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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE DIREITO DA UFBA
CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO
GABRIEL LORDELLO O. E SOUZA
É EXCLUSIVA A ATRIBUIÇÃO DA POLÍCIA JUDICIÁRIA MILITAR ESTADUAL,
PARA INVESTIGAR O CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA DE CIVIL, QUANDO
PRATICADO POR MILITAR ESTADUAL, NAS HIPÓTESES DO ART. 9º DO
CÓDIGO PENAL MILITAR?
Salvador
2018
GABRIEL LORDELLO O. E SOUZA
É EXCLUSIVA A ATRIBUIÇÃO DA POLÍCIA JUDICIÁRIA MILITAR ESTADUAL,
PARA INVESTIGAR O CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA DE CIVIL, QUANDO
PRATICADO POR MILITAR ESTADUAL, NAS HIPÓTESES DO ART. 9º DO
CÓDIGO PENAL MILITAR?
Trabalho de conclusão de curso de graduação em Direito,
Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia,
como requisito para obtenção do grau de Bacharel em
Direito.
Orientadora: Prof.ª Doutora Selma Pereira de Santana
Salvador
2018
GABRIEL LORDELLO O. E SOUZA
É EXCLUSIVA A ATRIBUIÇÃO DA POLÍCIA JUDICIÁRIA MILITAR ESTADUAL,
PARA INVESTIGAR O CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA DE CIVIL, QUANDO
PRATICADO POR MILITAR ESTADUAL, NAS HIPÓTESES DO ART. 9º DO
CÓDIGO PENAL MILITAR?
Monografia apresentada como requisito final para obtenção do grau de Bacharel
em Direito, Faculdade de Direito, da Universidade Federal da Bahia.
Avaliada em 24 de janeiro de 2018.
Selma Pereira de Santana – Orientadora ___________________________________________
Doutora em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Coimbra, Portugal.
Universidade Federal da Bahia.
Fernanda Ravazzano Lopes Baqueiro – Examinadora _______________________________
Doutora em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Salvador, Bahia. Advogada
Criminal. Professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.
Gabrielle Santana Garcia – Examinadora __________________________________________
Especialista em Direito do Estado pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal
da Bahia, Salvador, Bahia, Brasil. Centro Universitário Jorge Amado. UNIJORGE.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, por iluminar meu caminho durante esta jornada.
Agradeço à egrégia Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, berço de
juristas memoráveis, por proporcionar um ambiente criativo e amigável para o aprimoramento
intelectual.
Sou grato a cada um dos meus professores, por viverem e transmitirem o legado dos
fundadores desta casa.
A todos aqueles que, de alguma forma, contribuíram para o sucesso dessa longa
trajetória acadêmica, obrigado.
SOUZA, Gabriel Lordello Oliveira e. É exclusiva a atribuição da polícia judiciária militar
estadual, para investigar crime doloso contra a vida de civil, quando praticado por
militar estadual? 2018. 63fls. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Direito).
Faculdade de Direito, da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2018.
RESUMO
O militar estadual, não raro, é duplamente investigado quando, em tese, pratica crime doloso
contra a vida de civil, isto por serem instaurados dois procedimentos investigatórios para
apurar o mesmo fato, um inquérito no âmbito da Polícia Civil e outro no âmbito da Polícia
Militar. O presente trabalho tem como escopo, resolver um aparente conflito de atribuições
entre a Polícia Civil e a Polícia Militar, afinal o militar estadual, de fato, é o maior
prejudicado enquanto não há consenso no entendimento jurídico-doutrinário da matéria, qual
seja, se se trata ou não de crime militar. Nesta senda, os números da violência no Brasil têm
experimentado índices elevados, assim como o número de civis mortos em decorrência de
intervenções policias. Definir qual instituição tem atribuição para investigar tais fatos, além
de garantir a eficácia dos Direitos Fundamentais dos militares estaduais, representa também,
um grande avanço para melhorar a segurança pública em nosso país.
Palavras-chave: Auto de Resistência. Militar Estadual. Crime doloso contra a vida de civil.
Polícia Judiciária Militar Estadual. Solução de Conflito.
SOUZA, Gabriel Lordello Oliveira e. Is it exclusive the attribution of the state military
judicial police, to investigate felony crime against civilian life, when practiced by state
military? 2018. 63fls. Course Completion Work (Bachelor of Law). Faculty of Law, Federal
University of Bahia. Salvador, 2018.
ABSTRACT
The state military agent is often doubly investigated when, in theory, he practices a felony
crime against civilian life, since two investigative procedures are instituted to ascertain the
same fact, an investigation in the scope of the Civil Police and another in the scope of
Military Police. The present work aims to solve an apparent conflict of attributions between
the Civil Police and the Military Police, after all, the state agent is, in fact, the most impaired,
while there is no consensus in the juridical-doctrinal understanding of the matter, whether is
or is not military crime. In this way, the violence numbers in Brazil have experienced high
rates, as well as the number of civilians killed as a result of police interventions. Defining
which institution has the authority to investigate such facts, besides guaranteeing the
effectiveness of the Fundamental Rights of state military agents, is also a great step forward in
improving public safety in our country.
Keywords: Resistance to Arrest. Military State. Felony against civilian life. State Military
Judiciary Police. Conflict Resolution.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 9
2 A JUSTIÇA MILITAR NO BRASIL ................................................................................ 11
2.1 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA HIERARQUIA E DA DISCIPLINA ......... 13
2.2 A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR ESTADUAL ............................................ 14
2.3 DO CONCEITO DE CRIME MILITAR............................................................................ 15
3 A NATUREZA JURÍDICA DO CRIME MILITAR ..................................................... 20
3.1 O BEM JURÍDICO DO CRIME MILITAR ...................................................................... 21
3.2 O CARÁTER COMPLEXO DO BEM JURÍDICO MILITAR ......................................... 23
4 O PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE ............................................................................. 25
5 DO AUTO DE RESISTÊNCIA ......................................................................................... 30
6 DO PROCEDIMENTO DO TRIBUNAL DO JÚRI ........................................................ 34
7 DA ORGANIZAÇÃO DA JUSTIÇA MILITAR ESTADUAL ....................................... 38
8 ANÁLISE DA ADI 1.494-DF: O ENTENDIMENTO DO STF SOBRE A
CONSTITUCIONALIDADE DO § 2º DO ART. 82 DO CÓDIGO DE PROCESSO
PENAL MILITAR .................................................................................................................. 43
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 59
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 61
9
1 INTRODUÇÃO
Por mandamento constitucional, o policiamento ostensivo e a manutenção da ordem
pública cabem às Polícias Militares, e as atividades de defesa civil, aos corpos de Bombeiros
Militares, daí a importância dos militares estaduais em nosso país.
A segurança pública brasileira está longe de ser a ideal. Os índices de criminalidade
aumentam anualmente, e o Estado brasileiro promove uma verdadeira guerra contra o crime
organizado. Os órgãos de segurança estão em permanente confronto com o crime, mas as
estatísticas alertam: estamos sempre aquém do que se imagina aceitável pelos órgãos
internacionais. Esta é a atual da realidade da segurança pública brasileira.
O Direito Militar existe para garantir a existência e a tutela dos princípios e valores das
instituições militares, e não por acaso, todas as Constituições Federais previram a existência
da Justiça Militar, como órgão distinto da Justiça comum.
A mesma distinção ocorre no âmbito do Direito do Trabalho e no Direito Eleitoral. Tal
divisão é necessária para que as peculiaridades dessas justiças especiais sejam ponderadas de
forma mais criteriosa. A separação das Justiças, por especialidade, proporciona uma atuação
jurisdicional mais célere e qualificada, o que é fundamental em qualquer sociedade.
A vigência do Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001/69) e do Código de Processo
Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.002/69), ao tempo que ajudaram a estruturar o Direito Penal
Militar, trouxeram uma segurança jurídica até então não experimentada na esfera militar, um
grande avanço para o mundo castrense. Os crimes militares foram taxativamente definidos e,
por conseguinte, a atribuição da Polícia Judiciária Militar Estadual estava intocada. Tal
estabilidade durou até a década de 90, quando os códigos castrenses foram alterados.
O advento da Lei nº 9.299 de 08 de agosto de 1996, que alterou principalmente o art. 9º
do CPM, modificando para o Tribunal do Júri a competência de julgamento dos crimes
dolosos contra a vida de civil, quando cometidos por militares, causou muita controvérsia no
meio jurídico, principalmente sobre a constitucionalidade da alteração.
No ano de 2004, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 45, que tratou principalmente
da "reforma" do Poder Judiciário. Neste momento, a mudança da competência de julgamento
dos crimes dolosos contra a vida de civil foi constitucionalizada, corroborando com as
modificações realizadas pela Lei nº 9.299/96.
Fato é que, desde então, o crime doloso contra a vida de civil, quando praticado por
militar, nas hipóteses do art. 9º do CPM, são investigados tanto pela Polícia Militar quanto
pela Polícia Civil, submetendo o militar estadual a uma dupla persecução penal, não
entendemos que isto seja razoável.
10
Com vistas a restabelecer a pacificidade doutrinária da disciplina, é que este trabalho se
propõe a solucionar o aparente conflito de atribuição entre a Polícia Militar e a Polícia Civil,
quando da investigação dos crimes dolosos contra a vida de civil, cometidos por militares
estaduais, nas hipóteses do art. 9º do CPM.
Assim sendo, uma vez pacificada a matéria, almejamos que o militar estadual seja
investigado por apenas uma das instituições, o mesmo tratamento que é dado a qualquer outro
cidadão do nosso país.
11
2 A JUSTIÇA MILITAR NO BRASIL
O ano de 1808 é um marco de grandes transformações na história do Brasil, este é o
entendimento do historiador Hélio Viana:
[...] a vinda da Família Real portuguesa para o Brasil, em 1808, alterou,
profundamente, a situação de nosso país, que de simples colônia, embora intitulada
Estado e geralmente considerada Vice-Reino, repentinamente passava à condição de
sede da monarquia lusitana, deixando, portanto, de merecer aquela "classificação",
em tudo resultando "a necessidade de ampla reorganização administrativa, tendo em
vista não só a transferência, para o Rio de Janeiro, das Secretarias de Estado,
tribunais e repartições antes estabelecidas em Lisboa, mas também a adaptação à
nova ordem de coisas, das que aqui já existiam. (VIANNA, 1967, p. 13)
A Família Real não poderia atravessar o oceano Atlântico, sem a devida proteção dos
militares da coroa portuguesa, um corpo uniformizado fundado nos princípios da hierarquia e
disciplina. Por isso, o Príncipe Regente decidiu não apenas estabelecer uma nova capital,
como também nomeou os titulares dos Ministérios do Reino, da Marinha e Ultramar, da
Guerra e Estrangeiros, do Real Erário, o Conselho de Estado, as Mesas do Desembargo do
Paço e da Consciência e Ordens, o Conselho da Fazenda (BASTOS, 1981, p. 20).
Por meio do Alvará de 1º de abril de 1808 foi criado, também na cidade do Rio de
Janeiro, o Conselho Supremo Militar e de Justiça, com força de lei, assinado pelo Príncipe
Regente, o primeiro Tribunal Superior do Brasil, sendo escolhido para Presidente, D. José
Xavier de Noronha Camões de Albuquerque Souza Muniz, Marquês de Angeja, Conde e
Senhor de Vila Verde. (BARBOSA, 1952, p. 60)
O Conselho Supremo Militar e de Justiça, acumulava duas funções, uma de caráter
administrativo e outra de caráter puramente judiciário. Na de caráter administrativo,
assessorava o Governo "em questões referentes a requerimentos, cartas-patentes, promoções,
soldos, reformas, nomeações, lavratura de patentes e uso de insígnias, sobre as quais
manifestava seu parecer, quando consultado", e na referente aos aspectos judiciários, "como
Tribunal Superior da Justiça Militar, o Conselho Supremo julgava em última instância os
processos criminais dos réus sujeitos ao foro militar". (BARBOSA, 1952, p. 60)
A Justiça Militar é, por certo, a mais antiga do Brasil, pois o Conselho Supremo
Militar já estava previsto em nossa primeira Constituição de 1824, que durou até o fim do
período monárquico.
Com o advento da Constituição de 1891, o Conselho Supremo Militar, originado em
1808, foi regulado no artigo 77, como Supremo Tribunal Militar (órgão administrativo com
funções jurisdicionais, para garantia dos militares), cujos membros seriam vitalícios, e dos
conselhos necessários para a formação da culpa e julgamento dos crimes. Destaca-se que o
12
Tribunal foi regulado fora do Capítulo do Judiciário e teve como objeto central, o foro
especial para os militares de terra e mar.
Com a Carta Constitucional de 1934, uma novidade, desta vez, por força do artigo 63,
os juízes e Tribunais Militares passaram a fazer parte do Poder Judiciário. Nos artigos 84 a
87, a Justiça Militar foi organizada com um Supremo Tribunal Militar, Tribunais e Juízos,
com foro especial para julgar os militares e até civis, nos casos de crime contra a segurança
nacional ou contra as instituições militares (SOUZA; SILVA, 2016, p. 373). Merece destaque
a inserção das Polícias Militares como forças auxiliares do Exército, reservando-lhes também
as mesmas vantagens quando mobilizadas ou a serviço da União.
A Constituição de 1937, manteve o status constitucional da Justiça Militar, e assim
como na Constituição anterior, por força da alínea "c" do art. 90, era reconhecida como órgão
do Poder Judiciário.
Com o fim da II Guerra Mundial veio a Constituição de 1946, considerada a Carta mais
democrática da história brasileira, como bem prefaciou Aliomar Baleeiro: “[...] os
constituintes de 1946 partiam do princípio filosófico kantiano de que o Estado não é fim em si
mesmo, mas meio para o fim. Esse fim seria o homem” (BALEEIRO; SOBRINHO, 2001, p.
19).
Mantendo a previsão Constitucional da Justiça Militar, no inciso III, do art. 94, a Carta
Magna de 1946, destacou-se pela possibilidade de criação das Justiças Militares Estaduais,
com a previsão no inciso XII do art. 124, além da manutenção da possibilidade para julgar
civis, nas condições expressas em Lei.
A constituição de 1967 trouxe em seu corpo os art. 127 a 129, onde foram delineadas
as competências de cada órgão da Justiça castrense. Com destaque para o art. 144, §1º, alínea
"d", com a previsão da Justiça Militar Estadual, formada por Conselhos de Justiça na primeira
instância, sendo que o próprio Tribunal de Justiça do Estado, seria o competente para julgar os
recursos dos crimes cometidos pelos militares estaduais.
No ano de 1969, com a edição do Decreto-Lei nº 1001/1969 que instituiu o Código
Penal Militar e o Decreto-Lei nº 1002/1969, que instituiu o Código de Processo Penal Militar,
verdadeiros marcos da legislação Penal Militar, houve um significativo avanço para
tipificação do crime militar, bem como os procedimentos para a aplicação das penas na esfera
militar, tais códigos trouxeram uma segurança jurídica, até então não experimentada.
