiros de

Roland ou de Lancelot.

É como um retorno às formas excessivas e espontâneas – ao menos na

aparência da alta idade média, após sete séculos de sobriedade. O século

XIX é a época dos lutos que o psicólogo de hoje chama de histéricos –

e é verdade que, por vezes, toca os limites da loucura. (ARIES, 1977,

p.71)

Na Bahia oitocentista, esse sentimento de perda e ao mesmo tempo de

complacência diante da morte superou os limites do privado e chegou aos limiares do

religioso. Os cultos e procissões e encenações sobre a paixão e morte de Cristo

configuravam-se como um dos principais eventos no calendário festivo da cidade e

exaltavam a dor pela morte terrena do Crucificado, inclusive com demonstrações físicas

e características ritualísticas do luto. Edilece Souza Couto (2014) identifica, que só em

relação às confrarias da cidade de Salvador, foram fundadas entre a segunda metade do

século XVII e o final do século XVIII, 10 associações, entre irmandade e ordens terceiras,

que realizavam procissões com estes objetivos.

A Quaresma e a Páscoa eram os períodos com maior número de procissões

justamente por representar a dor pela morte e ressureição do Cristo. O Cristo crucificado

representava dois marcos importantes na mentalidade cristã funerária: a morte física,

envolta de todos os ritos necessários para a salvação espiritual e a ressureição, que

representava justamente a vida eterna. Inclusive, era comum muitas lápides e jazigos

conterem frases que indicavam esta relação entre a ressureição de Cristo e o bem morrer.

É o caso, por exemplo, da lápide do Pe. Vitório, localizada na Igreja do Santíssimo

Sacramento e Santana, na qual encontra-se a frase: aqui aguarda a ressureição Mons.

Vitório que foi vigário desta paróquia.

Das três irmandades aqui pesquisadas, a confraria cujo orago relaciona-se

justamente com este momento do Salvador, Bom Jesus da Cruz, era a que oferecia, como

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veremos adiante, maiores regalias funerárias aos seus irmãos, ou seja, havia certa relação

entre o Cristo e o caráter de assistência ao bem morrer.

Este aspecto na compreensão das analogias entre estas associações e a morte

relaciona-se à função desempenhada pelo santo de proteção ou devoção na manutenção

dos ritos necessários à boa morte. Sob a proteção de um santo, seria mais provável que o

fiel evitasse a morte eterna e obtivesse uma passagem mais rápida pelo purgatório. A

intercessão dos santos pelas almas era essencial nessas engrenagens do bem morrer.

Mauro Dilmman, em sua tese de doutorado, analisou que os santos e anjos católicos eram

invocados para ajudar sujeitos em questões da vida e da morte e que a escolha de um

santo em sermões ou em devoções ajudava a Igreja a concretizar um exemplo a se seguir

de acordo com os comportamentos exigidos em cada período.

O teólogo dominicano João Franco – um dos autores mais lidos e

respeitados em Portugal no século XVIII – dedicou um sermão a São

Miguel, que está publicado no segundo tomo, de 1734, de um total de

dez tomos com inúmeros sermões que reuniu e publicou em Lisboa,

entre 1734 e 1741. Interessante atentar que neste sermão, Franco incluiu

a expressão “e almas”, ou seja, “Sermão do Arcanjo São Miguel e

Almas”, apontando para a importância da devoção às almas à época.

No sermão de João Franco, São Miguel é “o maior” no Reino

dos Céus, é o príncipe “a quem a Igreja hoje dá cultos”, o “astro da

Bemventurança, a luminária do Império e defensor da Divindade. a

ruína dos Infernos, o amparo do mundo e o maior do Céu”. São Miguel

excederia a todos os outros anjos na assistência aos homens na vida e,

especialmente, na morte, atuando como o Arcanjo “capitão” dos demais

anjos bons, que haviam lutado contra o exército de Lúcifer, vencendo-

o no combate travado no céu, em defesa da glória de Deus.

(DILMANN, 2013, p.37)

Sendo assim, devotar-se a um santo significava muitas vezes receber deste com

mais vigor toda a proteção espiritual que poderia ser utilizada no momento mais crucial

na vida de um indivíduo: a morte.

3. Morte e Irmandades: uma relação secular.

O Noticiador Catholico, jornal fundado por Dom Romualdo Antônio de Seixas,

na segunda metade do século XIX, na sua edição de nº48 do ano de 1850, exibia em um

artigo intitulado “Só Deus protege os interesses da sociedade”, o seguinte trecho:

Aos olhos da fé os pobres veem a ser os tesouros da Igreja, como disse

um Christão, que recebeo a honra do martírio. É em favor d’elles que o

rico economisa para lhe poder dar com maior largueza, para construir e

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dotar hospitais, estabelecimentos de beneficência. É para torna-se servo

seu, alivia-los em todas as enfermidades, adoçar suas agonias da morte

e ensina-los à bem morrer” (O NOTICIADOR CATHOLICO, 1850).

O trecho acima expõe uma das faces principais dos aspectos impulsivos da

caridade até o século XIX. Philippe Aries, em seu livro O homem diante da morte (2014),

afirma que, desde a Idade Média, havia uma angústia inerente à aristocracia de diferentes

sociedades: o acúmulo de riquezas, condenado pela Igreja e impeditivo em determinada

instância para a salvação espiritual, e a crença na continuidade da vida após a morte, que

necessitava da remissão dos pecados para a plenitude do espírito. Era necessário pensar

em um meio de associar “as riquezas às obras da salvação”, afinal, como exposto em

Mateus: “E Jesus disse a seus Discipulos: Em verdade vos digo, que um rico

dificultosamente entrará no Reino dos Ceos. Ainda vos digo mais: Que mais fácil é passar

um camelo pelo fundo d’uma agulha, do que entrar um rico no Reino dos Ceos.”

(BÍBLIA, 1867, MT 19, 23-26).

A primeira resposta a essa conciliação foi a prática da caridade. Desde a Idade

Média cresceram continuamente instituições que privilegiavam a filantropia. Como dito

no primeiro capítulo dessa dissertação, os estímulos caritativos foram retirados da

parábola do juízo final de Mateus, que englobava as atitudes beneficentes para a salvação

espiritual. Porém, Philippe Ariès (2014) afirmou que, no final da Idade Média, um outro

aspecto importante, que até então não era relevante na mentalidade religiosa da época, é

colocado em um lugar central nessas atitudes: a chamada “mottus sepellitur”, ou seja,

enterrar os mortos.

No centro dessa estrutura, as irmandades religiosas funcionavam como um

organismo propiciador dessa conciliação. As associações de leigos mais poderosas da

Bahia no século XVIII e XIX carregavam em sua formação um aspecto caritativo de suma

importância. A própria Santa Casa da Misericórdia, inspirada na parábola do juízo final

de Mateus, baseou o seu compromisso em 14 obras de misericórdia, sendo o enterramento

dos mortos uma de suas missões de caridades mais relevantes.

Estas irmandades na Bahia oitocentista reuniam uma quantidade significativa de

indivíduos. Fazer parte de determinada confraria propiciava vantagens em determinados

negócios e garantiria uma articulação com diferentes instâncias do poder temporal, ao

mesmo tempo em que, por meio da caridade e do bem morrer, negociava-se uma possível

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salvação espiritual. Assim, essa estrutura concedia aos seus membros prestígio social, o

que na sociedade setecentista e oitocentista auxiliava nas demandas da vida temporal e

espiritual.

Garantindo parte dos ritos essenciais ao bem morrer, as irmandades, independente

do aspecto da composição social de seus membros e da intensidade da prática de caridade,

sem dúvida, ainda no século XIX, eram essenciais na configuração funerária da Bahia. A

procura por estas instituições residia principalmente em uma segurança essencial para o

além, visto que, mesmo para irmandades formadas por sujeitos em condições de

subalternidade, o pagamento da joia e dos valores de manutenção dessas associações

garantiriam a estes os ritos adequados para uma boa morte. Já para membros da

aristocracia, fazer parte ou auxiliar festas e eventos de irmandades menores ou não tão

prestigiadas conferiria dois aspectos importante na consolidação do bem morrer: a

presença de uma maior quantidade de pessoas em seus funerais, principalmente pobres,

visto que a maior parte das irmandades obrigava seus membros a irem aos cortejos

fúnebres e as missas e orações realizadas para sua alma.

Essa assistência funerária estava expressa nos compromissos desde a fundação

dessas associações e permaneceu até o século XX, o que indica uma permanência

histórica sobre uma preocupação dos indivíduos com a morte. O compromisso da

Confraria do Bom Jesus da Cruz, ao citar as regalias para os seus membros, as identificava

como “regalias que recebem os Irmãos, vivos e defuntos” (COMPROMISSO da

Irmandade do Bom Jesus da Cruz..., 1914). Garantia, no termo de seu compromisso,

missas que eram realizadas todas as sextas-feiras com a presença da mesa eleita, na qual

os irmãos utilizariam suas indumentárias próprias da irmandade, estas em tom roxo,

simbolizando o luto.

A confraria garantia os socorros espirituais necessários à situação dos seus

membros que se encontravam em perigo de vida. Ao irmão que houvesse falecido, a

irmandade cobriria os enterramentos nos carneiros da instituição e a presença de seus

membros para o cortejo de acompanhamento do cadáver até a sepultura. O compromisso

assim descreve:

Art. 47: Reunido os Irmãos e com suas capas, sahirá a Confraria, de

Cruz alçada carregando esta o Procurador de Mordomos, e levando dois

Irmãos os tocheiros, os outros com suas tochas, e o Presidente com a

vara, e na sua falta o Escrivão, Thesoureiro ou Procurador Geral, e se

dirigirão em boa ordem a casa do Irmão falecido onde lhe lançarão agua

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benta, e saberão si o cadáver fora já encomendado pelo Parocho, e,

tendo sido, pegarão seis Irmãos nas alças do caixão, e em acto

conduzirão ao cemitérios, afim de ser inhumado em um dos carneiros

da Confraria. (COMROMISSO da Irmandade do Bom Jesus da

Cruz..., 1914)

Já a Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santana, segundo seu compromisso

(COMPROMISSO da Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santana..., 1916), garantia

aos seus irmãos o enterramento em um dos carneiros da irmandade, além de 3 capelas de

missas anuais para seus membros, sendo uma delas realizada exclusivamente para seus

benfeitores, ou seja, pessoas que fizeram grandes doações à irmandade. Como modo de

incentivar que houvesse candidatos constantes para as eleições da mesa administrativa, a

irmandade também garantia uma capela de missa para aquele irmão que tivesse ocupado

algum cargo na irmandade. Além de, como dito anteriormente, a irmandade punia com a

expulsão aquele membro que ocupasse indevidamente um dos jazigos da instituição.