A Constituição cidadã de 1988, estabelece por meio do inciso VI do art. 92, que a
Justiça Militar é parte do Poder Judiciário da nossa nação, deixando a cargo dos art. 122 a 124
estabelecer a competência da Justiça Castrense. A Emenda Constitucional nº 45/2004,
13
conhecida como a emenda da reforma do Poder Judiciário, modificou o art. 125 da CF,
ampliando a competência da Justiça Militar Estadual, principalmente no que concerne às
demandas judiciais contra atos administrativos disciplinares, além de estabelecer a
competência dos juízes de Direito do juízo militar, para processar e julgar singularmente, os
crimes militares cometidos contra civis, e ao Conselho de Justiça, presidido por um juiz de
Direito, processar e julgar os demais crimes militares. Os Tribunais de Justiças Militares
Estaduais tiveram sua a criação autorizada por meio do § 3º da art. 125 da CF, que
estabeleceu o efetivo mínimo de vinte mil militares estaduais, para sua implantação.
2.1 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA HIERARQUIA E DA DISCIPLINA
O vínculo do Direito Militar com as Constituições brasileiras se confunde com a própria
história do Brasil. Os princípios militares estão enraizados na Constituição, e estão expressos
na Carta Magna.
Paulo Bonavides entende, que “os princípios são a alma e o fundamento de outras
normas”, sendo que “uma vez constitucionalizados, se fazem a chave de todo o sistema
normativo” (BONAVIDES, 2001, p. 231).
A palavra “princípio” vem do latim “principium”, que significa, de maneira simples, a
origem, o início. Picazo citado por Bonavides explica: “onde designa as verdades primeiras”,
bem como têm os princípios, de um lado, “servido de critério de inspiração às leis ou normas
concretas desse Direito positivo” e, de outro, de normas obtidas “mediante um processo de
generalização e decantação dessas leis”. (BONAVIDES, 2002, p. 228)
Os princípios são fundamentos do ordenamento jurídico e representam valores culturais
de determinada sociedade.
Apesar de os princípios da hierarquia e da disciplina, estarem intimamente ligados às
instituições militares, não se pode dizer que lhes são exclusivos. De fato, são necessários em
qualquer instituição, ainda que com diferentes graus de incidência.
Os art. 42 e 142 da Constituição Federal, são taxativos em demonstrar a importância de
tais princípios para as instituições militares:
Art. 42 Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares,
instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos
Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela
Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com
base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da
República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e,
14
por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. (BRASIL, Constituição Federal,
1988) (grifo nosso) A definição legal da hierarquia e da disciplina, na esfera militar, está expressa nos §§
1º e 2º do art. 14, da Lei 6.880/80 (Estatuto dos Militares):
Art. 14. A hierarquia e a disciplina são a base institucional das Forças Armadas. A
autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico.
§ 1º A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da
estrutura das Forças Armadas. A ordenação se faz por postos ou graduações; dentro
de um mesmo posto ou graduação se faz pela antigüidade no posto ou na graduação.
O respeito à hierarquia é consubstanciado no espírito de acatamento à seqüência de
autoridade.
§ 2º Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis,
regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e
coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito
cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse
organismo. (BRASIL, Lei nº 6.880, 1980)
Para o militar, a interiorização destes princípios ocorre no início da carreira, ainda
durante o período de formação. São princípios vivenciados cotidianamente, de modo que, o
sentimento de pertencimento institucional é comum a todos os militares. A hierarquia diz
exatamente qual o "lugar" do militar na instituição, afinal, todos estão em uma cadeia de
comando, e ainda que nos mesmos postos ou graduações, na escala hierárquica, nenhum é
"igual" ao outro. A hierarquia está diretamente ligada ao grau de responsabilidade que é
atribuído ao militar, e quais funções lhe são inerentes. A disciplina estabiliza toda a
hierarquia, e por isso lhe dá sentido, é uma estrutura de comando e obediência, que recai sobre
todos, não diz respeito ao indivíduo, mas à regularidade das instituições militares.
2.2 A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR ESTADUAL
A Constituição de 1988 define, claramente, a competência da Justiça Militar Estadual, e
o faz na forma do § 4º do art. 125 da CF:
Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos
nesta Constituição.
§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados,
nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares
militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao
tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da
graduação das praças.
§ 5º Compete aos juízes de direito do juízo militar processar e julgar, singularmente,
os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos
disciplinares militares, cabendo ao Conselho de Justiça, sob a presidência de juiz de
direito, processar e julgar os demais crimes militares. (BRASIL, Constituição
Federal, 1988) (grifo nosso)
15
Não resta dúvida de que julgamento dos crimes militares é da competência exclusiva da
Justiça Militar Estadual, mas a Constituição não se limita a isso, reconhece também a
exclusividade de atribuição da Polícia Judiciária Militar para investigar tais crimes, negando
taxativamente que os crimes militares sejam investigados pela Polícia Civil:
Constituição Federal
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos,
é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do
patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I - polícia federal;
II - polícia rodoviária federal;
III - polícia ferroviária federal;
IV - polícias civis;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.
§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem,
ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de
infrações penais, exceto as militares. (BRASIL, Constituição Federal, 1988) (grifo
nosso)
Não por acaso, o constituinte fez questão de manter a Justiça Militar como uma Justiça
desvinculada da justiça comum. A especialidade do Direito Penal Militar e do Direito
Administrativo Militar exigem um preparo diferenciado do operador do Direito, que deve
também conhecer dos valores militares e das peculiaridades de cada instituição, seja na esfera
federal ou estadual. Quem são os militares? Qual o conceito de crime militar? São questões de
suma importância para o Direito Militar, que trataremos a seguir.
2.3 DO CONCEITO DE CRIME MILITAR
A redação do § 4º do art. 125 da CF é bem clara: "Compete à Justiça Militar estadual
processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei [...]", daí a
necessidade de se delimitar quem são os militares estaduais e, principalmente, quais são os
crimes militares.
Coube ao art. 42 da CF definir que os membros das Polícias Militares e dos Corpos de
Bombeiros Militares são os militares estaduais, diferente do tratamento dado ao termo
"militar" na esfera federal, vejamos o que diz o art. 22 do Código Penal Militar:
Art. 22. É considerada militar, para efeito da aplicação deste Código, qualquer
pessoa que, em tempo de paz ou de guerra, seja incorporada às forças armadas, para
nelas servir em posto, graduação, ou sujeição à disciplina militar. (BRASIL,
Decreto-Lei nº 1.001, 1969)
16
Fato é que, o § 4º do art. 125 da CF restringiu a competência da Justiça Militar Estadual,
para julgar apenas os militares estaduais, ou seja, não há a possibilidade de se julgar civis, este
é o entendimento doutrinário e legal. Ocorre que tal restrição não existe na esfera da Justiça
Militar Federal, onde pode o civil, ser processado e julgado em casos específicos, conforme
definição do inciso III, do art. 9º do Código Penal Militar:
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as
instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso
I, como os do inciso II, nos seguintes casos:
a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa
militar;
b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade
ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no
exercício de função inerente ao seu cargo;
c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância,
observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;
d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função
de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e
preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente
requisitado para aquêle fim, ou em obediência a determinação legal superior.
(BRASIL, Decreto-Lei nº 1.001, 1969) (grifo nosso)
Uma fez definido quem pode ser julgado pela Justiça Militar Estadual, faz-se necessário
definir o conceito de crime militar, para tanto, existem critérios que podem ser utilizados. A
doutrina de Jorge César de Assis (ASSIS, 2010, p.44), estabelece os seguintes critérios: o
ratione materiae exige que no delito se verifique a dupla qualidade de militar, no ato e no
agente, em outras palavras, crime militar praticado por militar; o ratione personae para
aqueles delitos cujo sujeito ativo é militar atendendo exclusivamente à qualidade de militar
do agente; o critério ratione loci leva em conta o lugar do crime, bastando, portanto, que o
delito ocorra em lugar sob administração militar; e por fim, o ratione temporis , os praticados
em determinada época, ou seja, em tempos de paz (art. 9º, CPM) ou em tempos de guerra
(art. 10, CPM).
O critério ratione personae já foi utilizado na época do Brasil Imperial, vejamos o § 7º
do art. 1º da Lei nº631 de 18 de setembro de 1851, publicada no Diário Oficial da União de 31
de dezembro do mesmo ano, vejamos:
Art. 1º No caso de guerra externa serão punidos com a pena de morte na Provincia,
em que tiverem lugar as operações do Exercito Imperial, e bem assim em territorio
alliado, ou inimigo, occupado pelo mesmo Exercito: 1º os espiões: 2º os que nas
Guardas, Quarteis, Arsenaes, Fortalezas, Acampamentos, Postos Militares, e
Hospitaes, tentarem seduzir as praças de 1ª Linha, Policia, Guarda Nacional, ou
quaesquer outras, que fação parte das Forças do Governo, tanto de mar, como de
terra, a fim de que desertem para o inimigo: 3º os que nos mesmos lugares acima
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mencionados tentarem seduzir as mesmas praças, a fim de que se levantem contra o
Governo, ou os seus Superiores: 4º os que atacarem sentinellas: 5º os que entrarem
nas Fortalezas sem ser pelas portas e lugares ordinarios.
§ 7º Serão tambem considerados militares todos os crimes commettidos por militares
nas Provincias, em que o Governo mandar observar as Leis para o Estado de Guerra,
e bem assim os commettidos por militares em territorio inimigo, ou de alliados,
occupado pelo Exercito Imperial, sendo porêm applicadas as penas do Codigo
Criminal nos crimes meramente civis. (BRASIL, Lei nº 631, 1851) (grifo nosso)
O critério adotado pela Constituição de 1988 é certamente o ratione legis, em razão da
lei, e é o entendimento final de Jorge César de Assis (ASSIS, 2010, p.45). Cremos que tal
critério é o mais claro e assertivo, principalmente por prestigiar a segurança jurídica e o
princípio da legalidade: "Nullum crimen, nulla poena sine lege scripta".
Além do mais, o critério ratione legis é o adotado pela Constituição Federal de 1988:
Art. 124. à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos
em lei.
Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos
nesta Constituição.
§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados,
nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares
militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao
tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da
graduação das praças. (BRASIL, Constituição Federal, 1988) (grifo nosso)
Tal princípio é de fundamental importância segurança do ordenamento jurídico, além de
ser um dos pilares da corrente ideológica denominada de garantismo penal. Não por acaso, foi
positivado no artigo primeiro do Código Penal Militar: "Não há crime sem lei anterior que o
defina, nem pena sem prévia cominação legal". Vejamos o descrito nos art. 9º a 15 do CPM:
Crimes militares em tempo de paz
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
I - os crimes de que trata êste Código, quando definidos de modo diverso na lei
penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição
especial;
II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando
praticados:
a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma
situação ou assemelhado;
b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à
administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou
civil;
c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza
militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar
contra militar da reserva, ou reformado, ou civil
d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva,
ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a
administração militar, ou a ordem administrativa militar;
f) revogada.
18
III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as
instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso
I, como os do inciso II, nos seguintes casos:
a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa
militar;
b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade
ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no
exercício de função inerente ao seu cargo;
c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância,
observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;
d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função
de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e
preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente
requisitado para aquêle fim, ou em obediência a determinação legal superior.
§ 1o Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por
militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri.
§ 2o Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por
militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar
da União, se praticados no contexto:
I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da
República ou pelo Ministro de Estado da Defesa
II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar,
mesmo que não beligerante; ou
III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da
ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no
art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais
a) Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - Código Brasileiro de Aeronáutica;
b) Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999
c) Decreto-Lei no 1.002, de 21 de outubro de 1969 - Código de Processo Penal
Militar;
d) Lei no 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral.
Crimes militares em tempo de guerra
Art. 10. Consideram-se crimes militares, em tempo de guerra:
I - os especialmente previstos neste Código para o tempo de guerra;
II - os crimes militares previstos para o tempo de paz;
III - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição
na lei penal comum ou especial, quando praticados, qualquer que seja o agente:
a) em território nacional, ou estrangeiro, militarmente ocupado;
b) em qualquer lugar, se comprometem ou podem comprometer a preparação, a
eficiência ou as operações militares ou, de qualquer outra forma, atentam contra a
segurança externa do País ou podem expô-la a perigo;
IV - os crimes definidos na lei penal comum ou especial, embora não previstos
neste Código, quando praticados em zona de efetivas operações militares ou em
território estrangeiro, militarmente ocupado.
Militares estrangeiros
Art. 11. Os militares estrangeiros, quando em comissão ou estágio nas fôrças
armadas, ficam sujeitos à lei penal militar brasileira, ressalvado o disposto em
tratados ou convenções internacionais.
Equiparação a militar da ativa
Art. 12. O militar da reserva ou reformado, empregado na administração militar,
equipara-se ao militar em situação de atividade, para o efeito da aplicação da lei
penal militar.
Militar da reserva ou reformado
Art. 13. O militar da reserva, ou reformado, conserva as responsabilidades e
prerrogativas do pôsto ou graduação, para o efeito da aplicação da lei penal militar,
quando pratica ou contra êle é praticado crime militar.
Defeito de incorporação
Art. 14. O defeito do ato de incorporação não exclui a aplicação da lei penal militar,
salvo se alegado ou conhecido antes da prática do crime.
19
Tempo de guerra
Art. 15. O tempo de guerra, para os efeitos da aplicação da lei penal militar, começa
com a declaração ou o reconhecimento do estado de guerra, ou com o decreto de
mobilização se nêle estiver compreendido aquêle reconhecimento; e termina quando
ordenada a cessação das hostilidades. (BRASIL, Decreto-Lei nº 1.001, 1969)
Assim sendo, por mandamento constitucional, percebe-se que coube ao Código Penal
Militar (Decreto-Lei nº 1.001/69), definir os fatos em que há especial interesse das
instituições militares, e para não haver dúvida entre o que é crime comum e crime militar, as
hipóteses foram taxativamente descritas.
20
3 A NATUREZA JURÍDICA DO CRIME MILITAR
O convívio em sociedade requer o mínimo de disciplina e cuidado, cabendo, sobretudo
ao Estado, preservar a harmonia entre as pessoas, sempre buscando o bem comum. Cada
sociedade vive de acordo com a sua cultura e seus valores, que são transmitidos entre as
gerações ao longo dos séculos e, por isso, o conceito de estado muitas vezes se confunde com
o da própria sociedade, pois se não fossem as diferenças culturais e seus reflexos, a
humanidade seria apenas uma sociedade convivendo neste planeta, mas não o é, somos povos
e nações frutos da própria cultura. O Direito, por ser uma construção social, não está afastado
da cultura local de determinada sociedade, pelo contrário, a cultura é fonte do Direito e
encontrará neste, uma forma de se externalizar, muitas vezes buscando na lei uma forma de
preservação dos valores de determinada sociedade.
Cada nação moderna tem sua própria cultura, sua legislação, e o Direito que lhe é
próprio, tal capacidade de autodeterminação diz respeito à soberania do Estado sob o seu
território e sua jurisdição. Via de regra, um estado soberano cuida de regular o
comportamento dos que estão sob sua jurisdição, e o faz principalmente por meio de sua
legislação criminal, mas existem outras formas de encontrarmos o caminho para o
desenvolvimento. Cabe à legislação penal brasileira, tanto ao Código Penal, como as demais
leis extravagantes, anunciar à sociedade quais os comportamentos são reprovados, qual o tipo
de punição, e de que forma será percorrido o caminho entre o delito e a decisão final do
Estado.