Art.5. Perdem os foros de Irmão, e serão eliminados todos aquelles que

incorrerem nos seguintes casos:

...

4º Concorrer para que sejão sepultados nos jazigos dos Irmãos pessoas

estranhas, ou provando-se que praticou qualquer outro acto contra os

interesses e bom andamento da Irmandade. (COMPROMISSO da

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santana..., 1916)

Mesmo a menor e de formação mais nova das irmandades aqui pesquisadas, a

Irmandade da Palma, garantia em seu compromisso (1873) aos seus membros, orações

pela alma dos defuntos e a realização individual das missas de 7 e de 30 dias após a morte

de um dos seus associados. Concedia também aos irmãos, em estado comprovado de

pobreza, um enterramento nos termos essenciais do bem morrer católico e de acordo com

a situação financeira da irmandade.

A Irmandade da Palma era a única das três aqui pesquisadas que não possuía, na

segunda metade do século XIX, carneiros e túmulos próprios. Era prestigioso para uma

irmandade ter tais bens, pois poderia assim ofertar aos seus irmãos uma maior regalia.

Por isso, a instituição garantia no Art 50 de seu compromisso que “a irmandade empregará

todos os esforços ao seo alcance para proporcionar aos seus irmãos falecidos um jazigo,

fazendo construir decentes carneiros em terreno escolhido no cemitério Quinta dos

Lázaros (COMPROMISSO da Irmandade da Palma..., 1873).

Para as três irmandades, o maior e mais importante benefício recebido por seus

membros, expresso em compromisso, relacionava-se diretamente a uma assistência

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prestada aos seus membros em caso de morte. Isso ilustra especificamente que o amparo

funerário ainda ocupava, no final do século XIX, um papel fundamental na estrutura das

irmandades aqui pesquisadas.

4. A resistência do bem morrer e a ruptura com a morte barroca

João Pedro da Cunha Vale, membro da mesa diretora da Irmandade do Santíssimo

Sacramento e Santana, falecido em 1872, deixou como bens a sua família, entre imóveis

e alguns escravos, uma série de dívidas cujos credores incluem até mesmo o governo

provincial. Em seu inventário (INVENTÁRIO..., 1872), dentre os diferentes conflitos de

herdeiros que tentaram escapar de legar seus débitos, algo chama atenção: a preocupação

em enterrar o corpo com dignidade e certa suntuosidade48 e cumprir e pagar com todo

zelo todas as despesas gastas com o seu funeral na maneira que foi sinalizada em

testamento pelo finado. Uma vez feito o enterramento com todas as pompas necessárias

e garantindo o bem morrer do falecido, todas as outras questões poderiam ser discutidas

e avaliadas. Aqui estão de acordo tanto os credores quanto a família, que os gastos com

o enterramento era algo essencial para além das dívidas da vida temporal.

Notamos então que o ato de enterrar os mortos ainda era de suma importância na

sociedade soterapolitana na segunda metade do século XIX e que a síntese documental

da preparação para a morte constituía-se pelo o testamento, pois este funcionava como

um tipo de prontuário organizacional dos funerais. Era o momento em que o indivíduo

transcrevia suas preocupações e todas ritualísticas que deveriam ser feitas na ocasião da

sua morte. Os rituais aqui muitas vezes eram os passaportes que irão garantir um caminho

pleno para a vida eterna. As orações, missas, velas, rezas e principalmente para onde os

bens deveriam ser destinados são elementos importantes nessas engrenagens funerárias.

Os custos com velas, missas, música, convites de enterro, mortalhas, caixão,

tochas, tecidos, galões, esquifes, talha, objetos de missa, pagamento dos serviços

sacerdotais, dentre outros, faziam do ato de enterrar, nos termos do bem morrer, algo de

alto custo. Os responsáveis por oferecer estes serviços lucravam com os enterramentos.

João José Reis afirmou que a morte e seus ritos chegavam a movimentar a economia da

Bahia no século XIX. Fazer parte de uma irmandade, além de ajudar a evitar um dos

principais temores do homem oitocentista (a morte desprecavida), reduzia também os

48 Dentre os gastos descritos em inventários, encontram-se as velas, caixão, divulgação do funeral,

pagamento a paroquia pelo acompanhamento do corpo e realização de missa de corpo presente.

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altos custos com os ritos da boa morte, funcionavam assim como uma espécie de

previdência para o bem morrer.

Adquirindo esta função, as irmandades e ordens terceiras até o início do século

XIX eram beneficiadas diretamente com os bens deixados em testamento. Um

quantitativo considerável de todo o seu patrimônio estava inserido no que poderia pensar-

se como parte de uma indústria em torno da morte.

As irmandades tinham um patrimônio acumulado basicamente por meio

de legados testamentários, presentes para os santos de devoção,

contribuições dadas no momento do ingresso na corporação, e

anuidades que todos deviam pagar. Algumas irmandades tinham casas

que alugavam, emprestavam dinheiro a juros, e cobravam por serviços

funerários e acompanhamento a enterros, o que era valorizado pelas

pompas fúnebres barrocas. (SOUZA, 2001, P. 185)

O testamento era um instrumento através do qual os indivíduos poderiam

expressar suas vontades e sentimentos, repartir seus bens, expor desejos e até mesmo

desavenças. As irmandades, além de beneficiadas com as heranças, quase sempre também

adquiriam a função de testamenteira. Isto expressava a importância social dessas

instituições, pois, ao adquirir este lugar, a irmandade zelava da confiança do indivíduo,

comprometendo-se a executar o que poderia assim ser um dos mais importantes

documentos de sua existência.

O testamento foi o meio para cada indivíduo exprimir, frequentemente

de modo muito pessoal, seus pensamentos profundos, sua fé religiosa,

seu apego às coisas, aos seres que amava, a Deus, bem como as decisões

que havia tomado para assegurar a salvação de sua alma e o repouso de

seu corpo. O testamento era, então, mais que um simples ato de direito

privado para a transmissão de sua herança, um meio para cada um

afirmar seus pensamentos profundos e suas convicções. (ARIES, 1977,

p.69)

Ao pesquisar uma série documental de aproximadamente 30 testamentos e

inventários de pessoas ligadas às associações de leigos no recorte dessa pesquisa, não

observei estas características. Além disso, fui surpreendido com uma redução

significativa das instruções acerca do bem morrer. Notei que os funerais carregavam

muito menos pompas que em outros períodos e que as irmandades apareciam como

coadjuvantes, e ouso dizer, figurantes nessas documentações. Avalio que os testamentos

sofreram drásticas reduções em comparação aos do período colonial e da primeira metade

do século XIX.

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Este foi o caso de Angélica Maria dos Santos Paranhos, viúva, falecida em 1895,

cujo nome aparece em listas de benfeitores e juízes de devoção da Irmandade da Palma

(LISTAS..., 1877). Em seu testamento (TESTAMENTO..., 1885), Angélica Maria fala

sobre a sucessão de seus inúmeros bens, que incluía mais de 15 sobrados espalhados em

diferentes freguesias (Santana, Sé, Carmo e Itapuã), quantias significativas de dinheiro,

prataria e joias. Porém, há no testamento apenas uma referência ao seu enterramento, na

qual relata que toda a prataria deveria ser destinada para a reforma, por 3 anos

consecutivos após o seu falecimento, do carneiro em que estivesse enterrada. Já em seu

inventário, sua família relata que Angélica Maria solicitou um enterro simples “sem

ostentação, vaidade, porém com toda decência à vontade de seus filhos e genros, não se

gastando mais do que um conto de réis” (INVENTÁRIO..., 1895). Ela também solicitou

a realização de 40 missas, sendo 5 pela sua alma, 5 pela alma de seu falecido marido e as

outras para seus filhos e parentes que haviam falecido.

Já João José de Azevedo Lima, coronel reformado da Guarda Nacional e membro

da mesa diretora da Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santana, falecido em 1896,

deixou como instrução para seu funeral e enterramento que este fosse “o mais humilde

possível, caixão singelo, e não mais que cinco carros” (TESTAMENTO..., 1896). A

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santana ficou responsável pelas missas de 7 e 30

dias e a Santa Casa de Misericórdia, da qual ele também era irmão, pelo enterramento no

cemitério do Campo Santo.

Não é incomum nesse período o pedido e a realização de funerais e enterros nesses

termos (“simples e sem ostentação”), e mesmo aqueles que decidiam ter maiores custos

com seus funerais, já não ocorria as mesmas pompas dos enterramentos do início do

século XIX. Este foi o caso de João Gomes Costa, comerciante, falecido em 1930, cujos

gastos com enterramento, constando em inventário (INVENTÁRIO...,1930), foram de

aproximadamente 3 contos de reis pagos em uma caixão e armação de luxo, velas e

mortuário e 50 mil réis pagos para o convite para o seu funeral publicados no Diário da

Bahia; também solicitava a realização de missas pela sua alma, o que ficou a cargo da

Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santana, já que o mesmo era membro desta.

Em muitos casos, nem mesmo ocorria um dos mais significativos ritos essenciais

ao bem morrer: a obrigação de deixar testamento para planejar com exatidão sua morte.

Porém, mesmo para estes casos, como dito anteriormente, estar inserido em uma

irmandade propiciava a economia de elevadas custas em torno dos gastos funerários. Este

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foi o caso de um membro da Confraria do Bom Jesus da Cruz, o irmão Manuel Messias

Garcia, ex tesoureiro e componente da mesa administrativa da irmandade. Faleceu no ano

de 1907 sem deixar testamento. Porém em seu inventário a sua esposa sinalizou que “nada

a declarante dispendeu com o funeral, nem com as missas porquanto se aproveitou de

todos benefícios do bem morrer a que o mesmo tinha direito nas diversas sociedades e

irmandades a que pertencia, requerendo a uma que fizesse o enterro e a outras que

mandasse celebrar as missas ordenadas pelos seus estatutos e compromissos”

(INVENTÁRIO...,1907). Isso nos revela que indivíduos, até o início do século XIX, ainda

estavam associados às irmandades por conta de sua assistência prestada em caso de morte.

Talvez por conta desse atrativo na associação a uma irmandade, estas sempre

tratavam manter os estatutos de seu compromisso ativos, mesmo em casos em que os

enterramentos diretos em seus carneiros não eram possíveis. No ano de 1894, enquanto

Manuel Messias Garcia ainda era tesoureiro da Confraria do Bom Jesus da Cruz, um dos

membros da associação, o irmão Euridir Benério de Sant’ana faleceu e sua família

solicitou, como era de direito, a utilização dos carneiros da irmandade, porém todos

estavam ocupados. A irmandade então tratou de indenizar a família do irmão no valor de

30 mil reis, valor estipulado para que fosse encontrado um outro carneiro (RECIBO DE

PAGAMENTO..., 1894).