A tarefa de disciplinar os seres humanos e lhes impor limites não é fácil, quiçá a tarefa
mais difícil do Estado. Por isso, a legislação penal é também de difícil construção e
principalmente concordância, tanto na esfera legislativa, quanto na esfera jurídico-doutrinária,
afinal, resta-nos a seguinte pergunta: que tipo de comportamento deve ser reprovado pelo
Estado? A resposta para esse quesito não é estática, o desenvolvimento social e a própria
dinâmica das relações interpessoais, criam e extinguem comportamentos considerados
reprováveis e, principalmente, bens jurídicos que precisam ou não da tutela estatal.
Na dogmática penal brasileira, as infrações penais são divididas em contravenções e
delitos, é a teoria bipartida. A contravenção penal é considerada uma espécie de infração com
menor potencial ofensivo, uma infração de baixa lesividade. Poder-se-ia dizer até, que é uma
mera perturbação social. Vejamos o que diz o Decreto-Lei nº 3.914, de 9 de dezembro de
1941(Lei de Introdução ao Código Penal):
21
Art 1º Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de
detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de
multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de
prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente. (BRASIL,
Lei nº 3.914, 1941)
Como se pode observar, a diferença entre crime e contravenção está na mensuração da
reprovabilidade da infração, um conceito subjetivo, e por certo o é. No entanto, o tratamento
legal dado a disciplina é suficiente par exaurir qualquer dúvida quanto à diferenciação, como
se observa na Lei nº 9.099 de 25 de setembro de 1995 (lei dos juizados especiais):
Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os
efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena
máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa. (BRASIL, Lei nº
9.099, 1995) (grifo nosso)
A decisão de se tipificar um fato como crime ou contravenção é, em verdade, um
critério político que, via de regra, repercute a sua gravidade. Para o aprofundamento do nosso
trabalho, focaremos no conceito de crime que é o interesse de nosso estudo, principalmente, o
crime militar e a tutela de seu bem jurídico.
3.1 O BEM JURÍDICO DO CRIME MILITAR
Saindo do viés político-criminal para um aprofundamento doutrinário, não se pode
deixar de mencionar, que a criação de um tipo legal requer uma justificativa maior, que a
mera eleição de uma conduta por exclusiva vontade do legislador, como dito anteriormente, o
tipo penal requer a defesa de um bem jurídico, a tutela de um valor em determinada
sociedade.
Para Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 399), todo Direito se refere a algo, e o bem jurídico
é esse algo ao qual se refere determinado direito, como se pode observar, tal instituto não é
exclusivo do Direito Penal mas, por certo, esta é a disciplina que lhe dá maior visibilidade,
principalmente por conta da importância que representa para legitimidade que a lei penal
requer.
Apesar de a ideia de tutelar um bem jurídico existir a muito tempo, com certeza tal
instituto multiplicou sua importância, a partir de meados do século XX, pois, ao fim da 2ª
Guerra Mundial, é que se percebeu a necessidade de se controlar o poder estatal, era preciso
evitar que a barbárie fosse institucionalizada, e principalmente, que as normas estatais
servissem de escudo para a violação dos Direitos Fundamentais. A lei precisava representar
mais que a vontade do tirano.
22
Naquele momento a humanidade percebeu que o Direito penal não pode se tornar
instrumento de repressão ideológica. Sendo assim, a definição de bem jurídico foi inserida
com o fito de conter a crescente onda de criminalização de comportamentos considerados
imorais ou politicamente diversos, limitando o âmbito de atuação do legislador, e impondo a
missão de efetivar a defesa de valores humanos, para que a criminalização fosse legítima.
Assim, bem jurídico é compreendido como o fim reconhecido pelo legislador nas
prescrições penais, “não se confundindo com os substratos da realidade em que os valores
poderão assentar, a sua origem é normativa” (CUNHA, 1995, p. 65). Para Régis Prado (1996,
p. 56) “a noção de bem jurídico implica a realização de um juízo positivo de valor acerca de
determinado objeto ou situação social e de sua relevância para o desenvolvimento do ser
humano”. Esses bens são indicados especificamente pela própria Constituição e aqueles que
se encontram em harmonia com a noção de Estado de Direito democrático (PRADO, 1996, p.
69).
Chegamos a um importante ponto de convergência, o bem jurídico maior que se tem
conhecimento é a vida, e a ele é dispensada proteção na lei penal comum, isto é sabido por
todos, mas entendemos que quando o Código Penal Militar que também prescreve o mesmo
fato típico, não o faz com fundamento no mesmo bem jurídico, pois na esfera militar se tutela
a vida, mas não apenas isto, neste caso, são também protegidos os valores militares,
principalmente a hierarquia e a disciplina, intrínsecos ao conceito de bem jurídico na esfera
militar. Vejamos o que diz a Constituição Federal:
Art. 42 Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares,
instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos
Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela
Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com
base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da
República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e,
por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. (BRASIL, Constituição Federal,
1988) (grifo nosso)
Por isto, entendemos que a despeito da existência de tipos penais militares com igual
previsão na lei penal comum, os bens jurídicos tutelados na esfera penal militar são mais
amplos, afinal a o Direito Penal Militar existe para a defesa dos valores militares de forma
imediata. Sendo assim, o tipo penal militar tutela ao mesmo tempo, os bens sociais e
institucionais. Se o art. 121 do Código Penal (matar alguém), tem como fulcro a proteção da
vida, o art. 205 do Código Penal Militar (matar alguém) exerce uma tutela ampliada, pois
além de proteger a vida, protege também os valores institucionais do militarismo, a hierarquia
23
e a disciplina, caso contrário, não seria necessária uma legislação específica, isto é, como
vimos, respeitar o mandamento dos art. 42 e 142 da nossa Carta Magna.
É o caráter complexo do bem jurídico na esfera penal militar.
3.2 O CARÁTER COMPLEXO DO BEM JURÍDICO MILITAR
Dois são os momentos que requerem especial atenção, no que diz respeito à disciplina
do bem jurídico: o primeiro, é o momento da eleição dos bens que merecem especial atenção
jurídico-penal, escolha esta que só pode ser feita pelo legislador quando na função legiferante;
e o segundo, que diz respeito à própria aplicação da lei penal militar. Neste caso, o intérprete
legal deve estar em consonância com a função teleológica e específica da matéria militar.
Negligenciar algum destes momentos é responder à demanda fática de forma incompleta. Este
segundo momento é que será avaliado, a partir de agora.
O Direito Penal Militar não existe para “proteção” dos militares, pensar desta forma é
desconhecer por completo a matéria. O Direito Penal Militar existe para a defesa dos valores
militares, o quê é diametralmente diferente. Diz respeito à tutela dos valores institucionais,
que se sobrepõem a qualquer indivíduo. Os valores militares são a razão, a própria existência
do Código Penal Militar. Se, por um lado, o Código Penal comum trata da tutela de bens
jurídicos, a exemplo do direito à vida, por outro a que se entender que os bens jurídicos
tutelados no CPM são revestidos de maior complexidade, pois aqui a tutela do direito à vida
não é feita de forma isolada, está acompanhada dos valores militares intrínsecos no CPM, há
aqui uma dupla função de proteção, pois além de proteger o direito à vida, se tutela ao mesmo
tempo os valores da instituição militar, quais sejam a hierarquia e a disciplina. Há, na verdade,
um bem jurídico constante, presente em todas as figuras típicas do código, composto pelo
binômio “hierarquia e disciplina”. (NUCCI, 2013, p. 17)
Tal diferença é mais evidente, quando se percebe a inexistência de ação penal privada
na esfera do Direito Penal Militar, uma vez que, a ação penal militar é sempre de interesse
público. No Direto Penal comum, existem bens jurídicos que interessam apenas à esfera
privada do indivíduo, e por isso são tratados de forma diferenciada, nestes casos, a ação penal
depende da queixa do ofendido para que haja o processamento da ação pelo Ministério
Público. São exemplos de bens jurídicos privados, o direito a liberdade sexual, a honra, ao
patrimônio etc.
No Direito Penal Militar é diferente, entende-se que o bem jurídico tutelado é sempre
público, pois quando da incidência de um tipo penal, estão sempre em xeque valores como a
24
própria administração pública militar e, principalmente, a hierarquia e a disciplina, por isso, a
ação penal é exclusivamente pública. Digamos que um militar cometa um crime de injúria
contra outro militar, neste caso a ação penal será pública, ou seja, o Ministério Público Militar
é o titular da ação, independentemente da vontade do ofendido, completamente diferente do
tratamento que é dado na esfera do Direito Penal comum, afinal o caráter institucional do bem
jurídico, que é intrínseco à esfera militar, impede que se leve em consideração apenas o
caráter privado do bem jurídico, que seria a honra, ou seja, tal duplicidade de proteção é o que
chamamos de caráter complexo do bem jurídico militar.
25
4 O PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
O Código Penal Militar e de Processo Penal Militar são normas penais específicas, e tal
característica tem especial relevância no ordenamento jurídico brasileiro, "lex specialis
derogat legem generalem", isto significa que a norma mais específica terá aplicação
preferencial à norma geral. Tal princípio basilar, é também regulador da norma penal, isto
para que haja sempre uma ordem normativa, primeiro para se viabilizar uma interpretação
sistêmica da norma, e segundo para evitar o "bis in idem".
No que concerne à antinomia entre normas, existem alguns critérios de resolução, e o
primeiro a ser utilizado é o critério hierárquico, " lex superior derogat inferior ". Quando as
normas estão no mesmo nível hierárquico, deve ser aplicado o princípio da especialidade, que
prevalece inclusive sobre o critério cronológico " lex posterior derogat priori", portanto, a
norma geral não derroga norma especial, é o que harmoniza o ordenamento jurídico. A
especialidade da matéria, por concatenação lógica, terá condições de melhor atender as
necessidades específicas da disciplina, e como consequência, uma maior proximidade do ideal
de Justiça.
Neste sentido, faz-se necessário observar que a norma especial possui todos os
elementos da norma geral, acrescida de elementos adicionais ou específicos. A lição da
professora Maria Helena Diniz:
Uma norma é especial se possuir em sua definição legal todos os elementos típicos
da norma geral e mais alguns de natureza objetiva ou subjetiva, denominados de
especializantes. A norma especial acresce um elemento próprio à descrição legal do
tipo previsto na norma geral, tendo prevalência sobre esta, afastando- se assim o bis
in idem pois o comportamento só se enquadrará na norma especial, embora também
esteja previsto na norma geral. O tipo geral está contido no tipo especial. A norma
geral só não se aplica ante a maior relevância jurídica dos elementos contidos na
norma especial, que a tornam mais suscetível de atendibilidade do que a norma
genérica. (DINIZ, 1996, p. 72)
Quando nos voltamos para a realidade castrense, podemos tomar, como exemplo, a
comparação entre o art. 121 do Código Penal e os art. 205, 206 e 207 de Código Penal Militar,
vejamos:
Código Penal Comum
Art. 121. Matar alguem:
Pena - reclusão, de seis a vinte anos.
Caso de diminuição de pena
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou
moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação
da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
Homicídio qualificado
§ 2° Se o homicídio é cometido:
I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;
26
II - por motivo futil;
III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio
insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;
IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que
dificulte ou torne impossivel a defesa do ofendido;
V - para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro
crime:
Pena - reclusão, de doze a trinta anos.
Feminicídio
VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino:
VII – contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição
Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública,
no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro
ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição:
Pena - reclusão, de doze a trinta anos.
§ 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime
envolve:
I - violência doméstica e familiar;
II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Homicídio culposo
§ 3º Se o homicídio é culposo:
Pena - detenção, de um a três anos.
Aumento de pena
§ 4o No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta
de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa
de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências do seu
ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a pena é
aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14
(quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos.
§ 5º - Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as
conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a
sanção penal se torne desnecessária.
§ 6o A pena é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado por
milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança, ou por grupo
de extermínio
§ 7o A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime
for praticado:
I - durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto
II - contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com
deficiência;
III - na presença de descendente ou de ascendente da vítima. (BRASIL, Lei nº 2.848,
1940)
Código Penal Militar
Art. 205. Matar alguém:
Pena - reclusão, de seis a vinte anos.
Minoração facultativa da pena
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou
moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação
da vítima, o juiz pode reduzir a pena, de um sexto a um têrço.
Homicídio qualificado
§ 2° Se o homicídio é cometido:
I - por motivo fútil;
II - mediante paga ou promessa de recompensa, por cupidez, para excitar ou saciar
desejos sexuais, ou por outro motivo torpe;
III - com emprêgo de veneno, asfixia, tortura, fogo, explosivo, ou qualquer outro
meio dissimulado ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;
IV - à traição, de emboscada, com surprêsa ou mediante outro recurso insidioso, que
dificultou ou tornou impossível a defesa da vítima;
27
V - para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro
crime;
VI - prevalecendo-se o agente da situação de serviço:
Pena - reclusão, de doze a trinta anos.
Homicídio culposo
Art. 206. Se o homicídio é culposo:
Pena - detenção, de um a quatro anos.
§ 1° A pena pode ser agravada se o crime resulta de inobservância de regra técnica
de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à
vítima.
Multiplicidade de vítimas
§ 2º Se, em conseqüência de uma só ação ou omissão culposa, ocorre morte de mais
de uma pessoa ou também lesões corporais em outras pessoas, a pena é aumentada
de um sexto até metade.
Provocação direta ou auxílio a suicídio
Art. 207. Instigar ou induzir alguém a suicidar-se, ou prestar-lhe auxílio para que o
faça, vindo o suicídio consumar-se:
Pena - reclusão, de dois a seis anos.
Agravação de pena
§ 1º Se o crime é praticado por motivo egoístico, ou a vítima é menor ou tem
diminuída, por qualquer motivo, a resistência moral, a pena é agravada.
Provocação indireta ao suicídio
§ 2º Com detenção de um a três anos, será punido quem, desumana e reiteradamente,
inflige maus tratos a alguém, sob sua autoridade ou dependência, levando-o, em
razão disso, à prática de suicídio.
Redução de pena
§ 3° Se o suicídio é apenas tentado, e da tentativa resulta lesão grave, a pena é
reduzida de um a dois terços. (BRASIL, Decreto-Lei nº 1.001, 1969)
Quando se comparam os tipos penais em evidência, o art. 121 do CPB e o art. 205 do
CPM, percebe-se que ambos são idênticos (matar alguém), além de prescreverem as mesmas
penas mínima e máxima para o fato. No entanto, há de se observar que o Código Penal Militar
tem aplicação especial por conta de circunstâncias específicas, muito diferentes da grande
maioria dos fatos geralmente enquadrados no art. 121 do CPB, vejamos:
1- o militar estadual é obrigado a atuar quando está em serviço, sob pena de praticar o
crime de omissão, obrigação que não existe para o civil;
2- o fato, na maioria esmagadora das vezes, é praticado por um militar estadual que
estava exercendo sua função e atuando em nome do próprio Estado, com local e horário de
atuação pré-determinados por seus superiores, quando ocorre a intervenção policial com
resultado morte. Não é o militar que escolhe o local de atuação, diferente de qualquer outra
pessoa;
3- o militar estadual é obrigado a apresentar-se à autoridade de polícia judiciária militar
ou Delegado de Polícia (dependendo do Estado) logo após o término da ocorrência policial, a
quem é apresentado o corpo da pessoa que foi vitimada, as armas utilizadas na ação pelos
próprios militares estaduais, a arma utilizada pelo vitimado, e os demais materiais
apreendidos na ocorrência. Nenhuma outra pessoa é obrigada a se apresentar na Delegacia
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como o militar de serviço o é, muito pelo contrário, é assegurado pela legislação o direito de
fuga;
4- os militares estaduais são obrigados a descreverem os fatos minuciosamente para a
autoridade de Polícia Judiciária Militar ou Delegado de Polícia, para que sua versão seja
confrontada com as provas periciais que serão produzidas no decorrer da investigação,
enquanto qualquer outro civil teria o direito de permanecer calado. O fato típico pode até ser o
mesmo, mas as especificidades da atuação do militar estadual são latentes, por isso, é
necessário um tratamento legal específico.
Na intervenção policial que tem como resultado o óbito de civil, não é necessária a
busca pela autoria, afinal os militares se apresentaram como autores do fato; não será
necessária a busca pelas armas utilizadas na ação e nem pelo corpo da vítima, afinal os
militares estaduais apresentaram suas armas e a vítima logo após o fato; não será preciso
desvendar o local do fato e nem suas circunstâncias, afinal, os próprios militares já o fizeram.
Então fica a pergunta, qual a razão de se instaurar um inquérito policial militar para apurar tal
fato? A resposta é simples, o inquérito é o procedimento adequado para esclarecer os fatos
narrados pelos militares estaduais, saber se realmente existiu a excludente de ilicitude,
oportunizar à família, amigos ou testemunhas confrontar a versão narrada pelos militares que
praticam a ação, em resumo, verificar a legitimidade da intervenção policial, bem como a
razoabilidade e proporcionalidade da ação, além de apurar algum possível resquício
administrativo disciplinar.
Este não é o momento de detalharmos os procedimentos da lavratura de uma
intervenção policial que tem como resultado o óbito de civil, comumente chamado de Auto de
Resistência, muito menos esmiuçar as diferenças entre os procedimentos investigatórios a
esfera civil e militar. Por enquanto, interessa-nos expor as diferenças existentes na natureza da
ação de um agente que atua em nome do estado (o militar estadual), para um agente que atua
em nome próprio (o civil), apesar de incidirem em tipos penais formalmente idênticos: matar
alguém.
Por isso, é que para a aplicação do princípio da especialidade, o operador do direito
além de encontrar os elementos gerais do tipo deve, principalmente, observar a especialidade
da matéria e verificar a real natureza da conduta do agente, neste caso uma obrigação do
servidor público e não uma mera escolha em nome próprio. Nesse sentido, Francisco de Assis
Toledo ensina que: "Se entre duas ou mais normas legais existe uma relação de especialidade,
isto é, de gênero para espécie, a regra é a de que a norma especial afasta a incidência da
norma geral." (TOLEDO, 1994, p. 51). Resta-nos concluir, que o militar estadual de serviço,
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que é autor de uma ação que resultou no óbito de um civil, jamais poderia ser enquadrado no
art. 121 do CPB, mas apenas no art. 205 do CPM, devendo ser apresentado à autoridade da
polícia judiciária militar com atribuição para promover tal investigação. Nas palavras de
Pontes de Miranda, "o conceito de lei especial não se tira da sua separação formal, e sim da
sua especialidade substancial". (MIRANDA, 1999, p. 69)
Com percuciência, ensina o Célio Lobão: “O Direito Penal Militar é especial em razão
do bem jurídico tutelado, isto é, as instituições militares, no aspecto particular da disciplina,
da hierarquia, do serviço e do dever militar, acrescido da condição de militar dos sujeitos do
delito”. (LOBÃO, 2002, p. 38-45).
Não por acaso escolhemos tratar do princípio da especialidade logo após o capítulo
sobre o bem jurídico do crime militar, é proposital, reflete diretamente o pensamento de que o
instituto do bem jurídico, está intimamente ligado ao princípio da especialidade, por
entendermos que tais circunstâncias especiais, as quais estão submetidos os militares, também
devem ser alinhadas aos valores da instituição militar, e assim, alcançar a completude do
conceito de bem jurídico na esfera militar. É o que chamamos de bem jurídico complexo.
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5 DO AUTO DE RESISTÊNCIA
A expressão "auto de resistência" é utilizada no meio policial para nomear o auto
circunstanciado previsto no art. 292 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941
(Código de Processo Penal) e também no art. 234 Decreto-Lei nº 1.002, de 21 de outubro de
1969 (Código de Processo Penal Militar), e como não lhe foi atribuído nome específico na
legislação, essa expressão tornou-se a mais utilizada e conhecida, vejamos:
Art. 292. Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em
flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o
auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a
resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas.
(BRASIL, Decreto-Lei nº 3.689, 1941)
Art. 234. O emprego de fôrça só é permitido quando indispensável, no caso de
desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de
terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do
executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto
subscrito pelo executor e por duas testemunhas. (BRASIL, Decreto-Lei nº 1.002,
1969) (grifo nosso)
O uso da força pelo órgão policial faz-se necessário quando ocorre uma resistência ativa
ou passiva por parte do suspeito. Podemos dizer aqui que este é o momento em que a
determinação legal é imposta de forma mais concreta ao indivíduo, e por isso, talvez seja este
um dos pontos mais controversos da atividade policial. Com o emprego da força é que o
Estado impõe sua autoridade ao indivíduo e o força a agir dentro dos limites legais.
Por outro lado não se pode ser conivente com uma polícia arbitrária, violenta e
desproporcional. A linha que divide uma ação policial legítima de uma ação violenta do
Estado é muito tênue, e requer preparo físico e psicológico do agente público, afinal se sua
ação não for eficaz, não conseguirá impor o que determina a lei, e se for muito truculenta,
pode cometer abuso de poder. Acontece que o policial não pode ser omisso, mas não deve
exacerbar o uso da força, o que o coloca em permanente risco de erro.
A ação policial adequada é aquela que está revestida de legalidade seja razoável (tenha
aptidão para resolver o problema), e proporcional, entenda-se: que responda à oposição com
intensidade estritamente suficiente para convencer à obediência. Assim, Guilherme de Souza
Nucci, acerca da definição do AR, descreve-o da seguinte forma:
Auto circunstanciado: determina a lei que, havendo resistência, consequentemente o
emprego de violência contra terceiros ou contra o próprio detido, para justificar os
danos ocorridos- em pessoas ou coisas- lavra-se um termo, contendo todas as
circunstâncias do evento, subscrito por duas testemunhas que tenham assistido ao
ato, evitando-se, com isso, qualquer responsabilização do executor da prisão, ou
31
pelo menos, documentando o que houver, para futura utilização. (NUCCI, 2013,
p. 241)
O auto de resistência (AR) é um documento que tem o condão de relatar, de forma
pormenorizada, sob quais circunstâncias foi efetivada a prisão, ou seja, é uma peça
informativa elaborada pela autoridade policial. O seu destino final é a justiça, que apreciará os
fatos ali narrados e fará o juízo de valor, tanto no que diz respeito à ação do suspeito, quanto
no que se refere à ação do agente público. É uma peça de suma importância, lavrada logo após
a efetivação da prisão, o que proporciona maior verossimilhança com a realidade dos fatos,
fundamental para o desenrolar da ação penal.
Infelizmente, a lavratura do auto de resistência torna-se mais comum a cada dia,
resultado de uma cultura de desconfiança nas instituições estatais. Poderíamos dizer que o
aumento da resistência à prisão é culpa da descrença nos órgãos policiais, mas estaríamos
sendo simplistas e levianos, pois sabemos que a polícia é mero órgão de execução do Estado e
os problemas são mais profundos. Uma visão ampla da atual situação da segurança pública
nacional requer uma análise mais detalhada da legislação em vigor; do alcance e da qualidade
do ensino público; da falta de emprego, dentre outras circunstâncias variadas que contribuem
para o aumento da criminalidade, mas que parecem ser lembradas apenas no momento da
prisão, quando mais nada pode ser feito, senão a fria aplicação da lei.
O estudo do auto de resistência tem seu termo mais crítico quando a ação policial
resulta em óbito. A 11ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (BRASIL, Anuário
Brasileiro de Segurança Pública, 2017), divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, mostra um aumento no número de pessoas mortas em ações policiais, sejam ações da
Polícia Militar ou Polícia Civil, que no ano de 2016 alcançou o expressivo número de 4.222
óbitos, um crescimento de 25,8% em relação ao ano anterior. Por outro lado, o mesmo anuário
relata que 453 policiais militares e civis foram mortos no ano de 2016, isto faz com que a
polícia brasileira não seja, apenas, a que mais mata em números absolutos, como também,
seja a polícia que mais morre no mundo todo, como entender tal situação?
À primeira vista, o que se quer é simplesmente diminuir os números, nem que para isto
sejam implantadas soluções paliativas, afinal o desgaste eleitoral nunca é bom e a verba
pública nunca é suficiente, então a solução mais prática é tentar constranger as forças policiais
a simplesmente não atirarem, sem tiros, sem morte, afinal a polícia existe para prender e não
para tirar vidas, parece bem razoável, mas nem tudo é tão simples. Para resguardar a vida,
todos os argumentos são válidos, inclusive trazer à tona toda a doutrina dos Direitos
32
Fundamentais, só não se pode olvidar que os agentes do estado também fazem jus aos
mesmos direitos, principalmente o direito à vida, por óbvio!
Quando são analisadas as estatísticas da 11ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança
Pública, uma forma de interpretação dos números é a seguinte: no ano de 2016, 453 policiais
foram mortos, somando-se ainda 4.222 tentativas de homicídios contra policiais em serviço,
que acabaram resultando no óbito do suspeito. Pode a priori parecer incomum, pois o
tratamento midiático que se dá aos números tem claramente cunho político. Não se quer aqui
dizer que as polícias não comentem erros, e nem que 100% dos 4.222 óbitos foram legítimos,
mas com total certeza a maioria esmagadora das ocorrências com resultado morte foi sim
legítima, não se pode esquecer, que só existe resistência com resultado morte se houver arma
de fogo, e o número de armas ilegais nas mãos dos criminosos é muito alto. Ao cabo, é
preciso que se crie a consciência de que o óbito de uma das partes, seja a força policial, seja
do indivíduo à margem da lei, é um resultado esperando quando se trata de resistência com
arma de fogo.
A Resolução nº 8, de 20 de dezembro de 2012, expedida pelo Conselho de Defesa dos
Direitos da Pessoa Humana, vinculado à Secretaria de Direitos Humanos de Presidência da
República, em suma, orienta o seguinte:
Art. 1º - As autoridades policiais devem deixar de usar em registros policiais,
boletins de ocorrência, inquéritos policiais e notícias de crimes designações
genéricas como "autos de resistência", "resistência seguida de morte", promovendo o
registro, com o nome técnico de "lesão corporal decorrente de intervenção policial"
ou "homicídio decorrente de intervenção policial", conforme o caso. (BRASIL,
Resolução nº8, 2012)
Com a devida vênia, a mudança de nomenclatura não muda a natureza dos fatos, não
contribui para a diminuição das ocorrências de resistências com resultado morte, não tem o
mínimo de embasamento legal, afinal, o crime de resistência é simplesmente ignorado, sem
mencionar que existe uma dupla atecnia jurídica. Primeiro, por simplesmente ignorar a fé
pública do agente policial, quem primeiro teve contato com os fatos, e depois por presumir,
antes de qualquer investigação, que a intervenção policial foi um homicídio, o que abala até
os alicerces da presunção de inocência, pois tal crime só se configura se não estiver
respaldado pelo instituto da legítima defesa, como o é, na esmagadora maioria das vezes.
O auto de resistência não se exaure em si mesmo, é apenas um auto circunstanciado que
junto a outras providências vão inaugurar o Inquérito policial, militar, vejamos o que diz o
CPPM:
33
Art. 12. Logo que tiver conhecimento da prática de infração penal militar,
verificável na ocasião, a autoridade a que se refere o § 2º do art. 10 deverá, se
possível:
a) dirigir-se ao local, providenciando para que se não alterem o estado e a situação
das coisas, enquanto necessário;
b) apreender os instrumentos e todos os objetos que tenham relação com o fato;
c) efetuar a prisão do infrator, observado o disposto no art. 244;
d) colhêr tôdas as provas que sirvam para o esclarecimento do fato e suas
circunstâncias. (BRASIL, Decreto-Lei nº 1.002, 1969)
O auto de resistência não é sinônimo de impunidade, pelo contrário, a versão dos fatos
que é narrada pelos policiais será comparada com as provas materiais produzidas em sede de
inquérito e também com as versões das testemunhas e/ou familiares das vítimas. Uma
investigação completa, visando esclarecer não apenas a autoria e materialidade, mas
principalmente, a existência da excludente de ilicitude. Seja qual for a nomenclatura utilizada,
a ocorrência policial que tem como resultado o óbito de civil não pode ser tratada como uma
faculdade do policial, afinal quando se fala de resistência armada, as escolhas do profissional
de segurança são retiradas, resta apenas responder aos disparos para salvaguardar a própria
vida ou a de terceiros. Submeter o policial ao constante enfrentamento da resistência com
arma de fogo é, na verdade, coagi-lo a atirar sob pena de perder a própria vida.
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6 DO PROCEDIMENTO DO TRIBUNAL DO JÚRI
O instituto do Tribunal do Júri foi criado no Brasil por meio de um Decreto do Príncipe
Regente, datado de 18 de junho de 1822 influenciado pelos sistemas anglo-saxão e francês,
muito diferente do Tribunal do Júri como conhecemos hoje, pois competia a ele, apenas, o
julgamento dos crimes contra a liberdade de imprensa. A partir da Constituição de 1824 o
Tribunal do Júri passou a compor o Poder Judiciário, e teve sua competência ampliada, tanto
na área cível como criminal, mas foi apenas com o advento do Código Criminal de 1832 que
o Júri teve seus procedimentos disciplinados.
Os meados do século XIX foram marcados por movimentos revolucionários no
território brasileiro, e foi graças a esta instabilidade política que foi editada a Lei nº 562 de 2
de julho de 1850, que teve o condão de subtrair da competência do Júri para o julgamento dos
crimes de moeda falsa, homicídio, resistência e tirada de presos dentre outros. Tal situação
durou até 1871, quando foi promulgada a Lei nº 2.033 que restabeleceu sua competência.
A Constituição de 1891, a primeira republicana, manteve o instituto do tribunal do Júri
com status constitucional, mantendo também sua soberania. O mesmo ocorreu com a
Constituição de 1934, mas não houve atenção à sua soberania, sendo aprovada com o seguinte
texto no art. 72: “É mantida a instituição do Júri, com a organização e as atribuições que lhe
der a lei”.
Houve controvérsia sobre a manutenção do Tribunal do Júri no pós Constituição de
1937, isto pelo fato de ter sido retirado do texto da Constituição, que não lhe fazia referência
em nenhum momento; foi para regular tal situação, que houve a promulgação do Decreto-Lei
nº167 que novamente instituiu o Tribunal em nosso ordenamento jurídico.
A Constituição de 1946 teve o mérito de reinserir o Tribunal do Júri no capítulo dos
direitos e garantias constitucionais, pois na constituição de 1934, o instituto fora deslocado
para o capítulo referente a estrutura do Poder Judiciário.
A Constituição de 1967 manteve a soberania do Tribunal do Júri, conforme o disposto
no art. 150, §18: “São mantidas a instituição e a soberania do Júri, que terá competência no
julgamento dos crimes dolosos contra a vida”, mas a emenda constitucional de 1969 retirou
do texto a referência à sua soberania, ficando o §18 do art. 153 da seguinte forma: “é mantida
a instituição do Júri, que terá competência no julgamento dos crimes dolosos contra a vida”.