Por vezes, quando situações como estas ocorriam, as próprias irmandades se

encarregavam da busca por locais para o enterramento. Em 1894, o falecimento de um

inocente (criança falecida com menos de 7 anos de idade) relacionado à irmandade do

Bom Jesus da Cruz, levou a confraria a alugar uma das catacumbas da ordem terceira do

boqueirão. Para isso, a irmandade pagou o valor de 20 mil réis (RECIBO DA ORDEM

3ª..., 1894).

Apesar de ainda serem um elemento importante na cultura funerária do período,

as irmandades dificilmente estavam presentes nos testamentos pesquisados do século XIX

e XX. Estes sofreram uma redução significativa, referindo-se, quase sempre, apenas à

sucessão de bens. Havia poucas informações acerca de como deveriam acontecer os

enterramentos e que quantias lhes seriam destinadas a este, porém, ao comparar os

testamentos com os inventários, observei que estes últimos continham informações muito

mais detalhadas sobre as vontades que não se relacionavam diretamente à partilha de

posses. Os inventários continham a descrição dos gastos com os funerais e enterramentos.

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Dessa maneira, ao expor estes custos, a família continuamente aparecia nestes

documentos relatando pedidos deixados oralmente pelo defunto acerca dessas instruções.

Philippe Ariès (1977) já havia observado este fenômeno a partir do século XVIII,

ao identificar que os testamentos, a partir daquele período, sofreram uma perda

considerável de sua importância, foram reduzidos juridicamente à sucessão de bens e

perderam progressivamente o caráter exposto no início desse capítulo. Assim discorre:

Na segunda metade do século XVIII, uma mudança considerável

interveio na redação dos testamentos. Pode-se admitir que essa

mudança foi generalizada em todo o Ocidente Cristão, protestante ou

católico. As cláusulas piedosas, as escolhas de sepultura, as instituições

de missas e serviços religiosos desapareceram, tendo sido o testamento

reduzido ao que é hoje. (ARIES, 1977, p.71)

Philippe Ariès teoriza que “o testador separou suas vontades concernentes à

transmissão de sua fortuna daquelas inspiradas por sua sensibilidade, devoção e afeições”

(ARIES, 1977, p.71). Sendo assim, compreende que a partir do século XIX, o testamento

sofreu estas alterações, pois a família acabou tornando-se um núcleo de confiança. Os

desejos sobre a quantidade de missas, serviços funerários e rituais do bem morrer

passaram a ser comunicados oralmente à família, que adquiriu esta função social na

manutenção da boa morte.

Noto assim que parte do que se pode observar nos testamentos e inventários, a

partir da segunda do século XIX, sustenta o que foi teorizado por Ariès ao tratar da Europa

do século XVIII. A família, de fato, está mais presente e assume em partes a função de

reveladora das vontades e desejos do moribundo sobre o seu enterramento e funeral,

substituindo muitas vezes as longas descrições sobre estas vontades nos testamentos do

início do século.

Desse modo, dois fenômenos podem ser observados na análise dos testamentos

do período: a família passou a assumir o papel de testamenteira e os ritos fúnebres

perderam progressivamente o seu caráter barroco. As irmandades, apesar de ainda

estarem inseridas em parte da assistência funeral, perderam espaço com esta mudança,

afetando o patrimônio destas instituições. Diminuiram as doações a estas após a morte e

reduziu-se a renda obtida com os custos destinados aos enterramentos, o que muitas vezes

estava sobre tutela dessas associações. Afinal, muitas irmandades possuíam carneiros,

catacumbas e jazidos, além de oferecerem as missas, velas e a realização de rituais em

seus templos.

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5. Morte: entre secularização e higienização

Michel Vovelle (1991) analisa que parte dessas mudanças nos testamentos se

associava a um processo de laicização do morrer, acompanhado de uma progressiva

redução da influência da Igreja no bem-estar social, a este fenômeno, entende como um

dessacralização que acompanhou toda a Idade Moderna. Apesar de acreditar que o

conceito de dessacralização da morte não seja adequado para analisar a sociedade baiana

do final do século XIX e início do século XX, ocorreu, de fato, certo processo de

secularização da morte e dos modos de como os sujeitos realizavam os enterramentos.

Parte desse processo esteve diretamente ligado a um projeto de higienização dos

espaços urbanos e dos costumes da sociedade brasileira. Este tomava proporções cada

vez maiores a partir da segunda metade do século XIX. O modelo civilizatório aos moldes

europeus, especialmente francês, inspirava estes movimentos e colocava o saber médico

no cerne acadêmico e pedagógico desse processo.

Os saberes médicos e a propagação de uma pedagogia higienista contrastavam

com as vivências da população, sobretudo aos enterramentos e ritos funerários. Os

médicos condenavam a proximidade entre vivos e mortos, especialmente no que dizia

respeito aos enterramentos realizados dentro das igrejas, aos longos cortejos fúnebres e à

localização dos cemitérios dentro dos perímetros urbanos. João José Reis, assim analisa:

Os médicos viam os enterros nas igrejas por uma ótica radicalmente

diferente. Para eles, a decomposição de cadáveres produzia gases que

poluíam o ar, contaminavam os vivos, causavam doenças e epidemias.

Os mortos representavam um sério problema de saúde pública. Os

velórios, os cortejos fúnebres e outros usos funerários seriam focos de

doenças, só mantidos pela resistência de uma mentalidade atrasada e

supersticiosa, que não combinava com os ideais civilizatórios da nação

que se formava. Uma organização civilizada do espaço urbano requeria

que a morte fosse higienizada, sobretudo que os mortos fossem

expulsos de entre os vivos e segregados em cemitérios extramuros.

(REIS 2012, p.247)

No final do século XVII e início do século XVIII (MARTINS, 2006), tentando

reduzir significativamente os índices de mortalidade da população, o olhar dos médicos

europeus voltou-se para uma tentativa de redução de doenças e infecções em hospitais e

prisões49 e no avanço das condições sanitárias da população nas cidades. Acreditava-se

que a principal razão da contaminação da população por doenças graves se dava através

49Incluíam-se aqui também as escolas, principalmente as internas, que não deveriam ser construídas

próximas aos cemitérios e igrejas.

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do contato com um “ar impuro”, infectado, entre outras coisas, por partículas de matérias

em decomposição chamadas de “miasmas”.

Supunha-se que os miasmas se originavam a partir de exalações de

pessoas e animais doentes, emanações dos pântanos, de dejetos e

substâncias em decomposição. Sua presença era detectada através do

mau cheiro. Acreditava-se que, ao impedir a propagação dos maus

odores, seria possível prevenir ou evitar as epidemias. (MARTINS,

2006 p.3)

A teoria dos miasmas levou a uma série de medidas tomadas em uma aliança

higiênica entre médicos e diferentes governos europeus. Dentre estas medidas, era

necessário separar os vivos das matérias em decomposição, em especial dos mortos.

Dessa maneira, “os cemitérios que ficavam ao lado das igrejas foram sendo desativados,

sendo criados outros em lugares mais distantes” (MARTINS, p.4).

Na Bahia oitocentista, a medicina se tornou a base de saber dentro do projeto

civilizador, constituindo-se como a matriz pensadora de uma reforma civilizatória dos

costumes ao molde europeu. Esta proposta afetava diferentes aspectos das vivências

locais, mas, assim como na Europa, principalmente as relações da população com a morte.

João José Reis (2012, p.248) afirma que “os médicos pretendiam ver aqui repetidas as

soluções europeias para o problema dos enterros nas igrejas”, neste sentido, cresciam as

associações e jornais médicos que circulavam pela sociedade brasileira defendendo a

higienização das cidades, dos hábitos e até mesmo da forma de como os indivíduos se

relacionavam com o sagrado.

Estas críticas sinalizavam o perigo exalado pelas ruas e praças da cidade e que a

igreja se constituía como um ambiente insalubre, “perigoso” para os fiéis, especialmente

pela manhã, pois eram contaminadas constantemente pelos miasmas produzidos pelos

cadáveres enterrados em seu subsolo. Cresciam relatos de casos em que indivíduos

desmaiavam ou ficavam doentes pelo simples contato com o ambiente dos templos

religiosos. Criava-se um clima de terror e assombração, que segundo João José Reis,

funcionavam como “um recurso pedagógico” (2012, p.259).

Independente de onde se localizassem, as igrejas eram vistas como

abrigo do mal miasmático. Mesmo as sepulturas da igreja de Santo

Antônio, situada sobre um morro carioca, eram tidas como daninhas

“porque depositando-se nelas grande número de cadáveres, deles

provém grande quantidade de emanações, as quais se condensam em

uma nuvem mais grave que o ar, a qual durante a noite, e em tempo

calmo, se precipita sobre a Cidade”. Aqui a comissão contrariava a ideia

de que a noite os miasmas ficavam presos no interior da igreja e que,

sendo mais fria a atmosfera noturna, mais difícil se tornava ação deles.

A ciência andava confusa. Mas a imagem de ataques noturnos, sobre a

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cidade adormecida e indefesa, criava um clima de assombração. (REIS,

2012, p.259)

Apesar das diferentes tentativas de legitimar estas ideias higienistas na Bahia

imperial, os médicos constantemente encontravam dificuldade de colocar em exercício

estes conjuntos de práticas higiênicas. Muitas vezes, o discurso médico preventivo não

encontrava eco na sociedade e nem mesmo nas ações governamentais. Onildo Reis David

demonstrou que, em meados do século XIX, os médicos tinham que “lidar com a

obstinação do governo e com a desconfiança do povo que muitas vezes preferia acreditar

no poder preventivo e de cura da religião” (DAVID, 1993, p.79).

Porém, o que pode ser tratado como marco fatídico na ruptura dos costumes na

sociedade baiana foi o grande surto de cólera entre os anos de 1855 e 1856. Com o grande

número de mortos por conta da doença, progressivamente os poderes e a própria

população precisavam tomar ações contra o contágio crescente da epidemia. De causas

até então desconhecidas, Onildo Reis David analisou que os médicos atribuíam as razões

da doença aos famosos miasmas das matérias em decomposição, principalmente de

cadáveres contaminados. Já a população estava certa que o contágio se dava além disso,

por todo e qualquer contato com alguém doente por este motivo, o medo da infecção

gerou uma verdadeira endemia histérica no período.