Atualmente, a instituição é reconhecida constitucionalmente, compondo o rol dos
direito e garantias fundamentais, vejamos:
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Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
XXXVIII - é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei,
assegurados:
a) a plenitude de defesa;
b) o sigilo das votações;
c) a soberania dos veredictos;
d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida; (BRASIL,
Constituição Federal, 1988)
A plenitude de defesa é, na verdade, uma derivação do inciso LV, do art. 5º da própria
CF, pois é assegurado ao acusado uma defesa vasta e ampla com total liberdade de
argumentos, jurídicos ou não, tudo com o objetivo de convencer os jurados que decidem por
livre consciência. Cabe lembrar também, que é possível, inclusive, a autodefesa no momento
do interrogatório do acusado.
O sigilo do voto diz respeito a resguardar a liberdade de convicção e opinião dos
jurados, tudo para preservar a imparcialidade da decisão, sendo inclusive, vedada a
interferência de terceiros. Cabe salientar que tal sigilo constitui uma exceção ao princípio da
publicidade, que também tem previsão constitucional, conforme art. 93, IX, tudo para
assegurar a imparcialidade dos jurados.
A soberania do veredicto, diz respeito a impossibilidade de modificação da decisão dos
jurados, isto porque, tal decisão não pode ser revista nem pelo Juiz-Presidente e nem mesmo
por quem é competente para avaliar eventual recurso interposto. A exceção consiste no
argumento de que a decisão dos jurados foi manifestamente contrária às provas produzidas
durante o processo, ainda assim, não existe a possibilidade de reformar a decisão dos jurados,
mas apenas cassar o julgamento anterior e remeter o caso para um novo Tribunal do Júri, pois,
desta forma, permanece intacto o princípio da soberania.
Por último, foi estabelecida a competência do tribunal do Júri com exclusividade para
os crimes dolosos contra a vida, claramente uma opção política do legislador.
O Tribunal do Júri tem seu procedimento dividido em três fases, a primeira é chamada
de fase da formação da culpa, neste momento é feito o juízo de admissibilidade, onde deve
estar evidente a ocorrência do crime doloso contra a vida, sendo quatro os possíveis resultado:
1 - A pronúncia, quando o juiz encontra indícios suficientes de autoria e materialidade
de crime doloso contra a vida e submete o acusado ao Tribunal do Júri, é o que preceitua o art.
413 do Código de Processo Penal:
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Art. 413. O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da
materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de
participação.
§ 1o A fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do
fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o
juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as
circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena. (BRASIL, Decreto-
Lei nº 3.689, 1941)
2 - A desclassificação, isto quando o juiz entender que tal fato não constitui crime
doloso contra a vida, o que retira a competência do Tribunal do Júri para julgamento, é o
previsto no art. 419 do CPP: "Quando o juiz se convencer, em discordância com a acusação,
da existência de crime diverso dos referidos no § 1o do art. 74 deste Código e não for
competente para o julgamento, remeterá os autos ao juiz que o seja." (BRASIL, Decreto-Lei
nº 3.689, 1941)
3 - A terceira possibilidade é a impronuncia, prevista no art. 414 do CPP, quando não há
indício de autoria e nem prova de materialidade do fato, então o acusado não será submetido
ao Júri: "Não se convencendo da materialidade do fato ou da existência de indícios suficientes
de autoria ou de participação, o juiz, fundamentadamente, impronunciará o acusado."
(BRASIL, Decreto-Lei nº 3.689, 1941)
4 - Por último a absolvição sumária, isto quando ficar provado que o fato não existiu, ou
se restar provado que o acusado não é o autor ou partícipe do crime, ou se não foi
vislumbrado ilícito penal, principalmente se ficar provada a existência de alguma das
excludentes de ilicitude, vejamos:
Art. 415. O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado,
quando:
I – provada a inexistência do fato;
II – provado não ser ele autor ou partícipe do fato;
III – o fato não constituir infração penal;
IV – demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime.
Parágrafo único. Não se aplica o disposto no inciso IV do caput deste artigo ao
caso de inimputabilidade prevista no caput do art. 26 do Decreto-Lei no 2.848, de 7
de dezembro de 1940 – Código Penal, salvo quando esta for a única tese
defensiva. (BRASIL, Decreto-Lei nº 3.689, 1941)
Tal decisão de natureza declaratória encerrará a primeira fase do processo.
A fase seguinte é a preparação do processo para julgamento em plenário, tem início
após o trânsito em julgado da decisão de pronúncia e segue até o momento da instalação da
sessão de plenário do Tribunal do Júri.
37
A última fase é chamada de juízo de mérito, é a que se desenvolve no plenário e
culminará com a sentença, que é apenas proferida pelo juiz-presidente, que irá fazê-lo com
base no veredicto dos jurados.
Via de regra, os nomes dos jurados são oriundos da listagem dos cartórios eleitorais,
estas são enviadas para o juiz-presidente que fará a pesquisa dos antecedentes criminais. Uma
vez verificada a idoneidade moral do jurado, também é observada sua aptidão prática, mas
isto quando já estão os jurados sorteados para as listas de sessão de julgamento.
No dia marcado para ser aberta a sessão de julgamento, será também realizado o sorteio
dos sete jurados que comporão o Conselho de Sentença, mas é permitida neste momento a
interferência, tanto da defesa, quanto da acusação, pois cada parte pode recusar até três
jurados injustificadamente, se por acaso houver razão que justifique a recusa do jurado, esta
não será computada do número de três.
Uma vez formado o Conselho de Sentença, os jurados devem, de forma solene, prestar o
compromisso de examinar a causa com imparcialidade e de decidir com consciência e justiça.
Após isto, o julgamento seguirá com seus atos até o momento da votação dos jurados e
posterior leitura da sentença, quando a decisão será publicizada e o juiz-presidente encerrará a
sessão. Faz-se importante lembrar que não há necessidade de os jurados fundamentarem os
externarem os motivos de sua decisão, se pela condenação ou absolvição, a eles é conferida
total autonomia, cabendo ao juiz-presidente apenas aplicar a pena no caso de condenação.
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7 DA ORGANIZAÇÃO DA JUSTIÇA MILITAR ESTADUAL
A Lei 192 de 17 de janeiro de 1936 criou a Justiça Militar Estadual, lastreada na
Constituição Federal de 1934. Verifica-se que a partir desta Constituição, o Superior Tribunal
Militar e a Justiça Militar foram definitivamente incorporados à estrutura do Poder Judiciário
da União, como resultante da vontade superior da Assembleia Nacional Constituinte de 1934,
sendo que na Carta de 1946, aquele tribunal passou a se chamar Superior Tribunal Militar.
Foi com a Constituição Federal de 1946, que a Justiça Militar Estadual alcançou status
constitucional, isto por conta da previsão do inciso XII do art. 124:
Art 124 - Os Estados organizarão a sua Justiça, com observância dos arts. 95 a 97 e
também dos seguintes princípios:
XII - a Justiça Militar estadual, organizada com observância dos preceitos gerais da
lei federal (art. 5º, nº XV, letra f), terá como órgãos de primeira instância os
Conselhos de Justiça e como órgão de segunda instância um Tribunal especial ou o
Tribunal de Justiça. (BRASIL, Constituição Federal, 1946)
A Constituição de 1967 previu, na alínea d, do § 1º, do art. 137 o seguinte: "Justiça
Militar estadual, tendo como órgão de primeira instância os Conselhos de Justiça e de segunda
um Tribunal especial ou o Tribunal de Justiça."
Mais tarde, a Emenda Constitucional nº 7 de 1977, alterou a redação do dispositivo
citado, que passou a vigorar com a seguinte redação: "justiça militar estadual, constituída em
primeira instância pelos Conselhos de Justiça, e, em segunda, pelo próprio Tribunal de
Justiça, com competência para processar e julgar, nos crimes militares definidos em lei, os
integrantes das policiais militares." (BRASIL, Constituição Federal, 1967)
Antes de falar da previsão constitucional na Justiça Militar Estadual, na Carta Magna de
1988, faz-se necessário destacar a importância das modificações promovidas pela Emenda
Constitucional nº 45 de 2004, conhecida como a emenda da "reforma" do Poder Judiciário.
Dentre as várias modificações, destacam-se as realizadas no art. 125:
Art. 125. ................................................
§ 3º A lei estadual poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça, a Justiça
Militar estadual, constituída, em primeiro grau, pelos juízes de direito e pelos
Conselhos de Justiça e, em segundo grau, pelo próprio Tribunal de Justiça, ou por
Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo militar seja superior a vinte
mil integrantes.
§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados,
nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares
militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao
tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da
graduação das praças.
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§ 5º Compete aos juízes de direito do juízo militar processar e julgar, singularmente,
os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos
disciplinares militares, cabendo ao Conselho de Justiça, sob a presidência de juiz de
direito, processar e julgar os demais crimes militares.
§ 6º O Tribunal de Justiça poderá funcionar descentralizadamente, constituindo
Câmaras regionais, a fim de assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à justiça em
todas as fases do processo.
§ 7º O Tribunal de Justiça instalará a justiça itinerante, com a realização de
audiências e demais funções da atividade jurisdicional, nos limites territoriais da
respectiva jurisdição, servindo-se de equipamentos públicos e comunitários.
(BRASIL, Constituição Federal, 1988)
A principal distinção entre a Justiça Militar da União e a dos Estados diz respeito à
competência, especificamente, no que se refere aos jurisdicionados. Compete àquela processar
e julgar os militares integrantes das forças armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) e, de
forma excepcional, civis, nos crimes militares definidos em lei. Diferente do que ocorre com a
Justiça Militar Estadual, pois conforme previsão do § 4º do art. 125 da CF, é competente para
julgar apenas os militares estaduais (Policiais e Bombeiros militares), excetuando-se os civis.
A previsão constitucional é cristalina, a Justiça Militar estadual é órgão do Poder
Judiciário, enquanto as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares são instituições do
Poder Executivo, pois o desconhecimento faz imaginar que a Justiça Militar pertenceria à
Polícia Militar, e, por isso, não haveria imparcialidade nas decisões, o que não faz o menor
sentido, afinal, não há sobreposição entre os três poderes. Veremos mais sobre a estrutura da
Justiça Militar Estadual.
A despeito da autorização constitucional prevista no§ 3º, do art. 125, para a criação do
Tribunal de Justiça Militar Estadual, apenas os Estados do Rio Grande do Sul, São Paulo e
Minas Gerais, possuem Tribunais Militares Estaduais desvinculados do Tribunal de Justiça do
Estado, nos quais se opera a Justiça comum; nos outros 24 estados, o Tribunal de Justiça
Estadual é único, e também funciona como a segunda instância para a Justiça Militar
Estadual.
Nos três estados supracitados, a Justiça Militar Estadual é dividida em duas instâncias, o
primeiro grau constituído por Juízes de Direito do Juízo Militar e os Conselhos de Justiça.
Estes que são divididos em duas categorias: o Conselho Especial de Justiça, para o
julgamento de Oficiais, e o Conselho Permanente de Justiça, para o julgamento das praças. O
segundo grau de jurisdição é exercido pelo Tribunal de Justiça Militar do Estado, composto
por juízes que integram o órgão.
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Ao Conselho Especial de Justiça, compete processar e julgar todos os Oficiais, até o
último posto, quando da prática de crime militar contra os militares da mesma instituição. O
Conselho Permanente de Justiça é competente para processar e julgar as praças, nas hipóteses
de crimes militares, também praticados contra os militares da mesma instituição. (LOBÃO,
2009, p. 132)
À exceção dos estados de SP, MG e RG, que possuem Tribunal de Justiça Militar
Estadual, e leis de organização judiciária militar estadual própria, nos demais estados da
federação, o segundo grau de jurisdição da Justiça Militar Estadual é exercido pelo próprio
Tribunal de Justiça do Estado, sendo assim, a composição dos Conselhos de Justiça,
guardadas as devidas proporções, segue o disposto na Lei nº 8.457 de 4 de setembro de 1992,
que, na verdade, organiza a Justiça Militar da União e regula os órgãos da 1ª instância da
Justiça Militar Federal.
Desta forma, o Conselho Especial de Justiça é composto pelo Juiz de Direito do Juízo
Militar e quatro Oficiais de posto superior, ou mais antigos que o acusado, ou na falta, por
oficiais mais modernos. Já o Conselho Permanente de Justiça, é também presidido pelo Juiz
de Direito do Juízo Militar, e composto por um Oficial Superior e três Oficiais até o posto de
Capitão. (LOBÃO, 2009, p. 132)
No caso do Estado da Bahia, a previsão do Conselho de Justiça Militar, tem previsão
no art. 110 da Constituição Estadual, com um dos órgãos do Poder Judiciário:
CAPÍTULO III - DO PODER JUDICIÁRIO
SEÇÃO I - DAS DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 110 - São órgãos do Poder Judiciário:
I - o Tribunal de Justiça;
II - o Tribunal de Alçada;
III - os Tribunais do Júri;
IV - os Juízes de Direito;
V - o Conselho de Justiça Militar;
VI - os Juizados Especiais;
VII - os Juizados de Pequenas Causas;
VIII - os Juizados de Paz. (BAHIA, Constituição Estadual, 1989)
O Juiz de Direito do Juízo Militar, denominação atual do Auditor, é um bacharel em
Direito, que ingressa na carreira por concurso público de provas e títulos, para o cargo de Juiz
de Direito Substituto, e tem os mesmos deveres, garantias e prerrogativas dos magistrados da
primeira instância da Justiça comum. É ele quem dirige os trabalhos dos conselhos, sendo
competente também para elaboração e prolatação das sentenças.
41
A mudança da nomenclatura do cargo de Juiz Auditor, para Juiz de Direito do Juízo
Militar, ocorreu em razão do advento da Emenda Constitucional nº 45 de 2004, que inseriu o
§ 5º do art. 125 da Constituição Federal de 1988, modificando a nomenclatura do cargo.
Dada sua especialidade, a Constituição do Estado da Bahia trata da Justiça Militar em
seção própria:
SEÇÃO VI - DA JUSTIÇA MILITAR
Art. 128 - A justiça Militar é exercida:
I - em primeiro grau, pelo Conselho de Justiça Militar;
II - em segundo grau, pelo Tribunal de Justiça, a quem cabe decidir sobre a perda do
posto e da patente dos oficiais, e sobre a perda da graduação dos praças.
§ 1º - A constituição, o funcionamento e as atribuições do Conselho de Justiça
atenderão às normas da Lei de Organização Militar da União.
§ 2º - A lei estadual poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça, o
Tribunal de Justiça Militar. (BAHIA, Constituição Estadual, 1989)
A Lei Estadual nº 10.845, de 27 de novembro de 2007, que dispõe sobre a organização e
divisão judiciária do Estado da Bahia, elenca no inciso IV, do art. 34, os Juízes Auditores e
Conselhos de Justiça Militar, como órgãos do Poder Judiciário, bem como os artigos 100, 101
e 102, tratam da sua organização, vejamos:
Art. 34 - São órgãos do Poder Judiciário:
I - Tribunal de Justiça;
II - Juízes de Direito;
III - Tribunais do Júri;
IV - Juízes Auditores e Conselhos de Justiça Militar;
V - Juízes Substitutos;
VI - Turmas Recursais dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais;
VII - Juizados Especiais Cíveis e Criminais;
VIII - Conselhos Municipais de Conciliação;
IX - Juízes de Paz; e
X - outros órgãos instituídos por lei.
SEÇÃO V - DA AUDITORIA MILITAR
Art. 100 - A Justiça Militar Estadual é exercida:
I - em primeiro grau, pelos Juízes Auditores e pelos Conselhos de Justiça Militar;
II - em segundo grau, pelo Tribunal de Justiça.
Art. 101 - A constituição, o funcionamento, a competência e as atribuições dos
Conselhos da Justiça Militar e da Auditoria Militar obedecerão às normas da Lei de
Organização Judiciária Militar.
Art. 102 - Compete ao Juiz Auditor:
I - funcionar como auditor nos processos de alçada da Justiça Militar Estadual;
II - praticar, em geral, os atos de jurisdição criminal regulados pelo Código de
Processo Penal Militar, não atribuídos expressamente a jurisdição diversa;
III - providenciar a remessa dos autos à Vara das Execuções Criminais tão logo
transite em julgado a sentença, passando-lhe à disposição os condenados presos e
fazendo as devidas comunicações.
Parágrafo único - Em caso de comprovada necessidade, o Auditor da Justiça
Militar poderá requisitar integrantes da Polícia Militar para auxiliar nos serviços do
Cartório.
Art. 130 - Na Comarca de Salvador servirão 305 (trezentos e cinco) Juízes de
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Direito, distribuídos pelas seguintes Varas que, em sendo mais de uma, se
distinguirão por numeração ordinal:
XV - 1 (uma) Vara da Auditoria Militar; (BAHIA, Lei nº 10.845, 2007)
Importante salientar que, por mandamento do § 5º, do art. 125, da Constituição Federal,
os crimes militares praticados contra civis são julgados singularmente pelo Juiz de Direito do
Juízo Militar. A única exceção diz respeito ao crime contra a vida de civil na modalidade
dolosa, que apesar de ainda ser crime militar, deve ser Julgado pela Justiça comum, conforme
preceitua o § 4º, do art. 125, da Constituição Federal e o § 1º, do art. 9º, do Código Penal
Militar. Nesta senda, o crime contra a vida de civil, na modalidade culposa, deve sim, ser
julgado singularmente pelo Juiz de Direito do Juízo Militar, que é a regra.
43
8 ANÁLISE DA ADI 1.494-DF: O ENTENDIMENTO DO STF SOBRE A
CONSTITUCIONALIDADE DO § 2º DO ART. 82 DO CÓDIGO DE PROCESSO
PENAL MILITAR.
O aparente conflito de atribuição entre a Polícia Judiciária Militar Estadual e a Polícia
Civil, quando da investigação do crime doloso contra a vida de civil, foi resolvido por meio
do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.494-DF, impetrada pela
Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (ADEPOL), com pedido liminar de
afastamento do § 2º do art. 82 do Código de Processo Penal Militar, vejamos:
Art. 82. O foro militar é especial, e, exceto nos crimes dolosos contra a vida
praticados contra civil, a ele estão sujeitos, em tempo de paz:
§ 2° Nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Justiça Militar
encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum. (BRASIL,
Decreto-Lei nº 1.002, 1969)
O argumento utilizado pela ADEPOL foi que o §2º do art. 82 do CPPM, é
inconstitucional por confrontar o disposto no §1º, inciso IV e §4º do art. 144 da Constituição
Federal:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos,
é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do
patrimônio, através dos seguintes órgãos:
§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e
mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:
IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.
§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem,
ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de
infrações penais, exceto as militares. (BRASIL, Constituição Federal, 1988)
O §4º do art. 144 é taxativo, as infrações penais militares estão fora do alcance
investigativo da Polícia Civil, e é esta a determinação constitucional. Então fica a pergunta,
como surgiu o aparente conflito de atribuição entre os policiais civis e militares estaduais
quando da investigação do crime doloso contra a vida de civil quando praticado por policial
militar?
A Lei 9.299 de 7 de agosto de 1996, foi editada com o fim exclusivo de realizar
modificações no Código Penal Militar e no Código de Processo Penal Militar. No que diz
respeito ao CPM, buscou-se alterar o art. 9º, principalmente por meio do acréscimo do
parágrafo único, com a seguinte redação:
44
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e
cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum. (BRASIL, Decreto-
Lei nº 1.001, 1969)
A clareza do dispositivo legal não permitia dúvida, a Justiça comum é a competente
para julgar os crimes dolosos contra a vida, quando cometidos por militar contra civil. No
entanto, tal dispositivo legal foi reeditado com a promulgação da Lei nº 13.491 de 13 de
outubro de 2017, que trouxe relevantes alterações para o art. 9º do CPM.
A nova redação do inciso II do art. 9º do CPM, ampliou consideravelmente a
competência da Justiça Militar, a partir de então, todos os crimes e contravenções penais
existentes no ordenamento jurídico pátrio, se forem praticados em alguma das hipóteses do
inciso II, são crimes militares, e por isso sujeitos à jurisdição militar:
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando
praticados: (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017)
a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma
situação ou assemelhado;
b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à
administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou
civil;
c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza
militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar
contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; (Redação dada pela Lei nº 9.299,
de 8.8.1996)
d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva,
ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a
administração militar, ou a ordem administrativa militar; (BRASIL, Decreto-Lei nº
1.001, 1969) (grifo nosso)
Desta forma, a despeito de o tipo penal existir de maneira diversa na legislação penal
comum, tornar-se-á crime militar por força do Código Penal Militar, o que atrai de forma
imediata a competência da Justiça Militar para processamento e julgamento. Resta a
legislação penal comum, a aplicação subsidiária, quando não se tratar de nenhuma das
hipóteses do art. 9º do CPM.
Fato é que, a ampliação da competência da Justiça Militar foi ampliada, convém
esclarecer que existem inúmeros tipos penais no Código Penal Comum e nas leis
extravagantes, que não têm previsão no Código Penal Militar, e que passam a integrar o rol de
crimes militares, quando praticados nas circunstâncias dispostas no inciso II, do art. 9º, do
Código Penal Militar.
45
Da mesma forma, o texto do parágrafo único foi revogado, passando a vigorar o § 1º,
houve um aprimoramento técnico-jurídico na redação do artigo, mas não houve modificação
material do texto, mantendo-se a competência do Tribunal do Júri para o julgamento dos
crimes dolosos contra a vida de civil.
Ao § 2º do art. 9º do CPM, restou ser a última das novidades incorporadas pela Lei nº
13.481/17. Criou-se uma exceção para os militares das Forças Armadas, que em hipóteses
específicas, ainda que cometa crime doloso contra a vida de civil, será julgado pela Justiça
Militar, vejamos:
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
§ 2o Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por
militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar
da União, se praticados no contexto:
I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da
República ou pelo Ministro de Estado da Defesa;
II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar,
mesmo que não beligerante; ou (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)
III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da
ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no
art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais:
a) Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - Código Brasileiro de Aeronáutica;
b) Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999;
c) Decreto-Lei no 1.002, de 21 de outubro de 1969 - Código de Processo Penal
Militar; e
d) Lei no 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral. (BRASIL, Decreto-Lei nº
1.001, 1969)
A despeito de a Lei nº Lei nº 13.481/17, realizar importantes modificações no art. 9º do
CPM, a Lei nº 9.299/96 não foi revogada, por isso mantêm-se em vigor o disposto no § 2º do
art. 82 do Código de Processo Penal Militar, justamente o dispositivo impugnado na ADI nº
1.494-DF, impetrada pela ADEPOL.
O que não se pode admitir, é que a modificação da Justiça competente para julgamento,
se confunda com a modificação da natureza da infração, por assim dizer, ainda que o crime
doloso contra a vida de civil, cometido por militar, seja da competência da Justiça comum, o
tipo penal permanece com a qualidade de infração penal militar. Se de outra forma fosse,
estaríamos desprezando o bem jurídico tutelado pelo tipo penal, neste caso ainda mais grave,
dada a especificidade da disciplina Penal Militar que, como vimos no capítulo 3 deste
trabalho, tutela bens jurídicos complexos.
O objetivo da Lei 9.299/96 foi alcançado, qual seja a mudança da competência de
julgamento do crime doloso contra a vida de civil, isto quando tal fato for praticado por
militar, e tal alteração foi ainda mantida pela Lei nº 13.481/17. Se o objetivo fosse, retirar a
atribuição da Polícia Judiciária Militar para apurar fatos desta natureza, por certo o legislador
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o teria feito, houve mais de uma oportunidade, mas própria Lei nº 9.299/96 que modificou a
competência para julgar tais crimes, também incluiu o § 2º do art. 82 do CPPM, e reconheceu
taxativamente, o Inquérito Policial Militar como o instrumento de apuração adequado,
vejamos:
Art. 82. O foro militar é especial, e, exceto nos crimes dolosos contra a vida
praticados contra civil, a ele estão sujeitos, em tempo de paz:
§ 2° Nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Justiça Militar
encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum. (BRASIL, Decreto-Lei nº 1.002, 1969)
Quando o fato jurídico encontra a perfeita correspondência no Código Penal Militar,
principalmente no diploma legal previsto no art. 9º do CPM, trata-se então de uma infração
militar. Faço minha as palavras do baiano Ruy Babosa: “Com a lei, pela lei e dentro da lei;
porque fora da lei não há salvação.”
Não é o local competente para o julgamento do delito, o responsável por dizer a
natureza do crime, muito pelo contrário, a natureza do delito, é que, na maioria das vezes, dita
a competência para julgamento. Supondo que o uma guarnição policial militar esteja de
serviço, realizando o patrulhamento em determina região, quando se evolve em uma
ocorrência, e o resultado é o óbito de um civil. No momento da apresentação da ocorrência à
autoridade policial competente, já é possível dizer se o fato realmente é crime? No momento
da apresentação da ocorrência, já é possível dizer se o policial militar agiu em legítima
defesa? No momento da apresentação do fato, já é possível dizer se houve dolo? Existe a
possibilidade de o fato ser uma lesão corporal seguida de morte? Existe a possibilidade de o
fato ser culposo? Tais perguntas precisam ser respondidas, daí a necessidade de o fato ser
rigorosamente apurado por meio do Inquérito Policial Militar, só ao final da apuração,
existirão elementos de convicção suficientes para responder tais questões, com o mínimo de
subsídio probatório.
O art. 9º do Código Penal Militar é de difícil compreensão, para quem é leigo na
disciplina, e não era de se esperar que fosse diferente, afinal, trata-se de matéria específica
que precisa de dedicação e afinidade para intelecção. A ADEPOL, na condição de
representante de classe que é, tentou na verdade, induzir o STF ao entendimento de que o
crime doloso contra a vida de civil, quando praticado por militar, não é mais crime militar,
mesmo com o art. 9º do CPM dizendo o contrário. Continuaremos com o exemplo anterior,
uma guarnição policial militar de serviço, enfrenta resistência armada, e como resultado
ocorre o óbito de um civil, este é o cenário da maioria dos "Autos de Resistência" lavrados no
47
nosso país. A investigação deste fato é de atribuição da Polícia Judiciária Militar Estadual ou
da Polícia Civil? A resposta para tal questão está taxativamente expressa no art. 9º do CPM:
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando
praticados:
c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza
militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar
contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; (grifo nosso)
Art. 205. Matar alguém:
Pena - reclusão, de seis a vinte anos. (BRASIL, Decreto-Lei nº 1.001, 1969)
Não a dúvida de que o fato típico é militar, isto porque, tratar o fato típico como crime é
mera leviandade, afinal o crime para existir precisar de que fato seja típico, seja também
antijurídico e culpável, no mínimo, sob pena de violarmos os princípios da presunção de
inocência e do devido processo penal, o que não se pode aceitar. Não é o momento de nos
debruçarmos na teoria tripartite do crime, trata-se aqui, do reconhecimento dos direitos
fundamentais do policial militar, que não são maiores e nem menores que o de nenhum outro
ser humano. Não se pode imaginar, que ainda antes da apresentação do fato à autoridade
policial, já se tenha tipificado o fato como homicídio, que já se tenha certeza de que o fato é
realmente crime, e que já se tenha reconhecido o elemento subjetivo como dolo, é a completa
inversão de valores, e pior, manifesto desrespeito à Lei Penal Militar.
O julgamento da ADI 1.494-DF, que manteve a constitucionalidade do § 2º do art. 82
do CPPM, foi decisivo para a manutenção da atribuição da Polícia Judiciária Militar para
investigar, até mesmo o crime doloso contra a vida de civil, quando cometido por militar.
Passaremos agora a analisar os argumentos dos Ministros do STF, quando do julgamento da
ação, isto no ano de 2001, ou seja, antes da importante Emenda Constitucional nº 45, que
aconteceu no ano de 2004, e promoveu a "reforma" do Poder Judiciário, assunto já tratado
neste trabalho. Começando pelo relator, o Ministro Celso de Mello que, em seu voto lembrou
das razões da edição da Lei 9.299/99, nos seguintes termos:
Impõe-se reconhecer, desde logo, que a edição da Lei n. 9.299, de 07/8/96 - que
altera disposições constantes do Código Penal Militar (art. 90) e do Código de
Processo Penal Militar (art. 82) - foi motivada por fatos extremamente perturbadores
revelados no curso de investigação legislativa, realizada por Comissão Parlamentar
de Inquérito destinada a apurar a eliminação física de crianças no Brasil. (STF -
ADI: 1494 DF, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento:
17/08/2001, data de Publicação: DJ 23/08/2001 P - 00003)
48
Por certo, que o início da década de noventa foi marcado por casos emblemáticos
envolvendo policiais militares, a saber: o “caso Carandiru” no ano de 1992, o “caso da
candelária” no ano de 1993; o caso “Vigário Geral” também no ano de 1993, o “El Dourado
dos Carajás” no início de 1996; dentre outros que, após atenção da imprensa nacional e
internacional, influenciaram de forma decisiva na aprovação da Lei nº 9.299/96.
A despeito dos fatos expostos não serem aceitáveis, entendemos que a edição da Lei nº
9.299/96 é fruto de um momento de desequilíbrio da atividade legiferante, que na verdade, se
viu pressionada pela sociedade a tomar alguma atitude, o fulcro foi frear tais escândalos na
segurança pública, e portanto, legislou-se para uma exceção, uma medida política, que em tais
circunstâncias de pressão popular, repercute na forma de mutação no âmbito jurídico, um
verdadeiro improviso legal.
Foram casos emblemáticos e de grande repercussão social sim, mas sem aqui entrar no
mérito dos fatos acima mencionados, com certeza não correspondem à maioria das
ocorrências policiais do Brasil, são a mínima porcentagem do trabalho das Polícias Militares,
instituições imperfeitas, como qualquer outro órgão do Estado.