Os médicos, principalmente após o grande surto de cólera, acreditavam que era

fundamental uma mudança nas atitudes de enterrar e realizar os funerais; a morte

precisava ser higienizada, asséptica e distante dos vivos, visto que se tornou uma fonte

eminente para quase todos os males patológicos, segundo concepção da época. Estes

pressionavam o poder público afim de impor medidas que buscassem reformar tais

costumes em nome de uma melhoria da saúde da população. João José Reis demonstrou

que desde início do século cresciam tentativas de impor leis que buscavam adequar os

costumes baianos aos europeus, marcando uma série de proibições que circundavam

desde as formas de festejar até a relação dos indivíduos com a morte.

5.1 A medicina do final do século XIX e os miasmas.

Na segunda metade do século XIX, os médicos no Brasil ainda buscavam

dogmatizar a ciência médica, sobrepondo-a às diferentes instâncias de poder, impondo

um conjunto de regras à população e negando uma série de práticas consideradas como

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impeditivas ao progresso do país. Os jornais e periódicos médicos ilustravam a

importância do saber médico e a participação destes na construção de uma cidade

civilizada e sem doenças. Em um artigo de 1870 da Gazeta Médica da Bahia, ao discutir

a preocupação com a possibilidade de propagação da febre amarela, ressaltava-se a

importância dos médicos na defesa dos interesses públicos:

Quando o jornalismo politico, incompetente para a discussão de

questões medicas que afectam diretamente interesses vitaes da

população, procura com os falsos argumento de uma logica desvairada

pela paixão e pelo interesse, sancionar princípios heterodoxos para

justificar erros administrativos; quando sob o pretexto de garantir a

liberdade do commercio se arriscam as vidas de uma população inteira

ao perigo da invasão de uma epidemia; quando as autoridades

administrativas, sem o indispensável critério scientifico, prescindindo

dos recursos superiores d’aquelles que são votados a estudos

profissionais, resolvem ex cathedra os pontos mais delicados da

sciencia, e dirigem segundo o acaso da ignorância as medidas que

devem garantir-nos d’uma devastação cruenta: a imprensa medica não

pode por mais tempo conserva-se muda, deve emitir seu juízo

consciencioso, embora não compreendam muitos o alcance benéfico de

suas vistas, e procurem desvirtuar a abnegação de seus princípios.

(GAZETA MÉDICA DA BAHIA, 1870)

Durante todo o artigo, assinado por A.P, clamava-se pelo imediato cumprimento

de ações higienistas nas cidades e salientava-se que os médicos há muito “já haviam

despertado os guarda de saúde publica, apontando-lhes o inimigo que espreitava, e

procurava talvez aproximar-se”. No centro das causas para a contaminação da febre

amarela estariam os miasmas.

A pesquisa demonstrou que, na segunda metade do século XIX, as principais

teorias médicas em vigor na Bahia ainda apontavam para os miasmas adquiridos pelo ar

como causas para a contaminação de diferentes doenças. Somente na Gazeta Médica da

Bahia, os médicos atribuíam aos miasmas as causas de doenças como febre tifoide (1869

e 1871), febre amarela (1870), cholera morubus (1870) e a malária50 (1872); além disso

estes miasmas funcionavam como causador de uma série de “mal-estares” na população

como, tonturas, febre e indisposição.

Cada doença tinha o seu miasma causador, sendo normalmente atribuído à matéria

em decomposição, quer seja em cemitérios, pântanos, lagos, rios ou açougues. Um

médico, identificado como S.L, publicou um artigo em 1876 no qual criticava o uso da

teoria dos miasmas pelos médicos baianos, salientando que estes atribuíam aos miasmas

qualquer causa desconhecida de uma doença. Fazendo uma analogia a “um fantasma que

50 Identificada aqui como “febre palustre”.

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povoava a atmosfera”, o autor afirmava que era “como se estes miasmas nos cercassem

ao modo das almas dos condenados nos circulos inferiores do inferno de Dante”

(GAZETA MÉDICA DA BAHIA, 1876).

Apesar das críticas, os miasmas constituíam-se na periodicidade dessa pesquisa

como a razão apontada pela medicina baiana para a causa da maior parte de doenças na

região. Em 1879, o médico Silva Araujo, buscando soluções para evitar a contaminação

de diversos pacientes e funcionários do Asylo dos Expostos, pediu às autoridades que

tomassem providências a fim de higienizar as ruas e eliminar os pântanos artificiais

formados na cidade. Estes contribuíam para a formação de miasmas palustres,

responsáveis pela contaminação através do ar de uma série de doenças (GAZETA

MÉDICA DA BAHIA, 1879). O mesmo autor chega a propor que se plantassem mais

arvores para evitar os miasmas transmitidos pelo ar:

Insisto principalmente na plantação de eucalyptos. Senão já, mais tarde

será certo o resultado, quando, crescidos e cerrados, interpuserem eles

numa barreira de verdura à transposição do miasma, acarretado pelos

ventos. (GAZETA MÉDICA DA BAHIA, 1879)

Até mesmo a doença de beribéri, na qual hoje sabe-se que é causada pela ausência

de vitamina B1 no corpo, era atribuída aos miasmas transmitidos pelo ar, especialmente

em regiões pantanosas que se formavam no inverno (período de maior incidência da

doença). Os médicos ainda teorizavam os vários estágios de contaminação através destes

miasmas:

Sobre a pathogenia do beribéri reina ainda grande obscuridade apezar

dos esforços empregados para esclarece-la. O principio morbífico que

dá logar ao desenvolvimento desta moléstia me parece residir na

atmosfera, e ser de origem pantanosa; porque ella só nos aparece na

época invernosa, quando os ventos que banham a cidade tem

atravessado os grandes pântanos do rio Bacanga, e nos logares húmidos,

cujos habitantes se acham sob a influencia das emanações palustres. O

principio miasmático que origina a moléstia, existindo no ar

atmosféricos, e sendo absorvido principalmente pelos órgãos da

respiração, vai actuar sobre o sangue, que alterado por uma maneira

desconhecida na sua essência, exerce uma influencia morbífica sobre o

systema nervoso, que preside as funccções de movimento, sentimento,

circulação, respiração, digestão e anexas; dando logar ao quadro de

symptomas que revelam as três formas da moléstia. (GAZETA

MÉDICA DA BAHIA, 1884)

A teoria dos miasmas foi além da literatura médica e preenchia os principais

jornais da cidade com notícias que demonstravam essencialmente o medo da

contaminação, principalmente por conta de diferentes surtos endêmicos que acediam na

sociedade baiana. O jornal de notícia alertava em 1892 (9 de fev 1892) que a falta de

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limpeza de um chafariz na rua do moinho no Tororó estava produzindo miasmas causando

febre em diversos moradores. Já em junho do mesmo ano, pedia-se que as autoridades

fechassem os canos abertos no beco dos Tanoeiros, “do qual depreendem-se miasmas

perniciosos ao estado sanitário desta terra, que já não é muito satisfactório” (JORNAL

DE NOTICIA, 25 de junho de 1892). Em 1898, denunciava-se o abandono “a que a

hygiene entregou o bairro da Penha, perseguido por febres, varíola e até a febre amarela”,

em suas ruas exibiam-se “poças d’agua infectas que vomitam miasmas no ar”. Já em 27

de agosto denunciava-se que um esgoto na Barroquinha formava miasmas que estavam

deixando doentes os empregados e passageiros dos “trilhos centraes” da região (27 de

agosto de 1898).

Outros exemplos de contaminação miasmáticas apareciam nos jornais da cidade

aterrorizando a população e servindo de suporte à uma pedagogia higienista. O jornal de

notícias de 12 de setembro de 1898 exibia em sua capa um alerta em letras garrafais:

“leiam aqueles que padecem de febre”, assim dizia:

P..., mulher de 26 annos de idade, havia cinco anos que se via devorada

pela febre. Apezar de ser moça ainda, ella tinha o aspecto de decrepidez,

a pelle côr de terra, os olhos mortos, as pernas inchadas, o ventre tão

grande que parecia estar para cada hora.

O baço estava tão grande que descia até ao ventre, como dizia o medico

d’ella. Desde que se casou, há seis anos, ella mora em uma casa, na

apparencia, bem situada, à meia costa de uma collina, mas que domina

a ponta de um pântano. Ora, este pântano que depende um moinho, fica

seco no verão pela metade, e em consequência desprende miasmas que

causaram a febre n’esta infeliz mulher.” (JORNAL DE NOTICIA, 12

de setembro de 1898)

Aliado a isto, as empresas lotavam os jornais com anúncios de produtos que

prometiam reduzir os efeitos dos miasmas nos diferentes ambientes. A lógica era que uma

vez que os miasmas eram capazes de serem identificados e propagados através do mau

cheiro, era possível encontrar o foco da contaminação e estes produtos combateriam os

mesmos e impediriam a propagação das mais variadas doenças. A sociedade baiana do

final do século XIX permanecia aterrorizada com o “fantasma dos miasmas”.

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Figura 4: Anúncio de produtos

Fonte: Jornal Diário de Notícia, 1883

5.2 Legislação, higienização e irmandades.

Ao analisar as práticas higienistas da primeira metade do século XIX, João José

Reis observou que a medicalização da morte e a higienização dos cemitérios ocupavam

lugar central nos discursos médicos-sanitários. Porém, na análise do recorte dessa

pesquisa foi observado que, apesar dos miasmas ainda serem objetos de temores da

população e das autoridades médicas e administrativas, houve, no final do século XIX,

uma redução considerável das queixas e reclamações em jornais acerca dos miasmas

produzidos a partir dos cemitérios e igrejas.

Apesar disso, a pedagogia médico-higienista continuava a ratificar os perigos dos

cemitérios, principalmente com as novas epidemias que assustavam a Bahia, dentre elas:

a Coreia e a Febre Amarela. Sabe-se hoje que a Coreia não é exatamente uma epidemia,

mas um sintoma neurológico que causa movimentos musculares involuntários, eles

podem ser associados à um caráter genético (doença de Huntington) ou à febre reumática.

Um relatório em 1883, publicado na Gazeta Médica da Bahia, dirigido ao presidente da

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Câmara Municipal, avaliava o crescimento da Coreia na península de Itapagipe.