O Ministro Celso de Mello, que votou pela inconstitucionalidade do § 2º do art. 82 do
Código de Processo Penal Militar, argumenta o seguinte:
Torna-se evidente, pois, Sr. Presidente, que tanto a Lei n. 9.299/96 (não obstante as
críticas procedentes que lhe vêm sendo feitas) quanto as diversas iniciativas
representadas por projetos de lei submetidos à consideração do Congresso Nacional
pelo próprio Presidente da República e pelo ilustre Deputado Federal Hélio Bicudo
nada mais exprimem senão o inequívoco desejo de dispensar aos policiais militares,
quando eventualmente sujeitos a medidas de persecução penal por delitos
supostamente cometidos no desempenho das funções de policiamento ostensivo, o
mesmo tratamento penal e jurídico-processual aplicável aos agentes e autoridades da
Polícia Civil. (STF - ADI: 1494 DF, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de
Julgamento: 17/08/2001, data de Publicação: DJ 23/08/2001 P - 00003)
Com a devida vênia, não entendemos assim, pois, em outras palavras, o Ministro
entende que o desejo da Lei 9.299/99 seria o de dispensar aos policiais militares o mesmo
tratamento penal e jurídico-processual aplicável aos agentes da Polícia Civil. Na nossa visão,
uma dedução lógica sem cabimento, pois, ao tempo que a Lei 9.299/96 modifica o art. 9º do
CPM, mudando apenas o foro de julgamento dos crimes dolosos contra a vida de civil,
quando praticados por militares, nada fala da fase pré-processual, que será lembrada quando
do acréscimo do § 2º do art. 82 do CPPM, que reconhece o Inquérito Policial Militar como
instrumento correto para apuração dos fatos. A constitucionalidade da lei nada tem a ver com
49
paridade entre as instituições, que são tratadas, de forma distinta pela própria Constituição,
afinal, não são iguais.
Nesta senda, ao arrepio do que expressamente estipula o diploma legal, segue o Voto do
ministro relator da ADI 1.494-DF:
[...] um sistema organizado de proteção social contra a violência arbitrária da Polícia
Militar (lamentavelmente em processo de contínua expansão) e de imediata reação
estatal - sempre respeitados os princípios que regem a garantia do due process of law
- que permita seja imposta justa punição, por juízes e Tribunais comuns e
independentes, aos integrantes dessa corporação que se vejam acusados da prática de
ilícitos penais no exercício das funções ordinárias de policiamento ostensivo
estamental não podem justificar que se dispense a qualquer organismo policial
tratamento diferenciado que assegure a seus agentes o inaceitável privilégio da
investigação reservada e da jurisdição doméstica. (STF - ADI: 1494 DF, Relator:
Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 17/08/2001, data de Publicação: DJ
23/08/2001 P - 00003) (grifo nosso)
Havia razão para duvidar da imparcialidade das Justiças Militares Estaduais de todos os
estados da federação? Os juízos militares estaduais, mutatis mutantis, são compostos também
por Juízes de Direito, subordinados ao mesmo Tribunal de Justiça de seu estado, como
qualquer outro juiz da esfera estadual. Apenas existem Tribunais de Justiça Militar Estadual
em três estados da federação (SP, MG e RS), ainda assim, os Juízes de Direito dos Tribunais
de Justiça Militares Estaduais são civis, bacharéis em Direto, submetidos a concurso público
nos mesmos moldes que qualquer outro magistrado, fazem jus às mesmas garantias
constitucionais, então fica a pergunta: dada a imperativa especificidade da matéria militar,
qual a razão para retirar a competência da Justiça Militar Estadual para apurar os crimes
dolosos contra a vida de civil?
Se o tribunal do júri é um instituto específico para o crime doloso contra a vida, há de se
observar que a ação policial que tenha como resultado morte, é, ainda mais específica,
arraigada de peculiaridades institucionais que precisam ser analisadas por quem é mais afinco
à matéria, afinal, quem aciona o gatilho em cada ocorrência é o próprio Estado Democrático
de Direito, que o faz por meio do agente que atua em seu nome, ou aqui pensamos que o
servidor militar atua em nome próprio?
Parece-nos que o tratamento dispensado às Justiças Militares Estaduais, não condiz com
a realidade, pois o voto do senhor ministro transborda desconfiança, à primeira vista, sem
justa causa, como se a Justiça Militar Estadual fosse um departamento da Polícia Militar ou
pior, fosse um manto para assegurar impunidade e injustiça, o que não é verdade.
E o Ministro relator segue com seu voto:
50
Bem por isso, Sr. Presidente, é preciso advertir esses setores marginais que atuam
criminosamente na periferia das corporações policiais que ninguém, absolutamente
ninguém - inclusive a Polícia Militar - está acima das leis. (STF - ADI: 1494 DF,
Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 17/08/2001, data de
Publicação: DJ 23/08/2001 P - 00003)
Por esta lógica, se considerarmos que a especificidade da matéria é um "privilégio",
estaria em cheque a Justiça Eleitoral, a Justiça do Trabalho e da mesma forma, a Justiça
Federal. Lembramos que não existe foro privilegiado para policiais militares.
De fato, parecem faltar argumentos jurídicos, ao tempo que sobram críticas à instituição
da Polícia Militar, como se militares fossem apenas os policiais militares, ou só existisse uma
nefasta Polícia Militar para todo o Brasil.
Vejamos mais um trecho do voto do Ministro relator:
Esse diploma legislativo, ao introduzir modificações no art. 9° do CPM, estabeleceu
regra de importância fundamental que descaracteriza, como delito militar, o crime
doloso contra a vida de vítima civil, praticado por militar ou policial militar. (STF -
ADI: 1494 DF, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento:
17/08/2001, data de Publicação: DJ 23/08/2001 P - 00003)
Já vimos neste capítulo, que a alteração legislativa do art. 9º do CPM, realizada por
meio da Lei nº 9.299/96, acrescentou o parágrafo único no dispositivo legal:
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
§ 1o Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por
militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri. (BRASIL, Decreto-
Lei nº 1.001, 1969)
A alteração da competência para julgamento de uma infração não pode descaracterizar a
qualidade de "militar" do delito, e nem este foi o objetivo do legislador, pois se assim o
quisesse, teria feito, bastaria dizer: "não se considera crime militar:", o que não aconteceu.
Vejamos o que entendeu o então Ministro Nelson Jobim, quando subscreveu a exposição de
motivos da Lei nº 9.299/96, que é citada no voto do próprio relator Celso de Mello:
8. O teor do parágrafo único acrescido ao art. 9° do Código penal Militar causa
espécie ao leitor. Por essa norma, compete à Justiça Comum o processo e
julgamento de crimes dolosos contra a vida de civil praticados por militar, delito
esse militar, já' que se insere esse parágrafo no bojo de artigo que assim considera
determinadas condutas.
9. Ora, a Constituição Federal é de clareza cristalina: compete à Justiça Militar
processar e julgar os crimes militares definidos em lei, nos termos de seu art. 124.
10. Como admitir-se, então, a nova lei, se a inconstitucionalidade é um vício
insanável?
51
11. Ter-se-á que se socorrer o intérprete de regras de hermenêutica para afastar esse
vício. E ai encontrará o fato de ser permitido à lei ordinária proceder a conceituação
de crime militar, tendo sido suficiente, pois, que, para atingir, com acerto, seu
desiderato, o legislador excluísse os crimes dolosos contra a vida de civil praticados
por militar de conceito de crime militar, sem qualquer referência à Justiça Comum,
porque a ela passará automaticamente a competência do processo e julgamento do
crime que não mais integra o conceito de crime militar. (STF - ADI: 1494 DF,
Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 17/08/2001, data de
Publicação: DJ 23/08/2001 P - 00003) (grifo nosso)
O Ministro relator entendeu que o § 2º do art. 82 do CPM é inconstitucional, mas tal
decisão tem como fundamento principal a descaracterização do crime, que deixa de ser militar
e passa a ser crime comum:
Esse diploma legislativo, ao introduzir modificações no art. 9° do CPM, estabeleceu
regra de importância fundamental que descaracteriza, como delito militar, o crime
doloso contra a vida de vítima civil, praticado por militar ou policial militar. (STF -
ADI: 1494 DF, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento:
17/08/2001, data de Publicação: DJ 23/08/2001 P - 00003)
Tal premissa não é verdadeira, o crime continua sendo militar, apenas houve
modificação da competência para julgamento. Justamente por adotar tal premissa, ao nosso
entender equivocada, é que a ADEPOL tenta por meio da ADI 1.494-DF, tornar o § 2º do art.
82 do CPPM inconstitucional, pois, desta forma, o único instrumento de investigação seria o
Inquérito Policial, instaurado pela Polícia Civil e não o Inquérito Policial Militar, instaurado
pela PJM. O deputado Hélio Bicudo, congressista que propôs o projeto de Lei que se tornou a
Lei 9.299/96, também foi citado no voto do Ministro Celso de Mello e se pronuncia sobre o §
2º do art. 82 do CPPM, nos seguintes termos:
Com isso, o inquérito permanecerá sob a responsabilidade da autoridade policial
militar, mesmo em se tratando de crime doloso contra a vida, que, pela alteração
contida no próprio projeto, é da competência da Justiça comum. (STF - ADI: 1494
DF, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 17/08/2001, data de
Publicação: DJ 23/08/2001 P - 00003)
O próprio deputado reconhece a atribuição da Polícia Judiciária Militar para investigar o
crime doloso contra a vida de civil, quando praticado por militar, bem como a competência da
Justiça comum para julgamento, só não se pode aqui confundir-se, Justiça comum com
Polícia Civil, ou até mesmo, Poder Judiciário com o Poder Executivo. O crime mesmo que
doloso contra a vida de civil e praticado por militar, nunca deixou de ser crime militar, não há
que se falar em mudança de atribuição para investigar tais fatos, fala-se aqui da fase pré-
processual, que permanece intacta.
52
Considerando que um policial militar de serviço se envolva em uma ocorrência que
tenha como resultado o óbito de civil, estará ele enquadrado na hipótese prevista na alínea c,
inciso II do art. 9º do CPM, cominado com o art. 205 do mesmo diploma legal:
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando
praticados
c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de
natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração
militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil;
Art. 205. Matar alguém:
Pena - reclusão, de seis a vinte anos. (BRASIL, Decreto-Lei nº 1.001, 1969) (grifo
nosso)
Na hipótese de um crime militar ocorrer, como no caso, é dever da autoridade de Polícia
Judiciária Militar instaurar um Inquérito Policial Militar, procedimento administrativo
adequado para tal apuração. Findado o IPM, os autos devem ser remetidos ao Juiz da
Circunscrição Judiciária Militar, conforme preceitua p art. 22 do CPPM:
Relatório
Art. 22. O inquérito será encerrado com minucioso relatório, em que o seu
encarregado mencionará as diligências feitas, as pessoas ouvidas e os resultados
obtidos, com indicação do dia, hora e lugar onde ocorreu o fato delituoso. Em
conclusão, dirá se há infração disciplinar a punir ou indício de crime, pronunciando-
se, neste último caso, justificadamente, sôbre a conveniência da prisão preventiva do
indiciado, nos têrmos legais.
Remessa do inquérito à Auditoria da Circunscrição
Art. 23. Os autos do inquérito serão remetidos ao auditor da Circunscrição Judiciária
Militar onde ocorreu a infração penal, acompanhados dos instrumentos desta, bem
como dos objetos que interessem à sua prova.
Arquivamento de inquérito. Proibição
Art. 24. A autoridade militar não poderá mandar arquivar autos de inquérito, embora
conclusivo da inexistência de crime ou de inimputabilidade do indiciado. (BRASIL,
Decreto-Lei nº 1.002, 1969) (grifo nosso)
Não é a autoridade de Polícia Judiciária Militar, quem decidirá se houve o crime de
homicídio ou não, e nem quem decidirá sobre dolo ou culpa do policial militar investigado no
IPM. Uma vez concluído o IPM, o Juiz da Circunscrição Judiciária Militar, é quem decide por
declinar da competência ou não, isto porque, se ficar evidenciado o crime doloso contra a vida
de civil, os autos devem ser remetidos à Justiça comum, conforme determinação legal do
parágrafo único do art. 9º do CPM.
Na nossa visão, este é o caminho que melhor atende aos princípios da legalidade e do
devido processo legal, no caso de o militar, de serviço, ser acusado de crime contra a vida de
civil.
53
O segundo voto foi do senhor Ministro Maurício Corrêa, que é aqui transcrito em inteiro
teor:
Sr. Presidente, mantendo essa perplexidade, prefiro acompanhar o eminente Relator
para suspender a eficácia dessa norma. Tanto mais que suspensa, pelo meu sentir,
não vejo que haja nenhum prejuízo na apuração dos fatos delituosos, porque, se for
crime civil, o inquérito será mandado para a autoridade civil.
Por isso, acompanho S. Exa., pois estou admitindo que, na hipótese, há
incompatibilidade da norma impugnada em face ao § 4' do art. 144 e, também, do §
1°, inciso IV, da Constituicão Federal.
Defiro a cautelar. (STF - ADI: 1494 DF, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data
de Julgamento: 17/08/2001, data de Publicação: DJ 23/08/2001 P - 00003)
Entendemos que, o voto do senhor ministro foi baseado na premissa de que a natureza
do delito militar foi modificada, quando, na verdade, houve apenas o deslocamento da
competência para julgamento da infração, como já argumentamos neste capítulo. Por isso, não
há que se falar em inconstitucionalidade.
Na sequência, votou o senhor Ministro Ilmar Galvão que entendeu pela
inconstitucionalidade do § 2º do art. 82 do CPPM, e deferiu a cautelar pleiteada. Segue trecho
da decisão:
E o faço, tendo em vista que, se mantida, poderia ser interpretada como exigente de
que o inquérito, necessariamente, seja instaurado, em qualquer circunstância, perante
a Justiça Militar, mesmo em crime de homicídio doloso contra a vida, o que não
poderia ser aceito, posto que competente para julgamento, no caso, a Justiça comum.
(STF - ADI: 1494 DF, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento:
17/08/2001, data de Publicação: DJ 23/08/2001 P - 00003)
Mais uma vez, parece-nos que a mudança de foro de julgamento do delito causou
estranheza jurídica, mas não podemos olvidar da Lei, simplificaremos. O crime doloso contra
a vida de civil continua sendo militar? Sim, pois se quisesse diferente, a lei teria simplesmente
excluído o fato típico do rol dos crimes militares, mas não o fez, modificou apenas a
competência para julgamento. Existe vedação constitucional para que a Polícia civil apure
infrações militares? Sim, a vedação é expressa no § 4º do art. 144 da CF. Existe proibição
legal para que o IPM tenha como destino final a Justiça comum nos casos de crime doloso
contra a vida de civil, quando praticado por militar? Não, inclusive é esta a determinação legal
do § 2º do art. 82 do CPPM.
O senhor Ministro Marco Aurélio inicia a divergência com a pronúncia de seu voto,
argumentando o seguinte:
Atravessamos uma quadra muito infeliz no tocante à Policia Militar, em que fatos
inimagináveis vieram a público, escandalizando, a mais não poder, a sociedade.
Todavia, não podemos deixar de reconhecer que a segurança, em si, também é
proporcionada, a essa mesma sociedade, pela Polícia Militar; não podemos olvidar o
54
princípio da razoabilidade, sempre a conduzir à presunção não 'do extraordinário,
não do excepcional, não de posições tendenciosas mas aquelas de padrão médio, o
padrão do homem médio.
Não coloco, forma alguma, sob suspeição a atuação da Polícia Militar.