Concluiu-se que não era possível atribuir causas miasmáticas à doença, porém os médicos

sinalizaram à Câmara medidas higiênicas necessárias à região, dentre elas:

O cemitério da Massaranduba51 está longe de oferecer as condições

hygienicas mais elementares nesse gênero de instituições; além disso,

não só n’este cemitério como em todos os outros deve ser

expressamente prohibido que sob pretexto de aproveitar terreno façam-

se, como nós lá vimos, excavações ou exhumarações nas áreas que

serviram em epochas epidêmicas, e de gravíssimas epidemias, como o

cholera murbus. (GAZETA MÉDICA DA BAHIA, 1883)

Já na edição de maio de 1885 do mesmo periódico, tem lugar de destaque uma

análise médica do estado sanitário da cidade perante os surtos crescentes de febre amarela,

malária, sarampo e a disenteria. O autor sinaliza que as medidas sanitárias divulgadas

pelos principais veículos de imprensa da cidade foram tomadas tardiamente pelas

autoridades e que, além do asseio da cidade, era necessário salientar que tudo que havia

sido de posse ou tocado pelo doente oferecia sérios riscos à saúde da população dentre

estes elementos, o corpo do defunto contaminado:

As medidas sanitárias até agora divulgadas pela imprensa, à exceção da

abertura do hospital de Mont-Serrat, creio que não foram ainda postas

em plena execução. Ellas são, além d’isso, de pouca importância como

meios preventivos de maior difusão da moléstia, uma que se limitam a

desinfectar as casas onde se derem casos de febre amarella, e a

promover o aceio da cidade; sabemos que os aposentos ocupados pelos

doentes são susceptíveis de propagar o mal, mas não o são menos os

objetos que foram de seu uso pessoal, e também os próprios cadáveres

no seu transito até o cemitério. (GAZETA MÉDICA DA BAHIA,

1884)

Começaram a surgir no final do século XIX veementes críticas, no âmbito do

próprio discurso clínico, aos métodos utilizados pelos médicos higienistas, que

solicitavam mudanças e rupturas sociais sem conclusões cientificas para isso. Uma carta

médica divulgada pelo professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Domingos

Freire Junior, afirmava que haveria grande possibilidade de a febre amarela ser

transmitida também através dos cemitérios. O pesquisador havia feito a análise de um

cadáver contaminado com a doença, no qual observou que os “micróbios” de seu corpo

em decomposição eram idênticos ao “sangue, urina e vomito dos pacientes doentes”,

sendo assim concluído, deveriam os corpos serem preferencialmente cremados e os

51 A situação deste cemitério se agravou tanto que a diretoria de Hygiene Municipal chegou a ordenar a

interdição do cemitério em 1905.

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cemitérios afastados ainda mais dos centros urbanos. Um artigo em resposta à carta do

professor Freire, publicado na Gazeta Médica da Bahia no ano de 1883, nos fornece uma

rica compreensão sobre estas críticas dentro do próprio discurso médico:

Parecem-nos, pois incompleta a observação, e pouco logicas as

conclusões contidas na carta a que nos referimos, e, além d’isso,

extemporânea, prematura, e fora do seu logar a divulgação de um

trabalho scientifico apenas começado, e cuja importância poderá ser

invalidada pelas investigações ulteriores.

Assumptos de tão alto quilate scientifico não são próprios para

alimentar a curiosidade de leitores incompetentes e ávidos de novidades

que tanto mais admiram quanto menos entendem; e muito menos deve

eles ter curso entre leigos na matéria, quando encerrem conclusões,

legitimas ou não, que agitem o espirito publico diante da perspectiva de

reformas de grande importância econômica e social, cuja necessidade

não esteja ainda demonstrada. (GAZETA MÉDICA DA BAHIA, 1883)

Apesar de o discurso médico não ser uniforme quanto às causas de muitas

epidemias, o processo de medicalização da morte se consolidou na segunda metade do

século XIX. Isso em primeira instância poderia ser demonstrado pelas sucessivas

construções de cemitérios no período. A edição de 1903 do Almanaque do Estado da

Bahia demonstrou que Salvador tinha 6 cemitérios no início do século XX, sendo 5 deles

construídos no século XIX: O Campo Santo, o cemitério Bom Jesus da Massaranduba,

Cemitério de Brotas, Cemitério Inglês e o Cemitério dos Estrangeiros. Já o cemitério

Quinta dos Lázaros foi transformado em cemitério público em 1850 por ordem do então

presidente da província Dr. Francisco Gonçalves Martins, sendo este o local onde a

maioria das irmandades da cidade possuíam carneiros (ALMANAK, 1903).

Em segunda instância, pode ser demonstrado pelas exigências das sucessivas leis

que, desde o início do século, procuravam tornar asséptica a relação entre vivos e

mortos52. Só no recorte dessa pesquisa percebemos que muitas destas leis continuavam

em vigor e outras adquiriam novas roupagens, sendo ainda mais rigorosas quantos aos

enterramentos nas áreas urbanas. Foi o caso do artigo 22 de uma lei aprovada no dia 5 de

abril de 1877 pela assembleia provincial da Bahia, no qual dizia em sua redação:

Art 22: Fica prohibido absolutamente o enterramento de cadáveres no

recinto das egrejas, desde que se estabeleçam cemitérios no município,

o que terá logar seis mezes depois da publicação da presente postura.

ANNAES, abril 1877).

52 João José Reis (2012) destaca a lei provincial nº17 de 1836, que foi a grande responsável pela cemiterada.

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Com a sucessivas leis proibindo os enterramentos nas igrejas e nos perímetros

urbanos, muitas irmandades, afim de continuar mantendo o seu caráter de assistência

funeral, buscaram angariar fundos para construção de cemitérios ou para a compra de

carneiros fixos em cemitérios já existentes. Assim fez a Irmandade do Santíssimo

Sacramento e Santana que, desde a metade do século, havia construído um cemitério ao

lado da igreja e comprado carneiros na Quinta dos Lázaros.

Já a Confraria do bom Jesus da Cruz havia solicitado, desde 1863, recursos

financeiros ao governo provincial para auxiliar na construção de um cemitério próprio

(REQUISIÇÃO..., 1863). Em 1864, a irmandade, sem resposta e com o objetivo de ainda

angariar tal recurso, enviou uma carta ao presidente da província, utilizando como

argumentos de convencimento, o oferecimento do cargo de mordomo da irmandade e.

consequentemente, a possibilidade de elencar do gozo dos benefícios pós vida temporal.

Tendo V.Exª Antonio Coelho [...] aceitar o lugar de Mordomo de

Capella da Irmandade do Senhor Bom-Jesus da Cruz [...] ella a construir

os carneiros que tem de servir para sepultura de todos os seus irmãos

que faleceram, e sendo mingoados os seos recuros para provar a efeito

tão necessária obra, vou em nome do presidente da Irmandade pedir a

valiosa quadjução de Vossa Exª para tal fim. Ficando V. Exª certo que

por esta e outras obras meritórias praticar por V.Exº na terra, será

compensado em inegáveis bens no Ceo (OFICIO..., 1864).

Em verdade, as irmandades requisitavam aos poderes públicos para que

continuassem com os privilégios da assistência funeral, tanto que muitas vezes a

Assembleia Provincial cedia recursos através da concessão de loterias para as irmandades

que assim solicitassem, este foi o caso da Irmandade de Nossa Senhora da Palma, que

havia aproveitado das suas loterias para a compra de carneiros no cemitério Quinta dos

Lázaros.

Já a Santa Casa de Misericórdia foi além e, em 5 de junho de 1877, requereu ao

governo provincial que por 50 anos recebesse o privilégio da condução dos cadáveres aos

cemitérios e do fornecimento dos objetos relativos ao serviço dos enterros.

Art 1: Fica o presidente da província autorizado a conceder à santa casa

de misericórdia ou a qualquer instituição pia, o privilegio de incumbir-

se da condução dos cadáveres aos cemitérios e do serviço de pompas

fúnebres dessa cidade. (ANNAES, junho de 1877)

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A lei foi rejeitada, principalmente por pressão dos comerciantes e de outras

irmandades que se sentiriam prejudicadas caso houvesse a aprovação desta legislação,

mas ampliaram-se as discussões acerca dos enterramentos e custos com os mesmos. Uma

vez que era exigida uma série de regras aos enterramentos e funerais, qual suporte era

oferecido para a realização destes? Até mesmo fora da cidade de Salvador uma série de

medidas intituladas “medidas hygienicas preventivas, cemitérios e enterramentos”,

elaborada pela assembleia provincial da Bahia, tornava as regras para os funerais e

enterramentos ainda mais rígidas, abrangendo os municípios de Valença e São Felix,

previa altas multas e até mesmo prisões para aqueles que desobedecessem tais leis.

Este novo conjunto de leis, seguindo o modelo adotado em Salvador, previa, entre

outras coisas, punições para quem abandonasse cadáveres e ossadas nos adros das

igrejas53; que todo cadáver humano deveria ser enterrado em cemitérios públicos de cada

município ou particulares pertencentes às irmandade; definiam-se também as medidas das

sepulturas aplicando-se pena sobre quem descumprisse tais medidas e estabelecia que

nenhum carneiro ou sepultura poderiam ser abertos antes de passados dois anos da

inumação. Além disso, impunham-se regras para os funerais e sepultamento ao pôr que:

Art.31: Nenhum corpo será levado à sepultura sinão em caixão fechado

de todos os lados facultando-se aos menores de 7 annos tampas de vidro

nos mesmos caixões, porem hermeticamente fechados; assim como não

será sepultado sinão 24 horas depois da morte.

Exceptuam-se

1. Em circunstancias anormais como peste etc.; em que será o

enterramento feito conforme exigerem as medidas para salubridade

publica, a juízo dos facultativos ou aturoridade policial.

Os contraventores desse artigo pagarão 10$000 de multa ou 5 dias de

prisão.qualquer cadáver humano será sepultados (ANNAES, 1883)

As despesas das irmandades com a assistência funeral acabavam crescendo neste

contexto pois, além dos custos com a construção dos carneiros, também ficavam estas

responsáveis pela manutenção, limpeza e tapamento dos mesmos. Muitas vezes, quando

a manutenção não ocorria, as autoridades higienistas notificavam as irmandades para

realizarem a limpeza do espaço, afim de evitar os miasmas na região em que o cemitério

estava localizado (NOTIFICAÇÃO..., 1893).

53 A lei de 1828 já proibia tais práticas.

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O livro de receitas e recibos das 3 irmandades aqui estudadas, comparativamente,

demonstram que uma das principais despesas das irmandades residia sobre sua assistência

funeral, uma vez que, além dos custos com manutenção e “asseiamento”54 [sic] dos

carneiros, havia as despesas com missas, materiais funerários e caixões nos termos da

morte higienizada. Se por um lado, reduziam-se os custos com os funerais excessivos ao

estilo barroco, gastava-se mais com as exigências do processo de medicalização da morte

que ia ganhando corpo na segunda metade do século.

5.3 A secularização e a República

Como sinalizei no segundo capítulo dessa Dissertação, parte da documentação

leva a crer que as irmandades estariam em um projeto higiênico pensado para a sociedade

oitocentista. Dessa maneira, os ritos de uma morte higienizada estariam sob a tutela dessas

instituições, tanto que a Assembleia Provincial da Bahia conferia constantemente

recursos para que estas construíssem mais carneiros e pudessem dar manutenção aos seus

cemitérios.

Porém, a proclamação da República, em 1889, expressou legislativamente um

processo de secularização da sociedade que já havia se construindo desde o início do

século. Exemplifica bem este processo uma discussão na Assembleia Legislativa em

1883, a qual pretendia tornar obrigatória a educação pública primária. Nesta ocasião, o

Vigário Bellarmino, na qualidade de deputado, defendia também a obrigatoriedade do

ensino religioso que havia sido rejeitada em votação. Ao final do seu discurso, o Vigário

sinaliza para um processo contínuo de secularização da sociedade baiana:

Nos sabemos sr Presidente, que por um capricho mesquinho e de

vaidade do poder se estão acabando com as ordens religiosas, quer de

um, quer de outro sexo, d’onde nenhum prejuízo vinha ao estado, pelo

contrario eram relevantes os serviços prestados porque d’ellas partiam

instrucção e caridade para o povo.

Eu confesso que muito devo a uma d’essas ordens, a ordem franciscana,

onde recebi parte da instrucção secundaria.

Assim observamos que perpetuando-se esse capricho, estabelece-se o

casamento civil, secularisam-se os cemitérios. Amesquinham-se as

côngruas descoadjutores e dos parochos, afinal os professores das

escolas primarias devem primar pela nenhuma obrigação do ensino

religioso, e por essa forma sem uma séria reflexão tudo se vae

dispensando com relação à religião do Estado, a bel-prazer dos livres

pensadores, com o fim porem único de destruir a religião de Jesus

54 Termo encontrado na documentação, como em NOTIFICAÇÃO, 1894

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Cristo, fora da qual não há consolação, não há felicidade, não há

salvação possível. (ANNAES, 1883)

Em 1889 o Brasil vivia um período de fortes transições políticas. O Diário da

Bahia expunha os esforços do governo, recém instalado, em montar sua cúpula de

lideranças e implantar as reformas julgadas necessárias. Buscando dispor de um quadro

com ministros que agradassem tanto aos membros do partido liberal quanto àqueles do

partido conservador, uma das principais escolhas havia sido o Visconde de Taunnay que

recusou o cargo “dando como rasão suas opiniões sobre casamento civil, liberdade de

cultos e a secularização dos cemitérios” (DIARIO DA BAHIA, 1889).

Neste jornal, naquele mesmo ano, uma manchete clamava por mudanças

republicanas, defendendo o que chamava de a “imprescindível reforma do Artigo 5º55 da

constituição de 1824”; concluía afirmando que “o domínio da egreja romana sobre nós é

a morte”. Aqui está clara uma associação entre progresso e a secularização da sociedade:

Venham, pois, em vez do que hoje nos atraza, o casamento civil, o

registro civil, a secularização dos cemitérios, a liberdade de cultos em

toda a sua plenitude, sem o óbice de uma egreja oficial privilegiada, e

sem duvida o estado moral de nosso paiz há de melhorar

consideravelmente.

Com essas medidas, já tão reclamadas pelo paiz e já tão indeclináveis,

o patriotismo renascerá, a immigração affluirá para o Brazil, a riqueza

publica se consolidará e poderemos então ser contados entre os povos

que tem atingido à maior civilização. (DIARIO DA BAHIA, 12 de

dezembro de 1889)

A defesa da República aparecia no periódico sucessivamente, clamando pela

secularização das instituições e defendendo uma imagem de renovação e progresso no

governo provisório de Deodoro da Fonseca. Assim fez um artigo intitulado “Coisas

Públicas” de 16 de dezembro de 1889, todo escrito como um clamor à aprovação da

liberdade de culto e da secularização dos cemitérios e do fim do padroado régio. Parece

que a Igreja perdia progressivamente sua ingerência sobre o estado e sobre etapas cruciais

da vida da população, e a morte estava no centro dessas mudanças.

Já o início do século XX foi marcado por uma das maiores descobertas para a

medicina no Brasil: o fato de que a malária e a febre amarela eram transmitidas por um

55 Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo. (CONSTITUIÇÃO, 1824)

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mosquito e não por miasmas no ar. Com isso, estabeleceu-se uma ruptura definitiva com

a teoria dos miasmas que como demonstrado, já encontrava críticas desde o final do

século XIX. A Gazeta Médica da Bahia expunha a nova descoberta em sua publicação56,

explicitando cada detalhe das formas de contaminação pelos mosquitos e suas larvas.

1. Esta hoje provado que os mosquitos ou pernilongos transmitem a

febre amarella. O mosquito morde o doente de febre amarella; e depois

de alguns dias mordendo outra pessoa, transmite a esta a moléstia. Há

muitas qualidades de mosquitos, mas nem todos transmitem a febre

amarella, o que transmite logo se conhece, porque é inteiramente

rajado; ele tem na parte superior do corpo duas listras prateadas em

forma de meia e as pernas e a barriga também são riscada de anneis

brancos.

2. A febre amarella não pega de pessoa a pessoa, o que já era sabido

desde muito tempo. Também não pega pelas roupas sujas e mais objetos

do uso do doentes; ella pega somente por intermédio do mosquito ou

pernilongo rajado; Este é o único modo de transmissão da febre

amarela.(GAZETA MEDICA DA BAHIA, 1902)

O Correio do Brasil noticiou o fato em 1904 em uma matéria de capa intitulada

“notas scientificas”. Pouco a pouco, a teoria médica dos miasmas foi entrando em desuso,

a medicina ganhava corpo cientifico e metodologia para a descoberta e busca de

explicações cientificas para as doenças e epidemias no Brasil. Nesse processo, o cemitério

foi perdendo o protagonismo de grande vilão dentro do higienismo. Porém, a maneira dos

sujeitos neste período encararem o destino derradeiro não era a mesma de antes. A morte

havia passado por uma transformação: o indivíduo, a partir do final do século XIX, foi

processualmente perdendo o controle sobre a sua morte. Acima de qualquer desejo

deixado por um sujeito, estava a necessidade inquestionável de uma morte asséptica e nos

termos do higienismo.

Dessa maneira, os mortos afastaram-se dos vivos. As notícias e contos

relembravam isto ou expressando os temores da morte e do cemitério, ou relembrando a

maneira de se relacionar com os mortos de outrora. É o exemplo do conto publicado no

Correio do Brasil em 1904, no qual, ao expressar os sentimentos de assombração e medo

dos mortos, sobressaía-se uma interessante comparação à outrora em que a morte estava

mais próxima dos vivos: “nesse tempo os cemitérios não se fechavam à noite, e os mortos

eram mais confiantes nos bons sentimentos dos vivos (CORREIO, 18 de março de 1904).

56 A descoberta ocorreu no ano de 1900.

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101

O Dia de Finados, 2 de novembro, tem uma importância relevante para a análise

do contato dos sujeitos com a morte57. Os jornais dedicavam parte considerável de suas

matérias aos mortos e sua relação com a sociedade. Através dessas fontes, foi possível

perceber novos significados atribuídos à finitude da vida temporal. As atitudes dos

sujeitos em vida, além de salvaguardar uma possível salvação espiritual (para aqueles que

assim acreditavam), eram uma maneira de deixar um importante legado para aqueles que

ainda estavam vivos: a memória das atitudes daqueles que se foram era uma porção de

“infinitude” deixada por aqueles que morriam em uma sociedade em certo processo de

secularização. O Correio do Brasil no dia 2 de novembro de 1903 ilustra estas novas

concepções do morrer ao descrever a relevância do Dia de Finados em uma República

recém instalada:

Vem de longa data o habito das comemorações à memoria daqueles que

deixaram de existir no convívio dos homens: a principio, manifestação

do medo ingênuo das populações primitivas passando depois pelo

período das preces propiciatórias, é hoje essa pratica o transumpto da

admiração e do respeito aos homens notáveis desaparecidos, ao mesmo

tempo que um incitamento, para que os que existem, a seguirem os

brilhantes exemplos dados por aquelles: é a combinação feliz do

exemplo com a gratidão.

Nem outra significação pode ter esse dia. Tornado oficialmente feriado

em um paiz cuja constituição separou completamente o Estado das

praticas e dos preceitos de qualquer religião. (CORREIO, 2 de

novembro de 1903).

Dessa maneira, o próprio luto foi resignificado; perante a finitude da vida, os

indivíduos refletiam silenciosamente a dor e a saudade pela perda de alguém que se

gostava. O jornal A notícia do dia 2 de novembro de 1914 acompanhou as romarias nos

dois principais cemitérios da cidade na ocasião: Campo Santo e Quinta dos Lázaros. O

relato dos jornalistas demonstrou as novas maneiras dos indivíduos lamentarem a perda

de um ente querido:

Um bando de gente triste e muda sob o negro traje de lucto, ia passo a

passo, degrao a degrao, o pé fazendo gemer as pedras miúdas e antiga

atravessando a entrada silenciosa do cemitério. Era a gente que o bonde

despejava ao portão rustico de ferro, gente que trazia flores odorantes,

frescas, variegadas na polycromia dos matizes, rosas de Paul Neron,

crysantemos claros, violentas de outono, verbenas escarlates, lyrion

desmaiados, tudo enfeixado em bouquets e palmas enormes. Eram

flores para os mortos.

Começava a romaria piedosa ao retiro da saudade, à cidade onde

dormem os que partiram da vida. (A NOTICIA, 1914)

57 Inclusive, muitas irmandades em seus compromissos expressavam a obrigação de celebrar missas no

dia de finados. (LEV, 1916)

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Porém, o bem morrer não desapareceu completamente da mentalidade cristã na

Bahia do século XX. A forma de enterramento, apesar de não conter mais toda a pompa

inspirada no barroco do século XVIII e início do século XIX, continuava a ser alvo de

preocupação dos fiéis, que, como explicitado no início desse capítulo, ainda anunciavam

as vontades de como deveriam ser seus enterramentos e funerais. A própria estrutura do

cemitério e sua iconografia expressava que, para os fiéis, a morte ainda representava um

momento de suma importância. O mesmo artigo que descreveu os cortejos fúnebres do

dia 2 de novembro demonstrou que, para a elite local, a confecção dos jazigos e túmulos

evocava a proteção de santos e anjos na passagem para a vida eterna.