Todavia, não posso assentar, de inicio, que, tendo começado o inquérito, o qual visa
à apuração sumária do fato - e o preceito atacado não revela que ele somente será
remetido à Justiça comum após conclusão no âmbito policial militar, será um
inquérito viciado, em que pese a atuação de um outro órgão junto à Justiça Militar,
que é o Ministério Público. Acredito na fiscalização do meu órgão de origem, em se
cuidando dos diversos segmentos. (STF - ADI: 1494 DF, Relator: Min. CELSO DE
MELLO, Data de Julgamento: 17/08/2001, data de Publicação: DJ 23/08/2001 P -
00003) (grifo nosso)
Na transcrição do voto do senhor Ministro Marco Aurélio, percebem-se desfeitas uma
série de sofismas criados na inicial da ADEPOL, que até então foram repetidas pelos demais
membros do STF, mas que não passaram despercebidos ao alvitre do ministro que divergiu.
São vinte e sete instituições da Polícia Militar no nosso país, além dos Corpos de
Bombeiros Militares e das Forças Armadas. Não se pode legislar para a exceção, aos culpados
a lei e a Justiça, e não uma retaliação institucional como se evidencia. Não pertence ao
judiciário a política da conveniência. No Poder judiciário não se pode criar atalhos
interpretativos na lei, e permitir o que a norma não permitiu, deve-se sim, coibir
interpretações parciais da lei.
Com lucidez, continua o senhor Ministro a votar:
Não entendo que se tenha no dispositivo em comento, autorização para que se
conclua, às inteiras, o próprio inquérito. Evidentemente, a autoridade policial
militar, entendendo pela existência de indícios da ocorrência de crime doloso contra
a vi procederá, na esfera da absoluta normalidade, à remessa dos autos inquérito
policial militar à Justiça comum. (STF - ADI: 1494 DF, Relator: Min. CELSO DE
MELLO, Data de Julgamento: 17/08/2001, data de Publicação: DJ 23/08/2001 P -
00003) (grifo nosso)
No caso de um policial militar cometer um crime militar, será este investigado pela
Polícia Judiciária militar; na hipótese de um policial civil cometer um crime comum, será
investigado pelo Polícia Civil. Por qual razão o manto da desconfiança recai apenas sobre a
Polícia Militar? Todas as corregedorias, de todas as instituições, merecem o mesmo
tratamento? A despeito dos reais interesses político-criminais na alteração legislativa,
devemos aqui nos ater, ao que propõe a norma penal em foco, como bem o fez o senhor
Ministro Marco Aurélio.
O senhor Ministro Carlos Veloso, que entendeu pela constitucionalidade do § 2º do art.
82 do CPPM, trouxe à tona o seguinte:
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É dizer, a Lei 9.299, de 1996, estabeleceu que à Justiça Militar competirá exercer o
exame primeiro da questão. Noutras palavras, a Justiça Militar dirá, por primeiro, se
o crime é doloso ou não; se doloso, encaminhará os autos do inquérito policial
militar à Justiça comum. Registre-se: encaminhará os autos do inquérito policial
militar. É a lei, então, que deseja que as investigações sejam conduzidas, por
primeiro, pela Polícia Judiciária Militar. (STF - ADI: 1494 DF, Relator: Min.
CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 17/08/2001, data de Publicação: DJ
23/08/2001 P - 00003) (grifo nosso)
O que diz a Constituição sobre o crime militar? Vejamos qual é a regra estabelecida no
§ 4º do art. 125 da CF:
Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos
nesta Constituição.
§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados,
nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares
militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao
tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da
graduação das praças. (BRASIL, Constituição Federal, 1988) (grifo nosso)
A própria Constituição admite que os crimes militares devem ser definidos por lei, justo
o que faz o art. 9º do CPM. Neste diapasão, entendemos que o § 1º do art. 9º do CPM, que foi
editado pela Lei nº 13.481/96, cria uma exceção, qual seja a transferência de competência
para julgamento do crime doloso contra a vida de civil.
A mesma Lei nº 9.299/96 que modificou pela primeira vez competência para
julgamento dos crimes dolosos contra a vida de civil, quando praticado por militar, também
estabeleceu no § 2º do art. 82 o seguinte: “nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra
civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à Justiça comum”.
Não devemos aqui supor que o Congresso Nacional é composto por inocentes, ou
legisladores desatentos. Prossegue o senhor Ministro com seu voto:
Mas o que deve ser reconhecido é que o primeiro exame é da Justiça Militar, que,
verificando se o crime é doloso, encaminhará os autos do IPM à Justiça comum. É o
que está na lei. [...] Registro novamente: este julgamento não se constitui num
julgamento imodificável. Estará ele sujeito ao controle judicial, através dos recursos
próprios, inclusive do habeas corpus. (STF - ADI: 1494 DF, Relator: Min. CELSO
DE MELLO, Data de Julgamento: 17/08/2001, data de Publicação: DJ 23/08/2001 P
- 00003)
O senhor Ministro Sidney Sanches, também divergiu do relator nos seguintes termos:
Sr. Presidente, a meu ver, o § 2° do art. 82 da Lei n° 9.299, de 07.08.1996, impõe a
instauração de inquérito policial militar sempre que houver suspeita de que um
militar haja praticado crime doloso contra a vida de civil. Se no inquérito os
elementos informativos forem no mesmo sentido será obrigatória a remessa dos
autos à Justiça comum. (STF - ADI: 1494 DF, Relator: Min. CELSO DE MELLO,
Data de Julgamento: 17/08/2001, data de Publicação: DJ 23/08/2001 P - 00003)
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Diferentemente do que foi visto até agora, o Ministro Sidney Sanches, considerou a
possibilidade da abertura de dois inquéritos concomitantes para apurar o mesmo fato, uma na
esfera penal comum e outro na esfera penal militar:
Até porque não impede que se instaure, paralelamente, outro inquérito na Polícia
Civil. Se, após os dois inquéritos, houver conflito de competência ou de jurisdição,
ele se resolverá pelos meios previstos na Constituição e nas leis processuais. (STF -
ADI: 1494 DF, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento:
17/08/2001, data de Publicação: DJ 23/08/2001 P - 00003)
Entendemos diferente, não acreditamos que a investigação em duas esferas penais
distintas seja uma solução plausível. A primeira razão diz respeito ao fato de as Polícias Civis
serem constitucionalmente proibidas de investigar crimes militares, isto por força do § 4º do
art. 144 da CF: " Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem,
ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações
penais, exceto as militares".
No nosso entendimento, a duplicidade de inquéritos para apurar o mesmo fato consiste
numa afronta direta ao princípio do non bis in idem, afinal a que se pretendem duas
investigações? Um duplo processamento? Uma dupla sanção? Ou quem sabe os inquéritos
cheguem a conclusões diferentes, causando dúvida no órgão Ministerial. Sem falar na defesa
do investigado, que por certo, deve buscar o trancamento de uma das investigações. Ao nosso
ver, a duplicidade se pretende mais a dificultar que a auxiliar a persecutio criminis.
Há, ainda, que se falar em gasto público desnecessário, duplos serão os interrogatórios e
os depoimentos testemunhais, duplas as perícias e equipes de servidores públicos,
despendendo tempo e recursos ao mesmo fato.
De fato, o maior prejudicado é o próprio investigado, neste caso, o militar.
O Ministro Néri da Silveira, entendeu, da mesma forma que o Ministro Sidney Sanches,
divergiu do Ministro relator, e considerou que a investigação deve ser iniciada na esfera penal
militar, até pelo fato de no momento da notitia criminis não se ter certeza da prática do delito,
e muito menos do elemento subjetivo, mas considerou a possibilidade de duplicidade de
investigações para o mesmo fato:
O determinado pela lei foi, portanto, que, nessas circunstâncias, em que haja um
policial militar praticado determinado delito - que pode até envolver um homicídio
doloso, pode envolver meras lesões corporais, pode se tratar de um outro crime que
não esteja na competência da Justiça Comum o inquérito se instaure no âmbito da
corporação militar, assim como vinha sendo feito.
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(...) em se tratando de homicídio doloso, sendo este, a meu ver, o conteúdo, a
extensão da norma, que não impede - repito, uma vez mais - que, desde logo possa
ser feito até paralelamente, como não impediria que o Ministério Público oferecesse
imediata denúncia, instaurando ação penal, como não impediria que o delegado
abrisse o inquérito. (STF - ADI: 1494 DF, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data
de Julgamento: 17/08/2001, data de Publicação: DJ 23/08/2001 P - 00003)
Transcrevemos o inteiro teor do voto do ministro Moreira Alves, que entendeu pela
constitucionalidade na norma impugnada:
Sr. Presidente, não me parece, nesse exame compatível com o pedido de liminar,
que haja, relevância na fundamentação desta argüição de inconstitucionalidade
capaz de determinar a suspensão da eficácia da norma sob exame, até porque essa
suspensão, por se dar por suspeita de inconstitucionalidade, precisa fundar-se em
fundamentação de grande relevância.
Em face disso, acompanho, com a devida vênia, o Ministro Marco Aurélio e os que
o seguiram. Indefiro a Lminar. (STF - ADI: 1494 DF, Relator: Min. CELSO DE
MELLO, Data de Julgamento: 17/08/2001, data de Publicação: DJ 23/08/2001 P -
00003)
O voto do Presidente do STF, o Ministro Sepúlveda Pertentence, foi no sentido de
seguir o voto do relator. Transcrevemos os trechos do voto que merecem destaque:
Todo o problema surge exatamente de que os crimes de violência contra a pessoa de
civil, cometidos no exercício de atividade civil, qual é a do policiamento atribuído à
Polícia Militar, continuaram por esta lei definidos como crimes militares e,
conseqüentemente, sujeitos à Justiça Militar e à Polícia Judiciária Militar, com a
única exceção dos crimes dolosos contra a vida, extraída a custo da (STF - ADI:
1494 DF, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 17/08/2001, data
de Publicação: DJ 23/08/2001 P - 00003) (grifo nosso)
Percebe-se que o eminente ministro criou, por si só, um conceito negativo para os
crimes militares, qual seja, todos aqueles crimes que não são cometidos no exercício de
atividade civil, ou seja, se o caráter da atividade é civil, então não se trata de crime militar.
Para a sorte do ordenamento jurídico, os crimes militares estão taxativamente definidos no art.
9º do CPM, ao que parece, foi completamente ignorado.
Assim sendo, entendemos que o voto do ministro incorreu na mesma falha conceitual
do ministro relator, quando da definição de crime militar:
A lei, portanto, inverte claramente, a meu ver, a determinação da norma
constitucional, quando dispõe que, havendo crime que não é militar, não obstante, a
polícia judiciária não será exercida pela Polícia Civil, e, sim, pela Polícia Judiciária
Militar. (STF - ADI: 1494 DF, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de
Julgamento: 17/08/2001, data de Publicação: DJ 23/08/2001 P - 00003) (grifo nosso)
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Desta forma, o Pleno do Supremo Tribunal Federal - vencidos os Ministros CELSO DE
MELLO (Relator), MAURÍCIO CORRÊA, ILMAR GALVÃO e SEPÚLVEDA PERTENCE
- entendeu que a norma inscrita no art. 82, § 2°, do CPPM, na redação dada pela Lei n°
9299/96, reveste-se de aparente validade constitucional.
Exsurge que, os crimes militares têm definição legal, e em nenhum momento houve
intenção do legislador em retirar a natureza de militar do delito, repetimos, houve apenas o
deslocamento de competência para julgamento para a Justiça comum. No capítulo 3 deste
trabalho, vimos que o bem jurídico tutelado pelo Código Penal Militar é complexo, diferente
no bem jurídico tutelado na esfera comum. A esfera Penal Militar alinha a proteção do direito
à vida aos valores e princípios militares, principalmente, a hierarquia e a disciplina, impondo
o caráter público e indisponível em todos os bens jurídicos tutelados na Lei Penal Militar.
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9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Talvez, o Estado Democrático de Direito Brasileiro, ainda não tenha atingido a
maturidade, e insista em conviver com fantasmas passados, um conflito que se exauriu com a
promulgação da Constituição de 1988, e que não sustenta mais uma justa causa.
O maior desafio para a Constituição cidadã, por certo, está na efetividade de seus
princípios. No nosso entendimento, os quase trinta anos de vigência da Carta Magna, ainda
não foram suficientes para que os preceitos constitucionais da educação, saúde e segurança,
principalmente, alcancem a grande maioria da população brasileira, de forma concreta e
regular.
Aos militares estaduais, por dever constitucional, compete a missão mais sensível da
segurança pública, uma atividade que diuturnamente requer o risco da própria vida, nenhuma
outra instituição é tão exigida em nosso país. Apesar disto, os militares são duplamente
fiscalizados na esfera penal, tanto pela Justiça comum, como pela Justiça Militar.
O lei penal militar é especial, e como qualquer outra lei com matéria específica, tem
preferência na sua aplicação. Ficou demonstrado neste trabalho que, a legislação penal militar
existe para defender os princípios e valores das instituições militares, e não os militares. Por
esta razão, defendemos que o bem jurídico tutelado pela legislação penal militar, tem caráter
complexo, o que justifica a especialidade da matéria, diferente do bem jurídico tutelado na
legislação penal comum.
O crime contra a vida merece especial atenção da legislação penal, e por isso, o instituto
do Tribunal do Júri é o competente para o julgamento dos crimes contra a vida, isto na
modalidade dolosa. Não podemos olvidar que, nas hipóteses do art. 9º do CPM, ou seja, dos
crimes militares, o instrumento utilizado para a investigação do fato, é o inquérito policial
militar, que tem como fito, desvendar a sua autoria e a materialidade.
Findado o IPM, seu destino é sempre o Ministério Público, Estadual ou da União, sendo
possíveis as seguintes hipóteses: 1 - promover o arquivamento, por ficar evidente a incidência
da excludente de ilicitude, o fato não é crime; 2 - pode o MP entender pela mudança do tipo
penal, a exemplo da descaracterização do homicídio, para a lesão corporal seguida de morte e
por último; 3 - pode acontecer a denúncia, onde há uma subdivisão, pois se for considerada a
modalidade dolosa do homicídio, o Ministério Público Militar deve declinar da competência
para o MP que atua no Tribunal do Júri, entretanto, se for o caso de homicídio culposo, o
processamento e julgamento da ação deve ocorrer no Juízo Militar competente.
60
Restou evidente, que a mudança de competência para julgamento, não modifica a
natureza do crime, ao tempo que, a fase pré-processual que ocorre no âmbito do Poder
Executivo, não se confunde com o processamento e julgamento da ação penal, que ocorre no
âmbito do Poder Judiciário. Desta forma, não há fundamento legal que permita a Polícia Civil,
investigar um crime doloso contra a vida de civil, quando este é cometido por militar de
serviço, ou atuando em razão da função, ou em qualquer das hipóteses do art. 9º do CPM,
afinal, lhes é vedada pela Constituição a investigação dos crimes militares.
O julgamento da ADI nº 1.494 DF, de fato, foi a oportunidade de o Supremo Tribunal
Federal se pronunciar sobre um tema tão conturbado, e por isso, analisamos os votos de todos
os Ministros, ponderando cada um dos argumentos. Não por acaso, foi exarada uma decisão
apertada, e se alcançou a resposta que toda a segurança pública aguardava: a Polícia Judiciária
Militar não só pode, como deve, instaurar o inquérito policial militar, para investigar os
crimes dolosos contra a vida de civil, quando cometido por militar, nas hipóteses do art. 9º do
CPM.
Alfim, restou evidente que é vedada a investigação da Polícia Civil, quando incidentes
as hipóteses do art. 9º do CPM, cabendo à Polícia Judiciária Militar Estadual, nestes casos, a
exclusividade de investigação.
61
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