Dessa maneira, para os católicos, não houve um processo consolidado de

secularização da morte, tanto que os dois principais cemitérios continham uma capela e

um deles ainda pertencia a uma irmandade. Além disso, o próprio artigo sinaliza para uma

quantidade significativa de fiéis que assistiam às missas naquele mesmo dia:

Tanto na Quinta dos Lazaros como no Campo Santo, nas capelas dos

cemitérios resaram-se missas desde 8 horas até 11, todas assistidas por

grande número de fieis.

As irmandades, incorporadas, assitiram aos piedosos actos de religião

catholicas com grande número de fieis. (A NOTICIA, 1914)

O mesmo jornal chegou a noticiar que, no Rio de Janeiro, os bondes “não estavam

dando vencimento e um buquet de flores chegava a 50$000” (A NOTICIA, 1914) durante

o feriado do dia 2 de novembro. Normalmente, nesse período, se melhoravam as

instalações dos cemitérios para o recebimento dos cortejos fúnebres, higienizando os

carneiros, pintando e fazendo obras de paisagismo. Porém, com o descrédito da teoria dos

miasmas, cada vez menos os poderes públicos concentravam-se na manutenção dos

cemitérios que chegavam ao estado de abandono.

No dia 25 de novembro de 1915, denunciava o jornal A notícia, em um artigo

intitulado “impressões de um repórter d’a noticia”, o estado de abandono em que se

encontrava o cemitério Quinta dos Lázaros, assim relata o repórter:

Hontem, às 16 horas fomos em visita ao cemitério da Quinta dos

Lazaros.

Ao entrando no portão principal deparamos logo com [...] quarteirão de

carneiros não caiados com falta de telhas, e, em estado de completo

abandono.

Na capella dos carneiros de N.S. da Conceição da Praia, que é bastante

poética, existe um mausoleo que estando com a pedra de um dos lados

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cahida deixa em plena exposição, à mercê do sol e da chuva, os ossos

nelle depositados.

Carneiros há, que são verdadeiros ninhos de micróbios de todas as

espécies, donde exhalam fétidos insuportáveis de carne humana em

estado de putrefação.

As covas além de desalinhadas são cheias de matto e sem nenhum

estylo de sepultura.

Coroas, cruzes, lanterna, velas e ossos existem espalhados pelo chão,

cobrindo aquellas pobres lages (A NOTICIA, 1915).

Este era o cemitério onde a maior parte das irmandades tinham carneiros e era

justamente um espaço associado diretamente ao abandono, “o cemitério da pobreza”,

como referia-se um jornal em 1914 (A NOTÍCIA, 1914). As irmandades ainda estavam

responsáveis pela manutenção dos seus carneiros e a aprovação de uma lei republicana

ajudaria estas instituições a enfrentar ainda mais dificuldades no período. Esta lei

sintetizaria os pedidos por secularização dos cemitérios. O texto final, aprovado em 1926,

alterou em definitivo o artigo 5º da constituição de 1891:

§ 5º Os cemiterios terão caracter secular e serão administrados pela

autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a pratica

dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não

offendam a moral publica e as leis. (CONSTITUIÇÃO, 1891)

Com isso, consolidou-se um processo que já vinha desde a instalação da República

e do fim do padroado régio em 1891: as irmandades perderam a concessão de parte de

suas loterias. O Estado da Bahia aprovou, em 5 de agosto de 1905, a lei nº 608 que criava

os serviços de loteria do estado. Mais tarde, em dezembro do mesmo ano, criou o decreto

de lei nº 352 que regulamentava e reavaliava todas as concessões de loterias feitas até

então. Para entrar em concorrência pela loteria, era necessário prestar algum serviço que

“convir com os interesses do Estado”, sendo serviços de assistência e instruções públicas

(MENSAGENS..., 1910).

As loterias passaram a ser concedidas a instituições que tinham uma relação direta

com prestações de serviços ao estado, como era o caso das Casas Pias e da Santa Casa de

Misericórdia. Não se incluíam mais aqui os serviços funerários e a construção de

cemitérios, o que afetava diretamente as irmandades em geral. Muitas vezes buscando

equilibrar estas perdas, as irmandades promoviam eventos para angariar fundos, aumentar

as doações e buscar associar novos membros.

Em 1922, afim de equilibrar suas contas, a Confraria do Bom Jesus da Cruz

buscou novos benfeitores para financiar as despesas da irmandade com os festejos

religiosos e as missas constantes. Assim, revelou uma lista de novas provedoras desse

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mesmo período (LISTA..., 1922). A própria irmandade recebeu novas associações em

1920, conforme indicado pelo seu livro de entrada de irmãos, mas as dificuldades levaram

até mesmo o presidente eleito da irmandade a pedir destituição do cargo no ano de 1921.

Após o pedido, o cargo foi entregue ao presidente que foi eleito em segundo lugar, que

também recusou a vaga (RENÚNCIA..., 1921).

Para a mesa diretora, manter a arrecadação afim de suprir as altas despesas da

irmandade com um esvaziamento crescente de irmãos era um desafio a se cumprir. Muitas

dessas despesas eram também dos carneiros da irmandade. Um relatório da Secretária de

Saúde da Bahia informava a quantidade de inumações realizadas nos carneiros das

irmandades no cemitério Quinta dos lázaros. Dentre os números, a confraria do Bom Jesus

da Cruz era uma das irmandades que mais havia realizado estes serviços, sendo 35

enterramentos de adultos e 11 de crianças. Já a Irmandade do Santíssimo Sacramento e

Santana realizou 16 enterramentos de adultos e 11 de crianças e a Irmandade de Nossa

Senhora da Palma, 20 de adultos e 10 de crianças.58

Na segunda metade do século XIX, a morte passou por transformações estruturais,

tornou-se asséptica, distante e ouso dizer indiferente na sociedade do século XX. Não

indico com isso que as pessoas não sentiam a perda de um ente querido, mas que a morte

deixou de ser algo tão espetacular e presente nas vivências cotidianas da cidade. Nesse

processo os eventos entre as décadas de 1870 a 1891 configuraram-se como de

questionamento do caráter clerical da morte e, com isso, da interferência de irmandades

e ordens religiosas na assistência funerária local.

58 Ver tabela em anexo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo das associações religiosas de leigos permitiu compreender as múltiplas

transformações que operaram na Bahia do século XIX e do início do século XX. Vimos

que este conjunto de mudanças agiu sobre diferentes aspectos da sociedade, englobando

as relações institucionais destas associações, incluindo aqui a Arquidiocese e o poder

temporal e os dois principais pilares associativos destas irmandades: o momento de

festejar o orago e seu caráter de assistência funeral.

As duas primeiras décadas do século XX foram decisivas para a religiosidade

leiga. Enquanto a Igreja promovia seu conjunto de reformas e os poderes públicos

buscaram modernizar, higienizar e civilizar os costumes, as associações de leigos eram

diretamente afetadas. Tanto a Arquidiocese quanto as autoridades civis compreendiam

que a forma espetacular de enterrar os mortos e de festejar os santos eram resquícios

coloniais indesejados. A Igreja exerceu controle sobre a vivência religiosa de seus fiéis,

romanizando os cultos e buscando deixar sobre a responsabilidade dos párocos as

devoções, incluindo-se aqui a festa em homenagem aos oragos.

Já o poder público, em certo processo de secularização, estava afastado da Igreja.

Evidentemente, este processo não foi consolidado completamente, principalmente

quando nos referimos a grandes instituições religiosas que tinham forte poder de

articulação entre diferentes instâncias republicanas, porém afetou instituições menores

como as irmandades aqui pesquisadas, que enfrentaram um período de esvaziamento de

seus membros relacionado diretamente à perda significativa de sua importância social.

Esta perda de importância social é caracterizada por um processo de

reconfiguração da assistência social. Inicialmente, parte dela ficaria a cargo de

instituições privadas de alto prestígio, tal como a Santa Casa de Misericórdia e as Casas

Pias, porém, a partir da terceira década do século, o próprio Estado criou um regime de

tutela assistencial ao implementar uma política pública de enfrentamento à pobreza,

assistência à saúde e educação59.

Apesar de mais evidenciado no século XX, desde o século XIX aparecem nos

jornais e revistas um clamor pela secularização das instituições. Com a República,

59 Berenice Rojas Couto analisa que a partir de 1930 o Estado consolida uma política institucionalizada e pública de assistência social. (COUTO, b. 2006)

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implantou-se uma política de assistência social e as irmandades menores perderam

diretamente parte considerável de seus benefícios como as loterias, a tutela de obras

públicas e o financiamento de suas festas e obras dentro de suas igrejas. Além de que,

indiretamente, o Estado Republicano fornecia parte de uma assistência funerária com a

criação dos cemitérios municipais.

A própria desvalorização e abandono do cemitério da Quinta dos Lázaros ilustra

o que poderíamos entender como uma redução do prestígio dessas irmandades. O

cemitério onde todas as irmandades estudadas aqui tinham carneiros, como explicitado

no capítulo 3, é justamente o cemitério relacionado à pobreza e ao abandono. Não seria

incomum pensar que muitos membros dessas instituições, a partir do século XX,

evitassem serem enterrados nos carneiros destas associações, por isso estas irmandades

aparecem nos testamentos e inventários de seus membros unicamente prestando serviços

funerais como missas e acompanhamento de enterros.

Devemos lembrar que as irmandades, até a primeira metade do século XIX, foram

instituições de extrema importância por conta de sua imbricação nos principais pilares

sociais do período. Estava muitas vezes sob a tutela de uma irmandade, como explicitado

anteriormente, um importante caráter de sociabilidade e de caridade, a assistência funeral

de suma importância e a garantia do pagamento dos dotes para as filhas de seus membros

que viessem a falecer, garantindo um casamento religioso para estas, único casamento

possível segundo a legislação vigente até o século XIX. Porém, na constituição de 1891,

reconheceu-se o casamento civil e a competência dos matrimônios passou ao Estado.

O Código Civil de 1916, cujo projeto Bevilaqua (1955) fora de

1899, regulou exaustivamente o casamento civil em todas as suas

formalidades, requisitos e efeitos, inclusive a sua nulidade e anulação e

a simples dissolução da sociedade conjugal pelo desquite (arts. 180 e

segts).60 (COSTA, 2006, p.2)

Em meio a tantas modificações e rupturas, para permaneceram atuantes, as

irmandades necessitavam adaptar-se. A irmandade de Nossa Senhora da Palma surgiu

justamente nesse momento de fortes transformações (1876). Assim, articulou uma

importante ligação com o poder eclesiástico, incorporando padres aos seus membros

(LISTA..., 1913) e adaptando o seu caráter associativo. O compromisso da segunda

60 O código civil de 1916 regulou a disposição constitucional do casamento civil.

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metade do século XX oferecia muito mais regalias devocionais do que uma assistência

física; englobava missas, orações e o culto aos santos protetores da irmandade. Até

mesmo a procura pela a assistência funeral oferecida pela irmandade estava coligada a

uma ajuda espiritual por meio de missas que eram realizadas após a morte e no dia de

finados.

Já a Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santana tinha em sua composição

social indivíduos da elite local. Estes lutavam ininterruptamente para a manutenção do

templo pertencente à irmandade e pela continuidade e associação de novo membros.

Adaptaram-se também na medida em que fizeram as reformas em seus compromissos e

produziram constantemente relatórios sobre a irmandade emitidos ao arcebispado. Além

disso acabaram incorporando a presença do pároco na tutela administrativa de seu templo

no compromisso de 1944.

João da Silva Campos, sobre a situação da Confraria do Bom Jesus da Cruz em

1925, escreveu que “tão precária se tornou sua vida econômica, tão malbaratados vinham

sendo seus bens, que no ano de 1926 não foi possível celebrar-se a festa do Orago”. O

arcebispo Augusto Álvaro da Silva, naquele mesmo ano, ao saber das condições em que

vivia a confraria, mandou que se destituísse a Mesa Administrativa e instaurou uma

comissão para inventariar e administrar os bens da irmandade. Esta não conseguiu

reavivar o entusiasmo dos devotos e a procissão deixou de ser realizada. Logo depois a

irmandade decretava seu fim, restando apenas a documentação que revelou as suas

intensas vivências de sociabilidade e seu antigo vigor devocional.

Dessa maneira, a análise de dados permitiu perceber as profundas modificações

na sensibilidade religiosa na Salvador finde secular. Numa cidade povoada de procissões

barrocas, Salvador tentava ganhar ares de cidade moderna na qual velhas formas de

devoção não tinham mais um bom lugar, nem eram dignas de grande apreço.

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LISTA DE FONTES

Periódicos

A NOTÍCIA, A saúde pública pede providencias a Higiene Municipal. 16.abril.1915.

A NOTICIA, O dia sagrado, 2 de novembro de 1914.

A NOTICIA, Os cemitérios, 25 de novembro de 1915.

A NOTÍCIA, Porque não se remodela a iluminação pública? 14.dez.1914

CORREIO DO BRASIL, Atracção Publica. 18 de março de 1904

CORREIO DO BRASIL, dia dos mortos. 2 de novembro de 1903

CORREIO DO BRASIL, notas scientificas. 18 de março de 1904

DIARIO DA BAHIA, 12 de dezembro de 1889

DIÁRIO DA BAHIA, 23 de Junho de 1889.

GAZETA MÉDICA DA BAHIA, Beriberi no Brazil. 1883

GAZETA MÉDICA DA BAHIA, Carta ao Professor. 1883

GAZETA MÉDICA DA BAHIA, Colica seca nos paizes quentes. Maio de 1876.

GAZETA MÉDICA DA BAHIA, Estado sanitário da cidade, 1885.

GAZETA MÉDICA DA BAHIA, Estudo sobre a verruga. 1872.

GAZETA MÉDICA DA BAHIA, Hygiene Publica. 15 de maio de 1870.

GAZETA MÉDICA DA BAHIA, Hygiene Publica. 15 de maio de 1870.

GAZETA MÉDICA DA BAHIA, Relatório Médico dos Asylo dos Expostos de 1878

-1879. 1879

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109

JORNAL DE NOTICIA, n5476, 7 de abril de 1898

JORNAL DE NOTICIA, Com a intendência. 25 de junho de 1892

JORNAL DE NOTICIA, Districto da penha. 9 de julho de 1898

JORNAL DE NOTICIA, Higyene. 27 de agosto de 1898.

JORNAL DE NOTICIA, Leiam aquelles que padecem de febres. 12 de setembro

1898.

JORNAL DE NOTICIA, Pelas ruas. 9 de fevereiro de 1892.

MENSAGENS DO GOVERNADOR DA BAHIA PARA ASSEMBLEIA, 1910.

O CORREIO Mercantil, Annuncios, Salvador. 28 de setembro de 1841

O MONITOR, 27 de janeiro de 1877

O MONITOR, CAPELLA da palma. 10 de Janeiro de 1878.

O MONITOR, Salvador, 1877.

O MONITOR. Confraria do Senhor Bom Jesus da Cruz. 10 de Janeiro de 1878

O MONITOR. Festas Religiosas. Sábado, 22 de Julho de 1876.

O MONITOR. Irmandade de Satissimo Sacramento e Sant’Anna, 11 de outubro de

1878.

O MONITOR. Salvador, 13 out. 1878.

O NOTICIADOR CATÓLICO, Só Deus protege os interesses do homem. Salvador,

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ANNAES DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA PROVINCIAL DA BAHIA (BA), 17

de julho de 1883.

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110

ANNAES DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA PROVINCIAL DA BAHIA (BA), 5

de abril de 1877.

ANNAES DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA PROVINCIAL DA BAHIA (BA), 5

de julho de 1877.

ANNAES DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA PROVINCIAL DA BAHIA (BA), p.

8. Sessões de 1880

ANNAES DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA PROVINCIAL DA BAHIA (BA),

Parecer de 8 de julho de 1878

Decreto de lei N.8597 de 8 de março de 1911

INHUMAÇÕES feitas em carneiros das diversas irmandade. Relatório dos

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Documentos eclesiásticos e de irmandades

CARTA A DR ADOLFO TOURINHO. LEV, Laboratório Eugenio Veiga, Seção

Irmandades Religiosas. 17 de julho de 1936.

CARTA DA IRMANDADE S.S SANTANA dirigida a arquidiocese. LEV,

Laboratório Eugenio Veiga, Seção Irmandades Religiosas. 10 de julho de 1928

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do antigo bispado de São Sebastião do Rio de Janeiro, São Paulo, Officinas

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Veiga. 4 de outubro de 1873.

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Eugenio Veiga, Seção Irmandades Religiosas. 14 de julho de 1928.

COMPROMISSO da Confraria do Senhor Bom Jesus da Cruz. LEV, Laboratório

Eugênio Veiga. Salvador: Typographia Liberty, 1914, p.1.

COMPROMISSO da Irmandade da Palma e seus fins. LEV, Laboratório Eugênio

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Costa, 1916.

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LEV, Laboratório Eugênio Veiga. Typographia Baptista Costa, 1916.

CONSISTÓRIO da Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santana. LEV,

Laboratório Eugênio Veiga, Seção Irmandades Religiosas, 1927.

CONSISTÓRIO de João de Mattos de Aguiar. ASCMBA – Centro de Memória Jorge

Calmon. 1700

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112

CORREPONDÊNCIA da Irmandade do Bom Jesus da Cruz da Palma. LEV,

Laboratório Eugênio Veiga – Salvador, Março, 1870, p.1.

CORRESPONDÊNCIA ENTRADA enviada ao Governo Provincial. APEB, Maço

5260. 14 de agosto de 1872.

DOCUMENTO IRMANDADE DE Santa Cecília, 9 de setembro de 1931.

EDIÇÃO de reforma do compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento e

Santana. LEV, Laboratório Eugênio Veiga, Seção irmandade Religiosas, 1929.

ELEIÇÃO para a pastoral da Palma e benfeitores da irmandade. LEV, Laboratório

Eugenio Veiga, Seção Irmandade Religiosas, 1877.

INSTRUÇÕES para a administração da Capella de Nossa Senhora da Palma. APEB,

Maço 5249. 22 de Abril de 1878.

INVENTÁRIO da Irmandade do Bom Jesus da Cruz para o ano de 1880. LEV,

Laboratório Eugênio Veiga, Seção Irmandades Religiosas, 1880.

INVENTÁRIO de Angélica Maria dos Santos Paranhos. APEB, Seção Judiciário,

0120550420, 1895.

INVENTÁRIO de João Gomes Costa. APEB, Seção Judiciário, 07324402, 1930.

INVENTÁRIO de João José de Azevedo Lima. APEB, Seção Judiciário. 1896

INVENTÁRIO de João Pedro da Cunha Vale. APEB, Seção Judiciário. 1871.

INVENTÁRIO de Manuel Messias Garcia, APEB, Seção Judiciário. 1907.

LISTA de novas provedoras. LEV, Laboratório Eugenio Veiga, Seção Irmandades

Religiosas. 1922

LISTA de objetos de culto pertencentes à irmandade de Nossa Senhora da Palma.

Novembro, LEV, Laboratório Eugênio Veiga, Seção Irmandades Religiosas. 1897.

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113

LISTAS de membros da Irmandade de Nossa Senhora da Palma. LEV, Laboratório

Eugenio Veiga, Seção Irmandades Religiosas. 1913

NOTIFICAÇÃO da junta de higyene. LEV, Laboratório Eugenio Veiga, Seção

Irmandades Religiosas. 1893

NOTIFICAÇÃO da Secretaria Eclesiástica de S. Salvador da Bahia. LEV,

Laboratório Eugenio Veiga. 5 de agosto de 1952.

OFICIO emitido pela Confraria do Bom Jesus da Cruz. APEB, 1864.

RECIBO da Ordem 3ª do Boqueirão, LEV, Laboratório Eugenio Veiga, Seção

Irmandades Religiosas.1894.

RECIBO de Pagamento à família de Euridir de Sant’ana. LEV, Laboratório Eugenio

Veiga, Seção Irmandades Religiosas, 1894.

RECIBOS e despesas para a irmandade no ano de 1897. Salvador: Laboratório

Eugênio Veiga – LEV. Série Bom Jesus da Cruz, fl 03, 04 e 06.

RENÚNCIA do presidente da Confraria. LEV, Laboratório Eugenio Veiga, Seção

Irmandades Religiosas. 1921

REQUISIÇÃO feita pela Irmandade de Nossa Senhora da Palma. APEB, 1874

REQUISIÇÃO da Confraria do Bom Jesus da Cruz. APEB, Maço 5249. 2 de abril de

1863.

RESPOSTA a notificação do Governo Provincial. APEB, Maço 5249. 22 de fevereiro

de 1875

TESTAMENTO de Angélica Maria dos Santos Paranhos. APEB, Seção Judiciário,

26550420. 1885.

TESTAMENTO de João de Mattos de Aguiar. ASCMBA – Centro de Memória Jorge

Calmon. 1700.

TESTAMENTO de João José de Azevedo Lima. APEB, Seção Judiciário. 1896.

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ANEXO 1

MAPA CIDADE DE SALVADOR E O PERCURSO DA PROCISSÃO DO BOM

JESUS DA CRUZ

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ANEXO 2

INHUMAÇÕES FEITAS EM CARNEIROS EM 1926

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